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Francisco Fernandes(a)
(a)
Instituto de Psicologia. Universidade Federal Fluminense. Rua Prof. Marcos
Waldemar de Freitas Reis, s/n, bloco O. Gragoatá. Niterói, RJ, Brasil. 24210-201.
francisco.lff@gmail.com
(b)
Departamento de Enfermagem Médico Cirúrgica. Escola de
Enfermagem.Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ, Brasil.
abrahaoana@gmail.com
(c)
Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Psiquiátrica. Escola de
Enfermagem. Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ, Brasil.
andriacsouza@gmail.com
Resumo
Neste texto nos propusemos examinar as vulnerabilidades das reformas sanitária e
psiquiátrica quanto a poder cumprir efetivamente com esses desígnios. Para tanto,
exploramos os resultados que alcançamos com a metodologia “Sombra” na formação
de profissionais de saúde no acompanhamento aos usuários em seus territórios no
contexto do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-SAÚDE)
desenvolvido pela Universidade Federal Fluminense (UFF) nas redes de atenção no
município de Niterói no ano de 2015. Estudo de abordagem qualitativa, que adotou a
perspectiva da narrativa e trabalhou com o conceito de usuário-guia para
compreender como se produzem as estações de cuidado. A metodologia Sombra
destacou a problemática do vínculo como decisiva para o enfrentamento das
questões inerentes ao campo da Saúde. Por meio desta, pudemos operar um
deslocamento pequeno, mas importante, do modo como situamos o aspecto
civilizatório das políticas públicas no Brasil, em particular aquelas encaminhadas pela
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Saúde. O contraponto proposto por nosso texto, sob o patrocínio do PET-Saúde UFF
e da metodologia Sombra por ele ensejada, foi uma forma de abordar o processo
social enquanto prática política através da insistência em se criar cenários de
interlocução, “coletivos”, nos quais as narrativas das trajetórias de vida dos usuários
são retomadas nas discussões nos serviços levando em consideração as resistências
mesmas às políticas e, a partir daí, se encaminhar a prática como processo crítico,
isto é, que se auto-retifica através de sua problematização implicando o máximo
possível de atores em seu movimento.
Abstract
Resumen
Introdução
Um trabalho da maior magnitude que se coloca para todos aqueles
concernidos em fazer avançar e prevalecer os princípios civilizatórios das reformas
sanitárias, o Sistema Único de Saúde (SUS), mais concretamente e a reforma
psiquiátrica, é o de examinar suas vulnerabilidades quanto a poder cumprir
efetivamente com esses desígnios. A importância dessa formulação se justifica por
ela mesma, especialmente considerando a experiência e seu efeitos que os últimos
acontecimentos que atingem as redes de saúde, seus programas e ações, em função
da crise institucional pela qual o país atravessa.
A complexidade de tal tarefa envolve desde a exigência de nos
reposicionarmos politicamente, revermos as estratégias argumentativas de
justificação, avaliarmos as estratégias e as táticas em curso nos enfrentamentos
atuais, até reexaminarmos certos fundamentos teóricos e práticos das ações a luz
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_____________
(d)
O aluno se coloca ao lado do usuário e segue seus passos por todos os lugares
que o usuário se locomove dentro e fora do serviço, andando junto dele, fazendo
sombra nos espaços de saúde, nas ruas e nos pontos das redes formais e informais
desenhadas pelo usuário para o seu cuidado. O método tem a finalidade de mapear
a rede de saúde por meio dos percursos e apontamentos do usuário.
e, mais recentemente, desse avanço delas para ações nos territórios, estas correm o
risco sério de se extraviarem ao não considerarem os diversos matizes das
resistências a elas em seus valores específicos. Dado o valor de ideal dessas
propostas e de avanço político frente ao que está instituído na atualidade com o qual
se colocam, elas tendem a unificar, sobretudo no cotidiano das práticas, toda e
qualquer resistência a elas como oposição a ser combatida.
Decorre daí a impossibilidade delas se retificarem em função do caráter
múltiplo do social com o corolário delas se fixarem numa ontologia que desconhece
a natureza processual das intervenções no vínculo social. Especialmente em razão
do modo como elas se concebem enquanto protocolos técnicos ou de diretrizes
políticas, o qual, frequentemente, vemos que “desconhecem” as articulações dessas
intervenções com a cultura – como se fossem instruções que, pelo fato de terem sido
encaminhadas com os melhores propósitos, devessem, por isso, simplesmente
serem acatadas por todos sem delongas, quer pela população em geral, quer pelos
trabalhadores da saúde já instituídos em outros modos de operar.
