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POR UMA ABSTINÊNCIA DA MORAL:

AS DROGAS NA SOCIEDADE E NO CAPS RAUL SEIXAS

Estudo de Caso/Relato de Experiência

Autor: Paulo Tomaz Feliciano da Silva


Graduando em: Medicina
Período: 8°
Email: paulotomazz@gmail.com
Instituição de Ensino: Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ)
Local de estágio: Centro de Atenção Psicossocial Ad Raul Seixas
Orientador: Claudio Francisco dos Santos Cruz

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INTRODUÇÃO

Nesse trabalho será feito inicialmente uma exposição de um problema


real vivido pelo autor em sua experiência de estágio acadêmico pela Prefeitura
do Rio de Janeiro no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas
(CAPS AD III Raul Seixas) durante o ano de 2017, da qual será feita uma
problematização a respeito da percepção da questão das drogas na sociedade
e no CAPS. Em seguida será feito um apanhado histórico, político e científico a
respeito do tema que irão tanto remeter à uma moral vigente quanto servirão
de argumentos para a invalidação dessa moral, que será analisada segundo
uma leitura das ideias de Foucault. Os efeitos dessa moral serão medidos
frente ao impacto que teve na formação da ideia da abstinência, e como ela
consegue exercer influência na própria ideia que se constrói em cima da
redução de danos. Ao invés de simplesmente se colocar em defesa da redução
de danos, este trabalho se propõe a desmistificar a abstinência como uma
estratégia essencialmente inferior, colocando-as lado a lado. Através dessa
dialética, será proposta uma forma diferente de perceber e significar as drogas,
bem como as estratégias da abstinência e da redução de danos, que sejam
mais condizentes com abordagens menos pautadas pela moral e mais
receptivas para políticas atuais.
Na imagem da capa, foto de quadro exposto em uma das paredes do
CAPS Raul Seixas. Lê-se “For an ecology of the mind. Yes to life, No to drugs”
(Por uma ecologia da mente. Sim para a vida, Não para as drogas).

METODOLOGIA

Será utilizado o método dedutivo. Pretende-se, a partir de uma análise


histórica, política, científica, da experiência pessoal e de uma leitura teórica,
numa movimento dialético, fazer conclusões a respeito dos temas abordados.

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POR UMA ABSTINÊNCIA DA MORAL:
AS DROGAS NA SOCIEDADE E NO CAPS RAUL SEIXAS

A experiência
Numa manhã de um dia de trabalho normal no CAPS AD Raul Seixas, em
uma das reuniões de equipe, discutia-se a partir de um caso envolvendo um
usuário alcoolista a questão do uso indevido de drogas de dentro do CAPS,
mais especificamente o álcool. O problema era que muitos usuários traziam
escondido bebida alcóolica para dentro do CAPS e faziam o uso, escondidos
ou até mesmo explicitamente. Uma prática comum, ao que todos concordaram,
mas que vinha acarretando problemas no tratamento desses usuários ou no de
outros que sofriam da influencia dessa situação. Foi então que um dos técnicos
fez uma sugestão: por que não fazer no CAPS um espaço onde usuários
possam fazer uso controlado e assistido do álcool, uma vez que é notável a
necessidade de alguns de manter um nível de uso sem que isso signifique
abandono do tratamento. A reação à proposta foi de visível estranhamento.

