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CAROLINA PALMEIRO LIMA

MICHAEL DE QUADROS DUARTE


VALM I R DORN VASCONCELOS
CLARISSA MARCELI TRENTINI

Se existe algo inerente ao ser humano é a ne- de sistemas como a Classit'icaçao internacional
cessidade de explicar e nomear aquilo que é de d"oenças (CID) e o Manual. díagnóstico e esta-
desconhecido. Para tanto, uma das estraté- tístico de tyanstornos mentais (DSNI) - os mais
gias científicas empregadas desde antes de utilizados na área da saúde mental, foco des-
Aristóteles é a da classificação dos fenôme- te capítulo.
nos que nossos sentidos podem capturar. O A CID é a classificação oficial para o diag-
mesmo se aplica a situações que podem ge- nóstico e a comunicação acerca dos transtor-
rar adoecimento ou prejuízo a indivíduos e nos mentais da Organização Mundial da Saú-
populações, como as doenças e os transtor- de (OMS). Trata-se de um manual que apre-
nos mentais. Para isso, foram criados, na his- senta descrições e orientações diagnósticas
tória da humanidade, diferentes sistemas voltadas para todos os profissionais da saúde.
de classificação, desde os baseados nas teo- Contudo, seu texto não estabelece propria-
rias dos humores de Hipócrates até os com- mente critérios operacionais, e sim orien-
pêndios de psicopatologia (Millon & Simon- tações com relação aos diagnósticos. A CID
sen, 2010). A história das classificações dos tem como proposta fornecer um registro das
transtoÍnos mentais intensificou-se no sécu- doenças e causas de mortalidade, permitin-
Io XIX, com forntulaçôes baseadas especial- do a análise, o registro, a interpretação e a
mente em descrições a partir de sinais e sin- comparação entre países e culturas. Com es-
tomas, sendo que ideias de Pinel, Griesinger se manual, é possíve1 classificar, monitorar e
e Kraepelin, entre outros (Shorter, 2015), fo- mapear a prevalência e a incidência não so-
ram de grande influência para a emergência mente de transtornos mentais. mas também
il
I

T-
14 OLIVEIRA & TRENTtNt (oRGs.) l

de outras doenças e condições de saúde asso- assegurar melhores condições para o tra-
ciadas, como as oncológicas dermatológicas
e tamento dos transtornos mentais. Por
(World Health Organization [WHO], 2004). exemplo, um diagnóstico pode ser um
Já o DSM, desenvolvido pela American ponto de partida para a aquisição do Bene-
Psychiatric Association (APA), é a classifica- fício de Prestação Continuada (BPC), caso
ção oficlal estadunidense, embora também um indivíduo sofra de transtorno mental e
seja usado em diversos países. O DSM é uti- se encontre em situação de vulnerabilida-
11zado, principalmente, por psiquiatras e psi- de financeira. Também pode ser útil para
cólogos e possui, desde a sua terceira edição, o remanejamento de um trabalhador que
um sistema baseado em diagnóstico opera- se encontre em situação de sofrimento em
cional por meio da utilização de critérios determinada função ou cargo, ou até mes-
diagnósticos específicos para cada categoria mo para a garantia de direitos trabalhistas,
(Tyrer etaL.,2014). caso eles sejam violados.
É evidente que esses sistemas de classi- C Para a coleta de estatísticas e formulação
ficação, por suas propostas generalistas e de políticas públicas: utilizar categorias
pragmáticas, são instrumentos construídos e previamente delimitadas facilita a mate-
influenciados por um determinado momen- rialidade dos acometimentos em saúde
to histórico, político, econômico e, especial- mental. A reunião de informaçôes permi-
mente, filosófico, os quais não estão isentos te à vigilância epidemiológica estabelecer
de críticas (Millon & Simonsen, 2010). Entre- prioridades de intervenção em saúde men-
tanto, graças a essas críticas, esses sistemas tal, considerando-se o prejuÍzo social ob-
de classificação são ferramentas úteis em di- servado. Por meio dessas técnicas, pode-se
versos contextos, e sua constante revisão visa constataÍ que o sofrimento em saúde men- ,: : ! :§',1h"
a atender às demandas da sociedade. tal não é um mero evento individual.
Os sistemas classificatórios, nesse senti-
do, são úteis a uma série de objetivos: Nesse sentido, os sistemas classificatórios
têm evidente utilidade e aplicabilidade. Con-
A Para a formulação de diagnóstico, comu- tudo, é válido citar que o adoecimento men-
nicaqào e plano de intervençào: os sisle- tal é extremamente multifacetado, e, assim,
mas classificatórios auxiliam na identifi- o entendimento sobre a condição de saúde do
cação de transtornos mentais, pois descre- indivíduo que recebe um diagnóstico não po-
vem fenômenos que têm uma forma (si- de estar dissociado do contexto no qual ele vi-
nais observáveis, sintomas relatados) que ve, o que envolve não só aspectos biológicos/
pode ser comum entre pessoas de diferen- genéticos, mas também políticos, sociais,
tes nacionalidades. Eles foram construí- econômicos e culturais. Por exemplo, o mo-
dos com base na experiência clínlca e em mento político local e o status socioeconômico
outras evidências científicas, sinalizando individual podem contribuir, de forma posi-
possibilidades para o trabalho dos profis- tiva ou negativa, para o desenvolvimento e o
sionais da saúde mental. São úteis também curso de um transtorno mental. Pesquisas re-
para a comunicação entre profissionais de centes têm demonstrado que existem fatores
diferentes áreas e facilitam o plano tera- de risco transdiagnósticos (ou seja, associa-
pêutico integrado. dos a variadas categorias diagnósticas) para
B Para a garantia e acesso a direitos previs- transtornos mentais, como baixa escolarida-
tos em lei: a partir do diagnóstico nosoló- de e adversidades no desenvolvimento (Aran-
gico, em aiguns casos, também é possível go et a1., 2021). Além disso, indivíduos classi-
garantir direitos, possibiiitar o acesso a ficados em uma mesma categoria diagnóstica
políticas públicas de saúde e assistência e têm particularidades e necessidades diferen-
AVANçOS EM PSTCOPATOLOGTA 5

