Você está na página 1de 10

DOI: 10.1590/1413-81232022277.

22322021 2543

O que fez com que o Programa Mais Médicos fosse possível?

ARTIGO ARTICLE
What made the Mais Médicos (More Doctors) Program possible?

Hêider Aurélio Pinto (https://orcid.org/0000-0002-8346-1480) 1


Soraya Maria Vargas Côrtes (https://orcid.org/0000-0003-2502-2364) 2

Abstract The article analyzes which were the Resumo O artigo analisa quais atores participa-
actors who participated in the insertion in the ram e como atuaram na inserção na agenda gover-
governmental agenda of the issue of insufficien- namental da questão das insuficiências na oferta e
cies in the supply and training of medical doctors formação de médicos para o SUS e da adoção do
for the SUS and the adoption of the Mais Médi- Programa Mais Médicos (PMM) como solução.
cos Program (PMM) as a solution. Documental A análise documental, bibliográfica e a realização
and bibliographic analysis and semi-structured das entrevistas semiestruturadas com informan-
interviews were carried out in the methodological tes-chave foram trabalhadas na perspectiva meto-
perspective of process tracing. Theoretical resourc- dológica do process tracing. Foram usados recur-
es from studies on political processes and from the sos teóricos dos estudos sobre o processo político e
theories of gradual institutional change and mul- das teorias da mudança institucional gradual e dos
tiple streams were used. Outstanding results were múltiplos fluxos. Destacam-se como resultados a
the identification of factors related to the entry of identificação de fatores relacionados à entrada da
the issue on the agenda, such as the aggravation questão na agenda, como o agravamento do tema,
of the issue, increase in its public perception and o aumento de sua percepção pública e a mudança
change of government. It was found that the ac- de governo. Constatou-se que a ação da presidenta
tion of the President and policy entrepreneurs was Dilma Rousseff e de empreendedores da política foi
decisive for the process of formulating the PMM decisiva para o processo de formulação do PMM
based on historical legacies of previous policies. com base em legados históricos de políticas ante-
We challenge studies that regard the PMM as a riores. Contesta-se a explicação de uma vertente
hastily formulated solution to an old problem to da literatura que considera que o PMM foi uma
1
Departamento de
Medicina Preventiva e respond the street demonstrations known as “June solução construída às pressas, para enfrentar um
Social, Universidade Federal Journeys”. The inauguration of municipal govern- problema antigo, em resposta às “Jornadas de Ju-
da Bahia. Praça XV de ments, in 2013, and the electoral calendar were nho”. Observou-se que a posse dos novos prefeitos
novembro s/n, Largo do
Terreiro de Jesus. 40026- also important factors and taken into account em 2013 e o calendário eleitoral também foram fa-
010 Salvador BA Brasil. in the strategic action of the actors who led the tores importantes para a ação estratégica dos ato-
heiderpinto.saude@ formulation of the PMM, with strong opposition res que lideraram a formulação do programa, com
gmail.com
2
Programa de Pós- from medical entities. forte oposição das entidades médicas.
Graduação em Sociologia, Key words Human resources in health, Medical Palavras-chave Recursos humanos em saúde,
Universidade Federal do Rio education, Public policy Educação médica, Política pública
Grande do Sul. Porto Alegre
RS Brasil.
2544
Pinto HA, Côrtes SMV

Introdução o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o MS.


As profissões são regulamentadas por lei federal
Este artigo tem como objetivo analisar quais fo- e os conselhos profissionais (como o CFM na
ram os atores e como eles atuaram no processo medicina) são criados por lei, dirigidos por pes-
que conduziu à inserção na agenda governamen- soas eleitas pelos membros da própria profissão
tal da questão (policy issue) das insuficiências na e responsáveis pela regulamentação infralegal e
oferta e na formação de médicos para o Sistema pela fiscalização do exercício profissional. Cabe
Único de Saúde (SUS) e da adoção do Programa ao MEC as decisões relacionadas à formação em
Mais Médicos (PMM) como solução. O texto nível de graduação, residência médica e outras
apresenta uma compreensão alternativa às expli- pós-graduações, tais como definição de diretrizes
cações encontradas na literatura que creditam a curriculares, regulação da quantidade e localiza-
entrada do PMM na agenda governamental ou ção das vagas. Ao MS cabe opinar a respeito de
ao contexto político de 20131-3, especialmente às mudanças na legislação que trata das profissões
grandes manifestações de rua denominadas Jor- de saúde, participar de fóruns governamentais
nadas de Junho, ou ao resultado da ação de uma que decidem sobre a formação médica e propor
nova gestão do Ministério da Saúde (MS) que medidas com incentivos que induzam institui-
já priorizava a resolução da questão das insufi- ções de ensino a orientarem sua formação em
ciências na oferta e formação médicas e viu no função das necessidades do SUS e estimulem
contexto de 2013 uma oportunidade para enfren- médicos a atuarem em áreas subatendidas. Com-
tá-la4-6. Além das mudanças na direção do gover- parado ao observado em outros países com siste-
no federal e da situação conjuntural de 2013, um mas públicos de saúde abrangentes, é pequena a
conjunto de outros fatores foram decisivos para a influência do MS nas políticas em análise4,5,7-9,11-13.
entrada na agenda governamental e a formulação Os dirigentes do MS do período 2003-2015,
do PMM, mesmo com a contundente oposição que eram membros da Comunidade Política
das entidades médicas. Houve o agravamento da Movimento Sanitário (CP-M Sanitário)14, enten-
insuficiência de médicos e as suas consequências, diam que a questão limitava a possibilidade de
que intensificaram a presença do tema na mídia ampliar o acesso aos serviços de saúde e melho-
e a pressão de prefeitos e de parlamentares pela rar sua qualidade, além de considerarem que ca-
resolução do problema. Pesquisas mostraram essa bia ao SUS “ordenar as políticas de recursos hu-
questão como uma das principais demandas da manos em saúde”7. Comunidades políticas (CP),
população brasileira. Além disso, as políticas fe- conceito utilizado na pesquisa na análise dos ato-
derais anteriormente implementadas obtiveram res, são grupos mais ou menos coesos de atores
resultados insuficientes7. A conjunção desses fa- individuais e coletivos com diferentes posições
tores, bem como a superação de resistências no institucionais e relações entre si, que compar-
Ministério da Educação (MEC) em ceder ao SUS tilham objetivos e ideias, se especializam sobre
poder sobre a formação de médicos, foram po- uma questão, desenhos e resultados de políticas
tencializados pela ação estratégica de empreende- setoriais e atuam de maneira coordenada para
dores da proposta de maior participação do SUS influenciar os processos decisórios e tornar seus
na regulação, formação e provimento médicos. posicionamentos predominantes no governo15.
As insuficiências na oferta e formação mé- Outros atores coletivos com atuação setorial são
dicas em relação às necessidades dos sistemas as “redes temáticas” – que se constituem em gru-
de saúde e as políticas formuladas para enfren- pos em que os membros participam, interagem
tá-las são temas bastante estudados e debatidos e a eles têm acesso flutuante –, cujos integrantes
no Brasil e no mundo, tendo sido objeto de ex- dispõem de recursos desiguais e se reúnem para
tensa revisão promovida pela Organização Mun- discutir, formular e propor soluções relacionadas
dial da Saúde (OMS) e de diversas pesquisas da a um tema sobre o qual há ausência de consenso
Rede Observatório de Recursos Humanos no e presença de conflitos16.
período que antecedeu a proposição do PMM4- Durante o governo Lula, dirigentes do MS
12
. Está presente na agenda governamental na- propuseram mudanças nos arranjos institu-
cional desde o fim dos anos 1960 e vinha sendo cionais vigentes para ampliar a participação do
enfrentada por políticas de abrangência limitada ministério nas decisões de políticas nessa área.
e por vezes temporárias, sem resultados satisfa- Também apresentaram propostas como o serviço
tórios4,5,7,11,12. No Brasil, as decisões acerca dessas civil obrigatório e o reconhecimento de diplomas
políticas ocorrem num arranjo institucional do médicos estrangeiros. No entanto, não tiveram
qual participam o Congresso Nacional, o MEC, sucesso nesse período devido a dois fatores prin-
2545