Abstinência e Redução de Danos


Tal proposta faz referência a um conjunto de estratégias que se
enquadram dentro do que chamamos “Políticas e Estratégias de Redução de
Danos”. Segundo o site oficial da International Harm Reduction Association:
“Redução de Danos é um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir
os danos associados ao uso de drogas psicoativas em pessoas que não
podem ou não querem parar de usar drogas. Por definição, redução de danos
foca na prevenção aos danos, ao invés de prevenção do uso de drogas; bem
como foca em pessoas que seguem usando drogas”.
Soccal identifica hoje no Brasil duas grandes vertentes da política de
drogas nacional, uma representada pelo Ministério da Justiça, “que traz
consigo um discurso proibicionista moderado, em virtude de apontar para um
tratamento diferenciado ao usuário de drogas, bem como sugerir práticas de
redução de danos”(SOCCAL, 2012) e outra representada pelo Ministério da
Saúde, que “tem seu foco na prevenção e no tratamento, sendo fortemente
influenciada pelo modelo de redução de danos”(SOCCAL, 2012).
A Redução de Danos, segundo Passos e Souza, “foi ao longo dos anos se
tornando uma estratégia de produção de saúde alternativa às estratégias
pautadas na lógica da abstinência, incluindo a diversidade de demandas e
ampliando as ofertas em saúde para a população de usuários de drogas. A
diversificação das ofertas em saúde para usuários de drogas sofreu
significativo impulso quando, a partir de 2003, as ações de RD deixam de ser
uma estratégia exclusiva dos Programas de DST/AIDS e se tornam uma
estratégia norteadora da Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral
a Usuários de Álcool e Ouras Drogas e da política de Saúde Mental”.
Já a estratégia da abstinência tem como principal fomentadora as
políticas do Ministério da Justiça, que privilegia medidas coercitivas, e se faz
presente nos CAPS através da Justiça Terapêutica (SOCCAL, 2012).
Entretanto, a redução de danos não exclui a abstinência, não nega os danos do
uso de drogas e tampouco o incentiva (STRONACH, 2004), podendo ela se
manter presente nos CAPS como mais uma das possibilidades das estratégias
existentes (CRUZ, 2006).

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É evidente que, no CAPS Raul Seixas, não só há o conhecimento sobre a
redução de danos por todos os técnicos, como ela é aplicada em suas práticas
clinicas em pelo menos algum nível ou algum aspecto, desde aqueles que se
norteiam por ela até aqueles que assumem preferencialmente a estratégia da
abstinência, mas que são influenciados por um ambiente onde a redução de
danos se faz presente. A idealização dos CAPS, num cenário de Reforma
Psiquiátrica, já confere considerável autonomia ao usuário, que pode ser vista
na forma de respeito a pluralidade de maneiras com que cada paciente se
relaciona com a droga e com o seu tratamento, restando ao serviço o dever de
acatá-los e recebê-los da melhor maneira possível, estando sempre
resguardado ao paciente o direito ao acesso a este dispositivo. Somando-se a
isso, a Redução de Danos como política pública em saúde, amparada pela Lei
11.343 de 2006 (lei de política de drogas), veio para mudar definitivamente a
configuração dos espaços de saúde e das formas de tratamento empreendidos,
e já surte importante efeito desde sua implementação. Esses dois fatores são
os responsáveis por esse ambiente de significativa tolerância e respeito frente
as diferentes situações e realidades dos usuários em relação a suas liberdades
individuais, principalmente referente ao uso de drogas, como provavelmente
não será possível encontrar igual em nenhuma outra instituição ou serviço
público no pais. Este já é um marco positivo e um avanço.
Entretanto, como veremos, não é suficiente. É como diz Esteves e
Hillesheim ao citar Passos e Souza: “apesar dos incentivos criados pela
Coordenação Nacional de Saúde Mental para implementação de ações de RD
em CAPS AD, não houve uma adesão significativa da nova política”. Vê-se que
algumas possibilidades de estratégias de Redução de Danos ainda caminham
muito timidamente no CAPS mesmo no debate, e quem dirá na sua
implementação.
Veremos que tanto as estratégias da redução de danos quanto a da
abstinência são ainda muito marcadas por uma percepção moral acerca da
questão das drogas. Veremos também como essa moral que moldou a
estratégia da abstinência está agora querendo impor um contorno à redução de
danos e se faz de entrave para a aplicação da mesma. Segundo Esteves e
Hillesheim: “As práticas de RD parecem ser aceitas como um meio para se
chegar a um ideal, sendo esse a abstinência, pelo seu potencial de abarcar
pessoas que de outra maneira não estariam no serviço”. Se fosse possível
remover esse modelo ideal a ser atingido pela sociedade e deixar esse espaço
vazio a ser preenchido pela subjetividade de cada um em exercício de sua
autonomia, poderíamos chegar justamente, talvez, num modelo de 'ideal'
sociedade.