É certo que a implementação de novos modos de intervenção sempre se
coloca como negadora e relativizadora dos modos anteriores, não fosse assim, não
haveria porque instituir novos modos de cuidados. Porém, essa atitude negadora tem
de estar regulada por seu valor dialético no sentido de tensionar para colocar em
marcha um movimento de transformação que, certamente, no curso do processo vai
incluir o que, nos modos anteriores, tinha eficácia e relevância para a população. É
difícil balizar e manejar essa atitude, digamos, “ótima” para que um processo
efetivamente opere uma transformação “qualitativa”, isto é, que vá além da execução
de protocolos técnicos ou de diretrizes políticas, consolidando novos valores, no caso
do campo da saúde, quanto aos “cuidados de si”4. O risco quando essa atitude não é
cultivada é o autoritarismo, ou seja, uma prática regulada por princípios identitários
visando realizar o novo ideal emergente, no lugar de uma práxis autêntica na qual as
identidades são provisórias e efeitos de uma dinâmica da diferença mais
comprometida com o movimento do que fixar um novo estado de coisas.
A essas dificuldades, que consideramos, “metodológicas”, isto é, o cuidado
que devemos sustentar quanto ao processo social mais amplo quando as
intervenções, além de técnicas, incidem no campo da cultura, soma-se a crise
institucional pela qual o país atravessa e seus efeitos sobre o campo da saúde. Os
riscos daí decorrentes que temos visto, aqui e ali, das políticas públicas, em suas
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artigo vamos examinar duas situações recortadas dos diários de campo para
encaminhar a questão de discussão proposta neste artigo.
A pesquisa foi enviada e aprovada pelo comitê de ética e pesquisa da
Universidade Federal Fluminense, n° XXXX
Uma grávida...
Veremos a enormidade de questões que uma situação, sob muitos aspectos
banal, pode suscitar. Tratou-se de uma jovem de 15 anos grávida de seu namorado,
maior de idade, com 18 anos. Nada de mais na situação, sobretudo porque eles
formavam um casal dispostos a viverem juntos e seguirem em frente na vida, com
acordo de ambas famílias, isto é, os avós da criança por vir. É verdade que será
alguma ambiguidade nesse pacto aparentemente pacífico que motivará uma
funcionária da maternidade a “judicializar” a questão encaminhando-a ao Conselho
Tutelar. Daí para frente, de maneira inacreditável, um conjunto grande de peripécias
se armam afetando de maneira dramática o arranjo de vida daquelas pessoas por
quase dois anos: criminalização do rapaz (seria um pedófilo?), ameaça de
abrigamento de moça (irresponsabilidade de seus pais?), risco de ela não poder
assumir a guarda de seu filho (ela e seus associados seriam ineptos?). Que situação!
Não é o caso aqui de denunciar os preconceitos, isso é um encaminhamento
tão fácil quanto tem se mostrado perfeitamente inútil, posto, em geral, não produzir
nenhuma transformação. Estamos diante do fato de que a ordem jurídica dá margem
para que seus operadores funcionem dessa forma e acionem os protocolos que lhe
dão consequências. Nem sempre é assim, mas, neste caso e em muitos outros, foi
assim. Ou seja, a impossibilidade de relativizar os parâmetros de decisão definidos
em seus protocolos para, no lugar disso, dar peso ao que tinha relevância na situação
por estar em acordo de uma maneira muito clara com as normas culturais daquele
grupo de pessoas. Vale dizer, um “formalismo” jurídico que faz tabula rasa das
diferenças culturais, já que os protocolos não as levam em consideração, a serviço
do quê? Não se sabe, mas é assim que a coisa acontece, nem sempre, como
dissemos, mas com uma frequência importante, ao ponto de contribuir
significativamente para a anomia social e o quadro de extensa e intensa precarização
dos modos de vida das classes populares.
