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“ O papel do psicólogo e a dimensão


ético-política do sofrimento e do
cuidado em saúde: contribuições
heideggerianas

Cleison Guimarães Pimentel


UFAM/UNIFEG/UCAM

10.37885/200800802
RESUMO

As estruturas de atenção em saúde pública/coletiva que vêm sendo praticadas a partir


das propostas da Reforma Sanitária e Psiquiátrica no Brasil abriam espaço para novas
compreensões acerca dos processos de saúde/doença, impactando o enfoque do
sofrimento no plano teórico-assistencial-clínico, bem como os modelos de atenção e
cuidado à saúde. Esta investigação possui três objetivos: 1) refletir sobre alguns impasses
que surgem como desafios à construção da dimensão ético-político do sofrimento e do
cuidado na Saúde Coletiva, em especial a saúde mental, tendo como eixo norteador
o papel do psicólogo nesse campo de atuação; 2) analisar o trabalho do profissional
de psicologia que atua no CAPS e quais lógicas de cuidado à saúde orientam o seu
trabalho; e 3) bem como propor uma concepção de cuidado à saúde considerando uma
perspectiva pautada na filosofia fenomenológica-hermenêutica de Martin Heidegger. Foi
adotado como método a revisão de literatura para abarcar esse problemática e como
como resultados foi percebida a existência de duas lógicas que conduzem o trabalho
em cuidados à saúde, a lógica tradicional e a lógica da reforma psiquiátrica e que em
muitos momentos os profissionais de psicologia se orientam por ambas e junto disso foi
apontando que a adoção do conceito de cuidado como fenômeno originário da existência
presente na perspectiva de Martin Heidegger pode auxiliar no processo de rearticulação
da lógica da reforma psiquiátrica.

Palavras-chave: Dimensão ético-política; Sofrimento e cuidado; Saúde coletiva; Psicologia;


Fenomenologia-hermenêutica.
INTRODUÇÃO

Com o transcorrer dos anos foram criadas distintas configurações de se compreender


o que seria a doença e o processo de cura ou cuidado adequados, tanto na dimensão bio-
lógica e psíquica. Entretanto, boa parte desses tratamentos foram sendo organizados de
um modo que aquele que padece de algum sofrimento mental acabaria por ser internado.
Esse modelo foi sendo criticado por outros autores que apontavam que o mesmo inviabiliza
a permanência na vida social e por decorrência uma alienação do sujeito.
Através de um processo de desconstrução dessa ideologia vigente na época, autores
como Pinel e Basaglia abriram o espaço para a possibilidade repensar o cuidado e tratamento
ao sofrimento psíquico que não estive mais centrado no modelo de internação hospitalar que
isolava o sujeito, mas em um modelo que viabilizasse um trabalho comunitário e de resgates
dos vínculos desse indivíduo com o seu contexto (TENÓRIO, 2001).
Com base nisso, podemos destacar o nascimento do processo da Reforma Sanitária
e Psiquiátrica como sendo parte desse processo de mudança do modelo de tratamento a
saúde mental. A Reforma ao denunciar maus-tratos, abandonos, além de desvios e frau-
des nas verbas dos hospitais, que sofriam os pacientes e através da luta antimanicomial,
respondendo às demandas sociais, políticas, clínicas através da recuperação da cidadania
de pessoas que sofrem psiquicamente e a defesa ao direito a convivência social, todo esse
processo ocorre através da reformulação de políticas públicas de saúde mental (ANTUNES;
BOTELHO; COSTA, 2013).
O marco fundamental da Reforma foi a VIII Conferência Nacional de Saúde realizada
em 1986, esse encontro teve um papel importantíssimo em todo o movimento produzido
pela crítica ao modelo hospitalocêntrico e proporcionou as bases da Reforma Sanitária e
Psiquiátrica através de um entendimento ampliado de saúde, compreendida através de
um ponto de vista que considera a saúde como direito de cidadania e dever do Estado (DI-
MENSTEIN, 1998).
Com base nessas questões, a VIII Conferência Nacional em Saúde apontou a impor-
tante necessidade de reformular a formação de profissionais em saúde baseada em uma
nova lógica. É nesse novo contexto social que profissionais de psicologia passam a atuar
na rede pública de saúde, sendo implantados no setor de atenção à saúde mental. Desde
o nascimento da Psicologia como profissão, a prática psicológica estava pautada principal-
mente para a atuação na clínica privada, e em alguns momentos na escola e na indústria,
mas em ambos os casos vemos a profissão alienada ao processo histórico e político do
país. Com isso, a partir do papel transformador da Reforma Psiquiátrica, uma nova proble-
mática se impõe à Psicologia, advinda da inserção dos psicólogos na rede pública de saúde
(VASCONCELOS, 2004).

