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O psicólogo e o compromisso social no contexto da saúde coletiva

Article in Psicologia em Estudo · December 2001


DOI: 10.1590/S1413-73722001000200008

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Magda Dimenstein
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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O PSICÓLOGO E O COMPROMISSO SOCIAL NO
CONTEXTO DA SAÚDE COLETIVA1

Magda Dimenstein*

RESUMO. Esse trabalho objetiva desenvolver uma reflexão em torno de algumas questões que vêm sendo amplamente
discutidas no campo da saúde coletiva, e que se configuram como enormes desafios para gestores e profissionais de saúde
ligados ao Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Trata-se, não só, da mudança no perfil profissional das categorias
envolvidas com o trabalho da saúde, mas principalmente da transformação de tais profissionais em agentes de mudança a
partir de um compromisso social perante o ideário do sistema de saúde e seus usuários. Nesse sentido, pretende-se discutir,
mais especificamente, o lugar da psicologia e as práticas realizadas no campo da assistência pública à saúde e seus
desdobramentos em termos do compromisso social hoje almejado para a categoria. Para tanto, serão tomados como eixos de
análise os resultados de duas investigações realizadas com psicólogos que trabalham na rede básica de saúde das cidades de
Natal/RN e Teresina/PI.
Palavras-chaves: compromisso social, psicólogo, saúde coletiva.

THE PSYCHOLOGIST AND THEIR SOCIAL COMMITMENT


IN THE COLLECTIVE HEALTH CONTEXT

ABSTRACT. The aim of this paper is to reflect on some issues currently under discussion in the field of collective health,
and which represent a great challenge for health managers and professionals of the Brazilian Unified Health System. This
paper focuses not only on the profile changes that are needed of all health professionals, but rather on the transformation of
these professionals into socially committed agents responsible for the renovation of the ethos of the Brazilian Health System
and its clients. A more in-depth discussion of the psychologist’s place in such a context, his practice within public health care,
and on the much-desired social commitment is carried out. The analytical tools that will be used are the results of two
investigations that were conducted with psychologists that work in the basic health care network of the cities of Natal, in the
state of Rio Grande do Norte, and Teresina, in the state of Piauí.
Key words: social commitment, psychologist, collective health. 2

INTRODUÇÃO mudança no perfil profissional das categorias


envolvidas com o trabalho da saúde, mas
Este trabalho objetiva desenvolver uma reflexão principalmente da transformação de tais profissionais
em torno de algumas questões que vêm sendo em agentes de mudança a partir de um compromisso
1
amplamente discutidas no campo da saúde coletiva , e social perante o ideário do sistema de saúde e seus
que se configuram como enormes desafios para usuários. Nesse sentido, pretende-se discutir, mais
gestores e profissionais de saúde ligados ao Sistema especificamente, o lugar da psicologia e as práticas
Único de Saúde (SUS) no Brasil. Trata-se não só da realizadas no campo da assistência pública à saúde e

1
Este trabalho contou com o apoio financeiro do CNPq (Bolsista de IC/Balcão).
*
Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Dra. em Saúde Mental
pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
Endereço para correspondência: UFRN, CCHLA, Depto. de Psicologia, sl.607, campus universitário, CEP 50.078-970, Natal-
RN. E-mail: magdad@uol.com.br
2
Podemos entender a Saúde Coletiva, segundo Paim e Almeida Filho (2000), como “campo científico, onde se produzem saberes
e conhecimentos acerca do objeto ‘saúde’ e onde operam distintas disciplinas que o contemplam sob vários ângulos; e como
âmbito de práticas, onde se realizam organizações e instituições por diversos agentes (especializados ou não) dentro e fora do
espaço convencionalmente reconhecido como “setor saúde” (p.60).

