Você está na página 1de 12

DOI: 10.1590/1413-81232022279.

04462022 3777

Entre legitimação científica e legitimação cultural: transformações

temas livres free themes


no campo das Práticas Integrativas e Complementares

Between scientific legitimation and cultural legitimation:


transformations in the field of Integrative and Complementary
Practices

Iago Marafina de Oliveira (https://orcid.org/0000-0001-5300-6965) 1


Dário Frederico Pasche (https://orcid.org/0000-0001-7161-8607) 2

Abstract The National Policy on Integrative and Resumo A Política Nacional de Práticas Integra-
Complementary Practices (NPICP) was published tivas e Complementares (PNPIC) foi publicada há
15 years ago, and between 2017 and 2018 it saw 15 anos e entre 2017 e 2018 passou por dois atos de
two phases of growth and increased from 5 to 29 ampliação, partindo de cinco para 29 modalida-
modalities of Integrative and Complementary des de Práticas Integrativas e Complementares em
Practices (ICP), namely an increase of 24 new Saúde (PICS), um aumento de 24 novas práticas
practices within a year. The scope of this article no período de um ano. O objetivo deste artigo é
is to understand the conditions for such transfor- compreender as condições para tais transforma-
mations in the ICPs in the Unified Health System ções ao redor das PICS no Sistema Único de Saúde
(SUS), reflecting upon how social actors interpret (SUS), refletindo como os atores sociais compre-
these changes. Thus, semi-structured interviews endem essas mudanças. Foram realizadas entre-
were conducted with eight interlocutors, analy- vistas semiestruturadas com oito interlocutores/
zed in the light of Pierre Bourdieu’s field theory. as, analisadas à luz da teoria do campo de Pierre
The results show that the expansion of the NPI- Bourdieu. Os resultados apontam que a amplia-
CP, motivated by political-institutional factors, is ção da PNPIC, motivada por atravessamentos
comprehended in two matrices of thought that are político-institucionais, é compreendida em duas
related to the cultural and scientific legitimation matrizes de pensamento que se relacionam com a
of the ICPs in the SUS. The conclusion drawn is legitimação cultural e a legitimação científica das
that the rapid expansion of the NPICP generated PICS nos SUS. Conclui-se que a rápida expansão
a crisis in the field, showing the need for a restruc- da PNPIC gerou uma crise no campo, mostrando
turing dialogue with its social bases. a necessidade de uma reestruturação dialogada
Key words Complementary Therapies, Integrati- com suas bases sociais.
1
Instituto de Medicina ve Medicine, Health Policy, Public Health, Unified Palavras-chave Terapias Complementares, Me-
Social, Universidade do Health System dicina Integrativa, Política de Saúde, Saúde Pú-
Estado do Rio de Janeiro.
São Francisco Xavier 524, blica, Sistema Único de Saúde
Maracanã. 20550-900
Rio de Janeiro RJ Brasil.
iagomarafinadeoliveira@
gmail.com
2
Instituto de Psicologia,
Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre
RS Brasil.
3778
Oliveira IM, Pasche DF

Introdução gitimação cultural das PICS presentes no SUS. É


importante ressaltar que não serão discutidas as
Em 2006 foi publicada no Brasil a Política Na- práticas específicas neste artigo, mas as condições
cional de Práticas Integrativas e Complementa- de conformação e transformação da PNPIC.
res (PNPIC), o primeiro documento, em âmbito
federal, a planejar, implementar e avaliar o tra-
balho com práticas não-convencionais nos servi- Método
ços de saúde do país1. No documento, as Práticas
Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) Minayo5 entende que existem etapas interconec-
foram reunidas em torno do conceito de Racio- tadas para a construção de uma investigação,
nalidades Médicas (RM) e a noção de Recursos como: (a) escolha do tema; (b) recorte do pro-
Terapêuticos (RT), cujas distinções são funda- blema; (c) colocação dos objetos de pesquisa e
mentais para a compreensão sobre as transfor- objetivos; (d) constituição dos direcionamentos
mações ocorridas na Política Nacional. conceituais; (e) instrumentos para coleta de da-
Uma RM, de acordo com Luz2, é um sistema dos; e (f) a forma como se irá adentrar o campo.
médico complexo considerado em seis dimen- Nesta perspectiva, foram adotados princípios e
sões: morfológicas, fisiológicas, diagnósticas, procedimentos metodológicos qualitativos para
terapêuticas e de doutrina médica - essas cinco a realização da pesquisa, fundamentada pela Teo-
dimensões compõem uma sexta dimensão que ria do Campo de Pierre Bourdieu6.
engloba todas as anteriores, chamada de cosmo- Na fase exploratória, foi realizada uma pes-
visão. Já os recursos terapêuticos (RT), conforme quisa para o conhecimento do estado da arte
a PNPIC1, são as ferramentas terapêuticas utili- de produções sobre o campo das PICS no SUS,
zadas em diferentes sistemas médicos complexos. etapa na qual ocorreu o delineamento do objeto.
Neste sentido, um RT está sempre vinculado a Foram encontradas lacunas no que tange a uma
uma RM, como o caso da Acupuntura, recurso análise das condições de emergência e confor-
terapêutico pertencente à Racionalidade Médica mação das PICS no SUS, além de informações
Chinesa. que justificassem a rápida expansão da política.
A PNPIC passou aproximadamente 10 anos A identificação destas lacunas possibilitou tanto
sem modificações. Foi somente em 2017 que o a construção do problema de pesquisa como a
documento passou a englobar 14 novas PICS3. elaboração de um roteiro de entrevista semies-
Naquele ano a política nacional passou de 5 para truturado. As entrevistas foram realizadas com
19 práticas. Um ano depois, em 2018, durante agentes sociais que atuam entorno do campo das
o 1º Congresso Internacional de Práticas Inte- PICS no Brasil – etapa que aconteceu de janeiro
grativas e Saúde Pública (CONGREPICS), foi a março de 2021 de forma remota via plataforma
anunciada a inclusão de mais dez práticas4. Desta de videoconferência. O roteiro foi composto por
forma, atualmente a PNPIC é composta por 29 tópicos que englobavam as histórias de vida dos
práticas e, entre elas, quatro racionalidades mé- agentes sociais, os processos instituintes que pos-
dicas: homeopática, chinesa, ayurvédica e antro- sibilitaram a emergência da política, os tensiona-
posófica. As outras 25 modalidades de PICS divi- mentos durante sua construção, suas condições
dem-se entre recursos terapêuticos vinculados a de conformação no SUS, o papel das práticas na
algum sistema médico complexo e práticas con- produção de saúde e o contexto de expansão da
sideradas independentes, ou seja, não se consti- PNPIC.
tuem enquanto racionalidades médicas. A amostra de interlocutoras/es da pesqui-
A partir das ampliações realizadas em 2017 sa foi composta por 8 sujeitos – 5 mulheres e 3
e 2018, é possível perceber que a PNPIC vai tor- homens – ligados aos espaços da gestão (duas
nando-se um espaço que passa a congregar não pessoas ligadas à formulação e implementação
mais racionalidades médicas e seus recursos tera- da política) e da academia (seis pessoas ligadas
pêuticos, mas também práticas que não se carac- à pesquisa, ensino e/ou extensão em PICS). O
terizam nem como RM nem como um RT per- número de interlocutoras/es do estudo não foi
tencente a algum sistema médico complexo. Tais definido previamente ao início da fase de campo,
atos de ampliação produziram efeitos diversos no utilizando-se como balizador a argumentação de
campo, os quais o estudo buscou repercutir ao Minayo7 que afirma não ser possível determinar a
produzir a análise a partir de diferentes narrati- priori a amostragem em pesquisas qualitativas, já
vas de agentes sociais que compõem matrizes de que, ao contrário das pesquisas quantitativas que
pensamento entre a legitimação científica e a le- tratam da magnitude dos fenômenos, as pesqui-
3779