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Nesse sentido, o profissional psicólogo no contexto social e político brasileiro sendo
inserido na rede pública depara-se com reflexões sobre sua prática que até então era vol-
tada para outros campos, e em decorrência desse processo os psicólogos que adentravam
na rede pública se mostraram totalmente despreparados para os novos desafios e serviços
que encontraram: grupos sociais das classes populares (VASCONCELOS, 2004).
Com isso, a atuação do psicólogo na Saúde Mental Pública vem atravessando um percur-
so de transformação, antes ancorado nos saberes e fazeres da clínica psicológica tradicional
sem uma imperiosa contextualização e hoje um contínuo e necessário desenvolvimento de
um redirecionamento da prática psicológica propondo a urgência de uma atuação atraves-
sada por uma série de questionamentos político-sociais e comprometida com a dimensão
ético-política da profissão, bem como a dimensão ético-política do sofrimento e do cuidado.
O crescente envolvimento e atuação de psicólogos dentro dos serviços ofertados pe-
las Unidades Básicas de Saúde, Centro de Atenção Psicossocial, Serviços Residenciais
Terapêuticos ou qualquer outro serviço vinculado à assistência em Saúde Pública, vem
proporcionando certos desafios e angústia para os psicólogos compromissados com uma
outra postura, outra forma de conceber as relações sociais, o homem e a vida (ANDRADE;
MORATO, 2004).
Toda a discussão exposta até aqui concorda com a proposta de uma “clínica ampliada”,
que reformula a noção de doença mental oriundo da clínica tradicional e propõe olhar para a
dimensão ético-política do sofrimento e do cuidado enquanto uma nova lógica profissional,
um olhar que privilegia um voltar-se para a experiência da pessoa enferma em sua totali-
dade, valorizando tanto as condições objetivas de vida, como as subjetivas, econômicas e
sócio-políticas (TENÓRIO, 2001).
Com isso, propomos nesse trabalho uma discussão sobre três aspectos: 1) com o
processo da Reforma Psiquiátrica a dimensão ético-político do sofrimento e do cuidado vem
sendo transformada em contraposição a lógica tradicional; 2) com base nisso, é possível
olhar através da atuação do psicólogo, no campo da Saúde Coletiva na área mental e obser-
var como essas lógicas ainda podem estar presentes na orientação do trabalho do mesmo;
e 3) partir disso trazer uma reflexão da noção de cuidado em saúde com base na filosofia
fenomenológico-hermenêutica de Martin Heidegger, que acreditamos que essa noção pode
proporcionar uma continua rearticulação da lógica da reforma psiquiátrica. Acreditamos que
esse trabalho pode oferecer um novo tijolo nesse caminho de reforma e ampliação dos novos
modos de fazer saúde na contemporaneidade.

MÉTODO

Foi realizada uma revisão bibliográfica de caráter descritivo (MANCINI & SAMPAIO,

230 Saúde em Foco: Temas Contemporâneos - Volume 2


2006) sobre os objetos de estudo desse trabalho em revistas acadêmicas científicas dis-
poníveis on-line onde utilizou-se materiais disponíveis no portal do Ministério da Saúde e
trabalhados publicados na plataforma Scielo, utilizando os determinados descritores: “CAPS”,
“atuação do psicólogo e atividades que desenvolvem nos serviços de saúde mental”, “abor-
dagens utilizadas pelos psicólogos nos CAPS”, “dimensão ético-politica do cuidado”, “di-
mensão ético-político do sofrimento”, “filosofia heideggeriana” e “cuidado em Heidegger”.
Os artigos selecionados foram publicados nos períodos de 2000 a 2018 e são escritos em
língua portuguesa. Para excluir os trabalhos necessários foi realizada uma leitura prévia dos
resumos dos mesmos e partir daí foram sendo escolhidos de acordo com os descritores.
Além disso, foram selecionados um material do Ministério da Saúde e o trabalho Ser e Tempo
(1927/2012) de autoria de Martin Heidegger. Os trabalhos foram organizados nas seguintes
categorias: 1) Reforma Psiquiátrica como possibilidade de uma nova lógica; 2) O processo
de humanização dos serviços de saúde: acolhimento, responsabilização e vínculo; 3) Dos
dispositivos em saúde mental à escuta qualificada/ampliada: o sujeito como ser existencial;
4) A dimensão ético-político do sofrimento e do cuidado; 5) O papel do psicólogo na saúde
coletiva: novas ações clínicas; 6) O papel do psicólogo no Centro de Atenção Psicossocial;
e 7) Uma proposta da noção de cuidado em saúde na perspectiva fenomenológica-herme-
nêutica de Martin Heidegger. Os artigos foram organizados na tabela abaixo para melhor
visualização:

Ano de publi-
Título da publicação Autores Revista/Editora Base/Periódico
cação
A transformação do sofrimento em
BRANT L.C., MINAYO- Ciência e Saúde Co-
adoecimento: do nascimento da clinica Scielo 2004
-GOMES C. letiva
a psicodinâmica do trabalho.
Ministério da Saúde. Ministério da Saúde. Ministério da Saúde.
Saúde Mental. Secretaria de Atenção à Secretaria de Atenção à Secretaria de Aten- 2013
Saúde Saúde ção à Saúde
Ressignificando a Prática Psicológica:
CANTELE, Juliana; AR- Psicologia, Ciência e
o Olhar da Equipe Multiprofissional dos Scielo 2017
PINI, Dorian Monica. profissão
Centros de Atenção Psicossocial.
Psicologia e saúde pública: interlocu-
ções acerca das práticas nos centros CAVALCANTE, K.B. Ciência e saúde coletiva Scielo 2011
de atenção psicossocial – CAPS.
A Escuta da Diferença na Emergência
CORBISIER, C. Ciência e saúde coletiva Scielo 2010
Psiquiátrica.
FERNANDES, Amanda
Dourado Souza Akahosi;
Práticas de cuidado em saúde mental
MATSUKURA, Thelma Cadernos Brasileiros de
na Atenção Básica: identificando pes- Scielo 2018
Simões; LOURENCO, Terapia Ocupacional
quisas no contexto brasileiro.
Mariana Santos De
Giorgio.
Rev. de Terapia Ges-
A clínica da aflição e os ajustamentos GRANZOTTO, M. J. M.; talt de la Asociación
Scielo 2012
ético-políticos. GRANZOTTO, R. L. Española de Terapia
Gestalt
Ser e Tempo HEIDEGGER, M. Ed. Vozes Ed. Vozes 1927/2012

