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Abílio da Costa-Rosa

Por que a Atenção Psicossocial exige uma clínica fundada na


psicanálise do campo Freud-Lacan?1

Abílio da Costa-Rosa2
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”

Resumo: Discutimos alguns fundamentos de uma clínica fundada na psicanálise do “campo


Freud-Lacan” que visa a oferecer Atenção aos impasses psíquicos dos sujeitos, no contexto da
Saúde Coletiva, sob a perspectiva do Paradigma Psicossocial definido como superação
dialética da Reforma Psiquiátrica. Para tal, se o horizonte ético da Atenção Psicossocial passa
a ser a implicação dos sujeitos no desejo e no carecimento é justo propor que isso se traduza
num empuxo à Psicanálise. Igualmente, estamos conectados ética e politicamente com o
campo da Reforma Sanitária, originária da luta pela implantação da Saúde Coletiva como
superação radical da Saúde Pública. Destacamos o imprescindível lugar da “Instituição de
Saúde Mental” e dos seus estabelecimentos como intermediários necessários entre os
trabalhadores da área e os sujeitos do tratamento. Assim, ao abordarmos a pertinência da
psicanálise na Saúde Coletiva, elucidamos três temas fundamentais para avançar nessa
direção: 1) adequar o dispositivo institucional a fim de que nele possa caber a psicanálise; 2) a
caracterização de um trabalhador de Saúde Mental de um novo tipo, nomeado como
trabalhador-intercessor, e 3) as noções de “acontecimento-sujeito” e de “transferência” como
primordiais ao trabalho nesse campo. Sublinhamos, ainda, que, no que toca especificamente à
psicanálise, nos localizamos no âmbito da ampliação do que Lacan definiu como “psicanálise
em intensão”, muito longe, portanto, da noção de “psicanálise aplicada”.

1
Publicação póstuma do texto escrito pelo Prof. Dr. Abílio da Costa-Rosa em 2015. Editores do texto
“manuscrito” e confecção do resumo: Maico Fernando Costa, Psicólogo, Mestre e Doutorando em Psicologia
pela UNESP-Assis; Waldir Périco, Psicólogo e Mestre em Psicologia pela UNESP-Assis, Doutorando em
Psicanálise pela UERJ e Silvio José Benelli, Psicólogo e Mestre em Psicologia pela UNESP-Assis, Doutor em
Psicologia Social pela USP/SP. Integrantes do “Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em
Processos de Subjetivação e 'Subjetividadessaúde'” (LATIPPSS).
2
Psicanalista e Analista Institucional, Professor Livre-Docente do departamento de Psicologia Clínica da
UNESP/Assis, SP. Foi um importante trabalhador, teórico e militante do campo da Saúde Mental Coletiva. Nos
últimos vinte anos de sua vida, dedicou-se, apaixonadamente, à formação de trabalhadores para esse campo,
atuando como professor nos cursos de Graduação e Pós-graduação em Psicologia na Universidade Estadual
Paulista (UNESP) – campus de Assis. Fundador do “Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em
Processos de Subjetivação e 'Subjetividadessaúde'” (LATIPPSS) – associado ao Grupo de Pesquisa “Saúde
Mental e Saúde Coletiva” inscrito no diretório de grupos do CNPq.

Revista de Psicologia da UNESP 18 (número especial), 2019. 37


Por que a Atenção Psicossocial exige uma clínica fundada na psicanálise do campo de Freud
e Lacan?

Palavras-chave: Atenção Psicossocial; Psicanálise do campo Freud-Lacan; Saúde Coletiva;


Instituição.

Why does Psychosocial Care require a clinic founded on the Psychoanalysis of the Freud-
Lacan field?

Abstract: We discuss some fundamentals of a clinic founded on psychoanalysis of the “field


Freud-Lacan” that aims to offer Attention to the subjectivity psychic impasses, in the context
of Collective Health, from the perspective of the Psychosocial Paradigm defined as a
dialectical overcoming of the Psychiatric Reform. So, if the ethical horizon of Psychosocial
Care has became the implication of the subjects in desire and in bedurfnis, it is corrected to
propose that this translates into a thrust to Psychoanalysis. Equally, we are connected
ethically and politically with the Health Reform field, originated from the struggle for the
implementation of Collective Health as a radical overcoming of Public Health. We highlight
the indispensable place of the "Mental Health institution" and its establishments as necessary
intermediaries between the workers of the area and the subjects of the treatment. Thus, by
addressing the pertinence of psychoanalysis in Collective Health, we elucidated three
fundamental themes to advance in this direction: 1) To adapt the institutional device to fit the
psychoanalysis; 2) The characterization of a Mental Health worker of a new type, named as
worker-intercessor, and 3) The primordial notions of "event-subject" and of "transference" to
work in this field. We also emphasize that, specifically on psychoanalysis, we are located in
the context of what Lacan defined as "psychoanalysis in Intension", so far from the notion of
"applied psychoanalysis".

Keywords: Psychosocial Care; Psychoanalysis of the Freud-Lacan field; Collective Health;


Institution.

