Você está na página 1de 8

Maria Angela Assis Dayrell

“O psicanalista só se autoriza por si mesmo”1


Maria Angela Assis Dayrell

Resumo
O autorizar-se psicanalista implica sustentar essa autorização ao se comprometer com a forma-
ção permanente, priorizando sua análise pessoal, pois a experiência radical de análise é a única
garantia de sua formação como psicanalista.

Palavras-chave: Ser psicanalista, Autorizar-se, Formação permanente, Experiência de análise.

O que o paciente viveu


sob a forma de transferência
nunca mais esquecerá.
Sigmund Freud

O que exijo é que não possa exercer a psicanálise


alguém que não tenha conquistado,
por meio de uma determinada preparação,
o direito a uma tal atividade.
Sigmund Freud

Façam como eu, não me imitem.


Jacques Lacan

Este trabalho traz alguns recortes de textos como um princípio, se encontra no texto
da literatura psicanalítica, com destaque Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o
para os de Freud e Lacan. psicanalista da Escola.
Muita coisa já foi escrita sobre este Vamos trabalhar a dimensão desse
tema. Diante disso, para não cair na ilusão princípio, a partir de duas questões:
de estar escrevendo algo inédito, faço jus • Como acontece ser psicanalista?
aos que me antecederam. • A partir de que o analista se autoriza
De mais a mais, para o psicanalista, o analista?
inédito é a própria análise – a sua e a de Desde 1958, em A direção do tratamen-
seus analisantes – no um a um, em que to e os princípios do seu poder, Lacan fala em
seu desejo e sua exigência ética sejam princípios ao destacar:
produzir uma experiência única, singular • Direção: deixa bem claro que o
e fecunda. analista deve dirigir não o paciente, mas
Esta frase “o psicanalista só se auto- o tratamento e que, ao final, o analisante
riza por si mesmo”, enunciada por Lacan seja capaz de se cuidar sozinho, portanto

1. Trabalho apresentado na XXXVI Jornada de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG): “A
prática analítica e o mal-estar atual”. Dias 21-22 set. 2018, Belo Horizonte/MG. (Revisto em janeiro de 2019).

Reverso • Belo Horizonte • ano 41 • n. 77 • p. 103 – 110 • jun. 2019 103


“O psicanalista só se autoriza por si mesmo”

produzir um sujeito que possa prescindir cronológico, que comporta um ato, diz
de um analista; Benoît Bouteiller (2018).
• Tratamento: a análise; A rigor, na sua dimensão ontológica, o
• Princípios: linhas mestras, axiomas, ser psicanalista diz respeito a uma posição
eixos, paradigmas; – estar sempre se fazendo, se tornando psi-
• Poder: a ética própria do discurso canalista, num processo contínuo, como
psicanalítico; o poder que está em jogo numa pulsação.
na análise é o da fala e da transferência Comumente, esclarece Bouteiller
do analisando. (2018), um status, um papel e uma função
Em Recomendações ao médico que são atribuídos a qualquer trabalhador. O
pratica a psicanálise, diante das famosas status é relativo ao título do seu trabalho;
perguntas “Como alguém pode tornar-se o papel, à descrição do que deve ser feito a
psicanalista?” e “Como se aprende psica- partir do seu título, e a função, à sua prática.
nálise?” Freud ([1912] 2010, p. 157) foi A dimensão dessa ideia do psicanalista
direto ao ponto: que só se autoriza por si mesmo acontece
exatamente, quando se está trabalhando
[...] passando-se por ela! Pela análise dos com o analisante: não há título (diploma)
próprios sonhos [...] a pessoa adquire na nem papel (tarefas a serem feitas), mas
própria carne, por assim dizer, impressões há uma função – a de psicanalista, que
e convicções que procura em vão nos opera com um saber. Qual saber? O “feliz
livros e nas conferências. saber”, escrito com uma grafia diferente
por Lacan, “gay sçavoir”, em que o “ça”
Na Conferência 31: A dissecção da está no lugar do saber, na equivalência
personalidade psíquica, Freud ([1933] 2010, ça=Isso=Ics.
p. 209) sublinha: Na teoria lacaniana, a palavra “saber”
serve para nomear o inconsciente, que,
Mas tivemos de perceber e proclamar nas palavras de Marco Antonio Coutinho
como nossa convicção, que ninguém Jorge (2017, p. 146),
tem o direito de intervir numa dis-
cussão da psicanálise se não adquiriu [...] é a forma mais depurada que Lacan
determinadas experiências, que apenas encontra para defini-lo: um saber lingua-
mediante a própria análise podem ser geiro, constituído de significantes, o que
adquiridas. dá um alcance eminentemente clínico
à definição de Lacan do inconsciente
A importância da análise pessoal se estruturado como linguagem.
demonstra na declaração do sujeito de sua
vivência da descoberta do inconsciente. Juan-David Nasio (1984, p. 1050)
Dessa experiência transformadora, gera- afirma:
dora de uma familiaridade do analista com
o seu próprio inconsciente, poderão surgir J. Lacan propôs uma noção-fórmula que
as condições da escuta analítica, desfazen- permite designar a suposição de que o
do-se pontos cegos e conquistando um es- sujeito é o inconsciente ou de que o in-
tilo próprio para conduzir os tratamentos. consciente é um sujeito: o sujeito suposto
Nessa experiência inaugurada por Freud, saber.
o desejo e a função de analista poderão
despontar no analisante. Como acontece ser psicanalista?
Fazer essa passagem do divã para a Na base do discurso universitário, o psica-
poltrona introduz um tempo lógico e não nalista seria nomeado, receberia um título.
104 Reverso • Belo Horizonte • ano 41 • n. 77 • p. 103 – 110 • jun. 2019
Maria Angela Assis Dayrell

