Você está na página 1de 17

1

Narrativa na construção ensino interprofissional no campo da saúde

Francisco Fernandes(a)

Ana Lúcia Abrahão(b)

Ândrea Cardoso Souza(c)

(a)
Instituto de Psicologia. Universidade Federal Fluminense. Rua Prof. Marcos
Waldemar de Freitas Reis, s/n, bloco O. Gragoatá. Niterói, RJ, Brasil. 24210-201.
francisco.lff@gmail.com

(b)
Departamento de Enfermagem Médico Cirúrgica. Escola de
Enfermagem.Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ, Brasil.
abrahaoana@gmail.com

(c)
Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Psiquiátrica. Escola de
Enfermagem. Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ, Brasil.
andriacsouza@gmail.com

Resumo
Neste texto nos propusemos examinar as vulnerabilidades das reformas sanitária e
psiquiátrica quanto a poder cumprir efetivamente com esses desígnios. Para tanto,
exploramos os resultados que alcançamos com a metodologia “Sombra” na formação
de profissionais de saúde no acompanhamento aos usuários em seus territórios no
contexto do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-SAÚDE)
desenvolvido pela Universidade Federal Fluminense (UFF) nas redes de atenção no
município de Niterói no ano de 2015. Estudo de abordagem qualitativa, que adotou a
perspectiva da narrativa e trabalhou com o conceito de usuário-guia para
compreender como se produzem as estações de cuidado. A metodologia Sombra
destacou a problemática do vínculo como decisiva para o enfrentamento das
questões inerentes ao campo da Saúde. Por meio desta, pudemos operar um
deslocamento pequeno, mas importante, do modo como situamos o aspecto
civilizatório das políticas públicas no Brasil, em particular aquelas encaminhadas pela
2

Saúde. O contraponto proposto por nosso texto, sob o patrocínio do PET-Saúde UFF
e da metodologia Sombra por ele ensejada, foi uma forma de abordar o processo
social enquanto prática política através da insistência em se criar cenários de
interlocução, “coletivos”, nos quais as narrativas das trajetórias de vida dos usuários
são retomadas nas discussões nos serviços levando em consideração as resistências
mesmas às políticas e, a partir daí, se encaminhar a prática como processo crítico,
isto é, que se auto-retifica através de sua problematização implicando o máximo
possível de atores em seu movimento.

Palavras-chave: Formação; Narrativa; Metodologia Sombra; PET-Saúde.

Abstract

Keywods: Formation; Narrative; Shadow Methodology; PET-Saúde.

Resumen

Palabras clave: Formación; Historia; Metodología Sombra; PET-Saúde.

Introdução
Um trabalho da maior magnitude que se coloca para todos aqueles
concernidos em fazer avançar e prevalecer os princípios civilizatórios das reformas
sanitárias, o Sistema Único de Saúde (SUS), mais concretamente e a reforma
psiquiátrica, é o de examinar suas vulnerabilidades quanto a poder cumprir
efetivamente com esses desígnios. A importância dessa formulação se justifica por
ela mesma, especialmente considerando a experiência e seu efeitos que os últimos
acontecimentos que atingem as redes de saúde, seus programas e ações, em função
da crise institucional pela qual o país atravessa.
A complexidade de tal tarefa envolve desde a exigência de nos
reposicionarmos politicamente, revermos as estratégias argumentativas de
justificação, avaliarmos as estratégias e as táticas em curso nos enfrentamentos
atuais, até reexaminarmos certos fundamentos teóricos e práticos das ações a luz
3

dos resultados obtidos nestes anos de esforços em implementar o SUS e a reforma


psiquiátrica.
Evidentemente, nem de longe nos ocorre ensaiar encaminhar tal tarefa aqui,
ela concerne a muitos e é muito ampla, embora fosse bem-vindo, nos parece,
esforços no sentido de pelo menos elencar seus principais termos. O que propomos
nesse trabalho, no entanto, situa-se no escopo dessa pretensão, porém com um foco
mais bem definido e localizado numa pequena questão que, pelo fato de ser pequena,
não significa ser sem importância, pelo contrário. O que vamos examinar e colocar
em discussão diz respeito a um aspecto central nas duas reformas, de certo modo
um dos pontos que as ata de maneira substantiva: a questão do vínculo e sua
articulação com uma “ética colaborativa e de solidariedade” como central na
implementação dos cuidados em todos os níveis da organização da saúde, mas, em
particular na Atenção Básica e nos dispositivos das redes de saúde mental1. O que
visamos foi, a partir de uma casuística mínima, ressaltar alguns pontos de impasse e
de resistência à essa ética especialmente no nível mais próximo da execução dos
cuidados junto à população por eles visada. Para tanto, exploramos neste artigo os
resultados que alcançamos com a metodologia “Sombra”(d),2 na formação de
profissionais de saúde no acompanhamento aos usuários em seus territórios em
relação aos cuidados durante as pesquisas que realizamos no contexto do Programa
de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-SAÚDE)3 desenvolvido pela
Universidade Federal Fluminense nas redes de atenção no município de Niterói no
ano de 2015.

