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NUNCA SE SABE DE ANTEMÃO COMO ALGUÉM VAI APRENDER1

I
Gilles Deleuze, em “Diferença e Repetição”, apresenta uma concepção
de Aprendizagem como processo, no qual se desenvolve um vínculo entre o
aprendiz e aqueles aspectos que o toca em todo o conjunto de conhecimentos
a que está sendo exposto. Estes aspectos são referidos como signos. Portanto,
para ele, o mais importante não é o que o professor tenta ensinar, pois isto nem
sempre é acessível ao aluno, mas a parte disto que, de fato, produz a
aprendizagem. Nesta perspectiva, a educação nunca deve ser considerada
como disciplina, domesticação ou simples aquisição de saberes, mas sempre
como uma processualidade, um Devir, um tornar-se.
Para ele, a aprendizagem possui dois aspectos. Em primeiro lugar,
aprender é conjugar “pontos notáveis” do corpo (ou da mente) de quem
aprende com os “pontos singulares da Ideia objetiva” (os signos). Esta
conjunção se constitui como um “campo problemático”, ou seja, algo sempre
por se fazer, um Devir. É ao mesmo tempo que a conjunção se faz e que ela se
constitui como campo problemático, ou seja, se a interação dos signos com
pontos notáveis do aprendiz não se constitui como um problema, não existe
condições para que um processo de aprendizagem se inicie.
Um outro aspecto desta conjunção é que ela estabelece “um limiar de
consciência” ao nível do qual os atos reais do aprendiz se ajustam às suas
“percepções das correlações reais do objeto”, produzindo-se, então, uma
solução do problema que originou a aprendizagem. Pelo outro lado, os pontos
singulares da Ideia objetiva são elementos a priori da Natureza e objeto
subliminar de pequenas percepções. Sendo assim, “a aprendizagem passa
sempre pelo inconsciente, passa-se sempre no inconsciente, estabelecendo,
entre a natureza e o espírito, o liame de uma cumplicidade profunda”. Neste
aspecto, aprender consiste sempre em “penetrar no universal das relações que
constituem a Ideia e nas singularidades que lhes correspondem”.
Então, é por isto que Deleuze pode afirma: “nunca se sabe de antemão
como alguém vai aprender – que amores o tornam bom em latim, com

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Este texto foi apresentado como parte de uma Mesa Redonda na XVI Reunião Anual da Sociedade de
Psicologia do Triângulo Mineiro, realizada em Uberaba, MG, em 2010.
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quais encontros se é filósofo, em que dicionários se aprende a pensar”.


A aprendizagem é sempre um acontecimento singular, criativo, inventivo,
inovador, nunca jamais repetido. Pois, os pontos notáveis do aprendiz, que são
sempre singularidades pré-individuais, se conjugam a pontos singulares,
também pré-individuais, daquilo com o que ele está em relação de
aprendizagem, a Ideia objetiva, o que resulta numa composição que só pode
ser, por sua vez, completamente singular, inventiva e inconsciente.
O exemplo dado por Deleuze, citado de Leibniz, é o de como se aprende
a nadar no mar. Partindo-se da concepção de que a ideia objetiva de mar
compõe um sistema de relações diferenciais ou ligações entre partículas e
singularidades correspondentes aos graus de variações destas relações, cujo
conjunto encarna-se no movimento real das ondas. Aprender a nadar passa a
consistir em conjugar pontos notáveis do corpo (cabeça, braços, tórax, pernas,
aparelho respiratório) com os pontos singulares da Ideia objetiva de mar (as
ondas), produzindo-se uma sincronia de movimentos. Trata-se sempre de
explorar os aspectos diferenciais da Ideia, os signos, para que se possa
conjugar com eles pontos notáveis do aprendiz (do seu corpo ou de sua
mente). Mas, tanto a exploração da Ideia objetiva quanto os ajustes dos pontos
notáveis do corpo a ela, se fazem abaixo do limiar da consciência.
Para Deleuze, a despeito do exemplo, não é apenas o ato psicomotor que
se aprende assim, mas este é o padrão de todo e qualquer processo de
aprendizagem. Assim, se engana que atribui o sucesso ou fracasso na
aprendizagem ao indivíduo, supondo que ele está no controle deste processo.
Não é ele que aprende. Na maior parte do processo, ele nada sabe
conscientemente do que se passa nele.
Mais ainda, se dar na forma de uma conjunção, para Deleuze, não é
apenas o caso da aprendizagem. Pelo contrário, a aprendizagem em um caso
particular de conjunção. Tanto que, no Anti-Édipo, com Félix Guattari, ele irá
generalizar tal conjunção denominando-a de “Máquina Desejante”.
Posteriormente, em Mil Platôs, ela será chamada de “Agenciamento”. Vemos
então, que aprender em um caso particular de desejar. O Desejo é
Agenciamento, inconsciente e pré-individual. O que quer dizer que ele se dá
apenas entre singularidades pré-individuais, também referidos como “objetos
parciais”, termo originalmente criado por Melanie Klein.
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Para Deleuze, por exemplo, nunca nos apaixonamos por uma pessoa,
pelo indivíduo que alguém é, na sua totalidade, mas sempre, são partes de
mim que se conjugam ou se agenciam com partes dela ou dele, conjunção esta
que permanece sempre inconsciente, entre objetos parciais.
A implicação educacional que se pode tirar daí, é que, se o professor
espera e cobra do indivíduo-aluno o seu envolvimento, a sua responsabilidade
pela aprendizagem, ele não a estará facilitando. Pois, estará colocando a
ênfase numa totalidade individual já atualizada, a da pessoa ou do indivíduo,
quando a aprendizagem para se iniciar precisa que se retorne à virtualidade
dos objetos parciais, pois só eles podem participar de seu processo. Além
disto, toda a preocupação com a relação entre o professor e o aluno, para
Deleuze, só faz desviar também o foco do processo que nunca se passa entre
eles. Aprender é desejo, mas de aprender, nem sexual, nem edipiano, quer
dizer não envolve pessoas, nem mesmo pessoas imaginárias, nem mesmo no
nosso inconsciente, até porque no inconsciente, para ele, não existem figuras
ou representações de pessoas, mas apenas objetos parciais.
Um feliz exemplo no qual o professor favorece o Agenciamento é o de
Antonio Leal, apresentado em “Fala Maria Favela”.
II
Num segundo aspecto, a Aprendizagem consiste também no fato de que
o aprendiz eleva cada uma de suas faculdades ao que Deleuze denomina
exercício transcendental. Não se assustem com a palavra, tomemo-la apenas
em sua conotação de processualidade. Neste sentido, de início, na
sensibilidade, a primeira faculdade envolvida, este exercício procura fazer com
que nasça “esta segunda potência que apreende o que só pode ser sentido”. A
esta elevação da sensibilidade, denomina “educação dos sentidos”, para fazer
referência à possibilidade de se extrair da sensibilidade a sua singularidade
máxima, quer dizer, sentir aquilo que não pode ser identificado por nenhum tipo
de “representação”, “recognição”, reconhecimento de algo já sentido antes.
Para que esta “educação dos sentidos” se dê, é preciso renunciar ao
senso comum, ao bom senso e à lógica formal, aristotélica ou dialética, já que
são eles os responsáveis pela representação e pela recognição. É por isto que
ele precisa recorrer a termos como “parasenso”, em lugar de bom senso, ou
paradoxo no lugar de representação.
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A elevação da sensibilidade a sua potência máxima gera uma “violência”