Mas, quando Lacan diz “que o analista se de maneira tal que a verdade do amor, a
autoriza senão por ele mesmo”, é diferen- saber, da transferência, só fez aí a irrupção
te de ser nomeado membro associado ou (Lacan, 1974, p. 42-43).
membro titular de uma instituição e, cer-
tamente, isso é difícil, incômodo e acarreta Aprendemos com a psicanálise a
mal-estar, pois essa escolha (grifo nosso) essência do processo de recalcamento
precisa ser feita no positivo, prossegue (Freud, [1915] 2010). E a ética está ligada
Lacan, para “que haja homem [qu’il y a de tanto à essência quanto ao cerne do ser,
l’homme], é [preciso] que haja em alguma na sua dimensão do saber, do desejo e da
parte a castração”. verdade. O inconsciente surge como um
O psicanalista se autoriza por si olhar que revela para o sujeito o desejo e
mesmo assim como o sujeito sexuado se a pulsão. O ato, a pontuação do analista
autoriza por si mesmo. A ligação entre o é para surpreender, acordar o sujeito para
psicanalista e o ser sexuado, entre o psi- o que ele está falando. Então, é esse olhar
canalista e as fórmulas de sexuação está do outro, do analista, que faz surgir o que
no objeto a. vai dividir o sujeito ($).
Nas fórmulas de sexuação, existe o Em Um olhar a mais, ver e ser visto na
lado todo fálico, lado da linguagem e o psicanálise, Quinet (2004, p. 291) afirma:
lado não todo fálico, lado do objeto a,
onde se encontra a posição do psicanalista, Lacan nos indica uma postura ética: não
como agente do discurso analítico. se trata de falar para o olhar do Outro
Lacan diz (1974, p. 5-6): (que inexiste), mas falar em nome do
olhar, objeto que causa desejo, o desejo de
Pois enquanto não havia discurso ana- continuar ex-sistindo. Falar do lugar do
lítico, não havia psicanalista [du psica- olhar é inserir-se como agente do discurso
naliste]. É por isso que eu enunciei que do analista.
há [du] psicanalista [...], mas isso não
pode querer dizer entretanto que haja Para tanto, como a formação do psi-
um psicanalista. canalista deve se pautar?

