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Ouço falar sobre a atenção básica à saúde antes mesmo de saber o que era o Sistema Único de
Saúde (SUS) e entender seu funcionamento. Minha mãe é Agente Comunitária de Saúde
(ACS) há mais de 24 anos em uma comunidade do interior do Ceará, e nossas vidas, minha e
de minha família, sempre foram marcadas por seu trabalho desenvolvido junto aos
profissionais da Unidade Básica de Saúde (UBS) e à comunidade.
O município tem, de acordo com o último censo do IBGE, em torno de 48 mil habitantes. Sua
rede de atenção pública à saúde conta com dezoito UBS’s, cada uma com uma equipe de
Estratégia Saúde da Família (ESF); tem em torno de 130 ACS’s, em sua maioria mulheres;
um Hospital Geral e Maternidade, um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e uma equipe
do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF). Nos serviços privados de saúde têm surgido
nos últimos anos, em sua maioria, clínicas odontológicas com oferta de serviços a preços
populares, e mais recentemente, nos últimos dois anos, clínicas com outros especialistas,
como fisioterapeutas, nutricionistas e psicólogos, e distintas especialidades médicas, tendo
como destaque a psiquiatria.
Conheço alguns dos desafios do trabalho na atenção primária à saúde por meio dos relatos da
rotina de trabalho dos ACS’s, dentre eles estão: rotatividade da equipe de ESF que é
vulnerável a sazonalidades e conveniências eleitorais; sistema de organização e cadastramento
manual de famílias e seus históricos de tratamento que demandam tempo e constantes
atualizações, também manuais, nos registros das UBS’s; além da falta de material adequado
para a realização do trabalho, em especial dos ACS’s que acontece predominantemente no
território, já que a ida à UBS acontece em momentos pontuais do trabalho.
Quero destacar outro desafio que tem relação mais próxima com a escolha da temática da
inserção profissional na rede. Diz respeito à falta de preparação com que alguns profissionais
chegam ao serviço de atenção básica à saúde, despreparo marcado pelo desconhecimento do
funcionamento da rede, dificuldades em trabalhar em equipes com profissionais de formações
distintas, dificuldades em reconhecer os limites de sua especialidade técnica, entraves na
gestão administrativa da UBS, além de entraves no desenvolvimento de ações coletivas de
promoção e prevenção à saúde.
A equipe do NASF é composta por áreas da saúde como nutrição, fisioterapia e psicologia
(fazem parte da equipe duas profissionais que atendem à sede do município e um que atende
aos distritos). O contato com as psicólogas do NASF se dar por meio de encaminhamentos. É
feito um “calendário de rodízio mensal” que é repassado para cada UBS com os dias
separados para atender a população coberta por aquela unidade. Os agendamentos são
realizados na unidade e os usuários são encaminhados para a sede do NASF onde os
atendimentos acontecem. O encaminhamento é realizado por meio de uma “referência
interna”, realizada em duas vias, após o atendimento psicológico uma contrarreferência é
realizada para que o paciente retorne à sua unidade.
O trabalho com o CAPS foi definido como “atenção a casos mais graves, que precisam de
uma intervenção medicamentosa”. O trabalho também é realizado por meio de atendimentos
individuais. Não foi possível identificar como a distinção dos encaminhamentos é realizada ou
que profissionais fazem esse procedimento, talvez isso seja um reflexo de como os serviços
estão inseridos na rede atenção à saúde. É importante destacar mais uma vez que essas
informações e percepções são fruto da observação do trabalho dos ACS’s, o que não significa
dizer que eles desconhecem o funcionamento dos outros dispositivos que compõem a rede, a
maioria das ACS’s da UBS que cobrem a área em que minha família reside tem mais de 15
anos de profissão e acompanharam diversas mudanças ao longo dos anos. Essa dificuldade de
diferenciar, ou melhor, de especificar a atuação da psicóloga do CAPS da atuação das
psicólogas do NASF talvez seja uma questão para elas.
