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tradicionais, realizando muitas outras atividades, públicas, é possível, e cada vez mais necessário,

como grupos dos mais variados tipos, reuniões desenvolver uma atuação crítica.
com escolas e entre profissionais e visitas
domiciliares para citar alguns exemplos. Referências
Também pode-se observar o quanto as
atividades realizadas fora do espaço dos Centros  Amaral, M. S., Gonçalves, C. H., & Serpa, M. G.
de Saúde são importantes quando se pensa em (2012). Psicologia Comunitária e a Saúde Pública:
uma atuação contextualizada. relato de experiência da prática Psi em uma
A aqui chamada de atuação “no território” se Unidade de Saúde da Família. Psicologia: Ciência
mostra imprescindível para esse tipo de ação e Profissão, 32(2),
 Dimenstein, M. D. B. (1998). O psicólogo nas
comprometida. Com isso, destaca-se a
Unidades Básicas de Saúde: desafios para a
importância de que a atuação do psicólogo nesse formação e atuação de profissionais. Estudos de
local não se limite a uma prática curativa e Psicologia (Natal), 3(1), 53-81.
individualizante, mas que abranja ações que  Domingues, A. R. & Franco, E. M. (2014).
promovam autonomia, conscientização e Reflexões teóricas sobre sujeitos coletivos e
empoderamento, visando a transformação social experiências comunitárias. In: C. Stella (Org.),
da comunidade. A horizontalidade das relações Psicologia comunitária: contribuições teóricas,
também é um aspecto a ser considerado, pois encontros e experiências (pp. 15-44). Petrópolis,
permite um olhar entre “iguais” para uma atuação RJ: Vozes.
contextualizada.  Freitas, M. F. Q. (2014). Psicologia Social
Não se pode esquecer das lutas por Comunitária como politização da vida cotidiana:
desafios à prática em comunidade. In: C. Stella,
melhores condições de trabalho e pela defesa de
(Org.), Psicologia Comunitária: contribuições
direitos, como foi visto em atividades realizadas teóricas, encontros e experiências (pp. 65-85).
no dia de luta antimanicomial, como importantes Petrópolis, RJ: Vozes.
momentos de militância, em que o posicionamento
ético-político dos psicólogos ficou muito evidente. …. Referencia no artigo original…
Foi possível concluir que mais importante do
que a atividade em si é o posicionamento ético-
político por detrás dela. Mesmo sabendo da 6. O DESAFIO DA POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL: A (RE)
dificuldade de práticas inovadoras, elas são
INSERÇÃO SOCIAL DOS PORTADORES DE
importantes para um cuidado em saúde que busca
superar o modelo clínico tradicional. TRANSTORNOS MENTAIS
A reflexão sobre novos fazeres que aflorem
o lado criativo que Dimenstein (PSI, 2009) tanto
fala em seu texto permite que os psicólogos saiam RESUMO
de lugares pré-estabelecidos rumo a uma prática
comprometida socialmente. Com este trabalho, pretende-se contribuir com a
Este artigo busca deixar claro que não discussão sobre os atuais desafios da política de saúde
apenas uma teoria pode propiciar essa atuação mental, especialmente a questão da reinserção social
contextualizada, mas que um posicionamento de portadores de transtornos mentais. Para tanto toma,
ético-político crítico sobre a realidade e sobre a como elementos inspiradores, duas situações ocorridas
saúde impacta positivamente na maneira de atuar. em serviços de saúde mental brasileiros, que revelam
Dessa forma, defende-se que uma formação os desafios hoje colocados aos gestores e aos
crítica, com perspectivas como as da Psicologia trabalhadores desse campo. Entende-se que diferentes
Social Crítica pode favorecer a uma maior reflexão ações podem ter repercussões claras e diretas no
para os alunos e profissionais da saúde.
processo de reinserção social dos usuários de serviços
Entende-se as limitações deste artigo,
de saúde mental. Entretanto, focamos a atenção em
especialmente, no que diz respeito à
três aspectos: a dinâmica das instituições de saúde; a
impossibilidade de fazer comparações com outros
construção de uma rede integrada de atenção à saúde
profissionais que não possuem as características
apresentadas pelos participantes escolhidos. e o reordenamento dos serviços de atenção
Todavia, acredita-se que a contribuição especializados; o enfrentamento da lógica manicomial
deste trabalho tenha sido a de evidenciar que, que perpassa o cotidiano dos serviços e práticas
apesar do cenário desfavorável para as políticas profissionais.

