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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE RIBEIRÃO PRETO

CURSO DE PSICOLOGIA

PSICOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE

Trabalho reflexivo referente às Políticas Prioritárias e Estrutura Organizativa do SUS

(unidades 5 e 6)

RIBEIRÃO PRETO

2020
Introdução

Ao que se sabe, atualmente os profissionais da psicologia já têm papéis definidos

dentro do Sistema Único de Saúde. Porém, historicamente a construção deste papel dentre

este sistema de saúde perpassou por algumas estruturas organizativas do SUS que limitaram a

atuação desses profissionais, por fatores que são justificáveis (dada à própria necessidade de a

própria profissão se consolidar para poder refletir sobre o papel deste profissional dentro deste

sistema de saúde), mas não fixos e totalmente válidos. Para que se fale então dos lugares que

esses profissionais ocupam e quais ainda podem ocupar, faz-se necessário compreender

primeiramente, a estrutura e o modo com que a atuação dele foi se constituindo a partir do

amadurecimento de ideias que ele vai envolvendo no decorrer das mudanças no âmbito social

que ocorrem.

A estrutura organizativa do SUS

Ainda que o SUS seja um sistema novo e com muitas falhas, a lembrança de sua

ausência (antes dos anos 80) deve estar sempre à espreita, a fim de se subtrair das inumeráveis

críticas aquelas que sejam válidas e construtivas, no sentido de desconstruir para aprimorar ao

invés de desintegrar para destruir. É preciso entender que nas críticas à estrutura do sistema, a

elaboração do SUS esteve sempre vinculada à concepção de saúde enquanto direito e não

mais apenas como mercadoria ou caridade (Santas Casas de Misericórdia), subentendendo-se

que a destruição disso seria o produto de um retrocesso. Posto isso, a desintegração deste

sistema por mero capricho da ignorância não é construtivo (até mesmo no sentido de

construir), mas sim destrutivo e genocida (porque estaríamos falando de milhares de vidas que

usufruem deste serviço). É preciso tomar sempre o cuidado de entender a constituição

histórica do SUS para exercer críticas de forma valorativa e, assim, melhorá-lo de fato.
As escolhas e os rumos tomados pelo movimento sanitarista culminaram na criação de

um sistema com características de solidariedade e de responsabilização social do Estado o

qual, por conta disso, buscou preservar princípios e diretrizes constitucionais, tais como

universalidade, equidade, integralidade, descentralização, regionalização e participação da

comunidade, a fim de consolidar as pautas apontadas por esse movimento. Por outro lado, no

seu processo de consolidação, outras questões ganharam enfoque, tais como a contribuição

privada, as precarizações nas relações de trabalho, o abandono de 30% da seguridade social, a

desregulamentação da demanda do SUS, retardamento ou impedimento de possíveis reformas

de aparelhos do Estado, pouca intersetorialidade, tetos financeiros estaduais e municipais, e o

foco no serviço de agentes comunitários e ESF (Equipes de Saúde da Família). Esses aspectos

podem ser repensados e criticados sem que, para isso, se faça necessário reduzir à inexistência

do sistema e da saúde que hoje, legislativamente, se apoia enquanto direito assegurado pelo

Estado.

A partir disso, quero retomar sobre as críticas e informar que este trabalho não tem o

objetivo de especificar o que se pode ou não criticar no SUS, mas sim faz considerações

prévias sobre o rumo que tomaremos a partir daqui, focando no profissional da psicologia

enquanto agente transformado e transformador naquilo que vem se entendendo como saúde.

