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A literatura e a vida:

por que estudar literatura?


Vitor Cei
João Guilherme Dayrell
Michel Mingote Ferreira de Azara

Organizadores

A literatura e a vida:
por que estudar literatura?

(RCG-PRAIA)
VILA VELHA, 2015
Conselho Editorial

Gilberto Medeiros
Flávio Marcelo Pereira
Flávio Borgneth
Tarso Brennand
Vitor Cei

Comitê Científico

Coordenador
Vitor Cei Santos
Universidade Federal de Rondônia (UNIR)
Membros
Andressa Zoi Nathanailidis
Universidade Vila Velha (UVV)
André Tessaro Pelinser
Universidade de Caxias do Sul (UCS)
David G. Borges
Universidade Federal do Piauí (UFPI)
Fábio Goveia
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Paulo Edgar R. Resende
Universidade Vila Velha (UVV)
Sérgio da Fonseca Amaral
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
© 2015 Os autores

É livre a utilização, duplicação, reprodução e distribuição


desta edição, no todo ou em parte, por todo aquele que
desejar, bastando citar a fonte. Comercialização proibida.

Diagramação LABED (FALE/UFMG), Vitor Cei e Giba


Capa Alemar Rena
Revisão Os autores
Edição Gilberto Medeiros

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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)


(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

L776 A literatura e a vida [recurso eletrônico] : por que estudar


literatura? / Vitor Cei, João Guilherme Dayrell, Michel Mingote
Ferreira de Azara (orgs.). - Dados eletrônicos. - Vila Velha,
ES : Praia Editora/RCG, 2015.
510 p.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-69472-01-8
Modo de acesso: <http://www.praiaeditora.blogspot.com.br>

1. Literatura - História e crítica - Teoria, etc. 2. Literatura -


Estética. 3. Literatura comparada. 4. Literatura - Filosofia. I. Cei,
Vitor, 1984-. II. Dayrell, João Guilherme, 1984-. III. Azara, Michel
Mingote Ferreira de, 1981-.

CDU: 821.134.3(81).09
“Escrever é uma questão de devir, sempre
inacabado, sempre a fazer-se, que
extravaza toda a matéria vivível ou vivida”.

Gilles Deleuze, A literatura e a vida


SUMÁRIO

Apresentação
Os organizadores 11

A pesquisa é uma escrita autonomamente real


Raul Antelo 14

Poesia e crítica contemporâneas: endogamia e tolerância


Ronald Augusto 54

Escrita de si e experiência do mundo: notas sobre o “Ecce


Homo” de Friedrich Nietzsche
Olímpio Pimenta 71

Esgotar a vida: cenas de leitura


Ana Cristina Chiara 85

Literatura e Justiça: Julián Axat e os desaparecidos na


Argentina
Pádua Fernandes 109

A escrita literária em Foucault: da transgressão à


assimilação
Marco Antônio Sousa Alves 137

Chomón, Pastrone, D’Annunzio e Cabíria: gênese de um


épico de transição
Paulo Roberto de Carvalho Barbosa 168
Narratividade e temporalidade: o si-mesmo como um texto
João B. Botton 190

Literatura e militância: o escritor brasileiro e seu ofício em


sociedade nas décadas de 1930-1950
Nathalia de Aguiar Ferreira Campos 202

Controle do imaginário e ficção: o vazio como categoria


central da ficcionalidade literária
Maria Elvira Malaquias de Carvalho 240

A expressão e a linguagem carnalizada de Maura Lopes


Cançado em Hospício é Deus
Márcia Moreira Custódio 251

A multiplicidade na obra cosmococa - programa In Progress


Marina Andrade Câmara Dayrell 268

A poesia autoral como veículo de composição cênica: uma


experiência de dramaturgia de ator
Raphaela Silva Ramos Fernandes 282

Apontamentos sobre a crítica literária a Homero no tratado


Sobre o estilo de Demétrio
Gustavo Araújo de Freitas 302

Trauma
Luciana Silviano Brandão Lopes 322

A imagem do autor: um estudo sobre Gustave Flaubert


Renata Aiala de Mello 328
A multiplicidade das coisas possíveis: labirintos de Jorge
Luis Borges e Italo Calvino
Maria Elisa Rodrigues Moreira 341

Regionalidade: entre a influência francesa e a brasilidade


André Tessaro Pelinser 356

Deslocamentos e anacronias em Terra Estrangeira


Pedro Vaz Perez 369

Livros perdidos, livros escritos: a literatura diante da perda


Tiago Lanna Pissolati 398
Poesia, carnaval e outras festas em Saciologia Goiana, de
Gilberto Mendonça Teles
Damáris de Souza Ramos 412

Configurações do riso carnavalesco em Serafim Ponte


Grande
Viviane Rodrigues 429

Do peso de viver à leveza das palavras: reflexões sobre a


existência em Flor da Morte, de Henriqueta Lisboa
Renata Maurício Sampaio 453

Eros e Thânatos: o corpo e suas “cruéis” exigências em A


via crucis do corpo de Clarice Lispector
Patrícia Lopes da Silva 467

Emoções e a perversidade do barão Belfort: discurso e


decursos do sujeito na modernidade
Bruno Oliveira Tardin 484
História e literatura em novas formas: cabeza de vaca, o
entrecruzar de culturas
Márcia de Fátima Xavier 496

Carta do editor 510


APRESENTAÇÃO

O tema geral deste livro coletivo, “A literatura e a vida:


por que estudar literatura”, nos reúne e convida a pensar,
por um lado, as diferenças e semelhanças entre literatura
e vida e, por outro, a refletir sobre essa relação em um
contexto específico de análise, o dos Estudos Literários.
Estudos Literários, aqui, é preciso dizer, está
entendido como um campo do saber de perfil multidisciplinar,
potencializando a pesquisa em literatura a partir de
intersecções com outras esferas do conhecimento e
campos discursivos – cinema, artes, filosofia, antropologia,
música, mídias – suscitados por ela.
Os textos aqui reunidos foram apresentados
em 2012 como conferências ou comunicações no II
SPLIT – Seminário de Pesquisa Discente do Programa
de Pós-Graduação em Estudos Literários (Pós-Lit) da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), evento
que visou a atender uma demanda dos alunos do Pós-Lit
por um amplo espaço de debate dos mesmos com o corpo
docente da referida instituição e alunos dos demais cursos
de pós-graduação em literatura do país e do exterior.
O II SPLIT teve a finalidade de promover o debate
presencial cujo escopo é a pesquisa em literatura e áreas
adjacentes suscitadas por esta, além de estabelecer
um fórum de debate acerca da pesquisa em literatura,
buscando fomentar discussões sobre seu ensino, crítica e
teoria, sem privilegiar qualquer abordagem crítica ou teoria

11
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
em específico, encorajando a diversidade de enfoques
teórico-metodológicos no trato com a literatura.
Agradecemos a todos os professores membros do
colegiado do Programa de Pós-Graduação em Estudos
Literários da Universidade Federal de Minas Gerais,
em especial aos professores Marcos Alexandre, Tereza
Virgínia Ribeiro Barbosa e Graciela Ravetti, pelo apoio
institucional e financeiro durante a organização do II SPLIT
– Seminário de Pesquisa Discente do Pós-Lit – UFMG.
Agradecemos aos professores que aceitaram
os convites para serem conferencistas do evento: Raúl
Antelo, da Universidade Federal de Santa Catarina; Pádua
Fernandes, do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos
Sociais, de São Paulo; Ronald Augusto, da Editora Éblis,
de Porto Alegre; Olimpio Pimenta, da Universidade
Federal de Ouro Preto e Ana Chiara, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Os temas de suas conferências
contribuiram para garantir a pluralidade de visões sobre os
Estudos Literários.
Agradecemos aos professores que aceitaram os
convites para serem debatedores das sessões de projetos
de dissertação e tese: Emilio Maciel, da Universidade
Federal de Ouro Preto; e Andréa Werkema, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro.
E, por fim, agradecemos a ajuda de todos os que
colaboraram conosco nos bastidores do SPLIT e deste
livro: Alemar Rena, Alice Barros, Ana Xavier, André Tessaro
Pelinser, Carol Oliveira, Clara Vanucci, Fabiano Salazar,
Fernanda Mourão, Gilberto Medeiros, Letícia Magalhães

12
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Munaier Teixeira, Marina Câmara, Paula Sollero, Pedro
Brito, Yasmin Schiess, CENEX-FALE, Diretório Acadêmico
da Faculdade de Letras da UFMG e Praia Editora.

Os organizadores

13
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A PESQUISA É UMA ESCRITA
AUTONOMAMENTE REAL

Raul Antelo

L’université moderne devrait


être sans condition. Par « université
moderne », entendons celle dont le
modèle européen, après une histoire
médiévale riche et complexe, est
devenu prévalent, c’est-à-dire «
classique », depuis deux siècles,
dans des États de type démocratique.
Cette université exige et devrait se
voir reconnaître en principe, outre ce
qu’on appelle la liberté académique,
une liberté inconditionnelle de
questionnement et de proposition,
voire, plus encore, le droit de dire
publiquement tout ce qu’exigent une
recherche, un savoir et une pensée
de la vérité. Si énigmatique qu’elle
demeure, la référence à la vérité,
paraît assez fondamentale pour se
trouver, avec la lumière (Lux), sur les
insignes symboliques de plus d’une
université. L’université fait profession
de la vérité.1

Ci-git Piron, qui ne fut rien,


Pas même académicien2

1 DERRIDA. L´Université sans condition, p. 11-12.


2 Epitáfio de Alexis Piron (1689-1773) citado por
MANSILLA. Una excursión a los indios ranqueles, p. 241.
14
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Ao receber este convite para pensar a pesquisa na
pós-graduação em Letras, pensei que, antes de mais
nada, era bom sublinhar que essa atividade, mesmo
que atravessada por uma ambição de universalidade,
nunca é um pressuposto estático, e não é nem mesmo
um a priori dado, porque ela deveria ser entendida, pelo
contrário, como um processo que nos exige, basicamente,
emancipar-nos da essência, desamarrar-nos de vínculos
tradicionais, corriqueiros, testados, de tal sorte que a
liberdade de pesquisa se redefine como uma liberdade
de existência, algo sans condition, como dizia Derrida
e, nesses entido, ela aponta uma autonomia da própria
vida, algo que se confunde com o êxtase, se por êxtase
entendemos um ir para além de nós mesmos. Daí que
Jean-Luc Nancy nos diga que, no domínio da ética, a
ontologia deve se tornar uma eleuterología,3 um saber
que contém a liberdade, porém, sob leis muito precisas,
leis ético-práticas extremamente específicas. Surgem daí
questões bem concretas. Aquilo que está para ser feito,
o que se pesquisa como ato de per quaere, não se situa
nunca no registro de uma poiesis, como uma obra cujo
esquema já estaria previamente traçado, mas no registro
de uma praxis, que, de relevante, só produz mesmo,
retrospectivamente, seu próprio agente.4 Não apenas
a psicanálise lacaniana, mas também a esquizoanálise
deleuziana confluem nesse ponto.

Le desir est un exil, le desir est un

3 NANCY. L’expérience de la liberté, p. 24.


4 NANCY. L’expérience de la liberté, p. 38.
15
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
desert qui traverse le corps sans
organes, et nous fait passer d’une
de ses faces a l’autre. Jamais un exil
individuel, jamais un desert personnel.5

Deleuze & Guattari dizem, com efeito, que todo


desejo é um deserto, quer dizer, todo deserto é um vazio,
daí que o desejo seja um vazio ou, com maior precisão, ele
nasça de um vazio como desejo de um vazio. A pesquisa
não é algo isolado; é, porém, uma praxis que se insere
numa comunidade acadêmica e esta comunidade deve ser
pensada a partir da emancipação, processo que dissolve
os laços tradicionais do sistema, o que marca algo tão
problemático quanto inquietante, porque, ao liberar o
sujeito de vínculos comuns, herdados, nossa prática de
pesquisa emancipa-nos, a rigor, consequentemente,
de toda determinação e de toda noção de destinação já
dada, sem que, paralelamente, a própria emancipação
forneça a si própria um horizonte cabal de sentido, uma
vez que não há nada que, podendo ser tomado como
destino ou como fim do trabalho, garantisse, de per se,
a emancipação. Uma vez emancipado, o estudioso
universitário comporta-se como um escravo liberto para
quem, à diferença do escravo do mundo, não existe mais
espaço algum que possa ser identificado como o espaço
específico e próprio para o exercicio dessa sua liberdade,
a liberdade de pesquisa e criação que ele reivindicara.6 E
isto por um motivo relativamente simples. No Ocidente, o
espírito científico desenvolveu-se, em grande parte, graças
5 DELEUZE; GUATTARI. L’Anti-Oedipe, p. 452.
6 NANCY. La pensée dérobée, p. 128.
16
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ao direito romano, que foi veículo do princípio técnico
de governabilidade, com que a verdade se separou da
falsidade.
Cabe relembrar, a esse respeito, o que o jurista
e psicanalista francês Pierre Legendre desenvolveu, em
2007, em sua palestra A cicatriz (La Balafre. À la jeunesse
désireuse… Discours à des jeunes étudiants sur la science
et l’ignorance, Paris, Mille et une nuits, 2007), idéias muito
pertinentes a esse respeito. Ele parte, por sinal, de um
fragmento literário, uma citação de Borges, no conto “A
forma da espada”, mas parte também da parábola de
Stevenson em Dr Jeckyll e Mr Hyde e passa até mesmo por
um escritor japonês, como Tanizaki, na História de Tomoda
e Matsunaga. Eis a citação: “Le cruzaba la cara uma
cicatriz rencorosa: um arco ceniciento y casi perfecto que
de un lado ajaba la sien y del otro el pómulo”.7 A narrativa
de Borges, que é uma fala mesclada, em inglês, espanhol
e português, organizada como se fosse o relato de alguém
traído, é na verdade a história de um traidor: “yo soy los
otros”. E a cicatriz é uma mera marca, uma inscrição cuja
sobrevivência “me afrenta”, tal como a comunidade, que,
segundo Nancy, é sempre affrontée. Tal o uso da metáfora
por parte de Legendre. Nosso presente, a situação cindida
da nossa comunidade, talvez se expliquem então, mais
cabalmente, se levamos em consideração, junto com ele,
que

Para el laicismo positivista occidental,


el Estado no posee ningún espíritu de

7 BORGES. La forma de la espada, p. 491.


17
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
tipo animista, como el Tótem, animal o
planta, al que se atribuye una voluntad
productora de normas. En la práctica,
el Estado se ha despegado incluso del
juramento de fidelidad a una tradición
sagrada para alcanzar ahora otro
tipo de existencia, 8 la de un objeto
institucional de serie en la nueva
Naturaleza engendrada por la tecno-
ciencia-economía: para la civilización
del Management generalizado, el
Estado habría abandonado la zona
oscura del mito (en este caso, del mito
genealógico de proveniencia cristiana)
y habría entrado definitivamente en un
universo de transparencia que lo haría
tributario de saberes desprovistos de
religiosidad (saberes correspondientes
a la objetividad gestionaria). Para
discernir ahora el principio estatal
en cuanto indicador político-religioso
de la modernidad europea y como
instrumento institucional estratégico
del Occidente expansionista,
tendremos que volver a examinar el
concepto de Estado, no desde un
ángulo operativo necesariamente
estrecho, sino en continuidad con las
puntualizaciones que preceden, es
decir, como producto derivado de un
libreto fundacional: el judeo-romano-
cristiano.9

8 Cito pela tradução ao espanhol: LEGENDRE. El


tajo. Discurso a jóvenes estudiantes sobre la ciencia y la
ignorancia, p. 66-67.
9 Cito pela tradução ao espanhol: LEGENDRE. El
tajo. Discurso a jóvenes estudiantes sobre la ciencia y la
ignorancia, p. 66-67.
18
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Como V. devem estar lembrados, ao desenvolver
suas considerações acerca do método, Giorgio Agamben
associa a arqueologia de Foucault, a genealogia de
Nietzsche, a desconstrução de Derrida ou a teoria da
imagem dialética de Benjamin à lógica da signatura, ou seja,
o timbre ou sinete que sancionam o poder, esclarecendo
que a signatura teológica atua como uma sorte de
astucioso trompe l´oeil, como esse que revela Vincent
Moon ao narrar a origem de sua cicatriz. A secularização
do mundo acaba se tornando, graças a essa enganosa
inscrição, uma contrassenha de sua inclusão na oikonomia
divina. 10 Ora, isso nos leva a concluir que o horizonte da
comunidade, até mesmo o da comunidade acadêmica, foi
também gradativa e imperceptivelmente substituído pelo
management e a efficiency, porque “yo soy los otros”.
Senão, reparemos que o conceito de management, aquilo
que Legendre chama também de Dominium mundii, conota
antigas palavras latinas que, através do francês, chegaram
ao inglês: masnage, mesnage, significando o que hoje
diríamos maisonnée, conjunto de pessoas que vivem sob
o mesmo teto. O management, portanto, faz referência à
família, ao domus, e o management, nesse caso, seria
outro nome para a domesticação. Qual é a conclusão que
Legendre tira desse processo?

En primer lugar, para acceder a


los repliegues de la civilización
occidental es necesario estudiar la
10 Cito pela tradução ao espanhol: LEGENDRE. El
tajo. Discurso a jóvenes estudiantes sobre la ciencia y la
ignorancia, p. 66-67.
19
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
protohistoria del Estado y del derecho,
indisociable tanto de las prácticas
teocráticas ejercidas en Europa
como del pensamiento desarrollado
por los comentadores medievales,
designados con el término genérico
de “glosadores” (autores de un
equivalente cristiano del Talmud).
Después, hay que tomar nota, en la
época llamada Tiempos Modernos, del
proceso de diversificación del conjunto,
repartido ahora en subconjuntos
nacionales productores del regímenes
jurídicos más o menos compatibles
entre sí y que, aun perteneciendo a
la misma cepa, reflejan los grandes
fenómenos genealógicos de Europa.
Por último, tras haber hecho su
entrada el Management, la tecno-
ciencia-economía viene a suplantar
a los ideales políticos y a imponer un
hiper-discurso globalizador, una suerte
de sintetizador normativo negador
de las divergencias culturales pero
dominado, en la vertiente jurídica,
por un economicismo anglosajón
ligado al espíritu del Common Law.
Preso en la red de una tradición que
no es la suya, pero enganchado
todavía a representaciones no
criticadas (notoriamente, el viejo
odio a la juridicidad medieval), el
sistema institucional francés intenta
manifiestamente alinearse, antes que
afrontar su propia historicidad.11

Afrontar, fazer face, deparar-se com algo e assumi-

11 LEGENDRE. El tajo: discurso a jóvenes estudiantes


sobre la ciencia y la ignorancia, p. 79-80.
20
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
lo como próprio, eis o desafio da pesquisa. Disse, há
pouco, que a pesquisa, o per quaere, não se presta a
nenhuma determinação externa, a nenhuma atribuição
de propriedade.12 E sabemos também, aliás, que toda
pesquisa universitária hoje em dia insere-se num universo
de management que não deixa de nos afetar e afrontar, já
que seu atual processo é idêntico ao désoeuvrement da
comunidade, uma comunidade emancipada da essência,
do produto, do fim, da origem, da obra, ou seja, in-
operante, no que isto tem de neutralidade ativa (momento
da contemplação: do cum templum, do traçado de um
corte, um talho, uma cicatriz que, embora individual, é
coletivamente carregada, mesmo porque ela faz parte da
instituição acadêmica).
Mas constata-se, ao mesmo tempo, que essa
emancipação da tradição, como vemos, não facilita,
necessariamente, as coisas porque, embora, graças
a Derrida, a Agamben ou a Jean-Luc Nancy, possamos
compreender que a comunidade ficou in-operante, ela
continua também presente e determinante a toda hora,
em cada um de nossos atos institucionais. Ainda falamos
em literaturas nacionais, ainda pensamos em escritores
como pertencentes a um período, a uma estética
históricamente determinadados. Em La communauté
désoeuvrée, ao falar do ser-em-comum, Nancy diz que
ele é o mais difícil de profetizar, de prever, de planejar.
Nós somos pesquisadores. Compartilhamos o fato de
sermos pesquisadores. Mas o ser não é alguma coisa que

12 NANCY. La pensée dérobée, p. 129.


21
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
possuiríamos todos em comum. O sermos pesquisadores
não se diferencia da existência singular de cada um de nós.
Sermos pesquisadores não é, portanto, algo que se possui
em comum, mas algo que somos em comum, porque “o ser
é em comum”. É algo aparentemente trivial, mas, ao mesmo
tempo, é algo ignorado pela comunidade universitária.13 A
pesquisa, em muitas das nossas Instituições, em nossa
tradição acadêmica mesmo, é uma variável de ajuste, é o
que sobra das aulas, das orientações, do funcionalismo.
Mas, ao mesmo tempo, todos nós somos pesquisadores,
para além de produtividades ou competências, dedicações
ou habilidades. O sistema tende a universalizar, e
consequentemente a homogeneizar, nunca a singularizar.
Ignora o omnes et singulatim. Faz pouco caso do um-por-
um.
Nesse sentido, diria que o diagnóstico de nossa
situação cai, sem dúvida, na esfera da “biopolítica”. Nossa
vida, enquanto forma-de-vida, fundamenta-se na zoé,
na vida mais essencial possível, mas há muito ela já se
tornou irreversivelmente techné. A política—a política
de ascensão funcional, agravada agora pela supressão
do concurso para titular; a política de bolsas; a política
científica—nada mais são, então, do que a autogestão da
ecotécnica. Uma forma de autonomia que já não dispõe
das formas tradicionais da política, mas se cumpre por
“força-de-lei”. A propósito, Jacques Derrida, analisando
o conceito de “força-de-lei”, precisamente, diz que esse
conceito nos remete à letra, porque

13 NANCY. La communauté désoeuvrée, p. 201.


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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
no hay derecho que no implique en
él mismo, a priori, en la estructura
analítica de su concepto, la posibilidad
de ser ‘enforced’, aplicado por la fuerza.
Kant lo recuerda desde la Introducción
a la doctrina del derecho (…). Hay
ciertamente leyes que no se aplican,
pero no hay ley sin aplicabilidad, y no
hay aplicabilidad, o enforceability de la
ley, sin fuerza, sea ésta directa o no,
física o simbólica, exterior o interior,
brutal o sutilmente discursiva—o
incluso hermenéutica—, coercitiva o
regulativa, etc.¿Cómo distinguir entre,
de una parte, esta fuerza de la ley,
esta ‘fuerza de ley’ como se dice tanto
en francés como en inglés, creo, y de
otra, la violencia que se juzga siempre
injusta? ¿Qué diferencia existe entre,
de una parte, la fuerza que puede
ser justa, en todo caso legítima (no
solamente el instrumento al servicio
del derecho, sino el ejercicio y el
cumplimiento mismos, la esencia del
derecho) y, de otra parte, la violencia
que se juzga siempre injusta? ¿Qué
es una fuerza justa o una fuerza no
violenta?

Derrida enfatiza assim o caráter diferencial da força.


Em muitos de seus textos, como já no pioneiro “Força e
significação”, que abre A escrita e a diferença, reitera que

se trata siempre de la fuerza diferencial,


de la diferencia como diferencia de
fuerza, de la fuerza como diferenzia
(…) o fuerza de diferenzia (la diferenzia
es una fuerza diferida-difiriente); se
trata siempre de la relación entre la

23
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
fuerza y la forma, entre la fuerza y la
significación; se trata siempre de fuerza
‘performativa’, fuerza ilocucionaria o
perlocucionaria, de fuerza persuasiva
y de retórica, de afirmación de la firma,
pero también y sobre todo de todas las
situaciones paradójicas en las que la
mayor fuerza y la mayor debilidad se
intercambian extrañamente. Y esto es
toda la historia—conclui, porque—los
discursos sobre la doble afirmación,
sobre el don más allá del intercambio y
de la distribución, sobre lo indecidible,
lo inconmensurable y lo incalculable,
sobre la singularidad, la diferencia
y la heterogeneidad, son también
discursos al menos oblicuos sobre la
justicia.14

Não há, portanto, no marco da Universidade atual,


soberania auto-fundadora (não há nada para ser fundado
e talvez nem haja muito mesmo para ser tombado, com
inocente ilusão cristalizadora), não há discussão sobre a
justiça da polis acadêmica (porque já não há polis nem
mesmo politesse, só polícia e exclusivamente para os
homens-livres, em próprio benefício—não assim para
os alunos, que devem comparecer obrigatoriamente
às palestras, por exemplo, para completarem currículo,
comparecimento desnecessário para os senhores-
professores, desvinculados do debate propriamente
acadêmico). Nem vida como forma-de-vida, nem política
como forma-de-coexistência regulam já a ecotécnica do

14 DERRIDA. Fuerza de ley: el fundamento místico


de la autoridad, p. 15-20
24
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
sistema.15
Atravessamos, portanto, um momento claramente
pós-fundacional. As descrições de nosso objeto de
estudo e de reflexão já não o colocam como valor super-
estrutural, determinado pela acumulação material e o
desenvolvimento das forças produtivas. Nem mesmo a
abordagem histórica pode hoje, em sã consciência, ver
a literatura como um processo meramente racional, cujo
antagonismo teria sido, senão eliminado, certamente
adiado, diferido, até o momento mesmo de sua realização
teleológica final. Nem as contradições históricas, nem as
oposições reais dão conta da contrariedade insubstituível
que alimenta o antagonismo do presente, por uma razão
muito simples, porque o antagonismo atual não é fruto
de relações objetivas, mas decorre de relações que
exibem limites precisos na constituição de toda e qualquer
objetividade.
A questão da pesquisa, na Universidade, deveria
ser pensada então pela impossibilidade de construir uma
fórmula de saber que testemunhe a falta no simbólico e,
portanto, essa posição de não-saber deveria nos propor,
estratégicamente, instalar um excesso que, por sua vez,
introduza a própria falta no simbólico. Se não há fórmula de
saber, o não-saber consiste apenas numa aventura aleatória
que não se reduz à soma de dois termos complementares,
sujeito e objeto de saber, porque o suplemento nomeia, a
rigor, a impossibilidade de considerar ambas as instâncias

15 NANCY. La création du monde ou la


mondialisation, p. 137.
25
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
como unidade coesa e impede até mesmo considerarmos
nenhum dos dois como um. O não-saber é antitético aos
grupos, porque ele descansa numa interseção que é a
própia diferença que viria a ser teorizada por Derrida
ou que, como explica a crítica cultural norte-americana
Joan Copjec, já não dispõe da função universalizante do
eu ideal, que une os membros de uma comunidade em
torno de uma relação de equivalência, muito embora ela
permaneça em muitos âmbitos. Aliás, bem recentemente,
participei de um colóquio de Literatura Brasileira na USP,
onde não deixava de chamar a minha atenção a frequência
não só dos recortes autonomistas (especialistas em um
autor, um gênero, pesquisadores de uma obra, um período
literário), mas também das categorias éticas e políticas
universais (consciência crítica, populismo), que são todas
caudatárias de marcos exclusivamente iluministas e
individuais. Eu, em compensação, prefiro pensar que, em
tempos do ideal do eu, o que se universaliza é o objeto de
pesquisa como objeto amado.16 Por isso vale lembrar das
idéias de Copjec e da explicação que, a esse respeito, nos
fornece Ernesto Laclau, para quem a posição de Copjec
recusa a sublimação e, em vez de pensar uma mudança
de objeto, prefere propor uma mudança no objeto.

Si la sublimación se redujera a un
cambio de objeto, la realidad óntica de
los objetos permanecería inalterada
y en tal caso no habría suppléance,
no habría exceso: el objeto del amor

16 COPJEC. El sexo y la eutanasia de la razón:


ensayos sobre el amor y la diferencia, p. 94.
26
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
[o per quaere da pesquisa] sería
plena y directamente inscribible en
el universo simbólico. Pero lo que la
suppléance nombra no es un objeto
sino la imposibilidad, el obstáculo a su
constitución. El amor, en tal sentido,
[a pesquisa] es el nombre de un
hiato estructural en lo simbólico. Es
por eso que “il y a de l’Un”. La huella
de la imposibilidad de la relación
sexual se encuentra, por tanto en
la representación simbólica de una
ausencia qua ausencia.17

A partir dessa premissa lacaniana, Jean-Luc Nancy


também postula que, no amor ao saber, na filo-sophia que
se traduz como não-saber, não há nenhum todo, já que o
todo não define “una carencia ni una ablación, puesto que
no hubo todo antes de haber ningún-todo. Esto significa
más bien que todo lo que hay no se totaliza, sin que por
ello deje de ser todo”.18 E isto por um motivo também muito
simples: porque há, de fato, dois modos de concebermos
totalidades. “Hay, en efecto, el todo del todo-entero (holon,
totum) y el todo de todos los enteros o de todo el mundo
(pan, omnis)”. A pesquisa como ato per quaere não passaria
então de “dos impulsos, una pareja de fuerzas cuyo juego—
la separación en el contacto—es necesario para poner en
marcha la maquinaria”.19 Quer dizer, portanto, que o amor
ao saber enquanto não-saber é uma interioridade que não

17 LACLAU. Joan Copjec y las aventuras de lo Real, p.


13.
18 NANCY. El “hay” de la relación sexual, p. 30.
19 NANCY. El “hay” de la relación sexual, p. 31.
27
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
deriva, porém, de nenhuma identidade dada, de nenhuma
relação consigo mesmo, isto é, de nenhuma relação em si:
aquilo que se (com) partilha e que se difere é precisamente
aquilo que não subsiste para si, porque não há nada que
seja o aquém da busca per quaere (nem generalidade,
nem diferença). Não há nada que seja antes ou além do
espaçamento e que constitua talvez a estrutura que Lacan
denomina o simbólico, a lei.20
Esse não-saber, claramente excessivo, já não se
efetiva através da transcendência ou da transgressão
modernistas, mas opera por meio de um esquema além
do esquema, em que se atravessam todos os valores,
daí que, enquanto no alto modernismo o sentido ainda
era um atributo em si ou, mais freqüentemente, fora de
si, na Universidade contemporânea, o sentido encontra-
se, entretanto, nos confins, enquanto rede de confins. Por
isso, Nancy considera que o não-saber coloca a questão de
uma relação ao objeto enquanto tal, pura e simplesmente.
O desejo que, enquanto per quaere, toda pesquisa
mobiliza é sempre desejo do Outro, desejo de desejar.
Reinterpretado como valor de uso do impossível, o valor
desse percurso é o de um desejo elevado ao segundo
grau. Consiste no poder de um objeto em manter ativo—
potente, ou seja, em movimento—o desejo de desejar.
Isso implica admitir que nossa lei é pós-fundacional. Mas
não era outra a definição de objeto a, o objeto causa do
desejo, elaborada por Lacan, que é um conceito de fontes
remotamente literárias. Com efeito, Lacan toma o conceito

20 NANCY. El “hay” de la relación sexual, p. 37.


28
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de objeto a da antifilosofia dadaista de Tristan Tzara, uma
filosofia dos objetos,21 mas aproveita-se também dos
objetos surrealistas de Salvador Dali, eles mesmos objetos
psico-atmosféricos-anamórficos, como os chama o artista
catalão. Mais perto de nós, ainda, e também na esteira
de Lacan, Gérard Wajcman, querendo isolar o objeto do
século XX, propôs, entre outros, o quadrado de Malevitch,
porque ele ilustraria exemplarmente a estratégia do
esvaziamento. Com efeito, assim como Freud, ao analisar
o Moisés, nos fala de uma estratégia da pintura, que age
per via de porre, e outra da escultura, que se ativa per via
de levare, Wajcman vê, no quadrado, um esvaziamento do
olhar. Concluímos, a partir de sua análise, que a forma é
uma simples aparência, a arte visual é cega (a literatura,
gaga), o quadrado é uma obliteração e o zero não é uma
abstenção, mas uma rasura.22 Ora, à luz deste debate,
ao que deveríamos acrescentar nomes tão decisivos
como Marcel Duchamp ou John Cage, caberia ponderar
que a literatura contemporânea também não se apreende
pela mímesis da História ou pela definição da forma e,
retomando o argumento de Jacques Lacan, poderíamos
até dizer que a literatura, limitada à mimese, não passa de
um trompe l’oeil, porque sempre nos apresentará a pátina
de um véu cobrindo algo situado para além do que se pode
ver.
Ler, entretanto, é sempre ler mais além, justamente
porque o gozo, não sendo acessível nem finito, e sendo,
21 TZARA. Manifeste de Monsieur Aa
l’antiphilosophe, p. 22-23.
22 WAJCMAN. El objeto del siglo.
29
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
por definição, impossível, nos impede esgotar o todo
do objeto. E isto faculta o afastamento, o corte, a cisão
da rede simbólica atual, enquanto instância combinada
de capitalismo disseminado e tecno-ciência difusa que,
enquanto política, decreta a inviabilidade do impossível
e, contrariamente, encontramo-nos perante a emergência
do político, que consiste no corte que, praticado na rede
fusional disseminada, permite o questionamento acerca
do lugar que o sujeito ocupa e com o qual opera no
discurso. É no discurso, portanto, cercado o tempo todo
pelo Real, que se encontra o impossível de dizer; daí que
todo ato de dizer o impossível, todo ato poético, todo ato
político, enfim, seja, basicamente, um ato consciente de
procurar uma emancipação incompleta e inacabada, por
definição, em busca de uma causa que não pode estar
presente, como fundamento último da ação, e que, mesmo
assim, também não dispõe de garantias de sucesso em
sua prática. É esse o objeto produzido pelo per quaere.
Estejamos então à altura de Clarice Lispector:

para escrever tenho que me colocar


no vazio. Neste vazio é que existo
intuitivamente. Mas é um vazio
terrivelmente perigoso: dele arranco
sangue. Sou um escritor que tem medo
da cilada das palavras: as palavras
que digo escondem outras — quais?
talvez as diga. Escrever é uma pedra
lançada no poço fundo. Meditação
leve e terna sobre o nada. Escrevo
quase que totalmente liberto de meu
corpo. É como se este estivesse em
levitação. Meu espírito está vazio

30
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
por causa de tanta felicidade. Estou
tendo uma liberdade íntima que só se
compara a um cavalgar sem destino
pelos campos afora. Estou livre de
destino. Será o meu destino alcançar
a liberdade? não há uma ruga no
meu espírito que se espraia em leves
espumas. Não estou mais acossado.
Isto é a graça.23

O êxtase. A pesquisa. Ângela, o alter-ego de


Clarice, sabe, entretanto, que escreve para “salvar do
vazio e oco hiato sem fundo que é o vácuo. O que escrevo
agora não é para ninguém: é diretamente para o próprio
escrever, esse escrever consome o escrever. Este meu
livro da noite me nutre de melodia cantabile. O que escrevo
é autonomamente real”.24
E o Autor, que é também o narrador de Agua Viva,
compreende, finalmente, que “Olhar a coisa na coisa
hipnotiza a pessoa que olha o ofuscante objeto olhado.
Há um encontro meu e dessa coisa vibrando no ar. Mas
o resultado desse olhar é uma sensação de oco, vazio,
impenetrável e de plena identificação mútua”.25
Talvez possamos isolar, nessa definição de Clarice
Lispector, uma ferramenta poderosa de análise do per
quare, da pesquisa, entre nós e dizer que ela cria o vazio.
Mas um vazio de tipo muito especial. “Jamais un exil
individuel, jamais un desert personnel”—dizia Deleuze.

23 LISPECTOR. Um sopro de vida: pulsações, p. 13-


14.
24 LISPECTOR. Um sopro de vida: pulsações, p. 77.
25 LISPECTOR. Um sopro de vida: pulsações, p. 124.
31
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Permitam-me ilustrar esse modo de ler com um
exemplo. Gostaria de mostrar uma estratégia que já não
depende nem de conjuntos nacionais autônomos, nem
de abordagens diacrónicas evolutivas, que são os dois
modos dominantes até 1990, aproximadamente. V. devem
relembrar, por exemplo, o argumento de Antonio Candido
quanto às relações entre literatura e subdesenvolvimento,
associado também, de certa forma, à noção de que as
idéias estão fora do lugar. Candido advogava por uma
superação do modelo mimético, portadora de certo
refinamento técnico que levasse os traços antes pitorescos
a se descarnarem e adquirirem universalidade.
Descartando o sentimentalismo e a retórica; nutrida
de elementos não-realistas, como o absurdo, a magia
das situações; ou de técnicas antinaturalistas, como o
monólogo interior, a visão simultânea, o escorço, a elipse—
ela implica não obstante em aproveitamento do que antes
era a própria substância do nativismo, do documentário
social.26
V. vêem, contudo, que não está afetada, nessa
teoria, a idéia de essência, nem a de identidade, nem
mesmo a de finitude ou finalidade. Em função dessas
características, Candido propunha então denominar o
horizonte da literatura contemporânea de superregionalista,
vinculando-o a uma consciência dilacerada de
subdesenvolvimento, que operasse uma explosão do
naturalismo, da referencialidade, da representação. Desse

26 CANDIDO. Literatura e subdesenvolvimento, p.


140-162.
32
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
super-regionalismo seria tributária, a seu ver, a obra de
Guimarães Rosa, de algum modo, associada também à
“sobriedade fantasma” de Pedro Páramo. Permanecia
intocado, porém, o esquema sucessivo do historicismo.
Invertendo o esquema, no entanto, prefiro ler Guimarães
Rosa por um desvio, ao mesmo tempo, anatópico e
anacrônico. Justamente Anachronisme é o título de um
soneto de Alphonsus de Guimarães, dedicado a Paul
Verlaine, a quem ele nunca conheceu pessoalmente, e
cujo último terceto diz:

Et pourtant, si je suis ton fils et ton


élève,
En te suivant, en te baisant l’âme sans
trêve,
Je rêve, ami, que toi, tu as rêvé de
moi!27

O fantástico de biblioteca, esse novo lugar dos


fantasmas que não é mais a noite, nem o vazio incerto
aberto pelo desejo; mas, pelo contrário, a vigília e o zelo
erudito, faz com que o sentido, sempre enigmático, nasça
da superfície dos signos impressos, trêve / rêve, ou seja,
da signatura rerum, desdobrando-se na biblioteca aturdida,
através do rumor assíduo da repetição, que nos transmite,
porém, o que só ocorre uma vez, uma singularidade
irrepetível, a de Alphonsus, apaixonado por Verlaine.
Como diz Foucault, o imaginário não se constitui contra
o real para negá-lo ou compensá-lo; ele se estende entre
os signos, de livro a livro, no interstício das repetições
e dos comentários; ele nasce e se forma no entremeio
27 GUIMARAENS. Obra completa, p. 373.
33
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
dos textos, como fenômeno de biblioteca.28 Nesse ponto
vertiginoso, portanto, Alphonsus sonha que, podendo ele
sonhar com Verlaine, bem poderia Verlaine sonhar com ele,
Alphonsus, metáfora anti-hierárquica que denota a própria
dinâmica da modernização, sempre em busca daquilo que
é impossível de alcançar. Mais bem sucedido, porém, foi
outro escritor latino-americano, Lúcio V. Mansilla. Amigo
de Robert de Montesquiou, o conde Charlus de Em busca
do tempo perdido, Mansilla frequentou Moréas, Proust
e conheceu Verlaine, quem, mesmo não assinando o
prefácio solicitado por Mansilla, assim o descreveu: “Habla
muy bien el francés y es un elegante; nada falta en él:
sombrero inclinado, provocativo, guante lila, monóculo,
boutonnière fleurie, levita larga color té con leche. Es ya
entrado en años y ¡qué joven y fuerte se lo ve!”.29
Sobrinho de Juan Manuel de Rosas, o homem-
forte do Prata, Mansilla publicou, em 1870, uma sorte de
Sertões do pampa, Una excursión a los indios ranqueles,
onde narra que, incumbido por Sarmiento de estender
a fronteira civilizatória para além das terras indígenas,
testemunha a dura negociação pela paz com os habitantes
daquele território. O livro é uma singular manifestação do
desafio da alteridade, em que o narrador é consciente do
caráter plural das determinações do imaginário. Retornam,
como verão, a suspensão, a trêve de Alphonsus, mas com
outro efeito, que antecipa o “Diadorim é a minha neblina”
de Guimarães Rosa.
28 FOUCAULT. Posfácio a Flaubert (A Tentação de
Santo Antão), p. 79-80.
29 POPOLIZIO. Vida de Mansilla, p. 309-310.
34
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
La noche y los perros son mis dos
grandes pesadillas. Yo amo la luz y a
los hombres, aunque he hecho más
locuras por las mujeres. No puedo
decir lo que me aterra cuando estoy
solo en un cuarto obscuro, cuando
voy por la calle en tenebrosas horas,
cuando cruzo el monte umbrío; como
no puedo decir lo que sentía cuando
trepaba las laderas resbaladizas de la
gran cordillera de los Andes, sobre el
seguro lomo de cautelosa mula.
Pero siento algo pavoroso, que no
está en los sentidos, que está en la
imaginación; en esa región poética,
mística, fantástica, ardiente, fría,
límpida, nebulosa, transparente,
opaca, luminosa, sombría, risueña,
triste, que es todo y no es nada, que es
como los rayos del sol y su penumbra,
que cría y destruye, que forja sus
propias cadenas y las rompe, que se
engendra a sí misma y se devora, que
hoy entona tiernas endechas al dolor,
que mañana pulsa el plectro aurífero
y canta la alegría, que hoy ama la
libertad y mañana se inclina sumisa
ante la oprobiosa tiranía. ¡Ah!, ¡si
pudiéramos darnos cuenta de todo lo
que sentimos!30

Ora, o texto do dândi Mansilla, orientado a príncípio,


no sentido de anexionar a barbárie à civilização, constata,
no final, o paradoxo de Pascal: “El hombre no es un ángel
ni una bestia. Es un ser indefinible: hace el mal por placer

30 MANSILLA. Una excursión a los indios ranqueles,


p. 368.
35
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
y goza con el bien. En medio de todo es consolador”.31
Vladimir Jankelevitch, pensador desses paradoxos
e até mesmo das leis do imprescritível, ativadas no
Holocausto, observa, porém, que

Entre la inmanencia desesperada y la


transcendencia por estaciones, entre
la sumersión total y la emergencia
sospechosa, persiste un espacio
para la relatividad de una búsqueda
infinita que mantiene despierta a la
conciencia: esta conciencia no es
sobre-conciencia confusionista, ni
inconsciencia confundida o más bien
es a la vez una y otra, pues, como
hemos visto, se encuentra a la vez
dentro y fuera, ya que no sólo es
conciencia del equívoco, sino también
ella misma equívoco… La criatura
es, pues, bastante, intermediaria,
pero en un sentido activo y dinámico.
La criatura – explica Pascal – “no es
ni ángel ni bestia…” ¿Qué significa
esto? Quien no es ni lo uno ni lo otro
(neutrum), ¿será acaso un tercer-
ser, una criatura media instalada
en el entre-dos, domiciliada en el
entresuelo? ¡De ninguna manera! El ni
ángel-ni bestia no es un tertium quid,
un tercer orden intermedio entre la
bestia y el ángel. ¿Hace falta, pues,
pensar que es, a la vez, uno y otro
(utrumque). Este caso nos remite,
por otra parte, al precedente, pues si
la criatura es un híbrido de espíritu y
materia, por eso mismo representa un

31 MANSILLA. Una excursión a los indios ranqueles,


p. 368.
36
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
tercer género de existencia, que no es
alma sin cuerpo ni cuerpo sin alma, que
es a partes iguales mitad ángel y mitad
bestia… La filosofía de la “simbiosis”
juega así con los diversos sentidos de
la preposición con, y se representa a la
pareja psicosomática con gusto como
una yunta de dos seres apareados
codo a codo bajo el mismo yugo. Al
estar ambos juntos, el ser doble, cruce
de ángel y bestia, sería algo así como
un híbrido, en el sentido de la sirena y
del centauro en los que la mujer-pez y
el hombre-caballo son híbridos: ángel
por sus alas, toro por sus pezuñas; en
definitiva, una curiosidad teratológica.
Esta imagen del alma-cuerpo es
grotesca y absurda: quien no es un
tercero tampoco es un híbrido o una
mezcla de dos naturalezas, y, por
decirle de algún modo, lo llamamos
“anfibio”.32

Mansilla compreende, a diferença de Alphonsus,


que o amado Verlaine é, no entanto, declaradamente
híbrido. Verlaine, por exemplo, escreve, no prólogo a seus
últimos poemas, Chair (1896):

L’AMOUR est infatigable!


Il est ardent comme un diable,
Comme un ange il est aimable,

L’amant est impitoyable,


Il est méchant comme un diable,
Comme un ange, redoutable.33
32 JANKÉLÉVITCH. Lo puro y lo impuro, p. 223-225.
33 VERLAINE. Oeuvres Poétiques Completes, p. 749
37
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Chegados neste ponto, não posso menos que
explicitar o que todos vocês já devem ter percebido: eis
o páramo fantasma do Rosa. Mansilla, transcrevendo a
religião ranquel, nos diz que não há para esses nativos
uma luta do bem contra o mal; há, porém, apenas o mal,
o não-saber, isto é, o gualicho, palavra tehuelche que
designa o feitiço.

A quien hay que temerle es al diablo –


Gualicho.
Este caballero, a quien nosotros
pintamos con cola y cuernos, desnudo
y echando fuego por la boca, no tiene
para ellos forma alguna. Gualicho, es
indivisible e invisible y está en todas
partes, lo mismo que Cuchauentrú.
Otro, mientras el uno no piensa en
hacerle mal a nadie, el otro anda
siempre pensando en el mal del
prójimo.
Gualicho, ocasiona los malones
desgraciados, las invasiones de
cristianos, las enfermedades y la
muerte, todas las pestes y calamidades
que afligen a la humanidad.
Gualicho, está en la laguna cuyas
aguas son malsanas, en la fruta y en
la yerba venenosa; en la punta de
la lanza que mata; en el cañón de la
pistola que intimida: en las tinieblas
de la noche pavorosa; en el reloj que
indica las horas, en la aguja de marear
que marca el norte; en una palabra,
en todo lo que es incomprensible y
misterioso.
Con Gualicho hay que andar bien:
Gualicho se mete en todo: en el vientre
y da dolores de barriga; en la cabeza y

38
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
la hace doler; en las piernas y produce
la parálisis; en los ojos y deja ciego; en
los oídos y deja sordo; en la lengua y
hace enmudecer.
Gualicho es en extremo ambicioso.
Conviene hacerle el gusto en todo.
Es menester sacrificar de tiempo
en tiempo yeguas, caballos, vacas,
cabras y ovejas; por lo menos una vez
cada año, una vez cada doce lunas,
que es como los indios computan el
tiempo.
Gualicho, es muy enemigo de las
viejas, sobre todo de las viejas feas:
se les introduce quién sabe por dónde
y en dónde y las maleficía.
¡Ay de aquella que está engualichada!34
La matan.
Es la manera de conjurar el espíritu
maligno.
Las pobres viejas sufren
extraordinariamente por esta causa.
Cuando no están sentenciadas, andan
por sentenciarlas.
Basta que en el toldo donde vive una
suceda algo, que se enferme un indio,
o se muera un caballo; la vieja tiene la
culpa; le ha hecho daño; Gualicho no
se irá de la casa hasta que la infeliz no
muera.
Estos sacrificios no se hacen
públicamente, ni con ceremonias. El
indio que tiene dominio sobre la vieja
la inmola a la sordina.
En cuanto a los muertos, tienen por
ellos el más profundo respeto. Una

34 Na edição Ayacucho se lê, erroneamente,


engauchada, o que mostra curioso ato falho de associar o
gauchesco com o demoníaco.
39
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
sepultura es lo más sagrado. No
hay herejía comparable al hecho de
desenterrar un cadáver.
Como los hindúes, los egipcios y los
pitagóricos, creen en la metempsicosis,
que el alma abandona la carne
después de la muerte, transmigrando
en un tiempo más o menos largo a
otros países y dándole vida a otros
cuerpos racionales o irracionales.
Los ricos resucitan generalmente al
sur del Río Negro, y de allí han de
volver, aunque no hay memoria de que
hasta ahora haya vuelto ninguno.35

Como Michelet,36 como Marechal,37 também


Mansilla aborda o Mal em ação, nas bruxas, no ultrassexo.
Autêntico espírito informe, o Mal (gualicho) é um neutro
que decompõe o binarismo católico entre o Bem e o Mal e
marca um novo limiar a partir do qual pensar tudo da capo.
V. percebem que estamos no mesmo ponto vertiginoso em
que Guimarães Rosa nos diz que o mal, como em Bataille,
está associado ao dispêndio.
Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da

35 MANSILLA. Uma excursión a los indios ranqueles,


p. 224-225. Para o sentido de gualicho, ver FERNANDEZ
GARAY. Diccionario tehuelche-español / índice español-
tehuelche.
36 BARTHES. Michelet, 1954.
37 No livro III de Adán Buenosayres, em “una región
fronteriza donde la urbe y el desierto se juntan en un abrazo
combativo, tal dos gigantes empeñados en singular batalla”,
isto é, no bairro de Saavedra, a bruxa Tecla também distribui
filtros, feitiços e gualichos.
40
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
gente, aos pouquinhos é o razoável sofrer. E a alegria de
amor—compadre meu Quelemém diz. Família. Deveras?
É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é...
Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito
bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-
amigos! Sei desses. Só que tem os depois e Deus, junto.
Vi muitas nuvens.38
Na pós-lógica roseana, como antes dele, em Murilo
Mendes, não se trata de ser ou não ser (mineiro, regional,
brasileiro, moderno, masculino), mas trata-se de ser e não
ser tudo isso, ao mesmo tempo. Rosa não afirma o ser,
nem postula o nada abstratos. Aliás, o próprio Hegel já
reconhecia que, em particular na metafísica cristã, e graças
à recusa da proposição ex nihilo nihil fit, tinha ocorrido a
afirmação do trânsito do nada ao ser. Mas essa metafísica
não era bem um sistema da identidade, já que não estava
fundada no princípio segundo o qual o ser somente é e o
nada não é. Hegel admitia, então, que a metafísica cristã
supera a suposta posição budista, que fundamentava
a realidade em um nada que é apenas nada. E admitia
também que essa posição supera até mesmo a atitude
logocêntrica e seu esforço por fundar a realidade no ser
que somente é ser. Em outras palavras, a metafísica cristã
teria superado o que a dialética quis em vão superar,
postulando que o não-ser ativo não é mero não-ser, mas
um não ser-ativo que trabalha, porém, pela aspiração
imanente ao não-ser. Por isso, pode-se dizer que, no não
ser-ativo, na in-operância, ocorrem até mesmo o bem e a

38 ROSA. Grande sertão: veredas, p. 13.


41
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
beleza, mas trata-se de uma beleza de baixo materialismo
ou convulsiva, como queria Breton. E além do mais, essa
inoperância nos mostra que, mesmo no bem e na beleza,
acontece, de certa maneira, a força apofática do não-ser,
que se traduz como invocação do nada ao ser e vocação
do ser em direção ao nada39:

Ah, então: mas tem o Outro –o figura,


o morcegão, o tunes, o cramulhão,
o dêbo, o carôcho, do pé-de-pato, o
mal-encarado, aquele—o que não
existe! Que não existe, que não, que
não, é o que minha alma soletra. [...]
Mas, naquele tempo, eu não sabia.
Como é que podia saber? E foram
esses monstros, o sobredito. Ele vem
no maior e no menor, se diz o grão-
tinhoso e o cão-miúdo. Não é, mas
finge de ser.40

Parti, de início, de um texto de Antonio Candido.


Permitam-me agora tomar outro de Beatriz Sarlo. “El
saber del texto”, tal o título, insere-se numa série integrada
pelo ensaio “Literatura y política”, de dezembro de 1983
(momento da redemocratização com Raul Alfonsiín),41 e da
qual faz parte, também, uma colaboração de Sarlo para um
volume coletivo, editado por Daniel Balderston, intitulado
39 Poderíamos considerar experiências de teologia
apofática a de Malévitch ao propor o quadrado preto sobre
fundo preto; a de Duchamp, ao inscrever um urinol como
objeto estético ou a de Borges, ao marcar a passagem de
alguém a ninguém, em Outras inquisições.
40 ROSA. Grande sertão: veredas, p. 285-286.
41 SARLO. “Literatura y política”; p. 8-11.
42
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Ficción y política, um de cujos fragmentos se reproduz, na
sua revista Punto de vista, em abril de 1986, como fruto de
um debate no Clube Socialista. Nele, apoiada em Adorno
e Martin Jay, Sarlo afirma que

Especialmente en un período donde


se había suprimido ‘la heterogeneidad
en nombre de la identidad’, la literatura
pareció en condiciones de proponer
‘una restauración de la diferencia y de
la no-identidad’. En esta colocación,
sin duda difícil y a menudo peligrosa,
la literatura puede leerse como
discurso crítico aunque adopte (o
precisamente porque adopta) la forma
de la elipsis, la alusión y la figuración
como estrategias para el ejercicio de
una perspectiva sobre la diferencia.42

A partir desses conceitos, Sarlo analisa a literatura


da incipiente redemocratização como aquelas ficções para
as quais a verdade repousa tanto “en el pasado cultural
y político”; quanto na noção de que o nacional é “una
afirmación problemática”; as que propõem “una literatura
de la deriva y del viaje”; as que assumem “los itinerarios
del exilio” e as que abordam “el poder y la violencia”.43
Conhecemos esse dignóstico.44

42 SARLO. “El saber del texto”, p. 6-7.


43 SARLO. “Política, ideología y figuración literaria”
in BALDERSTON. Ficción y política: la narrativa argentina
durante el proceso militar, p. 30-59.
44 As categorias de Sarlo antecipam o diagnóstico
da inviabilidade nacional de Roberto Schwarz. O autor de
Sequências brasileiras aventa várias cenas. “Uma é de que
43
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ela (a formação), que é também um ideal, perdeu o sentido,
des­qualificada pelo rumo da história. A nação não vai se
formar, as suas partes vão se desligar umas das outras,
o setor ‘avançado’ da socieda­de brasileira já se integrou à
dinâmica mais moderna da ordem interna­cional e deixará
cair o resto. Enfim, à vista da nação que não vai se inte­grar,
o próprio processo formativo terá sido uma miragem que a
bem do realismo é melhor abandonar. Entre o que prometia
e o que cumpriu a distância é grande. Outra perspectiva
possível: suponhamos que a economia deixou de empurrar
em direção da integração nacional e da formação de um
todo relativamente auto-regulado e auto-suficiente (aliás,
ela está empurrando em direção oposta). Se a pressão for
esta, a única instância que continua dizendo que isso aqui
é um todo e que é preciso lhe dar um futuro é a unidade
cultural que mal ou bem se formou historicamente, e que
na literatura se completou. Nessa linha, a cultura formada,
que alcançou uma certa organicidade, funciona como
um antídoto para a tendência dissociadora da economia.
Contudo vocês não deixem de notar o idealismo dessa
posição defensiva. Toda pessoa com algum tino materialista
sabe que a economia está no comando e que o âmbito cul­tural
sobretudo acompanha. Entretanto, é preciso reconhecer
que nos­sa unidade cultural mais ou menos realizada é um
elemento de antibar­bárie, na medida em que diz que aqui se
formou um todo, e que esse todo existe e faz parte interior
de todos nós que nos ocupamos do assun­to, e também de
muitos outros que não se ocupam dele. Outra hipótese
ainda: despregado de um projeto econômico nacional, que
deixou de existir em sentido forte, o desejo de formação
fica esvaziado e sem dinâmica própria. Entretanto, nem
por isso ele deixa de existir, sendo um elemento que pode
ser utilizado no mercado das diferenças culturais, e até do
44
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Ora, em contraponto, caberia lembrar que, tanto
Fredric Jameson, analisando o cinema de Sokhurov,
quanto Susan Buck Morss, ao estudar as instalações de Ilia
Kabakov, marcaram, quase paralelamente, o abandono de
uma estética materialista em benefício de formas menos
imediatas de percepção que, mesmo quando já não
busquem uma arte ideológica, pautam-se, entretanto, por
uma arte política, de fundo ainda mimético.45 Mas há um
ponto que o próprio Kabakov reivindica e que, me parece,
ilumina a questão do tertium: o conceitualismo é uma
estratégia de esvaziamento, de profanação (avacalhação)
da instituição artística, que já não admite ser pensada
com os parâmetros iluministas do passado. Não é mais
mímese, mas pantomima.46
turismo. A formação nacional pode ter deixado de ser uma
perspectiva de realização substantiva, centrada numa certa
autonomia político-econômica, mas pode não ter deixado
de existir como feição histórica e de ser talvez um trunfo
comercial em toda linha, no âmbito da comercialização
internacional da cultura. Enfim, ao desligar-se do processo
de auto-realização social e econômi­ca do país, que incluía
tarefas de relevância máxima para a humanida­de, tais como
a superação histórica das desigualdades coloniais, a for­
mação não deixa de ser mercadoria. E ela pode inclusive,
no momento presente, estar tendo um grande futuro nesse
plano” (SCHWARZ. Sequências brasileiras, p. 57-58).
45 JAMESON. History and Elegy in Sokurov, p. 1-12;
BUCK-MORSS. Dreamworld and Catastrophe: The Passing
of Mass Utopia in East and West.
46 Murilo Mendes define a ficção de Borges como
pantomima cósmica. Sobre o particular, ver LADDAGA. La
estrategia del paroxismo; FOSTER. Diseño y delito; FOSTER.
45
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Num manifesto de 1990, contemporâneo, portanto,
ao fim da União Soviética, Kabakov define o trauma de
um modo que nos serve para repensar a tradição com
que também, na cultura latino-americana, foram pensados
o deserto e a importação cultural, de Sarmiento a las
vanguardias, para retomarmos o título de um conjunto de
ensaios de Sarlo e Altamirano.

El vacío (…) no puede ser descrito


en términos de apropiación, de
población, de empleo de trabajo o de
economía, es decir, en términos de la
conciencia racionalista europea. Este
vacío se presenta como un volumen
extraordinariamente activo, como un
depósito de vacío, como una especial
“ontocidad” [bytiistvennost’] vacía,
extraordinariamente activa, pero
contrapuesta al auténtico ser, a la
auténtica vida, y que es la antípoda
absoluta de toda existencia viva. “La
Naturaleza no soporta el vacío”. Pero
desearía agregar que, igualmente, “el
vacío no soporta la Naturaleza”. El
vacío del que hablo, no es el cero, no
es simplemente “nada”; el vacío del
que hablo no es una frontera nula,
neutralmente cargada, pasiva. En
absoluto. El “vacío” es tremendamente
activo, su actividad es igual a la del
ser positivo, ya se trate de la actividad
de la Naturaleza, de la del hombre o
de la de fuerzas superiores. Pero su
actividad presenta un signo contrario,
está dirigida en sentido opuesto, y

Dioses prostéticos; FOSTER . Dada Mime; FOSTER . Amour


Fou.
46
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
actúa con la misma energía y fuerza
que la aspiración de la existencia
viva, la aspiración de ser, devenir,
crecer, construir, existir. Con la misma
indestructible actividad, fuerza y
constancia, el vacío “vive”, convirtiendo
el ser en su contrario, destruyendo la
construcción, mistificando la realidad,
convirtiendo todo en polvo y oquedad.
El vacío, repito, es la conversión del
ser activo en no-ser activo y, lo más
importante y sobre lo que quisiéramos
llamar la atención en especial, ese
vacío vive, existe, no en sí mismo, sino
con la vida, con el ser, a su alrededor;
vida que él elabora, que muele, que
hace caer dentro de sí. En eso veo
una función, una propiedad especial
del vacío, fatal para la vida. Se ha
pegado, se ha unido indisolublemente
a ella y le succiona el ser; su poderosa,
pegajosa, nauseabunda antienergía la
adquiere el vacío apropiándose – como
en el vampirismo – de la energía que
le resta, le sustrae, al ser que lo rodea.
(…) El vacío es precisamente el otro
lado, lo opuesto, de toda pregunta, es
el forro, el contrario, el “no” constante
que se halla bajo todo, lo pequeño
y lo grande, lo total y lo particular, lo
racional y lo insensato, todo lo que
no podemos nombrar y lo que tiene
sentido y nombre.47

Kabakov notabiliza-se, nesses mesmos anos, por


um conjunto de instalações ou obras gráficas em que a
praça permanece vazia, figurando a multidão como um
47 KABAKOV. Sobre el vacío, p. 23-24; GROYS. El
arte conceptual del comunismo, p. 359-360.
47
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
conjunto de silhuetas vistas do alto, minúsculas, nas
bordas desse espaço vago, desse tertium que não é
passivo, mas poderosamente ativo, uma vez que ele é e
não é, como o demo sertanejo. Mas aí, se retornamos ao
texto de Sarlo, “El saber del texto”, constatamos que, como
sempre, a leitura é maior que o texto porque ele sempre
diz mais do que afirma. Com efeito, o ensaio de Sarlo
foi ilustrado, invadido até, por desenhos de León Ferrari
e a disposição desses bonecos, quase como figurinhas
de Playmobil, vincula-se a outros modos de figuração da
política, semelhantes aos explorados por um filme como
Los rubios (2003), de Albertina Carri, com roteiro em co-
autoria com Alan Pauls, onde aqueles que desafiavam
o consenso eram vistos pelas maiorias normais como
bonecos de ficção científica, tão canhestra quanto
doméstica, ridículas figuras de uma pantomima cósmica
acerca da qual, aliás, o coletivo Punto de vista, segundo
Daniel Link, nada teve para dizer. Não há, a rigor, grandes
diferenças, portanto, entre a demora do Instituto de Cinema
(kirchnerista) em conceder ao filme o caráter “de interesse
público” e a apatia do clube socialista (anti-kirchnerista)
em avaliar o testemunho de Carri. A diferença não é,
portanto, ideológica, mas política. A explicação deveria
ser buscada no fato de que a estratégia do esvaziamento
do filme opera, decididamente, não só nas figuras, como
reivindicava Sarlo, mas na figuração; não só nas imagens,
como diria Schwarz, mas na imaginação; não só no que
vemos, mas no próprio olhar. Fica claro então (e isto talvez
ilumine, por exemplo, certa reconversão políticamente

48
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
neoconservadora de Sarlo, nos anos mais recentes) que
a forma é uma simples aparência; a arte visual é cega; e
a literatura define-se como uma obliteração e uma rasura,
uma diferença que nunca se capta em simultâneo, mas
sempre em diferido, em fusão temporal. A crítica, como a
de Antonio Candido ou Beatriz Sarlo, limitada à mimese,
não passa, portanto, de um trompe l’oeil, porque, quando
muito, ela consegue descerrar o véu que cobre algo
situado para além do que se pode ver. Capta o mistério,
mas não o enigma.
Giorgio Agamben nos fornece, aliás, um último
elemento para pensarmos o ser e não-ser coexistentes à
maneira de Guimarães Rosa. Trata-se de uma fórmula que
poderia ser filiada ao sintagma regula et vita de Francisco
de Assis. Nela, conjuga-se, mas também separa-se,
uma tensão recíproca entre a regra e a vida. Em outras
palavras, não há mais espaço para a aplicação da regra
(evangelicum canon) aos poderes mundanos, entre os
quais, os da própria Igreja, assim como o cânone ocidental,
à maneira de Bloom, não dá mais conta das pesquisas
na Universidade. A fórmula franciscana regula et vita e, na
sequência, a idéia muriliana ou roseana, em uma palavra,
a imagem pós-lógica, inserida, em suma, no Real, de ser e
não-ser, não significam confusão entre os dois termos, mas
neutralização e transformação de ambos como formas-
de-vida. Na emergência de uma exceção—a janela do
caos, o infinito-mundo—regra e vida se separam: o estado
normal não se apresenta mais, então, como aplicação da
regra à bios, mas como “forma-de-vida”, praticamente zoé,

49
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ao passo em que, simultâneamente, a exceção aparece
como dispensatio regulae.48 É a chave do contemporâneo,
a cicatriz do moderno. Refletir sobre esse tópico talvez
nos ajude a melhor entender a situação de nosso trabalho
crítico no âmbito da Universidade.

Retomo aqui parcialmente as idéias desenvolvidas em “A


pesquisa como desejo de vazio”, em: SCRAMIM, Susana (Ed.).
O contemporâneo na critica literária. São Paulo: Iluminuras,
2012. p. 15-34.

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48 AGAMBEN. Altissima povertà: regole monastiche


e forma di vita, p. 126-134. A tese, que como o último
Oswald se questiona acerca do uso, oposto à propriedade,
conclui que “l´altissima povertà, col suo uso delle cose, è la
forma-di-vita che comincia quando tutte le forme di vita
dell´Occidente sono giunte alla loro consumazione storica”,
p. 171.
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53
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
POESIA E CRÍTICA CONTEMPORÂNEAS:
ENDOGAMIA E TOLERÂNCIA

Ronald Augusto

O fato de nos depararmos com uma produção poética


“ainda sendo feita”, um gesto, por assim dizer, “em tempo
real”, fugaz e live, isto é, que não se estabeleceu, não
justifica o silêncio, nem a esquiva crítica a contragosto a
seu respeito.
Em outras palavras, insiste-se na alegação de que
devido a sua condição de fenômeno in progress, a poesia
atual acabaria por impor um óbice à tarefa crítica, visto
que, por definição, esta atividade teria a função de regular
e julgar, calcada sobre certa estabilidade de valores,
apenas aquele objeto cuja trajetória pudesse ser abarcada
desde o ponto-zero do seu impulso, passando por suas
correções de rota e chegando até o seu provável termo de
repouso. Portanto, uma experiência tão fugidia, como essa
que aqui se discute, talvez não permitisse a prospecção
judicativa de seu conjunto.
Por causa de sua base larga; sua radicalidade que
atinge os antros da terra; suas ferramentas argênteas,
a crítica se mostraria, supostamente, sem condições
de perscrutar semelhante alvo em movimento, esse ser
transitório. Vantajosa inadequação da crítica, às vezes tão
fora do lugar! O mundo é leviano demais para a sua lerdeza

54
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
magnânima. Mas, o crítico está (ou deveria se sentir)
implicado nas imposturas e nos dilemas que denuncia e
anuncia.
Portanto, a poesia contemporânea, como
fenômeno inconcluso, filha e protagonista de um presente
contínuo, signagem manifestada dentro do “horizonte do
provável” do nosso tempo, não estaria em situação de ser
mapeada “cabalmente”, pois como coisa viva, algo de sua
efemeridade escaparia pelas beiradas do escalpelo crítico
consagrado. No entanto, há aí um problema de distorção,
melhor, de superestimação. Parece estar-se exigindo, para
o caso, uma crítica monumental, ou um olhar telescópico
que, enquadrando o mais ínfimo e distante exemplar dessa
poesia, capturasse num mesmo golpe o mundo e o tempo
conhecidos que o envolvem. Mas, o fazer, o saber e o julgar
inextrincáveis à atividade crítica, devem ser colocados
numa perspectiva provisória, menor. Em outras palavras,
crítica é leitura aplicada; uma forma de interpretação ou de
abordagem. Isto nos faz supor que tal atividade também se
relaciona ao possível, ao impermanente das limitações e
das parcialidades do sujeito. Desta maneira, a leitura, ou a
crítica, condizente com a poesia contemporânea, deve ser,
tal como ela, uma expressão em construção, ainda não
canônica e não canonizada. Sequência de interpretações
e uma constante confrontação entre elas. Uma crítica, por
assim dizer, “câmera-na-mão”, ou para usar outro lugar-
comum, crítica mais como transpiração do que como
inspiração. Leitura interessada, severa e experimental
embrenhada na nervura do dissenso.

55
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Ao almejarmos e superestimarmos uma crítica
totalizadora que “de fato” venha a dizer, quem sabe um dia
— pois estranhamente ela não se encontra aqui entre nós
— aquilo que queremos e merecemos (ou necessitamos)
ouvir acerca da produção poética atual, acabamos também
reservando um espaço excessivamente pernóstico, cheio
de dedos, para os deslocamentos desta mesma poesia
perante a nossa recepção.
Às vezes fala-se a propósito da poesia
contemporânea em termos de que tratar-se-ia de uma
experiência capaz de provocar um estranhamento e um
incômodo em determinadas zonas da audiência similares
àqueles causados, por exemplo, pela arte contemporânea.
Isto é um absurdo. A produção poética de agora-agora
passa longe de qualquer gesto iconoclasta, não põe em
cheque os próprios limites, não tem sequer a ousadia da
frivolidade que, diga-se de passagem, sobra à anti-arte.
Então, por que reivindicar para a produção contemporânea
um discurso crítico sobrenatural, que fale a língua do “meu
tio iauaretê”, na presunção de glosá-la eruditamente e de
uma vez por todas?
Desde a realidade insossa das manifestações
poéticas atuais, talvez se possa arrancar uma resposta
cínica para o caso: a expectativa ansiosa pelo advento
dessa crítica-para-acabar-com-todas-as-críticas, que faça
justiça à pretendida originalidade da poesia atual, não
passa de uma tentativa de niquelar a irritante normalidade
e eficiência dessa mesma poesia por meio da chantagem
cult de um metadiscurso que assomaria para “pôr as coisas

56
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
em ordem”, problematizando uma farsa com outra.
Assim, desde um ponto de vista fatalmente precário,
pretendo destacar alguns aspectos do estado de espírito
dessa poesia. Figuras de sua verdade cambiante. Primeiro
aspecto: a) os poetas de agora-agora, grosso modo,
dominam desde tenra idade os repertórios da linguagem
poética; eles demonstram conhecer os pontos cruciais da
tradição literária do ocidente; estar familiarizados com a voz
dos mestres do modernismo; prestar atenção aos recursos
da versificação quer seja livre, quer seja metrificada; e,
por fim, simpatizar, naturalmente, com proposições das
vanguardas de quatro décadas atrás. A sofisticação, no
caso deles, beira o lugar-comum. Não praticam mais
uma poesia ingênua, de coração, confessional. Todos
têm uma consciência de linguagem de causar inveja (aos
seus pares, naturalmente). A propósito disso, Heloisa
Buarque de Hollanda publicou um estudo-antologia (26
Poetas Hoje) em que discute, entre outras, essa questão.
Seu recorte tem um cunho multicultural. Mas a autora
avança na contramão daqueles que denunciam na poesia
contemporânea um pendor para a alienação, para a fuga
da realidade, sintomas que, de acordo com esses críticos,
seriam resultantes dessa opção pela extrema sofisticação.
A autora não nega a existência desse traço requintado,
algo emasculado, mas no recorte que nos apresenta,
fica demonstrado que esses poetas não participam
inteiramente de um estado de espírito neutro ou indiferente
em relação ao que os cerca. Isto é, o requinte, a erudição
intertextual não estão necessariamente em contradição

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
com a consciência política e social e também histórica.
Vejamos outro aspecto: b) a poesia atual se
acomoda muito bem dentro da moldura do ecletismo.
Haroldo de Campos chegou a cunhar a expressão
“ecletismo retrô” para provocar ironicamente essa geração
que lhe sucede. Com efeito, tudo agora parece possível
depois das vanguardas históricas das décadas de
1950/60. A tolerância poeticamente correta permite desde
o soneto camoniano até o poema concreto strictu sensu.
É como se os poetas contemporâneos quisessem resgatar
das zonas do limbo aqueles exemplares excluídos pelo
afã talibanesco do alto modernismo. As vanguardas tão
esclarecidas quanto totalitárias (porque indecorosamente
utópicas) da virada do século 19 para o século 20,
talvez tenham jogado fora o bebê junto com a água do
banho. O poeta carioca Alexei Bueno, defende essa
tese pós-moderna de revisão do legado. Ele reivindica
toda uma tradição e um repertório deixados de lado pela
parelha dicotômica novo-velho, suportada pelos diversos
discursos do modernismo (que serve de escopo a eles,
que os informa). O poeta-crítico repropõe os nomes de, por
exemplo, Gonçalves Dias e Castro Alves. Há alguns anos,
Alexei Bueno também chegou a publicar uma carta aberta
criticando o que chamou de “uma apropriação midiática e
totalitária do neoconcretismo” e dos seus epígonos, entre
eles é mencionado o poeta Nelson Ascher. Não obstante o
tom algo tresloucado e mesmo ofensivo – motivado talvez
pela provinciana rivalidade Rio-São Paulo – o conteúdo
da carta foi e é importante na medida em que mexe com

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
um estado de coisas relativo a certa apologia acrítica em
torno do valor e das consequências da poesia concreta
– apologia que, se de fato existe, não condiz, em fim de
contas, com o radicalismo desse movimento – e que, por
tabela, denuncia na espinha do sistema literário esse
constante risco de estagnação a que está sujeito.
Um terceiro aspecto também interessante da poesia
atual é o seguinte: c) nunca, como hoje, vimos os poetas
tão entranhados nas regras de eficiência e competência
exigidas pelo sistema literário que, como costumo dizer,
se configura em representação especular, embora com
suas particularidades, dos imperativos sócio-econômicos
abrigados sob o arco ideológico do livre mercado. E que
outra razão haveria para a grande presença de poetas
dentro dos muros da academia? O meio social nos cobra
filiações consagradas e consagradoras. Alexei Bueno
pergunta pelos poetas engenheiros; pelos poetas médicos;
pelos poetas sem profissão; enfim, pelos poetas “à margem
da margem”: onde estão eles? Isso parece coisa de outro
tempo. Uma parcela significativa dos poetas vivos, isto é,
nascidos no século passado, se formam ou se formarão no
interior dos muros acadêmicos. Mestrandos e doutorandos
em Letras. Isso pode ser um problema. No entanto, não
faço aqui a defesa do poeta romântico ou inspirado, o
gênio monstruoso cuja originalidade sem começo nem fim
ofusca a nossa compreensão.
Por outro lado, a poesia demanda anos de estudo
vagabundo, de leitura de prazer e uma constante prática
corpo a corpo com a linguagem. O poeta precisa distinguir,

59
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
por exemplo, uma sextina de um soneto, identificar tanto
nos traços fonológicos quanto nos grafológicos, insumos
estéticos. Um poeta está sempre in progress. É neste
sentido que uma formação burocratizante numa atividade
equívoca como a poesia, termina sendo, ao fim e ao
cabo, deformante. A (de)formação acadêmica talvez seja
útil apenas para ratificar a existência ou a importância do
nosso “censor interno” (W. H. Auden dixit) numa situação
que nos seja exigido um ato de julgamento. Jorge Luis
Borges diz que “o poeta não condena nem absolve”.
Mas qual seria a qualidade de um juízo condicionado por
cânones hegemônicos, por pontos de vista superciliosos
quanto à informação nova, por discursos presunçosamente
totalizadores? Esses questionamentos precisam ser
feitos para que a poesia e a literatura-arte (e não o
“literário” do mercado livreiro-editorial) não restem tão-
só a serviço do “controle institucional da interpretação”
(Frank Kermode dixit), representado pela universidade,
pela crítica especializada, pelos grupelhos de poetas bem
relacionados, pelos ocupantes de órgãos públicos e/ou
privados ligados à cultura.
Dentro desse panorama pluralista, o quarto aspecto
que identifico na atualidade da produção poética, diz
respeito ao espaço para o exercício da experimentação:
d) a bem da verdade, um espaço reconhecido um
pouco a contragosto. Mas essa poesia experimental ou
vanguardista, se assim pudéssemos nomeá-la, se mostra
ainda bastante epigonal. Ou seja, opera num registro
virtuosístico, tendo como base as rupturas que a poesia de

60
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
vanguarda das décadas de 1950/60 levou quase ao limite
da aporia.
Ainda é interessante experimentar uma suspeita
reflexiva com relação a uma ideia que, aqui e acolá, insiste
em aparecer em alguns textos críticos. Trata-se da ideia que
estabelece similitudes entre vanguarda e progresso. Um
vício diacrônico, além de messiânico, serve de nutrimento
a uma noção de vanguarda que busca conquistar
territórios, acúmulo de feitos num “ensaio de totalizações”.
Movimento que visa a uma “etapa final” ou um éden.
Vanguarda que se apresenta como “ponto de otimização
da história”. Devir utópico calcado sobre linearidade
progressiva, causal. Um dogma: a vanguarda não corre o
risco de infectar-se com o vírus do retrocesso. Talvez no
âmbito da estratégia dos exercícios de guerra, ou mesmo
na arena da “politicagem literária”, tudo isso faça algum
sentido, pois aperfeiçoamento pressupõe a aceitação de
exclusões e obsolescências cujo questionamento — a
bem de “um mundo transformado”, digamos, para melhor
—, é deixado de lado “por tempo indeterminado”.
Prefiro imaginar um quadro de tensões de
perspectivas, propostas de linguagem em confronto.
Formas e poesias em “conjunções e disjunções”
sincrônicas. Não existe progresso. O limbo experimentado
pela poesia de Jorge de Lima (que considero um fato
lamentável) pode ser revogado a qualquer momento.
Outros aguardam o retorno triunfal ao nosso convívio da
obra de Cassiano Ricardo. E se isso vier a acontecer,
não significará, necessariamente, involução. A poesia se

61
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
desdobra numa rede de conotações e o leitor-poeta se
comporta como o administrador das intraduzibilidades e
das eventuais reabilitações inerentes à tarefa da leitura
criativa e desobediente. Com relação à dialética das
consagrações e revisões alguns poetas-críticos de agora-
agora buscam, através de textos e publicações, entronizar
outros artistas e mestres, fazendo-os ocupar um lugar de
proeminência e destituindo, por consequência, outros que
com o passar dos anos começaram a representar, segundo
seus simpatizantes, influência supostamente nociva para
a formação do nosso repertório. Sou forçado a fazer essa
consideração, pois, nos últimos anos, tenho notado aqui
e ali (a percepção é empírica, sem nenhum método)
manifestações cujo teor, grosso modo, é acusatório a
propósito de uma tradição “muito cerebral” que seria, por
assim dizer, predominante em nossa poesia e, por sua
vez, imporia interdições às linguagens mais emocionadas,
imagéticas e descomprimidas. Os “seguidores” da juvenília
presente e os retardatários da beat generation e de uma
escrita delirante e magmática vêm, nos últimos anos,
chamando a atenção para a poesia de Roberto Piva como
uma espécie de “solução para o problema”.
Roberto Piva parece ter sido também a prefiguração
de toda uma poesia que, hoje, se beneficia cada vez mais
de aspectos exteriores ao próprio poema, o que, aliás,
reflete uma espécie de preferência cultural contemporânea
no que respeita ao gênero. Preferência que pretende
farejar nas roupas de baixo da poesia, aspectos, por assim
dizer, mais curiosos e existenciais. Com efeito, situações

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de significação antes secundária, tais como, se o poeta
é dublê de xamã, se é gay, se é suicida, se representa a
poesia afro-brasileira, se vive socado no pantanal, se é da
periferia, se foi abusado na infância, se o uso de drogas o
fez perambular pelas estradas tornando-o uma espécie de
monge, se a iluminação súbita do haicai o converteu ao zen-
budismo, enfim, todos esses elementos de catalogação
que compareciam sempre após a vírgula, justificam e
tornam pertinente a maior parte da poesia aceita hoje.
Não basta procurar e reconhecer o bom poeta, tornou-se
imperativo que ele(a) diga coisas contundentes desde o
lugar de sua diferença social, sexual e antropológica.
As considerações acima me obrigam a evocar
um episódio que vivi há mais de duas décadas e que diz
respeito ao debate da literatura negra ou afro-descendente.
No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia,
final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião,
por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil
disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura
negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande
entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava.
Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio
de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial
Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente,
estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores
também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me
lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo
entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa
dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome
prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas
traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam
senão mínimos índices de informação verbal. Com um
misto de desconfiança e inquietação, parecia procurar na
folha de papel a porta de entrada ou, desesperadamente, a
primeira fresta por onde escapar. Não demorou muito para
que ela, erguendo a cabeça loira, me fizesse a seguinte
indagação. Onde está o Negro neste poema?
Com efeito, até hoje não sei ao certo a que negro a
loira estudante quis se referir. No entanto, sua indagação
me forneceu algum material para reflexão. Assim, cheguei
à conclusão de que tal pergunta traz em seu bojo algo
como uma expectativa ready-made no que diz respeito às
constantes que, supostamente, deveriam servir de marca,
de escopo a uma poética negra. Apresento agora ao leitor
algumas variantes que talvez traduzam ou, melhor, que
talvez façam vir à tona aquilo que restava subjacente ao
questionamento da minha entrevistadora: (1) onde está
o típico?; (2) onde estão as palavras chibata, tronco,
quilombo, liberdade?; (3) o que é feito do Lamento, da Dor,
da Magia Negra?; (4) onde está o almost extinct?. Pois
bem, esta expectativa consagrada à força da repetição,
e que sobrevive sob o véu esbranquiçado desta(s)
pergunta(s) constitui a matéria que pretendo discutir aqui.
Felizmente, uma parcela pequena, porém viva, de
escritores negros vem nos oferecendo, há algum tempo,
outros e necessários escurecimentos. Por meio de suas
obras, conseguimos vislumbrar o posicionamento mais

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
radical ou plural da idéia de transnegressão. Atentos ao risco
da diluição - os esclarecimentos do controle institucional
da interpretação -, que acompanha como sombra os bem-
intencionados defensores de uma “verdadeira” literatura
negra; estes autores transnegressores e seus poemas vão,
aos poucos, tornando cada vez mais complexa qualquer
definição pretensamente consistente e acabada a respeito
das linhas de força do total desta escritura.
Semelhante tomada de posição nos permite detectar
o seguinte: a pergunta angustiada da estudante germânica
também comparece com um peso considerável nos
critérios de gosto e de valoração da maior parte daqueles
que têm fundamentado o seu sucesso debruçando-se
sobre o caso ímpar dessa literatura, quer seja através da
organização de antologias fortemente temáticas, onde
os conteúdos inessenciais se sobrepõem à realização
poética mais penetrante, quer seja através da publicação
de ensaios que investigam estes objetos literários tão só
como exemplos de uma afirmação identitária, cuja função
básica consistiria em amplificar e dar nobreza documental
aos anseios de uma coletividade ou segmento étnico.
Em outras palavras, toda essa fortuna crítica aponta para
a responsabilidade social do escritor; o compromisso
histórico do poeta como porta-voz de questões situadas
aquém ou além do âmbito mesmo da invenção verbal.
E segundo estes intérpretes, almas quase renomadas,
tal literatura, para fazer jus ao apodo negro, precisa dar
mostras claras, incontestes da presença do Negro. Ou
seja, o texto examinado (“a patient etherised upon a table”,

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
T. S. Eliot) precisa responder afirmativamente e com
provas cabais àquela pergunta da estudante estrangeira;
deve sustentar o paradigma imaginado, promovê-lo à
verdade irretocável, que possa ser reificada ao longo de
um discurso-livro de, pelo menos, umas duzentas páginas
e que, por um efeito dominó, faça escola e granjeie
defensores argutos e/ou indignados. As provas de que
há um negro entremeado ao texto, insuflando-lhe vida,
são identificadas pela frequência com que aparecem, por
exemplo, além daquelas palavras já mencionadas acima,
as de origem africana que adoçam e singularizam a fala do
brasileiro, tais como: moleque, bunda, cachaça, empate,
etc. Ou ainda, outra prova, por uma insistente reiteração
de um nós negros, ideologicamente correto, indicando
uma espécie de irredutível essência negra que cumpriria,
principalmente ao criador e complementarmente ao
exegeta, preservar a todo custo, como se tal essência fora
um santuário repleto de ex-votos curiosos ou uma reserva
natural ameaçada. Como consequência, temos a literatura
feita pelos negros comodamente atada ao tronco da
temática transitiva ou circulando livremente pela senzala
de um estreito ismo.
O grande dano deste traçado programático,
delimitador e, de resto, extremamente eficaz para confinar
esta prática poética dentro do universo dos estudos
culturais e das literaturas de testemunho, é a exclusão
sumária de outros textos/autores que apontam hoje –
ou que apontaram no passado – para zonas limiares,
imprecisas, abertas à sedução da instabilidade dos

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
significados, onde a inteligência em movimento costuma
puxar o tapete à mediocridade conformadora; o esforço
dos poetas/escritores que focalizam a sua atenção mais
no como dizer e menos, bem menos, no que é urgente
dizer talvez ao ouvido do pesadelo da História.
Mas, por fim, todos os dilemas, ou os vícios e
virtudes da poesia moderna e contemporânea, poderiam
ser resumidos ou ter sua origem num ponto apenas, que
é o que concerne ao verso livre. Embora seja um exagero
insistir em dizer que o “ciclo histórico do verso está
encerrado”, parece ficar cada vez mais claro que o verso
livre modernista — que, diga-se de passagem, a maioria
pratica ainda imperitamente, sem fazer vacilar suas
contradições e possibilidades constitutivas — experimenta
um momento de estagnação. Em artigo publicado
recentemente, Paulo Franchetti estuda na versificação
contemporânea a “crise de verso” ou “crise do verso” na
linguagem de alguns poetas. De acordo com o crítico,
tornou-se já prática consagrada a “quebra arbitrária da frase,
sem que se perceba na quebra mais do que o desígnio de
quebrar”. Há algum tempo, num artigo publicado em Sibila,
onde avaliava a cena das revistas literárias, me referi a
esses poetas que operam sobre o verso a partir tão-só
do corte como “convencionais versemakers da fratura, da
fragmentação”. Para Franchetti, uma parcela da poesia de
hoje representa um “atestado de recusa do verso livre, ou
de desconfiança nele como eficácia poética”. Enquanto
isso, irmandades de poetas apuram suas ferramentas
no aproveitamento acrítico desse verso fake resolvido na

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
estabilidade de uma sempre e afetada elipse sintática.
Nem mesmo as vanguardas, que inventaram a
“música sem-versista”: o poema como uma constelação
suspensa na página; nem mesmo elas conseguiram
mudar o quadro. É como se as coisas atinentes ao verso
e seus modais corressem num trilho à parte. Talvez isso
se deva, em alguma medida, à precoce canonização do
versilibrismo. O verso livre da fase áurea do modernismo
representou uma possibilidade expressiva mais afim
àquele momento histórico e ao que viria a seguir. O soneto,
essa máquina parnasiana onde os poetas-medalhões
se refestelavam com seu virtuosismo métrico, começara
a emperrar. Em contrapartida, a defesa do verso não-
metrificado, em alguns casos, foi tão dogmática quanto
a dos que o repudiavam. A verdade é que o verso livre
— mais como prática inercial do que como afirmação ou
ensaio inventivo de um modelo conquistado — ainda tem
muita coisa a ver com o verso metrificado que pretendeu
substituir. Ou seja, embora pareça, o debate não se
encerra aqui.
Em resposta à poesia “em greve”, isto é, negativa,
daquelas vanguardas, a poesia de invenção desse século
pós-utópico confina com um cinismo fashion e não tem
compromisso com uma poética progressiva. A vanguarda
(e principalmente como movimento coletivo) deixa de
ser uma bandeira. O experimentalismo, como conceito,
perde força. Agora, não é senão uma possibilidade de
performance dentro de um determinado repertório oferecido
pela tradição. A este propósito caberia dizer uma ou duas

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
palavras sobre o tema da “poesia em meios não impressos”
que, hoje, parece fazer as vezes de uma vanguarda.
Segundo as boas almas envolvidas direta ou indiretamente
com a coisa, a poesia digital representa o último refúgio
da experimentação na literatura contemporânea. A “arte-
inicial” da poesia não-verbal e pós-tipográfica de algumas
décadas atrás sucumbe frente à arte-final high-tech, finalista
e financista das práticas poéticas de hoje. Os poetas de
tal vertente fazem uso pesado da tecnologia digital. Os
recursos computacionais, de simples ferramentas para a
otimização e a realização de projetos editoriais, de uma
hora para a outra passaram a lançar os dados disso que
(com a permissão de Mallarmé) talvez se converta em
nada ou quase em uma arte. Pode-se dizer que para a
preguiça vigente, esses recursos foram investidos de um
poder criativo graças à sua capacidade de manipulação
e deformação de fontes, imagens e sons retocados
virtualmente por meio de distorções, animações, fusões
e animações em 3D. Se, até a pouco, para fazer chover
no piquenique dominical da poesia bastavam papel, cola e
tesoura (ver, por exemplo, o poema “Organismo” de Décio
Pignatari, publicado em 1960), agora sequer se imagina
a fatura de um poema intersemiótico sem a parceria de
computadores, celulares de última geração, câmeras
digitais, enfim, desses videogames adultescentes onde o
letrismo sem fundo dos caracteres luta consigo mesmo:
ferramentas-mercadorias típicas de uma confiança ou
de um entusiasmo, ao fim e ao cabo, naïf com relação
aos poderes e avanços que marcam a ultramodernidade

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
narcisista. Vírus da virtualândia. Joan Brossa (1919-1998),
com seu sorriso esturricado à la Buster Keaton, dizia que
a nossa não é uma época multimídia, mas “multimerda”.

