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DOI: 10.1590/1413-81232020261.

25732018 285

Do paradigma psicossocial à moral religiosa:

temas livres free themes


questões éticas em saúde mental

From the psychosocial paradigm to religious morality:


ethical issues in mental health

Adriana Dias de Assumpção Bastos (https://orcid.org/0000-0002-3158-2635) 1


Sonia Alberti (https://orcid.org/0000-0002-5120-5247) 1

Abstract When therapeutic communities (TCs) Resumo Na época em que as Comunidades Tera-
began to emerge in Brazil in the 1970s, drug policy pêuticas (CTs) chegaram ao Brasil, a lei sobre dro-
was the concern of the justice sector and aligned gas era de competência jurídica e se aliava ao proi-
with prohibitionism. In the wake of political lib- bicionismo. Com a abertura política no final do
eralization in the late 20the century and mental século XX e o movimento da reforma psiquiátrica,
health reform, policies targeting drug users have instituiu-se uma política de competência da saú-
now become the concern of the health sector. As de para usuários de drogas. Com isso, abriram-se
a result, two antinomic paradigms have emerged dois paradigmas antinômicos na gestão pública: o
within public health management: the prohibi- proibicionista e o psicossocial. Atualmente, vemos
tionist paradigm and the psychosocial paradigm. crescer no cenário brasileiro a discussão sobre o fi-
The discussion of public funding of TCs is current- nanciamento público das Comunidades Terapêu-
ly gaining prominence in Brazil. This raises new ticas (CTs), o que introduz uma nova questão. Ela
ethical issues concerning the limits between the é ética e implica os limites entre a esfera pública e
public and private spheres within health gover- a privada na governança em saúde. Pesquisando
nance. By exploring the role of these communities, a inserção das CTs, foi possível verificar, sua his-
it was possible to gain insights into their history tória no Brasil, a ligação delas com a religião, e
in Brazil, their connections with religion, and the os relatórios feitos a partir de inspeções nos seus
findings of TC inspection reports. The research funcionamentos. A metodologia de pesquisa se-
methodology consisted of a systematic review of guiu o levantamento de documentos, artigos e li-
different data sources, including articles, books, vros, sites, manchetes de jornal, internet, a subse-
websites, newspaper articles, TC inspection re- quente coleta de informações e análise dos dados.
ports, and the internet. The findings show that Como resultado observou-se um recrudescimento
there is a resurgence of the prohibitionist para- do paradigma proibicionista e sua associação à
digm associated with religious morality, which is moral religiosa, o que é corroborado por autores
corroborated by researchers currently discussing que discutem as políticas de saúde para usuários
policies targeting drug users. de drogas.
1
Faculdade de Psicologia, Key words Health Policy, Drug Users, Mental Palavras-chave Política de Saúde, Usuários de
Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. R. São Health Services, Therapeutic Community, Drogas, Serviços de Saúde Mental, Comunidades
Francisco Xavier 524, Religion Terapêuticas, Religião
Maracanã. 20943-000 Rio
de Janeiro RJ Brasil.
adrianadab@gmail.com
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Bastos ADA, Alberti S