_____________
(d)
O aluno se coloca ao lado do usuário e segue seus passos por todos os lugares
que o usuário se locomove dentro e fora do serviço, andando junto dele, fazendo
sombra nos espaços de saúde, nas ruas e nos pontos das redes formais e informais
desenhadas pelo usuário para o seu cuidado. O método tem a finalidade de mapear
a rede de saúde por meio dos percursos e apontamentos do usuário.

A questão da ética colaborativa e de solidariedade no campo da saúde


A principal questão no campo da Atenção Básica e nos dispositivos das redes
de Saúde Mental é de natureza metodológica, mas com um desdobramento clínico e
político importante. Ele gira em torno de como os operadores práticos das Reformas
4

e, mais recentemente, desse avanço delas para ações nos territórios, estas correm o
risco sério de se extraviarem ao não considerarem os diversos matizes das
resistências a elas em seus valores específicos. Dado o valor de ideal dessas
propostas e de avanço político frente ao que está instituído na atualidade com o qual
se colocam, elas tendem a unificar, sobretudo no cotidiano das práticas, toda e
qualquer resistência a elas como oposição a ser combatida.
Decorre daí a impossibilidade delas se retificarem em função do caráter
múltiplo do social com o corolário delas se fixarem numa ontologia que desconhece
a natureza processual das intervenções no vínculo social. Especialmente em razão
do modo como elas se concebem enquanto protocolos técnicos ou de diretrizes
políticas, o qual, frequentemente, vemos que “desconhecem” as articulações dessas
intervenções com a cultura – como se fossem instruções que, pelo fato de terem sido
encaminhadas com os melhores propósitos, devessem, por isso, simplesmente
serem acatadas por todos sem delongas, quer pela população em geral, quer pelos
trabalhadores da saúde já instituídos em outros modos de operar.
É certo que a implementação de novos modos de intervenção sempre se
coloca como negadora e relativizadora dos modos anteriores, não fosse assim, não
haveria porque instituir novos modos de cuidados. Porém, essa atitude negadora tem
de estar regulada por seu valor dialético no sentido de tensionar para colocar em
marcha um movimento de transformação que, certamente, no curso do processo vai
incluir o que, nos modos anteriores, tinha eficácia e relevância para a população. É
difícil balizar e manejar essa atitude, digamos, “ótima” para que um processo
efetivamente opere uma transformação “qualitativa”, isto é, que vá além da execução
de protocolos técnicos ou de diretrizes políticas, consolidando novos valores, no caso
do campo da saúde, quanto aos “cuidados de si”4. O risco quando essa atitude não é
cultivada é o autoritarismo, ou seja, uma prática regulada por princípios identitários
visando realizar o novo ideal emergente, no lugar de uma práxis autêntica na qual as
identidades são provisórias e efeitos de uma dinâmica da diferença mais
comprometida com o movimento do que fixar um novo estado de coisas.
A essas dificuldades, que consideramos, “metodológicas”, isto é, o cuidado
que devemos sustentar quanto ao processo social mais amplo quando as
intervenções, além de técnicas, incidem no campo da cultura, soma-se a crise
institucional pela qual o país atravessa e seus efeitos sobre o campo da saúde. Os
riscos daí decorrentes que temos visto, aqui e ali, das políticas públicas, em suas
5

formulações mais bem-intencionadas e corretas, serem usadas de maneira duvidosa


para justificar iniciativas cujo principal efeito é o incremento da precarização da rede
institucional da saúde. Sabemos muito bem disso, “crise” é, em geral, a maneira dos
governos lançarem sobre a população o custo de políticas equivocadas. E assistimos
a implantação de práticas completamente antagônicas com as formulações e políticas
que as engendraram; propõe-se uma linha de ação que, quando vamos verificar,
simplesmente constatamos que o realizado foi à produção de novos obstáculos ao
acesso à saúde.
Em razão desse fato, é preciso ainda, rever e redimensionar os conceitos de
desinstitucionalização5 e de autonomia, demarcá-los bem do entendimento neoliberal
que nada mais é do que abandonar populações altamente vulneráveis à própria sorte
– que, como sabemos, em função da crise, que também é econômica, está muito
agravada.