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ESCRITA DE SI E EXPERIÊNCIA DO
MUNDO: NOTAS SOBRE O “ECCE HOMO”
DE FRIEDRICH NIETZSCHE

Olímpio Pimenta

Bem feitas as contas, sempre escrevemos sobre o


mundo em nós, vale dizer, sobre nós no mundo—mais
precisamente, sobre a passagem disso por aquilo. Para
esta apresentação, interessa acompanhar o caso criado
por Nietzsche a respeito do tema, tendo em vista o Prólogo
e as três primeiras seções de “Ecce Homo”. Pretendemos
surpreender ali determinados aspectos-chave de seu
pensamento, evidenciando algumas razões a favor da
continuidade entre nós e o mundo enunciada acima. Se
tudo correr bem, isso nos permitirá, também, atender à
questão que deu o mote às discussões desta edição do
SPLIT.
Antes de tudo: a forma escolhida para esta
exposição é mais próxima de uma aula do que de uma
conferência, pois quero menos argumentar do que propor
uma conversa. Isto implica anunciar de início alguns temas
presentes no livro em foco e em sua fortuna crítica para,
em seguida, buscar esclarecê-los variando os pontos de
acesso a eles, como ocorre durante uma palestra que
envolve um ou mais interlocutores. O tom é de prosa,

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
enfim.
Assim, para começar interessa cogitar um pouco
sobre o que é este livro, o “Ecce Homo”. O título, uma
dentre tantas brincadeiras do erudito Nietzsche, repete as
palavras de Pilatos ao apresentar Jesus ao povo depois da
flagelação. Trata-se, nos dois casos, da exibição pública de
alguém. Nesse primeiro sentido, tomado enquanto projeto
editorial, o livro consiste em uma autobiografia intelectual
que, mesmo sendo bastante heterodoxa, deveria prestar-
se para a divulgação de um autor cujas demais obras
começavam a encontrar repercussão no mundo culto.
Entretanto, a coisa muda de figura ao considerá-lo
em sua dimensão filosófico-literária. De imediato, entre os
mais próximos do autor, as impressões de leitura foram
bastante desfavoráveis. Recriminou-se o que soava como
ambição desmedida, e também a grandiloqüência. A opinião
posterior dos biógrafos é também reticente, vinculando o
escrito à loucura que se manifestaria pouco tempo depois.
Para eles, apreciado à luz do esquema vida e obra, o livro
peca por ser pobre em material factual, restando buscar
nele apenas elucidações psicológicas sobre os estados
internos do filósofo—nada que seja dotado de maior apelo
filosófico.
Entre os intérpretes e comentaristas, por sua vez,
nenhum consenso: há quem goste, quem desgoste e
quem lhe seja indiferente. Mas para nós, secundando, por
exemplo, Rosa Dias e Sandro Kobol—respectivamente:
Nietzsche, vida como obra de arte, Civilização
Brasileira/2011 e Sobre o suposto autor da autobiografia

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de Nietzsche, Discurso/2004, aos quais devo muito do
que digo aqui—um tesouro, enquanto reapresentação de
pensamentos e teses centrais da filosofia de Nietzsche do
ponto de vista privilegiado das condições existenciais que
facultaram a emergência desses mesmos pensamentos
e teses. Uma espécie de coroamento de um percurso
filosófico-vital, prova provada de que quase nada do que
importa na obra nietzschiana é postiço ou arbitrário mas,
muito ao contrário, atende à exigência mais difícil que a
filosofia e a vida filosófica põem para seus adeptos, a da
coerência entre o que se vive e o que se pensa.
Mas cabe logo uma advertência: não convém
confundir tal preceito com integrismo literal, sistematicidade,
homogeneidade entre princípios e resultados ou qualquer
outro critério que depende apenas da lógica estrutural da
escrita. Na direção sublinhada por Pierre Hadot, “a teoria
por ela mesma não é considerada como um fim em si. Ou
ela é clara e decididamente posta a serviço da prática”,
o que inclui, evidentemente, a prática inventiva de quem
conta sua história.
Aliás, vem a calhar um outro parêntese. Tenho
insistentemente me perguntado, e também aos colegas,
se nosso magistério pode se resumir às tarefas técnico-
acadêmicas, a chamada “transmissão de competências”,
ou se há imperativos próprios, no mínimo no campo das
humanidades, a serem observados—que dizem respeito
à formação pelo exemplo. Ficam duas pistas: se se é
estudioso de Nietzsche, parece que uma postura assim é
desautorizada pelo próprio “objeto” de estudo; além disso,

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
não dá para escapar à questão pleiteando a suspensão
de juízo, pois essa atitude é fruto de outros tantos juízos,
todos engajados na realização de alguma prática de
vida. Assim, uma postura a favor da especialização e do
academicismo já é, por si só, indício bastante eloqüente
do que se quer com os estudos e de como se pensa sua
relação com a vida.
Dito isso, os objetivos da nossa leitura são
os seguintes. Um primeiro, escolar, é reconhecer a
continuidade subjacente ao desenvolvimento do que
Nietzsche escreve nas seções em foco, muito despistada
à primeira vista, mostrando a ordem em que as ideias,
impressões e comentários estão dispostos. O segundo é
mais ambicioso: referenciar o que vai sendo lido a alguns
aspectos mais notáveis do pensamento nietzschiano e
a outros momentos da sua obra, tomada em conjunto. A
combinação entre os dois objetivos aspira a mostrar que
este livro é tremendamente conseqüente, na medida em
que, ao repertoriar as realizações filosóficas de uma obra
complexa, corrobora o laço constitutivo entre o teor dessas
realizações e a trajetória existencial de quem a deu à luz.
Prevendo, a partir de alguns indícios—
principalmente um curso de introdução ao seu pensamento,
ministrado por um respeitado scholar na Escandinávia,
além de certas correspondências muito elogiosas vindas
da França e da América—uma virada no status de sua
obra, então cercada de um silêncio incômodo, nosso autor
decide se dar a conhecer, falando do que escrevera e,
principalmente, de como o fizera. Numa direção parecida,

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
já havia preparado, dois anos antes, uma série de cinco
prefácios para as segundas edições de Nascimento da
tragédia, Humano, demasiado humano I e II, Aurora e
Gaia ciência. Apesar da convergência de propósitos—
tornar as obras mais acessíveis, evidenciando o caráter
contínuo de seu desenvolvimento a fim de promover o
debate das ideias que as constituem, além de desencalhá-
las nas livrarias—esses escritos têm um caráter diferente
do Ecce Homo. Nos prefácios, é como se estivéssemos a
um grau de distância dos respectivos livros, contemplando
a encenação do que transcorre em cada um deles desde
um primeiro bastidor. No livro de 1888, nos afastamos mais
um grau, contemplando a cena a partir de um segundo
bastidor, cuja perspectiva abrange a arte geral que pôs
todo o conjunto da obra em movimento.
Mas isto, a perspectiva mais afastada, é anunciada
de um modo nada singelo—e menos ainda isento de
desafios para o leitor. A seguir, passamos à apresentação
dos aspectos principais do Prólogo e das duas primeiras
seções, com a qual esperamos recuperar tal ponto de
vista geral de maneira linear. Já adianto, para quem não
conhece, seus títulos; diante da etiqueta mais costumeira
entre filósofos, tendem a provocar curiosidade, senão
espanto: Porque sou tão sábio e Por que sou tão esperto.
As dúvidas mais imediatas são do tipo: será mesmo?
Como assim?
Vejamos o Prólogo, primeiro parágrafo: “Prevendo
que dentro em pouco deverei me dirigir à humanidade
com a mais séria exigência que jamais lhe foi colocada,

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
parece-me indispensável dizer quem sou”. O que significa
isso? Qual é o alcance exato desta “mais séria exigência”?
Em primeiro lugar, uma campanha sem descanso contra
o ideal, contra a duplicação da realidade em “essência”
e “aparência”, que resultou em depreciação completa do
que nos é mais próprio—nossos corpos, nossa condição
natural, as coisas que nos são mais próximas. Pois, afinal,
“a realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua
veracidade, na medida em que se forjou um mundo ideal”.
Ora: logo nesta abertura está reiterado o núcleo
de toda a empresa filosófica nietzschiana. Se falamos em
apolíneo e dionisíaco, vontade de potência, além do bem
e do mal, perspectivismo, genealogias, gaia ciência, amor
fati, morte de Deus, espírito livre, eterno retorno, inversão
do platonismo, moral de senhores e moral de escravos,
superhomem, transvaloração de todos os valores, falamos,
no fundo, de afirmação da existência, contrapartida
propositiva da crítica filosófica finalmente bem sucedida
do ideal.
Mas por que este privilégio, o que justifica esta
presunção? Aí entra um dos segredos deste Ecce Homo:
o esvaziamento da metafísica não é uma coisa pensada
em abstrato dentro da cabeça de alguém, um projeto
teórico-conceitual, mas a conquista de uma forma de vida
inteiramente nova, até então experimentada nos termos
referidos acima apenas pelo indivíduo Friedrich Nietzsche.
É dessa forma de vida que se fala de ponta a ponta no
livro. Em suma: trata-se, ali, de narrar o amálgama
criado entre pensamento e vivências, corpo e espírito,

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
possibilidade e necessidade, filosofia e existência, a partir
das singularidades da trajetória única do personagem
Friedrich Nietzsche. Ou, como dissemos no título, valendo
justamente para este livro extraordinário, o que entra em
cena é o amálgama entre narrativa de si e experiência do
mundo.
E que não haja engano: logo no próximo parágrafo
encontra-se uma chamada direta, a favor da diferença em
relação a qualquer mestre, pois só se torna o que se é
tomando distância, largando noções e doutrina alheias,
provando a solidão. Citando seu Zaratustra, Nietzsche
diz: “Retribui-se mal a um mestre, continuando-se
sempre apenas aluno... Agora ordeno que me percais
e vos encontreis; e somente quando me tiverdes todos
renegados voltarei a vós”.
Chegamos, por essa via, à seção Por que sou tão
sábio. Por que? O primeiro parágrafo o indica: ausência
de partidarismo em relação ao problema global da vida.
Ora, isto é filosofia em sentido estrito, isto é socrático
“por definição”, pois remete ao “sem lugar”, àquele que
não fala de nenhum lugar específico. Mais precisamente:
a construção do que é mais próprio e peculiar, do que é
a própria singularidade, como o mais impessoal, livre de
idiossincrasia. Ou, de novo, as vivências como eventos do
mundo, implicando a escrita de si como um experimento,
uma jogada do mundo consigo mesmo através de alguém.
Nesse sentido, a lição dada de graça ensina que
conta demais para qualquer um investido em filosofia
saber ficar na sua, explorar ao máximo as circunstâncias

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
da própria existência, se dar ao mundo para que o mundo
se abra e o acolha. Mas não custa repetir: não é o caso
de se firmar um caráter íntegro e unívoco, mas de se abrir
para a seleção do que se dá conta de provar. Não resulta
daí um ego consolidado, mas um personagem à altura de
viver aqui, no tempo e no espaço e entre os eventos que
constituem a sua cota.
Uma tal disposição para o instante evidencia a
distância em relação à grande maioria, sempre agarrada
aos seus bens e posses e tralhas—e isto, não obstante
a primeira impressão, não significa ingratidão, recusa
da chamada realidade imediata, mas o máximo de boa
vontade com ela, embora num nível de vínculo super
expandido e elaborado.
Disso tudo decorre a conclusão seguinte: o mais
fundamental é a conquista da liberdade em relação ao
ressentimento, essa doença dos excessos de memória,
responsável pelo desgosto diante da existência dada.
Sua cura passa por não mais reagir, impermeabilizar-se,
nada mais receber de fora pelo tempo que for necessário
e, com isso, despedir de si toda fraqueza, raiz única do
próprio mal do ressentimento. Moral da história: bom é
aqui, onde quer que isto seja, onde quer que o fado nos
tenha lançado, ao contrário do que preconiza o proverbial
pessimismo à moda russa, não isento de influência cristã,
que ensina que “bom é onde não estamos”.
O que não implica, claro, acomodação,
conformismo: quem diz isso é um mestre da guerra, que
apresenta então as suas regras para essa arte. A distinção

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
entre compromisso e partidarismo ajuda a esclarecer o
passo, confirmando este modo de guerrear sem nunca se
misturar ou confundir com o antagonista, se servindo do
exercício como caminho para uma perfeita solidão, em um
movimento antidialético por excelência.
O saldo é uma forma de viver muito diversa daquela
que é prezada pelo consenso das gentes e que traz consigo
uma espécie de nova sabedoria—que por sua vez se
ergue contra o consenso dos sábios de outrora, para quem
a vida não presta. Conhece-se suas palavras: “ofereçam
um galo a Esculápio por esse dia”, “a vida de um homem
é curta e cheia de aborrecimentos”, e por aí vai. Só para
reiterar: nos termos desta seção, o vivente se reconhece
como um pedaço da vida, e é nisso que suas atividades
encontram referência e limite dignos de consideração.
Quando escrevo, por exemplo, quem escreve é a vida—
ou, no dizer de um samba também conhecido “não sou eu
quem me navega, quem me navega é o mar.”
A próxima seção se chama Por que sou tão
esperto. Por que será? Trata-se do lugar em que o filósofo
cuida da exploração daquilo que, na prática, intervém para
favorecer a sabedoria referida antes, ao mesmo tempo em
que se serve dela. O primeiro passo nessa direção registra
uma completa inapetência para questões religiosas,
contrabalançada pelo grande interesse em encontrar
e cultivar os regimes de vida mais convenientes para si
próprio. A questão de fundo é a seguinte: a observação
indica que os tenebrosos problemas da teologia moral—
culpa, pecado, arrependimento, penitência, salvação—

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
estão invariavelmente associados a más escolhas quanto
à dieta e à culinária. Os maus tratos dedicados ao corpo
numa dimensão tão primordial de sua existência trazem
conseqüências funestas: “Todos os preconceitos vêm das
vísceras”.
Uma coisa puxa outra, da alimentação Nietzsche
passa a considerar clima e lugar. O que melhor convém a
cada um nesses termos é também questão fundamental,
elaborada à luz de observações sobre metabolismo e
atmosfera. Segue valendo a lição: continuidade entre quem
se é, onde se está e como se escreve, para bem e para
mal. Mas uma cautela teórica se impõe ao leitor apressado:
o grau das determinações e reciprocidades deve sempre
ser investigado caso a caso, no velho sentido da “mathesis
particularis”, evitando que se tirem conclusões universais
a partir de um quadro de referências tão cheio de sutilezas
e meios tons.
Seguem-se ponderações a respeito de distração,
divertimento e passatempos. Uma nos concerne de
perto aqui, pois situa em primeiro plano as leituras. As
estratégias principais repercutem a opção pela solidão:
quanto mais trabalho, menos livros em volta—o exato
oposto do treinamento para especialistas que ministramos
em nosso magistério. Depois da gravidez levada a termo,
aí sim, alguma companhia literária, preferencialmente a
mais leve e ligeira, exemplificada para o alemão por uma
constelação de franceses. Da prosa passa-se à poesia,
desta à música e, nessa levada, aparecem diversas notas
de caráter biográfico, relativas aos tempos passados pelo

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
filósofo junto a Wagner. Aproveita-se para o comentário
mais uma vez depreciativo sobre o ser alemão, sua falta
de malícia e finura.
Toda essa preparação permite, por fim, que venha à
baila o miolo do problema, a reflexão sobre “como alguém
se torna o que é”. O resultado é mais ou menos o seguinte:
interessa destravar o trânsito entre os impulsos, facilitando
as chances de acontecerem combinações melhores entre
eles, sem que se recorra às ideias solenes de finalidade
ou destinação. Por hipótese, o que existe e constitui a nós
e ao mundo são impulsos, forças, energia em fluxo. Qual
deve ser a hierarquia entre tais forças, que nos permitiria
falar do melhor e do pior no domínio das coisas humanas?
Aquela que sirva ao vivente no que mais importa, a fruição
de sua condição presente, dada na imanência. Não como
o tirano infantil, mas como o adulto esclarecido sobre sua
situação no mundo—parte dele e não seu dono, limitado
por leis, tanto naturais quanto sociais, embora apto a jogar
com tais leis em posição criativa. Eis aí o lance decisivo:
fazer mais acessível a disposição para criar—inventar,
exercitar, arranjar, ordenar, trocar de lugar, dar nome,
enfrentar, recuar, enfim, jogar com o que estiver à mão, a
partir do amor de si, par perfeito do amor fati.
Para arrematar esta visita sumária à seção, cabe
perguntar qual é o segredo disso tudo. Respondendo de
maneira também sumária: aprender a gostar da própria
existência a ponto de nos tornarmos capazes de afirmá-la,
mesmo em seus aspectos mais difíceis e problemáticos.
Aprender a viver sob a formidável perspectiva do

81
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
dionisíaco, cuja paixão não é a do sofredor, mas a do que
se regozija com o espetáculo da existência, infinitamente
mais desejável do que a segurança do nada. Em suma:
“Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati:
nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente, seja
em toda eternidade. Não apenas suportar o necessário,
menos ainda ocultá-lo—todo idealismo é mendacidade
ante o necessário—mas amá-lo...”.
Para efeito de arremate, interessa aludir a algo da
terceira seção do livro, em vista de sua proximidade com o
tema geral desta semana de estudos. Trata-se de pensar
com Nietzsche sobre a escrita, tema que ali aparece sob
o título “Porque escrevo livros tão bons”. Peço licença
para fazer um recorte e tratar pontualmente de um tópico
apenas: a questão do estilo.
Antes de mais: a abordagem da questão não é
feita, como de costume, em chave estritamente estética.
A ausência de clivagens entre os assuntos com que se
ocupa Ecce Homo não autoriza a vigências das divisões
tradicionais, separando o que é metafísico ou moral do
que é epistemológico ou estético. Na vida as coisas não
são assim, e isto é o que foi captado e configurado pelo
pensador nessa reconstrução de sua obra. Assim, o cultivo
da “arte do estilo” não é um negócio descontínuo em
relação a quem se é, como se vive, o que se entende sob o
nome de realidade, como e porque se conhece. A oposição
matricial entre fisiologia e idealismo alude à imagem do
mundo como vontade de potência, na mesma medida em
que os cuidados dietéticos substituem as receitas éticas

82
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e que as noções de lisura e higiene remetem a virtudes
epistêmicas centrais.
O mais importante em relação ao estilo é ter algo a
dizer. Quem se cria no amor fati inicia-se no cultivo do estilo,
pois se torna palco e cenário para a circulação das forças
que constituem o mundo. Sem essas, nada há a fazer. A
partir delas, todavia, tudo o que já foi mobilizado antes—
um corpo saneado dos ideais, física e psicologicamente
flexível, uma consciência honesta e satisfeita com seu
caráter instrumental e uma sensibilidade trabalhada pela
experiência—pode florescer e frutificar, dando vazão a
feitos e obras que poderão aspirar ao estado da arte.
Com isso fechamos o círculo, voltando ao mote
“porque pesquisar literatura?” em condição de dar nosso
palpite. Pesquisar literatura para aumentar um ponto, isto
é, para acrescentar mais um capítulo à literatura e ao
mundo, planos diferentes de uma realidade só, aquela que
amamos livres do ideal.

REFERÊNCIAS

DIAS, Rosa Maria. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
FORNAZARI, Sandro Kobol. Sobre o suposto autor da
autobiografia de Nietzsche: reflexões sobre Ecce Homo.
São Paulo: Discurso, 2004.
HADOT, Pierre. Elogio da filosofia antiga. Tradução de
Flávio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira. São Paulo:
Loyola, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como alguém se
torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza. São

83
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Paulo: Schwarcz, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Tradução de
Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril, 1974.
(Coleção “Os Pensadores”).

84
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ESGOTAR A VIDA: CENAS DE LEITURA

Ana Cristina Chiara

Fui um dia cantar em Belo Horizonte e


não tirei o boné de Milton da cabeça e
chamei Milton de Milton Renascimento
porque parecia ter havido uma
revolução sexual em Minas, uma
virada da era astral, novo horizonte.
(Caetano Veloso)

A dança existe como perpétuo ponto de


fuga. Desaparece no próprio momento
de sua criação (André Lepecki)

Vida, esse assombro, esse assomo de experiências


desconjuntadas, de flashes, de frames, de cortes. Vida,
experiência do corte. Cortar umbigo, cortar tarefas, cortar
calorias, cortar pessoas, amores e amizades. Vida, uma
palavra grande demais em sua justeza de duas sílabas,
extensa demais para se dar conta, prestar contas, fazer
contas. Ao contrário de falar sobre a vida, trato aqui da
leitura como modo de esgotar a vida. Como um vaqueiro
nas grandes tetas de uma vaca, ou uma criança no seio
oferecido da mãe. Esgotar a vida nas tetas da literatura.
Fazer da literatura um fortificante no sentido
nietzscheano da palavra. Aprender com Nietzsche a

85
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ler como Nietzsche. Adoecendo na saúde. Ganhando
forças na doença. Explodindo as carapaças do ser para
atingir um “não ser mais aquilo”, o estado violento da
vontade de potência. Aprender a ler com a alegria difícil
de Clarice Lispector anunciada em Paixão Segundo GH:
“A mim, por exemplo, o personagem GH foi dando pouco
a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria”.49
Imolar-se na vivência de uma subjetividade sacrificial, de
uma subjetividade abstrata, ectoplasma de sensações,
lembranças entrecruzadas, ficções: corpo recriado que se
gasta numa economia de presença/ausência que é a do
tempo da leitura como um existir num “ punto abstracto,
matemático, de uma singularidad virtual”.50 Ler para limpar
os olhos com Macabéa. Aprender com Lourenço Mutarelli
a escorregar pelo furo da paranoia delirante de um desejo
que escoa sem encontrar o limite do possível. Estar com
Mutarelli no descontrole. Ler então para perceber o que
Raúl Antelo define como “vida ali embaixo. Isso não é bom
nem ruim. Simplesmente é.”
Não tratarei, portanto, da leitura edificante, da
educação pela leitura, da formação do leitor, nem da
cidadania, examino possibilidades de associar vida
e leitura, em movimentos de abalo, de lembrança e
esquecimento, de gasto e de perdas, de reprodução e
desaparecimento,51 gozo, ferida, morte. Ler como “dançar
49 LISPECTOR. A Paixão segundo GH, p. 5
50 LEPECKI. Agotar La danza: performance y política
del movimiento, p. 224
51 A partir da sugestão do título “Esgotar a vida: cenas
de leitura” tomado de empréstimo do livro de LEPECKI.
86
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
em cadeias”, experimentar a “jouissance” barthesiana, que,
ao contrário do “plaisir” não é posse, mas “pura perda”: “Il
se dépense’ que deve ser lido como “ele se gasta”, tanto
quanto ele se “des-pensa”,52 ou seja, como quem pensa
fora de si em ambos os sentidos.

Nietzsche

A leitura de Nietzsche é um repelão. Submeter a cerviz à


ferocidade de sua pata-língua de fogo é doloroso. A cabeça
dói continuadamente. Ler Nietzsche é adoecer esperando
a convalescença: sentir as extremidades frias do corpo
febril, a contração do estômago, a náusea, a sonolência
letárgica. Nietzsche nos atinge em cheio no que nos é
mais caro: toda a arquitetura dos valores que nos puseram
de pé, que levantaram nossa face em direção a um Deus,
valores que nos fizeram “humanos”: Foi o minuto mais
arrogante e mais enganoso da história universal; mas
foi apenas um minuto;53 valores, como crosta de poeira,
depositados em nossa pele de tal modo que se fundiram
ao que julgávamos nosso próprio ser. Portanto, não é sem
pena que experimentamos, quando o lemos, a esfoladura
da carne viva, sem a proteção que a recobria. E, por isso,
adoecemos. Em nós essa doença é força reativa, uma
derrota dos nervos diante do que nos parece uma absurda
heresia: a destruição de nossos álibis.
Nietzsche, por seu lado, também adoece. Contudo,
Agotar La danza: performance y política del movimiento.
52 PERRONE-MOISÉS. Com Roland Barthes, p. 74.
53 NIETZCHE. O livro do filósofo, p. 89.
87
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
nele a doença não é doentia, manifesta-se como pathos
afirmativo, quando o corpo, em estado de alerta, concentra-
se na vontade de superar o estado mórbido, interregno
quando tudo parece falhar. O metabolismo se desorganiza
com o rodopio louco das forças dionisíacas na tensão
criativa (conferir seus prefácios). É dos períodos de doença
que surgem seus livros: a experiência da doença pode levá-
lo à experiência da saúde: Um ser tipicamente mórbido
não pode ficar são, menos ainda curar-se a si mesmo;
para alguém tipicamente são,ao contrário, o estar enfermo
pode ser até um enérgico estimulante ao viver, ao mais-
viver. De fato, assim me parece agora aquele longo tempo
de doença [...] fiz da minha vontade de saúde, e de vida,
a minha filosofia [...] o instinto de auto-restabelecimento
proibiu-me uma filosofia da pobreza e do desânimo...54
A leitura será, então, enfrentar o labirinto onde
prolifera o sentido-máscara de outra máscara que
mascara outra. Adotar a atitude de recusa, não acreditar
que algo se esconde atrás da máscara, desencadeia a
potência de metamorfose (detrás da máscara, Zaratustra
ri). Não querer deter a massa discursiva do filósofo,
pois nela sopra o vento quente do deserto, de onde, o
pensador incendia valores, apontando-lhes a baixa origem
humana, demasiada, humana. O leitor oferece-lhe, ainda
ressentido, a outra face à bofetada colérica: E tapando as
narinas atravessei com desalento todo o ontem e o hoje;
na verdade, o ontem e o hoje empestam o populacho

54 NIETZCHE. Ecce Homo, p. 25.


88
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de pena.55 Riscos de afogamento. O leitor deve superar
sua condição, deve exceder-se, abandonar o vale da
lamentação, e subir à montanha de ar rarefeito. Tornar-
se um dos pares. Para tanto, exercitar duas qualidades
essenciais: a altivez da águia e a prudência da serpente,
animais diletos do filósofo bailarino.
Nietzsche ensina a ler. E como Nietzsche lê? Lê
aos solavancos (como quem morde e cospe fogo...).
Os famosos parágrafos curtos — na impaciência contra
a mediania. Numa segunda apreciação (tomando-se
distância), verifica-se que nele se exerce a leitura como
um jogo de desmontagens, deslocamentos, cruzamentos,
subordinações, hierarquização, valoração: a leitura
ativa. A ferocidade de Nietzsche volta-se contra a leitura
passiva. Aquela que lê em conformidade com aquilo que
lê. Seu rechaço — detesto todos os ociosos que lêem56 —
deve ser entendido como recusa à passividade. Campo
de leitura onde o leitor está submisso a uma hierarquia já
conferida de valores:

O erudito que no fundo não faz senão


“revirar” livros [...] acaba por perder
totalmente a faculdade de pensar
por si. Se não revira, não pensa.
Ele responde a um estímulo (- a um
pensamento lido), quando pensa —
por fim reage somente. O erudito
dedica sua inteira energia ao aprovar
e reprovar, à crítica ao já pensado —
ele próprio já não pensa... O instinto de
autodefesa embotou-se nele; de outro
55 NIETZCHE. Assim falava Zaratustra, p. 73.
56 NIETZCHE. Assim falava Zaratustra, p. 30.
89
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
modo se protegeria dos livros [...]57.

Para Nietzsche, a leitura ativa reconhece a


instabilidade da verdade na natureza metafórica do
conceito:

O que é então a verdade? Uma


multidão movente de metáforas, de
metonímias, de antropomorfismos,
[...] as verdades são ilusões que nós
esquecemos que o são, metáforas
que foram usadas e que perderam sua
força sensível, moedas que perderam
seu cunho e que a partir de então
entram em consideração, já não como
moeda, mas apenas como metal.58

A prudência na atividade ledora deve, então,


revelar o modo pelo qual se faz a cunhagem e recuperar
o caminho de volta do conceito à imagem, da imagem à
perspectiva pela qual foi tomada. É esse o sentido de sua
genealogia. Ao desvelar, portanto, a natureza metafórica
da linguagem conceitual, ao desmitificar sua operação
legisladora que transmuda “interpretações” em “verdades”;
Nietzsche, com a leveza de Zaratustra, dará o salto mortal,
constituindo a linguagem filosófica como linguagem
artística, arrebentando-lhes os limites, confundindo-lhes
os “corpus”: a alegria de mentir é estética.59
A capacidade de leitura ativa vive da dupla condição
destruição/construção. Destruição dos pressupostos

57 NIETZCHE. Ecce Homo, p. 48.


58 NIETZCHE. O livro do filósofo, p. 94.
59 NIETZCHE. O livro do filósofo, p. 107.
90
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
anteriores, a recusa da repetição opera, por cortes, na
história do pensamento. Construção, através da produção
ativadora da diferença. E a diferença em Nietzsche é
linguagem, é forma (Zaratustra, esse admirador das
aparências). Nietzsche é um escritor. Ele demanda
um leitor escritor, portanto. Segundo Leon Kossovitch
(1979), Nietzsche liberta a Filosofia dos signos servis
pela inauguração dos signos alegres — sua metamorfose
metafórica. O uso das metáforas em Nietzsche é
crítico, a coisa inesperada, era realmente a coisa mais
inesperada.60 Variam, podendo ser topológicas (o alto
e o baixo), zoomórficas (a serpente, a águia, o macaco,
o leão, o camelo, a aranha, a rã), do domínio da Física
(força, energia, reação), ou epifânicas (Dionísios, Apolo, o
Crucificado), formando uma floresta de signos onde o leitor
deve penetrar com prudência e alegria. Prudência (e não
medo) para não se deixar paralisar pela beleza, a beleza
é difícil: defendamo-nos da beleza.61 Alegria que nasce da
superação do aturdimento inicial e prepara o espírito livre.
Altivez feroz: da luta pela existência com os cornos e os
dentes de um predador.62
Texto e leitor formam um campo de forças, tensões,
em que as vontades em ação, num e noutro, são flechas
disparadas em conflito, interagem, criando instabilidades
violentas, possibilitando novos horizontes. Abalo, matiz,
acréscimo, suplemento, violência, deturpação, produção
de outras metáforas. A leitura ativa é um manancial
60 NIETZCHE. A gaia ciência, p. 7.
61 NIETZCHE. O caso Wagner, p. 19-20.
62 NIETZCHE. O livro do filósofo, p. 90.
91
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de signos alegres que superaram a servidão. O leitor
reconhece, então, que a leitura não prescinde de escritura,
não prescinde de singularidade. A leitura também é a
inscrição de um corpo, “suas algias”: é preciso não ter
nervos, é preciso ter um ventre feliz.63
A leitura ativa — que deixou de lado o mito do
desinteresse e da finalidade, o mito do idêntico, da
manifestação da coisa em-si — reconhece-se como
linguagem e, como linguagem, é diferença. Ler, portanto,
na diferença, com a diferença, com os diferentes, sem
indiferença — “a gaia ciência”. A “bela diacronia” dos
textos: prazer refinado que é acompanhar a fala de um
esteta faz avançar o pensamento. Estados tensos do
corpo - Nietzsche. Pôr Nietzsche em perspectiva é situá-
lo numa Alemanha combalida moralmente, aburguesada,
flácida, onde essa voz de fogo atuava. Trazê-lo para os
nossos dias é perguntar como a razão apaixonada pode
atuar num universo obtuso — cenário da desertificação da
alma. Nietzsche vocifera. Nietzsche escandaliza (Basta!).
Nietzsche repudia.

II. Lispector

Ler Clarice com Clarice, como aventurar-se no silêncio.


Trata-se de desapego à expressão para penetrar no
desconhecido da palavra, metamorfose do leitor na
substância branca da palavra. Em Paixão segundo GH,
Clarice Lispector afronta ao limite o apego ao individualismo

63 NIETZCHE. Ecce Homo, p. 56.


92
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
do Ocidente, não é à toa que convoca o leitor para
entrar num minarete (o quarto de/ da empregada) onde
transcorre a cena de leitura por um ritual de cortes das
camadas superficiais do ego até atingir a idéia de neutro
(a substância branca), a idéia de (con) fusão com o
exterior. Carlos Mendes de Sousa aponta nessa escritura
uma “infinita circularidade em todas as categorizações do
dentro e do fora”.64 GH está revirada por dentro no fora,
no exterior, na circunstância. O exterior, por sua vez, é
canibalizado na forma da barata. A idéia do sacrifício
do em si -mesmo no êxtase (relembro Bataille em seu
livro A Experiência Interior) pode ser aliada à estranha
metamorfose da mulher na substância extraída do corpo
da barata. Esse devir in-significância consome o tempo
da enunciação, homólogo ao tempo da leitura. Também o
leitor precisa sucumbir à catábase da personagem. Livrar-
se de si mesmo, do em si mesmo, do “inútil de si mesmo”,
do apego ególatra à opinião, para afinal fazer a vida neutra
assomar: “A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E
então adoro,----“.65
A paixão de GH é passar a faca, zerar a reza,
comer a barata, enquanto se gasta numa cena extática,
a vida se esgotando em grito mudo. Como quem pare a
si mesmo num parto contínuo, água viva escorrendo,
água de placenta, plâncton, no seu sentido lato, de
organismo vagabundo que segue a corrente. GH está se
entregando, a narração executa a reunião da experiência

64 SOUSA. Clarice Lispector: figuras da escrita, p. 590.


65 LISPECTOR. A paixão segundo GH, p. 217.
93
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
com o conhecimento, é, nesse sentido, retomado depois
em Agamben, que alguns críticos apontavam o caráter
epifânico de seus textos mais extremos. Experiência de
um contato sem anteparos com o deslimitado da vida: “Tal
contato intenso lhe proporciona a sacralização do tempo
e do espaço, da natureza e da própria existência humana,
fazendo que na presença hoc tempore da horizontalidade
concreta e histórica se instaure exatamente a presença in
illo tempore da verticalidade mítica das origens”.66
Na cena de leitura do romance, performatiza-se
a vertigem da queda motivo constante da literatura de
Clarice, queda sem fim (nem finalidade), a mulher está se
perdendo nas “evidências da visão”,67 sem evitar a brecha
e o erro:

E não me esquecer ao começar o


trabalho, de me preparar para errar.
Não esquecer que o erro muitas vezes
se havia tornado meu caminho. Todas
as vezes em que não dava certo o
que eu pensava ou sentia – é que se
fazia enfim uma brecha, e, se antes eu
tivesse tido coragem, já teria entrado
por ela. 68

Ler com Clarice para atingir o “invisível histórico”


(de Barthes) quando ela costura surdamente a luta de
classes (patrão X empregado), escamoteada também nas
cartas-cartomantes lidas para Macabéa, a vida invisível,
66 BASTOS. Escatologia e soteriologia no paganismo
mítico-poética e ontoteo-lógico de Eudoro de Sousa, p. 223.
67 LISPECTOR. A paixão segundo GH, p. 108
68 LISPECTOR. A paixão segundo GH, p. 109
94
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
a vida nua. David Lapoujade, ao estudar a relação de
imbricação da religiosidade no mundo laico capitalista
dos Estados Unidos, afirma: “[...] a caridade não supõe
nenhuma simpatia por um sujeito, mas faz do outro o objeto
de um cuidado. [...] ela se pretende medicinal ou curativa,
pois só pode ter acesso a objetos que reclamam sua ‘força
de trabalho’.69 No entanto, Clarice, ao encenar n´A hora
da Estrela um narrador homem que não vai “lacrimejar
piegas”, recusa a caridade para vivenciar o confronto
agônico entre a repulsa e a simpatia, entre a crueldade e
o amor diante da pobreza e do desamparo de Macabéa,
sem se deixar capturar numa rede de bons sentimentos.
Isto porque a nordestina deve permanecer como espanto
para o pensamento. Ao se perguntar sobre Macabéa, o
narrador não poderá fechá-la num conceito apenas: se a
pobreza dela era “feia e promíscua”,70 ela também “vivia
de si mesma”,71 o que provoca inevitável desconcerto
diante dessa alteridade irredutível, pois a nordestina tinha
em si mesma uma certa “flor fresca”.72 A perplexidade do
narrador diante da possibilidade de momentos gloriosos
em meio a toda mesquinhez de um cotidiano apagado,
sujo, pobre, pode passar a ser a perplexidade do leitor:
“quem sabe achava que havia uma gloriazinha em
viver?”73 Clarice Lispector coloca o leitor não diante de

69 LAPOUJADE. Cinismo e piedade (Made in USA),


p. 77.
70 LISPECTOR. A hora da estrela, p. 28.
71 LISPECTOR. A hora da estrela, p. 45.
72 LISPECTOR. A hora da estrela, p. 47.
73 LISPECTOR. A hora da estrela, p. 34.
95
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
uma pobreza que iguala a todos, mas dobra-o à evidência
de uma subjetividade como frágil flor, e esse olhar trocado
com a moça agonizante volta-se para a própria fragilidade
de quem lê, a fragilidade dos que possuem muito. Mas,
deixemos, a nordestina ouvindo músicas clássicas na
rádio MEC.
Ao leitor de Clarice cabe também tomar distância
do apelo sedutor de Clarice para não cair de boca no limite
tênue entre abalo, perda de si e auto-ajuda Cabe a tarefa
quase heróica de não sucumbir ao chamamento amoroso,
ao endereçamento sedutor: “enquanto escrever e falar vou
ter de fingir que alguém está segurando a minha mão”.74 O
efeito-personagem pede a mão de alguém para segurar
porque sabe a iminência de morrer. O leitor deve recusar a
mão estendida para conseguir, sem consolo, chegar com
ela ao gozo neutro, sem ter para aonde voltar. O sentido
dessa leitura seria então “arrebent(o)ar com a vida diária”,75
gasto sem utilidade. GH oferta um pecado inútil: “Toma o
que vi, livra-me de minha inútil visão, e de meu pecado
inútil.”76

III. Mutarelli

Evoco o nome tesarac, a partir da definição do


poeta que cunhou a palavra (Shel Silverstein), no sentido
de “vácuo. Um evento tão brutal e aterrador que transforma
a vida”. O efeito tesarac nos compromete colocando-

74 LISPECTOR. A paixão segundo GH, p. 16.


75 LISPECTOR. A paixão segundo GH, p. 15.
76 LISPECTOR. A paixão segundo GH, p. 15.
96
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
nos como objetos de um vazio caótico preenchido de
fantasmas materiais. Tesarac decorre do fato que a
realidade contemporânea está recoberta da pátina do
artificial, vazio prenhe de imagens, de onde insurge o acaso
como sintoma do absurdo, num clima paranóico que leva
o indivíduo ao exercício de decifração de modo obsessivo,
esgotante e tendente ao fracasso. A cena de leitura de
Lourenço Mutarelli com diferentes modulações põe em
xeque essas emergências do artifício em narrativas presas
ao ranger de dentes do maquinismo da vida presente, são
cenas que esbarram no absurdo e na paranóia, quando
os dentes da máquina gripam desarranjados por uma
ocorrência do acaso, um “furo” na rotina, compondo uma
das obras mais interessantes e bem escritas da literatura
brasileira recente.
As personagens de Mutarelli são, em sua maioria,
leitores paranóicos. Frequentemente submetidas ao
esforço de leitura de uma mensagem criptografada,
que nada lhes revela dos seus impasses existenciais,
desestabilizadas em mais e mais dúvidas e impotentes
diante do desmascaramento de uma rotina que só faz
recobrir de aparente lógica o absurdo real, expõem
em seus corpos e mentes infelicitados a inversão que
converte o realismo convencional em cruel realismo: “são
as emergências do artificial no natural que configuram a
vitória do real [proliferante] sobre o fictício e o fracasso do
mascaramento do artifício em natureza”.77

77 ROSSET. A anti natureza: elementos para uma


filosofia trágica, p. 80.
97
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Desenhista de histórias em quadrinhos, o universo
ficcional de Lourenço Mutarelli mistura imaginário urbano
aos cacoetes das narrativas juvenis contemporâneas.
Trata-se, se posso dizer assim, da “arte de (re)produzir
efeitos sem causa”. Suas histórias são urdidas com
temas estranhos de invasões de corpos, aliens, ETs e/
ou clones das personagens e de fenômenos “científicos-
sobrenaturais”, narradas com melancolia disfarçada por
uma ironia “tarja preta”, dores agudas, sentimento do
evanescer da experiência. Uma espécie de tesarac ao
infinito arrasta o leitor para o limiar de uma cena, onde
nem entra, nem sai, tornando-se um voyeur ameaçado. O
leitor de Mutarelli defronta-se deste modo com catárticos
processos de liberação de energia mental e afetiva
engolido nesta máquina de linguagem acionada por uma
consciência aguda e desenfreada, por citações literárias,
cinematográficas, da cultura de massa e dos hábitos
mentais contemporâneos. “Fotorrealismo fantástico”,
como Diego Assis afirma na contracapa de O Astronauta
ou livre associação de um homem no espaço, enigmas sem
solução, humor e derrisão cyberpunk são os componentes
desta cena de escrita.
Muitas narrativas de Mutarelli trabalham
com uma situação pós-traumática trampolim para o
desencadeamento de um delírio paranóico. No romance, A
arte de produzir efeito sem causa, José Lopes Rodrigues Jr.
retorna à casa do pai, depois de ter sido traído pela esposa
com um amigo do filho adolescente. Na casa do pai, com
todas as ressonâncias possíveis de um entrecruzamento

98
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
com A Metamorfose e Carta ao pai, de Kafka, também com
Burroughs,78 que aparece criptografado no fait divers de
um assassinato, Jr. vai-se metamorfoseando de homem
adulto em espécie larvar, quase um natimorto (título de
outro romance do autor) com todos os sintomas corporais
da psicose paranóica: extrema sudorese, taquicardia,
dores de cabeça, prostração, insônia, a sensação do corpo
cindido,79 tremores, percepção distorcida.80
A ficção de Mutarelli expõe cartas (de baralho,
de tarô, de mensagens dos maços de cigarro) que
confundem o real com a projeção inesgotável de imagens
aparentemente sem controle, mas paranoicamente
encadeadas com lógica de modo a criar a ilusão de
uma totalidade fechada e absurda, falsa coerência cuja
78 Burroughs (aparentemente embriagado, matou
Joan Vollmer com um tiro na cabeça no que teria sido uma
tentativa de brincar de Guilherme Tell) disse que o tiro
em Vollmer, no dia 6 de setembro de 1951, foi um evento
crucial na sua vida, e que o provocou a escrever: “Eu sou
forçado à terrível conclusão que eu nunca teria me tornado
um escritor, a não ser pela morte de Joan, e nunca teria uma
compreensão da extensão em que este evento tem motivado
e formulado a minha escrita. Eu vivo com a ameaça
constante de posse, e um constante necessidade de escapar
da posse, do controle. Assim, a morte de Joan trouxe-me
em contato com o invasor, a Alma Suja, e manobrou-me
para uma longa luta na vida, em que não tive escolha a não
ser escrever a minha saída dela”. WILLIAM S. Burroughts.
Wikipedia.
79 MUTARELLI. A arte de produzir efeito sem causa, p. 62.
80 MUTARELLI. A arte de produzir efeito sem causa, p.
119.
99
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
força constrói uma parábola infinita e circular como as
imagens dos suplícios do mundo ctônico. Não se trata
de associações livres como nos programas surrealistas,
aqui herança aleatória paranóico-dada transtorna tudo.
Um ‘Fort- Da’, um esconde-mostra, uma construção
rigorosa e anárquica. Loucura programada por softwares
demoníacos. Em Lourenço Mutarelli as personagens,
quando não espiam pelos buracos, enfiam-se neles.
Quando o leitor é exposto a esse contágio com
a miséria dos transtornos mentais contemporâneos
(e mais comuns do que se pode pensar), também ele
pode escorregar por um furo, ao entrar nessa cabeça
decorada por uma imaginação estranha e inquietante,
podendo dizer junto com o próprio quadrinista: “Aí ele
começa (ou) a bagunçar a minha cabeça e a foder com
meus pensamentos...”.81 O leitor pode arriscar o método
crítico-paranóico de um modo mais consciente para poder
vivenciar a miséria-tesarac reproduzida nas narrativas.
Experimentar essa imaginação delirante como se
experimenta a dor de terminações nervosas inflamadas,
deixando que a lucidez –paranóica descortine a cena
contemporânea como punctum bartesiano, como um feixe
de luz e dor agudas.
Em 1933, Salvador Dali leu a tese de Jacques
Lacan que aparecera no ano precedente, um texto árduo,
consagrado ao estudo da paranóia. Desta leitura iria
nascer o método crítico-paranóico, que Dali apresenta
em dois escritos fundamentais “A conquista do irracional”

81 MUTARELLI. Mundo pet, p. 99.


100
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e “Novas considerações gerais a respeito do fenômeno
paranóico do ponto de vista surrealista”.82 Se Freud
reconhece que a paranóia não é demência, mas integra
a categoria de “loucuras”, a crítica da literatura, depois de
Maurice Blanchot, parte da premissa de que, como corpo
doente, digo, perverso, a literatura pode integrar, como
irmã siamesa da paranóia, a lista aberta destas “loucuras”.
A crítica da literatura pode escorregar de modo
eufórico pela paranóia quando se obriga a restabelecer
uma rede de significados onde tudo está ligado ao discurso
anterior e “de fora”, como vozes anteriores à escritura,
experimentando certo prazer petrificado. Ou ficar presa
dentro da máquina da ficção e sustentar visões internas,
fraturas ósseas, abscessos que forçam de dentro para
fora, fisgam a membrana realidade/ficção sem arrebentar,
gozo histérico. De um modo ou de outro, a crítica estará
sempre condenada ao fracasso da decifração total da
rede interna ou externa da escritura. As palavras colam-
se umas às outras, como frames numa edição. O esforço
em apagar o nome da coisa desgasta enormemente. Ou o
apego ao nome da coisa desgasta enormemente. A crítica
acorda, afinal, do delírio sem janelas ou portas para abrir,
presa dentro de sua própria ficção.
Salvador Dali exorta: “Peço ao crítico de arte: o que
acha de tal ou tal obra no momento do seu êxtase? Mas,
primeiramente, coloque-se em êxtase para responder-
me.”83 Eis a terceira via do método crítico-paranóico. A
82 DALI. Sim ou a paranóia: método crítico-
paranóico e outros textos.
83 DALI. Sim ou a paranóia: método crítico-
101
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
cadeia de significantes que levaram Dali ao método crítico–
paranóico pode ser resumida: migalhas de pão machucam
o cotovelo do menino Salvador Domingo Felipe Jacinto
Dali i Domènech, enquanto ele mira o quadro A Rendeira
de Vermeer,84 cuja agulha, manuseada pela jovem
retratada, é o objeto perfurante-concreto numa cena cheia
de curvas abstrato-ornamentais. Adulto, Salvador Dali vai
buscar o mesmo gozo perfurante no chifre do rinoceronte,
pintará uma série deles, num deslocamento que foi da
agulha da rendeira ao chifre do rinoceronte de Dürer
(Dürer, Rhinoceros, gravure, 1515), o método, gerado
da agudeza desse significante perfurante, recupera onde
dói o dodói, recupera o balbucio contra o apagamento
total do sentido, contra a grande negrura, a escuridão
total, a lesão do luminoso, o “pas de pas”, o não do não.
A perfuração da pele constitui um dos signos nodais do
método crítico paranóico. As imagens da perfuração, os
furos, criam uma cadeia associativa cuja renda tecida
envolve a possibilidade de desdobramentos, de dobras,
de tranças, de transes.
A obsessão pelos logaritmos, em Lacan e em Dali,

paranóico e outros textos, p. 88.


84 No quadro de Vermeer, a rendeira é retratada
absolutamente absorvida em seu trabalho minucioso,
manipulando cuidadosamente pinos e fios coloridos. Este
pequeno quadro do Museu do Louvre, de apenas 21 x 24cm,
foi considerado por Renoir a pintura mais bela do mundo:
os vários pontos de luz desfocados são um dos melhores
exemplos da interpretação da luz conduzida por Vermeer e
que tanto agradou os impressionistas.
102
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
assim como as mensagens criptografadas de Lourenço
Mutarelli, comprovam a estrutura lógico-delirante de suas
ficções perfurantes. Chifre agudo do monstruoso animal, o
rinoceronte-eleito, o objeto perfurante, fere a retina do leitor
das narrativas desoladas de Mutarelli. No entanto, não se
trata, como adverte Salvador Dali sobre o seu método, de
delírios oníricos, passíveis de serem interpretados à luz
das combinações associativas da psicologia dos sonhos,
trata-se, ao contrário, de uma concretude resistente,
uma materialidade paquidérmica de desolação e dor. O
realismo, neste caso, não recobre de pátina ilusionista o
corpo escrito, antes deixa brotarem as feridas abertas, a
carne exposta a e “a fissura do desejo”. Sade convoca
o leitor a um esforço ainda. Mais ainda, diria Lacan do
desejo, fundado numa “não reciprocidade absoluta”.85
A leitura crítico-paranóica criptografa-se “delirante”,
sobre os restos dejetados pelo grande gozo da escritura.
Eis aqui uma questão, uma provocação: o que pode a
escritura excretada se não fazer a crítica regurgitar a massa
empurrada goela abaixo pelas formas do falso? Pelo falo/
mão/ escrita do artista, do autor? E, por conseguinte de
um leitor?
São o esgoto e o esgotamento de nossos belos
edifícios de palavras: a crise da crítica. Implosão das
leituras interpretativas e das possibilidades de interações
intelectuais. Enlouqueçamos de vez, sejamos paranóicos
ou pornográficos, como queria o poeta, até a última gota
do sangue da criação. Lúcifer abanará o rabo contente.

85 LACAN. Kant com Sade, p. 785.


103
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Transluciferações nos campos do saber-doutor. Brilhos
sutis, afogamentos, golfadas, vômitos, paradas cardíacas.
Repetir e repartir o “gozo manco” do “fetiche negro”.86
Quando a vida se transforma em “Escotomas.
Formas abstratas”.87 Aquilo tudo que era arte verbal,
literatura, concretude e afeto, alta potência do amor ao
nome, aquilo que queria “mapear a dor e o descontrole”
perde o sentido, por força das conexões abstrato-teóricas
da rede de leituras, da superposição de hipóteses, de
citações, de projeções narcísicas, de impressionismos, de
rigor teórico, eis a fratura paranóica exposta pela ficção,
eis a impossibilidade da crítica, seu tesarac caótico. E os
nomes das coisas com que o autor batizou a criação vão
sendo esquecidos aos poucos, em favor de um nome só, o
nome coiso em substituição à coisa, captura na linguagem
afásica da infelicitada personagem do livro A Arte de
produzir efeitos sem causas que tendo dificuldades em se
lembrar dos nomes das coisas, contenta-se com a palavra-
única coisa(o). A perda da especificidade e singularidade
de cada nome, a função de nomear, dar nomes aos bois,
torna-se a caricatura de um sorriso, um esgar de morte
por engasgo. Regurtofagia. Morte da criação. “Existem
muitas formas de afasia. A afasia é a surdez e a cegueira
às palavras”.88

86 LACAN. Kant com Sade.


87 MUTARELLI. A Arte de produzir efeitos sem causa,
p. 156.
88 MUTARELLI. A Arte de produzir efeitos sem causa,
p. 156.
104
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
V. Final

Quem é você meu hipócrita leitor, meu semelhante, meu


irmão como no verso de Baudelaire? Nietzsche, Clarice,
Lourenço sabem que esse leitor não nasceu ainda. E,
nesse sentido, obra deles é propedêutica: a obra criará
seu próprio leitor.89 Leitor capaz de abandonar o manto de
crenças antigas e, superando o caos inicial — momento
de catástrofe —, é capaz de reescrever a história da sua
leitura. Aquele que preferir as robustas (alegres) entranhas
às entranhas frigorificadas das rãs pensadoras e opuser o
movimento à paralisia, e a dança à ciência, que souber ler
tendo pedras sob a língua, quem puder passar pelo sabbat,
escorregar na vertigem tesarac, quem souber dançar em
cadeias. Leitor que descarnou a carapaça psicológica e
transvirou barata, ou se deixou escorrer pelo furo do real
esfolando a superfície da pele.
Leitor que, segundo Raúl Antelo, saberá mover-se
com soberana elegância “na medida em que a elegância
soberana é amar a singularidade, ponto extremo em que
elegância e liberdade civil tornam-se sinônimos, forças
enfrentadas ao totalitarismo...”90
Compreenderam-me?

REFERÊNCIAS

ANTELO, Raúl. Maria com Marcel: Duchamp nos trópicos.

89 NIETZCHE. Assim falava Zaratustra, p. 171.


90 ANTELO. Maria com Marcel Duchamp nos
trópicos, p. 16.
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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
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pt.wikipedia.org/wiki/William_S._Burroughs>. Acesso em:
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108
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
LITERATURA E JUSTIÇA:
JULIÁN AXAT E OS DESAPARECIDOS NA
ARGENTINA

Pádua Fernandes

Introdução: literatura, desaparecimentos e


aspirações de justiça

O poeta argentino Julián Axat (La Plata, 1976) tem


construído uma obra única na poesia latino-americana,
e incluo nessa observação a América Latina de língua
portuguesa. Desde o primeiro livro, Peso formidable
(2003), sua poesia dedica-se ao combate ao terror de
Estado com soluções formais muito originais.
Ele mesmo é um filho de desaparecidos: seus
pais, Ana Inés della Croce e Rodolfo Jorge Axat, foram
sequestrados em abril de 1977 (o golpe militar que
derrubou Isabelita Perón havia sido dado em 24 de
março de 1976), quando ele era um bebê. Axat, que
foi criado pelos avós, tornou-se um dos fundadores
da organização H.I.J.O.S. (Hijos por La Identidad
y la Justicia contra el Olvido y el Silencio), nascida
em 199591, que congrega os filhos de desaparecidos
91 A organização tem um portal na internet: http://
www.hijos.org.ar.
109
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e realizou escrachos contra os assassinos e
torturadores da ditadura, antes que as leis de anistia
fossem finalmente anuladas neste século. Uma das
divisas do movimento era a de que se não há justiça,
haverá escracho.
Axat também intervém neste campo de
interseção explícita de poesia e política como
editor; com Juan Aiub (filho do desaparecido Carlos
Aiub92), fundou a coleção Los detectives salvajes,
já com vários números, de literatura de vítimas do
terror de Estado (que revelou autores inéditos como
Rosa María Pargas93) e escritores contemporâneos
comprometidos com esse tema. Publica-a a editora
Libros de la talita dorada, do poeta José María
Pallaoro.
A última ditadura militar argentina teria
produzido, segundo o famoso relatório Nunca más,
8960 pessoas que foram vítimas de desaparecimento
forçado94; esse número foi ampliado por pesquisas
92 O primeiro volume da coleção foi o de Carlos
Aiub, Versos aparecidos (City Bell: De la talita dorada, 2007.
Disponível em <http://www.versosaparecidos.com.ar/
versos-aparecidos.pdf>).
93 O volumen Hubiera querido (City Bell: De La Talita
Dorada, 2011) reúne seus poemas.
94 ARGENTINA. COMISIÓN NACIONAL SOBRE
LA DESAPARICIÓN DE PERSONAS (CONADEP). Nunca
Más. 8ª. ed. Buenos Aires: Eudeba, 2009, p. 479. Esse número
apurado pela CONADEP é bastante inferior, porém, ao
110
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
posteriores; ela era um pouco superior ao de 8350
vítimas que, no Brasil, a Comissão Nacional da
Verdade apurou apenas a respeito de dez das etnias
indígenas que foram alvo de genocídio durante a
ditadura militar95.
Em outro artigo, comentei a especificidade
desse crime, que se caracteriza como uma grave
violação de direitos humanos, e foi uma das práticas
recorrentes das ditaduras militares latino-americanas:

No conhecido texto “Negação do


esquecimento”, Cortázar trata dos
total de desaparecidos, que provavelmente nunca poderá
ser precisado exatamente. Em 1979, já se podia calcular que
pelo menos entre doze e quinze mil (NOVARO, Marcos;
PALERMO, Vicente. La dictadura militar (1976-1983):
Del golpe de Estado a la restauración democrática. Paidós:
Buenos Aires, 2006, p. 123). Certamente o total ultrapassa
vinte mil.
95 A Comissão Nacional da Verdade, por falta de
meios, não logrou realizar uma pesquisa completa e apurou
as graves violações de direitos humanos somente contra
menos de um décimo das etnias indígenas, pelo que o
número de vítimas deve ser muito superior a dez mil somente
no tocante aos índios. Ela conseguiu apurar o massacre de
“Cerca de 1.180 Tapayuna, 118 Parakanã, 72 Araweté, mais
de 14 Arara, 176 Panará, 2.650 Waimiri-Atroari, 3.500 Cinta-
Larga, 192 Xetá, no mínimo 354 Yanomami e 85 Xavante
de Marãiwatsédé.” (BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA
VERDADE (CNV). Relatório. Brasília: CNV, vol. II, 2014, p.
248). Em relação a camponeses, o total foi de 1996 mortos,
também num levantamento bastante incompleto.
111
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
desaparecidos na Argentina e chega
a uma interessante formulação:
com eles, teríamos uma espécie de
“presença abstrata”, uma “obstinada
negação da ausência final”. Eles
estariam, pois, em um círculo infernal
que o próprio Dante não imaginou, mas
que a ditadura militar argentina criou e
povoou [...] A imagem de Cortázar é
significativa, porém geograficamente
limitada: o fenômeno não se limitou
à Argentina, e sim ocorreu em toda
América Latina na onda de ditaduras
que surgiram nos anos 1960 e 1970 no
contexto da Guerra Fria. Dessa forma,
não é estranho que o direito à verdade
institucionalize-se pioneiramente
em 1988 na Corte Interamericana
de Direitos Humanos, com o caso
Velázquez Rodríguez, estudante
hondurenho que desapareceu nas
mãos do Exército de seu país. Foi o
primeiro caso de desaparecimento
forçado que foi objeto de um tribunal
internacional [...]96

Associações como as Mães da Praça de


Maio e as Avós da Praça de Maio foram pioneiras
na luta pela justiça e pelo resgate da geração de
desaparecidos pelo terror de Estado da última
ditadura militar na Argentina, que durou de 1976

96 FERNANDES, Pádua. Dar voz aos ossos: justiça


de transição e a poesia de Julián Axat. OLIVO, Luis Carlos
Cancellier de (org.) Anais do I Simpósio Direito e Literatura.
Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2011, vol. II,
p. 163-164.
112
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
a 1983. No fim do século passado, os filhos dessa
geração começaram a despontar como agente
político e criaram a organização H.I.J.O.S. contra a
impunidade dos torturadores da ditadura, propiciada
pelos indultos do presidente Menem e pelas leis de
Ponto Final e Obediência Devida aprovadas durante
o governo de Alfonsín. Entre as ações de protesto,
estavam os escrachos, como parte do repertório
de ação do movimento para a construção social da
justiça, sob a divisa: se não há justiça, há escracho.
Os escrachos, pois, eram movidos por
aspirações sociais à justiça, bloqueadas, nos anos
1990, pelos três Poderes políticos (Executivo,
Legislativo, Judiciário). As aspirações bloqueadas
buscaram outros canais de manifestação pública,
na rua e nos livros; os discursos literários ocuparam
tanto as ruas (em recitais e em inscrições no espaço
público) quanto o papel e a internet. Criou-se uma
literatura que se insurge contra o terror do Estado,
especialmente vigorosa no campo da poesia, de que
Julián Axat é um exemplo.
Já na época do golpe, verificou-se a
necessidade de usar a informação contra a ditadura:
um dos assassinados dessa época, Rodolfo Walsh,
ainda em 1976, escreveu a “Crônica do terror” em que
pediu o rompimento do “bloqueio de comunicação”
e a criação de uma “Cadeia informativa”; os leitores
113
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
deveriam fazer cópias de sua denúncia contra a
ditadura e diseminá-las: “O Terror se baseia na
incomunicação”97.
Beatriz Sarlo, em “Os militares e a história”,
texto dos anos 1990, época dos indultos aos agentes
da ditadura, escreveu que a pretensão dos militares
de apagar a história não seria acatada na literatura:
as palavras eram “testemunhas informantes” e a
literatura dos últimos tempos estava “em contato com
a ordem de uma biografia coletiva”98.
Certos poetas da geração dos hijos participam
dessa construção social da memória no campo
da literatura e, ao fazê-lo, entram em uma postura
de combate a boa parte da poesia argentina dos
anos 1990. Para Emiliano Bustos (filho do poeta
desaparecido Miguel Ángel Bustos, cujos restos só
foram encontrados em 2014), essa poesia que os
precede caracteriza-se por um vazio cultural, político
e ético99.
Axat também critica essa poesia e, por ocasião

97 WALSH, Rodolfo. El violento oficio de escribir. 2ª.


ed. Buenos Aires: Planeta, 1998, p. 247.
98 SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias. Trad. Rubia
Prates Goldoni; Sérgio Molina. São Paulo: Edusp, 2005, p.
33.
99 BUSTOS, Emiliano. 30 años, anotaciones,
reposiciones. In: FONDEBRIDER, Jorge. Buenos Aires:
Libros del Rojas, 2006, p. 251-256.
114
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
do lançamento da antologia que, em 2010, organizou,
congregando alguns dos hijos e outros poetas, Si
Hamlet duda le daremos muerte: Antología de poesía
salvaje, literalmente guilhotinou um livro de Fabián
Casas, da geração anterior.
Neste breve artigo, tentar-se-á apresentar esta
poesia, ainda inédita no Brasil, do ponto de vista da
memória e da justiça.

1. Do peso íntimo ao poeta detetive selvagem

Peso formidable [PF, 2003] apresenta formas que


emulavam escritos íntimos, como cartas, para dar
conta da história privada de uma família atingida
pelos desaparecimentos forçados. Pais e avós são
personagens do livro, e a história do terror de Estado
é vista por meio do microcosmo familiar: “Hay en mi
sangre/ tragedia que irrumpe” (“Há em meu sangue/
tragédia que irrompe”, poema XIII, p. 29). O poema
XXX, uma carta ao pai desaparecido, revela desde o
início a marca da derrota histórica dessa geração, que,
no entanto, apesar de ter sido sacrificada, continuava
se mostrando capaz de inspirar novos discursos:

Te espero:

Pai

115
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
os ruídos causados pela derrota
não conseguem quebrar-nos
embora seja por um instante
essa incrível luz de teus olhos
esperança ou fulgor de a cada instante ser
grito100

A ausência dos corpos, paradoxalmente,


foi capaz de tornar presente essa geração por
meio desses discursos de justiça. Os corpos dos
desaparecidos tornam-se grito, que os HIJOS se
encarregam de transmitir, já que haviam crescido
o suficiente para terem a mesma idade que os pais
tinham ao serem sequestrados, como se ressalta no
final do poema XI:

a morte que não termina,


porque os espero cada manhã,
ao meio-dia,
nos sonhos,
em minhas ideias,
em cada palavra que pronuncio,
passa o tempo,
e não me restam mais do que essas fotos
gastas e amarelas
em que estou em seus braços
e têm a mesma idade que eu tenho agora101

100 As traduções neste artigo são de minha autoria.


“Te espero:/ Padre/ los ruidos causados por la derrota/ no
alcanzan a quebrarnos/ aunque sea por un instante/ esa
increíble luz de tus ojos/ esperanza o fulgor de a cada instante
ser grito” (PF, p. 67).
101 “la muerte que no cierra,/ porque los espero cada
116
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
O desaparecimento deixa em aberto o trabalho
da morte, pois o luto entra em suspenso com a
ausência dos corpos e a incerteza sobre o seu destino.
Ademais, o crime de desaparecimento forçado
tinha, no seu cerne, uma finalidade política sobre os
discursos na esfera pública, o que foi constatado, no
governo subsequente à ditadura, o de Raúl Alfonsín,
pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de
Pessoas (CONADEP): “impedir por todos os meios
que se manifestasse a solidariedade da população e,
com isso, a sequela de protestos e reclamações que
geraria no país e no exterior o conhecimento de que,
atrás do alegado propósito de combater a subversão,
se consumou um verdadeiro genocídio”102.
Essa “morte que não termina” é o tema

mañana,/ al mediodía,/ en los sueños,/ en mis ideas,/ en cada


palabra que pronuncio,/ pasa el tiempo,/ y no me quedan
más que esas fotos roídas y amarillas/ en las que estoy en sus
brazos,/ y tienen la misma edad que yo tengo ahora.” (PF, p.
26).
102 “[…] impedir por todos los medios que se manifestara
la solidariedad de la población y, con ello, la secuela de
protestas y reclamos que generaría en el país y en el exterior
el conocimiento de que, detrás Del alegado propósito de
combatir a la minoría terrorista, se consumó un verdadero
genocidio”. ARGENTINA. COMISIÓN NACIONAL SOBRE
LA DESAPARICIÓN DE PERSONAS. Nunca Más. 8ª. ed.
Buenos Aires: Eudeba, 2009, p. 249-250.
117
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
predominante do primeiro livro, em uma série de 46
poemas sem título, com versos livres e brancos, ou
poemas em prosa, como o XXVII, em que o tema do
xadrez, típico de Jorge Luis Borges (um apoiador do
golpe militar) é usado como imagem de um encontro
passageiro entre hijos.
Servarios [S, 2005] vai adiante, formal e
politicamente, na tarefa de transmitir o grito dos
desaparecidos, que é tratada como missão coletiva,
que vai além da esfera familiar, e como trabalho de
linguagem: há que se reinventar esse grito, buscando
uma nova justiça na distribuição dos discursos na
esfera pública.
A poesia, por levar-nos a ver o que não
era visível, quer desarranjar essas fronteiras na
linguagem. Tal é sua dimensão política.
No começo do poema “mallarmé”, que usa o
nome do poeta que alguns acham apolítico, a tarefa
impossível de salvar os pais (o “peso formidável” do
livro anterior) já é encarada como uma ação dedicada
a transformar o presente e sua própria geração, isto
é, como revolução:

1.
a rosa
um raio
arsenal
latente
prepara espinhos

118
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
que se cravam em nós
ou por acaso
os incrustamos
para fazer
a revolução
salvar
nossos pais
de sua derrota
não sei
realmente
se penso
em salvá-los
a eles
ou a nós
mesmos103

Não se trata de uma poesia panfletária


ou ingênua, porém. A tarefa da revolução, Axat,
dialeticamente, trata-a do ponto de vista da servidão
desde o título do livro, o neologismo servarios, que
remete a servidumbre (servidão) e a varios. No
poema em prosa “escenario. (monólogo sobre siervos
expresivos)”, um homem seminu, com medo, está
numa sala em que um gravador repete palavras de
ordem tiradas de Deleuze, Foucault, Sartre e outros;
repete-se três vezes, em ideia que remonta a La
Boétie: “Por que lutam os homens para defender sua
servidão com tanta obstinação, como se ela fosse
103 “la rosa/ um rayo/ arsenal/ latente/ prepara espinas/
que se nos clavan/ o acaso/ las incrustamos/ para hacer/ la
revolución/ salvar/ a nuestros padres/ de su derrota/ no sé/
em realidad/ si pienso/ em salvarlos/ e ellos/ o a nosostros/
mismos” [S, p. 15].
119
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
sua salvação?104”.
O poema não chega a nenhuma resposta, o
que seria fácil demais, e o senhor acaba por vestir-se
e a voltar a sua postura segura.
Em Médium (poética belli) [M, 2006], as
estratégias da justiça de transição estão encenadas
na poesia, e assume-se uma poética inspirada nos
detetives selvagens de Roberto Bolaño. O eu lírico
passa a buscar os mortos em ossários clandestinos.

O problema dos desaparecidos e


dos corpos NN acaba por modificar
o papel do poeta, que se torna
“detetive”, o que logo evoca o romance
de Bolaño Os detetives selvagens.
No romance, cuja história se passa
principalmente no México, poetas da
linha “real-visceralista” (personagens
que estão, em sua maioria, à margem
da sociedade burguesa) acabam
procurando uma poeta de geração
anterior, que escreveu pouquíssimo,
abandonou o meio literário, e em
quem reconhecem sua predecessora:
Cesárea Tinajero. A busca, entremeada
a diversas tramas, acaba por levá-la à
morte.
No romance, bem como nos contos
de Putas assassinas, a poesia tem
que ver com o desaparecimento e a
morte.105
104 “¿Porqué luchan los hombres para defender su
servidumbre con tanta obstinación, como si ella fuera su
salvación?” [S, p. 37].
105 FERNANDES, Pádua. Biopoder e biopoética
120
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Na nota que escreveu com Juan Aiub para
apresentar o livro da desaparecida Rosa María
Pargas, o “ensinamento” de Bolaño é assumido: os
detetives selvagens buscam a sua Cesárea Tinajero106.
Axat encena essa busca tornando o eu lírico um
antropólogo forense, como no “diário de viaje v”, que
descreve uma ida ao ossários para buscar os pais
desaparecidos. Os ossos não conseguem formar um
esqueleto completo, a busca não é bem sucedida, no
entanto:

porém antes de converter-me


na fracassada “equipe-de-mim-mesmo-legista”

deixo os ossos de lado


e escrevo um poema

que me devolve
a pele viva de sua voz 107

na poesia de Julián Axat: Ylumynarya e o genocídio na


Argentina. Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo
– Dossiê, Junho de 2012, p. 51-52. Disponível em http://
w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie08/ . Acesso em 30 jun.
2013.
106 AXAT, Julián; AIUB, Juan. Nota del Editor: Tras
la búsqueda de la Rosa. PARGAS, Rosa María. Hubiera
querido. City Bell: De la Talita Dorada, 2011, p. 14.
107 “pero antes de convertirme/ en el fracasado “equipo-de-mi-
mismo-forense”/ dejo los huesos a un lado/ y escribo un poema/ que me
devuelve/ la piel viva de su voz” [M, p. 34].
121
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Essa operação arqueológica resolve-se na
poesia. O fracasso no resgate dos corpos torna-se
o encontro de uma poética nova. No “diario ii.”, essa
poética assume-se como de combate: os pedaços do
poeta são repartidos entre os jovens; mas este Orfeu
inspira cantos que são armas, fuzis nas bocas:

ao fechar os olhos
escutei a voz:

... e os pedaços do poeta

repartidos

para alimentar meninos

com fuzis na boca108

Depois desses livros, Axat passa a buscar


maior experimentação formal, o que ocorre nas obras
subsequentes, sem a perda da inquietação social.

2. Os poetas menores e dos dentes do discurso

Ylumynarya [Y, 2008] remete, desde seu título, às


Iluminações de Rimbaud. A primeira parte do livro é
composta de poemas em prosa. A segunda, porém,
é superior, e apresenta um poema longo em versos

108 “al cerrar los ojos/ escuché la voz:/ … y los pedazos/ del poeta/
repartidos/ para alimentar niños/ con fusiles en la boca” [M, p. 74].
122
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
livres e brancos em que a poética detetive selvagem
é desenvolvida além de Médium. Como escrevi em
outro artigo,

O poema descende explicitamente de


Bolaño pela referência a Gui Rosey e
pela busca dos poetas menores – o que
é também a questão de Os detetives
selvagens. Rosey desapareceu
durante a Segunda Guerra Mundial,
em Marselha. Esse acontecimento
está no centro do conto “Últimos
entardeceres na terra”, de Putas
assassinas. Nessa história, “B” e seu
pai, habitantes da Cidade do México,
partem de férias para Acapulco. A
convivência não é boa. O pai gosta de
sair à noite e vai a lugares perigosos.
B desperta à noite e vê a cama do pai
vazia. Enquanto isso, descobre, em
uma antologia de poesia surrealista
(que fornece a epígrafe para o
poema de Axat), Rosey: “De início,
ninguém sentiu sua falta. É um poeta
menor e os poetas menores passam
despercebidos” (Bolaño, 2008, p. 41).
Ele foi um poeta de menor importância,
e isso, bem como o desaparecimento,
torna-o um símbolo ainda mais
pungente para Bolaño e para Axat109.

O compromisso ético desta poesia passa a ser


109 FERNANDES, Pádua. Biopoder e biopoética
na poesia de Julián Axat: Ylumynarya e o genocídio na
Argentina. Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo –
Dossiê, Junho de 2012, p. 56. Disponível em http://w3.ufsm.
br/grpesqla/revista/dossie08/ . Acesso em 30 jun. 2013.
123
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
explicitamente o da busca das vítimas desconhecidas,
e não o de lamentar, os grandes nomes, o que seria
uma tarefa de uma história monumental, que, além
de conservadora, jamais seria capaz de dar conta
do impacto genocida da ditadura no cotidiano das
pessoas comuns:

Penso em Gui Rosey


e evoco os nossos que também foram
tragados pela terra
ou a terra que sobre eles jogaram
sem saber se estavam mortos
aos contratados para achar seu túmulo
penso em Bolaño que também buscou
Gui Rosey
e nós o imitamos para buscar os
túmulos dos
nossos110

O papel geracional dos hijos sofre diversos


questionamentos: um filho chega a fumar o poema
de um pai desaparecido; seria possível escrever o
romance da ditadura? Em revanche, um poema sobre
o assunto seria insignificante:

Que faz um Filho?


filma seu rosto ou o pinta
tira uma foto e a põe junto de seus pais
fica com a insignificância de um poema
110 “Pienso en Gui Rosey/ y evoco a los nuestros que también se
los tragó la tierra/ o la tierra que les tiraron encima/ sin saber si habían
muerto/ a los contratados para encontrar su tumba/ pienso en Bolaño
que también buscó a Gui Rosey/ y nosotros lo copiamos para buscar las
tumbas de los/ nuestros” [Y, p. 51].
124
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
formas de regressar ao instante
que reluz de perigo

[...]

N-ÓS sim
escrevemos o romance
aquilo - o grande romance da ditadura?

O poema culmina na imagem dos ossos dos


desaparecidos erguendo-se para chegar, talvez, ao
poema:

Caveiras com olho vazio à frente


canto ou lamento fuzilado do ultratúmulo
julgam-se
celebram-se
lembram-se
e entregam-se à muralha da noite
que nunca os esquece
que sempre os faz aparecer
em emissários disfarçados
filamentos que viajam para mim de manhã
para serem poema

A imagem que resta nítida, no entanto, pertence


ao terror, e com essa consciência o poema termina.
Neo [N, 2012], seu livro seguinte, faz referência
ao filme hollywoodiano “Matrix”: a luta pelo resgate
do mundo real, enquanto tantos preferem um mundo
dominado e confortável, remete ao universo dos
detetives selvagens e sua retomada da ditadura.
Este livro, reafirmando a tarefa de resgatar

125
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
os anônimos e os desconhecidos (em “Bolaño &
co.”, lemos que “anoche soñé / en nuestra fuga
/ visitábamos poetas / menores”), revisita a obra
anterior e a reelabora. Em “nosotros 2011”, temos a
transformação do mencionado “diário de viaje v”:

e antes de ser
a fracassada equipe
de-nós-legista
deixamos os ossos
escrevemos um poema

nos devolve
a pele viva
da voz111

A voz deixa de ser a fala dos pais desaparecidos:


trata-se do encontro de uma poética, em vez do
resgate de um determinado morto.
O poema “nosotros 2012” enfatiza essa
poética que não pode ser caracterizada como de
simples reconstituição dos discursos da geração que
desapareceu sob o terror de Estado:

Os pais são os ossos

a ausência do osso e sua busca


perdido ou achados

Os pais são os ossos

onde os filhos

111 “y antes de ser/ el fracaso equipo/ de-nosotros-


forense/ dejamos los huesos/ escribimos un poema/ nos
devuelve/ la piel viva/ de su voz” [N, p. 30].
126
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
afiamos nossos dentes112

O afiar dos dentes corresponde a constituir


essa poética nova, de reação ao terror de Estado,
mas sem ser imitativa dos modelos das gerações
anteriores, em uma nova relação com a memória
social da ditadura.

Memória e justiça: o papel desta poesia

É tentador identificar nesta poesia um dever de


memória, a que estão vinculadas as aspirações sociais
da justiça de transição na Argentina e em outros
países da América Latina. Beatriz Sarlo identifica o
caráter central desse dever para o fim da impunidade
dos crimes da ditadura:

A memória foi o dever da Argentina


posterior à ditadura militar e o é
na maioria dos países da América
Latina. O testemunho possibilitou a
condenação do terrorismo de Estado;
[...] Como instrumento jurídico e como
modo de reconstituição do passado, ali
donde outras fontes foram destruídas
pelos responsáveis, os atos de
memória foram uma peça central da
transição democrática [...] Nenhuma
112 “Los padres son los huesos/ la ausencia Del hueso y
su búsqueda/ perdido o hallados/ Los padres son los huesos/
donde los hijos/ afilamos nuestros dientes” [N, p. 30].
127
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
condenação teria sido possível se
esses atos de memória, manifestados
nos relatos de testemunhas e vítimas,
não tivessem acontecido113.

Falta identificar de que tipo se memória se trata.


O próprio Axat, consciente desse papel, reivindica
para si e os H.I.J.O.S. a categoria de “pós-memória”,
segundo a análise de Beatriz Sarlo:

Como considera Beatriz Sarlo,


enquanto toda experiência do passado
resulta vicária (na medida que sempre
está mediada pela interpretação
ou por um relato), os hij@s vivem
esse passado com uma intensidade
vicária muito maior que seus padres,
no sentido de uma “pós-memória” e
a necessidade de narrar a história.
Pós-memória: como memória da
geração seguinte à que padeceu
ou protagonizou os acontecimentos
(memória dos hij@s sobre a memória
dos pais). Trata-se de formas da
memória que não podem ser atribuídas
diretamente a uma divisão simples
entre a memória dos que viveram
os fatos e a memória dos que são
seus hij@s, é claro que ter vivido um
acontecimento e reconstruí-lo através
de informações não é o mesmo114.

113 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da


memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire D’Aguiar.
São Paulo; Belo Horizonte: Companhia das Letras, Editora
UFMG, 2007, p. 20.
114 “Como plantea Beatriz Sarlo, en tanto toda experiencia
128
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Com efeito, Sarlo critica o conceito de pós-
memória, afirmando que o que existem são “formas de
memória que não podem ser atribuídas diretamente a
uma divisão simples entre memória dos que viveram
os fatos e memórias do que são seus filhos”115. Se
se reservasse o termo para a memória da “primeira
geração depois dos fatos”, “a pós-memória é tanto
um efeito do discurso como uma relação particular
com os materiais da reconstituição; com os mesmos
materiais se fazem relatos decepcionantes e cheios
de furos ou reconstituições precárias que, no entanto,
sustentam algumas certezas”116.
No entanto, a obra de Julián Axat é, realmente,
um exercício de pós-memória? Ele está realmente a

del pasado resulta vicaria (en tanto siempre está mediada por la
interpretación o un relato), los hij@s viven ese pasado con una
intensidad vicaria mucho mayor que sus padres, en el sentido de una
“pos-memoria” y la necesidad de narrar la historia. Pos-memoria: como
memoria de la generación siguiente a la que padeció o protagonizó
los acontecimientos (memoria de los hij@s sobre la memoria de
los padres). Se trata de formas de la memoria que no pueden ser
atribuidas directamente a una división sencilla entre la memoria de
quienes vivieron los hechos y la memoria de quienes son sus hij@s,
por supuesto que haber vivido un acontecimiento y reconstruirlo
a través de informaciones no es lo mismo.” AXAT, Julián.
Ponencia en San Pablo. 2 jul. 2010. Disponível em <http://
coleccionlosdetectivessalvajes.blogspot.com.br/2010/07/
ponencia-en-san-pablo.html>. Acesso em 12 jan. 2013.
115 SARLO, Beatriz, op. cit, p. 112.
116 SARLO, Beatriz, op. cit, p. 113.
129
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
fazer esse tipo de reconstituição da história dos pais,
a tornar as difíceis e fragmentárias reconstituições do
passado em poesia? Parece-me que não.
O poeta Emiliano Bustos, em texto que escreveu
em apresentação da antologia que Axat organizou
de sua própria geração (Si Hamlet duda le daremos
muerte), e que o incluem, como a alguns outros hijos,
bem caracterizou que para esses poetas “a política,
por exemplo, já não é uma paisagem”; “A política e a
história ingressam pela própria experiência de muitos
dos poetas aqui reunidos”117.
De um lado, a experiência dos hijos permite-
lhes dizer que apresentam suas próprias memórias
sobre o terror de Estado: o fato de terem perdido os
pais e outros parentes, de terem tido, muitas vezes,
sua identidade negada ou subtraída marcou-lhes a
infância e representa a marca do terror de Estado em
sua história pessoal, inscrita nessa história coletiva.
Nesse sentido, suas subjetividades também foram
configuradas pelo terror, e isso os autoriza a falar
como testemunhas diretas da ditadura.
Por outro lado, a obra de Axat não se limita
a reconstituir relatos e a revisitar a ditadura: em
seu caso, configuram-se poéticas que constituem
117 BUSTOS, Emiliano. Papel picado, Kerouac y
Hamlet. In: AXAT, Julián. Si Hamlet duda le daremos
muerte: Antología de poesía salvaje. City Bell: Libros de la
talita dorada, 2010, p. 16.
130
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
narrativas novas, seja sobre fatos do passado, seja do
presente, movidas pela criação literária de aspirações
sociais de justiça. O papel desta poesia passa a ser
de criar símbolos eficientes para o desbloqueio das
imaginações jurídica e política.