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seus desdobramentos em termos do compromisso Em outras palavras, em se tratando dos Recursos


social hoje almejado para a categoria. Para tanto, serão Humanos, temos dificuldades não só em termos da
tomados como eixos de análise os resultados de duas formação profissional, organização e gestão, mas
investigações realizadas com psicólogos que principalmente, no sentido de “erradicar o
trabalham na rede básica de saúde das cidades de desinteresse, a alienação, o agir mecânico e
Natal/RN e Teresina/PI. burocratizado” (Campos,1994,p.43) que estabelece
um nítido distanciamento dos trabalhadores entre si e
com os usuários dos serviços de saúde. Estamos
A CONSTRUÇÃO DE NOVOS SUJEITOS E falando da falta de compromisso do profissional com
PRÁTICAS EM SAÚDE: EM QUESTÃO as instituições de saúde, com a qualidade e
O COMPROMISSO SOCIAL humanização3 das práticas, com o acolhimento e
vínculo com os usuários, aspectos considerados
fundamentais para a transformação dos modos
No lugar deste risco que deve ser corrido (a
hegemônicos de fazer saúde e para a construção de um
existência humana é um risco) e que também
caracteriza a coragem do compromisso, a sistema de saúde universal, integral e equânime.
alienação estimula o formalismo, que Tal quadro é conseqüência de uma série de fatores
funciona como uma espécie de cinto de que vêm se apresentando ao longo dos anos, entre os
segurança (Freire, 1998, p. 25). quais estão: a redução dos investimentos no setor
saúde pelo poder público; os insuficientes
O SUS pode ser considerado uma das principais investimentos na formação, capacitação e educação
inovações da reforma do Estado Brasileiro. É fruto de continuada dos trabalhadores de saúde tendo em vista
um amplo processo de discussão em relação à situação novas práticas sanitárias; a falta de integração do
de saúde do país, o qual envolveu o Governo, aparelho formador com a nova realidade dos serviços;
profissionais de saúde progressistas e a população. A a heterogeneidade das políticas de Recursos Humanos
VIII Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em nos três níveis de poder, com discrepância quanto à
1986, representa um marco na luta pela melhoria do remuneração, jornada de trabalho, plano de carreira e
sistema de atenção à saúde no Brasil ,na medida em salários e, principalmente, à falta de participação do
que se constituiu como o espaço de negociação e trabalhadores como co-responsáveis pela gestão do
definição do SUS enquanto política nacional. SUS.
Observa-se que, ao longo dos últimos anos, vem se Em decorrência disso, nos deparamos com
desenhando no setor saúde uma nova relação entre profissionais descontentes, frustrados, apáticos diante
Estado e sociedade, onde se torna mais visível a da miséria social onde está inserida grande parcela da
presença de uma diversidade de atores, cada qual com população brasileira, organizados em torno de
seus interesses e projetos próprios, relação que pode interesses imediatos e corporativistas, enfraquecidos
propiciar um maior controle público sobre a em sua capacidade de resistência e luta em prol da
assistência que é prestada à população, na medida em cidadania; profissionais impedidos de comprometer-se
que passa a ser sujeito ativo e co-responsável pelos verdadeiramente com um novo projeto de sociedade e
rumos tomados pela saúde pública no país. de saúde pública.
É nesse contexto que as questões relativas à Mas, afinal, o que vem a ser um profissional
avaliação e à satisfação do usuário com o serviço de comprometido? Que idéia de compromisso deveria
saúde tornaram-se importantes, pois considera-se que fundamentar as ações de saúde desenvolvidas dentro
a modificação do modelo assistencial hegemônico e a do SUS? Que valores cabe a nós estimular no sentido
melhoria real no atendimento à saúde passam de orientar os saberes e práticas profissionais no
necessariamente pelo desenvolvimento de serviços âmbito da assistência pública à saúde? Tomando
mais próximos da população, das suas necessidades e Paulo Freire (1998) como referência, podemos dizer
prioridades. Para isso, exige-se uma nova mentalidade que compromisso implica necessariamente em uma
profissional e organizacional, participação e
compromisso na busca da qualidade da saúde. Ou seja, 3
Tomamos como referência a concepção de humanismo
é preciso uma reconstrução da subjetividade dos
posta por Freire (1998): “O humanismo é um compromisso
trabalhadores do campo da saúde, bem como alterar a radical com o homem concreto. Compromisso que se
cultura organizacional hegemônica orienta no sentido de transformação de qualquer situação
(Dimenstein,1998), sendo esse, então, o grande objetiva na qual o homem concreto esteja sendo impedido
desafio que a Reforma Sanitária enfrenta no país. de ser mais” (p.22). Afasta-se, conseqüentemente, de
qualquer perspectiva assistencialista ou de cunho religioso.