Introdução O paradigma ético, clínico e político da aten-


ção psicossocial, que vinha sendo construído
Como trabalhadores e pesquisadores no campo desde o início da reforma de 2001, tem como
da saúde mental e das políticas públicas para o princípios “a desinstitucionalização; a liberdade;
campo de álcool e outras drogas desde 2005, te- a autonomia e a cidadania”3(p.1456). Foi essa
mos acompanhado os avanços e retrocessos na orientação que introduziu, nos primeiros anos
gestão em saúde pública. Vimos a Redução de deste século, a política da Redução de Danos, tão
Danos (RD) tomar corpo enquanto diretriz po- importante para o trabalho nos CAPS. Uma das
lítica e como prática no cotidiano do trabalho, perguntas que orientam nossa pesquisa é: como
com o incremento dos Centros de atenção psi- mantê-lo, no momento em que se passa a privi-
cossocial (CAPS) a partir de sua instituição em legiar o financiamento de instituições privadas
20021. Com isso, presenciamos um avanço no que, como veremos, desenvolvem uma perspec-
sentido da consolidação da atenção psicossocial tiva psicossocial bastante diferente daquela que
no campo da saúde mental. Esse avanço, como é sustentada, justamente, pelo paradigma psi-
veremos, é corroborado pela análise do texto das cossocial da reforma? Observação já feita por
leis que regulam o campo de álcool e outras dro- Fracasso, ao descrever o modelo psicossocial das
gas. CTs, cuja “perspectiva psicossocial [...] difere da
Ao lado da consolidação da atenção psicos- lógica da Atenção Psicossocial da RAPS, pois esta
social e da política de redução de danos, houve implica a concepção da integralidade e de outros
um importante incremento nos últimos anos da princípios do SUS, aqui não contemplados”4.
participação daqueles que se autodenominaram O objetivo do artigo é verificar, em termos
“Comunidades Terapêuticas” (CTs), considera- de políticas públicas – e mais especificamente, de
das, desde 2011, “pontos de atenção na Rede de políticas de saúde –, esse duplo movimento que
Atenção Psicossocial na atenção residencial de se deu a partir de 2011, de um lado, o paradigma
caráter transitório”2, passando, portanto, a fazer psicossocial e, portanto, da política de redução
parte da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), de danos como diretriz para o campo de álcool e
mas, diferentemente dos CAPS, estas não se outras drogas, de outro, o protagonismo cada vez
orientavam privilegiadamente pela política de re- mais visível das CTs.
dução de danos. Apesar disso, as CTs passaram a
dividir o atendimento aos usuários com o traba-
lho dos CAPS e outros dispositivos que seguiam Metodologia
a mesma orientação destes. Sendo as CTs insti-
tuições privadas que recebem auxílio financeiro Partimos de uma revisão sistemática abrangendo
público, distam também nisso dos dispositivos diferentes tipos de fontes, desde artigos científi-
públicos criados com a reforma psiquiátrica de cos até sites e matérias de jornais, material com o
2001. No que tange a especificidade dos CAPSad qual começamos a tentar responder as questões
– que atendem usuários de drogas e álcool –, a que nos eram impostas quando, no trabalho clí-
discrepância entre suas orientações e aquelas das nico em um CAPSad, nos deparamos com o cres-
CTs foram se tornando ainda mais evidentes. cimento das CTs (Tabela 1).
A implementação da política de Redução de A diversidade de fontes desse material se de-
Danos não ocorreu sem dificuldades, dentre elas veu ao fato de nossa pesquisa abarcar atores di-
o estigma social que recai sobre o usuário de dro- versos no campo das políticas públicas, como as
gas, o que infelizmente persiste ainda hoje. A cul- CTs e os Serviços de Saúde Mental, os usuários de
tura da internação era, no início do século XXI drogas, assim como a religião e a própria história
– momento em que ações de redução de danos, das CTs. Sempre procuramos preservar o modo
que vinham sendo praticadas no Brasil desde o discursivo encontrado em cada material por mais
final do século anterior, se ampliaram e tomaram diverso que fosse.
o estatuto de uma diretriz política do Ministério A escolha das fontes não seguiu uma verten-
da Saúde –, muito pregnante, e ainda hoje faz te única. Identificamos algumas palavras-chave
parte de um discurso bastante enraizado e que, para nos acercarmos do que estava sendo pro-
como podemos depreender dos resultados de duzindo em termos de artigos científicos sobre
nossa pesquisa, parece estar novamente tomando o tema. A palavra-chave ‘CTs’ geralmente vem
força. A proposta de internação em CTs tem sido acompanhada pela palavra-chave ‘usuário de
o novo (velho?) mote de tratamento para usuá- drogas’ ou outro termo alusivo ao uso de drogas.
rios de drogas. O que se revelou nesse estudo é que os termos
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Tabela 1. Fontes pesquisadas. políticas públicas de saúde e o das comunidades
Referências Total terapêuticas.
Artigos científicos 3;18;24;27 4
Artigos 13 1
Livros 10;11;20;28 4 Resultados
Capítulo de livro 12;39 2
Legislação 1;2;6;7;8;9;17;26 8 Uma questão sobre a escalada de incentivos:
Notas Técnicas e 5;29;30;31;33 5 um breve histórico
Relatórios
Módulo de portal de 4 1 Nossa pesquisa nos levou a um levantamento
formação a distância que acabou por trazer um rico testemunho sobre
Facebook 16 1 a maneira pela qual o discurso sustentado pelas
Sites 14;15;19;21;22;23; 11 CTs é legitimado, não apenas historicamente,
25;34;37;38;40 como também em articulação com a psicologia,
Matérias de jornais 32;35;36;41;42 5 a psiquiatria e as ciências sociais. Na realidade,
Total 42 vários textos em defesa da atual modalidade das
CTs são de autoria de mestres e doutores que de-
senvolvem trabalhos diretamente ligados às pró-
prias CTs. Certamente, muitos desses profissio-
nais sustentam um trabalho sério que se associa
utilizados como ferramenta de investigação, ge- ao de pessoas que lideram instituições religiosas
ralmente, se entrecruzam nas pesquisas feitas na com todas as isenções fiscais a que têm direito,
internet. Analisamos sites tanto das próprias CTs, por lei. Foram essas que, na última década, galga-
de órgãos públicos quanto de entidades religio- ram posições importantes, legitimando politica-
sas. Por vezes, a procura por um determinado mente as atividades das CTs ligadas a instituições
tema nos levou a novos caminhos de pesquisa. privadas, para o que também se associaram a
Por exemplo: o site “Aberta: portal de formação à pessoas que se formaram, às vezes em instituições
distância – sujeitos, contextos e drogas” da Secre- científicas de renome, para garantir um discurso
tária Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad/ articulado ao discurso acadêmico, tendo como
MJ), em que encontramos um módulo sobre o única visada a defesa das atuais CTs e, last but
histórico e regulamentação das CTs4, nos levou a not least, a de militar politicamente pelo finan-
pesquisar as CTs pioneiras no Brasil e, portanto, a ciamento governamental das CTs do modo como
um percurso histórico para compreender a atual hoje se constituem.
inserção das CTs no âmbito das políticas públi- De acordo com a Nota Técnica da IPEA (Ins-
cas, além de verificar a origem da relação entre tituto de Pesquisa Econômica Aplicada):
CTs, instituições religiosas e o tratamento moral. Além de financiamentos diretos, diversas CTs
Para além dos artigos científicos e sites, reto- são portadoras de certificações, que são concedi-
mamos: 1) textos legislativos sobre o campo de das, pelos poderes legislativos e executivos das três
álcool e outras drogas; 2) Notas Técnicas e rela- instâncias administrativas, a instituições que pres-
tórios produzidos por entidades, como institutos tam serviços de interesse do poder público. Estas
de pesquisa e órgãos regulamentadores de profis- certificações constituem-se em formas indiretas de
sões, e 3) livros e capítulos de livros cujos autores subvenção pública, uma vez que autorizam o não
são referência para o tema proposto. pagamento de diversos tributos5(p.31).
Existem vários tipos de certificações passíveis
Análise do material encontrado de serem pleiteadas pelas CTs, que, como pode-
mos ver nos dados retirados da Nota do IPEA5,
Todos os documentos e reportagens tomados são amplamente concedidos, conforme a Tabela
como material de trabalho nessa pesquisa, por 2.
um lado demonstram a circulação entre o que é A primeira regulamentação técnica das CTs
produzido na esfera pública, suas diretrizes po- foi feita pela ANVISA6, em 2001, em que se ma-
líticas e o efeito delas na população e, por outro nifesta a tentativa de garantir uma melhor qua-
lado, revelam questões éticas importantes no que lidade desses serviços através de sua fiscalização.
tange o financiamento público de instituições Já em 20037, as CTs apareciam como uma preo-
privadas. Também procuramos verificar o grau cupação no texto da lei que se propunha a dar
de afinidade entre o posicionamento ético das as diretrizes para o tratamento de usuários de
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Tabela 2. Certificações concedidas às CTs. A denominação Comunidade Terapêutica