À guisa de conclusão:

Após a palestra no SPLIT, Julián Axat publicou


mais dois livros de poesia: Musulmán o biopoética
(City Bell: Livros de la Talita dorada, 2013) e Rimbaud
en la CGT (City Bell: Livros de la Talita dorada, 2014),
e organizou uma antologia de poesia, La Plata Spoon
River (City Bell: Livros de la Talita dorada, 2013), toda
composta de poemas novos, especialmente escritos
para os mortos em grande inundação em La Plata.
Musulmán o biopoética surpreende pelo seu
perfil bipartido: a primeira metade corresponde a
poemas, em versos brancos e livres ou em prosa,
sobre menores pobres em conflito com as instituições;
a segunda parte apresenta os materiais de que os
poemas da primeira foram elaborados: trechos de
processos judiciais, recortes de jornais, falas de
diversas fontes, em uma forma que remete ao Livro
das Passagens de Walter Benjamin. As duas metades
realizam-se igualmente como poesia: a disposição
131
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
das fontes materiais do poema funciona como poema
e cumpre o papel de denunciar as instituições seja
por meio de seus próprios documentos, seja pela fala
desses menores ou de seus parentes.
Rimbaud en la CGT (City Bell: Livros de la
Talita dorada, 2014), ao apresentar em conjunto o
poeta do século XIX e a Confederação Geral dos
Trabalhadores argentina, ideia menos inusitada se
lembrarmos o que Rimbaud escreveu sobre o mundo
do trabalho e se recordamos seu interesse engajado
pela Comuna de Paris, logra transformar esse escritor
em um princípio poético de rebelião, em crítica de
esquerda ao próprio peronismo.
Termino este breve artigo mencionando uma
obra editada por Axat. Em 2 de abril de 2013, dois dos
rios da cidade transbordaram e a inundação chegou
a dois metros de altura. O governo local subestimou
as dimensões da catástrofe e divulgou um número de
mortes inferior ao acontecido:

Logo no 2 de abril o governo provincial


oficializou uma lista com o nome e
sobrenome de 51 pessoas falecidas
em consequencia da inundação. Com
o decorrer dos dias, o mesmo governo
iria dar por fechado aquele número.
O certo é que, um mês mais tarde, a
justiça computava 78 vítimas, número
que – a esta altura – não foi fechado,
pois resta investigar um procedimento
espúrio de ocultamento-adulteração

132
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
dos falecimentos118.

Julián Axat, como defensor judicial, tentou


investigar as mortes e foi, em represália, afastado
do caso, bem como o juiz, e sofreu ameaça de
impeachment. A antologia organizada, que remete
ao conhecido Spoon River de Edgar Lee Masters,
também se compõe de epitáfios; desta vez, ele se
dedicam aos mortos na inundação, inclusive aos que
o governo local tentou ocultar. O próprio livro foi uma
intervenção pública marcante, e foi lançado em uma
leitura pública com grande público, e foi um exemplo
da literatura não apenas como expressão, e sim
também como fonte de aspirações sociais de justiça.

Referências:

1. Obras poéticas de Julián Axat:

Peso formidable. Buenos Aires: Zama, 2003.

118 “Luego del 2 de abril el gobierno provincial oficializó un listado


con el nombre y apellido de 51 personas fallecidas como consecuencia
de la inundación. Con el correr de los días, el mismo gobierno iba a
dar por clausurada aquella cifra. Lo cierto es que, un mes más tarde,
la justicia computaba 78 víctimas, número que –a esta altura– no ha
sido clausurado, pues resta investigar un procedimiento espurio de
ocultamiento-adulteración de las defunciones.” AXAT, Julián. Prólogo.
In: AXAT, J. (org.) La Plata Spoon River (City Bell: Libros de la talita
dorada, 2013, p. 6.
133
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Servarios. Buenos Aires: Zama, 2005.

Médium (poética belli). Buenos Aires: Zama, 2006.

Ylumynarya. City Bell: Libros de La talita dorada,


2008.

Neo. Buenos Aires: El surí porfiado, 2012.

2. Outras referências:

ARGENTINA. COMISIÓN NACIONAL SOBRE LA


DESAPARICIÓN DE PERSONAS. Nunca Más. 8ª.
ed. Buenos Aires: Eudeba, 2009.

AXAT, Julián. Ponencia en San Pablo. 2 jul. 2010.


Disponível em < http://coleccionlosdetectivessalvajes.
blogspot.com.br/2010/07/ponencia-en-san-pablo.
html>. Acesso em 12 jan. 2013.

AXAT, Julián; AIUB, Juan. Nota del Editor: Tras la búsqueda


de la Rosa. PARGAS, Rosa María. Hubiera querido. City
Bell: De la Talita Dorada, 2011, p. 14.

AXAT, Julián. Prólogo. In: AXAT, J. (org.) La Plata Spoon


River. City Bell: Livros de la Talita dorada, 2013, p. 5-8.

BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório.


Brasília, 2014.

BUSTOS, Emiliano. 30 años, anotaciones, reposiciones.


In: FONDEBRIDER, Jorge. Buenos Aires: Libros del Rojas,
2006, p. 251-256.

BUSTOS, Emiliano. Papel picado, Kerouac y Hamlet. In:


AXAT, Julián. Si Hamlet duda le daremos muerte: Antología
134
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de poesía salvaje. City Bell: Libros de la talita dorada,
2010, p. 13-19.

FERNANDES, Pádua. Dar voz aos ossos: justiça de


transição e a poesia de Julián Axat. OLIVO, Luis Carlos
Cancellier de (org.). Anais do I Simpósio Direito e Literatura.
Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2011, vol. II,
p. 163-164.

FERNANDES, Pádua. Biopoder e biopoética na poesia


de Julián Axat: Ylumynarya e o genocídio na Argentina.
Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê,
Junho de 2012, p. 51-52. Disponível em http://w3.ufsm.br/
grpesqla/revista/dossie08/ . Acesso em 30 jun. 2013.

NOVARO, Marcos; PALERMO, Vicente. La dictadura


militar (1976-1983): Del golpe de Estado a la restauración
democrática. Paidós: Buenos Aires, 2006.

SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias. Trad. Rubia


Prates Goldoni; Sérgio Molina. São Paulo: Edusp, 2005.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e


guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo;
Belo Horizonte: Companhia das Letras, Editora UFMG,
2007.

WALSH, Rodolfo. El violento oficio de escribir. 2ª. ed.


Buenos Aires: Planeta, 1998.

135
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
136
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A ESCRITA LITERÁRIA EM FOUCAULT: DA
TRANSGRESSÃO À ASSIMILAÇÃO

Marco Antônio Sousa Alves

Qu’est-ce que c’est que penser, qu’est-


ce que c’est que cette expérience
extraordinaire de la pensée?

FOUCAULT. Débat sur le roman,


1964.

A literatura pode mudar nossas vidas e nossa maneira de


pensar? Qual o poder transgressivo da escrita literária?
Seria ela capaz de subverter a ordem e propiciar novas
experiências de pensamento? Essas questões tiveram um
lugar de destaque no pensamento de Foucault e receberam
um tratamento bem diverso em seu itinerário intelectual.
No início dos anos sessenta, a literatura exercia um
grande fascínio, servindo-lhe de contraponto ao marasmo
da fala institucionalizada da filosofia universitária. Era
na experiência literária que Foucault encontrava novas
formas de pensar, propriamente transgressoras e capazes
de, nas margens da ordem estabelecida, instaurar um
“pensamento do lado de fora” (pensée du dehors). Esse
entusiasmo, contudo, foi problematizado nos anos setenta,

137
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
quando Foucault passou a demonstrar grande desinteresse
e mesmo rejeição à “escrita institucionalizada sob a forma
da literatura”. São os discursos anônimos, tomados como
falas propriamente infames e marginais, que despertarão
o interesse de Foucault nessa época.
Neste artigo, pretendo analisar os motivos que
provocaram essa mudança. Entendo que ela reflete uma
nova concepção de poder, na qual não há mais espaço para
oposições simples, entre discurso/contradiscurso, ordem/
transgressão ou dentro/fora. Toda resistência, como foi a
experiência literária em um curto período, assume formas
provisórias e regionais, que produzem sem cessar novos
procedimentos de institucionalização, sendo, mais cedo ou
mais tarde, integrada e assimilada. Em suma, este estudo
encontra seu lugar no interior desse grande problema que
é a relação entre literatura e vida, e, mais especificamente,
entre a escrita literária e seu poder de transgredir ou de
instaurar algo novo capaz de transformar nossas maneiras
de pensar. Para tratar (ou tatear) essa questão complexa
e multifacetada, gostaria de oferecer uma pequena
contribuição, partindo de Foucault e, especialmente, de
como se deu no seio de seu pensamento uma mudança de
perspectiva quanto ao lugar ocupado pela escrita literária
como uma experiência transgressora. Acredito que essa
análise poderá contribuir para uma compreensão mais
adequada da força e dos limites que a literatura possui
como um meio de resistência e de produção de novas e
radicais experiências de pensamento.
Convém ressaltar que o foco do presente estudo

138
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
limita-se ao pensamento de Foucault dos anos sessenta
e setenta, deixando de lado os desenvolvimentos
posteriores que marcaram o “último Foucault”. No seio
de seus estudos dos anos oitenta sobre a constituição
de si, Foucault dedicou uma nova atenção à escrita
literária, em particular à chamada “escrita de si” (diários,
confissões, anotações pessoais, etc.). Contudo, mais do
que uma “volta”, entendo que há um deslizamento ou
desdobramento em seu pensamento sobre a literatura a
partir de outro ângulo, de modo que permanecem válidas
(ao menos parcialmente) sua visão crítica e sua concepção
de poder dos anos setenta. Com certeza a análise desse
período final do pensamento de Foucault constitui um
interessante canteiro de pesquisa, que escapa, contudo,
ao modesto objetivo deste texto.
O presente artigo está divido em três partes.
Primeiro (I), será analisado o interesse que Foucault
demonstrava pela escrita literária nos anos sessenta,
na tentativa de esclarecer qual o lugar da literatura e o
que exatamente entusiasmava Foucault. Em segundo
lugar (II), a análise recairá sobre o desinteresse que
Foucault passa a demonstrar pela questão da linguagem
e da escrita literária a partir dos anos setenta, procurando
explicitar as razões que o conduziram a essa mudança
de perspectiva. Por fim, na terceira e última parte (III),
procurar-se-á abordar, no seio desse desencanto com a
literatura, a emergência de um novo e diverso fascínio,
dirigido aos “discursos anônimos”, esses textos marginais
e não domesticados que servem de contraponto ao mundo

139
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
das belles lettres.

É inegável que a linguagem literária é um tema recorrente


nos primeiros textos de Foucault. Entre 1961 e 1970, ou
seja, entre História da loucura e A ordem do discurso,
há mais de vinte textos de Foucault sobre escritores
ou entrevistas que abordam temas literários. É preciso
reconhecer, contudo, que a questão da literatura aparece
em diferentes momentos nos textos de Foucault,
com múltiplos significados e servindo a fins diversos.
Como é característico em Foucault, ele está sempre
redimensionando suas análises, sua metodologia, seus
objetos de investigação e seus pressupostos. Mas, ainda
assim, é possível afirmar que o início dos anos sessenta
é o momento de maior proximidade de Foucault com a
literatura.
Apesar de ser visível nos textos de Foucault
do início dos anos sessenta uma grande atração pela
experiência literária, é preciso deixar mais claro o que
exatamente interessa Foucault. Mais do que a literatura,
como gênero ou forma de expressão artística, o que atrai
Foucault é a experiência de linguagem, ou, em outras
palavras, as experiências transgressoras de pensamento
que transitam nos limites da linguagem. Essas experiências
não remetem a algo pessoal e privado, inscrito no domínio
da interioridade, mas, ao contrário, colocam a própria
unidade do sujeito em questão e o pressionam para fora

140
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de si mesmo. Sendo assim, já nesse período, vemos em
Foucault um interesse pelas experiências de pensamento
que colocam em questão a linguagem e a posição
do sujeito. O interesse por outras formas de pensar
acompanha, de certa maneira, todo percurso foucaultiano.
Ele se manifesta, nesse primeiro momento, como um
grande entusiasmo pela escrita literária, assim como por
alguns temas tradicionais, quando se trata de pensar o
limite do pensamento, como a loucura e a morte. Em uma
conferência intitulada Literatura e linguagem, proferida
em Bruxelas em 1964 (que só veio a ser publicada
postumamente), Foucault deixou claro que a transgressão
ou a fala transgressiva (parole transgressive) é uma figura
exemplar e paradigmática daquilo que é a literatura.119
Outra advertência importante merece ser feita. Essa
forma de pensar transgressiva que encontra seu lugar na
literatura não deve ser compreendida em termos político-
partidários. É importante ressaltar que o caráter subversivo
ou transgressor que Foucault, nos anos sessenta, acredita
encontrar na literatura, não está associado a uma escrita
engajada, comprometida diretamente com uma causa
revolucionária. O “ato de escrever” (l’acte d’écrire) como
uma força de contestação nada tem a ver com a posição
política daquele que escreve. Tal possibilidade seria visível,
por exemplo, em Blanchot, cuja postura conservadora de
extrema direita nada teria diminuído da força transgressora
de sua escrita. Em suma, é a escrita que mantém, em si

119 Ver FOUCAULT. Littérature et langage, p. 104.


141
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
mesma, a função subversiva.120
Associado ao interesse pela literatura está o
desinteresse que Foucault nutria pela “grande Filosofia”.
O que incomodava Foucault era a assimilação da filosofia
a uma disciplina universitária que teria deixado de realizar
novas experiências de pensamento, perdendo assim sua
atitude crítica. Foucault acusa a reflexão filosófica de seu
tempo de permanecer presa a uma linguagem dialética,
fenomenológica e antropocêntrica, de modo a perder
sua capacidade contestatória e transgressora. Esse
desapontamento é a principal razão que fez com que
Foucault fosse buscar fora da filosofia, especialmente na
literatura, outras e novas experiências de pensamento.
Nessa postura, mais uma vez, a influência nietzschiana é
claramente sentida. Segundo Foucault, Nietzsche serviria
de inspiração para essa nova atividade filosófica, posto que
ele teria “multiplicado os gestos filosóficos”, indo buscar a
filosofia na literatura, na história ou na política.121
Em certo sentido, o interesse pela literatura não deve
ser entendido como um desinteresse pela filosofia, posto
que essas atividades são (para além de qualquer arbitrária
distinção institucional) intrinsecamente misturadas. O que
está no centro do debate, segundo Pierre MACHEREY
(1990), é o uso transgressivo da linguagem, o que pode
encontrar seu lugar em uma “filosofia literária” ou em uma
“literatura que pensa”. Levar a literatura a sério, como teria
120 Ver FOUCAULT. Folie, littérature, société, p. 982-
983.
121 Ver FOUCAULT. Michel Foucault et Gilles Deleuze
veulent rendre à Nietzsche son vrai visage, p. 580.
142
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
feito Blanchot e Bataille, é fazê-la sair da esfera da arte,
à qual ela está tradicionalmente vinculada, fazendo dela
uma forma de pensamento por excelência. Nesses termos,
o interesse de Foucault, quando olha para a experiência
literária, permanece sendo propriamente filosófico.
Pode-se dizer que há em Foucault uma espécie
de jogo entre a literatura e a filosofia. Nesse jogo, ele se
diz, por vezes, filósofo (tomando a filosofia em sentido
mais amplo, como uma experiência de pensamento), e,
outras vezes, ele enfatiza sua distância com relação à
filosofia (tomada em sentido estrito, como uma disciplina
universitária marcada pela forma historicista hegemônica
na França da época). Ao se relacionar com o grupo Tel
quel, Foucault, embora ressaltasse freqüentemente a
extraordinária convergência e ressonância existente entre
eles, não deixava também de observar a especificidade
de sua empreitada, que ele qualificava, ironicamente, de
“sem talento” (sans talent), e que consistia, basicamente,
em buscar na experiência da linguagem novas formas de
pensamento.122 Diante desse grupo de literatos e críticos,
Foucault mostrava-se um pouco sem jeito e assumia,
geralmente, uma posição de filósofo, mas sempre com
certa ironia, dizendo, por exemplo, que era um homem
ingênuo e desajeitado com sua “botina pesada de filósofo”
(gros sabots de philosophe).123 Em uma entrevista realizada
alguns anos depois no Japão, Foucault volta a insistir no
fato de que seu interesse estaria localizado na prática

122 Ver FOUCAULT. Débat sur la poésie, p. 423.


123 Ver FOUCAULT. Débat sur le roman, p. 366-367.
143
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
do filosofar, que ele qualifica então como a realização de
certas “escolhas originais” (choix originels), entendidas
como um pensamento mais fundamental em nossa cultura.
Tais escolhas, segundo Foucault, seriam mais visíveis, em
seu tempo, fora da filosofia, sobretudo na literatura, na
ciência ou na política, o que explica a extensão de seus
“gestos filosóficos” para além dos muros tradicionais da
disciplina-filosofia.124
Sobre essa relação entre filosofia e literatura, é
conveniente mencionar ainda a análise que Foucault
realizou de Bataille em um texto intitulado Prefácio à
transgressão, publicado em 1963 na revista Critique. Mais
do que um escrito sobre literatura, o ensaio apresenta
uma singular interpretação de Bataille como filósofo.
Segundo Foucault, Bataille teria pretendido, com sua
escrita fragmentária (que transita pelo ensaio, novela,
poesia e aforismos), fundar uma heterologia, ou seja, uma
ciência da experiência-limite, da transgressão dos limites.
Em sua leitura, Foucault situa a linguagem filosófica de
Bataille na “noite ensurdecedora”, no vazio deixado pela
experiência da finitude e da morte de Deus. É nesse
vazio que a linguagem de Bataille expande-se e perde-
se sem nunca cessar de falar. Contrariamente à “filosofia
dos nossos dias”, que é descrita por Foucault como
um “deserto” e uma “fala embaraçada”, a linguagem de
Bataille seria não-dialética, não-fenomenológica e não-
antropocêntrica, responsável por um desmoronamento do
sujeito, que, ao invés de expressar-se, vai ao encontro de

124 Ver FOUCAULT. Folie, littérature, société, p. 975.


144
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
sua própria finitude, de sua morte. É nesse contexto de
desmoronamento e de morte que a experiência singular
da transgressão encontra seu lugar, como um gesto que
concerne o limite e que é regido por uma obstinação, indo
em direção a uma linha que recua sempre, um horizonte
inalcançável.125
No coração da reflexão de Foucault sobre a literatura
nos anos sessenta está o problema do “ser da linguagem”
(être du langage). Essa expressão aparece pela primeira
no texto analisado acima, sobre Bataille e terá seu apogeu
em As palavras e as coisas e no famoso artigo de Foucault
sobre Blanchot que apareceu na revista Critique com o
título de O pensamento do lado de fora, ambos publicados
em 1966. O problema do ser da linguagem, ou seja, da
linguagem colocada em questão por si mesma, emerge
no seio da reflexão sobre o pensamento transgressivo,
entendido como aquele que transita perigosamente nos
limites da linguagem. De acordo com Foucault, as formas
extremas de linguagem que surgem, por exemplo, em
Bataille e Blanchot, atingindo os “pontos mais altos do
pensamento” (les sommets de la pensée), devem ser
reconhecidas em sua soberania e acolhidas de modo a
permitir a libertação de nossa linguagem.126 Vemos, nesse
momento, um Foucault extremamente entusiasmado pelo
potencial transgressor da experiência literária e por sua
capacidade privilegiada de atingir o ser da linguagem.
125 Ver FOUCAULT. Préface à la transgression (en
hommage à Georges Bataille), p. 263-265, 269, 277.
126 Ver FOUCAULT. Préface à la transgression (en
hommage à Georges Bataille), p. 268, 276.
145
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Mas que ser da linguagem é esse? Não se trata,
em absoluto, de algo fixo, estável, tido como uma essência
invariável que a literatura teria sido capaz de captar.
Ao invés disso, o ser da linguagem deve ser pensado
como um espaço vazio que nunca será preenchido e
objetivado, estando sempre em devir. No artigo dedicado
a Blanchot, Foucault ressalta que o ser da linguagem, que
se mostra no “pensamento do lado de fora”, não revela
jamais sua essência e nem pode ser tratado como uma
presença positiva, iluminadora.127 Como ressalta Judith
Revel, a exterioridade do lado de fora não é uma entidade
metafísica, mas sim uma experiência.128 Trata-se mais
propriamente de uma ausência que se retira o mais longe
possível, sem nunca ser alcançada, um espaço neutro no
qual nenhuma existência pode arraigar-se. Blanchot já
ressaltava, em O livro por vir, a importância da busca, do
movimento que caracteriza a escrita literária como uma
experiência que não é corretamente captada e designada
através da palavra ‘literatura’, que não deve ser concebida
como uma realidade bem definida ou uma atividade
específica. Segundo Blanchot: “a essência da literatura
está em escapar a toda determinação essencial, a toda
afirmação que a estabiliza ou mesmo a realiza: ela não
é nunca algo dado, mas está sempre a ser encontrada e
reinventada”.129
127 ver FOUCAULT. La pensée du dehors, p. 554, 565
128 ver REVEL. La naissance littéraire de la
biopolitique, p. 53.
129 BLANCHOT. Le livre à venir, p. 273. (Tradução
minha).
146
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Contudo, apesar desse caráter mutante, há
um traço que Foucault ressalta insistentemente e que,
sem ele, parece impossível qualquer tratamento do
ser da linguagem. Esse traço pode ser entendido como
o abandono de uma linguagem da subjetividade em
benefício de uma experiência da linguagem em si mesma.
É, em grande medida, por causa dessa característica
que a escrita literária radical pode ser considerada um
lugar privilegiado de emergência do ser da linguagem.
Nela, a linguagem apareceria em si mesma, justamente
em função dessa experiência na qual o sujeito retira-se,
deixando de ser a consciência fundadora que se vale da
linguagem como um simples meio de representação e de
expressão de sua interioridade. Segundo Peter Pál Pelbart,
apesar da clara inspiração blanchotiana, é importante
ressaltar também como Foucault toma posse da idéia do
pensamento do lado de fora e confere-lhe outra dimensão,
que aponta, sobretudo, para a questão da experiência da
linguagem sem sujeito fundador.130 Embora Blanchot já
falasse no neutro, nesse espaço anônimo sem a soberania
do sujeito, que envolve a passagem da primeira (eu) para
a terceira pessoa (ele), a experiência do lado de fora ainda
estava ligada, de maneira prioritária, à discussão acerca
da especificidade do espaço literário. Foi Foucault quem
ressaltou, explicitou e aprofundou a relação dessa questão
com o problema da fragmentação da unidade subjetiva. De
certa forma, como ressalta Tatiana Levy, Foucault tendeu

130 ver PELBART. Da clausura do fora ao fora da


clausura: loucura e desrazão, p. 159-160.
147
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
a tomar o pensamento do lado de fora, em seu traço mais
fundamental, como um pensamento que se mantém fora
de toda subjetividade fundadora.131
Em As palavras e as coisas, Foucault reserva um
lugar especial a essa questão, conferindo à experiência
literária o papel propriamente positivo de pensar o ser da
linguagem, algo que a arqueologia das ciências humanas
seria capaz de abordar apenas de forma negativa. Segundo
Foucault, a literatura, a partir do século XIX, manifestaria a
reaparição do “ser vivo da linguagem” (l’être vif du langage),
de modo que, através dela, “o ser da linguagem brilha de
novo nos limites da cultura ocidental e em seu coração”.
Em suma, a literatura parece guardar uma relação
privilegiada com o “ser próprio da linguagem” (être propre
du langage) ou com a “linguagem em seu ser bruto” (le
langage en son être brut). Foucault observa que, embora a
literatura (ou aquilo a que hoje chamamos literatura) possa
ser considerada algo muito antigo em nossa tradição,
que remonta a Homero, o isolamento de uma linguagem
singular chamada literatura é algo recente, que se inicia
no século XIX e caracteriza-se por uma referência ao puro
ato da escrita, o que seria visível na revolta romântica e,
sobretudo, em Mallarmé. Nessa linha, Foucault ressalta
a associação entre literatura e experiência da linguagem,
sustentando uma “intransitividade radical” (intransitivité
radicale) que faz com que a literatura torne-se uma “pura e
simples manifestação de uma linguagem”.132
131 ver LEVY. A experiência do Fora: Blanchot,
Foucault e Deleuze, p. 38-41, 53, 55, 67.
132 ver FOUCAULT. Les mots et les choses: une
148
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Mallarmé é evocado em As palavras e as coisas
para exemplificar essa tese de que o ser da linguagem é a
visível desaparição daquele que fala, de modo que quem
fala na literatura é a palavra ela mesma, e não um suposto
sujeito falante ou autor. Mallarmé é tido por alguém que se
apaga a si mesmo em sua linguagem, a ponto de pensar
em um discurso que se compõe a si mesmo, de modo
que, juntamente com Nietzsche, eles seriam responsáveis
por reconduzir violentamente o pensamento em direção à
linguagem em si mesma. Essa nova rota assumida pelo
pensamento pode ser associada à tese de fundo de As
palavras e as coisas, acerca da invenção recente e do fim
próximo do homem. Nietzsche e Mallarmé representam,
dentro desse projeto filosófico maior, o marco a partir do
qual podemos recomeçar a pensar “no vazio do homem
morto” (dans le vide de l’homme disparu).133
Mallarmé, aliás, é comumente citado como aquele
que enfrentou, talvez de forma pioneira, o problema da
despersonalização ou da impessoalidade literária, na qual
o autor renunciaria a qualquer poder ou privilégio autoral,
como vemos na famosa passagem retirada de Crise do
verso, de 1886, na qual se afirma que “a obra pura implica
no desaparecimento elocutório do poeta (la disparition
élocutoire du poète), que cede a iniciativa às palavras”.134
Posteriormente, em Um lance de dados jamais abolirá
archéologie des sciences humaines, p. 58-59, 134, 313.
133 ver FOUCAULT. Les mots et les choses: une
archéologie des sciences humaines, p. 317, 353.
134 MALLARMÉ. Crise de vers, p. 366. (Tradução
minha).
149
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
o acaso, de 1897, Mallarmé teria ainda rompido com a
própria linearidade tipográfica, em uma radical experiência
de linguagem na qual comumente se viu a elaboração de
uma “máquina de escrever” que destruiria a expressão e
aboliria o autor, afirmando que a escrita é, sobretudo, fruto
do acaso. É nessa linha que Mallarmé é freqüentemente
citado por Foucault, justamente para ilustrar a tese da
intransitividade da linguagem.135 Pode-se dizer, seguindo
Guilherme Castelo Branco, que Mallarmé é quem melhor
sintetiza as teses de Foucault sobre a literatura e sobre
o poder transgressivo de suas experiências com a
linguagem.136

II

A partir dos anos setenta (talvez antes, desde


1968), o tema da linguagem e da experiência literária, que
ocupava um lugar de destaque nas reflexões de Foucault,
praticamente desaparece, ou desloca-se radicalmente,
assumindo um papel bem diverso. Segundo Judith
Revel, o pensamento de Foucault pode ser originalmente
concebido sob o signo da literatura, pois foi ela que lhe
forneceu os meios para romper com a filosofia universitária
dos anos cinqüenta, foi ela também que fez emergir o
ato da escrita em si mesmo e, em contradição com sua
própria maneira de pensar, permitiu evitar um fechamento
135 ver FOUCAULT. Les mots et les choses: une
archéologie des sciences humaines, p. 316, 394; FOUCAULT.
La pensée du dehors , p. 565.
136 ver CASTELO BRANCO. Michel Foucault: a
literatura, a arte de viver, p. 321.
150
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
no discurso estruturalista. Sobre a questão do abandono
da literatura nos anos setenta, ressalta Revel: “mais que
de um desaparecimento, é de uma metamorfose que se
trata: Foucault não deixa de falar da literatura porque se
desinteressou, mas, ao contrário, porque ele estende a
uma esfera de pesquisa bem mais ampla os conceitos
de transgressão e resistência”.137 Ou seja, é em razão
de uma nova maneira de pensar o poder (e as formas de
resistência) que Foucault será levado a abandonar a tese
do privilégio da literatura.
Nos textos do final dos anos sessenta esse
deslocamento já se faz perceber. Porém, a partir de 1970,
esse processo fica ainda mais visível e intenso, chegando
Foucault a dizer que não dá a menor importância para
a instituição literária e que preferiria nem mais falar no
assunto. Para ilustrar essa postura, recordarei algumas
entrevistas concedidas por Foucault ao longo dos anos
setenta, nas quais o tema da literatura aparece. Foucault
chega a pedir a um entrevistador (G. Armleder) que não
faça questões relacionadas à literatura, à lingüística ou à
semiologia. Nessa mesma entrevista, Foucault expressa
sua vontade de afastar-se de certas questões abstratas,
como a literatura e a história das ciências, e diz que o
deslocamento de seu interesse para o problema das
prisões foi a saída que encontrou ao “cansaço” (lassitude)
que sentia com relação à coisa literária.138
Em outra entrevista, realizada no Japão em 1972, ao
137 REVEL. Histoire d’une disparition: Foucault et la
littérature, p. 65-73. (Tradução minha).
138 ver FOUCAULT. Je perçois l’intolérable, p. 1071.
151
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ser perguntado sobre seu interesse pela atividade literária
na França, Foucault diz que responderá de maneira “brutal
e bárbara” (brutale et barbare), confessando ter pouco
interesse pelos grandes escritores, como Flaubert ou
Proust, e afirmando estar cada vez mais desinteressado
pela “escrita institucionalizada sob a forma da literatura”
(écriture institutionnalisée sous la forme de la littérature) e
cada dia mais entusiasmado pelo discurso anônimo, das
palavras recusadas pela instituição literária. Nessa mesma
entrevista, espelhando-se na postura de Jean Genet, que
decidiu não mais escrever para o teatro e, passando diante
da Comédie-Française em Paris, disse que estava se
lixando, Foucault afirma ter vontade de dizer à instituição
literária e a toda a instituição da escrita que ele “não está
nem aí” (Je m’en fous!).139
Em uma entrevista concedida em 1975 e
curiosamente publicada com o título de “A festa da escrita”,
Foucault, ao ser perguntado se costuma ler muitos autores
contemporâneos, responde confessando que lê pouco,
mas que, antigamente, já tinha lido muito “disso que se
chama literatura”.140 Enfim, em uma entrevista concedida
em 1977, o entrevistador japonês (S. Hasumi) observa
que Foucault costumava falar muito sobre literatura no
passado, ao que Foucault responde, ironicamente, dizendo
que falava só “um pouquinho” (Oh! Beaucoup, beaucoup...
un petit peu!) e, sendo ainda mais irônico, diz que a razão
disso é que, naquela época, não sabia muito bem do que
139 ver FOUCAULT. De l’archéologie à la dynastique,
p. 1280-1281.
140 ver FOUCAULT. La fête de l’écriture, p. 1602.
152
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
estava falando e encontrava-se ainda em busca da lei ou
do princípio de seu discurso.141
Nas poucas vezes em que tocou no tema, com
raríssimas exceções, foi para criticar e demonstrar seu
desinteresse. Dentre as exceções a esse desinteresse
explícito pela literatura, encontra-se a apresentação que
Foucault redigiu para a publicação das obras completas
de Bataille em 1970. Entretanto, pode-se ver, nesse curto
texto, uma clara falta de entusiasmo pela literatura, ao
menos em comparação com outros textos do início da
década de sessenta. Foucault, ao elogiar Bataille como
“um dos escritores mais importantes de seu século”, não
deixa de sugerir que suas palavras foram assimiladas,
assumindo um gênero definido e entrando na história
da literatura. Embora reconheça que Bataille tenha feito
entrar o pensamento no jogo arriscado do limite e da
transgressão, Foucault mostra-se insatisfeito e ressalta a
necessidade de irmos além, de “aumentarmos sua obra” e
não ficarmos presos às mesmas experiências (que foram
importantes, mas que talvez tenham perdido seu potencial
transgressor).142 Convém lembrar também que o motivo
que levou Foucault a escrever essa apresentação é mais
contingente e estratégico (parte de um combate político)
do que propriamente intelectual. Nesse período, o ministro
do interior da França recorria com freqüência à lei de
proteção da juventude para censurar certas publicações e
vigiar os editores, de modo que se tornou comum o recurso
141 ver FOUCAULT. Pouvoir et savoir, p. 414.
142 ver FOUCAULT. Présentation, in Bataille (G.),
Œuvres complètes, p. 893-894.
153
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
a “prefácios protetores” (escritos por grandes intelectuais,
como já era nessa época Foucault) para viabilizar uma
publicação polêmica, como é o caso das obras completas
de Bataille.
Além dessa breve apresentação, outro texto que,
esse sim, constitui uma clara exceção nesse período,
consiste em alguns fragmentos de uma conferência que
foram publicados em 29 de maio de 1973 no Brasil, no
jornal Estado de Minas. No último fragmento desse texto,
aborda-se o lugar da literatura como uma nova forma
de pensamento, ressaltando-se que, na escrita literária,
o homem desapareceria em benefício da linguagem,
ou seja, a obra destruiria o autor, sendo Robbe-Grillet,
Borges e Blanchot citados como testemunhas desse
desaparecimento.143 Esse estranho texto fragmentário,
com o curioso e soberbo título “Foucault, o filósofo, está
falando. Pense”, está em claro descompasso com as teses
sustentadas por Foucault nesse período (refletindo mais
exatamente suas idéias do início dos anos sessenta), o que
me conduz à desconfiança de que, ou Foucault requentou
velhas idéias (provavelmente em razão do auditório e das
circunstâncias), ou talvez tenha sido realizado um recorte
deturpado e anacrônico daquilo que teria sido dito por
Foucault nessa passagem por Belo Horizonte.
De fato, como afirma Roberto Machado, “o tempo
do fascínio pela literatura tinha efetivamente passado”,144
143 ver FOUCAULT. Foucault, le philosophe, est en
train de parler, p. 1293.
144 ver MACHADO. Foucault, a filosofia e a literatura,
p. 123.
154
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
o que não significa que Foucault tenha deixado
completamente de falar da literatura, mas com certeza
parou de lhe conceder um tratamento privilegiado. As
questões do ser da linguagem e do pensamento do lado
de fora são abandonadas. Em suma, Foucault descarta,
já ao final dos anos sessenta, a idéia da literatura como
lugar privilegiado para a transgressão. Dentre os motivos
que teriam levado Foucault a essa mudança, entendo que
sua nova reflexão sobre o poder, realizada ao longo dos
anos setenta, é determinante. Abandonando suas teses
anteriores sobre o pensamento do lado de fora, Foucault,
ao tratar do lugar de onde fala o louco, afirma enfaticamente
que “nós estamos sempre no interior. A margem é um mito.
A palavra do exterior (parole du dehors) é um sonho que
não cessamos de prolongar”.145
Segundo Judith Revel, ao invés de um sistema
discursivo fechado e a suposição de um hipotético lado
de fora, o novo problema para Foucault passa a ser
a construção de um modelo no qual a distinção dentro/
fora ou lei/transgressão desfaz-se. É nesses termos
que Revel interpreta a passagem operada por Foucault
da transgressão literária à resistência política, sendo as
relações de poder descritas em termos de estratégias
e táticas e não mais redutíveis a um esquema dialético
(dentro/fora e transgressão).146 Também nessa direção,
ressaltando a nova complexidade dos jogos de poder,
145 FOUCAULT. L’extension sociale de la norme, p. 77.
(tradução minha).
146 ver REVEL. Michel Foucault: expériences de la
pensée, p. 113.
155
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
afirma Ângela Kury: “com a genealogia, a linguagem,
melhor, a literatura já não é mais um ‘contradiscurso’
ou algo situado nas bordas do poder. Ao contrário, os
discursos tanto podem contribuir para aumentar o controle
quanto para alargar a resistência”.147
Pensando em um quadro genealógico, a
possibilidade de uma resistência ou subversão deixa de
ser tratada nos termos de um contradiscurso. Não há
mais, de um lado, um discurso de poder, interior à ordem
estabelecida, e, de outro, um discurso contra o poder
tout court, que viria de fora ou transitaria pelas margens.
Ao invés disso, os discursos podem tanto intensificar os
controles quanto constituir pontos de resistência ou focos
de reação. O que está em jogo é uma nova concepção
de poder, que não permite mais imaginar uma saída ou
transgressão capaz de subverter a ordem e ir além, ao
menos não da mesma maneira. Embora seja possível
pensar em uma força transgressiva, ela assume a forma
de uma resistência sempre provisória, regional, que
produz sem cessar novos procedimentos de normalização
e de institucionalização. Assim, toda resistência ou
transgressão é, mais cedo ou mais tarde, integrada,
assimilada e ordenada, de modo que toda ruptura tem um
valor temporário e tende a sempre recomeçar, assumindo
novas formas. Nesse sentido, Foucault opõe a “dinástica
do saber” (dynastique du savoir), entendida como a
análise da relação entre os discursos e as condições
147 ver KURY. A transgressão da palavra:
considerações sobre a análise foucauldiana da linguagem,
p. 257.
156
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
históricas, econômicas e políticas de sua aparição, à
arqueologia do saber, que seria a descrição de um regime
de discursividade e sua eventual transgressão. Em suma,
a questão deixa de ser como transgredir ou subverter a
ordem estabelecida. A genealogia ou dinástica do saber
exerce sua função crítica de outra maneira, qual seja,
mediante o questionamento das evidências, a indicação
das contingências e a produção de um estranhamento.
O potencial crítico de Vigiar e punir, por exemplo, não
envolve um contradiscurso ou uma forma de transgressão
ou subversão, mas sim uma compreensão de como nossa
maneira de pensar e agir se constituiu, a partir de certas
práticas e discursos.
Nesses termos, segundo Foucault, poderíamos
dizer que a escrita literária exerceu, em um breve período,
uma força transgressora. Em uma conferência proferida
no Japão em 1970, Foucault situa essa breve experiência
da literatura como uma “fala absolutamente anárquica”
(parole absolument anarchique), “sem instituição” (sans
institution) e “profundamente marginal” (profondément
marginale), a um curto período do século XIX, quando
essa forma de escrita foi desinstitucionalizada para ser,
em seguida, novamente assimilada.148 Em outro texto
posterior, de 1977, Foucault ressalta que a literatura foi,
por um tempo (desde o século XVII, quando ela começa a
ser literatura no sentido moderno do termo), o discurso da
infâmia, no qual se dizia o que havia de indizível, de mais
secreto, intolerável e vergonhoso. Porém, como também

148 ver FOUCAULT. La folie et la société, p. 489-490.


157
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
observa Foucault, não devemos esquecer que essa
posição singular da literatura decorreu de certo dispositivo
de poder que marcou a economia dos discursos da
época.149
Porém, hoje em dia, ela teria sido totalmente
assimilada e desprovida de qualquer eficácia como forma
de resistência. Essa tese da assimilação da literatura e
da perda de seu poder subversivo é recorrentemente
expressa por Foucault ao longo dos anos setenta. Em uma
entrevista publicada no Japão em 1970, Foucault afirma
que a literatura tornou-se instituição e foi recuperada pelo
sistema, praticando-se hoje nas editoras comerciais e no
mundo do jornalismo, sendo sua pretensa capacidade
transgressora “uma pura fantasia” (un pur fantasme).
A sociedade burguesa seria, inclusive, tolerante com
relação ao que acontece dentro da literatura, sendo suas
travessuras sempre perdoadas, uma vez que seu poder
subversivo foi digerido e assimilado. Foucault ressalta,
assim, a necessidade de sairmos da literatura, de a
abandonarmos ao seu “magro destino histórico” (maigre
destin historique), definido pela sociedade burguesa à qual
pertence, afirmando que a mudança social ocorrerá fora
da linguagem, ou seja, a literatura é vista como uma arma
fraca demais para a força do inimigo a ser combatido.150
Nesse sentido, em uma entrevista publicada em
1976, é surpreendente perceber como a literatura deixa
149 ver FOUCAULT. La vie des hommes infâmes, p.
252-253.
150 ver FOUCAULT. Folie, littérature, société, p. 985-
986, 992.
158
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
inclusive de ser considerada uma aliada na luta para
desmascarar as relações de poder. Mesmo Sade (um de
seus escritores preferidos, antes visto como um libertário),
é descrito como um “sargento do sexo” (sergent du sexe),
um “disciplinador” (disciplinaire) que formulou o “erotismo
próprio a uma sociedade disciplinar” (l’érotisme propre à
une société disciplinaire).151
A assimilação da escrita literária é vista por
Foucault como apenas mais uma manifestação de um
processo mais amplo de assimilação ou domesticação dos
discursos pela ordem estabelecida, o que já teria ocorrido,
por exemplo, com a escrita filosófica. Podemos, em certa
medida, aproximar essa desvalorização da literatura, que
caracteriza o pensamento de Foucault dos anos setenta,
com a depreciação da filosofia feita por ele já desde os anos
cinqüenta. Ou seja, a crítica que Foucault fazia à filosofia,
que teria deixado de ser o lugar das novas e radicais
experiências de pensamento para se tornar um métier ou
uma pequena disciplina universitária, estende-se agora
também à escrita literária, que também teria perdido sua
força transgressora. Sobre esse ponto, em uma entrevista
de 1970, Foucault diz que, se até a literatura, que seria a
forma de escrita menos assimilada à ordem estabelecida,
perdeu sua força destrutiva, então todas as outras formas
de escrita já a perderam há um bom tempo. Foucault
confessa que sua dúvida quanto à função subversiva
da escrita teria nascido há tempos, concernindo tanto a

151 ver FOUCAULT. Sade, sergent du sexe, p. 1689-


1690.
159
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
filosofia quanto a literatura.152 Embora Foucault diga isso,
parece claro que, primeiro, ele duvida da filosofia (desde
os anos cinqüenta) e, apenas posteriormente, estende
essa crítica à literatura (em certa medida, no final dos
sessenta).

III

Ao invés da literatura e de seu discurso autoral domesticado


e assimilado, são, sobretudo, os discursos anônimos
que passarão a despertar o interesse de Foucault nos
anos setenta. Não devemos ver nesse interesse algo
absolutamente novo no pensamento de Foucault, pois,
desde a História da loucura (1961), ele analisa certos
discursos anônimos (dos leprosos, doentes e loucos).
Contudo, ao menos até As palavras e as coisas (1966),
Foucault ainda atribuía certo privilégio transgressivo à
linguagem literária e tendia a valer-se desse material
anônimo e marginal apenas como base para algumas de
suas pesquisas históricas. É inegável que, a partir de 1970,
Foucault passa a conceder uma importância bem maior
aos discursos anônimos, chegando a promover várias
publicações desse tipo de material, começando por Eu,
Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu
irmão (1973). Posteriormente, ele propõe a publicação de
uma antologia de textos que terminou por se tornar uma
coleção, intitulada As vidas paralelas (Les vies parallèles),
que incluí o texto de Herculine Barbin, chamada Alexina

152 ver FOUCAULT. Folie, littérature, société, p. 994.


160
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
B. (1978). Depois, com a colaboração de Arlette Farge,
Foucault publica ainda A desordem das famílias. Lettres
de cachet dos arquivos da Bastilha (1982).
Esses discursos, dos loucos, dos presos e dos
excluídos em geral, distinguem-se da fala institucionalizada
e controlada da literatura, da ciência e da filosofia. Os
discursos anônimos, justamente por serem marginais
e alheios, em certa medida, aos procedimentos de
controle dos discursos (apresentando um outro regime
de escrita, marcado pelo anonimato), seduzem Foucault
e são considerados perturbadores e instigantes. Mais
do que belos ou aprazíveis, são textos que nos deixam
perplexos e aturdidos. Em uma entrevista realizada
em 1971, Foucault recusa-se a dizer que os textos dos
presos possuem “grande beleza” (grande beauté), não por
desmerecê-los, mas porque isso significaria inscrevê-los
no “horror da instituição literária” (l’horreur de l’institution
littéraire), preferindo dizer apenas que há neles “coisas
perturbadoras” (des choses bouleversantes).153
Em A vida dos homens infames, texto escrito em
1977 como introdução para uma antologia de discursos
anônimos, Foucault afirma que essas vidas sem glória nem
fala, desprezadas e perdidas no anonimato, são capazes
de tocar-nos mais profundamente que as obras literárias.
Segundo Foucault, nenhuma personagem ficcional seria
tão intensa quanto essas figuras reais, sem qualquer
grandiosidade (santidade, heroísmo ou genialidade) e
destinadas a passar pelo mundo sem deixar qualquer traço

153 ver FOUCAULT. Je perçois l’intolérable, p. 1073.


161
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
(e que só chegaram até nós por força do acaso). Mais do
que escritores libertinos, essas vidas são propriamente
infames (infâmes en toute rigueur), ou seja, não suscitam
nenhuma admiração nem gozam de glória alguma. Seus
textos possuem uma baixeza (bassesse), uma miséria e
uma violência que nenhuma literatura poderia acolher.154
Em Vigiar e punir, essa assimilação e pobreza da
literatura, em comparação à transgressão e riqueza do
discurso dos homens infames, fica visível na distinção
traçada entre o “discurso do cadafalso” (discours de
l’échafaud) e a “literatura do crime” (littérature du crime).
O primeiro discurso corresponde às últimas palavras do
condenado, pronunciadas no seio do grande espetáculo
público do suplício, possuindo um caráter transgressor,
descontrolado, que permitia a irrupção de uma verdade
incômoda. Já o segundo discurso corresponde à reescrita
estética do crime, que o glorifica, embeleza e engrandece.
Foucault menciona os casos do poeta-assassino Lacenaire
e do famoso personagem, criminoso e gentleman, Arsène
Lupin, que estão ligados a uma espécie de arte das classes
privilegiadas, na qual a burguesia deleita-se com um prazer
novo. Essa literatura policial ou romance criminal, segundo
Foucault, domestica o potencial transgressivo do discurso
do cadafalso, retirando sua força e riqueza ao assimilá-lo
à ordem literária.155
E na contra-capa de Herculine Barbin, chamada
154 ver FOUCAULT. La vie des hommes infâmes, p.
239, 243, 250.
155 ver FOUCAULT. Surveiller et punir: naissance de la
prison, p. 79-82; 332, 335.
162
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Alexina B. (1978), que corresponde ao primeiro volume da
coleção As vidas paralelas, Foucault descreve seu projeto
de publicação dos discursos anônimos como o inverso
daquele levado adiante por Plutarco, das “vidas ilustres”,
que teria seu fundamento na autoridade dos autores
antigos.156 Essa inversão declarada por Foucault mostra
como ele procura nos discursos anônimos e infames um
outro regime de escrita. Podemos ver no homem infame
um inverso do autor, ou seja, um “sujeito” que, desprezado
e condenado ao anonimato, não tem qualquer poder sobre
sua fala.

Conclusão

Voltemos então à questão inicial deste estudo: a literatura


é capaz de mudas nossas vidas e nossa maneira de
pensar? Podemos atribuir a ela algum poder transgressivo
privilegiado? Seguindo o Foucault dos anos sessenta,
a resposta a essas duas perguntas seria um enfático
sim. Contudo, a partir dos anos setenta, Foucault retira
grande parte do poder antes conferido às experiências
com a linguagem perpetradas no seio da escrita literária.
Talvez a literatura ainda mantenha alguma capacidade
transformadora, crítica, mas não seria mais correto atribuir-
lhe qualquer tipo de poder transgressivo privilegiado.
Como foi visto, Foucault, ao desenvolver nos
anos setenta uma nova concepção de poder, tendeu
a desinteressar-se pela literatura, que passou a ser

156 ver FOUCAULT. Présentation, p. 499.


163
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
vista, essencialmente, como um discurso assimilado,
domesticado, tolerado e incapaz de alçar grandes vôos
transgressivos. Em busca de armas mais eficazes, como
os discursos anônimos, das vozes perturbadoras que
deveriam ter sido silenciadas, Foucault parece deixar
de lado a questão da escrita literária para sair em busca
de uma munição mais pesada, capaz de, ainda que
provisoriamente e de maneira regional, suscitar a crítica e
provocar o estranhamento indispensável para mudarmos
nossas maneiras de pensar e agir.
O aprofundamento da mudança verificada no
pensamento de Foucault entre os anos sessenta e setenta
com relação à literatura e seu poder transgressor oferece,
creio, uma base interessante para repensarmos o lugar
da literatura e seu potencial crítico nos dias atuais. Muitas
indagações poderiam ser feitas e, seguindo esta senda,
gostaria de terminar este breve estudo deixando algumas
questões no ar. A literatura publicada pelas grandes casas
editoriais teria sido realmente assimilada e domesticada?
E a literatura menor, que circula, sobretudo, pela rede
mundial de computadores, nas margens do sistema
editorial e das Academias, será que ela faz reviver essa
escrita transgressiva e perturbadora que tanto teria
encantado o Foucault dos anos sessenta? Será que ainda
se pode chamar de literatura a essas novas experiências
com a linguagem?

Referências

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
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167
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
CHOMÓN, PASTRONE, D’ANNUNZIO E
CABÍRIA: GÊNESE DE UM ÉPICO DE
TRANSIÇÃO

Paulo Roberto de Carvalho Barbosa

Introdução

Cinema e narração nem sempre andaram de mãos dadas.


Se aproximações entre filme e narrativa já ocorriam desde
o cinematógrafo Lumière, levou algum tempo até que
essa relação se consumasse. Em seus primeiros anos,
o cinema dependia do circuito de exibição de circos,
vaudevilles e cafés-concerto para ser visto e publicizado.
Transferia esse universo cultural para seus filmes, a fim
de atrair e fidelizar plateias, em sua maior parte advindas
das classes populares. Filmes com histórias contadas já
estavam aí presentes, mas não representavam a tendência
dominante. E não por menos: àquela altura, o cinema
estava desincumbido de narrar. Cabia-lhe apresentar
cenas burlescas, performances sensacionais, pornografia
ou truques ópticos, preferencialmente num único plano.
Para além da prodigiosa máquina de contar histórias em
que mais tarde se converteria, insinuava-se como um novo
e fascinante parque de diversões.
Em fins dos anos 1900, os filmes começaram a
168
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
tomar rumos mais decididamente narrativos. Esforçavam-
se por exibir universos ficcionais autônomos, criados
a partir de um mais estreito gerenciamento de sua
habilidade para contar histórias. Um inteiro novo modo de
narrar com imagens, em suma, emergiu e aperfeiçoou-
se na década de 1910 para consolidar-se somente na
década de 1920, quando se cristalizou no chamado estilo
clássico, consagrado pelos estúdios de Hollywood. Essa
nova ordem não se estabeleceu por acaso. Para que se
instalasse, foram necessárias mudanças profundas na
práxis cinematográfica dos primeiros anos, a começar pelo
modo como os filmes eram vistos e consumidos até ali.
Pelo fim da década de 1900, uma série de variáveis
de ordem industrial colaborou para conduzir a uma ruptura
radical com o modo de representação dos primeiros
anos. 157 O cinema expandia-se, e cumpria ampliar a sua
clientela, como convinha aos objetivos da indústria. Ao
público das classes populares, já cativo, recomendava
somar-se o das classes média e alta. Classes essas
avessas aos ambientes de projeção, por “vulgares” e
tomados por todo tipo de “iniquidades”. Aumentar o
número de salas não bastava para atrair aos cinemas
esses exigentes segmentos sociais. Também era preciso

157 Termo cunhado por Noël Burch para designar


um sistema peculiar de formas fílmicas. De maneira
genérica, modo de representação pode ser entendido como
sinônimo de linguagem. A rigor, o termo faz referência
ao vocabulário visual posto em prática pelo cinema em
um momento histórico anterior à cristalização do estilo
clássico.
169
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
“purificar” as projeções móveis, libertá-las de seus locais
originais de circulação e consumo. Não por outra razão, as
centenas de novas salas que se fizeram construir naquele
final de década já se equipavam para receber, com pompa
e circunstância, o público dos altos estratos.
As classes altas, contudo, ainda se mostravam
refratárias aos filmes. Ansiavam por algo mais artístico,
para além da estética ingênua que subsistia em boa
parte das películas. Impôs-se, nesse sentido, reformular
o produto filme, turbinar o seu conteúdo para atender ao
refinado gosto burguês. Aproximar o cinema da literatura e
do teatro culto, as artes então consideradas “nobres” pelas
camadas altas, foi uma boa providência nessa direção.
Em 1908, as subsidiárias francesas da companhia Pathé-
Frères, SCAGL (Société Cinématographique des Auteurs
et Gens de Lettres) e Film D’Art, inauguraram a prática
de contratar dramaturgos conhecidos e grandes atores
para trabalhar em suas produções. Começava-se a dar
um status de arte aos filmes, que se preparavam para
assumir um lugar de predileção entre os entretenimentos
de massas do mundo moderno.
Outra providência para livrar os filmes do ambiente
ao qual a princípio estiveram ligados foi trabalhar a
sua forma, de modo a torná-los narrativamente mais
compreensíveis. Iniciativas nesse sentido perpassaram
a década de 1910. Oscilando entre uma estética
espetaculosa, própria dos primeiros anos, e outra, na
qual os procedimentos narrativos se sofisticavam, os
filmes, sobretudo na primeira metade dos anos 1910,

170
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
incorporaram modos de representação distintos entre si.
Em parte espetáculo esfuziante, em parte veículo para
contar histórias, o cinema desse período resultava híbrido,
“impuro”, tensionado entre práticas cinematográficas
nem sempre convergentes. Recebeu do historiador Tom
Gunning, por isso, a denominação de cinema de integração
narrativa, termo que define uma fase na qual os planos
buscaram, cada vez mais, integrar-se em sequências
narradas, pondo-se em relação de interdependência uns
em relação aos outros.
No início dos anos 1910, diversas companhias
europeias seguiram o exemplo da SCAGL e da Film D’Art,
indo buscar, junto à literatura e ao teatro, o prestígio de
que precisavam para converter suas películas em produtos
dotados do carimbo de arte. Criada em Turim, num tempo em
que essa cidade passava por uma forte industrialização, a
Itala Film deu origem a uma vasta filmografia, composta de
dramas, comédias, épicos e filmes de aventura. Os filmes
dessa produtora também se deixaram percorrer pelas
tensões entre narração e espetáculo comuns à filmografia
europeia dos anos 1910. Tensões que aparecem com
especial destaque no filme Cabíria (Giovanni Pastrone),
épico realizado em 1914 com a intenção manifesta de
aproximar cinema e literatura, valendo-se, para isso, da
assinatura de um famoso escritor, o poeta, romancista e
demagogo nacionalista Gabriele D’Annunzio.
Referência na história do cinema pela ousadia de
seu projeto artístico, Cabíria é um dos primeiros produtos
da parceria entre o diretor piemontês Giovanni Pastrone

171
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e o diretor de fotografia espanhol, Segundo de Chomón.
Tipicamente um filme de transição, permite vislumbrar
as contradições inerentes a esse período acidentado,
irregular, no qual o cinema buscava afirmar-se como um
meio narrativo, sem, contudo, deixar de mostrar elementos
de puro gozo estético, mais atinentes aos filmes dos
primeiros anos. O presente artigo examina a realização
de Cabíria à luz dessas contradições, focalizando as
contribuições dos principais personagens envolvidos em
sua construção, com ênfase para o trabalho de Segundo
de Chomón, responsável pelos efeitos especiais e pela
iluminação do filme, de grande influência no cinema
narrativo que então se inaugurava.

I – Cinema à la Pastrone

Em 1907, o piemontês Giovanni Pastrone andava por


Turim em busca de emprego. Contador, violinista e fluente
em três idiomas, bateu à porta da Carlo Rossi & cia.,
produtora fundada em 1905 por dois sócios a princípio
envolvidos na comercialização de um imprestável sistema
de telegrafia sem fio.158 Com seus filmes já circulando em
âmbito internacional, a Carlo Rossi & cia. precisava de um
funcionário poliglota para o seu setor de correspondência.
158 Com dois anos de atividade, a Carlo Rossi quase
fechou as portas, tendo em vista o comportamento
perdulário do fundador, Rossi, pródigo em gastar os lucros
da empresa em Paris. Mais detalhes sobre a fundação da
Itala Film, ver USAI. Giovanni Pastrone: gli anni d’ oro del
cinema a Torino.
172
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Interessou-se pelas habilidades linguísticas de Pastrone,
e o piemontês foi imediatamente contratado. Na Carlo
Rossi, Pastrone foi rápido em perceber a situação de
descontrole financeiro da empresa, passando a ocupar-se
também de sua contabilidade. Os bons resultados de sua
gestão catapultaram-no da contabilidade para os assuntos
técnicos e de produção, e, em poucos meses, já galgava o
posto de executivo-chefe da firma. Seus métodos, porém,
entraram em choque com os do fundador Rossi, este
último mais hábil em dissipar os lucros da empresa do
que em dar-lhe um melhor gerenciamento. O desencontro
entre os dois levou a produtora a uma liquidação precoce
e, não obstante a saída de Rossi, Pastrone decidiu, com
outros dois ex-sócios, dar continuidade aos negócios.
Rebatizada para Itala Film, a firma voltou a operar naquele
mesmo ano, para se tornar, sob o controle do piemontês, a
segunda mais importante produtora em atividade na Itália.
Ao final dos anos 1900, a Itala Film engatava um
ritmo frenético de produção. Embalava-se pelas comédias
do ator cômico André Deed, trazido dos estúdios Pathé-
Frères e sucesso na Itália com seu personagem Cretinetti.
Dramas e filmes históricos também compunham a
filmografia da casa. É de 1910, por exemplo, A queda
de Troia (La caduta de Troia, Pastrone/Luigi Romano
Borgnetto), película baseada na Ilíada grega. Descrito
pela publicidade da época como uma grande produção
histórico-mitológica, “com centenas de figurantes, cenas
monumentais e cenas de incêndio”,159 este foi o primeiro

159 TOFETTI. Pastrone em Turín o la Ópera Lírica en


173
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
empreendimento “colossal” da Itala Film. 160 Com inéditos
30 minutos de duração, num tempo em que eram raros
os filmes de dois rolos, foi exibido na íntegra nos Estados
Unidos, causando sensação. A boa receptividade da
película entusiasmou Pastrone, levando-o a pensar em
outros projetos colossais para a sua produtora.
Em 1912, estreava Quo Vadis (Enrico Guazzoni),
da produtora romana Cines, mostrando cristãos lançados
às arenas para servirem de almoço a leões. A esse filme
bíblico, seguiu-se a superprodução Gli ultimi giorni di
Pompeii (Mario Caserini/Eleuterio Rodolfi, 1913), épico
histórico de proporções monumentais. De grande impacto
visual, as cenas de incêndio e destruição do filme causaram
uma forte impressão em Pastrone, que foi tomado pelo
desejo de realizar uma fita tendo como pano de fundo o
esplendor glorioso da Roma Antiga. No lugar da erupção
do vulcão Vesúvio, sua película traria a eclosão do Etna
como uma das atrações-chave, articulando-se através
de um enredo romântico. Tal projeto começou a sair dos
rascunhos de Pastrone para ganhar a forma de filme no
segundo semestre de 1913. No ano seguinte, tornou-se
um dos maiores sucessos de bilheterias nos Estados
Unidos, ficando em cartaz, no país, por cerca de um ano.
Pelo início da década de 1910, o cinema italiano
vivia uma fase de afirmação. Granjeava fama sobretudo
la época del automóvil, p. 63.
160 Filmes de duração mais longa do que um rolo (15
minutos), com temáticas históricas, mitológicas ou bíblicas.
O gênero colossal foi inaugurado em 1908, com Os últimos
dias de Pompeia (Arturo Ambrosio e Luigi Maggi).
174
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
com os épicos colossais, de grande aceitação no mercado
externo. Internamente, porém, a atividade ainda carecia de
legitimar-se, sobretudo perante a burguesia italiana, que
lhe opunha forte resistência. Aproximar a produção da Itala
Film das classes altas figurava, pois, entre os objetivos
de Pastrone, que não se fez de rogado em investir na
qualidade literária de suas películas. Com esse propósito,
viajou até Paris, onde então se fixava o escritor italiano
Gabriele D’Annunzio,161 para convidá-lo a participar de seu
empreendimento colossal. D’Annunzio recebeu o convite
com pouco entusiasmo: não nutria grande respeito pelo
cinema, chegando mesmo a depreciá-lo. Mas passava
por uma situação financeira delicada e aceitou a oferta do
piemontês. Sua tarefa seria redigir, pela vultosa quantia
de 50.000 francos, os letreiros daquele épico ainda sem
nome e já em andamento no estúdio da Itala Film.
Além de elaborar os letreiros da película, D’Annunzio
deveria batizar os personagens do filme, providenciar-lhe
um título e assiná-lo. Sofonisba, Karthalo, Sifax, Fulvius
Axilla e Maciste foram alguns dos sonoros nomes dados
161 Formado em Filosofia e Letras, D’Annunzio foi um
escritor prolífico. Seu trabalho teve impacto na Europa e
influenciou gerações de escritores italianos. Decadentista,
esta obra contém elementos simbolistas e naturalistas e
é também marcada por um forte nacionalismo. Nos anos
1920, o furor patriótico dos escritos de D’Annunzio consistiu
numa das fontes mesmas de inspiração do fascismo.
Mussolini chegou a copiar-lhe o estilo, adotando a saudação
criada pelo escritor, a sua autonomeação como duce (líder),
além da sua tendência para replicar a estética do Império
Romano.
175
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
pelo escritor aos personagens do mamute italiano. E para
intitulá-lo, o vate escolheu Cabíria – “a filha das chamas” –,
protagonista de uma trama girando em torno do antagonismo
entre Roma e Cartago durante a segunda Guerra Púnica,
marco fundador da civilização europeia .162 Para o escritor,
a menina Cabíria encarnaria uma criatura mítica, capaz de
atravessar incólume os “ardores do destino e de evocar
os demônios das profundezas vulcânicas”, metaforizando
a expansão do Império Romano no III século A/C. O título
estaria justificado no simbolismo dannunziano, no qual
a imagem do fogo, “inflamando as massas e forjando a
têmpera dos povos”, ocupava uma posição central.

II – O homem dos mil truques

A Itala Film soube fazer bom uso da estética flamejante de


D’Annunzio. E uma peça fundamental nessa empreitada foi
o espanhol Segundo de Chomón, ex-diretor da companhia
Pathé-Frères, fotógrafo, iluminador e experto em truques
e pirotecnias. Chomón fora chamado à produtora de
Pastrone em 1912, em seguida à realização de A queda
de Troia. Foi só então que o piemontês despertou para a
necessidade de ter consigo, na firma, um especialista em
efeitos especiais: muito embora bem recebido nos Estados
162 O enredo arquitetado por D’Annunzio encerrava
também uma forte carga ideológica, já que a Itália vinha
de uma guerra imperialista com a Turquia. A vontade
expansionista do país da bota (mas também de outros países
europeus) figurou entre os motivos para a deflagração da I
Guerra Mundial.
176
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Unidos, A queda de Troia atraíra críticas negativas naquele
país, devido às suas muitas imperfeições técnicas. Um
experto em fotografia do porte de Chomón figuraria como
crucial, enfim, a produções cuja trama se apoiasse em
visualidades fantásticas ou espetaculares. Como a que,
naquele momento, andava pela cabeça de Pastrone.
Cabíria, visão histórica do terceiro século antes de
Cristo, estreou em abril de 1914. A despeito da complexa
rede de esforços necessária à sua gênese, o filme teve
a sua autoria integralmente atribuída a D’Annunzio, para
a compreensão da época, responsável único pela sua
realização. O escritor não se fez de rogado em alimentar
tal crença, invocando-se em demiurgo do colosso, tendo
sido necessários mais 50.000 francos para silenciar a
explosão egoica do vate. A sua colaboração para o filme,
no entanto, não foi além da redação de letreiros para
imagens que, em boa parte, estavam rodadas antes de sua
adesão ao projeto.163 Para uma película cujo grande trunfo
é a visualidade espetacular, certamente mais decisiva foi
a participação do truquista Chomón, que encontrou, em

163 Sánchez Vidal registra o episódio segundo o qual


D’Annunzio teria escrito o verso “no lombo de seu cavalo
branco” para determinada cena do filme, descartado em face
de o cavalo da cena ser negro. D’Annunzio reagiu à recusa
pedindo que rodassem a cena novamente ou que pintassem
o cavalo de branco nos fotogramas. Recebeu como resposta,
porém, a pergunta se não seria melhor simplesmente mudar
seu verso, ao que D’Annunzio ripostou atirando sua pena
contra a parede, deixando para outra ocasião a pérola verbal.
(VIDAL. El cine de Chomón, p. 159)
177
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Cabíria, seu maior desafio e êxito profissional até aquele
momento.
A primeira participação de Chomón no filme foi
como iluminador. Cabíria consistiu num marco em matéria
de iluminação artificial na Itália, já que, antes dele, não
era comum iluminar as encenações, que resultavam
repletas de sombras imprevistas. Aqui, ao contrário, há
planos em estúdio e à luz do dia de extrema limpidez
visual. Para as cenas mais espetaculares, como a erupção
do Etna e o sacrifício ao deus Moloch, Chomón utilizou
doze lâmpadas de cem amperes, multiplicando o efeito
luminoso mediante grandes biombos forrados com o
papel de estanho que envolvia a película virgem vinda dos
Estados Unidos. Com isso, produziu um claro-escuro de
poderoso efeito dramático, numa iluminação precursora
de filmes cuja enunciação visual tem a luz como elemento
de protagonismo, conforme nota o historiador Nestor
Almendros.164
Em sua versão original, Cabíria teria perto de
três horas de duração. Algumas cenas se perderam ou
foram suprimidas,165 no entanto, e a cópia hoje disponível
conta com 126 minutos, divididos em cinco episódios,
à maneira de uma ópera. O primeiro episódio mostra o
cotidiano de família romana que vive à sombra do Etna,
na Sicília, deleitada com seu mais novo membro, a
164 VIDAL. El cine de Chomón, p. 163.
165 Nos anos 1930, a censura de Mussolini vetou a cena
em que a menina Cabíria aparece nua e erguida pelos braços
de um sacerdote, tendo o fogaréu da estátua de Moloch por
detrás.
178
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
pequena Cabíria. Ocorre a súbita eclosão daquele vulcão,
causando vasta destruição e a separação de Cabíria de
seu núcleo familiar. Chomón interveio nesta sequência
para construir uma erupção de grande impacto, obtida
através de três imagens combinadas numa só, por meio
de sobreimpressões. A primeira imagem é a de explosões
luminosas sobre um fundo negro, pois trata-se de uma
cena noturna. A segunda é a do cone do vulcão, construído
a partir de maquete idêntica ao Etna real e sobreimpressa
ao fundo negro. A terceira imagem aparece em primeiro
plano, sobreimpressa no canto direito, onde se veem
centenas de figurantes fugindo do rio de lava. Nosenzo
esclarece ter sido essa trucagem realizada por meio da
truca, aparelho que permitia um maior controle da múltipla
exposição, não sendo mais necessário voltar o filme na
máquina como nos primeiros anos do cinema.166
Já nos anos pré-cinematógrafo, erupções
vulcânicas integravam o cardápio regular de dioramas e
lanternas mágicas. Tornaram-se frequentes também logo
após o advento do cinema fotográfico, aparecendo em
imagens que buscavam reconstituir eclosões célebres,
como a do monte Pelee, na Martinica, em 1902. O
próprio Chomón havia construído um vulcão em chamas
para Excursion a Jupiter, filme de truques de 1909. À
diferença dessas imagens, contudo, a erupção do Etna,
em Cabíria, destaca-se pelo verismo, obtido graças a uma
técnica superior. Associada à ferramenta da montagem, a
explosão vista no filme é crível o bastante para ajustar-se

166 VIDAL. El cine de Chomón, p. 106.


179
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ao seu discurso narrativo, dentro do qual figura como um
dado quase natural.
Cabíria, como se disse, é um filme de transição,
contendo muitos elementos do chamado cinema de
atrações.167 Nesse sentido, procura apoiar-se em
visualidades espetaculares, como a erupção mesma do
Etna, para garantir a atenção do espectador. É o que se
verifica também no segundo ato, quando, sequestrada
pelos fenícios, a pequena Cabíria escapa de ser
sacrificada ao deus Moloch. Para a sequência, Pastrone
mandou construir um monstro de três olhos e enorme
boca servindo de entrada para o templo da divindade
cartaginesa. Além do templo de generosas proporções, o
diretor ainda providenciou uma estátua zooantropomórfica
de Moloch para o seu interior. Dotada de cabeça de touro,
corpo humano e asas de pássaro, a estátua representava
o Deus do “fogo purificante”, somente saciado quando
lhe eram lançadas prendas vivas, em honra de Cartago.
Assustador, o Moloch de Cabíria possuía uma abertura
na barriga, por onde se introduziam crianças, em bizarras
oferendas rituais. Chomón usou de labaredas, muita

167 Termo criado pelo historiador Tom Gunning para


denominar o conjunto de práticas cinematográficas existente
no período anterior à emergência do cinema narrativo, a
partir de 1908. As principais considerações de Gunning
acerca do cinema de atrações encontram-se no artigo The
cinema of attractions: early film, its spectator and the avant-
garde, publicado pela primeira vez na revista Wide Angle
(1986) e republicado, com diversas correções, no livro Early
Cinema: Space, frame, narrative.
180
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
fumaça e luz contrastada para emprestar uma atmosfera
terrorífica a essas cenas, cujo efeito dramático se vê assim
amplificado. Encomendada por Pastrone a um amigo
maestro, a Sinfonia do fogo colaborava para galvanizar as
sensações que presidem a sequência, numa fusão entre
som e imagem muito eficaz para o universo simbólico do
filme. 168
Cabíria é salva do sacrifício a Moloch por Fulvio
Axilla, ajudado por seu escravo, o gigante Maciste. No
filme, Maciste é interpretado por Bartolomeo Pagano,
estivador analfabeto descoberto por Pastrone no porto
de Gênova, onde era conhecido pela força extraordinária.
Trata-se de um herói potente o bastante para entortar as
barras de ferro da janela de uma prisão e para, sozinho,
fazer girar a enorme pedra de um moinho, entre as muitas
façanhas que perpetra. Ao fim e ao cabo, a figura do
gigante consistiu num dos principais motivos pelos quais
Cabíria terminou lembrado pelo público. E tal foi o sucesso
da personagem, que Pastrone dedicou-lhe uma série de
novos títulos, nos quais Maciste apareceria envolvido em
trepidantes aventuras, repletas de demonstrações de força
física.
Cabíria traz, ainda, diversas situações baseadas
em passagens históricas, ou supostamente históricas,

168 A Sinfonia del fuoco, de estilo wagneriano, é de autoria


de Ildebrando Pizzetti, músico que teve receio de ver seu
nome associado ao cinema. Recusou-se a escrever o restante
das cerca de 600 páginas que lhe foram encomendadas para
o filme, pois isto “desonraria seu nome”, como explicou em
carta a D’Annunzio. Ver VIDAL. El cine de Chomón, p. 160.
181
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
tais como, no quarto episódio, a lenda segundo a qual o
matemático Arquimedes teria conseguido deter o avanço
de navios romanos por meio de um sistema de espelhos
côncavos, capazes de fazer convergir raios solares ao
casco daquelas embarcações. Chomón realizou esta
sequência alternando planos de Arquimedes orientando os
homens na manobra dos espelhos, a planos dos navios em
chamas. O desastre é visto a partir de navio que queima ao
ser atingido por um feixe de luz inserido na película através
do truque da sobreimpressão. Para finalizar a sequência,
há o naufrágio em miniatura dos navios romanos no mar
de Siracusa, combinado à sobreimpressão das muralhas
gregas em primeiro plano, de onde Arquimedes controla
seus espelhos. Esse último truque, contudo, não parece
muito convincente, pois, como referiu jornal da época, “[...]
pode-se falsificar muita coisa, como montes e vulcões,
mas não se pode falsificar o mar [...]”.169

III – “Cabíria movement”

É impossível falar em Cabíria sem mencionar os seus


muitos movimentos de câmera, de grande influência no
período silencioso. Velho conhecido de Chomón, o travelling
lateral havia sido usado pelo espanhol, em sua fase Pathé,
em filmes como La vie et passion de Jesus Christ (Zecca/
Nonguet, 1905) e A galinha dos ovos de ouro (Gaston
169 NOSENZO. Manuale tecnico per visionari: Segundo
de Chomón in Itália, p. 47. Do original em italiano: se si può
falsificare ogni cosa, monti e vulcani compresi, no si può
falsificare il mare.
182
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Velle, 1905), dentre outros. Em Cabíria, porém, o recurso
é empregado de maneira mais sofisticada, integrando-
se à diegese. Aqui, a câmera parte de um plano geral
e desloca-se lentamente para fixar-se num detalhe em
particular. Como na cena em que Arquimedes pensa num
meio de deter o avanço marítimo dos romanos. A tomada
escrutiniza o laboratório do matemático, à medida que se
aproxima para mostrá-lo às voltas com o problema dos
espelhos côncavos. A câmera entra no laboratório, passa
em revista o espaço e detém-se no rosto de Arquimedes.
O espectador é convidado a “participar” da cena pelo
olho da câmera, que penetra pelo interior do plano para
focalizar a figura do matemático. Entrevistado por Georges
Sadoul, Pastrone explicou o uso do recurso em Cabíria:
“[...] mediante o carrello170 in avanti, fazia avançar a câmera
obliquamente [...] em direção ao protagonista, isolando-o
pouco a pouco da massa indistinta para em seguida trazê-
lo ao primeiro plano”.171
Usado 40 vezes na película, quase sempre com
funções narrativas, o travelling desempenha um papel
central em Cabíria. Pastrone buscava reconstituir a
antiguidade romana de modo grandioso: templos de
dimensões monumentais, esculturas cenográficas colossais
e personagens transitando por esses cenários consistiram
na grande preocupação do diretor ao elaborar o filme.
Exibicionista, a empreitada não excluía que os cenários
fossem efetivamente habitáveis, providência necessária
170 Carrinho, em português.
171 NOSENZO. Manuale tecnico per visionari: Segundo
de Chomón in Itália, p. 70.
183
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
para tornar a história inteligível. Conciliar verossimilhança
narrativa e exibicionismo: eis a difícil operação posta em
prática em Cabíria. Um dos meios criados para chegar a
isso foi conjugar a profundidade cenográfica das imagens
à sua profundidade fotográfica. E o travelling era a solução
perfeita para tanto: deslizando sobre trilhos, a câmera
entrava cenário adentro, explorando a profundidade de
campo da imagem. O procedimento superava, finalmente,
os cenários pintados dos primeiros filmes: como nota Silvio
Alovisio, tratava-se de um meio de vencer “a enganosa
profundidade do fundo pintado (pesada herança do palco
teatral) e construir cenografias tridimensionais, sem zonas
proibidas”172.
Os travellings narrativos, os truques ardilosos
e a elaborada cenografia fizeram de Cabíria objeto de
interesse de público, crítica e cineastas na Europa e do
outro lado do Atlântico. Conta-se que, nos Estados Unidos,
o diretor David W. Griffith aguardou com ansiedade a
estreia do colosso italiano, tendo adquirido uma cópia da
película para estudar suas técnicas e efeitos. Se não há
comprovação sobre a compra dessa cópia, conforme o
depoimento de Karl Brown, câmera de Griffith, o diretor
teria tomado o primeiro trem com destino a São Francisco
para, junto com sua equipe, comparecer à première de
Cabíria.173 A admiração pelo filme de fato não foi negada
por Griffith, e a influência de Cabíria ficou patente em
títulos como Judith of Bethulia (1914) e Intolerance (1916).
172 TOFETTI. Pastrone em Turín o la Ópera Lírica en
la época del automóvil, p. 89.
173 VIDAL. El cine de Chomón, p. 176.
184
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Esses longas-metragens griffithianos replicam não apenas
o travelling, mas também a cenografia espetacular do
filme. Particularmente em Intolerance, o travelling é visível
no trecho que mostra a abertura das portas de Babilônia e
o conflito entre Belshazzar e Ciro, rei da Pérsia.
Com efeito, a Itala Film assumiu uma posição de
vanguarda ao lançar um filme das proporções de Cabíria
em âmbito internacional. O longa monumental colaborou
para a difusão e afirmação de um formato cinematográfico
àquela altura incomum nos Estados Unidos, onde
vigorava o império dos filmes de um só rolo. Também seus
movimentos de câmera causaram frisson, levando os
norte-americanos a se perguntarem: “como fizeram isso?”.
Diversos fatores colaboraram, enfim, para o sucesso de
Cabíria nos Estados Unidos, onde o filme manteve-se
em cartaz por cerca de um ano, sendo visto por cerca de
500 mil pessoas. Determinante para esse sucesso, sem
dúvida, foram as novas técnicas empregadas por Chomón,
com sua iluminação dramática, seus truques integrados à
narrativa e seus “travellings estereoscópicos”, como os
denominou Pastrone, elementos nada comuns ao cinema
daquela altura.

IV – Conclusão

O que dizer da participação de D’Annunzio em Cabíria?


Foi sobretudo útil como ferramenta de marketing: Cabíria
deveu parte de seu êxito nos Estados Unidos à assinatura
do vate, cuja fama e amizades no meio artístico colaboraram

185
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
para estimular as exibições da película naquele país.
Se houve um reparo ao colosso italiano, entretanto, foi
precisamente quanto aos letreiros de D’Annunzio. Seus
versos pomposos, rebuscados, cheios de símbolos
e alegorias verbais revelaram-se pouco ajustados a
um filme que funcionaria melhor se submetido a uma
narratividade mais estrita. Longos e tediosos, os letreiros
não contribuem, de fato, para o melhor entendimento dos
acontecimentos vistos na película. A trama intrincada,
composta de diferentes linhas de ação enoveladas entre si
também colabora pouco para uma imersão sem traumas
do espectador na diegese narrativa. Homem de letras,
D’Annunzio, enfim, nem mesmo se dava ao trabalho
de assistir aos filmes que levavam a sua assinatura.174
Passava ao largo das especificidades da linguagem em
gestação no cinema, tendo declarado, certa vez: “Deixei
que despedaçassem em filmes alguns de meus dramas
mais conhecidos para comprar carne fresca para minhas
lebres”.175
Griffith foi um dos que perceberam a fragilidade
do roteiro de Cabíria, relevada pelo diretor em nome da
grandeza plástica do filme. Nisso foi ecoado pelo próprio
Pastrone, que, em carta a D’Annunzio, admitiu ver, na
película, “uma autêntica salada entre Aníbal, Escipião,
Cirta e a rainha de Cartago”.176 A narração, de qualquer
modo, não parece ter sido a preocupação central dos
174 D’Annunzio teve cinco de seus romances adaptados
para o cinema.
175 VIDAL. El cine de Chomón, p. 158-159.
176 VIDAL. El cine de Chomón, p. 180.
186
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
criadores de Cabíria, como souberam reconhecer Griffith
e Pastrone, mais interessados na visualidade espetacular
do filme do que em sua história confusa. Pode-se afirmar,
nesse sentido, que a poesia torneada de D’Annunzio não
se desviava tanto assim da empresa levada a cabo pelo
restante do colosso. O tonitruante roteiro dannunziano
sintonizava-se com a espetacularidade da cenografia,
também carregada de exibicionismo, para resultar neste
filme híbrido, impuro, meio narração, meio espetáculo,
típico daquele cinema em fase de transição.
Se a adição literária resulta quase num
elemento de subtração para a narrativa de Cabíria, a
engenharia fotográfica do filme surge mais afinada com
os fundamentos do cinema que então se formulava. As
maquetes, a iluminação, os truques e os movimentos
de câmera aparecem em grande medida ajustados à
diegese da película, emprestando plausibilidade ao seu
discurso narrativo. Embora não isenta de momentos de
puro espetáculo, a metalurgia fotográfica posta em prática
no filme por Chomón auxilia enormemente a condução
da trama de Cabíria, permitindo a absorção diegética do
espectador em seus momentos cruciais. E não podia ser
diferente: Chomón ingressara na Itala Film com cerca de
200 filmes na bagagem. Sabia que o cinema passava por
profundas mudanças e procurava adaptar-se aos novos
tempos. Confrontado com o regime narrativo que então
emergia, cercava-se de todos os recursos para galvanizar
a narração das películas em que trabalhava. Operava,
com isso, a transformação do truque como um fim em

187
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
si mesmo, típico dos filmes dos primeiros anos, em um
procedimento “invisível”, plenamente integrado à narrativa
cinematográfica.
É de se mencionar o juízo que o autor de Vita laboriosa
e geniale di Giovanni Pastrone (suspeita-se seja o próprio
Pastrone) logrou fazer sobre o colosso italiano: “Cabíria
foi um luxuoso catálogo de profecias cinematográficas,
já que em seus fotogramas ficou registrado todo o futuro
programa do cinema” (ibidem). Hiperbólico na segunda
parte, esse juízo é verdadeiro se tomado em sua primeira
proposição. Maquetes perfeitas, truques “invisíveis”, luz
artificial aplicada em grande escala, Cabíria é, de fato, um
“luxuoso catálogo de profecias cinematográficas”. Com
algumas de suas melhores páginas escritas pela câmera
do “imperador dos truques”, Segundo de Chomón.

Referências

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THARRATS, Juan Gabriel. Los 500 films de Segundo de
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VIDAL, Augustín Sánchez. El cine de Chomón. Zaragoza:
Caja de Ahorros de la Inmaculada Aragon, 1992.

189
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
NARRATIVIDADE E TEMPORALIDADE: O
SI-MESMO COMO UM TEXTO

João B. Botton

Este ensaio, em primeiro lugar, apresenta a tese geral


desenvolvida por Paul Ricoeur em Tempo e narrativa
III (1985) e em O si mesmo como um outro (1990) de
que o corolário das relações de esclarecimento entre
narratividade e temporalidade é uma identidade narrativa.
Em segundo lugar apresenta duas objeções a essa tese.
Essas objeções já estão contidas em um artigo publicado
por Ricoeur em 1982 intitulado Entre tempo e narrativa:
concordância / discordância. Elas se referem cada uma
a um aspecto diferente da relação entre narratividade e
experiência vivida, no entanto, nós às apresentamos aqui
em um quadro argumentativo ligeiramente diferente do
vislumbrado por Ricoeur. Buscamos com isso encontrar
conclusões um pouco mais problemáticas do que as dele.
Antes de mais é preciso esclarecer o modo pelo
qual a questão da identidade está aqui sendo tomada:
a perspectiva formal sobre a identidade, aquela que
busca os critérios de identificação entre duas ocorrências
distintas de uma mesma coisa, está engastada em uma
problemática existencial. Do seguinte modo: todos os
sentidos “formais” de uso do conceito de identidade, a saber,

190
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
identidade numérica, identidade qualitativa, identidade
como continuidade e como princípio de permanência se
enxertam na problemática do reconhecimento reflexivo, ou
melhor, do sentido dos atos pelos quais o que está em jogo
na identificação, um si-mesmo, a pessoa propriamente
dita, é capaz de se dar à identificação e de reconhecer-se
como a mesma.
O que fica implícito aqui é que se esta conferindo
à pessoa um estatuto ontológico radicalmente distinto
do da coisa e que esse estatuto depende do seu modo
próprio de temporalização: poder-se-ia dizer que as coisa
simplesmente duram e perecem enquanto a pessoa se faz
ela própria temporalidade, por isso a questão da identidade
aqui envolve muito mais do que um conjunto de operações
de identificação ou individuação.
É precisamente a má compreensão da questão da
temporalidade - má compreensão que tendeu a ignorar
a diferença entre o tempo da coisa e a temporalidade da
pessoa, forçando à redução desta àquele - o motivo da
necessidade de formulação de um conceito de identidade
em termos narrativos. Pois a operação narrativa mostra
uma dimensão do tempo que está para além do cronológico,
ou cronométrico, embora não lhe seja alheia.
Amiúde, é em torno do tempo que giram todos
os problemas relativos à identidade: o transcurso do
tempo como fator de dessemelhança, de alteração,
de transformação, de corrupção, como um desafio às
operações de identificação. Por isso a tese que sustenta
a teoria da identidade narrativa é a de que as operações

191
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de estruturação narrativa correspondem às estruturas da
temporalidade e nessa medida respondem às aporias
inerentes à sua organização. Em dois níveis diferentes: 1)
o tempo tomado como o conjunto sucessivo de instantes
não constitui problema se nossos relógios funcionam,
mas a temporalidade se torna problemática quando se
trata de coordenar de modo inteligível, ou seja, de modo
significativo para nós, as três dimensões temporais que
constituem a experiência do tempo: passado, presente e
futuro - a psicanálise investiga à porfia as consequências
dessa dificuldade sob a forma da patologia psíquica; 2)
em um segundo nível, o próprio tempo objetivo, torna-
se problemático quando se trata de coordenar a vivência
intima do tempo com o tempo do relógio, quando se trata
de coordenar o sentido do fluxo do tempo, do passado ao
futuro através do presente, com a ocorrência objetiva dos
fenômenos determinados pelos expedientes de datação
que nos permitem “contar o tempo”. Ou seja, a experiência
intima do tempo extrapola a cronologia temporal e por
vezes até a abole, e, em sentido inverso, os aspectos
cronológicos do tempo dificilmente se coordenam
completamente à experiência da vivencia temporal. A
história da filosofia mostra isso muito bem: da Física de
Aristóteles às Lições sobre a consciência intima do tempo
de Husser, a especulação que se ocupou de uma das
problemáticas só o pode fazer por exclusão expressa
da outra. Mesmo Heidegger ao pretender dar conta da
experiência integral do tempo só o pode fazer relegando
o tempo do calendário ao inautêntico. É o que pretende

192
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
mostrar o terceiro e mais volumoso tomo de Tempo e
Narativa (1985).
É a propósito do segundo nível de aporicidade, mas
pela articulação do primeiro, que a questão da identidade
em termos narrativos ganha lugar. Ela surge como a grande
solução aos paradoxos da temporalidade ao coordenar as
duas perspectivas da especulação que ficavam até então
desarranjadas de um ponto de vista teórico: ao versar sobre
um personagem a narração faz convergir simultaneamente
os elementos objetiváveis que instituem a fixação da ação
em uma ordem de sucessão e os elementos de sentido que
configuram a narração em uma totalidade inteligível; pela
concorrência desses elementos, o personagem extrai sua
identidade ao longo da narração. E é precisamente esse
poder de composição atribuído à narração que permite
conceber a questão da identidade ao mesmo tempo do
ponto de vista das operações de identificação de uma
entidade em suas ocorrências distintas e da perspectiva
do sentido da totalidade temporal que a duração dessas
ocorrências desenha.