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tomada de posição; envolve uma decisão por parte de povoar o campo “psi” muito recentemente.
um Sujeito/Ator Social e ocorre no plano das ações, da Historicamente, a psicologia sempre esteve
realidade concreta. Isso quer dizer, por sua vez, que “míope” diante da realidade social, das
“A primeira condição para que um ser possa assumir necessidades e sofrimento da população, levando os
um ato comprometido está em ser capaz de agir e profissionais a cometer muitas distorções teóricas, a
refletir” (p.16). Só um sujeito situado no seu tempo práticas descontextualizadas e etnocêntricas, e a
histórico e em relação aos determinantes culturais, uma psicologização dos problemas sociais, na
políticos e econômicos que condicionam seu modo de medida em que não são capacitados para perceber
estar no mundo poderá transformar, desejar e ousar a as especificidades culturais dos sujeitos. Nesse
mudança, sair do conformismo, reverter a lógica que sentido, é bastante óbvio que a psicologia veio se
sustenta o imobilismo, isto é, comprometer-se, ser um configurando como um instrumento útil para a
ser da práxis. Tal como o processo de alfabetizar-se, reprodução das estruturas injustas de nossos
que para Freire (1998) está além de saber codificar e sistemas sociais, especialmente latino-americanos
decodificar palavras estranhas, e implica em tornar-se (Martín-Baró,1997), ou seja, vem servindo de
alguém capaz de aprender a ler a realidade circundante suporte científico das ideologias dominantes, das
e escrever a sua própria história, o compromisso social relações hierarquizadas de poder, e para a
requer um sujeito capaz de construir um saber crítico manipulação das maiorias pobres por uma minoria,
sobre si mesmo, sobre seu mundo e sobre sua inserção onde os profissionais aparecem como “... cúmplices
nesse mundo (Martín-Baró,1997). Sujeitos da já conhecida política de dominação dos mais
“dinamizadores”, segundo a perspectiva de Paim e fracos” (Botomé,1996, p.198).
Almeida Filho (2000), capazes de revolucionar o Ao longo dessa trajetória, o modelo curativo e
cotidiano na medida em que acreditam na assistencialista, voltado para o setor dos atendimentos
possibilidade de o novo surgir, na surpresa; sujeitos privados foi se consolidando dentro da categoria dos
que recusam o determinismo absoluto que aniquila os psicólogos, tornando-se o paradigma hegemônico da
possíveis espaços de liberdade, de criação, de profissão. Os cursos de graduação tenderam
diversidade. Tal concepção aproxima-se da noção de claramente para formar um profissional que
“operador” trazida por Rotelli (1990), isto é, pessoas atualmente encontra dificuldade em superar as práticas
capazes de reconstruir a história de vida dos usuários cristalizadas (naturalização de práticas historicamente
para além do diagnóstico e do sintoma, trabalhadores produzidas) e de adaptar-se às novas exigências de
ativos no processo de reelaboração do sofrimento e responsabilidade social, aos princípios da qualidade,
reinvenção da vida. O “operador”, nessa perspectiva, da ética e da cidadania, postos especialmente pelo
volta-se para a qualidade do cuidado, a qual pressupõe setor saúde. Em outras palavras, a formação
acolhida e responsabilidade pela atenção integral da profissional veio direcionando o psicólogo para
saúde coletiva e individual, e para a criação de modelos de atuação bastante limitados para o setor
estratégias de modificação da realidade dos usuários. saúde, modelos responsáveis, em parte, pelas
Esses sujeitos são capazes de investir na produção dificuldades do profissional em lidar com a demanda
de modos heterogêneos de cuidado, bem como na da clientela e das instituições de saúde, e até de
singularização da atenção, respeitando a diversidade adaptar-se às dinâmicas condições de perfil
cultural e subjetiva dos usuários, criando vínculos e profissional exigidas pelo SUS.
responsabilidade para com a saúde do público. Trata- Tais modelos de atuação são menos flexíveis às
se, pois, de um profissional não escravizado pela influências do mercado e às necessidades sociais, pois
técnica, pelo saber totalizante dos experts, por rituais se encontram muito arraigados à identidade e cultura
profissionais, mas norteado por modelos de explicação profissional do psicólogo e ao processo de
ampliados acerca do complexo “promoção-saúde- institucionalização das organizações corporativas4.
doença-cuidado” (Paim & Almeida Filho, 2000, p.75), Tanto é que a entrada do psicólogo nas instituições
e formas de intervenção flexíveis que levam em conta públicas de saúde, apesar de ter ampliado seu campo
as necessidades e prioridades de saúde da clientela, e de trabalho, parece não ter alterado os modelos
que possui efetiva capacidade para lidar com uma teóricos e práticos que fundamentam sua atuação. Ou
realidade desafiadora e complexa, que não se encontra seja, não houve uma contextualização, revisão ou até
enclausurada nos modelos teóricos aprendidos na mudança nas suas formas tradicionais de atuar. Daí,
academia. sua dificuldade em construir novas práticas voltadas
E o que nós, psicólogos, temos a ver com isso?
Essa é uma pergunta que, sem dúvida, parece 4
Sobre esse tema ver Dimenstein (1998); (2000).

