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Como a psicanálise cura

Palavras-chave: cura, tratamento psicanalítico, sintoma, fantasia

Simone Oliveira Souto

Esse tema nos convida a uma investigação sobre a natureza da experiência analítica
e sua eficácia. Essa questão tem sua importância e pertinência porque não se analisa hoje
como no tempo de Freud. Aliás, como nos lembra Pierre Gilles Guéguen, nem o próprio
Freud analisava como Freud: “ele inventava soluções conforme a ética de sua disciplina, no
momento em que os problemas se colocavam e em função da experiência, da escuta de seus
pacientes”1. Freud portanto, não inventou um modelo, mas um novo discurso e, mais que
isso, introduziu no mundo um novo objeto – o psicanalista. Sendo assim, para manter viva a
novidade que o discurso psicanalítico instaura, torna-se cada vez mais importante recolocar
a questão do que é a cura para a psicanálise. Essa investigação toma uma importância
renovada nos dias atuais, em que a “generalização das práticas de escuta” 2 e a concepção da
cura pela palavra tornaram-se moeda corrente. Como adverte-nos Miller, “é exatamente
porque a psicanálise hoje está em todo lugar, é que se poderia dizer que ela não está em
lugar algum”3. Essa frase de Miller demonstra uma preocupação com um certo êxito da
psicanálise, que hoje está em toda parte, em diversos setores da saúde, da cultura, etc. A
preocupação é de que, justamente por sua grande difusão, a psicanálise perca seu agalma,
quer dizer, o que ela tem de mais precioso. Essa preocupação já estava presente em Lacan,
quando em sua conferência “A Terceira”, ele nos diz que o pedido feito à psicanálise é de
que ela possa nos desembaraçar do real. Lacan nos alerta para o fato de que, se a
psicanálise tem sucesso em responder a essa demanda, ela não será senão um sintoma
esquecido. Logo, segundo ele, tudo depende da insistência do real e, para isso, é preciso
que a psicanálise falhe, isto é, que sua resposta não obture o advento do real. Só assim ela
terá ainda boas chances de continuar seu caminho e de permanecer como um sintoma. É

1
GUÉGUEN, Pierre Gilles (dir). Au seuil des journées. In: JOHANSON-ROSEN, Patrícia. Liminaire des XXX èmes
Journées de l’École de la Cause Freudienne. Paris: ECF, 2001, p. 4.
2
MILLER, Jacques-Alain. Presentation en l’an 2000 du theme des journeés qui se tiendront en 2001. In: JOHANSON-
ROSEN, Patrícia. Liminaire…, p. 14.
3
Ibidem, p. 12.

1
necessário, portanto, repensar a cada momento aquilo que permite a operação analítica.
Como nos indica Marie-Hélène Brousse4, trata-se de definir a operação analítica não
somente em relação ao que a diferencia das psicoterapias, mas também no âmbito da
própria psicanálise. É fundamental, segundo ela, que possamos ver em que condições
funcionamos como analistas e em que condições não. Isso significa que devemos ser
capazes de compreender e transmitir a razão de nossa prática.
É ainda Marie-Hélène Brousse que nos lembra que a prática da cura psicanalítica
sempre foi para Lacan essencial. Cada vez que Lacan fala da cura analítica, ele a apresenta
como fundamento absoluto da psicanálise, de seu ensino, da investigação, das intervenções
psicanalíticas na cultura, etc. Durante toda sua vida, Lacan, apresentou o tratamento
psicanalítico, ou seja, a análise pessoal, como algo fundamental, o lugar de origem, pois é o
lugar onde se encontram o analista e o analisante com o real da análise. Por essa razão,
tomarei o conceito de sintoma, na medida em que Lacan o define como aquilo que vem do
real, para nos orientar na investigação sobre a cura na psicanálise.
Todo aquele que procura uma análise para se curar de um sintoma, o faz a partir
da crença de que o sintoma tem um sentido e de que esse sentido pode ser decifrado. Nessa
vertente, o sintoma aparece como um enigma, pois um enigma é exatamente isso: um
sentido a ser decifrado. Como nos esclarece Miller5, existe um sentido que quer se
expressar, como não chega a fazê-lo, então, como conseqüência, aparece o sintoma. Dessa
forma, segundo Freud, o sintoma desapareceria quando o sentido recalcado se tornasse
consciente. Essa expectativa de cura é correlata do que Miller chama de “otimismo
interpretativo de Freud”6. Porque não é que o sintoma não corresponda a algum sentido,
mas toda análise que tenha caminhado um pouco, acaba por revelar uma vertente do
sintoma que resiste à decifração, algo que se repete, que retorna sempre ao mesmo lugar e
que é a demonstração em ato de um modo de gozo, de uma forma de satisfação própria a
cada um. São, portanto, nas reviravoltas da repetição, que encontramos uma vertente do
sintoma que podemos qualificar, com Eric Laurent7, como um problema real, quer dizer um
problema de gozo, um problema libidinal. Problema que é, em si mesmo, uma solução —