Perspectiva metodológica do PET- Saúde UFF/Niterói


A investigação orientada pela metodologia que denominamos de “Sombra”, é
instruída por ferramentas e técnicas da pesquisa qualitativa. Denominamos de
“Sombra” o método tomar como base o acompanhamento do itinerário6 feito pelo
usuário pelas redes de saúde, buscando dar vizibilidade aos caminhos que são
percorridos durante o tratamento.
Os usuários das redes de saúde, como um todo, mesmo que fortemente
vinculados possuem conduta nômade7 no sentido de que são produtores de redes de
conexões não previstas e conhecidas no mundo do cuidado, que como linhas de fuga,
buscam construir outros processos que não os que os serviços de saúde instituem
para eles. Poder “dar mão” para eles nos seus caminhares nômades é fundamental
para descobrir essa produção de novas redes de conexões8. Nessa direção, todas as
estações de cuidado9 são chaves como fonte base para isso ser em parte revelado,
mas reconhecendo que não é suficiente.
Com isso, há que se valorar as estações de cuidado – Unidades Básicas de
Saúde (UBS), Policlínicas, Hospitais, etc. – como fontes para mapear algumas das
situações vividas por esses usuários, que necessitam de cuidado. Mas, há que
reconhecer que só isso não dá conta. De outro lado, no seu caminhar na construção
de suas redes de conexões outras redes são significativas.
6

Procurar estudar barreiras e acessibilidades em complexas redes10 formais de


cuidado exige cruzar estratégias de investigação múltiplas. Por isso, nesse estudo
uma de suas estratégias metodológicas centrou-se na pesquisa qualitativa, que parte
dos encontros que os usuários produzem em algumas estações de cuidado9, nos
quais será possível identificar outros atores com quem se conecta, tornam-se fontes
de informação sobre o objeto em foco.
Espelha-se nesse modo de investigar, também, na busca da construção de
uma memória não institucional sobre o cuidado produzido, como forma de trazer para
a cena do estudo muito do que habita a oralidade dos processos de cuidado, em
particular, para fora das redes formais.
Para tanto, trabalha-se como eixo ordenador dos materiais de campo, desse
nomadismo com a noção de Usuário-Sombra2. Com o seu diário, o “Sombra”
implementa a dinâmica dos aspectos subjetivos e culturais, que vaza o geográfico e
que remete a outras ofertas de produção de rede e atenção à saúde que lhe faz mais
sentido. Elementos, situados em outros espaços materiais que não estão inscritos no
organograma hierárquico do sistema.
A metodologia “Sombra” permitiu um acesso, no plano da investigação, ao que
acontece nas práticas no campo da saúde seja quanto aos valores diversos nelas em
jogo, muitas vezes em conflito, seja quanto às consequências. Como um microscópio,
ela permitiu lançar um olhar muito nuançado e detalhado na problemática dos
vínculos sociais entre os atores diversos de uma rede de saúde11: ela tomou em
consideração, por um tempo suficientemente longo, efeito Pororoca12 onde os
trabalhadores se deixam afetar pelas relações e saberes, recebendo de volta, como
aprendizagem, o agir e o saber do outro um encontro entre as redes de vida criadas
pelos usuários nas quais eles estão imersos, o que as instituições públicas lhes
oferecem como cuidados e a composição tensa decorrente de tal encontro. O PET-
SAÚDE UFF acompanhou o cotidiano de alguns usuários das redes por onde fossem
(por isso a denominação “metodologia Sombra”) por um período de um ano. O esforço
foi buscar traçar o “território existencial”13 desses usuários e observar como eles
lidavam com os cuidados ofertados pelas redes e, vice e versa, como estas integram
discursivamente os efeitos dos cuidados que praticam.
Foram acompanhados usuários das redes de doenças crônicas, da rede
cegonha e de atenção psicossocial aos usuários de álcool e outras drogas. Neste
7

artigo vamos examinar duas situações recortadas dos diários de campo para
encaminhar a questão de discussão proposta neste artigo.
A pesquisa foi enviada e aprovada pelo comitê de ética e pesquisa da
Universidade Federal Fluminense, n° XXXX

