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VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários

Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

VI ENCONTRO INTERDISCIPLINAR DE ESTUDOS LITERÁRIOS

FICHA TÉCNICA
1) Entidade Promotora:
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará

2) Comissão Organizadora do VI EIEL:


Prof.ª Irenísia Torres de Oliveira
Prof. Cid Ottoni Bylaardt

3) Comissão Executiva do VI EIEL:


Airton Uchoa Neto
Andréia Carneiro
Anne Caroline Moraes de Assis
Arlene Fernandes Vasconcelos
Carolina de Aquino Gomes
Cássia Alves
Charles Ribeiro
Diana Melo
Huston Dantas
Isabel Guimarães
Jane Mary Cunha Bezerra
João Paulo Oliveira
Keyla Freires da Silva
Patrícia Elainny Lima Barros
Roberto Bezerra de Menezes
Soraya Rodrigues Madeiro
Tiago Barbosa Souza

4) Revisão dos trabalhos:


Arlene Fernandes Vasconcelos
Airton Uchoa Neto
Roberto Bezerra de Menezes

5) Organização dos Anais:


Patrícia Elainny Lima Barros
Roberto Bezerra de Menezes

6) Projeto Gráfico e Editoração dos Anais:


Roberto Bezerra de Menezes

7) Arte:
Samuel Tomé Menezes
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

ÍNDICE

Apresentação 03

Programação Geral 04

Resumos dos Trabalhos Completos 06

Trabalhos Completos 48
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

APRESENTAÇÃO

Temos a satisfação de trazer a público, em versão escrita, os trabalhos


apresentados no VI Encontro Interdisciplinar, promovido pelo Programa de Pós-
Graduação em Letras da UFC, no período de 27 a 30 de outubro de 2009. A temática
geral desta edição do evento foi Literatura Comparada, com a proposta de divulgar e
expandir as reflexões acerca da nova área de concentração do Programa, implantada no
início de 2009. Assim, a nova área ganhou centralidade nesta edição do evento,
norteando os objetivos gerais de divulgação da pesquisa realizada no âmbito do
programa de pós-graduação, tanto de professores quanto de alunos, bem como a
integração com a graduação e com pesquisadores de áreas afins e de outras instituições.
A acolhida entre o público interessado em Literatura foi grande, considerando-se o
significativo número de inscrições que recebemos, tanto para participação com
apresentação de trabalho, como para ouvintes. Conferências, mesas-redondas,
minicursos e sessões de comunicações foram bem procurados, garantindo o sentido da
divulgação e do debate das pesquisas realizadas. Portanto, os trabalhos constantes destes
anais, em nível de graduação e pós-graduação, vieram antes de um processo bastante
dinâmico de discussão, que os recomenda. Naturalmente, dada a abrangência do tema
do evento, eles se espraiam por vários objetos e orientações do conhecimento, o que tem
sempre a vantagem de abrir o leque dos interesses e contemplar mais pessoas.
Em termos gerais, o leitor interessado encontrará aqui trabalhos concluídos ou
ainda em desenvolvimento no Programa, que dão uma visão sobre as nossas atividades,
e, por outro lado, muitos outros que espelham os interesses dos alunos de graduação e
podem servir de estímulo e perspectiva para os nossos docentes. Este interessante
intercâmbio resume o espírito do evento e destes anais do Interdisciplinar.
Reiteramos, assim, nosso prazer de entregar aos participantes e interessados os
anais do VI Encontro Interdisciplinar e desejamos a todos, em nome da comissão
organizadora do evento e da comissão editorial, uma boa e proveitosa leitura.

Irenísia Torres de Oliveira


Coordenadora do VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras (2009)

3 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

PROGRAMAÇÃO

27.10
17h – Credenciamento
18h – Abertura e Conferência “A imaginação dialética” – Prof. Dr. André Luiz Lima
Bueno (UFRJ)
20h – Apresentação cultural: Coral da UFC

28.10
08h – Minicursos
01 – Literatura e Identidade Cultural: relações Brasil-Portugal – Prof.ª Dr.ª Ana Márcia
Siqueira
02 – A Literatura Contemporânea – Prof. Dr. Cid Ottoni Bylaardt
03 – José de Alencar e Machado de Assis: o problema do Ser e da contingência – Prof.
Dr. Marcelo Peloggio

10h30 – Comunicações

14h – Mesa-Redonda: Literatura, História e Memória (imagens e arquivos)


Adelaide Gonçalves - UFC/História - Literatura social e memória no ideário anarquista
Maria Neuma Barreto Cavalcante - UFC/Literatura - Arquivos de escritores: lugar de
memória
Ângela Gutiérrez - UFC/Literatura - O retrato do Conselheiro: as múltiplas faces do
beato de Belo Monte

16h30 – Mesa-Redonda: Tradução e adaptação do texto literário


Carlos Augusto Viana da Silva - UFC/Letras Estrangeiras – O texto literário nas telas
Orlando Luiz de Araújo - UFC/Letras Estrangeiras – (Relendo) a cena trágica: teatro
grego e literatura
Stélio Torquato Lima - UFC/Literatura - Diálogos entre o erudito e o popular: uma
análise através de adaptações de clássicos da literatura para o cordel

18h – Programação Cultural: Sessão de cinema – O livro de cabeceira, de Peter


Greenaway (após a exibição debate com o Prof. Cid Ottoni Bylaardt)

29.10
08h –Minicursos
01 – Literatura e Identidade Cultural: relações Brasil-Portugal – Prof.ª Dr.ª Ana Márcia
Siqueira
02 – A Literatura Contemporânea – Prof. Dr. Cid Ottoni Bylaardt
03 – José de Alencar e Machado de Assis: o problema do Ser e da contingência – Prof.
Dr. Marcelo Peloggio

4 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

10h – Mesa-Redonda: Estudos críticos de Literatura Comparada


Sarah Diva da Silva Ipiranga - UECE - Imagens da infância: a criança em Clarice
Lispector e Guimarães Rosa.
Roberto Pontes - UFC/Literatura – Entreliteraturas de Língua Portuguesa
Irenísia Torres de Oliveira - UFC/Literatura - Fantasia e crítica na literatura de
Graciliano Ramos

14h – Comunicações

16h30 – Mesa-Redonda: Literatura e outros saberes


Ana Amélia de Melo - UFC/História - Literatura e História: aproximações
Andréa Borges Leão - Como fazer uma sociologia da literatura?
Maria Aparecida Montenegro - UFC/Filosofia - Literatura e Filosofia
Rosemeire Selma Monteiro-Plantin - UFC/Letras Vernáculas - Lilás cada vez mais

18h – Apresentação Cultural: Lire en fête (Casa de Cultura Francesa)

30.10
08h – Minicursos
01 – Literatura e Identidade Cultural: relações Brasil-Portugal – Prof.ª Dr.ª Ana Márcia
Siqueira
02 – A Literatura Contemporânea – Prof. Dr. Cid Ottoni Bylaardt
03 – José de Alencar e Machado de Assis: o problema do Ser e da contingência – Prof.
Dr. Marcelo Peloggio

10h30 – Comunicações

14h – Mesa-Redonda: Literatura regional e popular


Humberto Hermenegildo de Araújo - UFRN - Do canto glorioso da província
Elizabeth Dias Martins - UFC/Literatura - Akpalôs africanos e cantadores nordestinos:
uma questão residual
Martine Kunz - UFC/Letras Estrangeiras - Oralidade na literatura de cordel

16h30 – Apresentação Cultural: Signos, Selos e Sigilos, por Elane Fonseca

17h – Reunião de auto-avaliação do Programa de Pós-Graduação em Letras (reservado


aos professores e alunos do PPGLetras)

5 ISSN: 2179-4154
RESUMOS DOS TRABALHOS COMPLETOS
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

A MARGINALIDADE DOS PEQUENOS HONESTOS: O COTIDIANO DOS


CONTOS DE MALAGUETA, PERUS E BACANAÇO DE JOÃO ANTÔNIO

Airton Uchoa Neto1


Orientadora: Irenísia Torres de Oliveira2

Este artigo analisa o percurso de algumas personagens do livro de estréia do autor João
Antônio, a coletânea de contos Malagueta, Perus e Bacanaço, reunida em volume e
publicada em 1963. O autor é conhecido por retratar o cotidiano dos marginalizados nas
suas práticas na luta pela sobrevivência e os relaciona intrinsecamente ao espaço urbano
em que se movimentam, daí se concluir que João Antônio é um observador dos
processos de transformação da sociedade brasileira nos centros urbanos. A presente
análise se centra naqueles que o próprio autor considera os personagens mais apagados,
apagados, invisíveis quase, não nas suas narrativas, mas na realidade de onde o autor
tirou sua inspiração direta, tendo deixado claro, muitas vezes, em relatos, que viveu na
pele a experiência cinzenta dessas personagens reais: trata-se do operário honesto
morador de subúrbio ao qual não é dado acumular riquezas nem nutrir maiores
esperanças no futuro, aquele para quem o maior prêmio concedido é a aprovação social
de sua vida medíocre; o tipo de personagem, enfim, que chega a se questionar sobre a
real utilidade do seu trabalho e chega a se sentir tentado a aderir às práticas da
malandragem, socialmente reprovadas, mas tão mais plenas enquanto experiência.