Porcentagens (CT) e os investimentos públicos no
de CTs que tratamento de usuários de drogas
Certificações
possuem
certificação Por CT entendia-se, na segunda metade do
Declaração de Utilidade Pública 73% século XX, uma proposta de reformulação das
Municipal instituições psiquiátricas que vigiam então. De-
Declaração de Utilidade Pública 53% nominada em 1959 por Maxwell Jones – psi-
Estadual quiatra sul-africano que viveu radicado no Rei-
Declaração de Utilidade Pública 27,60% no Unido, considerado o criador do conceito –,
Federal
a CT visava dinamizar a organização de ‘grupos
Certificado de Entidade Brasileira de 20%
de discussão’ e ‘grupos operativos’ que envolves-
Assistência Social
sem pacientes internados em seus tratamentos.
Cebas-Saúde 6,70%
Jones “entendia que a função terapêutica era
Fonte: IPEA.
uma tarefa que deveria ser assumida por todos,
fossem técnicos, fossem os familiares, fossem os
pacientes. Para tanto, introduziu reuniões, as-
sembleias diárias, quando todos os aspectos re-
drogas, pois esses serviços autointitulados “Co- lacionados à instituição eram debatidos”10(p.42).
munidades Terapêuticas [...] multiplicaram-se É interessante notar que, aos poucos, e especial-
sem qualquer regulamentação, evidenciando-se mente nos Estados Unidos, associou-se o trata-
um funcionamento precário para muitos de- mento psiquiátrico ao tratamento de usuário de
les”7(p.46), o que levou à necessidade de expli- drogas e utilizou-se essa mesma denominação,
citar, no texto padronizador, que o Conselho que originalmente tinha uma proposta bastante
Nacional Antidrogas, CONAD, estabelecesse “um progressista, para instituir uma orientação que,
padrão básico para funcionamento dos mesmos, como observado, é, ao contrário daquela, funda-
assegurando direitos e um mínimo de qualidade mentalmente segregacionista, pois visa, cada vez
aos usuários”7(p.46, grifo nosso). Mas oito anos mais, a marginalização de usuários de drogas, in-
depois, as CTs são, ao contrário, institucionaliza- dicando a internação para todos. O interessante
das, como “serviço de saúde destinado a oferecer nisso não é apenas o fato de que se desvirtuou
cuidados contínuos de saúde, de caráter residen- totalmente aquela ideia original da CT, mas tam-
cial transitório por até nove meses para adultos bém a mudança de seu emprego, associando-a
com necessidades clínicas estáveis decorrentes do ao tratamento de usuários de drogas. De acordo
uso de crack, álcool e outras drogas”2. Essa Por- com De Leon, “Afora a designação, não há ele-
taria de 2011 é, aliás, bastante paradoxal porque, mentos que permitam ver com clareza se as CTs
de um lado, sustenta “estratégias de desinstitu- psiquiátricas inglesas influenciaram as CTs de
cionalização”, visando os Serviços Residenciais tratamento da dependência química na América
Terapêuticos, “moradias inseridas na comunida- do Norte”11(p.14).
de, destinadas a acolher pessoas egressas de inter- Há uma hipótese, de 18 de abril de 2017 do
nação de longa permanência”2(grifo nosso), mas, IPEA5, segundo a qual uma das origens do que
por outro lado, advoga pelo recolhimento de até hoje se divulga como CTs remonta às propostas
nove meses para adultos drogaditos. Numa esca- do Doutor ou Reverendo Frank Buchman (que
lada de incentivos, um ano depois, instituiu-se viveu de 1878 a 1961), criador do Grupo de Ox-
o “incentivo financeiro de custeio destinado aos ford, nos Estados Unidos e na Inglaterra, associa-
Estados, Municípios e ao Distrito Federal para do por Fracasso à criação dos grupos AA tendo
apoio de Comunidades Terapêuticas, voltado como mote a espiritualidade12. O que explicaria
para pessoas com necessidades decorrentes do como algumas práticas utilizadas por Jones fo-
uso de álcool, crack e outras drogas, no âmbito ram incorporadas pelas CTs do Brasil e outros
da Rede de Atenção Psicossocial”8. Incentivo que países, adquirindo “características próprias, com-
até hoje ainda não foi liberado pelo Ministério binando fundamentos religiosos a práticas origi-
da Saúde pelo simples fato de que esses estabele- nárias do campo médico-psiquiátrico, em uma
cimentos não se mostram conformes ao estabele- obra que se propõe pia e moralizante”5(p.9).
cido na regulamentação da ANVISA9. As atuais CTs identificam os usuários de dro-
gas como tendo uma doença incurável13(p.5), o
que introduz a orientação religiosa nas “‘fazen-
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das’ e ‘fazendinhas’ de tratamento de dependên- estatais para tratamento de pacientes em sofri-
cia a álcool e drogas, geralmente de natureza mento psíquico – aquilo que justamente a Refor-
religiosa, que se denominam – de forma opor- ma Psiquiátrica de 2001 havia afastado, fechando