4
Cf. BROUSSE, Marie-Hélène. Como opera a psicoanálisis? Guayaquil: NEL, 2002.
5
Cf. MILLER, Jacques-Alain. Seminário de Barcelona sobre Die wege der symptombildung. Freudiana Barcelona, n. 19,
p. 7-57, 1997.
6
Ibidem.
7
Cf. LAURENT, Éric. Le récit de sas, crise et solution. In: JOHANSON-ROSEN, Patrícia. Liminaire…

2
uma solução única — que cada sujeito encontra para lidar com o real. O sintoma é,
portanto, o que cada um tem de mais singular. O sujeito só pode responder ao real criando
um sintoma. Aqui, encontramos uma dificuldade no que concerne à cura na psicanálise, na
medida em que o sintoma, por ser uma solução necessária, comporta algo de incurável.
Como nos lembra Marie Hélène Brousse8, a cada vez que nos dirigimos a um paciente com
o desejo de curar, não podemos escutar a novidade do sintoma, a solução que o sintoma traz
e qual pode ser a sua invenção. Assim, não se trata propriamente de acabar com o sintoma,
pois dele não podemos prescindir. Então, como o psicanalista intervém para tratar o
sintoma? Qual o tratamento dado pelo analista ao real em jogo na cura?
Com o objetivo de avançar nessa questão, me servirei do texto de Freud “O caminho
na formação dos sintomas”. Nesse texto, Freud apresenta o caminho da formação do
sintoma como o caminho da libido, e o sintoma como uma forma de satisfação. Segundo
Freud, o tipo de satisfação que o sintoma consegue tem em si muitos aspectos estranhos ao
próprio sintoma. O sintoma se constitui como algo irreconhecível para o sujeito que sente a
suposta satisfação como um desprazer, um sofrimento do qual se queixa. O sintoma é,
portanto, uma satisfação que não é reconhecida enquanto tal — podemos dizer, com Lacan,
que é um gozo, um gozo apresentado de outra maneira: disfarçado, desfigurado, escondido.
De acordo com Freud, o sintoma se forma a partir do momento em que a libido
encontra uma impossibilidade de satisfação. Então, o fato de que a libido, em algum ponto,
não possa mais se satisfazer é o que põe em marcha a formação do sintoma. A libido
insatisfeita deve, então, procurar outras vias para se satisfazer e, uma vez que não encontra
uma satisfação na realidade externa, é compelida a tomar o caminho da regressão e tentar
encontrar satisfação, seja em uma das organizações que havia deixado para traz, seja em um
dos objetos que havia abandonado. Uma saída dessa espécie é oferecida pelo que Freud
chama de pontos de fixação, situados na trajetória da vida do sujeito, que são
regressivamente catexizadas, quer dizer, reinvestidas pela libido. A libido, então, se desloca
para traz até esse ponto de fixação, em busca da satisfação.