:es, que dependem de fatores contextuais: tan- mente, em 1893, com o nome de Lista Inter-
:o o adolescente em situação de vulnerabilida- nacional de Causas de Morte (LICM, do in-
de social quanto o jovem do bairro de ciasse gIês International List of causes of deatLt IICLDI)
média podem sofrer de ansiedade; suas apre- (Alharbi eÍ aL.,2021). A LICM teve o objetivo
sentações e necessidades, porém, podem ser de contribuir para a saúde pública a partir de
muito distintas. um manual compreensivo e estatístico, que
incluía as causas de mortalidade da época
(Kapadia el al., 2020). Esse sistema recebeu
cinco alterações até 1938, quando foi publi-
cada a LICM-5, ou ILCD-5, em inglês (Blash-
field et al., 2010).
A Segunda Guerra Mundial (7939-7945)
O DSM e a CID, em suas respectivas edições, foi outro acontecimento que influenciou a
refletem o momento histórico no quai foram discussão sobre a necessidade de uma comu-
desenvolvidos. Compreender tais movimen- nicação diagnóstica mais uniforme. Durante
tos históricos pode ser útil para refletir criti- esse período, os profissionais alegaram difi-
camente sobre a evolução dos manuais e dis- culdades no uso dos manuais, sob a justifica-
cutir sobre o futuro dos sistemas ciassificató- tiva de que os sistemas não abarcavam suas
rios, além de formular alternativas ou com- necessidades, especialmente relacionadas ao
plementos a esses modelos. contexto de guerra (Widiger, 2019). AIém dis-
so, com as mudanças na organização políti-
ca e econômica mundiai, a OMS recebeu sta-
CID E DSM.I
tus de agência especializada em saúde. As-
A história da CID remonta ao século XV, sim, uma série de esforços foram realizados
com o início dos registros de causas de mor- pelos países signatários da Organização das
te na Itália e, no século seguinte, entre outros Nações Unidas (ONU) com o objetivo de co-
eventos, com a proposição de uma classifica- letar estatísticas acerca das causas de morte e
ção de doenças na França. Porém, foi princi- de morbidade conhecidas, incluindo aquelas
palmente a partir da segunda metade do sé- relacionadas aos transtornos mentais (Regier
culo XVII que médicos e outros profissionais et a1., 2020).
passaram a discutir sobre a necessidade de Após a guerra, o manualfoi aprimorado,
conceber um sistema de classificação inter- trazendo dados comparativos de saúde de di-
nacional para monitorar as causas de morta- ferentes países, e passou a ser intitulado Clas-
Iidade (Hirsch et al., 2016). sificaçao ínternacional de doenças, Lesões e causas
Um dos motivos para a emergência des- de morte (CID-6) (World Health Organization
sa discussão residia nas questões políticas tWHOl, 1948). Nesse período, observou-se a
e econômicas do momento. Na Europa, por criação de uma seção específica destinada
exemplo, o desenvolvimento das cidades in- aos transtornos mentais. De início, essa não
dustriais e o número elevado de doenças que foi uma seção amplamente aceita, pois inú-
assolavam a população, como a epidemia de meros sistemas classificatórios já vinham
cólera, trouxe questionamentos sobre as cau- sendo utilizados em diversos países (Stenge1,
sas de mortalidade e mobilizou parte da so- 1959). Aiém disso, havia pouco entendimen-
ciedade a monitorar o problema (Alharbi et to a respeito do que seriam os distúrblos psi-
al., 2021). A CID, como é hoje conhecida, foi quiátricos e de como compreendê-1os. Entre
formulada a partir do trabalho de lacques a sexta e a sétima edição do manual, ocorri-
Bertillon, chamado de TLte Bertlllon Classifi- da em 1955 (Regier et aI., 2020), houve pou-
cation of Causes of Death, publicado posterior- cas alterações.
OLIVEIRA & TRENTINI (ORGS,)