Saúde em Foco: Temas Contemporâneos - Volume 2 231


JUCÁ, V. J. S. MEDRA-
Atuação psicológica e dispositivos
DO, A. C. SAFIRA, L.
grupais nos centros de atenção psicos- Revista Mental Scielo 2010
GOMES, L. P. M. NAS-
social.
CIMENTO, V.G.
A Construção do Plano da Clínica e o PASSOS, E.; BARROS, Psicologia: teoria e
Scielo 2000
Conceito de Transdisciplinaridade. R. B. pesquisa
Psicólogos no processo de reforma psi- SALES, A.L.L.F. DI-
Psicologia em estudo Scielo 2009
quiátrica: práticas em desconstrução? MENSTEIN, M.
SANTIN, G.; KLAFKE,
A família e o cuidado em saúde mental. Barbaroi Scielo 2011
T. E.
Contratualidade e Reabilitação Psicos-
TIKANORI, R. K. Ciência e saúde coletiva Scielo 2001
social.
Desafios políticos da reforma psiquiá-
VASCONCELOS, E. M. Ciência e saúde coletiva Scielo 2010
trica brasileira.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Reforma Psiquiátrica como possibilidade de uma nova lógica

Através dos avanços das Reformas Sanitária e Psiquiátrica no Brasil, muitas mudanças
vêm ocorrendo no setor público de saúde. Certamente a maior conquista ocorre no campo da
saúde mental, onde o processo de desinstitucionalização do portador de sofrimento psíquico
está ocorrendo através da gradual implementação de serviços de saúde em meio aberto e
numa perspectiva comunitária, com isso alguns dispositivos estão sendo implantados que
visem esse objetivo, tais como: os CAPS, os Hospitais-dia e os Residenciais Terapêuticas.
A partir dessa reformulação gradual, os sujeitos que antes viviam enclausurados e isolados
nos hospitais psiquiátricos, agora podem contar com um tratamento mais próximo de seus
familiares e da comunidade onde vivem.
Mas, antes de darmos prosseguimento sobre a discussão que se propõe esse traba-
lho, é importante refletir os caminhos da história da Saúde Mental até a Política Nacional
de Saúde Mental no Brasil.
Nesse sentido, o modelo manicomial configurava-se em uma base hospitalocêntrica que
olhava os sujeitos institucionalizados através da ideia dos "doentes mentais". Esse modelo
foi construído por discursos médicos que adotavam como prática de tratamento dos pacien-
tes o eletrochoque, a convulsoterapia e etc. Segundo Foucault (1978), o discurso médico
denominava a loucura como anormalidade e desrazão. Com isso, foram criados hospitais
psiquiátricos para oferecer tratamento aos sujeitos acometidos pela doença mental. Essa
perspectiva de trabalho visava uma forma de proteção à sociedade, uma vez que a ideia do
"louco" era percebida como ameaça a normalidade social. O discurso da loucura enquanto
anormalidade e o sistema manicomial como local de tratamento permaneceram por quase
dois séculos.

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A partir do século XX diversas manifestações de críticos passaram a questionar o
sistema manicomial e o tratamento destinado aos doentes mentais. O discurso médico foi
o maior alvo dessas críticas, principalmente por produzir uma exclusão do sujeito. Segundo
Vasconcelos (2010) era necessária uma revisão dos paradigmas dos discursos das ciências
da saúde que reduziam e aprisionavam a loucura como objeto de um saber exclusivamente
médico e a superação das formas assistenciais em saúde que produzem segregação e que
desrespeito a cidadania desse que sofre psiquicamente.
Com isso, surgiram diversos movimentos a favor da reforma psiquiátrica, que queriam
buscavam novas formas de tratamento ao sofrimento mental, visando um resgate do cidadão
que sofre psiquicamente. A partir desses movimentos, novos discursos e novas práticas
passaram a sustentar a relação da loucura com a sociedade. A Reforma Psiquiátrica tem
como objetivo a renovação dos cuidados prestados em saúde mental.
Para isso, Vasconcelos (2010) irá apontar que a reforma psiquiátrica busca transformar
o paradigma de saber da saúde mental e a assistência prestada nessa área. O sistema mani-
comial produziu efeitos antiterapêuticos, e com isso foram adotadas novas estratégias, como
serviços comunitários que atendem às demandas psicológicas e sociais do usuário em crise.
Nesse sentido, a atual Política de Saúde Mental brasileira é o resultado da mobilização
de usuários, familiares e trabalhadores da Saúde iniciada na década de 1980 com o objetivo
de mudar a realidade dos manicômios onde viviam mais de 100 mil pessoas com transtornos
mentais (BRASIL, 2013).
Ainda por volta da década de 1980, através de experiências municipais foram iniciadas
a desinstitucionalização de moradores de manicômios e visando a criação de serviços de
atenção psicossocial para realizar a (re)inserção de usuários em seus territórios existenciais.
Concomitantemente, foram fechados hospitais psiquiátricos à medida que se expandiam
serviços diversificados de cuidado. Nesse sentido, a atenção as pessoas que sofrem psiqui-
camente passam a ter como objetivo o pleno exercício de sua cidadania, e não somente o
controle de sua sintomatologia. Isso implica em organizar serviços abertos, com a participação
ativa dos usuários e formando redes com outras políticas e serviços públicos (BRASIL, 2013).
Em 2001, após mais de dez anos de tramitação no Congresso Nacional, é sanciona-
da a Lei nº 10.216 que afirma os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Os princípios do movimento iniciado na
década de 1980 tornam-se uma política de estado.
Na década de 2000, amplia-se fortemente a Rede de Atenção Psicossocial (Raps),
que passa a integrar, a partir do Decreto Presidencial nº 7508/2011, o conjunto das redes
indispensáveis na constituição das regiões de saúde, visando também a saúde mental, a
partir da criação de equipamentos substitutivos ao modelo manicomial: Centros de Atenção