Ciência & Saúde Coletiva, 27(9):3777-3787, 2022


sas qualitativas tratam da intensidade, singulari- pliação da PNPIC ao longo dos anos. O Quadro
dades e significados deles no tecido social. Disso 1 ilustra tal processo.
decorre que a saturação dos dados em amostras Para apreender a complexidade das transfor-
não-probabilísticas é verificada durante a fase de mações entorno da PNPIC, torna-se necessário
campo por meio de avaliação constante das in- trazer à cena as ferramentas oferecidas pela Teo-
formações. Assim, o grupo de interlocutoras/es ria do Campo de Pierre Bourdieu. O campo em
foi composto ao longo da pesquisa, conforme a Bourdieu6 é definido como um microcosmos de
técnica da bola de neve proposta por Biernarcki relações entre agentes sociais, organizações e ins-
e Waldorf8, de forma que um sujeito – ao finali- tituições detentoras de autonomias distintas e di-
zar a entrevista – poderia indicar outros agentes ferentes tipos de capitais que se relacionam entre
sociais do campo das PICS que pudessem contri- si em correlações de forças. Grenfell9 diz que o
buir para a pesquisa conforme as características campo de práticas sociais em Bourdieu torna-se
do instrumento de coleta de dados, com os quais também um campo de batalha no qual acontece
o pesquisador entrava em contato. A coleta de a disputa de diferentes sentidos. Bourdieu6 sus-
informações foi suspensa quando o material reu- tenta que em campos sociais existe uma indisso-
nido possibilitou compreender – com qualidade, ciabilidade entre as histórias singulares de cada
especificidade e heterogeneidade – a problemáti- ator e das histórias que se (re)produzem de ma-
ca da pesquisa. neira coletiva e dialética na forma do habitus. Em
A análise das informações coletadas nas en- articulação ao conjunto de operadores conceitu-
trevistas foi orientada pela articulação das dife- ais que a Teoria do Campo possibilita operar na
rentes narrativas, de acordo com a proposição análise, foram reunidas as narrativas de agentes
de Minayo7 ao refletir que a interpretação não é sociais que demonstram as distintas compreen-
a palavra final sobre o objeto de estudo, já que sões acerca das transformações na PNPIC.
a realidade caminha em diversas direções aber-
tas. Buscou-se compreender o campo das PICS Entre legitimação científica e legitimação
a partir das narrativas dos sujeitos de pesquisa cultural: os meandros da ampliação
que constituíram um grande relato de compre- da PNPIC
ensões subjetivas e parciais que se movimentam
em composição e contraposição. Concomitan- A equação “[(habitus) (capital)] + campo =
temente, também foram analisados documen- prática”, proposta por Bourdieu10(p.97), exempli-
tos identificados no percurso da pesquisa, como fica como um campo pode ser disposto. É pos-
portarias ministeriais. sível tomar a prática como aquilo que se torna
Todos os participantes da pesquisa assina- visível, uma gênese sobre a série de relações que
ram o Termo de Consentimento Livre e Esclare- precedem, produzem e tornam possível as ações
cido, aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa visíveis e objetivas. Neste sentido, o que estaria
do Instituto de Psicologia da Universidade Fe- em jogo no que não está visível na ampliação da
deral do Rio Grande do Sul, sob parecer CAAE PNPIC?
39006720.1.0000.5334. Os sujeitos foram identi- Para o Interlocutor 2 a “ampliação esteve
ficados por número e seus dados pessoais foram sempre em pauta, não houve momento em que
mantidos em sigilo. surgiu”, o que demonstra que desde a publicação
da política existia o interesse de agentes deman-
dando sua ampliação, levando a Coordenação
Resultados e discussão Nacional das PICS (CNPICS) a responder inú-
meras notas técnicas. O Interlocutor cita que
Foi possível identificar duas grandes matrizes no Ministério da Saúde (MS), ao final de 2011,
de pensamento no que tange aos consensos e eram discutidos os resultados do Programa Na-
contrassensos sobre o processo de ampliação da cional de Acesso e Qualidade da Atenção Básica
PNPIC: a que compreende a ampliação em rela- (PMAQ), momento no qual começava-se a ava-
ção à legitimação científica e a que compreende liar quais tipos de práticas estavam presentes nos
a ampliação em relação à legitimação cultural. serviços de saúde para além daquelas circunscri-
Desta forma, é proposto investigar os meandros tas na PNPIC até então. É possível inferir que os
entre as duas diferentes compreensões sobre a ex- agentes sociais envolvidos com as práticas que
pansão da PNPIC, refletindo, ao mesmo tempo, não estavam presentes na PNPIC não começam
seus cenários político-institucionais. Em um pri- meramente a reivindicar seu espaço no SUS em
meiro momento, é importante evidenciar a am- um determinado momento histórico. Tais agen-
3780
Oliveira IM, Pasche DF