À primeira edição do DSM (DSM-I) foi do caráter. Nessa primeira edição, as catego-
desenvolvida justamente durante o período rias ainda eram bastante vagas intenciona-,
da Segunda Guerra Mundial por um comi- mente, já que se buscava aumentar a utillda-
te cujo objetivo era integrar e revisar siste- de clínica do sistema classificatório sem que
mas classificatórios existentes no que se refe- fossem determlnados limites estritos para
ria a transtornos psiquiátricos ou outÍos pro- diferenciar os transtornos (Biashfield et a1..
blemas relacionados. Em especial, a deman- 2010).
da era desenvolver um manual que pudesse ,": ii:§#r*
ser utilizado pelos psiquiatras estaduniden-
ses (Blashfield et al., 2010). O DSM-I foi pu- crD-8 E DSM-il
blicado em 1952 e era bastante similar a ou- Em 1959, Stengel apontou a necessidade
tro sistema da época, desenvolvido pelo psi- de definições padronizadas e de um siste-
canalista William Menninger, chamado de ma unificado de classificação dos transtor-
Medical.203 (Blashfield et al., 2010). Adotado nos mentais para facilitar e ampliar a utill-
pelas forças armadas, tinha por base princí- dade clinica da CID. Isso porque a comunica.
pios meyerianos e freudianos, correntes que ção entre clínicos e pesquisadores era escas-
entendiam as doenças como reações da per- sa, e poderia ser ampliada com um sistema de
sonalidade a diversas circunstâncias de vida classificação mais uniforme. Embora as su-
e como produtos de forças mentais incons- gestões de Stengel tenham sido propostas na
cientes, respectivamente (Pichot, 1994). Nes- década de 1950, foi somente na oitava ediçào
se sentido, grande parte do manual era des- da CID, aprovada em 1965, elas foram incor-
tinada a descrever tais reações, enquanto poradas por meio da publicação de um glos
uma pequena seção apresentava a deficiência sário de termos para auxiliar no aprofunda-
mental, os transtornos psicóticos e os trans- mento de definições (Kramer etal.,7979).
tornos afetivos (Aftab & Ryznar, 2021). Em razão da aproximação cronológica
Apesar dessas influências, o DSM-I tam- dos manuais, em 1968 foi publicado o DSlrÍ-
bém refletia interesses particulares dos psi- -II (American Psychiatric Association [APA:.
quiatras da época e estava alinhado com a 1968), considerado uma versão estadunl-
abordagem pragmática compartilhada por dense da CID-8. O DSM-II pouco se diferen-
eles (Kapadia eÍ aI., 2O2O). Ideias advindas ciou da edição anterior, a não ser pelo fato de
do popular sistema de classificação kraepe- que houve uma maior aproximação do ma-
liano também tinham espaço na formulação nual com as perspectivas biológicas acerca
do manual. Emil Kraepelin, ao estudar seus dos transtornos mentais, como uma forma de
pacientes hospitalizados, investigou os sinais trazer uma abordagem mais "ateórica", ape-
e sintomas essenciais capazes de caracterizar sar de terem sido mantidas as nomenclatu-
cada transtorno, dando ênfase à etiologia, à ras usuais da psicodinâmica (Kapadla et a1..
história familiar e, principalmente, ao curso 2020). A literatura aponta, ainda, que o pnn-
clínico para compreender as enti.dades categó- cipal objetivo do DSM-II foi sociopolítico, na
ricas (Blashfield et al., 2010). portanto, o DSM-I medida em que era uma tentativa de reunir
tinha por característica o ecietismo em termos os psiquiatras a partir de um acordo sobre as
de referenciais, embora, na história dos ma- nomenclaturas para as doenças investigadas.
nuais, tenha sido apresentado como essencial- Naquele período, muitos referiam a dificuL-
mente psicanalítico (Aragona, 2015). dade de estabelecer uma linguagem comum e
O manual publicado foi organizado em convergente sobre os diagnósticos de seus pa-
duas grandes categorias (desordens orgâni- cientes (Blashfieid et al., 2010).
cas e psicogênicas) e em três grandes gru- Nesse sentido, podem ser observadas mui-
pos: as psicoses, as neuroses e as desordens tas semelhanças entre a CID-B e o DSM-IL
AVANçOS EM PSTCOPATOLOGTA

Contudo, o manual da OMS era basicamente As categorias diagnósticas passaram de lg2,


r-rma organização de nomenclaturas, sem de_ no DSM-II, para265, no DSM-III, e o manual.
iir-rições, enquanto, com o objetivo de tornar o cinco anos após sua publicação, já havia si-
sistema mais prático, definições foram incor- do traduzido para mais de 16 idiomas (B1ash-
Lroradas ao DSM-II (Blashfield et al., 2010). field et a1., 2010).
No DSM-III, foi instituído um sistema
ctD-9 E DSM-ilt multiaxiai para avaliação diagnóstica, já que
muitas críticas foram feitas a respeito da or-
A CID-9 foi aprovada em 1975, tendo sua im- ganização dos manuais anteriores, que ten-
plementação total em 1979. Essa edição con_ tavam padronizar as classificações. O siste-
tinha uma reorganização das classificaçoes ma multiaxial representava uma mudança
para transtornos depressivos. Iranstornos no modo como se compreendiam os fatores
mentais orgânicos e tÍanstornos da infân_ associados aos transtornos, reforçando uma
cia, a1ém de um maior aprofundamento, pa- abordagem ampliada que incluía aspectos
ra além das nomenclaturas, sobre os quadros biopsicossociais. Portanto, os pacientes pas-
clínicos. O manual apresentava um glossário saram a ser avaliados em um sistema de cinco
como uma de suas prlncipais inovações, e o eixos: os dois primeiros eram de transtornos
objetivo era encorajar o uso mais uniforme de mentais e da personalidade/desenvolvimen-
termos diagnósticos a partir das sugestões de to e os demais qualificavam outras doenças,
Stengei (Krarner et a|.,1979). fatores estressores e funcionalidade. Assim,
O DSM-III, por sua vez, foi publicado em cada indivíduo avaliado recebia pelo menos
1980 (American psychiatric Association cinco códigos, divididos entre os cinco eixos
[APA], l9B0) e foi largamente influenciado da avaliação, conforme pode ser visto na Ta-
pelas ideias de Feighner, as quais incentiva- bela 1.1.
ram o uso de critérios diagnósticos operacio_ A partir de 7982, a OMS, junto de organi-
nalizáveis, resgataram a ênfase no curso clí_ zações de outros países e de departarnentos
nico e no desfecho dos transtornos e eviden- de saúde dos Estados Unidos, passou a discu-
ciaram a necessidade de basear esses critérios tiracerca do estabelecimento de uma maior
em eviclências empíricas disponíveis (Widi_ convergência entre os manuais. Em 1987, foi
ger, 2019). A terceira edição do manual foi publicado o DSM-III-R, e, com o acesso a pes-
desenvolvida com o objetivo de contemplar quisas atualizadas, incluída uma definição
as questÕes sociais emergentes das décadas de transtorno mental. Foram realizadas alte-
anteriores, produzidas no contexto dos mo_ rações em critérios diagnósticos e nomencla-
vimentos antipsiquiátricos e de direitos dos turas, reoÍgauização de categorias e inclusão
homossexuais, e de suportar a perda de es- de novos transtornos, como os transtornos do
paço que a psiquiatria psicodinâmica vinha sono e a tricotilomania (American psychia_
sofrendo, bem como o aumento da descrença tric Association [APA], 1987). Entre algu-
na psicoterapia (Mayes & Horwitz, 200S). As_ mas críticas a essa edição, os pesquisadores
sim, buscou apresentaçôes descritivas úteis ressaltam os vieses de gênero na formulação,
para o reconhecimento dos transtornos pe_ especialmente dos transtornos da personali-
1os psiquiatras, nào importando a orienta- dade, a falta de c\arcza sobre algurnas defi-
ção teórica do profissional. Também passou nições e o aumento considerável no número
a apresentar uma categorização com rela_ de comorbidades decorrentes da retirada do
ção à etiologia dos transtornos mentais cujas critério de exclusão de categorias (Kapadia et
explicações eram variáveis ou desconheci_ a|.,2020). Além disso, o DSM-III foi criticado
das (APA, 1980). A publicação do DSM-III por representar a cultura ocidental (e, princi_
foi considerada revolucionária por muitos. palmente, estadunidense).
la
l
OLIVEIRA & TRENTINI (ORGS,)

