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Revista Tempos e Espaços em Educação, v. 5, p. 125-137 jul./dez.

2010

O que é uma experiência educativa?

Maurício Mogilka

Resumo
Com base nos conceitos fundamentais do filósofo progressista John Dewey, este artigo tenta definir o
que é experiência, e o que é experiência educativa. Nesta direção, analisa os princípios da continuidade e
interação da experiência, deduzindo daí conseqüências sociais. A seguir o texto acrescenta mais algumas
reflexões sobre o educar, trazendo a discussão para o cenário latino americano e para o âmbito de uma
das formas que o educar assume, que são as propostas emancipatórias. Ele mostra que o educar é um
fenômeno complexo, mesmo tendo sido tão reduzido em suas potencialidades nas sociedades de classe,
devido exatamente ao seu potencial liberador das energias vitais das pessoas e coletividades. Este texto é
resultado de uma pesquisa bibliográfica, que desenvolveu seu percurso analítico principalmente a partir
de duas obras de Dewey, Experiência e natureza e Experiência e educação. Este artigo conclui tentando
trazer algumas contribuições para a estruturação de propostas educativas emancipatórias.
Palavras-chave: experiência, experiência educativa, educação emancipatória.

What is a educational experience?

Abstract
Based in the basic concepts of the progressist philosopher John Dewey, this article tries define what is
education, and what is educational experience. In this approach, analises the principles of continuity and
interaction of the experience, deducing social consequences of this matter. The text added more some re-
flections about the educational practices, bringing the discussion to the latin american stage and to scope
of the emancipatory educational proposal. The article shows that educational experience is a complex
phenomenon, that was reduced in your potentialities in the class societies, because exactly your liberator
potential of the vital energy of the peoples and colectivities. This text results of a bibliografic research,
developed about two Dewey’s works, Experience and nature e Experience and education. This article
conclude triyng bring some contributions to the elaboration of emancipatory educational porposals.
Key-words: experience, educational experience, emancipatory education.
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Uma humilde grama de experiência vale mais prática, inclusive as conservadoras. No segundo caso
que uma tonelada de teoria, pelo simples fato que a definição tem um caráter transgressor da ordem
é somente através da experiência que podemos vigente, em algum grau.
conhecer a teoria. O principal objeto deste artigo, na primeira sessão
John Dewey e especialmente na segunda, são as práticas mais
especificamente emancipatórias, ou seja, um tipo
específico de se fazer educação. Esta discussão inicial
é necessária neste texto, pois tentarei nele retomar
Educação: um tipo de experiência a idéia segundo a qual, para que a educação seja
emancipatória, em suas várias propostas possíveis,
Antes de entrar no objeto específico deste artigo, é ela precisa ser educação baseada na experiência.
necessário fazer uma distinção conceitual, referente Torna-se importante então, definir o que se está
ao termo educação. A ausência desta distinção tem chamando aqui de experiência.
causado dificuldades no discurso e mesmo na prática Quando falamos, em nossa linguagem comum, em
pedagógica, inclusive porque o discurso é um dos experiência, geralmente nos referimos aquilo que foi
fatores estruturadores das práticas. Esta ausência vivido na prática, e tivemos consciência disto. Estão
se nota não só em educadores e ativistas sociais, mas implícitos então dois elementos: prática e consciên-
mesmo em alguns teóricos, e quando se apresenta, cia. Uma outra forma de definir experiência, mais
é um problema grave no campo progressista. Isto cognitiva, é defini-la como sendo o conhecimento
porque este campo depende substancialmente desta adquirido através dos sentidos, em oposição à espe-
distinção, não só para estimular efeitos nas práticas culação lógica. Na teoria pedagógica, contudo, este
sociais, mas para garantir sua própria existência, conceito é mais complexo.
que depende de uma identidade diferente das iden- Desde o século XVIII, com Rousseau, já há uma
tidades conservadoras. corrente de interpretação no campo da educação ten-
Se trata da não-distinção entre educação (no tando vincular educação e experiência.1 Nesta gran-
sentido amplo) e propostas de educação que se pro- de corrente, que agrega teorias bem diferentes em
põem a ser críticas, ou emancipatórias, ou ainda alguns aspectos, o conceito de experiência é central.
humanizadoras. A ausência desta distinção nos leva Ela vai desaguar no século XX, fertilizando discursos
a generalizar e homogeneizar os diversos modelos de teóricos de notável beleza e consistência, como por
educação produzidos na modernidade e mesmo na exemplo a pedagogia progressista de John Dewey
pós-modernidade. Em função disto vemos afirmações e a educação problematizadora de Paulo Freire. As
como “a educação reproduz a sociedade”, ou “a educa- reflexões que tentarei desenvolver neste artigo são
ção liberta”, ou “sem educação não há humanização”, influenciadas, principalmente nesta primeira seção,
como se todo tipo ou modelo pedagógico fosse igual. por este filósofo norte-americano.
Se a educação liberta (sempre), então a educação Creio que não escapa a nenhum conhecedor da
conservadora não é educação? pedagogia deweyana a sua intenção de superar a con-
Exatamente por isto, eu adotarei aqui a distinção cepção intelectualista de educação: por isto podemos
entre educação, no sentido amplo, significando toda dizer que o seu pensamento traduz uma pedagogia
experiência social que modifique valores, atitudes, existencial. Ou seja, se a educação pretende ser uma
capacidades ou conhecimentos de pessoas ou cole- prática de formação de pessoas livres e participa-
tividades; e os modelos de educação que querem tivas, ela não pode ser um processo centralmente
romper com as propostas conservadoras (ligadas à cognitivo, precisa ser também afetivo, corporal e po-
manutenção da ordem vigente, explicita ou implicita- lítico, ou seja, integral. Mas como fundamentar isto
mente). Note-se que a segunda definição está contida teoricamente? Toda prática se fundamenta em uma
na primeira, que é mais ampla e inclui todo tipo de filosofia da educação, não podemos desconhecer isto.