Introdução

Neste trabalho pretende-se discutir alguns fundamentos de uma clínica fundada na


psicanálise do “campo Freud-Lacan” para os impasses psíquicos no campo da Saúde Coletiva,
sob a perspectiva do ideário e das práticas da Atenção Psicossocial, concebidas como um
campo originado da Reforma Psiquiátrica (RP) brasileira, mas também como um campo que
procura introduzir transformações radicais, para fazer avançar/bifurcar a própria RP na

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direção de subversão da lógica paradigmática da psiquiatria. Portanto, a Atenção Psicossocial


que exige a psicanálise, como aqui proposta, corresponde à ética e à política do sujeito do
desejo e do ser humano do carecimento (Costa-Rosa, 2013a).
Para situar as relações intrínsecas da Atenção Psicossocial com o campo da Saúde
Coletiva é necessário introduzir um pequeno comentário histórico. A Saúde Coletiva deve ser
vista como o campo originário das lutas políticas do “Movimento Sanitário Brasileiro”, cujos
efeitos desaguaram nas propostas de um Sistema Único de Saúde (SUS) oriundas da VIII
Conferência Nacional de Saúde, garantidas na constituição federal de 1988, e que deram a
base para as práticas designadas como Reforma Sanitária brasileira, que incluem, entre outras
conquistas, sobretudo, a concretização das primeiras práticas efetivas do SUS, a partir da
década de 1980 (Brasil, 1986; 1988). Nesse sentido, os fundamentos essenciais da Saúde
Coletiva, como campo de práxis referente ao campo da Saúde, incluem as contribuições da
Medicina Social (da qual se extrai uma concepção de saúde, considerada como um complexo
constituído pelo processo de produção saúde-adoecimento-Atenção, resultante e
absolutamente conjugado com os demais processos sociais de produção da vida material,
social, cultural e subjetiva).
A Saúde Coletiva parte, ainda, de uma crítica consistente ao modelo preventivista da
Saúde Pública, na figura da Medicina Preventiva Promotora, esta sim, passível de ser
designada como uma política de Saúde Pública, justamente na medida em que consiste na
transposição modificada do “modelo flexneriano” de Atenção às doenças (modelo
originariamente individualizante, médico-centrado, fundamentalmente curativo, e privatista)
para o conjunto social (Arouca, 2003; Mendes, 2006). Portanto, quando designamos a
Atenção Psicossocial numa extração que procura trabalhá-la como superação das reformas da
psiquiatria, estamos nos conectando ética e politicamente com o campo de lutas da Reforma
Sanitária, originária do movimento de luta pela implantação das propostas da Saúde Coletiva
e não apenas da Saúde Pública.
Esta é, não obstante, a proposta que vigora no SUS; consideração que importa
sobremaneira fazer, para deixar claro que as proposições de uma Atenção Psicossocial
conectada com a ética da Reforma Sanitária, do sujeito do desejo e do ser humano do
carecimento não ignoram que os modelos instituídos e sintônicos com os interesses sociais
dominantes são os modelos que vigoram maciçamente. Desse modo, portanto, nossas
propostas não ignoram seu lugar de táticas numa estratégia ética e política que aceita a tática
da ocupação das brechas abertas no conjunto dos discursos e das práticas instituídas
dominantes, cuja fisionomia e

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e Lacan?

anatomia são antípodas ao ideário da Saúde Coletiva e, nessa medida, dos princípios da
Atenção Psicossocial conceituada dialeticamente além3 das reformas psiquiátricas.
Quanto à psicanálise do campo de Freud-Lacan é bastante adiantar que os conceitos
de Freud (re)cortados, (re)encontrados, (re)lidos e ampliados por Lacan, além dos essenciais
acréscimos ao campo da psicanálise realizados por ele, configurando um campo que alguns
chamaram de quarta psicanálise (na sequência da freudiana, kleinina, psicologia do ego)
(Mezan, 1988), optamos por apresentá-la apenas na medida de nossa necessidade imediata
(mas é importante esclarecer que não se trata apenas da psicanálise lato sensu).

Como ponto de partida, uma constatação fundamental: a instituição é necessária

O acesso à Atenção aos impasses e sofrimentos psíquicos, para camadas amplas da


população – trabalhadores e excluídos do trabalho –, só se tornou possível graças à ação do
Estado como intermediador das relações de tratamento, através da interposição de uma
Formação Social específica: a “Instituição de Saúde Mental” como mais um dispositivo da
produção social. Os campos da Análise Institucional (Lourau, 1970/2014) e o da Análise
Política de Instituições (Luz, 1979; Donnângelo, 2014) têm demonstrado que, como
Formações Sociais específicas, as instituições são produtoras autônomas de sua série de
efeitos que acabam incorporados tanto ao processo de produção que nelas se realiza, quanto
aos seus produtos-fim pretendidos (Costa-Rosa, 2013a).
Em síntese, em quaisquer das suas diferentes figurações, a instituição de Saúde
Mental como Formação Social e dispositivo de produção é, ela própria, um componente
necessário (não-contingente) da análise e da transformação das práticas do campo da Saúde
Mental Coletiva (SMC). E a disposição e a decisão de se levar ou não em conta a presença e
os efeitos desse intermediário podem ter conseqüências absolutamente cruciais; mais
decisivas, ainda, para os resultados daquelas práticas da Atenção Psicossocial que, neste
momento histórico, procuram sustentar as conquistas principais da Reforma Psiquiátrica e
mesmo levá-las ainda mais adiante.