8
Cf. BROUSSE, Marie-Hélène. Como opera a psicoanálisis?…

3
• • .
ponto de impossibilidade
fixação real de satisfação

Assim, pelo caminho indireto, via inconsciente e antigas fixações, a libido


finalmente consegue achar uma saída até uma “satisfação real”9, embora seja uma
satisfação que apareça como extremamente restrita e que mal pode ser reconhecida como
tal. Dessa forma, essa satisfação subbstitui uma modificação no mundo externo por uma
modificação no próprio corpo do indivíduo, estabelecendo um ato interno no lugar de um
externo, formando um sintoma.
Se a libido regride ao ponto de fixação, é porque existe algo atrativo ali — um mais
de gozo. Mas, como encontra, a libido, o caminho para chegar ao ponto de fixação? Freud
vai demonstrar que, no caminho de regressão da libido, temos o que ele chama de um elo
de ligação entre o sintoma e o ponto de fixação: a fantasia. Assim, a única forma de acesso
ao ponto de fixação, a esse mais de gozo, será, segundo Freud, a fantasia. Segundo Miller 10,
o que Freud demonstra é que o real em jogo no sintoma passa pela fantasia. A fantasia é
como um véu fundamental, antes do que é verdadeiramente o real, quer dizer, a fixação.
Freud vai definir a fantasia a partir das lembranças de experiências sexuais que
teriam sido vividas na infância, nas quais o desejo — aquilo que não chega a se satisfazer
— é representado como já tendo sido satisfeito. Fantasiando, em épocas mais primitivas,
um objeto desejado, o sujeito tentaria encobrir o período auto-erótico de sua vida sexual. É
com surpresa que Freud nos diz que essas lembranças se referem a fatos que podem ou não
ter acontecido na realidade, são fantasias construídas a partir de indícios posteriores e
transpostas para épocas mais remotas, dando-lhe uma significação que não tiveram em sua
origem. Podemos dizer, então, que Freud faz referência a dois aspectos da fantasia: por um
lado a relação do sujeito com um objeto que vem encobrir a falta do Outro e, por outro

9
FREUD, Sigmund. O caminho da formação dos sintomas (1916/1917). In: _____. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, Volume XVI, 1976, p. 421.
10
Cf. MILLER, Jacques-Alain. Seminário de Barcelona sobre Die wege der symptombildung...

4
lado, a significação, ou seja, um certo sentido que é dado a essa relação, uma significação
sexual, o que quer dizer, uma significação fálica.
O fato de a fantasia ser uma construção da análise, e não exatamente um
acontecimento da realidade, não quer dizer que ela é puramente imaginária. Segundo Freud,
a fantasia inconsciente possui realidade psíquica e, no mundo da neurose, a realidade
psíquica é decisiva, é o que estrutura toda a vida do sujeito, organizando o campo de
percepção do mundo externo. Nesse sentido, a realidade, mesmo a externa, é sempre
fantasmática. Assim, nesse texto, Freud insiste em um certo valor de realidade da fantasia.
Segundo Miller11, isso quer dizer que há algo que foi efetivo no passado, algo se passou no
real. Assim, o passado, segundo ele, pode ser da ordem da fantasia, mas a satisfação é real.
Então, o que há de real na fantasia é a satisfação, o gozo. Além disso, Freud assinala,
também, o fato de a fantasia ser exigida como uma necessidade e afirma que tanto o
material para sua construção como essa exigência que a faz necessária vêm da pulsão, ou
seja, desse efeito de gozo que o significante produz sobre o corpo e que podemos definir
como o que Freud localiza como ponto de fixação. Dessa forma, Freud situa o gozo do
sintoma mais além dos relatos de sedução, castração e coito (que são as formas da fantasia
originária), distinguindo, finalmente, um real dentro da realidade psíquica, que se esconde
dentro da fantasia. Para Freud, como afirma Miller12, existe um núcleo de real na fantasia,
um resto de gozo que se chama fixação e que permanece no inconsciente como a memória
do trauma do gozo, produzido pelo encontro do significante com o corpo. Portanto, o
caminho da formação do sintoma partiria da fixação em direção ao sintoma, passando pela
fantasia.