Dois brevíssimos relatos

Uma grávida...
Veremos a enormidade de questões que uma situação, sob muitos aspectos
banal, pode suscitar. Tratou-se de uma jovem de 15 anos grávida de seu namorado,
maior de idade, com 18 anos. Nada de mais na situação, sobretudo porque eles
formavam um casal dispostos a viverem juntos e seguirem em frente na vida, com
acordo de ambas famílias, isto é, os avós da criança por vir. É verdade que será
alguma ambiguidade nesse pacto aparentemente pacífico que motivará uma
funcionária da maternidade a “judicializar” a questão encaminhando-a ao Conselho
Tutelar. Daí para frente, de maneira inacreditável, um conjunto grande de peripécias
se armam afetando de maneira dramática o arranjo de vida daquelas pessoas por
quase dois anos: criminalização do rapaz (seria um pedófilo?), ameaça de
abrigamento de moça (irresponsabilidade de seus pais?), risco de ela não poder
assumir a guarda de seu filho (ela e seus associados seriam ineptos?). Que situação!
Não é o caso aqui de denunciar os preconceitos, isso é um encaminhamento
tão fácil quanto tem se mostrado perfeitamente inútil, posto, em geral, não produzir
nenhuma transformação. Estamos diante do fato de que a ordem jurídica dá margem
para que seus operadores funcionem dessa forma e acionem os protocolos que lhe
dão consequências. Nem sempre é assim, mas, neste caso e em muitos outros, foi
assim. Ou seja, a impossibilidade de relativizar os parâmetros de decisão definidos
em seus protocolos para, no lugar disso, dar peso ao que tinha relevância na situação
por estar em acordo de uma maneira muito clara com as normas culturais daquele
grupo de pessoas. Vale dizer, um “formalismo” jurídico que faz tabula rasa das
diferenças culturais, já que os protocolos não as levam em consideração, a serviço
do quê? Não se sabe, mas é assim que a coisa acontece, nem sempre, como
dissemos, mas com uma frequência importante, ao ponto de contribuir
significativamente para a anomia social e o quadro de extensa e intensa precarização
dos modos de vida das classes populares.
8

De fato, não podemos dizer que essa ação da Justiça é exemplar, justamente
porque nem sempre é assim, contudo não deixamos de observar uma certa iniciativa
desta e de outras instâncias do Estado que vai na direção de formatar a vida das
pessoas, segundo um molde mais característico e presente nas classes médias
urbanas, o qual passa a ser o modelo da “Família Brasileira”, como se a cultura
brasileira fosse única e especificável facilmente. Molde, hoje em dia, muito plástico
por sinal, por exemplo, hoje admite-se a "união estável", as uniões homoparentais,
etc., mas isso de uma "menina" grávida não, quanto a isso, necessariamente, supõe-
se, a existência de algum tipo de violência ou ilícito, embora, como indicamos no caso,
tratar-se de uma situação banal, perfeitamente inscrita e admitida como modo de vida
num grupo social oriundo das classes populares(e)
Também intervém nesse caso o conceito de território14, esse fato, muitas vezes
exorbitante, de uma ação do Estado constituir novas regiões nos "territórios" das
pessoas por força do impacto catastrófico, análogos a um terremoto, que ela produz.
O caso acima é um desses exemplos dentre tantos: subitamente, no horizonte
existencial dessa família, aparece a prisão para o rapaz, a possibilidade de
abrigamento para a menina acompanhada da perda da guarda de seu filho, etc. Isso
tudo em nome do Bem e da Lei.
Não é demais repetir, nosso objetivo aqui não é caracterizar ou tipificar as
ações do Estado brasileiro, frequentemente elas são bastante razoáveis, outras vezes
não. Até diríamos que falta sistematicidade nas ações públicas do Estado brasileiro,
especialmente nas políticas públicas de cunho social – basta ver a desordem dos
sistemas diversos que abordam essa problemática. O importante aqui, visando
ressaltar a relevância da metodologia Sombra foi ela ter permitido acompanhar como
num microscópio uma ação que teve os desdobramentos descritos. Tal publicização
permite não apenas a crítica, mas também, e sobretudo, um encaminhamento
“clínico, isto é, como “tratar” no cotidiano uma situação como essa? Discutiremos esse
ponto mais adiante.