SISTEMA MULTIAXIAL INAUGURADO NO DSM-III

Eixo I Transtornos mentaís Transtorno depressivo maior


Outras condiçôes de interesse clínico Abuso de substâncias

Eixo ll Transtornos da personalidade Transtorno da personatidade


"Retardo" menta[ (transtornos paranoide
específ icos do desenvotvimento)

Eixo lll Desordens ou condições Diabetes tipo ll


o rgân icas/físicas

Eixo lV Severidade dos estressores Níve[ 3: estressor moderado/


psicossociais mudança na carreira

Eixo V NíveI de funcionamento adaptativo no NÍve[ 3: Bom/poucos


ú[timo ano (socia[, trabalho e Lazer) prejuízos ocupacionais

IVoto: No DSM-lV e no DSM-lV TR, os eixos lV e Vtêm nomenctatura/função diferente das apresentadas aqui.
O eixo IV avaliava problemas psicossociais e ambientais e o eixo V referia-se à avatiação gLobat de funcio-
natidade (AGF). A AGF era constituída de uma escala, que variava de 0 a 100, na quaI o ctínico pontuava pa-
ra avatiar funcionatidade. Eta está em desuso desde o [ançamento do DSM-5, pois compreendeu-se que não
mensurava funcionatidade e tinha baixa utitidade clÍnica.
Fonte: American Psychiatric nssociation (t980). ,:,H-*' I l§i*.*

neralizada, as descrições e orientações eram


CID.IO E DSM.IV
formuladas de maneira que houvesse flexibi-
Na mesma época da publicação do DSM-III-R, lidade para o raciocínio clínico. A CID não se
iniciou-se o desenvoivimento da décima edi- propunha (e não se propõe) a realizar expla-
ção da CID (CID-10). Os esforços iniciais re- naÇões teóricas sobre os diagnósticos nem a
sultaram em uma primeira versão, em 1992, apresentar de forma extensiva informações
embora a data de aprovaÇão tenha sido ante- sobre os transtornos mentais. A classificação
rior. Essa foi a primeira de uma série de pu- também apresentava notas explicativas so-
blicações referentes ao capítulo V (transtor- bre as mudanças de nomenclatura entre uma
nos mentais e comportamentais), que in- edição e outra (WHO, 1992).
cluiu critérios diagnósticos para pesquisado- Entre as principais diferenças entre CID-9
res, uma versão para profissionais da saúde e CID-10, destaca-se o aumento de categorias
e atenção primária, uma apresentação mu1- e o abandono da divisão entre tÍanstornos
tiaxial e referências cÍuzadas que infoÍmam psicóticos e neuróticos, que ocorria na classi-
sobre os códigos de edições anteriores (World ficação anterior. Emvez disso, os transtornos
Health Organization [WHO], 1992). foram agrupados por semelhanças temáti-
Para cada transtorno havia descriçôes clí- cas e descritivas, o que ampliou a conveniên-
nicas principais, e para a maioria das catego- cia no uso do manual. Novas categorias nos
rias existiam orientações para guiar o diag- transtornos psicóticos foram inciuídas, bem
r-róstico. Com o intuito de ser útil de forma ge- como mudanças na estrutura e nomenclatu-
PATOLOGIA