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Um dos mais consistentes fundamentos da escola superar o dualismo sujeito-objeto, e também o re-
nova norte-americana é o conceito deweyano de ex- ducionismo presente na concepção epistemológica
periência. A tentativa de superar os dualismos her- de sujeito, que exclui a vida sensível e a vontade
dados da filosofia moderna pela educação é central daquilo que nós chamamos o “real” :
no pensamento militante deste autor. A dicotomia
entre sujeito e objeto e a decorrente desvalorização Quando os objetos reais são identifi-
da prática, nas sociedades capitalistas, é uma das cados, ponto por ponto, aos objetos do
causas principais dos males que afligem a educação, conhecimento, todos os objetos afetivos e
usando palavras do próprio Dewey. Este autor recu- volitivos são inevitavelmente excluídos
pera a dignidade da prática, sem contudo subordinar do mundo “real”, e são levados a buscar
o pensamento e o conhecimento à ela. Ao contrário, refúgio na intimidade de um sujeito ex-
o pensamento representa uma fase da ação, uma ca- perienciante, ou mente. Assim a noção
pacidade que tem o organismo humano para resolver da onipresença de toda experiência cog-
problemas: pensamos para lidar com as situações nitiva compreensiva resulta, por lógica
problemáticas de nossa existência social, e não por necessária, na construção de um sólido
mero prazer especulativo. muro entre o sujeito experienciante e a
É dentro desta tentativa de superar a compreen- natureza que é experienciada. O eu se
são dualista de prática e de pensamento, que Dewey torna não apenas um peregrino como
elege a experiência como um dos conceitos fundamen- ainda um estranho, não naturalizado
tais de sua filosofia. Ela nasce da percepção de que nem naturalizável, no mundo.
a concepção epistemológica de sujeito deixa de fora (Dewey, 1980, p. 19).
elementos essenciais à compreensão da vida social.
Ao tentar superar o dualismo sujeito-objeto, Dewey Experiência, nesta perspectiva, é um conceito
argumenta que é insustentável a antiga oposição mais amplo e inclusivo do que conhecimento e pensa-
entre experiência e natureza (ou humanidade e mento: é a experiência que contém o conhecer, e não
natureza). Isto porque o ente humano, ser social e o contrário. Não experienciamos porque conhecemos,
cultural, não deixa de ser um organismo, ele não mas conhecemos através da experiência; é a ação
abandona a natureza ao ingressar na cultura. Ele humana, na experiência, que gera o conhecimento.
é, simultaneamente, experiência e natureza. O ser A experiência cognitiva nunca é mais ampla do
humano é a natureza capaz de tomar consciência de que o todo da experiência no qual ela foi gerada.
si mesma: é natureza com capacidades especiais. Não Contudo Dewey não nega a possibilidade do conhe-
há como opor experiência e natureza (Dewey, 1980). cimento, e do conhecimento da própria experiência.
Se falar da associação entre experiência e na- Mas a experiência cognitiva não possui a qualidade
tureza é algo que parece tão absurdo como falar de da oni-inclusividade (conter em si todos os outros
um quadrado redondo, isto se deve à nossa formação aspectos da experiência):
cultura racionalista. Esta fortaleceu a noção da sepa-
ração entre a humanidade e experiência, de um lado, Não se nega que qualquer objeto ex-
e natureza, do outro. Nesta concepção, a natureza perienciado possa tornar-se objeto de
é completa, à parte da experiência. Quanto à expe- reflexão e de inspeção cognitiva. Mas a
riência, é importante para os seres que a têm, mas ênfase é sobre “tornar-se”; o cognitivo
é demasiado casual e esporádica em sua ocorrência jamais é totalmente inclusivo: ou seja,
para trazer consigo implicações importantes relativas quando o material de uma experiência
à natureza da natureza (Dewey, 1980, p. 3). anteriormente não-cognitiva é objeto de
Quando elege o termo experiência como um conhecimento, ela e o ato de conhecer
conceito central nas suas reflexões, Dewey procura são incluídos dentro de uma nova e

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mais ampla experiência não-cognitiva uma experiência educativa. Por exemplo, quando
– e esta situação jamais pode ser trans- uma pessoa simplesmente põe o dedo no fogo. Haverá
cendida. Somente quando o caráter valor educativo quando este ato for associado com a
temporal das coisas experienciadas é dor que ela sofre, em conseqüência do seu movimento.
esquecido é que é afirmada a idéia da Ser queimado será uma simples modificação física,
total “transcendência” do conhecimento. como queimar um objeto, se não for percebido como
(Dewey, 1980, p. 19). conseqüência de uma outra ação (Dewey, 1979a).
Sintetizando, experiência, assim concebida,
Como poderíamos definir, então o conceito de envolve ação sobre o meio, ação do meio sobre os
experiência? O que é a experiência no seio desta educandos e a percepção destas relações, por parte
pedagogia? Primeiramente, como já vimos, a expe- dos mesmos. São estas percepções e significados que
riência não é primariamente cognitiva, mas ativa. tornam este tipo de experiência de fundamental im-
Ela se constitui a partir de uma ação do sujeito sobre portância educativa, pois envolvem aprendizagem e
o meio. Mas ao mesmo tempo que age e modifica o desenvolvimento mental. É por isto que as atividades
meio, a pessoa também sofre (vivencia) a ação deste didáticas, tanto na escola como na educação com
meio sobre si. Ela sofre as conseqüências da reação movimentos sociais, devem sempre ser significati-
do meio à sua ação inicial, ou colocado de outra ma- vas, jamais devem se transformar em rotina. Neste
neira, sofre as conseqüências da sua própria ação, último caso o potencial educativo da atividade é
intermediada pelo meio e pelo objeto de sua ação. enfraquecido, pois os educandos se desenvolvem de
Esta concepção interacionista da relação sujeito- forma mais consistente se há o exercício simultâneo
-contexto pressupõe a influência recíproca entre eles. da ação, pensamento e desejo, coisa que a atividade
Ou, como dirá mais tarde Piaget, de forma luminosa, rotineira não consegue mobilizar.
não há um sujeito já pleno e um objeto já constituído, Em Experiência e educação, Dewey mostra que
mas um sujeito e um objeto em constante e mútua reconhecer a existência de uma relação íntima e
construção (Piaget, 1978). necessária entre os processos da experiência real
Portanto, experiência é um fenômeno cósmico, e a educação não é suficiente para estruturar uma
um modo de ser da natureza. Ela ocorre toda vez que prática, ela não surgirá espontaneamente de tal
os elementos do cosmos interagem, sofrendo ambos percepção. Ao contrário, torna-se necessário elaborar
alterações. Compreendida desta maneira, a expe- uma teoria da experiência educativa, levando em
riência é primária, antepredicativa e pré-reflexiva. conta os fatores sociais que operam na constituição
Mas há algumas experiências que, sem perderem da experiência individual. Não podemos esquecer
esta qualidade cósmica, possibilitam a emergência que nas práticas tradicionais os educandos também
da percepção e da reflexão. São estas experiências passam por experiências. O problema está no tipo
que têm alto valor educativo. de experiências que estão sendo proporcionadas, de
Ou seja, além de ativa e passiva, a experiência tal modo que elas sejam efetivamente educativas,
ainda necessita ter mais uma característica essen- isto é, promovam aprendizagem e desenvolvimento:
cial, para ser uma experiência educativa: ela precisa
ser dotada de significado. Além de agir sobre o objeto Faço tais perguntas, não para qualquer
da experiência e vivenciar as conseqüências, o refluxo condenação global da educação tradicio-
desta ação sobre si, os educandos vivem uma expe- nal, mas com propósito muito diverso.
riência de valor educativo se há consciência destes Na realidade, desejo apenas dar ênfase
efeitos, se a ação é dotada de significação para eles. ao fato, primeiro, de que os jovens na
Isto é, se eles conseguem compreender as relações, escola tradicional têm e passam por
as conexões entre as suas ações sobre o meio e a ação experiências e, segundo, que o problema
do meio sobre si. A simples atividade não constitui não é a falta de experiências mas o cará-