Ciência & Saúde Coletiva, 27(7):2543-2552, 2022


cipais: a atuação de organizações da profissão tivas, que permitiram compreender as mudanças
médica e a oposição do MEC7. no processo investigado em relação ao período
Em 2013 foi lançado o PMM, com três eixos: anterior, sendo elas: 1) atores, e seus interesses e
“provimento”, “formação” e “infraestrutura”. O suas ideias, que agiam nos subsistemas de saúde
“provimento” deu ao MS o poder de autorizar o e educação superior, posicionando-se, proble-
exercício profissional de médicos formados fora matizando e disputando a política vigente; 2) a
do Brasil e chegou a contar com 18.240 médicos, evolução da questão das insuficiências na oferta e
brasileiros e estrangeiros, atendendo em 4 mil na formação médicas nas últimas décadas e seus
municípios. O “formação” criou uma regulação efeitos na atenção de atores que se tornaram re-
da abertura de cursos de medicina privados, que levantes na política em análise; 3) mudanças no
passou a ter como critério a necessidade regio- arcabouço institucional dos subsistemas e lega-
nal de médicos e de vagas de graduação. Também dos históricos, ideacionais e institucionais que
estabeleceu que fossem modificadas as diretrizes influenciaram a produção do PMM; 4) contexto
curriculares para a graduação em medicina, am- político e de padrões institucionalizados de rela-
pliando a integração com o SUS e fortalecendo ção entre decisores governamentais e atores so-
a medicina de família e comunidade (MFC), e cietais. No processo analisado, essas dimensões se
um novo itinerário de formação para a residên- encadearam em momentos e espaços de decisão
cia médica, que passou a exigir especialização em formando a trajetória da produção do PMM, des-
MFC antes de fazer outra especialidade. Por fim, sa forma, focou-se na ação dos atores em circuns-
o eixo de “infraestrutura” destinou recursos para tâncias repletas de oportunidades e constrangi-
construção, ampliação e reforma de unidades de mentos institucionais e contextuais (Quadro 1).
saúde7. A análise da inserção do PMM na agenda Para análise documental, utilizou-se o pe-
governamental e de sua adoção como solução é ríodo de 2003 a 2013, que vai do primeiro ano
desenvolvida neste artigo em três outras seções: de governo da coalisão governante que lançou o
“Métodos”, onde é apresentado o referencial te- PMM até o ano de seu lançamento. Foram exa-
órico-metodológico utilizado, “Resultados”, em minadas normas legais e administrativas (leis,
que são discutidos os produtos encontrados, e decretos, portarias e resoluções federais) de ações
“Discussão”, onde são explorados os resultados e programas da política de regulação, de forma-
à luz do referencial. ção e de provimento médicos, textos publicados
na grande mídia e em impressos ou sites de enti-
dades da sociedade civil e de gestores, em parti-
Métodos cular aquelas que representavam prefeitos, secre-
tários municipais e estaduais de saúde e médicos.
A pesquisa utilizou o process tracing como estra- A análise bibliográfica procurou responder às
tégia metodológica e examinou trajetórias histó- questões de pesquisa, apoiar a compreensão da
ricas, documentos, transcrições de entrevistas e trajetória das ações da política de regulação, for-
outras fontes para verificar possíveis explicações mação e provimento médico a partir da segunda
considerando as cadeias e mecanismos causais metade do século XX, quando se ampliou no país
do caso em análise, entendidos como construtos o debate sobre a formação de recursos humanos
teóricos que focalizam dimensões da realidade e em saúde, a entrada na agenda, a formulação do
que são apontados pelas teorias como passíveis PMM e as posições das organizações da profissão
de influir ou determinar um evento ou um fe- médica frente a essas ações.
nômeno e que, quando aplicados à empiria, têm As entrevistas semiestruturadas foram rea-
o objetivo de formular teorias de médio alcance lizadas com 19 informantes-chave (Quadro 2)
que expliquem o evento ou fenômeno17. que, entre 2003 e 2018, foram protagonistas na
Diferentemente do período anterior (2003- formulação da política de regulação, formação e
2010), quando também estiveram à frente do MS provimento médicos. Diversos desses sujeitos es-
dirigentes integrantes da CP-M Sanitário, que não tiveram presentes em mais de um dos três perío-
conseguiram fazer mudanças significativas na po- dos analisados, ocupando posições no MS, MEC,
lítica vigente, no período 2011-2013 foi possível núcleo do governo, Congresso Nacional, entida-
promover mudanças que culminaram no PMM. des de representação de secretários municipais e
Com base nos fatores causais investigados na aná- estaduais de saúde e na Organização Pan-Ameri-
lise de políticas, no referencial teórico utilizado e cana da Saúde (OPAS). Entre eles, 15 ocuparam
no material empírico, o olhar do presente estudo posições com poder de decisão no período foca-
foi direcionado para as quatro dimensões explica- lizado neste artigo, de 2011 a 2013.
2546
Pinto HA, Côrtes SMV