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para a produção social da saúde e da cidadania, colocada em seu contexto e no campo da


práticas comprometidas com o bem-estar social. especificidade histórica em que é produzida.
Para ilustrar tal situação, passamos agora aos
resultados de uma investigação realizada com
psicólogos que trabalham em Unidades Básicas de RESULTADOS E DISCUSSÃO
Saúde nos municípios de Natal/RN e Teresina/PI, cujo
enfoque esteve voltado para a questão do Perfil profissional
comprometimento com o trabalho, o qual está sendo
. São mulheres na sua maioria (n = 12), havendo
entendido enquanto compromisso ético com a saúde
apenas dois homens em Teresina.
pública, com a promoção do bem-estar social e com a
defesa da vida. Tal postura se expressa, entre outras Nota-se, por esse resultado, que 86% dos
formas, através do uso de recursos técnicos e teóricos psicólogos são mulheres, dado compatível com o
contextualizados, de acordo com as características e quadro geral da profissão no país. Mapeamentos como
necessidades da clientela, como também na maneira os de Mello (1975), Rosemberg (1983;1984), do
de relacionarem-se a equipe de saúde e usuários, Sindicato dos Psicólogos de São Paulo e CRP-06
democrática, não hierarquizada e verticalizada. (1984), CFP (1988) e Castro e Yamamoto (1998),
apontaram que a psicologia no Brasil é
caracteristicamente uma profissão feminina.
DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA . Ingressaram no serviço público de saúde pela
inexistência de opções no mercado de trabalho
Os dados referentes aos psicólogos de Natal são local, seja através de concurso (04 em Teresina e 05
resultados preliminares de uma pesquisa que faz parte em Natal), ou de relações pessoais (prestação de
de um Projeto Integrado de Pesquisa que vem sendo serviço);
desenvolvido pelo Grupo de Estudos em Saúde
Mental e Trabalho (GEST) na UFRN. Na primeira Segundo os profissionais, o serviço público
etapa da investigação (piloto) foram realizadas atualmente configura-se como o maior empregador
entrevistas (semi-estruturadas) com seis (06) da categoria de psicólogos. Muitos concordam que
profissionais de cada uma das seguintes categorias que as dificuldades para administrar os custos de uma
compõem as equipes de saúde locais: médicos, clínica privada são imensos, de forma que é preciso
enfermeiros, odontólogos, psicólogos, assistentes ter um suporte financeiro estável e seguro. Além
sociais, nutricionistas. Aqui, vamos nos deter no disso, o serviço público, por sua carga horária
subgrupo de psicólogos (n=06). Quanto aos flexível, possibilita a realização de outras
psicólogos de Teresina/PI (n=08), o levantamento atividades e não compromete a rotina do
realizado constituiu uma etapa do trabalho de campo consultório ou de outros empregos de uma forma
desenvolvido nas UBSs, o qual faz parte da Tese de geral. Fica estabelecido, assim, um pacto perverso
Doutorado da autora (Dimenstein,1998)5. As nas instituições públicas, na medida em que esses
entrevistas, em ambos os municípios, foram feitas nas diversos vínculos são tolerados e estimulados por
próprias unidades de saúde. As falas dos profissionais parte do poder público, e utilizados como mais uma
foram analisadas segundo a perspectiva da análise de fonte de renda por parte dos profissionais, que não
discurso. Tal análise foi feita segundo a proposta de têm o compromisso de cumprir os horários
interpretação qualitativa presente na obra de Minayo oficialmente estipulados em seus contratos de
intitulada de “método hermenêutico-dialético” (1992, trabalho. Tal quadro é mais visível em Teresina do
p.218). Esse método de análise parte de alguns que em Natal:
pressupostos fundamentais, entre os quais o de que . Trabalham em média 30h (Teresina) e 40h (Natal)
não há observador imparcial e fora da história, de que semanais nas instituições públicas de saúde. Os
não existe “a verdade” dos significados escondida no psicólogos de Natal não possuem outros vínculos
texto, e que uma fala só pode ser entendida se com instituições públicas de saúde; já os de
Teresina exercem mais de uma atividade
remunerada em outras secretarias públicas, seja na
5
Maiores informações a respeito do mapeamento dos saúde seja em outras áreas (educacional e
psicólogos em Teresina, consultar o trabalho intitulado “O organizacional), e até mesmo fora da psicologia;
Psicólogo no Contexto do Sistema Único de Saúde (SUS):
. encontram-se na situação de assalariamento e têm
Perfil Profissional e Perspectiva de Atuação nas Unidades
Básicas de Saúde (UBSs). vários empregos;