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De fato, não podemos dizer que essa ação da Justiça é exemplar, justamente
porque nem sempre é assim, contudo não deixamos de observar uma certa iniciativa
desta e de outras instâncias do Estado que vai na direção de formatar a vida das
pessoas, segundo um molde mais característico e presente nas classes médias
urbanas, o qual passa a ser o modelo da “Família Brasileira”, como se a cultura
brasileira fosse única e especificável facilmente. Molde, hoje em dia, muito plástico
por sinal, por exemplo, hoje admite-se a "união estável", as uniões homoparentais,
etc., mas isso de uma "menina" grávida não, quanto a isso, necessariamente, supõe-
se, a existência de algum tipo de violência ou ilícito, embora, como indicamos no caso,
tratar-se de uma situação banal, perfeitamente inscrita e admitida como modo de vida
num grupo social oriundo das classes populares(e)
Também intervém nesse caso o conceito de território14, esse fato, muitas vezes
exorbitante, de uma ação do Estado constituir novas regiões nos "territórios" das
pessoas por força do impacto catastrófico, análogos a um terremoto, que ela produz.
O caso acima é um desses exemplos dentre tantos: subitamente, no horizonte
existencial dessa família, aparece a prisão para o rapaz, a possibilidade de
abrigamento para a menina acompanhada da perda da guarda de seu filho, etc. Isso
tudo em nome do Bem e da Lei.
Não é demais repetir, nosso objetivo aqui não é caracterizar ou tipificar as
ações do Estado brasileiro, frequentemente elas são bastante razoáveis, outras vezes
não. Até diríamos que falta sistematicidade nas ações públicas do Estado brasileiro,
especialmente nas políticas públicas de cunho social – basta ver a desordem dos
sistemas diversos que abordam essa problemática. O importante aqui, visando
ressaltar a relevância da metodologia Sombra foi ela ter permitido acompanhar como
num microscópio uma ação que teve os desdobramentos descritos. Tal publicização
permite não apenas a crítica, mas também, e sobretudo, um encaminhamento
“clínico, isto é, como “tratar” no cotidiano uma situação como essa? Discutiremos esse
ponto mais adiante.
“Cracudos”
O Pet-Saúde na UFF também adentrou o campo da Saúde Mental,
especialmente os diversos dispositivos e redes (Assistência Social, DEGASE, abrigos
diversos, o campo jurídico, etc.) que recebiam usuários adolescentes de crack.
Procedíamos do modo indicado acima, seguíamos o usuário por onde fosse, seja
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Para concluir
Através da metodologia Sombra utilizada na execução do PET-Saúde na UFF
na rede de de Niterói, pudemos operar um deslocamento pequeno, mas importante,
do modo como situamos o aspecto civilizatório das políticas públicas no Brasil, em
particular aquelas encaminhadas pela Saúde – a Reforma Sanitária/SUS e a Reforma
Psiquiátrica. Trata-se mais de destacar a prática, a trajetória daquilo que efetivamente
acontece no dia a dia dos dispositivos e cenários de trabalho e convivência do que
discutir conteúdos programáticos, avaliações de conjunto, etc. A primeira observação
é o caráter conflagrado nos cenários das práticas. De modo algum a ação do Estado
é unívoca, embora as formulações políticas e os projetos programáticos das ações
possam pretender isso, inclusive visando à hegemonia do comando e orientação, a
prática se mostra muito complexa, com atravessamentos muito heterogêneos, ao
ponto de, pelo contrário, quase podermos concluir que o Estado pouco consegue no
sentido de conter a desordem e a anomia presente nas relações sociais no país. Na
verdade, uma avaliação que podemos fazer é, apesar das boas-intenções de muitas
políticas públicas elas, frequentemente, subestimam o campo sobre o qual visam
operar – valer dizer, isso é do reconhecimento geral, o investimento público está muito
aquém das demandas sociais que o motivam.
Enquanto instrumento de pesquisa, a metodologia Sombra destacou a
problemática do vínculo como decisiva para o enfrentamento das questões inerentes
ao campo da Saúde. Ela trouxe à luz a necessidade de se situar os debates nesse
nível e orientados para as práticas. Nesse sentido, ela implicou na exigência em se
discutir os arranjos entre teoria e prática, academia/pesquisa e a realidade dos
serviços e a própria ideia de formação profissional, quer dizer, “interprofissional” no
campo da Saúde. O PET incorpora professores, alunos, trabalhadores da rede de
várias áreas, além de usuários, em cenários de discussão, o que permite que as redes
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Referências
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