ra dos transtornos afetivos (do humor) foram


cos, bem como as entidades/categorias diag-
realizadas (WHO, 1992). No gerai, a CID-10
nósticas atuais não são as melhores predi_
foi amplamente aceita e adotada pelos países,
toras de resposta ao tratamento (Insel et al.,
tornando-se referencia para a comunicaçào
2010; Reed, 2010).
em saúde.
Os sistemas classificatórios vigentes
Iá o DSM-IV (e o DSM-IV-TR, posterior_ (DSM-5 e CID-11) foram aprimorados
mente), surgiu com o obfetivo de ser mais .-.u_
zão das fragilidades e inconsistências assi_
congruente com o que estava sendo discutido
naladas a partir do seu uso, da prática clíni_
e apresentado na CID-10. A grande mudança
ca e de pesquisas mais recentes nos mais di_
do DSM-III para o DSM-IV (e DSM_IV_rR)
rá_ versos campos (p. ex., psicopatologia, gené-
sidiu no maior enfoque em uma classificação
tica, neurociência e ciência comportamen_
baseada em evidências empíricas. aiém dis_
tal). Observamos, na formulação do DSM_5 e
so, foram discutidos e incorporados aspec_
da CID-11, alguns aspectos importantes, co_
tos culturais e étnicos (Aragona, 201S),;in_
mo a preocupação com a utilidade clínica dos
da que esse processo tenha sido mais eviden_
sistemas e com a validade dos diagnósticos,
te na edição seguinte. Entre as críticas a es_
que influenciam o campo para maior abertu_
sas edições do DSM estão as altas taxas
de co_ ra e discussão sobre a dimensionalidade dos
morbidades entre os transtornos da persona_
transtornos mentais, e a importância de con_
lidade e a falta de clarezanos pontos de corte
siderar o funcionamento e o nível de severi_
para os diagnósticos, o que poderia resultar
dade dos transtornos.
em falso-positivos (Kapadia et al., 2020).
Nesse sentido, a construção e posterior pu_
blicação do DSM-S em 2013 (American psy_
ctD-lí E DSM-s chiatric Association iApAl, 2014), pautou_se
em ampliar as possibilidades de utilização
Após a publicação da CID-10 e do DSM_IV_TR, do
manual na prática. Um dos grandes avanços
continuaram surgindo algumas critjcas so_ foi a inclusão de uma seção destinada a um
bre os manuais, processo que naturalmente
modelo alternativo-híbrido dimensional pa_
desencadeia a necessidade de alterações
fu_ ra os transtornos da personalidade, eviden_
turas. Por exemplo, discutia-se (e ainda se
ciando a tendência a considerar a dimensio_
discute) que a maioria dos diagnósticos de
naiidade, ainda que de forma complementar
transtornos mentais é ciassificado pelos clí_
e adicionai em vez de substituta. Outros
nicos em categorias como ,,outro iranstor_ indi_
cativos são as conceitualizações do transtor-
no não especificado", provavelmente devi_
no do espectro autista e os transtornos do es-
do à dificuldade de utilização dos critérios pectro da esquizofrenia (Widiger, 2019).
e à forma de observação dos fenômenos
na Uma grande mudança no DSM-S foi o
prática. Outro problema diz respeito à gran_
fim do sistema multiaxial, implementado a
de heterogeneidade intragrupo, em que
dois partir do DSM-III (Tabela 1.1). para o gru_
indivíduos com o mesmo diagnóstico podem
po de trabalho que construiu essa,ro,ru rra._
apresentar sinais e sintomas distintos (Reed,
são, a subdivisão entre os eixos de transtor_
2010). Um mesmo indivíduo pode, ainda,
nos mentais era pouco fidedigna e tinha bai_
apresentar diversos diagnósticos de trans-
xa utiiidade clínica (ApA, 2014). Os eixos I,
tornos mentais, problemática que se refere
à II e III comumente eram confundidos, e por
alta comorbidade das entidades categóricas,
não haver diferenças tão significativas que
colocando em questão a suposta independên_ justificassem sua subdivisão, foram
cia das categorias diagnósticas. Além disso, simptifi_
cados, bastando, em vez de separar, deicre_
as pesquisas demonstraram que um
mesmo ver os transtornos mentais, do neurodesen_
tratamento pode servir a diversos diagnósti_
volvimento e da personalidade, bem como as
OLIVEIRA & TRENTINI (ORCs.)

outras condições médicas. AIém disso, o ei- vos diagnósticos, não presentes no manual
xo de avaiiação de funcionamento usava um da APA, foram introduzidos na CID-11, como
sistema de medida de deficiência/funciona- o transtorno de estresse pós-traumático com-
lidade que enumerava um valor conforme os plexo (TEPT complexo) (Gaebel et aL.,2020).
sintomas, quando deveria avaliar os prejuí- A CID-11 também refinou critérios diagnós-
zos na funcionalidade (p. ex., ideação suici- ticos existentes, como no caso do transtorno
da como avaliação de funcionalidade, quan- de estresse pós-traumático (TEPT).
do o que importa e o quanto esse sintoma in- Avanços foram observados na ênfase em
terfere no cotidiano da pessoa). Para avaiiar uma perspectiva dimensional, embora a no-
funcionalidade, a APA passou a recomendar va classificação tenha mantido de forma
o uso da Classificação internacional de funcíona- abrangente a perspectiva categórica anterior.
lidade, incapacid"ad,e e saúde (CIF), da OMS (Re- Um exemplo dessa mudança de perspecti-
gier, 2011). va refere-se aos transtornos da personalida-
Também houve alterações importantes de, cuja abordagem tornou-se inteiramente
em grupos de transtornos e inclusão de evi- dimensional, com foco em níveis de severi-
dências sobre a natureza de transtornos co- dade. A dimensionalidade e abordagem que
mo esquizofrenia, transtorno esquizoafeti- preconiza maior especificidade é observada
vo, transtorno bipolar e transtorno obsessi- nos episódios depressivos, que recebem qua-
vo-compulsivo, entre outros (Regier, 2017). lificadores em termos de presença de sinto-
Além disso, o DSM-S avançou nas formula- mas específicos (Gaebel etal.,2020). Por fim,
ções que consideram as diferenças entre cu1- a CID-11, em sua versão de 2022, incrementa
turas, oferecendo até mesmo um apêndice so- o conhecimento clínico por trazer informa-
bre esses aspectos (Wldiger, 2019). Atualiza- ções de curso, culturais, de limites e relacio-
ções na terminologia e na compreensão dos nadas à cultura, à severidade dos sintomas, à
transtornos também foram implementadas, descrição do quadro e a auxílio no diagnósti-
com o abandono de denominações pejorati- co. Essa ferramenta é relativamente recente e
vas, como retardo mental. Contudo, entre as não estava presente na CID-10.
críticas, encontram-se o aumento das catego- Em comparação, os dois manuais atuais
rias, que poderia não implicar em maior apli- (CtD-ll e DSM-S) apresentam maior con-
cabilidade aos clínicos, e a pouca convergên- vergência em relação aos seus antecessoÍes
cia entre os achados genéticos e neurocientí- e correspondentes. Em estudo de First et al.
ficos e as entidades diagnósticas formuiadas (:2021), comparou-se as 103 categorias diag-
(Kapadia et al., 2020). nósticas que aparecem em ambos os siste-
A CID-1l, por sua vez, aprovada em 2019 mas. Entre elas, apenas 20 entidades nosoló-
e oficialmente vigente em 2022, deu mais um gicas apresentaram grandes diferenças com
passo na história dos sistemas de ciassifica- relação aos seus critérios e descrições, como
é o caso dos transtornos da personalidade e ruii
ção. Em comparação à edição anterior, avan-
çou em diversos pontos, com vistas a ampliar dos transtornos relacionados a trauma e a es-
sua aplicabilidade global, a fortalecer a vali- tÍessores. AIém disso, quase metade das ca-
fltmqi íw!
dade dos diagnósticos e a aprimorar sua uti- tegorias diagnósticas apresentou apenas pe-
lidade clínica. A edição é completamente di- quenas diferenças, e 30% das categorias eram
gital e permite aos clínicos a utilização de 17 essencialmente idênticas. Ou seja, atualmen-
mil códigos diferentes, com 120 mil termos te, os dois manuais são mais semeihantes do
codificáveis. Foram introduzidos novos diag- que jamais foram e englobam o maior nível
nósticos, como transtorno de acumulação, possível de evidências em suas formulações.
transtorno de escoriação e transtorno explo- Em 2022, foi publicada a versão revisada
sivo intermitente, já incluídos no DSM-5. No- do DSM-S (DSM-S-TR) (American Psychia-
AVANçOS EM PSTCOPATOLOGTA