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Palavras-chave: Saúde mental, Reinserção social, Em uma primeira análise, é possível
Atenção integrada, Políticas públicas, Portadores de identificar, em ambos os relatos, processos que
transtornos mentais. seguem em direção oposta à reforma psiquiátrica,
especialmente as propostas de reabilitação
O desafio da política de saúde mental: a (re) psicossocial e de reinserção, que buscam garantir
inserção social dos portadores de transtornos a autonomia e a cidadania de portadores de
mentais transtornos mentais e que são a tônica das
políticas públicas de saúde mental. Ancorados
Um desses relatos trata da abertura de uma nessa primeira análise, torna-se viável mapear
residência terapêutica, um dos equipamentos alguns possíveis determinantes para a reação
fundamentais para o avanço da reforma desses trabalhadores e usuários, bem como
psiquiátrica. No texto, eram discutidos a pensar que estratégias podem ser implementadas
complexidade e os inúmeros desafios presentes para produzir transformações na atenção em
no processo de implantação dessa experiência. saúde mental.
Apesar de não ser o foco do trabalho, ao Um primeiro grupo de problemas e desafios
apresentar esse processo, as autoras tocaram em a ser enfrentado diz respeito à dinâmica das
um ponto fundamental: apesar de bastante instituições de saúde à qual os trabalhadores
empenhados na abertura dessa residência estão vinculados, o que inclui questões salariais e
terapêutica, muitos trabalhadores relutavam em condições de trabalho, até a falta de capacitação
participar das equipes que ficariam responsáveis que viabilize a produção de novas formas de
pelo funcionamento desse novo serviço, relutância cuidado.
que eclodia quando se depararam com a Além desses pontos, que podem ser
necessidade de produzir um cuidar de forma identificados no contexto nacional, assinalamos o
distinta daquela produzida no manicômio, local investimento insuficiente e inadequado do SUS
onde também trabalhavam (PAULON et al, 2005). para os serviços substitutivos; o aumento
O segundo relato tratava de uma considerável da demanda em saúde mental
investigação realizada com moradores de (egressos de hospitais psiquiátricos, uso
hospitais psiquiátricos. Seu ponto central versava constante e inadequado de benzodiazepínicos,
sobre a recusa declarada de muitos pacientes em álcool e outras drogas) e a diminuição, ainda
sair da instituição, após anos de internação, tímida, dos gastos com internação psiquiátrica (o
mesmo quando alternativas concretas de vida fora que reflete a política ideológica dos hospitais).
dos muros lhes eram oferecidas (MACHADO et al, Podemos indicar, também, pelo menos no
2005). contexto do Rio Grande do Norte, o baixo índice
Tais relatos dizem respeito a experiências de pessoas que são atendidas em serviços
ocorridas em diferentes regiões do País e, em si, substitutivos como o CAPS, devido ao número
não trazem nenhuma novidade. Não se trata de insuficiente de unidades para atender à crescente
algo inusitado ou mesmo desconhecido da maioria demanda, ao tempo excessivo de sua utilização
daqueles que vivem o cotidiano da saúde mental. pelos usuários, ao insuficiente registro de altas e à
Entretanto, são indicadores importantes dos absoluta falta de articulação entre esses serviços
problemas e dos desafios hoje colocados aos e a rede de atenção básica (ALVERGA e
gestores e trabalhadores do campo da saúde DIMENSTEIN, 2005a).