História e Política
Afim de compreender os fundamentos dessa problemática devemos fazer
um resgate histórico das questões que atravessam esse tema, sobretudo
sociais, políticas e cientificas. Apenas assim será possível vencer os
preconceitos enraizados, ressignificar velhos jargões, viver e experimentar
novas possibilidades, visando sempre a entrega do que há de melhor ao
usuário, dando ao paciente a possibilidade de se beneficiar de outras formas
de terapia, na busca daquela que melhor se enquadre na sua realidade e no
seu momento. Para isso é preciso colocar o compromisso com a saúde em
primeiro lugar, buscando afastar toda forma de julgamento.

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Seja para rituais, ou para medicina, ou mesmo de forma recreativa, o uso
de substâncias psicoativas para promover alterações no estado de consciência
é algo relatadamente milenar. Evidências arqueológicas remontam o uso do
ópio ao período Neolítico (DUARTE, 2005). A maconha, droga presente na
mitologia como comida favorita do deus Shiva, esteve presente no livro que
reúne fórmulas e receitas de medicamentos escrito na China à pelo menos 2
mil anos atrás, o Pen-Ts’ao Ching (primeira farmacopéia que se tem registro no
mundo). Na cultura Greco-Romana o vinho estava ligado ao deus Dionisio-
Baco.
Só no século XV, início das Grandes Navegações, que surge a palavra
“droga”. Derivada do termo holandês para produtos secos, viria a designar
qualquer planta e especiarias encontradas nas terras quentes que poderiam ter
alguma virtude ou propriedade de interesse (CARNEIRO, 2014). Nessa época,
segundo o jesuíta Andre Joao Antonil, a riqueza do Brasil se devia às suas
“drogas e minas”. Drogas como café e tabaco viriam a se tornar tão
importantes que foram escolhidas para adornar o brasão imperial brasileiro,
onde se encontram até hoje como símbolos nacionais no brasão da República.
O álcool e o ópio, duas das drogas mais consumidas no mundo, viriam a
passar pelos primeiros marcos da experiência repressiva do uso de drogas: a
proibição do ópio na China, em meados do século XVIII, e a proibição do álcool
nos Estados Unidos, entre os séculos XIX e XX (a Lei Seca). Apesar de
catastróficas - a China viveu duas guerras decorrente da proibição e os
Estados Unidos viu florescer um mercado ilegal dominado pela máfia, essas
medidas foram os primeiros exemplos para políticas internacionais
(CARNEIRO, 2014).
O Brasil editou a primeira lei no mundo que proibia o uso de maconha.
Segundo Lucas Avelar: “Cultivada pelos negros na época colonial, era
consumida por eles em rituais religiosos e como forma de 'resistência não
violenta'” (AVELAR, 2014). Com a proclamação da Independência, no momento
de maior abarcação de escravos negros no Rio de Janeiro, foi publicado
oficialmente o Código de Posturas em 1854, que previa prisão e multa para
escravos que fossem pegos embriagados ou com o “pito de pango”, como era
chamado o cigarro de maconha na época (AVELAR, 2014).
Nos EUA, principal país que impulsionou a política de guerra às drogas no
mundo, teve na adoção de suas leis antidrogas motivações racistas e
xenófobas, que associaram drogas à populações específicas: negros seriam
consumidores de cocaína, indígenas do cacto peyote, chineses do ópio,
hispânicos de maconha, italianos e irlandeses do álcool (RODRIGUES, 2014).
Como se pode perceber, na prática, as leis de drogas no mundo inteiro e,
portanto, a própria percepção sobre as mesmas, sempre foram subordinadas à
uma economia vigente, como ainda continuam sendo. É como Souza expõe: “O
grau de contradição e de falta de critério lógico que distinguem as drogas
lícitas das ilícitas se tornou foco de interdição moral que, em última
instância, se apóia na guerra como estratégia para se eliminar o mal do
planeta na medida em que encobre os interesses econômicos que se
alimentam desta distinção“(SOUZA, 2007).
A crise de 1929 nos Estados Unidos fez o país revogar sua Lei Seca em
busca de um novo mercado que pudesse alavancar a economia. O cigarro
também venceu a proibição conquistando mercados e consumidores
emergentes. As mulheres, alvo de um marketing da indústria do tabaco