3
[Nota dos editores] A expressão “dialeticamente além” merece um esclarecimento, a fim de melhor situar o
leitor. O autor a emprega no sentido daquilo que a Filosofia da Práxis define como “superação dialética”, ou
“suprassunção” (Aufhebung). Trata-se do movimento dialético em que algo se suprime ou se desfaz, algo é
conservado e algo é elevado a outro estatuto. Assim, o autor propõe uma análise dos avanços operados pela RP
para que possamos, por meio do crivo ético-político da psicanálise e do materialismo histórico, delimitar o que
nela devemos suprimir, o que devemos conservar e o que podemos ampliar para ir a um outro patamar. Quanto a
isso, também temos (Périco, 2016) nos inspirado na noção de “para além” proposta por Lacan (1975-1976/2007),
quando propõe que devemos ir além do pai, contanto que, antes, dele possamos nos servir.

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No caso da produção social de Atenção ao sofrimento psíquico, muitas


transformações têm ocorrido nessa Formação Social específica desde sua figura pioneira, o
velho Manicômio arquitetônico; transformações que, entretanto, até o presente, não
conseguiram deixar de conviver com ele.

Por que a psicanálise no campo da Saúde Mental Coletiva?

Comumente os psicanalistas têm colocado a questão da relevância da psicanálise na


SMC a partir de questões, certamente pertinentes e justas já derivadas das suas inserções
nesse campo. Essas questões, via de regra, têm como foco principal a meta de ampliar o
campo de possibilidades de inserção e atuação da própria psicanálise, e costumam passar ao
largo de considerações ou análises que levem em conta a especificidade e as circunstâncias do
novo campo.
A esse argumento vindo do seio psicanalítico pretendo agregar outros derivados da
análise da especificidade das demandas que chegam às instituições do campo da SMC. Basta
dizer que os impasses, sofrimentos, enigmas, sintomas que interpelam os trabalhadores da
SMC têm essencialmente a especificidade de uma “realidade psíquica” – aquela que Freud
(1950 [1895]/1996) nomeou Realittät: uma realidade que é feita de sentido (consciente e,
sobretudo, inconsciente) e corpo pulsional (muito além, portanto, de qualquer realidade
neuronal). O indivíduo que procura as instituições da SMC é, então, essencialmente um ente
social, cultural e subjetivado que comparece especificamente pelos impasses nessa dimensão
psíquica, subjetiva, da sua realidade. Adiante acrescentaremos outros detalhes que permitirão
compreender aquilo que se especifica aqui como impasses numa realidade psíquica. Por outro
lado, não é preciso dizer que isso caracteriza o “sujeito dos sintomas e sofrimentos psíquicos”
de modo bastante diferente de um organismo, um corpo, ou mesmo um sistema neuronal e
psicológico transtornados.
Na sequência acrescentaremos outros argumentos em favor da tese de que a demanda
de inclusão da psicanálise vem fundamentalmente do próprio campo da Saúde (Mental)
Coletiva. E uma das vias importantes dessa inclusão é constituída pela própria Atenção
Psicossocial como um conjunto de práticas e teorizações do campo de Atenção ao sofrimento
psíquico que tem procurado avançar para além das psiquiatrias reformadas. É verdade que
para falar da relevância e da necessidade da presença da psicanálise no campo da SMC,
mostra-se necessário partir das reflexões realizadas pelos próprios psicanalistas.

Como incluir a psicanálise no campo da Saúde Mental Coletiva?

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Por que a Atenção Psicossocial exige uma clínica fundada na psicanálise do campo de Freud
e Lacan?

Neste ponto pretendo introduzir três temas que considero principais para
avançarmos na direção da resposta à pergunta colocada. 1. Uma configuração
institucional como lugar possível para a psicanálise do campo Freud-Lacan. 2. Alguns
elementos para a caracterização inicial de um trabalhador-intercessor do campo da SMC. 3.
Aspectos clínicos: acontecimento-sujeito e a especificidade da transferência como condição
de possibilidade da clínica fundada na psicanálise na SMC.
Uma instituição como lugar possível para a psicanálise: comecemos pela análise
das transformações do campo da Saúde Mental que sucedem a implantação da Atenção
Psicossocial como política pública oficial do Ministério da Saúde como desdobramento das
conquistas da Reforma Sanitária e da Reforma Psiquiátrica.
É conveniente abordarmos o tema das transformações institucionais em andamento
no campo da Reforma Psiquiátrica e da Atenção Psicossocial sob a perspectiva de uma análise
paradigmática de suas principais características. Ou seja, consideraremos a multiplicidade e
variabilidade das ações no campo da Atenção ao sofrimento psíquico, a partir da sua
agregação em dois conjuntos principais, construídos a partir da análise da sua estruturação
fundamental quanto aos aspectos teóricos, técnicos e ético-políticos que os atravessam.