tunista e fraudulenta – ‘comunidades terapêuti- os hospitais psiquiátricos de iniciativa privada e
cas’ para ganharem legitimidade social e científi- que engrossavam com polpudos incentivos go-
ca”10(p.43). E é justamente essa legitimidade que vernamentais os bolsos de seus proprietários, em
vem fazendo com que o trabalho com usuários detrimento do atendimento clínico, físico e social
de drogas e psicóticos tenha cada vez menos de seus pacientes...
oportunidade de auferir um investimento públi- Em 2016, ao considerar as comunidades tera-
co. Senão vejamos: pêuticas incluídas na “Tabela de Tipos de Estabe-
Em 2002, o então Ministro da Saúde José lecimentos de Saúde do CNES, o tipo 83 − POLO
Serra julgava procedente que a cada 200 mil ha- DE PREVENÇÃO DE DOENÇAS E AGRAVOS E
bitantes houvesse um CAPS III e a cada municí- PROMOÇÃO DA SAÚDE”17, a Portaria nº1.482
pio com mais de 70 mil habitantes, um CAPSad praticamente legitima as CTs como serviços de
II1. Com um total de trinta e três CAPS14 para o saúde, o que é muito grave, pois a grande maioria
atendimento de toda população do Município do é de serviços religiosos e não de saúde. Diferente-
Rio de Janeiro – estimada em 6.520.266 habitan- mente dos hospitais-colônia, privados, que eram
tes pelo IBGE15 em 2017 –, temos hoje14 apenas subvencionados na segunda metade do século
dois CAPSad II e quatro CAPSad III e um CAP- XX, as CTs que se consolidam na segunda déca-
Sad II da rede estadual, somando um total de sete da do século XXI são, na sua expressiva maioria,
CAPSad. Ora, a lei que regulamentou a reforma instituições de cunho religioso. Por um lado, ga-
psiquiátrica no Brasil é de 2001, A Política do Mi- rantem sua abrangência como ação diretamente
nistério da Saúde para a Atenção Integral a Usuá- promovida pelo Ministério da Saúde, por outro
rios de álcool e outras drogas data de 2003, esta- lado, legitimam-se na tradição do método dos
mos em 2017 e temos apenas sete CAPSad com a “Doze passos ou Minesotta”.
missão de atender uma população de mais de seis De acordo com De Leon, “Os 12 passos e as
milhões de habitantes e apenas quatro CAPSad 12 tradições de AA são os princípios que guiam
III, que têm a capacidade de atender, também du- o indivíduo no processo de recuperação” [...que,
rante a crise, as necessidades de usuários que são em verdade], “enfatizam a perda de controle da
também psicóticos! pessoa com relação à substância e a entrega a um
O que se revela é a impossibilidade de atender ‘poder superior”11(p.19). Dentre os princípios de
a demanda da população que necessitaria desse AA advindos do grupo de Oxford, “estão a no-
tipo de serviço, com a quase absoluta falta de in- ção de confessar-se aos outros”11(p.19). Ao ana-
vestimentos do governo no incremento do tra- lisarem o modelo de tratamento das CTs, Fossi e
balho laico, sustentado na experiência que dife- Guareschi apontam para “as práticas de confissão
rentes profissionais em saúde mental adquiriram no tratamento para usuários de drogas, como a
durante os últimos dez anos, na rede. Observe-se articulação entre a moral religiosa e as tecnolo-
ainda que, na atualidade, não há qualquer mo- gias de disciplina e a biopolítica na conformação
bilização do Estado para constituir outros equi- do modelo de atenção à saúde nesse contex-
pamentos a comporem a rede pública de saúde to”18(p.94).
mental, malgrado as inúmeras mobilizações de
trabalhadores e usuários da saúde mental visan- Seis comunidades pioneiras
do alertar as autoridades, fazendo circular no Fa-
cebook16 e Whatsapp, vários vídeos na tentativa Para examinarmos um pouco mais de perto
de evitar, em 2017, o fechamento e desmonte de a situação das CTs no contexto brasileiro, é pre-
dispositivos no Rio de Janeiro. O desmonte de- ciso percorrermos sua história levando em conta
nunciado só faz aumentar a descrença no aten- o modelo de tratamento por elas proposto, a li-
dimento público interpretado como falho e ine- gação das CTs com a moral religiosa, sua intro-
ficaz, justificando, cada vez mais, o investimento dução nas políticas públicas e, ainda, examinar
nas CTs. quem são os personagens que sustentam a eficá-
As CTs do século XXI aparecem aí e, na sua cia de seu modelo de tratamento.
grande maioria, foram criadas por comunidades Partamos do exemplo de Laura Fracasso
religiosas, no mais das vezes, evangélicas neo- (cujos dados curriculares variam conforme o
pentecostais. Em pleno ano de 2012, ressurge o site), psicóloga graduada pela Universidade Me-
financiamento, pelo Estado, de instituições não todista de São Paulo. É autora de um módulo do
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Bastos ADA, Alberti S