O Apoio Matricial objetiva “oferecer tanto retaguarda assistencial quanto um suporte técnico-
pedagógico às equipes de referência” (CUNHA; CAMPO, 2011, p.964). Um aspecto
importante a ser destacado é a característica de intersetorialidade existente nessa metodologia,
logo, outras equipes que não são consideradas da área da saúde podem ser matriciadas, como
uma equipe escolar ou de uma ONG inserida no território. A Equipe de Referência objetiva a
ampliação das possibilidades de construção de vínculos entre os profissionais e os usuários do
serviço. Os profissionais de referência “são aqueles que têm a responsabilidade pela
coordenação e condução de um caso individual, familiar ou comunitário” (CUNHA; CAMPO,
2011, pp.964-965).
Benevides (2005) coaduna com essa reflexão quando aponta a existência de uma reprodução
da separação entre produção e produto, efeito dos processos de modulação do capitalismo,
refletida também na separação entre processo de subjetivação e sujeito, clínica e política,
indivíduo e coletividade, Psicologia e SUS. A autora reflete que a experiência clínica é
entendida como a possibilidade de devolução do sujeito ao plano da subjetivação, ao plano da
produção que é também o plano coletivo. A superação dessas dicotomias e a ampliação de um
debate acerca das interfaces entre a Psicologia e o SUS podem ser facilitadas pela
consideração da inseparabilidade entre os processos de subjetivação dos sujeitos e o plano
coletivo, bem como pela busca de autonomia e corresponsabilização nos processos de saúde,
além da abertura à intercessão com outros saberes.
Quanto ao último aspecto citado por Benevides (2005), que diz respeito à transversalidade,
Cunha e Campos (2011) apontam desafios epistemológicos na saúde pública e ferramentas
conceituais de transformação epistêmica que dialogam com as reflexões da autora. O desafio
é de ordem epistemológica porque diz respeito às especificidades de atuação dos profissionais
que tendem a “estabelecer um tipo de relação com o saber que busca constantemente a
definição e afirmação de fronteiras rígidas” (p. 967). A delimitação de tais fronteiras
impossibilita que a incerteza e erro tenham espaço no processo de cuidado, e acabam por
retornar como entraves desse mesmo processo. A fim de fornecer ferramentas que ajudem a
repensar essa lógica de organização, os autores apresentam os conceitos de “núcleo” e
“campo de conhecimento”. O primeiro guarda as especificidades de cada profissão e ajudam a
construir a identidade profissional. O último representa a abertura das identidades
profissionais cristalizadas para o trabalho interprofissional em saúde.
Ainda que os profissionais do NASF possam fazer atendimentos individuais, essa atividade
não é visto como prioritária do NASF. O foco está na integralidade do cuidado que é buscado
por meio de atendimentos compartilhados, discussão de casos, construção de projetos
terapêuticos e desenvolvimento de ações comuns no território envolvendo também equipes de
trabalho de áreas distintas da saúde. Os profissionais devem se orientar pelos princípios e
diretrizes do SUS a fim de facilitar e promover o acesso da população aos serviços de saúde, a
integralidade da assistência, a autonomia diante dos processos de saúde e doença, e a
participação social (BRASIL, 2009).
Meu grupo de trabalho atua em uma Unidade de Atenção Primária à Saúde (UAPS) na cidade
de Fortaleza. A equipe é composta por estudantes dos cursos pertencentes à chamada área da
saúde, fisioterapia, medicina, farmácia, odontologia, psicologia e enfermagem. A tutoria é
atribuída a professores dos cursos em questão e a preceptoria aos profissionais da unidade. O
grupo trabalha com os dois públicos envolvidos nos serviços da unidade: os profissionais de
saúde e os usuários. Tenho experienciado construções coletivas de intervenções, que se fazem
apesar de e a partir também das dificuldades e desafios do trabalho na atenção básica.
Referências Bibliográficas
CUNHA, Gustavo Tenório; CAMPOS, Gastão Wagner de Sousa. Apoio Matricial e Atenção
Primária em Saúde. Saúde e Sociedade, [S.L.], v. 20, n. 4, p. 961-970, dez. 2011.