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04462022 3777
Abstract The National Policy on Integrative and Resumo A Política Nacional de Práticas Integra-
Complementary Practices (NPICP) was published tivas e Complementares (PNPIC) foi publicada há
15 years ago, and between 2017 and 2018 it saw 15 anos e entre 2017 e 2018 passou por dois atos de
two phases of growth and increased from 5 to 29 ampliação, partindo de cinco para 29 modalida-
modalities of Integrative and Complementary des de Práticas Integrativas e Complementares em
Practices (ICP), namely an increase of 24 new Saúde (PICS), um aumento de 24 novas práticas
practices within a year. The scope of this article no período de um ano. O objetivo deste artigo é
is to understand the conditions for such transfor- compreender as condições para tais transforma-
mations in the ICPs in the Unified Health System ções ao redor das PICS no Sistema Único de Saúde
(SUS), reflecting upon how social actors interpret (SUS), refletindo como os atores sociais compre-
these changes. Thus, semi-structured interviews endem essas mudanças. Foram realizadas entre-
were conducted with eight interlocutors, analy- vistas semiestruturadas com oito interlocutores/
zed in the light of Pierre Bourdieu’s field theory. as, analisadas à luz da teoria do campo de Pierre
The results show that the expansion of the NPI- Bourdieu. Os resultados apontam que a amplia-
CP, motivated by political-institutional factors, is ção da PNPIC, motivada por atravessamentos
comprehended in two matrices of thought that are político-institucionais, é compreendida em duas
related to the cultural and scientific legitimation matrizes de pensamento que se relacionam com a
of the ICPs in the SUS. The conclusion drawn is legitimação cultural e a legitimação científica das
that the rapid expansion of the NPICP generated PICS nos SUS. Conclui-se que a rápida expansão
a crisis in the field, showing the need for a restruc- da PNPIC gerou uma crise no campo, mostrando
turing dialogue with its social bases. a necessidade de uma reestruturação dialogada
Key words Complementary Therapies, Integrati- com suas bases sociais.
1
Instituto de Medicina ve Medicine, Health Policy, Public Health, Unified Palavras-chave Terapias Complementares, Me-
Social, Universidade do Health System dicina Integrativa, Política de Saúde, Saúde Pú-
Estado do Rio de Janeiro.
São Francisco Xavier 524, blica, Sistema Único de Saúde
Maracanã. 20550-900
Rio de Janeiro RJ Brasil.
iagomarafinadeoliveira@
gmail.com
2
Instituto de Psicologia,
Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre
RS Brasil.
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Oliveira IM, Pasche DF
tes, reunidos em coletivos representantes da or- inserções na PNPIC que essa análise se torna pos-
ganização política de determinadas práticas, vão sível, já que desde a publicação da política exis-
abrindo espaço em relação ao direito que elas tiam solicitações de inclusão de novas práticas,
possuem de existir no SUS, um direito de exis- o que, de acordo com as informações do Inter-
tir ancorado nos hábitos presentes culturalmente locutor 2, levava a CNPICS a responder a essas
nos territórios. Torna-se importante sublinhar forças externas em duas dimensões: a primeira
que as Medicinas Tradicionais Indígenas e as prá- vinculada à máquina jurídico-burocrática do es-
ticas de cura afro-brasileiras, de acordo com a In- tado – na forma de notas técnicas que explicavam
terlocutora 1, não foram incorporadas a PNPIC os motivos pelos quais determinadas práticas não
justamente para que elas fossem protegidas da poderiam entrar na política naquele momento; e
regulação e controle do Estado, a fim de evitar a segunda vinculada à construção de um diálogo
uma nova possibilidade de violência epistêmica com bases sociais – na forma da agenda de even-
em populações historicamente subalternizadas. tos da CNPICS em diversas regiões do país.
É justamente na indefinição sobre o momen- Em meio a esse jogo de forças, os resultados
to em que se iniciam as discussões sobre novas obtidos pelo PMAQ parecem ser uma das justi-
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tas simbólicas”. O capital, assim, é compreendido dências que justificassem sua presença no SUS.
por Bourdieu em relação à disposição de agentes Aqui, nota-se mais precisamente que a amplia-
e organizações no campo e que confere um deter- ção da PNPIC vai sendo questionada a partir de
minado poder, influência e autonomia. motivações científicas. Neste sentido, a equipe do
A legitimação cultural enquanto matriz de Ministério das Saúde tentou consolidar uma for-
pensamento presente no campo torna possível ma de ação lastreada por evidências científicas:
entender a PNPIC como um transbordamen- “a Coordenação Nacional conseguiu o mapa de
to de uma produção desejante que já acontecia evidências com a OPAS que nos empodera mui-
nos serviços públicos de saúde, no qual o real, de to” (Interlocutora 1).