Quadro 1. Ampliação da PNPIC.


PNPIC (2006 - 2017) PNPIC (2017 - 2018) PNPIC (2018 - 2021)
Homeopatia Homeopatia Homeopatia
Medicina Antroposófica Medicina Antroposófica Medicina Antroposófica
Medicina Trad. Chinesa/Acupuntura Medicina Trad. Chinesa/Acupuntura Medicina Trad. Chinesa/Acupuntura
Plantas Medicinais/Fitoterapia Plantas Medicinais/Fitoterapia Plantas Medicinais/Fitoterapia
Termalismo Social/Crenoterapia Termalismo Social/Crenoterapia Termalismo Social/Crenoterapia
  Arteterapia Arteterapia
  Ayurveda Ayurveda
  Biodança Biodança
  Dança Circular Dança Circular
  Meditação Meditação
  Musicoterapia Musicoterapia
  Naturopatia Naturopatia
  Osteopatia Osteopatia
  Quiropraxia Quiropraxia
  Reflexoterapia Reflexoterapia
  Reiki Reiki
  Shantala Shantala
  Terapia Comunitária Integrativa Terapia Comunitária Integrativa
  Yoga Yoga
    Apiterapia
    Aromaterapia
    Bioenergética
    Constelação Familiar
    Cromoterapia
    Geoterapia
    Hipnoterapia
    Imposição de Mãos
    Ozonioterapia
    Terapia de Florais
     
5 PICS 19 PICS 29 PICS
Fonte: Autores.

tes, reunidos em coletivos representantes da or- inserções na PNPIC que essa análise se torna pos-
ganização política de determinadas práticas, vão sível, já que desde a publicação da política exis-
abrindo espaço em relação ao direito que elas tiam solicitações de inclusão de novas práticas,
possuem de existir no SUS, um direito de exis- o que, de acordo com as informações do Inter-
tir ancorado nos hábitos presentes culturalmente locutor 2, levava a CNPICS a responder a essas
nos territórios. Torna-se importante sublinhar forças externas em duas dimensões: a primeira
que as Medicinas Tradicionais Indígenas e as prá- vinculada à máquina jurídico-burocrática do es-
ticas de cura afro-brasileiras, de acordo com a In- tado – na forma de notas técnicas que explicavam
terlocutora 1, não foram incorporadas a PNPIC os motivos pelos quais determinadas práticas não
justamente para que elas fossem protegidas da poderiam entrar na política naquele momento; e
regulação e controle do Estado, a fim de evitar a segunda vinculada à construção de um diálogo
uma nova possibilidade de violência epistêmica com bases sociais – na forma da agenda de even-
em populações historicamente subalternizadas. tos da CNPICS em diversas regiões do país.
É justamente na indefinição sobre o momen- Em meio a esse jogo de forças, os resultados
to em que se iniciam as discussões sobre novas obtidos pelo PMAQ parecem ser uma das justi-
3781