Primeira objeção

O leitor atento poderia objetar que, se a tentativa de


solução oferecida por Ricoeur aos impasses do problema
da identidade faz sentido e tem alguma relevância, só o faz
na medida em que visa a um modelo narrativo específico,
um modelo, aliás, pouco interessante, o modelo em que a
concordância triunfa de todo modo sobre a discordância

193
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e dispersão episódica: as crônicas nacionais em geral,
a telenovela, os contos de fadas, enfim, todos os modos
de narrar em que a identidade do personagem é mantida
pela denegação calculada de todos os possíveis efeitos
perturbadores. A identidade pessoal assim concebida
não seria, então, outra coisa senão o efeito violento do
artifício literário sobre a vida. Afinal, se se considera a
infinita exploração das possibilidades de expedientes de
narração, sobretudo na literatura que se fez depois de
Kafka, o caso parece ser o contrario do pretendido pela tese
de Ricoeur. Parece confirmada exatamente a fragilidade e
mesmo a impossibilidade da identidade em sentido forte.
Essas formas narrativas que perderam a ingenuidade da
necessidade de coesão do sentido efetivamente parecem
corresponder e mesmo multiplicar os paradoxos da
temporalidade antes que resolvê-los.
Mas a questão é mais sutil, não se trata de dizer
que em todo caso a questão da identidade da pessoa ou
do personagem possa ou deva comportar uma resposta
positiva, trata-se, no entanto, de dizer que em todo caso
essa questão é de importância capital, ainda que por vezes
fique sem resposta. Seria inclusive possível advogar que
grande parte do nosso interesse pelas narrativas que
escapam ao controle da coesão reside na imposição
latente dessa questão sob o modo problemático.
O que a narração faz, muito mais do que
simplesmente responder pela identidade de um
personagem determinado é problematizar a questão como
tal pelo exercício de composição variável entre as duas

194
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
dimensões de aporicidade da temporalidade e as duas
componentes da questão da identidade: compondo a
problemática da distensão temporal e a problemática da
coordenação da vivencia do tempo com a temporalidade
objetificada a narração toma conjuntamente e faz
indissociáveis a problemática do sentido da identidade.
Afinal, quando se pergunta: “Quem é o personagem fulano
de tal?”, o que se busca é mais do que uma descrição
definida como: “o homem que combatia moinhos de vento”.
Busca-se, antes, as características que ligam o nome
próprio à uma existência singular. Por isso a resposta à
pergunta depende da leitura da obra inteira que exibe essa
existência singular como totalidade temporal.
O que Ricoeur pretende pelos recursos de
esclarecimento que a narração aporta a nossa confusa
experiência do tempo é mostrar que a despeito de certo
modo de pensar cotidiano, uma e outra das problemáticas
que estão ligadas a identidade não podem ficar isoladas,
sob pena de não corresponder ao estatuto ontológico da
pessoa.
É aqui que os modelos narrativos que mais se
afastam dos paradigmas da coesão e inteligibilidade se
tornam interessantes para a questão da identidade. É certo
que esses casos impressionantes em que o personagem
parece reduzido à figura negativa da subjetividade
pertencem mais ao imaginário literário, aqui a serviço da
filosofia, do que à experiência viva. No entanto, isso não
significa conferir-lhes somente uma importância heurística;
longe disso, eles são, antes, um expediente em função

195
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
da autêntica compreensão de si, desde que revelam a
ambiguidade da relação de “posse” do que, em cada caso,
nos é considerado mais próprio, as “qualidades” pelas
quais nos são adscritas características identificantes.
Em outras palavras, o que essa possibilidade
de variação extrema no regime da composição que um
momento de desapossamento de si é essencial à autêntica
compreensão de si.177 O que essas experiências literárias
por vezes aterradoras sobre a identidade fazem é um
convite a narrar-mo-nos de modo diferente, e, portanto,
a nos compreendermos diferentemente, alertando para o
risco da compreensão egocêntrica ou alienante de si.

Segunda objeção

Mas o leitor atento poderia objetar aqui outra vez: seja;


que os modelos menos configurados de narração nos
sirvam de advertência contra a violência da configuração.
No entanto, ao exaltarmos e cultivarmos modos menos
configurados não corremos o risco de sucumbir à sedução
do informe e ao niilismo da ausência de sentido constitutivo,
posturas tão características de uma cultura como a nossa
que não hesita em reduzir a pessoa à coisa manipulável?
Essa objeção nos parece sensivelmente mais
séria, mas pode-se tentar superá-la do seguinte modo:
pode-se, com efeito, pretender que mesmo quando o que
a narração nos mostra é “o nada imaginado do si”, naquilo
que Ricoeur chamou uma apreensão apofática do si, a

177 RICOEUR. Soi-même comme un autre, p. 166.


196
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
identidade não pode permanecer muito tempo sob o modo
negativo. 178 A aposta de Ricoeur é a de que só é praticável
o fracasso de uma sucessão indefinida de tentativas de
identificação,179 a impossibilidade total da identidade não é
em última instância realizável. Daí o fato de as narrativas
ditas sobre a perda de identidade coincidirem com a crise da
conclusão narrativa.180 Desde que um final assinalável envia
inelutavelmente a narração à configuração, a perspectiva
da conclusão subordina novamente o personagem à trama
que encerra a totalidade na qual ele se reconhece. Poder-
se-ia dizer que, de alguma forma, mesmo as narrativas mais
avessas à concordância, precisamente as que desnudam
a identidade do personagem fazendo dele um homem
sem qualidades continuam a gerar alguma concordância.
Afinal, é de notar que o próprio personagem de Musil
ao longo da trama de uma obra volumosa a ponto de
ultrapassar os limites antropológicos da memória - e que,
diga-se de passagem, apesar disso resultou inacabada -
seja identificado pelos próprios componentes dessa trama
como “homem sem qualidades”, e inclusive reconheça a si
mesmo nesse epíteto.181
Assim, se nas narrativas que desnudam a identidade
do personagem, prevalece o episódico, o discordante, é em
favor de uma estruturação mais profunda, não apreciável
à primeira vista, mas de todo modo significativa. O jogo da

178 RICOEUR. Soi-même comme un autre, p. 197-198.


179 RICOEUR. Soi-même comme un autre, 197.
180 ver RICOEUR. Soi-même comme un autre, p, 177-
178.
181 ver MUSIL, 2006, p. 171-174
197
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
amarelinha de Cortazar dá um exemplo considerável da
dispersão a que o episódico pode chegar, nele, a própria
ordem dos episódios parece abolida, o leitor é convidado
a refazê-la quase à bel prazer. No entanto, mesmo essas
experiências extremas no campo literário precisam
resguardar, ainda que em mínima medida, a tensão
com o concordante, sob pena de abolir toda e qualquer
possibilidade de inteligibilidade. Pois, no triunfo absoluto
da discordância não há expectativa sob a qual a história
possa avançar.
É em favor de uma estruturação mais sutil, portanto,
que uma obra como O jogo da Amarelinha consegue
explorar os recursos de sentido do efeito de discordância.
É o que a torna profundamente intrigante ao leitor atento a
sua sutileza, embora enfadonha ou pueril, como por vezes
se tem dito, ao leitor desavisado dessa sutileza.
Mas essas considerações altamente exploratórias
não afastam totalmente a objeção de que as narrativas
menos configuradas nos precipitem no abismo do sem
sentido, elas apenas mostram que esse não-sentido não é
o puro absurdo do qual nada se pode falar. Pelo contrário,
a perplexidade da ausência de sentido da muito o que
pensar, a ponto de permitir especular se essa perplexidade
que se apresenta como ausência não é antes excesso de
sentido. O que em todo caso, não é ainda suficiente.
Outro modo de evitar o perigo de sucumbir à
total ausencia de sentido é encontrar o ponto nodal que
distingue a narrativa e a vida ela mesma. Seria possível
argumentar, desse modo, que na vida, diferentemente da

198
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
narrativa, a iniciativa capaz de instaurar um novo curso
de ação compromete o indivíduo com as consequências
dessa ação e o engaja em um curso de vida, fixando a
identidade. Distingue-se assim o componente ético e o
componente narrativo da identidade e faz-se recair sobre
o primeiro a força estabilizadora da identidade quando nos
faltam os recursos da configuração.
Tendemos a aceitar esse tipo de argumentação
quanto menos estivermos dispostos a identificar a vida aos
expedientes ficcionais de configuração. No entanto, mais
uma vez, as variações imaginativas que experimentamos
na literatura põem a prova os modelos de inteligibilidade
que adotamos para a vida.
Na literatura ao menos, onde a hipótese da
dissolução do sujeito é tornada pensável, o apagamento
de si parece ser paralelo à debilidade do poder de
engajamento moral. Na obra de
Musil, por exemplo, somente vê-se o “início de uma moral
do homem sem qualidades”,182 à medida que se sucedem as
tentativas de Ulrich tornar-se um homem com qualidades,
em contrapartida Ulrich passa a se acostumar com a
falta de unidade da moral ao aceitar-se um homem sem
qualidades. A dissolução da identidade do personagem
de Musil parece em tudo paralela à dissolução de sua
capacidade de engajamento em um curso de ação. E não
poderíamos dizer o mesmo de Oliveira, o argentino que
Cortazar faz errar indefinidamente em Paris? Afinal, por
que meios nos sentiríamos moralmente engajados se não

182 MUSIL, 2006, p. 55


199
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
supuséssemos de antemão a validade de sentido de um
curso de ação escolhido. Notamos que, na literatura, a
totalidade de sentido desenhada por uma trama narrativa
depende da perspectiva dos finais que lançam luz sobre a
inteligibilidade da obra como um todo e que por isso a crise
de identidade do personagem coincide com a crise dos
finais narrativos. E não será assim também em relação à
vida, cujo único final possível é a morte, avessa a todo
sentido, exceto para o homem de fé?
Mas é a despeito dessa perplexidade, ou melhor, é
precisamente em função da perplexidade que a imaginação
narrativa se faz instrutiva, pois se ela nem sempre pode
nos oferecer resposta segura a proposito de identidade, ela
nos incita a não parar de refigurar a nossa experiência da
temporalidade e re-configurar a compreensão que temos
sobre nós mesmos. Se a obra de Ricoeur não consegue
dar conta de todas as questões que ela própria suscita,
essa parece ao menos ser a sua grande intuição.

200
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Referências

RICOEUR, Paul. Entre temps et récit: concorde/discorde.


In: RICOEUR, Paul et al. Recherches sur la philosophie
et le langage. Cahier du groupe de recherches sur la
philosophie et le langage de l’Université de Grenoble.
Paris: Vrin, 1982. v. 2.
RICOEUR, Paul. Temps et récit III: Le temps raconté.
Paris: Seuil, 1985.
RICOEUR, Paul. Soi-même comme un autre. Paris: Seuil,
1990.
RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. São Paulo:
Papirus, 1991
RICOEUR, Paul. Entre tempo e narrativa: concordância/
discordância. Kriterion. Tradução de João Batista Botton,
Belo Horizonte, v. 53, n. 125, 2012. Disponível em: <http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0100-
512X20120001&lng=en&nrm=iso. >

201
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
LITERATURA E MILITÂNCIA: O ESCRITOR
BRASILEIRO E SEU OFÍCIO EM SOCIEDADE
NAS DÉCADAS DE 1930-1950

Nathalia de Aguiar Ferreira Campos

HOMO FABER X HOMO CONTEMPLATIVUS

“Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma / e que você não
pode vender no mercado / como, por exemplo, o coração
verde / dos pássaros / serve pra poesia”.183 Para Manoel
de Barros, é do reino da poesia – e, creio, da arte de modo
geral – tudo o que no mundo objetivo foi descartado como
sem finalidade, por não ser comercializável ou aproveitável
em qualquer outro nível utilitário. Esse parece ser um dos
aspectos a primeiro definir o artista: sua especial afeição
por aquilo que é sem valor material ou útil, ou talvez, mais
precisamente, sua atitude diante de todas as coisas, que
não é a de atribuir utilidade ou funcionalidade a elas, mas
de contemplá-las, e esse estar diante delas constitui, por
excelência, o seu papel.
Como na fábula da cigarra e da formiga, em
que a primeira, ociosa, passa seus dias a cantar, e a
183 BARROS. Matéria de Poesia, p. 12
202
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
segunda, obreira, aprovisiona alimento para o inverno,
o artista é – como se convencionou entendê-lo – aquele
que, impenitentemente, ocupa-se da beleza, enquanto o
homem do mundo, o burguês civil e tributável, está inscrito
na ética capitalista do trabalho e movimenta a engrenagem
econômica.
Ambos, homem prático e homem de contemplação
entesouram capital. O primeiro, monetário, quantificável;
o segundo, estético, imponderável. O que os distingue
fundamentalmente está associado ao que, para Olavo
de Carvalho, é expresso pela antinomia theoria X práxis,
referentes à atitude de cada uma frente a seu objeto.
Enquanto a theoria vê no objeto sua essência, ou arquétipo,
à qual subjazem inúmeras possibilidades (exemplo: o
arquétipo de mesa pode realizar-se em uma mesa de
mármore, madeira, vidro etc.), a práxis prioriza a forma
imediata assumida pelo objeto, excluindo todas as outras.
Mais importante, “a theoria se interessa pelo que um ente
é em si”, na sua integridade ontológica, de maneira que ele
não é mero meio, mas seu fim. A práxis, em contraparte,
“se interessa pelo que ele não é”, ao buscar transformá-lo
em outra coisa, destinada ao uso.184 Em outras palavras,
a theoria contempla o objeto, de maneira filosófica, já que
busca captar sua essência; a práxis, por sua vez, quer
transformá-lo em utilidade. Por exemplo, a atitude teorética
apreciaria a flor pelo que é, seu encanto, cor e perfume; a
prática a converteria em cosmético.
A distinção entre theoria e práxis está no centro do

184 CARVALHO. O jardim das aflições, p. 112.


203
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
comentário que Carvalho faz para rebater o posicionamento
de Hannah Arendt em A condição humana. Ao definir
trabalho – transformação do mundo que corresponde
à necessidade de adequá-lo às necessidades que
transcendem a dimensão puramente biológica (labor) –, a
filósofa considera o artista como “a forma mais alta”, por
assim dizer, daquilo que chama homo faber, pois, para
ela, o que resulta do ofício artístico não exige consumo
imediato, ou seja, é perene, resistente ao tempo:

Entre as coisas que emprestam


ao artifício humano a estabilidade
sem a qual ele jamais poderia ser
um lugar seguro para os homens,
há uma quantidade de objetos
estritamente sem utilidade e que,
ademais, por serem únicos, não são
intercambiáveis, e portanto não são
passíveis de igualação através de um
denominador comum como o dinheiro;
se expostos no mercado de trocas., só
podem ser apreçados arbitrariamente.
Além disso, o devido relacionamento
do homem com uma obra de arte não
é “usá-la”; pelo contrário, ela deve
ser cuidadosamente isolada de todo
o contexto dos objetos comuns para
que possa galgar o seu lugar devido
no mundo.
[...] os homens que agem e falam
precisam da ajuda do homo faber
em sua mais alta capacidade, isto
é, a ajuda do artista, de poetas
e historiógrafos, de escritores e
construtores de monumentos, pois,
sem eles, o único produto de sua
atividade, a história que eles vivem e

204
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
encenam não poderia sobreviver.185

Olavo de Carvalho então, ao refutar essa


ideia, argumenta que se a manifestação artística é o
primado da ideia, da busca da essência pelo estado de
contemplação filosófica – a theoria –, o artista jamais
poderá atender por homo faber. “A ação produz apenas
transformação”,186 e tomar o artista como homo faber
significaria o desvirtuamento da atitude teorética em nome
da demanda de transformação do objeto. Melhor dizendo,
a estabilidade e a permanência que, como grifa Arendt,
são valores que redundam do fazer artístico não podem
ser consideradas como produto de uma versão elevada do
homo faber, senão forma concretizada do saber teorético
frente ao mundo problemático sobre o qual se debruça.
A práxis, por sua vez, conceito incorporado pelo
marxismo para opor-se a uma visão interpretativa da
filosofia clássica, dentro de uma alegada improficuidade
do empenho meramente contemplativo, vem ao encontro
de uma defesa da ação política, de modo que o produto
da reflexão seja aplicado a serviço da transformação do
mundo. Exigir do homem que se consagra ao exercício
teorético que dê a seu pensamento valor participante na
esfera sociopolítica convida a pôr em discussão o papel
do artista, dessa vez, inserido em um meio e em uma
contingência histórica. Interessa-me, no presente artigo,
a figura do escritor e a situação da literatura diante da
demanda de engajamento político e de meditação acerca
185 ARENDT. A condição humana, p. 180, 187
186 CARVALHO. O jardim das aflições, p. 112.
205
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
da realidade externa. Incumbe à literatura radiografá-la?
Enquanto expressão artística, deve ela arrogar-se o direito
de ser inútil, servindo tão somente à beleza e voltando-
se para dentro de si mesma, de maneira a funcionar
precisamente como contraponto a uma sociedade que
exige produção? O que define, em primeira instância, o
ser escritor – sacerdócio, missão ou vocação estética e
imaginativa? Qual lugar corresponde a esse sujeito em
sociedade, entre a necessidade – biológica – do sustento
pessoal e o imperativo – metafísico – de escrever?
Para empreender tal análise, lançarei foco sobre o
âmbito brasileiro, em que terá especial relevo a trajetória
de Mário de Andrade, cujo notável compromisso com um
projeto coletivo de cultura dificulta, não raro, sua atuação
como escritor. Tal compromisso parece ter inviabilizado a
realização daquela que seria sua tão sonhada “obra-prima”,
como revelam trechos significativos de sua correspondência
pessoal. Nela, o escritor em Mário de Andrade deitará, com
grande entusiasmo, suas altas ambições para a literatura,
muitas das quais se concretizaram em projetos frustrados.
É o caso da ópera-coral inacabada Café, escrita entre
1933 e 1942, e de Quatro pessoas, tentativa de romance
psicológico iniciada em 1938 e interrompida em 1943. Esta
última merecerá comentário em item a seguir.

ESCREVER X TRABALHAR

“Não respondi antes, questão de


doença que não mata mas maltrata.
Me obrigaram a ficar imóvel, imagine!

206
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Agora mesmo estou estendido e por
isso que escrevendo a lápis. Só me
levanto mesmo por causa de alguma
lição mais bem remunerada. Estou
carecendo de arames pra pagar o
médico... Então me levanto, ganho um
pouco e zaz! cama outra vez...”187

Arriscaria dizer que aquilo que a filosofia verificou por meio


da oposição entre theoria e práxis está presente, no senso
comum, com a corrente associação que se faz entre, de
um lado, arte e deleite, êxtase, diversão e liberdade, ou
inconformismo; e de outro, trabalho e desprazer, repetição,
dever e privação da liberdade, ou institucionalização. O
fato de relacionarmos, com tanta naturalidade, o esforço
intelectual/artístico – produção de pensamento e valor
simbólico – e o trabalho remunerado – produção de
ação e capital – como frontalmente opostos, é reflexo de
uma cultura que privilegia a práxis, que, apropriada pelo
marxismo, compreende o homem como um ser capaz de
trabalhar e desenvolver a produtividade do trabalho, de
maneira a, assim, diferenciar-se dos demais animais e
alcançar o progresso.
Tal visão do homem, baseada numa concepção
materialista da história e na luta de classes como força
motriz da economia, impele, sobretudo, a que esse seja
mensurado segundo a cessão de sua força de trabalho,
para a qual recebe, das mãos do capitalista, ou detentor dos
meios de produção, um salário. Assim enquadrado, esse
homem passa a ser definido como peça da engrenagem
187 ANDRADE. Carta de 26 de novembro de 1925.
207
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
capitalista, que produz a mercadoria em troca de capital.
Para Marx, o trabalho se incorpora ao sujeito.188
Necessário se faz, a esta altura, esclarecer que
tais apressadas associações – de um lado, theoria e
arte; artista e capital estético; fazer artístico e liberdade;
e, de outro, práxis e dever; homem de ação e capital
monetário; trabalho e obrigação – têm o simplismo próprio
das generalizações. A elas escapa que a teoria é também
regra, dever – a exemplo do filósofo que entende seu
trabalho como o mais profundo dever moral – e que prática
também pode trazer êxtase e alegria – veja-se o músico
que toca ou o atleta que faz o gol. O que se propõe, por
ora, não é corroborar com as distinções estanques entre
theoria e homem de contemplação, práxis e homem de
ação, mas perceber em que medida tais arquétipos, nos
casos a serem analisados, caminham ou não juntos.
Se a tônica do artista – o escritor, dentro do que aqui
interessa – não é ser homem de ação, não estar, portanto,
a serviço tão somente da produção de capital financeiro,
onde situá-lo socialmente, como homem biológico e
portador das mesmas necessidades vitais? Sujeito que
se propõe a viver para e do intelecto, ele, naturalmente,
não está dispensado de ser homem de carne e osso, que
necessita comer, vestir-se, dar sustento à sua família e
mesmo investir em sua formação cultural por meio dos
livros, viagens e atividades culturais que deverão nutri-
la. Se produzir beleza e conhecimento é algo que, por
princípio, o insere no avesso na máquina do mundo, como

188 ARENDT. A condição humana, p. 110


208
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ele sobreviverá?
Para os escritores brasileiros ativos ao longo das
décadas de 1930 a 1950, período, não por acaso, em que
a doutrina do realismo socialista está em voga, esse é
o dilema fundamental. O segmento, além de lidar com o
conflito entre a necessidade do ganha-pão e o compromisso
com a escrita, vê-se ainda premido diante da demanda
de militar tendo a literatura por instrumento, ou fazer da
palavra uma arma. É imprescindível assinalar que, nesse
momento, a neófita literatura brasileira ainda reclama,
com timidez, uma maturidade estética e, sobretudo, a
consolidação de um caráter próprio, que só poderá nascer
em uma situação de independência das pressões externas
por explicar e pensar o Brasil, suas contradições e arestas
em nível histórico, social, político e cultural. A bem dizer,
se o país ainda claudicava na superação do estatuto
colonial, sendo a modernidade ainda um projeto longe da
conclusão, como reivindicar uma literatura diferente, isto
é, segura e livre? Defendo, por ora, a hipótese de que um
país jovem, ainda inteiramente por fazer, com identidade
em estado larval, crivado de incoerências e indefinições,
passava, em tal momento, por uma fase de decisiva
transição, de modo que exigir que a literatura e todo o
dispositivo literário ostentassem segurança e clareza de
suas feições e de seu papel apresentava-se ainda pouco
razoável. Outra hipótese, a reforçar a primeira, pode ser
extraída do pensamento do Machado de Assis crítico, em
seu célebre texto “Instinto de nacionalidade”. O escritor
denuncia a escassa prática de gêneros como filosofia,

209
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
linguística, crítica histórica e alta política no Brasil, com, de
outro lado, o farto cultivo do romance e da poesia lírica,189
uma assimetria possivelmente reveladora da escassez de
lugares de reflexão no país a respeito de temas formadores
da cultura, em que está incluído o próprio Brasil. Assim,
argumento que restava ao romance – estimado no Brasil
como a forma literária por excelência, ou a própria literatura
– a tarefa de meditar sobre o país, refletir a respeito de sua
formação histórica, conjeturar os rumos futuros, além de
apontar as feridas da sociedade.
Para Silviano Santiago, a necessidade de pensar o
Brasil, de formar a identidade nacional e corrigir a realidade
estorva assinaladamente a liberdade literária:

O escritor dos anos 1930, ao


menosprezar os argumentos da
interpretação modernista como sendo
orientados pelo éthos cultural e ao
fazer intervir a análise marxista na
compreensão do processo histórico
brasileiro, necessariamente pequena
e tardia da imensa História da
humanidade – o escritor dos anos
1930, repito, volta ao caminho trilhado
por uma política universalista radical,
agora culturalmente centrada no
materialismo histórico. A essa análise
recorre ele tanto para a avaliação
do passado nacional, quanto para
avançar um ideário utópico que deve
pôr fim à injustiça econômica e social
no país e no mundo. A produção
artística deixa de ser fermento
inaugural do multiculturalismo, a

189 ASSIS. Instinto de nacionalidade, p. 136.


210
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
serviço da especulação política e
da subversão estética, e passa a
vir atrelada à crítica da estrutura
econômica da sociedade (na época
inspirada pelo realismo, soprado de
todos os lados da América Latina pelos
congressos de literatura de inspiração
soviética). Ao se impor como
teleológica, a estética de fundamento
marxista reprime a imaginação do
escritor e, ao mesmo tempo, aguça
e redireciona radicalmente o seu
olhar para o espetáculo miserável da
realidade brasileira [...]. Afirma Antonio
Candido que, na literatura dos anos
1930, “é marcante a preponderância
do problema sobre o personagem”.190

De volta ao tema do lugar do escritor – entenda-se,


na esfera pública –, não é exagero afirmar que o homem de
letras equilibra-se, como malabarista, entre salvaguardar a
liberdade da escrita, o ideal estético que sociopoliticamente
se exigia que praticasse, e as dificuldades de sobrevivência
em um país onde as alternativas de trabalho para o escritor,
sobretudo para o homem culto sem diploma superior,
minguavam. Eram poucos os que podiam ostentar o título
de “homens sem profissão”, como Oswald de Andrade, que
tendo herdado vasta fortuna do pai, grande especulador
urbano e vereador, pôde dedicar-se por inteiro à literatura
e ao projeto vanguardista brasileiro de que foi protagonista.
Os chamados “primos pobres”, protótipo encarnado, como

190 SANTIAGO. A atração do mundo: políticas de


globalização e de identidade na moderna cultura brasileira.
p. 30-31. (Grifos meus).
211
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
nenhum outro, por Mário de Andrade, herdeiros de fortunas
dilapidadas que conservaram de sua origem ilustre apenas
o sobrenome, viam-se obrigados a exercer atividade
remunerada no “mercado de trabalho intelectual”,191 em
que seu rico capital cultural podia ser aproveitado: na vida
acadêmica, no jornalismo ou no funcionalismo público. A
cooptação dos segmentos da elite pensante pelas esferas
do poder perpassa toda a história da intelectualidade
brasileira na modernidade e tem exemplos proeminentes
pelas décadas de 1930 e 1940: Carlos Drummond de
Andrade é chefe de gabinete de Gustavo Capanema,
então ministro da Educação; Mário de Andrade dirige o
Departamento de Cultura do Município de São Paulo e
integra o Partido Democrático; Graciliano Ramos, Erico
Verissimo, Gilberto Freyre e Cecília Meireles escrevem
para publicações governamentais durante o Estado Novo
de Vargas; Otto Lara Rezende e Rubem Braga, para os
grandes jornais do Rio de Janeiro.
A proximidade do escritor com o aparelho do
Estado cria, para o primeiro, a delicada problemática das
concessões ideológicas: a aceitação de um cargo oficial
significa, para muitos, trair suas convicções políticas e
princípios mais arraigados e, sobretudo, o desvirtuamento
de sua tarefa como escritor, ao assumir um papel –
incômodo – que não é o de escrever. Silviano Santiago, em
“O intelectual modernista revisitado”, salienta que Mário
de Andrade mostrava-se amplamente consciente das

191 MICELI. Os intelectuais e a classe dirigente no


Brasil (1920-1945), p. 118.
212
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
implicações, para o homem de letras, de seu rebaixamento
a funcionário público. Ao aceitar a proposta do então
prefeito de São Paulo, Fábio Prado, em 1935, para dirigir
o recém-criado Departamento de Cultura do Município
de São Paulo, o homem que já havia se “suicidado” na
década de 1920 por praticar a chamada “arte de ação”, o
faz mais uma vez.192
Bem longe do burocrata, o homem que escreve é
aquele que colhe a vivência livre para retirar-se da cena
a qualquer momento, de modo a ficar diante dela. Ele é o
outsider, que, no empenho de observação e imaginação
do qual se origina a escrita, deve dispor de tempo e
liberdade; o homem inadequado, estranho, dissonante do
meio que o cerca, e esse deslocamento é responsável por
criar a situação necessária à realização da escrita. Estar
no mundo, mas liberado do compromisso de posicionar-se
na linha de frente da ação, eis o lugar ideal do escritor. É
oportuno lembrar o conceito de contemporâneo de Giorgio
Agamben, para ele atributo do verdadeiro poeta:

A contemporaneidade [...] é uma


singular relação com o próprio tempo,
que adere a este e, ao mesmo
tempo, dele toma distâncias; mais
precisamente, essa é a relação
com o tempo que a este adere
através de uma dissociação e um
anacronismo. Aqueles que coincidem
muito plenamente com a época,
que em todos os aspectos a este
aderem perfeitamente, não são
192 SANTIAGO. O intelectual modernsita revisitado,
p. 171.
213
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
contemporâneos porque, exatamente
por isso, não conseguem vê-la, não
podem manter o olhar fixo sobre ela.193

LITERATURA INCUMBIDA

Diante da demanda de cooperar com a transformação


social imposta à intelectualidade das décadas de 1930
e 1940, torna-se desafiador e controverso resguardar a
liberdade da forma literária. Os escritores – e artista em
geral – veem-se sob as chamadas “patrulhas ideológicas”,
ou a pressão por conformar sua arte em um modelo
consentido de expressão, colocado inteiramente a serviço
da propaganda revolucionária socialista e da representação
de novas formas da realidade, em que deveriam tomar
parte ativa, para além da mera descrição da realidade
presente (realismo).
A estética do que viria a ser o chamado realismo
socialista tem sua essência formulada por Fadeiev,
um intelectual ligado ao Estado russo, em 1929. Nela,
estabeleceu-se o princípio de que o artista deveria, a
partir de então, “servir conscientemente à causa da
transformação do mundo”.194 Foi somente em 1932,
contudo, quando Stalin passa a impor um controle ainda
mais ferrenho sobre a produção artística, que surge a
expressão realismo socialista para designar a então
193 AGAMBEN. O que o contemporâneo?, p. 59.
(Grifos do original).
194 FERNANDES. O povo é arte: as ilustrações em
periódicos do PCB e o realismo socialista no Brasil, p. 1.
214
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
arte oficial. Entre os compromissos da doutrina estavam
representar a classe trabalhadora, seus interesses e seu
cotidiano, além de declarar a burguesia como inimiga do
proletariado.
A era soviética é exemplo histórico do fenômeno de
diluição da esfera pública no Estado, o que significa que
o exercício da crítica e da opinião pública se desconfigura
no momento em que os veículos da imprensa são
transformados em instrumentos de doutrinação ideológica.
No Brasil, a exiguidade da esfera pública é também um
problema histórico, do qual sobretudo intelectuais e
homens opinião, como os presentemente abordados,
nos deram testemunho. Herança da usurpação da esfera
pública por interesses políticos é o sentimento de desterro
que sempre assolou a nação brasileira, cerceada em seu
direito de emitir pensamento crítico onde é próprio fazê-lo.
As ideias do realismo socialista só chegam ao
Brasil em 1945, através daquele que era o grande veículo
de divulgação da ideologia comunista, a Tribuna Popular,
que, mais tarde, em 1947, passou a chamar-se Imprensa
Popular. Tal publicação estava ligada ao Partido Comunista
Brasileiro (PCB), cujas realizações tinham a colaboração
de artistas como Candido Portinari, Paulo Werneck e
Clovis Graciano.195
O assédio da orientação doutrinária a todos os
veículos e suportes artísticos passa a ser legitimado dentro
do discurso utilitarista do realismo socialista, segundo o

195 FERNANDES. O povo é arte: as ilustrações em


periódicos do PCB e o realismo socialista no Brasil, p. 1-3.
215
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
qual todos os membros e forças da sociedade deveriam
prestar-se à satisfação das necessidades básicas do
organismo social, o que, obviamente, não exclui a literatura
e o escritor. Sob o argumento de ser despojada de utilidade
e lugar, a literatura não poderia furtar-se à militância,
sendo-lhe possível somente por meio desta recuperar sua
função. É Sartre quem sustenta, sem qualquer pejo, em
um dos textos capitais da defesa do realismo socialista,
Que é literatura? (1948), que “um dos principais motivos
da criação artística é certamente a necessidade de nos
sentirmos essenciais em relação ao mundo”,196 afirmação
capciosa, que apela de maneira subliminar para o discurso
do bom, justo e nobre, frente à urgência da problemática
social. Munido de exemplos de poderoso efeito, Sartre
evoca ainda a tragédia do negro nos Estados Unidos,
focalizada exemplarmente na obra do escritor Richard
Wright, americano negro do Sul dos Estados Unidos.
Advogado do engajamento, Sartre dispara: “Poderia
R. Wright escrever sobre a Verdade, a Beleza e o Bem
quando 90% dos negros do Sul estão privadiços do direito
ao voto?”197 A consciência naturalmente responderia:
“Não.”
Medir o impacto de tal posicionamento é ficar diante,
mais uma vez, de uma atribuição de função, em princípio,
à arte literária. Se a literatura define-se, em primeiro lugar,
como arte, e a arte de contar histórias inventadas, e o
escritor, como o intérprete do reino da fantasia no mundo

196 SARTRE. Que é a literatura, p. 34.


197 SARTRE. Que é a literatura, p. 72.
216
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
real, no referido momento histórico, a literatura é chamada
a ser radiografia eficaz da realidade, e o escritor é um
militante dotado de um influente instrumento. Novamente,
Sartre faz-se ouvir, desta vez, a defender que o caráter
artístico da obra, com o engajamento, permanece intacto
e até mesmo se enriquece e diversifica em sua presença:

A arte não perde nada com o


engajamento; ao contrário. Assim como
a física submente aos matemáticos
novos problemas, que os obrigam a
produzir uma simbologia nova, assim
também as exigências sempre novas
do social ou da metafísica obrigam o
artista a descobrir nova língua e novas
técnicas.198

O social iguala-se, para ele, a qualquer outro


assunto, e se é forçoso que o escritor fale de alguma coisa,
para além dos limites do purismo estético, por que o social
estaria excluído das opções de que dispõe? Sartre deseja
demonstrar, ao que parece, que o escritor não deixa de
gozar de liberdade na então contingência histórica, mas,
sendo o social imperioso, como poderá ele voltar-se para
outro tema e fazer da literatura mero objeto autista de
seu culto estético? Segundo o filósofo, a literatura não é
deliberadamente mobilizada para a divulgação ideológica;
antes, os responsáveis por ela são constrangidos ao
reconhecimento da realidade social como a temática mais
premente, e por isso legítima, de ser representada.
A concepção de escritor apresentada por Sartre

198 SARTRE. Que é a literatura, p. 23.


217
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
interessa igualmente à justificativa do social como objeto
da obra literária: “O escritor é mediador por excelência, e
o seu engajamento é a mediação. Mas, se é verdade que
se deve pedir contas à sua obra a partir da sua condição,
é preciso lembrar ainda que a sua condição não é apenas
a de um homem em geral, mas também, precisamente, a
de um escritor.”199 “Mediador” sugere alguém que está no
meio, a estabelecer ponte ou comunicação entre as partes
envolvidas. Assim, o escritor seria o arauto ou porta-voz,
aquele que tem a habilidade de articular o pensamento,
da qual o homem comum não é possuidor, e de transmiti-
lo a todos os segmentos da sociedade com finalidade
transformadora.
Nessa perspectiva, não surpreende acrescentar
ser inconcebível que o ofício do escritor torne-se serviço
remunerado, isto é, que o escritor se profissionalize. Para
Sartre, a escrita, precisamente porque engajada, não
pode ser senão gratuita e desinteressada; do contrário,
ela representaria o triunfo da burguesia, o que “questiona
a própria essência da literatura”.200 No que concerne ao
universo brasileiro, para Sartre, os escritores enfrentariam
duplo impasse: além da pressão pela prática engajada da
literatura e o não lugar na esfera pública, ver-se-iam ainda
diante do difícil impasse entre ceder aos ditames ideológicos
e a necessidade de sustento, pois, ainda que satisfazendo
a demanda da militância por meio da literatura, não lhes
seria legítimo obter qualquer contrapartida financeira.

199 SARTRE. Que é a literatura, p. 62.


200 SARTRE. Que é a literatura, p. 86.
218
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Contudo, parece-me justo e acertado fazer a
defesa, não de uma arte alienada, refratária aos problemas
de seu tempo-espaço, mas de sua liberdade para tratar, ou
não, ou também, daquilo que corresponde à sua realidade
visível e imediata. Não é acessório dizer que é a liberdade
da arte, produto da atividade de contemplação, a assim
defini-la, isto é, seu direito de desincumbir-se da ação em
nome da criação. Ademais, eximindo-me por ora de um
maior aprofundamento no mérito do que é arte, não se pode
ignorar que ela se constitui, primordialmente, na invenção
criativa e está a serviço da beleza e do prazer, além de
comportar a expressão da subjetividade. A literatura,
em particular, celebra a imaginação, sendo ficcional por
excelência. Desse modo, ela está livre para transitar
pelo infinito dos mundos, do absurdo, do insólito, do
extraordinário. Desde que seja consistente internamente,
ela tem vida independente do mundo exterior, de modo
que nada lhe deve.
O escritor pode, igualmente, tematizar sua época
e sua aldeia, desde que, ao fazê-lo, se conserve artista,
rejeitando abraçar o projeto messiânico, lançado sobre
seus ombros, de curar as mazelas da realidade em que
está inscrito como homem empírico, e não reprima sua
índole imaginativa pressionado por circunstâncias políticas.
Seu compromisso verdadeiro está em proporcionar prazer
e entretenimento ao leitor, fazê-lo percorrer a rica paleta
das emoções humanas e tornar crível a história que conta,
seja ambientada no bairro onde mora ou em um planeta
distante. Em se tratando de literatura, a única realidade

219
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
que importa é aquela a que as palavras dão vida e as
personagens, corpo e voz.
Exemplar dessa consciência sobre o papel da
literatura em um escritor, no Brasil, é Carlos Drummond de
Andrade. Na crônica “Divagações sobre as ilhas”, publicada
na década de 1950 no Correio da Manhã, põe-se a salvo de
eventuais acusações de covardia e abstenção ao escolher
por seu lócus discursivo uma antiutópica ilha, meio-termo
entre evasão e presença, longe o suficiente para preservá-
lo das inconveniências exteriores, perto o bastante para
que pudesse contemplar a paisagem circundante:

Minha ilha (e só de a imaginar já me


considero seu habitante) ficará no
justo ponto de latitude e longitude
que, pondo-me a coberto dos ventos,
sereias e pestes, nem me afaste
demasiado dos homens nem me
obrigue a praticá-los diuturnamente.
Porque esta é a ciência e, direi, a arte
do bem viver; uma fuga relativa, e uma
não muito estouvada confraternização.
De há muito sonho esta ilha, se é que
não a sonhei sempre. Se é que a não
sonhamos sempre, inclusive os mais
agudos participantes. Objetais-me:
“Como podemos amar as ilhas, se
buscamos o centro mesmo da ação?”
Engajados, vosso engajamento
é a vossa ilha, dissimulada e
transportável.201

A crônica, escrita pouco depois de o poeta haver


abandonado o Comitê de Redação da Imprensa popular,

201 ANDRADE. Divagações sobre as ilhas, p. 3.


220
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
alguns meses depois de aceitar o convite de Luis Carlos
Prestes para integrar o órgão, dispara alfinetadas aos
“participantes” sociais – também eles habitantes de
ilhas, saibam-no ou não –, num clima de manifesto pela
liberdade do escritor e da literatura. É importante dizer que
Drummond foi figura sempre ambígua do ponto de vista
político – de um lado, autor de uma poesia com momentos
de marcada sensibilidade social; de outro, chefe de
gabinete do ministro Gustavo Capanema, de 1937 a
1945, durante a Ditadura Vargas. Além disso, foi também
editor, na década de 1920, de um veículo de agremiação
política conservador, o Minas Gerais, sob direção de
Abílio Machado. Convicções políticas à parte, Drummond
reagiu firmemente contra o controle empreendido pelo
Partido Comunista sobre os cânones estéticos, atitude
que demonstra a aversão do poeta pelos rebanhos, cuja
habilidade de asfixiar a criação tantas vezes ameaçou os
escritores brasileiros, quando não foi fatal.

MÁRIO DE ANDRADE: UM HOMEM CINDIDO

“[...] pra meu espírito vale mais lançar


uma biblioteca popular ou fazer uma
pesquisa etnográfica do que escrever
uma obra-prima.”202

Mário de Andrade pode ser considerado o representante


máximo da contradição de que padecem os escritores
brasileiros nas décadas de 1920 a 1945. O revolucionário
202 ANDRADE. Carta de 29 de outubro de 1926.
221
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
em Mário toma a peito a necessidade inalienável de
mudar os rumos do Brasil, de maneira a inseri-lo no rol
das nações modernas e civilizadas. Para tanto, entende
ser imprescindível, primeiro, “descobrir o Brasil” – este
então ilustre desconhecido dos próprios brasileiros
– pelo caminho da cultura, entrando em contato com
as expressões populares, as variedades linguísticas,
manifestações folclóricas e todo o rico patrimônio
inexplorado do “continente” Brasil.
O projeto modernista de desbravamento do país
– a viagem ao interior do Brasil – estava na base da
aspiração estética dos modernos: engendrar uma arte e
cultura que se relacionasse com a tradição europeia ao
mesmo tempo que ostentasse uma cor genuinamente e
inconfundivelmente brasileira, para além dos estereótipos
do exotismo que sempre acompanharam qualquer
referência ao Brasil. Do barroco mineiro, do carnaval
carioca e do índio do Norte seria, pois, extraída essa
quintessência. Mas, diante de uma ocupação tão nobre e
absorvente, que espaço restava à expressão do escritor
em Mário de Andrade?
Naturalmente, como embaixador da modernidade
e autoridade estética entre seus contemporâneos, Mário
sofre com o “complexo do polígrafo”, ou o acúmulo de
funções do “intelectual total”, cuja competência cultural
abrange muitos domínios, “da literatura às belas-artes
e à música, do folclore à etnografia e à história”.203

203 MICELI. Os intelectuais e a classe dirigente no


Brasil (1920-1945), p. 25-26.
222
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Contudo, jamais escondeu que seu compromisso social
vinha antes de sua realização como escritor. E mesmo a
literatura é usada como instrumento para civilizar o Brasil,
indagar a respeito de sua formação histórica, propor
reflexão sociológica e elaborar teses que possivelmente
contribuíssem para a compreensão de um país ainda
incógnito para os seus. Não por acaso, ser o bastião
cultural da modernidade no Brasil soma-se à necessidade
do “arame” para viver. Mário buscou estar no exercício
direto de seu ideal, sobretudo, quando ocupa o cargo de
diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, no qual
pôde desenvolver seu projeto em pesquisas folclóricas
e colocar-se como formulador de políticas culturais que
pretendiam atingir as camadas menos privilegiadas da
sociedade. Além disso, faz militância estética nas inúmeras
publicações periódicas para as quais contribuiu – que se
encarregavam da divulgação do projeto modernista – e em
sua correspondência pessoal.
Ao adentrar o terreno franco da literatura, Mário não
se destitui de projeto. O compromisso é evidentemente
demasiado forte, mesmo quando o ficcionista entra
cena. Como revelam duas de suas obras – a primeira,
certamente a mais célebre e emblemática, Macunaíma, o
herói sem nenhum caráter (1928) – e a segunda – Quatro
pessoas (1938) –, a ficção marioandradina é tímida, isto é,
não desobrigada da necessidade de pesquisar o caráter
nacional, levanta um voo que se poderia dizer “rasante”, a
despeito do sincero esforço de um aplicado Mário.
Guardada a importância de Macunaíma para a

223
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
literatura brasileira, com a sintonia com a renovação
estética empreendida pelas vanguardas, e para a
consolidação do estatuto da modernidade no Brasil a
partir de uma tomada de consciência da ausência de um
caráter na cultura e no homem brasileiro, representada em
Macunaíma, o livro não existe como ficção independente –
ou “caso inventado”, nas palavras de Mário – e dificilmente
pode ser lido de forma descontextualizada, sem evocar os
muito particulares caminhos da formação histórica, social
e cultural do Brasil. No processo de composição, Mário
procedeu de modo a criar uma mistura de elementos
culturais tipicamente brasileiros, ou seja, ligados às muitas
e diversas tradições populares que povoam o celeiro
cultural brasileiro, as quais ficaram silenciadas sob as
tradições do homem branco. Para lograr o que pretendia
com a obra, Mário se serve das inúmeras viagens que fez
pelo Brasil, conforme o propósito modernista de desvendá-
lo. Em carta de 1927 a Luís da Câmara Cascudo, o escritor
assim explica o empreendimento:

Não sei se te contei ou não mas em


dezembro estive na fazenda dum tio
e...escrevi um romance. Romance ou
coisa que o valha, nem sei como se
pode chamar aquilo. Em todo caso
chama-se Macunaíma. É um herói
taulipangue bastante cômico. Fiz com
ele um livro que me parece não está
rúim e sairá em janeiro ou adiante, do
ano que vem. Minha intenção foi esta:
aproveitar no máximo possível lendas
tradições costumes frases feitas etc.
brasileiros. E tudo debaixo dum caráter

224
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
quase sempre lendário porém como
lenda de índio e negro. O livro quase
que não tem nenhum caso inventado
por mim, tudo são lendas que relato. Só
uma descrição de macumba carioca,
uma carta escrita por Macunaíma e
uns dois ou três passos do livro são
de invenção minha, o resto tudo são
lendas relatadas tais como são ou
adaptadas ao momento do livro com
pequenos desvios de intenção. [...] Um
dos meus cuidados foi tirar a geografia
do livro. Misturei completamente o
Brasil inteirinho como tem sido minha
preocupação desde que intentei me
abrasileirar e trabalhar o material
brasileiro. Tenho muito medo de ficar
regionalista e me exotizar pro resto
do Brasil. Assim lenda do Norte botei
no Sul, misturo palavras gaúchas com
modismos nordestinos ponho plantas
do Sul no Norte e animais do Norte
no Sul etc. etc. Enfim é um livro bem
tendenciosamente brasileiro.204

Trata-se, como definiu o próprio Mário, de uma


coletânea de lendas e costumes brasileiros, o que dá a
estrutura de uma rapsódia, e não de um romance, como
ainda hoje é erroneamente referido. A escolha de tal
gênero, ao lado da intenção confessa em sublinhar um
aspecto brasileiro, significativamente revela um voltar-se
da obra para fora, em que a invenção literária – embora
naturalmente ela não possa ser negada na obra, já que
existe uma manipulação criativa na maneira como os

204 ANDRADE. Carta 26 de novembro de 1925, p.


123.
225
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
traços culturais são arranjados – parece não ser a tônica,
nem mesmo a prioridade. Do ponto de vista da criação,
Macunaíma é exemplar da obra comprometida com a
representação – e demonstração, de forma satirizada –
da realidade, como o é também Quatro pessoas, caso
interessante do excesso de projeto, do vezo de explicar
e teorizar a realidade, sem afirmação da independência
criativa da literatura em mergulhar em seu próprio mundo
– e buscar outros.
Quatro pessoas, por sua vez, é um romance – ou,
a bem dizer, um projeto de romance – bastante sugestivo
da dificuldade, por assim dizer, em levar a bom termo a
intenção de produzir uma verdadeira obra de ficção. Em
1938, Mário pede demissão da chefia do Departamento de
Cultura de São Paulo e se muda para o Rio de Janeiro, onde
assume o cargo de professor na Universidade do Distrito
Federal. É quando dá início à escrita do livro – proposta
de “estudar por meio de dois amigos íntimos a doutrina de
Marañon sobre ser o verdadeiro macho o que se fixa em
amar uma fêmea só”.205 O texto, que se constrói em torno
de quatro personagens – dois casais –, nasce como um
projeto glorioso de uma espécie de romance psicológico,
no aparente intento de usar o fluxo de consciência como
procedimento romanesco, ou mesmo de realizar o texto
com um narrador em onisciência que “não fosse o próprio
Mário”. O resultado, como se pode verificar à medida
que progredimos na leitura do texto, é um desajeitado
“meio do caminho” entre os dois processos: a análise

205 ANDRADE. Quatro pessoas, p. 35.


226
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
psicológica é feita sem a técnica madura; as personagens
não têm voz, o que fica evidente na carência de diálogos;
o narrador é entidade massacrante e inoportuna, que
conduz o romance à rédea curta, de modo que o texto
não ganha ritmo e fluidez. Por fim, o narrador não é uma
instância textual, mas o próprio mal disfarçado Mário de
Andrade a falar, com o brasileirismo linguístico por que se
celebrizou, presente com a mesma pretensa naturalidade
tanto nos textos literários quanto em sua correspondência.
É provável que o próprio Mário estivesse ciente de tais
problemas, já que abandonou a escrita do romance em
1943. Nas passagens a seguir, é possível ter uma amostra
da pouca expressão nas falas das personagens:

Deixou os braços desalentado, num


gesto de juvenilidade graciosa,
vagamente feminina. Abaixou o rosto
para o lado, num desamparo infeliz,
um daqueles seus gestos instintivos,
sem nenhum cálculo, em que de tal
forma se misturavam nele uma eterna
juvenilidade perdoável e o trágico do
homem forte ferido, que era ao mesmo
tempo drama e esplendor, invencível.
Confessou:
— Eu gosto muito dela, sim... [...]
Estava terrível de ver, e em sua
beleza delicada e grave, havia todo
um desmanchamento de traços numa
expressão que não chegava a ser
de dor, não chegava a ser de fadiga,
era indistinta, quase agressiva, mas
em que se estampava um sinal de
voluptuosidade, incorreto, baixo,
espasmódico. Carlos ficou horrorizado.

227
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
— Maria, o que ‘ocê tem! você está
cansada, não!...e segurou-a pelos
braços lhe soerguendo um bocado
o busto, que ela largara sobre as
ancas, acentuando ainda mais a sua
incorreção de mulher um bocado
baixa.206

Pela leitura da correspondência de Mário, é possível


acompanhar seu progresso na escrita do romance, até o
esmorecimento total do projeto. O escritor partilha, em
especial com Oneyda Alvarenga, informações sobre a
obra inconclusa, quando do sopro inicial de sua criação.
Em carta de 19 de março de 1939, Mário diz estar “com
um romance engatilhado faz duas semanas” e mostra-se
ansioso por levá-lo a cabo, sem, contudo, encontrar tempo
para fazê-lo. Vejamos:

Oneida, recebi hoje o embrulho das


conferências e a nova carta. Já tinha
recebido a outra, sim, mas ficara
até agora sem resposta por causa
do trabalho. Hoje mesmo passei
estudando a tese do [...] pro concurso
de Folclore que principia amanhã e
de que sou um dos examinadores.
[...] Acabei ontem uma das minhas
reformas pedidas pelo Capanema,
mas não irei descansar. Dia 10 próximo
principiam as aulas da Universidade e
confesso que é com melancolia que
vejo se aproximar essa caceteação.
(....) Depois agora tenho muito mais
trabalho, com pelo menos dois artigos
a escrever por semana, e um deles de

206 ANDRADE. Quatro pessoas, p. 78 e 80.


228
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
crítica literária, pro Diário de Notícias,
o que me obriga e ler muito. A vida
continua encarcerada, como se vê,
mas com uma leve esperança de
milhorar financeiramente, pois estou
em véspera de pagar minhas dívidas,
com que venho há quase um ano me
esgrimindo. Como é pau dever!
[...] estou com um romance engatilhado
faz duas semanas e não acho jeito de
o principiar, tal o trabalho. E me parece
pena porque gosto dele. Mas quem
jamais não achou lindo o filho que vai
nascer! E é só. Pretendia escrever
só deum lado do papel, pois estou
aproveitando esta noite e a guarda
dominical do Senhor pra dar conta de
uma coluna de cartas. [...].207

O trecho dá a ver modelarmente a realidade de


um Mário polivalente, em alguma medida obrigado a sê-
lo pela necessidade do “arame” para viver, mas também
escolhendo de bom grado (e com algum inconfessado
prazer, embora diga o contrário) o desempenho de funções
diversas, por meio das quais lhe foi possível colocar em
exercício uma versatilidade que, ao tudo indica, ser-lhe-ia
difícil de conter. É o retrato do intelectual modernista, que
relembra-nos da “urgência em realizar o balanço do projeto
estético e político do Modernismo, a par de evidentes
contradições assumidas pelo intelectual, dividido entre um
projeto coletivo de cultura e o individualismo artístico”,208
aspecto flagrante na carta referida. Nela, Mário menciona
207 ALVARENGA. Mário de Andrade-Oneyda
Alvarenga: cartas, p. 182-183.
208 SOUZA. Autoficções de Mário, p. 193
229
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ter terminado “as reformas pedidas pelo Capanema”,
numa referência ao pedido que lhe fez o então ministro da
Educação e da Saúde, Gustavo Capanema, em 1936, para
que elaborasse um anteprojeto de lei para a preservação
do patrimônio cultural brasileiro. Mário, naturalmente,
não foi o único a tomar parte na esfera política. Outros
intelectuais como Manuel Bandeira, Heitor Villa-Lobos
e Rodrigo Mello Franco Andrade colaboraram como
consultores, formuladores ou defensores de propostas
educativas de programas do governo. Entre esses nomes,
destaca-se ainda o de Carlos Drummond de Andrade,
chefe de gabinete de Capanema durante todo o período
de sua gestão (1934-1945), como já mencionado.
O insucesso dessa empreitada, em particular – e
da obra de ficção em prosa de grande fôlego, o romance
– pode estar ligado, entre outras coisas, com a dificuldade
do escritor – em função do sem número de atividades que
acumulava – de encontrar disponibilidade de tempo para
a imersão de que a escrita que um texto dessa natureza
requer. Esse desejo – o de escrever um romance, ou
coisa que o valha, aparentemente, não era exclusivo a
Mário. Outros poetas, como Manuel Bandeira, também
o manifestaram. A diferença essencial entre a produção
de poesia e de prosa parece residir na questão da gestão
do tempo: enquanto a arte poética – poema a poema –
acontece normalmente de forma amiudada, espaçada, e
assim também o próprio conto, ao lado de outras formas
curtas em prosa, como a crônica e o ensaio, e o ideal é
que os intervalos em sua confecção não sejam longos; do

230
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
contrário, perde-se “o fio da meada”, e a cadência do texto
pode ser comprometida.
No trecho citado a seguir, Mário de Andrade medita
sobre o tema, a propósito da progressão de Quatro
pessoas, e corrobora essa visão:

Oneida
Estou com preguiça de escrever à
máquina mais hoje. Batia máquina o
dia inteiro e avancei inesperadamente
doze páginas no meu romance que
não há meios de avançar, tempo não
chega. Estou apenas na p. 27, tipo
ofício, datilografado, isto é, pra aí umas
50 páginas de impressão. Acabei o I
capítulo. Não sei se estará bom, é uma
coisa louca, uma análise psicológica
feroz. Duvido que alguém aguente e, o
pior, duvido que seja qualquer coisa de
bom. Mas é desses livros que o milhor,
se acabar, é não pedir a opinião de
ninguém, ou publicar ou destruir, mas
por conta própria, sem me garantir
de ninguém. Estou numa inquietação
horrível, e isso ainda maltrata mais o
avanço do livro, porque quando penso
em escrever me sinto sem força,
sem coragem pra perder tempo com
uma possível borracheira longa. Um
poema, até um conto, ainda a gente
não se inquieta de escrever e jogar
fora, mas um romance inteirinho, é
horrível, minha amiga.209

Num primeiro momento, a ingenuidade nos leva

209 ALVARENGA. Cartas: Mário de Andrade-Oneyda


Alvarenga, p. 191.
231
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
a crer ter escapado a Mário a clarividência sobre suas
limitações como ficcionista, e essa passa a ser, para
nós, a sua “pequena tragédia”. Entretanto, trechos como
o transcrito a seguir, extraído da crônica “Começo de
crítica”, publicada no Diário de Notícias do Rio de Janeiro
em 5 de março de 1939, contrariam nossas expectativas,
ao mostrar um Mário duramente lúcido:

É certo que, como já acentuaram


amigos meus e críticos, a parte da
ficção da minha obra se prejudicou
bastante pelos utilitarismos em que
voluntariamente a escravizei, as teses
que pretendi provar, os problemas que
repus na ordem do dia. Às vezes, nos
momentos de fraqueza ou vaidade,
me umedece por causa disso um certo
limo de melancolia, mas logo retomo
a ordem que me enrija o espírito
e o prejuízo não dói mais. Tenho
muito consciente conhecimento das
minhas forças para saber que não me
condena à glória nenhuma espécie de
fatalidade. Por mais livre que fosse a
minha ficção, jamais ela alcançaria as
alturas de um Murilo Mendes, de um
Manuel Bandeira, de um Lins do Rego,
Raquel de Queirós ou Amando Fontes
[...]. Nem sequer uma longa paciência
me faria alcançar as alturas desses e
outros grandes. Mas em compensação
tenho a forte alegria de reconhecer que
meus livros de ficção tiveram sempre
o efeito que lhes dei por destino. Só
me decepcionaram um bocado certos
virtuosismos de má morte, como o
romance do “Rola Moça”, o “Acalanto
do seringueiro” e poucos mais, obras

232
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de sentimentalismo fácil que uma
honestidade mais atenta não me
permitiria publicar. [...]
Outra obra que me deu desgostos
foi o Macunaíma. Sinto que tive
nas mãos o material de uma obra-
prima e o estraguei. Fazendo obra
sistematicamente de experimentação,
jurei no princípio de minha vida
literária jamais não me queixar
das incompreensões alheias. Acho
ridículos os incompreendidos. Mas,
por uma só vez, me seja permitido
afirmar que esse livro foi, no
geral, apreciado por uma feridora
incompreensão. Embora graciosa
porém não complacentemente tratado,
Macunaíma é uma sátira irritada, por
muitas vezes feroz. Mas brasileiro
não compreende sátira, em vez, acha
engraçado.210

O texto, que inaugura a contribuição de Mário de


Andrade para o Diário de Notícias carioca, na coluna até
então ocupada pelo escritor mineiro Rosário Fusco, tem
sabor de antecipado epitáfio. Nele, Mário passa a limpo
episódios incômodos, dignos de esclarecimento, em sua
trajetória literária e pessoal, como sua adesão ao Partido
Democrático – segundo Mário, mais por pressão dos
amigos que por vontade espontânea –, e divaga sobre
temas como Deus e a importância das obras de arte na
existência humana.
O que nos interessa de perto e merece comentário
na crônica, no entanto, como já referido, diz respeito à sua

210 ANDRADE. Quatro pessoas, p. 12.


233
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
autocrítica como escritor de literatura, sobretudo como
ficcionista. A consciência demonstrada por Mário sobre
seu cacoete de produzir pensamento e “fazer tese”, tendo
o texto literário como pretexto, chega a ser desconcertante.
Ele destaca Macunaíma como uma de suas experiências
literárias mais frustrantes, já que a recepção da obra
foi, segundo ele, marcada pela incompreensão.
Deliberadamente um trabalho de “experimentação”,
Macunaíma pretendeu satirizar a falta de “caráter”, isto
é, de identidade na nação brasileira, constituindo-se
um autêntico exemplar da “obra de tese”. Para Mário, o
“recado”, contudo, perdeu-se nas entrelinhas.
Não se pode deixar de anotar, ainda, o espanto que
Mário causa em seu leitor, sobretudo póstumo, ao afirmar a
inferioridade de sua ficção – ainda que ela tivesse gozado
da liberdade necessária para seu desenvolvimento –
em relação a nomes como Murilo Mendes, José Lins do
Rego e Manuel Bandeira (a menção deste surpreende
particularmente, já que Bandeira não produziu ficção).
Se pura retórica – captatio benevolentiae para angariar
a simpatia do leitor – de um Mário sedutor, ainda assim,
estamos diante de um dado, que, recolhido em um dos
textos de sua obra como cronista, dá força à hipótese que
vem sendo por ora explorada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Bastante lúcido do que lhe cabe como artista, Mário faz,


em carta a Drummond a defesa do escritor “torre-de-

234
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
marfim”. Habitando-a, ele não se converte em um inquilino
do sublime; a torre é a trincheira de onde deve combater
como lhe é mais natural: com palavras. As mesmas
mãos que, dispensadas de sujarem-se com a política dos
homens, encontrarão na torre a situação de liberdade ideal
à escrita:

Pela primeira vez se impôs a mim o


meu, nosso destino de artistas, a Torre
de Marfim. Eu sou um torre-de-marfim
e só posso e devo ser legitimamente
um torre-de-marfim [...] o intelectual,
o artista, pela sua natureza, pela sua
definição mesma de não conformista
não pode perder a sua profissão, se
duplicando na profissão de político.
Ele pensa, meu Deus! e a sua verdade
é irrecusável para ele. Qualquer
concessão interessada pra ele, prá
sua posição política, o desmoraliza,
e qualquer combinação, qualquer
concessão o infama. É de sua torre-
de-marfim que ele deve combater,
jogar desde o guspe até o raio de
Júpiter, incendiando cidades. Mas da
sua torre211.

À posição discursiva assumida por Mário,


acrescente-se: o escritor, seja da ilha, da torre, de
Pasárgada ou Shangri-Lá, é livre para eleger sua matéria,
desde que o faça, primeiro, para contar uma boa história.
211
ANDRADE; ANDRADE. A lição do amigo: cartas de
Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, p.
243. (Grifos meus).

235
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Afirmar que a literatura – a arte da ficção – não tem o
encargo de “salvar o mundo”, pela tematização do social,
não corresponde à defesa, para o escritor, do “não-
me-amolismo”, ou do alheamento aos problemas que
concernem à coletividade em seu tempo-espaço. Antes,
significa reconhecer que a literatura, indiferentemente de
possuir ou não uma coloração ideológica, define-se pelo
caráter imaginativo e por suas especificidades enquanto
linguagem artística. Em outras palavras: ideologia por
ideologia faz panfleto, mas não necessariamente arte. À
guisa de conclusão, sobre o vezo, na obra literária, de
explicar e analisar, em detrimento da fabulação, Isaac
Bashevis Singer sentencia: “A busca da mensagem fez
muitos escritores esquecerem que contar histórias é a
raison d’être da prosa artística.”

Referências

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O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó:
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238
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
239
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
CONTROLE DO IMAGINÁRIO E FICÇÃO: O
VAZIO COMO CATEGORIA CENTRAL DA
FICCIONALIDADE LITERÁRIA

Maria Elvira Malaquias de Carvalho

Considera-se o alemão Wolfgang Iser como teórico


paradigmático do evento designado como ficcionalidade
literária. A influência de sua obra se fez sentir em muitos
redutos da crítica acadêmica contemporânea que, a
despeito da crise de denominação, estatuto e demarcação
do domínio da literatura, continuaram a apostar na
contribuição da teoria da ficção como trabalho especulativo,
criativo e inovador diante dos desafios de abordagem do
fenômeno literário.
Em um ensaio denominado “A interação do texto
com o leitor”, Iser discorre sobre os espaços lacunares
importantes para a construção e a colisão de imagens
conflitantes no ato da leitura. Para Iser, “o vazio no texto
ficcional induz e guia a atividade do leitor”212 e, na medida
em que os objetos literários são objetos indeterminados,
“os vazios não funcionam apenas como simples
meios de interrupção, mas sim como uma estrutura de
comunicação.”213

212 ISER. A interação do texto com o leitor, p. 130.


213 ISER. A interação do texto com o leitor, p. 124.
240
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Na condição de intérprete privilegiado da obra de
Wolfgang Iser no Brasil, Luiz Costa Lima vem construindo,
há mais de três décadas, sua teoria do controle do
imaginário, disseminando-a em vários volumes ao longo
dos anos. A noção de controle do imaginário carece de
especificidade conceitual, devido à grande plasticidade
que tal terminologia adquire nos distintos contextos em que
Costa Lima a utiliza. De fato, o crítico brasileiro não ignorou
a imbricação entre controle e ficção na composição de seu
argumento, e chegou a afirmar: “Se o controle se mostra
com maior precisão na literatura é tão só porque o ficcional
é sua matéria-prima.”214 Pode-se constatar que Luiz Costa
Lima desenvolveu minuciosamente as diferenciações
conceituais entre “literatura”, “história” e “ficção”, mas se
esquivou de fazer o mesmo trabalho quanto às noções de
“ficção” e “controle do imaginário”.
Ao reivindicar, como componente da obra ficcional,
a “relevância estética dos vazios,215 Iser salienta o
modo como a consciência imaginante do leitor age na
produção e na anulação dos sentidos possíveis de um
texto. Destaca ainda o modo pelo qual o texto de ficção
consegue se estabelecer como comunicação, ainda que
com suas características particulares, características que
salientam o “vazio central à experiência”216 e a carência
como marco da “assimetria fundamental entre texto e
leitor”.217 A teoria iseriana reconhece que as contingências
214 LIMA. Trilogia do controle, p. 413.
215 ISER. A interação do texto com o leitor, p. 110.
216 ISER. A interação do texto com o leitor, p. 86.
217 ISER. A interação do texto com o leitor, p. 88.
241
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
do fenômeno literário devem estar representadas em um
jogo performático que inclui autor, texto e leitor.
No livro Limites da voz, Luiz Costa Lima ratifica
a importância da noção de vazio, argumentando que
sua constituição é correlata à afirmação do eu, e que a
marca do vazio é “copresente ao sujeito psicologicamente
orientado”.218 O controle do imaginário dificilmente poderia
assumir uma existência concreta e totalmente objetiva.
Embora, em princípio, ocupem posições distintas no
tratamento da Lei e da transgressão, o controle e a ficção
se assemelham na prática, e ambas as instâncias são
necessárias para a constatação do vazio como categoria
central da ficcionalidade literária. Para Luiz Costa Lima, o
vazio é “um elemento constitutivo, embora não exclusivo,
da obra literária, [...] e um dos instrumentos para que se
verifique o controle do imaginário”.219
Em artigo disponibilizado em francês, no qual
apresenta ao público canadense os parâmetros conceituais
de sua hipótese, Costa Lima aponta claramente: “Quando
[...] falo do controle do imaginário, eu me questiono sobre
as condições histórico-sociais que impedem ou restringem
a atualização do território da ficção”.220 O advento
do controle se justifica na medida em que a ficção é
compreendida como uma ameaça de desestabilização aos

218 LIMA. Limites da voz: Montaigne, Schlegel, Kafka,


p. 57.
219 LIMA. Limites da voz: Montaigne, Schlegel, Kafka,
p. 103.
220 LIMA. Le contrôle de l’imaginaire et la littérature
comparée, p. 18.
242
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
valores estatuídos em certo período histórico e em dada
sociedade. Embora ressalte que controle não é sinônimo
de censura, Costa Lima mantém a argumentação de que
todo controle supõe domesticação e ajuste a normas
sociais. É também importante destacar que a teorização
sobre o controle segue paralela a uma abordagem sobre o
nascimento da individualidade moderna.
Reconhecer que a obra de ficção possui certas
características ficcionais que tornam o texto literário um
acontecimento estético único não foi algo facilmente
tematizado pela cultura literária ocidental. A propósito,
Wolfgang Iser compreende que as implicações
antropológicas da ficcionalidade literária, até a nossa
época, “receberam pouca atenção”221 dos especialistas.
Apenas modernamente, conseguiu-se demonstrar que
as ficções, enquanto construções auxiliares destinadas
a alcançar determinados fins, são recursos heurísticos
indispensáveis ao pensamento, como alega Hans
Vaihinger:

[...] assinalamos suficientemente a


importância das ficções para a teoria
do conhecimento; e neste contexto se
trata de dar primazia a que estas ficções
epistemológicas, isto é, as categorias,
principalmente, são absolutamente
imprescindíveis para o pensamento,
pois, do contrário, o pensamento não
poderia ser discursivo.222

221 ISER. O fictício e o imaginário: perspectivas de


uma antropologia literária, p. 94.
222 VAIHINGER. A filosofia do como se: sistema das
243
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A designação da ficção como construção auxiliar
do pensamento discursivo está diretamente relacionada ao
papel que a imaginação desempenha na psique humana
e na afirmação dos constructos fictícios daí derivados
como indispensáveis para a teoria do conhecimento. Em
determinado momento da era moderna, segundo Iser, a
“ficção se torna fictícia”,223 e o discurso filosófico tem de
aceitar a duplicidade constituinte da ficção: “ela se funda
naquilo que produz”,224 afirma Iser. Entidades fictícias
existem apenas no discurso, mas se diferenciam das
realidades discursivas por elas produzidas.
Não bastassem as complicações evidenciadas na
conceituação da ficção, o controle do imaginário também
se apresenta como um postulado precário, na medida em
que até pode ser um princípio reconhecido como fato,
mas não pode ser logicamente demonstrado. Admitida
esta dificuldade que se encontra na raiz do problema,
discutir os limites ontológicos e epistemológicos entre os
conceitos de ficção e de controle do imaginário implica
enveredar rumo a um terreno confuso e selvagem, o qual
parece ter sido evitado pelo próprio Luiz Costa Lima. É
provável que seja por essa razão que o teórico brasileiro
denomine o controle do imaginário de “hipótese”, e não
de “tese”, e que, em algumas declarações, deixe claro

ficções teóricas, práticas e religiosas da humanidade, na


base de um positivismo idealista, p. 263.
223 ISER. O fictício e o imaginário: perspectivas de
uma antropologia literária, p. 119.
224 ISER. O fictício e o imaginário: perspectivas de
uma antropologia literária, p. 154.
244
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
que jamais poderá terminar sua hipótese, isto é, prová-la
cabalmente. Alega que “este não é um projeto passível de
ser realizado por uma só pessoa. Como só conto comigo
mesmo; tenho de me contentar com o pouco que faço.”225
Mais especificamente, Costa Lima sustenta:

Eu não escrevi e não hei de escrever


uma história sistemática do controle
do imaginário, ainda que eu só me
interessasse nisso como uma terceira
via (isto é, aquela que se constitui
de ficções verbalmente realizadas),
posto que uma tarefa semelhante não
poderia ser levada a termo por uma
única pessoa vivendo nas condições
precárias do terceiro mundo. Eu ficarei
feliz se esta hipótese for julgada
válida no sentido de uma melhor
compreensão da obra ficcional em
nosso mundo.226

Com uma obra extensa, reconhecida não apenas


pelo público acadêmico brasileiro, mas também pela
comunidade internacional, Costa Lima atualmente deve ter
certeza de que sua hipótese de trabalho foi considerada
válida por muitos críticos e teóricos ao redor do mundo. No
advento de um reconhecimento científico tão acolhedor, em
que não se veem adversários de certas ideias ou polêmicas
contra determinadas posições, qualquer hipótese pode
fatalmente se acomodar em truísmos e perder sua força

225 LIMA. Limites da voz: Montaigne, Schlegel, Kafka,


p. 17.
226 LIMA. Le contrôle de l’imaginaire et la littérature
comparée, p. 7.
245
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de contestação original. Logo, é exatamente agora, neste
momento em que alcança tamanha aprovação institucional,
que se faz necessário apontar na teoria costalimiana o
detalhe que a desestabiliza por inteiro, ativando-lhe sua
disjunção latente. Penetrar a zona do equívoco e da aporia
é indispensável para a renovação crítica de qualquer
formação discursiva.
“Para combater-se a ficção, necessita-se de uma
ficção que não se formule como ficção. E a sociedade
nos será agradecida.”227 Eis a mais preciosa sentença que
podemos extrair de Costa Lima, tamanha a perversidade
que guarda em si. Atentemos para o uso do plural
majestático, também chamado, por certos gramáticos,
de plural de modéstia. Esse torneio discursivo consiste
no fato de que “escritores e oradores costumam, por
modéstia, usar a 1ª pessoa do plural pela correspondente
do singular.”228 No trecho citado, o plural de modéstia, na
função do pronome objeto “nos”, confere, ao mesmo tempo,
um sentido genérico e íntimo, mas nunca comprometedor,
para quem redige e para quem lê a sentença. Afinal, a
quem se refere o pronome “nos” em destaque no trecho
supramencionado? Aos críticos literários? Aos escritores
e poetas? Aos censores? Aos ficcionistas? Aos leitores?
A partir de tal sentença, podemos perscrutar a
dialética do “vazio dinâmico”,229 da qual falava Iser, ao
227 LIMA. História. Ficção. Literatura, p. 244.
228 CEGALLA. Dicionário de dificuldades da língua
portuguesa, p. 309-310.
229 ISER. O fictício e o imaginário: perspectivas de
uma antropologia literária, p. 283.
246
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
caracterizar o jogo constituinte da ficcionalidade literária.
Uma leitura estreita dos parâmetros conceituais que
sustentam a hipótese do controle do imaginário tenderá a
indicar que o controle tem atuado como inibidor e constritor
da atividade ficcional no Ocidente. Portanto, deve-se
admitir que “o problema do controle do imaginário [...]
acompanha a instituição literária”,230 como afirma o teórico
brasileiro.
Contudo, a teoria da mímesis que Costa Lima tem
construído é bem mais complexa do que parece à primeira
vista, sobretudo quanto aos aspectos que incidem sobre
a definição do estatuto da ficção e do estatuto do controle
do imaginário. Para lutar contra a ficção, foi necessário
ao controle assemelhar-se a ela, refletir e agir como se
fosse uma ficção. Ao contrário, para resistir à opressão
do controle do imaginário, foi necessário que o discurso
ficcional tomasse cautelosamente certas feições do
controle, ou que se tornasse sua paródia escandalosa.
Colocados ambos diante do espelho, nem a ficção nem
o controle sabem identificar-se exatamente, uma vez que
partilham suas propriedades e suas impropriedades há
tanto tempo e sem escrúpulo algum. Instituído o pacto
ficcional e social, fica estabelecido que o controle precisa
da ficção e a ficção precisa ser controlada, a fim de que a
sociedade nos seja agradecida.
A sentença recorre à utilização tripla do termo ficção,
fato que turba a linha de demarcação entre o controle

230 LIMA. Limites da voz: Montaigne, Schlegel, Kafka,


p. 32.
247
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e a ficção enquanto entidades conceituais precárias.
A partir de um procedimento metonímico que emprega
uma palavra em lugar de outra, cujo significado sugerido
é concomitante ao significado em relevo, Costa Lima
desloca a referência de um conceito para o outro. Não se
deve esquecer que, em Wolfgang Iser, a própria definição
de ficcionalidade literária torna-se uma contradictio in
adjecto, porque é caracterizada “por uma negatividade
que possibilita a copresença de posições incompatíveis
entre si.”231 Decorre daí que a ficção é uma área discursiva
que admite a movência do eu. “O ficcional implica uma
dissipação tanto de uma legislação generalizada, quanto
da expressão do eu”232 salienta, por sua vez, Costa Lima.
Assim, uma ficção que não se formula como ficção
é quase uma ficção que não se direciona à transgressão,
e sim à norma. Este raciocínio deve então corroborar a
existência de uma ficção a qual, ainda que se apresente
com todas as qualidades ficcionais, formula-se também
sob a forma da Lei e do dever incondicional. A tênue linha
divisória entre o controle e a ficção assegura que o controle
do imaginário e a ficção possam atuar como forças, em
princípio, díspares; porém, na prática, convergentes
para o mesmo fim, seja para salvaguardar a Lei em seu
caráter ficcional, seja para fazer da transgressão uma lei
moral. Na medida em que a ficção se estabiliza, por assim
dizer, como uma forma sem realidade, como uma forma
sem conteúdo, ou como um livro sobre nada, como dizia
231 ISER. O fictício e o imaginário: perspectivas de
uma antropologia literária, p. 97.
232 LIMA. Trilogia do controle, p. 452.
248
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Flaubert, o vazio assume o estatuto de categoria central
da ficcionalidade literária.
Comentador e admirador de Wolfgang Iser, Costa
Lima encarece a função capital do conceito de vazio tanto
na obra do teórico alemão, quanto nos ensinos que dela
tem retirado para seu trabalho. “Para que o vazio tenha
a potência que reconhecemos, será necessário que o
receptor leve a cabo e atualize a transgressão informe do
imaginário”233, salienta Costa Lima. A substância última do
controle é a ficção, e a própria ficcionalidade literária possui
uma determinação vaga, a ser preenchida por ocupações
imaginárias.
Tal como no imperativo categórico kantiano, o
controle do imaginário, postulado como forma literária, é
puramente formal, não descreve seu conteúdo e é destituído
de sujeito da enunciação. O controle do imaginário e sua
vizinhança com a ficção configuram uma obediência
cega e irracional à Lei, tomada como um nada privado de
objeto. Esta configuração apenas poderá ser retraduzida
no superego freudiano, como ordenamento de gozo cego
e destrutivo. E a sociedade nos será agradecida.

233 LIMA. História. Ficção. Literatura, p. 286.


249
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Referências

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ficções teóricas, práticas e religiosas da humanidade, na
base de um positivismo idealista. Tradução de Johannes
Kretschmer. Chapecó: Argos, 2011.

250
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A EXPRESSÃO E A LINGUAGEM
CARNALIZADA DE MAURA LOPES
CANÇADO EM HOSPÍCIO É DEUS

Márcia Moreira Custódio

O presente texto visa mostrar o lugar da escrita de Hospício


é deus – diário I (1965), de Maura Lopes Cançado (1929-
1993), no projeto filosófico da fenomenologia da percepção,
de Maurice Merleau-Ponty, levando em conta as reflexões
sobre a criação autoficcional, o espaço manicomial e o
quadro de loucura da autora.
Compreendida como uma obra representante da
literatura nacional contemporânea que traz como tema
central a loucura, Hospício é deus revela-se peculiar por
duas razões: constituir-se um diário e ser escrito por uma
louca. Seu espaço ficcional permite a pluralidade identitária
entre autor e narrador que, nesse caso, é reforçado pelo
processo de esquizofrenia de Maura. O livro foi escrito
durante a internação de Maura no Hospital Psiquiátrico
Gustavo Riedel, no Engenho de Dentro-RJ entre 25-10-
1959 a 7-3-1960. Nele encontramos o ponto de vista
do diagnosticado louco que escreve sobre si mesmo –
algo pouco comum na literatura brasileira, uma vez que
narrativas sobre insanos costumam aparecer através da
visão mais ou menos idealizada de quem é “normal”.

251
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Pelo fato de a narrativa de Hospício é deus favorecer
o deslizamento entre Maura autora e Maura narradora
no discurso, seu relato situa-se na fronteira híbrida
da autobiografia e da ficção, abarcando o conceito de
autoficção construído por Serge Doubrovsky. Em Fils, 1977,
este autor afirma que no discurso autoficcional o escritor
estabelece um pacto oxímoro com o leitor, e este, por sua
vez, levanta o questionamento sobre a identidade real do
sujeito, estabelecendo a dupla recepção da obra – ficcional
e autobiográfica. Entende-se, com isso, que a narrativa de
Hospício é deus, caracterizada como autoficcional por ser
de cunho íntimo, não está afastada do real, pois Maura é
afetada pelos acontecimentos sociais na sua interioridade,
repercutindo, assim, na escrita, suas dores, frustrações,
alegrias e anseios. Esse tipo de narrativa, que surge no
final do século XIX e ganha espaço com novas roupagens
em sua estrutura nos anos 1960, enfrenta barreiras para
ser classificada como fazer literário pela análise crítica.
Compreende-se que autoficção não constitui gênero
específico, por transcender o pacto autobiográfico entre a
vida da autora e a fidelidade do fato narrado, pois podem
fazer referência a uma suposta realidade. Doubrovsky vai
definir a escrita autoficcional como versão pós-moderna
da autobiografia, uma vez que há uma ambivalência do
sujeito e deslizamento do vivido, mesclando os gêneros
referencial e ficcional, ou seja, romance e autobiografia,
verdade e invenção. Embora encontre o registro de
datas, Hospício é deus é uma escrita do presente, em
que não se constrói uma recapitulação histórica e fiel dos

252
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
acontecimentos, mas, sim, uma atualização dos fatos, com
novas possibilidades de criação. Segundo Doubrovsky,

Ficção, de acontecimentos e fatos


estritamente reais; se se quiser,
autoficção, por ter confiado a
linguagem de uma aventura à aventura
da linguagem, fora da sabedoria
e fora da sintaxe do romance,
tradicional ou novo. Encontro, fios de
palavras, aliterações, assonâncias,
dissonâncias, escrita de antes ou de
depois da literatura, concreta, como se
diz em música. Ou ainda: autofricção,
pacientemente onanista, que espera
agora compartilhar seu prazer.234

Nesse sentido, na autoficção, a intensidade


narrativa revela-se diferente da história vivida, na medida
em que ocorre a transposição do eu no texto por meio
da escrita que será afetada pelas marcas estéticas da
criação. Nessa prática incorre, por extensão, uma escrita
de autoanálise, uma vez que a distância entre o vivido e
o narrado possibilita a reflexão autoanalítica e crítica, por
lançar no universo ficcional a exteriorização da história
de sua vida, buscando autocompreensão. Ao recontar as
experiências do passado, mesmo que próximas, Maura o
faz pela rememoração dos fatos, não sendo mais contadas
tais como primeiramente as vivenciara, porque, agora, há
um novo sujeito que escreve sobre elas, remetendo-as
à ficcionalização. Essa projeção na escrita acontece de
forma mais livre, mesclada de idealização. A linguagem

234 DOUBROVISKY. Fils, quarta capa.


253
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
da sintaxe, não conseguindo acomodar todas as formas
de expressões, pela dupla falta, a sentida no mundo pelo
autor e o próprio vazio da sintaxe em explicá-las, avança
para a linguagem cromática e multilíngue da criação.
Para dizer as coisas como são, para suprir essa falta, o
artista literário utiliza-se da criação. Gilles Deleuze e Félix
Guattari explicam:

É aí que o estilo cria a língua. É aí que


a linguagem devém intensiva, puro
contínuo de valores e de intensidades.
É aí que toda língua devém secreta, e
entretanto não tem nada a esconder,
ao invés de talhar um subsistema
secreto na língua. Só se alcança esse
resultado através de sobriedade,
subtração criadora. A variação
contínua tem apenas linhas ascéticas,
um pouco de erva e água pura.235

Entende-se então que, a fim de dar contar da


realidade referente, o narrador transporta a linguagem
para o campo da metáfora, ou seja, o campo da
linguagem literária, intensiva. Isso explica como, mesmo
com a presença dos dados factuais, a narrativa se torna
romanceada, fabulada, sendo alterada por questões
pessoais ou estéticas. Paradoxalmente, na linguagem
literária, pretendendo dizer o real, o narrador acaba
falhando, mas, ao falhar, diz outra coisa, desvenda um
mundo mais real do que aquele que se pretendia dizer. E,
em relação ao autor, este se oblitera na narrativa, tornando-

235 DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs: capitalismo e


esquizofrenia, p. 45-46.
254
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
se mais indefinido e impessoal, embora carregando a
identidade nominal. Lúcia Castello Branco e Ruth Silviano
Brandão afirmam que:

O texto de Maura se escreve, dessa


forma, à margem, no limiar, nos limites
de um entrelugar. Além de diário,
é diário de uma ficcionista – o que
recebemos como realidade, como
confissão, pode não passar de ficção,
habilmente trabalhada pela voz de sua
narradora.236

A obra, como experiência estética, engendra um


modo específico de (des)subjetivação na qual Maura, via
percepção estética, busca sentido para o mundo e para si
mesma. Assim, Maura se desdobra em outra, mediada pela
imaginação criativa, numa compreensão da subjetividade
como devir, em uma estética da existência, na qual a
própria vida pode se (re)criar. Essa escritura confessional
se revela, enquanto forma textualizada, a do tempo vivido.
Sua narrativa nos oferece um tempo múltiplo que se
superposiciona, diferenciando-se dos marcos gerais da
história oficial, com novos marcos plenos de significados,
capazes de constituir uma outra história para aqueles que
os compartilham. Sébastien Hubier, ao evidenciar seu
conceito de autoficção, vai expor os privilégios do seu uso:

Um dos privilégios da autoficção,


fundado sobre um pacto oximoro,
seria então a possibilidade de falar,
por ela, de si mesmo e dos outros
236 BRANDÃO; CASTELLO BRANCO. A mulher
escrita, p. 164.
255
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
sem nenhuma forma de censura, de
entregar todos os segredos de um eu
variável, polimorfo, e de se afirmar
livre finalmente de ideologias literárias
aparentemente defasadas. Ela
oferece ao escritor a oportunidade de
experimentar a partir de sua vida e de
sua ficcionalização, de ser ao mesmo
tempo ele mesmo e um outro.237

Nesse outro lugar, o da narrativa autoficcional, as


diferenças sociais assumem uma força de expressão e
geram a instauração de signos sensíveis para os fatos que
integram a narrativa. Na narrativa, Maura inscreve-se como
ela mesma e como ficção, revelando-se não como uma
espectadora imparcial frente à vida, mas participante dela
ativamente, por meio de seu corpo, com seus movimentos,
afetos, pensamentos, percebendo, sendo percebida e se
autopercebendo, reconhecendo-se como autora e coautora
de sua história, ao lado dos outros significativos com os
quais convive no ambiente hospitalar. É possível perceber
sua obra como reflexo das nuances de seu temperamento,
de tímida era levada a grandes explosões. O aspecto da
escrita desvela esteticamente as marcas da expressão de
Maura, conferindo ao texto inovações que se manifestam
no decorrer da prosa, quando apresentam, mesclando-
se, poesias, onomatopeias, lacunas, fluxo de consciência,
frases inteiras em maiúsculas indicando alteração no tom,
numa mútua afiguração de ligação entre pensamento,
linguagem e corpo.