Quadro 1. Estratégia de reunião de evidências no estudo.


Quatro dimensões e o
Elementos analisados Fontes
processo em análise
(1) Atores individuais e Posições, objetivos, ideias,Literatura, documentos diversos (como
coletivos propostas e atuações matérias em meios de comunicação,
resoluções de órgãos da sociedade civil ou do
Estado) e entrevistas com dirigentes
(2) Evolução da questão Mudança em indicadores e na Literatura, documentos diversos (como
e efeitos em atores que se caracterização do problema relatórios, estudos especializados, matérias em
tornaram relevantes de política e posição de atores meios de comunicação, resoluções de órgãos
relevantes da sociedade civil ou do Estado) e entrevistas
com dirigentes
(3) Arcabouço institucional Mudança e criação de programas Legislação, outros documentos oficiais,
e legados ideacionais e e regras, ideias associadas e literatura e entrevistas com dirigentes
institucionais mobilização de recursos
(4) Contexto político e Mudanças na correlação de Literatura, publicações de meios de
padrões institucionalizados forças e relações “tradicionais” comunicação e entrevistas com dirigentes
de relação entre governo e entre decisores e atores societais
sociedade
(5) Trajetória do processo Mudanças na legislação, normas Literatura, legislação, documentos oficiais e
e programas entrevistas com dirigentes
Fonte: Autores

Quadro 2. Entrevistados.
Posição 2003-2010 2011-2013 2013-2018
Primeiro escalão do Executivo Federal 5 4 2
Escalões intermediários e integrantes da burocracia do Executivo Federal 4 6 4
Dirigentes de entidades de representação das secretarias estaduais e 3 3 2
municipais de saúde
Parlamentares da Câmara e Senado - 2 3
OPAS 1 - 1
Totais por período 13* 15* 12*
*
No total foram 19 pessoas entrevistadas, porém algumas delas ocuparam diferentes posições em mais de um período, havendo
aquelas que atuaram em posições distintas nos três períodos.

Fonte: Autores, adaptado de Pinto (2021).

Foram empregadas técnicas de análise de fluxos de política, que são relacionados à entrada
conteúdo18 para tratar as entrevistas, utilizando de novas soluções na agenda governamental, sen-
categorias analíticas como atores, ideias, institui- do eles: o dos “problemas”, o das “soluções” e o do
ções, questões, problemas e soluções. Também foi “processo e contexto político”. A teoria permite
utilizada a análise de discurso político19, fazendo ainda que se identifiquem “janelas de oportuni-
uso de premissas discursivas, tais como: objeti- dade”: chances passageiras nas quais há um aco-
vos, valores, preocupações, circunstâncias, cur- plamento dos três fluxos, permitindo que novas
sos de ação e consequências. Foram empregados questões e soluções tenham a oportunidade de
recursos da teoria dos múltiplos fluxos (TMF)20, ganhar a atenção de decisores de políticas e de
dos estudos sobre processo político (public policy entrar na agenda governamental. No processo
process)21-23 e da teoria da mudança institucional político, disputa-se quais questões, prioridades e
gradual (TMIG)24. explicações para os problemas e que soluções de-
A TMF ofereceu instrumentos analíticos para vem ser implementadas. Para a TMF, “empreen-
caracterizar o que a teoria denomina como os três dedores de políticas” são agentes-chave para criar
2547

