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Magda Dimenstein
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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All content following this page was uploaded by Magda Dimenstein on 08 February 2016.
Magda Dimenstein*
RESUMO. Esse trabalho objetiva desenvolver uma reflexão em torno de algumas questões que vêm sendo amplamente
discutidas no campo da saúde coletiva, e que se configuram como enormes desafios para gestores e profissionais de saúde
ligados ao Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Trata-se, não só, da mudança no perfil profissional das categorias
envolvidas com o trabalho da saúde, mas principalmente da transformação de tais profissionais em agentes de mudança a
partir de um compromisso social perante o ideário do sistema de saúde e seus usuários. Nesse sentido, pretende-se discutir,
mais especificamente, o lugar da psicologia e as práticas realizadas no campo da assistência pública à saúde e seus
desdobramentos em termos do compromisso social hoje almejado para a categoria. Para tanto, serão tomados como eixos de
análise os resultados de duas investigações realizadas com psicólogos que trabalham na rede básica de saúde das cidades de
Natal/RN e Teresina/PI.
Palavras-chaves: compromisso social, psicólogo, saúde coletiva.
ABSTRACT. The aim of this paper is to reflect on some issues currently under discussion in the field of collective health,
and which represent a great challenge for health managers and professionals of the Brazilian Unified Health System. This
paper focuses not only on the profile changes that are needed of all health professionals, but rather on the transformation of
these professionals into socially committed agents responsible for the renovation of the ethos of the Brazilian Health System
and its clients. A more in-depth discussion of the psychologist’s place in such a context, his practice within public health care,
and on the much-desired social commitment is carried out. The analytical tools that will be used are the results of two
investigations that were conducted with psychologists that work in the basic health care network of the cities of Natal, in the
state of Rio Grande do Norte, and Teresina, in the state of Piauí.
Key words: social commitment, psychologist, collective health. 2
1
Este trabalho contou com o apoio financeiro do CNPq (Bolsista de IC/Balcão).
*
Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Dra. em Saúde Mental
pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
Endereço para correspondência: UFRN, CCHLA, Depto. de Psicologia, sl.607, campus universitário, CEP 50.078-970, Natal-
RN. E-mail: magdad@uol.com.br
2
Podemos entender a Saúde Coletiva, segundo Paim e Almeida Filho (2000), como “campo científico, onde se produzem saberes
e conhecimentos acerca do objeto ‘saúde’ e onde operam distintas disciplinas que o contemplam sob vários ângulos; e como
âmbito de práticas, onde se realizam organizações e instituições por diversos agentes (especializados ou não) dentro e fora do
espaço convencionalmente reconhecido como “setor saúde” (p.60).
tomada de posição; envolve uma decisão por parte de povoar o campo “psi” muito recentemente.
um Sujeito/Ator Social e ocorre no plano das ações, da Historicamente, a psicologia sempre esteve
realidade concreta. Isso quer dizer, por sua vez, que “míope” diante da realidade social, das
“A primeira condição para que um ser possa assumir necessidades e sofrimento da população, levando os
um ato comprometido está em ser capaz de agir e profissionais a cometer muitas distorções teóricas, a
refletir” (p.16). Só um sujeito situado no seu tempo práticas descontextualizadas e etnocêntricas, e a
histórico e em relação aos determinantes culturais, uma psicologização dos problemas sociais, na
políticos e econômicos que condicionam seu modo de medida em que não são capacitados para perceber
estar no mundo poderá transformar, desejar e ousar a as especificidades culturais dos sujeitos. Nesse
mudança, sair do conformismo, reverter a lógica que sentido, é bastante óbvio que a psicologia veio se
sustenta o imobilismo, isto é, comprometer-se, ser um configurando como um instrumento útil para a
ser da práxis. Tal como o processo de alfabetizar-se, reprodução das estruturas injustas de nossos
que para Freire (1998) está além de saber codificar e sistemas sociais, especialmente latino-americanos
decodificar palavras estranhas, e implica em tornar-se (Martín-Baró,1997), ou seja, vem servindo de
alguém capaz de aprender a ler a realidade circundante suporte científico das ideologias dominantes, das
e escrever a sua própria história, o compromisso social relações hierarquizadas de poder, e para a
requer um sujeito capaz de construir um saber crítico manipulação das maiorias pobres por uma minoria,
sobre si mesmo, sobre seu mundo e sobre sua inserção onde os profissionais aparecem como “... cúmplices
nesse mundo (Martín-Baró,1997). Sujeitos da já conhecida política de dominação dos mais
“dinamizadores”, segundo a perspectiva de Paim e fracos” (Botomé,1996, p.198).
