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O sentido de uma psicanálise e a importância da transferência

André de Paulo Duarte

O caminho de uma psicanálise não tem em seu horizonte ser um processo


psicoterapêutico. E não precisamos ser muito rigorosos ou ir muito longe nessa diferenciação
para entender o motivo, bastaria nos atentarmos a significações dadas à palavra
“psicoterapia” no senso comum e que são extremamente difundidas por profissionais da área
em propagandas na internet. Por exemplo, há na internet quem diga que “therapeia”
signifique “ato de restabelecer algo perdido”, e que em sua junção com a palavra “psykhé”,
comumente reconhecida por “mente”, teríamos uma significação parecida com: ato de
restabelecer algo da ordem do mental e que foi perdido”. E se quisermos ir um pouco mais
longe, podemos pensar como essa significação aludida faz relação, por exemplo, com o
conceito de Saúde Mental, tal como proposto pela “Organização Mundial da Saúde” (OMS),
já que esta, grosso modo, se refere ao termo em seu “Plano de Ação de Saúde Mental” como:
“completo bem estar físico, mental, social e espiritual” (2013).
Acontece que desde Freud, nós psicanalistas batemos na tecla de que, ao que concerne
ao psiquismo, existe algo que foi perdido e é irrecuperável. E que é pelo menos desde Lacan,
que nós insistimos que a causa do psiquismo se dá justamente a partir da perda de algo do
corpo próprio que é da ordem do irrecuperável, ou melhor, que “o sujeito não é causa de si,
que ele é consequência da perda” (Lacan, 1966-1967, p. 89). Além disso, desde Freud (1930),
em “O mal-estar na civilização”, temos a noção de que para todas as pessoas que vivem em
uma civilização existe uma parcela de mal-estar, já que isso implica ter que fazer renúncias
pulsionais (renúncias sexuais e agressivas), o que não é sem consequências psíquicas. Ou
seja, para Freud (1930) é o mal-estar que impera em maior ou menor grau na vida psíquica de
qualquer pessoa, não o estado de bem estar, e muito menos o restabelecimento de uma
suposta completude.
Tudo isso faz com que no bojo do senso comum dessa diferenciação entre
psicoterapia e psicanálise, a psicanálise seja reconhecida como um processo que “não é pra
qualquer um”, ou que no mínimo, é “mais difícil de suportar”. Isso tem total relação com
essas tais “renúncias pulsionais”, já que, como nos diz Eduardo Verano (2006), se no
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processo civilizatório está incluída uma certa repressão de ingredientes como “libido,
inconsciente (de algum modo) e transferência” (p. 27), a análise, continua ele “é justamente o
lugar onde tudo isso é convocado a comparecer” (p. 27). Dizendo de outro modo, talvez uma
psicanálise seja não só diferente de uma psicoterapia, mas também reconhecida como um
processo mais difícil, porque não é incomum que o paciente chegue ao consultório do
psicanalista com uma demanda de cura psicoterapêutica atrelada a um “não querer saber de
nada disso” no que tange à existência do inconsciente, e o psicanalista tem em seu horizonte
outra coisa, outra cena.
Mas é claro que nem só de momentos de psicanálise se sustenta uma psicanálise. Há
um tanto de “não-análise dentro da análise” (Verano, 2006, p. 174). Até podemos dizer que
existem momentos psicoterapêuticos dentro de uma psicanálise, mas a questão é que os
momentos de psicanálise carregam a marca de uma diferença, que tem a ver com ser um
“lugar que privilegia o inconsciente” (p. 27). Ou marca de uma diferença já que o ato
propriamente psicanalítico, como nos diz Lacan n’O Seminário Livro 15, tem a ver com “o
ato de colocar o inconsciente” (Lacan, 1967-1968, p. 81).
E não é curioso que possa haver uma espécie de erro de comunicação logo no começo
de uma psicanálise? Ou que “(...) o sujeito que vai para a análise, não sabe o que é uma
análise”? (Verano, 2006, p. 167). E isso me lembra a fala de uma analisanda proferida depois