Ciência & Saúde Coletiva, 27(7):2543-2552, 2022


ou aproveitar as janelas, dar visibilidade e con- do status quo, caracterizado pela autorregulação
formar a abordagem de questões20,25. Os estudos profissional da medicina, concebida como uma
sobre processo político21-23 forneceram instru- profissão liberal; o monopólio da profissão sobre
mental analítico para examinar a configuração e as práticas de saúde de maior valor simbólico e
o desenvolvimento das relações entre organiza- econômico; a livre escolha dos médicos quanto
ções e atores, individuais e coletivos, societais e à sua atuação; e se opunham a medidas que au-
estatais, e para caracterizar seus interesses, ideias mentassem a quantidade de médicos no mercado
e ações, considerando o contexto e suas regras. de trabalho, seja a ampliação da atuação de médi-
A TMIG24 forneceu recursos teóricos para a cos estrangeiros, de vagas de graduação ou a per-
compreensão das instituições como instrumentos da do controle profissional sobre a formação de
distributivos carregados de implicações de poder especialistas7. A CP-M Sanitário14 era composta
e repletas de tensões. Por terem efeitos desiguais por acadêmicos, gestores e trabalhadores de saú-
para a alocação de recursos, as regras institucio- de (principalmente no âmbito do SUS), líderes
nais dão condição a certos atores em posições do- de entidades sindicais e profissionais e de outras
minantes – no ambiente institucional ou societal organizações da sociedade civil da área de saúde.
– de projetarem instituições que correspondem Defendia os princípios da Reforma Sanitária e do
às suas preferências, para que realizem seus ob- SUS e que as políticas de regulação, formação e
jetivos e mantenham a sua condição privilegiada. provimento médicos fossem decididas sobretudo
Contudo, para assegurar a estabilidade de um no âmbito do subsistema de saúde, levando em
arranjo institucional, é necessário mobilizar con- conta as necessidades do SUS.
tinuamente apoio político. Para a TMIG, a mu- Com a posse da presidenta Dilma Rousseff
dança torna-se possível quando são rompidos os em 2011, houve mudança dos dirigentes do nú-
equilíbrios vigentes devido a fatores externos e/ cleo do governo e do MS, e se mantiveram os do
ou internos ao arranjo institucional, que foram MEC. Em funções de direção superior no MS, as-
analisados junto com o modo como os atores agi- sumiu um grupo relativamente coeso no que se
ram estrategicamente no processo político. refere a suas ideias sobre o SUS e cujos integran-
O estudo debruçou-se na análise de dois sub- tes apresentavam trajetórias profissionais simila-
sistemas de políticas públicas: o de saúde e de res. Faziam parte de uma geração mais recente da
educação superior. Os subsistemas são estruturas CP-M Sanitário e haviam atuado conjuntamente,
de poder estratificadas que distribuem recursos no período 1990-2004, no movimento estudantil
desiguais e arenas de embate entre atores que de- de medicina e na rede temática Rede Educação
fendem diferentes soluções para as questões po- Médica7, composta majoritariamente por profes-
líticas25. São também unidades setoriais de nível sores e estudantes de medicina, que discutia mu-
mesossocial de produção de políticas públicas, danças na formação médica e envolvia membros
que têm autonomia relativa em relação ao macro tanto da CP-M Liberal quanto da CP-M Sanitá-
sistema político, arranjos institucionais, regras e rio. Esses dirigentes, além de outros com posições
dinâmicas próprias26. de comando no MEC e um deputado federal,
atuaram como empreendedores do PMM. Os
entrevistados (entrevistas 1-6, 8-14, 17 e 19) no-
Resultados minaram 16 pessoas, além da presidenta Dilma,
como os principais protagonistas na formulação
A análise dos documentos, da literatura e das e defesa do PMM, sendo que três deles receberam
entrevistas mostrou que dois atores coletivos ti- maior destaque: o ministro da Saúde Alexandre
veram atuação marcante no processo que resul- Padilha, o deputado federal Rogério Carvalho e
tou na formulação do PMM como solução para Mozart Sales, chefe de gabinete do MS em 2011
o problema das insuficiências na formação e na e dirigente da Secretaria de Gestão do Trabalho
oferta de médicos para o SUS: a CP Defesa da Me- e Educação na Saúde (SGTES) do MS, de 2012
dicina Liberal (CP-M Liberal), contra o progra- a 2014, este responsável direto pela implementa-
ma, e a CP-M Sanitário, a favor. A primeira era li- ção do PMM. Os três eram médicos, membros
derada por dirigentes das entidades médicas, seus do Partido dos Trabalhadores e, na década de
membros atuavam em fóruns consultivos e deci- 1990, ocuparam, em sequência, o cargo máximo
sórios no MEC e no MS. Também a integravam da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de
parlamentares e dirigentes de hospitais, públicos Medicina (Denem).
e privados, de cursos de medicina e programas Padilha, que anunciou desde o início de sua
de residência médica. Defendia a manutenção gestão a prioridade do enfrentamento da questão
2548
Pinto HA, Côrtes SMV