Ciência & Saúde Coletiva, 27(9):3777-3787, 2022


ficativas técnicas para a ampliação da política, essa coisa de legitimar culturalmente, e isso é o
revelando uma multiplicidade terapêutica co- grande ganho. A ampliação para 29 práticas foi
existindo no SUS. A inclusão de novas práticas, um reforço disso” (Interlocutor 3).
justificada pelos resultados do PMAQ, pode su- As PICS, a partir de suas organizações e agen-
gerir que a oferta foi validada institucionalmente tes, conformam uma base social, mostrando-se
em um primeiro momento pelos próprios pro- como uma força instituinte no tecido social com
fissionais em uma abertura às experimentações interesse em se institucionalizar – uma luta por
de produção de saúde ao redor das variadas cul- reconhecimento que em certo grau poderia ad-
turas de cuidado que se encontram na correla- vir da legitimação do Estado na forma de política
ção serviço-território. Os resultados do primeiro pública e na participação as regras destes jogos. É
e segundo ciclos do PMAQ na Atenção Básica, na perspectiva dos interesses específicos que en-
conforme Amado et al.11, demonstraram que volvem os sujeitos em um campo que Bourdieu12
existia maior oferta da PICS no território do que sustenta a noção de illusio, remetendo que os
até então era conhecido via o Sistema Cadastro agentes não estão somente presentes em um jogo
Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES) de forças, mas envolvidos por ele. Estes interesses,
e no Sistema de Informação da Atenção Básica que compõem a illusio, também estão associados
(SISAB), o que apontava não somente uma sub- ao que Boudieu6 chama de habitus, um conceito
notificação, mas um desconhecimento do Minis- que revela a existência de estruturas, tanto estru-
tério da Saúde acerca das terapêuticas presentes turadas quanto estruturantes, que conformam as
no cotidiano dos serviços. A partir da avaliação maneiras que os agentes sociais pensam e agem
do segundo ciclo do PMAQ, as Equipes de Saúde no mundo.
da Família foram questionadas se estavam reali- Um exemplo desta dinâmica dialética do
zando algum tipo de prática terapêutica que ain- habitus está presente no próprio documento da
da não estava inserida na PNPIC. Os resultados política nacional, apontando que as motivações
apontaram para a existência de práticas ainda para a sua formulação também envolviam a pre-
não inseridas na Política, sendo as mais signifi- sença de práticas terapêuticas não-convencionais
cativas em termos numéricos de atendimentos já sendo realizadas nos territórios3, o que atribui
a Terapia Comunitária Integrativa, Arteterapia, as PICS presentes no SUS um sentido consue-
Danças Circulares, Shantala e a Musicoterapia, tudinário – que diz sobre um habitus social de
respectivamente. múltiplas formas de cuidado em saúde localizado
A CNPICS continuou sofrendo pressões ex- nos territórios. Assim, em seu primeiro momen-
ternas de agentes sociais, que se movimentavam to, a PNPIC seria uma política pública que vem
em torno do Ministério da Saúde buscando legi- de baixo para cima – do coletivo para a máquina
timidade das práticas das quais eram represen- estatal. Contudo, o Estado opera também insti-
tantes – legitimidade que poderia ser angariada tucionalizando de cima para baixo – da máquina
via PNPIC em âmbito nacional. Entretanto, se- estatal para o coletivo. Pasche e Passos13 discor-
gundo interlocutores da pesquisa, a CNPICS não rem que o Estado funciona como uma máquina
se propunha a dizer quais práticas eram legítimas centrípeta que se abre e se fecha para as forças
ou não, mas se propunha, como apontado na instituintes a fim de capturá-las, uma vez que a
própria PNPIC1, a descentralizar e regionalizar a institucionalização permite o controle de movi-
Política: “os gestores podem reconhecer práticas mentos disruptivos que emanam dos coletivos.
de importância local. Às vezes a prática não tem No sentido de uma política pública compos-
uma relevância nacional, mas tem para aquele ta também por forças que operam de baixo para
território, então cabe ao território normatizar e cima, a legitimação cultural das PICS no SUS po-
monitorar” (Interlocutor 2). deria ser lida, no sentido de Bourdieu12, enquanto
Isso leva à formulação de que a realidade o acúmulo de um capital cultural que atribui um
dos territórios se faz muito mais plural do que valor de cuidado em saúde distinto da Racionali-
a política pública em saúde a nível nacional. De dade Biomédica, tornando-se um sistema amplo
acordo com o Interlocutor 3, as PICS ainda são de trocas entre diferentes agentes no campo e en-
muito periféricas no SUS, mas crescem na medi- tre diferentes capitais, como o social, o cultural, o
da em que a legitimidade social cresce tanto no econômico e o simbólico. Para Lebaron14 (p.103),
país quanto mundo a partir dos esforços da OMS os capitais se dão por “maneiras muito variadas
para institucionalização das Medicinas Tradicio- e sempre dependentes dos contextos sociais que
nais, Complementares e Integrativas nos sistemas condicionam seu valor social. Diferentes tipos de
de saúde: “Até onde eu entendo, a PNPIC tem capital tornam-se, por sua vez, um fator de lu-
3782
Oliveira IM, Pasche DF

tas simbólicas”. O capital, assim, é compreendido dências que justificassem sua presença no SUS.
por Bourdieu em relação à disposição de agentes Aqui, nota-se mais precisamente que a amplia-
e organizações no campo e que confere um deter- ção da PNPIC vai sendo questionada a partir de
minado poder, influência e autonomia. motivações científicas. Neste sentido, a equipe do
A legitimação cultural enquanto matriz de Ministério das Saúde tentou consolidar uma for-
pensamento presente no campo torna possível ma de ação lastreada por evidências científicas:
entender a PNPIC como um transbordamen- “a Coordenação Nacional conseguiu o mapa de
to de uma produção desejante que já acontecia evidências com a OPAS que nos empodera mui-
nos serviços públicos de saúde, no qual o real, de to” (Interlocutora 1).
acordo com Deleuze e Guattari15, é composto por O mapa das evidências é um analisador da
uma incessante produção de desejo que expande, luta por legitimação científica identificada no
se (re)faz e transborda na realidade. Neste caso, é campo como matriz de pensamento. Foram rea-
entre o SUS real – na forma de múltiplas culturas lizados 14 mapas de evidências sobre 14 diferen-
de cuidado nos territórios; e o SUS jurídico-for- tes PICS, categorizados por natureza metodoló-
mal – na forma de seu regramento pelo Estado, gica, país, população e efeitos, apontando o nível
que acontece a incessante produção de forças de confiança do estudo entre alto, moderado e
instituintes. A própria PNPIC3 menciona que a baixo, sendo as pesquisas predominantemente
institucionalização de terapêuticas não-conven- empíricas quantitativas e/ou revisões de litera-
cionais no SUS visava a legitimar e incorporar tura de dados quantitativos. Os mapas se consti-
práticas que já eram exercidas mesmo antes de tuem, portanto, como uma forma de argumentar
sua promulgação, além de ampliar o acesso ao sobre as evidências científicas de algumas PICS
que anteriormente acontecia de forma mais fre- que ainda sofrem resistências frente à racionali-
quente no setor privado da saúde. É possível infe- dade biomédica convencional.
rir que tal produção desejante afirma exatamente Entretanto, adotar o pressuposto das evidên-
a acumulação de uma legitimidade cultural até cias em PICS também é compreendido como
aqui. uma situação conflituosa na perspectiva de ou-
Contudo, a ampliação da PNPIC também é tros sujeitos entrevistados, uma vez que se corre
vista com ressalvas. O processo de ampliação da o risco de um retorno a um tema-chave clássico
PNPIC é percebido, pela Interlocutora 6, como da ciência biomédica que molda saberes e co-
desfavorável, pois “munem as críticas que algu- nhecimentos entre o que é legítimo (verdadeiro)
mas PICS sofrem, especialmente as vistas como e o que é ilegítimo (falso). Estes pontos de vis-
mais polêmicas”. A Interlocutora sublinha que ta não devem ser lidos, contudo, como os atu-
essa ampliação foi realizada com pouco diálogo ais discursos anticiência, mas como um debate
em suas bases sociais, atores e organizações, o epistemológico que propõe uma reflexão crítica
que gerou reações internas e externas ao MS, de- às epistemes moderno-coloniais que, de acordo
monstrando uma nova correlação de forças por com Santos16, promovem o epistemicídio, apaga-
setores que estavam em disputa por legitimação e mento e desperdício de diferentes formas de ex-
mercado de trabalho dentro e fora do SUS, o que periências, práticas, conhecimentos e existências
será discutido a frente. Neste sentido, a Interlo- que os sujeitos constroem ao redor do mundo.
cutora 4 pondera a questão das críticas entorno De acordo com Camargo Jr.17, o início do po-
do acúmulo de capital científico: “o Ministério sitivismo científico com Comte e posteriormente
da Saúde chancelou as 29, mas temos poucos es- com Fichte e Mach inauguram discussões, entre
tudos e poucos profissionais qualificados. Como os séculos XVIII e XIX, sobre a metodologia da
que estão essas 29? Quais as evidências? Acho que ciência e formas de (re)produção de uma ver-
muita coisa não deveria estar ali” (Interlocutora dade universal. O século XX marca o apogeu da
4). Na mesma direção, outra participante tam- ciência como modo de produção da verdade com
bém demonstra contrariedade com as mudanças Karl Popper, que pretendia encontrar um crivo
ocorridas na PNPIC: “foi ‘esculhambada’ com a absoluto entre o que poderia ou não poderia ser
entrada de qualquer coisa. Desculpe, mas isso é científico, quando a ciência “assume cada vez
verdade, porque quando você joga o conceito na mais o papel de tribunal da razão, uma espécie de
terra, vira terra de ninguém” (Interlocutora 1). ciências das ciências”17(p.51). Tal modus operan-
Os relatos acima permitem compreender as di da ciência produziu efeitos nos mais diversos
ressalvas em relação à ampliação da PNPIC, pas- campos da vida, construindo regimes de verdade
sando pelas preocupações com a pesquisa e a for- que operam legitimando ou deslegitimando as
mação dos profissionais, além da busca por evi- práticas.
3783