PALAVRAS-CHAVE: conto, malandragem, João Antônio.

1
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.
2
Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense. Professora do Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Ceará.

7 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

O VIÉS JORNALÍSTICO NA POESIA DE MANUEL BANDEIRA

Ana Cátia Silva de Lemos3


Fernando Viana Martins4
Profª. Drª. Odalice de Castro Silva (Orientadora)5

O século XX presenciou fatos importantes para a humanidade, entre eles o surgimento


da psicanálise, os avanços na medicina, as revoluções sociais, como o movimento
feminista e a ampliação das evoluções tecnológicas em geral. Dentro desse contexto
está inserido o Modernismo, movimento literário a que pertence Manuel Bandeira e que
causou grandes transformações no meio literário de então. Este trabalho predispõe-se a
analisar a obra desse grande poeta, partindo da obra: poema tirado de uma notícia de
jornal. O objetivo da pesquisa é traçar um paralelo entre a linguagem desse poema de
Bandeira e a linguagem jornalística. Para tal, foi utilizado como corpus da pesquisa uma
reportagem publicada no jornal Diário do Nordeste e o poema citado, buscando relações
comparativas entre os dois textos. Tendo em vista que, a base do trabalho é constituída
de uma matéria de jornal e de um poema bandeiriano esta pesquisa é de importância
para os estudantes de Letras e Comunicação Social. A análise dos dados foi obtida
através da comparação dos textos, a partir daí foi traçado um paralelo entre ambos.
Obtivemos como resultado a comprovação das semelhanças entre ambas as linguagens e
podemos concluir que o poema trabalhado nesta pesquisa mantém relações lingüísticas
com a notícia jornalística.

PALAVRAS-CHAVE: Poesia, Linguagem, Literatura.

3
Graduanda do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
4
Graduanda do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
5
Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

8 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

CANUDOS E CALDEIRÃO NA LITERATURA DE CORDEL

Ana Cláudia Veras Santos


Profª. Drª. Martine Suzanne Kunz (Orientadora)

O presente trabalho propõe-se a decodificar o ponto de vista do poeta popular a partir de


suas representações acerca dos fatos ocorridos em Canudos, aos finais do século XIX,
na Bahia; e Caldeirão, em anos da década de trinta do século XX, no Ceará; em folhetos
de cordel. Comparar tais produções, muitas reunidas no que Calasans chamou de “o
cancioneiro de Canudos”, atribuindo-lhes aspectos documental e histórico; além de
considerar a perspectiva abordada nos versos do trovador e sua orientação ao ilustrá-las
e desvendar se o cordel alude ao caráter denunciativo inerente à sua gênese. Sugerimos
que, realizando a leitura analítica destes versos, mineraliza-se o processo da
metamorfose desses fenômenos em mitos na literatura de cordel, remetendo-os ao seu
engrandecimento. Outro aspecto abordado refere-se ao momento de pausa na produção
do folheto, quando observamos um “silêncio” do poeta ante aos acontecimentos. A
metodologia segue a localização do corpus e a catalogação por época, local de
publicação e investigação da autoria; além de atenta análise do discurso autoral, pois
constatamos que há folhetos que enaltecem ou execram os fenômenos, a depender da
posição do autor. Os resultados são parciais, pois a pesquisa encontra-se em andamento,
embora já direcione a algumas considerações, entre essas, às contradições na
historiografia do cordel, no tocante aos fatos considerados e a interferência de
Instituições de poder na produção e o seu incentivo.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura de cordel, Canudos e Caldeirão, Representações,


Mito, Silêncio.

9 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

CRÔNICAS DE VIDA COTIDIANA EM RACHEL DE QUEIROZ

Antônia Emanuele Silva Sales6

Nosso trabalho tem como objetivos analisar a crônica de Rachel de Queiroz mostrando
como a autora constrói sua narrativa utilizando o tema cidade e cotidiano com seus
personagens; e mostrar como o jornalismo e a literatura estão intrincados na produção
cronística, brasileira e moderna. Seja Rachel romancista bissexta, jornalista ou
ficcionista, o fato é que ela adquiriu extraordinária popularidade como cronista ao
mesmo tempo em que outros grandes escritores como Carlos Drummond de Andrade e
Rubem Braga faziam nome nas páginas do jornal. Pela qualidade de sua crônicas e a
constância de sua produção, Rachel adquiriu, nessa época, uma persona literária de
cronista. Quando se fala da obra Rachel de Queiroz lembra-se quase automaticamente
do sertão, principal tema presente em sua obra. Entretanto, em sessenta anos de
produção cronística, a escritora deixou algo mais que mergulhos nessa geografia
pessoal. Outro tema recorrente em suas crônicas é o cotidiano nas cidades, mais
especificamente no Rio de Janeiro.

PALAVRAS-CHAVE: Crônica, Jornalismo e Literatura, cotidiano, personagens


urbanos, Rachel de Queiroz.

6
Graduanda em Jornalismo da Universidade Federal do Ceará.

10 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

ENTRE ORFEU E ULISSES: UMA LEITURA DOS ROMANCES HISTÓRICOS


DE JOSÉ DE ALENCAR A PARTIR DAS IDEIAS DE MAURICE BLANCHOT

Arlene Fernandes Vasconcelos7


Prof. Dr. Marcelo Almeida Peloggio (Orientador)8

A partir das leituras de “A literatura e o direito à morte” e “A leitura de Kafka”, de


Maurice Blanchot, foi verificada uma possibilidade de diálogo entre as ideias contidas
nos textos citados e algumas ideias sobre a recepção da obra literária e o processo de
escrita, principalmente dos romances históricos, desenvolvidos por José de Alencar em
seus textos “Benção paterna”, “Carta ao Dr. Jaguaribe”, “Rio de Janeiro - Prólogo” e
“Pós-escrito” de Diva. Fazendo uso do pensamento blanchotiano a respeito dos mitos de
Orfeu e da sereia de Ulisses e sua relação com o profundo envolvimento que o escritor
tem com sua obra, pretende-se analisar os pontos de aproximação e distanciamento
dessa linha de pensamento com a prática de escrita de José de Alencar em seus
romances históricos. Há também uma procura em identificar José de Alencar nas regras
do escritor que Maurice Blanchot escreveu, baseado nas oposições que o escritor
enfrenta durante seu processo de escrita, e que formam seus “momentos”, e a relação de
ambos com a crítica literária. A partir do uso da palavra, Alencar promove o
afastamento do leitor de sua realidade, para inseri-lo no imaginário da realidade
histórica em toda a sua grandeza, tal qual o próprio escritor blanchotiano, que conhece o
real poder da palavra em sua origem primeira.

PALAVRAS-CHAVE: Maurice Blanchot, Identificação, Regras do escritor, José de


Alencar.

7
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.
8
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

11 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

A PROCURA PELA LINGUAGEM EM ESTADO VIRGINAL NA


ESCRITA DE MANOEL DE BARROS

Bianca Albuquerque da Costa9


Prof. Dr. Cid Ottoni Bylaardt (Orientador)10

A escrita de Manoel de Barros apresenta características singulares, mas que são


recorrentes em suas obras: a presença do traste, a fuga da lógica, a fusão de sentidos etc.
Em seu livro “Arranjos para assobio”, esses elementos se misturam e resultam em um
fazer poético que foge ao senso comum, mesclando, numa mesma obra, poemas, prosas
(poéticas), uma espécie de glossário e diversas enumerações. Essa mistura de gêneros,
aliada a expressões utilizadas pelo autor (“sabiá com trevas”, “minhocal de pessoas”,
“parafuso de veludo” etc.), parece ter por objetivo levar a linguagem ao seu grau
máximo de significação, em que a palavra passa a não mais ser uma mera representação,
ela simplesmente é. O presente trabalho pretende refletir sobre essa busca incessante do
autor pela palavra nua, vista em seu estado mais primitivo, a tentativa de alcançar o
significante que supere o significado. Que artifícios Manoel de Barros utiliza para
construir uma poesia que encanta e choca ao mesmo tempo? Como ele consegue
promover essa espécie de “desencontro da palavra com a ideia”? E quais são os efeitos
dessa escrita que desafia o leitor a cada momento? Serão alguns dos questionamentos
debatidos por esse trabalho à luz das contribuições teóricas de Maurice Blanchot,
Roland Barthes e outros estudiosos.