1. Uma configuração institucional como lugar possível para a psicanálise do campo


Freud-Lacan

Falarei diretamente do Paradigma Psicossocial (PPS) como movimento de subversão


do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador (PPHM), em quatro parâmetros
considerados fundamentais para a sua constituição como paradigmas4:
Parâmetro I. Concepções efetivadas do “referente” das ações de Atenção e dos
“meios” de trabalho do trabalhador-intercessor.
O Paradigma Psicossocial trabalha e luta na direção da subversão das concepções de
Saúde-adoecimento e dos meios utilizados para o tratamento.
Naquilo que diz respeito ao referente das ações de Atenção destacamos alguns
pontos de partida: atua-se diretamente junto a uma “realidade psíquica” (que inclui o corpo)
contextualizadas histórica e socialmente. Realidade psíquica que nos aparece através de seus
diversos impasses. Essa realidade psíquica só pode ser acessada pelos trabalhadores da SMC

4
[Nota dos editores]: Para maiores aprofundamentos dessa análise paradigmática, o leitor pode consultar vários
trabalhos (Costa-Rosa, 1987; 1999; 2000; 2013b; Costa-Rosa, Luzio & Yasui, 2003).

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através da mediação de “realidades sociais” subjetivadas – as Formações Sociais: o Território,


a instituição como dispositivo social de produção, as disciplinas profissionais, a concepção
implícita ou explícita de ciência, a divisão técnica e a divisão social do trabalho.
Como referente imediato da ação “terapêutica” essa realidade psíquica já inclui o
sujeito, como sujeito dividido, tal como é grafado na psicanálise do campo Freud-Lacan ($), e
inclui também o Outro, como campo do sentido ou campo do Simbólico. Daí podemos
afirmar que a “realidade” psíquica trabalha, isto é, no próprio tempo da sua constituição
inaugural ela emerge em trabalho (onde Freud falava em aparelho psíquico, para o qual
apresentou diferentes configurações tópicas, Lacan falou propriamente em realidade psíquica,
tal como é apresentada no famoso “Esquema R” (Lacan, 1957-1958/1999).
A realidade psíquica trabalha diretamente tanto na configuração do problema,
constituindo o modo sob o qual ele chega à instituição de SMC, quanto nos processamentos
de seu equacionamento. Isso vai implicar imediatamente que o trabalho fundamental de
“tratamento” se processe no campo dessa realidade psíquica, na relação do sujeito ($) como
ente de sentido e pulsão, com o Outro como campo do Simbólico. Nessa perspectiva, por sua
vez, o trabalho terapêutico realizado nas práticas da Atenção se torna um trabalho relacional,
isto é, uma terapêutica sob transferência.
O trabalho psíquico se especifica pela produção de sentido ou saber inconsciente, sob
transferência, com implicações radicais sobre o tempo de trabalho (o tempo do sujeito do
sofrimento e o tempo do trabalhador não são idênticos) e sobre os modos de produção, que
convém abordar a partir dos discursos de Lacan como laços sociais e modos de produção
(Lacan, 1969-1970/1992).
Proponho o conceito acontecimento-sujeito para apreendermos os impasses nesta
realidade psíquica, dado o modo como chegam às instituições de SMC em nosso contexto
neste momento histórico. Tenta-se apreender a especificidade dos modos como os indivíduos
comparecem às instituições – os indivíduos comumente chegam às instituições de SMC
“analisandos das situações de crise vividas” (convém sublinhar o gerúndio do tempo verbal).
É especificamente da modalidade da “oferta de possibilidades transferenciais” que irá
depender o fato de ele vir ou não a se tornar analisante no sentido próprio do conceito na
psicanálise do campo Freud-Lacan.
Ainda no parâmetro I do paradigma, considerando agora os meios de ação de um
trabalhador junto aos efeitos da Demanda Social, o Paradigma Psicossocial exige
trabalhadores configurados e posicionados de modo absolutamente singular (ainda que neste
momento histórico sejam necessariamente situados em processo de formação para esse novo
campo também em constituição). Proponho o conceito de trabalhador-intercessor. São

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Por que a Atenção Psicossocial exige uma clínica fundada na psicanálise do campo de Freud
e Lacan?

trabalhadores precavidos pela psicanálise do campo Freud-Lacan, pela Análise Institucional,


por elementos do Materialismo Histórico e elementos da Filosofia da Diferença (campos
transdisciplinares e, por hipótese, correlatos, em alguma medida). Veremos que a esse
trabalhador é necessário também um certo atravessamento pelos efeitos da própria análise
(exigência diretamente derivada dos conceitos de realidade psíquica e de acontecimento-
sujeito incluídos na concepção do referente da Atenção).
Esse trabalhador-intercessor está posicionado em sua ação e sua reflexão sobre ela
para trabalhar na construção de um trabalho transdisciplinar, de um conhecimento
transdisciplinar e de um saber singular que a psicanálise especifica (saber ajudar a saber) –
saber que Freud identificou e Lacan especificou quanto às características e quanto aos modos
de operar para a sua produção.
Antecipamos algumas proposições a respeito das táticas mínimas necessárias a um
trabalhador-intercessor do campo da SMC: restituir ao trabalho na SMC o estatuto de práxis;
restituir a importância do trabalho em coletivos, sobretudo, na(s) clínica(s); recuperar a
importância do trabalho cooperado e da configuração de coletivos em “transferência de
trabalho”, tanto no plano da clínica, quanto no plano da instituição de SMC como dispositivo
social de produção.
Parâmetro II. Concepções efetivadas dos modos de organização e de gestão da
instituição de SMC como dispositivo social de produção.
Neste ponto, o Paradigma Psicossocial procura avançar na direção das exigências
que a própria concepção ético-política do trabalhador-intercessor e seus coletivos, e de seu
“referente” de ação (uma realidade psíquica) exigem; isto é, trabalha-se para a subversão dos
modos da gestão verticalizada e heterogerida herdados das figuras da instituição de SMC
baseadas no modo típico das “instituições” organizadas para atender aos fins do Modo
Capitalista de Produção (MCP). O modo mais imediato de se avançar nessa direção consiste
na transformação dessas relações intrainstitucionais típicas do MCP, fundando-se na tese
absolutamente simples de se demonstrar de que as relações, como fatores e modos do
processo de produção da instituição como dispositivo, fatalmente são transladadas para as
relações específicas da Clínica, isto é, para as relações do trabalhador-intercessor com os
“sujeitos do sofrimento”. Naturalmente, isso é também um desdobramento do fato de que a
instituição como dispositivo de produção é intermediadora inevitável nas relações dos
trabalhadores entre si e com os sujeitos que recorrem à sua ajuda.
Ora, sabemos que propor uma reorganização intrainstitucional avessa à das
organizações hetorogeridas que são predominantes em nosso estilo societário não é uma