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ter dessas experiências - habitualmente cientes dos seus resultados. É a partir da concepção
más e defeituosas, defeituosas sobretu- interacionista, fundamento do pensamento deweya-
do do ponto de vista de sua conexão com no, que se pode entender esta ênfase na experiência
futuras experiências. para a constituição do sujeito:
(Dewey, 1979b, p. 16)
... toda experiência modifica quem a faz
Nem toda experiência é genuinamente educa- e por ela passa e a modificação afeta,
tiva, embora toda educação progressista se realize quer o queiramos ou não, a qualidade
através da experiência: experiência e educação das experiências subseqüentes, pois é
não são termos equivalentes. Para Dewey, é dese- outra, de algum modo, a pessoa que
ducativa toda experiência que produza o efeito de vai passar por essas novas experiências
parar ou distorcer o crescimento para experiências (...) o princípio da continuidade da ex-
posteriores. Tal efeito pode ser provocado por ex- periência significa que toda e qualquer
periências que produzam dureza e insensibilidade, experiência toma algo das experiências
restringindo a capacidade do grupo responder aos passadas e modifica de algum modo as
apelos da vida e a possibilidade de participar de experiências subseqüentes.
futuras experiências mais ricas. Ou por aquelas que (Dewey, 1979b, p. 25-26).
aumentam a destreza em alguma atividade automá-
tica, mas rotinizam a sua percepção e dificultam a Embora o princípio da continuidade nos mostre a
abertura para experiências mais criativas. Ou ainda relação entre as experiências, ele não garante crité-
aquelas experiências que, embora imediatamente rios para definir que tipo de crescimento está sendo
agradáveis, concorrem para estimular atitudes des- proporcionado por esta ou aquela experiência. Com
cuidadas e acomodadas, e desfavorecem a possibi- efeito, ele pode operar de modo a imobilizar o grupo
lidade das pessoas tirarem de futuras experiências em um baixo nível de desenvolvimento, limitando
tudo que elas têm para dar, pois tal possibilidade o seu crescimento. Como exemplo, temos o caso da
depende da atividade, isto é, o aproveitamento da pessoa criada com excesso de complacência, o que
experiência têm um caráter ativo. fortalece atitudes egocêntricas e dificulta a vivência
Segundo Dewey, há dois princípios fundamen- de experiências posteriores que exigiriam dela perse-
tais para que se possa entender o caráter educativo verança e disciplina. Por isto mesmo é que o valor de
de uma experiência: continuidade e interação. Por uma experiência só pode ser julgado analisando-se
continuidade o autor entende a necessidade das ex- os objetivos e a direção para onde ela se move.
periências, para serem educativas, influenciarem po- Como o grupo não pode fazer tal julgamento - pelo
sitiva e criativamente sobre experiências posteriores. menos não em toda a sua potencialidade - é que os
Toda experiência exerce efeitos sobre o sujeito e suas educadores são imprescindíveis, pois sua maior expe-
futuras experiências. Assim, constitui um problema riência e conhecimento lhes permitem ajudar o grupo
para os educadores que fundamentam o seu trabalho a selecionar as experiências e criar as situações
no princípio da experiência, selecionar as situações propícias às experiências efetivamente educativas.
que além de serem agradáveis e mobilizarem o grupo, Dewey acentua que a função do educador é muito
o enriqueçam e a preparem para experiências mais mais difícil no paradigma de educação baseado na
amplas ou mais profundas. teoria da experiência. No paradigma tradicional o
Note-se que não estamos diante de uma opção: modelo já está montado, e contraditório ou não, a
não se trata, para o autor, de escolher se a experi- necessidade de tomadas de decisão é muito menos
ência vai ou não afetar os participantes, mas o tipo freqüente do que em propostas alternativas.
de efeito que se quer provocar. Eles estão vivendo Por outro lado, o princípio da interação nos
experiências todo o tempo, embora nem sempre cons- mostra que a experiência não se processa apenas