Ciência & Saúde Coletiva, 27(9):3777-3787, 2022


Na perspectiva de Stengers18, a discussão da PNPIC, realizado durante o CONGREPICS
acerca das evidências científicas remonta à dis- em 2018, se mostra como um analisador que
puta por uma diferenciação entre uma medicina condensa tais relações de força: “no primeiro
racional e o que seria charlatanismo. A ciência CONGREPICS o Ministro da Saúde assinou as
racional é tomada como fonte única de verdade 10 PICS e eu vibrei junto. Mas aí tinha um local
fundamentada em seus próprios pressupostos e a com vários profissionais oferecendo PICS, ofere-
dominância da racionalidade biomédica conven- cendo de qualquer jeito, indicando aromaterapia
cional no campo da saúde torna-se a única situa- numa conversa de dois minutos” (Interlocutora
da como capaz de possuir uma matriz científica, 4). O CONGREPICS segundo a Interlocutora 5,
logo, verdadeira. O modelo biomédico, assim que também esteve no evento, foi “uma questão
como em outras racionalidades médicas, possui política. Não foi fruto do trabalho da RedePICS,
uma cosmologia própria de compreensão sobre um congresso que não estava previsto na agenda.
os processos de adoecimento e a visão do ser hu- Foi construído em seis meses, se deu por uma sé-
mano, criando critérios específicos de pesquisa rie de ações e conjunções políticas. O Ministro da
que podem ser inviáveis de praticar em outras Saúde colocou muito dinheiro no congresso, di-
racionalidades. A problemática, para Nascimento nheiro que as PICS nunca tiveram. A Política não
et al.19, estaria no momento em que certos pres- tinha a intenção de nomear [as novas práticas]”.
supostos positivistas não são atendidos por uma A fala da Interlocutora evidencia que o CON-
racionalidade, o que pode levar uma a uma des- GREPICS não foi um evento articulado pela Re-
legitimação enquanto irracionalidade ou char- dePICS – importante organização no campo para
latanismo. De acordo com Stengers18, esse é um a mobilização das suas bases sociais. Segundo in-
processo que diz sobre uma tipologia de fazer-ci- terlocutores da pesquisa, a partir de articulações
ência que cria moldes de produzir-evidências à que não se deram nem pela RedePICS, nem pela
sua própria racionalidade. CNPICS, é possível avaliar que o CONGREPICS
Portanto, a incorporação de novas terapêuti- pode ter sido utilizado como dispositivo de legi-
cas na PNPIC também revela a busca por evidên- timação e espetacularização de uma nova e maior
cias de práticas que evitam cair na deslegitimação PNPIC promovida pelos novos atores políticos
e descrédito, efeitos de um possível charlatanis- à frente do Ministério da Saúde. Este aconteci-
mo ao olhar da biomedicina. O ponto de inser- mento ultrapassa o preconizado pela PNPIC1 até
ção de novas práticas na PNPIC traz justamen- então: o incentivo para que os estados e municí-
te a discussão sobre as fronteiras do que pode e pios criassem suas próprias políticas a partir do
do que não pode estar presente, do que possui princípio da territorialização. Embora houvesse
evidências e do que não possui. Neste sentido, é o endosso para a emergência de novas culturas
possível pensar que o espaço das PICS no SUS de cuidado à saúde a partir do estímulo da polí-
também responde e (re)produz as correlações tica nacional, é possível identificar que a entrada
de forças da corrente científica de pensamento, de novos atores políticos no Ministério da Saúde
(co)criando as bordas entre o que poderia estar produziu uma ampliação e revisão pouco dialo-
circunscrito no SUS e o que não poderia. Resta gada da Política.
compreender os contextos político-institucionais Em um primeiro momento a PNPIC1 era
nos quais se situam as tomadas de posição dos pensada como um dispositivo capaz de abrir
agentes e organizações em volta da PNPIC. Este espaço, a nível federal, para a produção de uma
aprofundamento pode fornecer mais elementos cultura das PICS no SUS, estimulando gestores
para a reflexão sobre os meandros e disputas en- a formular suas próprias políticas estaduais e
tre legitimação científica e legitimação cultural. municipais adequadas às especificidades de suas
realidades territoriais, afirmando a diversidade
Espaços de lutas e disputas: cenários cultural do país em termos de cuidados da saúde.
político-institucionais na ampliação Como exposto, no curso de sua história a PNPIC
da PNPIC e as transformações encontrou agentes sociais e organizações que
na Coordenação Nacional das PICS afirmam projetos políticos distintos de acordo
com certos interesses, desejos e necessidades. O
As narrativas de interlocutores da pesquisa, munícipio de “Recife, por exemplo, tinha editado
expostas anteriormente, trazem à cena um con- a sua política com muito mais práticas do que na
texto de diferentes interesses e lutas em torno política nacional. E essa é uma diretriz da PNPIC
da PNPIC que acontecem mesmo antes da am- que aponta para a responsabilidade dos gestores,
pliação da PNPIC. O último ato de expansão de que eles podem reconhecer práticas de impor-
3784
Oliveira IM, Pasche DF