PALAVRAS-CHAVE: Poesia, Contemporânea, Linguagem, Manoel de Barros.

9
Mestre em Letras – Literatura Brasileira pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Ceará.
10
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

12 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

O RISO DE EXU N’AS PELEJAS DE OJUARA – MARCAS DE UMA CULTURA


AFROBRASILUSA

Carolina de Aquino Gomes (UFC)11


Profa. Dra. Elizabeth Dias Martins12

A concepção do riso como princípio do Mal data da Alta Idade Média. Partindo dessa
premissa indicadora de um caráter diabólico do riso, observamos a remanescência dessa
concepção, oriunda do medievo, na obra As pelejas de Ojuara, de Nei Leandro de
Castro. O Diabo, entidade ligada à doutrina cristã, na obra, recebe inúmeros nomes,
dentre eles o de Exu. Sendo assim, este estudo visa a constatar a presença do riso
diabólico ligado a Exu que foi transformado no Diabo “cristão” devido ao sincretismo
religioso em que se deu a adaptação da religião africana no Brasil com a criação da
Umbanda. A semelhança entre Exu e o Diabo se dá através de características
encontradas em ambos. Eles perturbam a ordem da natureza, são farsantes e
enganadores, porém são também enganados, protagonizando aventuras obscenas, das
quais muitas vezes saem humilhados. Sendo assim, o Diabo, por intermédio do riso,
perde sua natureza aterrorizadora. Concluímos previamente ser possível a
remanescência de substratos mentais das culturas africana e portuguesa na construção
da brasileira, no que diz respeito ao caráter diabólico do riso. A presente comunicação
reforça a importância de se desenvolverem pesquisas sobre a cultura e literatura
africanas e suas contribuições para a formação das nossas de modo a podermos entender
a origem de ambas em conexão com um período de rica produção literária e cultural, a
Idade Média.

PALAVRAS-CHAVE: Riso, Exu, residualidade, substratos mentais.

11
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará e bolsista
CAPES-Reuni.
12
Crítica, ensaísta, doutora pela PUC-RJ e professora adjunta do Depto. de Literatura e do Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

13 ISSN: 2179-4154
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JOSÉ DE ALENCAR E A PREOCUPAÇÃO SUBSTANCIAL


NA RELAÇÃO HOMEM-NATUREZA

Carolina Morais Ribeiro da Silva13


Prof. Dr. Marcelo De Almeida Peloggio14

A questão ambiental, muito discutida nos dias de hoje, foi também a preocupação de
diversos escritores brasileiros durante anos. É importante que grandes autores abordem
a problemática da preservação do meio-ambiente em suas obras, de forma que o leitor
volte seu pensamento para a causa preservacionista. Ideias, como a da preservação da
natureza, despertam os leitores não somente para a causa ecológica, mas também para o
sentimento do belo. Assim fez José Martiniano de Alencar, a empenhar-se na defesa do
verde brasileiro, expondo de forma clara sua posição em relação à preservação da
natureza pelo homem civilizado. Alencar apontou a necessidade da preservação do
meio-ambiente em diversas obras. Este trabalho tem por objetivo, portanto, apresentar,
sob uma nova perspectiva, a valorização da natureza na obra de José de Alencar. Propõe
analisar a crítica do autor cearense, que se pode chamar ecológica, no que concerne à
relação homem-natureza. Isto é, enfatiza sua visão negativa do processo civilizatório,
que anuncia as novas tecnologias (os meios de transporte, a indústria), e estas em forte
contraste com os elementos naturais que caracterizam, física e psicologicamente,
algumas de suas personagens e que são instrumentos importantíssimos para a
construção da identidade nacional.

PALAVRAS-CHAVE: Alencar, Ecologia, Homem.

13
Graduanda em Letras da Universidade Federal do Ceará.
14
Professor do Programa de Pós-Graduação do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.

14 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

O LIRISMO DOS ANJOS: A LITERALIDADE SOBRE A MORTE INFANTIL


NO CARIRI CEARENSE

Cícero Joaquim dos Santos15

A presente pesquisa histórica apresenta reflexões sobre os entendimentos que recobrem


a morte infantil no sul do Ceará. Tendo como objetivo compreender a constituição dos
cemitérios clandestinos de pagãos na ruralidade da Chapada do Araripe, a pesquisa vem
sendo desenvolvida a partir da metodologia da História Oral temática. Nesse caso, a
problemática consiste no confronto entre as narrativas orais dos sitiantes da supracitada
Chapada e os registros escritos dos chamados flocloristas, dentre os quais destacamos
Câmara Cascudo, Juvenal Galeno, Cândida Galeno e Oswald Barroso. Tais registros
denunciam práticas e entendimentos populares que imersas no imaginário religioso dos
caririenses revelam as atitudes sociais perante a morte, as crenças no outro mundo e o
desejo da bem-aventurança: a entrada da alma no paraíso. Desse modo, no
entrelaçamento dos limites sócio-religiosos a pesquisa aborda a construção das
categorias culturais do Anjinho, criança padecida após o sacramento do batismo, e do
pagão, morto sem sacramento. Isso culminava nos ritos de enterramentos. Ao anjinho
cabia o direito de adentrar o sagrado, o cemitério. O ritual era marcado pelo fator
festivo, pois tal morte representava o bem da vida. Ao pagão restava buscar outras
reminiscências da proteção cristã. Nesses últimos casos o curral do boi, as estradas
encruzilhadas e, principalmente, as cruzes de morte trágica denotavam espacialidades
propícias para os sepultamentos. Nos contornos dos cruzeiros surgiram os cemitérios
clandestinos dos pagãos.

PALAVRAS-CHAVE: Morte infantil, Literatura, Cemitérios.

15
Mestre em História e Culturas na Universidade Estadual do Ceará -UECE. Membro do Instituto da
Memória do Povo Cearense - IMOPEC.

15 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
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A PERSPECTIVA REALISTA NA OBRA DE JOSÉ DE ALENCAR

Dariana Paula Silva Gadelha16


Prof. Dr. Marcelo Almeida Peloggio (Orientador)17

O Realismo foi a escola literária que se opôs ao Romantismo e que preconizava uma
maior veracidade na descrição dos fatos e costumes de sua época. Conforme afirmativa
de Antônio Cândido e José Aderaldo Castello na obra Presença da Literatura Brasileira
– História e antologia, sob vários aspectos, o romance romântico está repleto de
realismo, uma vez que a nossa ficção romântica sempre foi atenta à descrição da vida
social e os escritores visavam informar para o leitor o que era observado na sociedade -
as pessoas, a linguagem, a arte, os espetáculos, a moda, a dança, os ideais, o ambiente e
os sentimentos. Assim sendo, a obra de José Martiniano de Alencar, em particular os
romances urbanos, retratam detalhadamente a nossa burguesia, constituindo um
verdadeiro documentário da vida brasileira no período do Segundo Reinado, como
pode ser observado nos romances Senhora, Lucíola, e no drama intitulado As asas de
um anjo. Essas obras Alencarinos são, portanto, repositórios dos costumes da sociedade
fluminense que frequentou o autor de A Viuvinha no século XIX e que soube, de
maneira exemplar, fixar nas páginas de suas obras. Desse modo, a presente pesquisa tem
por objetivo comprovar através dos romances urbanos de Alencar a recorrência da
estética realista e como o autor cearense reproduz para a ficção o mundo real que
observava.

PALAVRAS-CHAVE: Realismo, José de Alencar, Cotidiano.