E continua: A análise pessoal, o primeiro com-


ponente do clássico tripé, é condição
Eis o princípio do discurso analítico, é aí imprescindível no processo de formação.
que o verdadeiro toma sua importância O tratamento do psicanalista é que decide
primária, e que, como eu o fiz observar da sua competência: experiência singular,
há muito tempo, só há uma transferência, do seu encontro com o inconsciente, é
aquela do analista, já que afinal, é ele que condição sine qua non para sua práxis.
é o sujeito suposto ao saber. Ele deveria Somos “operadores do simbólico”,
saber bem em que se sustentar lá em cima: ensina Célio Garcia (2006).
sobre sua relação ao saber, até onde ele é Lacan ([1956] 1978, p. ­­199) esclarece
regido pela estrutura inconsciente que o em Situação da psicanálise e formação do
separa bem daí de onde sabendo um fim, e psicanalista em 1956:
eu o sublinho, depende mais da prova que
ele fez em sua própria análise, do que meu [...] a ordem simbólica exige três termos
dizer pode lhe trazer. A coisa é notável, ao menos, o que impõe ao analista a
o saber do inconsciente é revelado [...] não esquecer o Outro presente, entre os
a verdade do inconsciente – a revelação dois que, por estarem lá, não englobam
do inconsciente como saber [...] é feita aquele que fala. Um psicanalista deve se

Reverso • Belo Horizonte • ano 41 • n. 77 • p. 103 – 110 • jun. 2019 105


“O psicanalista só se autoriza por si mesmo”

assegurar nessa evidência de que o ho- E a resposta de Lacan é “ele deve se


mem é, desde antes de seu nascimento e regular por sua falta-a-ser”, o que efetiva-
para além de sua morte, preso na cadeia mente deixa aberta a questão de qual é,
simbólica, a qual fundou a linhagem então, sua definição do Real.
antes que aí se bordasse a história [...] Dessa forma, a partir da análise
que ele é na verdade tomado como um pessoal, à luz do próprio inconsciente, o
todo, mas à maneira de um peão, no ensino teórico da psicanálise, que seria o
jogo do significante [...] esta ordem segundo componente do clássico tripé, se
de prioridades devendo ser entendida daria não num terreno árido e distante,
como uma ordem lógica, isto é, sempre mas num terreno fértil e próximo. É ex-ti-
atual. Esta exterioridade do simbólico mo! Portanto, se daria na conjunção entre
em relação ao homem é a própria noção a psicanálise em intensão (a análise) e em
do inconsciente. extensão (o ensino).
“O que o psicanalista deve saber”?
Mas Lacan ([1956] 1978, p. 202) faz Diante dessa pergunta decisiva de
um alerta: Lacan em Variantes do tratamento padrão,
Quinet (2009, p. 56-57) enfatiza em A
Evitem compreender! Que uma das ore- estranheza da psicanálise:
lhas se ensurdeça, tanto quanto a outra
deve ser aguda. E é àquela que deve • Ignorar o que ele sabe. É a resposta de
prestar à escuta dos sons ou fonemas, Lacan em 1953, para que a análise possa
das palavras, das locuções, das sentenças, ser reinventada em cada caso, a cada vez.
sem aí omitir pausas, escansões, cortes, • Saber o que fundamenta a experiên-
períodos e paralelismos, pois é lá que se cia psicanalítica. É a resposta de Lacan
prepara palavra por palavra da versão, com a criação da Escola em 1964, sendo
sem o que a intuição analítica fica sem para tal requisitada uma práxis da teoria
suporte e sem objeto. que ele faz equivaler a própria ética da
psicanálise.
Com seu ato, o psicanalista está na • Saber que não há relação sexual que
função de analista, quando faz uma in- possa ser escrita, pois a psicanálise sus-
terpretação, uma pontuação e provoca tenta-se da lógica do não-todo, sendo que
uma ação. Diz Bouteiller (2018) que vem todo analista “sabe ser um rebotalho” é
primeiro sua função poética depois é que a resposta de Lacan em 1974. Esse saber
vem o sentido. Portanto, fazer a pontuação deve ser adquirido em sua análise pessoal
a partir do som e não do sentido. O sentido e verificado no dispositivo do passe.
vem do tecido do som.
Estamos na posição muito precisa que Portanto, a transmissão da psicanálise se
podemos chamar “de política, de estratégia dá pela via do matema e pela via do estilo.
e de tática”, como diz Lacan ([1958] 1998)
no seu texto A direção do tratamento e os Quinet (2009, p. 59) continua:
princípios do seu poder, sendo: A via do matema é a via na qual se trata
• Tática: a interpretação, do registro de transmitir o que é ensinável: o conhe-
do simbólico; cimento, o saber. Logo, na via do matema
• Estratégia: o manejo da transferên- encontramos o ensino da psicanálise e
cia, na sua dimensão imaginária; na via do estilo, podemos dizer, a própria
• Política: na qual a aposta consiste psicanálise, a prática psicanalítica. Há
em saber se o analista deve se regular por algo que faz a junção das duas vias: a
seu ser ou por sua falta-a-ser. transferência. E diz Lacan ao fundar sua