237 HUBIER. Littératures intimes: Les expressions de


moi, de I’autobiographie à I’autofiction, p. 125.
256
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Verifica-se na escrita de Maura sua irrupção também
no corpo do texto, quando oscila entre a horizontalidade e
a verticalidade do pensamento. Isto também se vê refletido
na estrutura da obra, que se desloca da memória para o
diário, e que, algumas vezes, do presente emerge apenas
relatos do passado. Isso se explica pelo fato de o processo
da escrita autoficcional estar mais fortemente ligado ao
exercício do corpo, porque, no ato do lembrar, o escritor-
narrador-personagem executará o trabalho de ressuscitar
para, logo em seguida, matar, ou seja, refletir o que foi
vivido e que jamais voltará. A violência do lembrar suscita
as fortes emoções do viver. Maurice Blanchot, em sua
obra A conversa infinita, afirma que escrever “evoca uma
operação cortante, uma carnificina talvez: uma espécie
de violência”,238 visto que a escrita libera o pensamento,
exigindo o máximo de imersão no significante e significado.
O mergulho na ordem ou na desordem do pensamento
aflora plena de matizes, carregado de conflitos, pois
a escrita humanizada não se isenta das contradições
inerentes ao escritor. No excerto abaixo a narradora deixa
sua impressão sobre o lugar, sobre si mesma e sobre a
própria escrita:

Aqui estou de novo nesta ‘cidade


triste’, é daqui que escrevo. Não sei se
rasgarei estas páginas, se as darei ao
médico, se as guardarei para serem
lidas mais tarde. Não sei se têm algum
valor. Ignoro se tenho algum valor,
ainda no sofrimento.239
238 BLANCHOT. A conversa infinita, p. 66.
239 CANÇADO. Hospício é Deus: diário I, p. 31.
257
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
É notável o uso de palavras e expressões que
remetem aos sentidos, como “cidade triste”, “sofrimento”
e “sombrio”. A escrita surge aqui como uma exteriorização
de uma necessidade do corpo, cujo fim ainda não foi
definido. Não há um jorro inconsciente de palavras, há uma
sequência de ideias concatenadas, que revelam o estado
de angústia, de vazio e desesperança da narradora. É a
expressão de uma reflexão corporal. Os sentidos, sempre
aguçados, formam uma unidade com o corpo de Maura,
desvelando uma dupla inscrição: do dentro e o do fora.

Faz muito frio. Estou em minha cama,


as pernas encolhidas sob o cobertor
ralo. Escrevo com um toquinho de lápis
emprestado por minha companheira
de quarto, dona Marina. O quarto é
triste e quase nu: duas camas brancas
de hospital. Meu vestido é apenas o
uniforme de fazenda rala sobre o corpo.
Não uso soutien, lavei-o, está secando
na cabeceira da cama. Encolhida de
frio e perplexidade, procuro entender
um pouco. Mas não sei. É hospício,
deus – e tenho frio.240

Nesse contexto, o frio comunica mais que um sentir


táctil, é o reconhecimento carnal do hospício. O espaço
não é representado sob o signo do entendimento, mas
de imagens ou metáforas que, mais do que estéticas,
ou exatamente por isso, delineiam, pela percepção, o
ambiente vivido. Essa relação com o mundo ultrapassa o
sensorial, deflagrando-se em uma relação total e afetiva

240 CANÇADO. Hospício é Deus: diário I, p. 32.


258
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
com o meio. A significação do mundo confunde-se com a
do conhecimento: o corpo sente frio, sentir frio machuca o
corpo, o hospício machuca o corpo, o hospício é frio.

Portanto, nós não reduzimos a


significação da palavra e nem mesmo
a significação do percebido a uma
soma de “sensações corporais”, mas
dizemos que o corpo, enquanto tem
“condutas”, é este estranho objeto
que utiliza suas próprias partes
como simbólica geral do mundo, e
através do qual, por conseguinte,
podemos “frequentar” este mundo,
“compreendê-lo” e encontrar uma
significação para ele.241

Assim, a linguagem expressiva é o modo pelo


qual o sujeito falante adquire o sentido que quer exprimir.
Merleau-Ponty diferencia a fala falante da fala falada.
Aquela emerge no ato instituinte e criativo da linguagem,
ou seja, quando não se sabe exatamente o que vai ser
comunicado, mas já existe um querer dizer. Esta constitui
a base da comunicação social, visto que é o próprio
saber sedimentado na linguagem. Na fala falante a fala
falada se mobiliza em benefício da expressão. Não há um
pensamento exterior à expressão nem existência dele que
ela se concretize, seja em palavras, gestos, sons ou cores.
No espaço da escrita de Maura, a existência humana
e as relações sociais, transpostos sob o olhar particular
da escritora em seu espaço vivido, são responsáveis pela

241 MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção,


p. 317.
259
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
densidade do conteúdo, da forma literária e também por
suas características que abrigam outras temporalidades. A
linguagem literária de Maura é a de corpo-vivido ou corpo-
próprio. Não há dicotomia entre realidade e consciência,
ou seja, entre o corpo da narradora e o meio, resvalando
para uma perspectiva fenomenológica merleau-pontyana,
com um novo modo de conceber o corpo.
Para Merleau-Ponty, antes de ser um objeto, o
corpo é nosso modo próprio de ser-no-mundo. É o corpo
que realiza a abertura do homem ao mundo: “O corpo é
nosso meio geral de ter um mundo.”242 Em Fenomenologia
da percepção, o autor afirma que esse tipo de comunicação
é uma apreensão sensível na base da compreensão da
fala e do gesto corporal - “[...] eu não percebo a cólera
ou a ameaça como um fato psíquico escondido atrás do
gesto, leio a cólera no gesto, o gesto não me faz pensar na
cólera, ele é a própria cólera”, 243 recorrendo à expressão
emocional dos gestos para encontrar aí os primeiros
indícios da linguagem como fenômeno autêntico.
A escrita de Maura emerge como gesto de um
corpo que é todo relação de sentido com o ambiente
manicomial onde está internada. Assim, pode-se destacar
o caráter eminentemente corpóreo de sua expressão em
articulação com sua apreensão de sentido do ambiente
como um espaço completamente hostil. O corpo fala, mas
não fala sozinho, fala com alguém, fala para um outro, sua
242 MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção,
p. 203.
243 MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção,
p. 251.
260
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
essência é dialógica.

Não continuarei. Sairei louca gritando.


Até quando haverá pátios? Mulheres
nuas, mulheres vestidas – mulheres.
Estando no pátio não faz diferença. Mas
esta mulher, rasgada, muda, estranha,
um dia teria sido beijada. Talvez um
bebê lhe sorrisse e ela o tomasse no
colo, por que não? Não aceito nem
compreendo a loucura. Parece-me
que toda a humanidade é responsável
pela doença mental de cada indivíduo.
Só a humanidade toda evitaria a
loucura de cada um. Que fazer para
que todos lutem contra isto? Não acho
que os médicos devam conservar
ocultos os pátios dos hospícios. Opto
pelo contrário; só assim as pessoas
conheceriam a realidade lutando
contra ela. ENTRADA FRANCA AOS
VISITANTES: não terá você, com seu
egoísmo, colaborado para isto? Ou
você, na sua intransigência? Ou na
sua maldade mesmo?244

Sobressai assim um tom de denúncia e desabafo


marcante neste excerto. Ao mesmo tempo em que fala de
si, desvenda o outro, colocando em questão as dificuldades
diárias, de modo que o cotidiano aparece como artifício
narrativo.
A capacidade expressiva do corpo transcende os
mecanismos de sua fisiologia, revelando sua segunda
natureza: o social. No fragmento abaixo é possível
observar a projeção de uma linguagem que é o próprio

244 CANÇADO. Hospício é Deus: diário I, p. 147-148.


261
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
sentir exterior:

Estou de novo aqui, e isto é ______


Por que não dizer? Dói. Será por isto
que venho? – Estou no Hospício,
deus. E hospício é este branco sem
fim, onde nos arrancam o coração a
cada instante, trazem-no de volta, e
o recebemos: trêmulo, exangue – e
sempre outro. Hospício são as flores
frias que se colam em nossas cabeças
perdidas em escadarias de mármore
antigo, subitamente futuro – como
oque ainda não se pode compreender.
São mãos longas levando-nos para
não sei onde – paradas bruscas,
corpos sacudidos se elevando
incomensuráveis: Hospício é não se
sabe o quê, porque Hospício é deus.245

A primeira pessoa e o tempo verbal no presente


revelam a experiência de um agora agônico de um sujeito
falante construindo o pensamento de hospício pela
percepção carnal com que este se lhe apresenta. Operam
para isso especialmente a visão e o tato. Embora marcado
por datas, o tempo se revela em perpetuo fluxo, carregado
de síntese das vivências da consciência.

Estranha a minha situação no hospital.


Pareço ter rompido completamente
com o passado, tudo começa do
instante em que vesti este uniforme
amorfo, ou, depois disto nada
existindo – a não ser uma pausa
branca e muda. Estou aqui e sou. É a
única afirmativa, calada e neutra como

245 CANÇADO. Hospício é Deus: diário I, p. 28.


262
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
os corredores longos. Ou não sou e
estou aqui? – Cada momento existe
independente, tal colcha formada de
retalhos diferentes: os quadradinhos
sofrem alteração, se observados
isolados. Entanto, formam um todo.246

Verifica-se assim que o tempo para Maura é sempre


o presente. Registrá-lo em datas é menos uma clausura
do que a chance de lançar um novo olhar sobre o texto.
Não há uma conservação corporal do passado. Ocorre
uma nova percepção do fato. Merleau-Ponty, ao explicar
esse fenômeno, ilustra da seguinte maneira:

Esta mesa traz traços de minha vida


passada, inscrevi nela as minhas
iniciais, nela fiz manchas de tinta.
Mas por si mesmos estes traços
não remetem ao passado: eles são
presentes; e, se encontro ali signos
de algum acontecimento “anterior”,
é porque tenho, por outras vias, o
sentido do passado, é porque trago
em mim essa significação.247

Assim, cada leitura acarretará em novos


significados. A percepção é sempre de um agora, o olhar é
sempre pelo presente, nunca pelo passado:

[...] um fragmento conservado do


passado vivido no máximo só pode ser
uma ocasião de pensar no passado,
não é este que se faz reconhecer;

246 CANÇADO. Hospício é Deus: diário I, p. 32.


247 MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção,
p. 553.
263
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
o reconhecimento, quando se quer
derivá-lo de qualquer conteúdo que
seja, sempre se precede a si mesmo.248

A leitura caracteriza-se em desdobramento de


corpos. Há uma parceria no processo de leitura do texto.
O autor apresenta signos e o leitor os ultrapassa, apalpa
as imagens e escuta seus sons, transformando-os em
linguagem falante. A apalpação pelo olhar rompe a fronteira
do corpo do autor atingindo o corpo do leitor. Pela leitura
ocorre a apalpação pelo olhar numa experiência tanto do
leitor quanto do seu texto, mesclando-se pela articulação
da fala de Maura e a do leitor, realizando um fenômeno
corporal transcendental.
A escrita de Hospício é deus sugere ser um meio
encontrado por Maura para resguardar sua subjetividade.
Diagnosticada como esquizofrênica, suas atitudes
representativas de autossuficiente e onipotência são
desconstruídas na escrita, espaço onde tenta preservar
sua verdadeira identidade. Na obra não precisa esconder
sua fragilidade:

Os dias deslizam difíceis – custa.


Me entrego. E me esqueço. Ou não
me esqueço? Às vezes as coisas
ameaçam chegar até mim, transpondo
as portas (mas não. Por quê? Hein?
Quando? NADA). Sinto medo. Parece
reinar uma ameaça constante no ar.
Ou sou eu quem se alerta o primeiro
gesto? Ando pelo quarto. Completo um

248 MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção,


p. 554.
264
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
instante. Depois outro quadradinho:
penso fino e reto, sem ameaças, livre
de pesar pelo que está guardado ou
morto.249

Encontrar-se num acontecimento estético como


sujeito falante fragmentado incorre em apresentar
percepções múltiplas de mundo vivido. Na tentativa
de encontrar-se, Maura se dilui na fala. No lugar de
encontrar-se, afasta-se cada vez mais no espaço flutuante
da autobiografia. Nesses desdobramentos, aparece o
paradoxo da intersubjetividade. Há um eu que escreve e um
eu que narra. Ocorre a polifonia vocal com expressividade
encarnada que é o outro. A obra de arte literária é apontada
por Merleau-Ponty como fala falante:

Na verdade, à medida que uma palavra


é a manifestação de uma experiência
física, pragmática ou afetiva, sob o
fundo de um mundo cultural do qual
participamos, - ela própria – assume
uma significação existencial, quer
dizer, uma expressividade encarnada.
Ela exprime, muito propriamente, a
“mímica existencial” das experiências
que primordialmente brotam do mundo
perceptivo, graças à expressividade
corporal.250

Assim, Hospício é deus, como mímica existencial,


tece-se na vida e confunde-se com a vida vivida,
esclarecida em toda a sua plenitude. A obra torna-se então
249 CANÇADO. Hospício é Deus: diário I, p. 32.
250 SILVA. A carnalidade da reflexão: ipseidade e
alteridade em Merleau-Ponty, p. 102.
265
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
um privilegiado instrumento óptico do mundo e da vida,
instrumento que amplia e adensa o olhar e a visão, que
alarga e devolve outros olhos e outras vidas. Instrumento
que ensina e permite ver o que sem ele jamais veríamos.
Instrumento que transforma e renova. Na verdade, depois
de ver - ler ou escrever - nada mais poderá voltar a ser
como era dantes.

Referências

BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. Tradução de


Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2001.
BRANDÃO, Ruth Silviano; CASTELLO BRANCO, Lúcia. A
mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2004.
CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus: diário I. São
Paulo: Círculo do Livro, 1991.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo
e esquizofrenia. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio
Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34,
1995.
DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Galilée, 1977.
HUBIER, Sébastien. Littératures intimes: Les expressions
du moi, de I’autobiographie à I’autofiction. Paris: Armand
Colin, 2003.
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiografique. Paris: Seuil,
1996.

266
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da
percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura.
4 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
SILVA, Claudinei Aparecido de Freitas da. A carnalidade
da reflexão: ipseidade e alteridade em Merleau-Ponty. São
Leopoldo(RS): Nova Harmonia, 2009.

267
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A MULTIPLICIDADE NA OBRA
COSMOCOCA - PROGRAMA
IN PROGRESS

Marina Andrade Câmara Dayrell

Cinco Cosmococas – CCs – foram recentemente reunidas e


montadas em um espaço único, no Centro de Arte Inhotim,
em Minas Gerais. Em uma espécie de pavilhão, estão
hoje disponíveis para visitação Trashiscapes, Onobject,
Maileryn, Nocagions e Hendrix-War, nomes dados,
respectivamente, às CCs, de 1 a 5. Cada uma delas foi
chamada por Oiticica e D’Almeita de “bloco-experimento”
ou “bloco de experiências”, que são instalações sensoriais
com projeção de slides, trilhas sonoras e diversos elementos
táteis. Cada CC faz parte daquilo que Oiticica chamou de
“quasi-cinemas”, ou seja: ambientes ambientais em que
as projeções de imagens estariam em seu estádio de
formação, na iminência do cinema, em devir, in progress,
como diz o próprio título.
As projeções “quasi-cinema” estão no limiar entre
as narrativas cinematográficas e a nova configuração
espacial oferecida pelas as obras de arte que trabalham
o audiovisual. Se no cinema clássico o espectador é
imerso em um contexto que o isola do mundo no intuito de
conduzir sua experiência em direção à narrativa sequencial

268
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
oferecida, a imagem em movimento inserida no circuito
da arte, por outro lado, oferece uma nova temporalidade
que é inerente à obra em si, por meio, muitas vezes, de
narrativas fragmentadas, mas também por meio da relação
espacial mais livre – que diferencia-se da imersão. Em um
galeria de arte, a duração do ato de assistir é determinada
pelo espectador e não pela obra. A ele também é oferecida
maior abertura espacial no sentido de, algumas vezes, não
serem dispostas cadeiras enfileiradas e direcionadas à
tela. A relação que o espectador – ou participante, como
foi chamado por Oiticica e D’Almeida – tem com a obra é,
em si, mais fragmentada.
É sobre esta liberdade que o “quasi” diz. Os autores
das CCs frisavam o fato dos blocos serem um programa
e não um projeto, já que o primeiro termo remeteria
a proposições experimentáveis que não remetem à
previsibilidade ou à antecipação do tempo, refutando a
ideia da projeção temporal, inerente à própria etimologia
da palavra projeção: algo que prevê um lançamento,
antecipa o futuro, compreendendo o tempo como uma
seta. De acordo com a raiz latina da expressão projicere,
que, em italiano, por exemplo, é progettare, podemos
pensar em uma pró-getação, em que está implícita a
noção da pre-visão, do vislumbramento do por-vir, em
uma temporalização que tenta antecipar o futuro, antever
o acontecimento, o destino ou pouso de algo ainda está
por ser lançado. “Projeto associa-se a visões utópicas de
construção de um futuro. Programas não idealizam ações

269
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e obras para o futuro, mas anunciam a experimentação.”251
Ou seja, era uma preocupação de Oiticica e D’Almeida
que a obra não constituísse uma narrativa linear,
sequencial e histórica, mas que elidisse, esteticamente,
em contrapartida, a formação de discursos dominantes.
Em outras palavras, que não fizesse parte da constituição
da história dos res gestae – os Feitos Ilustres.
De acordo com o filósofo italiano Giorgio
Agamben, as transformações culturais estão atreladas
às transformações sobre a representação temporal.
Enquanto compreendermos o tempo como uma sucessão
contínua de instantes conforme um antes e um depois,
existirá sempre uma incongruência e um hiato entre a
representação temporal e a nossa experiência que dele
fazemos, não sendo então possível construirmo-nos como
seres autênticos.252 É a esta concepção de linearidade que
se distancia a ideia do programa Cosmococa que propõe,
por sua vez, relações outras com o tempo que não seja o
encadeamento sequencial de ações.
Como vimos, nas CCs somos convidados a
desvincularmo-nos da temporalização do tempo desde o
contato com seu título que privilegia o caráter experimental
dos programas em detrimento do planejamento futuro dos
projetos. Os espectadores são convidados a participarem
do programa, experimentando a multisensorialidade para
além da experiência multimídia, mediada e em contato
251 CARNEIRO. Cosmococa - programa in progress:
heterotopia de guerra.
252 AGAMBEN. Infância e história: destruição da
experiência e origem da história.
270
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
com o próprio corpo, de modo i-mediato. Para isso, antes
de entrar nos blocos, os participantes devem, por exemplo,
retirar os sapatos.
Em seu pavilhão, as CCs são apresentadas por
fichas técnicas que contém indicações sobre a trilha sonora
e sugestões de ações a serem desenvolvidas durante a
fruição. As imagens projetadas são slides, fotografias de
desenhos feitos por carreiras de cocaína em capas de
discos ou livros. Os artistas, que foram usuários sem culpa
da cocaína, faziam dela também uso estético, remetendo
ao ócio.

A cocaína era também a promotora de


mundos simultâneos, da extensão dos
corpos ao mundo e das coexistências.
Ao seu uso, Oiticica atribuía uma saída
da vida do trabalho e da competição
porque os modos de vida não precisam
ser superados, eles coexistem. A
prima, como Oiticica chamava a coca,
era a alienação nas imagens das
infinitas experiências simultâneas.253

Sair da vida do trabalho e da competição é


precisamente um dos modos de elidir a linearização do
tempo, escapando à rotina progressiva em busca de
um desenvolvimento progressivo. Na entrada da CC1,
Trashiscapes, são disponibilizadas lixas de unha. Os
participantes são convidados a experimentar a obra,
transcorrendo o tempo acomodados em colchões e
almofadas, assistindo aos slides projetados em duas
paredes. As ações que os participantes realizam na CC1
253 CERA. Evang’Hélio.
271
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
remetem “à postura preguiçosa de pouco se lixando.”254
As projeções deslizam contemporaneamente ao som de
forró, baião, Jimi Hendrix e outros sons, e novamente aqui
temos uma configuração anacrônica sobre o contexto
original das músicas provenientes de épocas, lugares e
gêneros diferentes.
O ócio sugerido aos participantes é o contraponto
à representação sequencial e linear do tempo, à qual
somos submetidos no nosso dia a dia. Um dos marcos
da instituição da representação do tempo pela forma de
uma seta foi a chamada Norma de São Benedito, que dizia
explicitamente que “O ócio é inimigo da alma”.255 A proposta
de Oiticica e D’Almeida seria, portanto, a restituição da
ociosidade que nos dá o direito de não fazer e nos devolve
à condição de sensíveis em contraposição à noção de
profissionais.
Um das principais questões levantadas pelas CCs
poderia ser, portanto: como tornou-se necessária a criação
de espaços restritos – apartados da vida – destinados ao
não fazer, ao ócio?
Os estudos filológicos de Agamben sobre o legado
que permanece a partir da tradução do termo grego klēsis,
indicam que noções como profissão teriam assumido
conotações estritamente inerentes à própria noção de
vida: “É através da versão luterana que um termo, que
significava originalmente somente a vocação que Deus ou
o messias endereçam a um homem, adquire, de fato, o
254 CARNEIRO. Cosmococa - programa in progress:
heterotopia de guerra.
255 DISCOVERY. Tempo O eterno movimento.
272
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
significado moderno de ‘profissão’”.256 Ou seja, aquilo que
existiria de mais intrínseco a nós – nossa vocação –, tem
impresso em seu significado, o significante que contém em
si os conceitos de processo e desenvolvimento. Agamben
indica ainda como este operador anacrônico desarticula
seus significados, já que, em alemão, o termo Beruf257 é a
união de vocação e profissão mundana:

Enquanto descreve esta imóvel


dialética, este movimento surplace,
a klēsis pode confundir-se com a
condição factível e com o estado,
e significar tanto “vocação” quanto
Beruf..258

A tradução da palavra vocação, cujos sinônimos


seriam ‘predestinação’, ‘tendência’, ‘talento’ ou ‘aptidão’,
culminou em uma equiparação ao significante profissão.
O termo grego klēsis tinha, portanto, anteriormente à
tradução, o significado de chamado, ou seja, vocação,
e foi, posteriormente, diretamente vinculado ao sentido
256 AGAMBEN. Il tempo che resta: Un commento alla
Lettera ai Romani, p. 26. Tradução nossa. No original: “È
attraverso la versione luterana di un temine che significava
in origine soltanto la vocazione che Dio o il messia rivolgono
a un uomo, acquista, infatti, il significato moderno di
‘professione’”.
257 Em alemão, profissão.
258 Tradução nossa de: In quanto descrive ques’
immobile dialetica, questo movimento sur place, la klēsis
può confondersi con la condizione fattizia e con lo stato e
significare tanto “vocazione” che Beruf. In: AGAMBEN. Il
tempo che resta: Un commento alla Lettera ai Romani, p. 28.
273
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de permanência no moto trabalho. Opondo-se a esta
concepção, o chamado que os participantes recebem de
Oiticica e D’Almeida é um convite ao puro ócio. Um convite
a opormo-nos à secular cultura judaico-cristã que nos diz
que nascemos para o trabalho, o progresso, o acúmulo e
o desenvolvimento.
Este convite à resistência é realizado em todas as
cinco Cosmococas. Na CC2, Onobject, temos, no lugar
de colchões, uma grossa espuma cobrindo todo o chão,
e no lugar das almofadas, sólidos como cones, cubos e
cilindros feitos, também eles, de espuma. Ao invés de lixar
as unhas, a sugestão é dançar e pular com os sólidos de
espuma. Enfim, brincar e se desestabilizar num chão que
nos desequilibra. Se a noção que rege as CCs é a perda
de tempo – seu desperdício – a brincadeira coloca-se
precisamente à contrapêlo em relação à ideia de uma práxis
que leva à fabricação de um produto. São desarticulações
com os significados que os produtos têm – suas funções
–, aberturas que partem da transformação de produtos em
objetos, que por sua vez remete ao título deste bloco, a
CC2. Objetos, em sua materialidade pura a partir da qual
criamos. Citando o romance de Carlo Collodi, Pinóquio,
Agamben faz a seguinte inferência:

Esta invasão da vida pelo jogo tem


como imediata consequência uma
mudança e aceleração do tempo: ‘Em
meio aos passatempos contínuos e
divertimentos vários, as horas, os
dias, as semanas, passavam num
lampejo’. [...] o jogo, [...] mesmo que
não saibamos ainda como e por que,

274
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
altera [o calendário] e o destrói.259

O jogo, como entendemos as brincadeiras


praticadas pelos participantes das CCs, no entanto, não
somente corrompe a noção da passagem sequencial
do tempo, como, também, profana a esfera de onde,
originalmente, ele provém:

Pois, se é verdadeiro que o jogo


provém da esfera do sagrado, também
é verdade que ele a transforma
radicalmente, ou melhor, inverte-a a
tal ponto que pode ser definido sem
exagero como ‘sagrado às avessas’.260

Pensando sobre o fato de os brinquedos serem


atualizações de algo que, no passado, pertenceu à
esfera do sagrado, ou à esfera prático-econômica do
mundo do trabalho, por assim dizer, ou que originou-
se da miniaturização e desvio de tais objetos à esfera
do uso, as formas geométricas da CC2 colocam, por
sua vez, em xeque o racionalismo, transformando, para
tanto, em brinquedo aquilo que poderiam ser vistos como
símbolos da razão geométrica ali representados pelos
sólidos de espuma. Formas que teriam em si toda uma
carga histórica, ao serem manuseadas pelos gestos das
brincadeiras, retornam à sua condição de sólido como pura
forma. A essência do brinquedo seria, segundo Agamben,

259 AGAMBEN. Infância e história: destruição da


experiência e origem da história, p. 82-84.
260 AGAMBEN. Infância e história: destruição da
experiência e origem da história, p. 84.
275
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
eminentemente histórica.

Aquilo que o brinquedo conserva do


seu modelo sagrado ou econômico,
aquilo que deste sobrevive após o
desmembramento ou miniaturização,
nada mais é que a temporalidade
humana que aí estava contida, na sua
pura essência histórica.261

Logo, aquilo que os participantes fazem ao se


imergirem na CC2 é transcorrer o tempo de um modo que
desintegra a sequência linear do calendário, tornando
lúdica a relação com a razão – através do jogo com seus
símbolos –, fazendo passatempo do acúmulo espacial da
história sedimentada nos objetos. “O brinquedo é uma
materialização da historicidade contida nos objetos [...].
Aquilo com que brincam as crianças é a história.”262 Tendo
em mente que a nossa relação com o tempo é uma relação
“profissional”, por assim dizer, em que tentamos acumulá-
lo, equiparando, a todo instante, significantes a significados
e fazendo uso de objetos de um modo predefinido que
oriente o seu manuseio a um melhor aproveitamento do
próprio tempo, a destituição destes significados por meio
da brincadeira estabelece uma nova linguagem, um novo
modo de ver o mundo, uma outra relação temporal. Brincar
é brincar com o tempo, transformá-lo em algo lúdico,
desconstruindo a sua forma de progressão numérica.

261 AGAMBEN. Infância e história: destruição da


experiência e origem da história, p. 87.
262 AGAMBEN. Infância e história: destruição da
experiência e origem da história, p. 87-88.
276
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Também na CC3, Maileryn, assim como em todos
os blocos das CCs, o aspecto lúdico prevalece. O chão é
formado por pequenas dunas de areia, cobertas por uma
lona de plástico rígido, sobre as quais “os participantes
são convidados a deitar e rolar [...]”,263 desta vez, com os
balões amarelos e alaranjados que flutuam pelo bloco.
Na CC5, Hendrix-War, puro ócio volta a ser
diretamente remetido pelas redes que são, por excelência,
o lugar para se jogar tempo fora, a autêntica inoperância
que se dá a ver ao negar as necessidades impostas sobre
acumular, crescer, vencer ou melhorar. As redes são
próprias de comunidades indígenas – sociedades sem
escrita e sem “história”, pelo menos na nossa concepção.
Os índios vivem no tempo mítico, e não no tempo da história
sancionada, dos grandes feitos. E as redes na CC5 são,
por sua vez, colocadas ao lado de projeções de imagens
ao som de músicas pop, o que configura, como dissemos
anteriormente, um anacronismo – o primitivo ao lado da
tecnologia –, em uma autêntica montagem de tempos.
Nas redes, ao deitar, as pessoas solevam-se em
um movimento que remete à leveza, não mais tendo que
sustentar nem mesmo o peso do próprio corpo, liberando-
se também de pesos que ficarão, momentaneamente,
para além do casulo, no qual cada participante se isola
da temporalidade do mundo do trabalho. A trilha sonora é
de Jimi Hendrix, amigo de Oiticica, que em 1970, declarou
“quando as coisas ficarem pesadas demais, me chame de

263 CARNEIRO. Cosmococa - programa in progress:


heterotopia de guerra.
277
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Hélio.”264
O descompasso sugerido pelas ações da CC em
relação à nossa usual relação com o tempo é propiciado,
como vimos, pelas sequências de slides não-narrativas:
os “quasi-cinema” e a resistência à linearidade discursiva
à qual alude o advérbio quase seria, para Oiticica, parte de
uma invenção:

Criar, segundo Oiticica, obedece a


um impulso naturalista de realizar
formas originárias, que prescinde da
experiência. Por outro lado, inventar
decorre da experimentação e de
estudo, não surge espontaneamente,
mas resulta de necessidades sentidas,
de exigências postas pelo percurso e
vivência do inventor ou de seu grupo
social.265

Adotar o termo invenção em detrimento de criação


é um modo de reforçar o devir-obra, ou seja, de remeter
sempre mais ao processo e não à instituição de situações
e de narrativas. Privilegiar o termo invenção é, portanto,
transformá-lo em um instrumento de resistência.
A narrativa oficial ou mestra, discurso dominante ou
história dos res gestae, são conformações comprazentes da
representação sequencial e linear do tempo. Se nos “quasi-
cinema” da Cosmococa coexistem múltiplas narrativas, a obra,
assim, aproxima-se da nossa experiência, do nosso sensível.

264 CARNEIRO. Cosmococa - programa in progress:


heterotopia de guerra.
265 CARNEIRO. Cosmococa - programa in progress:
heterotopia de guerra.
278
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Oiticica e D’Almeida embaralham a tripartição
passado, presente e futuro, fazendo-a inexistir. Eles, ao
negarem a noção de projeto que pré-figura um futuro,
emperram a temporalização do tempo, fazendo-nos
experimentá-lo, na Cosmococa, de um modo outro, em
contato direto com nosso sensível em que o tempo é múltiplo.

Referências

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Globo; Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo,
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279
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280
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TEMPO: o eterno movimento. Direção: Dean Love. São
Paulo: Discovery Channel Video; Abril Video, 1994. Super
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281
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A POESIA AUTORAL COMO VEÍCULO DE
COMPOSIÇÃO CÊNICA: UMA EXPERIÊNCIA
DE DRAMATURGIA DE ATOR

Raphaela Silva Ramos Fernandes

O homem, como pronunciou Aristóteles em sua Poética,


rompeu a trajetória do mundo disposto a imitar. Desse
verbo, raiz da arte teatral, os seres sempre sorveram
prazer natural e unânime. Os “imitadores”, segundo o
filósofo grego, imitam pessoas em ação para edificar o que
ele chamou de poesia – trágica ou cômica. E o fazem em
busca da verossimilhança.
Ao longo dos tempos, a figura do ator aproximou-
se de outro vocábulo, compor (formar de partes; entrar
na constituição de; constituir; arranjar; dispor; produzir;
fazer; escrever), mais adequado às novas possibilidades
de comunicação e de relação entre arte e vida.266 Antes
de chegar ao palco e sobre ele, os atores passaram a
constituir e a transmitir, de forma mais ostensiva, suas
mensagens íntimas. O discurso do autor e o interesse
pelo real deixaram de ser o ventre que carrega escondido
o embrião-pensamento de quem age – ou, como definiu
Aristóteles, de quem imita a ação. A modernidade e a

266 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas


como eixo: de Stanislavski a Barba.
282
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
contemporaneidade, portanto, concederam outras funções
ao homem da cena, não apenas a de propagar intenções
exteriores. Coautor do discurso, ele encontrou formas
diversas de habitar o palco.
Ao refletir sobre a composição no caso do ator,
Bonfitto (2009) descreve como essencial, para que ela
se dê, a capacidade de pensar o fazer. Consciente das
possibilidades de criação e das “diferentes texturas” de
seu trabalho, o ator-compositor não se amedronta diante
de complexos fenômenos teatrais. Ele se põe a pesquisar,
preparado para imprevistas descobertas.

Com diferentes texturas trabalha


[...] o ator-compositor. A diferentes
texturas ele deve dar um sentido,
uma unidade. Tal unidade, por sua
vez, só pode emergir de um diálogo
– entre o fazer e o pensar o fazer.
O fazer, com seu sentir e perceber,
transforma o pensar. E o pensar, com
a força de sua elaboração, transforma
o fazer. Assim, o fazer transformando
o pensar e o pensar transformando o
fazer geram uma espiral incessante.
É nessa espiral que se move o ator-
compositor.267

A poesia se apresenta como um dos caminhos que


permitem variadas explorações nesse sentido. Ao invadir
o universo teatral como eixo do processo de montagem, a
poesia contemporânea, de autoria do ator, pode estimular
a composição cênica – que viceja já na feitura literária, mas
267 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas
como eixo: de Stanislavski a Barba, p. 142.
283
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
recebe transformações e outros significados no decorrer
da travessia. Desde 2010, a autora deste estudo explora a
transposição de seus poemas para o palco, tendo montado
o espetáculo Coisas da atriz a partir de livro homônimo. Tal
procedimento criativo, cabe salientar, permeou o que se
pode denominar de dramaturgia de ator.268
Assim, este trabalho pretende analisar de que forma
a poesia autoral, percebida como eixo do processo de
montagem, pode agir como faísca de criação para o ator-
compositor, deflagrando conscientes processos cênicos
em consonância com a contemporaneidade. O exemplo
utilizado para tal investigação é o já citado espetáculo
Coisas da atriz. Após uma revisão teórica sobre o assunto,
realizou-se um resgate da forma de construção da referida
montagem, no intuito de compreender os tipos de ação e
influência da poesia autoral sobre a costura das cenas e as
anteriores elaborações de dramaturgia, partitura corporal,
voz, sentido e pensamento. Os seguintes “instrumentos”
foram utilizados: registro de vídeo, registro fotográfico,
anotações feitas durante os ensaios, roteiros provisórios
elaborados, entrevistas com a diretora Renata Rodrigues
e com a parceira de cena Carú Rezende. As experiências
vividas pela autora também contribuíram para as análises.
Destaca-se, porém, que este estudo se trata da
parte inicial de uma pesquisa de mestrado que, em seu
desenvolvimento, irá analisar ainda o processo de criação
de Regurgitofagia, de Michel Melamed, baseado em um

268 BARBA. A Arte Secreta do Ator: um dicionário de


antropologia teatral.
284
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
livro homônimo de poemas (lançado após a peça). As
observações integrantes do item O processo de Coisas da
atriz, ademais, podem ser consideradas preliminares.

REVOLUÇÕES NA CENA

Os anos 1960/1970 abriram trilha para um fazer teatral


outro, cujas bases não estão na imitação, tampouco em
universos fictícios fechados.269 As revoluções sociais
e tecnológicas instauradas a partir desse período
possibilitaram o surgimento do chamado teatro pós-
dramático. O alemão Hans-Thies Lehmann concedeu
ampla visibilidade à expressão, definindo-a como um
conjunto de práticas nas quais desaparecem os princípios
de narração e figuração e o ordenamento de uma fábula,
alcançando-se uma autonomia da linguagem.270
De acordo com o autor, “é [...] cego qualquer
questionamento teatral que não reconheça na prática
artística do teatro a reflexão sobre as normas de percepção
e comportamentos sociais”.271 Lehmann, entretanto,
pondera que as vanguardas históricas em torno de 1900 já
empregavam recursos de encenação abstratos, tidos como
estranhos e que ressaltavam a insuficiência da palavra,
embora somente a partir das décadas mencionadas invada
a cena um modo diferente de utilização dos signos teatrais,
capaz de justificar o emprego do termo pós-dramático.
269 BOND. O ator-autor: a questão da autoria nas
formas teatrais contemporâneas.
270 LEHMANN. Teatro pós-dramático.
271 LEHMANN. Teatro pós-dramático, p. 21.
285
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Como enfatiza Fernandes (2006), tal teatro
transferiu-se da representação para a presença, do
resultado para o processo, da significação para a
manifestação, da informação para o impulso de energia
e da experiência transmitida para a partilhada. Ainda
conforme a autora, “não é a ausência de textos dramáticos
que assegura a existência de um teatro pós-dramático,
mas o uso que a encenação faz desses textos”.272
De acordo com Bond (2010), Lehmann enumera
três níveis de representação teatral: o texto linguístico, o
texto da encenação e o texto da performance. Conforme
a autora, ao realizar essa distinção, Lehmann amplifica a
noção de texto, redefinindo sua importância e colocando
em xeque o poder da palavra lógica, escrita e do autor. O
texto da performance trata da situação teatral propriamente
dita e mantém intensa ligação com o linguístico e o da
encenação, determinando-os. Essa autoria da cena,
comandada pelo ator, entremeia-se aos outros níveis,
numa partilha imensurável.273
Os três níveis textuais apresentados por Lehmann,
em uma análise inicial, podem ser observados em Coisas
da atriz:
- Texto linguístico: a poesia escrita;
- Texto da encenação: a poesia na cena e a
dramaturgia do ator;
- Texto da performance: o acontecimento teatral; a
272 FERNANDES. Teatralidades contemporâneas, p.
51.
273 BOND. O ator-autor: a questão da autoria nas
formas teatrais contemporâneas.
286
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
travessia poesia escrita-poesia na cena.

EVOLUÇÃO DO PAPEL

Ao longo das tumultuadas décadas do século XX e das


primeiras do século XXI, o ator percorreu incontáveis
estações. Não mais estacionado em uma intenção exterior
(do texto ou do diretor), o homem da cena assumiu a
coautoria da mensagem, legível ou não legível, a ser
levada aos espectadores.274 Outra função no processo de
criação começa, então, a associar-se ao ator, que possui
como procedimentos disparadores de trabalho as palavras,
as ações, as relações, a atualidade. Ele passa a ocupar,
portanto, a posição de mediador no jogo entre as diversas
camadas de atuação, permitindo distintas interpretações.
O tratamento contemporâneo dado aos signos
teatrais aproxima o teatro da arte performática (numa
referência à Performance Art, assim denominada a partir
dos anos 1970), na qual o ato ocupa o lugar da totalidade.275
A mimèsis aristotélica, como compreendida de forma geral
(e superficial), cede espaço para a autorrepresentação
na medida em que os limites entre teatro e performance
esmorecem. O papel deixa de ser a única trilha do ator
sobre o palco – ou qualquer outro local de encenação. A
“simples” presença do ator, dessa maneira, é capaz de se
comunicar com a plateia de modo poético.
274 BOND. O ator-autor: a questão da autoria nas
formas teatrais contemporâneas.
275 BOND. O ator-autor: a questão da autoria nas
formas teatrais contemporâneas.
287
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Na evolução do papel desenhada por Roubine,276
chega-se ao momento da constatação de que toda
atividade consciente desdobra-se em múltiplas atividades
inconscientes, não controladas pelo sujeito. Instaura-se,
assim, a valorização do ator em processo, que culmina
em outro modo de habitar o palco. Conforme propõe Bond
(2010), o ator-autor fixa-se na fronteira entre indivíduo
e personagem, entre vida e arte. Embora não seja ele
mesmo em cena, tampouco veste uma figura produzida
e substancial. Lidando com a própria subjetividade, o
ator engendra a fluidez de um discurso que se mistura e
dialoga com outros elementos: objetos, figurinos, lugares,
parceiros. Parece ser esse entrelugar o território habitado
pelas figuras propostas no espetáculo Coisas da atriz.

OS ACTANTES E O ATOR-COMPOSITOR

Para refletir acerca da atuação e do texto, Bonfitto (2009)


apresenta a ideia de seres ficcionais – cuja construção
pode estar acoplada a diferentes matrizes – e opta por
estudá-la a partir da variante texto dramático.
De acordo com o autor, certos textos concatenam
palavras e sentidos de tal forma a levar o leitor à
percepção de um discurso e de um “eu” específico. Nesse
caso, a personagem é vista como um indivíduo, que se
acentua por meio do corpo e da voz do ator (personagem-
indivíduo). Outros textos, porém, não se atêm aos conflitos
individuais, embora preservem uma situação reconhecível.

276 ROUBINE. A arte do ator.


288
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Aqui, já não surgem nomes próprios, mas são apontadas
categorias, classes ou tipos (personagem-tipo).
Existem ainda as escritas ausentes de estrutura
dialógica, situações concretas e dados sobre papéis. Um
“fluxo fragmentado por espaços vazios”, então, passa a
acolher pequenas porções de uma mensagem dividida em
falas.277 Para analisar essa dramaturgia contemporânea,
que não privilegia enredo e personagens, Bonfitto (2009)
apropria-se da noção de actante, ou seja, “tudo aquilo que
atua”. Na medida em que a narrativa focaliza os elementos
modalizadores dos seres ficcionais, dispensando-os
das sucessões lógicas, eles “destemporalizam-se” e
“espacializam-se”. Nasce, desse modo, o actante-estado.
Nele, “não encontramos ações passíveis de serem
definidas do ponto de vista de sua importância para o
desenrolar da intriga, nem é possível identificar em tal ser
ficcional uma estrutura lógico temporal”.278
Quando tal situação se intensifica a ponto de
anular a personagem, suas características, a intriga, o
tempo e o espaço, o que sobra é o enunciado incapaz de
contar uma história. Percebe-se, assim, a transferência
de funcionalização da personagem para o texto. Este
torna-se o regente das leis, falando, agindo e assumindo
os predicados que já estiveram na personagem. Tem-se,
portanto, o actante-texto.279
277 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas
como eixo: de Stanislavski a Barba, p. 132.
278 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas
como eixo: de Stanislavski a Barba, p. 134.
279 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas
289
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Como construir tal ser ficcional, ou
seja, o actante-texto? Comecemos
pela via negativa. Diante dos textos
citados, não parece ser possível
utilizar os mesmos procedimentos que
podem ser empregados para construir
o actante-máscara (tipo ou indivíduo).
Diante de tais textos, novos caminhos
devem ser buscados, pois se tornam
necessários.280

Pode-se apontar ainda, conforme o autor, o


actante-máscara, que reúne tanto a personagem-indivíduo
como a personagem-tipo, descritas no segundo parágrafo
deste tópico. O ator-compositor, dessa maneira, é aquele
que entende como impossível o emprego dos mesmos
procedimentos para a construção dos diferentes actantes.
Imerso em uma proposta de investigação prática, ele
reconhece a existência de elementos constitutivos de
seu trabalho expressivo e procura outros métodos para
o actante-estado e o actante-texto, não apenas os mais
comumente aplicados à descoberta do actante-máscara.
Na realidade, por vezes, a direção é exatamente inversa.

As ações executadas pelo ator, em


muitos casos, são o ponto de partida
para a construção do sentido do texto.
Ou seja, o sentido é produzido a partir
da execução das ações físicas e vocais
do ator. [...] Na construção do actante-
máscara existe uma conexão entre
intenção e sentido. Na construção do
como eixo: de Stanislavski a Barba.
280 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas
como eixo: de Stanislavski a Barba, p. 139-140.
290
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
actante-estado e do actante-texto,
existe uma conexão entre corporeidade
e sentido. A unidade do actante-estado
e do actante-texto, assim, encontra-se
não na coerência psicológica, mas na
partitura das ações.281

Como mencionado anteriormente, a poesia


contemporânea de autoria do ator pode manifestar-se
como uma faísca deflagradora de tais explosões criativas
nos processos teatrais contemporâneos. Embora Bonfitto
assevere basear-se no texto dramático como matriz
geradora da encenação, o exemplo que ele oferece para
o actante-texto (P. Hanke, “Self-Accusation”, Kaspar and
other Plays, New York, Hill & Wang, 1991; tradução de
Matteo Bonfitto e Alexandre Krug) em nada se difere de
uma poesia da atualidade. Transcreve-se um trecho (p.
130):

“eu vim ao mundo.


eu passei a ser. eu fui gerado. eu surgi.
eu fui crescendo. eu fui parido. eu fui
registrado no livro de nascimentos. eu
fiquei maior.
eu me movi. eu movi partes de meu
corpo. eu movi meu corpo. eu me movi
no mesmo lugar. eu me movi do lugar.
eu me movi de um ponto para o outro.
eu tive de me mover. eu fui capaz de
me mover [...]”

Ou seja, a escritura poética, desenhada pelo ator,


exigirá dele (assim como o trecho trazido por Bonfitto)
281 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas
como eixo: de Stanislavski a Barba, p. 141.
291
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
plena consciência de sua feitura e o reconhecimento de
distintas práticas improvisacionais e experimentações
práticas que permitam a construção de um ser ficcional,
possivelmente situado no entrelugar que separa a
personagem do indivíduo. Por consequência, pergunta-
se: quais as especificidades desses textos no trajeto de
criação do ator? E o inverso: o que o ator precisa possuir/
conhecer/entender para criar a partir desses textos?

Diante de tais textos, talvez, o percurso


de construção do actante-estado e do
actante-texto deva ser analítico, e não
sintético. Ou seja, não se perseguiria
uma “ideia” genérica relacionada a tal
ser ficcional para poder construí-lo.
Servindo-se da improvisação enquanto
“espaço-mental”, vários procedimentos
pertencentes a diferentes matrizes
podem ser empregados: visualização
de imagens, resgate de experiências
pessoais, associações mentais
resultantes da utilização sonora das
palavras etc.282

O espetáculo Coisas da atriz transita por esse


espaço labiríntico e aberto a visitas exposto por Bonfitto.
Aqui está, portanto, o foco deste estudo: uma experiência
cênica reveladora de uma dramaturgia de ator atravessada
pela poesia autoral. O que há de particular nessa junção
de fazeres?

A POESIA E O TEATRO

282 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas


como eixo: de Stanislavski a Barba, p. 140.
292
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
O termo composição, aqui garimpado, também serve à
noção de poema. Este, desde a origem, aproxima-se do
teatro. Em sua etimologia grega, o termo poiesis significa
fabricar. A feitura poética, porém, pode desaguar em
três grandes categorias na teoria dos gêneros literários.
Curiosamente, na Poética, Aristóteles não tratou
unicamente do que depois se convencionou chamar de
poesia: a lírica, cuja voz ficcional é o “eu” (segundo a
subjetividade romântica). Ao esmiuçar o épico (ele) e o
dramático (tu), o filósofo definiu os pilares da arte teatral,
apontando a interlocução e o diálogo como indissociáveis
do drama.283
Nos tempos atuais, são comuns expressões que
fundem teatro e poesia, numa amálgama sem fim nem
começo. Por vezes, o texto poético nasce, segue primeiro
à cena e só depois se materializa em livro de poemas como
discurso não dramatúrgico, porém, já repleto de outros
significados conferidos pelo acontecimento teatral e pelo
público. Um exemplo seria o espetáculo Regurgitofagia,
de Michel Melamed. Em outras situações, a poesia surge
primeiro nas páginas e só depois é levada ao espaço
de encenação pelo próprio ator-autor, responsável por
um segundo processo de criação (segunda poetização),
apoiado nas imagens e na sonoridade das escrituras. Aqui,
pode-se citar a peça Coisas da atriz, estruturada, como já
mencionado, a partir do livro homônimo da autora desta
pesquisa.

283 GUINSBURG; FARIA; LIMA. Dicionário do teatro


brasileiro: temas, formas e conceitos.
293
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Mas, afinal, por que a poesia serve de forma
recorrente ao teatro? Patrice Pavis formula a questão de
outra maneira e responde:

Por que o teatro teima hoje em montar


poesia? A princípio, porque a poesia
obriga o espectador a uma outra
escuta, o que beneficia tanto a poesia
quanto o teatro. A poesia reencontra
a oralidade, a corporalidade, a
humanidade de textos quase sempre
condenados ao segredo do papel e
da voz interior. O monólogo interior,
as vozes misturadas, a polifonia têm
que se expor na performance cênica.
Assim, o teatro abre uma outra via à
poesia: ao teatralizar-se, ao enunciar-
se em público, a poesia reencontra
suas origens na poesia oral ou
no conto de certas culturas orais
remanescentes [...].284

O autor vai além:

A encenação, determinada a “fazer


teatro de tudo”, com um só golpe
estende seu império a outros domínios,
efetua passagens extremas montando
renomados textos consagrados,
poéticos ou filosóficos ou escritos numa
língua inventada. Não mais buscando
explicar ou ilustrar a palavra
poética, não mais sendo encenação,
mas “colocação em ato de um escrito”,
a encenação encontra liberdade de
atuação e obriga o espectador a abrir
mão de sua preguiça natural, do gosto
pela identificação prazerosa ou pelo
284 PAVIS. Dicionário de teatro, p. 295.
294
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
distanciamento protetor, para refletir
sobre o que se passa nele, e isto,
unicamente durante a enunciação do
texto e para favorecer uma mediação
interior, uma livre associação a partir
da escuta de poemas.285

Cabe ressaltar ainda que a poesia, embora atue


como agente estimulador de criação, não comanda o
processo e possui a mesma importância que os demais
elementos (corpo, espaço etc). O texto literário, dessa
maneira, é compreendido como caminho. Um caminho,
aliás, bastante explorado, já que o ator, como autor, segue
por ele da poesia ao teatro. E os múltiplos discursos se
misturam. Quem fala: o poeta, o ator ou o ser ficcional?

Com efeito, a partir do momento em


que há disposição do texto poético
no espaço concreto, desde que
personagens-locutoras tomam corpo,
a poesia oscila do espaço mental,
protegido, ao espaço público, aberto a
todos. Ao tomar corpo assim de repente,
o texto poético que apresentava ao
leitor apenas vozes misturadas põe-se
a representar locutores, sobre os quais
não se sabe se são representantes
diretos do poeta, que fala na primeira
pessoa, ou, então, personagens que
se expressam em seu próprio nome.286

O PROCESSO DE COISAS DA ATRIZ

285 PAVIS. Dicionário de teatro, p. 295. Grifo nosso.


286 PAVIS. Dicionário de teatro, p. 294.
295
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Jacques Lecoq, em seu livro O corpo poético, descreve
algumas estações de sua viagem ao fazer teatral. A primeira
delas é a vida, e a segunda, o que o autor costuma chamar
de fundo poético comum.

Trata-se de uma dimensão abstrata,


feita de espaços, de luzes, de cores, de
matérias, de sons, que se encontram
em cada um de nós. Esses elementos
estão depositados em nós, a partir
de nossas diversas experiências, de
nossas sensações, de tudo aquilo
que vimos, escutamos, tocamos,
apreciamos. Tudo isso fica em nosso
corpo e constitui o fundo comum
a partir do qual surgirão impulsos,
desejos de criações.287

Para não permanecer estagnado na vida tal qual


ela é, o ator precisa acessar o fundo poético comum. Por
vezes, ao abrir seu baú de referências, o ator desvenda
outro mapa de criação, como, por exemplo, a sua poesia
gravada em um papel. O livro Coisas da atriz reúne textos
elaborados a partir da vivência teatral e ávidos por serem
transcriados. Ao misturar emoções produzidas em cena e
no espaço real, a obra instaura dinâmica cíclica, tal qual a
de um oroboro. Assim, a poesia que veio do teatro a ele
retorna.
Para a peça homônima, lançada em novembro de
2010, foi construído um roteiro prévio, matriz do trabalho de
composição cênica, que não incluiu todas as 50 poesias do

287 LECOQ. O corpo poético: uma pedagogia da


criação teatral, p. 82.
296
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
livro. Dessa forma, durante o período de experimentações
práticas e com a ajuda de sua companheira de cena, a
atriz-autora desenhou um segundo texto ao retalhar e
costurar escrituras (tal texto já evidenciava a dramaturgia
do ator). Surge, assim, uma narrativa entrecortada, não
linear e não lógica, embora demarcada por algumas
indicações de sentido: o roteiro passeia pela trajetória de
uma atriz (refere-se, aqui, ao ser ficcional proposto pela
encenação), que já nasce atuando, cansa-se do amor
representado, frustra-se com o amor legítimo e retorna ao
palco para se transformar.
O novo texto roteirizado já não contém unicamente
o discurso primeiro da poeta-atriz. Arquiteta-se sobre um
segundo pensamento, organizado com auxílio da outra
atriz e deflagrado a partir dos exercícios práticos propostos
pela diretora. Sem identificar indivíduos ou tipos (a figura
atriz, neste caso, não aparece como representante de
uma classe profissional), o percurso cênico em elaboração
faz emergir um ser ficcional sem tempo e sem espaço,
morador da cisão entre personagem e sujeito, como
propõe Bond (2010). Uma unidade espelhada ou dividida,
experimentada pelas duas atrizes. Um actante-estado?
Um actante-texto?288 Na escrita, não é possível identificar
qualquer enredo palpável e decifrável, ainda que a
autora vislumbre um sensível fio condutor da ação. Para
exemplificar, cita-se a relação entre a primeira poesia da
peça, que faz referência ao rio, e a última, relativa ao mar.

288 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas


como eixo: de Stanislavski a Barba.
297
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Como saber se todos os espectadores compreenderão
que o ser ficcional faz essa viagem de deságue? Não há
garantias, e essa não é a intenção do processo criativo e,
consequentemente, do espetáculo.
A partir da ação mais ostensiva da diretora já
no espaço de encenação, tem-se um terceiro texto – o
da encenação, de acordo com conceito de Lehmann
(2007). Nessa fase, as duas atrizes iniciam a descoberta
do território cênico: uma casa antiga de dois andares,
onde funciona um centro cultural, com cômodos vazios,
inúmeras portas que os dividem e piso de madeira. Após
sete meses de pesquisas, ao entrar na casa, as atrizes
descobrem movimentos, marcações e partituras corporais
que parecem ser sugeridas pela arquitetura do lugar.
A escuta, da qual fala Pavis (2008), está incorporada
nas dramaturgias de atuação também na relação com o
espaço.
A poesia, por vezes, transmite força tamanha às
palavras que a personagem “destemporalizada” chega
a “desespacializar-se” e anular-se. “De tanto escutar,
emudeço / de tanto apanhar, endureço”.289 Tal verso,
inserido na parte central da montagem, é dito sem o
acompanhamento de qualquer gesto ou movimento, sem
complementos que o contextualizem. Quem emudece,
quem apanha e por quê?
Em determinada fase das experimentações, as
atrizes e a diretora optam por incluir um violinista em cena,
que, a princípio, iria conduzir os espectadores durante

289 RAMOS. Coisas da atriz.


298
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
a peça (as cenas têm início no primeiro andar, seguem
para o segundo, desenrolando-se em vários cômodos e
encerram-se novamente no piso de baixo). Pouco antes
da estreia, o violinista transfere para outra pessoa, a
diretora, sua função de guia e passa a esconder-se do
público, emitindo seu som de diferentes lugares. As atrizes
são, dessa maneira, acompanhadas apenas pela música,
que amplifica a estética onírica do espetáculo. Da mesma
forma, o figurino (um vestido-camisola rosa claro), os
cabelos molhados e a maquiagem limpa implementam
outros códigos relativos à noção de sonho, fantasia e
loucura.
Diante do público, então, estabelece-se um quarto
texto: o da performance, segundo Lehmann (2007).
Todos os elementos, a cada apresentação, ajustam-
se de determinada forma, permitindo o nascimento de
uma nova rota para o mesmo destino. Às atrizes, cabem
as tarefas de permanecer atentas às possibilidades
do texto da encenação, uma vez que ativamente são
compositoras desse processo. Ademais, elas devem afiar
o impulso criador do texto da performance e reconhecer,
incessantemente, as potências do próprio trabalho.

299
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
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300
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
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ROUBINE, Jean-Jacques. A arte do ator. Rio de Janeiro:
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301
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
APONTAMENTOS SOBRE A CRÍTICA
LITERÁRIA A HOMERO NO TRATADO
SOBRE O ESTILO DE DEMÉTRIO290

Gustavo Araújo de Freitas

Inúmeras dúvidas rondam o tratado Sobre o estilo, a


começar pela questão envolvendo sua data e autoria.291
290 Este artigo foi concebido a partir da dissertação
de mestrado defendida pelo autor no 1° semestre de
2011, dentro do Programa de Pós-Graduação em Estudos
Literários, na área de concentração de Estudos Clássicos,
da Faculdade de Letras da UFMG, intitulada “Sobre o
estilo” de Demétrio: um olhar crítico sobre a literatura
grega (tradução e estudo introdutório do tratado), sob a
orientação do Prof. Dr. Jacyntho José Lins Brandão.
291 Para uma melhor apreciação acerca dessa
questão cf. CHIRON. Un rhéteur méconnu: Démétrios,
p. 311-370; CHIRON. Démétrios. «Du style, XIII-XL;
INNES. Demetrius. “On style” (in Aristotle, v. XXIII, p.
312-321. Como se nota, os estudos mais recentes tendem
a uma datação anterior ao séc. I d.C., sugerida por
Roberts, embora, de fato, ele não tenha desconsiderado
a possibilidade do séc.I a.C. (ROBERTS. Demetrius on
style, p. 64.). Entre as datas propostas pelos estudos mais
recentes, destacam-se: 270 a.C. (GRUBE. A Greek critic:
Demetrius on style, p. 56.); séc. I d.C., mas refletindo o
segundo ou o primeiro século a.C. (SCHENKEVELD. The
intended public of Demetrius’s on style: the place of the
302
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Durante anos, ela foi alvo de incontáveis controvérsias, que
ainda hoje não estão de todo resolvidas. Ao longo do tempo,
os estudiosos propuseram datas que vão desde o séc. III
a.C. ao séc. II d.C., e, quanto a seu autor, convencionou-se
chamá-lo de Demétrio, devido a indicações em manuscrito,
mas não há nenhuma informação a seu respeito.292
Contudo, por características presentes no próprio
texto, pode-se considerá-lo como um manual de retórica
inserido no contexto do período helenístico, situando-o
por volta do séc. I a.C, sob a marcante influência dos
peripatéticos e do estoicismo.293Ademais, ele apresenta
treatise in the hellenistic educacional system, p. 147.); fins
do período alexandrino, entre o aristotelismo estoicizante
e a cultura greco-romana (MORPURGO-TAGLIABUE.
Demetrio: dello stile, p. 141); fins do segundo século ou,
de modo mais verossímil, em meados do século I a.C.
(CHIRON. Un rhéteur méconnu: Démétrios, p. 370); séc.
I a.C., mas refletindo, ao certo, concepções do séc. II a.C.
(INNES. Demetrius. “On style” (in Aristotle, v. XXIII), p.
312-321). Quanto à autoria dada por indicações presentes
em manuscritos, cf. CHIRON. Démétrios. «Du style», p.
XV-XVIII; INNES. Demetrius. “On style” (in Aristotle, v.
XXIII), p. 312.
292 Cf. INNES. Demetrius. “On style” (in Aristotle, v.
XXIII), p. 312.
293 Chiron oportunamente lembra que esse seria uma
das únicas fontes de informação sobre a estilística pós-
aristotélica anterior a outras obras mais conhecidas, como
a Retórica a Herênio, aquelas de Cícero e as de Dionísio
de Halicarnaso (CHIRON, Démétrios. «Du style», p. XII).
Acerca de sua inserção no período helenísitco, cf. ainda
PERNOT, La Rhétorique dans l’Antiquité, p. 86; KENNEDY,
303
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
com um caráter notadamente didático, conselhos de como
compor um discurso, e também é notável que esses venham
acompanhados de um grande número de reflexões críticas
sobre passagens da literatura grega, o que inclusive gerou
um fecundo debate sobre a possibilidade de estarmos
diante de um manual de retórica ou de uma de obra de
crítica literária.294
A new history of classical rhetoric, p. 89.
294 Innes chega a afirmar que, à diferença de muitas
outras fontes, particularmente em latim, não haveria nele
uma propensão para a oratória (INNES, 2005, p. 312).
Grube, sem que, de fato, desconsidere a vinculação do
tratado à retórica, em dado momento, comenta que o
interesse de Demétrio seria pela literatura, mais do que
pelos processos, casos ou argumentos ligados aos tribunais
(GRUBE, The Greek and Roman critics, p. 119). Em outra
ocasião, o mesmo autor volta a salientar que os interesses
de Demétrio são obviamente literários, mais do que
retóricos no sentido estrito, e lembra que os oradores são
frequentemente mencionados, mas apenas como um tipo de
literatura dentre vários (GRUBE, A Greek critic: Demetrius
on style, p. 22). Kennedy comenta que além das lições de
como se escrever bem, o PH é também uma sensível peça
de crítica literária (KENNEDY, Classical rhetoric and its
christian and secular tradition from ancient to modern times,
p. 131). Schenkeveld defende, no entanto, a ideia de que
o tratado de Demétrio tenha, de fato, sido um manual de
retórica (SCHENKEVELD, Studies in Demetrius on style, p.
51-52), e, ao certo, é mesmo dele a melhor resposta para
a questão, no artigo intitulado “The intended public of
Demetrius’s on style: the place of the treatise in the hellenistic
educacional system”. Nessa ocasião, o autor situa a obra no
contexto educacional do período helenístico, em uma fase
304
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
E, sem dúvida, há uma relação de tal modo
imbricada da retórica com a crítica literária, que Classen
chegou a pôr em xeque a própria existência de limite entre
elas, conquanto caiba uma importante ressalva.295 Apesar
de concordarmos quanto à presença de uma relação, até
certo ponto, indissociável, à exemplo de Schenkeveld
pensamos que os motivos apresentados por Classen
para a dissolução de tais limites, mostram-se, antes,
imprecisos.296

do aprendizado em que a crítica literária não apenas se faz


presente como se coloca a serviço da própria retórica (cf.
infra).
295 Cf. CLASSEN, Rhetoric and literary criticism: Their
nature and their functions in Antiquity, p. 527, acerca do
tratado de Demétrio: Rhetoric or criticism? There is no
need for an answer. What matters here is to determine the
origin and function of such a treatise. Obviously, its aim is
to assist people in efforts to improve their style of writing,
perhaps even to compose acceptable works of literature;
its starting point is the author’s conviction that such a
goal cannot be achieved by the study of classification and
precepts (alone), but rather by reading, analyzing, evaluating
and appreciating literature. One might, of course, say that
literary criticism has been made the servant of rhetoric here;
I would rather argue that in this case we have one of the few
instances where rhetorical instruction has freed itself from
the fetters of and gone beyond the limits of arid definitions
and rules and draws on the rich resources of actual literary
works to install life into the numerous categories which the
traditional handbooks differentiate.
296 Acerca da divergência entre os autores, cf.
SCHENKEVELD, The intended public of Demetrius’s on
305
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A discussão proposta por Schenkeveld acerca
do público de Sobre o estilo faz-nos, pois, reconsiderar
a asserção daquele autor, afinal ela chama a atenção,
fundamentalmente, para o contexto da inserção do tratado
no sistema educacional, o qual, conforme lembraram
oportunamente autores como Bompaire, Marrou e Neves,
teve pouca variação desde a época de Alexandre e também
sem diferenças significativas entre Grécia e Roma.297
Com efeito, Schenkeveld concluiu que Demétrio
estaria escrevendo seu livro para leitores que já teriam
completado cursos de gramática – e, por essa razão, ele
poderia citar Homero em uma versão reduzida, referir-
se ao hexâmetro e outros metros, bem como às figuras
de estilo, sem se aprofundar – e que também já teriam
passado pelos cursos iniciais de retórica, onde teriam
estudado e praticado os progymnásmata e lido e decorado
várias passagens famosas de autores da prosa.298

style: the place of the treatise in the hellenistic educacional


system, p. 47; CLASSEN, Rhetoric and literary criticism:
Their nature and their functions in Antiquity, p. 525-528.
297 Cf. BOMPAIRE, Lucien Écrivain: Imitation
et création, p. 35; MARROU, História da educação na
Antiguidade, p. 153; NEVES, A vertente grega da gramática
tradicional, p. 103. Para uma melhor compreensão acerca
da disciplina gramatical, cf. NEVES, A vertente grega
da gramática tradicional; acerca do ensino literário no
período em questão, cf. ainda BOMPAIRE, Lucien Écrivain:
Imitation et création, p. 33-97.
298 SCHENKEVELD, The intended public of
Demetrius’s on style: the place of the treatise in the hellenistic
educacional system, p. 40
306
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Nessa nova fase do aprendizado, então, esses alunos
partiriam para lições mais difíceis, comumente chamadas
de declamationes, as quais teríamos de supor que, no
período helenístico do terceiro/segundo século, não se
restringiriam à prática forense e deliberativa, mas também
ao discurso epidítico.299
Em suma, estaríamos diante de um manual do
orador em uma fase mais avançada do aprendizado, em
que, conforme enfatizou Schenkeveld, a crítica literária
não apenas se faz presente, como se torna um importante
instrumento a serviço da retórica,300 sendo, pois,
consolidada no procedimento de seleção dos melhores
exemplos a serem avaliados positiva ou, por vezes,
negativamente, sob a ótica da abordagem conveniente
dos assuntos por eles apresentados.
Além disso, este público explicaria ainda, de modo
um tanto satisfatório, o destaque conferido à poesia e,
sobretudo, a Homero: de um lado, a importância da crítica
literária, e, de outro, o fato de os pontos levantados já
terem sido pensados pelo gramático e de os exemplos
já serem devidamente reconhecidos.301 Lembremos a

299 SCHENKEVELD, The intended public of


Demetrius’s on style: the place of the treatise in the
hellenistic educacional system, p. 47. Para uma percepção
mais ampla acerca do ensino literário e a questão da mimese
cf. BOMPAIRE, 2000, p. 33-97.
300 SCHENKEVELD, The intended public of
Demetrius’s on style: the place of the treatise in the hellenistic
educacional system, p. 47
301 Cf. SCHENKEVELD, The intended public of
307
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
propósito que, além de Homero, vários poetas mereceram
destaque: Safo, em nove ou onze ocasiões,302 Arquíloco
(§ 5), Anacreonte (§ 5), Alceu (§ 142), Epicarmo (§ 24),
Hipônax (§ 132, 301), Sotades (§ 189), Teógnis (§ 85).303
E se esse mesmo público poderia ser o motivo,
como destacou ainda Schenkeveld, do fato de não
Demetrius’s on style: the place of the treatise in the hellenistic
educacional system, p. 44. Nesse sentido, é oportuno salientar
que grande parte dos exemplos recolhidos dos poetas ilustra
o emprego de recursos estilísticos que não se restringem à
poesia, mas, ao invés disso, são também aplicáveis à prosa
(à guisa de exemplo, cf. § 52, 55, 72, 78-79, 106-108). Daí,
o considerável número deles em um tratado cuja principal
preocupação não é a princípio a poesia especificamente,
mas o discurso de uma maneira geral. E ressalto a expressão
“discurso de uma maneira geral”, e não exatamente “prosa”,
porque, na maior parte do tempo, não se verifica uma
preocupação maior em delimitar os dois referidos tipos de
discurso, salvo em circunstâncias determinadas; ou seja, a
distinção proposta nas linhas introdutórias e que será, de
algum modo, mais presente na introdução do tratado, não é
uma tônica na obra, além do que o próprio termo utilizado
para referir-se à prosa, lo/goj, ao longo do PH, não se aplica
de forma estrita a ela, mas, ao contrário, algumas vezes
ele é aplicado inclusive ao texto em verso. Acerca dessa
terminologia, cf. FREITAS, Sobre o estilo de Demétrio: um
olhar crítico sobre a Literatura Grega, p. 26-30.
302 § 106(?), 127, 132, 140, 141, 142(?), 146, 148, 162,
166, 167; (os pontos de interrogação, entre parênteses,
marcam as passagens em que as citações são de atribuição
discutida).
303 Para um panorama acerca do número de menções a
autores e citações, cf. CHIRON, 2001, p. 383-389.
308
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
serem necessárias explicações detalhadas acerca de
determinados assuntos,304 ele poderia justificar também,
em grande medida, as eventuais lacunas nas reflexões
críticas que acompanham várias das menções aos autores
citados, incluindo Homero. E, nesse ponto, vale lembrar o
que bem salientou Bompaire a propósito da educação no
período: a iniciação à crítica ocorre na escola do gramático,
ao menos essa parte essencial que é a krísis poiēmátōn.305
Assim, justifica-se também de modo bastante
satisfatório a existência das lacunas nas reflexões de
Demétrio acerca do poeta, as quais, como se percebe, não
podem ser vistas como meras faltas do autor, mas antes
entendidas segundo as próprias condições admitidas
pelo público a que seria destinada a obra, pelo menos
a princípio. Logo, o intuito de buscar preencher ainda
que minimamente essas lacunas legitima também a
nossa tentativa de sistematizar essa crítica. Desse modo
também, teríamos, em linhas gerais, o contexto da obra
para se pensar a inserção da crítica a Homero na mesma.
Dito isso, então, o próximo passo é procurar

304 Os metros na poesia, por exemplo. Tampouco seria


necessária uma definição sobre certos termos técnicos
como as figuras. Ou, ainda, no que concerne às passagens
extraídas dos autores clássicos, algumas teriam de ser citadas
na íntegra, enquanto outras não teriam igual necessidade
(SCHENKEVELD, The intended public of Demetrius’s on
style: the place of the treatise in the hellenistic educacional
system, p. 40).
305 Cf. BOMPAIRE, Lucien Écrivain: Imitation et
création, p. 36.
309
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
entender como se dá essa inserção mais precisamente no
plano do desenvolvimento teórico proposto pelo autor. E,
antes de tudo, não poderíamos deixar de verificar o modo
como as menções ao poeta se distribuem ao longo do
PH,306 pois se revela nisso também um traço essencial no
contexto da crítica de Demétrio.
O poeta é, pois, o autor com maior número de
citações referentes ao estilo grandioso, o que retrata a
sua maior identificação com esse tipo de estilo. Contudo,
seus versos são encontrados por todo o tratado: ora
grandiosos, ora elegantes ou cômicos, por vezes simples,
ou até mesmo veementes, eles são apresentados como
componentes de uma obra rica e bem sucedida em virtude
da grande quantidade de recursos estilísticos aplicados a
uma gama igualmente expressiva de assuntos.
Ao certo, essa maneira como as menções a
Homero e a sua obra se dispõem ao longo da introdução e
dos quatro capítulos reproduzindo a riqueza estilística do
poeta, remete-nos, oportunamente, à “mescla de estilos”,
proposta nos parágrafos 36 e 37, onde se encontram
considerações essenciais, ainda que gerais, a respeito
da teoria dos quatro tipos elementares. Na ocasião, após

306 Homero é lembrado em quarenta e duas ocasiões


(acerca das citações extraídas da Ilíada, cf. § 7, 25, 48, 54, 56,
57, 61, 64, 79, 81, 82, 83, 94, 105, 111, 124, 189, 200, 209, 210,
219, 220, 255, 257; Odisseia, cf. § 52, 57, 60, 72, 94, 107, 113,
129, 130, 133, 152, 164, 219, 262. Outras menções ao poeta:
§ 5, 12, 36, 150). Para um panorama acerca do número de
menções a autores e citações, cf. ainda CHIRON, 2001, p.
383-389.
310
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
discorrer acerca de suas respectivas denominações,
Demétrio ressalta que os outros tipos seriam o resultado de
uma mistura desses quatro, com exceção do grandioso e
do simples, que nunca se misturariam, e, para exemplificá-
lo, o autor destaca a prosa de Platão, Xenofonte, Heródoto,
além, é claro, da poesia de Homero.
Mas se, por um lado, parece indiscutível que
essa “mescla” possa ser contemplada no modo como se
distribuem os apontamentos ao poeta ao longo do tratado,
por outro, é também certo, conforme dissemos antes, que
a maior identificação de Homero é com o estilo grandioso.
De todas as menções feitas a ele, quatorze referem-se a
tal estilo, enquanto cinco são referentes ao estilo elegante,
três ao simples, e outras três ao veemente.307
Em consonância, o próprio verso utilizado pelo
poeta, o hexâmetro, é também identificado com o primeiro
tipo de estilo descrito por Demétrio. Mas é sabido que a
abordagem apropriada da temática grandiosa passa não
apenas pela escolha do metro, ao contrário, ela se dá
também por meio de muitos outros recursos, descritos,
então, pelo autor do PH como determinantes para se
atingir um estilo elevado.
Aliás, as figuras utilizadas pelo poeta e adequadas à
grandeza serão relatadas em vários pontos da obra, como,
por exemplo, no parágrafo 61, onde o autor comenta a
epanáfora na Ilíada, II, 271-273: “Nireu três naus conduzia,
Nireu, filho de Aglaia, Nireu,o mais belo homem que veio

307 Cf. CHIRON, 2001, p. 389.


311
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
até Ílion”.308
Até mesmo determinados procedimentos que, a
princípio, consideraríamos opostos, são aludidos como
fatores de grandeza em Homero; é o caso do emprego
das partículas de ligação (syndesmoí). Em dado momento,
a supressão delas, também chamada de disjunção
(diálysis), é apresentada como um fator de elevação do
estilo, fenômeno observado nos mesmos versos da Ilíada
(II, 271-273) supracitados. Porém, no parágrafo 54, o autor
afirma que seria, justamente, a sucessão de partículas, ou
seja, o excesso delas, que promoveria a grandeza das
cidades beócias nomeadas na Ilíada, II, 497: “E Esqueno,
e Escolo, e montanhosa Esteono”.
Apesar da evidente oposição, há algo de comum
entre os dois procedimentos: ambos fogem ao uso
corrente, isto é, àquilo que é próprio do costume. E
justamente o costume (tò sýnēthes) é concebido por
Demétrio como adequado para questões menores,
conforme afirma no parágrafo 60: “Tudo o que é costumeiro
é próprio de questões menos relevantes e, por isso,
também nada admirável”. Passagem que, aliás, precede o
desenvolvimento acerca da disjunção acima mencionado.
Em outras palavras, o fato de escaparem ao
uso corriqueiro parece justificar, pelo menos em parte,
o emprego de ambos os procedimentos – à primeira
vista, opostos – para se atingir a grandeza nos versos
supracitados.
Mas os comentários de Demétrio acerca da obra

308 § 61.
312
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de Homero revelam ainda outro traço notório de sua crítica
ao poeta. Refiro-me à capacidade que atribui a este último
de fazer com que assuntos a priori de pouca relevância
tornem-se grandiosos,309 como pode ser notado nos
parágrafos 54 e 61, mencionados anteriormente, os quais
tratam, em um primeiro momento, dos versos da Ilíada
que indicam o nome das cidades beócias e, depois, da
personagem de Nireu.
No primeiro caso, as cidades, embora comuns e
irrelevantes, adquiririam volume e grandeza nos versos do
poeta; no segundo, um personagem considerado pouco
relevante, graças ao engenho de Homero no emprego
dos recursos estilísticos, teria se tornado grande, e seus
bens, antes poucos, numerosos. Vale ressaltar que o
poder da figura nos versos referentes a Nireu é a tal ponto
sobrevalorizado que, no parágrafo subsequente, Demétrio
chega a propor que, mesmo tendo sido nomeado uma única
vez na ação, essa personagem menor seria lembrada por
nós tanto quanto Odisseu ou Aquiles.
Ainda outro aspecto dessa crítica, digno de nota,
é o de reportar-se à engenhosidade do poeta em lançar
mão de determinados recursos para transmitir emoção
(páthos). Um desses recursos diz respeito ao uso das
partículas expletivas; de fato, no parágrafo 56, esse uso é
abordado simplesmente como um fator de grandiosidade,
309 Embora isso represente uma contradição com a
forma adequada de tratar questões irrelevantes de modo
irrelevante e as grandiosas com grandiosidade, expressa no
parágrafo 120 (cf. FREITAS, Sobre o estilo de Demétrio: um
olhar crítico sobre a Literatura Grega, cap. 2).
313
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
mas, no parágrafo seguinte, é tratado como um elemento
patético (pathetikós), na conhecida fala de Calipso a
Odisseu na Odisséia, V, 203- 204: “Descendente de Zeus,
filho de Laertes, multifacetado Odisseu/ Assim, então, para
casa, para a querida terra paterna?”
O emprego da partícula, no caso, dḗ (então), é
de tal modo valorizado pelo autor do PH que a ausência
dela significaria a perda de toda a emoção, lembrando que
partículas como essa assumiriam o lugar de murmúrios e
lástimas, próprias de expressões como o aí, aí (ai, ai!),
pheû (ó!), dentre outras. Também um recurso ligado ao
patético em Homero, e assinalado por Demétrio, seria
a criação de palavras. Por seu caráter mimético, essas
palavras exprimiriam uma emoção (páthos) ou uma ação
(prâgma), conforme se verifica em dois termos extraídos
da obra do poeta: um, da Odisséia, IX, 394: síze (chiou); e
o outro, da Ilíada XVI, 161: láptontes (lambendo).310
Mas há ainda um detalhe na crítica de Demétrio
a Homero que não deve passar despercebido. Apesar do
tom elogioso com que o poeta é tratado em praticamente
toda a obra, ele não escapa também à censura, e isso
ocorre precisamente em duas passagens. Uma delas, no
parágrafo 83, em que a metáfora da Ilíada, XXI, 388 (“E,
ao redor, trombeteou o vasto céu”) é tratada como um
fator de irrelevância mais do que de grandeza, mesmo que
empregada para conferir volume ao enunciado. E a outra,
no parágrafo 124, em que se discute a frieza da hipérbole,

310 § 94. Acerca desse segundo exemplo, cf. ainda §


219.
314
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de cujos exemplos dois são extraídos, justamente, de
passagens de Homero: o primeiro deles, da Ilíada, X, 437
(“mais brancos do que neve”), criticado pela chamada
proeminência (kath’ hyperokhḗn) da hipérbole; e o
segundo, da Ilíada, IV, 443 (“a cabeça apoia-se no céu”),
pela impossibilidade da mesma.
De qualquer modo, essas duas passagens
representam, de fato, muito pouco diante de um contexto
de tantas citações sempre marcadas pelo tom de elogio ao
poeta. Um elogio que, aliás, como dissemos anteriormente,
não se restringe à grandiosidade de seu estilo, mas
também se aplica a outros aspectos estilísticos da obra. E
um dos melhores exemplos dessa aplicação encontra-se
nas menções a Homero no âmbito do estilo elegante.
No parágrafo 129, por exemplo, a graciosa
passagem da Odisseia, VI, 105-108, em que se compara
Nausíca, no jogo com suas companheiras, à deusa
Ártemis, jogando com as ninfas, serve para exemplificar as
graça chamadas nobres (semnaí) e grandiosas (megálai)
as quais, como se lê no parágrafo precedente, constituem
uma característica marcante do discurso elegante (ho
glaphyrós lógos).
Também é oportuno notar que, além da presença
de assuntos graciosos em seus versos, Homero é ainda
lembrado, no parágrafo 133, pelo acréscimo de graça
alcançado, exatamente, pela eficácia do estilo. E para
exemplificá-lo, a Odisséia, XIX, 518-519: “Como quando,
menina de Pandáreo, um rouxinol do verdor da mata/
belamente canta, em uma primavera que acaba de

315
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
despertar”.
A temática graciosa é, pois, notada, nesses versos,
na presença do rouxinol e da primavera, mas, além disso,
Demétrio salienta que muito adorno é acrescido quando
se aplicam os termos “menina de Pandáreo” a um pássaro
ou pelo emprego do adjetivo khlōrēïs (do verdor da
mata), palavra de destacada beleza, dada a sua raridade,
conforme se nota mais a frente, no parágrafo 164.
Aliás, nesse mesmo parágrafo, podemos ainda
perceber outra faceta do poeta revelada pela crítica de
Demétrio. Nessa oportunidade, as chamadas “belas
palavras” (kalá onómata), apresentadas como as principais
responsáveis pela graciosidade do estilo e que têm como
exemplo a acima mencionada, contrapõem-se às ditas
“comuns e mais conhecidas” (eutelē kaí koinótera), as
quais, por sua vez, estão ligadas diretamente ao cômico,
o que, ao certo, constitui um exemplo da contraposição
sinalizada no parágrafo anterior entre o elemento risível
(tò géloion) e o gracioso (tò eúkhari). A este, então,
teríamos associados assuntos como os jardins das ninfas,
amores, enfim, aqueles sobre os quais não se ri, mas ao
primeiro (ao cômico) se associariam de forma exemplar
duas personagens, justamente, da obra de Homero:
Iro e Tersites. E, assim, a versatilidade do poeta se faz
notar em sua capacidade de, ao lado de temas de inteira
graciosidade, retratar de forma cômica o ridículo.
Mas além dessa graciosidade e, por vezes, do
traço cômico presente em alguns momentos de sua obra,
Homero é também reconhecido pela simplicidade. Nos

316
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
parágrafos 209 e 210, por exemplo, o poeta se sobressai
por sua precisão (akribología), a qual resulta, por sua vez,
na chamada “evidência” (enárgeia), atributo estreitamente
ligado ao estilo simples. A esse respeito, é lembrada a
passagem do poeta na Ilíada, XIII, 379-381: pnoiḗi d’
Eumḗloio metáphrenon,/aiei gàr díphrou epibēsoménoisin
eïktēn (no arfar, as espáduas de Eumelo,/ parecia, a todo
instante, que ambos iam subir no carro).
E a evidência (enárgeia) será ainda mencionada
como uma virtude do poeta no parágrafo 219, mas, dessa
vez, em razão do uso da cacofonia, recurso exemplificado
em dois de seus versos: na Odisseia, IX, 290: kópt’ ek
d’enképhalos (chocou e da cabeça os miolos),311 e na
Ilíada, XXIII, 116: pollà d’ánanta, kátanta (muitas vezes
acima, abaixo).
Já no parágrafo seguinte, a evidência será
verificada em Homero no emprego das palavras criadas (tà
pepoiēména onómata), as quais trazem consigo a imitação
daquilo que exprimem, e, como exemplo, teríamos o termo
láptontes (lambendo), da Ilíada, XVI, 161, que reproduz
a ação de lobos bebendo – embora o autor do PH diga
que se trate de “cães” (kýnes) –, ao qual antepor-se-ia
também o termo glṓssēissi (línguas), que tornaria ainda
mais evidente o discurso.
E, como não poderia deixar de ser, o poeta também
é lembrado pela veemência de alguns de seus versos.
É o que podemos verificar naquele da Ilíada, XII, 208:
311 Acerca da cacofonia nesses versos, cf. FREITAS,
Sobre o estilo de Demétrio: um olhar crítico sobre a
Literatura Grega, no tópico 3.4.1.1.
317
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Trōes d’errígēsan, hópōs ídon aiólon óphin (Os troianos
arrepiaram-se quando viram a serpente de várias cores),
citado no parágrafo 255. Demétrio chega, inclusive, a
propor uma ‘solução’ mais eufônica para o hexâmetro,
mas, segundo ele próprio, ela não transmitiria o terror
experimentado pelo poeta e transmitido pela própria
serpente, uma vez que, do verso, seria retirada a cacofonia
requerida pelo assunto proposto.
E assim, finalmente, teríamos a passagem que
associa ainda o poeta ao tipo de estilo veemente e que
merece nossa última consideração. Trata-se do parágrafo
262, em que Demétrio aproxima a famosa fala do Ciclope
a Odisseu, presente na Odisseia, IX, 369 (“Ninguém vou
comer por último”), do chamado “modo cínico” (ho kynikós
trópos), descrito nos parágrafos precedentes.312
Ela se relaciona, pois, diretamente com outras
duas anteriores, dos parágrafos 130 e 152, revelando,
juntamente com essas, uma visão única no contexto da
crítica antiga. Nota-se, pois, nessas menções, traços
peculiares de uma acurada crítica literária. Nessa crítica,
como não poderia deixar de ser, enfatiza-se o horror da
personagem Polifemo, sua aparência e ações monstruosas.
No entanto, menções à famosa fala do Ciclope, nos versos
369 e 370,313 revelam mais do que isso: elas salientam o
caráter cômico da passagem. Indo além, esse caráter é
não apenas examinado da perspectiva do horror, mas
também apresentado como um elemento que o intensifica,

312 §259-262.
313 Odisseia, IX, 369-370.
318
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
dentro de uma abordagem sem paralelo na crítica literária
da Antiguidade.314

Referências:

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Les Belles Lettres: Nino Aragno Editora, 2000.
CHIRON, Pierre. Un rhéteur méconnu: Démétrios (Ps.-
Démétrios de Phalère): Essai sur les mutations de la
théorie du style à l’époque hellénistique. Paris: Librairie
Philosophique J. Vrin, 2001.
CHIRON, Pierre. Démétrios: Du style. Paris: Les Belles
Lettres, 1993.
CLASSEN, C. Joachim. Rhetoric and literary criticism:
Their nature and their functions in Antiquity. Mnemosyne,
Leiden, v. 48, n. 5, p. 513-535, nov. 1995.
DEMÉTRIO; LONGINO. Sobre el estilo; Sobre lo sublime.
Traducción de José García López. Madrid: Editorial
Gredos, 1996.
FREITAS, Gustavo Araújo de. Horror e humor no canto IX
da Odisseia: uma leitura do episódio do Ciclope proposta
por Demétrio no tratado Sobre o estilo. Nuntius Antiquus,
Belo Horizonte, v. 8, n. 1, p. 105-128, jan.- jun., 2012.
FREITAS, Gustavo Araújo de. Sobre o estilo de Demétrio:
um olhar crítico sobre a Literatura Grega (tradução e
estudo introdutório do tratado). 2011. 177 f. Dissertação
(Mestrado em Crítica Literária) - Faculdade de Letras,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,
314 A questão do aspecto cômico da passagem
levantado por Demétrio é mais amplamente discutida por
mim no artigo “Horror e humor no canto IX da Odisseia:
uma leitura do episódio do Ciclope proposta por Demétrio
no tratado Sobre o estilo”. 
319
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
2011.
GRUBE, George Maximilian Anthony. The Greek and
Roman critics. Indianapolis: Hackett Publishing Company,
1995.
GRUBE, George Maximilian Anthony. A Greek critic:
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1961.
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London: Harvard University Press, 2005.
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KENNEDY, George A. Classical rhetoric and its christian
and secular tradition from ancient to modern times. 2nd
ed., rev. and enl. Chapel Hill: University of North Carolina
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KENNEDY, George A. Reviewed work(s) – A Greek Critic:
Demetrius “On style” by G. M. A. Grube. The American
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1963.
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Paul, 1963.
LAUSBERG, Henrich. Elementos de retórica literária.
Tradução de R. M. Rosado Fernandes. 5. ed. Lisboa:
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MARROU, Henri Irenée. História da educação na
Antiguidade. Tradução de Mário Leônidas Casanova 2. ed.
São Paulo, EPU, 1975.