“Cracudos”
O Pet-Saúde na UFF também adentrou o campo da Saúde Mental,
especialmente os diversos dispositivos e redes (Assistência Social, DEGASE, abrigos
diversos, o campo jurídico, etc.) que recebiam usuários adolescentes de crack.
Procedíamos do modo indicado acima, seguíamos o usuário por onde fosse, seja
9

pelas instituições, seja pelas comunidades e ruas por onde perambulavam. Na


ocasião contávamos com uma rede bastante ativa, como por exemplo, o até então
denominado, Consultório de Rua e a Equipe de Referência para Infância e
Adolescência em Álcool e outras Drogas (ERIJAD)15, equipes que tinham como
missão, justamente, acompanhar esses usuários pelos territórios. O Consultório
dedicava-se mais à rua e a ERIJAD as instituições diversas, como abrigos, conselhos
tutelares, hospitais, etc.
Esses usuários têm uma característica comum que é desdobrarem suas vidas
estritamente no campo da motilidade; vivem em estado de agitação “psicomotora”.
Curiosamente muitos fugiram de suas famílias para as ruas; no entanto, mesmo tal
asserção é difícil sustentar, pois, é o caso de perguntar, fugiram da família..., que
família? Tinham ou têm família? Rapidamente se revela que a maioria de suas
famílias já estiveram envolvidas de muitas maneiras com as drogas, ao ponto de ser
problemático situar os grupos primários de socialização a que pertencem como
família, tal a precariedade dos vínculos, em geral, construídos muito mais em torno
do consumo de drogas em comum onde relações sexuais acontecem e produzem
filhos, do que de um projeto de vida endereçado ao mundo e à participação na vida
social a partir de uma moral normativa orientada para a participação no jogo social.
São pessoas que levam a vida entre uma peripécia e outra de modo, diríamos
segundo nossos critérios, “caótico”: são praticantes de pequenos furtos pelas ruas,
sempre em confronto com as autoridades, com relações difíceis nas comunidades e,
via de regra, recusadas, ou tratadas com muita violência pelas instituições que
deveriam cuidar delas16.
O PET-Saúde na UFF, com a metodologia Sombra, pôde seguir algumas
dessas pessoas por cerca de um ano e observar de perto toda a ordem de questões
que elas colocam para as instituições e nos territórios. O fato mais impressionante é
a extensão e a violência da segregação social que delimita o lugar social delas.
Praticamente não há muitas alternativas para elas, o modo mesmo de estarem
vinculadas umas às outras, desde o nascimento, em função do lugar social que
ocupam e que lhes foi destinado, não as habilitam a entrarem em um mundo onde
certas capacidades cognitivas e possibilidades de coordenação do corpo são cruciais.
A entrada da droga, em particular o crack, é um agravante significativo a mais. Todas
as instituições as recusam, sendo uma exceção este ou aquele que as acolhe. E não
é o caso de simplesmente indicar o preconceito dos quadros técnicos17 que as
10

recebem. A situação é muito mais delicada, pois, de fato, as pessoas encontram


justificativas “legítimas” para resusá-las, visto elas serem muito “distoantes” com
relação as regras básicas de comportamento na convivência social. Elas cheiram mal,
são muito agressivas, agitadas, qualquer distração elas furtam os objetos. A atitude
que elas produzem nas intituições é sempre defensiva e a resultante é, em geral, a
renovação da segregação – à rigor, salvo exceção, elas não são recebidas em lugar
algum. Eis uma frase exemplar de uma médica que as recebia numa emergência
justificando seu encaminhamento para uma outra instituição, “não vou cuidar de quem
vai me assaltar na próxima esquina” – e o “pepino” era encaminhado a explodir em
outro lugar.
Nós podemos assistir, a partir da metodologia Sombra, como se introduziu na
prática essas novas políticas muito bem-intencionadas e mesmo razoavelmente bem
formuladas de acolher esses usuários a partir de uma estratégia de Redução de
Danos18. Em primeiro lugar, como as redes foram surpreendidas por essas políticas,
o que terminou por reforçar ainda mais as atitudes defensivas produtoras de
segregação. Mais do que isso, como o planejamento e os recursos mobilizados para
as novas ações se mostraram não só insuficientes, como subsestimavam a extensão
e a gravidade do problema. Em segundo lugar, a partir dessa recepção pelas
instituições das novas políticas, como um debate e um conjunto de reações foi
suscitado ao qual o suporte fracassou em esclarecer a população e capacitar as
instituições para encaminhar, disseminar de maneira “justificada” os novos cuidados.
Índice disso foi os retrocessos que começaram a aparecer ainda no governo Dilma a
respeito da adoção das estrégias de Redução de Danos para o enfrentamento das
questões envolvendo uso de crack por crianças e adolescentes – por exemplo, o
incremento e o aumento indiscriminado das comunidades terapêuticas de orientação
religiosa19.
Apesar dessa avaliação pessimista que hoje se confirma no sentido das
dificuldades de se sustentar uma política de Redução de Danos, a metodologia
Sombra, por poder ter percorrido, na singularidade dos trajetos de alguns desses
usuários, pode iluminar e trazer para discussão aspectos que nunca foram entrevistos
nas formulações sobre a relação entre drogas e adolescência no contexto das
populações mais vulneráveis e pertencentes ao lupemproletariado. Sobretudo a
insuficiência de ações tópicas para questões cujas determinações implicam a
11

estrutura social global de maneira muito significativa e trazem a exigência de um


planejamento das ações muito mais bem coordenado e articulado intersetorialmente.