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Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convi-
vência (Cecos), as Enfermarias de Saúde Mental em hospitais gerais e as Unidades Básicas
de Saúde (BRASIL, 2013).
O processo de Reforma Psiquiátrica tem produzido avanços, porém ainda existem li-
mitações no processo de enfrentamento aos obstáculos diante da desconstrução do modelo
manicomial. Mas, as principais mudanças geradas pela implantação dos novos serviços de
atenção à saúde mental estão relacionadas com a cidadania dos usuários, a valorização
da inserção dos familiares no tratamento e o processo de desmistificação da loucura junto
à comunidade (VASCONCELOS, 2010).
Dentro desse contexto apontado acima, grandes modificações são necessárias e visadas
pelas políticas de saúde: a busca pela participação dos familiares no tratamento em conjunto
com a equipe de saúde que acompanham o usuário desses serviços de saúde mental.
A nova lógica de atenção à saúde mental requer compreender o sujeito como um todo,
como um ser que sofre, que enfrenta momentos desestabilizadores, como separação, luto,
perda de emprego, carência afetiva, entre outros problemas cotidianos que podem levá-lo
a procurar ajuda. Dessa forma, este modelo deve prestar uma atenção à saúde voltada à
integração social do sujeito, procurando mantê-lo em seu contexto familiar e comunitário.
Com isso, família e comunidade servem como suporte fundamental para que o sujeito crie
vínculos comunitários e familiares, produzindo novos modos de viver em sociedade rever-
tendo o modelo manicomial (SANTIN; KLAFKE, 2011).

O processo de humanização dos serviços de saúde: acolhimento, responsabilização


e vínculo

Quando abordamos a noção de humanização em saúde é importante caracterizar esse


processo por meio de alguns pressupostos caros a nova lógica em saúde coletiva, o pri-
meiro deles é ideia de acolhimento presente nas práticas clínicas em saúde mental através
de um processo “intercessor”, ou seja, um conceito-ferramenta capaz de repensar e criticar
as antigas propostas de humanização em saúde e propondo novos territórios de atuação
(DELEUZE, 2000; PASSOS & BARROS, 2000).
Nesse sentido, a ação de acolher pode propor novos processos relacionais em saúde
rompendo com a antiga lógica e criando espaços que se abrem para o humano presente na-
quele que sofre. O acolhimento pode ser traduzido como sendo um olhar orientado ao sujeito
integral que chega ao serviço desde na sala-de-espera ao atendimento propriamente dito.
Como afirma Boff (2002) a importância do acolhimento é de um encontro concreto entre
um rosto e um olhar que supera a indiferença cotidiana, onde a alteridade presente no outro
me reposiciona sobre como estar frente a ele, a alteridade me provoca e convoca, buscando

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uma resposta. Nesse sentido, estar frente a alteridade é lidar com o peso dessa presença
e por isso o trabalho em saúde precisa ser pautada numa perspectiva ética. Estar frente a
alteridade do outro é lidar com a responsabilidade de encontrar esse outro e possibilitar que
o mesmo encontre morada na relação construída entre nós dois. Por isso relações éticas e
acolhedoras não permitem espaços de dominação e alienação .
Com base no que foi exposto até aqui, um trabalho em saúde pautada numa perspec-
tiva ética e acolhedora abre o espaço para pensar as noções de responsabilidade e vínculo.
É importante considerar que acolher é dar impulso ao espaço da vinculação do sujeito em
sofrimento psíquico ao serviço de saúde e assim a produção de responsabilidade.
Quando assumimos o papel da responsabilidade nas práticas de saúde estamos indican-
do a necessidade de uma ação responsável pensada numa territorialização das demandas
presentes naquele espaço social e que convoca uma postura ativa da equipe de saúde frente
a essas questões. É importante considerar que as demandas de sofrimento psíquico nunca
são apenas individuais, mas estão vinculadas a questões sociais e coletivas. Nesse sentido,
os serviços de atenção à saúde mental precisam desenvolver uma atenção psicossocial as
redes sociais e territoriais que os sujeitos atendidos transitam sabendo que todo esse espaço
compõe o modo como esse sujeito lida com o existir (FERNANDES et al., 2018).
Nesse sentido, o processo de vinculação, associado as noções de acolhimento e res-
ponsabilidade, se constitui como um fluxo constante em direção ao afirmação e estreitamento
de um relacionamento assentado nos princípios da confiança e mutualidade. Com base nisso,
essas noções criam o espaço de repensar e propor uma nova lógica de entendimento das
práticas em saúde para que sejam de fato dirigidas ao cuidado. Assim, é possível pensar no
trabalho em saúde como algo construído coletivamente a partir da relação equipe – sujeito
– território (FERNANDES et al., 2018).
Considerando que o espaço onde pessoas com sofrimento psíquico se encontra são
normalmente estruturadas por diversas fragilidades e vulnerabilidades principalmente frente
a rede social que fazem parte. Nesse sentido, o papel da equipe de saúde amparada nessa
nova lógica é de acompanhar a pessoa nesse movimento de resgate de suas ligações com
a sua rede. Esse objetivo é visado por ser conhecido o papel terapêutico que essas redes
podem ter para esse sujeito em aflição (FERNANDES et al., 2018).