rrc Association [APA], 2022). Com o intuito futuros estudos (Moran, 2022).Dada a publi-
-'e tornar os diagnósticos harmônicos com a cação recente do DSM-S-TR, seus impactos,
-- lD-11, foram inciuídos o transtorno do luto bern como as modificações, ainda devem ser
.:,r.o1ongado e o transtorno do humor não es- mais bem estudados. Contudo, é evidente que
':ecificado (para quem não preenche critérios há um esforço intelectual para aproximar ao
de depressão ou transtorno bipotar). Em "Ou- máximo a revisão do DSM-5 com as proposi-
tras condições que podem ser foco da aten- ções dos manuais da OMS.
cao clínica", novos códigos foram adiciona-
dos para avaliação do comportamento suici-
da e da autolesão não suicida. Houve mudan-
r 0s lrâs terminologias de muitos transtornos.
especlalmente nos transtornos do desenvol-
vimento (deficiência intelectual passa a ser
lranstorno do desenvolvimento intelectual)
e no capítulo sobre disforia de gênero (fala- Embora muitos avanÇos ainda sejam neces-
-se de gênero experienciado err vez de gêne- sários em relação à consistência interna dos
ro designado). Também foram considerados diagnósticos e outras questÕes pertinentes,
os impactos culturais, do racismo e de ou- observamos que tanto o DSM como a CID
tras discriminações nos transtornos mentais constituem-se como ferramentas úteis à pes-
tAPA,2022). quisa e à clínica. Os manuais contribuíram,
Por fim, foram modificados critérios para progressivamente, por meio de pesquisa, pa-
melhor compreensão nos tÍanstornos do es- Ía a compreensão a respeito dos fatores neu-
pectro autista, transtornos bipolares, trans- robiológicos envolvidos na etiologia e no de-
tornos ciclotímicos, transtoÍnos depressivos senvolvimento dos transtornos mentais (In-
maiores, transtornos depressivos persisten- sel et a1., 2010). Contudo, nas últimas déca-
tes, TEPT em crianças, transtorno alimentar das, especialmente com o avanço das neuro-
re stritivo/eviÍativ o, deliríum, transtornos in- ciências e da genômica, a discussão acerca da
duzidos por substâncias e síndrome psicóti- distância entre os fenômenos observados na
ca atenuada, esta última em condições para clínica e os mecanismos biológicos envolvi-

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Linha do tempo CID e DSM.


Noto: LICM = Lista lnternacionaI de Causas de Morte; CID = ClassiÍicaçõo internacionol de doenços; DSM =
Manuol diognóstico e estatístico de transtornos mentais.
Para melhor compreensão, foram utitizadas as datas de aprovação clas ctassificações peta Organização Mun-
diat da Saúde, em vez da efetiva data de uso ou pubticação, em função da variabitidade.
12
i___