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idealizado por um sobrinho de Sigmund Freud (o austríaco Edward Bernays),
tiveram sua emancipação feminina e luta pela liberdade associados ao ato de
fumar. Foi também uma importante droga na Segunda Guerra Mundial, tendo
ficado emblemática a frase do general americano Joseph Pershing: “Você me
pergunta o que nós precisamos para vencer esta guerra. Eu respondo tabaco
tanto quanto armas” (ANDRADE, 2014).
Hoje, as discussões giram principalmente em torno de um dos mais
lucrativos negócios do mundo, o trafico de drogas. Segundo o jornalista
Roberto Saviano, o melhor negócio do capitalismo mundial seria o tráfico de
cocaína, que renderia por ano cem vezes mais do que as ações da Apple
(RODRIGUES, 2014). “Chegou a hora de acabar com a guerra às drogas e
redirecionar os recursos para políticas eficientes baseadas em rigorosas
análises econômicas. A estratégia de buscar uma guerra global militarizada
contra as drogas produziu receitas negativas gigantescas e efeitos colaterais”,
é como inicia o documento assinado por cinco prêmios Nobel de Economia, no
qual pedem imediatamente o fim dessa política de guerra, que “é um fracasso
bilionário” ( "Ending the Drug Wars", 2014).
É nesse sentido que vários países ao redor do mundo vem tomando suas
decisões frente as suas leis de drogas. Países como Holanda, Portugal,
Espanha, Uruguai, além de 8 estados nos EUA, já adotaram algum tipo de
legalização das principais drogas da atualidade, como a maconha e a cocaína.
Feito o apanhado histórico e político, podemos avançar na investigação. É
possível esperar que uma cultura nacional de percepção sobre as drogas mais
tolerante se desenvolva e dela parta o protagonismo frente ao debate e futuro
da lei de drogas, a exemplo do que aconteceu na Holanda, como expõe
Luciana Boiteux ao citar Tim Boekout van Solinge: “o modelo holandês deve
ser compreendido dentro da cultura própria, pragmática e tolerante, inserida em
uma sociedade que valoriza a diversidade e preconiza a noção de liberdade
individual, desde que não prejudique os outros, com uma forte tradição de
saúde pública. Sua política de drogas foi pensada dentro de um paradigma da
normalidade, sob forte marca sociológica, que interpretou originalmente o uso
de drogas como uma forma de comportamento desviante que faz parte da
cultura jovem. O usuário de cannabis não é estigmatizado, mas visto como
uma “pessoa normal”, o que sustenta esse paradigma da normalidade, que
entende que tal comportamento não pode ser agressivamente estigmatizado.”.
Se aproximando no que poderíamos chamar de um movimento no sentido “de
baixo para cima”.
Entretanto, há países onde essa percepção social ainda é tão marcada
por uma cultura de um modelo repressivo e proibicionista, que podemos
esperar o oposto, um movimento “de cima para baixo”. Ou seja, que a frente do
debate e das decisões seja tomada por altas instâncias e por aqueles que,
representando pequena parcela da sociedade, possuem alto grau de estudo e
se debruçaram sobre o tema de modo a assumirem papel de ativismo na área.
Parece ser esse último o caso do Brasil.
Aqui, caminha-se também no sentido de ampla revisão da lei de drogas e
da situação política, social e econômica dela advinda. Porém esse debate
circula ainda em meios restritos, acadêmicos e institucionais, e não atinge de
maneira efetiva a grande parte da população, sobretudo aquela que mais sofre
dos efeitos e das mazelas dessa política. A maconha, droga de importante
impacto social e de grande estigmatização pela sociedade, já legalizada para