16
Graduanda do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
17
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

16 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

A LINGUAGEM LITERÁRIA E COTIDIANA NA PERSPECTIVA DE


MAURICE BLANCHOT

Davi Andrade Pimentel18


Prof. Dr. Cid Ottoni Bylaardt19

Esta pesquisa analisa a diferença entre a palavra literária e a palavra cotidiana nos
trabalhos teóricos de Maurice Blanchot. O nosso objetivo centrou-se na investigação
dos limites entre essas duas formas de linguagem: se os limites apenas divergiam ou se
havia algum ponto de convergência entre eles. Para tanto, como base metodológica,
lemos os livros teóricos de Blanchot e alguns textos ficcionais para fazermos uma
pesquisa mais aprofundada e dinâmica. Nos resultados, observamos que Blanchot, ao
comentar o seu pensamento sobre literatura, compõe o que seria a linguagem própria do
mundo ficcional e, por oposição, o que seria a linguagem do mundo corrente. O
discurso pertencente ao mundo cotidiano teria como característica a organicidade do
mundo a partir do diálogo e da morte, bem como a institucionalização da palavra como
receptáculo de verdade e de poder. Já o discurso literário comungaria com a sugestão e
com a indefinição por ter como base a ambiguidade. Desse modo, a palavra literária é
destituída de poder e de verdade, exatamente, por não ter um fim, um objetivo definido.
No entanto, há, de acordo com os escritos blanchotianos, uma ponto de convergência: o
silêncio intrínseco a essas duas formas de linguagem, uma vez que tanto a palavra
literária quanto a palavra cotidiana não possuem referentes próprios, destacando-se a
arbitrariedade do signo. Conclui-se, portanto, que a diferença básica entre essas duas
linguagens consiste no espaço onde estão alocadas: no cotidiano, tentam sustentar um
saber; no espaço literário, ganham a irresponsabilidade da indefinição.

PALAVRAS-CHAVE: Maurice Blanchot, Linguagem, Literatura, Cotidiano.

18
Mestre em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
do Ceará.
19
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

17 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

A CONFIGURAÇÃO DA NOITE EM HIATO, DE GUIMARÃES ROSA

Diana Oliveira de Melo20


Prof. Dr. Cid Ottony Bylaardt (Orientador)21

Neste trabalho, procuramos identificar alguns aspectos que delineiam a instabilidade e a


abertura da escrita em Hiato, narrativa que se encontra na reunião de contos Tutaméia:
terceiras estórias (1967), de Guimarães Rosa. De acordo com a perspectiva da noite
idealizada por Maurice Blanchot, buscaremos identificar alguns desses aspectos na
escritura do autor, ao fazer seu elaborado e entranhado trabalho com a linguagem em
breves narrativas deste volume. Dentre esses contos, Hiato é um dos exercícios de Rosa
que versa e olha em direção a seu próprio fazer, através da figura de um enorme e
escuro touro saído das profundezas de um matagal. Apenas um momento de espanto ou
aparição para alguns, mas a imagem negra empedernida e aparentemente ameaçadora do
animal nos diz sobre a presença incessante e errante da ficção. Narrativa cujo título
evoca um encontro de vogais que é marcado pela separação, tal hiato é uma das fendas
que serão analisadas através de alguns conceitos como os de dia, noite e morte
designados por Blanchot. O aparente jogo de claro e escuro que parece se descortinar no
decorrer do conto nos remete ao invisível da noite também referido pelo autor e traça
um percurso que só encontra a sua própria impossibilidade de dizer, e o seu recuo diante
da existência.

PALAVRAS-CHAVE: Noite, Relato, Linguagem.

20
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.
21
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

18 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

O DISCURSO LITERÁRIO EM RESSURREIÇÃO:


DO ERUDITO AO POPULAR

Fernanda Lima22
Profª Drª Odalice de Castro e Silva (Orientadora)23

As obras de Machado de Assis (1839-1908) constituem infindável riqueza a ser


continuamente explorada. Autor com singular estilo de escrita, Machado de Assis
alcançou o posto de maior nome da Literatura Brasileira. Entretanto, tendo em vista a
escassez de pesquisas acerca dos primeiros romances machadianos, nós elegemos
Ressurreição (1872) como cerne do nosso trabalho. Através da presente pesquisa,
vislumbramos perscrutar pertinentes inquietações: como o autor trabalha o discurso
literário em Ressurreição e, através da construção das narrativas, migra do erudito ao
popular, visando uma possível crítica social. Consideramos como focos de observação
para a nossa análise: o discurso literário; a construção das personagens e suas falas, bem
como o contexto em que as falas são proferidas e nas quais os personagens estão
inseridos; e, por fim, como a confluência do erudito ao popular – e vice-versa – transita
por meio do discurso literário resultando em crítica social. Construímos nossa
investigação relacionando Ressurreição com leituras específicas para fundamentar
nosso trabalho, por meio de uma metodologia analítico-descritiva. Sendo assim,
demonstramos em nossa pesquisa outra perspectiva sobre Ressurreição: a de que
Machado de Assis ressaltou críticas sociais ao longo do discurso literário de seu
primeiro romance por meio dos personagens e suas falas, não apenas validando-os com
o papel de imbricadores de aspectos eruditos com aspectos populares, mas conferindo-
lhes representar o estereótipo de uma burguesia que precisava ser criticamente
questionada nos seus modos, valores e costumes.

PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis, Erudito, Popular.

22
Graduanda do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
23
Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

19 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

A PALAVRA VIVA: ENTRE A VOZ DAS MUSAS, NA TEOGONIA, DE


HESÍODO, E A VOZ DA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES

Francisco Alison Ramos da Silva24


Prof. Dr. Orlando Luiz de Araújo (Orientador)

O presente trabalho se propõe a uma análise comparativa entre o livro O Estudante


Empírico, de Cecília Meireles, e o Proêmio às Musas, da Teogonia, de Hesíodo, com o
objetivo de comparar o modo como é abordada a linguagem em ambas as obras. Estas
apresentam a linguagem a partir de uma perspectiva mítica ou primitiva, sendo,
portanto, compreendida como uma experiência, uma vez que a palavra, na consciência
mítica, é concebida como uma arquipotência, elemento portador de uma força que é
capaz de presentificar o ser das coisas. É o que percebemos nas obras de Cecília
Meireles e de Hesíodo, cuja análise nos permite estabelecer um ponto em comum entre
os dois: o poder da palavra. De modo que a linguagem não é vista a partir de uma
perspectiva lingüística, propriamente dita. Não é um mero significante que faz
referência a um significado, mas está para além desse plano compreendido pela
lingüística moderna. O que torna necessária a compreensão da consciência mítica da
linguagem, cujos resquícios ainda vigoram na consciência de culturas atuais.

PALAVRAS-CHAVE: Poesia, Linguagem, Poder.

24
Universidade Federal do Ceará.

20 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

O PROCESSO TRADUTÓRIO DE ORLANDO: O DISCURSO FEMINISTA


REESCRITO PARA O PORTUGUÊS

Francisco Rafael Silva Barros25


Prof. Dr. Carlos Augusto Viana da Silva (Orientador)26

O presente artigo analisa as traduções do romance Orlando – A Biography de Virginia


Woolf para o contexto literário brasileiro na década de 40 por Cecília Meireles e na
década de 90 por Laura Alves com o objetivo de investigar como se deu o processo de
reescrita de aspectos discursivos da obra que manifestam a temática feminista e sua
eventual recepção pelo público brasileiro nas duas diferentes épocas. Assumimos
primeiramente a posição de que entender o fenômeno da tradução não é procurar a
simples “transposição” de palavras de uma língua para outra, nem uma mera tentativa
de buscar no próprio texto sentido correspondente na língua alvo. Ao contrário,
entendemos que a análise do processo é muito importante, desde a escolha até a venda
das obras, pois, tal fenômeno tem implicações políticas e ideológicas, o que podem
tornar os textos traduzidos vanguardistas ou conservadores em relação à cultura de
chegada. Usamos como pressupostos teóricos o conceito de tradução como reescrita de
André Lefevere (1992) e os estudos da tradução como criadora de identidades culturais
de Lawrence Venuti (2002). Temos percebido, mesmo que ainda preliminarmente, uma
tendência de maior domesticação dos textos e uma constante ligação do romance com o
movimento feminista na literatura, criando uma “Virginia nacional” militante das idéias
feministas e defensora dos direitos femininos.

PALAVRAS-CHAVE: Tradução, feminismo, literatura.

25
Graduando em Letras pela FECLESC/UECE
26
Professor Adjunto do Departamento de Letras Estrangeiras da UFC

21 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

A LINGUAGEM LITERÁRIA EM “A CONSTRUÇÃO DA MENTIRA”, DE


JOÃO GILBERTO NOLL

Francisco Renato de Souza27


Prof. Dr. Cid Ottoni Bylaardt28

Esta pesquisa investiga o paralelo entre a linguagem do mundo real e a linguagem do


mundo ficcional observado no conto “A construção da mentira”, da obra O cego e a
dançarina, do escritor João Gilberto Noll. No conto, o narrador personagem, um
jornalista, estabelece a distinção entre as duas formas de linguagem, ao associar o relato
da loucura com a literatura, uma linguagem que lhe é, portanto, inservível, já que sua
profissão o leva a uma busca do registro da verdade. A percepção da associação da
linguagem jornalística, relacionada ao verídico e utilitário, contrapondo-se à linguagem
literária, concebida como delirante e desnecessária, levou-nos ao confronto dessa visão
do narrador com o pensamento do teórico francês Maurice Blanchot, que contrapõe a
linguagem do mundo, utilitária e instituidora de verdades, à linguagem literária,
concebida por ele como logro e desvinculada da retratação da realidade. A leitura do
conto de Noll, confrontada com a teoria de Blanchot, levou-nos a analisar as
peculiaridades de uma escrita literária que se caracteriza por um não comprometimento
com a realidade do mundo, já que se formula pelas regras próprias da linguagem
literária, ressaltando assim, através do texto ficcional, as concepções teóricas peculiares
de Maurice Blanchot sobre literatura.
Agradecemos o apoio dado pela Funcap.