que é, então, comunicada às outras faculdades, a imaginação, a memória e o
pensamento. Mas, sempre se conjugando com o Outro (o signo) no
“incomparável” de cada uma das faculdades. Um exemplo desta “violência” que
se inicia na sensibilidade e se alastra, como o fogo, para as outras faculdades
pode ser ilustrado pelo delírio. Delirar é elevar a sensibilidade a sua enésima
potência, o que, automaticamente, se alastra por todas as outras faculdades,
resultando até em delírios muito bem elaborados.
Os dois aspectos da aprendizagem, citados até aqui, estão tão
interligados que Deleuze pode afirmar: “dá na mesma explorar a Ideia e elevar
cada uma das faculdades a seu exercício transcendental”, referindo-se ao fato
de se estar situado ai sempre num campo transcendental, da Ideia como
virtualidade, num a priori.
Diferentemente da aprendizagem, temos o saber que se refere “apenas
a generalidade do conceito ou a calma posse de uma regra das soluções ”. Ao
contrário da aprendizagem, permanece sempre no campo dos possíveis, das
regras que nos levam às soluções possíveis. É apenas em relação ao saber,
que se pode, então, falar em método.
Este saber, ou simples transmissão de conhecimentos, se faz por
“recognição”, reconhecimento, baseado em representações. Na escola, ele
consiste em se solicitar do aluno apenas que compreenda, quer dizer, aceite
uma dada representação do real que já lhe é apresenta pronta, acabada, que
memorize, fatos, datas ou conceitos. Pode-se dizer então, que se trata de uma
“cognição recognitiva”, que atua apenas sobre representações prontas. Ao
contrário, a aprendizagem como processualidade, defendida por Deleuze, será
sempre uma “cognição inventiva”, como corretamente nomeou Kastrup (...).
Tentemos elucidar um pouco este segundo aspecto da aprendizagem.
Como consegui-lo? Como recusar a atitude recognitiva?
Iniciemos por pensar como se dá a recognição. Quando nos
defrontamos com uma coisa-qualquer, evitemos dizer objeto, pois queremos
nos referir a algo que não foi ainda objetificado, a alguma coisa que não
sabemos ainda o que é, se conseguimos nos manter neste ponto de
aproximação, seremos invadidos por uma multiplicidade de sensações
paradoxais, típicas do “parasenso”, em relação àquilo que temos diante de nós.
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Em Lógica do Sentido, Deleuze ilustra “parasenso” e paradoxos, citando,