A estrutura do SUS vêm sendo inovada a partir de algumas reflexões feitas, sendo uma

delas, aquelas que culminaram na elaboração do conceito de Atenção Básica - AB (ou

Atenção Primária), enquanto ações e serviços de atenção em saúde que envolveriam tudo

aquilo que nesta macroestrutura institucional seria considerado como um primeiro contato,

uma “porta de entrada” a este serviço. É aquilo que introduz, como a contracapa de um livro,

ao seu conteúdo, à sua rede de atribuições. Não obstante, ao mesmo tempo que essa

setorização do atendimento conduziu a avanços na definição de papéis dos profissionais

inseridos neste sistema, ela deu abertura para perspectivas de uma restrição não colaborativa,
ao invés de abertura, que estariam presentes na relação entre a atenção básica e os outros

níveis de atenção no decorrer da execução de seus serviços e ações (dado pela perspectiva

trazida pela Pirâmide Assistencial). E por falarmos em colaboração, precisamos

invariavelmente falar da Redes de Atenção à Saúde (RAS), uma vez que ela é o centro que

integra uma nova perspectiva de olhar para a atenção em saúde. Nessa perspectiva, observa-se

a transição de um atendimento focado apenas no nível de atenção, que se amplia para o tipo

de atenção (ou tipo de especialização), em função das características de cada região. Algumas

consequências diretas desta nova forma de se organizar reside na relação dinâmica entre os

níveis de atuação e nos seus impactos na relação interdisciplinar enquanto relação

colaborativa. A Rede de Atenção à Saúde integra um conjunto de redes, são elas a RAPS

(Rede de Atenção Psicossocial), a Rede de Atenção Materno-Infantil (ou Rede Cegonha),

Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas, RUE (Redes de Urgência e

Emergência) e a Rede de Cuidado à Pessoa com Deficiência.

Para se falar da estrutura do sistema, é preciso falar sobre os diferentes papéis

existentes na gestão da saúde. Essa, pode ser realizada em cinco dimensões: individual,

familiar, profissional, organizacional, sistêmica e societária (Cecílio, 2011). A gestão da

saúde perpassa todas essas dimensões buscando a saúde coletiva, a saúde do usuário (saúde

enquanto autonomia na busca pela abertura àquilo que é outro além de si mesmo, colocada

por Beardsworth), do nível micropolítico ao nível macropolítico. A dificuldade nessa gestão é

justamente a oposição entre a micropolítica e a macropolítica: imagine um telefone sem fio no

qual cada pessoa compreende 90% do que a outra diz e, ao chegar na 6ª pessoa, ela deverá

tomar providências a partir do que a primeira disse - matematicamente isso resultaria em

(9/10)^5 = 0.59 ou 59% -, ou seja, a mensagem chega com cerca de 60% de precisão à última

pessoa. Agora, imagine muitos usuários reclamando, fazendo cobranças, funcionários

também, as dificuldades de comunicação não são fáceis e as informações não são


completamente conhecidas ou difundidas, a falta de uma uniformidade entre as gestões gera

desentendimentos entre os níveis diferentes de macro e micropolítica, pois não existe saúde de

qualidade com funcionalismo extremo ou com desordem). É claro que a macropolítica tem a

seu favor o poder e, com isso, sabe-se que a micropolítica é menos “ouvida”, pode-se dizer,

mas para a construção de uma saúde com gestão de qualidade, com autonomia e

funcionamento sem funcionalismo, é preciso escutar a micropolítica com atenção e a partir

daí enxergar as possibilidades de recursos e financiamentos, interligação de redes. Outra

dificuldade vinculada à macropolítica funcionalista é a própria exclusão dos usuários, pois

quem de fato está mais próximo ao usuário são os trabalhadores, é a micropolítica, essa

exclusão tem traços de centramento ineficiente e, como diz Cecílio (2007), “...é a busca

incansável pela eficiência, por resultados, por previsibilidade, controle e visibilidade,

centralmente às custas da funcionalização crescente e obsessiva do trabalho em saúde, em

todas as suas dimensões...”.