Dos dispositivos em saúde mental à escuta qualificada/ampliada: o sujeito como ser


existencial

Atualmente, as políticas públicas de saúde mental vem sendo repensadas e construídas


considerando o conceito de território, ou seja, o espaço de construções a nível simbólico
e de pertencimento existencial do sujeito. Essa consideração deve ser o ponto de apoio

Saúde em Foco: Temas Contemporâneos - Volume 2 235


para propor as estratégias dos dispositivos de atenção psicossocial que viabilizem a novos
agenciamentos sociais aos sujeitos acompanhados pelo serviço. Esse processo objetiva o
desenvolvimento da autonomia dos mesmos.
Essas estratégias devem ser desenvolvidos entre a equipe e o usuário visando de
que esse sujeito possa, na medida de suas possibilidades, cuidar de si mesmo. Com isso,
essa autonomia deve ser construída gradualmente e constantemente. Esse processo não
significa rompimento entre o serviço e o usuário, mas a criação do espaço para que o su-
jeito não necessite do papel do serviço como elemento orientador de seus agenciamentos.
Com isso, podemos dizer que desenvolver autonomia refere-se a capacidade de reordenar
a vida constante com base em um continuo diálogo e interação com as situações diversas
e adversas que estão em jogo em nosso existir (TIKANORY, 2001).
Segundo o autor supracitado autonomia não pode ser confundida com autossuficiência
ou independência. É importante evidenciar o fato que somos dependentes de todos, somos
constituídos por nossas redes, e que somos alguém inacabado, em continua escrita com a
vida. Nesse sentido, a autonomia deve ser vista como sendo a capacidade de alguém con-
seguir gerar normas, ordenamento para a sua vida de acordo com as diversas situações e
adversidades que possa acabar lidando (TIKANORY, 2001).
Com isso, as estratégias dos dispositivos em saúde devem ser pensados visando uma
qualificação da escuta com base na humanização, acolhimento, reponsabilidade, vínculo,
autonomia e centralizada no sujeito e efetuar uma orientação segura aos outros serviços ou
dispositivos da rede de atenção. Uma escuta qualificada é uma atitude ética que objetiva
reconhecer esse que que sofre em sua totalidade, não se voltando apenas para uma parte
do sujeito, mas para a totalidade da existência.
Aqui evidenciamos uma primeira aproximação da filosofia heideggeriana com a nossa
discussão por ser importante a conquista de uma escuta que ouça o sujeito em sua integra-
lidade, de sua existência como um todo, de seus modos de estar-aí no mundo, cuidando
desse ser-aí (dasein) que se é sofrendo com tudo aquilo que lhe vem de encontro do mundo
(HEIDEGGER, 1927/2012).
Nesse sentido, uma escuta qualificada deve ser colocada como “escuta ampliada”, que
seja pensada através da noção de recomplexificação da experiência do sofrimento e abertura
do espaço para as diferenças serem desveladas. Assim é possível pensar as intervenções
em saúde mental de modo mais integral, viabilizando o espaço para que a escuta e a pala-
vra possam ser ditas e ouvidas e nesse processo alcancem o seu fim como instrumento de
organizador das narrativas da vida (CORBISIER, 2010).
Este exercício constante de reflexão sobre o dia-a-dia dos dispositivos de atenção
psicossocial visa mapear as novas possibilidades de intervenção, reconquistando um novo

236 Saúde em Foco: Temas Contemporâneos - Volume 2


espaço em meio ao que há de estabelecido em nossas práticas, para então impulsionar
novas maneiras de operar, encontrando novas linhas de ruptura.

A dimensão ético-político do sofrimento e do cuidado

O sofrimento é uma experiência do gênero humano, faz parte da vida de todos nós e
nesse sentido é uma experiência que pode ser atravessada pela alteridade, para um outro
que é endereçada a uma demanda que solicita algum sentido (BIRMAN, 2003).
O sofrimento cria laços discursivos entre os sujeitos, o que solicita a demanda e aquele
que pode ajudar, e possibilita que estes partilhem as compreensões que são atravessadas
por essas experiências (BRANT; MINAYO-GOMEZ, 2004).
Por ser uma experiência relacional, o sofrimento também carrega o caráter dialógico,
sempre sendo atravessado por uma experiência a dois e por isso o sofrimento possui um
potencial ético-político que revela a tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade
social. Nesse sentido, ao conhecermos o sofrimento ético-político, poderemos analisar as
formas sutis de espoliação humana por trás da aparência da integração social, e, portanto,
compreender a exclusão e a inclusão como as duas faces modernas de velhos e dramáticos
problemas, tais como, a desigualdade social, a injustiça e a exploração (SAWAIA, 2009).
Esse componente ético-político presente na vivência do sofrimento é uma habilidade
e sensibilidade de estar voltado à dor do outro, principalmente quando esse outro sofre as
consequências do modo de produção da lógica da vida capitalista. O sofrimento ético-po-
lítico nos parece a lente necessária para a busca da melhoria das condições de vida e de
saúde da maioria da população, pois, gera a discussão necessária que encaminha de forma
positiva o entendimento crítico das situações que geram sofrimento, produz uma relação
empática entre os que sofrem, possibilitando relações de que produzam dispositivos para a
superação dos sofrimentos (SAWAIA, 2009).
Nesse sentido, percebe-se a necessidade de questionamentos político-sociais que
apontam para a necessidade de construção de práticas que atendam a demanda da Saúde
Pública, onde a mesma precise ser contextualizada nas problemáticas emergentes das clas-
ses menos favorecidas, ou seja, uma atenção a dimensão coletiva do sofrimento aliada a
uma preocupação ou cuidado na dimensão ética-política da ação do psicólogo, um redimen-
sionamento da postura professional. O cuidado ético-político presente na atenção básica a
saúde por parte do psicólogo deve estar pautada em uma escuta singular no espaço clínico,
evitando-se de todas as formas um enquadramento dentro dos parâmetros médicos curati-
vos, mas considerando todo o campo social onde o paciente esteja participando e tornando
possível ajustamentos criativos. Apenas nesse sentido que é possível construir uma clínica
compreendida enquanto cuidado (CIMINO; BARRETO, 2013).