320
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
MOXON, T.A. Aristotle’s Poetics; Demetrius on style.
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NEVES, Maria Helena de Moura. A vertente grega da
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da Universidade de Brasília, 1987.
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PERNOT, Laurent. La Rhétorique dans l’Antiquité. Paris:
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SCHENKEVELD, D. M. Studies in Demetrius on style.
Amsterdam: A. Hakkert, 1964.

321
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
TRAUMA

Luciana Silviano Brandão Lopes

No capítulo IV de O seminário-Livro 11, Jacques Lacan


retoma Freud e sua tentativa de teorização sobre a
repetição relacionada à neurose traumática. Estabelece
uma relação entre Wiederholen (repetição) e Erinnerung
(rememoração), e afirma que “O sujeito em sua casa,
a rememorialização da biografia, tudo isso só marcha
até um certo limite, que se chama o real”.315 Ou seja, a
rememoração tem limites e o que retorna ou o que repete
é sempre o real.
No entanto, parece que a repetição não se confunde
com a reprodução:

Assim, não há como confundir a


repetição nem com o retorno dos
signos, nem com a reprodução, ou
a modulação pela conduta de uma
espécie de rememoração agida.
A repetição é algo que, em sua
verdadeira natureza, está sempre
velado na análise, por causa da
identificação da repetição com a
transferência na conceitualização dos
analistas. Ora, é mesmo este o ponto

315 LACAN. O seminário: os quatro conceitos


fundamentais da psicanálise, p. 51.
322
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
a que se deve dar distinção.316

O que se repete, acrescenta, “é sempre algo


que se produz [na] sua relação com a tiquê — como por
acaso”.317 Quanto a esse por acaso, vale lembrar que
Lacan toma emprestado de Aristóteles as noções de tyché
e automaton, trabalhadas nesse volume, e esses dois
termos são utilizados na vertente usada pelo filósofo em
capítulo de Física. O psicanalista Gérman Garcia propõe
um exemplo para explicar esses dois conceitos: imagine
um carro trafegando em determinada velocidade em uma
rua que encontra um obstáculo. O encontro com algo que
não está nos cálculos, a tyché, desestabiliza o veículo e
uma série de movimentos têm que ser feitos para recuperar
o automaton. Portanto, a tyché ou tiquismo, é o “encontro
com o real que está mais além do automaton, disso que
retorna, que regressa”.318 Cito Lacan:

A função da tiquê, do real como


encontro — o encontro enquanto
não podendo faltar, enquanto que
essencialmente é encontro faltoso —
se apresenta primeiro, na história da
psicanálise, de uma forma que, só por
si, já é suficiente para despertar nossa
atenção — a do traumatismo.319

316 LACAN. O seminário: os quatro conceitos


fundamentais da psicanálise, p. 56.
317 LACAN. O seminário: os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, p, 56.
318 GARCIA. Actualidad del trauma, p. 37.
319 LACAN. O seminário: os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, p. 57.
323
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Nessa concepção, esse encontro não premeditado,
o real como encontro, a tyché, é que é traumático. “É nas
entrelinhas da cadeia significante que a repetição insiste
de modo inassimilável, quer dizer, o real se produz no
automaton da cadeia, como que por acaso.”320 O real está
na ordem daquilo que retorna sempre no mesmo lugar
e o trauma é definido como algo a ser tamponado “pela
homeostase que norteia o funcionamento do princípio do
prazer”.321
E o sonho traumático? É realização de desejo?
Lacan discute esse tema de forma pormenorizada nesse
livro e toma como referência um sonho descrito por Freud,
em A interpretação dos sonhos. Cito o relato desse sonho
feito pelo psicanalista vienense:

[...] um pai estivera de vigília à


cabeceira do leito de seu filho enfermo
por dias e noites a fio. Após a morte do
menino, ele foi para o quarto contíguo
para descansar, mas deixou a porta
aberta, de maneira a poder enxergar
de seu quarto o aposento em que jazia
o corpo do filho, com velas altas a seu
redor. Um velho fora encarregado de
velá-lo e se sentou ao lado do corpo,
murmurando preces. Após algumas
horas de sono, o pai sonhou que seu
filho estava de pé junto a sua cama,
que o tomou pelo braço e lhe sussurrou
em tom de censura: “Pai, não vês que
estou queimando?” Ele acordou, notou
um clarão intenso no quarto contíguo,
correu até lá e constatou que o velho
320 VIOLA, 2009.
321 VIOLA, 2005.
324
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
vigia caíra no sono e que a mortalha
e um dos braços do cadáver de seu
amado filho tinham sido queimados
por uma vela acesa que tombara
sobre eles.322

A explicação freudiana é que era desejo do pai que


seu filho ainda estivesse vivo, e o sonho de certa forma
ressuscita o menino, sendo assim realização de desejo.
Já Lacan aposta que o sonho não satisfaz essa função
e pergunta se o que desperta o pai não seria no sonho
uma outra realidade. “O sonho prosseguido, não é ele,
essencialmente, se assim posso dizer, a homenagem à
realidade faltosa — a realidade que não pode mais se dar
a não ser repetindo-se infinitamente, num infinitamente
jamais atingido despertar?”323 Portanto, “o encontro,
sempre faltoso, se deu entre o sonho e o despertar, entre
aquele que dorme ainda e cujo sonho não conheceremos
e aquele que só sonhou para não despertar”324.
O que acorda o pai é a pulsão, “é a outra realidade
escondida por detrás da falta do que tem lugar de
representação”325. O que se repete aqui é o encontro faltoso
entre o filho morto e seu pai, entre um pai que perde o filho
e, em adição, um pai que perde também seu lugar de pai.
322 FREUD. A interpretação dos sonhos (segunda
parte) e sobre os sonhos, p. 468.
323 LACAN. O seminário: os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, p. 60.
324 LACAN. O seminário: os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, p. 60.
325 LACAN. O seminário: os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, p. 61.
325
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Portanto, o que é traumático é o encontro com o real sem
palavras, com a falta.
É possível pensar na noção de trauma também
na literatura, em certo tipo especial de escrita, naquelas
em algo do traumático e do indizível está presente. No
testemunho, a matéria prima é a rememoração, que é
sempre modificada, seja pelo presente ou pelo futuro. Um
fato que é lembrado hoje, no presente, é sempre diferente
do que será lembrado num outro tempo, no futuro, pois a
atualidade – que sempre modifica o sujeito que rememora
- é sempre diferente a cada momento. Portanto, o que se
relata não é exatamente o que se passou ipsis litteris, a
escrita carrega junto de si algo da ordem da invenção, dos
ecos do passado modificados pelo presente e, também,
as vozes das leituras individuais. O ato da escrita, seja da
rememoração ou não, sempre aponta para o real, para a
coisa literária, que tem uma face para o exterior, para o
fora da linguagem. Dito isso, como escrever sobre este
real que não tem palavras, que foge do sentido e que,
paradoxalmente, é o que os escritores de testemunho
almejam em seus relatos? Talvez Machado de Assis, em
Esaú e Jacob, tenha uma pista sobre isto: “O tempo é um
tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um
pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se
pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil
obra deste mundo, e acaso do outro”326. Pode-se inferir,
nesta passagem, que o real, o indizível, está para sempre
fora de alcance, mas é possível se fazer uma bordadura,

326 ASSIS. Obra Completa, p. 976.


326
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
uma borda ao redor desse buraco do impossível de dizer.
Bordar o nada, dar forma ao que é puro furo, fazer
aparecer a verdade onde só há o indizível, parece que
este é o propósito ou, talvez, a única saída do testemunho.

Referências

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro:


Aguilar, 1962.
GARCÍA, Germán. Actualidad del trauma. Buenos Aires:
Grama, 2005.
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos (II) e
sobre os sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 323-
611. (Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud, 5).
LACAN, Jacques. O seminário: os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise. Tradução de M. D. Magno.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. v. 11.
VIOLA, Sandra. Pontuações sobre o trauma em Freud e
em Lacan. Latusa digital ,ano 4, n. 27, 2007. Disponível
em: <http://www.latusa.com.br/pdf_latusa_digital_27_
a1.pdf>. Acesso em: 03 ago. 2009.

327
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A imagem do autor: um estudo sobre
Gustave Flaubert

Renata Aiala de Mello

Introdução

Mesmo com “a morte do autor”, nos termos de Barthes327,


que realiza um esvaziamento da figura do autor, priorizando
a escritura e a imanência do texto, afirmando que a figura
do autor é um construto histórico, acreditamos que sua
imagem permanece vinculada à sua vida e é passível de
ser resgatado em sua obra.
Vemos que a identidade de Flaubert é compósita.
Ela inclui, dentre vários dados, os biológicos, os biográficos,
os psicológicos e os sociais construídos não só pelo
próprio Flaubert mas também por aqueles que discorrem
sobre sua vida e sua obra.
As identidades de Flaubert sujeito-cidadão e sujeito-
autor consistem, desse modo, em uma combinação de
dados de sua vida, de comportamentos e traços deixados
em sua obra que se juntam, por sua vez, aos de outrem
sobre essa combinação e que levam as pessoas, entre
outras coisas, a reconhecer, reiterar, recriar, reforçar,
legitimar, reconstruir, mascarar e/ou deslocar essas
327 BARTHES. O Rumor da Língua, p. 49-53.
328
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
imagens de si resultando, então, em um mecanismo
complexo de influências intersubjetivas.

Análise

Ao contrário do que pensam alguns biógrafos, certos


críticos partem do princípio de que mais importante do que
se debruçar sobre a vida privada de um autor, é conhecê-
lo no seu fazer literário, nas suas relações com a escrita.
Para esses críticos, deve haver primazia dos aspectos
literários em detrimento dos extraliterários, ainda que
ambos se complementem e confluam para o entendimento
da imagem do autor. Flaubert parece concordar com esses
críticos ao afirmar: “je n’aime pas intéresser le public avec
ma personne”328. Lemos, nesse fragmento, o seu oposto
ali implícito, ou seja, Flaubert quer interessar o público
com seu trabalho de autor. Dito de outra maneira, Flaubert
prefere ser lembrado enquanto autor e não enquanto
cidadão.
Para Poyet, Flaubert, antes mesmo de ser um
romancista, é um filósofo da literatura, imagem que
pode ser apreendida em sua Correspondance. Esse
posicionamento coincide com nossa leitura segundo a qual
a identidade de Flaubert pode ser mostrada, dita e efetivada
por sua função autor, pensador, intelectual, alguém que
possui uma visão particular da Literatura, de uma maneira
geral, e da sua própria escritura, em particular. Na esteira
do que foi mencionado no fragmento acima, até mesmo

328 FLAUBERT. Correspondance, p. 379.


329
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
na Correspondance podemos perceber elucubrações de
Flaubert a respeito da Literatura, do seu fazer literário.
Flaubert afirma, em carta a Louise Colet, que ele “[...]
veut qu’il n’y ait pas dans [son] livre un seul mouvement, n’y
une seule réflexion de l’auteur”329. Cinco anos mais tarde,
em uma outra carta escrita a Mlle. Leroyer de Chantepie,
Flaubert tece novamente comentários sobre seu papel
de autor. Numa linha um pouco divergente daquilo que
ele havia dito anteriormente, (e também diferente da de
Barthes), ele vê o autor não como uma instância morta,
esvaziada e sem importância, mas, ao contrário, divina.
Ele afirma que “L’artiste doit être dans son œuvre comme
Dieu dans la création, invisible et tout-puissant; qu’on le
sente partout, mais qu’on ne le voie pas”330.
Segundo Gengembre331, Flaubert é um escritor para
quem o exercício da literatura é visto como problemático.
A sequência e encadeamento natural de ideias são duas
das maiores dificuldades que o autor precisa lidar quando
se trata de tecer seu texto. O árduo processo de criação
lhe desgasta e lhe toma muito tempo. Em cartas enviadas
a Colet, em anos subsequentes, Flaubert declara que,
na confecção de Madame Bovary, sente dificuldades de
escrever:

J’ai commencé hier au soir mon


roman. J’entrevois maintenant des
difficultés de style qui m’épouvantent.
Ce n’est pas une petite affaire que

329 FLAUBERT. Correspondance, p. 43.


330 FLAUBERT. Correspondance, p. 691.
331 FLAUBERT. Correspondance, p. 17-46.
330
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
d’être simple. J’ai peur de tomber dans
le Paul de Kock ou de faire du Balzac
chateaubrianisé.332
Bovary aura été un tour de force
inouï et dont moi seul jamais aurai
conscience: sujet, personnage, effet,
etc., tout est hors de moi.333
La Bovary marche à pas de tortue;
j’en suis désespéré par moments […]
Quelle lourde machine à construire
qu’un livre, et compliquée surtout!334
Je n’ai jamais de ma vie rien écrit
de plus difficile que ce que je fais
maintenant […] il me faut faire parler,
un style écrit, des gens du dernier
commun…335
Dieu! Que ma Bovary m’embête! J’en
arrive à la conviction quelques fois
qu’il est impossible d’écrire. J’ai à faire
un dialogue de ma petite femme avec
un curé, - dialogue canaille! et épais.
Et, parce que le fonds est commun,
il faut que le langage soit, d’autant
plus propre. L’idée et les mots me
manquent. Je n’ai que le sentiment.336

Além de traçar a imagem do romance Madame


Bovary nesses fragmentos, Flaubert confessa suas
dificuldades com a escrita, mas, também, faz uma

332 FLAUBERT. Correspondance, p. 5.


333 FLAUBERT. Correspondance, p. 140. Grifos do
autor.
334 FLAUBERT. Correspondance, p. 156. Grifos do
autor.
335 FLAUBERT. Correspondance, p. 159-160
336 FLAUBERT. Correspondance, p. 301. Grifos do
autor.
331
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
espécie de crítica (literária) a Paul de Kock, a Balzac e
a Chateaubriand, cujos traços estilísticos o autor teme
parecer.
Em uma outra carta a Colet, Flaubert continua sua
reflexão a respeito do fazer literário: Mais quant à arriver
à devenir un maître, jamais, j’en suis sûr. Il me manque
énormément, l’innéité d’abord, puis la persévérance du
travail.”337
Em sua Correspondance, temos várias passagens
nas quais Flaubert atesta que não consegue escrever
e, para conseguir um ambiente propício ao trabalho da
escrita, o autor se recolhe, como dissemos, por vários anos
em Croisset. Pater338 acredita que, se recolhendo, o autor
descobre a vocação da sua vida – escrever: “Necessitated
by weak health to the regularity and the quiet of a monk, he
was but kept the closer to what he had early recognized as
his vocation in life.”
O próprio Flaubert parece assumir integralmente o
ponto de vista de Poyet e Pater quando afirma, em carta
enviada a Du Camp, que:

Quant à mon poste d’homme de lettres,


je te le cède de grand cœur […] Je suis
tout bonnement un bourgeois qui vit
retiré à la campagne, m’occupant de
littérature et sans rien demander aux
autres, ni considération, ni honneur, ni
estime même339.

337 FLAUBERT. Correspondance, p. 303.


338 1966a, p. 26
339 FLAUBERT. Correspondance, p. 121.
332
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Também em 1852, em seu segundo ano de escrita
de Madame Bovary, Flaubert se queixa da solidão e das
dificuldades em encontrar seu verdadeiro objetivo. Em mais
uma carta a Colet, ele menciona que a falta de regularidade
no trabalho de escrita do romance lhe atrapalha, lhe corta
o ritmo: “J’ai bien du mal à me remettre au travail. Ces
15 derniers jours de repos m’ont tout à fait dérangé. Pour
le moment mon sujet me manque entièrement. Je ne vois
plus l’objectif. La chose à dire fuit au bout des mes mains
quand je la veux saisir”340.
O que vemos claramente nessas passagens é a
construção da identidade de Flaubert enquanto autor,
forjada por ele próprio na sua relação com a escrita. A
imagem de Flaubert vítima do seu próprio trabalho é
desenhada em cada carta, cada vez que ele fala sobre o
processo de escritura. Dedicado à Literatura, vivendo dela,
por ela e para ela, Flaubert se autonomeia “homme-plume”:
“[…] je suis un homme-plume, je sens par elle, à cause
d’elle, par rapport à elle et beaucoup plus avec elle”341.
Em outros termos, diríamos que a situação de Flaubert é
paradoxal. Sempre insatisfeito com aquilo que escreve,
ele não desiste, procura, obstinadamente, na escrita, o
conforto que ela lhe nega. Escrever, escrever de novo,
refazer, não abandonar o trabalho, buscando a perfeição
– sua obsessão, seu objetivo final. As dificuldades de se
trabalhar a escrita não é dissimulada, ao contrário, torna-
se tema de reflexão importante na Correspondance.

340 FLAUBERT. Correspondance, p. 27.


341 FLAUBERT. Correspondance, p. 42.
333
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Vemos, entretanto, com Flaubert, que o processo
de escritura nem sempre é penoso e que, apesar das
dificuldades, é na Literatura que o autor encontra sua
vocação e seu alento. A seguir, registramos dois excertos
sobre o prazer que a escrita, que o trabalho literário
proporciona ao autor:

N’importe, bien ou mal, c’est une


délicieuse chose que d’écrire, que de
ne plus être soi, mais de circuler dans
toute la création dont on parle. [...] Le
seul moyen de supporter l’existence,
c’est de s’étourdir dans la littérature
comme dans une orgie perpétuelle.342
Enfin! Étourdissons-nous avec le bruit
de la plume et buvons de l’encre. Ça
grise mieux que le vin.343 [...] Le vin de
l’Art cause une longue ivresse et il est
inépuisable.344

Convictos de que a imagem de Flaubert enquanto


autor se fez e se faz a partir do que ele viveu e partir daquilo
que escreveu, partimos, aqui, de mais um pressuposto: o
de que sua identidade se constrói na maneira como ele
escreve.
Em conformidade com todos os testemunhos
colhidos, constatamos que não há “um” Flaubert, mas
vários, que emergem de cada leitura de cada um dos que
convidamos para compor esse capítulo, todas elas ligadas
a uma conjuntura psico-sócio-histórica. Reiteramos, por

342 FLAUBERT. Correspondance, p. 483-832.


343 FLAUBERT. Correspondance, p. 167.
344 FLAUBERT. Correspondance, p. 832.
334
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
fim, o que diz Pingaud (1980) a esse propósito:

[...] Rares sont ceux qui prennent


Flaubert en bloc: pour Proust ou pour
Kafka, Flaubert, c’était essentiellement
L’éducation. Pour Sartre comme pour
James, c’est Bovary. Aujourd’hui
l’accent se déplacerait plutôt vers
Bouvard et La Tentation. Ainsi, il y a
des Flaubert qui se succèdent depuis
un siècle345.

Flaubert é responsável pela elaboração de seus


textos, pelas escolhas lexicais, pelas ideias ali propostas.
É ele quem estabelece a relação contratual com seus
leitores e se utiliza de estratégias enunciativas para propor
os sentidos de seus textos.

Considerações finais

Nossa proposta aqui foi o de retirar, ainda que parcialmente,


essa máscara e revelar, ao menos parcialmente, sua
identidade.
Ressaltamos o caráter plural, multifacetado e
até mesmo, por vezes, contraditório de Flaubert: crítico,
doente, melancólico, produtivo, pessimista, romântico,
mas também realista, revoltado, incompreendido... eis
algumas imagens que espelham Flaubert, imagens que
ecoam suas múltiplas identidades.

345 PINGAUD, 1980, p. 1
335
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
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339
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
340
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A MULTIPLICIDADE DAS COISAS
POSSÍVEIS: LABIRINTOS DE JORGE LUIS
BORGES E ITALO CALVINO

Maria Elisa Rodrigues Moreira

Figura cara à literatura, o labirinto é uma das temáticas


de destaque na obra de Jorge Luis Borges – que dele se
vale em diversos de seus contos, abordando-o por muitas
de suas múltiplas veredas – mas também marca sua
presença na produção de Italo Calvino, seja ela ensaística
ou ficcional, como brevemente apontaremos ao longo
desta comunicação.
Marta Canfield afirma que o labirinto povoa a
escrita borgiana, na qual aparece transvestido em várias
metáforas, de casas, palácios, cidades, da alma, do sonho,
da selva, do deserto, dos livros, da viagem pelo mundo e até
mesmo do próprio mundo, mas também como construções
metafísicas, imaginativas, criativas ou artísticas346. Assim o
próprio Borges aborda a questão, indicando a tênue linha
que pode transformar qualquer espaço em labirinto:

O conceito de labirinto – o de uma casa


cujo descarado propósito é confundir e
desesperar os hóspedes – é bem mais
estranho que a efetiva edificação ou
346 CANFIELD. Borges: del minotauro al signo
laberíntico.
341
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
a lei desses incoerentes palácios. O
nome, contudo, provém de uma antiga
voz grega que significa os túneis das
minas, o que parece indicar que houve
labirintos antes da ideia de labirinto.
Dédalo, em suma, teria se limitado à
repetição de um efeito já obtido pelo
azar. Por demais, basta uma dose
tímida de álcool – ou de distração –
para que qualquer edifício provido de
escadas e corredores resulte em um
labirinto347.

Nesse sentido, é bastante interessante a construção


do labirinto que se prenuncia em “A morte e a bússola”348.
Nesse conto, uma investigação policial constitui-se não
apenas como uma trama de construção labiríntica, mas
também como um exercício de construção de labirintos:
nele se narra o percurso do investigador Erik Lönrot, que
“se julgava um puro raciocinador, um Auguste Dupin”349,
em busca da solução de um assassinato. Esse percurso
acaba por levar a labirintos diversos – a casa de Triste-le-
Roy, labirinto multiplicado ao infinito por suas duplicações
e espelhos; o labirinto losangular planejado a posteriori por
Red Scharlach para a morte de Lönrot; o labirinto de uma
única linha reta apontado pelo próprio Lönrot no momento
de sua morte como possível solução para outra morte, a
ocorrer em outro tempo possível.
Nesse breve conto de investigação policial bem
ao estilo de Edgar Allan Poe, como explicita a menção a
347 BORGES. Laberintos, p. 156.
348 BORGES. A morte e a bússola.
349 BORGES. A morte e a bússola, p. 121.
342
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Dupin, Borges constrói uma série de distintos labirintos,
assim como converte o próprio crime num labirinto
narrativo no qual Lönrot se embrenha desde o princípio da
investigação, pois o crime apresenta-se como decorrente
do desejo de Lönrot de que o assassinato investigado
tivesse uma motivação “interessante”, a qual acaba por
ensejar o plano de sua própria morte: “O primeiro termo da
série me foi dado pelo acaso”, afirma Scharlach, referindo-
se ao primeiro assassinato, o de Yarmolinsky, que havia
decorrido de uma frustrada tentativa de roubo. Mas ao
saber, pelos jornais, que Lönrot estava investigando
os escritos da vítima em busca da chave para a sua
morte, o acaso abandona a explicação de Scharlach:
“Compreendi que o senhor conjecturava que os hassidim
haviam sacrificado o rabino; dediquei-me a justificar essa
conjectura”350. E Borges termina o conto acenando para um
labirinto temporal, como o que desenvolve em “O jardim
de veredas que se bifurcam”351, ao apresentar um labirinto
em linha que corrobora sua afirmação de que basta muito
pouco para transformar qualquer espaço em labirinto:
“Para a outra vez que o matar – replicou Scharlach –,
prometo-lhe esse labirinto, que consta de uma única linha
reta e que é invisível, incessante”352.
Em Italo Calvino, ainda que o espectro do labirinto
pareça não se espraiar de maneira tão ampliada, sua
presença é incisiva em ensaios como “O desafio ao
labirinto” e “Cibernética e fantasmas: notas sobre a
350 BORGES. A morte e a bússola, p. 133.
351 BORGES. O jardim de veredas que se bifurcam.
352 BORGES. A morte e a bússola, p. 135.
343
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
narrativa como processo combinatório” – ambos publicados
no livro Assunto encerrado353 – ou em estruturas como as
de As cidades invisíveis354 e Se um viajante numa noite de
inverno355, para não citar o pequeno conto infantil, ainda
não publicado em português, La foresta-radice-labirinto356.
Mario Barenghi (2007), ao pontuar que a figura do labirinto
atravessa a obra de Calvino como um fio vermelho,
aproxima-a das inúmeras aparições do bosque, das
prisões, dos horizontes e da página em branco. Mostra-se
instigante ao pensamento, nesse sentido, o conto “O conde
de Montecristo”357, no qual a prisão e a página em branco
que precede a escritura emaranham-se de tal modo que o
labirinto que se constitui apresenta-se como muitos.
Assim o próprio Calvino apresenta esse texto:

No conto, vemos Alexandre Dumas


extraindo seu romance O Conde de
Monte Cristo de um hiper-romance que
contém todas as variantes possíveis
da história de Edmond Dantès.
Prisioneiros de um capítulo do “Conde
de Monte Cristo”, Edmond Dantès e
o abade Faria estudam seu plano de
evasão e se perguntam qual entre as
variantes possíveis seria a certa. O
abade Faria escava túneis para fugir
da fortaleza, mas erra o tempo todo o
caminho e acaba dando por si em celas
353 CALVINO. Assunto encerrado: discurso sobre
literatura e sociedade.
354 CALVINO. As cidades invisíveis.
355 CALVINO. Se um viajante numa noite de inverno.
356 CALVINO. La foresta-radice-labirinto.
357 CALVINO. . O conde de Montecristo.
344
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
cada vez mais profundas. Com base
nos erros de Faria, Dantès procura
desenhar um mapa da fortaleza.
Enquanto Faria, de tanto tentar, tende
a realizar a fuga perfeita, Dantès tende
a imaginar a prisão perfeita, aquela de
onde não se pode fugir358.

O conto começa com Dantès contando sua


história: a prisão, o desorientamento, as tentativas de
fuga do abade e o método que parece a ele, Dantès,
mais apropriado para se pensar num modo de escape
dessa fortaleza-labirinto. Até então, os únicos outros
enredamentos que se vislumbra são o da afinidade do
conto com a obra de Alexandre Dumas, e o da explicitação
do método de Dantès com os procedimentos narrativos de
Calvino. Dividido em nove pequenos “capítulos”, é essa a
história que se apresenta como tônica até a sexta parte da
narrativa, quando a desorientação espaço-temporal que
vimos experimentando até então no que diz respeito ao
Castelo de If, local onde estão os prisioneiros, desdobra-
se para um outro labirinto: a ilha de Montecristo. Assim
Dantès traça essa aproximação:

[...] Nas pichações com que o abade


Faria recobre as paredes, alternam-se
dois mapas de contornos recortados,
constelados de setas e senhas: um
deveria ser o mapa de If, o outro de
uma ilha do arquipélago toscano onde
se esconde um tesouro: Montecristo.
É justamente para procurar esse

358 CALVINO. Cibernetica e fantasmas (Notas sobre a


narrativa como processo combinatório), p. 214-215.
345
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
tesouro que o abade Faria quer fugir.
Para alcançar seu objetivo, ele precisa
traçar uma linha que no mapa da ilha
de If o leve do interior ao exterior e que
no mapa da ilha de Montecristo o leve
do exterior àquele ponto mais interno
que todos os outros pontos, que é a
gruta do tesouro359.

O labirinto começa a se ramificar, If torna-se


também Montecristo e vice-versa, num espelhamento
que exige a inversão da direção em que se busca a saída
(ou a chegada): “Em um caso ou no outro, observando
bem, ele tende ao mesmo ponto de chegada: o lugar da
multiplicidade das coisas possíveis”360. Mas não termina aí
essa ramificação, e na parte 7 o labirinto de If-Montecristo
explode em mais uma direção, a da ilha de Elba, de onde
Faria deseja libertar o imperador, Napoleão. O pensamento
sobre o labirinto, também complexificado, reflete-se na
fala do próprio narrador: “Essas interseções tornam ainda
mais complicado o cálculo das previsões; há pontos em
que a linha que um de nós está acompanhando se bifurca,
se ramifica, se abre em leque; cada ramo pode encontrar
ramos que partem de outras linhas”361.
É apenas no capítulo 8 que o labirinto de If-
Montecristo-Elba vai se mostrar enredado em um outro
labirinto, ainda mais amplo: a página em branco, os
rascunhos e projetos e tentativas e possibilidades de
Alexandre Dumas, o próprio processo de escrita. Numa
359 CALVINO. O conde de Montecristo, p. 265.
360 CALVINO. O conde de Montecristo, p. 265.
361 CALVINO. O conde de Montecristo, p.266.
346
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
espécie de mise en abyme de narrativas e referências, o
labirinto de Dantès exige que os personagens “imundos
de tinta” percorram “as linhas da escrita cerrada”, “entre
correções emaranhadas”362: “A fortaleza concêntrica If-
Montecristo-escrivaninha de Dumas nos contém a nós,
prisioneiros, o tesouro, o hiper-romance Montecristo com
suas variantes e combinações de variantes da ordem de
bilhões e bilhões, mas ainda assim, sempre em número
finito”363.
Se Borges termina por apontar um labirinto em
linha reta, Calvino dá ao seu a forma de uma espiral:

Uma espiral pode girar sobre si


mesma em direção ao interior ou ao
exterior: ao se aparafusar para dentro
de si mesma, a história se encerra
sem desdobramento possível; ao
se desdobrar em espirais que se
alargam, poderia a cada volta incluir
um segmento do Montecristo com sinal
de mais, acabando por coincidir com o
romance que Dumas entregará para
a impressão, ou talvez o superando
em riqueza de circunstâncias
afortunadas364.

Para desdobrar as linhas desses labirintos,


figuras que em Borges e Calvino tornam-se repletas de
possibilidades, tomaremos como referencial a breve
classificação feita por Umberto Eco (1991, 2007), segundo
a qual existem três tipos de labirintos distintos: o labirinto
362 CALVINO. O conde de Montecristo, p. 267.
363 CALVINO. O conde de Montecristo, p. 268.
364 CALVINO. O conde de Montecristo, p. 268.
347
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
clássico, o labirinto maneirístico e o labirinto em rede.
O labirinto clássico seria como o de Cnossos, o famoso
labirinto em Creta que tem em seu interior o Minotauro:
um labirinto unicursal, no qual a única coisa a se fazer é
chegar ao centro e do centro à saída, por um só caminho
possível. Espaço no qual o fio de Ariadne serve como guia,
o labirinto de Creta é passível de ser “desenrolado”: feito
isso, o fio que aparecia como algo estranho a ele mostra-
se como o próprio labirinto... Esse labirinto aparece em
Borges, por exemplo, num texto que se delineia como um
crescente novelo ao qual, a cada movimento, agrega-se
nova parte do percurso:

Esse é o labirinto de Creta. Esse é


o labirinto de Creta cujo centro foi o
Minotauro. Esse é o labirinto de Creta
cujo centro foi o Minotauro que Dante
imaginou como um touro com cabeça
de homem e em cuja trama de pedra
se perderam tantas gerações. Esse é
o labirinto de Creta cujo centro foi o
Minotauro que Dante imaginou como
um touro com cabeça de homem e
em cuja trama de pedra se perderam
tantas gerações assim como María
Kodama e eu nos perdemos. Esse é
o labirinto de Creta cujo centro foi o
Minotauro que Dante imaginou como
um touro com cabeça de homem e
em cuja trama de pedra se perderam
tantas gerações assim como María
Kodama e eu nos perdemos naquela
manhã e continuamos perdidos no
tempo, esse outro labirinto365.

365 BORGES. Atlas, p. 91.


348
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Mas o labirinto de Borges, ainda que se constitua
como um texto no qual nada resta a não ser seguir em
frente, já aponta sua própria falácia: em lugar da saída,
deparamo-nos com sua conversão num outro labirinto
do qual é impossível escapar, o tempo, e que garante
que o “estar perdidos” se prolongue ao infinito. O
labirinto clássico de Eco transforma-se, em Borges, num
pesadelo: ele tem apenas um caminho possível, mas
em seu fim a saída não pode ser encontrada... É essa
também a linha de estranhamento que norteia o poema
“Labirinto”, que ainda que recorra à figura do Minotauro,
elemento chave desse labirinto clássico – “Não esperes
a investida/ Do touro que é um homem e cuja estranha/
Forma plural dá horror à maranha/ De interminável pedra
entretecida” –, acentua a inexistência da saída: “Nunca
haverá uma porta”366. Como afirmava Calvino ecoando
o poeta e crítico alemão Hans Magnus Enzensberger,
para que o labirinto mantenha “seu fascínio e seu risco”
ele não pode ser desvendado: “O labirinto foi feito para
que quem nele entra se perca e erre. [...] Se conseguir
[atravessá-lo], terá destruído o labirinto; não existe
labirinto para quem o atravessou”367.
Borges parece, assim, aceitar o “desafio ao
labirinto” posteriormente evocado por Calvino – num jogo
de duplo movimento, ele o desestrutura ao converter
sua saída em passagem a um novo labirinto, mas ao
366 BORGES. Elogio da sombra, p. 35.
367 ENZENSBERGER apud CALVINO. Cibernetica
e fantasmas (Notas sobre a narrativa como processo
combinatório), p. 213-214.
349
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
mesmo tempo o perpetua por garantir que seu segredo
não será desvendado:

Fica de fora quem acredita que pode


vencer os labirintos fugindo a sua
dificuldade; portanto, é um pedido
pouco pertinente aquele que, no
labirinto, fazemos à literatura: que
ela própria forneça a chave para
podermos sair dele. O que a literatura
pode fazer é definir a melhor atitude
para encontrar o caminho da saída,
embora essa saída nada mais será
que a passagem de um labirinto para
outro. E o desafio ao labirinto que
desejamos salvar é uma literatura do
desafio ao labirinto que desejamos
evidenciar e distinguir da literatura da
rendição ao labirinto368.

O segundo labirinto apresentado por Eco é o


labirinto maneirístico: neste, as possibilidades de trajetos
são múltiplas, mas apenas uma leva à saída. Diante desse
labirinto, se o Minotauro não se mostra mais necessário, o
fio de Ariadne poderia sê-lo, auxiliando aquele que por ele
transita a não chegar a becos sem saída: os erros, aqui,
podem acontecer, mas solucionam-se com o necessário
retorno a um ponto anterior para dar continuidade ao
trajeto. Esse labirinto, se desenrolado, tomaria a estrutura
de uma árvore. E aqui se faz inevitável a associação do
labirinto com o bosque, figura apontada por Barenghi
como chave na obra de Calvino: do bosque onde todos

368 CALVINO. O desafio ao labirinto, p. 116. Grifos


do autor.
350
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
se perdem (e perdem também suas vozes) de O castelo
dos destinos cruzados 369, passando pelo bosque que se
converte em mundo particular de O barão nas árvores 370,
chegamos à floresta-raiz-labirinto, que se constitui como
único trajeto possível para a cidade de origem371.
La foresta-radice-labirinto narra a história do Rei
Clodoveo, que ao retornar de uma longa guerra para seu
reino de Alberoburgo encontra, circundando-o, uma floresta
que se mostra como um verdadeiro labirinto de galhos e
raízes. Para chegar à cidade, o rei precisa resolver os
enigmas do labirinto e ainda desvencilhar-se de uma traição
em andamento, que é tramada pela rainha Ferdibunda e
pelo primeiro-ministro Curvaldo. Complementam o grupo o
escudeiro do rei, Amalberto, a princesa Verbena e o jovem
Mirtillo. Nessa trama, Calvino envolve o Rei Clodoveo num
duplo enredamento labiríntico, pois o rei é cercado tanto
pelos enganos da floresta quanto pela traição que aos
poucos toma corpo. Para escapar a esse emaranhado,
o Rei precisa driblar inúmeras saídas falsas, e a cada
instante se evidencia que, para encontrar a verdadeira,
será fundamental que um fio de Ariadne apresente-se
como guia e possibilite o desvendamento do mistério.
É nesse ponto que nós, leitores, somos também
enredados por essa narrativa-floresta-labirinto da qual
tentamos encontrar a saída: os movimentos de todos os
personagens são marcados pela presença de um estranho
pássaro, cujo som funciona como chamariz, induzindo a
369 CALVINO. O castelo dos destinos cruzados.
370 CALVINO. O barão nas árvores.
371 CALVINO. La foresta-radice-labirinto.
351
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
que se o siga pela floresta. Mas mesmo esse condutor
parece se apresentar como mais um dos pontos cegos
do labirinto – seguir o pássaro não leva à saída, e pode
mesmo acabar por conduzir quem está do lado de fora
para o interior do labirinto, como acontece com a princesa
Verbena. Essa falsa solução, entretanto, mostra-se ela
mesma como outra armadilha do labirinto: pois, se o
pássaro não leva o rei à saída, ele o leva até sua filha,
a qual havia, em companhia de Mirtillo, desvendado o
mistério do labirinto – nele, as coisas ocupavam lugares
diferentes dos habituais, de modo que os galhos pareciam
raízes e as raízes pareciam galhos, e para chegar à
saída bastava aceitar a caminhada sob outra perspectiva,
deslocada e invertida.
Mas, ainda que a complexificação narrativa com
que Borges e Calvino abordam esses labirintos faça
deles modelos intrincados, eles ainda não correspondem
ao labirinto que aqui nos interessa mais diretamente, o
terceiro labirinto apontado por Eco, o labirinto em rede, no
qual se podem constituir inúmeros caminhos e saídas, o
labirinto que se constitui como tal por estar aberto a uma
infinidade de possibilidades:

O labirinto de terceiro tipo é uma rede,


na qual cada ponto pode ter conexão
com qualquer outro ponto. Não é
possível desenrolá-lo. Mesmo porque,
enquanto os labirintos dos dois
primeiros tipos têm um interior (o seu
próprio emaranhamento) e um exterior,
no qual se entra e rumo ao qual se sai,
o labirinto de terceiro tipo, extensível

352
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ao infinito, não tem nem interior nem
exterior. Pode ser finito ou (contanto
que tenha possibilidade de expandir-
se) infinito. Em ambos os casos, dado
que cada um dos seus pontos pode
ser ligado a qualquer outro ponto, e
o processo de conexão é também
um processo contínuo de correção
das conexões, seria sempre ilimitado,
porque a sua estrutura seria sempre
diferente da que era um momento
antes e cada vez se poderia percorrê-
lo segundo linhas diferentes372.

Nessa perspectiva, temas caros a Borges – como


o tempo e o deserto – e a Calvino – como o horizonte e a
página em branco – constituem-se objetos de narrativas
labirínticas extremas, que apontam para o caminho
que mais multíplice e desorientador pode ser: aquele
do labirinto sem paredes, sem marcas, sem limites ou
contornos estáveis aos quais se possa recorrer. Como
achar a saída em um espaço que não tem dentro ou fora?

372 ECO. O antiporfírio, p. 338-339.


353
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Referências

BARENGHI, Mario. Italo Calvino, le linee e i margini.


Bologna: Il Mulino, 2007.
BORGES, Jorge Luis. Laberintos. In: _____. Textos
recobrados (1931-1955). Buenos Aires: Emecê, 2007. p.
156-158.
BORGES, Jorge Luis. O jardim de veredas que se bifurcam.
In: _____. Ficções. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 80-93.
BORGES, Jorge Luis. A morte e a bússola. In: _____.
Ficções. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. p. 121-135.
BORGES, Jorge Luis. Elogio da sombra. In: _____.
Poesia. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009. p. 19-78.
BORGES, Jorge Luis. Atlas. Tradução de Heloisa Jahn.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
CALVINO, Italo. O castelo dos destinos cruzados. Tradução
de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno.
Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.
CALVINO, Italo. O barão nas árvores. In: _____. Os nossos
antepassados. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999b. p. 113-364.
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. 2. ed. Tradução de
Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
CALVINO, Italo. O conde de Montecristo. In: _____. Todas
as cosmicômicas. Tradução de Ivo Barroso e Roberta
Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 258-
269.

354
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
CALVINO, Italo. Assunto encerrado: discursos sobre
literatura e sociedade. Tradução de Roberta Barni. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
CALVINO, Italo. O desafio ao labirinto. In: _____. Assunto
encerrado: discursos sobre literatura e sociedade.
Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009. p. 100-117.
CALVINO, Italo. Cibernetica e fantasmas (Notas sobre
a narrativa como processo combinatório). In: _____.
Assunto encerrado: discursos sobre literatura e sociedade.
Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009. p. 196-215.
CALVINO, Italo. La foresta-radice-labirinto. Milano: Oscar
Mondadori, 2011.
CANFIELD, Marta. Borges: del minotauro al signo
laberíntico. In: TORO, Alfonso de; REGAZZONI, Susanna.
El siglo de Borges: literatura, ciencia, filosofía. Madrid:
Iberoamericana; Frankfurt am Main: Vervuet, 1999. v. 2,
p. 67-76.
ECO, Umberto. O antiporfírio. In: _____. Sobre os espelhos
e outros ensaios. Tradução de Beatriz Borges. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 316-341.
ECO, Umberto. Dall’albero al labirinto: studi storici sul
segno e l’interpretazione. Milano: Bompiani, 2007.

355
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
REGIONALIDADE: ENTRE A INFLUÊNCIA
FRANCESA E A BRASILIDADE

André Tessaro Pelinser

Neste trabalho, investigamos a dinâmica pela qual se


deram as trocas reais e simbólicas catalisadoras de
algumas das discussões acerca da identidade literária
brasileira, sobretudo no que tange às manifestações
regionalistas, no século XIX. Tal intento justifica-se uma
vez que, sob um século de influência das artes francesas,
a literatura brasileira desenvolveu-se buscando libertar-
se da pecha de ser incapaz de produzir material com
identidade própria, muito embora esse anseio não
fosse suficiente para modificar substantivamente as
técnicas inicialmente utilizadas. Se, por um lado, havia a
necessidade de coadunar a representação com o próprio
material representado, por outro não era exatamente
possível fugir aos modelos canonizados para e pelo fazer
artístico. Assim, aos literatos restava a difícil tarefa de
investir de cor local uma arte que não podia desviar-se da
forte influência europeia recebida.
Do cerne dessa problemática, surgiu no século
XIX o regionalismo literário brasileiro, manifestação que
cruzou os anos para se arvorar em corrente literária
empenhada com a elaboração artística do particular,

356
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
daqueles elementos capazes de expressar a unicidade
de determinado contexto social. Tomando a afirmação do
professor José Clemente Pozenato, podemos constatar,
no Brasil, “a presença do regionalismo no movimento
romântico, no realista e no modernista: nos três momentos,
a tônica foi a vontade de fazer um levantamento de
características regionais, com vistas à constituição de uma
literatura ‘brasileira’”373. A ênfase dada pelo autor recai sobre
o adjetivo justamente devido à capacidade da corrente de
veicular as especificidades locais, o que lhe garantiu por
muito tempo a função de ferramenta programática para
a consolidação dos anseios políticos da intelectualidade
nacional. Paradoxalmente, porém, enquanto por um
lado assegurou-lhe longevidade ao longo de variados
movimentos estéticos, por outro contribuiu para vinculá-
la negativamente a noções ufanistas e panfletárias da
nacionalidade.
Não surpreende, portanto, que no ano de 1873
Machado de Assis tenha publicado no periódico O Novo
Mundo, em Nova Iorque, o clássico ensaio conhecido
como “Instinto de Nacionalidade”. Tal texto, nas palavras
de Maria Zilda Cury, tornou-se referência matricial “para
a reflexão sobre a tradição e sobre os caminhos da
literatura nacional, entorno do dilema da assimilação do
modelo europeu, dos valores pretensamente universais
da modernidade e da obrigatoriedade de prover as obras
artísticas da ‘cor local’, que nos distinguiria enquanto

373 POZENATO. O regional e o universal na literatura


gaúcha, p. 26.
357
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
brasileiros”374.
Naquele momento, Machado verificava com
lucidez que “as mesmas obras de Basílio da Gama e
Durão quiseram antes ostentar certa cor local do que
tornar independente a literatura brasileira, literatura que
não existe ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora”375.
Lúcido em dois sentidos: porque Machado reconhecera
em parágrafo anterior que não se poderia cobrar daqueles
escritores um pensamento completamente alheio à época
em que produziram, e no entendimento de que naquelas
décadas começavam a alvorecer identitariamente as
nossas letras, dado o visível “instinto de nacionalidade que
se manifesta nas obras destes últimos tempos”376.
Isto é, sobretudo na segunda metade do século XIX,
o Brasil irá observar notável salto no que concerne à arte
da palavra. Do ponto de vista quantitativo, é expressivo
o crescimento do número de publicações, enquanto
qualitativamente as obras avançam no seu intento de
elaborar uma expressão artística condizente com as
particularidades da recém independente nação. Ainda
que a discussão machadiana seja oriunda dos fervorosos
debates românticos relativos ao Arcadismo, é da França
que vêm os primeiros interlocutores responsáveis pelo

374 CURY. Des écrivains latino-américains et la


tradition: Machado de Assis, Jorge Luis Borges et Ricardo
Piglia, p 75. Tradução nossa.
375 ASSIS. Notícia da atual literatura brasileira:
instinto de nacionalidade, p. 1204. Grifo nosso.
376 ASSIS. Notícia da atual literatura brasileira: instinto
de nacionalidade, p. 1204.
358
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
florescimento de uma história da literatura brasileira, muito
embora nossos escritores inicialmente estejam a reboque
dos portugueses do ponto de vista historiográfico.
Nada mais elucidativo, nesse sentido, do que o
exposto por João Hernesto Weber, em A nação e o paraíso,
a respeito do caráter fundador e paradigmático da obra
de Ferdinand Denis intitulada Résumé de l’Histoire de la
Littérature du Portugal e publicada em 1826, isto é, poucos
anos depois de proclamada a Independência brasileira.
Ao mesmo tempo em que o frontispício do volume ainda
submetia a literatura do Brasil à portuguesa, foi o primeiro
a anunciar a postura que devem assumir as letras da
jovem nação377. Interessam, sobretudo, os elementos
selecionados para substituir os temas mitológicos então
vigentes no campo poético. “A natureza ‘americana’,
ao lado dos costumes e religiões do povo, entre cujos
integrantes F. Denis destaca o indígena pelo potencial
de diferenciação que apresenta”378, deverá sustentar a
produção brasileira. Ou seja, o anseio romântico por essa
espécie de “poética da nacionalidade” encontra guarida
precisamente no pensamento francês, a partir do qual
desenvolve o viés programático responsável por fortificar
na Literatura Brasileira importantes traços telúricos.
Conforme Denis, desde os textos do século XVIII,
os poetas coloniais, “sem o perceber, deixavam-se seduzir

377 WEBER. A nação e o paraíso: a construção da


nacionalidade na historiografia literária brasileira, p. 33.
378 WEBER. A nação e o paraíso: a construção da
nacionalidade na historiografia literária brasileira, p. 33.
359
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
por um ambiente delicioso”379, isto é, vinculavam-se de
modo um tanto indefinível à terra. Conexão esta que,
séculos depois, continuará a marcar presença em nossas
letras por meio da ficção regionalista, o que, nos termos
de João Claudio Arendt, pode ser observado tanto na
ficção alencariana quanto na rosiana. Para Arendt, Ceará
e Minas Gerais constituem-se como espaços umbilicais e
simbólicos, aos quais os escritores podem se unir por meio
da obra380, de maneira análoga ao que fazem boa parte
dos textos de feição regionalista.
Se o elemento exótico e o consequente exotismo
puderam fixar raízes nas antigas formas de representar e
construir a nação, transformando-se progressivamente até
a síntese alcançada na obra de um Guimarães Rosa, tal
princípio é largamente tributário das palavras do estudioso
francês. Criticando a literatura de Tomás Antônio Gonzaga,
Denis rechaça as metáforas mitológicas e as formas
pastorais, asseverando que “tudo isto pouco convém ao
poeta brasileiro, habitante de regiões onde a natureza mais
ostenta esplendor e majestade”381. Ainda que tal crítica
seja um tanto indevida, dado que Gonzaga escrevia antes
da Independência e de acordo com os padrões artísticos

379 DENIS apud WEBER. A nação e o paraíso: a


construção da nacionalidade na historiografia literária
brasileira, p. 34.
380 ARENDT. Do nacionalismo romântico à literatura
regional: a região como pátria, p. 187, 189, 192.
381 DENIS apud WEBER. A nação e o paraíso: a
construção da nacionalidade na historiografia literária
brasileira, p. 34.
360
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
em vigor, ela é capital para os rumos tomados pela arte no
Brasil. Pode-se compreender que, muito por conta desses
juízos de valor, floresceu por volta da metade do período
romântico o perfil marcadamente regional assumido por
nossa literatura até a virada do século, e mesmo daí em
diante, ao longo do Modernismo.
Não surpreende, portanto, a afirmação de Weber
de que “a França, e os franceses, passam a alimentar os
horizontes ideológicos da nova ‘nação’, servindo esses
horizontes à diferenciação com respeito a Portugal”382.
A esse respeito, é ainda relevante notar a afirmação de
Pascale Casanova em La République mondiale des
Lettres, para quem a dominação política pode exercer-se
também no campo linguístico, gerando consequentemente
uma dominação literária383. Tal pensamento é elucidativo
acerca dos rumos que toma a literatura brasileira, buscando
desvenciliar-se de Portugal em privilégio de uma matriz
linguisticamente diversa. Com efeito, à França remontam
as raízes do objeto de que se ocupa este estudo. Pela
crítica de matriz francesa ganha força a necessidade
representar o local, o regional.
A partir dessas breves constatações acerca da
formação do regionalismo no Brasil, faz-se relevante
uma reflexão sistemática que leve em conta o critério da
regionalidade na composição da obra literária, assim como
as dinâmicas sociais responsáveis por moldar o imaginário
382 WEBER. A nação e o paraíso: a construção da
nacionalidade na historiografia literária brasileira, p. 35.
383 CASANOVA. La République mondiale des Lettres,
p. 165.
361
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
da intelectualidade brasileira do período de 1870 a 1970,
do qual se ocupa nossa pesquisa principal. Dentro dele
se desenvolveu e posteriormente se problematizou o
Regionalismo brasileiro. Influenciado antes pelo intento
de construir uma representação local e em seguida
pelas estéticas da vanguarda francesa, o movimento viu
modificar-se substancialmente suas ferramentas para
sintetizar a região.
Se, como postula Pozenato, o conceito de
regionalidade se presta a “identificar e descrever todas as
relações do fato literário com uma dada região384, referindo-
se a um conjunto de fatores que pode ser de ordem cultural,
histórica, social, geográfica, dentre outros, é precisamente
ele o responsável por conectar o texto ao contexto, sem
necessariamente circunscrever ou subordinar um ao outro.
Pelo contrário, a regionalidade possibilita a compreensão
de que ambos estão indissoluvelmente ligados, de forma
que a crítica não precise lançar mão das ressalvas que
historicamente acompanharam os juízos acerca de
narrativas regionalistas de qualidade, sintetizadas em um
onipresente “regionalista mas universal”.
Cabe, então, retomar as reflexões de Pascale
Casanova, que, no já referido La République mondiale
des Lettres, constrói uma relevante abordagem acerca
dos modos de inserção do escritor no amplo espaço das
Letras, tratando das formas de negociação e apropriação
do campo literário. É sintomático que dedique no livro um

384 POZENATO. O regional e o universal na literatura


gaúcha, p. 155.
362
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
subcapítulo para falar da “Paris, ville-littérature”385, uma
verdadeira cidade-literatura que personifica o local por
excelência do desenvolvimento da arte da palavra durante
todo o século XIX e parte do XX.
Em estreita relação com o conjunto de ideias de
Pierre Bourdieu, Casanova demonstra como a França, e
sobretudo Paris, consolidou um influente poder de atração
sobre os artistas do mundo, inclusive os brasileiros. Tal
atração, no entanto, não se deu apenas em território francês
ou por conta da literatura lá publicada, mas também, como
se observa no caso específico de Ferdinand Denis, através
da presença das ideias do crítico entre a intelectualidade
brasileira. Em conjunto com as tensões e contradições
inerentes a qualquer dinâmica social, é lícito presumir que
pesa na apreensão das considerações de Denis aquilo
que Bourdieu chama de capital simbólico, o qual diz
respeito a diversas formas de capital (social, econômico,
linguístico, intelectual etc.) acumulado pelos agentes ou
pelas instituições dos diferentes campos, revestindo-os de
autoridade legítima para enunciar e definir formas de ver o
mundo pelo exercício do poder simbólico386.
Dito isso, buscar guarida na crítica literária francesa
traduz não somente o desejo de afastamento da matriz
portuguesa, de resto compreensível após a independência,
como também o anseio de aproximação a um centro cultural
legitimado em pelo menos todo o Ocidente. É também com
amparo, ainda que sub-repticiamente, no poder ostentado
385 CASANOVA. La République mondiale des Lettres,
p. 41–56.
386 Cf. BOURDIEU. O poder simbólico, cap. I e II.
363
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
por esse centro que se dão a crítica literária de Denis e sua
veiculação junto à intelectualidade brasileira, de modo que
ganham força suas indicações acerca do caráter telúrico
que deve assumir a nascente literatura.
A partir de tal referencial teórico, examinar
o Regionalismo literário brasileiro com base na
regionalidade que o caracteriza, levando-se em conta a
dinâmica das trocas simbólicas ocorridas, pode conduzir
à ressignificação de parte dos dados de que dispõe a
crítica e que registram as histórias da literatura. Por isso,
cabem algumas perguntas: em que medida os contatos
dos intelectuais brasileiros com a efervescência cultural
francesa do período de 1870 a 1970 foram responsáveis
por ressignificar não só obras e autores, como também
as próprias correntes anteriores? Até que ponto deslocou-
se a tradição literária brasileira e instauraram-se novos
precursores, com base em influências estrangeiras num
momento tão rechaçadas e noutro vistas como signos de
renovação e cosmopolitismo?
Afinal, se inicialmente a crítica francesa foi baliza,
apontando a regionalidade como caminho a ser seguido
para a afirmação de uma identidade local, não tardou
para que as obras filiadas à vertente regionalista fossem
acusadas de “pragas antinacionais”, nas palavras de Mário
de Andrade, como se constituíssem literatura de importação,
cuja fatura não tivesse sido permeada pelas especificidades
brasileiras. Afinal, tornou-se clássica a passagem em que
Mário de Andrade sentencia: “Regionalismo este não
adianta nada nem para a consciência da nacionalidade.

364
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Antes a conspurca e depaupera-lhe, estreitando por
demais o campo de manifestação e, por isto, a realidade. O
regionalismo é uma praga antinacional.”387. É significativo
que nesse mesmo momento de início do Modernismo
uma parcela da ficção regional tenha recebido duras
críticas devido a suas influências estrangeiras, já que
virá mormente da França o pensamento vanguardista
característico da arte modernista. Num movimento
complexo, o elemento europeu passa por pelo menos três
fases na conturbada existência do Regionalismo brasileiro:
de referencial fundador durante o Romantismo, torna-se
ameaça antinacional na virada do século, para finalmente
figurar com poder de libertação no Modernismo.
Como alternativas e possíveis caminhos para se
equacionar a questão podem contribuir as reflexões de Lígia
Chiappini e Marisa Lajolo. Para Chiappini388, a crítica, diante
de obras que se enquadram na tendência regionalista, deve
indagar da função que a regionalidade exerce nelas, a fim de
compreender como a arte da palavra sintetiza os espaços
regionais e lhes expande a significação simbólica. Sem
desconsiderar o contexto da época, mas lançando outras
luzes sobre as produções teóricas e literárias do período,
talvez se revelem possíveis tanto uma interpretação dos
sentidos que emergem daqueles debates, quanto uma
avaliação dentro de uma perspectiva mais ampla. Afinal,
conforme a lição de Santiago Nunes Ribeiro, referindo-se
387 ANDRADE apud CHIAPPINI. Velha praga?
Regionalismo literário brasileiro, p. 669.
388 CHIAPPINI. Do beco ao belo: dez teses sobre o
regionalismo na literatura, p. 158.
365
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ao debate intelectual sobre o Arcadismo brasileiro ocorrido
durante o Romantismo, não se pode exigir de uma época
aquilo que não lhe é dado oferecer, não se pode cobrar de
um artista que sinta inspirações completamente diferentes
de seu tempo389. A partir disso, torna-se possível não só
entender porque tivemos a “praga antinacional” que tanto
importunou Mário de Andrade, como também porque
o Regionalismo se tornou paulatinamente identificado
por essa alcunha, chegando mesmo ao ponto de atuar
como simples diferenciador entre literatura de boa e má
qualidade, como explica Marisa Lajolo390, em seu ensaio
intitulado “Regionalismo e história da literatura: quem é o
vilão da história?”.
Como outro caminho, então, Lajolo, ao final do
trabalho mencionado, no qual procede a uma revisão
crítica das diversas posturas relativas ao Regionalismo em
nossa historiografia, expande o raciocínio para as letras
sul-americanas e anuncia uma posição teórica arrojada.
Assinala a possibilidade de as manifestações regionais
latino-americanas constituírem justamente a dissidência da
matriz europeia, através de uma articulação ao hibridismo
cultural do continente americano. Não obstante muito
incentivada quando do nascimento de nossas literaturas,
tal independência talvez tenha acabado sufocada pelos
contornos ideológicos e pela dimensão política presentes
na visão dos historiadores da literatura, de olhos urbanos
389 RIBEIRO. Da nacionalidade da literatura
brasileira, p. 39.
390 LAJOLO. Regionalismo e história da literatura:
quem é o vilão da história, p. 327.
366
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e europeizados, no dizer de Lajolo391. Em outros termos,
se inicialmente, como pudemos observar, vêm da Europa
as diretrizes sobre o caráter que devem assumir as letras
brasileiras, na perspectiva continental de Lajolo as inflexões
aqui introduzidas aos modelos podem representar mais do
que simples peculiaridades. Antes, quiçá apontem para
novas articulações entre a arte e seu objeto, a partir de um
trabalho específico com as regionalidades do continente.
Com isso, esperamos ter assinalado, dentro
da forma breve que impõe este trabalho, o caminho
inicialmente percorrido pela prosa regionalista brasileira,
apontando para algumas das tensões que caracterizaram
o período, bem como ter relançado as duas hipóteses de
trabalho formuladas por Chiappini e Lajolo, que parecem
capazes de contribuir para o avanço das discussões
acerca do Regionalismo.

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368
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
DESLOCAMENTOS E ANACRONIAS EM
TERRA ESTRANGEIRA

Pedro Vaz Perez

Introdução

O filme Terra estrangeira (Brasil; Portugal, 1995), de


Walter Salles e Daniela Thomas é um dos marcos daquele
período que se convencionou chamar – de forma polêmica
– de “retomada” do cinema nacional, realizado e lançado
num momento bastante delicado do Brasil. Seu enredo
remonta aos dias que antecederam e sucederam a posse
de Fernando Collor de Melo, o primeiro presidente eleito
diretamente pelo povo após o golpe militar de 1964. A partir
de uma narrativa aparentemente genérica, o filme envolve
acontecimentos históricos e atravessa, pelo fílmico, o
político, o social e o cultural. Filiando-se a uma estirpe de
cinema reflexivo, indo além do simples registro do evento
histórico, parece colocar em cheque as próprias noções
de história e temporalidade. Ao envolver, como numa
teia, na superfície da imagem cinematográfica, signos
heterogêneos que compõem os imaginários brasileiros e
lusitanos, recria assim uma memória que incorpora fatos
históricos e mitos culturais para, a partir dessa matéria
sensível e anacrônica, inscrever uma visão crítica de
mundo, perpassando pelos dilemas da identidade e do

369
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
nacional. Na presente comunicação, serão apresentados
resultados parciais de uma pesquisa acadêmica de maior
fôlego e ainda em curso. Aqui, buscaremos analisar as
formas fílmicas dessa memória anacrônica.

Formas heterogêneas da história em Terra


estrangeira

O enredo de Terra estrangeira se divide em dois


núcleos que posteriormente serão unificados: no Brasil,
acompanhamos a história de Manuela e Paco Eizaguirre,
mãe e filho de ascendências bascas, que moram em
um humilde apartamento em São Paulo; em Portugal,
vemos o casal de brasileiros Alex e Miguel, que integram
um esquema de tráfico de pedras preciosas e tentam se
estabelecer através de outros bicos.
No núcleo brasileiro, Manuela nutre um sonho antigo
e nostálgico de um retorno à cidade basca San Sebastian,
sua terra natal. Ao assistir pela televisão ao anúncio do
confisco das poupanças pelo governo, a personagem vê
afastadas quaisquer possibilidades de retorno ao passado
e sofre um colapso fatal. Ela já havia demonstrado, na
trama, a vontade de utilizar o montante que guardava na
caderneta para viajar a San Sebastian. Paco, até então,
sonhava com uma carreira no teatro. Após a morte da
mãe, no entanto, perde as referências. Sem dinheiro, com
os sonhos abortados e um futuro obscuro, aceita uma
oportunidade oferecida por Igor (Luís Melo), um traficante
de diamantes, para contrabandear uma mercadoria.

370
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Assim, parte numa viagem a Portugal, de onde pretende
posteriormente ir a San Sebastian, incorporando o sonho
da mãe.
A revisão do enredo demonstra que há, no filme,
elementos que garantem compreensão superficial
satisfatória por parte de espectadores com olhares mais
desatentos: a empatia com os personagens; a instauração
de conflito bem definido que se desenvolve rumo ao
clímax – mesmo que o desfecho seja um tanto heterodoxo;
o romance – Paco e Alex se envolverão num excêntrico
caso amoroso; além do flerte com diferentes gêneros
facilmente reconhecíveis, como o film noir, o road movie
e o drama – tal mistura de gêneros, no entanto, acaba
gerando certa angústia, já que o filme não se resolve
definitivamente em nenhum deles: por exemplo, o mistério
que envolve o sumiço da mercadoria contrabandeada por
Paco é elemento secundário. Logo, são identificações
genéricas rarefeitas, pois se dão apenas a meio caminho –
não por falta de habilidade dos realizadores, mas por uma
vontade explícita de estranhar as formas de representação
genéricas hegemônicas.
Mas, entre a identificação de gênero e o registro
histórico, a obra oferece algumas arestas que permitem
imersões mais profundas. Pois, não recai em cristalizações
de sentido fáceis – pelo contrário, alarga as possibilidades
de compreensão, e exige ao intérprete colocar em relação
elementos exteriores à própria obra.
Dentre a fortuna crítica que orbita em torno da fita,
composta por críticas cinematográficas, livros e demais

371
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
produções acadêmicas, é possível encontrar diferentes
leituras – cf. Freire (2009), Oricchio (2003), Nagib (2006),
Figueiredo (1999), Strecker (2010). Essa pluralidade
sugere a amplitude da abertura interpretativa permitida
em Terra estrangeira e as dificuldades de determinar
sentidos homogêneos. Algumas análises identificam-
no como uma narrativa universal sobre sujeitos à deriva
numa contemporaneidade fugidia, frutos do colapso pelo
qual estariam passando as identidades culturais na era
da globalização. Assim, também é possível enxergar
um traço da dita dissolução de fronteiras nesse mundo
globalizado. Ainda, pelo flerte com gêneros consagrados
do cinema internacional, compreende-se Terra estrangeira
como operando certa transnacionalização do próprio fazer
cinematográfico. Ao mesmo tempo, cabe constatar que tal
cenário globalizado acarreta certas angústias e, assim,
no filme, também se faz presente uma denuncia sobre
a falácia daquele discurso globalizante que pregava a
emergência de um mundo sem fronteiras, o sonho de uma
aldeia global. Essa utopia globalizada se mostrou injusta e
longe de se realizar, uma vez que as benesses dessa nova
ordem mundial não eram compartilhadas por todos.
Mas, em linhas gerais, a interpretação que parece
mais recorrente dentre a fortuna crítica em questão é a
que compreende o filme como documento da crise social
causada pelas medidas políticas, e do exílio não forçado,
ação que marcou aqueles anos. Assim, numa visão
abrangente sobre essas diferentes leituras, associando-as
ao próprio filme, é possível identificar a tentativa de colar a

372
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
uma narrativa ficcional um comportamento empiricamente
observado na sociedade em um determinado período
histórico; o sintoma social e sua inevitável consequência
no cinematográfico, mesmo que essa reflexão apenas
encontre lugar na representação alegórica.
No filme, é nítida a vontade de realizar um registro
histórico, devido, sobretudo, à proximidade temporal
entre o processo de filmagem e a ocorrência dos eventos
políticos: na diegese, é possível identificar uma série de
elementos que caracterizam aqueles fatos políticos, como
transmissões de rádio que veiculam anúncios e comentários
sobre medidas do novo governo; imagens de televisão,
também na diegese, que exibem pronunciamentos de
Collor, do vice Itamar Franco e da ministra Zélia Cardoso;
e cartazes com slogans da campanha vistos em cenas
filmadas em ambientes externos. No entanto, a forma do
registro é peculiar e extrapola o simples documento de
um contexto. Isso parece ocorrer, como dissemos, devido
a uma postura reflexiva que conforma Terra estrangeira.
Ou seja: em grossas palavras, não se trata de um
documentário, no sentido usual do termo, tampouco de
um filme de ficção que busca recriar os incidentes com
verossimilhança. Ao cabo, Terra estrangeira é uma obra
de ficção que, inicialmente, se debruça sobre o cotidiano
de uma família de classe média paulistana que, em dado
momento, se viu – como a maioria das famílias brasileiras –
diretamente afetada pelas medidas arbitrárias do governo.
Após a brusca ruptura – a morte da mãe em aspecto
micro; o confisco das poupanças no macro –, no entanto,

373
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
abandonam-se os traços que remontavam, indiretamente,
o contexto no interior do enredo ficcional.
Assim, Terra estrangeira parece filiar-se a uma
estirpe reflexiva do cinema, inaugurada por Roberto
Rossellini no princípio do neorrealismo italiano: uma
forma de cinema que, segundo Regina Mota (2001),
nasceu de uma lacuna – falta de verba, atores, estúdios,
negativos, câmeras etc. – para construir uma estética do
vazio no cinema: sobretudo, uma imagem da ética. Para
Mota392, a câmera de Rossellini vai às ruas para desnudar
um cenário real do pós-guerra, mas, “não se trata”, no
entanto, “de colocar um espelho diante do real, mas de
operá-lo, utilizando a câmera como um bisturi que corta
fundo a carne, até os ossos”. Nesse cinema – bem como
nos de outros diretores do neorrealismo italiano – não
se encontram respostas e soluções fáceis para aquele
contexto de crise. “É nesse ponto que a modernidade se
imiscui sorrateira”, diferindo o movimento italiano de outras
formas de realismo. Assim, Rossellini é reconhecido como
o pai do cinema moderno por ter causado uma fissura
no jogo de opacidade e transparência393; entre a janela
de identificação do cinema clássico hollywoodiano e as
vanguardas de início de século. Uma lógica do paradoxo,
segundo a autora, pois, ao mesmo tempo em que investe
no direto da imagem, ou seja, na simultaneidade entre a
captação do momento e sua enunciação, formalizada em
longos planos-sequência e na saturação do tempo da
392 MOTA. A épica eletrônica de Glauber: um estudo
sobre cinema e TV, p. 23.
393
374
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ação, a significação do espectador não emerge da ilusão
de ver em sua frente o acontecer do movimento: ele se
interessa pelas forças que o produzem e o intensificam.
Um cinema reflexivo, portanto, que frente à
impossibilidade de descrever o indescritível, procura
pensar através das imagens. Rossellini, como expõe
Glauber Rocha (2004), foi o primeiro a utilizar a câmera de
cinema como instrumento de investigação e reflexão. E,
na visão de Mota:

não se trata de usá-la [a câmera] para


documentar ou simular a realidade,
mas de fazê-la funcionar como um
dispositivo da sensibilidade e do
pensamento do pós-guerra [...]; o
“naturalismo” de Rossellini não se
estende a uma espontaneidade de
captura do real [...], utilizando todos
os recursos do corte, montagem
descontínua e, quando necessária, a
criação técnica394.

Terra estrangeira – guardadas as devidas


proporções com relação ao cenário do pós-guerra italiano
– também nasce de uma lacuna aberta por uma crise
política que agravou ainda mais os contextos econômico,
social e cultural. E, frente à impossibilidade de produzir
qualquer tipo de diagnóstico objetivo aos eventos que
apenas marcaram um ápice de um movimento nacional
destrutivo que acumulava crises sobre crises – numa longa
sucessão que, possivelmente, teve início com o golpe

394 MOTA. A épica eletrônica de Glauber: um estudo


sobre cinema e TV, p. 22-24.
375
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
militar de 1964, passando pelos anos de uma ditadura
autoritária e violenta e toda a resistência civil que buscava
contrapô-la; pela brecha democrática aberta no início da
década de 1980; pela eleição e morte de Tancredo etc. – o
filme parece buscar uma outra via. Aposta na reflexão e no
pensamento a partir da imagem para, dessa forma, fugir
da vala fácil das explicações fáceis e totalizantes. Guarda,
portanto, com relação ao neorrealismo de Rossellini,
principalmente esta postura reflexiva. Associa a ela, no
entanto, elementos outros, incorporando elementos de
seu próprio tempo, como a mescla de gêneros que alguns
querem nomear como “pós-moderna” ou “pós-histórica”,
por mais complicados que sejam os empregos dessas
nomenclaturas.
Essa combinação entre registro do fato e reflexão
sobre ele é tudo menos simplificadora, pois é permeada
por diversos elementos heterogêneos que transcendem
a simples representação mimética. A documentação do
fato histórico acontece, mas sua forma extrapola o simples
registro. Abrem-se aqui questionamentos: como Terra
estrangeira reorganiza diferentes signos e constrói uma
visão crítica e peculiar da história, e quais formas ele cria
para compor sua narrativa?
Terra estrangeira, ao mesmo tempo em que parece
flertar com a vontade de um peculiar registro factual,
guarda, obviamente, diferenças com relação à modalidade
documental, a começar, evidentemente, pela opção por
uma narrativa ficcional - Mesmo considerando, com Ismail
Xavier, que:

376
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
o cinema, como discurso composto
de imagens e sons é, a rigor, sempre
ficcional, em qualquer de suas
modalidades; sempre um fato de
linguagem, um discurso produzido e
controlado, de diferentes formas, por
uma fonte produtora395.

Mas, o olhar do documentarista – antes de realizar


ficções, Walter Salles se dedicou à TV e ao documentário –
parece fazer-se presente através de uma série de indícios:
os próprios documentos de arquivo inseridos na diegese,
como as gravações de rádio e imagens de televisão;
a opção pela fotografia em preto-e-branco confere um
tom documental, associada à postura da câmera que
filma as cidades e os rostos de transeuntes; e à própria
metodologia imposta pelo gênero road movie, que reduz
as possibilidades de previsibilidade ao longo da produção:
um filme de estrada, antes de tudo, parece ser um registro
documental do percurso da viagem.
Para Samuel Paiva (2011), aquilo que move um
road movie se relaciona a dimensões intrínsecas do ser
humano, e suas origens transcendem o próprio cinema, indo
até a Odisseia de Homero (2011). Normalmente associado
a algum tipo de angústia existencial, a um filme de estrada
podem ser atribuídas as seguintes características:

a busca que provoca o deslocamento


[e] vincula-se a uma necessidade de
liberação, seja do espaço familiar, seja
do espaço do trabalho regular capaz de
395 XAVIER. O Discurso cinematográfico: a opacidade
e a transparência, p. 14.
377
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
promover o bem-estar do indivíduo em
sociedade, segundo a lógica capitalista
de acúmulo de propriedades materiais.
O road movie inscreve-se no âmbito de
representação da modernidade, com
suas tecnologias, porém, explicitando
crises e contradições396.

Um filme de estrada parece se caracterizar


enquanto tal quando a viagem ganha importância
enquanto processo, e não somente como um fim a se
alcançar. Em alguns casos, simplesmente pouco importa
onde ela terminará: interessa tão somente o deslocamento
errante. Apropriando-nos das ideias de Deleuze e
Guattari397, podemos compreender um road movie menos
como um percurso seguro entre dois pontos do que de
paradas indefinidas num percurso irregular, amplo e com
proximidades ao nomadismo: “o intervalo toma tudo, o
intervalo é substância”. A viagem, portanto, emerge como
a forma do pensamento.
Para Marcos Strecker (2010), o road movie, tanto
para quem o faz quanto para quem o assiste, pode vir a ser
um mergulho no desconhecido, uma jornada de descoberta.
É por isso que algumas peculiaridades do gênero implicam
certas conformações na maneira de filmar, notadamente
a exigência à mobilidade e às filmagens em variadas e
distantes locações e equipes enxutas. Cria-se, portanto,
um filme elástico, moldado à medida que o trabalho avança,
informado pela improvisação e pelo inesperado. Um bom

396 PAIVA. Gêneses do gênero road movie, p. 43.


397 DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs, p. 185.
378
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
exemplo é No decurso do tempo (1976), de Wim Wenders
– influência confessa de Walter Salles. No caso específico
do diretor brasileiro, como aposta Strecker, são deixadas
opções abertas no roteiro justamente para que o ato de
filmar possa incorporar novos elementos: o roteiro torna-se
apenas a indicação de um caminho a perseguir, de modo a
ampliar as oportunidades de filmagem, e não a limitá-las.
Nesse sentido, é notável o fato de que Terra estrangeira
foi rodado em poucas semanas e em diferentes locações:
foram três continentes, em locais como São Paulo, Lisboa,
Cabo Espichel (extremo oeste português), Cabo Verde e
cidade de Boa Vista (fronteira entre Portugal e Espanha).
Toda esta liberdade na produção, que abre espaço
para uma visada documental – ou seja, com menos
controle por parte do realizador em comparação com o que
aconteceria, por exemplo, num filme totalmente rodado em
estúdio –, por outro lado, recebe contrapontos com uma
faceta teatral que é desvelada na interpretação de atores,
na apropriação de textos dramatúrgicos, como Goethe e
Shakespeare e pelo uso expressionista da fotografia em
conjunto com a direção de arte. Esses fatores se devem,
em certo grau, à parceria de Walter com Daniela Thomas,
renomada cenógrafa de teatro, que no filme acumula
também a direção de arte. Ela trouxe dos palcos, segundo
Strecker (2010), a prática dos ensaios antecipados,
medida que visava à economia de película e garantia
maior intimidade dos atores com seus personagens.
À faceta teatral somam-se estratégias dos
departamentos de fotografia e de arte, vistas em sequências

379
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
carregadas por uma iluminação expressionista com
grande contraste entre preto e branco e pelos movimentos
de câmera maneiristas, intensificadas pela manipulação
explícita dos efeitos sonoros – cenas como o ensaio da
peça de Shakespeare que Paco assiste escondido; o teste
de atores do qual o protagonista participa; a apresentação
musical de Miguel em um bar de Lisboa; entre outras.
Assim, a utilização do preto-e-branco acaba por produzir
percepções ambíguas, pois, ao mesmo tempo em que
confere uma estética de documento, proporciona uma
utilização expressionista da iluminação, criando grande
contraste devido ao alto coeficiente de intervenção
estilística na imagem.
Entre o documental e o teatral/expressionista, entre
o registro histórico e a narrativa ficcional e alegórica – ou
melhor, nas intercessões entre essas dicotomias, parece
emergir, em Terra estrangeira, uma visão de mundo
que – evocando o filósofo Jacques Rancière (2005) – é
cara a um regime estético das artes: um novo regime de
historicidade que não se opõe aos antigos regimes – os
sistemas ético e representativo. Pelo contrário, trata-se, no
estético, de uma nova forma de relação com o antigo, no
qual tanto a arte quanto a história podem ser resumidas
como formas de rearranjos dos signos da linguagem.
Com esse movimento, o filósofo demonstra que a antiga
classificação da Poética de Aristóteles (1990) não mais é
possível na contemporaneidade. Mas, ao equiparar arte e
história e resumir ambas a uma ficcionalização, Rancière
não pretende afirmar que a história é um engodo, pois,

380
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
nesse caso, pressupor-se-ia haver uma verdade a ser
totalmente desvendada. Logo, tratar-se-á sempre de um
desvelamento, um acontecimento – parcial – da verdade,
tanto na a poesia quanto na história, e por isso, as duas
atividades se equivalem – propositalmente – em Rancière.
Assim, nota-se que a cada desvelamento corresponde um
velamento, tornando-se impossível alcançar a totalidade
do conhecimento.
A partir desse complexo entrelaçamento entre
o documental e o teatral, é possível dizer que, em Terra
estrangeira, o histórico ganha tons operísticos. E, com
isso, acionaremos mais um dos elementos que constituem
o longa-metragem: a música. Composta por José Miguel
Wisnik, desde o início a banda sonora traz arranjos do fado,
tradicional canção portuguesa associada à lamentação, à
entrega ao destino e à providência divina. Executado ora
ao piano, ora com violinos ou com a tradicional guitarra
portuguesa, o fado dá ritmo à narrativa. O filme é regido
pelo fado.
Incluir a música de forma determinante nas
análises e interpretações fílmicas é fundamental, pois
devemos considerar que o cinema é um fenômeno
audiovisual, logo, não somente visual. Mais do que uma
simples trilha sonora que sirva tão-somente a um pano
de fundo, um acompanhamento à ação dramática, a
dimensão musical da percepção pode ser compreendida
como exercendo funções estruturantes num filme. Assim
acontece, por exemplo, em filmes como Roma, cidade
aberta (1945) e Alemanha, ano zero (1948) de Rossellini,

381
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e em Deus e o diabo na terra do sol (1964) e Terra em
transe (1967), de Glauber Rocha. A noção de “regência”
cinematográfica é aqui decisiva se lembrarmos de que, no
idioma italiano, a palavra que designa a direção de cinema
é regia, guardando comparações diretas entre o diretor
e um maestro de orquestra. Nesses casos, assim como
em Terra estrangeira, a música parece reger a cadência
fílmica, e com isso, a câmera baila entre imagens. Falamos,
portanto, mais que sobre música, de um ritmo da narrativa
cinematográfica:

a mais profunda de todas as


consciências [fílmicas] é o ritmo, que
não é a quarta categoria porque é a
suprema, é a consciência do diretor. E
é o ritmo, na sala de corte e colagem,
quem vai imprimir a imagem, palavra
e sons o sentido definitivo do filme.
O ritmo é o tempo que leva o diretor
para narrar, descrever, observar ou
analisar um determinado momento. É
a partir deste tempo que se revela a
seleção do mundo para o autor. É o
seu amor, e sua política. E, sobretudo,
o seu rigor. Um cinema sem tempo
não existe. Sem tempo é o argumento
filmado em milhares de metros398.

Assim, se um road movie revela a entrega – do


diretor, dos personagens –, o tanto quanto for possível, ao
acaso e ao inesperado, de forma que a viagem, enquanto
processo, transfigura-se numa errância, podemos afirmar
que a regência do fado parece potencializar ainda mais

398 ROCHA,. O século do cinema, p. 50-51.


382
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
esse movimento. No próprio fado parece já estar contida
a vontade pelo deslocamento, carregada por sentimentos
parecidos. Pois, como afirma a antropóloga portuguesa
Maria Helena Varela (1996), viajar é tema que habita o
imaginário lusitano desde tempos imemoriáveis e se
relaciona a uma grande procura do Eu através de um Outro
transcendental. A viagem (epos), para a autora, é uma das
principais coordenadas do logos em língua portuguesa,
uma razão heterodoxa e nômade que parece só existir na
distância: um heterologos. Navegar para existir.

Indefinido na sua razão de ser, o


heterologos em língua portuguesa
parece só ser sendo, numa mobilidade
que dá sentido à sua transcendência
metafísica e desassossego existencial.
A viagem foi sempre o jeito português
de navegar, mais do que de existir, a
sua forma peculiar de estar no mundo,
desejando o impossível, o infinito, o
mar!...399.

Varela (1996) se propõe pensar de que maneiras


a filosofia estaria incrustrada em obras literárias de ficção
de escritores da língua portuguesa. Para ela, a vocação
da língua portuguesa à filosofia não estaria nos cânones
e formas tradicionais desta disciplina, nos comodismos
dos dogmas e das certezas, mas, sim, no próprio exercício
ficcional e artístico: um pensar-sentir heterodoxo. A autora
destaca os portugueses Sampaio Bruno e Fernando
Pessoa, e os brasileiros Euclides da Cunha e Guimarães
399 VARELA. O heterologos em língua portuguesa:
elementos para uma antropologia filosófica situada, p. 55.
383
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Rosa.
Lançar-se às grandes navegações errantes, por
mares nunca antes navegados, parece ter sido inevitável
para habitantes de uma terra marítima, naturalmente
lançada ao mar. Configurar-se-ia, assim, uma razão
teleológica necessariamente vinculada à travessia. Nesta
querela, o epos (viagem) figura, para Varela, como uma
das coordenadas simbólicas desta razão outra portuguesa,
associado a um dos elementos ônticos deste heterologos,
que é a razão nômade, e por isso, também indissociável
do que caracteriza como “espírito de lugar”, uma vez
que a viagem, o deslocamento, se dá necessariamente
no espaço, e as motivações do movimento são também
advindas do espaço: Varela escreve, com a literatura,
uma geofilosofia. Além disso, a linguagem se mostra
condicionante da ação humana.
No Brasil, propõe a autora, após as fortes influências
da colonização portuguesa e jesuíta, o heterologos foi
absorvido e apropriado, e suas expressões, enriquecidas.
Aqui se mantiveram o epos e o mythos, articulações
mitopoéticas da razão nômade. Nessa genealogia do
povo brasileiro, o heterologos também é abertura à
transcendência, mas o mar teria cedido espaço ao ambiente
telúrico, de modo que Varela pode ver, nas expressões
literárias do brasileiro errante, um homem apegado às
raízes matriciais da terra. Se compreendermos a figura
da mãe enquanto signo de terra, a morte dessa figura,
em Terra Estrangeira, é o próprio rompimento com essas
raízes. Não espanta, portanto, que seja esse o evento que

384
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
lança Paco numa viagem em busca de uma figura paterna,
no caso, representada pela cidade de San Sebastian.
Todo este imaginário lusitano, de tão profundo e
longínquo, acaba por tornar-se mítico. E, além de figurar
no próprio enredo e no fado, faz-se presente em Terra
Estrangeira através das imagens de navios que aparecem
ao longo da fita – imagens que não tecem relações diretas
com o enredo, com exceção da última, aquela grande
carcaça encalhada que se tornou símbolo do filme. À
primeira vista, esses navios parecem funcionar como
adereços da montagem, utilizados como imagens de
corte entre cenas diferentes; elipses. Mas, um olhar mais
atento permite considerá-los como constituidores desse
imaginário lusitano das navegações que é a própria forma
de ser e de estar no mundo do português: a razão errante
em língua portuguesa. Ao ritmo do fado, esse imaginário
rege o filme. Mas, rege em direção a quê? Para onde
navega Terra estrangeira? Em que direção aponta essa
razão em língua portuguesa?
O enredo nos apresenta uma resposta provisória:
o destino ao qual o personagem pretende alcançar é a
cidade de sua mãe, San Sebastian, no norte da Espanha.
Mas, esse lugar, mais do que a meta a se alcançar, é o
incômodo existencial que move Manuela, mesmo que de
maneira errante e, posteriormente, também moverá seu
filho, Paco. Como exemplo, veem-se, em uma das cenas
que compõem a parte inicial do filme, os dois conversando
no sofá da sala sobre os planos da mãe. Ela quer utilizar o
dinheiro da poupança para pagar a viagem a San Sebastian,

385
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e financiar o restante do valor em 36 vezes. Ele, ciente dos
problemas que cercavam o aumento constante das taxas
de juros no país, tenta dissuadi-la do projeto – sem muito
êxito, no entanto. Ela, deprimida, com voz embargada e o
olhar fugidio – quase em transe, responde:

Você não entende mesmo. Você não


pode dizer “esquece San Sebastian”,
como se fosse um capricho meu. É
San Sebastian que não me larga,
Paco. Sabe, às vezes eu ando pela
casa, e sinto um cheiro, um cheiro
antigo. Eu sei que não é possível, mas
eu sinto. Eu tenho que voltar lá para
acabar com essa agonia. Será que
não dá para entender isso? Será que
não dá para entender?400.