das insuficiências na oferta e na formação médi- ção de Profissionais da Atenção Básica (Provab),
cas, relatou em entrevista uma fala de dirigente uma estratégia de formação e provimento médi-
da gestão ministerial anterior que afirmara frente co em áreas subatendidas, que criou uma bonifi-
a ele e à equipe que “junto com o Padilha é a tur- cação na pontuação do concurso para residência
ma que [...] discute educação médica” (Entrevis- médica na intenção de atrair médicos recém-for-
ta Padilha), e acrescentou: mados. Com o apoio do MEC e do núcleo do go-
Ele (aquele dirigente) tinha certeza que a edu- verno, e apesar da forte oposição da CP-M Libe-
cação médica seria um debate puxado por nós. [...] ral, que se posicionou majoritariamente contra o
Um conjunto de pessoas que tinham em sua histó- Provab, o MS criou o programa em setembro de
ria [esse] debate [...], seja a partir do movimen- 2011. Com o Provab, houve aumento no recruta-
to estudantil de medicina, seja a partir da Abem mento de médicos para a atenção básica, porém
[Associação Brasileira de Educação Médica]. [...] mesmo assim, em 2013, só conseguiu responder
A gente não perderia a oportunidade de [...] buscar a 26% da demanda dos municípios por médicos
medidas concretas para que o Ministério passasse a nas equipes de saúde da família7.
assumir aquilo que é sua responsabilidade consti- Outras iniciativas formuladas no governo
tucional: [...] ser o SUS e suas autoridades os prin- Lula e implementadas no primeiro ano do gover-
cipais reguladores do processo de formação e provi- no Dilma tiveram resultados insuficientes, como
mento do profissional médico (entrevista Padilha) o Exame Nacional de Revalidação, conhecido
A evolução da questão das insuficiências como Revalida, e a alteração da Lei do Fundo de
na oferta e na formação médicas na década de Financiamento do Estudante do Ensino Superior
2000, bem como das demandas da população e (Fies), pensado para conceder moratória e aba-
de gestores do SUS para a solução do problema, timento da dívida a médicos que optassem pela
catapultaram a questão ao sistema macropolítico atuação em equipes de saúde da família em áreas
(entrevistas 1, 2, 4, 9, 11-13, 15 e 19). Isso ocorreu, subatendidas ou que fizessem residência médica
em grande parte, devido à expansão da cobertu- em especialidades consideradas prioritárias pelo
ra dos serviços de saúde, combinada a um baixo MS7,29. Em fevereiro de 2012, o núcleo do gover-
crescimento proporcional da oferta de médicos, no foi convencido pelos empreendedores que a
pois aqueles formados na década de 2000 preen- insuficiência de médicos limitava a possibilidade
chiam apenas 69% da demanda do mercado de de sucesso da política de saúde, sendo um obstá-
trabalho10. Havia concentração de médicos, cur- culo à melhoria da avaliação da população sobre
sos de medicina e programas de residência nas a atuação do governo na área. Seria necessário
grandes cidades, no Sudeste e no Sul, e um terço implantar um programa mais amplo, que inclu-
das equipes de saúde da família não dispunham ísse recrutamento internacional de médicos para
de médicos10,27. As dificuldades e custos cada vez responder à demanda do SUS, às expectativas de
maiores para ampliar o acesso a serviços de saú- gestores municipais, estaduais e parlamentares e
de e a insatisfação da população com a falta de à principal queixa da população na área: a falta
médicos aumentaram a importância política do de médicos. Foi então criado um grupo de tra-
problema. balho composto por mais de sete ministérios e
Antes da posse, a presidenta Dilma fora aler- cuja atribuição era formular o PMM, como rela-
tada que sua promessa de campanha para expan- ta este dirigente do MEC no período: [Tentou-se]
dir o acesso a serviços de saúde estava ameaçada melhorar via Provab. [...] Teve uma resposta muito
pelo problema da insuficiência de médicos no insuficiente, [...] há uma frustração [...], leva-se à
SUS, que obteve relativa importância na impren- Presidência: “Olha temos que partir para alguma
sa28. E atenta à questão, em seu discurso de posse coisa mais ousada, porque os instrumentos [...] que
anunciou que esta seria uma das prioridades do nós temos [...] são insuficientes.” [...] Identificamos
governo. Os empreendedores do PMM, integran- que seria praticamente impossível atacar o proble-
tes da CP-M Sanitário, estabeleceram negocia- ma unicamente com profissionais médicos forma-
ções com a CP-M Liberal e se apoiaram em lega- dos no Brasil pela via tradicional (entrevista 16).
dos ideacionais e institucionais para estruturar a Do ponto de vista do provimento, o PMM
proposta de enfrentamento da questão e sua de- reproduziu o Provab e agregou o recrutamento
fesa pública. Reuniram evidências, promoveram internacional, que, para ser implementado, exigiu
pesquisas e usaram como referência experiências mudanças na legislação. A minuta básica da lei foi
internacionais e nacionais, bem como propostas finalizada no início de 2012, e os empreendedo-
já discutidas no Brasil. A primeira proposta de res do PMM conduziram essa definição em sigilo
solução apresentada foi o Programa de Valoriza- para minimizar reações de opositores, especial-
2549