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dentro do sujeito. Embora o eu seja um dos campos produção da experiência, também será um equívoco
privilegiados de sua ocorrência, pois a experiência desconsiderar a importância das condições materiais
influi na formação de atitudes, desejos e propósitos, e sociais, como já ocorreu em práticas alternativas.
ela também é social, pois a pessoa está sempre em A subordinação das condições objetivas àquelas que
relação, de forma direta ou mediada. Toda experi- se encontram no indivíduo é uma falácia educativa,
ência genuína tem um lado ativo, que modifica as que resulta na própria impossibilidade de se educar,
condições objetivas nas quais as experiências se uma vez que o educando não é um ser já pronto, que
passam (e que por sua vez, influem na experiência contenha em si todas as chaves para a sua formação.
vivida pelo grupo). Vivemos em um mundo de pes- Em Rousseau, cujo pensamento é um dos fun-
soas e coisas, que em parte é o que é devido ao que damentos de Dewey, já existe a clara compreensão
se fez dele: Dispensável repetir que a experiência do caráter interativo e social da formação humana.
não ocorre no vácuo. Há fontes fora do indivíduo Para Dewey, toda teoria que subordina as condições
que a fazem surgir. E estas nascentes a alimentam externas, materiais e sociais, ao que ocorre dentro do
constantemente. (1979b, p. 31). educando, acha-se baseada na idéia segundo a qual
Quando se reconhece a importância dos meios enfatizar as condições objetivas significaria impor
materiais e sociais para a ocorrência da experiência, controle externo e limitar a liberdade individual e a
isto é, quando se reconhece o seu caráter interativo, própria experiência. Tal posição não se mantém, con-
temos o princípio através do qual os educadores tudo, ao percebermos que a experiência do indivíduo
podem ajudar o grupo a dirigir a experiência, sem não é nunca exclusivamente interna, mas também
exercer imposição ou autoridade arbitrária: uma vez social: ela não se constitui sem as condições objetivas.
que as condições materiais e sociais do meio afetam a O princípio da continuidade, como critério de
experiência presente, cabe aos educadores, junto com definição das experiências que são efetivamente
o grupo de educandos, reconhecerem e selecionarem educativas, resolve apenas em parte esta questão.
as condições concretas que conduzem a experiências Com efeito, parece difícil discordar que conduzir
propícias ao crescimento. para experiências mais ricas e mais amplas seja
O equívoco do paradigma tradicional não está na uma exigência de toda experiência educativa, a
ênfase que dá ao provimento do meio, mas na descon- não ser que entendamos que educação se restringe
sideração da importância do outro fator na criação à aprendizagem de conteúdos, desconsiderando o
da experiência, as capacidades e propósitos daquele desenvolvimento como função educativa – o que
a quem se pretende educar. Determinadas condições certamente não é o caso deste artigo. Contudo, o
são tidas, a priori, como desejáveis, independente da princípio da continuidade não permite discriminar
sua qualidade de provocar respostas positivas por que tipo de experiências serão privilegiadas para
parte das pessoas: são elas que se devem adaptar serem ampliadas, e outras não. De onde poderá vir
ao modelo, mesmo que este seja estranho ao seu o critério desta escolha?
ser. Esta falta de adaptação mútua torna acidental Aqui desponta um problema no pensamento de
o processo de ensinar e aprender, segundo Dewey. Dewey. Ele define que o fim da educação é promover
Aqueles que se identificam com as condições apren- desenvolvimento, e que o fim do desenvolvimento é
dem; os demais têm muito mais dificuldades. Mais conduzir a mais desenvolvimento (1979a, 1979b).
recentemente, com as contribuições das teorias da Mesmo ressalvando-se que o conceito de desenvol-
reprodução, vemos o impacto social deste fenômeno: vimento em Dewey é bastante amplo, incluindo a
a identificação citada é mais fácil para os alunos da própria socialização, a adaptação ativa à comunidade
elite e da classe média, pois dominam a linguagem à qual a pessoa pertence, ainda assim temos aqui
e valores privilegiados pelo modelo tradicional. um impasse. Por mais amplo e preciso que seja, o
Mas se o modelo tradicional viola o princípio da desenvolvimento não pode conter todas as respostas
interação, ao não considerar os aspectos internos na do processo de formação humana. A cultura é um

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elemento fundamental na definição daquilo que contradiz o princípio da interação na composição


chamamos humano. da experiência humana, como vimos há pouco. Isto
Mesmo se argumentarmos que a cultura tam- é, que toda experiência resulta da interação dos fa-
bém está ligada às tendências inatas do organismo tores orgânicos e sociais, do diálogo entre o externo
humano – podemos falar em culturas mais ou me- e o interno.
nos favoráveis à vida humana, por exemplo – esta Na minha percepção, o autor norte-americano
é essencialmente um produto social, resultado de caiu nesta contradição, subvalorando os fatores
um longo processo histórico e contingencial. Mesmo externos como finalidades do desenvolvimento (ou
assim, não há humanidade sem cultura. A formação pelo menos como elementos que compõem estas fi-
humana, portanto, é o resultado desta interação entre nalidades) por duas razões. A primeira é o temor que
a natureza inicial e a cultura. Logo, ao afirmar que o admitir objetivos educativos não definidos de forma
desenvolvimento, em uma educação progressista, não interna à atividade pudesse permitir a penetração
pode ter fins exteriores ao seu processo, Dewey cai de princípios opressivos na prática formativa.
em contradição. Porque o autor pensa desta forma? O outro motivo é conseqüência da sua tentativa
Dewey é um leitor de Rousseau. Contudo, sua lei- de desestabilizar radicalmente o “ideal da prepara-
tura do autor suíço é cuidadosa e recontextualizada, ção”. Ou seja, quebrar a hegemonia da concepção,
na maioria das vezes. Ele nos chama a atenção para tão forte nas pedagogias conservadoras, de que é
o valor das idéias rousseauístas, tais como a impor- válido, e mesmo necessário, sacrificar o presente,
tância dos fatores internos e maturacionais para os desejos e os impulsos vitais dos educandos para
o desenvolvimento humano. Mas Dewey acha que formar subjetividades fortes e competentes para
Rousseau se equivoca, ao pensar em uma educação viver em sociedade. Penso que para Dewey aceitar
natural, longe das instituições e relações sociais. finalidades externas à atividade educativa seria
Ele (Rousseau) acredita que as capacidades inatas fortalecer esta concepção.
possam se estruturar sem o seu uso em atividades Concordo com o autor que é coerente a idéia de
socialmente compartilhadas. Crê que elas possam que a superação do “ideal da preparação” é essencial
se desenvolver à parte, em uma educação negativa. para uma educação libertadora. Afinal, não podemos
Eu penso que Dewey é muito lúcido na sua construir uma casa destruindo os seus alicerces; e os
apropriação das idéias de Rousseau. Contudo, no fundamentos do futuro estão no presente. Além disto,
caso específico do conceito exposto acima – o fim do se vive, sempre, no presente: o resto é imaginação.
desenvolvimento é promover mais desenvolvimen- Mas Dewey parece não ter percebido, ou admitido,
to – parece-me que Dewey reproduz, sem perceber, que as finalidades do processo de desenvolvimen-
a tendência do autor suíço, e dos inatistas de uma to, em uma linha emancipatória, são internas e
forma geral, a subvalorar os fatores externos no externas simultaneamente. Mesmo uma formação
processo de crescimento humano.2 E isto é surpreen- libertadora já é um processo cujas finalidades e
dente, pois Dewey é radicalmente interacionista, na conceito foram gerados em parte externamente ao
minha interpretação. Com todo respeito e admiração próprio processo.
que tenho pelo ativista social norte-americano, eu Eu acredito que o que define o caráter libertador
realmente não posso concordar com ele neste ponto. ou integral do processo de desenvolvimento humano
Dewey é por excelência um interacionista, como é não é o fato de todas as suas finalidades serem
afirmei. Contudo, ao defender que os objetivos de internas ao processo, mas se as finalidades externas
uma atividade educativa precisam ser definidos são de caráter não-repressivo às potencialidades in-
internamente à atividade, e não escolhidos externa- ternas ou inatas. Ou dito de outra forma, se há um
mente à natureza desta, o autor assume uma posição acordo entre finalidades externas e potencial interno
inatista que destoa profundamente do conjunto de dos educandos. Pois nenhum processo de crescimento
suas idéias. Além disto, tal posicionamento fere e consegue gerar sozinho todas as suas finalidades. O