Almeida Filho (2000), capazes de revolucionar o Ao longo dessa trajetória, o modelo curativo e
cotidiano na medida em que acreditam na assistencialista, voltado para o setor dos atendimentos
possibilidade de o novo surgir, na surpresa; sujeitos privados foi se consolidando dentro da categoria dos
que recusam o determinismo absoluto que aniquila os psicólogos, tornando-se o paradigma hegemônico da
possíveis espaços de liberdade, de criação, de profissão. Os cursos de graduação tenderam
diversidade. Tal concepção aproxima-se da noção de claramente para formar um profissional que
“operador” trazida por Rotelli (1990), isto é, pessoas atualmente encontra dificuldade em superar as práticas
capazes de reconstruir a história de vida dos usuários cristalizadas (naturalização de práticas historicamente
para além do diagnóstico e do sintoma, trabalhadores produzidas) e de adaptar-se às novas exigências de
ativos no processo de reelaboração do sofrimento e responsabilidade social, aos princípios da qualidade,
reinvenção da vida. O “operador”, nessa perspectiva, da ética e da cidadania, postos especialmente pelo
volta-se para a qualidade do cuidado, a qual pressupõe setor saúde. Em outras palavras, a formação
acolhida e responsabilidade pela atenção integral da profissional veio direcionando o psicólogo para
saúde coletiva e individual, e para a criação de modelos de atuação bastante limitados para o setor
estratégias de modificação da realidade dos usuários. saúde, modelos responsáveis, em parte, pelas
Esses sujeitos são capazes de investir na produção dificuldades do profissional em lidar com a demanda
de modos heterogêneos de cuidado, bem como na da clientela e das instituições de saúde, e até de
singularização da atenção, respeitando a diversidade adaptar-se às dinâmicas condições de perfil
cultural e subjetiva dos usuários, criando vínculos e profissional exigidas pelo SUS.
responsabilidade para com a saúde do público. Trata- Tais modelos de atuação são menos flexíveis às
se, pois, de um profissional não escravizado pela influências do mercado e às necessidades sociais, pois
técnica, pelo saber totalizante dos experts, por rituais se encontram muito arraigados à identidade e cultura
profissionais, mas norteado por modelos de explicação profissional do psicólogo e ao processo de
ampliados acerca do complexo “promoção-saúde- institucionalização das organizações corporativas4.
doença-cuidado” (Paim & Almeida Filho, 2000, p.75), Tanto é que a entrada do psicólogo nas instituições
e formas de intervenção flexíveis que levam em conta públicas de saúde, apesar de ter ampliado seu campo
as necessidades e prioridades de saúde da clientela, e de trabalho, parece não ter alterado os modelos
que possui efetiva capacidade para lidar com uma teóricos e práticos que fundamentam sua atuação. Ou
realidade desafiadora e complexa, que não se encontra seja, não houve uma contextualização, revisão ou até
enclausurada nos modelos teóricos aprendidos na mudança nas suas formas tradicionais de atuar. Daí,
academia. sua dificuldade em construir novas práticas voltadas
E o que nós, psicólogos, temos a ver com isso?
Essa é uma pergunta que, sem dúvida, parece 4
Sobre esse tema ver Dimenstein (1998); (2000).
. possuem renda média de 4 a 5 salários mínimos, responsabilidade, não transferindo suas atribuições a
incluindo salário-base e produtividade; outrem. Há uma tendência em associar baixo salário a
baixo desempenho e a descompromisso com o
Quanto à remuneração, nota-se claramente que
trabalho. Atribuem ao poder executivo local a
existem desigualdades enormes entre as diversas
responsabilidade pelo estado em que se encontra o
categorias profissionais nas instituições públicas de
serviço público de saúde, na medida em que não
saúde de Teresina e Natal. Os psicólogos, juntamente
valoriza seu funcionário e não oferece condições
com assistentes sociais, nutricionistas, terapeutas
apropriadas para que ele execute seu trabalho de
ocupacionais, fonaudiólogos, entre outros, constituem
forma eficaz. Podemos dizer que a perspectiva
categorias profissionais que, apesar de ocuparem uma
predominante entre os profissionais entrevistados em
posição relativamente definida na divisão do trabalho
muito difere da concepção de comprometimento
em saúde, vivem na condição de subalternidade na
enquanto compromisso social, anteriormente
hierarquia interna do campo, dominada pela categoria
discutida. Ou seja, as práticas dos psicólogos não
médica.