de alguns anos de processo analítico: “se eu soubesse que você não iria me curar, e eu ainda
iria perder quem eu era, não teria começado a fazer, e o pior é que sinto que agora não tem
mais volta”. É claro que falas assim dependem de onde o paciente vem, se tem notícia prévia
do que seja uma psicanálise, se faz uma formação, por exemplo. Mas saber da existência do
inconsciente na teoria faz parte de um imaginário e não impede que um “não querer saber de
nada disso” exista independentemente das notícias que se tem. É o movimento (re)colocá-lo
em cena, e de operar sobre ele pela via do simbólico, o que demarca o campo propriamente
psicanalítico. Essa é a marca da diferença.
Que o psicanalista tenha essa notícia, faz com que ele possa fazer desse erro de
comunicação um mote, ao propor que desse mal entendido inicial, um caminho errante seja
percorrido. Porque é no hiato cavado por esses mal entendidos, que algumas questões
poderão ser colocadas pelo paciente. E aí questões que vêm dele mesmo e que o psicanalista
pode ajudá-lo a recolocar se estiver ouvindo o que de inconsciente existe naquilo que ele está
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falando. Ou melhor “(...) escutar o que está dizendo por aquela fala, para além do que o
sujeito sabe que está falando. Escuta é isso” nos diz Verano (2006, p. 188).
E isso tem a ver com uma das coisas importantes que ouvi na graduação em
psicologia, dessas que valem o curso, ou pra ser mais exato, que mudam o curso das coisas, e
foi justo quando estava em crise com a psicanálise por não saber exatamente o que eu estava
fazendo lá, nos casos em que estava atendendo. Eu não sabia o que fazer e estava em crise
porque as coisas lá na clínica pareciam meio soltas demais e os meus colegas de outras
abordagens pareciam ter mais artifícios para lidar com as questões dos pacientes, eles tinham
escalas, testes, perguntas prontas e toda sorte de recursos imaginários que faziam com que o
inconsciente não aparecesse ali, quase como se todas essas parafernálias imaginárias fossem
métodos para se certificar que o inconsciente comparecesse o menos possível, quase como
um sonoro “ninguém quer saber de nada disso”. E a minha supervisora, que na ocasião
entendeu o motivo da minha crise, me disse algo mais ou menos assim: a sua primeira técnica
tem que ser escutar, porque se tem algo que eu posso te garantir é que, em determinadas
circunstâncias, falar desloca. Mas é preciso que alguém ocupe o lugar de endereçamento da
fala do paciente. Então primeiro a sua tarefa é ficar lá e se propor a escutar e só depois
perceber como isso tem efeitos.
Mas uma escuta propriamente psicanalítica não é fácil, porque exige antes que o
psicanalista ocupe o lugar de (a), de objeto, de resto: “o psicanalista é aquele que vem a
suportar não ser nada mais que este resto” (Lacan, 1967-1968, p. 89). Isso quer dizer, dentre
muitas coisas, que uma questão propriamente psicanalítica pode não só não ser formulada
necessariamente pelo psicanalista, como o psicanalista não tem necessariamente controle do
que vai virar uma questão analítica para o analisando. Que os efeitos desses momentos
propriamente Psicanalíticos que se diferem desses momentos psicoterapêuticos, têm mais a
ver, 1) com o psicanalista ocupar o lugar do Outro para servir de endereçamento da fala do
paciente em associação livre; 2) com o psicanalista ocupar o lugar de resto para fazer-se de
conta de objeto a e sustentar que o objeto do desejo só pode estar entre significantes, do que
supor que o seu eu é uma espécie de agente desses momentos e efeitos. Vejamos como.
O psicanalista ocupa o lugar de Outro, quase que “naturalmente” (Quinet, 1991/2013,
p. 57) na medida em que é a ele o endereçamento da fala do analisando “na constituição da
transferência” (p. 57). Ou seja, esse é o lugar em que o analisando vai colocar o psicanalista