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que caracteriza as práticas autoritárias não é o fato e experiência vivida. E se eu me desenvolvo com o
delas serem direcionadas por fins externos, mas a outro, eu não consigo me desenvolver oprimindo o
natureza destes fins e o desconhecimento dos desejos outro: eu não posso oprimir aquilo que me desenvol-
e capacidades genuínas do grupo. ve, sem oprimir a mim mesmo, e sem comprometer o
Logo, existe esta contradição no pensamento de meu próprio processo de desenvolvimento. Logo, as
Dewey, pois os fins do educar, do processo pleno e relações opressivas não podem levar ao desenvolvi-
rigoroso de formação humana, estão dentro e fora mento integral dos participantes, não significando
do desenvolvimento da sujeito, ao menos na minha um processo educativo pleno.
interpretação. Este processo de formação precisa
atender a duas dimensões simultaneamente: o pro-
cesso de plenificação das potencialidades inatas da E o que seriam as experiências
subjetividade, e a definição das formas e relações emancipatórias em Educação?
culturais que tornarão este processo possível. É isto
que é difícil, pois aí caímos no campo dos valores, e Com base nos conceitos fundamentais deste filó-
mesmo tendo estes uma base inicial orgânica, esta sofo militante e progressista que é Dewey, tentarei
é insuficiente para prover todas as decisões necessá- a seguir acrescentar mais algumas reflexões sobre
rias ao processo educativo. Desta forma, o processo o educar. Tentarei também trazer esta discussão
de formação humana sempre envolve um campo de para o cenário latino americano e para o âmbito
escolhas éticas, que só parcialmente as tendências do de uma das formas que o educar assume, que são
organismo humano e a experiência histórica ajudam as propostas emancipatórias, conforme coloquei no
a orientar. Por isto, educar exibe sempre algum grau início deste artigo.
de instabilidade e incerteza. Educar é um fenômeno complexo, mesmo ten-
Esta contradição do pensamento deweyano foi do sido tão reduzido em suas potencialidades nas
explorada por vários autores, gerando polêmicas sociedades de classe. Esta redução ou limitação
ricas, que colocam a sua pedagogia em cheque. Mas ocorreu exatamente porque são sociedades de clas-
isto não deve ser compreendido como o fracasso desta se, isto é, fragmentadas socialmente e baseadas no
teoria. Primeiro, porque não existe teoria inexpug- domínio de alguns grupos sobre outros. Isto leva a
nável, isenta de contradições. Uma teoria progres- um “fechamento” das possibilidades formativas e
sista não deve buscar isto, mas ser o mais profunda, emancipatórias do educar, por parte daqueles que
radical e rigorosa possível na análise da realidade, controlam a educação, ou controlam as condições nas
e principalmente, ser capaz de instrumentalizar a quais a educação se dá. Pois, elevada ao seu limite,
classe trabalhadora nos seus processos de luta contra esta experiência é estruturadora e liberadora por
situações opressivas e injustas. Em segundo lugar, excelência. Portanto, é inerentemente perigosa para
porque é precisamente do diálogo fecundo entre grupos cujo poder depende da contenção das energias
concepções diferentes, em uma discussão aberta e vitais das pessoas e dos movimentos sociais.
crítica sobre suas contradições, que as abordagens Eu penso que talvez seja realmente impossível
teóricas avançam. definir plenamente o educar. Como se trata de uma
Os objetivos do desenvolvimento integral do experiência muito complexa e que nos estrutura, de
sujeito não podem ser desvinculados das relações certa forma nós estamos “dentro” dela, ela contri-
sociais. O desenvolvimento humano é dirigido por bui para formar o que somos. Mas se não podemos
tendências e capacidades inatas e simultaneamente conceituar plenamente, nós pelo menos sentimos o
pela interação com o coletivo. Nunca é um processo que é um processo educativo, escolar ou não. Nós
que pode ser pensado isolado do social, como também sentimos e percebemos que algo mudou em nós ao
não pode ser pensado desvinculado do que a subjeti- vivermos este tipo de experiência. Estamos diferen-
vidade carrega no seu microcosmo: desejos, instintos tes, acrescentados, mais vivos, mais perceptivos,