Podemos com segurança dizer que esse mito


quase obsessivo, no qual se tornou San Sebastian para
Manuela e Paco se faz presente em uma série de outros
elementos que constituem os próprios personagens. Os
dois estão totalmente imersos nesse imaginário: por toda
a casa é possível encontrar alusões à cidade basca,
como algumas bandeiras e diversas pinturas e fotografias,
misturadas a imagens religiosas. Pelas paredes, onde
quer que os personagens se encontrem, essa particular
San Sebastian do passado está presente. O próprio sofá
onde estão sentados traz estampas características da
península ibérica. Vemos uma direção de arte carregada
de intencionalidades que, não por acaso, é assinada
pela codiretora do longa-metragem. O cinema possui
400 BERNSTEIN et al. Terra estrangeira: roteiro, p. 20.
386
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
essa característica: os personagens se constroem, em
grande medida, na relação com a qual apresentam com os
espaços nos quais estão inseridos.
Esse imaginário constrói um lugar mítico e que
jamais será alcançado ao longo de toda a trama. A San
Sebastian do passado de Manuela – que se confunde
com suas origens – só existe como uma lembrança
afetiva. E mais: a obsessão de Manuela é posteriormente
incorporada por Paco e, por fim, também por Alex, que
se deixa iluminar pela simples ideia de encontrar tal lugar
mágico: San Sebastian, “o único lugar do mundo em que
as casas confundem-se com as pedras”, como afirma o
traficante Igor em certo momento. E aqui emerge como
uma curiosa coincidência a semelhança entre o nome da
cidade, de inspiração católica, e um dos mais fortes mitos
culturais portugueses, o sebastianismo, bastante forte no
imaginário português. O sebastianismo foi erigido após
o desaparecimento de D. Sebastião, rei de Portugal, em
1.578 durante uma batalha em Alcácer-Quibir. Após sua
morte, dentre outros problemas, o reino foi subjugado à
coroa espanhola. Esse e outros fatores associados levaram
à crença de que D. Sebastião retornaria para salvar o povo
dos problemas que sucederam sua morte, numa conotação
messiânica e mítica. Esse período, é importante notar,
coincide com a intensificação da colonização portuguesa
no Brasil.
A forte influência jesuíta na formação da colônia
sugere que o imaginário sebastianista tenha sido
incorporado pelo pensamento brasileiro em formação.

387
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
E, de fato, o tema é recorrente em diversas obras da
literatura e do cinema no país, como em Euclides da
Cunha e Glauber Rocha, entre outros. Neste ponto, vale
uma comparação, a partir de semelhanças, intencionais ou
não, entre a obra de Glauber e de Salles: além do evidente
uso da palavra “Terra” no título, as estruturas dramáticas
se aproximam: em Deus e o diabo..., é após a morte da
figura materna que o vaqueiro Manoel, assim como Paco,
se lança à errância. Neste caso, pelos sertões, seguindo,
junto a dezenas de fiéis, o beato Sebastião, todos com fé
nas promessas de paraíso: a “ilha”, contraponto utópico
ao contexto de miséria, fome e seca no sertão nordestino.
Uma “terra onde tudo é verde. Os cavalo comendo as flor
e os minino bebendo leite nas água do rio. Os homi come
o pão feito de pedra. E a poeira da terra vira farinha”, como
proclama Sebastião, no alto do Monte Santo. E, mesmo
não se tratando de uma legítima adaptação, são notáveis
as inspirações da obra de Euclides da Cunha permeando
o filme de Glauber.
Vemos que o mito opera como telos, alimentando
uma vontade pela viagem, pelo risco e pela aventura e que
acaba por transfigurar-se numa vocação épica, saudosista
e messiânica. Esses traços, no entanto, nada mais são
do que a própria forma de estar e de se expressar no
mundo para aqueles personagens. Assim, como propõe
Varela (1996), é a face misteriosa do mythos que move o
heterologos, ou seja, sua constituição paradoxal enquanto
lugar inalcançável.
Em Terra estrangeira, o destino San Sebastian

388
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
transforma-se também em uma utopia. Confunde-se,
portanto, com o próprio movimento caro a um heterologos
e sua eterna procura por uma razão que está num Outro
inalcançável. E aqui retornamos aos primeiros planos
de Terra estrangeira, que formam uma espécie de
prelúdio, nos quais vemos uma grande avenida, quase
sem fim, que adentra a larga profundidade de campo do
plano cinematográfico, de forma que os postes de luz
que acompanham a via ficam cada vez mais próximos
e se transformam numa contínua linha luminosa, com
intensidade que cresce proporcionalmente à distância ad
infinitum. Ao mesmo tempo, na banda sonora, em off, o
protagonista – ensaiando trechos de Fausto, de Goethe –
declama: “eu não era nada, e aquilo me bastava. Agora não
quero mais a parte, eu quero toda a vida”401. O único destino
possível após a crise cultural e social desencadeada pela
irresponsabilidade política é apresentado alegoricamente
de forma conjunta na narração e na imagem, e a estrada
sem fim se combina à busca pela eternidade e se
confundirá com a morte do personagem. Ora, a eternidade
é um espaço sem tempo: um não-lugar, uma u-topia.
Para Foucault, utopias são posicionamentos
sem lugar real. Mesmo que mantenham certa relação
de analogia, direta ou indireta com o espaço real da
sociedade, são essencialmente irreais. Mas, para o
filósofo francês, existem, em qualquer cultura e civilização,
utopias realizadas: “espécies de lugares que estão fora

401 GOETHE apud BERNSTEIN et al. Terra


estrangeira: roteiro, p. 7.
389
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente
localizáveis”402. Em oposição às utopias, Foucault os
chama de heterotopias, lugares da crise ou do desvio, um
espaço sempre outro que faz coincidirem posicionamentos
aparentemente incompatíveis. A heterotopia é a contradição
em forma de espaço, e “se põe a funcionar plenamente
quando os homens se encontram em uma espécie de
ruptura absoluta com seu tempo tradicional”403, e assim,
a uma heterotopia corresponde sempre, num arranjo
complexo, uma heterocronia. Não espanta constatar que,
para Foucault, a heterotopia por excelência é... o navio:

um pedaço de espaço flutuante, um


lugar sem lugar, que vive por si mesmo,
que é fechado em si e ao mesmo
tempo lançado ao infinito do mar e
que, de porto em porto, de escapada
em escapada para a terra, de bordel
a bordel, chegue até as colônias para
procurar o que elas encerram de mais
precioso em seus jardins404.

Considerações finais

Terra estrangeira é um peculiar road movie luso-brasileiro,


que busca registrar, através da ficção, um contexto
402 FOUCAULT. Estética: literatura e pintura, música e
cinema, p. 415.
403 FOUCAULT. Estética: literatura e pintura, música e
cinema, p. 418.
404 FOUCAULT. Estética: literatura e pintura, música e
cinema, p. 421.
390
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
histórico – com engajamentos no político, no econômico
e no cultural. Mas, para tanto, lança mão de estratégias
heterodoxas, como os confrontos entre o flerte com o
documental e a estilização expressionista combinada à
representação teatral. Ainda, trafega por diferentes gêneros
sem se filiar totalmente a nenhum deles, e assim parece
fazer uso desses tipos para algo maior, que é a reflexão
por imagens. Para efetuar tal reflexão, o filme lança mão
de imagens do passado, contudo, de forma fragmentada,
parecendo querer sugerir influências de forças que
conformam a genealogia nacional – que é também
atravessada pelos anos de colonização portuguesa –
nos eventos contemporâneos – nas consequentes ações
dos sujeitos que seguem a essa genealogia. No fílmico,
identificamos alguns desses elementos que constituem
esse imaginário, integrando ao brasileiro o lusitano.
Sendo assim, o deslocamento espacial – a viagem
– torna-se um mergulho no passado colonial, nas possíveis
origens do Brasil, mas seu destino final se mostrou
utópico, inalcançável. A jornada de Paco refez ao inverso o
caminho navegado há meio milênio pelos portugueses: “a
emigração para a Europa assume, assim, o caráter de volta
sobre os próprios passos, de busca de uma origem mais
remota onde tudo teria começado”. Contudo, descreve
uma “trajetória cíclica que a marcha irreversível da história
da modernidade ocidental torna impossível e que por
isso se confunde com a morte”405. A tentativa de retorno

405 FIGUEIREDO. Em busca da terra prometida, p.


79.
391
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ao passado se mostra frustrada para o personagem e o
reencontro pleno com as raízes, impossível.
Para melhor compreendermos essa querela, é
válida uma comparação com a leitura que propõe Walter
Benjamin406 acerca da obra Angelus novus de Paul Klee:
nela, o anjo – para Benjamin, o anjo da história – tem o rosto
voltado para o passado. Ele gostaria de parar e reconstruir
os fragmentos daquilo que foi destruído e acumula ruínas
sobre ruínas a seus pés. Mas, como tem as asas abertas,
um vendaval o arrasta “imparavelmente” para o futuro. O
anjo segue rumo ao futuro, mas o que vê – e sua posição
é sempre a do tempo presente – são somente as ruínas do
passado. Ou seja: nesse fugaz instante percebido como “o
presente”, o passado não cessa de interferir, projetando
imagens de futuro. Vemos o futuro a partir das intenções
desses passados.
A busca dos personagens de Terra estrangeira
pelas raízes sugere, por outro lado, o estado de constante
espera pelo Messias, por uma salvação que vem de fora: é
do passado que virá D. Sebastião para alterar os rumos do
futuro; em outras palavras, só se espera chegar aquilo a
que já se conhece. Se assim for, o filme parece demonstrar
que a própria eleição de Collor – mas não só ela – teve
tons sebastianistas: no candidato, o povo identificou o
signo do Messias. Mas, para além da constatação pontual,
parece sugerir a predisposição do homem, imerso numa
cultura patriarcal, a esperar por figuras salvadoras como
monarcas absolutistas, reis-sóis, fascistas, czares,

406 BENJAMIN. O Anjo da história, p. 14.


392
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
marxistas, napoleões, Conselheiros, Getúlios, Juscelinos,
governos economicamente milagreiros, Collors, Lulas...
No entanto, se o reencontro – impossível – com as
raízes é o ethos dos personagens, as forças que mobilizam
o filme – enquanto organismo que compreende a trajetória
dos personagens, mas não somente – são de outra ordem.
Pois, o gesto dos diretores de deslocar a câmera para a
península ibérica é peculiar: ao contrário daquilo que
motiva os personagens, busca não a conciliação, e sim
o conflito reflexivo. Ao narrar a saga intercontinental de
Paco, os diretores, buscando desenvolver um pensamento
por imagens, provocam tensões na própria noção de
construção da história, pois trazem o passado para um
confronto no presente.
Em síntese, podemos dizer que Terra estrangeira
opera uma variação entre diferentes níveis de história.
Melhor dizendo: na superfície de Terra estrangeira,
coincidem diferentes temporalidades. Não se trata de
um flashback ou de qualquer outro truque de montagem
que obedeça a uma linearidade cronológica e identifique,
coerentemente, o trânsito entre épocas, distinguindo
passados e presente. Tampouco há viagens no tempo.
O que vemos em Terra estrangeira é uma espacialização
do tempo, a planificação heterogênea de uma estrutura
histórica que se quer linear e causal – ao menos no senso
comum ou nas noções positivistas de história. O tempo
como simultaneidade. Assim, a história – aquela que
remonta o passado – se apresenta em forma de estilhaços
que compõem o presente: é nesse tempo, e somente nele,

393
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
que vemos e reescrevemos o passado. Rememoramos.
Ligamos uma imagem de passado a outra de maneira
arbitrária – a escritura histórica é sempre arbitrária. Assim,
representa-se a memória de uma genealogia a partir da
anacronia.
Os quadros, as fotografias, os rostos dos velhos,
os navios, a música: em Terra estrangeira filma-se o
presente e nele reconhece-se a intenção de uma imagem
do passado, que tende a presidir as maneiras com as quais
os seres sentem (pathos) e pensam (logos) – percebem
os fenômenos no presente, e aqui estamos a falar tanto
no contexto do enredo fílmico quanto da cultura que o
extrapola, mas da qual ele surge. Há, pois, certa relação
que atravessa as gerações humanas, pois, se o ser habita
a linguagem, ou seja, é por ela constituído – ele não fala,
ele é falado –, a linguagem o transcende, i.e., precede sua
existência carnal, sua presença – uma transcendência,
portanto, que não se confunde com a metafísica. Daí Varela
(1996) propor um pensar-sentir em língua portuguesa.
Mas, aqui, há de se fazer uma ponderação: a
percepção do presente não pode ser compreendida como
sendo de todo inerte ou passiva – ou seja, totalmente
coordenada por essa transcendência –, pois a cada
percepção corresponde uma intencionalidade. Por isso, no
presente também podem ser traçados contrapontos entre
as imagens tornando visível tal transcendentalidade. Que
estas formas de perceber os fenômenos – o fenômeno
Collor, por exemplo – são presididas por intencionalidades
passadistas, é o que parece demonstrar Terra estrangeira.

394
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
E assim vemos, com Lezama Lima (1988), que, em última
instância, todo discurso histórico é uma ficção do sujeito.
E o niilismo que Benjamin demonstra como influência de
suas teses sobre o conceito de história parece demonstrar
algo dessa natureza: é o sujeito, no presente, quem dá
sentido ao passado que se acumula disforme.
Sendo assim, mais do que sobre a história em si,
estamos a falar de processos de subjetivação operados
pela linguagem, mas também das possibilidades de o
sujeito dobrar essas linhas de força que o presidem.
Nesse sentido, a partir de todas as intervenções ficcionais
que opera na construção – e desconstrução – histórica, o
que Terra estrangeira parece realizar é a recriação de uma
memória que incorpora fatos históricos e mitos culturais
para, a partir dessa matéria sensível e anacrônica,
inscrever uma visão crítica de mundo, perpassando pelos
dilemas da identidade e do nacional. Propõe um devir da
consciência de uma brasilidade que se propõe enquanto
travessia, “o eu coletivo quem se procura, sujeito e objeto
da viagem”407. A memória de uma genealogia em devir que
toma forma, no filme, num conjunto de alegorias.

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397
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
LIVROS PERDIDOS, LIVROS ESCRITOS: A
LITERATURA DIANTE DA PERDA

Tiago Lanna Pissolati

Inúmeros são os livros circulantes. Incontáveis são os


escritos e lidos por pelo menos um grupo de leitores.
Inabordáveis, contudo, são aqueles que se perderam
diante da força do tempo. Tendo esvanecido entre o gesto
de sua escrita – ou ainda, o de sua concepção – e o da
leitura, tais livros sucumbiram à História, restando como
perda e ausência.
Para cada livro que repousa sobre uma estante,
há um outro que, não fosse por obra da contingência,
poderia também estar ali. Para cada coleção de textos,
há, certamente, um elemento faltoso e impossível de se
obter. Para cada biblioteca que se ergue, persiste, por
fim, uma projeção: a de uma outra biblioteca possível,
repleta desses livros que não encontraram, no tempo
presente, lugar para habitar. Nessa antibiblioteca que aqui
projetamos, viveriam os livros perdidos, os destruídos,
os censurados. Também, os esquecidos, os violados,
os falseados, os mortos. Finalmente, os incompletos, os
inacabados, os inconcebíveis, os impossíveis.
A proposta desta comunicação é norteada pelo
desejo de conhecer essa biblioteca inexistente. Explorar

398
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
suas coleções misteriosas. Conhecer seus volumes
incertos. Tarefa indiscutivelmente impossível: trata-se,
afinal, de um conjunto de livros cuja única marca deixada
no tempo do agora é a de sua ausência.
Disso já nos dá notícia o texto da Bíblia cristã,
livro-biblioteca cuja riqueza reside, também, em sua
ampla história de deturpações, transformações, perdas,
escritas apócrifas e inacabamentos. Uma de suas lacunas,
destacada por Stuart Kelly em O livro dos livros perdidos,
seu duplamente fascinante e melancólico compêndio de
escritas tragadas pelo tempo, encontra-se justamente em
torno de uma de suas figuras mais complexas – Paulo de
Tarso. Da leitura de suas epístolas (algumas, segundo o
pesquisador escocês, apócrifas) e da narrativa dos Atos
dos Apóstolos, o leitor depreende que, após converter-
se ao cristianismo e planejar evangelizar as regiões mais
distantes da Europa, Paulo, vítima de uma conspiração,
é preso e levado a Roma para encontrar-se com um dos
imperadores mais temidos da História: Nero. Entretanto,
muito embora a narrativa dos Atos caminhe para esse
encontro no mínimo emblemático, ela se interrompe antes
que ele aconteça. “O enfrentamento entre Nero e Paulo
ou está perdido ou nunca foi escrito”, constata o crítico408.
Já no século XX, ocorre o que talvez seja um dos
mais intrigantes desaparecimentos da história da literatura.
O escritor e desenhista polonês Bruno Schulz mencionara,
em 1934, que escrevia um romance intitulado Messias.
Acredita-se que era um trabalho minucioso, narrando um

408 KELLY. O livro dos livros perdidos, p. 112.


399
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
suposto aparecimento do Messias a 30 quilômetros de
Drohobycz, cidade do escritor. Schulz era de família judia
e planejava partir da cidade no dia em que foi morto pelos
nazistas. Cinquenta anos depois, seu neto, Alex Schulz,
entrou em contato com um estudioso do escritor, afirmando
ter recebido um telefonema de um homem que estava em
posse do pacote com o manuscrito do livro, que deveria
ter cerca de 1.500 páginas. Tempos depois, Alex Schulz
sofreu uma hemorragia cerebral sem nunca ter dito o
nome desse contato. Já em 1990, um funcionário soviético
descobriu o texto de Messias numa estante de arquivos
da KGB que reunia documentos da Gestapo. Contudo,
a fragmentação da União Soviética e a subsequente
redistribuição dos “arquivos mortos” novamente voltou os
manuscritos às sombras. O Messias de Schulz – como o
título profeticamente anuncia – segue oculto, embora em
vias de surgir409.
O assombro da perda – ou, ainda, o fascínio por
ela – parece recair sobre a escrita literária com força
notável. Sob esse prisma, cada texto escrito e publicado
parece surgir como antípoda a outros dez que, perdidos,
censurados ou violados, nunca tiveram a mesma sorte.
Cada palavra escrita e lida ecoa os textos perdidos de
Goethe, o apelo notável de Kafka – “queime tudo o que eu
escrevi” – a comédia nunca encontrada de Shakespeare
e a irrealizável Enciclopédia universal de Leibniz. A
literatura dá mostras de ser ciente de sua vulnerabilidade
e finitude. Não são raros os textos que, de alguma forma,

409 KELLY. O livro dos livros perdidos, p. 399-402.


400
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
apontam para a questão, seja direcionando o olhar para
outros textos perdidos, seja ressaltando, a todo tempo,
a impossibilidade de uma realização plena devido a uma
ausência originária.
Ausência que surge de forma fascinante no Dom
Quixote de Cervantes. No primeiro livro, publicado em
1605, após narrar as primeiras aventuras do Cavaleiro
da Triste Figura, o narrador perde o fio da narração. A
interrupção ocorre durante o relato do encontro de Quixote
com um biscainho. Após desentender-se com o homem,
o cavaleiro engenhoso avança contra ele de espada
em riste, “determinado de o partir ao meio”. Todos os
circundantes punham-se temerosos quanto ao fim que tal
batalha poderia ter. Com a cena em suspenso, o narrador
intervém:

Mas o dano disso tudo é que, neste


ponto e termo, deixou pendente
esta batalha o autor desta história,
pretextando não ter achado dessas
façanhas de D. Quixote nada mais
escrito além do referido. Bem é
verdade que o segundo autor desta
obra se negou a crer que tão curiosa
história estivesse entregue às leis do
esquecimento, nem que tão pouco
curiosos fossem os engenhos de La
Mancha que não tivessem guardado
em seus arquivos ou suas gavetas
alguns papéis que deste famoso
cavaleiro tratassem, e assim, com
essa imaginação, não se desesperou
de achar o fim desta grata história, o
qual, com o favor do céu, ele achou

401
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
[…]410.

A narração é posta entre parênteses. Entra em


cena, então, um segundo narrador (“o segundo autor
desta história”), que relata em detalhes como encontrou,
por acaso, os textos que davam continuidade à narrativa.
Esse outro narrador, em passeio pelo mercado de rua
de Toledo, depara-se com uma série de papéis velhos,
escritos em árabe, vendidos por um rapaz. Os papéis,
traduzidos, seriam de autoria do suposto historiador
árabe Cide Hamete Benengeli. Davam prosseguimento à
narrativa do encontro entre Quixote e o biscainho, que é
retomada logo em seguida.
Já no segundo livro, publicado dez anos depois, a
narrativa de Cervantes é complexificada devido à violação
da escrita: uma continuação apócrifa do primeiro livro fora
editada em 1614 e lida em diversas regiões da Espanha.
Em um gesto notavelmente moderno, a real continuação
de Dom Quixote narra, em diferentes ocasiões, o encontro
do protagonista e de seu escudeiro com o livro apócrifo
e com seus leitores, colocando em questão os liames
entre ficção e realidade e explicitando as lacunas que
atravessam a escrita411.
No século XIX, as escritas perdidas surgem como
tema recorrente nos contos de Edgar Allan Poe. Em
MS. found in a bottle, o leitor é o primeiro a encontrar

410 CERVANTES. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La


Mancha, p. 137-138.
411 Cf. CERVANTES. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La
Mancha.
402
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
uma assombrosa mensagem guardada em uma garrafa,
colocada à deriva sabe-se lá por quanto tempo, sempre
em vias de ser encontrada, embora somente lida quando
condensada em conto e presente em um livro. The purloined
letter, por outro lado, constitui o relato investigativo do
episódio do roubo de uma carta que poderia comprometer
a reputação de uma importante figura política. Na narrativa
do conto, a escrita mescla-se ao próprio gesto da busca,
cujo desfecho é inusitado. A carta encontrava-se ali, no
porta-cartas do principal suspeito do roubo, tão evidente
que passara despercebida412.
Também é possível perceber na obra do próprio
Bruno Schulz, escritor do Messias ainda desaparecido,
a presença de uma força que traga a escrita em direção
ao perdido e imemorial. No livro Sanatório sob o signo da
clepsidra, publicado recentemente no Brasil, essa força
caminha em direção de um objeto que o narrador prefere
chamar “simplesmente o Livro, sem nenhum adjetivo ou
epíteto”413. Guardando apenas a memória de seu contato
com esse Livro absoluto na infância (que parece se aproximar
de uma realização fictícia de Le Livre mallarmaico), o
personagem passa a buscar o texto perdido, deparando-
se com a vários livros outros, “apócrifos contaminados”,
“milésimas cópias”, “falsificações fracassadas”. Por fim, o
narrador nos relata um reencontro duvidoso com esse Livro
absoluto, presente nos restos de um livro de anúncios414.
412 Cf. POE. The purloined letter.
413 SCHULZ. . Sanatório sob o signo da clepsidra, p. 119.
414 SCHULZ. . Sanatório sob o signo da clepsidra, p. 121-
122.
403
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Na literatura brasileira, o motivo das escritas
perdidas surge de forma vertiginosa no romance Quatro-
olhos, de Renato Pompeu, publicado em 1979. Escrito
durante o período mais duro da ditadura militar, a narrativa
nos apresenta a um protagonista que escrevera um livro
durante todos os dias “mais ou menos dos 16 aos 29
anos”, “com exceção de um ou outro sábado e de certa
segunda-feira”415. O livro, confiscado pela polícia política e
nunca mais encontrado, não deixa mais que alguns rastros
imprecisos na memória de seu escritor. Dele, ele não se
lembra da matéria, natureza, tema ou personagens. O
romance trata, então, da busca desse homem pelo livro
perdido, de forma que o ato da escrita se confunde com
o próprio gesto da procura. Na massa textual arquitetada
por Pompeu, livro perdido, livro escrito e as memórias do
protagonista se fundem numa zona de indistinção evocada
pela decisão final da personagem: “escrever outra vez o
livro”416.
Somam-se a essas obras, ainda, o relato da busca
pelos papéis póstumos de um escritor relatada na novela
The Aspern papers, de Henry James; a jornada de um
indígena em busca de uma escrita possível para a sua
língua falada, em Les Immémoriaux, de Victor Segalen;
o hiper-livro perdido e desconhecido que teria citado os
grandes poemas do século XIX antes mesmo de eles terem
sido escritos, no conto A viagem de inverno, de Georges
Peréc; os emblemáticos livros infinitos e os tomos perdidos

415 POMPEU. Quatro olhos, p. 15.


416 POMPEU. Quatro olhos, p. 188.
404
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
nas bibliotecas absolutas nos contos A biblioteca de Babel
e O livro de areia, de Jorge Luis Borges, textos em que a
perda é evocada em um misto de entusiasmo e angústia.
Finalmente, uma obra em particular que parece se firmar
como o tributo literário definitivo ao perdido e ao ausente: o
livro Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino.
Publicado em 1979, o romance tece uma complexa teia de
textos perdidos, escritos apócrifos, narrações inacabadas,
livros confiscados e obras degradadas. Tentando encontrar
seu caminho nesse emaranhado de escritas ausentes, a
personagem central, o Leitor, vê, no encontro (amoroso)
com uma Leitora, a possibilidade de achar o fio de Ariadne
no labirinto da leitura e restabelecer a narrativa.
Trata-se de um romance sem um ponto claro de
partida e nenhum vislumbre de chegada. O argumento
inicial do texto – a decisão do Leitor de “ler o novo
romance de Italo Calvino” – leva-o a uma livraria em que,
por acidente, ele adquire um exemplar com uma falha de
encadernação417. No volume adquirido, nada mais que
vários cadernos idênticos, que o levam sempre da página
32 de volta à 17. No entanto, o retorno à livraria e o pedido
pela troca do exemplar colocam em suas mãos uma nova
obra com várias páginas em branco, que o leva a uma
outra obra inacabada, e assim sucessivamente. Constitui-
se, dessa forma, uma jornada infinita de leitura, marcada
pela perda e pontuada pela ausência da escrita.
Um livro cuja escrita se realiza em torno da ausência
primordial de um outro livro: o romance de Calvino dá

417 CALVINO. Se um viajante numa noite de inverno, p. 11.


405
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
indícios de realizar-se justamente a partir da tentativa de
retorno a esse livro primordial, ao tomo integral de Se um
viajante numa noite de inverno que o Leitor protagonista
busca a fim de concluir sua leitura. É a partir da busca
desse romance (que não deixa de ser o próprio livro
escrito) que instaura-se o surgimento em série de novas
narrativas. Trata-se, assim, de uma escrita disparada por
uma outra que, muito embora não deixe de se assemelhar
a ela própria, está, a priori, ausente. A narrativa dá mostras
de desenrolar-se justamente a partir da ausência de sua
origem. Como nos lembra Calvino;

Começar. Foi você quem o disse,


Leitora. Mas como determinar o
momento exato em que começa
uma história? Tudo começou desde
sempre, a primeira linha da primeira
página de todo romance remete a
alguma coisa que já sucedeu fora do
livro418.

Não é possível chegar ao princípio. Há, sempre,


uma anterioridade. Uma história que veio antes de outra
história, que veio antes de outra, ainda. Ao procurar o
originário, colocamo-nos em contato com tudo aquilo
que não dominamos, que não nos pertence, que nos é
estranho. Ainda, somos tragados por essa busca, que nos
dispersa no tempo e nos expõe a cronologias múltiplas.
No caso de Se um viajante..., é possível perceber que
a busca do Leitor pelo livro integral, longe de levá-lo ao

418 CALVINO. Se um viajante numa noite de inverno, p.


157.
406
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
objeto desejado, o expõe a diversos outros textos de
outros tempos, escritos por outras mãos. Por diferentes
razões, são todos igualmente inacabados, interrompidos,
inexistentes em forma integral. Disperso entre eles, em
sua jornada pela leitura conclusa, circulam Leitor e Leitora,
completamente expostos à força das palavras.
Mas não seria essa ausência originária condição
de toda a literatura? “As origens precisas da literatura
se perderam”, anuncia Stuart Kelly na abertura de seu
compêndio da perda419. Entre os primeiros livros e as
narrativas orais, resta um elo perdido, uma lacuna que
separa mito e literatura. Por um lado, reside aí uma
ausência histórica: em que ponto pode a escrita se impor
sobre a palavra falada? A que ela remonta?
Há, por outro lado, uma ausência originária no que
toca à gênese de toda escrita literária. A partir da leitura do
romance Les Immémoriaux, de Victor Segalen, o filósofo
italiano Giorgio Agamben debruça-se sobre essa lacuna
fundadora e traça paralelos entre mito e literatura. O
filósofo relembra que, para todo aedo, a origem da palavra
não é um problema dado. Cada narração remonta a outra
ocorrida anteriormente: o mito é sempre anterior a quem o
narra. No entanto, o que seria possível dizer da literatura,
essa escrita que não provém de lugar algum senão das
próprias mãos do poeta? Qual seria a sua anterioridade?
Tanto em sua dimensão histórica quanto no que
toca à gênese de toda escrita, a literatura remontaria,
como um todo, a esse abismo original. Imprescindível à

419 KELLY. O livro dos livros perdidos, p. 25.


407
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
sua existência, segundo Agamben, seria um esquecimento
primordial: é preciso que nos esqueçamos de toda e
qualquer origem justamente para que possamos celebrar
esse vazio como pedra fundamental da literatura. Nesse
sentido, é o esquecimento que reconecta a literatura à sua
origem ausente420.
Eis, aí, uma das mais fundamentais questões de
toda a literatura ocidental. A ela, os poetas não passaram
incólumes: evidência disso seria o fato de, como recorda
o filósofo, toda a literatura da Idade Média estar disposta
segundo uma quête do livro e de uma palavra anterior,
com a ideia de tornar a obra literária legítima. Nas
narrativas do período, seriam inúmeras as obras cujos
incipit nos levariam a uma transcrição ou tradução de
escritas pregressas, fossem elas de fato existentes ou
supostamente perdidas421.
Essa tradição remissiva pode ter sido levada aos
extremos nos dois livros do Dom Quixote de Miguel de
Cervantes. No primeiro livro, com o episódio da perda do
fio da narrativa e de seu sucessivo reencontro na escrita
mourisca de Cide Hamete Benengeli. No segundo livro, em
um artifício ainda extremamente moderno, pela remissão
ao próprio primeiro livro do Quixote, assim como à sua
continuação falsa.
Trata-se do mesmo processo de remissão que,
involuntariamente, leva o Leitor de Se um viajante numa
noite de inverno de um início de livro a outro, e desse a

420 AGAMBEN. El origen y el olvido, p. 255.


421 AGAMBEN. El origen y el olvido, p. 258.
408
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
mais um, numa espécie de linha conectora que parece
sustentar a narrativa. De certa forma, o livro de Calvino
dá sinais de que é essa remissão que torna possível o
romance. De fato, até mesmo a palavra “romance”,
como destaca Agamben, traz em seu bojo essa natureza
remissiva:

O próprio termo romanzo [romance]


deriva da expressão “por em romance”,
ou seja, “traduzir para língua vulgar”
e, portanto, implica a ideia de uma
palavra que vem de fora ou de outro
lugar; e sabe-se que essa ficção de
uma palavra recebida, que o autor teria
unicamente se limitado a transcrever
ou traduzir, já é parte integrante da
tradição romanesca422.

Operando com diversas palavras “de fora”,


conglomerando múltiplos romances e aglutinando-os em
uma única malha textual, Se um viajante... escancara essa
condição primeira do romance. A partir de um processo
remissivo em que um texto se abre ao seguinte, o livro
os “põe em romance”. Nesse processo, a obra de Calvino
dá sinais de ecoar, em sua própria estrutura, essa perda
original que é condição de toda a nossa tradição literária,
perda igualmente evidente em diversos outros textos,
como no de Cervantes.
Nesse ponto, Calvino e Cervantes encontram seu
lugar na constelação dos textos da perda. Ali, encontram-se
com Poe, Henry James, Mallarmé, Bruno Schulz, Renato
422 AGAMBEN. El origen y el olvido, p. 258. Tradução
nossa.
409
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Pompeu, Borges e mais uma série de escritores que, em
maior ou menor medida, viram sua escrita operar segundo
a ausência fundadora da literatura: a perda. Ausência
que, em última instância, dá sinais de tragar todo traço,
todo texto, toda palavra, toda escrita, como nos revelou o
próprio Calvino. Ecoo, aqui, suas palavras:

A biblioteca ideal para a qual eu tendo


é aquela que gravita em direção
ao exterior, em direção aos livros
“apócrifos”, no sentido etimológico da
palavra, isto é, os livros “escondidos”. A
literatura é a busca do livro escondido
distante, que muda o valor dos livros
conhecidos, é a tensão em direção ao
novo texto apócrifo a ser reencontrado
ou inventado423.

Se, conforme destaca Calvino, a literatura é feita de


uma escrita em busca de livro ou, ainda, de uma tensão em
direção a um texto escondido, ao lançar perguntas sobre
esse universo constelar de perda e ausência, é possível
conhecer um pouco mais a natureza dessa escrita. Voltar
o olhar nessa direção é, assim, colocar-se diante de um
Texto ausente que surge como meta e origem em toda
uma escrita e que se esconde por trás de todas as coisas.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. El origen y el olvido. In: ______. La


potencia del pensamiento. Buenos Aires: Adriana Hidalgo,
2007.
BORGES, Jorge Luis. Obras completas. Barcelona: Emecé
423 CALVINO. A literatura como projeção do desejo, p. 241.
410
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
editores, 1996.
CALVINO, Italo. A literatura como projeção do desejo
(para a anatomia da crítica, de Northrop frye). In: ______.
Assunto encerrado: discursos sobre literatura e sociedade.
Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009. p. 232-241.
CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno.
Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
CERVANTES, Miguel de. O engenhoso fidalgo D. Quixote
de La Mancha. Tradução de Sérgio Molina. São Paulo:
Editora 24, 2010. 2 volumes.
JAMES, Henry. The Aspern papers. In: ______. The turn
of the screw and The Aspern papers. Londres: Penguin
Books, 1986.
KELLY, Stuart. O livro dos livros perdidos. Tradução de
Ana Maria Mandim. Rio de Janeiro: Record, 2007.
MALLARMÉ, Stéphane. divagações. Tradução de
Fernando Scheibe. Florianópolis: Editora UFSC, 2010.
PEREC, Georges. A viagem de inverno. In: ______. A
coleção particular. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo:
Cosac Naify, 2005. p. 73-82.
POE, Edgar Allan. MS. in a bottle; The purloined letter. In:
______. Selected tales. London: Penguin Books, 1994.
POMPEU, Renato. Quatro olhos. São Paulo: Alfa-Omega,
1976.
SEGALEN, Victor. Les Immémoriaux. Paris: Pocket
France, 2009.
SCHULZ, Bruno. Ficção completa. Tradução de Henryk
Siewierski. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

411
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
POESIA, CARNAVAL E OUTRAS FESTAS
EM SACIOLOGIA GOIANA, DE GILBERTO
MENDONÇA TELES

Damáris de Souza Ramos

Saciologia Goiana, livro publicado em 1982 por Gilberto


Mendonça Teles, é um convite ao universo do imaginário
popular do cerrado brasileiro. Podemos observar no texto
os mitos que povoam o imaginário goiano, como o Saci, o
Curupira e a musa Iara. No livro preponderam as imagens
da terra, do cotidiano e dos mitos. São particularidades da
cultura popular, revisitadas e recriadas pela escrita. Neste
trabalho, discutiremos a poética da festa nas imagens
alegóricas do saci em contraponto às imagens dionisíacas.
Observamos os aspectos festivos, sombrios e sedutores.
As imagens do mito Dionísio observadas neste estudo
ilumina o percurso para pensar como se configura a figura
do Saci em suas diversas facetas na poesia telesiana.
Ao organizar a Fortuna Crítica de Saciologia Goiana
(2011), Therezinha Mucci Xavier aponta as tonalidades
épicas bem humoradas do texto, dado que convém a
personagem do Saci, mito popular bem conhecido no
Brasil. A autora ressalta uma entrevista do poeta Gilberto
Mendonça Teles em que ele informa que o Saci se tornou
tema central nos poemas, como se o próprio livro fosse

412
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
uma entidade de uma perna só, com uma versão erudita
e outra popular.
Percebemos então que muitas imagens atribuídas
ao deus grego Dionísio podem ser observadas no Saci.
Das possíveis interpretações sobre o mito Dionísio,
consideramos os aspectos da dualidade do mito.
Dionísio é, entre outros atributos, o deus da vida, da
metamorfose, da morte, da desmedida, do sexo, da dor
e da música. Portanto, uma personalidade complexa e
cheia de contradições. Conforme Pierre Brunel (1997),
a contradição que cerca esse mito é porque certamente
o caráter peculiar do culto de Dionísio (possessão, ritos
de orgia, excursões pela montanha) sempre fez dele um
deus à parte, um deus mais do povo que da aristocracia,
durante muito tempo menos prestigiado que outros deuses
do Olimpo.
Em contraponto ao mito Dionísio, verifica-se que o
mito Saci está incorporado nos poemas investigados do livro
Saciologia Goiana de Gilberto Mendonça Teles, afirmando
as múltiplas facetas que povoam o imaginário popular.
Além disso, tanto Dionísio quanto o Saci são cultuados
fora do centro, cuja posição é marginalizada na literatura.
A narração do Saci possui diversas interpretações. Dentre
elas, conforme Luís da Câmara Cascudo em Dicionário do
folclore brasileiro (2001), o Saci é um negrinho de uma
só perna, usa carapuça vermelha na cabeça, que o faz
encantado, ágil e astuto. O Saci usa barretinho encarnado,
e a carapuça vermelha lhe dá poderes milagrosos. Se
alguém lhe arrebata a carapuça, o Saci dará montões de

413
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ouro para reaver o chapeuzinho. O Saci ainda é conhecido
por fumar cachimbo e diverte-se criando dificuldades
domésticas, apagando o fogo, queimando alimentos e
espantando os animais. Em outras versões do mito, o Saci
surge como um ser maléfico, ora brincalhão e gracioso.
Observamos que nos poemas em análise o poeta
funde as diversas características atribuídas ao mito
Saci. Ora ele é maléfico, ora ele assume uma identidade
brincalhona, lúdica e sedutora. Percebemos que essas
facetas o aproximam da figura mitológica do deus grego
Dionísio. Ambos possuem intensidades e encantamentos
que perpassam pela duplicidade dos contrários da vida,
como a tristeza e a alegria, o êxtase e o trágico.
Nesse sentido, percebemos que o texto telesiano
possui elementos que dialogam com os pressupostos
teóricos formulados por Mikhail Bakhtin quando estudou
a estética do carnaval no contexto de François Rabelais.
Para Bakhtin o grotesco, elemento primordial do carnaval,
possui diversas características. A mais recorrente é
o afastamento do quadro habitual do mundo. São as
inversões, os destronamentos, a metamorfose e o eterno
inacabamento da existência. Pois o grotesco rompre com
todas as fronteiras e apresenta seu aspecto essencial que
é a deformidade. Além disso, o riso constitue elemento
inseparável da concepção do grotesco, às vezes na forma
atenuada de humor, ironia e sarcasmo. Ao transpor para
literatura essas concepções do mundo carnavalizado é
também uma forma de violação das fronteiras e também
de liberdade.

414
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Nos poemas de Saciologia Goiana observamos
imagens grotescas que constitue uma reelaboração da
festa. A festa do carnaval na poesia telesiana perpassa
por caminhos atenuados do grotesco, ou seja suas
estratégias estéticas mais acentuadas são a ironia e
o cômico. Podemos perceber que a festa marca uma
interrupção provisória de todo sistema oficial, como suas
interdições e barreiras hierárquicas. Em aproximação à
festa carnavalesca, a escrita é uma forma libertadora do
sujeito, dá-lhe a sensação de liberdade e de transgressão
tão almejada no carnaval. Por meio da escrita e nas
entrelinhas do discurso, o sujeito poético veste a máscara
do carnaval e se liberta das cadeias das convenções do
mundo. Conforme Bakhtin:

O motivo da máscara é mais importante


ainda. É o motivo mais complexo,
mais carregado de sentido da cultura
popular. A máscara traduz a alegria
das alternâncias e das reencarnações,
a alegre relatividade, a alegre
negação da identidade e do sentido
único, a negação da coincidência
estúpida consigo mesma; a máscara
é a expressão das transferências,
das metamorfoses, das violações das
fronteiras naturais, da ridicularização,
dos apelidos; a máscara encarna o
princípio de jogo da vida, está baseada
numa peculiar inter-relação da
realidade e da imagem, características
das formas mais antigas dos ritos e
espetáculos424.
424 BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: O contexto de François Rabelais, p. 35.
415
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Como podemos constatar a máscara é umas das
formas mais primitivas da expressão humana no que
concerne a ideia de violação. Bakhtin ainda ressalta que
o complexo simbolismo das máscaras é inesgotável.
Para simbolizar a ideia da festa, a figura folclorística do
Saci é central no livro. Importante assinalar o fato desse
mito trazer consigo a marca da deformação em sua
constituição física. São diversos poemas em primeira
pessoa, cuja voz é atribuída ao Saci. Supomos que esse
jogo de aparecer em diversas facetas e máscaras, o Saci
pode representar o discurso plurivocal presente na obra. O
poema “Camongo” reforça a ideia do “mundo às avessas”
e a fala do Saci aparece como desdobramento da fala do
outro, constituindo, então, uma voz que estabelece uma
relação dialógica com o mundo. Podemos encontrar nos
versos várias camadas discursivas, entre elas já apontadas
pela crítica, como a metalinguagem, a questão telúrica, e,
por extensão, o discurso social. Para melhor verificarmos
como se apresenta a fala do saci como discurso plurivocal,
vejamos os versos do poema “Camongo”, constituído em
forma de cordel:

Venho de longe e de perto,


Sou das campinas gerais,
Meu pé de verso por certo
não sabe deixar sinais,
mas reflete o céu aberto
da terra chã de meus pais.

Sou meio cigano e furo


o tempo como os pajés.
416
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Conheço bem o futuro
da terra dos coronéis.
conheço até dedo-duro
e seus amigos fiéis425.

As marcas históricas e sociais aparecem de forma


carnavalizada, a partir da fala subversiva que está nas
entrelinhas. São versos de denúncia e crítica às questões
sociais e políticas do país. O poema é composto de
sessenta e quatro estrofes, não por acaso, está ligado ao
contexto histórico do golpe de 64. E é nos poemas que
podemos contemplar a diversidade que a fala do Saci
evoca. Atentemos-nos a outras estrofes do poema:

Saci é bicho danado,


pula até nos convencer.
Precisa ser dedurado,
precisa um dia perder
o seu charme e ser cassado
de sua graça e poder.
Tentaram quebrar-lhe a fuça,
tentaram cortar-lhe os pés.
Mas só tinha um e era ruça
a visão dos coronéis.
Pensaram na carapuça
e nem contaram até dez426.

O pulo do Saci nos convida ao jogo da festa, que é


o carnaval, a festa do tempo onde tudo se destrói e renova.
Pois no carnaval a vida é deslocada do seu curso habitual.
E com suas artes e manhas o Saci desmascara a ordem

425 TELES. Saciologia goiana, p. 154.


426 TELES. Saciologia goiana, p. 154.
417
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
das coisas e assume poderes de denúncia, de desencanto
e de vingança. E a aparente leveza presente na construção
dos versos é para dissimular a fala ao contrário, fala para
não dizer, que se dilui no não-dito ou no silêncio. Mikhail
Bakhtin (1996) aponta caminho para compreender esse
processo subversivo do dizer “as avessas”. Pois há uma
subversão da ordem estabelecida, em oposição ao tom
sério se evidencia por meio das imagens alegóricas, o riso,
o jogo e a brincadeira.
Ainda podemos contemplar no poema “Camongo”
a alegria da festa dionisíaca que está ao mesmo tempo
ligada à tragicidade. Percebe-se uma atmosfera de
embate representando as marcas sombrias dos versos e
ao mesmo tempo ameaça o Saci que deve ser cassado
e dedurado. Aparece assim o Mal, conforme postulado
por Bataille, é também a ideia da morte. Aparece em sua
condição da falta, do não-ser pleno em vida. Pois o Mal é
o princípio oposto de uma maneira irremediável à ordem
natural. O poema “Camongo” ratifica essa duplicidade de
emoções. Pois o eu poético usa a máscara do Saci, que
se torna Camongo, que pode ser camondongo, e uma vez
camondongo torna-se portador do grotesco. Em oposição
às imagens sombrias apresentadas, que se configuram no
Mal, podemos contemplar no poema “Camongo” imagens
da sedução e de encantamento:

Deu um pulo e foi à França,


usou perfume de spray,
entrou num baile sem dança,
amou a filha do rei

418
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e namorou a esperança
com todo direito e lei.
Deu um pulo mais pra frente,
viu novas terras e céu,
conheceu coisas e gente,
parou, tirou o chapéu,
traçou as gringas no dente
pulando de déu em déu427.

Nessa estrofe aparece a face sedutora do Saci.


Após tantas peripécias ao longo do poema, ele vai a
França amar a filha do rei. E ainda pulando de déu em
déu continuou seduzindo e “traçando” muitas gringas em
outras terras por aí afora. O poeta se serve dos recursos da
literatura de cordel e traz para o poema um vasto glossário
do vocabulário popular. Mais um elemento de sedução
que pode ser observado nos versos. A linguagem, observa
Leyla Perrone-Moisés (1998), não é só meio de sedução,
ela é o próprio lugar da sedução. No poema “Camongo”
podemos observar que o Saci apresenta comportamentos
que o aproxima das imagens dionisíacas, ele seduz e
trapaceia por meio da linguagem. Retomando a outro
atributo de Dionísio, o temos também como o deus da vida
e da desmedida. Também o Saci possui essa intensidade
para vida. Para Brunel (1997), a sedução em Dionísio passa
por aspectos da fertilidade e da fecundidade atribuídas ao
mito. Segundo ele o mito apresenta muitas afinidades com
o elemento úmido, fator universal de fertilidade, pois seu
poder de deus fecundo não se limita às plantas.
É possível encontrar poemas de retomada às

427 TELES. Saciologia goiana, p. 157.


419
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
questões da natureza, cujas imagens associam às imagens
da fertilidade. No poema “Antologia” observa-se referência
à pecuária e à agricultura, principais fontes de renda do
cerrado brasileiro, e o cultivo de frutas. Vejamos:

Já de há muito desleitadas, vacas


e bezerros
pastavam, apartados, no
mangueiro.
E a antiga casa sertaneja, erigida
a sopapos,
ficava assim, dentre o verde
ramalhudo
cercados de pinhão e fruteiras do
quintalejo,
como um velho tiú dormindo à
beira da estrada,
no cicio acalentante das
cigarras428.

Essa rememoração do universo do cerrado é


constante na obra Saciologia Goiana. São alusões aos
costumes e ao cultivo dos alimentos, prática comum do
povo sertanejo. É no quintalejo, ou seja no quintal, onde
se cultiva as frutas típicas para subsistência. A voz atenta
do saci-poeta como diria José Fernandes (2011), faz
referência à vocação do povo goiano para cultivo da terra.
E remete nos à ideia da fertilidade da própria terra e aos
mitos Dionísio e Saci, observados neste estudo.
Ao apropriar dos mitos do cerrado brasileiro e
contemplar a terra amada, os poemas de Saciologia
Goiana redimensiona o universo simples do cotidiano
428 TELES. Saciologia goiana, p. 169-170.
420
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e dá-lhe uma segunda inteligibilidade. A propósito das
muitas coincidências entre os dois mitos em estudo, o mito
Dionísio e o Saci goiano, vejamos o poema “Aldeia Global”:

Vinde todos, vinde, como o


curupira,
para que vos brinde no avesso da
lira.
Vinde, vinde ao poema
e gritai safados
como siriema nos ermos cerrados.

No meio das tabas não quero ver


dores,
Mas morubixadas e altivos
senhores429.

O poema remete ao leitor a outro mito de aspecto


sombrio, o curupira, cuja narração é conhecida por soltar
assovios para assustar caçadores e lenhadores. O saci se
junta aos romãozinhos, aos curupiras, aos caiporas para
assustar, fazer maquinações, deixar seus excrementos nas
comidas, urinar nos lençóis brancos. Há uma convocação
de seres fantásticos para o poema e intensifica a ideia
que também aproxima das imagens dionisíacas, como a
desmedida e a metamorfose. E legitima a reinvenção e
reinterpretação dos mitos populares, construindo pontes
com as mágicas vocabulares para transmitir emoções
que não estão limitadas ao universo do cerrado goiano.
Inescapavelmente encontramos o lirismo, a sátira, a ironia
e a crítica social.
429 TELES. Saciologia goiana, p. 51.
421
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Importante destacar que uma das características
atribuídas ao mito Dionísio é a fecundidade, sendo também
conhecido como o deus da vegetação. Nos poemas
analisados percebe-se uma constante preocupação do eu
poético quanto às questões ambientais. Além disso, há uma
profunda invocação da flora e da fauna num movimento
de amor e proteção. Em “Antologia”, deparamos com a
voz do Saci que denuncia as questões do desmatamento
desordenado que prejudica e mata parte da fauna e flora,
vejamos:

Pelos dias de agosto,


Todo o horizonte goiano é um
vasto mar de chamas:
Fogo das queimadas que ardem,
alastrando-se pelos “gerais” dos
tabuleiros e chapadões
a afugentar a fauna alada
daqueles campos;
fogo dos cerrados que
esbraseiam,
estadeando à noite seus longos
listrões de incêndio
nas cumeadas das serras,
intrometendo-se léguas e léguas
pelo mato grosso e travessões do
curso dos rios
e subindo, carbonizadas as folhas
secas que o vento
acamara, pelo cipoal e trepadeiras
dos troncos seculares,
cuja casca rugosa tisna de
sobreleve
para ir em fúria crepitar nas

422
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
grimpas,
entre as galharadas verdes,
reduzindo a cinzas os ninhos
balouçantes do sabiá nativo,
[...]430.

A partir do poema observa-se informações de


natureza sociológica do povo goiano. O poema retoma
o caráter de apresentação e mapeamento de Goiás e
ao mesmo tempo conduz o leitor a outras dimensões. E
traz a imagem do incêndio que mata bichos e florestas,
reduzindo a cinzas os ninhos do sabiá nativo. A voz
poética dos versos, atribuída ao saci-poeta apresenta
uma dimensão da personalidade do Saci em forma de
denúncia e proteção das matas. Assim emerge a figura
perturbadora do Saci para expressar a crítica social que
decorre no poema. Esse fenômeno é decodificado por
Bakhtin (1996) para enfatizar o universo que está além
das aparências. Os mitos servem para enunciar algo
que não se expressa e não está limitado ao espaço da
realidade visível. É uma espécie de carnavalização, pois
subverte a ordem estabelecida e “a vida se revela em seu
processo ambivalente, interiormente contraditório. Não
há nada perfeito, nem completo, é a quintessência da
incompletude”431. Mesmo transfigurado ora em ativista
social, o saci-poeta não se inocenta, e nem se redime.
Conforme postula Georges Bataille (1989) em “A literatura
e o mal”, em uma das assertivas sobre a significação do
430 TELES. Saciologia goiana, p. 173.
431 BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: O contexto de François Rabelais, p. 23.
423
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
mal apresenta a ideia do mal em níveis dissimulados.
Segundo ele é possível verificar a presença do mal em
um texto que a primeira vista não está visível. Ao discorrer
sobre o mal em Marcel Proust ele desperta a leitura para o
mal moral que está disfarçado pelo cinismo, a pureza e a
ingenuidade. Em oposição aos contrários da vida, o autor
alerta para a malícia que encerra uma obra literária. Essa
noção de mal se aplica aos poemas da obra Saciologia
Goiana, na perspectiva tratada neste estudo, uma vez que
o poeta, artífice da língua cria campos semânticos diversos
que repercutem em variadas interpretações.
Apresentamos essa aproximação tendo em vista
que a obra agrega e comporta sinais de denúncia social,
demonstra um desconforto do sujeito lírico ao contemplar a
terra amada, com suas mazelas e problemas. E para revelar
e externar toda angústia a figura do Saci é emblemática. A
figura mítica abarca diversos desejos e anseios para gritar
a verdade de forma mascarada. Ao Saci é dado o poder
de cutucar, dedurar e ferrar com a (des) ordem das coisas.
E é pela via alegre, satírica e humorada que o saci-poeta
convida à leitura das entrelinhas.
Na perspectiva carnavalizada postulada por
Bakhtin (1996) o riso foi enviado à terra pelo diabo,
apareceu aos homens com a máscara da alegria e eles
o acolheram com agrado. No entanto, mais tarde, o riso
tira sua máscara alegre e começa a refletir sobre o mundo
e os homens com a crueldade da sátira. E o que parecia
ser divertido e brincalhão, suscita outras intermitências. E
para tanto as figuras mitológicas do Saci e do mito Dionísio

424
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
encarnam a mácara do riso, da alegria, do prazer e da
festa. Observamos o poema intitulado em “Exorcismo”:

E tu, marcellus, erisipela


piolho da tribo na dor, nos ais,
com mil diabos cresçam teus
rabos,
cresçam teus chifres de fogo e
rifles
no mais distante do meu Goiás.
Vós todos juntos, como defuntos
Ou mortos-vivos intempestivos
nos madrigais,
neste momento
de sol e vento, eu vos convoco
vos exorcizo, vos esconjuro,
nem sei que mais432.

Os signos vocabulares “erisipela”, “dor”, “diabos”,


“rabos”, “chifres”, “fogo”, “rifles” são basilares para
expressar o tom burlesco e ao mesmo tempo sombrio
assinalado nos versos de “Exorcismo”. Os versos instauram
um ritual de expulsão dos males e ao mesmo tempo cria
um campo propício às inversões, aos destronamentos e
às profanações comuns do tempo carnavalesco. A rede
de significados amplia e produz sentido, e nesse caso, o
poema seria um exemplo daquilo que Georges Bataille
(1989) define como uma das significações do Mal, que,
segundo ele:

O Mal, nessa coincidência de


contrários, é apenas o princípio oposto
de uma maneira irremediável à ordem
432 TELES. Saciologia goiana, p. 108.
425
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
natural, que está nos limites da razão.
A morte, sendo a condição da vida,
o Mal, que se liga em sua essência
à morte, é também, de uma maneira
ambígua, um fundamento do ser. O ser
não é consagrado ao mal, mas deve,
se o pode, não se deixar encerrar nos
limites da razão. Ele deve antes de
tudo aceitar estes limites [...]433.

Como se vê, o jogo de contrários que não se


divergem e se fundem, viola as fronteiras e dialoga
com os pressupostos formulados por Bakhtin (1996),
quando esclarece que a morte não se opõe a vida, nessa
concepção, a morte é considerada uma entidade da vida
na qualidade de fase necessária, de condição para a sua
renovação e rejuvenescimento permanente. A morte está
sempre relacionada ao renascimento.
Dessa forma, ao observar as facetas dos dois mitos
em análise, com as contradições e as diversas máscaras
que ambos representam, há uma ampliação do conceito
do mal e da morte: para abranger muitas coisas que não
podem ser classificadas sob uma noção estreitada. Tanto
Bataille (1989) quanto Bakhtin (1996) demonstram que o
jogo dos contrários da vida e da morte, do bem e do mal, da
alegria e da tristeza participam de uma harmonia, tornando
um face do outro, e não em posições rigorosamente
opostas.
A noção de aproximação dos opostos é pontual para
entendermos a extensão e a diversidade de interpretações
que estão em torno da figura mítica de Dionísio e do Saci.
433 BATAILLE, 1989, p. 27
426
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
E a partir das imagens dos mitos amplia-se a rede de
significados para abarcar o que não se apreende dentro
de um sistema estático de conceitos e valores. Pois na
carnavalização do mundo a essência é a universalidade.
E para tanto encontramos nos mitos Dionísio e Saci
aproximações pertinentes que propagam à medida que
quebramos a fronteira do visível e adentramos ao universo
mágico desses mitos, reconhecendo seus encantos e
desencantos. Considerando a morte como um novo
renascimento, nasce então um possível encontro onde
o Saci degusta vinho e Dionísio experimenta cachimbo.
A partir dessa perspectiva, conforme interpretada nesse
trabalho é possível estabelecer diálogos entre culturas
distintas, aproximar distâncias, harmonizar conflitos e
(des) ordenar o mundo. As tonalidades carnavalescas
presentes nos poemas representam o tempo alegre e
o tempo festivo. E dessa maneira, lança um novo olhar
sobre o mundo, destituído de medo e convenções.

427
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Referências

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução
de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília:
Editora da Universidade de Brasília, 1996.
BATAILLE, Georges. A literatura e o Mal. Tradução de
Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989.
BRUNEL, Pierre. (Org.) Dicionário de mitos literários.
Tradução de Carlos Sussekind, et al. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1997.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore
brasileiro. São Paulo: Global, 2001.
FERNANDES, José. O humor saciólogico de G. M. T.
In XAVIER, Terezinha Mucci. (Org.). Fortuna Crítica de
Saciologia Goiana. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco,
2011. p. 39-60.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
TELES, Gilberto Mendonça. Saciologia goiana. Goiâna:
Kelps, 2004.
XAVIER, Terezinha Mucci (org.). Fortuna Crítica de
Saciologia Goiana. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco,
2011.

428
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
CONFIGURAÇÕES DO RISO
CARNAVALESCO EM SERAFIM PONTE
GRANDE

Viviane Rodrigues

O verdadeiro riso, ambivalente e


universal, não recusa o sério, ele
purifica-o e completa-o.

(BAKHTIN)

A comicidade perpassa toda a tessitura de Serafim Ponte


Grande. Na composição do enredo encontram-se trechos
em que o autor utiliza a linguagem coloquial e vulgar,
gírias, ditados populares, neologismos, palavras soltas e
repetidas, estrangeirismos, jogos de palavras, zombaria e
diferentes situações sociais parodiadas que se destacam
pelos exageros em que são apresentadas.
Essas características agregam-se tanto na
supremacia da sátira, quanto nos momentos em que se
apresenta na narrativa o riso carnavalesco, identificado
pelos elementos que o constitui e que estão presentes no
romance, gerando a ampliação do efeito cômico do texto.
Nesse sentido, a influência da cultura popular de
origem carnavalesca, revelada a partir da paródia, causa
429
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
na linguagem um efeito de sentido cômico, pelo uso da
hipérbole, nas máscaras sociais, nas subversões e no
rebaixamento.
Para compreender o tom carnavalesco e o aspecto
cômico burlesco presente no romance, serão discutidos
alguns aspectos da história do riso carnavalesco, das
festas medievais, os ritos de carnaval, a literatura
cômica da Idade Média, associando-se algumas de suas
características ao estilo cômico do autor em Serafim
Ponte Grande, pois a existência de elementos da cultura
carnavalesca no romance potencializa a incidência da
comicidade na linguagem do texto.
O “riso festivo”, percebido em Serafim Ponte
Grande, apresenta-se como sendo um riso alegre e jocoso,
bem típico da carnavalização, que é manifestada em sua
linguagem literária. Essa relação torna-se observável
a partir da concepção de que a “carnavalização é a
transposição do espírito carnavalesco à arte.”434. Nesse
contexto, há, na escrita do romance, uma projeção do riso
carnavalesco oriundo da cultura cômica popular da Idade
Média e do início do Renascimento, difundido a partir do
estilo modernista de Oswald de Andrade, que atribui ao seu
livro caráter cômico ao explorar instrumentos linguísticos
que causam a comicidade, associados a alguns elementos
que constituem a carnavalização e transmitem ao texto um
efeito risível.
Bakhtin discute na obra Problemas da Poética de

434 FIORIN. Introdução ao pensamento de Bakhtin, p.


89.
430
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Dostoiévski (1997) a teoria da carnavalização na literatura
e define:

Chamaremos literatura carnavalizada à


literatura que, direta ou indiretamente,
através de diversos elos mediadores,
sofreu a influência de diferentes
modalidades de folclore carnavalesco
(antigo ou medieval). Todo campo
do sério-cômico constitui o primeiro
exemplo desse tipo de literatura435.

O riso carnavalesco na literatura de Oswald de


Andrade, especificamente em Serafim Ponte Grande
decorre, principalmente, do compartilhamento do aspecto
libertador evidenciado e que faz parte da dinâmica
carnavalesca, assim como da movimentação dos
personagens, pois não há um cenário fixo na obra. A
carnavalização está também no caráter bufão de alguns
personagens, no fato do protagonista rir de si mesmo e
na representação do “mundo as avessas”. Esses aspectos
são projetados na obra e estão associados à comicidade.
Com relação à “festa carnavalesca” da Idade Média
sabe-se que esta propiciava ao folião a oportunidade de
extravasar o medo que o perseguia, invertendo, em forma de
zombaria, o sentimento de temor que o aterrorizava. Dessa
forma, eram parodiados a morte, o sagrado, o inferno e os
tabus sociais proibidos para a época. As revelações feitas
por meio do riso contradiziam a seriedade, a religiosidade
e a cultura oriunda do feudalismo que vigorava no período,

435 BAKHTIN. Problemas da poética de Dostoievski, p.


107.
431
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
sem, contudo, significar uma contestação social objetiva;
pelo contrário, o riso carnavalesco medieval também
servia para reafirmar valores hierárquicos.
Os festejos do carnaval ocupavam um lugar
importante na vida do homem medieval. Era uma festa
que havia sido aceita pelo cristianismo, e, mesmo não
coincidindo com nenhum fato da história sagrada, possuía
aspecto cômico popular e público, consagrado pela
tradição. Na Idade Média, os ritos cômicos do carnaval são
uma verdadeira paródia ao culto religioso, afastando-se do
dogmatismo eclesiástico.
O riso do carnaval medieval é deformante e
fundamenta-se na paródia, em que grupos sociais zombam
entre si, invertendo valores e agindo, contraditoriamente
em um meio social complexo, pois o contexto histórico
medieval era de temor.
Na carnavalização, o riso não se apresenta
simplesmente como uma ridicularização; o seu caráter
transformador emprega manifestações populares que, ao
parodiá-la, reconstituem a sociedade em geral. Bakhtin
conceitua-o como um riso de festa e não como uma reação
individual frente a um determinado fato “engraçado”.
O conceito de riso carnavalesco, para Georges
Minois, relaciona-se com uma mercadoria, patrimônio do
povo. Seu caráter popular é inerente à natureza do Carnaval,
quando todos podem rir; é um riso “geral”, “universal”, ou
seja, que pode abranger todas as coisas, alcançar todas as
pessoas; o mundo todo pode tornar-se material do cômico;
é um riso “ambivalente”, por conter uma alegria radiante,

432
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
mas também zombeteira e sarcástica. Dessa forma, ao
mesmo tempo em que esse riso nega, acaba por afirmar
valores sociais e posicionamentos ideológicos.
No romance, o princípio do riso carnavalesco
manifesta-se em diferentes momentos da narrativa, seja
na voz do narrador, seja na fala e no comportamento dos
personagens. O tom carnavalesco se faz presente na
composição do discurso da obra, tornando-se um aspecto
essencial na discussão sobre a comicidade do enredo.
O riso na festa popular volta-se aos próprios
festeiros; o povo não se exclui desse “mundo às avessas”
em que o rei é destronado, sendo esse ato o centro da
carnavalização, pois qualquer pessoa poderia assumir
o lugar de majestade, o que simbolizava o avesso da
estrutura hierárquica social. Seu caráter universal faz
com que todos riam de tudo, transformando esse mundo
em um cenário extremamente cômico. Nesse sentido
é que, revestidos por máscaras, são extravasadas suas
necessidades mais reprimidas.
De acordo com Bakhtin, a cultura carnavalesca
pode ser entendida como um “mundo às avessas”. Suas
manifestações culturais apresentam-se a partir de uma
visão cômica de mundo, elaborada de maneira autônoma,
fora do controle das autoridades, adquirindo, assim,
liberdade extravagante. Ela se exprime sob três formas
principais: ritos e espetáculos (festejos carnavalescos,
obras cômicas representadas nas praças públicas, festas
cômicas medievais); obras cômicas verbais de diversas
naturezas (inclusive as paródias) e diversas formas e

433
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
gêneros do vocabulário familiar e grosseiro (insultos,
juramentos, e outros).
O “mundo às avessas” em que se manifesta a
carnavalização não consiste em um espetáculo, mas
representa a segunda vida das pessoas que vivenciam
o carnaval. Essa atitude libertadora não pode ser
confundida com o papel dos bufões e dos bobos; esses
eram personagens que se caracterizavam para fazer os
outros rirem, ao passo que as pessoas que participavam
da festa se divertiam pelo desejo de se alegrarem, rindo
de si mesmas:

Nas festas carnavalescas, o


povo representa a própria vida,
parodiando-a e invertendo-a; uma
vida melhor, nova, livre, transfigurada.
“O Carnaval é a segunda vida do
povo, baseada no princípio do riso.
É sua vida de festa.” Essa vida
representada no riso corresponde
aos fins superiores da existência:
um renascer na universalidade, a
liberdade, a igualdade, a abundância.
É uma franquia provisória, mas
anunciadora da libertação definitiva
em relação a regras, valores, tabus
e hierarquias. Ela é séria porque
coincide com a ordem estabelecida. O
riso teria, portanto, valor de subversão
social, temporariamente tolerado
pelas autoridades, como exutório, em
circunstâncias determinadas436.

Nas festas da Idade Média, o riso era permitido

436 MINOIS, 2003, p. 156 -157


434
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
pelas autoridades e desempenhava o papel de salientar o
lado público e popular da brincadeira festiva. Estabelecia-
se como um riso festivo por excelência, materializado
nas festas públicas carnavalescas pelos bufões, tolos,
gigantes, anões, monstros e palhaços. A paródia era a
marca desse riso, deformando a sociedade através da
zombaria que se manifestava nas festas cômicas: “festa
dos tolos”, “festa do asno”, “riso pascal ou risus paschalis”,
“festa do templo”, “festa dos loucos”, “festa dos bobos”,
“Charivari”, “Carnaval”. O riso de zombaria da época tinha
uma proporção muito menor que o conceito de zombaria
que o romantismo apregoará. Zombar, nesse período, não
tinha o caráter contestador de valores e hierarquias. Esse
riso era aceito, porém, de forma invertida, sem o caráter
negativo do riso satírico.
As festividades carnavalescas representavam
uma fuga dos moldes da vida oficial, suprimindo, assim, a
vida cotidiana. Por esse viés, percebe-se que a trajetória
do protagonista do romance Serafim Ponte Grande
assemelha-se com a manifestação dessa segunda vida
festiva, pois o romance é marcado pelo desejo de liberdade,
evidenciado pelas constantes fugas de Serafim, já que não
se contenta com sua vida cotidiana. Foge da sua realidade,
mascarando-a com viagens e transgressões.
O protagonista, ao se tornar rico, procura
imediatamente libertar-se das “amarras” sociais e familiares
que o prendiam: o casamento e o emprego de funcionário
público. A maneira encontrada para libertar-se de sua vida
cotidiana foi sair em uma espécie de “cruzeiro” marítimo,

435
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ao lado do amigo Pinto Calçudo, que se tornou seu
secretário particular. Nessas viagens, Serafim experimenta
uma nova forma de viver, regada pela liberdade e pelo
riso, não aceitando mais os ditames sociais a que estava
submetido. Assim o texto faz uma paródia da vida rotineira
e apresenta a vida pelo avesso, suspendendo as leis que
determinam o funcionamento da conduta habitual.
A natureza da festividade no romance relaciona-
se com o que a liberdade representava para a cultura
medieval e renascentista, pois na liberdade conquistada
pelo protagonista insere-se o sentido da festa: o prazer de
experimentar uma liberdade efêmera, uma outra forma de
viver.
Bakhtin explica que o carnaval possui caráter
universal. Todos que participam da festa são motivados
pela ideia da renovação. O carnaval torna-se, então, uma
maneira de viver, mesmo que efêmera, rápida, provisória.
Nele, a própria vida é representada e interpretada; não
é um espetáculo teatral, mas é uma nova vida assumida
pelas pessoas e alicerçada pelo fundamento do riso:

Durante a realização da festa, só se


pode viver de acordo com as suas
leis, isto é, as leis da liberdade. O
carnaval possui um caráter universal,
é um estado peculiar do mundo: o seu
renascimento e a sua renovação, dos
quais participa cada indivíduo. Essa é
a própria essência do carnaval, e os
que participam do festejo sentem-no
intensamente437.

437 BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no


436
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
No carnaval, as extremidades entre o que é fictício
e real são anuladas. Nos festejos em que se comemora a
liberdade, ao coroar o bufão e destronar o rei, outra vida
é assumida pelo folião, que se torna a atração do seu
próprio espetáculo, não existindo distinções entre aquele
que tem a função de atuar e o público, pois não há palco,
todos estão no mesmo plano; a festa não é para apenas
ser vista. As pessoas que dela participam a vivenciam,
uma vez que o carnaval é a festa do povo, vivida com
intensidade e liberdade. Qualquer pessoa do “povo” pode
ser entronizada.
No romance, Serafim se sente ameaçado pela
desenvoltura do amigo Pinto Calçudo, que assume
momentaneamente o lugar de protagonista. Serafim
resguarda sua superioridade expulsando-o da estória,
como já foi comentado no primeiro capítulo desta
dissertação, na análise sobre o “curinga”.
Serafim Ponte Grande e Pinto Calçudo formam no
romance um par cômico, mas o jogo hierárquico entre os
dois revela que o papel de protagonista de Serafim era
ameaçado pela importante função que Pinto Calçudo
adquire no enredo, pois além de disseminar o riso, quanto
retorna à trama finaliza a estória a bordo do navio El
Durasno, em uma festa interminável. A alusão à quebra
dos valores hierárquicos evidenciada pela troca do papel
de protagonista relaciona-se com o perfil que as festas
carnavalescas apregoavam, pois no carnaval todos eram

Renascimento: o contexto de François Rabelais, p. 6.


437
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
iguais. Segundo Fonseca438,

um outro traço que persiste como


marca desta tradição é a dupla
cômica. Representava na cultura
popular da Idade Média o mundo
carnava­ lizado, em uma de suas
diversas manifestações. Por mundo
carnava­ lizado entende Mikhail
Bakhtin um mundo “às avessas”, a
trans­gressão plena da ordem oficial,
ainda que num curto período de
festa. Esta forma de manifestação
popular pretendia uma paródia da
vida cotidiana, uma festa baseada
no princípio do riso, que pudesse
revelar a verdadeira ambivalência
do mundo. Define então o carnaval
desta cultura como “a segunda vida
do povo baseada no princípio do riso.
É sua vida de festa. A festa é o traço
fundamental de todas as formas de
ritos e espetáculos cômicos da Idade
Média”. Os pares cômicos fazem parte
desta manifestação “carnavalesca”,
no sentido acima atri­buído. Em geral
aparecem por contrastes: gordo
e magro; velho e moço; grande e
pequeno; tolo e esperto, uma infinidade
de combinações por oposição.

É importante ressaltar a imagem enigmática do


instantâneo desaparecimento de Pinto Calçudo por meio
de um traque. Esta imagem contribui para a alusão do
mundo às avessas que se estabelece no romance e que
é o universo do bufão, salientando-se ainda mais essa
interpretação.
438 FONSECA. Palhaço da burguesia, p. 25-26.0
438
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Os bufões acompanhavam as festividades da
Idade Média e do Renascimento. Baseados no princípio
da liberdade, sua função era parodiar, ridicularizar,
blasfemar e degradar as cerimônias sérias do período;
por isso, entender a história das festas medievais é
fundamental para a discussão das implicações sociais,
políticas e culturais que se relacionam ao riso, pois no jogo
cômico dos bufões, também havia denúncias de valores
que eles julgavam equivocados. No período, o riso servia
como forma de perversão, contestação e até mesmo como
“elemento conservador”.
Sendo assim, o riso nas festividades medievais
era bem deflagrado pelos bobos e bufões, elementos
consagrados pelo princípio carnavalesco. A importância
do papel que eles representavam é fundamental para
compreender a dinâmica cômica carnavalesca, pois não
se trata de personagens, mas, sim, de uma alternativa
específica para viver:

Os bufões e bobos são personagens


características da cultura cômica
da Idade Média. De certo modo, os
veículos permanentes e consagrados
do princípio carnavalesco na vida
cotidiana (aquela que se desenrolava
fora do carnaval). Os bufões e bobos [...]
não eram atores que desempenhavam
seu papel no palco [...] Pelo contrário
eles continuavam sendo bufões e
bobos em todas as circunstâncias da
vida. [...] Situavam-se entre a vida e a
arte (numa esfera intermediária), nem
personagens excêntricos ou estúpidos

439
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
nem atores cômicos439.

No romance em estudo, no primeiro momento em


que o protagonista é apresentado ao leitor, na unidade
“Vacina Obrigatória”, discutida anteriormente, revela sua
personalidade irônica através do seu comportamento
cômico, que está associado ao bufão:

Vozes — Então casa! Casa! Casa! /


Uma voz — Faz o casamento fiado! /
Serafim — Mas andaste duas vezes
de forde com o Batatinha! / Lalá — Por
isso que eu estava ficando louca lá
em casa! / O soldado abre as grades
das maxilas. Conduzem Serafim gado
e séquito para debaixo do altar da
Imacu­lada Conceição.440.

Serafim brinca com a séria situação em que se


encontra, pois está prestes a casar-se, obrigatoriamente,
na polícia; porém, sua atitude no momento pauta-se na
forma em que ironiza, sarcasticamente, sua futura esposa.
Além do perfil bufo de Serafim, a postura do
personagem Pinto Calçudo e o riso que este manifesta
em sua trajetória na narrativa, principalmente a bordo do
navio “Steam Ship Rompe - Nuve”, aproxima-se do papel
de bufão:

De como Pinto Calçudo querendo


fazer esporte, enfia no óculo da

439 BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais, p. 7.
440 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 50. Grifo do
autor.
440
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
cabina um pau comprido e rema,
produzindo um grave desvio na
rota do transatlântico que aporta
inesperadamente ao Congo Belga.
[...]. Quando do mais alto mastaréu,
o vigilante vigia descobre uma trave
de enxofre no mar das descobertas.
A nova se espalha comovidamente. /
— Terra! É Jerusalém! / — Não! / — É
México! /— É Guaratinguetá.441

Semelhante ao papel cômico que o “bufão”, ou


“bobo”, desempenhava nas festividades culturais da
Idade Média e do Renascimento, servindo para divertir
as pessoas, Pinto Calçudo assume uma personalidade
cômica em praticamente todas as circunstâncias de sua
trajetória no romance. Suas atitudes não correspondem
a momentos isolados de representação, mas sim com
sua maneira de ser. Essa característica se apresenta no
momento em que ele começa a remar sem direção e acaba
levando o navio para um trajeto totalmente diferente da
rota. O fato torna-se uma cena cômica, de caráter festivo,
associada à própria justificativa do feito, que ele respalda
em sua necessidade de praticar esporte:

Em que Pinto Calçudo tomado de


pânico, revela o segredo que produziu
a nefasta ida ao Congo./ [...] Eis senão
quando na atenciosa madrugada,
José Ramos Góis Pinto Calçudo que
se conservara insone de camisola,
vai bater resolutas pancadas no
confessionário do padre que acor­
441 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 91. Grifo do
autor.
441
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
dado se diverte ouvindo as matinas de
um gramofone. — Meu pai! esconjura
o recém-aparecido. Pare essa
caranguejola! Como vejo que esta
encrenca não desamarra, o melhor
mesmo é confessar e comungar!
Mas a deficiência das instalações
desportivas deste transatlântico é que
me fez ter a horrível lembrança do que
planejei e consumei.442

A narração do fato é apresentada em tom jocoso


e deflagra o riso, assim como a fala de Pinto Calçudo, no
momento em que revela ao padre, que também estava a
bordo do navio, que foi ele o causador da mudança na
rota:

Fui eu, fui eu, meu Pai, que virei o


Rompe-Nuve para as fornalhas do
árido continente. Minhas clavículas
e bíceps careciam de remar. Passei
um pau comprido pelo óculo do
camarote... / Padre Narciso surge em
ceroulas de cadarço!443

A declaração de Pinto Calçudo apresenta-se


como uma paródia ao sacramento religioso da confissão.
Assim, ressalta-se que o caráter satírico está presente;
porém a zombaria negativa está atenuada pelo tom
do riso carnavalesco. Ao procurar o padre, no meio da
madrugada, por motivo de insônia, ele afirma que a melhor
opção é confessar o feito. A imagem que transparece da
442 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 92-93. Grifo
do autor.
443 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 93.
442
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
narração da cena é a de uma pessoa atormentada, porém,
muito cômica; ele faz súplicas a Deus, permeadas pelo
humor: “esconjura o recém-aparecido”, e, na justificativa,
o esperto Pinto Calçudo mantém o tom cômico, ao afirmar
que sua clavícula e seu bíceps exigiam-lhe remar. A cena é
concluída com o questionamento sobre o “pau” usado para
remar o navio, potencializando o risível:

— Cadê o pau, meu filho? Onde está


o pau? O infeliz soluça de joelhos. / —
Atirei o pau no Atlântico! / A primeira
providência tomada em conselho
pelos maiores, Guardião, Mestre,
Contramestre e Jota-Pilôto é campear
o pau perdido nas ondas. Mas como
Pinto Calçudo posto a ferros quentes,
descreve o fatídico remo como sendo
apenas um corrimão de escada,
furtado na calada da noite, ordem
se dá para que tudo que seja pau,
varejão, porrete, mastro, mastaréu,
taquara, verga, chuço ou manguara
seja urgentemente arrancado e
enfiado a título de remo nos óculos
das cabinas.444

A ocorrência das várias repetições da palavra “pau”


sugere o sentido sexual do termo, quando comparado ao
pênis, o que se torna risível, principalmente quando é
pronunciado pelo padre, o que enfatiza, implicitamente,
essa conotação, sendo seguida da paródia com a
canção infantil que menciona: “Atirei o pau no Atlântico”,
pronunciada por Pinto Calçudo, revelando, assim, cenas
que se aproximam do teatro bufo.
444 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 93.
443
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Na unidade “No Elemento Sedativo”, as peripécias
de Pinto Calçudo no navio são bem marcadas, pois nessa
parte da narrativa ele “rouba a cena” de Serafim e consegue,
ainda que provisoriamente, o status de protagonista da
narrativa. Suas aventuras no navio são enfatizadas pelo
narrador curinga, que o coloca no centro das atenções,
sendo o riso a marca do seu brilhantismo:

A criada de bordo verifica na dispensa


que Pinto Calçudo e o Último Hamlet
avançaram nos derradeiros quilos de
finas bolachas inglesas tão geralmente
apreciadas nos five-o’-clock dançantes
de bordo. [...] À noite, a pedido de
diversas famílias, o Rompe-Nuve
pára da volada em que vai, a fim de
se promover uma exibi­ção de filmes
que é levada no alto da chaminé do
navio para todos enxergarem e rirem,
seguindo-se depois um disputado lei­
lão de prendas, em que o secretário
de nosso herói revela e mostra as
suas capacidades de leiloeiro.445

No primeiro momento a bordo do navio “Steam


Ship Rompe - Nuve”, as atitudes de Pinto Calçudo
destacam-se pela irreverência e pelo aspecto marginal,
essas características fazem com que o personagem
cometa atitudes reprimíveis, mas ele acaba passando
impunemente pelos acontecimentos:

Todas as manhãs, na ânsia de


descobrir portos, ilhas e continentes,
o ativo secretário resgatado pelo ouro

445 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 92 – 93.


444
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de Serafim trepa no pau-de-sebo-
da proa e espia improficuamente
os hori­
zontes uniformes.446
Enquanto Pinto Calçudo assim
se expande para um par­ ceiro de
poker chamado Paulino Guedes, o
argentino reúne um luzido grupo de
senhoras e senhoritas no bar e oferta-
lhes cocktails, mandando convidar o
zangado brasileiro a fim de ter­minar
a briga em risonha tertúlia. Mas Pinto
Calçudo dobra-lhe duras e indignadas
bananas.447

A ausência de punição a Pinto Calçudo só é possível


porque os seus atos passam como atitudes cômicas. Na
linguagem, estão mascarados pela paródia e é, por isso,
que não sofre uma repressão severa.
A figura do bufão refletida no personagem é
proveniente da cultura cômica da Idade Média e do início
do Renascimento. No período, era comum que reis e
representantes de outras instâncias de poder tivessem seus
bobos. No romance, Pinto Calçudo pode ser interpretado
como o bufão que acompanha Serafim (mesmo este
também assumindo em determinadas situações o papel
de bufão), pois no enredo, Pinto Calçudo está presente em
todas as fases da vida do protagonista, sendo associado
ao cômico.
Outra característica do bufão é com relação ao seu
aspecto físico. Normalmente, ele se apresenta com um
tipo de deformação que alude às deformações humanas

446 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 94.


447 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 97.
445
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de caráter. Nesse viés, é importante ressaltar que o
personagem Pinto Calçudo, também, apresenta uma
deformação física que deflagra o riso, e que, também,
conota esse sentido: “De como um papiloma chamado
berruga vegeta inopinadamente na cabeça de Pinto
Calçudo e dos transes que ele vem a passar.”448.
O bufão é figura característica da cultura da
Idade Média e do início do Renascimento. Sua função
foi muito importante como porta-voz do desejo do povo
em manifestar outra vida, que se destacava por não ser
oficial e que fugia da hierarquia feudal que o oprimia e
menosprezava.
A irreverência popularesca presente nos cômicos
populares, como os bufões e bobos da Idade Média,
perpassa a dinâmica da literatura carnavalesca, assim
como no romance Serafim Ponte Grande, pois ambos
manifestam a propriedade de se viver outra vida não
oficial, além de destronar e entronizar simbolicamente
indivíduos de suas posições hierárquicas. Ressalta-se
que essa leitura se pauta em fazer referência a algumas
características do bufão com o perfil do personagem Pinto
Calçudo, permitindo a afirmação de que há projeções de
um elemento que é próprio da cultura popular da Idade
Média e do Renascimento no personagem em questão.
No processo da escrita o autor constrói personagens
que além de fazerem os outros rirem, também conseguem
rir de si mesmos. Essa característica criativa do autor

448 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 94. Grifo do


autor.
446
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
pode ser relacionada ao riso carnavalesco medieval,
que é conceituado por ser um riso libertador, jocoso e
ambivalente. Oswald de Andrade, em seu processo de
“devoração” da linguagem carnavalesca, converge as
características do riso carnavalesco ao seu dom de divertir
os outros através da palavra e cria seu próprio estilo bufo
no romance referido.
Esse tipo de riso é caracterizado por ser transgressor
e alegre, incluindo o próprio autor da situação cômica.
Sendo assim, ri de si mesmo, é uma carnavalização
recorrente em Serafim Ponte Grande. O personagem narra
suas atitudes, aventuras, amores, postulações ideológicas,
entre outras situações e brinca com seus percalços, como
foram apresentadas no percurso deste trabalho. O tom
carnavalesco nessas situações enfatiza a comicidade do
texto literário.
Outro aspecto importante é o caráter de coletividade
presente no riso carnavalesco, que potencializa o aspecto
social no sentido da festa e da alegria. O alvo da paródia ou
da zombaria também caracteriza o aspecto de coletividade
desse riso. As revelações feitas pelas máscaras paródicas
apresentadas têm o objetivo de libertar, temporariamente,
as pessoas do medo a que são submetidos:

E esse riso não é individual; para


ser eficaz, deve ser coletivo, social,
universal. Ele não incide sobre o
particular, mas sobre o mundo inteiro,
do qual revela a verdadeira natureza.
Bakhtin fala da “verdade revelada por
meio do riso”, que liberta do medo
do sagrado, da proibição autoritária.