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fins medicinais, pode sofrer um revés a qualquer momento em relação as leis
que proíbem e regulam sua venda e uso. Está em discussão no STF duas
ações que podem mudar definitivamente o rumo da lei de drogas no Brasil,
bem como toda uma percepção social sobre a mesma. Milhões de pessoas
vivem diariamente uma verdadeira guerra, mas ainda não conseguem superar
os preconceitos e uma moral vigente em torno daquilo que se faz um grande
tabu, se tornando tanto vítimas quanto perpetuadoras de uma lógica que lhes
custa tão somente a vida.
Assim, apenas um pouco de história e política deixa claro que um mundo
sem drogas, é, na verdade, um mundo sem a pessoa que faça uso da droga,
uma vez que esse é um hábito natural que carregamos desde sempre
enquanto sociedade e que não pode ser eliminado como se fosse algo
acessório ou destacável. E, como foi visto, essa pessoa são na verdade
populações inteiras que possuem cor, origens e situação socioeconomicas
definidas.
Além disso, justifica-se a importância de se discutir e vencer essa moral,
sem a qual nada disso poderia se manter, e que permeia todos os setores da
sociedade, em todas os estratos sociais, independente de nível e grau de
instrução.

A moral
Fica evidente, portanto, a presença de uma moral sobre uma pratica de si,
no caso, em relação ao uso de drogas. Segundo Foucault, essa moral se dá
sobretudo de duas formas: a dos códigos de comportamento e as das formas
de subjetivação.
No aspecto da moral dos códigos de comportamento, temos “um conjunto
de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por
intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as
instituições educativas, as Igrejas, etc. Acontece dessas regras e valores serem
bem explicitamente formuladas numa doutrina coerente e num ensinamento
explícito. Mas acontece também delas serem transmitidas de maneira difusa e,
longe de formarem um conjunto sistemático, constituírem um jogo complexo de
elementos que se compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos,
permitindo, assim, compromissos e escapatórias” (FOUCAULT).
Podemos identificar nessa forma de moral tanto a Lei Nacional de Drogas
(Lei 11.343/06), que proíbe certas substâncias psicoativas, ou as regras de
conduta estipuladas aos usuários dentro do CAPS, que proíbe o uso mesmo de
drogas lícitas, ou mesmo aqueles códigos e valores que não estão explícitos,
que caracterizam a ideia em si da droga como algo errado, independente de
contexto, uma vez que se trata de algo ruim na sua essência, o que confere à
palavra uma carga negativa.
Já sobre a moral das formas de subjetivação, entende-se como a forma
específica que cada um lida com uma dada moral, ou como exatamente aquela
moral é vivida, já que cada um vive à sua maneira. Continua Foucault: “por
'moral' entende-se igualmente o comportamento real dos indivíduos em relação
às regras e valores que lhes são propostos: designa-se, assim, a maneira pela
qual eles se submetem mais ou menos completamente a um princípio de
conduta; pela qual eles obedecem ou resistem a uma interdição ou a uma
prescrição, pela qual eles respeitam ou negligenciam um conjunto de valores”
(FOUCAULT).

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Para esse aspecto da moral, é possível identificar como a percepção da
questão das drogas surte efeitos variados em cada um, mesmo quando se
tratando de um mesmo dado objetivo ou regra prescritiva, como é o exemplo
do fato do cigarro causar câncer de pulmão ou a regra que proíbe uso de
drogas mesmo licitas dentro do CAPS (sobretudo álcool e cigarro). Alguns
poderão tolerar melhor o desvio a regra frente a determinadas situações,
enquanto outros não. Fato é que mesmas regras claras sobre políticas de
drogas ou percepções morais suscitarão diferentes maneiras de vivê-las e
seguí-las, próprias e ao gosto da ética de cada um.
Uma vida sem drogas não é necessariamente melhor ou pior do que uma
vida com as drogas. Essa é essência da superação da moral. As duas apenas
apresentam possibilidades diferentes, mas ambas com igual potencial para
gerar experiências positivas ou negativas, para gerar saúde ou doença, de
criação ou de destruição. A droga deve ser apenas mais um dos fatores a ser
considerado numa balança que pese todos os outros aspectos da vida de uma
pessoa. Sendo um ponto muito importante a ser considerado o respeito às
liberdades individuais e uma nova forma de entender a saúde, segundo outros
modelos científicos.