mental. Neste estudo, não há a pretensão de Isso implica a produção de um tipo de
analisar profundamente todas as questões atenção à saúde mental pouco diversificada na
envolvidas nas situações mencionadas. A idéia é rede, que se torna ineficiente na produção de
tentar situar em que campo esses relatos se saúde no meio social do indivíduo. Assim, esse
inserem, que linhas os compõem e para que modelo torna-se paradoxal àquele de assistência
direções seguem as políticas de saúde mental. à saúde proposto pela reforma psiquiátrica e a

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seus aspectos fundamentais: a desconstrução de seja, aliar a clínica à política), bem como a
saberes e de práticas restritos à mera dificuldade de aliar a formação permanente às
desospitalização e a produção de cuidados em práticas dos serviços, de modo que as marcas da
núcleos de base comunitária, na concretude segmentarização, dos especialismos e da
cotidiana dos espaços onde circula a loucura. centralidade (não territorialização das práticas nos
É preciso, dessa maneira, avançar nos contextos diversos) da formação sejam
processos de expansão e de articulação da superadas;
atenção na rede básica e substitutiva e fortalecer (3) A cronicidade produzida pela inexistência ou
o lugar do CAPS como, por exemplo, organizador pela fragilidade de uma efetiva "rede" de atenção
da rede de cuidados em saúde mental, tal como em saúde e, em especial, em saúde mental, que
idealizado pelo Ministério da Saúde, na forma de se verifica na existência desorganizada de várias
dispositivo transitório que funcione, portas de entrada e a falta de portas de saída, de
preferencialmente, na interface com a modo que a rede não se faz, pois, características
comunidade, potencializando os recursos de essenciais como a acentralidade, a conectividade
suporte social existentes e promovendo a e a produção permanente não se operam, e o que
discussão da cultura manicomial que perpassa os vemos é "um conjunto de pontos ligados frágil e
mais diferentes espaços de convívio. Em diversos burocraticamente" (p. 205).
trabalhos (MERHY, 2004; MERHY et al, 2002) há Ou seja, essas duas formas de prestação de
o alerta para o problema (presente em todo cuidados devem estar articuladas, gerar
território nacional) de institucionalização dos responsabilidades compartilhadas entre as
CAPS e da produção de novas cronicidades que equipes e evitar que o usuário não vá direto ao
se expressam na retenção de usuários, em modos hospital psiquiátrico.
de gestão resistentes em operar para fora do Esses questionamentos também se aplicam
serviço, em produzir portas de saída e de em relação ao mais novo dispositivo da reforma
circulação na rede, aspectos que podem estar psiquiátrica brasileira: os serviços residenciais
transformando os CAPS em manicômios terapêuticos (SRTs). Esses serviços, em linhas
disfarçados. gerais, são propostos como modalidade de
Corroborando essa discussão, Barros (2003) cuidado que oferece às pessoas com história de
aponta para três "ordens de cronicidade": longa internação em hospital psiquiátrico e que
permaneciam internadas, devido à perda de
(1) As "novas cronicidades" dos pacientes que se vínculos familiares e sociais, a possibilidade de
tornam "usuários-pacientes", pois estão e/ou são construir uma vida na cidade, de habitar numa
postos como passivos frente ao desafio de casa como outra qualquer, de circular livremente
produção de outra subjetivação, seja porque o pelos espaços públicos, de receber assistência
contexto sóciofamiliar é refratário à inclusão e o por técnicos cuidadores e acompanhamento
sociopolítico é adverso e precário, seja porque as ambulatorial pelos Centros de Atenção
condições socioculturais mais amplas são Psicossocial.
marcadamente discriminatórias em relação aos Na realidade específico da saúde mental,
chamados "pacientes psiquiátricos", de modo que em Natal, esse serviço foi implantado muito
as ofertas como as de trabalho são raras e recentemente. Isso despertou nosso interesse
acompanham o modelo formal do mercado sobre como seria o processo de
capitalista, ao exigir profissionalização e desinstitucionalização dessas pessoas, um
disciplinarização; dispositivo que fosse potencialmente livre de
(2) A cronicidade dos modos de gestão, dos "cronicidades" e repleto de desafios em sua
dispositivos e dos profissionais, refletida pela implantação.