11
Cf. MILLER, Jacques-Alain. Seminário de Barcelona sobre Die wege der symptombildung...
12
Ibidem.

5
Podemos pensar que a análise faria o caminho inverso. Por exemplo, a noção de
atravessamento da fantasia, segundo Miller13, traduz a idéia que se pode percorrer esse
caminho analiticamente para extrair do sintoma seu real, com o qual, para além da fantasia,
o sujeito terá que se haver. Nesse sentido, é possível dizer que, nesse texto, Freud localiza,
no sintoma, um núcleo real e incurável. Mas a questão é que Freud pensava poder curar o
incurável, seu desejo era perpassado por um desejo de curar. Já Lacan, no final de seu
ensino, parte da constatação de que algo no sintoma é incurável e introduz uma outra
maneira de pensar a definição da cura na psicanálise, na medida em que demonstra que
curar-se de um sintoma não significa liberar-se dele, mas, ao contrário, significa identificar-
se a ele, o que pressupõe que um analisante possa, no fim de sua análise, possa reconhecer,
no sintoma, aquilo que lhe é mais próprio, mais singular, fazendo dele um outro uso,
inventando um savoir-faire, um saber lidar com o gozo que lhe concerne. Trata-se de fazer
com o sintoma um novo arranjo, um outro laço a partir do qual o sujeito terá acesso a um
gozo que lhe permita viver melhor, fazendo surgir o que Lacan, no final de seu ensino,
chamou de le sinthome – o sinthoma. Com essa pequena modificação na escrita do termo
sintoma, Lacan introduz a possibilidade de uma nova forma de enlaçamento do real,
produzida no final da análise.
Miller vai concluir, a partir do texto de Freud que a palavra Sinthome — no que ela
representa uma invenção sintomática, como resultado de uma análise – se refere a conexão
fantasia + fixação:

Sinthoma = fantasia + fixação

Parece-me que podemos concluir, dessa proposição de Miller, que a invenção do sinthoma
deve comportar um saber fazer com o objeto (fantasia) e com o significante (fixação), ou
seja, um saber fazer com S1 e a. Esses dois termos definem o sintoma como real e penso
que podem ser articulados às duas incidências do real propostas por Lacan 14 e retomadas
por Miller no Seminário de Barcelona:

13
Ibidem.
14
Cf. LACAN, Jacques. Vers um signifiant nouveau. Ornicar?, n 17/18.

6
1) O simbolicamente real: a presença do real dentro do simbólico e que podemos
relacionar com a presença do objeto a, quer dizer, com a angústia. Trata-se de um
ponto de real que aparece no simbólico.

2) O realmente simbólico: o simbólico presente no real e que seria a mentira. Trata-se


de um ponto de simbólico (S1) que aparece no real.

Partindo dessa elaboração de Lacan, Miller faz a seguinte pergunta: quando Lacan
nos diz que o sintoma é real, trata-se da angústia ou da mentira? Há, segundo Miller, algo
do sintoma que se coloca entre angustia e mentira, quer dizer, entre algo que mente, que
introduz um significante no real, e algo que jamais engana, que é como Lacan define a
angústia a partir da presença do objeto a. No entanto, Miller no diz que Lacan, ao propor
que o sintoma seja a única coisa verdadeiramente real, quer dizer, que conserva um sentido
no real, o coloca, sobretudo, do lado da mentira. O sintoma mente, a angústia, não.
Miller15 traduz bem o que significa, em relação à cura, esse lugar realmente
simbólico que Lacan dá ao sintoma: a questão não é, pura e simplesmente, que o sintoma
seja um modo de gozo, mas, sobretudo, a de poder antes gozar de seu sintoma que de sua
fantasia. Penso que essa frase pode ser entendida da seguinte forma: gozar antes de sua
relação com o significante, com a linguagem, que de ser o objeto do gozo do Outro, objeto
presentificado pela fantasia.
Lacan inventou o real e fez dele o seu sintoma, isto é, um efeito de saber, algo
que se pode usar, com o qual se pode operar e intervir justamente sobre aquilo que o
próprio real nomeia e do qual não temos a menor idéia. Um nome para o impossível. A
partir desse forçamento, de uma nova escritura, desse efeito que modifica o real, através da
15
Cf. MILLER, Jacques-Alain. Seminário de Barcelona sobre Die wege der symptombildung…

7
experiência analítica, o incurável do sintoma pode, como nos diz François Leguil16, surgir
como um sintoma que cura. Ele não garante a boa ordem do mundo, mas é um recurso
contra a incurável repetição do inconsciente.

Palavras chaves:
Cura, psicanálise, sintoma, satisfação, real, simbólico, regressão, fixação, libido, fantasia.

Resumo:
Trata-se de uma investigação sobre a natureza da experiência analítica e sua eficácia, a
partir do conceito de sintoma tomado como um problema real, um problema de gozo. A
partir daí, aborda-se qual tratamento é dado, pelo psicanalista, ao real em jogo na cura.

16
Cf. LEGUIL, François. De la nature d’un AE. La cause freudienne. Pour ou contre-transfert?. Paris, n. 53, p. 111-
118, février 2003.

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