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mais intensos. Pensamos, sentimos e vivemos de e de prazer. Por exemplo nos textos védicos, muito
forma mais profunda e mais forte. antigos e escritos em uma língua que não existe
É muito freqüente que este estado vital e esta ple- mais, o sânscrito, krishna aparece representado da
nitude tenham dificuldade de emergir na linguagem seguinte maneira: “Eu sou o sabor das águas; eu sou
e possam ser representados e compartilhados com o azul do céu”.
nossos semelhantes. Muitas vezes ele é sentido, mas Quanto à experiência amorosa, quem negará a
sequer emerge à consciência. E mesmo quando emer- dificuldade que temos para expressá-la? E no en-
ge, temos dificuldade de expressá-lo em palavras: tanto nós a vivemos, inclusive nas pequenas coisas.
nem tudo que é conscientizado pode ser vertido na Mesmo a literatura e a poesia, que são mais capazes
linguagem com facilidade, e vice-versa. Mas mesmo de “falar” do amor do que a ciência ou a linguagem
nestes casos, em que literalmente nos faltam pala- cotidiana, não conseguem plena tradução dos senti-
vras, sabemos que algo ocorreu, e algo bom. mentos associados a esta experiência.
Provavelmente nenhuma experiência complexa Então, é levando em conta estas dificuldades que
pode ser convertida em palavras, nem em pensa- tentarei, neste artigo, alguma precária e instável de-
mento, na sua plenitude. São experiências com alto finição do educar. Ora, o ato educativo se dá através
grau de vitalidade, que não “cabem” na linguagem. de uma experiência. Aliás, ele é uma experiência,
O que nós podemos, seja no discurso oral ou escrito, um tipo de experiência, como foi afirmado anterior-
é tentar aproximações, cercar o fenômeno, traduzi-lo, mente. Na composição desta experiência interagem
mesmo que precariamente. Pois se obtivermos isto, o eu do educando, com todas as suas potencialidades,
além da satisfação pessoal e da reelaboração que instintos e a sua formação cultural; e alguns ele-
ocorre toda vez que conseguimos comunicar uma mentos externos ao eu: o discurso dos educadores;
experiência complexa, teremos o grande ganho social o tipo de conhecimento trabalhado; as condições
de compartilhar com a coletividade a importância materiais onde a prática se dá; e as relações sociais
de viver este tipo de fenômeno, de forma consciente. estabelecidas.
Além disto, no caso de educadores, podemos provocar Contudo, é muito freqüente que os educadores
o desejo de instaurar este tipo de experiência nas não se apercebam da complexidade da experiência
suas práticas profissionais. educativa, e considerem o conhecimento quase que ex-
Logo, o educar possivelmente é uma experiência clusivamente como o fator promotor do ato educativo.
indizível, inominável, intraduzível. Mas isto não Desta forma os outros elementos, que são poderosos,
quer dizer que ela seja abstrata ou intangível: trata- acabam atuando de forma subliminar, e produzindo
-se de uma experiência concreta, vivida. Ou seja, efeitos que freqüentemente reproduzem as estruturas
trata-se de uma experiência, como vimos ao analisar culturais e políticas existentes. Este fenômeno – esta
o poderoso pensamento de Dewey. Eu creio que há simplificação na concepção da experiência educativa
pelos menos mais dois tipos de experiência humana – é conseqüência de como as culturas tributárias da
que têm este caráter complexo e difícil de expressar modernidade entendem o que é educar. Para superá-
em palavras: a religiosidade e o amor. -la, precisamos fazer uma arqueologia, buscando os
A experiência religiosa (re-união com o cosmos, ou significados originais desta palavra.
com a energia cósmica) é vivida mas nunca aparece Estranhamente na modernidade, se traduziu a
plena na linguagem.3 Por isto, muitos textos espiri- palavra educar como conduzir ou direcionar, pois a
tuais, em diferentes religiões, expressam a experi- palavra latina ducere significa conduzir, alimentar
ência mística como “aquela que não pode ser dita”, ou cultivar. Contudo, educar não vem de ducere, mas
ou “aquela que não tem nome”. Ou ainda, nos casos de ex-ducere. O significado da palavra fica então
em que a sensualidade corporal não foi expurgada diferente, ao menos em parte. Nascido da reunião
do discurso, esta experiência cósmica é representada dos vocábulos latinos ex (para fora) e ducere, educar
por aproximação, através de vivências integradoras significa desenvolver, fazer desabrochar, direcionar

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para fora, referindo-se às potencialidades e estrutu- ensinar conteúdos, e é no fundo provocar o desen-
ras inatas dos educandos.4 volvimento integral do grupo de educandos, duas
Entendido o termo educação desta forma - como conseqüências saltam imediatamente diante dos
sinônimo de desenvolver, conduzir para fora, es- nossos olhos. A primeira é que a formação integral
truturar capacidades e formar o eu – poderíamos do grupo, em todas as suas potencialidades de seres
buscar uma redefinição dos objetivos da educação, humanos, inclui o seu desenvolvimento como seres
especialmente em uma perspectiva emancipatória, políticos. Ou seja, seres capazes de participar ati-
que é o objeto deste artigo. Os objetivos das práticas vamente nas decisões da vida coletiva. Isto é, por
que estruturamos são fundamentais nos efeitos que excelência, um processo emancipatório.
estas práticas terão. Os objetivos ou intenções de A outra conseqüência é que, neste conceito do
uma prática são “invisíveis”, isto é, eles não têm a educar, o conteúdo deixa de ser a finalidade da
mesma visibilidade que outros elementos da experi- prática, o efeito desejado sobre todos, e passa a ser o
ência, como os conteúdos de ensino ou os materiais meio de provocar outros efeitos. Entre estes, no caso
que serão utilizados, ou ainda as técnicas educativas. de práticas libertadoras, que são aquelas que mais
Contudo o fato de serem “invisíveis” não significa necessitamos na América Latina, eu acredito que
que eles não sejam importantes, e a sua importância estejam o de provocar a compreensão sobre as forças
deriva do seu poder. Até um certo ponto, os objetivos políticas que atuam nas sociedades, a possibilidade
têm o poder de orientar os efeitos da ação. Por isto é de refletir e atuar coletivamente e as capacidades de
tão importante uma análise e uma definição o mais transformar a realidade.
clara possível do que estamos buscando em nossas Dentro desta linha reflexiva, gostaria que este
práticas. Os objetivos escolhidos e pensados por um artigo trouxesse algumas contribuições para a es-
grupo de educadores nunca definem completamente truturação de práticas emancipatórias em educação.
os efeitos reais que ocorrerão, pois as práticas são Uma destas sugestões é que consideremos com mais
muito complexas, e jamais pode ser integralmente profundidade qual o sentido e uso dos conhecimentos
previstas pela reflexão e pela tomada de decisão. científicos nas propostas de formação emancipatória,
Mas estas nunca deixam de atuar, pois é através dos inclusive em educação popular, que é o meu principal
objetivos (intencionais ou inconscientes) que dire- campo de atuação. Para isto é necessário superar a
cionamos a ação. Eles não superam as condições da desnecessária dicotomia ciência x experiência: ou
realidade, mas definem em alto grau como o grupo irá abandonamos os conteúdos científicos, acreditando
lidar e aproveitar (ou desperdiçar) estas condições. que a reelaboração reflexiva da experiência dos
Mas que efeitos educativos queremos provocar? educandos é suficiente para estruturar a autono-
Se entendemos que educar se resume a ensinar, a mia política e o senso crítico; ou adotamos uma fé
aprendizagem do conteúdo resolve o problema: já é incondicional e muitas vezes autoritária no poder dos
o próprio efeito educativo. Caso contrário, a questão conhecimentos elaborados para formar capacidades
permanece: para que serve aquele conhecimento? libertadoras.
Na minha experiência em escolas e em educação Nossas práticas ainda são influenciadas pela
popular, tenho percebido que a suposta coincidência idéia de que basta expor as pessoas aos conteúdos
entre conteúdo e objetivo (considerar que o conteúdo para que ocorram efeitos educativos libertadores.
é o objetivo) empobrece a experiência educativa. O fundamental seria a qualidade destes conteúdos.
Além disto, esta coincidência nunca ocorre comple- Este modo de compreensão poderia ser represen-
tamente, pois é impossível trabalhar exclusivamen- tado assim:
te com o saber, sem que estejam envolvidos fatores
afetivos, sociais e políticos que o ultrapassam e lhe
dão a sua significação. Educandos + Conteúdo Efeitos
Logo, se acreditamos que educar é mais do que Cultural Libertadores