dificuldade em aliar a discussão clínica à análise Entre esses desafios, estaria a
dos processos de trabalho e das instituições (ou desconstrução de formas comuns e hegemônicas

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de habitar a cidade, de modos de morar e de terapêutico se configura a cada incursão no
formas de cuidar e de "clinicar", considerando as espaço urbano. Em outras palavras, é
imprevisibilidades que o encontro da loucura, em interessante investir no dispositivo do AT, seja em
sua estranheza e em suas formas sua potência clínica de intervenção com usuários,
institucionalizadas com a cidade, coloca para familiares e redes sociais, seja em sua potência
esses moradores e cuidadores. Supomos que tais analisadora do próprio movimento da Reforma
encontros com a cidade seriam potentes para a Psiquiátrica.
desconstrução da lógica manicomial, a partir da Nesse sentido, consideramos imprescindível
diversidade de formas de vida que nela se identificar e capacitar equipes de AT e estabelecer
desenvolvem, cotidianamente, nos espaços de uma central que possa dar suporte aos mais
sociabilidade, solidariedade e convívio com a diferentes serviços, seja de atenção básica, seja
diferença, que coloca em questão as forças especializado, bem como às equipes de atenção
homogeneizantes e aprisionadoras das básica.
subjetividades contemporâneas. Outro ponto importante na constituição
Assim, o encontro com a cidade e com a dessa rede integrada diz respeito à consolidação
vida cotidiana no espaço além dos muros da Política Nacional de Humanização do
manicomiais, em sentido restrito, exigirá o Ministério da Saúde e, conseqüentemente, à
desenvolvimento de novas práticas de saúde. Tais implementação de uma de suas estratégias, a do
práticas também deverão ser direcionadas para "Apoio Matricial", ou seja, a capacitação de uma
além das intervenções dos cuidadores, equipe de supervisores institucionais que possam
constituindo-se em estratégias que esses operacionalizar a política de saúde mental do
moradores construirão no encontro com a cidade, município, extrapolando o viés estritamente clínico
em seus diferentes espaços de sociabilidade e tal como vem, tradicionalmente, sendo exercido
nas formas de cuidado e de vida que ela pode por aqueles que ocupam esse lugar.
oferecer. O Apoio Matricial é uma estratégia de
Um dos aspectos importantes dentro desse interlocução na rede de saúde, que tem por meta
processo de reorientação da atenção em saúde pensar a saúde mental inserida na saúde como
mental diz respeito à capacitação dos um todo e construir estratégias que permitam e/ou
Acompanhantes Terapêuticos (AT) para que facilitem o direcionamento dos fluxos na rede.
possam dar suporte às diversas equipes Nesse contexto, o Apoio Matricial é um
espalhadas na rede de saúde. arranjo institucional criado para promover
A presença dos AT é um dispositivo interlocução entre os serviços de saúde mental,
fundamental no processo de reforma psiquiátrica e como os CAPS e as Unidades Básicas de Saúde
de inserção dos portadores de transtornos (UBS). Destina-se, principalmente, a contribuir
mentais na vida extramanicomial. É uma com a implementação de uma clínica ampliada; a
modalidade de atenção que utiliza o espaço favorecer a co-responsabilização entre as
público e a cidade como locais para processar sua equipes; a servir de apoio para as equipes de
ação, na medida em que visa à circulação do referência; a promover saúde e diversidade de
usuário na cotidianidade ao investir em estratégias ofertas terapêuticas.