dos tem se intensificado. As pesquisas têm (Kotov et ai., 2020) e externalizante (Krue-
mostrado que não e possível determinar si- ger et al., 2021). Na terceira camada da hie-
nais e sintomas específicos e exclusivos de rarquia, estão os espectros que compreendem
cada transtorno, da mesma forma que di- os domínios gerais da estrutura dos trans-
versos mecanismos biológi.cos são comuns a tornos mentais, incluindo as dimensÕes so-
uma ampla gama de categorias diagnósticas matoforme, internalizante, transtornos do
(Insel et al., 2010). Nesse sentido, uma série pensamento, distanciamento, externalizan-
de modelos alternativos/adicionais a siste- te desinibido e externalizante antagonista. A
mas classificatórios categóricos tem sido pro- quarta camada da hierarquia é caracleriza-
postos. da por fatores específicos dos espectros que
Um exemplo de sistema alternativo é o agrupam sinais, sintomas e traços específi-
ResearchDomainCriteria (RDoC) (lnsel et al., cos (p. ex., os fatores, medo e distress do es-
2010). O RDoC não tem o intuito de substituir pectro internalizante). O quinto nível da hie-
os sistemas classificatórios vigentes, e sim o rarquia, ainda em estudo, consiste de sín-
de estudar o funcionamento (tanto o normal dromes empíricas, as quais incluem facetas
quanto o patológico) e a saúde mentai dos in- que representam os fatores do nível anterior
divíduos por meio de diferentes domínlos (quarto nível). Por fim, no sexto nível, estão
(p. ex., sistemas cognitivos e processos regu- os sintomas e traços mal-adaptativos especí-
latórios), que incluem diferentes unidades de ficos, como insônia, tristeza, medo de sair de
análise. Um dos objetivos do RDoC é identifi- casa, etc. Essa abordagem permite que médi-
car mecanismos cerebrais capazes de colabo- cos e pesquisadores se concentrem nos sinto-
rar para a compreensão dos transtornos men- mas mais detalhados ou avaliem problemas
tais. Nesse caso, especialmente, entende-se mais amplos conforme necessário (Kotov et
que os tÍanstornos mentais são provenientes al., 2017). Os Capítulos 18 e 19 apresentam
de alterações em ci.rcuitos cerebrais. mais detalhadamente os modelos HiTOP e
Iniciativas pautadas em solucionar velhos RDoC. respectivamen te.
problemas dos sistemas classificatórios ca-
tegóricos, como o da grande heterogeneida-
de intragrupo e o da alta taxa de comorbida-
de das categorias, também foram desenvolvi-
das. Exemplo disso é o consórcio Hierarchical
Taxonomy of PsycLtopatltology (HiTOP) (Kotov
el al., 2017), que busca explicar os transtor-
nos mentais a partir de um modeio dimensio- Em geral, consideramos que o DSM é um sis-
nal no qual eles são classificados em diversos tema classificatório partlcularmente útil na
níveis, em uma complexa hierarquia. A pro- prática clínica, em especial para psicólogos e
posta é a de que existe um fator geral comum psiquiatras. A CID, por sua vez, pode ser con-
aos transtornos mentais, que fica no topo siderada o sistema classificatório atual com
da hierarquia e seria responsável por expli- maior utilidade clínica para um contexto glo-
car casos difusos de sinais, sintomas e traÇos bal de intervenção e comunicação em saúde
psicopatológicos. O segundo nível hierárqui- mental. Ambos os manuais podem fornecer
co contém os superespectros que são respon- informações e orientações que guiam trata-
sáveis por explicar quadros psicopatológicos mentos e promovem o planejamento de polí-
difusos dentro de um conjunto específico de ticas públicas e de intervenções nas mais di-
sinais, sintomas e traços psicopatológicos. O versas esferas. Já modelos taxonômicos al-
modelo propõe três superespectros: disfun- ternativos ou neurocientíficos (p. ex., Hi-
ção emocional (Watson eÍ aL.,2022), psicose TOP e RDoC) são particularmente úteis pa-
AVANçOS EM PSTCOPATOLOGTA 13

ra o avanÇo da compreensão acerca de aspec- górico, Ieva à adição das comorbldades, tam-
tos etiológicos e contextuais dos transtornos bém tem sido explorada a partir de modelos
mentais, embora tenham, por enquanto, me- já citados.
rror aplicabilidade do que os manuais. A tecnologia, sem sombra de dúvidas, se-
Para o futuro, é esperado que os siste- rá uma grande aliada nesse futuro. Por meio
mas classificatórios, como a CID e o DSM, se de dados e evidências robustas, e1a poderá
mantenham atualizados, para que possam permitir maior agilidade e assertividade nos
se aproximar cada vez mais das necessida- diagnósticos, possibilitando, assim, melhor
des da prática, ampliando sua utilidade clí- planejamento dos tratamentos e dos sistemas
nica, especialmente para a previsão e a for- de saúde voltados à saúde mental dos indivÍ-
rrulação de tratamentos mais adequados. A duos. Por exemplo, com o avanço nas áreas
rranutenÇão de abordagens categóricas que da tecnologia da informação, data analytics e
lenham maior correspondência com os fe- machine Learning, os diagnósticos poderão in-
nômenos reais, associada à utilização de ins- cluir informações clínicas, estatísticas, his-
irumentos, avaliações e abordagens dimen- tóricas e contextuais, permitindo maior acu-
slonais para guiar os tratamentos, pode ser rácia. Essas mesmas tecnologias podem ser
uma alternativa para o futuro, e isso tem sido utilizadas para fins didáticos e educacionais
discutido (Gaebel et al.,2020). Também é ne- na área, possibilitando aos egressos dos cur-
cessário pensar em classificações pslquiátri- sos de psicologia, psiquiatria e áreas afins es-
cas pluralistas, que coexistam e contribuam tarem mais bem preparados para a atuação
.lara o acúmulo de evidencias, mas que sejam profissional, inclusive aprimorando os mo-
iormuladas de modo a permitir maior en- delos preditivos a partir de diferentes pers-
rendimento e precisão a respeito dos funda- pectlvas diagnósticas.
rnentos teóricos e metodológicos empregados Um exemplo de pesquisa nesse campo é o
Aftab & Ryznar, 2021). Widiger (2019) res- estudo que buscou a predição de diagnósticos
salta que é necessário considerar os transtor- psicopatológicos por meio de análise explo-
i-ios mentais a partir de perspectivas biológi- ratória de dados e redes neurais (Do1ce et al.,
-'as, psicológicas e culturais, utilizando-se de 2020). Seis especialistas daárea de avaliação
.tm conhecimento compreensivo aiicerçado psicológica criaram um questionâuo de 260
tm uma série de níveis. Nesse sentido, pers- itens, com resposta dicotômica, para avaliar
Dectivas reducionistas podem não capturar a os sinais e sintomas dos principais transtor-
essência e a variabilidade dos fenômenos ob- nos mentals presentes nos manuais dlagnós-
servados. ticos internacionais, como a CID e o DSM. A
Também é válido citar que as chamadas implementação dessa tecnologia permitiu re-
explicações compositivasl têm contribuído finar quais perguntas eram mais importan-
enormemente para ampliar a compreensão tes para avaliar traços psicopatológicos e com
do adoecimento mental, com a melhor explo- 100 questões a menos, foi possível chegar ao
ração etiológica, clínica e dos possíveis trata- mesmo resultado e com uma acurácia maior
rnentos - causa, composição, contexto e con- do que o lnstrumento original (88,5 versus
sequências (Hawkins-Elder & Ward, 2021.). A 74,4o/o) (Dolce et aL.,2020).
abordagem transdiagnóstica, ou seja, aque- Outro estudo discutiu a importância do
La que entende sintomas comuns a diferentes uso de machínelearníng para que a psicologia
transtornos mentais e que, no modelo cate- possa se tornar, além de explicativa, prediti-
va, ou seja, que possa compreender fenôme-
nos passados e também, com certa acurácia,
' Traduzido livremente pelos autores, do inglês prever comportamentos futuros (Yarkoni &
comp o sitio nal explanatío ns. Westfall, 2017). Isso possibilitaria aos profis-
OLTVEIRA & TRENTINI (ORGS.)