curso promovido e publicado pela Senad/MJ, em lho do Dr. Perez, inspirado nos movimentos de
que data o início da CT no modelo “primeira- vanguarda de então, numa nova forma de tratar
mente desenvolvido na unidade de reabilitação pacientes psicóticos, na contramão das muitas
social do Hospital Belmont (mais tarde chamado instituições totais descritas por Goffman20, clí-
de Henderson), na Inglaterra, na metade da déca- nico e orientado pelo discurso científico e com
da de 1940”4(p.4). Apresenta um infográfico com propostas dialetizadas.
o mapa do Brasil situando nele o que identifica Para o Prof. Dr. Perez, a orientação da clí-
como tendo sido as seis primeiras experiências de nica como CT para pacientes psicóticos durou
CT no país, todas elas da década de 1970, com apenas de 1960 a 1980. Depois disso, sua orien-
exceção de uma fundada em Goiás, em 1968, o tação foi completamente modificada e já não se
“Movimento Jovens Livres”, na casa de um casal trata mais da clínica “como descrita acima”. Por
de missionários evangélicos, como se lê no site algum motivo, o médico deixou de orientar os
do próprio “Movimento”. Das seis CTs indicadas, trabalhos da clínica nessa data, apesar de ter se
apenas uma não figura como tendo sido fundada aposentado de suas funções clínicas somente em
por um religioso, a Clínica Pinel S.A., cuja data de 200521. Quem coordena atualmente os Serviços
fundação seria 1975, conforme o infográfico, em da Clínica é sua neta, Beatriz Blaya, psicóloga.
Porto Alegre. Marcelo Blaya Perez, que teria sido Ela tem quatro enfermarias, de internação, duas
seu fundador, é, na realidade, um médico psi- masculinas e duas femininas22. Uma das mascu-
quiatra com formação sólida. A Clínica também linas é exclusivamente para “dependência quími-
tem um site19 e, nele, é o texto desse médico que ca a partir de 18 anos de idade” e uma das fe-
figura na apresentação da instituição. Descreve mininas “dispõe de programas especiais”22 para
seu próprio percurso, como chegou ao Rio Gran- pacientes dependentes químicas. Existem regras
de do Sul depois de ter terminado sua residência estritas quanto a horário de visita (duas vezes por
médica nos Estados Unidos na década de 1950, semana, por uma hora), com “duas pessoas por
da falta que lhe fazia um lugar onde pudesse in- vez, sem revezamento, [familiares] que já tiverem
ternar pacientes psicóticos de sua própria clínica participado do Programa de Família ao menos
e de como foi inicialmente acolhido pelo Hospi- uma reunião”23, e têm o horário do “Programa
tal Espírita, mas, diante de uma certa ingerência de Família”, com três horas de duração, uma vez
religiosa nos tratamentos de seus pacientes, aca- por semana23. Nenhum traço mais, portanto, da
bou decidindo criar sua própria clínica, a Pinel orientação dada pelo Dr. Perez, que visava a in-
S.A., fundada em 28 de março de 1960. Recebia tegração entre a clínica, a família, o paciente e a
residentes de todo país e, depois de ter sido con- comunidade. No lugar disso, uma severa discipli-
cursado na UFRGS como professor de Psiquia- na de horários, a ausência de liberdade de ir e vir.
tria, a Pinel S.A., por ele criada, passou a receber Perguntamos: estaria a Clínica Pinel S.A. filiada à
residentes em psiquiatria de modo que lhes fosse Federação Brasileira de Comunidades Terapêuti-
franqueada uma formação não só teórica como cas (FEBRACT), fundada pelo “Padre Haroldo”4
também prática, na qual “aprenderam conviven- em 16 de outubro de 1990? Pergunta tanto mais
do com os pacientes, familiares e colegas, o que as importante quando se lê que apenas uma ínfima
teorias dos livros ensinavam”19. Descreve aquela parte das CTs brasileiras se filiaram à Federação
experiência como pioneira para tratamento de que, segundo Perrone24, poderia ser um aparelho
psicóticos no Brasil, na qual se combinavam prá- regulador das atividades dessas comunidades de
ticas de grupos ocupacionais e recreativos numa modo a velar pelo bom funcionamento delas que,
“comunidade clínica com regras e práticas que como o próprio autor cita a partir de uma avalia-
dessem ao psicótico/família condições para a ção do Conselho Federal de Psicologia, de uma
ressocialização [e que] possibilitaram um bom forma geral, está longe de acontecer. Ora, se a Clí-
índice de recuperação”19. No momento em que nica Pinel S.A. é uma das CTs pioneiras no Brasil,
o paciente e seus familiares aceitassem “o risco como cita Fracasso no curso da Senad/MJ4, não
de viver na comunidade”, o paciente tinha acesso deveria ela ser hoje federada à FEBRACT?
tanto ao hospital-dia quanto ao hospital-noite, Chama também a atenção, no aprofunda-
também pioneiros no Brasil, de modo que “estes mento da pesquisa de textos sobre essas comu-
programas permitiam que eles passassem a noite nidades, uma discrepância deveras importante
e fim de semana no seu meio familiar, permane- na utilização de nossa língua pátria. No texto de
cendo na comunidade terapêutica nos horários Perrone24, por exemplo, ou ainda no já citado
diurnos, como os alunos de uma escola”19. Não texto de Fracasso4, há todo um cuidado com a
havia qualquer orientação religiosa no traba- linguagem; o de Perrone, para além disso, é um