por exemplo, nas gafes de Alice No Pais das Maravilhas, de Lewis Carrol,
quando diante do camundongo ela se interroga: “Como evitar comer o pudim
ao qual se foi apresentado?” Ou então em sua dúvida mais grave: ”falar de
comida, ou comer as palavras”. Ele cita ainda Crisipo, o estoico antigo e seu
paradoxo: “se dizes alguma coisa esta coisa passa pela sua boca; ora, tu dizes
uma carroça, logo, uma carroça passa pela sua boca”. Outro exemplo é a
situação comum na educação familiar tradicional, quando criança, ao dizer uma
palavra obscena, ser advertida exigindo que ela fosse “lavar” a boca com
sabão, pois aquela era uma palavra “suja”, ilustrando o uso do paradoxo na
educação moral.
Mas, como dizíamos, se a recognição estiver “suspensa”, de cada ponto
de vista que nos referirmos à coisa-qualquer surgirão sensações em profusão,
com violência, tal como se dá num caso de delírio. É esta violência da
sensibilidade livre da recognição que Deleuze quer enfatizar. Ela também
referida como intensidade, no sentido bergsoninano. Cada perspectiva da
coisa-qualquer, não objetificada, é ponto de origem de intensidades que se nos
assaltam, nos afectam, nos tocam, nos impressionam, ou seja, criam em nós
um campo problemático, disparam uma violência que é comunicada a todas as
nossas faculdades. É assim que se inicia a aprendizagem inventiva.
Na vida cotidiana, esta atitude é impraticável, sequer temos tempo de
nos dar conta de sua possibilidade. Presos à utilidade de nossas ações, tão
logo uma coisa-qualquer seja detectada por nós, imediatamente nossos
sistemas mentais de decodificação já lhe atribuem um significado, resolve a
multiplicidade virtual de intensidades, de afecções, num simples “ah, é isto...”,
lhe dá uma utilidade, nos diz a ação possível de ser realizar com ele.
A recognição realiza, portanto, uma seleção da multiplicidade de
afecções disponíveis na coisa-qualquer, separa, ordena, organiza, prioriza o
contato com algumas poucas, apenas aquelas que se esquematizam com as
categorias definidoras do objeto. Ela bloqueia aquela violência, a intensidade,
que poderia ter sido disparada. Ela aproveita apenas uma parcela ínfima desta,
afastando-a daquilo que ela pode. Daí, a expressão de Deleuze para o saber,
como recognição: “apenas a generalidade do conceito ou a calma posse de
uma regra das soluções”. Vejam, em lugar do problema, do campo
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problemático, das intensidades e sua violência, apenas “a calma posse de uma


regra das soluções”. Enfatizo, CALMA POSSE. Ora, não será por isto que uma
autora, num livro dedicado a Psicologia Escolar pode intitular o seu texto como:
“A Educação em tempos de tédio?” Pois, o que sobra para uma educação que,
por medo da violência da cognição inventiva, da elevação da sensibilidade uma
potência superior, da produção de um campo problemático, opta pela calma
posse das soluções já prontas?
Para Deleuze, o nome que se deve dar a isto é: Imagem Dogmática do
Pensamento. De fato, este modo nem poderia, segundo ele, ser considerado
como Pensamento. Neste ponto, chega mesmo a concordar com Platão
quando este declara que em geral não pensamos. O Pensamento mesmo só
se dá se for forçado de fora, por afecções, pelos efeitos disparadores de
intensidades não resolvidas em recognições. Só assim pode ocorrer a cognição
inventiva, o verdadeiro Pensamento, o Pensamento sem Imagens.
Se se quer “educar os sentidos”, favorecer a cognição inventiva, é
preciso superar o medo, favorecer o estranho, o desconhecido, o inusitado, o
paradoxal, o monstruoso, o Simulacro. Pois, é a partir destas franjas do saber,
do conceito, do conhecimento já estabelecido sobre uma coisa-qualquer que se
pode torná-la problemática. Criar um campo problemático, deixar o aprendiz
estranhar, questionar, surpreender-se, porque não dizer, delirar, com o signo.
Estimular o “aprendiz” no aluno, cognição inventiva de um mundo e de um novo
si-mesmo diante deste mundo, Devir-aprendiz.
Em nosso grupo de pesquisa, descobrimos que, na escola atual, isso
pode ser implementado, mas na forma de criação de ambientes lúdicos para
aprendizagem. Pois, ao dizer lúdico, na verdade, somos autorizados a sair da
realidade atual, da recognição, e podemos nos colocar numa Realidade
Suplementar, na Virtualidade, na qual a Imagem Dogmática do Pensamento,
está, pelo menos temporariamente, suspensa. No lúdico podemos delirar. E a
forma que encontramos para este “lúdico-fora-de-si”, por razões histórica de
nosso próprio grupo, foi a dramatização, o role-playing, não no seu formato
original, mas como produção de Realidade Suplementar.
Inclusive, neste sábado, aqui, está programada a Comunicação Oral de
uma orientada de mestrado cuja pesquisa foi uma experimentação deste tipo.
Encontramos que esta estratégia também dá resultado, é eficaz, até mesmo
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quando analisada estatisticamente, é o que ela vai tentar mostrar para vocês.

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