acordo com Deleuze e Guattari15, é composto por O mapa das evidências é um analisador da
uma incessante produção de desejo que expande, luta por legitimação científica identificada no
se (re)faz e transborda na realidade. Neste caso, é campo como matriz de pensamento. Foram rea-
entre o SUS real – na forma de múltiplas culturas lizados 14 mapas de evidências sobre 14 diferen-
de cuidado nos territórios; e o SUS jurídico-for- tes PICS, categorizados por natureza metodoló-
mal – na forma de seu regramento pelo Estado, gica, país, população e efeitos, apontando o nível
que acontece a incessante produção de forças de confiança do estudo entre alto, moderado e
instituintes. A própria PNPIC3 menciona que a baixo, sendo as pesquisas predominantemente
institucionalização de terapêuticas não-conven- empíricas quantitativas e/ou revisões de litera-
cionais no SUS visava a legitimar e incorporar tura de dados quantitativos. Os mapas se consti-
práticas que já eram exercidas mesmo antes de tuem, portanto, como uma forma de argumentar
sua promulgação, além de ampliar o acesso ao sobre as evidências científicas de algumas PICS
que anteriormente acontecia de forma mais fre- que ainda sofrem resistências frente à racionali-
quente no setor privado da saúde. É possível infe- dade biomédica convencional.
rir que tal produção desejante afirma exatamente Entretanto, adotar o pressuposto das evidên-
a acumulação de uma legitimidade cultural até cias em PICS também é compreendido como
aqui. uma situação conflituosa na perspectiva de ou-
Contudo, a ampliação da PNPIC também é tros sujeitos entrevistados, uma vez que se corre
vista com ressalvas. O processo de ampliação da o risco de um retorno a um tema-chave clássico
PNPIC é percebido, pela Interlocutora 6, como da ciência biomédica que molda saberes e co-
desfavorável, pois “munem as críticas que algu- nhecimentos entre o que é legítimo (verdadeiro)
mas PICS sofrem, especialmente as vistas como e o que é ilegítimo (falso). Estes pontos de vis-
mais polêmicas”. A Interlocutora sublinha que ta não devem ser lidos, contudo, como os atu-
essa ampliação foi realizada com pouco diálogo ais discursos anticiência, mas como um debate
em suas bases sociais, atores e organizações, o epistemológico que propõe uma reflexão crítica
que gerou reações internas e externas ao MS, de- às epistemes moderno-coloniais que, de acordo
monstrando uma nova correlação de forças por com Santos16, promovem o epistemicídio, apaga-
setores que estavam em disputa por legitimação e mento e desperdício de diferentes formas de ex-
mercado de trabalho dentro e fora do SUS, o que periências, práticas, conhecimentos e existências
será discutido a frente. Neste sentido, a Interlo- que os sujeitos constroem ao redor do mundo.
cutora 4 pondera a questão das críticas entorno De acordo com Camargo Jr.17, o início do po-
do acúmulo de capital científico: “o Ministério sitivismo científico com Comte e posteriormente
da Saúde chancelou as 29, mas temos poucos es- com Fichte e Mach inauguram discussões, entre
tudos e poucos profissionais qualificados. Como os séculos XVIII e XIX, sobre a metodologia da
que estão essas 29? Quais as evidências? Acho que ciência e formas de (re)produção de uma ver-
muita coisa não deveria estar ali” (Interlocutora dade universal. O século XX marca o apogeu da
4). Na mesma direção, outra participante tam- ciência como modo de produção da verdade com
bém demonstra contrariedade com as mudanças Karl Popper, que pretendia encontrar um crivo
ocorridas na PNPIC: “foi ‘esculhambada’ com a absoluto entre o que poderia ou não poderia ser
entrada de qualquer coisa. Desculpe, mas isso é científico, quando a ciência “assume cada vez
verdade, porque quando você joga o conceito na mais o papel de tribunal da razão, uma espécie de
terra, vira terra de ninguém” (Interlocutora 1). ciências das ciências”17(p.51). Tal modus operan-
Os relatos acima permitem compreender as di da ciência produziu efeitos nos mais diversos
ressalvas em relação à ampliação da PNPIC, pas- campos da vida, construindo regimes de verdade
sando pelas preocupações com a pesquisa e a for- que operam legitimando ou deslegitimando as
mação dos profissionais, além da busca por evi- práticas.
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tância local. Às vezes a prática não tem uma rele- A RedePICS atua conectando usuários, mo-
vância nacional, mas tem para aquele território, vimentos sociais, estudantes, profissionais, pes-
então cabe ao território normatizar e monitorar” quisadores e instituições entorno das PICS. É
(Interlocutor 2). importante compreender como a RedePICS, as-
Além disso, a intenção de motivar os estados sim como a CNPICS, vinha realizando a gestão
e os municípios a reconhecerem práticas de rele- da correlação de forças e dos tensionamentos
vância local dialoga com o princípio da descen- com outros agentes sociais. Um exemplo dessa
tralização do SUS. Na perspectiva bourdieusiana, crise é descrito pela Interlocutora 5: “Eu acho
é possível entender que as organizações do cam- que hoje a gente vive uma crise bem importante
po, com suas regras do jogo, estariam conforman- na RedePICS, provocada pelo deputado [x], que
do um habitus específico, localizados em territó- tem as PICS numa compreensão dele e não segue
rios específicos. Entretanto, a criação de políticas nenhum autor ao que parece. Ele também trata
estaduais e municipais acabou acontecendo em de outras práticas que não tem nada a ver com
poucos estados e municípios brasileiros. A Inter- PICS” (Interlocutora 5).