para endereçar as suas demandas que serão articuladas em sua fala em associação livre. O
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problema é que, apesar desse movimento ser crucial à própria análise, cabe ao analista não
tentar responder desse lugar, porque isso pode acentuar a “submissão do sujeito às suas
identificações primeiras, conduzindo o analisante à idealização comandada por I(A) e ao
desconhecimento de sua falta-a-ser que o ideal escamoteia” (p. 58). E como é possível que o
psicanalista não responda desse lugar em que é colocado na transferência para que a própria
análise aconteça, mas sem deixar necessariamente de intervir? Isso tem a ver, justamente,
com ocupar o lugar de resto.
Uma das maneiras de entender como o psicanalista ocupa esse lugar de resto, tem a
ver com o corte na sessão, na medida em que a presença do analista como objeto a, implica
que ele ocupe um lugar fora da cadeia significante, que faz com esta sustente um
deslizamento metonímico, e também de corte, na medida em que interrompe esse próprio
deslizamento. É o que nos diz Quinet (1991/2013), ao destacar que o objeto a por si só, já
tem estrutura de corte, e que a função do analista nesse lugar tem a ver com, ao cortar a
sessão, fazer-se presentificar como a demarcando e correspondendo um intervalo
significante: “O corte da cadeia significante, que representa a suspensão da sessão a partir da
trama do discurso do analisante, será equivalente à presença do analista, presença como
faz-de-conta de objeto a, objeto opaco, que resiste à interpretação” (p. 70). Assim, ao
suspender a sessão, isto é, cavar um intervalo em um momento oportuno da cadeia
associativa do analisando, é uma forma do analista se “fazer de conta de objeto a - ato que
remete ao conceito de ato analítico desenvolvido por Lacan em 67/68” (p. 71). Isso é
importante para percebermos que a presença do analista - propriamente enquanto psicanalista
-, se dá por sua condição de ocupar o lugar de Outro, de a, mas não de eu.
Por exemplo, certo dia um analisando me enviou uma mensagem dizendo que estava
no salão cortando o cabelo, e que como houve um atraso por lá, ele se atrasaria alguns
minutos para a sessão. Quando ele chegou, havia feito um corte completamente diferente do
habitual de todos os outros naquele então um ano de análise. Tinha coisa ali, uma mensagem
na mensagem de atraso e no próprio corte. Depois de alguns minutos que ele estava falando,
sem mencionar nada sobre atraso e o corte, e falando de uma maneira muito diferente do
modo como sempre falava, como se estivesse tentando me “enrolar”, perguntei: por que você
cortou o seu cabelo assim desta vez, o que isso quer dizer? Ele fez alguns segundos de
silêncio, e em seguida em sobressalto, se sentou no divã e olhou pra mim dizendo: “por que
você está me perguntando isso?”. E eu disse, “achei que você quisesse dizer alguma coisa
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com a mensagem do atraso e com o novo corte”. Mas ele ficou extremamente irritado, e
pediu para encerrarmos a sessão naquele momento. Na sessão seguinte, dois dias depois, ele
me disse que se irritou e foi embora porque sentiu um tom diferente na minha voz. E depois
de passear por alguns assuntos e silêncios, disse que aquele tom era o mesmo que um tio
utilizou certa vez, quando da sua adolescência, para lhe interrogar sobre a sua sexualidade.
Vejam, a pergunta foi sobre corte de cabelo, mas o que foi recolocado ao analisando foi a
pergunta do seu tio sobre a sua sexualidade, e também o tom agressivo na voz que carregou
as palavras. Logo, raspar o cabelo já era a recolocação, por parte dele mesmo, de uma
pergunta cabeluda - se me permitem o trocadilho infame - já que esse paciente tentava cortar
todo indício de feminilidade de seu corpo e comportamentos. É claro que não é coincidência
que ele estivesse falando nas sessões anteriores, justamente sobre como esconder a sua