tância local. Às vezes a prática não tem uma rele- A RedePICS atua conectando usuários, mo-
vância nacional, mas tem para aquele território, vimentos sociais, estudantes, profissionais, pes-
então cabe ao território normatizar e monitorar” quisadores e instituições entorno das PICS. É
(Interlocutor 2). importante compreender como a RedePICS, as-
Além disso, a intenção de motivar os estados sim como a CNPICS, vinha realizando a gestão
e os municípios a reconhecerem práticas de rele- da correlação de forças e dos tensionamentos
vância local dialoga com o princípio da descen- com outros agentes sociais. Um exemplo dessa
tralização do SUS. Na perspectiva bourdieusiana, crise é descrito pela Interlocutora 5: “Eu acho
é possível entender que as organizações do cam- que hoje a gente vive uma crise bem importante
po, com suas regras do jogo, estariam conforman- na RedePICS, provocada pelo deputado [x], que
do um habitus específico, localizados em territó- tem as PICS numa compreensão dele e não segue
rios específicos. Entretanto, a criação de políticas nenhum autor ao que parece. Ele também trata
estaduais e municipais acabou acontecendo em de outras práticas que não tem nada a ver com
poucos estados e municípios brasileiros. A Inter- PICS” (Interlocutora 5).
locutora 5 demonstra porque, em sua opinião, O nome do deputado federal foi mantido em
esse processo acabou acontecendo diferentemen- sigilo, uma vez que desde maio de 2021 sua as-
te do que se imaginava, pois os as bases sociais em sessoria não havia respondido às solicitações por
torno das práticas: “querem o nome na portaria uma entrevista – situação que se manteve até a
do ministério. Acho que isso tem muitos efeitos e finalização desta pesquisa. O próprio silêncio do
te digo, tem uma busca dessas legitimações. Isso deputado pode ser analisado em relação às novas
podia acontecer a nível estadual, municipal, mas forças em torno do campo, que se transformam
no nível federal acho que não precisava”. em crise e reestruturação. A histerese em Bour-
Um campo, para Bourdieu6, é exatamente dieu6 é como ocorre uma defasagem nos momen-
um espaço de lutas que não é blindado às trans- tos de mudança no habitus de um campo, sendo
formações. Novas correlações de força no mi- ela “uma consequência necessária do habitus e do
crocosmo relacional do campo não raro geram campo como inter-relacionados e interpenetran-
perturbações no que já existia conformado entre tes, de modo que uma mudança num deles exige
a tessitura dos fios que engendram seus tecidos, uma mudança no outro”, conforme aponta Har-
uma espécie de estresse nas estruturas que rea- dy21(p.169). A histerese pode ser compreendida,
lizam a sustentação do campo – fenômeno que assim, como uma defasagem entre o habitus em
Bourdieu6 chama de histerese. A condensação alteração, que na política pública pode ocorrer
destas relações de forças que atravessam o campo como uma dificuldade em fazer a gestão de uma
podem ser melhor analisadas a partir da mudan- nova dinâmica de forças trazidas por novos atores
ça no comando da Coordenação Nacional das políticos.
PICS, momento que evidencia a acumulação das A Interlocutora 1 também menciona novos
lutas e disputas travadas interna e externamente interesses sendo disputados por agentes sociais
ao MS, que aconteceu em fevereiro de 2021. no campo pela atuação do deputado federal.: “A
No dia 1º de fevereiro de 2021, os coorde- gente vê as barbaridades do deputado [x]. A gran-
nadores nacional e adjunto das PNPICS foram de problemática hoje está na pessoa dele. Se apro-
desligados de seus cargos. Ambos ocuparam a priaram da política de práticas indevidamente, na
posição por 10 anos, dialogando com agentes, minha opinião” (Interlocutora 1).
entidades e organizações, conforme comunicado A apropriação da PNPIC, mencionada pela
via carta aberta da RedePICS20. Em um comuni- Interlocutora 1, fala sobre agentes sociais em
cado oficial, a RedePICS diz que os ex-coordena- disputa de diferentes sentidos no campo e que
dores vinham trabalhando com “ética, compe- forçaram a passagem para a inserção de práticas
tência técnica e valores coletivos, conquistando que até então estariam fora dos pressupostos da
irrefutáveis avanços às PICS no Brasil e também PNPIC. Conforme Gonçalves22, a cena se reflete
no âmbito internacional. Uma atuação ética re- na própria gestão pública federal desde os acon-
conhecida pela RedePICS Brasil”20(p.1). Em 3 de tecimentos que propiciaram o impeachment da
fevereiro de 2021, a RedePICS Brasil publicou Presidenta Dilma e levaram à eleição do atual
uma imagem em suas mídias sociais que diz: “A governo civil-militar que aparelha os Ministé-
RedePICS está de luto! A coordenação da PNPIC rios e, especificamente, o Ministério da Saúde. O
foi vilmente usurpada!”, causando grande como- contexto de anormalidade institucional no Brasil
ção e a produção de uma série de vídeo-manifes- pode ser visto como uma condição de possibili-
tos de atores das PICS. dade para atuação de novos atores sociais na di-
3785