Pensando que a atuação profissional do psicólogo nesse sistema se articula de acordo

com as posições que ele vai tomar perante cada tipo de demanda, cada unidade de

atendimento que ele se situa e perante cada caso individual

A leitura dos artigos de Cecílio provocou algumas inquietações. A primeira, sobre se

de fato os usuários querem participar da construção da saúde pública e a outra é se eles

realmente podem contribuir. Vou me atentar à primeira com uma breve reflexão sobre a

exclusão das pessoas na formulação de políticas públicas e da cidadania em si, pois não se

aprende a ser cidadão, ou melhor, não se ensina a ser cidadão, a proposta do SUS de incluir o

usuário é também educativa, mas por isso dificultosa, os usuários não são “alunos” eficientes

se nunca estudaram cidadania, se não a praticam, se nem sequer sabem o que é cidadania, não

se estuda história para saber sobre a construção da sociedade nem os porquês de ela ser assim,

com certas regras fixas, que na maioria das vezes são colocadas como imutáveis, não se
estuda sobre sociedade e não se sabe as formas de funcionamento do sistema em si e, quando

se sabe, é “pelas metades”; Como promover cidadania ao mesmo tempo que se constrói o

SUS, como inserir cidadãos que não foram ensinados a transformar o público, mas sim

criticá-lo? E quem é que consegue unir as reclamações válidas com as possibilidades de

efetivação. A segunda inquietação é ainda sobre a participação do usuários, mas agora me

refiro especificamente àqueles que em algum momento são ou serão indevidamente

incoerentes ou ignorantes sobre o que ocorre com o SUS - me refiro a usuários ou cidadãos

comuns como os que invadiram hospitais durante a pandemia, após recomendações de Jair

Bolsonaro. O que fazer quando a participação dos usuários e o querer deles for em oposição

aos funcionários ou à macropolítica ou até mesmo à criação de políticas públicas? Escolhe-se

quais usuários têm opiniões válidas e quais não têm? Eu imagino que esse sempre foi um

problema, mas o que o cenário político atual trouxe foi uma maior participação pública e isso

pode acarretar bons feitios ou desastrosas consequências. A quebra da micropolítica através

da ignorância que acredita em suposições ou hipóteses criadas por pessoas com maior poder

só coloca de fato como os cidadãos não são ensinados a ter cidadania e a entender como

foram criadas as políticas públicas, o Estado em si, a Sociedade em si ec caso não seja

possível retornarmos essa nova onda de atitudes participativas para uma construção de

qualidade e sábia do poder público, retrocessos podem acontecer - como já estão acontecendo

- e a crítica pela crítica se torna mais comum do que a crítica construtiva, e a participação do

usuário na construção do SUS torna-se desastrosa.

Passada esta digressão, é preciso pensar sobre soluções voltadas para micropolítica

descentralizada e, para isso, não existem fórmulas prontas ou soluções rápidas. Os usuários

perfeitos não existem de um lado e os profissionais incansáveis também não existem do outro

(a percepção de demanda interminável pode existir para sempre, assim como a incompreensão

do que os usuários precisam de fato - será que os usuários sabem o que quer, também? será
que alguém sempre sabe o que quer, também?), não existem agentes perfeitos dentro do

sistema de saúde porque todos eles são humanos, os funcionários, os usuários e os gestores,

antes mesmo de um usuário ser um paciente, ele é um humano, assim como o funcionário o é

antes de ocupar sua função, assim como o gestor é e, compreender isso, é a maior dificuldade

de todos que frequentam o sistema. Não é propondo uma solução sobre o que deve ser feito,

mas compreender que o outro também é humano torna o contato mais saudável e menos

funcional.

Dentro dessas situações todas citadas, o profissional da psicologia, enquanto estudante

do ser humano e na busca de compreendê-lo mais (não compreendê-lo totalmente), pode atuar

para além de suas atuações já existentes (CAPS, NASF, equipes multiprofissionais), na busca

de tentativas de melhorar algumas falhas do sistema, como se apoiar na comunicação não

violenta para criar menores atritos entre gestão e funcionários, no propósito de tornar a gestão

mais colaborativa e comunitária, menos isolada dos funcionários e menos fixa, com uma

escuta que permita uma democracia participativa na construção da própria gestão enquanto

“colada” aos funcionários, não mais distante. Ademais, o profissional da psicologia teria esse

papel de “cola amortecedora” para que nas dificuldades que ocorrerem haja menor atrito para

a equipe (não para a gestão em si, ou para os funcionários em si, mas para a equipe como um

todo).

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