homossexualidade em diferentes âmbitos da vida.
Ou seja, cortar o cabelo naquele momento do seu processo de análise, pode ser
considerada uma espécie de repetição na transferência, que precisou ser pontuada - tal como
orienta Freud (1914/2010) em “Recordar, repetir e elaborar”, ao falar que se o paciente repete
antes de conseguir elaborar, é preciso que o psicanalista traga essa repetição para a esfera
psíquica interpretando-a - para se desdobrar em muita coisa a ser dita por ele sobre o assunto.
Esse tipo de repetição que funciona como uma espécie de precipitação da encenação de uma
trama de significantes inconscientes, é um dos modos de aparecimento do que chamamos de
Acting Out: uma maneira do sujeito lidar com a angústia de se aproximar do objeto do seu
desejo, fazendo recurso ao enlace proporcionado pela transferência. É uma maneira de
encenar em um fazer algo que de alguma maneira se furta à cadeia associativa. Mas isso só
acontece - e só leva o nome de Acting Out - se a repetição estiver articulada à transferência.
E aí chegamos a um lugar importante: o que faz com que o paciente consiga suportar
um tom de voz que carrega palavras que dizem também sobre algo violento, conflituoso e
sofrido? O que faz com que o paciente consiga suportar a violência dessa recolocação do
inconsciente em cada caso e a cada sessão? O que faz com que o paciente consiga suportar a
violência que é tratar dessas questões que são reprimidas pelo processo civilizatório e sobre
as quais “não se quer saber de nada disso”? Por qual motivo mesmo frente a essa significação
corrente de que a psicanálise é um processo mais difícil, e depois de ter passado por um tanto
dessa experiência de retorno desses ingredientes tão reprimidos, um paciente retorne ao
consultório? Ora, que a minha supervisora lá do sétimo período tenha me sugerido em um
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momento de crise sobre o sentido da técnica psicanalítica, que eu primeiro servisse de lugar
de endereçamento de fala e escutasse e só depois percebesse que isso produziria de efeitos,
deslocamentos, quer dizer que ela sugeriu de uma maneira muito sutil que eu apostasse em
algo muito mais importante para o dispositivo psicanalítico, do que qualquer parafernalha
imaginária, ou seja, ela sugeriu que eu apostasse na transferência.
É somente sob a transferência que essas perguntas cabeludas que o paciente coloca
para si mesmo em associação livre, e que por vezes é o psicanalista que precisa devolvê-las a
ele por conta desse estrutural “não querer saber de nada disso”, que a violência da
presentificação em ato do inconsciente, e do retorno desses conteúdos recalcados, torna-se ao
menos suportáveis. É a transferência que sustenta um percurso de análise, no que isso tem a
ver com o fato de que o ato psicanalítico seja “o ato de colocar o inconsciente” (Lacan,
1967-1968, p. 81), já que segundo ele só existe ato analítico sob transferência. Mas por que?
Primeiro temos que tentar entender qual é o sentido do ato analítico, isto é, qual é o
sentido do ato de “colocar o inconsciente”? Pergunta semelhante nos faz Eduardo Verano
(2006), em relação ao sentido de uma análise. E ele nos diz, grosso modo, que o sentido de
uma análise é o deslocamento do sentido, e que o encarregado de dar suporte a esse
deslocamento é o psicanalista. Ou melhor, ele nos diz que quando o paciente chega à análise,
chega “cheio de sentido”, e que uma das tarefas do psicanalista é fazer com que o “sem
sentido” (que tem a ver com os as formações do inconsciente) seja escutado e levado em
consideração. Isso acontece porque “a atenção flutuante vai autorizando a escuta ao longo das
primeiras falas, e deslocando a questão do sentido” (p. 171). Então o sentido vai se
deslocando, e o analisando vai percebendo que está a cada momento mais distante daquele
sentido inicial (o da queixa, por exemplo), ou seja, falando de algo aparentemente não