locutora 5 demonstra porque, em sua opinião, O nome do deputado federal foi mantido em
esse processo acabou acontecendo diferentemen- sigilo, uma vez que desde maio de 2021 sua as-
te do que se imaginava, pois os as bases sociais em sessoria não havia respondido às solicitações por
torno das práticas: “querem o nome na portaria uma entrevista – situação que se manteve até a
do ministério. Acho que isso tem muitos efeitos e finalização desta pesquisa. O próprio silêncio do
te digo, tem uma busca dessas legitimações. Isso deputado pode ser analisado em relação às novas
podia acontecer a nível estadual, municipal, mas forças em torno do campo, que se transformam
no nível federal acho que não precisava”. em crise e reestruturação. A histerese em Bour-
Um campo, para Bourdieu6, é exatamente dieu6 é como ocorre uma defasagem nos momen-
um espaço de lutas que não é blindado às trans- tos de mudança no habitus de um campo, sendo
formações. Novas correlações de força no mi- ela “uma consequência necessária do habitus e do
crocosmo relacional do campo não raro geram campo como inter-relacionados e interpenetran-
perturbações no que já existia conformado entre tes, de modo que uma mudança num deles exige
a tessitura dos fios que engendram seus tecidos, uma mudança no outro”, conforme aponta Har-
uma espécie de estresse nas estruturas que rea- dy21(p.169). A histerese pode ser compreendida,
lizam a sustentação do campo – fenômeno que assim, como uma defasagem entre o habitus em
Bourdieu6 chama de histerese. A condensação alteração, que na política pública pode ocorrer
destas relações de forças que atravessam o campo como uma dificuldade em fazer a gestão de uma
podem ser melhor analisadas a partir da mudan- nova dinâmica de forças trazidas por novos atores
ça no comando da Coordenação Nacional das políticos.
PICS, momento que evidencia a acumulação das A Interlocutora 1 também menciona novos
lutas e disputas travadas interna e externamente interesses sendo disputados por agentes sociais
ao MS, que aconteceu em fevereiro de 2021. no campo pela atuação do deputado federal.: “A
No dia 1º de fevereiro de 2021, os coorde- gente vê as barbaridades do deputado [x]. A gran-
nadores nacional e adjunto das PNPICS foram de problemática hoje está na pessoa dele. Se apro-
desligados de seus cargos. Ambos ocuparam a priaram da política de práticas indevidamente, na
posição por 10 anos, dialogando com agentes, minha opinião” (Interlocutora 1).
entidades e organizações, conforme comunicado A apropriação da PNPIC, mencionada pela
via carta aberta da RedePICS20. Em um comuni- Interlocutora 1, fala sobre agentes sociais em
cado oficial, a RedePICS diz que os ex-coordena- disputa de diferentes sentidos no campo e que
dores vinham trabalhando com “ética, compe- forçaram a passagem para a inserção de práticas
tência técnica e valores coletivos, conquistando que até então estariam fora dos pressupostos da
irrefutáveis avanços às PICS no Brasil e também PNPIC. Conforme Gonçalves22, a cena se reflete
no âmbito internacional. Uma atuação ética re- na própria gestão pública federal desde os acon-
conhecida pela RedePICS Brasil”20(p.1). Em 3 de tecimentos que propiciaram o impeachment da
fevereiro de 2021, a RedePICS Brasil publicou Presidenta Dilma e levaram à eleição do atual
uma imagem em suas mídias sociais que diz: “A governo civil-militar que aparelha os Ministé-
RedePICS está de luto! A coordenação da PNPIC rios e, especificamente, o Ministério da Saúde. O
foi vilmente usurpada!”, causando grande como- contexto de anormalidade institucional no Brasil
ção e a produção de uma série de vídeo-manifes- pode ser visto como uma condição de possibili-
tos de atores das PICS. dade para atuação de novos atores sociais na di-
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tencial hospitalocêntrico em sua tríade de signos Por fim, sublinha-se a necessidade de mais
entre hospital, medicação e medicina. No âmbi- pesquisas que investiguem a dimensão privada
to da PNPIC, a intersecção entre uma matriz de do campo das PICS no Brasil, refletindo as pos-
legitimação científica e a de legitimação cultural síveis correlações de forças que o setor privado
pode estar na luta por uma virada paradigmática da saúde exerce sobre dimensão pública deste
na cultura de cuidado e atenção à saúde no SUS, campo. Investigações críticas neste âmbito ainda
lugar no qual as PICS no SUS, nesta análise, po- são incipientes, porém necessárias para explicar
dem possuir a potência de ser uma incubadora mais sobre fenômenos que se tornaram visíveis
deste projeto. nas transformações da PNPIC.
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