A ciência
As consequências do usufruto das liberdades individuais numa sociedade
devem ser sempre pesadas, certamente, junto às questões de saúde pública.
Estas, porém, não podem ser norteadas pelo paradigma biomédico, e sim por
uma visão do processo saúde-doença a partir de um sujeito como ser
biopsicossocial. Segundo Pereira, Barros e Augusto, desse novo paradigma se
configuraria uma nova forma de pensar a saúde, mais interdisciplinar e
subjetiva. Citando Mendes, definem esse novo conceito de saúde como “o
resultado de um processo de produção social que expressa a qualidade de vida
como uma condição de existência dos homens no seu viver cotidiano, um viver
'desimpedido', um modo de 'andar a vida' prazeroso, seja individual, seja
coletivamente” (PEREIRA, BARROS e AUGUSTO, 2011). Fica claro uma
dimensão importante para se definir saúde atrelada a experiência subjetiva de
viver. Fazendo-se assim um conceito muito mais holístico e complexo, sem a
possibilidade de reducionismos ou fragmentações absolutas.

A abstinência e a moral
A exigência por uma sociedade sem drogas que impõe a abstinência aos
usuários acaba por marginalizá-los, pois extirpa do sujeito a responsabilidade
por suas escolhas (CONTE, 2004).
A abstinência como regra não passaria, então, de uma ilusão; a ilusão da
possibilidade de sectarização absoluta de aspectos da experiência total da vida
e na posterior condenação e aniquilação dos mesmos, dos quais muitos destes
fazem parte da vida do homem desde sempre e são como patrimônio da
humanidade. Como se a causa e a solução dos problemas da humanidade
estivessem atrelados a algo exterior, sem qualquer implicação dos sujeitos
envolvidos. Tudo motivado por preconceitos e pela moral, sendo cada aspecto
a ser crucificado segundo alguma ética própria. “O 'cidadão modelo' seria
aquele que é religioso, abstêmio, sem vícios e que vive tranquilamente na
sociedade. No entanto, ao observarmos o histórico da humanidade,
percebemos que essas substâncias sempre estiveram presentes nas mais

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diversas culturas, desempenhando os mais diversos papéis, sendo utópico
pensarmos que é possível impormos um modelo único de comportamento para
toda uma sociedade” (SOCCAL, 2012).
Se identificadas as formas mais basilares de moral que recaem sobre as
drogas e a Redução de Danos para então lançarmos luz sobre sua superação,
não devemos entretanto cair na contradição da moralização da abstinência
como forma igualmente válida e potente de experimentar a vida e as drogas.
A abstinência (do latim abstinentia: 'reserva, desinteresse, moderação,
continência, domínio dos apetites', referindo-se ao ato se abster ou de se privar
do uso de alguma coisa) pode ser entendida como nada mais nada menos do
que a outra face da mesma moeda da experiência não abstinente. Devendo as
duas intercalarem-se num movimento natural de viver a cada momento as
diferentes possibilidades que se apresentam. Isso é o simples agir. Agir num
sentido é abster-se de agir em outro.
Pode-se então serem identificados níveis ou instâncias de abstinência. Se
para que possamos agir num sentido é mandatário que nos abstenhamos de
agir em todos os outros, esses outros se dão na sua ampla maioria de forma
inconsciente e, para uma pequena parcela, de forma consciente. Esse nível de
percepção consciente se fará crucial mais à frente durante a investigação da
moral, segundo Foucault.
Pratica-se a abstinência a todo momento, mas aquela que normalmente
importa, que é percebida e que é objeto de tanto debate é a abstinência que se
pratica em nível consciente e que deve, além disso, mobilizar esforços e ser
foco da ação. Pode vir ainda carregado de uma segunda intenção, como
geralmente o é, já que normalmente alguém quer abster-se de algo por algum
motivo, e vir acompanhado de um projeto, com metas e estratégias. Mas essa
abstinência não deixará de ser, em essência, a mesma abstinência que se
pratica a todo e qualquer momento, conscientes disso ou não.
Acredito ser pertinente identificar pelo menos duas formas relevantes e
claras de abstinência: a abstinência moral e a não moral. Ambas são
conscientes e mobilizadas, isto é, se colocam como objetivo central da ação do
sujeito. Mas a primeira remete aquela moral governada por uma ilusão e que
está fadada ao erro. Enquanto a segunda nada mais é do que a
experimentação de possibilidades de viver em ideia e ação de abster-se de
algo, afim de produzir outras potências e possibilidades, sem entretanto fazer
juízo de valor moral sobre as mesmas.
A diferenciação se faz importante uma vez que, segundo Foucault, “para
ser dita 'moral' uma ação não deve se reduzir a um ato ou a uma série de atos
conformes a uma regra, lei ou valor. É verdade que toda ação moral comporta
uma relação ao real em que se efetua, e uma relação ao código a que se
refere; mas ela implica também a uma certa relação a si; essa relação não é
simplesmente 'consciência de si', mas constituição de si enquanto 'sujeito
moral', na qual o indivíduo circunscreve a parte dele mesmo que constitui o
objeto dessa prática moral, define sua posição em relação ao preceito que
respeita, estabelece para si um certo modo de ser que valerá como realização
moral dele mesmo; e para tal, age sobre si mesmo, procura conhecer-se,
controla-se, põe-se à prova, aperfeiçoa-se, transforma-se” (FOUCAULT).
Portanto, uma ação moral visará sempre a criação de um sujeito moral.
Este sujeito moral se insere na sociedade muitas vezes num sistema de
códigos rígidos e de cobranças autoritárias, não raramente desumanas, com