relacionado àquele sentido inicial, como foi, por exemplo, no caso que citei sobre o corte de
cabelo. Àquele paciente, se estivesse tendo seus primeiros contatos com as suas questões em
análise, talvez não fizesse muito sentido a suposição de que o atraso e o corte de cabelo
tenham sido um modo de falar sobre outra coisa, sobre a sua sexualidade. Mas na medida em
que entrou em análise, e esses sentidos foram sendo deslocados com a associação livre e a
atenção flutuante sob uma relação transferencial, um tanto desse sem sentido que tem a ver,
na verdade, com outro sentido, com outra cena, isto é, com o inconsciente, foi sendo
suportado. Para utilizar um exemplo do Verano, se antes a questão para um paciente era “a
enxaqueca está aqui, me cure disso” (p. 173), depois desse deslocamento de sentido a questão
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passa a ser “por que estou aqui?” (p. 173), isto é, passa-se de um “me cure disso” (p. 173)
para um “por que há isso em mim?” (p. 173).
Sobre esse “sem sentido” Verano pergunta: “onde está o sentido desta aparente falta
de sentido?” (p. 170). E ele se pergunta “onde”, porque aborda a questão como localização. O
sentido pelo qual o paciente chega à uma análise, que é o sentido pelo qual nós operamos
comumente na realidade, se localiza entre o imaginário e o simbólico. E o sentido que uma
análise privilegia, aquele que o analista escuta e aponta, está localizado entre o simbólico e o
Real. Dizendo de outro modo, o sentido da queixa, e da realidade, está entre o simbólico e o
imaginário. Já o sentido do sintoma, das formações do inconsciente, está entre o simbólico e
o real. É desse modo que Verano nos diz que o psicanalista dirige a análise sendo o suporte
do deslocamento de sentido, que tem como função, fazer com que se chegue ao sintoma:
“Na análise, a finalidade comum é ir atrás do sintoma. Os dois estão lá para isso - o que
implica alguma coisa do desejo” (p. 173).
Segundo Lacan (1958-1959) em “O seminário livro 6 - o desejo e sua interpretação”,
o tratamento psicanalítico incide em vários níveis do psiquismo, desde o que ele chama de
“fenômenos marginais ou residuais” (p. 11), para fazer referência aos sonhos, chistes, atos
falhos, etc. até em inibições, sintomas e angústia, porque como ele mesmo diz “é um
tratamento modificador de estruturas” (p. 11). Isso quer dizer que se a psicanálise pode em
alguns momentos ter efeitos psicoterapêuticos, é porque acaba intervindo em diferentes
realidades fenomênicas na medida em que coloca em jogo o desejo. Dizendo de outro modo,
os efeitos produzidos pela psicanálise, no que ela tem a ver com se direcionar ao sintoma,
intervém também em camadas anteriores à ele. O que não muda o fato de que no horizonte de
uma psicanálise não estejam necessariamente os efeitos psicoterapêuticos. Isso é importante
porque, por um lado, ajuda o psicanalista a entender que o fato de servir de objeto na relação
analítica, para que o analisando fale em associação livre, e se utilize da transferência para
atualizar a realidade do inconsciente, também pode servir de amparo, em momentos em que o
analisando precisa desse amparo, desde que exista escuta - e como bem nos lembra Eduardo
Verano, escuta é escutar o que de inconsciente o sujeito está dizendo para além do que sabe
que está dizendo, isto é, tem a ver também com a atenção flutuante, e o que ela coloca de
deslocamento em jogo. Isso não quer dizer que seja uma tarefa fácil, porque no curso de uma
psicanálise, psicanalista e psicanalisando vão se defrontar com toda sorte de resistências.
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Vejam como o que o psicanalista faz, a sua atitude frente ao tratamento, deve ter
relação direta com a psicanálise se direcionar ao sintoma, ao desejo, por mais difícil e
angustiante que isso possa parecer à princípio. Porque aqui estamos falando o tempo todo da