106 Reverso • Belo Horizonte • ano 41 • n. 77 • p. 103 – 110 • jun. 2019


Maria Angela Assis Dayrell

Escola: A psicanálise só é transmissível prática psicanalítica não está fora disso.


pelas vias de transferência de trabalho. Se a supervisão não é obrigatória, ela é,
no entanto, aconselhável ao analista que
Quinet (2009, p. 64-65) destaca: se autoriza por si mesmo a receber em
análise sujeitos que o demandam.
Podemos supor ao menos três riscos na
transmissão da psicanálise, a partir de La- Na prática supervisionada, considera-
can, que se situam simultaneamente nos se a ética da psicanálise, que é a ocasião
registros do real, simbólico e imaginário. por excelência, para se ver as razões do
próprio ato dos analistas, desafiados entre
• Repetir. O automatismo de repetição a ação e o pensar.
movido pela pulsão de morte indica-nos Marco Antônio Coutinho Jorge
que a repetição na transmissão é uma (2017, p. 162, grifo nosso) explica:
modalidade de assassinato de ideias. É o
que está em jogo na psicanálise quando A supervisão é um lugar de elaboração de
o saber se degrada facilmente em jargão saber do analista: antes, durante e depois
[...]. de cada encontro com o supervisor. Trata-
• Aplicar. O esforço de formalização de se sempre, na experiência da supervisão
Lacan deixou-nos esquemas, grafos, mate- clínica, de recolocar em ação a vigência
mas que podem se oferecer ao risco de sua do discurso psicanalítico. A supervisão
aplicação, por exemplo, no relato de caso. apresenta duas funções: remeter o su-
Se Freud nos legou casos paradigmáticos, pervisionando à própria análise, quando
nem todas as histéricas são Dora, tam- alguma questão pessoal dele está interfe-
pouco todos os obsessivos, Homem dos rindo em sua escuta analítica; remeter o
Ratos, ou todos os psicóticos, Schreber. supervisionando ao estudo teórico, quan-
• Mimetizar. O fato de na orientação do alguma falha no seu conhecimento
lacaniana não haver uma burocratiza- teórico é a responsável pela dificuldade
ção proposta pela instituição não põe na condução de um tratamento. Nesse
o analista totalmente ao abrigo deste sentido, o supervisor parece replicar, a seu
risco: fazer como Lacan (supostamente) modo e com objetivos diferentes, a posi-
fazia. Qual o antídoto contra ele senão ção do analista, ele próprio dividido em
o de reinventar a psicanálise a partir da duas funções: de objeto a e de intérprete.
doutrina freudiana e da análise pessoal? Na primeira, ele remete o supervisionan-
do à sua análise; na segunda, ele o remete
A rigor, a posição de Lacan em rela- ao estudo da teoria.
ção à formação analítica é extremamente
revolucionária. Cada analista tem que se A partir de que o analista
responsabilizar por sua práxis e pelo dever se autoriza analista?
que lhe compete no mundo. Vamos destacar, inicialmente, a palavra
Ao lado da análise pessoal e do ensino, “autorizar”. No Dicionário Aurélio, en-
é preciso experimentar as vicissitudes de contramos: “dar, conceder autorização,
quem ocupa o lugar de analista na prática permissão, licença, validar, confirmar”.
supervisionada, o terceiro componente do Mas autorizar, do ponto de vista etimo-
clássico tripé. lógico, nos lembra Bouteiller (2018), o ter-
Quinet (2009, p. 124) observa: mo francês autorizar [autoriser] empregado
por Lacan tem na sua raiz a palavra “autor”
Segundo Lacan, não há prática que pres- [auteur], ou seja, o agente que vai praticar
cinda de supervisão (ou de controle), e a a ação, “criador, instituidor, fundador”.
Reverso • Belo Horizonte • ano 41 • n. 77 • p. 103 – 110 • jun. 2019 107
“O psicanalista só se autoriza por si mesmo”