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questão que se possa sacar da cartola de uma hora para a outra. Portanto, é fundamental não
perder de vista, quanto a este aspecto, as lutas e os avanços tanto em termos de análise política
das instituições específicas do setor da Saúde, quanto de suas conquistas efetivas, dos
movimentos da Reforma Sanitária brasileira e das heranças das Reformas Psiquiátricas
internacionais e nacionais para a Atenção Psicossocial. A ética da SMC (Costa-Rosa, 2012),
na qual se insere a Atenção Psicossocial, exige a subversão da hetorogestão. Para isso é
suficiente pôr efetivamente em ação os dispositivos de gestão e participação facultados pela
Reforma Sanitária e já garantidos em legislação oficial; como os “conselhos de gestão de
unidade de Saúde”, e os desacreditados “Conselhos de Saúde”, nos três âmbitos da federação,
cuja função se designa especificamente como “participação no planejamento, gestão e
controle” das ações do executivo no setor Saúde, em todos os aspectos das suas ações.
Portanto, as exigências da Atenção Psicossocial como política, já há algum tempo
admitida no discurso oficial do Executivo nacional como Política Pública, é que dão
condições e lugar para que em seus dispositivos institucionais se introduza a psicanálise do
campo Freud-Lacan com sua ética e sua política.
Parâmetro III. Concepções efetivadas das relações Instituição-Território sócio
demográfico e geopolítico, e concepções das relações instituição e seus trabalhadores com os
efeitos da Demanda Social considerados da perspectiva de uma “Clínica sob transferência”.
Este parâmetro permite considerar um conjunto de questões absolutamente
fundamentais para a possibilidade efetiva de uma ação junto aos problemas psíquicos que seja
capaz de se pautar pelas exigências advindas do SUS como dispositivo que se propõe a
avançar na luta para implantar uma lógica de ação fundada nas bases da Medicina Social e nas
premissas sustentadas pelo Movimento Sanitário Brasileiro desde a década de 1970. Essas
bases incluem uma ação sobre os processos de produção saúde-adoecimento-Atenção no
âmbito do Território complexo, muito além de práticas estritamente curativas, portanto;
compreende-se que esse processo não pode ser separado do estilo societário, isto é, da forma
como estão organizados os processos de produção da vida material da coletividade, em termos
amplos.
Não é preciso dizer que este aspecto exigirá, por um dado, dos trabalhadores-
intercessores um giro de estudo e análise crítica das origens históricas da SMC e da Reforma
Sanitária naquilo que elas embasam as heranças da Reforma Sanitária e da Atenção
Psicossocial; e por outro lado, exige a análise do próprio estágio de consolidação do SUS,
como estratégia que procura avançar numa conjuntura inevitavelmente adversa (uma
sociedade cujo estado da luta entre interesses e valores que nela se articulam é massiçamente
desfavorável aos interesses e valores, e às ideias e ações que compõem o instrumental e o

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e Lacan?