estão norteadas no sentido de construção da cidadania,
. São formados majoritariamente em instituições espaço onde os sujeitos reconhecem, respeitam e
privadas os deTeresina ( n = 07); já em Natal 05 são convivem com as diversidades dos outros. Além disso,
formados na UFRN; são práticas que não rompem com o esquema
. poucos têm formação Pós-Graduada tradicional do setor nem oferecem resistência ao
(Especialização: 03 em Teresina e 02 em Natal), enfraquecimento das políticas públicas de saúde mais
nenhum tem Mestrado ou Doutorado; equalizadoras que se quer concretizar no SUS.
. as atividades realizadas nas UBSs de Natal
envolvem o atendimento clínico individual e Expressão do comprometimento
atividades grupais e educativas. Em Teresina Todos os psicólogos consideram-se
predominam a psicoterapia individual, o comprometidos com o trabalho. Tal compromisso se
aconselhamento psicológico e a aplicação de testes. expressa no cumprimento das tarefas, sendo a
principal delas o atendimento clínico
Pode-se perceber que tais atividades estão conforme o individualizado/psicoterapia. Foi possível perceber
modelo da clínica privada, ao passo que ações de que os psicólogos se sentem mais à vontade realizando
promoção à saúde, desenvolvidas na comunidade, esse tipo de tarefa. É como se sua especificidade
conjuntamente pela equipe multiprofissional, são profissional em relação a outras categorias presentes
atividades que não estão sendo desenvolvidas pelos na instituição residisse no uso de tal técnica. É então
profissionais de psicologia, especialmente de uma ferramenta que garante uma certa diferenciação e
Teresina. Essas mesmas atividades indicadas pelos proporciona relativo poder ao profissional de
profissionais foram também as mais citadas pelos psicologia, principalmente porque a maioria dos
psicólogos que participaram da pesquisa realizada psiquiatras inseridos nas unidades básicas de saúde
por Carvalho (1988) e Boarini (1996), confirmando não se dedicam à psicoterapia, mas apenas ao
que são elas que vêm caracterizando a atuação tratamento farmacológico. Percebe-se que a
clássica ou tradicional do psicólogo ao longo destes psicoterapia termina assumindo um lugar privilegiado
últimos anos. Não fica evidente nas realidades dentro do campo da assistência pública à saúde e
investigadas, tal como colocado pelas pesquisas do expressando o que se define por comprometimento
Conselho Federal de Psicologia (1988;1992;1994), com o trabalho.
a presença de novas modalidades de atuação,
inclusive mais adequadas às instituições públicas de Fatores que facilitam/dificultam o comprometimento
saúde, voltadas à atenção primária, as quais exigem
Os principais fatores que facilitam uma atitude de
do profissional saberes produzidos em outras áreas, comprometimento com o trabalho dizem respeito à
bem como uma forma diferente de engajamento e identificação com o trabalho, às características de
de relação com a clientela. personalidade e valores ético-morais. Por outro lado,
para haver comprometimento é preciso que a
Comprometimento com o Trabalho (CT)
instituição ofereça boas condições de trabalho, tais
O CT entre os psicólogos está associado ao como espaço físico e recursos materiais suficientes e
cumprimento dos deveres e obrigações que o serviço adequados. Quanto aos fatores que dificultam o CT,
impõe, tais como pontualidade, assiduidade, obedecer todos os profissionais identificaram os baixos salários
às normas do local, cordialidade, ou seja, ter recebidos na saúde pública como aquele mais
significativo. Isto faz com que os profissionais tenham técnica, de maneira que os profissionais não se sentem
que buscar outros vínculos empregatícios para manter impulsionados a construir referenciais próprios em
um padrão de renda compatível com suas busca de uma prática mais contextualizada, ou pelo
necessidades. Em seguida identificam na má gerência menos, a questionar o transplante de modelos teóricos
institucional e administrativa outro fator decisivo para e operativos oriundos de outras realidades e outros
que haja um descompromisso com o trabalho. Os tipos de clientela. Em outras palavras, a formação
profissionais entendem que a má utilização de acadêmica não tem fornecido elementos para a
recursos financeiros, a incompatibilidade da visão de construção de um profissional-cidadão com
saúde e a ocupação de cargos por pessoas que possibilidade de intervenção adequada aos espaços
desconhecem o contexto da saúde pública prejudicam territoriais locais, que demandam um alto grau de
o bom andamento dos serviços. Nota-se também que, potência de resposta/ação, de articulação intersetorial,
para esses profissionais, a falta de reconhecimento por de mobilização de parcerias e de estratégias
parte da instituição e dos próprios usuários interfere na específicas.