Saúde em Foco: Temas Contemporâneos - Volume 2 237


O papel do psicólogo na saúde coletiva: novas ações clínicas

Intervir na clínica do sofrimento ético-político é aprender a disponibilizar-se para o


encontro, é prover condições para que o sujeito elabore e ressignifique sua experiência de
sofrimento social em relação a vida, a saúde. Nesse sentido, no que diz respeito ao psicólogo
inserido na atenção a saúde mental, sua função é o de oferecer ao usuário um suporte e
inclusão no meio social, principalmente quando todos os demais semelhantes não dispõem
de habilidade para suportar e acolher o sofrimento. Com isso, ao intervir no campo da saú-
de mental, sua atuação será pautada enquanto agente de integração da vida do paciente,
visando a ressignificação de identidade social, onde o usuário do sistema público possa
perceber-se reconhecido nas suas interações sociais, familiares e comunitárias e possuidor
de um valor compartilhado (GRANZOTTO, M. J. M.; GRANZOTTO, R. L., 2012).
Neste sentido, o modelo teórico e prático de intervenção da clínica do sofrimento ético
político oferece ao clínico uma possibilidade sistêmica de cuidado em saúde mental, pois
ultrapassa a dicotomia da medicina tradicional curativa, que tem o seu foco apenas na do-
ença, restringindo-se exclusivamente ao biológico, e trabalha em prol de construir uma rede
de cuidado significativa com os agentes provedores da saúde mental, tais como uma equipe
multiprofissional, a rede de amigos e familiares, apoio matricial e todos os dispositivos da
atenção básica a saúde (GRANZOTTO, M. J. M.; GRANZOTTO, R. L., 2012).
A partir do que foi exposto, visando a viabilizado dessa outra lógica de fazer saúde
e a intervenção seja possível, cabe ao profissional de psicologia primeiramente busque
compreender em sua relação com o paciente adoecido psiquicamente, o modo como este
é convocado a participar do campo social, ou seja, como ele se articula na construção dos
seus ajustamentos éticos-políticos. É a partir desses parâmetros que este diagnóstico social
que o psicólogo terá condições de traçar um plano de intervenção mais assertivo para as
demandas direcionadas ao paciente. Intervenções que possibilitam a criação de espaços
que prezem pelo exercício da cidadania, o acolhimento em todos os seus vínculos sociais,
novos ajustamentos, ou seja, uma autonomia possível (GRANZOTTO, M. J. M.; GRANZOT-
TO, R. L., 2012).

O papel do psicólogo no Centro de Atenção Psicossocial

Para investigar a atuação do psicólogo no Centro de Atenção Psicossocial e inves-


tigar as lógicas que orientam o seu fazer vamos analisar alguns artigos. O primeiro artigo
estudado foi “Atuação psicológica e dispositivos grupais nos centros de atenção psicosso-
cial” dos autores Vladia Jamile dos Santos Jucá, Ana Carolina Medrado, Leonardo Safira,
Lorena Pereira Mascarenhas Gomes e Veronica Gomes Nascimento, publicado em 2010,

238 Saúde em Foco: Temas Contemporâneos - Volume 2


que apresenta uma pesquisa de caráter exploratório e que analisa as narrativas de cinco
psicólogos. Nos CAPS os psicólogos efetuam atendimento individual, mas tem como foco
os atendimentos em grupo, realizados através das oficinas e grupos terapêuticos. Os re-
sultados dessa pesquisa indicaram a dificuldade dos profissionais de atuarem seguindo os
pressupostos das politicas de saúde mental pelo motivo de não conseguirem adequar o
espaço de realização das atividades ao que é solicitado e nesse sentido acabam por praticar
clínica tradicional, principalmente de orientação psicodinâmica, desconsiderando o caráter
sistêmico das políticas públicas.
Outro trabalhado desenvolvido pelos autores André Luis Leite de Figueiredo Sales e
Magda Dimenstein em seu artigo intitulado “Psicologia e modos de trabalho no contexto da
reforma psiquiátrica” publicado em 2009 nos apresenta uma investigação qualitativa, onde
foi realizada entrevistas semiestruturadas com dez psicólogos que compõem o quadro téc-
nico de um CAPS. Aqui também nesse trabalho é indicado a dificuldade que os profissionais
de psicologia tem em acompanhar as novas lógicas de cuidado à saúde mental, indicando
problemas na formação e impeditivos presentes na relação com os usuários do serviço. Em
alguns pontos foi apontado que eles seguem a lógica da reforma psiquiátrica no modo como
eles encaram as queixas dos usuários buscando ter um olhar mais sistêmico e comunitário
das demandas.
O artigo “Psicologia e Saúde Pública: Interlocuções acerca das práticas nos Centros de
Atenção Psicossocial – CAPS” de 2011 apresentou uma pesquisa com questionário misto
com nove psicólogos, com o intento de conhecer o perfil e atuação no CAPS. A autora nos
mostra que as modalidades de atendimentos presentes são individuais e as oficinas tera-
pêuticas, tais atividades são realizadas pelos profissionais por serem vistas como aquelas
que atendem aos pressupostos das políticas de saúde mental e que nisso sentido estaria
presente na nova lógica em cuidados à saúde.
Na pesquisa intitulada “Psicólogos no processo de reforma psiquiátrica: práticas em
desconstrução?” foi desenvolvida uma investigação de cunho qualitativo realizada com dez
psicólogos da rede CAPS. Os profissionais entrevistados dizem trabalhar sob o viés da
psicanálise buscando em conjunto um olhar sistêmico que segundo o entendimento dos
profissionais estaria próximo do que preconiza as políticas de saúde mental. Eles descrevem
que suas atividades são voltados para os serviços de acolhimento aos usuários, triagens,
coordenação de oficinas diversas, grupos operativos e terapêuticos e atendimentos indivi-
duais. As atividades não estão focadas apenas nos usuários, mas também em familiares e
laços comunitários que são significativos aos usuários.
No estudo “Ressignificando a Prática Psicológica: o Olhar da Equipe Multiprofissional
dos Centros de Atenção Psicossocial” foi realizada uma pesquisa qualitativa exploratório,