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O que é uma experiência educativa? 135

Eu penso que este modo de compreender ocorre e significados, ampliando a nossa forma de “ver” a
por que, entre outros fatores, é difícil construir a realidade, além daquilo que está instituído como o
íntima vinculação entre o conteúdo cultural e os seus “visível” pelos discursos e ideologias dominantes.
efeitos na formação humana, de uma forma geral, Os poderes instituídos na nossa sociedade procuram
e nas propostas emancipatórias, em particular. É controlar os significados do que é e do que não é a
fácil dizer, por exemplo, que a arte é importante realidade, produzindo uma compreensão ideológica
experiência cultural para promover a libertação. da vida social. A arte freqüentemente escapa a este
Mas como a arte pode libertar? Note-se que construir controle, fornecendo às comunidades significados
esta conexão, descobrir o como, os modos possíveis alternativos aos dominantes.
desta relação, não é tarefa fácil, e nem tão pouco os Uma outra maneira da experiência estética influir
efeitos políticos da arte, mesmo da arte engajada, na vida política transparece quando percebemos que
são automáticos. Nem fazer arte, nem saber apreciá- a capacidade para criar e admirar a arte amplia a
-la, e nem mesmo aprender a criticá-la produzem, experiência da pessoa, e contribui para torná-la mais
sempre e inevitavelmente, disposições favoráveis à comunicável aos outros membros da comunidade.
libertação e à vida coletiva. E esta capacidade de compartilhar da experiência
Nós podemos examinar isto com mais profundi- comum e contribuir para ela, enriquecendo-a, é vital
dade. Já que este artigo se colocou o questionamento para os processos libertadores. Por outro lado, a arte
com respeito ao valor formativo dos conteúdos cul- trabalhada sob certas condições tem grande potencial
turais, nada mais justo que ele tente trazer alguma para estimular a pessoa a liberar as suas emoções e
contribuição para este problema. Como um conteúdo, desenvolver a vida afetiva. A afetividade e a simpatia
a arte por exemplo, pode promover a libertação? Ora, não-sentimentalista entre as pessoas de uma comu-
eu penso que esta contribuição é, como na maioria nidade são a base da reflexão mais poderosa, pois
dos conteúdos, indireta. Talvez o único meio direto emoção e intelecto estão associados e não separados.
da arte influir na emancipação dos povos resida na Além disto, esta simpatia é fundamental para
escolha de conteúdos artísticos que já tenham em si reforçar os laços comunitários, essenciais à vida
uma mensagem política ou social. O quadro “Guer- pública. É por isto que o sentimento genuíno de
nica”, de Picasso, e o livro “O cortiço”, de Aluízio de compaixão e a capacidade de compartilhar a nossa
Azevedo, são exemplos bem claros. Esta influência vida com outras pessoas são os dois sentimentos
direta é potencializada pelo tipo de atividade desen- mais importantes para reforçar as lutas coletivas,
volvida entre educadores e educandos. uma vez que aumentam a coesão dentro do grupo.
Um outro modo de influência da arte na formação Seus efeitos são potencializados quando reunidos a
política5 é a escolha de obras cujo conteúdo e forma outros elementos, como a reflexão crítica. E estes dois
reforcem a identidade nacional e latino-americana. sentimentos são naturais no ser humano, podendo
O fortalecimento de uma identidade própria esti- ser desenvolvidos por uma educação integral.
mula a autonomia e a confiança na própria capaci- Por último, outro modo de influência da arte
dade. O perigo a se evitar, neste caso, é a xenofobia, nas capacidades favoráveis aos processos de liber-
deixando de se aproveitar seletivamente o que as tação deriva do fato que ela é uma das atividades
outras culturas podem oferecer para o enriqueci- culturais mais propícias para liberar a imaginação
mento das lutas sociais. dos controles racionais e políticos. E a imaginação
Um terceiro modo da arte influir na formação é essencial para a elaboração de novas utopias e
emancipatória está na associação entre arte e per- projetos coletivos.
cepção. Nós geralmente não nos damos conta, mas Como podemos perceber, com exceção do primeiro,
a nossa percepção é, ao menos em parte, formada todos os outros modos da arte influir na formação
culturalmente. Por causa disto nós percebemos mais política são indiretos. Exigem, portanto, que o grupo
umas coisas que outras. A arte cria novas percepções de educadores tenham desenvolvido esta percepção,