447
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Mostrando o mundo sob um novo dia,
o riso liberta, diante dos interditos e
das intimidações do sério: “É a razão
pela qual o riso, menos que qualquer
outra coisa, pode ser instrumento de
opressão e de embrutecimento do
povo. Nunca ninguém chegou a torná-
lo inteiramente oficial. Ele sempre
permaneceu como arma da liberdade
entre as mãos do povo”.449

A força do riso poderia ter-se transformado em


poderosa arma contra a tirania na Idade Média. O tom
libertador, que eclodiu do povo medieval, refletia-se na
demonstração de uma visão de mundo; porém, o lado
cômico subjugou esse aspecto contestador, não chegando
esse posicionamento a assumir a consciência clara do seu
poder reivindicador:

Ao analisar o riso na obra de Rabelais,


em relação ao momento histórico,
Mikhail Bakhtine sublinha que “...
seu universalismo, seu radicalismo,
sua ousadia, sua lucidez e seu
materialismo deviam passar do
estado de existência quase espontânea
a um estado de consciência artística,
de inspiração a um fim preciso.
Em outros termos, o riso na Idade
Média, no nível do Renascimento,
torna-se a expressão da cons­ciência
nova, livre, e histórica da época”155.
Não se trata de querer aproximar as
necessidades de um período histórico
a outro para justi­ficar coincidências
com o riso renovador. É impossível.

449 MINOIS, 2003, p. 159


448
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Mas, vistos nos devidos contextos,
pode-se perceber a ressonância de
explosões de riso com propósitos
semelhantes, ou seja, como catarse
e purgação, tam­bém ousado, radical,
atuando para desautomatizar e
precipitar novas experiências e nova
ordem. Repare-se que o atrevimento
das arreme­tidas cômicas em Serafim
recai tanto numa crítica do material
(da língua) quanto na da história.
O riso no discurso oswaldiano está
ligado a uma atitude libertadora. 450

A teoria de Mikhail Bakhtin, em sua obra A cultura


popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais, é referência nos estudos sobre paródia,
sátira e carnavalização. Ao analisar o riso carnavalesco em
um romance do século XX, embasado por esse estudo, não
há pretensão de se traçar um paralelo buscando situações
na obra pesquisada que são próprias dos textos Gargantua
e Pantagruel é importante ressaltar que o contexto social
evidenciado nessas obras de François Rabelais satirizava
os ditames de uma sociedade feudal, o poderio exacerbado
da igreja medieval e as variadas formas de predições
do futuro. até mesmo porque os contextos sociais
apresentados nas obras são completamente diferentes,
mas é interessante discutir em um texto do Modernismo
brasileiro, no caso, Serafim Ponte Grande, a presença de
elementos dessa cultura, que revelam sinais possíveis
de serem aproximados a essa teorização, em função das
excêntricas manifestações da linguagem carnavalesca no
450 FONSECA. Palhaço da burguesia, p. 116.
449
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
romance do escritor paulista e principalmente pela atuação
cômica correspondente.
Na obra pesquisada, não existe a festa carnavalesca
propriamente dita, mas percebe-se a manifestação do riso
carnavalesco na composição do enredo. Na linguagem
do protagonista Serafim Ponte Grande, assim como na
narração do curinga, está evidenciado esse tom cômico
carnavalesco.
No período medieval-renascentista, ainda que
o riso carnavalesco servisse como contestação social
por meio da paródia, da máscara e da inversão, esse
procedimento não atingia diretamente as bases do poder
absolutista, pois esse riso era periódico e, com isso, mesmo
que suas paródias criticassem o poder ou zombassem de
mesquinharias, o carnaval se configurava como uma festa
permitida, pois era a ludicidade que prevalecia.
Nos festejos carnavalescos da Idade Média e do
Renascimento, quebravam-se hierarquias do regime
feudal e religioso ao conceder uma “outra vida” aos foliões.
Mesmo sendo temporária essa situação, as pessoas se
aproximavam umas das outras e conviviam como iguais,
o que ocasionou uma linguagem mais livre e coloquial,
permitida apenas nas festas carnavalescas:

Por isso, todas as formas e símbolos


da linguagem carnavalesca estão
impregnados do lirismo da alternância
e da renovação, da consciência da
alegre relatividade das verdades e
autoridades no poder. Ela caracteriza-
se principalmente, pela lógica original
das coisas “ao avesso”, “ao contrário”,

450
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
das permutações constantes do alto e
do baixo (a roda), da face e do traseiro,
e pelas diversas formas de paródias,
travestis, degradações, profanações,
coroamentos e destronamentos
bufões.451

A paródia do riso carnavalesco é cômica, carregada


de vocabulário chulo, expressões grosseiras e gestos
repugnantes. No romance Serafim Ponte Grande é comum
encontrar linguagem coloquial, expressões diretas a
peidos, escarros, vômitos, gestos vulgares e a exploração
dos órgãos sexuais, como se nota em: “Hoje posso cantar
alto a Viúva Alegre em minha casa, tirar meleca do nariz,
peidar alto! Posso livremente fazer tudo que quero contra
a moralidade e a decência.”452; ou, ainda, em: “Mas Pinto
Calçudo dobra-lhe duras e indignadas bananas.”453. Essa
recorrência ao vocabulário popular e aos elementos
grotescos apresenta uma significação ambivalente, pois
tais elementos são relacionados ao realismo grotesco,
cujo princípio defende que, ao se degradar, as coisas
regeneram.
A festa carnavalesca imbuída na paródia alcançou
uma concepção formal de crítica, porém, fundamentada
no rebaixamento. O aspecto da renovação relacionada
ao grotesco discute a aproximação entre o “elevado” e o
“baixo” e está associada à zombaria. Já a paródia, ao ser

451 BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais, p. 9-10.
452 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 75.
453 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 97.
451
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
aproximada ao burlesco, torna-se ridiculamente cômica,
pois a comicidade está na essência do riso carnavalesco e
por isso caracteriza-se como uma de suas funções.

REFERÊNCIAS:

ANDRADE, Oswald de. Serafim Ponte Grande. 6 ed. São


Paulo: Globo, 1997.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução
de Yara Frateschini. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora
da Universidade de Brasília, 1987.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski.
Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997.
FONSECA, Maria Augusta. Palhaço da burguesia. São
Paulo: Polis, 1979.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin.
São Paulo: Editora Ática, 2008.
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad.
Maria Helena Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora
UNESP, 2003.

452
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
DO PESO DE VIVER À LEVEZA DAS
PALAVRAS:
REFLEXÕES SOBRE A EXISTÊNCIA
EM FLOR DA MORTE, DE HENRIQUETA
LISBOA

Renata Maurício Sampaio

Considerações Iniciais

Em seu itinerário poético, Henriqueta Lisboa (1901- 1985)


preocupou-se com questões que sondam o significado
da vida de maneira profunda. A própria autora reconhece
o tratamento dado à problemática existencial em seus
textos, conforme afirma em entrevista concedida ao jornal
O Estado de S. Paulo, em 1984: “[...] tenho visado de
modo constante a essência do ser, a substância do vital,
a ansiedade humana em busca de perfeição e infinito, os
mistérios da natureza, o relacionamento entre a alma e
Deus.”454.
Ao nos debruçarmos sobre os poemas de
Flor da morte (1949), deparamo-nos com importantes
questionamentos e reflexões existenciais realizados
pelo sujeito poético. Nessa perspectiva, a poesia se

454 LISBOA. Henriqueta Lisboa: unida aos homens e a


Deus pela poesia, p. 4.
453
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
apresenta como um lugar de expressão do desconforto, da
sensação finissecular de um alguém deslocado do mundo,
convertendo-se, por vezes, num espaço onde se assinala
a tentativa de reencontrar a sua individualidade.
Em carta escrita a Carlos Drummond de Andrade,
Henriqueta demonstra fé na palavra poética: “No meio
dessa desesperante angústia que é o próprio respirar
do tempo, verifico [...] que ainda pode haver poesia, que
até mesmo este momento comporta poesia, que temos,
não apenas alguma, porém muita, intensa, desapoderada
poesia”455.
Os quarenta e dois poemas que compõem Flor da
morte tratam, de maneira explícita ou implícita, de questões
que envolvem vida e morte. Escolhemos os poemas Diante
da Morte, Jaulas e Perspectiva, para analisar como o eu
lírico enxerga a si mesmo, a vida e o mundo.

Entre palavras e plumas

Nas estrofes iniciais de Diante da Morte, o sujeito poético


reflete sobre a própria essência e existência e se utiliza de
imagens naturais na expressão de seus sentimentos. Ele
se comporta como ser de pedra diante da morte e sugere
certa dificuldade em encará-la:

Diante da morte não sou de água

455 LISBOA, apud DUARTE. Remate de males.


Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Henriqueta Lisboa, p. 26.
454
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
nem sou de vento, mas de pedra.
Órbitas frígidas de estátua,
boca cerrada de quem nega.

Rudes cadeias me restringem,


corda entrançada no pescoço,
fosco cilício em torno dos rins,
ossos fundidos uns nos outros.

Diante da morte sou espessa


rocha de oceano - desconheço
que espécie de onda ou mar se
atira
contra meu peito empedernido456.

No cenário apresentado, o eu lírico, endurecido


pelo medo, afirma não ser de água nem de vento, maleável
e flexível, mas de pedra, rocha. Esse sujeito sente-se com
a corda no pescoço, restrito por rudes cadeias, o que nos
remete à angústia de viver. Sente-se como se tivesse, em
torno dos rins, um cinto eriçado de cerdas ou correntes
de ferro, repleto de pontas, remetendo ao sacrifício a que
alguém se sujeita voluntariamente. É a penitência que
se paga por estar vivo. Lembrado em sua contingência
de vida que está submetido a regras impeditivas de uma
liberdade plena, aparece o desejo de transcendência, a
ânsia pela libertação. O eu lírico suplica para se tornar
maleável, sensível, suave, humano:

Se eu fosse ao menos como o


456 LISBOA. Obras Completas I: poesia geral, p. 165-
166.
455
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
bronze
ressoante, ou como a estrela
infiel,
rompera as linhas do horizonte,
despedaçara-me em reflexos.

Flocos de espuma, tenras nuvens


descendo o rio, voando na alba,
dulçor aéreo dos dilúculos,
azul, fluidez, vago lunar,

levai-me fora de meus âmbitos,


amortecei-me com propícios
bálsamos, óleos e suspiros,
até a aparição da lágrima457.

A avidez pela transformação se elucida nessas três


últimas estrofes: o medo da morte ou da perda, a resistência
e as próprias limitações precisam ser trabalhados em um
processo árduo para que, ao final, adquirindo a ressonância
do bronze, o reflexo da estrela, a tenacidade da nuvem ou
da espuma, com fluidez e naturalidade, o eu poético esteja
preparado para encará-la.
Amortecido com bálsamos e óleos, pronto para a
aparição da morte, o eu lírico sugere uma preparação do
corpo para o sepultamento. Além disso, vale-se do apelo
fortemente auditivo e visual para nos imergir na cena
apresentada, na tentativa de recuperar a essência das
coisas, tirar do homem o peso do corpo, fazer com que a
matéria se desagregue até mais nada restar.

457 LISBOA. Obras Completas I: poesia geral, p. 166.


456
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Essa entrada no reino da leveza, que é a
possibilidade de transformação, contrasta com a dureza
das estrofes iniciais, cujos versos nos remetem à postura
de pedra diante da morte, aderindo o eu lírico à neutralidade
do mineral.
Quando adentramos nesse reino, o eu lírico pede
a suavidade em face da morte, os versos se enchem de
consoantes sonoras e nasais: tenras, nuvens, descendo,
alba, dulçor, dilúculos, azul, lunar, fluidez, âmbitos,
bálsamos, óleo, lágrima. Tratam-se de palavras concisas,
rigorosamente escolhidas, que incorporam elementos
numa expressão de sensibilidade poética.
As estrofes finais do poema atestam a importância
conferida à imagem e assinalam seu caráter alusivo,
sua capacidade de despertar os sentidos. A ideia da
imobilidade de estátua versus a ideia de movimento vem à
tona: no reino da leveza, há o emprego de signos fluidos e
etéreos, de imagens aeres e sinestésicas, tais como flocos
de espuma, tenras nuvens descendo o rio, voando na alba,
dulçor aéreo dos dilúculos (alvorada).
As imagens utilizadas intensificam os efeitos
provocados pela combinação de sensações. Partindo de
uma palavra, uma ideia, analogias e campos semânticos
que se desdobram, essa atmosfera respirada pelo eu lírico
demonstra seu desejo de extravasar-se, de libertar-se,
como se nota nos versos: Levai-me fora de meus âmbitos,
Romper linha do horizonte.

Flor enjaulada

457
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Se considerarmos uma vida marcada pela consciência
da transitoriedade, inúmeras contingências, inquietudes,
amarras, ansiedades e máscaras que cerceiam a liberdade
do ser, que limitam a existência humana, o poema Jaulas é
bastante representativo:

De uma para outra jaula.


Com farrapos ou plumas,
cerceando balbucios ou vascas,
é o berço minúscula
jaula.
A cela, a varanda, a casa,
o jardim, a cidade,
com seus itens e suas parlendas,
são enredos - de vime ou ferro-
de uma próspera
jaula.
O alto céu
disposto em toldo, tombando
sobre os flancos da terra,
é uma vistosa
jaula.
Com seus planetas e suas lunetas
assestadas.
Também é o cérebro: de si próprio
arquiteto e
jaula:
cego além dos relâmpagos458.

Observamos que o poema se constrói em torno


de elementos que figuram o sofrimento e o peso da vida
terrena, que sugerem limitações: a vida como prisão

458 LISBOA. Obras Completas I: poesia geral, p. 195-


196.
458
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e cerceamento das pequenas e grandes angústias -
balbucios ou vascas; a vida como uma jaula, enfocada com
suas mazelas. Desde o nascimento, o berço, minúscula
jaula, até a cela, a varanda, a casa, o jardim, a cidade, o
céu e o próprio cérebro.
Fica clara a percepção da impossibilidade de o ser
humano se libertar, já que as aparentes transformações
comuns a todos os indivíduos ao longo de sua existência
se resumem às mudanças “de uma para outra jaula”. A
referência ao cérebro como sendo também uma jaula
demonstra que as limitações humanas não são apenas
físicas: o ser humano é prisioneiro de si mesmo, de suas
ideias e pensamentos. O cérebro, então, é arquiteto e jaula
de si próprio, já que paradoxalmente, constrói e aprisiona
o ser humano: por meio do cérebro que nos edifica,
estabelecemos nosso próprio cárcere, o que configura
uma existência permeada pela angústia de viver.
Para o filósofo alemão Martin Heidegger, a angústia
é um fenômeno existencial da finitude humana; ela é tida
e como a disposição fundamental de nossa existência, é a
verdadeira possibilidade de virada da existência humana,
a possibilidade de o homem sair da inautenticidade, na
qual ele geralmente vive, e assumir a autenticidade: “Só
na angústia subsiste a possibilidade de uma abertura
privilegiada na medida em que ela singulariza. Essa
singularização retira o ser-aí de sua decadência, e lhe revela
a autenticidade e inautenticidade como possibilidades de
seu ser”459.

459 HEIDEGGER. Ser e Tempo, p. 255.


459
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Diante de tais reflexões, acreditamos que a postura
que o eu lírico dos referidos poemas assume diante da
inevitabilidade de sua finitude, apesar da angústia, mostra
capacidade de repensar sua existência e conhecer sua
verdade mais humana, ainda que a vida lhe impeça de
exercer plenamente sua liberdade. Se a vida é uma prisão,
a morte é libertação. A hora final, então, é vista como um
estado mais livre que eliminará as limitações da vida
presente, capaz de neutralizar e dissolver as tristezas
deste mundo.

Vida de mordaças

Além de dialogar com Jaulas, o texto Diante da Morte


estabelece também uma relação com o poema Perspectiva,
a respeito da imagem da morte como libertadora da
angústia de viver.
Neste poema, a vivência aparece baseada no
aguardo do porvir, daí o título “Perspectiva”. A vida é vista
como um longo exercício de paciência, em que o eu lírico
tece a rede da vida, fio a fio, dia a dia, na expectativa de
desvendar seu mistério, na esperança de esgotar o arcano
que é revelado com e na morte:

Exercício de paciência
nos esconsos.
Já se viu tamanho arcano
gota a gota!
Cegueira tece uma rede
que não acaba.
Muitas mãos, até que o tempo

460
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
amadureça, juntando
fio a outro fio.
Conquista de palmo a palmo
com cem anos
de lastro.
Sombra se desdobra
em sombra
a cada vencido
passo.
Passo vencido não conta
e exercício de paciência
não se esgota.
Das subterrâneas jazidas
suspira fundo
o mistério.
Volição por onde queira
à solapa na espessura
vai abrindo seus
túneis.
Vida de mordaças, férrea
vida de masmorras, bronzes.
Vida nas sagradas
fontes
para depois - o que vier460.

Vida, morte e poesia se fundem para comungar o


mistério. Persiste o silêncio de uma vida amordaçada, rico
em significações, alegrias e tristezas que escondem em
seu âmago desejos e frustrações, vividas intensamente
por meio da poesia entre a “dor recôndida e o riso leve”,
termo usado por Mário de Andrade ao tratar da forma de
expressão usada por sua amiga Henriqueta Lisboa.

460 LISBOA. Obras Completas I: poesia geral, p. 198-


199.
461
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A própria Henriqueta, em carta escrita a Helena
Antipoff, em 29 de novembro de 1973, enfatiza que “Será
a poesia capaz de transfigurar seres e cousas, até mesmo
de salvar o mundo [...] sob o domínio do materialismo, e
paralelamente, da angústia.”461.
Embora esse eu lírico se apresente angustiado,
a escolha rigorosa da palavra, a economia e contenção
verbal, bem como a depuração da linguagem por parte
da poeta mascaram, escamoteiam esse sentimento. A
linguagem não figura excessos dramáticos, nenhuma
concessão confidencia explicitamente esse ser em crise.
Essa contenção lírica, realizada de maneira depurativa
e transformadora é sugerida por Ítalo Calvino (1990) na
proposta sobre a leveza. Calvino enfatiza que o escritor
utiliza os próprios mecanismos da linguagem e cria tons
de leveza e peso. Em Henriqueta Lisboa, há inúmeros
elementos que representam figurações para esses valores.
Entretanto, o sujeito poético afirma ser esta vida
de mordaças. Mordaça é uma tira fina de pano, corda ou
qualquer outro material com que se ata a boca de uma
pessoa, impedindo-a de falar ou gritar. Por extensão de
sentido, pode-se interpretar a vida e a existência desse
sujeito permeadas pela repressão de ideias e opiniões de
teor divergente daquelas impostas por alguém ou algo. O
verso “vida de masmorras, bronzes”, enfatiza também esta
vida como um lugar subterrâneo que serve de cárcere.
Tais reflexões sobre a morte e a vida aparecem
cingidas por elementos representativos nos três poemas

461 LISBOA. Carta a Helena Antipoff, sp.


462
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
em estudo. A aparente serenidade e a consciência da
finitude trazem à tona um eu lírico angustiado em vida.
Desse modo, os poemas provocam nosso imaginário,
instigando-nos. Para Paschoal Motta,

Realizando uma dialética


funcionalmente lírica entre as coisas,
a vida e o sentir dela, a tensão entre
a vida e a morte, sendo-no-mundo,
Henriqueta Lisboa instaura uma
ideologia de Arte para o Homem, num
equilíbrio emocional e expressional
capaz de revelá-lo (o homem) de
uma maneira nova, em seu eterno e
irreversível destino.462

Essa revelação do sujeito em seu “eterno e


irreversível destino” demonstra uma concepção da morte
como um problema que se manifesta na própria existência,
o que coaduna com o pensamento heideggeriano, segundo
o qual somos “seres-para-a-morte’’. Heidegger afirma que
somente diante da morte é que a vida se elucida. Para
ele, o distanciamento da morte, por parte da sociedade,
é a anulação da subjetividade, fazendo o ser humano
mergulhar em uma existência inautêntica.
De modo sucinto, o Existencialismo, conforme os
pressupostos heideggerianos, versa sobre o sentido da
existência (apenas a existência humana) e sua relação com
a essência; a existência inautêntica (falsa) e a autêntica, a
morte, a moral, o tempo, Deus, dentre outros.
Conforme Marco Aurélio Werle, quanto ao conceito
462 MOTTA. Algumas opiniões sobre a poesia de
Henriqueta Lisboa, p. 562.
463
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de existência, Heidegger nos dá a seguinte definição: “A
palavra existência designa um modo de ser e, sem dúvida,
do ser daquele ente que está aberto para a abertura do ser,
na qual se situa, enquanto a sustenta”. (HEIDEGGER, apud
WERLE, 2003, p. 59). Werle acrescenta que, se partimos
da compreensão do Ser que define a existência, também
deve ser levado em conta que esta existência é, na maior
parte das vezes, existência inautêntica [uneigentlich], ou
seja, o homem no cotidiano se mantém numa situação
de encobrimento de seu ser, possui uma interpretação
errônea de sua própria existência, que se mantém para
ele velada.
Por se inquietar com a iminência da chegada da
“indesejada das gentes”, assim denominada a morte
por Manuel Bandeira, é que o ser humano conhece sua
verdade mais humana. Portanto, esse sujeito angustiado,
em crise, está em busca da existência autêntica, tomada
aqui no sentido heideggeriano.

Considerações finais

Neste estudo, elegemos os poemas Diante da Morte,


Jaulas e Perspectiva para ilustrar que vida e morte na
poesia henriquetiana imbricam-se de modo inexorável.
Ainda que os referidos textos tenham se construído em
torno de elementos que figuram o sofrimento e o peso da
vida terrena, caracterizando certo mal-estar do eu lírico, o
poder transformador da linguagem serve de artifício para
criar tons de leveza ao tratar do inevitável peso de existir.

464
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
É possível afirmar que o labor poético e estético
de Henriqueta Lisboa é alicerçado nos procedimentos
e nas formas escolhidas, nos ritmos, no enxugamento
dos textos, nas pinceladas poéticas de palavras, cores,
formas, sensações e imagens. Na poesia de Henriqueta
percebe-se a preocupação do sujeito poético em relação
à elaboração precisa da linguagem, registrada na maneira
de interpretar o mundo e as coisas. A poeta, de maneira
peculiar, apresenta o ato criador como um exercício e
comprometimento perante a vida e a arte, mediante a
efetivação de um pensamento capaz de (re)inventar
universos imaginários.
Estando vida e morte irremediavelmente atadas,
o eu lírico, em vida, pensa na morte e reflete sobre sua
própria existência. Apesar de certo mal estar e inquietação
frente a inevitabilidade da morte, posturas assumidas pelo
sujeito poético, é possível sair da inautenticidade e assumir
a autenticidade perante o estar-no-mundo.

Referências

CALVINO, Ítalo. Leveza. In: ______. Seis propostas para


o próximo milênio: lições americanas. Tradução de Ivo
Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 15-
41.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Márcia
de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1989.
LISBOA, Henriqueta. Carta a Drummond. In: DUARTE,
Constância Lima. Remate de males. Correspondência
de Carlos Drummond de Andrade e Henriqueta Lisboa.
Campinas: Departamento de Teoria Literária. IEL/

465
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
UNICAMP, n.23, 2003, p. 26.
LISBOA, Henriqueta. Obras Completas I: poesia geral.
São Paulo: Duas Cidades, 1985.
LISBOA, Henriqueta. Henriqueta Lisboa: unida aos homens
e a Deus pela poesia. [Entrevista concedida a Edla Van
Steen]. O Estado de São Paulo. São Paulo, 5 mai. 1984.
Caderno de Programas e Leituras. p. 4.
LISBOA, Henriqueta. [Carta a Helena Antipoff, escrita em
29 de novembro de 1973]. In: ACERVO HENRIQUETA
LISBOA – Acervo de Escritores Mineiros – UFMG.
MOTTA, Paschoal. [Algumas opiniões sobre a poesia
de Henriqueta Lisboa]. In: LISBOA, Henriqueta. Obras
Completas I – Poesia Geral. São Paulo: Livraria Duas
Cidades, 1985, p. 562.
WERLE, Marco Aurélio. Anguish, nothingness and death in
Heidegger. Trans/Form/Ação, Marília, v. 26, n. 1, p. 97-113,
2003.

466
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
EROS E THÂNATOS: O CORPO E SUAS
“CRUÉIS” EXIGÊNCIAS EM A VIA CRUCIS
DO CORPO DE CLARICE LISPECTOR

Patrícia Lopes da Silva

A leitura da obra de Clarice Lispector leva o pesquisador a


percorrer diversos caminhos, desafiadores e nauseantes,
na tentativa de desvendar os mistérios e a singularidade
estética da autora, cujos sentidos encontram-se nas
“brechas”, nas “sensações” do texto. Para o crítico Antonio
Candido, a escrita de Clarice produz uma realidade própria,
com inteligibilidade específica, não se esgotando apenas
no aspecto do mundo e do ser, mas criando um mundo
imaginário, apresentando uma estrutura narrativa com
novas técnicas de expressão, e, esteticamente, abrindo
novas regiões textuais.
Nos vários níveis entre narradores/ personagens
surgem seres conflituosos, questionadores das
verdades do mundo tidas como absolutas, procurando
o autoconhecimento, a verdade da alma. Compartilham
experiências, sensações, e se reconhecem nos momentos
de inquietação e angústia; tendo na escrita, a possibilidade
de transformação, o “estar vivo” em palavras, o “estar vivo”
através das pulsações do corpo.
A Via Crucis do Corpo, publicado em 1974, reúne

467
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
uma coletânea de treze contos e nota prévia da autora que
também será de grande valia para analisarmos o corpus
desta pesquisa. Trata-se de narrativas em que a trajetória
de vida ou de morte dos personagens e a dos leitores
começa pelas provocações, tendo como eixo o caminho
do corpo, narrado subversivamente. Segundo Vilma
Arêas a linguagem usada por Clarice, em A Via Crucis do
Corpo, é sem polimento e, algumas vezes, escandalosa,
uma mistura de humor negro e paródia. Assim, em outros
livros de Clarice, como em Laços de Família, as histórias
se movem em torno do ambiente familiar. É-nos oferecido
o cotidiano, fatos interessantes, comuns, simples com
descrição aparentemente banal, mas que se configuram
numa escrita de paradoxo, tanto no plano da língua
como no plano do “enredo”, extrapolando os sentidos
habituais da narrativa com um jogo vocabular, no qual “as
palavras” (que representam a realidade extralinguística)
transformam-se em “sentidos” ou “sentimentos”.
Para Sônia Roncador, a escrita derradeira de
Clarice Lispector, ou melhor, os textos produzidos após
1970, revela uma produção estética diferente da anterior,
com uma linguagem heterogênea, sem rebuscamento
na forma, um estilo “menos” artístico, deselegante, às
vezes coloquial, com temas como a pobreza existente no
mundo, a crueldade social, e ainda a inscrição de textos
circunstanciais da produção. Em A via crucis do corpo,
Roncador diz que há um encontro cômico, às vezes
absurdo, que não chega a construir um clímax e que não
culmina numa experiência de autoconhecimento.

468
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Nilze Maria Reguera ao analisar A via crucis
do corpo, tenta suscitar elementos que permitam uma
(re) avaliação sob a perspectiva de uma encenação da
escritura, considerando que houve uma simulação e
dissimulação, nos mostra outro modo de ler, invertendo
assim a visão cristalizada da recepção crítica negativa
do livro. Para Reguera, há um travestimento em que
Clarice fraqueja em relação às exigências de um mercado
consumidor, talvez pelo fato de que autores judeus que
trabalhavam na publicação, inclusive Lispector, foram
demitidos do Jornal do Brasil. Na verdade, Clarice
aperfeiçoa seu projeto literário problematizando a questão
da escrita intimista na qual se pressupõe uma literatura
da alma. Nesta pesquisa, pretende-se esclarecer que
as sensações da alma perpassam, obrigatoriamente,
pelo corpo configurando-o como elemento significativo e
produtor de subjetividade. Dessa forma, Clarice Lispector
“adapta-se” à moda consumista da época sem, contudo,
desviar-se de sua proposta estética.
Em 1970, Clarice Lispector já era uma autora
reconhecida pela crítica literária e se destacava no
cenário literário brasileiro. Passava por um momento de
instabilidade financeira, pois havia se separado do marido
e precisava se manter com seu trabalho de escritora e
tradutora.
Na “Explicação” de A Via Crucis do corpo, uma
espécie de prefácio ou nota prévia, a autora relata a
tarefa para a qual o livro é proposto: “Este livro é um
pouco triste porque eu descobri, como criança boba,

469
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
que este é um mundo-cão”463. Clarice tentou convencer o
leitor de que não teve a sua parcela de “culpa”, tentando
resistir à escrita desses textos, considerados por muitos
como pornográficos, o que destoava da ficção clariceana
produzida até então: “Só peço a Deus que ninguém me
encomende mais nada, porque, ao que parece, sou capaz
de revoltadamente obedecer”464.
Clarice Lispector recebeu uma ligação na sexta-
feira, do seu editor Álvares Pacheco, da editora Artenova,
para escrever sobre um assunto que ela mesma classificou
como perigoso. A princípio recusou o convite, mas enquanto
falava ao telefone “sentia nascer” a “inspiração” e rendeu-
se ao desafio de escrever por encomenda. Sábado,
começou a escrever e no domingo dia 12 de maio, dia das
mães, já estavam prontos três dos treze contos, são eles
“Miss Algrave”, “O Corpo” e “Via Crucis”, “O homem que
apareceu” e “Por enquanto” também foram escritos no
“mesmo domingo maldito”.
Na segunda-feira, dia 13 de maio, dia da libertação
dos escravos, e também considerada por Clarice como
sua própria libertação: em tom de denúncia, a escritora
se adapta à moda consumista da década de 70. O Brasil
perpassava por uma indústria cultural de massa, Silviano
Santiago em Nas malhas da letra, esclarece que “[…] o livro
na década de 70 foi movimentado e direcionado pelas leis
de mercado, sendo banalizado, semelhante à banalização
do corpo encontrado nas pornochanchadas”465.
463 LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 11.
464 LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 11.
465 SANTIAGO. Nas malhas da letra, p. 32.
470
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Apesar de os contos em A Via Crucis do Corpo
serem compostos por questões que são consideradas
tabus, em que os desejos sexuais pulsam a cada momento,
o corpo é um caminho a ser percorrido por cada indivíduo,
com o objetivo de suprir as sensações de desamparo
outra ora como celebração do prazer, não se admitindo
discussão sobre a conduta moral das personagens, mas
cada uma possui seu próprio código de honra, sem uma
visão reducionista. Beth Brait destaca que

a construção da personagem pode


ser tirada de uma vivência real ou
imaginária, dos sonhos, dos pesadelos
ou mesquinharias do cotidiano,
a materialidade desses seres só
pode ser atingida através do jogo da
linguagem que torne tangível a sua
presença [...] sejam elas encaradas
como pura construção linguística ou
espelho do ser humano466.

O contorno psicológico dos personagens é feito


através da ação, com um tom de aceno sensual, escapando
de qualquer tipo de cárcere captando através do corpo a
complexidade da alma humana. Segundo a autora, para
escrever precisava-se de liberdade; se parecesse uma
escrita indecente, promiscua ou erótica, essa classificação
iria depender do “julgamento moral” de cada leitor. O que
poderia ser narrado? Qual seria a trajetória possível dos
personagens? E o que seria um tema interessante? “Todas
as histórias deste livro são contundentes. E quem mais

466 BRAIT. A personagem, p. 22


471
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
sofreu fui eu mesma. Fiquei chocada com a realidade”467.
Supostamente, as histórias já existiam no plano
real, só faltava ficcionalizá-las. Clarice Tentou publicar
os contos sob o pseudônimo de Claudio Lemos, seriam
reveladas somente as iniciais “C.L” para que seus filhos
não lessem, pois teria vergonha, mas não foi aceito.
Segundo Reguera, o desfecho dos textos de A Via Crucis
do Corpo, embora disfóricos oferece sentidos variados;
fica sempre em aberto, confirmando o texto em processo,
no texto clariceano há momentos de ruptura e espaços
transitórios.
Nádia Batella Gotlib, ao analisar o conto “Amor”,
de Laços de Família, menciona que os contos de Clarice
Lispector “[…] alia um modo tradicional de narrar, com
começo, meio e fim (tal como a poética de Aristóteles)
e uma experiência de caráter moderno, que representa
um estado de crise”468, com vários significados. Em A
via crucis do corpo acontece o mesmo fato, pois há
presença de variados recursos na sua construção, tanto
tradicionais quanto modernos. Em quase todos os contos
o corpo é o fio condutor da narrativa, a autora expõe
uma visão contraditória do corpo, como um elemento
desestabilizador, apresentado de forma dessemelhante,
ligado aos sentimentos de desespero, de desejo, de poder,
de vingança. Assim, acreditamos que A Via Crucis do
Corpo trata-se de uma tentativa de recriação do homem
a partir de si mesmo. O corpo não surge como um mero

467 LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 10.


468 GOTLIB. Teoria do conto, p. 11.
472
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
signo, abstração de sua realidade concreta, mas como
presença viva, é produtor de significação, manifestação
da subjetividade e confronto entre o sujeito e o outro,
tentando estabelecer uma auto compreensão (e salvação)
do Eu/corpo a partir do Outro/corpo, do não-Eu/corpo.
Entretanto, esse não-Eu/corpo é criatura ou substância
oriunda do Eu/corpo. Isso nos permite dizer seguramente
que há uma duplicação do Eu (Self), segundo a perspectiva
psicanalítica, pela qual Freud propõe que

O tema do ‘duplo’ foi abordado de forma


muito completa por Otto Rank (1914).
Ele penetrou nas ligações que o ‘duplo’
tem com reflexos em espelhos, com
sombras, com espírito de guardiões,
com a crença da alma e com o medo
da morte; mas também lança um raio
de luz sobre a surpreendente evolução
da ideia. Originalmente, o ‘duplo’ era
uma segurança contra a destruição
do ego, uma ‘enérgica negação do
poder da morte’ como afirma Rank;
e, provavelmente, a alma ‘imortal’
foi o primeiro duplo do corpo. Essa
invenção do duplicar como defesa
contra a extinção tem sua contraparte
na linguagem dos sonhos, que gosta
de representar a castração pela
duplicação ou multiplicação de um
símbolo genital469.

Nesse sentido, fica evidente que essa duplicação


do Eu na obra representa não só uma interação com o
Outro/corpo, mas uma dependência psicológica, vital dele.

469 FREUD. Obras psicológicas completas, p. 293.


473
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
As personagens Miss Algrave, Cidinha, Cândida Raposo,
Maria Angélica, Carla Luísa, por exemplo, obviamente, não
representam apenas o gênero feminino, mas simbolizam
a irrupção do desejo recalcado, a evasão para o onírico
parece ser uma maneira de superar uma realidade
insatisfeita e imposta pela sociedade.
Acreditamos que é perfeitamente aplicável a
concepção freudiana no que diz respeito ao corpo e à
sexualidade para analisarmos nosso objeto de estudo,
apesar de não encontrarmos um conceito específico
sobre o corpo na psicanálise, como afirma Paulo Roberto
Ceccarelli, mas é do corpo que brotam os desejos e
conflitos pulsionais. Corpo e literatura estão intimamente
ligados como unidade potenciadora. A própria literatura
pode ser um corpo, o texto e a escrita podem ser um corpo.
Ruth Silviano Brandão menciona que “O texto, lugar onde
o corpo se inscreve, é objeto da literatura e da psicanálise.
A psicanálise fez a literatura pensar e repensar-se como
letra, linguagem que tem seu porto em si mesma”470. Para
Freud, há o corpo biológico, onde são distribuídos os
órgãos e sistemas, e um corpo psicanalítico, onde está
presente o inconsciente.
Para a psicanalista Maria Helena Fernandes,
ao pensarmos o corpo na teoria freudiana, há duas
lógicas diferentes, que serão a da representação e a do
transbordamento. No que diz respeito à representação, o
corpo passaria da anatomia, do biológico para um corpo
atravessado pela linguagem. Na lógica do transbordamento,

470 BRANDÃO. Literatura e psicanálise, p. 30.


474
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
o corpo será problematizado, pois as psiconeuroses e
as neuroses abrem espaço para pensarmos o corpo
atravessado pelo psíquico, ou seja, um lugar de inscrição
do psíquico e somático, onde está articulado o desejo
inconsciente.
No conto “Miss Algrave”, o corpo é o meio de
descoberta para a vida pulsante. Há uma estreita relação
entre o corpo e carne humana, sob um tom erotizado,
sendo assim, buscaremos também a contribuição do
francês Georges Bataille, para esse autor “o erotismo está
na consciência do homem, o que faz com que ele seja
um ser em questão”471, não é caracterizado somente pelo
êxtase sexual, mas pela compreensão do ser, como uma
experiência interior.
Ruth Algrave manifesta um desejo de repulsão a
sua sexualidade, vivia para o trabalho, fechava os olhos
para não ver os casais se beijarem na praça, [...] “nem
tinha televisão. Por dois motivos: faltava-lhe dinheiro e
não queria ficar vendo as imoralidades que apareciam na
tela”472, para não ver seu corpo nu sempre se olhava no
espelho de calcinha e sutiã, para ela até as crianças eram
imorais. Foi então que aconteceu.
Sentiu que pela janela entrava uma coisa que não
era um pombo. Teve medo. Falou bem alto:

— Quem é?
E a resposta veio em forma de
vento:

471 BATAILLE. O erotismo, p. 46.


472 LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 14.
475
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
— Eu sou um eu.
— Quem é você? (sic) perguntou
trêmula.
— Vim de Saturno para amar
você.
— Mas eu não estou vendo
ninguém! (sic) gritou.
— O que importa é que você está
me sentindo.
E sentia-o mesmo. Teve um
frisson eletrônico.473

Há uma relação sutil com a temática do erotismo,


pois, no conto, Miss Algrave vai deixando seu corpo ser
desfrutado pelo Ixtlan, usufruindo o prazer e liberando
seus desejos e fantasias sexuais. Até então, era uma
mulher conservadora, não lhe cabia vivenciar ações
eróticas, deixou-se dominar pela parte “masculina”, ativa.
“Ela nunca tinha sentido o que sentiu. Era bom demais”474.
Suavemente, vai-se fazendo a fusão dos corpos para a
completude, alcançando o sentido da existência, por meio
do desconhecido, “como era bom viver”475. O leitor vai
adentrando na cena erótica, que é materializada através
da celebração ao prazer:

Começou a suspirar e disse para


Ixtlan:
— Eu te amo, meu amor!(sic) meu
grande amor!
E — (sic) é, sim. Aconteceu. Ela

473 LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 16.


474 LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 16.
475 LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 16.
476
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
queria que não acabasse nunca.
Como era bom, meu Deus. Tinha
vontade de mais, mais e mais.
Ela pensava: aceitai-me! Ou
então: “Eu me vos oferto.” Era o
domínio do “aqui e agora”476.

Desnudada docemente, deu um grito de liberdade


que era silenciado pela repressão moral. Segundo Georges
Bataille, [...] “a nudez se opõe ao estado fechado, quer
dizer, ao estado de existência descontínua. É um estado
de comunicação que revela a busca de uma continuidade
possível do ser além do retrair-se em si mesmo”477, ou seja,
a nudez revela o desígnio do corpo para a continuidade e
concretização da experiência erótica, deixando com que a
construção social da conduta pecaminosa não seja mais
sua premissa, aflorando todos os desejos, frustrações,
alegrias e todas as perturbações incomodadas e impostas
pelo código, pela lei. A partir do encontro com Ixtlan,
Miss Algrave desencadeia um processo que culmina na
elaboração de novos conceitos sobre o comportamento
humano.
Já no conto “A Língua do P”, Maria Aparecida uma
professora de inglês, resolve viajar para os Estados Unidos
com o intuito de melhorar seus conhecimentos linguísticos.
Como morava em Minas Gerais, pegou primeiro um ônibus
até o Rio de Janeiro para depois ir para o Exterior. Tudo
estava tranquilo até a chegada de dois homens no vagão
em que ela estava. A moça sente uma inquietação e um
476 LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 16.
477 BATAILLE. O erotismo, p, 29.
477
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
mal-estar. Os dois homens começam a conversar em uma
língua que, a princípio, Maria aparecida não entende. De
repente percebeu que os homens falavam a Língua do P,
linguagem usada por crianças para confundir os adultos,
e que ela seria a próxima vítima a ser estuprada, poderia
até morrer. Então resolve se passar por uma prostituta,
apesar de não se conhecer, pois era virgem, desconhecida
de si mesma. Abre a blusa, colocam os seios a mostra,
se maquia exageradamente e se transforma em “outra”
mulher – ela mesma mirada, projetada.
Nos dois contos expostos, percebesse-se que há a
duplicação da personalidade, pois tanto Miss Algrave quanto
Cidinha deixa aflorar a mulher que estava presente no seu
inconsciente, a mulher-puta. Na psicanálise freudiana, o
inconsciente é lugar de desejos reprimidos, meio pelo qual
se prende os comportamentos aparentemente irracionais.
Consequentemente, o sujeito torna-se conflituoso, em
dificuldade de se totalizar. Lacan, ao ampliar os conceitos
freudianos sobre o inconsciente, impõe a linguagem como
um sistema de significação ancorado na identidade. Num
primeiro momento, constroem-se os limites do Eu, que é
refletido pela presença do Outro. Assim, tenta-se buscar a
identificação através de processos simbólicos ou pela forma
como se é visto pelo Outro (espelhamento), adotando uma
identidade a partir do exterior ao Eu. O tema do recalque
e da duplicação do feminino também pode ser percebido
no conto da mulher casada que, à noite, dança em uma
boate, vivendo uma vida dupla, talvez pela insatisfação na
vida conjugal, afetiva, como analisaremos na escrita da

478
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
dissertação. Temos, portanto, pelo menos três narrativas
que possibilitam uma abordagem psicanalítica sob o viés
do recalque e da duplicação.
Já no conto O Corpo, o “corpo” é um “motivo” de
traição. Xavier tinha duas esposas, Carmem e Beatriz,
trabalhava para mantê-las e levavam uma vida tranquila,
pois nenhuma das duas mulheres tinha ciúmes uma da
outra. “Às vezes as duas se deitavam na cama. Longo
era o dia. E, apesar de não serem homossexuais, se
excitavam uma à outra e faziam amor. Amor triste”478. A
vida pacífica acabou quando elas descobriram que Xavier
tinha uma amante, começaram a desprezá-lo e ficaram
cada vez mais amigas e ao “pensar na vida perdida” e “na
morte”, nasceu o desejo de vingança. Enquanto Xavier
dormia, as duas mulheres foram à cozinha pegaram dois
“facões amolados” de “aço polido” e entraram no quarto
matando-o. E agora?

Agora tinham que se desfazer do


corpo. O corpo era grande. O corpo
pesava [...]. Enquanto o carregavam,
gemiam de cansaço e de dor. Beatriz
chorava. Puseram o grande corpo
dentro da cova, cobriram-na com a
terra úmida e cheirosa do jardim, terra
de bom plantio479.

O corpo descrito pelo narrador não é um corpo


biológico, mas um corpo constituído por conflitos, a dor da
perda misturado com um sentimento de culpa, frustração.

478 LISPECTOR, 1998, p. 23.


479 LISPECTOR. A via crucis do corpo, p, 24-25
479
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Carmem e Beatriz carregam o corpo com profunda tristeza,
dor de terem sido traídas, estavam desiludidas. A harmonia
em que viviam foi deixada para trás, restaram somente as
duas mulheres. As duas mulheres tentam através da morte
a dissipação, enterrar o registro doloroso de amor e ódio,
sem sucesso, pois a partir de agora teriam que conviver
com a ausência do corpo de Xavier.
O corte entre os corpos foi feito através da morte,
mas vida e morte se entrecruzaram, corpo físico já não
existia mais, entretanto a morte não configurou o fim e
sim um começo de uma ausência/ presença de Xavier.
O desfecho fúnebre inaugura uma nova fase, não menos
amargurada. Os dias foram passando e as duas mulheres
começaram a sentir tristeza quando anoitecia. “Não tinham
mais gosto de cozinhar”480. Para Georges Bataille (2004)
a morte possui duplo sentido: por um lado o horror não
afastado, ligado ao apego que a vida inspira, por outro, um
elemento solene, ao mesmo tempo, aterrador, fascina-nos
e provoca uma perturbação soberana. Carmem e Beatriz
plantaram mudas de rosas vermelhas no túmulo de Xavier,
ao amanhecer, o jardim orvalhado celebra a benção ao
assassinato.
O corpo que transita é a chave para a subjetivação
e descoberta interior, levando-as a descrença em si e à
consciência de se viver, trazendo à tona a dor dilacerante
e o peso existencial do estar-no-mundo, não estar num
ponto fixo. O corpo solitário e desejante também é assunto
do conto “Ruído de passos”, no qual uma mulher de 81

480 LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 25.


480
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
anos ainda lida com o conflituoso desejo de prazer, na
velhice. De forma sintética, condensada, mas não menos
densa e reflexiva, o narrador nos apresenta D. Cândida
Raposo, a qual vive sozinha, viúva e tendo perdido um filho
durante a Segunda Guerra. Símbolos literários excessivos
aparecem no conto em referência à sexualidade latente
e pulsante dessa mulher: o corpo envelhecido, o médico
ginecologista, a solidão. Andrea Cristina Martins Pereira ao
discutir as relações entre a palavra e a imagem no artigo
“Ruídos de passos: a palavra e a imagem” no referido conto
atenta para o fato de que a personagem construída por
Clarice, ao mesmo tempo em que se sentia constrangida
pela sua libido queria cultivá-la.
Trata-se, portanto, de postulados sobre o homem,
refletindo uma sociedade em “crise” representado na
dialética humana, o corpo interage através de máscara e
espelho, tentando revelar o real e as angústias do sujeito
contemporâneo.

Referências

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São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Cláudia
Fares. São Paulo: Arx, 2004.
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BRANDÃO, Ruth Silviano. Literatura e psicanálise. Porto
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FERNANDES, Maria Helena. Entre a alteridade e a
ausência: o corpo em Freud e sua função na escuta do
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outro em psicanálise. Goiânia: Dimensão, 2006. Disponível
em <http://xa.yimg.com/kq/groups/22703089/1978112449/
name/Jornal_Simp%C3%B3sio_MH_Fernades.pdf.>
Acesso em 08 junho 2012.
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sobre psicanálise e outros trabalhos. In: ______. Obras
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GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 11 ed. São Paulo:
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LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
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REGUERA, Nilze Maria de Azeredo. Clarice Lispector e
a encenação da escritura em A via crucis do corpo. São
Paulo: Editora UNESP, 2006.
RONCADOR, Sonia. Poéticas do empobrecimento:

482
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
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Annablume, 2002.
SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro:
Rocco, 2002.

483
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
EMOÇÕES E A PERVERSIDADE
DO BARÃO BELFORT: DISCURSO
E DECURSOS DO SUJEITO NA
MODERNIDADE

Bruno Oliveira Tardin

A priori, antes de se compreender esta personagem e o


que ela representa culturalmente no discurso literário de
Emoções, há que se averiguar a construção do conto a partir
de uma literatura decadente da qual foram grandes arautos
Oscar Wilde e Charles Baudelaire, dentre outros. É neste
espaço que se observa a manifestação da degeneração
e da perversidade de uma Cultura mantenedora de um
intrincado jogo de bovarismo, alimentando a aparência
moderna e esclarecida da cidade sem, contudo, privar-se
de gozar de prazeres os mais excessivos, o que se dá
através de um discurso despojado e elegante, no qual
morbidez e cinismo se mesclam indissociavelmente.
Como se verá, o Barão André Belfort não se
limita a um simples aglomerado de costumes e fantasias
de um momento pretérito da história, resultado de um
espírito criativo inconsequente ou mesmo da observação
altaneira do espaço urbano moderno. O que aqui se
busca compreender, afinal, é o momento em que luz e
treva se eclipsam na constituição psicológica do sujeito,

484
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
o limiar entre a lei e o prazer, a lucidez e o delírio de um
retrato, ainda que fosco, daquilo que o sujeito moderno
na Belle Époque carioca, veiculado à Cultura vigente do
capitalismo aburguesado e subjugado aos seus ditames,
poderia ainda se tornar pelo seu devir (segundo a acepção
nietzschiana do termo).
Tal sujeito, que se encontra sob as influências
castradoras da Cultura burguesa moderna, entrega-se
à busca compulsória e fatal por sua natureza libertina e
totalitária, isolando-se e desafiando os ditames da própria
pulsão erótica que o orienta, enquanto emissário dos
impulsos destrutivos que o regem. E, contudo, um “tipo”
como este traz à baila aspectos tanto do espaço labiríntico
da cidade que o cerca no cenário de modernidade, quanto
da problematização da própria vida e do sujeito, do poder
opressor da Cultura (constantemente associada a uma
autoridade de cunho paternal) e da rejeição adotada por
aqueles que optam pelo “avesso” da Lei e da Ordem,
habitando e validando os espaços umbrais presentes na
cidade moderna. Portanto, para melhor compreender o
tipo perverso no qual se encerra a figura do Barão André
Belfort, é válido um estudo cauteloso deste fenômeno da
perversão do ego, associado ao intervalo histórico que
compreende o espírito decadente da Belle Époque carioca
e do clima de bovarismo teatral que imperou durante a
primeira década do século XX no Rio de Janeiro, tornando
a capital na famigerada “frívola city” de João do Rio.
Esta vasta gama de experiências do próprio ego
revela que o sujeito perverso guia-se a partir de uma

485
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
dinamicidade e capacidade agregadora notáveis, posto
manifestarem-se em consonância com uma série de
pulsões (quase tão naturais quanto os próprios instintos)
íntimas à constituição psíquica do ego, que, graças ao
efeito castrador da Cultura sobre suas paixões, não
vê outra saída senão a perversão das mesmas. Tais
estruturas, desencadeadas a partir de pulsões sufocadas,
correspondem à realização do desejo enquanto uma
correção perversa da realidade insatisfatória ao sujeito,
que se permite ultrapassar as limitações impostas pela
Cultura moderna ao exigir obediência à lei comunitária –
mesmo que essa própria Cultura forneça os espaços e
circunstâncias nos quais o prazer possa ser alcançado de
maneira perversa.
Desta forma, este sujeito encontra-se, enfim,
apto a conquistar o que lhe desperta o desejo, obtendo
o reconhecimento e admiração de seus iguais além de
também despertar o desejo através de seus afetos – objetivo
ao qual o Barão Belfort irá entregar-se, apaixonadamente,
no conto Emoções. É o trabalho do sujeito enunciador de
um discurso, a partir de suas pulsões e devaneios que de
outra forma o constrangeriam se trazidos à tona – discurso
este que, portanto faz-se disfarçado e sublimado no objeto
artístico que lhe permite, ao mesmo tempo, a expressão
sem o temor de represálias, além de fortalecer o senso de
alteridade que une este sujeito aos seus pares.
Desta forma, com o amparo da teoria psicanalítica
freudiana, é possível notar que o sujeito criativo compartilha,
com os demais impulsos de sua constituição psíquica, o

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
processo de criação de um dispositivo que lhe irá sublimar
as pulsões reprimidas pelo viés da fantasia erigida através
de uma transgressão metafórica, ao mesmo tempo em
que inserida num universo de valores defendidos pela
Cultura. Quando Freud sugestiona a procura, no ludismo
infantil, dos traços formadores desse impulso criador no
adulto, é notável a necessidade do sujeito de experimentar
algo além do lúdico. Trata-se da elaboração de um desejo
que lhe é, até certo ponto, desconhecido e inescrutável, o
que é uma marca notável da excepcionalidade do sujeito
diante do objeto de seu prazer: “A antítese de brincar
não é o que é sério, é o que é real” (FREUD, 1980, 149).
Trata-se aqui da construção de um discurso – ou mesmo
de decursos – do sujeito na modernidade, concebido pela
representação do desejo que insiste em ser atendido,
ainda que perversamente, por seu ego, e cuja abdicação
torna-se lhe deveras penosa justamente por tratar-se de
uma satisfação já experimentada, ainda que na tenra
idade. Como o próprio Freud afirmava, não há a renúncia
do objeto de desejo: apenas a troca por algum outro,
pervertido em uma fonte de prazer possível ao sujeito sob
o jugo da Cultura, através da formação de um substituto.
Já em se tratando de Emoções, segundo conto
da coletânea Dentro da noite, escrita por João do Rio
e publicada pela Casa Garnier em 1911, destaca-se
a presença do ilustre “velho Barão Belfort”, elemento
simbólico da flânerie e do dandismo da Belle Époque
carioca, do cinismo cavalheiresco e da elegância leviana
que irão marcar não apenas os maneirismos, mas o próprio

487
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
discurso desta singular e perversa sociedade. Belfort,
presente apenas enquanto personagem perversora do
discurso, possui a verve e a carisma de se fazer uma figura
central na narrativa de Emoções, sua presença libertina e
iniciatória no universo da perversão e do vício influenciando
perniciosamente as personagens de Oswaldo e Praxedes,
este último conhecido pela alcunha “O Chinês”.
Logo ao início do conto se observa a primeira nota
de perversidade no discurso do Barão, ao revelar ao seu
interlocutor (o narrador anônimo do conto) que, mesmo
perdendo a partida de cartas que jogava com Oswaldo, não
poderia deixar de apreciar um sujeito singular como aquele,
“que ainda tem emoções”. O inominado interlocutor então
observa que os olhares do Barão “seguiam, frios e argutos,
o jogo do bom Oswaldo”, sorrindo “um sorriso mau, entre
desconfiado e satisfeito” (RIO, 1978, p. 15). A fala talvez
desperte estranhamento justamente por deixar antever
algo de inesperado na figura do Barão: por apreciar o rival,
mesmo em face à derrota no jogo, Belfort confessa também
apreciar o fato de Oswaldo ainda ter emoções, o que dá a
pista da natureza de sua própria perversão – espécie de
nevralgia do voyeur, direcionada às emoções alheias. A
respeito do jogo de azar, a grande linha de força que irá
orientar o discurso narrativo do conto – e a perversão que
figura expressivamente em Emoções – Anatole France (in
BENJAMIN, 1989, p. 249) afirma que a “atração do perigo
(do jogo) é subjacente a todas as grandes paixões. Não
há volúpia sem vertigem. O prazer mesclado ao medo
embriaga”, e justamente o caráter vertiginoso do jogo dá-

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
se porque “suas razões não são absolutamente as nossas
razões”, fazendo-se assim o objeto de desejo ao sujeito
“mudo, cego e surdo. Pode tudo. É um deus”.
Retomando a narrativa do conto, Belfort revela
que “o homem é um animal que gosta” – e caracteriza-se
enquanto um connaisseur das emoções, particularmente
as alheias: não um “bisbilhoteiro das taras do próximo”,
mas “gozador das grandes emoções de em torno”. Para
o Barão, “ver sentir, forçar as paixões, os delírios, os
paroxismos sentimentais dos outros é a mais delicada
das observações e a mais fina emoção” (RIO, 1978, p.
17), e estabelece nesta fala a sua função de voyeur do
prazer alheio e gozador das emoções daí advindas, o que
o constitui enquanto “ser horrível e macabro”, por suas
próprias palavras, “mas delicado”: Belfort não se entrega
às simples perversões da observação de comportamentos
impróprios à Cultura burguesa moderna; alimenta-se,
antes, de emoções mais refinadas, produzidas em seus
objetos pela exploração sucessiva e compulsória das
perversões por si descobertas em outrem, permitindo e
gozando a déviation dos mais incautos desejos em seus
objetos.
Uma vez sugerida esta sua natureza no limiar entre
o grotesco e o sublime, o Barão irá narrar a história do
prazer conquistado no explorar o vício do jogo – e o contar
esta própria história rende-lhe prazer, posto que aí também
possa gozar os efeitos de seu discurso por intermédio de
seu ouvinte anônimo, incitando nele emoções as mais
intensas. A partir deste ponto é introduzida à trama a

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
personagem de Praxedes, tal como o descreve o Barão:
“Não tinha um vício, nunca tivera um vício, era um chinês
espantoso, sem dragões e sem vícios!”. Quando Belfort
percebe tratar-se de um sujeito “legislativamente moral”,
observa-se o seu interesse perverso pelo Chinês frente
àquela sociedade, burguesa e bovarista, na capital carioca
em plena Belle Époque.
O vício de Praxedes – ou antes, a válvula que
se abrirá às suas perversões retraídas frente a uma
Cultura burguesa moderna – será antevisto em casa do
Barão, durante um jantar no qual os homens jogavam e
Clotilde (a esposa do Chinês) cantava, “com a voz triste,
a ária do suicídio da detestável Gioconda”, em curioso
adiantamento ao desfecho da trama. Belfort descreve,
ao tomar das cartas, que o Chinês “olhou-as indiferente,
mas as minhas palavras ouvia-as desvanecedoramente.
Jogamos a primeira partida. Os seus olhos começaram a
luzir. Jogamos outra” (Idem, p. 18). A partir deste ponto
rebenta em cheio a virtuose da perversão, “a paixão
voraz, que corrói, escorcha, rebenta” (Idem, p. 19), para
usar as palavras de Belfort. Para Benjamin, este tipo de
sujeito representa um mecanismo de perversão buscado
pelos jogadores em geral, burgueses que, inseridos no
universo dos jogos de azar, comportam-se “de tal forma
que, mesmo em sua esfera pessoal, não importando
quão apaixonados eles possam ser, não podem atuar
senão automaticamente” (BENJAMIN, 1989, p. 128).
Testemunha-se o inabalável poder de sedução e aliciação
de Belfort, que em uma única noite encontra o ponto de

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
impacto mais volúvel na constituição psicológica de seu
afeto (Praxedes, o Chinês) e o introduz na perversão que
o irá condenar à maior das fatalidades.
Dando continuidade ao pequeno experimento
social que realiza, Belfort deixa-se estar ao lado do
Chinês, “só para não perder algumas horas o interesse
desse espetáculo”. O Barão revela que a personagem não
abandonava a mesa de jogo, deixando-se vampirizar pela
permissividade daquele espaço através da encenação
social de aceitação e camaradagem, posto que “a gente
do clube, vendo-o ganhar, ganhar mesmo uma fortuna, já
o tratava de dom Praxedes” – o próprio Barão testemunha
de sua fortuna e sua procedente ruína que, como o era
de se esperar, se fez breve: “Ao cabo de uma semana,
entretanto, a chance desandou” (RIO, 1978, p. 18).
Belfort então informa ao seu anônimo interlocutor
de um longo intervalo de tempo, após o qual se reencontra
com o Chinês “numa batota da Rua da Ajuda, com o fato
enrugado e a gravata de lado”, já totalmente dominado
pela paixão do jogo. Este pede ao Barão algum dinheiro,
alegando estar “cansado de peruar”, necessitado de sentir
e gozar o prazer vertiginoso da mesa, e “arrumar tudo no
00”. E então Belfort, após ceder à quantia suplicada, dá o
seu aval da perjura alheia: “Compreendi então a descabida
vertigem daquela queda” (Idem, p. 20). É, portanto no jogo,
segundo Benjamin (1989, p. 244), que se pode observar
o advento de uma “superstição” ligada ao destino e à
sorte do sujeito, que perverte o seu prazer na experiência
sadomasoquista que apenas a mesa de jogo pode propor,

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de forma tão elegante e em doses imperiosamente
homeopáticas. Para Belfort, é “a alucinação”: o Barão
observa, ansioso, o desvelar da história do Chinês e de
seu vício como um espectador num teatro, “como quem
espera o final de uma tragédia, porque tinha a certeza do
paroxismo daquele vício” (RIO, 1978, p. 22) – o que de fato
ocorre mediante o suicídio brutal e cruento de Praxedes,
no mais profundo desespero, rebentando o crânio pelas
quinas do cômodo no qual se encontrara com a esposa
pela última vez.
Belfort, após ceder alguma atenção à viúva, busca
regalar-se com a visão do defunto, “com a cabeça fendida
e os lábios coagulados de sangue roxo”. Mas o que lhe
desperta a atenção no cadáver de Praxedes foi “o olhar
vítreo, a mão recurva” – uma pose que, segundo o próprio
Barão, deixava-o como a “acompanhar o mal a que o
impelira a sua bola de aço”. Praxedes jogou com a própria
vida e encontrou-se em severos débitos, ao passo que
Belfort vive para se refestelar naquela pequena tragédia
e passar a história adiante. Ao final do conto, o Barão
confessa uma vez mais a satisfação de seus prazeres
pela perversão do voyeur, através das emoções alheias,
projetando seu próprio ego num intrincado e singular
jogo de espelhamento e alteridade – e faz esta confissão
através de seu diálogo com o desconhecido interlocutor,
como que metonimicamente, “mirando-se no alto espelho
do vestiário” (RIO, 1978, p. 23).
A tensão construída ao longo do conto revela
o profundo clima de miséria e abandono que havia se

492
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
instaurado sobre o casal Clotilde e Praxedes, culminando
no desfecho simbolicamente sugerido pela música tocada
naquele distante jantar em que Belfort lançara a semente
do vício ao Chinês. Culmina então o prazer perverso
do Barão, pois o tom trágico que traz a história ao seu
desfecho é recebido com o frenesi prazenteiro que Belfort
revela sentir, eximindo-se de qualquer culpa para com
aquele fatal evento ao afirmar que o Chinês “é o único
culpado por sua sina” – quando o que se percebe no conto
claramente sugere um assassínio, ainda que indeliberado,
cuja condução se dá magistralmente pelas sutilezas e a
finesse do próprio Barão.
Disto entende-se que o sujeito encontraria
a realização plena de suas pulsões através de uma
vivência regrada pela perversão, dominada pelo caos
e engendradora da ruína, condensada em Emoções na
permissividade da mesa de jogo enquanto ambiente lícito
frente à Cultura vigente. O incomum desta fenomenologia
da perversidade atesta para a marginalidade e o bovarismo
latentes no Barão Belfort e à sociedade que representa
metonimicamente, na qual os processos de obtenção
do prazer pervertem-se como em operações de câmbio
– afinal, é Belfort quem interpreta com maestria o papel
perversor do sujeito moderno, mefistofelicamente lançando
mão dos vícios alheios para perverter, de forma notável, a
narrativa do conto e, enfim, alcançar o próprio gozo.

493
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Bibliografia consultada

BARBOSA, João Alexandre. A leitura do intervalo. São


Paulo: Iluminuras, 1990.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge
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FREUD, Sigmund. O ego e o ID e outros trabalhos. In:
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MANTA, Inaldo de Lira Neves. A Arte e a Neurose de João
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SECCO, Carmen Lúcia Tindó. Morte e prazer em João do
Rio. Rio de Janeiro: Francisco Alves: Instituto Estadual do
Livro, 1978.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões
sociais e criação cultural na Primeira República. 3. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1989.
TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Tradução de
Elia Ferreira Edel. Petrópolis: Vozes, 1994.

494
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
VENEU, Marcos Guedes. O flâneur e a vertigem: metrópole
e subjetividade na obra de João do Rio. Revista de estudos
históricos, Rio de Janeiro, vol. 3, n. 6, p. 229-243, 1990.

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
HISTÓRIA E LITERATURA EM NOVAS
FORMAS: CABEZA DE VACA, O
ENTRECRUZAR DE CULTURAS

Márcia de Fátima Xavier

As três últimas décadas do século XX foram marcadas por


um crescente interesse pela temática histórica. Verifica-se,
nesse momento, um grande volume de romances que se
propõem a reler a história, principalmente a da Conquista
e posterior colonização da América.
Mediados por uma reescrita anacrônica, irônica
ou paródica, quando não irreverente e grotesca, os novos
códigos estéticos do romance histórico contemporâneo
questionam crenças e valores estabelecidos, ainda que nem
sempre tenda à dessacralização da História oficial. O que
move esse romance é o desejo de reinterpretar o passado
com os olhos livres das amarras conceituais criadas pela
modernidade europeia no século XIX. No lugar do tempo
cronológico, trabalha-se com a simultaneidade temporal,
com o tempo circular, o mítico ou a mescla de várias
concepções do tempo. A enunciação é problematizada,
com o intuito de se relativizar verdades tidas como
universais e absolutas. Trata-se de uma narrativa que se
configura como uma mescla de História e ficção.
Em El largo atardecer del caminante (1992), o

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
escritor argentino Abel Posse faz uma releitura da crônica de
viagens Naufrágios (1542) do conquistador espanhol Álvar
Núñez Cabeza de Vaca. Publicado em 1542, em Zamora,
e, em 1555, em Valladolid, Naufrágios é composto de 38
breves capítulos em que Cabeza de Vaca, utilizando-se
da primeira pessoa do plural, faz um apanhado do que ele
apresenta como um testemunho do que teria sofrido, visto,
conhecido e feito na América. Cabeza de Vaca descreve
suas aventuras e as de seus três companheiros (Dorantes,
Castillo e Estevão), supostamente vividas na América. O
espanhol relata três desafortunados naufrágios sofridos
pela tripulação, seguidos de uma série de dificuldades,
desafios e encontros com o imprevisível (tempestades,
doenças, ameaça do inimigo (índios arqueiros), fome, sede,
frio, animais desconhecidos, sol, chuva, etc.). Utilizando a
técnica da autobiografia revisada, a personagem Cabeza
de Vaca, mediante flashbacks, relata as aventuras que
viveu na América entre os anos de 1527 e 1537, alternando-
os com momentos do presente, na enunciação fictícia, na
Sevilha de 1557.
O narrador protagonista de El largo atardecer
del caminante relata o processo de construção de sua
nova autobiografia, desde quando recebeu de uma
jovem bibliotecária (Lucinda) uma resma de papel até o
momento que encerra a obra e decide guardá-la em uma
das estantes de uma biblioteca espanhola, para que não
se perdesse no esquecimento.
Ao presentear o velho conquistador com uma
resma de papel, a jovem Lucinda oferece a possibilidade

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de viver novamente e escrever um relato mais convincente
que o anterior. O depósito dessa nova versão de sua
história em uma biblioteca atua como o “passaporte” do
conquistador para a suposta imortalidade que nos propõe
o escritor argentino Jorge Luis Borges (2005) em seu conto
“El inmortal”, e insere o protagonista da narrativa em uma
eterna geração de conquistadores.
Longe de ser um Pierre Menard, Abel Posse
não tem a pretensão de produzir uma reescrita literal do
discurso da Nação. O “laço” entre os textos acontece
de forma oposta. O relato histórico de Cabeza de Vaca
é tomado pelo autor justamente para dar “voz” aos
possíveis hiatos que tenham sido deixados para trás pela
historiografia, questionando, assim, suas “origens” e os
referentes “legítimos” do discurso histórico.
Nessa sua versão da História, a personagem
critica o processo de construção do seu primeiro relato
uma vez que ele está permeado de omissões, lacunas
e intervalos inexplicados. O questionamento sobre a
suposta verdade do discurso histórico, ou seja, a fonte
e os processos de transmissão e testemunho e a visão
homogênea e horizontal associada com a comunidade
imaginada da nação são alguns dos temas fundamentais
desse romance, que poderiam vir a ser pensados como um
discurso performativo do qual nos fala Homi Bhabha (2007)
em “DissemiNação: o tempo, a narrativa e as margens da
nação moderna.” Como uma contra-narrativa da Nação,
como as que “continuamente evocam e rasuram suas
fronteiras totalizadoras – tanto reais quanto conceituais

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
– perturbam aquelas manobras ideológicas através das
quais “comunidades imaginadas” recebem identidades
essencialistas” (BHABHA 2007, p. 211.), El largo atardecer
del caminante suplementa a narrativa pedagógica do
colonizador (Naufrágios), colocando em evidência o tempo
disjuntivo da Nação, a incompletude do conhecimento
a que o homem pode aspirar e a História oficial que se
apresenta como pretensa portadora da verdadeira fonte
de interpretação da História.

No lugar da polaridade de uma


nação prefigurativa autogeradora
“em si mesma” e de outras nações
extrínseca, o performático introduz
a temporalidade do entre-lugar. A
fronteira que assinala a individualidade
da nação interrompe o tempo
autogerador da produção nacional e
desestabiliza o significado do povo
como homogêneo. [...] A nação barrada
Ela/Própria [It/Self], alienada de sua
eterna autogeração, torna-se espaço
liminar de significação, que é marcado
internamente pelos discursos de
minorias, pelas histórias heterogêneas
de povos em disputa, por autoridades
antagônicas e por locais tensos de
diferença cultural. (BHABHA, 2007, p.
209-210.)

Dessa forma, agora, na contra-narrativa de


Posse, temos a suposta personagem histórica que tem a
oportunidade de, mais uma vez, narrar a sua vida a partir
de um discurso heterogêneo, de forma a suplementar a
narrativa pedagógica da nação (Naufrágios). É importante

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ressaltar que a estratégia de suplementar sugere que
“o ato de acrescentar não necessariamente equivale a
somar, mas pode, sim, alterar o cálculo”. (BHABHA, 2007,
p. 219). É o sinal da adição que vai compensar um sinal
de subtração na origem, o movimento de esquecer para
lembrar.
O conquistador se vê obrigado a participar da sintaxe
do esquecer ou esquecer para lembrar. Ser obrigado a
esquecer para lembrar se torna necessário e base para
recordar a nação, pois conforme teoriza Bhabha “ser
obrigado a esquecer – na construção do presente nacional
– não é uma questão de memória histórica; é a construção
de um discurso sobre a sociedade que desempenha a
totalização problemática da vontade nacional” (BHABHA,
2007, p. 226). É o autor contemporâneo, leitor do relato de
Cabeza de Vaca, quem preenche as lacunas e pontos de
indeterminação do discurso histórico, interferindo, dessa
forma, na leitura atual daquele documento.
O conquistador tem sua vida completamente
modificada após a experiência do naufrágio. De volta à
Espanha, ele não se reconhece mais, sente-se “outro”
nesse espaço, que já não consegue mais chamar de seu.
Com a vida e o corpo marcado pela cultura americana, não
consegue se adaptar aos antigos costumes: “era otra vez
don Alvar Núñez Cabeza de Vaca, el señor de Xerés. Pero
era otro, por más que yo simulase. Era ya, para siempre,
otro.” (POSSE, 2005, p. 179.)
Essa perda de um “sentido de si”, pela qual Cabeza
de Vaca passa, é chamada por Stuart Hall (2006), de

500
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
deslocamento ou descentração do sujeito, e esse duplo
deslocamento — descentração dos indivíduos tanto de
seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos
— constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo.
Também podemos analisar esse novo sujeito que retorna a
partir da perspectiva do Unheimlich, do sentimento de não-
pertencimento de que fala Freud. Cabeza de Vaca torna-
se um sujeito fragmentado, “composto não de uma única,
mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias
ou não-resolvidas” (HALL, 2006, p. 12). O conquistador
assume identidades que não podem ser unificadas em
um “eu” coerente, e “projeções exteriorizadas retornam
para assombrar e dividir o lugar em que são produzidas.”
(BHABHA, 2007, p. 211.)
De conquistador a conquistado, Cabeza de Vaca
passa por inevitável processo de transformação e volta à
Espanha para assombrar o Império: de identidade única
e estável - o sujeito cartesiano - situado no centro do
conhecimento, a sujeito fragmentado, transculturado, que
leva em si todas as partes que compõem a monstruosa
estrutura social: aquela e a de hoje.

No. Nada me une ya a mi pueblo ni


a la ciudad de mi infancia (que es la
misma, pero yo cambié). […] No. Ya
soy definitivamente otro. La vida, los
años, me fueron llevando lejos de mi
pueblo. Ya ni su gracia, ni su odio, ni
su hipócrita silencio, ni la alegría de
sus macarenas, me pertenece. Soy
otro. (POSSE, 2005, p. 118-119.)

501
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Cabeza de Vaca, tanto o do relato oficial quanto
o do ficcional, passa por um profundo processo de
transculturação — neologismo criado pelo antropólogo
cubando Fernando Ortiz em Contrapunteo cubano del
tabaco y el azúcar (1940), em substituição ao termo
aculturação, que, segundo ele, há muito tempo vinha
sendo questionado e utilizado de modo reducionista. Nesse
novo processo, a cultura de origem não é desprezada,
ela se revela resistente e ativa. Nessa concepção há um
intercâmbio entre duas culturas, ambas contribuintes e
cooperantes para o surgimento de uma nova realidade.
Essas personagens têm suas vidas completamente
alteradas depois do período de experiência com o outro
e passam a viver entre duas identidades, em uma terceira
margem, no espaço de liminaridade entre o discurso
pedagógico e o performático, ou entre a História e a
história.
Conforme se sabe o encontro inicial das culturas
europeias e americanas ocorreu de forma drástica e
traumática: “una de ellas pereció, casi totalmente, como
fulminada. Transculturación fracasada para los indígenas
y radical y cruel para los advenedizos.” (ORTIZ, 1963, p.
101.) Os índios foram os que mais incorporaram elementos
da cultura europeia, pelo fato de terem sido vítimas do
violento processo de aculturação a que foram submetidos
pelo conquistador europeu.
Valendo-se do conceito antropológico de
transculturação, o uruguaio Ángel Rama, na década de
1970, o transpõe para o plano das Artes, da Literatura

502
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e das operações culturais resultantes do contato entre
culturas diferentes. Rama vê a transculturação de forma
otimista, como um processo mediador e integrador da
cultura dominada sobre a dominante. O uruguaio identifica
o peruano José María Arguedas, o mexicano Juan Rulfo,
o colombiano Gabriel García Márquez e o brasileiro João
Guimarães Rosa como narradores transculturadores, que
levaram a fundo o projeto transculturador: “escritores que
son absorbidos por las capitales donde muchas veces
cumplen su tarea literaria adulta, sin que por eso puedan
desligarse de sus orígenes y de los moldes culturales
formativos.”481 Tais escritores, provenientes de regiões
que conservam suas particularidades culturais, como a
costa peruana, o planalto de Jalisco, a costa colombiana
e o sertão de Minas Gerais, respectivamente, dialogam
diretamente com o moderno, mantendo, contudo, os
valores de suas culturas regionais. Esses escritores se
enquadram no grupo que Rama denomina de regionalistas
plásticos: escritores que não se rendem ao projeto
homogeneizante da modernização, ou seja, incorporam a
cultura do outro de modo vivo e original, como “fermentos
animadores”, recorrendo a componentes próprios e
tendo como respostas formas inventivas e criativas. A
plasticidade cultural permite ao regionalista apropriar-
se seletivamente de propriedades do “outro” e, com elas
enriquecer sua experiência de mundo. Esses escritores
mantêm um discurso literário ancorado em fortes tradições,

481 RAMA. Transculturación narrativa en América


Latina, p. 95.
503
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
transitando, de forma plástica, entre as forças duais
transcorridas desde a Conquista, tais como dependência/
autonomia; periferia/centro; regionalismo/ modernismo;
modernização/ tradicionalismo; oralidade/ escritura.
Cabeza de Vaca acredita ter se transformado em
instrumento da vontade divina, com capacidade de predizer
fenômenos da natureza e, desse modo, consegue produzir
um discurso de poder que lhe permite manter controle
sobre os índios tupinambás e evitar a própria morte em
ritual canibal. O conquistador abre seu caminho de tribo
em tribo negociando seu salvo-conduto por alimento e
proteção. Sem que nem ele mesmo compreenda, o cristão
europeu torna-se feiticeiro, com poderes curativos. O
espanhol, com poderosa plasticidade cultural, envolve o
processo de transculturação e “estende uma ponte” entre a
crença europeia e a americana. A fim de atender aos seus
objetivos, Cabeza de Vaca acrescenta às suas crenças
(inventiva e criativamente) a dos indígenas.
Nos dois relatos do conquistador, tanto no histórico
quanto no ficcionalizado, fica evidente como o europeu foi
influenciado pelos autóctones da América e vice-versa. O
intercâmbio das culturas deu-se, principalmente, no que
diz respeito às questões de sobrevivência. O estrangeiro,
no entanto é, nesse momento, o que mais se adapta aos
novos costumes.

[...] Vencí repulsiones banales según


las cuales la carne sangrante de
un buey es un manjar, y no así los
cangrejos de tierra, los huevos de
hormigas rojas o las lombrices verdes

504
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de largos cuernos. Creo que comprendí
que en la callada y disimulada vida de
los seres del desierto podía encontrar
también el sustento de mi propia
vida482.

O processo de transculturação, aqui focalizado,


acontece de forma invertida, se comparado com os dos
narradores transculturadores (Arguedas, Rulfo, García
Márquez, Rosa). A cultura dominante, no caso de Cabeza
de Vaca, não é a que vem de fora, a do estrangeiro, e sim
a natural da América, a que será, logo após, identificada
como indígena. É importante destacar que, como um
processo bem-sucedido, mediador entre as culturas, a
exemplo do que ocorre com a cultura dominada, que não
se rende ao projeto homogeneizante do outro, com a
transculturação do europeu acontecerá o mesmo. Ainda
que a premissa central da “viagem” de Cabeza de Vaca
tenha se caracterizado pela aproximação, pelo encontro
do “eu” com o “outro”, não se pode deixar de destacar que
ele, antes de tudo, era espanhol. Cabeza de Vaca esteve
caminhando por quase todo o tempo em que viveu na
América, a fim de encontrar cristãos que o levassem de
volta à Europa, e, diante disso, todos os lugares e cada
situação com que se deparava lhe eram novos, sob a
perspectiva do olhar europeu, que ele era e representava.
Cabeza de Vaca, mediante a “plasticidade cultural”,
também manterá seu discurso ancorado nas suas tradições
e nos seus interesses. Vivendo na terceira margem, entre
dois mundos, não afasta a possibilidade de imposição da
482 POSSE. El largo atardecer del caminante , p. 91.
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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
“cruz” católica aos nativos, desde que por via pacífica:

Embora essa gente mostrasse grande


prazer em estar conosco, temíamos
que quando chegássemos na zona
de fronteira entre estes e os cristãos,
onde estavam se dando os combates,
fossem nos maltratar e fazer com que
pagássemos pelo que os cristãos lhes
estavam fazendo. Mas Deus Nosso
Senhor fez com eles passassem a nos
temer e a nos acatar, como faziam os
demais com quem nos encontráramos
antes. Isto vem demonstrar que
toda essa gente pode ser atraída ao
cristianismo e à obediência, à imperial
majestade, desde que lhe seja
dispensado um bom tratamento483.

O objetivo, aqui, não é questionar as atitudes do


conquistador, o que convém perceber é como o encontro
deste com os outros ocorreu de forma diferenciada dos
seus contemporâneos. O que é relevante perceber é o
fato de, ainda que nem sempre conseguisse cumprir, a
convicção de que a Conquista poderia acontecer de forma
pacífica acompanhou Cabeza de Vaca por toda a sua vida,
e não só nos momentos difíceis vividos na América.
Por esses aspectos, pode-se dizer que Cabeza de
Vaca adquire profunda compreensão da cultura americana,
vivendo como índio, e, com isso, aprende a respeitá-los, a
admirá-los e a tratá-los com certa dignidade. Os homens
ocidentais lutaram contra os aborígenes e, em raras

483 CABEZA DE VACA. Naufrágios & Comentários, p.


89-90.
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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
situações, a favor deles. Como uma dessas exceções,
encontra-se Cabeza de Vaca. Henry Miller, no prefácio a
Naufrágios & Comentários484, afirma que a história desse
europeu foi o primeiro momento glorioso que encontrou na
historia sangrenta criada pelos conquistadores. A narrativa
de Cabeza de Vaca e, especialmente, a sua experiência
de vida na América, após o naufrágio, mostram o antes
e o depois de um homem que se caracteriza pela sua
capacidade de se misturar com o “outro”.
Conforme já analisado, a contra-narrativa de
Abel Posse advoga em favor de uma deslegitimação do
lembrar para que fissuras de fatos que talvez não tenham
sidos registrados pela historiografia sejam preenchidas.
Fica evidente que ao utilizar do discurso pedagógico de
Naufrágios, Abel Posse não tem como objetivo se prender
a uma tradição, mas evidenciar novas possibilidades de
leituras, mais contextual e crítica, baseada na perspectiva
de desconstrução, da desconfiguração, assim como propõe
Gayatri Spivak (2009). A escrita performática de Posse
configura-se, assim, como aquele tipo de narrativa que
tem como objetivo romper com fronteiras e binarismos, na
perspectiva de possíveis trânsitos de textos canônicos com
não-canônicos. Conforme visto, a desterritorialização dos
referentes “legítimos”, o caráter não-legítimo e incompleto
de sua obra é que permitirá que sejam criados laços
inusitados com o discurso da Nação, a fim de contemplar
versões esquecidas (subtraídas) da História.

484 CABEZA DE VACA. Naufrágios & Comentários, p.


9.
507
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A possibilidade de existência de uma maior
verdade na ficção que nos discursos apresentados
como verdadeiros ou historicamente confiáveis é, talvez,
a mais sobressalente discussão do romance histórico
contemporâneo. É importante ressaltar novamente, assim
como o faz o próprio Abel Posse que esse tipo de romance
não deixa de lado a racionalidade histórica (o pedagógico);
ela entra como seu fundamento, constitui a sua razão de
ser. A ficção, a partir do mecanismo da semelhança, satisfaz
relações com a realidade mediadas pela imaginação do
autor. Essa é uma boa plataforma para um exercício de
Literatura Comparada, que se oferece como instrumento
capaz de possibilitar novas leituras do passado e modos
renovados de acesso ao mundo a partir de um novo lugar
de enunciação, mediado por um olhar crítico que se fixa na
cultura e no social.

REFERÊNCIAS

BHABHA, Homi K. Disseminação: o tempo, a narrativa


e as margens da nação moderna. In: ______. O local da
cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. p. 198-238.
BORGES, Jorge Luis. El inmortal. In: ______. El Aleph.
Buenos Aires: Emecé Editores, 2005. p. 5-28.
BORGES, Jorge Luis. Pierre Menard, Autor do Quixote. In:
______. Ficções. Tradução de Carlos Nejar. Porto Alegre/
Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1982. p. 29-38.
CABEZA DE VACA, Álvar Núñez Cabeza de. Naufrágios
& Comentários. Tradução de Jurandir dos Santos. Porto
Alegre: L&PM, 2007.

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.
Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro.
11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
MENTON, Seymour. La nueva novela histórica de la
América Latina, 1979-1992. México: Fondo de Cultura
Económica, 1993.
MOREIRAS, Alberto. O fim do realismo mágico. In: ______.
A exaustão da diferença. A política dos estudos culturais
latino-americanos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
p. 220-247.
ORTIZ, Fernando. Contrapunteo Cubano del tabaco y el
azúcar. Habana: Universidad Central de Las Villas, 1963.
POSSE, Abel. El largo atardecer del caminante. Buenos
Aires: Booket, 2005.
RAMA, Angel. Novísimos narradores hispanoamericanos
en “Marcha”, 1964/1980. México: Marcha Editores, 1981.
RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en América
Latina. México: Siglo Veintinuo Editores, 2004.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Muerte de una disciplina.
Santiago: Palinodia, 2009.

509
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
CARTA DO EDITOR

A literatura e a vida: por que estudar literatura? encerra


de maneira solar nosso primeiro ano de publicações.
Chegamos até aqui com mais de 25 mil cópias de nossos
livros distribuídas gratuitamente aos leitores. Esse número
espetacular para livros acadêmicos foi alcançado em
apenas seis meses por nossos três primeiros livros: Últimas
notícias: histórias do webjornalismo no Século 20, Brasil
em Crise: o legado das jornadas de junho e Balão Mágico:
movimento estudantil e a formação em comunicação
social, todos disponíveis no blog da editora, que pode ser
acessado em www.praiaeditora.blogspot.com.br.
Parte desse sucesso deve-se à opção que fizemos para
circular nossas publicações e fazer chegar aos leitores a
produção científica. Adotamos nosso modelo de economia,
ao mesmo tempo simbolizado pela expressão e realizado
por meio do ato: #DownloadLivre. Utilizamos “livre” em
vez de “grátis”, pois o conceito vai além de prescindir o
dinheiro: também não exigimos cadastro e não chupamos
dados e metadados enquanto o leitor baixa nossos livros.
Diversas são as motivações para empregar trabalho,
tempo, dinheiro e ocupar amigos que assumiram a ideia
para produzir livros que custam dinheiro, mas que não são
vendidos aos leitores, são distribuídos pela Internet. Uma
é que a ideia não é nova, somos tributários do Fanzine
Ao Vivo, produzido por mim nos anos 1990 e distribuído
também em suas versões impressas e digitais. Outra é
abrir um canal para que levar aos estudiosos a produção
acadêmica dos alunos e professores das universidades
públicas. Acreditamos ser esta uma maneira de devolver
em produção o investimento da sociedade em comunidades
acadêmicas. E que venham novos autores e novos leitores!
Gilberto Medeiros, Editor

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

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