Ciência & Saúde Coletiva, 27(7):2543-2552, 2022


mente da CP-M Liberal. Em paralelo, buscaram prefeitos poderia dificultar a implementação do
atenuar resistências no governo federal, especial- programa (entrevista 13). Também não foi lança-
mente no MEC, e de membros da CP-M Libe- do no primeiro semestre de 2013, adiamento que,
ral, sobretudo dirigentes de entidades médicas e segundo os entrevistados, ocorreu devido à ação
pessoas que ocupavam cargos no governo e em da CP-M Liberal sobre o núcleo do governo (en-
órgãos colegiados. Com apoio do núcleo do go- trevistas 2, 8, 13, 15 e 16). Membros da CP-M Li-
verno, foram nomeados dirigentes no MEC com- beral alertavam que o desgaste político superaria
prometidos com a construção do PMM e sua for- os benefícios da medida. A hesitação do governo
mulação ocorreu em espaços institucionais desse estava ainda relacionada à tentativa de identifica-
ministério, onde havia menor influência CP-M ção de qual seria o melhor momento para propor
Liberal, tais como a Secretaria de Regulação e Su- a lei ao Congresso Nacional, uma arena em que os
pervisão da Educação Superior (Seres) e uma di- integrantes do núcleo de governo avaliavam que
retoria criada para implementar o PMM (entre- a CP-M Liberal tinha muita influência. Além de
vistas 3, 16 e 17). Desse modo, o MEC passou de 24 parlamentares (5% do total) serem médicos, a
opositor da mudança na política, como aconteceu maioria deles identificados com a CP-M Liberal,
no período de 2003-20107,29, a apoiador. partidos de oposição e a repercussão das críticas
A formulação do PMM foi influenciada e ao programa na grande imprensa poderiam pro-
viabilizada, segundo os entrevistados, por ideias, vocar um desgaste expressivo para a imagem do
aprendizados, instrumentos e recursos relacio- governo.
nados a medidas implementadas anteriormente Ao mesmo tempo, mudanças no contexto
para enfrentar a questão das insuficiências na político foram tratadas como uma oportunidade
oferta e na formação médicas. O PMM era for- pelos empreendedores do PMM para contraba-
mado por três eixos. O de “infraestrutura” foi lançar a pressão da CP-M Liberal e tentar cons-
um incremento do programa chamado “Requa- truir as condições para o lançamento do progra-
lifica-UBS”, criado em 2011 para a construção, ma. Com o início da gestão dos novos prefeitos
ampliação e reforma de unidades básicas de saú- em 2013, os empreendedores (entrevistas 8, 13 e
de. O “formação” retomou e ampliou metas de 15) estimularam a Frente Nacional de Prefeitos
expansão de cursos de medicina propostas em a lançar a campanha Cadê o Médico, em janei-
2012 no Plano Nacional de Educação Médica e ro de 2013, que cobrava do governo federal um
incorporou o programa Pro-Residência, criado recrutamento internacional de médicos. A cam-
em 2009, que visava a expansão de programas panha se expandiu e recebeu a adesão de mais de
de residência médica em especialidades e regi- 2 mil prefeitos até maio de 2013, quando a frente
ões nas quais o SUS tinha necessidade. O eixo obteve da presidenta o compromisso de que o
de “provimento” pode ser visto como parte de PMM seria lançado (entrevistas 8, 13 e 15). Nesse
uma trajetória de aperfeiçoamento de progra- contexto, o governo definiu o lançamento para o
mas que, no século XXI, envolveram a criação segundo semestre de 2013, após a Copa das Con-
do Programa de Interiorização do Trabalho em federações, realizada em junho de 2013 (entre-
Saúde (Pits), em 2001, e do Provab, em 2011. vistas 2, 8 e 13). As Jornadas de Junho e a queda
Além disso, respondentes afirmaram que a es- vertiginosa na aprovação popular do governo, a
trutura da Universidade Aberta do SUS, criada menos de um ano do início da campanha para as
em 2010, fora essencial para garantir a formação eleições gerais de 2014, precipitaram seu lança-
em serviço dos milhares de médicos recrutados mento, que foi realizado em cadeia nacional pela
pelo PMM e que a cooperação entre Brasil, Opas presidenta em 21 de junho de 2013. Como sua
e Cuba foi decisiva para constituir uma “reserva” formulação estava bastante avançada, ele poderia
de médicos para assegurar o sucesso do PMM, ser implementado rapidamente, podendo ser uti-
caso o recrutamento nacional e internacional de lizado como resposta, ao menos em parte, às rei-
médicos não conseguisse responder à demanda vindicações por melhorias na assistência à saúde
dos municípios (entrevistas 2, 3, 8, 13, 15 e17). (entrevistas 2, 5, 8, 13 e 15).
Ao final de 2012, a formulação e a viabili-
zação da implementação do programa estavam
praticamente prontas. No entanto, o lançamento Discussão
do PMM foi adiado devido à proximidade das
eleições municipais, já que o desenho do progra- A pesquisa encontrou evidências para a compre-
ma pressupunha o envolvimento de gestores mu- ensão do processo que levou à entrada na agenda
nicipais de saúde para sua execução, e a troca de governamental da questão das insuficiências na
2550
Pinto HA, Côrtes SMV

oferta e na formação de médicos para o SUS e à MS e a importância de suas ações foi destacada
criação do PMM que estavam ausentes ou subva- por entrevistados (Entrevistas 1-5, 8-13, 15, 17 e
lorizados nas duas vertentes de explicações pre- 19). Alguns estudos mencionam a atuação des-
dominantes e identificadas na revisão da literatu- ses sujeitos na formulação e defesa do PMM, mas
ra. A primeira, exemplificada pelos trabalhos de não os tratam como empreendedores da políti-
Couto e colaboradores1, Ribeiro e colaboradores2 ca4,6,31, o que de fato eram ao agirem estratégica
e Macedo e colaboradores3, chama atenção para o e articuladamente na defesa do programa. Eles
“acoplamento” dos fluxos dos “problemas”, “solu- buscaram obter o apoio do núcleo do governo,
ção” e “contexto político” em uma “janela de opor- da direção do MEC e de parlamentares, não ape-
tunidades”, as Jornadas de Junho, para explicar a nas para promover a introdução da questão na
construção do PMM, tendo como protagonista o agenda governamental, mas na defesa de uma so-
governo federal e/ou o Congresso Nacional. A se- lução para o problema: o PMM.
gunda vertente de explicação, exemplificada pelos A decisão de formular o que veio a ser o PMM
trabalhos de Rocha4, Silva5 e Paula6, enfatiza a im- foi tomada em fevereiro de 2012, e não em mea-
portância da mudança de governo, o posiciona- dos de 2013, como apontado frequentemente na
mento de sujeitos que já priorizavam a questão da literatura1-3. Até então, as direções do MS haviam
insuficiência na oferta e formação médicas, e que implementado programas de abrangência limi-
souberam aproveitar ou que reagiram às Jorna- tada, devido às posições e ao poder de veto da
das de Junho para propor uma solução de acordo CP-M Liberal, que não conseguiram impedir o
com suas ideias e objetivos. agravamento da questão. Os resultados insufi-
A análise das entrevistas e dos documentos cientes na ampliação no número de médicos para
mostrou que a entrada da questão das insuficiên- o SUS, com programas implementados em 2011,
cias na oferta e na formação médicas na agenda como o Fies, o Revalida e o Provab, encorajaram
governamental se deveu principalmente a dois o núcleo do governo a decidir pela formulação
fatores: o agravamento do problema, expresso no de uma política mais efetiva, mesmo com a opo-
aumento da importância dada a ela pelos prefei- sição da CP-M Liberal.
tos, nas pesquisas de opinião e na imprensa; e a As ações estratégicas dos empreendedores, a
inauguração do governo Dilma em 2011, que ao atuação da presidenta e as mudanças realizadas
tomar posse se comprometeu a priorizar a ques- na direção e estrutura do MEC para viabilizar sua
tão. Cabe salientar que o agravamento do proble- participação na construção do PMM foram cen-
ma e o aumento da percepção pública e de atores trais para que a formulação do programa acon-
políticos sobre a sua gravidade recebem pouco tecesse ao longo de 2013 e não fosse obstruída,
destaque na literatura. Usualmente, a questão é como ocorreu no período de 2003-2010, quando
tratada como um problema antigo e pouca aten- as posições neutras ou contrárias do núcleo do
ção é dada ao aumento de sua importância na governo e do MEC impediram o avanço de pro-
percepção pública e do mundo político no perí- postas de mudanças mais significativas na polí-
odo que antecedeu à mudança do contexto polí- tica de regulação, formação e provimento médi-
tico em 20131-3. cos. No Brasil, o presidente tem muito poder na
A mudança do governo é considerada fator formação da agenda do Legislativo, e mais ainda
explicativo de alterações na agenda governamen- a do próprio Executivo30. No caso do PMM, so-
tal por diversas teorias de análise de políticas mou-se ao envolvimento de Dilma com o tema
públicas20,24. A inauguração do governo Dilma, e à sua determinação em resolver o problema,
em 2011, é considerada o fator explicativo mais quando as circunstâncias fossem favoráveis, o
importante para a entrada do tema na agenda go- fato de que os dois ministérios mais importantes
vernamental pelos entrevistados e pela literatura. para a sua implementação estivessem sob a di-
Contudo, nesta predomina a visão do governo reção do partido da presidenta. Assim, o núcleo
como um bloco unitário, o que não corresponde do governo coordenou a ação dos ministérios en-
ao modo como os governos em sociedades con- volvidos na formulação do programa, deu condi-
temporâneas funcionam com subsistemas seto- ções à atuação dos empreendedores e assegurou
riais especializados, com dinâmicas, regramentos a mobilização dos recursos necessários à sua for-
e hierarquias próprios16,20-26, mesmo em sistemas mulação, processo esse que foi pouco ressaltado
políticos como o brasileiro, em que a presidência pela literatura1-3.
tem muito poder31. Observou-se que, durante o Na ação de formulação do programa, os em-
primeiro mandato da presidenta Dilma, mem- preendedores da política aproveitaram legados
bros da CP-M Sanitário estavam na direção do institucionais e aprendizados com programas
2551