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. possuem renda média de 4 a 5 salários mínimos, responsabilidade, não transferindo suas atribuições a
incluindo salário-base e produtividade; outrem. Há uma tendência em associar baixo salário a
baixo desempenho e a descompromisso com o
Quanto à remuneração, nota-se claramente que
trabalho. Atribuem ao poder executivo local a
existem desigualdades enormes entre as diversas
responsabilidade pelo estado em que se encontra o
categorias profissionais nas instituições públicas de
serviço público de saúde, na medida em que não
saúde de Teresina e Natal. Os psicólogos, juntamente
valoriza seu funcionário e não oferece condições
com assistentes sociais, nutricionistas, terapeutas
apropriadas para que ele execute seu trabalho de
ocupacionais, fonaudiólogos, entre outros, constituem
forma eficaz. Podemos dizer que a perspectiva
categorias profissionais que, apesar de ocuparem uma
predominante entre os profissionais entrevistados em
posição relativamente definida na divisão do trabalho
muito difere da concepção de comprometimento
em saúde, vivem na condição de subalternidade na
enquanto compromisso social, anteriormente
hierarquia interna do campo, dominada pela categoria
discutida. Ou seja, as práticas dos psicólogos não
médica.
estão norteadas no sentido de construção da cidadania,
. São formados majoritariamente em instituições espaço onde os sujeitos reconhecem, respeitam e
privadas os deTeresina ( n = 07); já em Natal 05 são convivem com as diversidades dos outros. Além disso,
formados na UFRN; são práticas que não rompem com o esquema
. poucos têm formação Pós-Graduada tradicional do setor nem oferecem resistência ao
(Especialização: 03 em Teresina e 02 em Natal), enfraquecimento das políticas públicas de saúde mais
nenhum tem Mestrado ou Doutorado; equalizadoras que se quer concretizar no SUS.
. as atividades realizadas nas UBSs de Natal
envolvem o atendimento clínico individual e Expressão do comprometimento
atividades grupais e educativas. Em Teresina Todos os psicólogos consideram-se
predominam a psicoterapia individual, o comprometidos com o trabalho. Tal compromisso se
aconselhamento psicológico e a aplicação de testes. expressa no cumprimento das tarefas, sendo a
principal delas o atendimento clínico
Pode-se perceber que tais atividades estão conforme o individualizado/psicoterapia. Foi possível perceber
modelo da clínica privada, ao passo que ações de que os psicólogos se sentem mais à vontade realizando
promoção à saúde, desenvolvidas na comunidade, esse tipo de tarefa. É como se sua especificidade
conjuntamente pela equipe multiprofissional, são profissional em relação a outras categorias presentes
atividades que não estão sendo desenvolvidas pelos na instituição residisse no uso de tal técnica. É então
profissionais de psicologia, especialmente de uma ferramenta que garante uma certa diferenciação e
Teresina. Essas mesmas atividades indicadas pelos proporciona relativo poder ao profissional de
profissionais foram também as mais citadas pelos psicologia, principalmente porque a maioria dos
psicólogos que participaram da pesquisa realizada psiquiatras inseridos nas unidades básicas de saúde
por Carvalho (1988) e Boarini (1996), confirmando não se dedicam à psicoterapia, mas apenas ao
que são elas que vêm caracterizando a atuação tratamento farmacológico. Percebe-se que a
clássica ou tradicional do psicólogo ao longo destes psicoterapia termina assumindo um lugar privilegiado
últimos anos. Não fica evidente nas realidades dentro do campo da assistência pública à saúde e
investigadas, tal como colocado pelas pesquisas do expressando o que se define por comprometimento
Conselho Federal de Psicologia (1988;1992;1994), com o trabalho.
a presença de novas modalidades de atuação,
inclusive mais adequadas às instituições públicas de Fatores que facilitam/dificultam o comprometimento
saúde, voltadas à atenção primária, as quais exigem
Os principais fatores que facilitam uma atitude de
do profissional saberes produzidos em outras áreas, comprometimento com o trabalho dizem respeito à
bem como uma forma diferente de engajamento e identificação com o trabalho, às características de
de relação com a clientela. personalidade e valores ético-morais. Por outro lado,
para haver comprometimento é preciso que a
Comprometimento com o Trabalho (CT)
instituição ofereça boas condições de trabalho, tais
O CT entre os psicólogos está associado ao como espaço físico e recursos materiais suficientes e
cumprimento dos deveres e obrigações que o serviço adequados. Quanto aos fatores que dificultam o CT,
impõe, tais como pontualidade, assiduidade, obedecer todos os profissionais identificaram os baixos salários
às normas do local, cordialidade, ou seja, ter recebidos na saúde pública como aquele mais