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repercussões biopsicossociais no processo de saúde-doença do sujeito.
Os exemplos são muitos. É comum pessoas tomarem a decisão em
algum momento de suas vidas de parar de tomar café. Trata-se de de uma
abstinência. Porém essa será uma abstinência que não trará tão marcada
consigo a lógica da configuração de um sujeito moral, uma vez que a prática de
ingerir o café, ou a substancia cafeína, não está carregada de uma moral que a
condene. Sendo assim, não estigmatizará a pessoa, não virá com cobranças
morais. As recaídas não serão vistas como um marco de fracasso moral, não
trarão repercussões sociais, psicológicas e biológicas que nada tenham relação
com a substância em si. Embora é bem sabido pelo conhecimento médico que
o café está relacionado com vários problemas de saúde importantes, sobretudo
cardíacos e gastrointestinais, além de ser uma droga psicoativa que gera
dependência, exatamente como o álcool e o cigarro.
O café inclusive teve seus momentos de perseguição e proibição durante
a história. Tudo isso, entretanto, não conseguiu vencer o caráter sedutor da
prática de “tomar um cafezinho”, que é um hábito cultural amplamente aceito.
Acredita-se que seja a droga lícita mais consumida do mundo, sendo que
novamente as razões para a construção dessa aceitabilidade serão
encontradas numa abordagem que considere as dimensões histórica, política,
econômica. Salvo suas particularidades, a mesma ideia pode ser aplicada para
abstinência de se alimentar de carnes, açúcar, sal, refrigerantes, fast-foods,
dentre outras.
Não existe nada de novo, portanto, na abstinência. Ela é tão velha quanto
a experiência do não abster-se. O uso de drogas é tão velho quanto o não uso.
E por aí vai. Ambos surgem naturalmente das possibilidades de experimentar a
vida e o uso de drogas, sendo o não uso uma forma de uso, e vice-versa.
Ambas possibilidades são, portanto, igualmente válidas enquanto estratégias
de cuidado.
A diferença está na forma que são vividas e entendidas, nos conteúdos e
significados que trazem consigo sem que de necessariamente tenham
relevância para a essência do sentido originário e que, mais adiante, formarão
os tabus, os preconceitos, as morais. Destes, paradigmas se formarão.
Segundo Esteves e Hillesheim ao citar Souza, o paradigma da abstinência
constitui-se de “uma rede de instituições que define uma governabilidade para
as políticas de drogas e que se exerce de forma coercitiva na medida em que
faz da abstinência a única direção de tratamento possível”. Tal rede é
majoritariamente composta pelo poder jurídico, psiquiátrico e religioso, que
juntos, submetem a saúde e dão sustentação à imposição da lei antidrogas
(SOUZA, 2007). Carregado de preconceitos, de ideias falhas e contradições, a
estratégia da abstinência moralizante permanece ainda forte e exerce
influência no cotidiano dos CAPS.