Ciência & Saúde Coletiva, 27(7):2543-2552, 2022


implementados anteriormente para enfrentar a de atores individuais e coletivos, que agiram para
questão da falta de médicos. Relacionaram-na a mudar regras existentes, num ambiente de inten-
um escopo maior de problemas associados às in- sas disputas na definição de ambiguidades insti-
suficiências na oferta e formação médicas, o que tucionais que, uma vez exploradas por meio da
justificou a proposta de um leque de soluções que edição de novas regras legais e administrativas,
também envolviam regulação, formação e provi- alteraram a distribuição de poder no contexto
mento médicos. As escolhas feitas pelos empre- dos dois subsistemas analisados.
endedores, expressas no desenho com o qual o A realização de entrevistas, além da análise
programa foi lançado, podem ser relacionadas às documental e bibliográfica, foi essencial ao es-
suas ideias e trajetórias de atuação, especialmente tudo porque a construção do PMM foi sigilosa,
na Rede Temática Educação Médica. sendo escassos os documentos que contam sua
A decisão do núcleo do governo de imple- história de formulação e decisão. Também foi
mentar o PMM (tomada em 2013, mas sem data importante considerar a trajetória de produção
para o lançamento) também foi motivada por de políticas anteriores. Notou-se que estudos que
um conjunto de fatores combinados: a posse dos se basearam na TMF1,2 apresentaram o viés de fo-
novos prefeitos em 2013; a ação dos mesmos ar- car excessivamente no momento de acoplamento
ticulada à dos empreendedores; o avanço nas tra- dos fluxos, e portando nas Jornadas, não identi-
tativas com a Opas e Cuba; e a proximidade das ficando a influência de fatores relevantes na pro-
eleições de 2014. O lançamento em julho de 2013 dução do PMM, em especial o papel de elemen-
foi decidido devido às mudanças do contexto po- tos institucionais e processos que apresentaram
lítico, provocadas pelas Jornadas de Junho, que uma trajetória mais longa e que influenciaram
vieram a mudar o cálculo estratégico do núcleo inclusive o modo como os problemas foram pro-
do governo. Antes, com governabilidade estável cessados e as soluções selecionadas.
e alta popularidade, as consequências políticas Nesta pesquisa, o uso da TMF foi combina-
negativas de um enfrentamento com a CP-M Li- do ao exame do processo político que conduziu
beral nas arenas do Congresso e na grande mídia ao lançamento do PMM e à TMIG, que permitiu
superavam os benefícios setoriais que poderiam analisar a trajetória de mudanças incrementais
advir do PMM. Depois, com o governo mal ava- nesse processo ao longo das últimas décadas,
liado, precisando reagir e apresentar alguma res- focalizando os atores sociais, os arranjos insti-
posta às demandas e ao seu desgaste, o programa tucionais dos subsistemas de saúde e de educa-
tornou-se uma solução para os problemas polí- ção superior, os legados históricos, bem como as
tico e setorial. As Jornadas de Junho auxiliam na estratégias de ação dos atores e os modos como
compreensão do momento da decisão, mas não eles influenciaram os processos de decisão. Além
foram o fator que gerou a entrada na agenda, a de buscar oferecer uma teoria de médio alcance
formulação e a decisão sobre como resolver os para a compreensão de como entrou na agenda
problemas na oferta e na formação médicas por do governo federal a questão das insuficiências
meio do programa, como aponta grande parte de médicos e como foi o processo de formulação
da literatura1-3. A mudança no contexto atuou do PMM, o estudo pode também contribuir para
como fator exógeno, que ajudou alterar o equi- um esforço de uso combinado da TMF, das análi-
líbrio prévio na área, junto ao posicionamento ses do processo político e da TMIG.