existência de dois eixos, um eixo da sugestão, e um eixo da transferência. Qual é a diferença
entre os dois? Segundo Lacan (1957-1958), em “O Seminário Livro 5 - as formações do
inconsciente”, a diferença é que, grosso modo, a via da sugestão visa responder à demanda
do sujeito sobre um significante que lhe encerre. Isso não quer dizer que o analista ou
qualquer outra pessoa/tratamento, conseguiria responder à demanda, já que sabemos que isso
é impossível, estruturalmente falando. Responder a demanda é da ordem do impossível desde
a captura pela linguagem. Mas isso não quer dizer que não se possa cometer o erro de tentar
responder à demanda, principalmente quando se estiver ancorado em toda sorte de
parafernálias imaginárias, que podem servir, como vimos, para fazer ressoar e contribuir com
um “não querer saber de nada disso”. Enquanto que a transferência visa não responder à
demanda e direcionar o analisando à falta de um significante no Outro. Lacan chega a dizer
neste mesmo seminário, em um dos momentos em que está construindo o grafo do desejo,
que o desejo estar entre a linha da sugestão e da transferência, quer dizer que operar na
sugestão é reforçar os mecanismos imaginários, enquanto que operar pela transferência,
visando o que está mais além da demanda, isto é o desejo, é operar pela via do simbólico.
Esse é um dos modos de dizer das diferenças entre psicoterapia e psicanálise. Operar pela via
da sugestão pode até ser terapêutico e pode até ser necessário em determinados momentos de
uma psicanálise. Mas não direciona ao que é mais importante para uma análise: o
inconsciente, as formações do inconsciente, o sintoma, o desejo, etc. O que caracteriza uma
psicanálise é que o psicanalista opera pela via da transferência, porque visa que o analisando
chegue sempre em um mais além da demanda, das identificações, ou seja, um mais além que
Lacan coloca como sendo o desejo. É a transferência que sustenta as perguntas, os enigmas.
Por fim, grosso modo, podemos pensar que se a psicanálise tem um sentido, uma
direção, trata-se da presentificação do inconsciente no que isso se refere a ir atrás do sintoma,
no que ele articula se articula com o desejo. E o que faz com que esse sentido seja suportado,
já que isso não é tarefa fácil, é a transferência. Na relação transferencial, na qual o
psicanalista ocupa para o analisando, um lugar de saber - e portanto, de poder -, ele ao invés
de se utilizar desse poder que lhe é atribuído para sugestionar - dirigir o paciente -, dirige o
tratamento na medida em que interpreta. Ou melhor, se direciona à articulação significante.
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Como nos diz Lacan: “(...) a verdade é que, se há transferência, é justamente para que essa
linha superior seja mantida num outro plano que não o da sugestão, isto é, para que ela seja
visada não como uma coisa à qual não corresponde nenhuma satisfação da demanda, mas
como uma articulação significante como tal. É isso que distingue uma da outra” (p. 442).
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Referências Bibliográficas

Freud, S. (1914/2010). Repetir, Recordar e Elaborar. In: Obras Completas. Rio de Janeiro:
Companhia das Letras.

Freud, S. (1930/2010). O Mal-Estar na Civilização. In: Obras Completas. Rio de Janeiro:


Companhia das Letras.

Lacan, J. (1957-1958/1999). O Seminário Livro 5 - As formações do inconsciente. Rio de


Janeiro: Zahar.

Lacan, J. (1958-1959). O Seminário Livro 6 - O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro:


Zahar.

Lacan, J. (1966-1967). O Seminário Livro 15 - O ato psicanalítico.

OMS (2013). “Mental health action plan 2013 - 2020”. Retirado do link:
https://www.who.int/publications/i/item/9789241506021

Quinet, A. (1991/2013). As 4+1 Condições da Análise. Rio de Janeiro: Zahar.

Verano, E. (2006). Clínica Psicanalítica: A mão dupla das transferências. Editora Cânone.

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