Trata-se, portanto, de um ato! como no cartel ou no passe, é um saber


E Quinet (2009, p. 114-115) reforça produzido desse lugar em emergência que
essa ideia em A estranheza da psicanálise: é o território do desejo. É nesse sentido
que a relação ao saber é aí atravessado
O analista não é autorizado por ninguém, pela questão da verdade.
ele se autoriza por si mesmo. [...] Não
existe o Outro da autorização. A partir Não há possibilidade alguma de o
de que, então, o analisante se autoriza analista conduzir uma análise se não se
analista? Ele se autoriza a partir de seu autorizar por si mesmo!
trabalho analítico, do deciframento de A respeito de “si mesmo”, Gilda Vaz
seu inconsciente, o que não é indepen- Rodrigues (2018, p. 38) diz em Solidão: a
dente de seu trabalho de transferência casa do desejo:
– do que ele faz da relação transferencial
estabelecida com seu analista. O si mesmo, após o percurso de uma
análise levada a esse termo, não é sua
Alain Didier-Weill (1993, p. 28, grifos pessoa, nem seus sentimentos, mas o
nossos) afirma a propósito: lugar vazio de seu ser de desejo. Aquilo
que Freud chamou de Kern unseres We-
Talvez se trate de compreender que há um sens, o coração do ser. Autorizar-se desse
certo número de superações a serem feitas lugar implica ter chegado aí e vivido essa
para que o sujeito advenha numa relação experiência radical na análise pessoal.
com a fala, que Lacan efetivamente de- [...]
nominou por essa fórmula que fez furor, Esse momento de extrema solidão é cor-
mas sobre a qual reina, a meu ver, muita relativo do desamparo. Porém, por seu
obscuridade: o que vem a ser uma fala efeito de liberação das representações às
produzida no contexto do “autorizar-se quais nos alienamos, promove o acesso
por si mesmo”? O que tentei fazer foi a uma posição singular, o acesso a esse
uma articulação entre esses dois “si”, o si mesmo em que o meu ser não é senão
“se autorizar” e o “si mesmo”, mostrar, um ser de desejo.
primeiramente, que não se tratava, de
modo algum, de um ato voluntário, e que Que os analistas possam se autorizar
se tratava de um processo fundamental- e sustentar essa autorização comprome-
mente inconsciente, de uma transmuta- tendo-se com a formação permanente,
ção subjetiva. submetendo-se à análise pessoal, a mais
profunda possível, no entusiasmo do exer-
Comentando uma proposição de cício de sua práxis.
Michel Foucault, Bouteiller (2015), em Finalizando, faço um convite à reflexão
seu texto inédito Cartel, passe et verité, proposta por Lacan em 1953, no Discurso
nos diz: de Roma, e citada por Quinet (2009), na
epígrafe de A estranheza da psicanálise:
O ato da fala tem então uma função
da emergência do ser vivente. Falar é Será que a psicanálise manifestará uma
construir um território, um território ambição desmedida ao aplicar à sua
sempre emergente. E isso, no divã, como própria corporação: a concepção que os
pelo cartel, nós fazemos a experiência psicanalistas têm de seu papel junto ao
disso: falar é talhar um lugar. O lugar do paciente, a de seu lugar na sociedade dos
desejo. E não o lugar do saber. O saber pensadores, de sua relação com seus pares
que se constitui no processo da análise, e a sua missão de ensino? j