sionais da área da saúde, além de novos mé- Investir em proietos interdisciplinares


todos e formatos de pesquisa. uma prepara- que possam conjugar o conhecimento técni-
ção mais eficaz para auxiliar pacientes com co das ciências com os avanços digitais é um
comportamentos de risco, como ideação sui- dos passos nesse caminho. Incentivar a par-
cida ou tentativas de suicídio. Considerando a ceria entre laboratórios de pesquisa e apro-
baixa acurácia das escalas de detecção de ris- ximar cada vez mais a academia de projetos
co, pesquisadores aplicaram a técnica de ma- que busquem soluções para beneficiar a saú-
chínelearning a uma grande base de dados mé- de mental é fundamental. Essa aproximação
dlca para desenvolver um modelo preditivo permite que a contribuição social da ciência e
desses comportamentos (Walsh eÍ aL.,2017). da pesquisa chegue em quem mais precisa, de
Com o uso de mais de 5 mil casos, que apre- forma mais rápida e ampliada.
sentavam a avaiiação de profissionais da área O desafio é tornar cada vez mais acessíveis
para a definição de parâmetros e o registro de essas novas formas de compreender o adoe-
autoiesão e tentativa de suicídio, foi possível cimento mental e o funcionamento geral dos
desenvolver um algoritmo com acurácia de indivíduos, seja na pesquisa ou na prática clí-
84o/o napredição de comportamentos de risco nica. Isso permitiria o constante avanço na
e precisão de 79o/o. Muito mais do que núme- busca da compreensão de toda a complexi-
ros, são dados que podem salvar vidas, defi- dade do adoecimento mental e, consequente-
nir e orientar práticas estratégicas no mane- mente, no desenvolvimento de intervenções
jo dos casos e possibilitar uma atuação mais mais efetivas na promoção da saúde mental,
eficaz em saúde mental (Walsh eÍaL.,2077). na prevenção de agravos e nos tratamentos'
Esse talvez seja o futuro dos próprios ma- Dessa forma, nos distanciamos da expllcação
nuais, que receberão atualizações constantes pura e simpies de que "os fenômenos são com-
e trabalharão com uma massa de dados viva plexos" e nos aproximamos mais do conheci
e mundialmente integrada. A própria ferra- mento dos múltiplos fatores (individuais, so-
menta de avaliação poderá, a partir de dados ciais, contextuais) que levam ao adoecimento
globais e regionais, sugerir as melhores práti- mental. Esse avanço poderá possibilitar uma
cas clínicas e os tratamentos mais aderentes prática mais assertiva e uma melhor com-
para determinado perfil, levando em conta a preensão por parte do paciente sobre os fato-
minúcia e a especificidade de cada paciente. res envolvidos no seu adoecimento, propor-
Vale ressaltar que essas reflexões são apenas cionando maior autonomia e participação no
um exercício de imaginação acerca do futu- tratamento.
ro no horizonte da medicina e da psicologia. Esses são apenas alguns dos benefícios
E para que possamos experimentar todas as que podemos aicançar a partir do investi-
possibilidades dos futuros (no plural) possí- mento na pesquisa científica sobre os trans-
veis, precisamos agir no agora. Nesse senti- tornos mentais. O importante é que, assim
do, os sistemas classificatórios tradicionais como os manuais, sigamos avançando e nos
são, sem dúvida, importantes ferramentas na atualizando, preenchendo as lacunas, corri-
area da saúde mental. Aliados a maior plura- gindo os erros e estando sempre abertos ao
lidade de perspectivas, como os novos mode- novo.
los e abordagens dimensionais, neurocientí-
ficas e transdiagnósticas, e ao avanço tecno-
1ógico e de análise de dados complexos, é pos-
síve1 que os sistemas de classificação avan-
cem no entendimento, na formulação e no
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