questão do envolvimento com o trabalho, pois os De um modo geral, percebe-se que ser
profissionais sentem que o seu trabalho não tem a comprometido, para os psicólogos entrevistados,
devida relevância social. restringe-se ao cumprimento de tarefas que
consolidam o modelo de identidade clássico. No
panorama atual da saúde coletiva, o compromisso
CONSIDERAÇÕES FINAIS profissional não é uma questão burocrática, mas,
especialmente, o desenvolvimento de ações/reflexões
Este trabalho não pretende ser conclusivo a cuja intencionalidade prática e política é produzir
respeito do comprometimento com o trabalho entre os cidadania ativa, sociabilidade e novas subjetividades.
psicólogos. Trata-se de uma aproximação da temática, Essa perspectiva nos desafia a pensar em como
que aos poucos poderá ser mais aprofundada, à materilizar essa postura profissional, como fomentar
medida que novas investigações, como a que estamos esse ideário em nossos cursos, em nossas pesquisas e
realizando na UFRN, forem fornecendo mais
nossas produções acadêmicas.....
informações sobre a questão. Apesar disso, alguns
pontos importantes já podem ser adiantados e servir
para incrementar o debate no campo dos recursos BIBLIOGRAFIA
humanos em saúde.
Do ponto de vista do processo de trabalho, Boarini, M. L.(1996). A Formação (Necessária) do Psicólogo
entendemos que os psicólogos precisam incorporar para atuar na Saúde Pública, Psicologia em Estudo, 1, (1),
uma nova concepção de prática profissional, associada 93-132.
ao processo de cidadanização, de construção de Botomé, S.P. (1996). Serviço à população ou submissão ao
sujeitos com capacidade de ação e de proposição. Isso poder: o exercício do controle na intervenção social do
implica em romper o corporativismo, as práticas psicólogo. Estudos de Psicologia, 1, (2),173-202.
isoladas e a identidade profissional hegemônica Campos, G.W.S. (1994).Considerações sobre a Arte e a Ciência
vinculada à do psicoterapeuta. Notamos que o modelo da Mudança: Revolução das Coisas e Reforma das Pessoas.
clínico da psicoterapia individual ainda é a forma de O caso da Saúde. Em Cecílio, L. C. (Org). Inventando a
Mudança na Saúde (pp.29-88).São Paulo: Hucitec.
trabalho predominante entre os profissionais no setor
público, predominância muitas vezes atribuída ao Carvalho, A. A. Ulian, A. L. A. O.; Bastos, A. V. B.; Sodré, L.
G. P.; Cavalcante, M. L. P. (1988).A Escolha da Profissão:
desejo da clientela ou da instituição. Não podemos alguns valores implícitos nos motivos apontados pelos
esquecer que há, de fato, por parte das instituições, um psicólogos. Em CFP: Quem é o Psicólogo Brasileiro?
incentivo aos atendimentos individualizados em (pp.49-68) São Paulo: Edicon.
detrimento de outros tipos de atuação dentro e fora das Castro, A E. F. e Yamamoto, O. H. (1998). A Psicologia como
unidades de saúde, de forma que os profissionais não Profissão Feminina: Apontamentos para Estudo. Estudos de
são incentivados a desenvolver atividades que fogem Psicologia, 3, (1), 147-158.
ao padrão tradicional de atuação atribuído ao Conselho Federal de Psicologia (1988).Quem é o Psicólogo
psicólogo. Brasileiro? São Paulo: Edicon.
Observamos que a postura do psicólogo que Conselho Federal de Psicologia (1992). Psicólogo Brasileiro:
trabalha na saúde coletiva ainda não vem sendo construção de novos espaços. Campinas: Átomo.
devidamente questionada dentro da própria categoria Conselho Federal de Psicologia (1994). Psicólogo Brasileiro:
em termos da sua adequação e efetividade social. Há práticas emergentes e desafios. Rosemary Achcar (Coord),
uma crença na eficácia intrínseca da teoria e da São Paulo: Casa do Psicólogo.
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