ideário da SMC), e cujo resultado mais sólido e consistente é ainda uma forma da Medicina
Preventiva Promotora, cuja base consiste no chamado modelo flexneriano – modelo de
Atenção às doenças originalmente individual e privado – que se procura transpor para o
conjunto social, sob a figura ideológica do “direito universal à saúde”, quando na prática é
exatamente uma concessão tática no campo das demandas por saúde, sob a forma estrita da
Atenção às doenças.
Este parâmetro permite considerar aspectos que são absolutamente cruciais para a
possibilidade de uma clínica dos processos psíquicos capaz de considerar radicalmente a
hipótese de uma realidade psíquica (Realittät) estritamente em continuidade moebiana com a
realidade propriamente social como referentes de ação; que exigem, por sua vez, a colocação
em ação de uma práxis clínica sob transferência.
Essas são algumas das razões que determinam que uma Atenção Psicossocial além
das reformas psiquiátricas seja capaz de enfrentar o desafio da subversão das relações da
instituição de SMC com o Território, e das relações dos “trabalhadores de saúde mental” com
a população e especificamente com os sujeitos dos impasses psíquicos; relações cujo estado
atual, à mínima análise, logo deixam ver seu caráter de relações sociais típicas dos modos de
produção dominantes na própria sociedade; isto é, relações do tipo dominantes-subordinados,
sapientes-ignaros, supridos-carentes, e outras.
Essas subversões implicam, a princípio, fazer as instituições-estabelecimento
operarem como espaços de (inter)locução e instâncias de “oferta de possibilidades
transferenciais” para os efeitos da Demanda Social, e das demandas psíquicas, que se
apresentam indistintamente nas figuras de demandas por Atenção ao sofrimento psíquico,
vivenciado estritamente como sofrimento privatizado. Neste primeiro encontro dos sujeitos do
sofrimento com os trabalhadores da instituição já se põe em andamento o primeiro passo da
transferência, de que dependerão todas as ações terapêuticas realizadas. Vê-se claramente,
portanto, como no campo da SMC é a própria instituição o alvo de endereçamento da
“suposição de saber”, à qual o trabalhador-intercessor deverá se anexar. Nesse caso não é
difícil concluir sobre a importância decisiva desempenhada pelo modo como a instituição é
capaz de se apresentar, e o modo como é percebida, no Território como espaço geopolítico,
imaginário e simbólico.
Parâmetro IV. Concepções efetivadas em termos dos efeitos terapêuticos e dos
desdobramentos éticos das ações de Atenção.
A inclusão da ética como um parâmetro essencial da práxis do trabalhador-
intercessor é conseqüência das hipóteses que fundamentam sua ação, tanto no âmbito da

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instituição como dispositivo social de produção, quanto no trabalho específico junto aos
sujeitos dos impasses psíquicos que recorrem às instituições de SMC. Por um lado, a inclusão
do trabalhador em qualquer práxis de produção social torna irrecusável a consideração da
dimensão política, uma vez que mesmo a pretensão de neutralidade política não escapa aos
contornos de uma posição política bem caracterizada. Por outro lado, a concepção do
referente de ação como uma realidade psíquica encarnada num ente social, cultural, político e
desejante constitui argumento suficiente para fundar a inclusão da ética como política nos
efeitos dos tratamentos psíquicos. Como recusar o estatuto político a uma realidade que inclui
o sujeito, constituído pelo indivíduo mais o inconsciente e, dimensão homóloga, o sujeito
como aquilo (dimensão pulsional) que aparece como um significante no campo simbólico?
(hipótese de Lacan). Em outros termos, este é o sujeito cujo movimento desejante é práxis
criativa, tanto no seu reposicionamento subjetivo na sintomática cotidiana, ou nos momentos
de impasse, quanto no trabalho de seu reposicionamento frente à alienação ao desejo do Outro
e, sobretudo, no trabalho de alargamento de suas possibilidades criativas frente ao desejo, que
é a política que define o ser humano como tal.
A Atenção Psicossocial se define para além da Reforma Psiquiátrica ao se propor a
avançar na direção da subversão das éticas psiquiátrica e psicológica como éticas do
tamponamento dos sintomas e dos efeitos dos demais impasses psíquicos considerados, em si,
como transtornos; éticas da adaptação no plano do eu à realidade e das carências aos
suprimentos. Como subversão dos eixos eu-realidade e carência-suprimento, os trabalhadores-
intercessores referenciam-se nos eixos sujeito-desejo e carecimento-Ideais, fundamentos da
definição do sujeito com “entre” sentidos e pulsão (realidade psíquica) e como “entre”
semelhantes (realidade social).
Esse sujeito que aparece como subversão do eu constitui um ente para o qual a
adaptação, o conformismo e a estase subjetiva jamais são condições toleráveis sem
gravíssimas consequências no plano da sua existência cotidiana.
Em suma, quanto à questão da necessidade e das possibilidades de inclusão da
psicanálise no campo da SMC é necessário sublinhar que, junto com os esforços necessários
já em ação para inserir a psicanálise nas instituições de Atenção, mais fundamental, ainda, é
trabalhar para adequar o dispositivo institucional, a fim de que nele possa caber a psicanálise;
mas antes de tudo para que a instituição se torne um local efetivamente viável para recepção e
escuta (no sentido freudiano dos termos) das demandas dos “sujeitos do sofrimento”, com a
especificidade que elas carregam: uma realidade psíquica na qual emergem acontecimentos-
sujeito marcados pelo sentido e pela pulsão/gozo como estratégias que os indivíduos põem em

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e Lacan?

ação como meios de se situarem e se manterem no plano do desejo; daí a radical dimensão
política da ética que dá fundo à Estratégia Atenção Psicossocial.