Discussão: o mundo como um circo, aberto às sugestões de uma análise da


perspectiva da jaula dos macacos...
O primeiro ponto a considerar é o fato da metodologia Sombra ter dado acesso
ao caráter multifacetado, contraditório e pleno de fissuras do que acontece nas
práticas ordinárias em função das supostas decisões programáticas das políticas
públicas cuja pretensão seria um cumprimento estrito e unívoco de seus protocolos.
Um exemplo gritante desse “desacerto” do Estado está nos esforços de levar a cabo
a Reforma Psiquiátrica no campo da Saúde, com todas as tensões internas que ela
traz consigo para o campo, e o fato de, frequentemente, ser a ordem jurídica quem
derroga as leis que a instituiu. Com efeito, as exigências de internação compulsória,
as ameaças de sequestro, nas duas situações que comentamos brevemente, foram
acionadas por dispositivos da Justiça – e os conflitos de toda ordem que emergem a
partir dessa ingerência.
Um segundo ponto diz respeito a que a metodologia Sombra indicou, pelo
acompanhamento que pôde fazer das situações, que mais produtivo do que
denunciar esses abusos, é criar cenários de interação, “coletivos” como se diz, dentro
dos quais os impasses observados podem ser remetidos e discutidos pelas equipes,
inclusive junto àqueles técnicos e autoridades que contestam as políticas. Nas duas
situações foi a insistência das esquipes em conversar que produziu uma
transformação efetiva. No caso de nossa grávida, a juíza terminou acompanhando
nossas avaliações, com uma parceria que foi possível articular com a promotoria e
dispensou o casal de maiores encargos. Eles tiveram seu filho, o qual, a equipe da
maternidade pode acompanhar até seu desfecho correto; a própria assistente social
que fizera a denúncia, no curso do processo, mudou de posição – o que demonstrou,
para esta situação particular, o valor de transformação do social que pode acontecer
quando o embate ideológico se desdobra em cenários de discussão ao invés de
enfrentamentos carregados de acusações. Claro, desde que, isso é importante, os
agentes das políticas estejam decididos a levá-las adiante dessa forma e insistam em
discutir, sempre renovando as oportunidades de discussão. No segundo relato que
trouxemos essa consequência foi ainda mais nítida. Boa parte dos conselheiros
tutelares eram favoráveis às internações compulsórias e no curso do processo
12

passaram defender as ações no território. Essa transformação só foi possível porque


as equipes volantes, aquelas cuja ação se davam nos territórios, o Consultório de
Rua e a ERIJAD insistiam em trazer as narrativas sobre as trajetórias errantes dos
usuários de crack para discussão nos hospitais, nos Conselhos Tutelares, nos
abrigos, etc. Foi notável como, pouco a pouco, elas tiveram êxito em aumentar o
escopo das discussões na lida cotidiana das situações e como isso foi transformador
das mentalidades.