Colaboradores

O autor e a autora participaram de todas as eta-


pas de construção do trabalho, a saber: a concep-
ção e o delineamento ou a análise e interpretação
dos dados, redação do artigo e aprovação da ver-
são a ser publicada.
2552
Pinto HA, Côrtes SMV

Referências

1. Couto MP, Salgado ED, Pereira AE. O Programa Mais 18. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2014.
Médicos: a formulação de uma nova política públi- 19. Fairclough I, Fairclough N. Political discourse analysis:
ca de saúde no Brasil. Temp Actas de Saúd Col 2015; a method for advanced students. New York: Routledge;
9(4):97-113. 2013.
2. Ribeiro DD, Pelegrini T, Rodrigues CT. Implemen- 20. Kingdon J. Agendas, alternatives and public policies.
tação e prospecções do Programa Mais Médicos no Washington: Longman Classics in Political Science;
Brasil sob o enfoque do modelo de múltiplos fluxos 2011.
de Kingdon. Espacios 2017; 38:17. 21. Birkland TA. An introduction to the policy process – the-
3. Macedo AS, Alcântara VC, Andrade LFS, Ferreira PA. ories, concepts, and models of public policy making. New
O papel dos atores na formulação e implementação York: Routledge; 2016.
de políticas públicas: dinâmicas, conflitos e interesses 22. Majone G. Evidence, argument, and persuasion in the
no Programa Mais Médicos. Cad EBAPE BR 2016; policy process. New Haven: Yale University Press; 1989.
14(esp.):593-618. 23. Stone DA. Causal stories and the formation of policy
4. Rocha VXM. Reformas na educação médica no brasil: agendas. Political Science Quarterly 1989; 104(2):281-
estudo comparativo entre as diretrizes curriculares na- 300.
cionais dos cursos de graduação em medicina de 2001 e 24. Mahoney J, Thelen K. A theory of gradual institutional
2014 [dissertação]. São Paulo: Universidade Católica change. In: Mahoney J, Thelen K, editors. Explaining
de Santos; 2017. institutional change: ambiguity, agency, and power.
5. Silva ES. Programa Mais Médicos: a formação de uma po- Cambridge: Cambridge University Press; 2010. p. 1-10.
lítica pública [dissertação]. São Paulo: Unicamp; 2017. 25. Adam S, Kriesi H. The network approach. In: Saba-
6. Paula JB. Análise do ciclo de política do Programa Mais tier PA, editor. Theories of the policy process. Colorado:
Médicos no Brasil: cooperação Cuba-Brasil e seus efeitos West Press; 2007. p. 129-154.
para o trabalho médico [tese]. São Paulo: Universida- 26. True JL, Jones BD, Baumgartner FR. Punctuated-E-
de de São Paulo; 2017. quilibrium Theory: explaining stability and change in
7. Pinto H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? public policy making. In: Sabatier PA, editor. Theories
Análise da entrada na agenda governamental e da formu- of the policy process. Cambridge: Westview Press; 2007.
lação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: p. 155-188.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021. 27. Pinto HA, Oliveira FP, Santana JSS, Santos FOS, Araú-
8. World Health Organization (WHO). Increasing access jo SQ, Figueiredo AM, Araújo GD. Programa Mais
to health workers in remote and rural areas through Médicos: avaliando a implantação do Eixo Provimento
improved retention: global policy recommendations. de 2013 a 2015. Interface 2017; 21(Supl. 1):1087-1101.
Geneva: WHO; 2010. 28. Oliveira E, Batista HG. Faltam profissionais da área de
9. Feuerwerker LCM. Além do discurso de mudança na saúde para Dilma poder cumprir metas estipuladas no
educação médica: processos e resultados. São Paulo: Hu- setor [Internet]. O Globo; 2010. [acessado 2021 Maio
citec; 2002. 14]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politi-
10. Observatório de Recursos Humanos em Saúde do ca/faltam-profissionais-da-area-de-saude-para-dilma
Núcleo de Educação em Saúde Coletiva. Relatório fi- -poder-cumprir-meta-estipulada-no-setor-2911732
nal: estudo de levantamento de aspectos demográficos, 29. Pinto HA, Côrtes SV. Tendência à estabilidade institu-
de formação e de mercado de trabalho das profissões de cional: regulação, formação e provimento de médicos
saúde nível superior no Brasil entre 1991 e 2010 [relató- no Brasil durante o governo Lula. Cien Saude Colet
rio técnico de projeto]. Belo Horizonte: Universidade 2022; 27(7):2531-2541.
Federal de Minas Gerais; 2014. 30. Limongi F, Figueiredo A. Poder de agenda e políticas
11. Dias HA, Lima LD, Teixeira M. A trajetória da políti- substantivas. Legislativo brasileiro em perspectiva com-
ca nacional de reorientação da formação profissional parada. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2019.
em saúde no SUS. Cien Saude Colet 2013; 18(1);1613- 31. Gomes LB. A atual configuração política dos médicos
1624. brasileiros: uma análise da atuação das entidades mé-
12. Maciel Filho R. Estratégias para a distribuição e fixação dicas nacionais e do movimento médico que operou por
de médicos em sistemas nacionais de saúde: o caso brasi- fora delas [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal
leiro [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do do Rio de Janeiro; 2016.
Rio de Janeiro; 2007.
13. Girardi SN, Fernandes Jr H, Carvalho CL. A regula-
mentação das profissões de saúde no Brasil. Espaço
para Saúde 2000; 2(1):1-21.
14. Côrtes SV. Participação e saúde no Brasil. São Paulo:
Editora Fiocruz; 2009.
15. Côrtes SV, Lima LL. A contribuição da sociologia para
a análise de políticas públicas. Lua Nov 2012; 87:33-62.
16. Rhodes R. “Policy network analysis”. In: Moran M, Artigo apresentado em 04/09/2021
Rein M, Goodin RE, editors. The Oxford handbook of Aprovado em 16/02/2022
public policy. Oxford: Oxford University Press; 2008. Versão final apresentada em 18/02/2022
17. Bennett A, Checkel JT, editors. Process tracing: from
metaphor to analytic tool. Cambridge: Cambridge Editores-chefes: Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura
University Press; 2015. da Silva

CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons

Você também pode gostar