PALAVRAS-CHAVE: João Gilberto Noll, Literatura; Verdade; Jornalismo

27
Aluno do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.
28
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

22 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

JOÃO CABRAL DE MELO NETO: O ESPÍRITO CIENTÍFICO NO HOMEM


SEM ALMA

Francisco Sócrates Costa de Abreu29


Prof. Dr. André Haguette (Orientador)30

João Cabral é conhecido como um poeta racional, que expurgou de sua obra todo o
lirismo da tradição poética brasileira que lhe legaram seus antecessores. Um poeta que
se quis preso à objetividade, optou por uma linguagem de não-dissimulação, partindo
sempre das condições externas do “problema”. Preza pela vigilância e a lucidez da
eterna criação, da intelectualização em vez da espontaneidade.Vendo nesses pontos uma
semelhança entre este poeta e o que chamo de espírito científico, faço uma breve análise
da poética cabralina, bem como do que seria esse espírito científico e arrisco uma
aproximação entre ambos. Nesse percurso, esboço uma caracterização sobre a ciência
com vistas a mostrar, com a aproximação de João Cabral como exemplo, a situação
histórico-cultural localizada desta, que se apresenta como uma alternativa
epistemológica, a qual conseguiu em João Cabral de Melo Neto um adepto de sua
positividade. Mas se esta mesma ciência busca ser a única produtora de verdades sobre
o mundo, a poesia em questão faz-se exemplo do pleno exercício da diferença, que
existe na certeza de fazer algo com um lugar a ocupar sem, apesar de preferências,
deslegitimar a prática alheia. Assim, uma poesia, mesmo com suas pretensões
objetivistas e tendo caracteres caros à ciência, não se confunde em momento algum com
esta, e nem mesmo o quer, justamente por usar o jogo de linguagem poético fabricando-
se abertamente poesia.

PALAVRAS-CHAVE: João Cabral de Melo Neto, Ciência, Método Científico.

29
Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará.
30
Professor titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará.

23 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

AURA, DE CARLOS FUENTES: MAIS DO QUE UMA NOVELA DA FICÇÃO


CONTEMPORÂNEA

Huston Araújo Dantas31


Prof. Dr. Roberto Pontes32

Embora Aura (1962), novela do escritor mexicano Carlos Fuentes, possua


características da prosa contemporânea, (como a ausência do narrador, esfacelamento da
ordem cronológica, ausência de perspectiva), consideramos que o autor utiliza o jogo do
duplo para contrapor de forma alegórica uma mentalidade arcaica com a mentalidade
contemporânea: Felipe / General Llorente e Aura / Consuelo formam um dualismo
simbólico de representação de um imaginário residual e do modo de pensar
contemporâneo. Neste trabalho chamamos atenção não sobre os aspectos formais da
obra, nem sobre os aspectos psicológicos capazes de serem suscitados pela novela, mas
sobre uma forma mais arquetípica muito presente na mitologia e na literatura: o Duplo.
Nossa perspectiva metodológica une História das Mentalidades, sociologia e análise
literária. Esse horizonte analítico está acomodado dentro do quadro teórico da Teoria da
Residualidade desenvolvida pelo pesquisador Professor Doutor Roberto Pontes da
Universidade Federal do Ceará. Este é um primeiro trabalho, não conclusivo, acerca de
uma narrativa (a novela Aura, de Carlos Fuentes) do ciclo inicial “El mal Del tiempo”,
composto também por outras obras: Cumpleãnos (1967), Uma família lejana (1980),
entre outras. Ciclo este que faz parte de um projeto memorialístico maior do autor - que
agrega sua produção ficcional em outros ciclos e obras - intitulado “La edad del
tiempo”. Longe de prescindir da historicidade - apanágio da literatura “pós-moderna” -
o autor parece recontar a história da nação latino-americana terra de seus antepassados:
o México.

PALAVRAS-CHAVE: Aura, Duplo, Mentalidade.

31
Aluno da Pós-Graduação do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará/ Mestrado em
Literatura Comparada.
32
Professor do Programa de Pós-Graduação do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.

24 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

ANARQUISMO E LITERATURA: IDEAIS LIBERTÁRIOS EM ROMANCES


DE LIMA BARRETO

Jane Mary Cunha Bezerra33


Profª. Drª. Irenísia Torres de Oliveira (Orientadora)34

As ideias anarquistas fizeram parte do cotidiano e do contexto histórico da obra do


escritor carioca Lima Barreto. A imprensa libertária foi o principal veículo de
divulgação dessas ideias. No entanto, encontramos em sua ficção, sobretudo nos
romances, uma outra alternativa utilizada por Lima Barreto para demonstrar sua
simpatia pelos ideais libertários que chegavam ao Brasil através dos imigrantes
europeus. Dessa forma, procuramos mostrar como os ideais de liberdade, notadamente
as ideias anarquistas, se inserem na obra de Lima Barreto, não apenas como temática,
mas, sobretudo, como inspiração básica, no seu modo despojado de escrever, sempre
disposto a não seguir regras ou paradigmas literários. Pois, a liberdade para Lima
Barreto, assim como para os anarquistas, é algo que pertence ao ser humano por
natureza. As ideias libertárias podem constituir um elemento importante para a
construção de seu estilo. Assim, a revolução proposta e defendida por Lima Barreto não
se limita somente ao âmbito social, mas, sobretudo, ao âmbito artístico. Os ideais de
liberdade, plena e absoluta, propostos pelos anarquistas não foram somente alvo de
admiração do escritor, mas, provavelmente, foram inseridos na elaboração de sua obra e
no estilo desnudo e satírico, características que fazem de sua arte um dos momentos
mais férteis, ousados e criativos da produção intelectual do Brasil no início do século
XX.

PALAVRAS-CHAVE: Anarquismo, Literatura, Ideais libertários.

33
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.
34
Professore do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

25 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

ESPAÇOS PARA O DEVANEIO: AS MUITAS CASAS DE MARIO QUINTANA

Jaqueline Soares Moura35


Profa. Dra. Fernanda Coutinho (Orientadora)36

RESUMO: O presente trabalho, vinculado ao projeto de pesquisa Infância e


Interculturalidade, coordenado pela Profª. Drª. Fernanda Maria Abreu Coutinho, tem por
objetivo analisar as recorrentes representações da casa em algumas das produções
poéticas de Mario Quintana. O embasamento teórico utilizado parte do pensamento do
filósofo francês Gaston Bachelard, que, em A Terra e os devaneios do repouso, trata do
que ele chama casa onírica, que corresponde à casa de intimidade absoluta, centro de
nossas primeiras impressões, que tem seu eixo fixado pela vida dinâmica recíproca do
sótão e do porão. Em Quintana, a espacialização aparece sob as mais diversificadas
formas e quase sempre associada a fatores temáticos tais como o ato de recordar, ao
devaneio. É nesse sentido que procuraremos investigar formas diferenciadas de
apresentação da casa, numa análise que considera as representações de espaços que
encarnam as emoções e os afetos humanos buscando, assim, uma melhor compreensão
do fazer artístico do poeta gaúcho.

PALAVRAS – CHAVE: Mario Quintana, Casa, Poesia.