2. Alguns elementos para a caracterização inicial de um trabalhador-intercessor do


campo da SMC

A reversão da lógica dominante que se expressa no Paradigma Psiquiátrico


Hospitalocêntrico Medicalizador exige um trabalhador posicionado com radical precisão
devido às exigências da subversão da instituição como dispositivo social de produção, mas,
sobretudo, em decorrência da necessidade de operar com a nova configuração do “referente”
da ação nas práticas clínicas: uma “realidade psíquica”, cuja dinâmica inclui principalmente
os “acontecimentos-sujeito” e seus desdobramentos necessários. O que é um trabalhador-
intercessor?
De imediato ele precisa se posicionar para poder driblar a confusão letal induzida
pelo “olhar” construído pelos especialismos disciplinares nos quais foi originalmente formado
e instruído: psiquiatria, psicologia, serviço social, etc.
Esse trabalhador-disciplinar que temos atualmente, trabalhando na suposição de que
ele será capaz de se organizar na forma do coletivo de trabalho interdisciplinar, é o avesso do
trabalhador-intercessor. Portanto, para a constituição desse trabalhador será necessário
construir a difícil passagem que vai do trabalhador-disciplinar que temos, ele próprio ainda
mal constituído, até o trabalhador transdisciplinar que é exigido pela ética que orienta a
clínica e as demais ações do paradigma da Atenção Psicossocial. Sem dúvida alguma essa
tarefa deverá interessar profundamente também às Universidades.
Em síntese, podemos dizer que o trabalhador-intercessor é um trabalhador precavido
(teórica, técnica e eticamente) pela psicanálise do campo Freud-Lacan. Nessa precaução
incluímos, ainda, a possibilidade dos conhecimentos vindos da Análise Institucional, do
Materialismo Histórico e da Filosofia da Diferença, todos originariamente campos de saber e
ação transdisciplinares. Campos que lhe interessam diretamente em virtude da constituição
transdisciplinar que os constitui e pelo fato de que esse trabalhador irá operar com
“Formações Sociais” e “Formações Subjetivas/Inconscientes”, em associações diversas: de
continuidade (moebiana), e às vezes de contigüidade e de interpenetração.
Um trabalhador-intercessor se constitui também pelo atravessamento dos efeitos
advindos da sua própria (psic)análise. Certamente isso implica em aceitar, portanto, não só

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para o outro que se queixa, a condição do inconsciente e da pulsão como constituintes da


realidade psíquica (Realittät), e operantes no seu funcionamento. Do mesmo modo, esse
atravessamento pelos efeitos da própria análise dá ao trabalhador-intercessor um dos
requisitos necessários para a compreensão e aceitação da presença da “Outra cena” e de um
“real irredutível”, também nas Formações Sociais como é o caso da instituição de SMC, que
atravessa todas as suas ações e da qual ele é constituinte privilegiado. Todos esses
atravessamentos certamente ajudam a prepará-lo também para se posicionar diante dos
acontecimentos-sujeito, manejáveis necessariamente apenas sob transferência.
Do atravessamento do trabalhador-intercessor pelos efeitos da própria análise é
importante destacar, ainda, aquilo que a teoria da psicanálise define como “destituição
subjetiva”. Esta tem relação direta com as possibilidades de posicionar-se sob transferência:
emprestar o corpo e a subjetividade (sua própria realidade psíquica) sem ter que pagar em
excesso, em narcisismo e em gozo (sob as formas comuns da angústia ou do regozijo
bondoso); isso vale tanto diretamente no trabalho com os sujeitos que se queixam, quanto no
contato com os efeitos advindos da posição de trabalhador dos coletivos institucionais (grupos
de trabalho diversos) e da própria instituição. Para concluir este ponto convém explicitar que
esses são apenas alguns pontos preliminares, postos ao modo de um convite à ação e reflexão;
praticamente tudo, do essencial, ainda está por ser feito.

3. Aspectos clínicos: acontecimento-sujeito e a especificidade da transferência como


condição de possibilidade da clínica fundada na psicanálise na SMC

Acontecimentos-sujeito são figuras “visíveis”/audíveis que permitem a um


trabalhador-intercessor supor processos de subjetivação que o indivíduo que veio se queixar
está pondo em movimento, com maiores ou menores possibilidades e desenvoltura, para dar
conta de desarranjos produzidos na sua realidade psíquica, decorrentes de eventos, injunções,
que a impactaram numa medida e proporção, obrigando-a a rearranjos específicos.
Tais injunções podem ter vindo tanto da realidade exterior compartilhada, mais
especificamente de pedaços dela (que Freud (1950 [1895]/1996) chamou de Wirklichkeit),
quanto da própria realidade psíquica (invasões do real angustioso): são sintomas em
configurações diversas: pânicos, paroxismos obsessivos, ansiedades e depressões diversas,
dores andarilhas que percorrem o corpo; e um vasto conjunto de sofrimentos simplesmente
referidos como aqueles a que a medicina não dá respostas; os gozos compulsivos comuns e
aqueles diretamente relacionados ao estilo societário dito hipermoderno; e, ainda, os impasses
e sofrimentos relacionados ao sofrimento dito psicótico (alucinações, delírios, depressões

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Por que a Atenção Psicossocial exige uma clínica fundada na psicanálise do campo de Freud
e Lacan?