Ciência & Saúde Coletiva, 27(9):3777-3787, 2022


mensão pública das políticas, como é o caso do Considerações finais
deputado mencionado pelos sujeitos de pesquisa.
Podemos inferir que a figura do deputado, a partir O campo das PICS, em sua dimensão públi-
das entrevistas, parece ser a de uma posição tática ca reunida no SUS em torno da PNPIC, sofreu
ao redor do Ministério da Saúde para a entrada transformações importantes em seus quinze anos
de terapêuticas na PNPIC utilizadas no setor pri- de existência. Entre consensos e contrassensos,
vado da saúde: “Esse deputado que se aproximou afastamentos e aproximações entre diferentes
aproveitou do apoio da CNPICS e na hora que os compreensões sobre a ampliação da PNPIC e a
dois entraram em uma desavença em questão ao recente troca de comando na Coordenação Na-
rumo da política, o deputado dá força para co- cional das PICS, é possível perceber que desde
locar [uma nova] coordenação” (Interlocutor 8). sua criação, a PNPIC é um espaço condensador
Este ponto de vista demonstra que a CNPI- de correlações de forças no campo da saúde.
CS já vinha sofrendo pressões políticas que, an- Parece improvável poder afirmar um mo-
tes da troca de comando, motivaram a própria mento exato em que a ampliação da política
ampliação rápida e pouco dialogada da PNPIC começou a ser discutida, mas é visível que sua
com as bases sociais. As águas turbulentas des- expansão produziu tensionamentos entre atores
te cenário desaguam na atual crise do campo. sociais do campo. Além disso, também estaria em
Para Bourdieu6, a crise é um momento no qual jogo distintas concepções de PICS na qual deri-
o habitus entra em conflito com novas forças e vam de duas matrizes de pensamento: (a) uma
necessita formular respostas para responder às vinculada à legitimação científica das evidências,
alterações no campo – que podem se dar de for- que conferiria para o campo um capital científi-
ma abrupta e, em muitas vezes, percebidas como co; e (b) outra vinculada à legitimação cultural
catastróficas. Nesse interlúdio de mudança, é que ocorre na dinâmica de interação e coprodu-
possível perceber que um habitus se transforma ção de saúde entre serviços-territórios e equipes
com desdobramentos imprevisíveis, pois ainda -usuários, que conferiria para o campo um ca-
não é possível saber quais serão os interesses em pital cultural. Importante destacar a necessidade
disputa no campo. Para Hardy21(p.170) quando a de contemplação integral do ethos-cultural de
mudança “é indeterminada desse modo, a histe- cada território, criando dispositivos capazes de
rese torna-se um termo técnico inestimável para reconhecer e valorizar, por exemplo, epistemolo-
destacar a perturbação entre o habitus e o campo gias e práticas de cuidado próprias das popula-
e as consequências disso ao longo do tempo”. ções indígenas e afro-brasileiras que estão foras
O Interlocutor 2 complementa sobre inte- da PNPIC, sem que isso signifique expô-las às
resses ligados ao reconhecimento de algumas possíveis violências originadas por um controle
práticas dentro da PNPIC: “Existe de tudo nesse e regulação do Estado.
universo, desde práticas reconhecidas e práticas As transformações na Coordenação Nacional
que reconhecidamente não funcionam. E a polí- da Política de Práticas Integrativas e Complemen-
tica traz para dentro do serviço público uma nor- tares em Saúde pode ser compreendida enquanto
matização e um reconhecimento. Tem interesses um efeito de sua própria ampliação e abertura da
diversos e a disputa parece ser do campo do re- PNPIC a partir de 2018 que já marcava o começo
conhecimento” (Interlocutor 2). Uma pista, a do atual momento de histerese pelo qual o campo
partir da fala do interlocutor, é a possibilidade da atravessa e precisará se reestruturar. A partir das
existência de agentes e organizações interessados compreensões dos sujeitos de pesquisa, o mo-
nos possíveis efeitos a médio e longo prazo do mento parece ser de reorganização de um campo
reconhecimento das práticas na Política, como que experienciou uma crise coincidente com o
um crescimento da demanda por estas terapêu- estado de anormalidade político-institucional no
ticas em serviços de saúde privados em razão do Brasil e, especificamente, no Ministério da Saúde.
reconhecimento conferido na dimensão pública. Uma pista para essa reestruturação pode es-
Portanto, neste sentido, coaduna-se com a In- tar em um retorno à declaração de Alma-Ata23,
terlocutora 4: “ainda falta muito para termos elas que coloca a necessidade de integração entre
organicamente institucionalizadas no SUS. Ain- cultura e ciência, pois os cuidados primários de
da não tem reconhecimento de fato, é algo meio saúde precisam tanto da fundamentação cientí-
alternativo”. Tal afirmação pode demonstrar que fica quanto da aceitação cultural da sociedade na
a listagem e institucionalização das práticas na produção de uma determinada cultura sanitária
PICPIC não significa, a priori, reconhecimento – e, neste sentido, a cultura sanitária hegemônica
ou legitimação – nem científica, nem cultural. é fortemente marcada pelo modelo médico-assis-
3786
Oliveira IM, Pasche DF

tencial hospitalocêntrico em sua tríade de signos Por fim, sublinha-se a necessidade de mais
entre hospital, medicação e medicina. No âmbi- pesquisas que investiguem a dimensão privada
to da PNPIC, a intersecção entre uma matriz de do campo das PICS no Brasil, refletindo as pos-
legitimação científica e a de legitimação cultural síveis correlações de forças que o setor privado
pode estar na luta por uma virada paradigmática da saúde exerce sobre dimensão pública deste
na cultura de cuidado e atenção à saúde no SUS, campo. Investigações críticas neste âmbito ainda
lugar no qual as PICS no SUS, nesta análise, po- são incipientes, porém necessárias para explicar
dem possuir a potência de ser uma incubadora mais sobre fenômenos que se tornaram visíveis
deste projeto. nas transformações da PNPIC.