35
Mestranda em Literatura Comparada do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Ceará.
36
Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

26 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

UMA TRANSPOSIÇÃO DO O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA DA


LITERATURA PARA O CINEMA

Larissa Pinheiro Xavier37


Profª Drª Soraya Ferreira Alves

Gabriel García Márquez é um dos escritores mais importantes e influentes da literatura


universal, dentre suas obras mais conhecidas está “El amor en los tiempos del cólera”
(1985), objeto do presente estudo. Essa obra literária foi transposta para o cinema em
2007, levando o mesmo nome, O amor nos tempos do cólera. A motivação para o
estudo da obra literária se deve a que a adaptação de um texto ao cinema normalmente
apresenta visões muito pessoais do diretor, linguagem diferente, o que passa a um leigo
como “infidelidade à obra de partida”, de modo que nosso objetivo é verificar até que
ponto há submissão ao texto original e como se notam as interpretações livres do diretor
e do roteirista ao traduzir a história de amor dos protagonistas. As reflexões e análises
sobre as teorias e práticas da adaptação de um meio para o outro, chamada de Tradução
Intersemiótica, tornam-se cada vez mais necessárias, à medida que vemos o seu uso em
diversos contextos sociais e culturais. O resultado da tradução proposta constitui um
novo produto, uma obra que adquire característica e status independente. A relevância
desse estudo é que este tipo de tradução não está relacionado à preocupação de perceber
ou avaliar se o filme está sendo ou não fiel à obra literária, mas a questão de que cada
uma dessas semioses tem suas características específicas e traços distintos necessários à
construção delas. A obra literária tem seus próprios recursos que lhe são únicos, assim
como o cinema.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Comparada, Tradução Intersemiótica, Cinema.

37
Universidade Estadual do Ceará.

27 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

A RESIGNIFICAÇÃO DA LEITURA E DA ARTE PARA CRIANÇAS


TEMPORARIAMENTE AFASTADAS DA ESCOLA

Larissa Rogério Bezerra38


Letícia Adriana Pires Teixeira39

A leitura é uma fonte de prazer, de informação e de aprendizado sobre tudo que nos
rodeia. Quem ler se conecta com o mundo e passa a se relacionar melhor com as
pessoas que estão a sua volta. Por isso, estimular a leitura se torna indispensável em
qualquer condição de vida, principalmente num caso de isolamento social. As crianças
hospedadas na Casa do Menino Jesus são exemplos desses casos. Devido necessidades
de tratamento médico, elas deixam suas residências no interior do Estado e se instalam
na capital. Com isso, se tornam indivíduos afastados do ambiente escolar e de suas
comunidades. Essa pesquisa pretende analisar qual o meio mais eficiente de manter
essas crianças conectadas com o mundo e como a arte poderia motivá-las a gostar de ler.
Para tanto, utilizamos os pressupostos teóricos sobre educação, leitura, artes e
lingüística, de grandes estudiosos da área, tais como Kleiman (1998), Koch (2003) e
Tolstoi (1900). O estudo foi realizado através de uma metodologia quantitativa e
qualitativa, com o método hipotético-dedutivo. Primeiramente levantamos dados e
traçamos um perfil leitor das crianças. A grande maioria delas declarou não gostar de
ler. Isso é uma forte evidência da falta de hábito e entretenimento através da leitura. Em
seguida aplicamos atividades artísticas e projetos interativos. No decorrer do estudo,
pudemos observar que existem atividades e métodos eficientes para motivar o gosto
pela leitura. Os resultados colhidos evidenciam que muito ainda precisa ser feito para
que essas crianças possam um dia se considerar leitores proficientes e autônomos.

PALAVRAS-CHAVE: Leitura, Artes, Educação, Literatura.

38
FIC.
39
Doutoranda UFC.

28 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

A LEITURA LITERÁRIA ASSUME CARÁTER IDEOLÓGICO

Lídia Barroso Gomes40


Profª. Pós-Doutora Odalice de Castro Silva41

O presente trabalho tem como objetivo discutir a leitura literária de um ponto de vista
ideológico. A linguagem é produto das interações sociais e junto a ela se encontram a
escrita e a leitura que compõem o sistema comunicativo entre os seres humanos. Para
isso, buscamos refletir sobre a relação da Literatura com o meio social, que atualmente,
se encontra restrita ao estudo sistemático das escolas e que leva, principalmente, os
jovens a encararem a leitura literária como uma obrigatoriedade, contribuindo para uma
rejeição das obras antes mesmo de conhecê-las. Porém, a leitura literária ultrapassa o
simples ato de ler, pois, ela nos leva, por diversas vezes, ao desconhecido e nos torna
aptos para compreender a realidade do outro. Nossa intenção é conscientizar os alunos
sobre a importância da prática da leitura literária e também chamar a atenção dos
professores de Literatura para o ensinamento desta de maneira diferenciada.

PALAVRAS-CHAVE: Ideologia, Leitura, Literatura.

40
Graduanda do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará – 3° semestre.
41
Universidade de Coimbra.

29 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

O DESMORONAMENTO DA LITERATURA

Mara Rúbia Freire Jucá42


Prof. Dr. Cid Ottoni Bylaardt43

Através de questões concernentes à pós-modernidade, percebemos como a cultura de


massa está se sobressaindo à literatura canônica e como a indústria cultural vem
ganhando espaço, propiciando uma destruição do poder de criação sem interesse
mercadológico, diminuindo o poder de expressão da língua, do senso crítico, da
imaginação. Após uma breve análise, tentaremos mostrar alguns pontos de contato entre
o conto “Anão de jardim”, de Lygia Fagundes Telles, e os pontos de vista de alguns
teóricos que tratam dessa temática. Os estudos de Leyla Perrone-Moisés, de Paul
Valéry, de Maria Eneida de Souza sobre o trabalho com o cânone e com o que está à
margem são fundamentais para a realização desse estudo. Dessa forma, percebemos que
a autora do conto apresenta uma linguagem rica de significados e bem elaborada, dando
a um ser inanimado o foco narrativo e, por conseguinte, sugerindo essa problemática
que vem ocasionando o abandono da literatura canônica trocada pela a da cultura de
massa. É como se fosse um chamamento, alertando o leitor para ir de encontro à
literatura, com o intuito de eternizá-la na memória dos mesmos. E o escritor parece ser o
meio de alcançar esse objetivo, através do seu poder de criação.

PALAVRAS-CHAVE: Estudos Culturais, Literatura Canônica, “Anão de jardim”.

42
Graduanda do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
43
Prof. Dr. da Universidade Federal do Ceará e Orientador do trabalho.

30 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

CIÊNCIA E COMPORTAMENTO NO CONTO “O ALIENISTA” DE


MACHADO DE ASSIS

Maria da Paz de Freitas e Sousa44

O ensaio procura analisar o conto “O alienista” de Machado de Assis (1839 a 1908).


Essa obra foi publicada periodicamente na revista “A estação” no período de outubro de
1881 a março de 1882, formando partes do que seria o volume de contos Papéis avulsos
publicado em 1882. Nosso objetivo na obra o alienista, ficção contista, centrada nos
delírios de Simão Bacamarte, médico psiquiatra da cidade de Itaguaí, em que retratar a
ciência e o comportamento das pretensões e impasses das concepções cientificas
vigentes no século XIX. Desenhada por Machado e suas influências cientificas e
essencialmente positivistas. Esse trabalho consisti em mostrar como Machado de Assis
desenhou verbalmente a critica ao poder das Ciências humanas na caricatura
comportamental de Dr. Bacamarte e a sociedade de Itaguaí.. Os saberes científicos é
representado em particular pelo positivismo. No entanto, (darwinismo, socialismo,
historicismo, determinismo, naturalismo e até religiosidade) estão em discussão. A obra
machadiana expõe como a sociedade mascara o comportamento humano, e o autor
realista com sua ironia sagaz desnuda criticamente. A análise critica deste ensaio
literário terá como referências estudiosos como; Bosi, Cozman, Pereira Cunha, Gomes e
Móisses.

PALAVRAS CHAVE: Ciência, Comportamento, Conto.

44
Graduada em Letras – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.

31 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

RELAÇÕES ENTRE A MULHER E A CRIANÇA EM “A LEGIÃO


ESTRANGEIRA”, DE CLARICE LISPECTOR.

Maria Elenice Costa Lima45


Profa. Dra. Vera Lucia Albuquerque de Moraes (Orientadora)46

Clarice Lispector constrói o imaginário feminino em constante diálogo com o cotidiano


da mulher comum. Assim, são flagrantes, em sua obra, confrontos que a figura feminina
estabelece consigo mesma e com suas relações interpessoais. Esses confrontos aqui
focalizados, decorrentes da oposição Eu versus Outro, flagram algumas particularidades
do Ser feminino presente na obra de Clarice. É, no entanto, na relação traçada entre a
protagonista do conto A legião estrangeira – adulta que se infantiliza - e a personagem
Ofélia – criança que se porta como uma adulta – que o presente trabalho pretende
revelar nuances da mulher construída no discurso de Lispector. O modo como a menina
Ofélia percebe sua vizinha e se agarra a ela para fugir aos padrões pré-estabelecidos
pela sociedade, demonstra as peculiaridades do olhar infantil sobre as coisas do mundo
e provocam reflexões acerca de inúmeras questões que estão atreladas ao gênero
feminino. É essa troca de olhares entre o infantil e o feminino na obra da autora que
dará destaque a um novo jeito de conceber a mulher e seus afetos na sociedade
contemporânea e corrobora para que o Ser feminino seja construído a partir do
imaginário infantil. A fim de fundamentar e legitimar as idéias discutidas, salientam-se
os conceitos de “núcleo de infância” e “estado de infância permanente”, desenvolvidos
por Gaston Bachelard em A Poética do Devaneio (2006), no sentido de demonstrar
incidências do infantil sobre o feminino e vice-versa, na obra clariceana.