Para concluir
Através da metodologia Sombra utilizada na execução do PET-Saúde na UFF
na rede de de Niterói, pudemos operar um deslocamento pequeno, mas importante,
do modo como situamos o aspecto civilizatório das políticas públicas no Brasil, em
particular aquelas encaminhadas pela Saúde – a Reforma Sanitária/SUS e a Reforma
Psiquiátrica. Trata-se mais de destacar a prática, a trajetória daquilo que efetivamente
acontece no dia a dia dos dispositivos e cenários de trabalho e convivência do que
discutir conteúdos programáticos, avaliações de conjunto, etc. A primeira observação
é o caráter conflagrado nos cenários das práticas. De modo algum a ação do Estado
é unívoca, embora as formulações políticas e os projetos programáticos das ações
possam pretender isso, inclusive visando à hegemonia do comando e orientação, a
prática se mostra muito complexa, com atravessamentos muito heterogêneos, ao
ponto de, pelo contrário, quase podermos concluir que o Estado pouco consegue no
sentido de conter a desordem e a anomia presente nas relações sociais no país. Na
verdade, uma avaliação que podemos fazer é, apesar das boas-intenções de muitas
políticas públicas elas, frequentemente, subestimam o campo sobre o qual visam
operar – valer dizer, isso é do reconhecimento geral, o investimento público está muito
aquém das demandas sociais que o motivam.
Enquanto instrumento de pesquisa, a metodologia Sombra destacou a
problemática do vínculo como decisiva para o enfrentamento das questões inerentes
ao campo da Saúde. Ela trouxe à luz a necessidade de se situar os debates nesse
nível e orientados para as práticas. Nesse sentido, ela implicou na exigência em se
discutir os arranjos entre teoria e prática, academia/pesquisa e a realidade dos
serviços e a própria ideia de formação profissional, quer dizer, “interprofissional” no
campo da Saúde. O PET incorpora professores, alunos, trabalhadores da rede de
várias áreas, além de usuários, em cenários de discussão, o que permite que as redes
13

de saúde retomem os efeitos das narrativas a respeito do que fazem e operam


concretamente, como momentos das práticas em curso. Isso incide nos trabalhos,
realimenta de maneira crítica seus processos e modos de implementação – na
verdade, a maneira como o concebemos foi um modo de pesquisa/ação. A esse
respeito registramos como foi notável o apoio que ele pôde dar às equipes no sentido
de insistirem numa atitude, digamos, “dialógica” em face de encarar os problemas
práticos de todo tipo que surgiam no cotidiano dos serviços. Os deslocamentos mais
promissores que pudemos observar nas práticas certamente tiveram como influência
fecunda o fato de muitos trabalhadores técnicos da rede estarem incorporados na
execução da pesquisa com a metodologia Sombra, junto com professores, alunos e
usuários.
O contraponto proposto por nosso texto, sob o patrocínio do PET-Saúde UFF
e da metodologia Sombra por ele ensejada, foi uma forma de abordar o processo
social enquanto prática política através da insistência em se criar cenários de
interlocução, “coletivos”, nos quais as narrativas das trajetórias de vida dos usuários
são retomadas nas discussões nos serviços levando em consideração as resistências
mesmas às políticas e, a partir daí, se encaminhar a prática como processo crítico,
isto é, que se auto-retifica através de sua problematização implicando o máximo
possível de atores em seu movimento. Ou seja, a proposição de uma práxis no
sentido mais preciso, próprio, desse termo. Isso em oposição a uma prática que visa
apenas a denunciar os aspectos retrógrados dos hábitos naturalizados e
discricionários em curso nas práticas, no marco exclusivamente de enfrentamentos
ideológicos, que sempre terminam por recaírem em lutas identitárias. Observamos
que no modo como propusemos nossa iniciativa, abria-se uma chance de
interlocução com a ordem cultural que revelou-se promissora quanto a
transformações nas pessoas, em seus valores sobretudo, no sentido de pensarem a
Saúde como produção e sustentação do cuidado – em suma, como cuidado
responsável de si e dos seus.

Referências
14

1. Souza ÂC. Estratégias de inclusão da saúde mental na atenção básica: um


movimento das marés. 1. ed. São Paulo: Hucitec; 2015.

2. Santos Carla de Gouvêa dos, Portugal Fernanda Tosta de Alcântara, Silva


Maria Alice Bastos, Souza Ândrea Cardoso de, Abrahão Ana Lúcia. Formação
em saúde e produção de vínculo: uma experiência PET-Saúde na rede de
Niterói, RJ, Brasil. Interface (Botucatu) [Internet]. 2015 [cited 2018 Apr 05] ;
19( Suppl 1 ): 985-993. Available from:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
32832015000500985&lng=en. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.0868

3. ABRAHÃO, Ana Lúcia et al. Care networks coordinating teaching and service
in health: a descriptive study. Online Brazilian Journal of Nursing, [S.l.], v. 12,
p. 686-88, oct. 2013. ISSN 1676-4285. Available at:
<https://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/4549%2A>. Date
accessed: 05 apr. 2018. doi:http://dx.doi.org/10.5935/1676-4285.20134549.

4. Andrade Eliane Oliveira de, Givigi Luiz Renato Paquiela, Abrahão Ana Lúcia.
A ética do cuidado de si como criação de possíveis no trabalho em Saúde.
Interface (Botucatu) [Internet]. 2018 Mar [citado 2018 Abr 05] ; 22( 64 ): 67-
76. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
32832018000100067&lng=pt. Epub 19-Out-2017.
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0643.