Saúde em Foco: Temas Contemporâneos - Volume 2 239


com entrevista narrativa, com a equipe do CAPS. No item centrado com nos profissionais de
psicologia foi indicado que eles realizam atividades individuais e grupais com o modelo da
clinica tradicional e ampliada, com atividades de acolhimento, grupos e oficinas terapêuticas
no serviço. Junto a isso foi discutido que os profissionais vivenciam dificuldades conside-
rando a exigência de uma disponibilidade quase que total por parte do serviço e problemas
com as questões políticas.
Com isso, é percebido com base nos artigos a prática clinica e em saúde dos pro-
fissionais de psicologia ainda é muito atravessa pela lógica do modelo tradicional e que o
processo de orientação da nova lógica, a clinica ampliada, ainda está em processo. O que é
apontado é que a ausência de uma teoria mais metodológica que ampare a prática da clínica
ampliada geraria as dificuldade dos psicólogos em se inserir na saúde coletiva. Vemos aqui
a necessidade do desenvolvimento de trabalhos que olhem para esse campo em desenvol-
vimento através da necessidade de um desenvolvimento teórico, bem como a construção de
instrumentos metodológicos e divulgação de relatos de experiências que deem base para a
construção da nova lógica em saúde. Nesse sentido, vamos aqui apresentar uma discussão
que acreditamos abrir espaço para esse desenvolvimento através da discussão da noção
de cuidado presente na filosofia de Martin Heidegger.

Uma proposta da noção de cuidado em saúde na perspectiva fenomenológica-herme-


nêutica de Martin Heidegger

A obra de Martin Heidegger surge como uma dessas importantes contribuições para o
pensamento humano. O filósofo nos apresenta a proposta radical de reconstruir as noções
tradicionais do ser humano. Na obra Em Ser e Tempo Heidegger desconstrói o conheci-
mento metafísico e a ontologia tradicionais em que nossos modos de ver o mundo estão
fundamentados e com isso propondo pensar as questões a partir da questão do ser. Com
isso, Heidegger objetiva superar a nossa tradição. Nesse sentido, vemos no trabalho hei-
deggeriano um espaço de reconstrução das concepções tradicionais que nos orientam em
saúde para assim contribuir na organização de uma nova lógica propondo uma discussão
que olhe para o cuidado em saúde considerando os aspectos ontológicos-existenciais.
Nos trabalhos de Heidegger é importante apontar que pensar o cuidado em saúde
deve ser visto pela ótica ontológica do cuidado. Nesse sentido, para reconstruir as práticas
em saúde é importante considerar o caráter ontológico do cuidado. O cuidado em sentido
ontológico aponta para o próprio caráter existencial do homem: ele sempre cuida. Mesmo
em situações adversas somos um ser do cuidado. Esse cuidado que estamos falando en-
quanto estrutura existencial articula a totalidade da existência e a sustenta (HEIDEGGER,
1927/2012).

240 Saúde em Foco: Temas Contemporâneos - Volume 2


Com isso, Heidegger denomina o ser humano de ser-aí, ser-no-mundo, um ente lan-
çado em um mundo e que cuida dessa existência lançada faticamente no mundo. Pensar
uma ação de cuidado em saúde é considerar que o homem ontologicamente falando antes
de cuidar de sua saúde em termos biomédicos ele cuida da sua existência lançada em
um mundo fático. Nesse sentido, a existência enquanto cuidado é algo mais originário que
apenas práticas de saúde baseadas no cuidado. Olhar para isso é indicar que repensar as
práticas de saúde deve ser realizadas via os elementos ontológicos.
Repensar as práticas de cuidado em saúde a partir da ontologia heideggeriana é ir
de encontro ao seu filosofar como sendo uma constante interrogação a este respeito dos
fundamentos das coisas e como Heidegger (1927/2012) aponta que o próprio ser humano
em sua solidão interroga-se sobre si mesmo, colocando-se em questão e refletindo sobre
ele mesmo e relação com o mundo que é o seu.
Como exposto acima, o cuidado, segundo Heidegger (1927/2012), é o modo de ser
originário e mais completo do ser-aí pois o cuidado constitui o nosso poder-ser, já num mun-
do junto às coisas. Podemos dizer então que todos os modos de ser do ser-aí são cuidado,
ou seja, o ser-aí é cuidado.
Voltando a olhar para o objetivo final desse trabalho: repensar as práticas de cuidado
em saúde com base na filosofia heideggeriana e com isso pensar contribuições. É importante
evidenciar que vivemos os desafios cotidianos dentro dos dispositivos em saúde e que junto
a isso somos recorrentemente empurrados a pensar as estratégias de modo tradicional,
ou seja, desconsiderando o sujeito em si com todas relações que o mesmo tem com o seu
mundo como ser-aí, que contribuem sobre não refletir sobre o cuidado em saúde.
Como já indicado, para Heidegger (1927/2012) o cuidado é uma estrutura originária que
articula todo o nosso existir em relação ao mundo, com isso, não é possível pensar o cuidado
como sendo apenas uma teorização sobre as práticas em saúde, bem como também não
se pode defini-lo como um pressuposto lógico e conceitual, pois o cuidado em sua condição
originária e existencial que constitui quando um de nós indica que devemos considera-lo
constante em nosso agir, porque ao agir como profissional de saúde, de modo “positivo” ou
“negativo, estou sendo cuidado, estou sendo cuidadoso com os meus modos de ser e com
os modos de ser daquele que sofre.
O dasein, o ser-no-mundo é cuidado, como sendo parte constitutiva de nossa condição
de indeterminação ontológica e que sendo os seus modos de ser, em suas performances
existenciais cuida de si. O cuidado em sentido existencial é um espaço de abertura para
possibilidades, como algo que ainda pode ser desvelado.
Pensar o cuidado por meio desses pressupostos ontológicos é uma reordenação de
nossos olhares frente as nossas práticas, frente ao outro que sofre. Neste sentido, qualifi-