extremas, atos contraditórios como o suicídio); entre outros. Em todos os casos se trata de
efeitos psíquicos de injunções radicais que impactaram a realidade psíquica (Realittät)
exigindo respostas de sentido (incluindo o contrasenso).
Acontecimento-sujeito é um conceito necessário justamente a esse novo lócus da
clínica que parte da psicanálise de Freud e Lacan.
Constata-se facilmente que, neste momento histórico, o campo da SMC não possui
potência de endereçamento de transferência no sentido freudiano do conceito. Tudo nele está
“preparado” para uma figura da transferência que podemos chamar de “transferência
anônima” (Miller, 1989), por dirigir-se, ainda, ao contexto social e cultural amplo (cultura do
narcisismo, do misticismo, etc.); ou por dirigir-se à própria ciência na figura da psiquiatria
DSM como uma medicina mental.
Nessas circunstâncias, o sujeito, como sujeito do inconsciente, costuma aparecer
apenas no seu movimento de eclipse; isto é, ele aparece para sumir imediatamente na
adequação ao saber da ciência, das práticas psicológicas de suprimento, ou mesmo na
adequação às práticas das diversas instituições místico-religiosas.
Em outros termos, o acontecimento-sujeito que se abre como resposta da própria
realidade psíquica (buscando seu reequilíbrio, após os abalos sofridos) colide com esse
horizonte das ofertas de possibilidades transferenciais das práticas profissionais disciplinares,
no qual não se vislumbra, para o indivíduo que se queixa, outra saída que a de pôr-se como
“objeto para um sujeito” (característica dominante das disciplinas profissionais e da ciência aí
atuantes); objeto para um sujeito que promete fundamentalmente ser para ele um onipotente
supridor, versões inconfundíveis daquilo a que Jacques Lacan (1958-1959/2016) chamou
“Outro do Outro”.
Em contrapartida, como operam as instituições do campo da SMC parametradas
pelas ações do trabalhador-intercessor, diante dos acontecimentos-sujeito? Operamos com os
Discursos de Lacan (1969-1970/1992), como “modos de produção”, na análise dos impasses
psíquicos.
O ponto de partida consiste em distinguir o sujeito ($) que está em ação no
acontecimento-sujeito. Esse sujeito deve ser considerado como “analisando/questionando” da
situação de crise que experiencia; o que faz dele uma figura do sujeito barrado, sem dúvida,
mas uma figura particular. Trata-se de distinguir, portanto, o sujeito da transferência anônima,
do sujeito que se dirige ao outro na “suposição de saber” configurando o Discurso da Histeria
como tal. Este outro, no Discurso da Histeria, a que se dirige o sujeito que se queixa já está
situado e é reconhecido por ele como capaz, de certo modo, de responder com a oferta

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caracterizada nos moldes de uma psicoterapia em cuja práxis a psicanálise de Freud e Lacan é
ampliada (Périco, 2014, 2016). Também é fácil ver que se está a um passo adiante da situação
que constitui a transferência anônima; portanto, ter chegado a esse ponto, no contexto da
SMC, supõe ter dado uma considerável caminhada no “trabalho da transferência”. Ou seja,
para poder se posicionar, o trabalhador-intercessor precisa compreender claramente que a
modalidade do sujeito, que pode engajar-se na via do trabalho exigido pela “realidade
psíquica”, é posicionado no trabalho, como efeito da própria modalidade da oferta
transferencial. Modalidade, esta, que só pode referenciar-se tendo no horizonte o modo de
produção da Atenção correspondente ao Discurso do Analista.
Esse posicionamento do sujeito e do trabalhador-intercessor poderá ser melhor
apreendido teórica e tecnicamente através do algoritmo da transferência proposto por Lacan
(Quinet, 2008). Ou também, dito de outro modo: o ponto de partida do trabalho de um
psicanalista na situação da psicanálise em intensão, ainda precisa ser construído na situação
da Atenção ao sofrimento psíquico, nas condições da SMC; situação que arrisco definir como
alargamento das possibilidades do campo da “intensão comum” da psicanálise.
Consideradas essas definições preliminares, os passos seguintes consistem em
configurar a especificidade técnica e ética das demandas que chegam ao trabalhador-
intercessor, configuradas sob o modo dos acontecimentos-sujeito, que emergem tanto no
plano de realidades psíquicas, quanto no plano da realidade da própria instituição de SMC
como Formação Social específica. É fundamental não se perder de vista que nesta última
situação são os próprios trabalhadores-intercessores que são atravessados por
eventos/injunções que os tornam analisandos/questionandos das situações produzidas pela
instituição como dispositivo de produção. Ainda nessa direção da análise, são necessários
outros caminhares teóricos até chegarmos a configurar com a clareza necessária, para os
efeitos-sujeito específicos do âmbito da instituição, a particularidade própria da cena
homóloga à da realidade psíquica; ou seja, a realidade psíquica e a realidade social são
realidades homólogas e estão absolutamente em continuidade (moebiana) (Lacan, 1968-
1969/2008), porém, de especificidades particulares quanto ao trabalho que “processam”, e,
desse modo, quanto aos posicionamentos e ações exigidos dos trabalhadores-intercessores nos
planos da teoria, das técnicas, da ética e da política.
A fim de marcar o teor essencial das considerações realizadas até o momento neste
artigo preliminar, é importante sublinhar que, naquilo que diz respeito à psicanálise, elas
permanecem totalmente dentro do âmbito que Jacques Lacan (2001/2003) define como
“psicanálise em intensão”; ainda estamos, portanto, fora da “psicanálise em extensão”, e
pretendemos ficar mais longe, ainda, da dita “psicanálise aplicada”.

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Recebido em: 13/09/2019


Aprovado em: 15/11/2019

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