PALAVRAS-CHAVE: Clarice, Mulher, Infância.

45
Graduanda do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
46
Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

32 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

“RETRATO DE CAVALO”: UMA METÁFORA DA CRIAÇÃO


LITERÁRIA

Maria Tatiana Silva de Sousa47


Tércia Montenegro Lemos48

Dada a riqueza da obra de Guimarães Rosa e as diversas interpretações que ela


possibilita, nosso trabalho tem como objetivo central analisar a metalinguagem em um
dos contos de Guimarães Rosa, “Retrato de cavalo”, inserido em Tutaméia, último livro
que o autor publicou em vida. Nosso intuito é mostrar como o autor mineiro constrói
uma metáfora da criação literária, estabelecendo um paralelo entre o real, representado
no conto pelo cavalo do personagem Bio, e o figurado, bem definido no retrato tirado do
cavalo com uma moça que seria namorada do dono da fazenda na qual Bio trabalha.
Será esse jogo entre a realidade e a criação artística, realizado pelo autor no desenrolar
da narrativa, que analisaremos do decorrer deste artigo, buscando mostrar, por meio de
trechos, como se dá a metáfora da criação literária, tendo em vista que esse recurso tem
bastante representatividade no decorrer da obra em que está inserido “Retrato de
cavalo”, pois Tutaméia ilustra de forma clara a composição artística roseana que é
enfatizada, principalmente, nos quatro prefácios contidos na obra, que tratam aspectos
como a diferença entre a estória e a história, a inspiração, a transformação do real em
ficção e a composição dos contos e romances do escritor mineiro.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Brasileira, Guimarães Rosa, Tutaméia, “Retrato de


cavalo” e Metalinguagem.

47
Graduanda do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará
48
Prof. Dra. Adjunta do departamento de Letras Vernáculas da UFC

33 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

O USO DE TEXTOS LITERÁRIOS NAS AULAS DE LÍNGUA ESTRANGEIRA:


PROMOVENDO INTERAÇÕES INTER E EXTRATEXTUAIS

Maria Viviane Matos de Lima49


Ana Célia Clementino Moura50

Um dos fatores indispensáveis no ensino de LE é a abordagem de textos literários em


sala de aula. Por apresentar um caráter sócio-cultural, a literatura possibilita o
enriquecimento das competências interativas e comunicativas através da compreensão
leitora. Dentro dessa perspectiva, o presente trabalho visa abordar o uso de textos
literários nas aulas de LE, atentando para o fato de como este suporte pode enriquecer a
prática dos professores e o aprendizado dos alunos. As reflexões acerca do assunto são
frutos da análise de materiais científicos promovidos pela disciplina de Teoría y
práctica de enseñanza de la lengua española, que faz parte do currículo do curso de
Letras da Universidade Federal do Ceará. Ao propor analisar o processo de ensino
aprendizagem de uma nova língua, bem como o espaço reservado à literatura nesse
processo é necessário suscitar alguns estudos ancorados na Linguística Aplicada,
especificamente. Dentre esses estudos serão destacadas as pesquisas voltadas ao
trabalho com textos à luz da análise do discurso, também as implicações ocasionadas
pela interação texto-leitor. Em conclusão, tais pesquisas tem contribuído para uma
melhor compreensão acerca do assunto proposto, enriquecendo o trabalho com textos
literários na medida que são percebidos como excelentes suportes nas aulas de LE por
apresentar variadas possibilidades de uso que auxiliam o aprendiz tanto em sala de aula
como fora dela.

PALAVRAS-CHAVE: Língua estrangeira, Literatura, Interação.

49
Graduanda em Letras pela Universidade Federal do Ceará.
50
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará.

34 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

CONCEIÇÃO E MARIA AUGUSTA: DUAS MULHERES SERTANEJAS DE


RACHEL DE QUEIROZ

Mayara de Miranda Lima51


Marcílio Garcia de Queiroga52

Análise de protagonistas femininas das obras O Quinze e As três Marias de Rachel de


Queiroz. Mostra os pontos convergentes existentes nas protagonistas Conceição de O
Quinze e Maria Augusta de As três Marias. Analisa duas de muitas protagonistas
femininas de Rachel de Queiroz, que mostra nas obras estudadas, uma mulher sertaneja
que é moderna e decidida, porém confusa e desentendida; mostra, enfim, uma mulher
sertaneja diferente daquela vista aos olhos da sociedade da época e ainda vista nos dias
atuais. Em O Quinze temos Conceição, professora e leitora assídua que se mostra culta,
independente e só, que se vê dividida entre a intelectualidade, os problemas dos
retirantes e o amor de Vicente. O amor pelo primo Vicente não se concretiza pelo fato
da protagonista ter um nível de conhecimento mais alto que o dele. Em As três Marias
temos Maria Augusta, que entre medos da infância e conflitos da adolescência, narra
parte de sua história de vida; Guta acha o sertão, seu lugar de origem, monótono, e sai
de lá em busca de sua identidade. O pequeno estudo se desenvolve a partir de consultas
a livros, bibliotecas virtuais e produções acadêmicas. Mostra a sublimidade de duas
mulheres que em pleno sertão nordestino, onde a religiosidade e a sociedade são
extremamente fortes, vivem como desejam, apesar de tantos conflitos pessoais,
quebrando assim os conceitos impostos para a mulher naquela época e ainda nos dias
atuais, chegando a conclusão de que as personagens de Rachel permanecem vivas em
nossa sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: Mulher, Sertão, Sociedade.

51
Graduanda do curso de Letras da UFCG. Especializanda em Língua, Lingüística e Literatura pela FIP –
Faculdades Integradas de Patos.
52
Mestre em Literatura Brasileira pela UFPB e Professor do curso de Letras da UFCG.

35 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

LITERATURA INFANTIL: ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO DE


SENTIDOS EM RECONTOS DE HISTÓRIAS

Meire Virginia Cabral Gondim53


Prof.ª Drª Sylvie Ghislaine Delacours Soares Lins54

Esse artigo é fruto de uma pesquisa de Mestrado em Educação-UFC que apresentou


como principal objetivo analisar as estratégias de construção de sentidos, sobretudo as
repetições, foco deste estudo, utilizadas pelos alunos do 5º ano de uma escola pública
municipal de Fortaleza. Para esse objetivo, inserimos as aulas de Língua Portuguesa
quatro atividades com as crianças: recontação de uma narrativa conhecida pelo aluno;
leitura individual da história; recontação da narrativa recém-lida; e, em média, quatro
meses depois, recontação da mesma história. Nosso corpus apresentou 45 textos,
coletados em três momentos - 1ª, 2ª e 3ª recontação. Nossa análise objetivou evidenciar
que o trabalho com a recontação de histórias na escola contribuiu para a construção de
estratégias de produção textual que também se mostram presentes na escrita, mas que
são ocultadas no momento de revisão. Nesta perspectiva, os participantes deste trabalho,
reconstruíram uma narrativa oral e fizeram uso de estratégias lingüísticas e discursivas
como as repetições, as correções, as sintetizações, os marcadores conversacionais, os
conectivos de ligação – estratégias utilizadas para promover o sentido de suas produções
no momento em que recontavam histórias. As repetições foram usadas para dar clareza
ao enunciado, para enfatizar a continuidade e a intensidade da ação, além de indicar
sucessão temporal, aspectos relevantes para a construção da narrativa.

PALAVRAS- CHAVE: literatura infantil, narrativas orais, repetições, crianças.