de enlace social. Tal modalidade de atenção não Para isso, é necessário que o profissional da
é restrita a um grupo específico de técnicos, mas saúde mental acompanhe freqüentemente as
pode ser exercida por diferentes pessoas que, equipes das UBS, especialmente aquelas que não
após treinamento adequado, podem exercer a possuem equipe de saúde mental, propiciando um
função de acompanhantes terapêuticos. suporte teórico-prático. O apoio matricial é
O dispositivo do AT se insere além do diferente da lógica do encaminhamento ou da
espaço estrito dos estabelecimentos de saúde, ao referência e contra-referência, porque implica a
realizar uma "clínica sem muros" na qual o setting responsabilidade compartilhada dos casos. Visa,

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portanto, aumentar a capacidade resolutiva da Sobre esse último aspecto, há vasto material
equipe local. literário cujos autores discutem e problematizam a
Segundo documento do Ministério da Saúde formação, a produção de conhecimento e as
(2004), práticas do psicólogo no contexto da saúde
A equipe de referência e o apoio matricial, juntos, pública (DIMENSTEIN, 1998, 2000 e 2004;
permitem um modelo de atendimento voltado LAZZAROTTO, 2004; MATOS, 2004; LIMA, 2005;
para as necessidades de cada usuário: as BARROS, 2005).
equipes conhecem os usuários que estão sob o Tais trabalhos têm em comum a crítica às
seu cuidado e isso favorece a construção de
teorias e às práticas descontextualizadas, ainda
vínculos terapêuticos e a responsabilização
pregnantes no campo, à marca biologicista das
(definição de responsabilidades) das
equipes...sendo assim, ferramentas concepções de saúde, loucura etc., que norteiam
indispensáveis para humanização da atenção e a atuação do psicólogo, à reprodução de modelos
da gestão em saúde (p. 14). técnicos individualizantes, operados por teorias de
cunho essencialista, à psicologia atemporal, a-
Em Natal, a SMS vem investindo nessa histórica e a-política, orientada pelo desejo de
experiência e, atualmente, conta com uma equipe adaptação e adequação do que se encontra fora
de 16 apoiadores que se articulam em duplas e da ordem. Recentemente, o Conselho Federal de
acompanham o trabalho de oito USF. Porém, em Psicologia (CFP) e a Associação Brasileira de
Natal existem 32 Unidades de Saúde da Família Ensino em Psicologia (ABEP) realizaram
que demandam acompanhamento do trabalho que seminário para refletir sobre a especificidade do
realizam. Notamos, portanto, a necessidade de foco do exercício profissional, os saberes que
ampliar as equipes de apoiadores para estender a orientam as práticas, o fracionamento das tarefas,
cobertura que, atualmente, vem se realizando. as questões ligadas às identidades e às
Com base nesses pontos, insistimos na características dos agentes da prática profissional,
questão de que é preciso investir na construção entre outros.
de uma rede integrada de atenção à saúde, no Trata-se de uma discussão que o campo
reordenamento dos serviços de atenção precisa operar cotidianamente.
especializados, para que estejam voltados para a O segundo grupo de problemas/desafios
produção e para a identificação de uma rede de para a política de saúde mental pode ser
lugares de acolhimento no território, no identificado a partir do relato trazido, no início do
incremento das residências terapêuticas (pois são texto, a respeito dessa vontade que alguns
os equipamentos que têm mais potencial de usuários demonstram de permanecerem
desconstruir a lógica manicomial). hospitalizados e sob a tutela do Estado.
É também necessário investir, maciçamente, Os autores apontaram que, para eles, o
na capacitação dos trabalhadores da atenção hospital representa um local seguro diante dos
básica e dos acompanhantes terapêuticos que perigos da cidade, considerada perigosa e hostil à
possam dar suporte aos diferentes serviços, assim loucura, garante condições básicas de
como constituir equipes de saúde mental de sobrevivência (abrigo, alimentação, roupa limpa
referência (apoio matricial) para a atenção básica etc) e de tratamento de saúde (medicação e
e implementar a supervisão institucional como assistência).
dispositivo de reorganização da atenção em rede O hospital-albergue, por assim dizer, os
e de materialização da política de saúde mental, protege, também, do retorno ao mundo do
escapando dos velhos modelos clínicos presentes trabalho, extremamente competitivo e desigual,
no mundo "psi". bem como da falta de programas e equipamentos
Todas essas ações podem repercutir clara e sociais que viabilizariam seu acolhimento na vida
diretamente na reinserção social dos usuários de extramanicomial.
serviços de saúde mental.