5. Guljor Ana Paula. RESENHA. Cad. Saúde Pública [Internet]. 2017 [cited 2018
Apr 05] ; 33( 12 ): e00156817. Available from:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X2017001208002&lng=en. Epub Dec 18, 2017.
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00156817.

6. Silva Neide Emy Kurokawa e, Sancho Leyla Gomes, Figueiredo Wagner dos
Santos. Entre fluxos e projetos terapêuticos: revisitando as noções de linha do
cuidado em saúde e itinerários terapêuticos. Ciênc. saúde coletiva [Internet].
15

2016 Mar [citado 2018 Abr 05] ; 21( 3 ): 843-852. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232016000300843&lng=pt. http://dx.doi.org/10.1590/1413-
81232015213.08572015.

7. Abrahao AL, Merhy EE, Gomes MPC, Tallemberg C, Chagas MS, Rocha M,
Santos NL P, Silva E, Vianna L. O pesquisador in-mundo e o processo de
produção de outras formas de investigação em saúde. In: Gomes MPC, Merhy
EE , editores. Lugar Comum. Rio de Janeiro: UFRJ; 2013.133-144.

8. Quinderé Paulo Henrique Dias, Jorge Maria Salete Bessa, Franco Túlio
Batista. Rede de Atenção Psicossocial: qual o lugar da saúde mental?. Physis
[Internet]. 2014 Mar [cited 2018 Apr 06] ; 24( 1 ): 253-271. Available from:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
73312014000100253&lng=en. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-
73312014000100014.

9. Costa Annette, Silveira Marília, Vianna Paula, Silva-Kurimoto Teresa. Desafios


da Atenção Psicossocial na Rede de Cuidados do Sistema Único de Saúde do
Brasil. Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental [Internet]. 2012
Jun [citado 2018 Abr 06] ; ( 7 ): 46-53. Disponível em:
http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1647-
21602012000100008&lng=pt

10. MERHY, Emerson Elias ; GOMES, M. P. C. ; SILVA, E. ; SANTOS, M. F. L. ;


CRUZ, K. T. ; FRANCO, Túlio Batista . Redes vivas: multiplicidades gerando
as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e
produção do conhecimento em saúde. Divulgacao em Saude para Debate, v.
52, p. 153-164, 2014.

11. SILVA, S. F. Organização de redes regionalizadas e integradas de atenção à


saúde: desafios do Sistema Único de Saúde (Brasil). Ciência & Saúde Coletiva,
Rio de Janeiro, v.16, n. 6, p.2753-2762, 2011. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/csc/v16n6/14.pdf
16

12. FIGUEIREDO, E. B. L. ; Abrahão, Ana Lucia ; Gouvêa, Mônica Villela . EFEITO


POROROCA NAS REDES DE EDUCAÇÃO PERMANENTE: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA. REBEN - REVISTA BRASILEIRA DE ENFERMAGEM, 2017.

13. Guattari F. Caosmose. Rio de Janeiro: Ed. 34; 1992

14. Furtado Juarez Pereira, Oda Wagner Yoshizaki, Borysow Igor da Costa, Kapp
Silke. A concepção de território na Saúde Mental. Cad. Saúde Pública
[Internet]. 2016 [cited 2018 Apr 11] ; 32( 9 ): e00059116. Available from:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X2016000902001&lng=en. Epub Oct 10, 2016.
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00059116

15. Fernandes, Francisco Leonel F.. (2014). Para uma clínica do uso de álcool e
drogas com adolescentes das comunidades do Rio de Janeiro. Ágora: Estudos
em Teoria Psicanalítica, 17(spe), 39-49. https://dx.doi.org/10.1590/S1516-
14982014000300004

16. Lancetti, A. (2015). Contrafissura e Plasticidade Psíquica. São Paulo: Hucitec.

17. Santos FF, Ferla AA. Mental health and primary care in alcohol and drug users
care.
Interface (Botucatu). 2017; 21(63):833-44.

18. Andrade Tarcísio Matos de. Reflexões sobre políticas de drogas no Brasil.
Ciênc. saúde coletiva [Internet]. 2011 Dec [cited 2018 May 05] ; 16( 12 ):
4665-4674.

19. BOLONHEIS-RAMOS, Renata Cristina Marques; BOARINI, Maria


Lucia.Comunidades terapêuticas: “novas”perspectivas e propostas higienistas.
17

História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.22, n.4, out.-dez.


2015,p.1231-1248.

Você também pode gostar