Colaboradores Financiamento

IM Oliveira realizou a pesquisa de campo, entre- Artigo fruto da pesquisa de dissertação de IM


vistou as/os interlocutoras/es e transcreveu as en- Oliveira no Programa de Pós-Graduação em Psi-
trevistas. DF Pasche orientou a pesquisa durante cologia Social e Institucional (UFRGS). Mestrado
o curso de mestrado, acompanhando o processo com financiamento da Coordenação de Aperfei-
de análise e revisando o texto final deste artigo. çoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
3787

Ciência & Saúde Coletiva, 27(9):3777-3787, 2022


Referências

1. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional 13. Pasche D, Passos E. Inclusão como método de apoio
das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde. para a produção de mudanças na saúde - aposta da
1ª ed. Brasília: MS; 2006. Política de Humanização da Saúde. Saude Debate
2. Luz MT. Comparação de representações de corpo, 2010; 34(86):423-432.
saúde, doença e tratamento em pacientes e terapeutas 14. Lebaron F. Capital. In: Catani AM, Nogueira MA, Hey
de homeopatia, acupuntura e biomedicina na rede de AP, Medeiros CCC. Vocabulário Bourdieu. Belo Hori-
saúde do município do Rio de Janeiro. In: Luz MT, zonte: Autêntica Editora; 2017. p. 109-112.
Barros NF, organizadores. Racionalidades médicas e 15. Deleuze G, Guattari F. Mil platôs - capitalismo e esqui-
práticas integrativas em saúde: Estudos teóricos e empí- zofrenia, volume 1. Rio de Janeiro: Ed. 34; 1995.
ricos. Rio de Janeiro: UERJ/IMS/LAPPIS; 2012. 16. Santos BS. A crítica da razão indolente: contra o desper-
3. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Minis- dício da experiência. São Paulo: Cortez; 2017.
tro. Portaria nº 849, de 27 de março de 2017. Inclui 17. Camargo Jr KR. A medicina ocidental contemporâ-
a Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, nea. In: Luz MT, Barros NF organizadores. Raciona-
Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, lidades médicas e práticas integrativas em saúde: Es-
Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia tudos teóricos e empíricos. Rio de Janeiro: UERJ/IMS/
Comunitária Integrativa e Yoga à Política Nacional de LAPPIS; 2012.
Práticas Integrativas e Complementares. Diário Ofi- 18. Stengers I. A invenção das ciências modernas. São Pau-
cial da União; 2017. lo: Ed. 34; 2002.
4. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Minis- 19. Nascimento M, Barros N, Nogueira M, Luz M. A cate-
tro. Portaria nº 702, de 21 de março de 2018. Altera a goria racionalidade médica e uma nova epistemologia
Portaria de Consolidação nº 2/GM/MS, de 28 de se- em saúde. Cien Saude Colet 2013; 18(12):3595-3604.
tembro de 2017, para incluir novas práticas na Política 20. REDEPICS. Carta aberta em defesa das PICS no SUS
Nacional de Práticas Integrativas e Complementares [Internet]. Conselho Federal de Enfermagem; 2021
- PNPIC. Diário Oficial da União; 2018. [acessado 2021 out 1]. Disponível em: http://www.co-
5. Minayo MC. Análise qualitativa: teoria, passos e fi- fen.gov.br/wp-content/uploads/2021/02/Carta-Aber-
dedignidade. Rio de Janeiro: Cien Saude Colet 2013; ta-RedePICS-Brasil-.pdf.
17(3):621-626. 21. Hardy C. Histerese. In: Grenfell M, organizador. Pierre
6. Bourdieu P. Sociologie générale II. Paris: Seuil; 2016. Bourdieu: Conceitos fundamentais. Petrópolis: Vozes;
7. Minayo MC. Amostragem e saturação em pesquisa 2018.
qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesq Quali 22. Gonçalves LAP. Mais um ministério de farda: corona-
2017; 5(7):1-12. vírus e militarismo, a dupla carga epidêmica sobre a
8. Biernarcki P, Waldorf D. Snowball sampling: pro- Saúde. Physis 2020; 30:(4):1-10.
blems and techniques of chain referral sampling. Soc 23. Declaração de Alma-Ata. Conferência Internacional
Methods Res 1981; 10(2):141-163. sobre cuidados primários de saúde. USSR; 1978 set
9. Grenfell M, organizador. Pierre Bourdieu: Conceitos 6-12.
fundamentais. Petrópolis: Vozes; 2018.
10. Bourdieu P. A distinção: crítica social do julgamento.
São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk; 2007.
11. Amado D, Rocha PRS, Ugarte AO, Ferraz CC, Lima
MC, Carvalho FFB. Política Nacional de Práticas Inte- Artigo apresentado em 14/12/2021
grativas e Complementares no Sistema Único de Saú- Aprovado em 26/05/2022
de 10 anos: avanços e perspectivas. J Manag Primary Versão final apresentada em 28/05/2022
Health Care 2017; 8(2):290-308.
12. Bourdieu P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Ber- Editores-chefes: Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura
trand Brasil; 1989. da Silva

CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons

Você também pode gostar