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Novamente nos deparamos com exploração sejam desejadas? Por que costuramos
argumentos absolutamente pertinentes e legítimos tantas burcas que, mesmo de cores e tecidos
quando sabemos que a grande maioria das variados, são sempre fôrmas-prisões? Por que o
pessoas que vive muitos anos confinada em desejo investe contra si mesmo e a favor do
hospitais psiquiátricos tem comprometimentos fortalecimento do status quo (ROLNIK, 1989)?
importantes em termos de suas habilidades e de Trata-se, então, do enfrentamento de um desejo-
seu trânsito fora do ambiente hospitalar. escravo presente em nós.
Ou seja, é preciso enfrentar a absoluta Esses questionamentos nos indicam que
falta de uma rede de equipamentos sociais - somos capturados constantemente pela tentação
comunitários e familiares - que sirva de base de do conforto das formas e dos equilíbrios; indicam
apoio e de local de acolhimento, diversão e também que empreendemos, a todo o momento,
encontro para que as pessoas não fiquem processos de institucionalização da vida e que
confinadas nas instituições, ou mesmo na família, ajudamos a modular os sistemas de saberes-
e circulem pelas cidades. poderes que nos atravessam e a conservar as
Nesse sentido, as residências terapêuticas redes invisíveis de subjetivação moral, que
e os acompanhantes terapêuticos são dispositivos sabotam as forças vivas da vida, a potência do
potentes para propiciar a inserção do portador de novo, do desconhecido, do inusitado, da
transtorno mental na cidade, para fazê-los circular diferença.
por outros circuitos, que não os cronificantes. Chamamos isso de "desejos de
Tanto a primeira categoria de problemas manicômio". Trata-se de uma lógica; são marcas
(referente à dinâmica institucional e à organização invisíveis que produzem formas de subjetivações.
do processo de trabalho) quanto a segunda (sobre Segundo Machado e Lavrador (2001), essa lógica
a ausência de equipamentos de suporte social) se expressa "através de um desejo em nós de
não são suficientes para nos fazer avançar na dominar, de subjugar, de classificar, de
compreensão daquilo que caminha na contramão hierarquizar, de oprimir e de controlar.
do processo de reforma psiquiátrica, na medida Esses manicômios se fazem presentes em
em que se constitui como obstáculo às equipes e toda e qualquer forma de expressão que se
aos gestores. sustente numa racionalidade carcerária,
Há algo mais que resiste à explicativa e despótica" (p. 46).
desinstitucionalização e que insiste na Entretanto, o mais importante é que essa
manutenção da lógica manicomial, aspecto que lógica manicomial não está restrita a um campo
será abordado a seguir. específico de práticas. Ou seja, a fabricação
O terceiro e último ponto observado para desses modos de existência, capturados em sua
discutir as questões da reinserção dos portadores força de invenção, de devires fascistas que se
de transtornos mentais é um desafio que, apesar voltam em nome da razão, à correção de tudo o
de estar presente no cotidiano, é pouco palpável que escapa à normalidade, à vigilância
porque implica acompanhar movimentos invisíveis ininterrupta para não sairmos da ordem, à
não de sujeitos ou de pessoas, mas de produção de práticas e tecnologias de
"operações estratégicas do desejo" (ROLNIK, disciplinarização é algo que perpassa o cotidiano,
1989). que alimenta os modos pelos quais circulam as
Essa faceta dos problemas/desafio ganha pessoas nos espaços sociais, nossos atos e
sentido numa indagação spinozana, que poderia formas de pensar.