Saúde em Foco: Temas Contemporâneos - Volume 2 241


car o cuidado no sentido existencial se torna um aspecto central para o campo da saúde,
sendo assim ilógico e inconcebível continuar executando repetidas vezes certas ações que
são "robotizadas", que não considerando o caráter de ser-com que caracteriza o ser-aí bem
como o cuidado.
O cuidado em saúde não é possível sem a presença de outro ser-aí. Nesse sentido,
a questão do ser-com está implicada na relação que o ser-aí constitui com outro ser-aí. O
ser-aí é sempre é ser-com-os-outros.
Ontologicamente falando o ser humano é ser-com, pode estar com outro de diver-
sos modos possíveis. Quando estamos com outro ser-aí estamos naquilo que Heidegger
(1927/2012) chama de preocupação, que é um modo de cuidar do outro. Esse modo pode
ser expresso em dois: substitutivo e libertador. Na preocupação substitutiva, um ser-aí salta
por cima de outro substituindo o mesmo em seu cuidado, enquanto na preocupação liber-
tadora o ser-aí busca libertar um outro em seu próprio modo de ser-no-mundo, devolvendo
a ele o seu próprio cuidado.
Estes dois modos da preocupação são importantes para pensar o campo das práticas
de saúde. Se relacionar com o outro sob a forma de uma preocupação substitutiva não sig-
nifica transformá-lo em um objeto, mas não é abrir espaço para que esse outro conquiste,
por meio dessa relação, o seu próprio cuidado. Enquanto na preocupação libertadora, o
profissional, o ser-aí, que cuida daquele que sofre jamais poderá ser aquele que apenas
aplica uma técnica ou conhecimento, ou seja, um saber instrumental absolutizado que não
abre o espaço de conquista desse que sofre em relação ao cuidado com o seu existir e junto
a isso não viabiliza a abertura de um espaço que possibilite que o profissional procure se
apropriar de maneira criativa da instrumentalidade presente nas práticas de saúde para a
construção de suas possibilidades existenciais mais próprias, ou seja, ele poderá dizer sim
ou não a técnica sem abafar o cuidado que é para si mesmo e para o outro.
O cuidado que liberta aponta para a necessária reflexão sobre a noção de cuidado
enquanto dependência, o cuidado em saúde implica amparo, é um deixar que o outro possa,
mesmo em suas restrições fácticas, escolher dentre as suas possibilidades que na maioria
das vezes se encontram encobertas, cabe ao cuidado poder abrir espaços para que tais
possibilidades possam se desvelar e à luz e trazer uma maior liberdade.
Pensar o cuidado a nível ontológico e como ser-com é pensar o cuidado em saúde
de modo a poder acolher e estar com o outro propiciando que este possa ser escolhedor
e possa exercer a sua liberdade junto ao acolhimento, vínculo e responsabilização. Nesse
sentido, o cuidado é compreendido como um ato que vai além de processos técnicos, mas
engloba envolvimento e compromisso com o outro, com base em uma ética da alteridade.

242 Saúde em Foco: Temas Contemporâneos - Volume 2


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Olhar para o trabalho do profissional de psicologia é entender os caminhos que ele toma
como trajetória para compreender o seu fazer. Nesse sentido, é se aproximar das lógicas
presentes nas práticas de cuidado à saúde.
O cuidado nas práticas de saúde tem sido um tema tratado recorrentemente por auto-
res da Saúde Coletiva. Essas discussões refletem dois modos contrários de se considerar o
cuidado à saúde, ora baseado com ênfase nos procedimentos e nas intervenções técnicas,
pautada numa lógica tradicional, e em outros momentos com foco na relação de encontro
entre profissionais e usuários dos serviços de saúde, com a influência da Reforma Psiqui-
átrica, a clínica ampliada.
Para pensar essas questões presente trabalho permitiu destacar a necessária e im-
portante atuação do psicólogo na Saúde Pública, com base na Reforma Psiquiátrica, onde
a mesma não se limite a uma prática médica curativa e individualizante, mas que abranja
ações que promovam autonomia, conscientização e empoderamento, visando a transfor-
mação social do usuário do serviço de saúde.
A busca por uma ação que vise a horizontalidade das relações, permitindo um olhar
entre “iguais” para uma atuação contextualizada. Nesse sentido, existe um posicionamento
ético-político de profissionais da psicologia, onde psicólogos possam sair de lugares pré-
-estabelecidos rumo a uma prática comprometida socialmente. Bem como, considerar o
espaço de reconfiguração das práticas de saúde com base nas noções de humanização,
acolhimento, responsabilidade, vínculo e autonomia.
Junto a isso uma importante reflexão sobre a filosofia heideggeriana como sendo um
espaço epistemológico para se rever a antiga lógica de saúde e que contribua a construção
da nova concepção dessas práticas, não pensando o cuidado apenas como algo presente
nas estratégias e dispositivos de saúde, mas como nossa condição ontológica como ser-com,
tornando possível estar com o outro de modo mais livre e criativo.

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