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significativo. Isto faz com que os profissionais tenham técnica, de maneira que os profissionais não se sentem
que buscar outros vínculos empregatícios para manter impulsionados a construir referenciais próprios em
um padrão de renda compatível com suas busca de uma prática mais contextualizada, ou pelo
necessidades. Em seguida identificam na má gerência menos, a questionar o transplante de modelos teóricos
institucional e administrativa outro fator decisivo para e operativos oriundos de outras realidades e outros
que haja um descompromisso com o trabalho. Os tipos de clientela. Em outras palavras, a formação
profissionais entendem que a má utilização de acadêmica não tem fornecido elementos para a
recursos financeiros, a incompatibilidade da visão de construção de um profissional-cidadão com
saúde e a ocupação de cargos por pessoas que possibilidade de intervenção adequada aos espaços
desconhecem o contexto da saúde pública prejudicam territoriais locais, que demandam um alto grau de
o bom andamento dos serviços. Nota-se também que, potência de resposta/ação, de articulação intersetorial,
para esses profissionais, a falta de reconhecimento por de mobilização de parcerias e de estratégias
parte da instituição e dos próprios usuários interfere na específicas.
questão do envolvimento com o trabalho, pois os De um modo geral, percebe-se que ser
profissionais sentem que o seu trabalho não tem a comprometido, para os psicólogos entrevistados,
devida relevância social. restringe-se ao cumprimento de tarefas que
consolidam o modelo de identidade clássico. No
panorama atual da saúde coletiva, o compromisso
CONSIDERAÇÕES FINAIS profissional não é uma questão burocrática, mas,
especialmente, o desenvolvimento de ações/reflexões
Este trabalho não pretende ser conclusivo a cuja intencionalidade prática e política é produzir
respeito do comprometimento com o trabalho entre os cidadania ativa, sociabilidade e novas subjetividades.
psicólogos. Trata-se de uma aproximação da temática, Essa perspectiva nos desafia a pensar em como
que aos poucos poderá ser mais aprofundada, à materilizar essa postura profissional, como fomentar
medida que novas investigações, como a que estamos esse ideário em nossos cursos, em nossas pesquisas e
realizando na UFRN, forem fornecendo mais
nossas produções acadêmicas.....
informações sobre a questão. Apesar disso, alguns
pontos importantes já podem ser adiantados e servir
para incrementar o debate no campo dos recursos BIBLIOGRAFIA
humanos em saúde.
Do ponto de vista do processo de trabalho, Boarini, M. L.(1996). A Formação (Necessária) do Psicólogo
entendemos que os psicólogos precisam incorporar para atuar na Saúde Pública, Psicologia em Estudo, 1, (1),
uma nova concepção de prática profissional, associada 93-132.
ao processo de cidadanização, de construção de Botomé, S.P. (1996). Serviço à população ou submissão ao
sujeitos com capacidade de ação e de proposição. Isso poder: o exercício do controle na intervenção social do