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texto muito bem construído, um verdadeiro tex- S.A. –, não estavam, desde a origem, baseados no
to acadêmico, resultado evidente de uma pesqui- discurso científico, mas sim, no religioso. Isso é,
sa aprofundada. Mas nos textos que figuram em no mínimo, curioso e, necessariamente, exige um
sites de comunidades, até mesmo estas que são estudo aprofundado no futuro. Se originalmente
citadas por Fracasso4 como pioneiras no Brasil, esses projetos eram sustentados com donativos
há problemas de linguagem, escrita e, em alguns, dos evangelizados, a venda de produtos religiosos
de presença de cookies com anúncios chulos di- os mais diversos, não podemos esquecer a im-
versos. E isso ao mesmo tempo em que se levanta portância da imunidade tributária, ou isenções
neles o tratamento pelo amor, pela espiritualida- fiscais de que, no Brasil, gozam as instituições
de, pela entrega a Jesus, sem falar da persistente religiosas. Atualmente, parece que tais isenções já
referência a uma ética que, no entanto, nenhum não são suficientes, pois as CTs demandam cada
deles explicita, nem mesmo o texto de Fracasso4 vez mais subvenções estatais. Então há todo dire-
publicado na página do Ministério da Justiça! cionamento visando um investimento estatal nas
Das seis CTs citadas por Fracasso4 nesse texto CTs de absoluta maioria religiosa, em detrimento
como pioneiras, apenas uma foi criada por um do investimento nos esforços que vêm sendo fei-
Padre, justamente o Padre Haroldo Rahm, este tos a partir do que foi estabelecido no texto da
mesmo citado como fundador da FEBRACT. Je- Lei, desde 20037 – Lei de um estado que nela se
suíta nascido nos Estados Unidos, imigrou para o quer laico – visando a redução de danos... Com
Brasil em 1964, em 1975 criou as “’Experiências efeito, não encontramos um único texto com a
de Oração’, germe da Renovação Carismática Ca- descrição das missões desses religiosos que não
tólica no Brasil – RCC”25, em 1978 “fundou em visasse, no final, a total abstenção das drogas. E
Campinas a CT ‘Fazenda do Senhor Jesus’ para essa certamente não é a visada da laica política de
oferecer tratamento e recuperação para homens redução de danos, o que implica questões ideoló-
dependentes de álcool e outras drogas”25, e em gicas de extrema importância.
2006 “iniciou a Campanha de Prevenção às dro-
gas através da Espiritualidade um movimento
ecumênico que chamou-se ‘Fé na prevenção’”25 Discussão
apoiado pela Senad/MJ. Seu trabalho, de grande
monta, é religioso, apoiado na crença da força da As CTs surgiram no Brasil, como afirma A Po-
fé e do amor a Deus que eram de seu ofício. Não lítica do Ministério da Saúde para a Atenção
há nada de errado nisso, evidentemente. Sua mis- Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas7,
são deve ter salvado muitas almas e, certamente, diante do “vazio de possibilidades para a reabi-
foi de grande ajuda para muitas famílias. Mas litação das pessoas com dependência ao álcool
fazer dessa missão uma política pública de um ou a outras drogas”7(p.39). Esse texto acentua o
estado que, constitucionalmente, é laico, neces- fato de que até aquele momento não havia uma
sariamente o associa ao que está em debate aqui. política de saúde destinada a usuários de drogas,
Sabemos que a Renovação Carismática é o mo- o que corrobora que o Ministério da Justiça era
vimento mais radical e mais integrista da Igreja o único ator no cenário de produção e regula-
Católica, orientação ideológica que já foi alijada mentação de políticas voltadas para o campo de
da nossa república há mais de meio século. Seria, álcool e outras drogas. A lei nº 6.368 de outubro
no mínimo, de bom tom que a Senad/MJ refletis- de 1976 que regulamentava, até então, a venda e o
se sobre isso. uso de drogas era absolutamente proibicionista26.
As outras três CTs citadas por Fracasso4 como Pelo ponto de vista da criminologia, os usuários
pioneiras no Brasil são: “Comunidade Cristã S8”, eram criminosos; pelo da psiquiatria, eram do-
fundada em 1971, em Niterói, pelo Pastor Gere- entes, portanto, aos usuários de drogas restavam
mias Fontes; “Desafio Jovem”, fundada em 1972, as prisões ou os manicômios27. De toda forma, o
em Brasília, pelo Pastor Galdino Moreira Filho, tratamento é disciplinar – do modo como este se
e o “Movimento para Libertação de Vidas”, em define a partir de Foucault28 –, isto é, “opera por
1975, em Maringá, pelo Pastor Nilton Tuller. In- meio da normalização das condutas desviantes,
felizmente não há espaço neste artigo para apre- em que o saber médico e o criminológico privile-
sentar todos os resultados da pesquisa realizada giam como objeto de intervenção o criminoso, o
sobre elas, mas nos é possível afirmar que essas louco, o delinquente, o ‘drogado’”27(p.157).
experiências pioneiras citadas por Fracasso4 ema- O proibicionismo ou guerra às drogas se con-
nam, todas, de projetos norte-americanos que, trapõe ao antiproibicionismo, ambos paradigmas
com a exceção de uma única – a Clínica Pinel do setor da justiça, da mesma forma que na saúde
292
Bastos ADA, Alberti S