servir para nossas reflexões do dia-a-dia: por que Portanto, não é algo produzido
as pessoas lutam por sua própria opressão como especificamente no contexto da saúde mental; são
se estivessem lutando por liberdade? movimentos que atravessam o socius, o tornar-se
Por que produzimos modos de existência humano contemporâneo. Isso quer dizer que eles
tiranos que fazem com que a hierarquia e a

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envolvem todos nós; estão dentro e fora dos serviços etc., seja, principalmente, o de "produzir
muros dos hospitais. modos de viver, pensar e sentir" capazes de
Nesse sentido, as novas modalidades afirmar a potência de efetuação da vida, a partir
terapêuticas, tais como os serviços substitutivos, da invenção permanente de práticas aptas a
não garantem, por si só, a superação desse deflagrar movimentos de singularização a
desejo de exclusão e de exploração que desmascarar tais códigos, revelar os movimentos
carregamos. de apropriação, de exploração, de etiquetamento,
Ancoramo-nos em Santos (2001) para de controle e de produção de cronicidade, ou seja,
pensar a reforma psiquiátrica como movimento daqueles que buscam manter o manicômio vivo.
social mais amplo onde "as formas de opressão e São exatamente nesses movimentos de
de exclusão contra as quais lutamos não podem inssurreição que se encontram as possibilidades
ser abolidas com a mera concessão de direitos, de ruptura com o instituído e com as supostas
como é típico da cidadania, mas exigem uma "boas intenções" que não nos permitem ousar,
reconversão global dos processos de "sair da linha". Não se trata de estabelecer
socialização" (p. 261). fórmulas prontas de como agir, de como ser
Ou seja, trata-se de um processo de inventivo, tampouco de desqualificar esses
desinstitucionalização do social, do nosso apego à aspectos que emperram determinados processos
formas de vida institucionalizadas, em que é vitais.
preciso produzir "um olhar que abandona o modo Ao contrário, o que se pontua é
de ver próprio da razão" (ABOU-YD E SILVA, exatamente a impossibilidade de desconhecermos
2003, p. 41), abrir uma via de acesso à escuta ou não discutirmos o funcionamento de um
qualificada da desrazão e considerar outras rotas sistema produtor de subjetividades assujeitadas.
possíveis que possam não apenas lutar contra a Nosso compromisso é com a participação em um
sujeição fundante da sociabilidade capitalista, mas bloco de forças que tenha a potencialidade de
também instigar a desconstrução cotidiana e romper e gerar estímulos capazes de produzir
interminável das relações de dominação. mudanças na ordem estabelecida, nos modelos
Ou seja, é fazer a revolução do dia-a-dia de atenção e nas práticas profissionais
dentro e fora dos serviços de saúde. cronificadas.
Diante disso nos perguntamos: contra o que Trata-se, pois, de ir em busca de milagres
devemos lutar, então? Contra o que precisamos em favor do inesperado e do imprevisível que só
provocar insurreições, inconformações, podem nos tocar se sentirmos o hálito do mundo
terrorismo? em nossa pele.
Alguns inconformados, espalhados pelo
mundo, dizem: contra idéias letais e asfixiantes REFERÊNCIAS
(BEY, 2003), contra o fácil trajeto dos obedientes
(PASSETTI, 2004), contra o espírito de rebanho ABOU-YD, Miriam Nadim & SILVA, Rosimeire. A lógica
produzido por nós mesmos (CASTELO BRANCO, dos mapas: marcando diferenças. In: Loucura, Ética e
2004), contra os desejos de manicômio que nos Política: escritos militantes. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2003, p. 40-48.
atravessam (ALVERGA E DIMENSTEIN, 2005b),
ALVERGA, Alex e DIMENSTEIN, Magda. Salud mental
contra os amoladores de faca, sábios,
en la atención básica. Construyendo la integralidad en
especialistas, pastores da alma, da ciência, da
el Sistema Unico de Salud en Brasil. Revista
culpa, do medo, que criam a necessidade de Alternativas en Psicología, México, p. 67-77, 2005a.
tutela de diversas ordens (BAPTISTA, 1999). ALVERGA, Alex e DIMENSTEIN, Magda. A loucura
Consideramos que nosso desafio para a interrompida nas malhas da subjetividade. In:
reinserção social de portadores de transtornos AMARANTE, P. (Org.). Archivos de Saúde Mental e
mentais, além de produzir alternativas concretas, Atenção Psicossocial 2. Rio de Janeiro: NAU, 2005b, p.
em termos de equipamentos, alternativas, 45-66.

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