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para que consigam fazer as conexões e aproveitar extremamente complexo, o educar, e deixar de ex-
o potencial libertador das experiências estéticas. plorar as suas notáveis possibilidades humanizantes
Logo, não basta expor os educandos ao conteúdo e emancipatórias. Empobrecemos a concepção e a
artístico, ou mesmo fazer arte, para alcançar resul- prática educativa, reduzindo-a ao ensino (que já em
tados sociais como aqueles desejados nas propostas é si um fenômeno complexo). Quando então, as prá-
emancipatórias. ticas assim formatadas e limitadas no seu potencial
Uma outra contribuição que eu gostaria de tra- não produzem os efeitos políticos que esperávamos,
zer para estas propostas é a seguinte: toda vez que dizemos que acreditar no poder da educação constitui
as práticas educativas se centram excessivamente um ingênuo otimismo.
nos objetivos cognitivos, escamoteando os objetivos A emancipação é um modo humano de ser, e
afetivos, interpessoais e de atuação social, ocorre não apenas um modo de pensar, ou algo que possa
uma redução dos efeitos da prática educativa. Uma ser instaurado por uma racionalidade. A razão e o
prática cujo efeito, no seu limite, é o próprio processo saber são imprescindíveis aos processos emancipa-
de formação e desenvolvimento humano. Ou seja, nós tórios, mas eles são instrumentais e não decisivos:
limitamos o poder construtivo do nosso instrumento. os opressores também pensam. Pensar e conhecer
Mesmo que se argumente que aqueles objetivos ocorre dentro de uma campo vital, sempre social,
escamoteados estarão presentes, pois a educação que chamamos experiência. A formação libertadora
é sempre um ato político, o problema é que eles depende da criação de experiências libertadoras; e
estarão sendo trabalhados de forma distorcida ou estas jamais podem ser inauguradas pelo saber, mas
alienada. E uma formação emancipatória deve somente pela ação humana socialmente comparti-
envolver o debate livre e aberto, a explicitação dos lhada, necessária e desejada.
objetivos formativos da prática, inclusive dando Nestas experiências libertadoras, reflexão, prá-
aos educandos a oportunidade de ativamente cri- tica e sensibilidade estabelecem uma dependência
ticar, participar e ajudar a escolher os objetivos entre si, e se fertilizam mutuamente. A separação
que irão nortear a formação. entre estas três dimensões da experiência está na
Outra conseqüência destas conclusões é que elas gênese não só do capitalismo, mas das sociedades
podem auxiliar nós educadores a ativistas sociais de classes. Se pretendemos superar este tipo de
engajados em propostas de luta e transformação sociedade, precisamos reunir o que está separa-
social a diminuir a incoerência entre os conteúdos do. Os processos radicalmente libertadores se
trabalhados e as nossas atitudes e práticas: os potencializam quando os grupos populares têm
conceitos, por mais que sejam emancipatórios, tem acesso à cultura elaborada e podem articulá-la
pouco efeito na formação se a experiência e as re- com a cultura popular, sua base de significação e
lações educativas estabelecidas são autoritárias ou sentido inicial.
paternalistas, mesmo com os adultos na educação Assim, os processos emancipatórios não são
popular (com jovens e crianças, mais grave ainda). processos especulativos, são experiências acionais.
Uma outra contribuição é nos ajudar a superar Isto é, são um conjunto de ações articuladas com
a tendência a pensarmos a relação entre educação objetivos ou metas desejadas (prática). Mas estas
e emancipação, no nosso contexto latino americano, ações se tornam mais ricas e potentes quando fe-
centrados na aprendizagem dos conteúdos, e não cundadas com idéias apropriadas, que são aquelas
na formação integral do grupo. Aqueles, como afir- que libertam, expandem e complexificam a prática.
mado anteriormente, não podem libertar, a menos Logo, em certas condições, a cultura elaborada
que consideremos que a formação política é uma e esta forma específica de cultura, a teoria, tem
conseqüência automática da aprendizagem e do caráter libertador. A teoria nada faz sozinha, a
desenvolvimento cognitivo. O maior perigo deste teoria não transforma o mundo. Mas sem teoria
tipo de concepção é simplificar um fenômeno que é não transformaremos o mundo.

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Notas Referências Bibliográficas

1
Na verdade este esforço é anterior a Rousseau, pois já DEWEY, John. Democracia e educação - In-
está presente, de certa forma, no discurso de Comenius,
por exemplo. Mas tal resgate histórico, embora trodução à filosofia da educação. São Paulo:
interessante, não é o objetivo deste artigo. Nacional, 1979a.
2
Não estou afirmando que Rousseau seja um DEWEY, John. Experiência e educação. São
inatista. Creio que o autor suíço oscila entre o Paulo: Nacional, 1979b.
inatismo, o empirismo e interacionismo, conforme
podemos verificar no texto brilhante, polêmico e DEWEY, John. Experiência e natureza. (Col. Os
flutuante do Emílio. pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1980.
3
Eu tomo aqui a religiosidade como uma experiência MOGILKA, Maurício. A formação humana no horizonte
de integração do indivíduo com o universo, acessível a
da integralidade. Revista Brasileira de Estudos Pe-
qualquer pessoa que a praticar, sendo uma capacidade
inata do ser humano; é portanto distinta de pertencer dagógicos. Brasília, n. 215, p. 53-67, INEP/MEC, abril
a uma religião, uma instituição social. 2006 (Disponível online: www.publicacoes.inep.gov.br)
4
Mas o que é desenvolvimento? Podemos definir este MOGILKA, Maurício. Educação, desenvolvimento
fenômeno complexo de diferentes formas: 1. Ampliar humano e cosmos. Educação e pesquisa. São Pau-
o uso das capacidades humanas; 2. Estruturar o que
lo, v. 31, p. 363-377, USP, dezembro 2005 (Disponível
não está estruturado; 3. Retirar aquilo que envolve ou
limita o crescimento do ser; 4. Ampliar a capacidade online: www.scielo.br)
de viver: no momento e posteriormente; 5. Libertar as
energias vitais da pessoa. MOGILKA, Maurício. O que é educação democrá-
tica? Contribuições para uma questão sempre
5
Eu estou usando o conceito formação política no atual. Curitiba: Editora da UFPR, 2003 (102 p.)
seu sentido mais amplo e elevado: abertura para a
vida coletiva, participação consciente e voluntária MOGILKA, Maurício. Educar para a democracia.
na esfera pública, relação saudável com o poder e
Cadernos de pesquisa. São Paulo, n. 119, p. 129-
controle compartilhado do estado; jamais no sentido
doutrinário ou partidário, isto é, uma formação onde 146, Fundação Carlos Chagas, julho 2003 (Disponí-
não esteja presente a reflexão coletiva sobre os fins da vel online: www.scielo.br).
participação social.
PIAGET, Jean. A epistemologia genética. (Col.
Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1978.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educa-


ção. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

Sobre o autor:
Mauricio Mogilka: Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia; Professor Adjunto de Di-
dática da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia; Coordenador do Projeto de Extensão
“Educação e Libertação”, desenvolvido na FACED/UFBA
E-mail: mmogilka@ufba.br

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