vemos a oposição entre o paradigma asilar e o pa- financiamento das CTs atuais]”34, o que introduz
radigma psicossocial3. O paradigma proibicionis- uma nova orientação que se deduz da própria fi-
ta é o de um mundo ideal livre de drogas, para ele, nalidade explicitada: a de haver uma explícita in-
o único tratamento possível é a abstinência, o que tensão de visar um financiamento dessas institui-
implica, no campo da saúde, o correlato paradig- ções, levando-nos à pergunta: Por quê? Por que a
ma asilar no qual “O indivíduo ocupa um lugar insistência em afirmar as CTs como serviços de
passivo em seu tratamento, sendo considerado saúde? Por que insistir em seu financiamento pú-
doente, justificando, com isso, seu isolamento do blico? Quem ganha com isso? Não nos parece que
meio familiar e social mais amplo”3(p.1456). No seja a população, que, como vimos, está carente
seu antípoda, o paradigma psicossocial se alia ao de serviços calcados na atenção psicossocial, esta
antiproibicionsmo, pois entende que a criminali- que leva cada um em consideração como cidadão
zação estigmatiza o usuário7. e como sujeito...
De acordo com Teixeira et al.3, o paradigma Em seu prefácio, o Relatório da Inspeção
psicossocial é herdeiro da reforma psiquiátrica, Nacional em comunidades Terapêuticas -201733
da qual herda referências sobre o sofrimento introduz a seguinte questão: “Em nome da pro-
“que vão além da noção de doença”3(p.1456). A teção e do cuidado, que formas de exclusão, de
visão não é a “supressão sintomática e a neces- sofrimento e de tratamentos cruéis, desumanos
sária abstinência e sim a redução de riscos e da- e degradantes têm sido produzidas?”33(p.9). Com
nos”3(p.1456). relação ao tratamento dispensado aos usuários
As CTs atuais não surgem em contraposição de drogas nas CTs, afirma: “A privação de liber-
ao modelo doença/crime, nem mesmo se abstêm dade é a regra que sustenta esse modelo de aten-
do poder disciplinar, como já pudemos demons- ção”33(p.9), e que, em todos os estabelecimentos
trar em várias partes do texto. Elas se aliam a visitados, “foram identificadas práticas que confi-
esses modelos sustentados no paradigma da abs- guram violações de direitos humanos”33(p.10). O
tinência e introduzem um novo ingrediente, “a relatório alerta para o fato de que, 18 das CTs vi-
moral religiosa”27(p.157). sitadas informaram que recebiam “algum tipo de
Vários relatórios vêm sendo feitos na tenta- recurso ou doação de órgãos públicos”33(p.18), o
tiva de mostrar às autoridades que as CTs tra- que necessariamente implica em que haja “fisca-
balham de forma antagônica aos preceitos do lização e acompanhamento das práticas desen-
paradigma psicossocial, dentre eles destacamos: volvidas pelo destinatário dos recursos, o que
Relatório de inspeção em Comunidades terapêuti- não foi identificado nas vistorias”33(p.18). Assim
cas financiadas pelo governo do Estado do Rio de “o financiamento indiscriminado de instituições
Janeiro29; Relatório da 4ª Inspeção Nacional de dessa natureza acaba por resultar na destinação
Direitos Humanos: locais de internação para usuá- de recursos públicos a locais onde há violações de
rios de droga30; O Dossiê: Relatório de Inspeção de direitos”33(p.150). Donde se conclui que: “ao se
Comunidades Terapêuticas e Clínicas para Usuá- destinar recursos para instituições com perfil de
rias(os) de Drogas no Estado de São Paulo − Ma- comunidades terapêuticas, deixa-se de fomentar
peamento das Violações de Direitos Humanos31. Na outras iniciativas, mais coerentes com as normas
mesma direção, se redigiu o relatório da inspeção e regras da saúde pública”33(p.150).
que foi feita em outubro de 2017 pelo Ministé- Em 2017, diante da proposta de mudança na
rio Público Federal (MPF), Mecanismo Nacional política de saúde mental, que efetivamente foi
de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e votada na Comissão tripartite em 14 de dezem-
Conselho Federal de Psicologia (CFP), desta feita, bro de 2017, pudemos assistir a todo tipo de ma-
a partir da vistoria de 28 Comunidades Terapêu- nifestação nas redes sociais e mesmo em matérias
ticas32,33. Por último, é preciso referir também a de jornais35,36. Várias notas foram postas na in-
Nota Técnica do IPEA5: Perfil das Comunidades ternet por diferentes órgãos reguladores de pro-
Terapêuticas Brasileiras, publicada em 2017, re- fissões37,38. Apesar dos relatórios e dos protestos,
sultado da pesquisa encomendada pela Senad/MJ não apenas dos trabalhadores de saúde mental,
em 2014 e realizada no período de 2014 a 2016. mas também de várias entidades que divulgaram,
O intuito, diferentemente dos outros relatórios maciçamente, as dificuldades advindas das novas
citados, era “reunir informações que permitis- orientações nas redes sociais, temos assistido
sem o aperfeiçoamento dos processos de moni- cada vez mais à invasão de medidas que se aliam
toramento e avaliação deste financiamento [o ao paradigma proibicionista.
293