Por uma abstinência da moral


Se retirado um imenso fardo que a abstinência carrega, o peso da moral,
poderá ela ser incluída, junto da redução de danos, em um leque de estratégias
que, ao mesmo tempo que cuidam e tratam, geram autonomia. Poderá haver
um diálogo mais produtivo entre ambas, não sendo necessários colocá-las em
oposição, nem em disputa. Quem ganha é o usuário, e a sociedade. Afirma
Esteves e Hillesheim citando Lancetti: “embora o objetivo da redução seja
reduzir os possíveis danos causados pelo uso de drogas, a RD produz ao

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mesmo tempo uma ampliação de vida.” Assim, o mesmo poderá valer para a
abstinência.
A lógica da compulsão, presente não apenas nas drogas, e que tanto
exerce força para transformar a experiência do uso, dentro de um leque de
outras forças que se somam, numa experiência negativa, pode, esta sim, ser
combatida. A chave da questão é que, e fazendo agora valer todo o caminho
até aqui percorrido, uma abordagem não moralista no cuidado poderá amenizar
o sofrimento daqueles que possuem problemas de saúde relacionados ao uso
de drogas, uma vez que não trará consigo cobranças outras que de nada tem à
ver com as questões de saúde em si, ampliando as possibilidades e a
efetividade das estratégias tanto da abstinência quanto da redução de danos.

(Uma possibilidade de imagem para substituir a primeira; Via Vidas Negras Importam- Brasil,
https://www.facebook.com/vidasnegrasimportam/, acesso em 21/10/2017).

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CONCLUSÃO

Questões históricas, políticas, sociais e econômicas moldaram uma moral


que fez com que o Brasil desse um passo pioneiro no mundo no controle da
droga maconha e assim da população que fazia seu uso: a proibição. Recai
agora sobre nós a responsabilidade de sermos pioneiros ou ao menos
protagonistas, num sentido de ativismo, de procurar e experimentar outras
soluções e alternativas que possam melhor se adequar a nossa realidade. Para
tanto se faz imprescindível atualização continua sobre todos os aspectos
políticos, sociais, científicos que atravessam a questão das drogas, e que tanto
exercem uma moral no viver e na prática profissional.
Como vimos, retirado o aspecto moralista, não se mantém possível
colocar em superioridade tanto a estratégia da redução de danos quanto a
estratégia da abstinência. Restando às duas como alternativas que devem ser
privilegiadas frente às diferentes realidades e subjetividades que se
apresentam. Fica assim insustentável a manutenção de uma polarização entre
ambas, visto que essa dicotomia só tem prejudicado aos usuários e fazendo
valer daquilo que só se alimenta desse embate: a moral.
Através dessa maneira de ver e entender o mundo e a questão das
drogas proposta, acredito que o paciente do CAPS poderá experimentar um
tratamento, seja em abstinência ou redução de danos, de forma a lhe produzir
cada vez mais autonomia, tornando-se sujeito de si. Numa sociedade tão
historicamente pautada em autoritarismos e na tutela, uma experiência de um
tratamento com autonomia, é, antes de tudo, dignificante. Uma outra realidade
onde as drogas hoje ilícitas serão legalizadas, pelo menos algumas delas, bate
à porta e torna-se cada vez mais palpável. Cabe a nós nos prepararmos da
melhor forma para ela.

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BOITEUX, Luciana. Controle Penal Sobre as Drogas Ilícitas: o impacto do


proibicionismo no sistema penal e na sociedade. Tese apresentada no Curso
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