108 Reverso • Belo Horizonte • ano 41 • n. 77 • p. 103 – 110 • jun. 2019


Maria Angela Assis Dayrell

THE PSYCHOANALYST IS THE GARCIA, C. Anotações de aula. Belo Horizonte,


O N LY O N E T O AU T H O R I Z E set. 2006.
HIMSELF OR HERSELF TO BE A JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise de
PSYCHOANALYST. Freud a Lacan, v. 3: a prática analítica. Rio de
Janeiro: Zahar, 2017.
Abstract
When a person authorizes oneself as a LACAN, J. Situação da psicanálise e formação
do psicanalista em 1956. In: ______. Escritos.
psychoanalyst, he is supposed to sustain one’s Tradução de Inês Oseki-Depré. São Paulo:
authorization by committing himself, our Perspectiva, 1978. p. 189-222.
herself, to permanent training, priorizing his or
her personal analysis. This radical experience LACAN, J. Ato de fundação (1971). In: ______.
is the only guarantee of his or her training as Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio
de Janeiro: Zahar, 2003. p. 235-247. (Campo
a psychoanalyst. Freudiano no Brasil).

Keywords: LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967


Being a psychoanalyst, Authorize oneself, sobre o psicanalista da escola. In: ______. Outros
Permanent training, Experience of analysis.. escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Versão final
de Angelina Harari e Marcus André Vieira.
Preparação de Texto de André Telles. Rio de
Janeiro: Zahar, 2003. p. 248-264. (Campo
Freudiano no Brasil).
Referências LACAN, J. O seminário, livro 21: Les non-dupes
BOUTEILLER, B. Cartel, passe et verité. Le 20 errent (1973-1974). Lição 11, de 09 abr. 1974 e
février 2015. Espace Tamarun. Saint-Denis de La lição 10, de 19 mar. 1974. Inédito.
Réunion. Inédito.
NASIO, J.-D. El inconsciente, la transferencia
BOUTEILLER, B. Anotações de aulas, abr./ jul. y la interpretación del psicoanalista: una visión
2018. lacaniana. Revista de Psicoanálisis, Asociación
Psicoanalítica Argentina, Buenos Aires, t. 41, n.
DAYRELL, M. A. A. Considerações sobre o 6, nov./dez. 1984.
acolhimento de um sócio no CPMG. Cadernos
do Fórum de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 41. QUINET, A. Um olhar a mais, ver e ser visto na
Entrada na Instituição, dez. 2013. Publicação do psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.
QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a escola de
DIDIER-WEILL, A. (Org.). Os três silêncios, fim de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
uma análise, finalidade da psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar, 1993. VAZ RODRIGUES, G. Solidão: a casa do desejo.
In: ______. PORTUGAL, A. M.; Vaz Rodrigues,
FREUD, S. Recomendações ao médico que pratica G.; BAHIA, M. A. (Orgs.). Da solidão. Belo
a psicanálise (1912). In: ______. Observações Horizonte: Quixote +Do Editoras Associadas,
psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado 2018. p. 35-39.
em autobiografia [“O caso Shereber”], Artigos sobre
técnica e outros textos [1911-1913]. Tradução de Recebido em: 11/02/2019
Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, Aprovado em: 15/04/2019
2010. p. 147-162. (Obras completas, 10).

FREUD, S. Conferência 31: a dissecção da


personalidade psíquica (1933), In: ______. O mal-
estar na civilização, Novas conferências introdutórias à
psicanálise e outros textos [1930-1936]. Tradução de
Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras,
2010. p. 192-223. (Obras completas, 18).

Reverso • Belo Horizonte • ano 41 • n. 77 • p. 103 – 110 • jun. 2019 109


“O psicanalista só se autoriza por si mesmo”

Sobre a autora

Maria Angela Assis Dayrell


Psicóloga.
Psicanalista.
Membro do Círculo Psicanalítico
de Minas Gerais (CPMG).
Além do trabalho clínico e de supervisão,
dedica-se à transmissão da psicanálise
no seu consultório e no CPMG, coordenando
Seminários de Introdução à Formação
(Tempo do saber),
e da Prática Psicanalítica (Tempo do Fazer).

Endereço para correspondência


E-mail: <maria.angelaadayrell@gmail.com>

110 Reverso • Belo Horizonte • ano 41 • n. 77 • p. 103 – 110 • jun. 2019

Você também pode gostar