Ciência & Saúde Coletiva, 26(1):285-295, 2021


Considerações finais tomando o paradigma da guerra às drogas cen-
trado na repressão da oferta e com uma política
Diante do apresentado, como é que aqueles que de cuidado e tratamento às pessoas com UPD
querem ganhar a guerra às drogas pretendem baseado no modelo de doença presente nas CT,
fazê-lo? Pelo que pudemos observar com as úl- em detrimento ao modelo psicossocial da RAP-
timas observações, certamente não é investindo S”3(p.1463).
em serviços de atenção psicossocial. A “guerra às Esse redirecionamento implica em uma ten-
drogas” está longe de reduzir danos, pois, como são no campo de álcool e outras drogas e incide
toda guerra, os acirra. A letalidade do proibicio- diretamente sobre aqueles que utilizam os servi-
nismo se exprime no número de mortes, produto ços públicos de saúde, nesse caso os usuários de
dessa guerra, e se alia ao capital de giro do tráfico, drogas, ferindo o princípio da universalidade de
que nunca é só de drogas39. acesso que dá direito à saúde a todos. A premis-
Nossa hipótese, portanto, é que o investimen- sa da abstinência implica no não acesso7 à rede
to nas CTs é um recrudescimento do proibicio- de saúde por grande parte dos usuários de dro-
nismo e consequentemente do paradigma asilar. gas, “traçar uma política com base em um único
Hipótese que parece se confirmar quando nos objetivo [abstinência] é trabalhar em saúde com
defrontamos com o “Exército da fé”40-42. E por um modo estreito de entendimento”7(p.9), quan-
que uma igreja quer um exército? Contra quem do, na realidade, “o planejamento de programas
quer fazer guerra? No teor dos vídeos apresenta- deve contemplar grandes parcelas da população,
dos no YouTube, os usuários de drogas parecem de uma forma que a abstinência não seja a única
ser alvo dessa guerra, uma vez que a “salvação” meta viável e possível aos usuários”7(p.8).
do drogado, bem como a diabolização das dro- Essa é exatamente a questão implícita no tí-
gas, são motes que a sustentam. Referimos aqui tulo de nosso trabalho, isto é, o fato de estarmos
esses vídeos como exemplo, apesar de muitos já assistindo ao incremento da moral religiosa asso-
terem sido retirados: “Com o despertar da polê- ciada ao paradigma proibicionista em detrimento
mica, a Universal passou a bloquear o acesso ao do paradigma psicossocial como direcionamento
conteúdo publicado sobre os gladiadores em seus para as políticas públicas. Esse redirecionamen-
canais oficiais na internet”42. to certamente põe em cena a discussão sobre as
Ao discutirem as políticas públicas de saúde questões éticas que se colocam ao cuidado em
no período de 2000 a 2016, Teixeira et al.3 afir- saúde mental, que implicam entre outras coisas
mam que “o modelo de RD vem ganhando pro- na forma como se trata o usuário de drogas, se
tagonismo principalmente, a partir de 2005, com acolhendo-o a partir de uma “estratégia” que visa
o realinhamento da Política Nacional sobre Dro- “como objetivo a ser alcançado [...] a defesa de
gas”3(p.1462). Entretanto, afirmam que a partir sua vida”7, ou se segregando-o, tal como outrora
de 2016, houve uma mudança nessa direção, “re- se tratavam os “loucos”.

Colaboradores

As autoras trabalharam igualmente em todas as


etapas de elaboração do artigo que é tema da tese
de doutora de ADA Bastos, sob orientação de S
Alberti. As autoras pesquisaram a situação da in-
terveniência das políticas públicas no tratamento
dos usuários de drogas. ADA Bastos pesquisou o
paradigma psicossocial versus o paradigma proi-
bicionista e S Alberti dedicou-se mais a pesquisar
a fundo a trajetória das Comunidades Terapêuti-
cas no Brasil.
294
Bastos ADA, Alberti S

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