implica em romper o corporativismo, as práticas psicólogo. Estudos de Psicologia, 1, (2),173-202.
isoladas e a identidade profissional hegemônica Campos, G.W.S. (1994).Considerações sobre a Arte e a Ciência
vinculada à do psicoterapeuta. Notamos que o modelo da Mudança: Revolução das Coisas e Reforma das Pessoas.
clínico da psicoterapia individual ainda é a forma de O caso da Saúde. Em Cecílio, L. C. (Org). Inventando a
Mudança na Saúde (pp.29-88).São Paulo: Hucitec.
trabalho predominante entre os profissionais no setor
público, predominância muitas vezes atribuída ao Carvalho, A. A. Ulian, A. L. A. O.; Bastos, A. V. B.; Sodré, L.
G. P.; Cavalcante, M. L. P. (1988).A Escolha da Profissão:
desejo da clientela ou da instituição. Não podemos alguns valores implícitos nos motivos apontados pelos
esquecer que há, de fato, por parte das instituições, um psicólogos. Em CFP: Quem é o Psicólogo Brasileiro?
incentivo aos atendimentos individualizados em (pp.49-68) São Paulo: Edicon.
detrimento de outros tipos de atuação dentro e fora das Castro, A E. F. e Yamamoto, O. H. (1998). A Psicologia como
unidades de saúde, de forma que os profissionais não Profissão Feminina: Apontamentos para Estudo. Estudos de
são incentivados a desenvolver atividades que fogem Psicologia, 3, (1), 147-158.
ao padrão tradicional de atuação atribuído ao Conselho Federal de Psicologia (1988).Quem é o Psicólogo
psicólogo. Brasileiro? São Paulo: Edicon.
Observamos que a postura do psicólogo que Conselho Federal de Psicologia (1992). Psicólogo Brasileiro:
trabalha na saúde coletiva ainda não vem sendo construção de novos espaços. Campinas: Átomo.
devidamente questionada dentro da própria categoria Conselho Federal de Psicologia (1994). Psicólogo Brasileiro:
em termos da sua adequação e efetividade social. Há práticas emergentes e desafios. Rosemary Achcar (Coord),
uma crença na eficácia intrínseca da teoria e da São Paulo: Casa do Psicólogo.

Psicologia em Estudo, Maringá, v. 6, n. 2, p. 57-63, jul./dez. 2001


O psicólogo e o compromisso social 63

Conselho Regional de Psicologia/6ª Região (1995). Psicologia: Paim, J.S; Filho, N. A (2000). A Crise da saúde pública e a
Formação, Atuação Profissional e Mercado de Trabalho utopia da saúde coletiva. Salvador: Casa da Qualidade.
(Estatísticas, 1995). São Paulo. Rotelli, F. & Nicácio, M. F. (1990). Desinstitucionalização.
Dimenstein, M. (1998). O Psicólogo no contexto do Sistema São Paulo: Hucitec.
Único de Saúde (SUS): Perfil profissional e perspectivas de Rosemberg, F.(1983). Psicologia: Profissão Feminina.
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Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Rosemberg, F.(1984). Afinal, Porque SomosTantas Psicólogas?
Dimenstein, M. (2000). A Cultura profissional do psicólogo e o Psicologia: Ciência e Profissão , 4, 6-12
ideário individualista: implicações para a prática no campo
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Paulo: Ática.

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