53
Mestre em Educação - UFC, Especialista em Psicopedagogia-UFC, Graduada em Letras -UECE.
Doutoranda em Lingüística-UFC. O presente trabalho contou com o apoio CAPES-FUNCAP.
54
Graduada em Psicologia - Université Paris VIII, Mestre em Educação - Université Paris V- Doutora em
Educação - Université Paris V. Pós doutorado - Institut National de la Recherche Pédagogique- Paris.
Professora de Psicologia da Educação- UFC

36 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

ANTÔNIO CONSELHEIRO: UM EXEMPLO DO PERSONALISMO


BRASILEIRO
]

Monalisa Lima Torres55


Aline Cristina S. Muritiba56
Profª Ana Maria Tavares (Orientadora)57

Este trabalho aborda a questão do Personalismo em uma das maiores figuras da


historiografia brasileira, Antônio Vicente Mendes Maciel ou como todos conhecem
Antônio Conselheiro. Personagem notável de sua época, com seu carisma inconfundível
arrastou uma multidão de fies, construiu uma comunidade impensável num momento
em que o país sofria com a transição da Monarquia para a República, desafiou os
poderosos coronéis e como conseqüência foi atropelado em nome do progresso.
Baseados nos estudos realizados por Sérgio Buarque de Holanda a respeito da formação
da sociedade e da cultura brasileiras, em sua grande obra “Raízes do Brasil”, abordamos
a questão do poder carismático e de como figuras carismáticas conseguem influenciar e
conquistar a simpatia das massas. A partir daí nos debruçamos sobre a figura de
Antônio Conselheiro utilizando como fonte de pesquisa o filme de Sérgio Rezende:
“Guerra de Canudos” assim como a obra “Os sertões” do imortal Euclides da Cunha.

PALAVRAS-CHAVES: Personalismo, dominação carismática, Sérgio Buarque de


Holanda, Antônio Conselheiro, Guerra de Canudos.

55
Bacharelanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará – UECE.
56
Bacharelanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará – UECE.
57
Mestre em Literatura comparada pela Universidade de Dijon na França e Professora do Curso de Letras
da Universidade Estadual do Ceará – UECE.

37 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

ELEMENTOS EMBRIONÁRIOS DAS OBRAS INDIANISTAS DE JOSÉ DE


ALENCAR NAS CARTAS SOBRE A CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS

Nathan Matos Magalhães58


Sandra Mara A. da Silva59
Marcelo Peloggio (Orientador)60

Trata-se de um estudo comparativo entre as obras indianistas de José de Alencar


(Iracema, O Guarani e Ubirajara) e a crítica feita por ele A Confederação dos Tamoios,
de Gonçalves de Magalhães. Nossa pesquisa tem por objetivo verificar se há uma
relação entre a criação das personagens indianistas do escritor e as ideias defendidas por
ele nas cartas sobre o poema épico do inaugurador do Romantismo no Brasil.
Este estudo iniciou-se com a leitura das cartas de Alencar sobre A Confederação dos
Tamoios; analisamos as principais ideias defendidas pelo autor em relação à descrição, à
obediência, aos preceitos estéticos e ao próprio processo criativo de uma obra literária.
Em seguida demos início à leitura das obras indianistas observando as influências das
ideias contidas nas cartas sobre os volumes citados
Dentre os teóricos que nos serviram de base destacamos José Aderaldo Castelo, que nos
fala sobre a importância dessa crítica sobre o poema de Magalhães, permitindo que
críticos e escritores tomassem “uma posição” em relação ao Romantismo no Brasil; e
Araripe Júnior, que defendia a visão de que as cartas sobre A Confederação dos
Tamoios seriam um “plano da epopéia de Alencar”. Dessas opiniões basilares
decidimos encontrar características que provem a ligação entre as ideias contidas nas
cartas e a construção dos livros indianistas.
Após confrontarmos os principais pensamentos escritos por Alencar, podemos perceber
que os pontos observados por ele como falhas na obra de Gonçalves de Magalhães
foram solucionadas por ele ao compor seus personagens: Iracema, Peri e Ubirajara.

PALAVRAS-CHAVE: José de Alencar, A Confederação dos Tamoios, Romances


indianistas.

58
Aluno da Universidade Federal do Ceará. Graduação em andamento no curso Letras
Literatura/Português.
59
Aluna da Universidade Federal do Ceará. Graduação em andamento no curso Letras
Literatura/Português
60
Doutor em Letras pela Universidade Federal Fluminense, Brasil (2006). Atuação em Literatura
Comparada. Professor Adjunto da Universidade Federal do Ceará, Brasil.

38 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

LUXÚRIA: LEITURA RESIDUAL DE UM PECADO CAPITAL NA IDADE


MÉDIA

Patrícia Elainny Lima Barros61


Elizabeth Dias Martins62

Considerado um dos grandes expoentes do Realismo português, Eça de Queirós


desperta discussões entre os seus estudiosos, principalmente pelo teor ácido de suas
críticas em relação à sociedade portuguesa do século XIX – barões, doutores, políticos,
o clero, a burguesia –, a qual descreve minuciosa e fidedignamente, à luz daquele
contexto e sob o seu ponto de vista. A instituição religiosa, através do clero, é um dos
vários objetos de observação queirosiana. De personalidade contrária à religiosidade, os
homens eclesiásticos, para o autor, estão mais preocupados com os prazeres temporais
que com os espirituais, atitudes, segundo preceito moral cristão, pecaminosas. N’Os
Maias, elementos eclesiais são recorrentes, principalmente no que tange ao pecado, ou
para sermos mais pontuais, aos sete pecados e às virtudes que os contrapõem. Estas
faltas são cometidas por vários tipos da sociedade local, demonstrando que resíduos do
universo cristão-católico se fazem presentes, consistente e consideravelmente, em obra
do século XIX, embora Eça de Queirós, tradicionalmente, não comungue com tais
preceitos. Entre os pecados capitais mais combatidos na Idade Média encontra-se a
Luxúria, Mal de Pecado – segundo Adolphe Gesché –, que consiste na busca do prazer
carnal desregrado e, portanto, classificado conforme a mentalidade eclesiástica como
pecado capital, uma vez que dissemina outros vícios. Durante a Idade Média, o Mal,
também de acordo com o cristianismo católico, esteve diretamente relacionado ao sexo
cujos praticantes e propagadores era a minoria social: os bruxos (geralmente mulheres),
os hereges, os judeus, os leprosos, as prostitutas e os sodomitas. Tenases combatedores
do Mal, os doutores da igreja trataram de segregar da sociedade aqueles que
contaminavam os cristãos puros; vestes diferenciadas marcavam e excluíam do convívio
social os que se entregavam à luxúria. Baseados nesse contexto, o medieval, faremos
uma breve leitura sobre a impureza e de como o pecado capital em questão foi tomado
pelo órgão detentor do maior poder nesse período, a Igreja, associado diretamente ao
responsável por excelência pelo Mal, o Diabo.

PALAVRAS-CHAVE: LUXÚRIA; PECADO; IDADE MÉDIA.

61
Aluna do Mestrado em Letras do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do
Ceará.
62
Doutora pela PUC-RJ e Professora adjunta do Depto. de Literatura e do Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Ceará.

39 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

DÔRA, DORALINA: PODER E SUBMISSÃO

Raquel Guimarães Mesquita63


Sulamita Vieira64

Este artigo apresenta uma análise acerca da legitimação do poder exercido pela
personagem Senhora, do livro Dôra, Doralina, da escritora Rachel de Queiroz. A
narrativa se passa em três décadas – dos anos 1930 aos anos 1950 – e conta a estória da
personagem Dôra, Doralina que busca se libertar das rédeas da mãe; primeiramente,
através do casamento e, depois da morte do marido, ingressando em uma companhia de
teatro. No livro, mãe e filha se opõem e, assim, entram constantemente em atrito.
Tomando como objeto de análise essa relação, nos detivemos especialmente na figura
materna, Senhora. Senhora é viúva e, desde a morte do marido, arca com os cuidados
com a filha e assume o comando da fazenda. Teoricamente ancorada em Max Weber,
buscamos entender como se dava o exercício de mando desta personagem sobre sua
filha, Dôra; seu genro, Laurindo e os funcionários da fazenda. Referido autor, com sua
teoria dos tipos de dominação nos possibilitou uma maior compreensão sobre como e
porque o mando exercido por Senhora era aceito, ou seja, legitimado. Além de Weber,
utilizamos dois outros autores, Gilberto Freyre e June Hanter. Estes nos forneceram
uma perspectiva histórica, sobre como se davam as relações de gênero durante todo o
século XX. Foi a partir da leitura desses autores que embasamos a análise dos discursos
das personagens, procurando aplicar a teoria weberiana ao universo relacional estudado.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura, Sociologia, Weber, Poder, Legitimação.

63
Universidade Federal do Ceará – UFC.
64
Doutora em Sociologia, professora da Universidade Federal do Ceará – UFC.

40 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

DESSACRALIZAÇÃO DO DISCURSO, REESCRITURA E CÂNONE: OS


DOZE NÓS DE HERBERTO HELDER

Roberto Bezerra de Menezes65


Cid Ottoni Bylaardt66

A partir do livro Doze nós numa corda (1997), de Herberto Helder, propomos algumas
reflexões sobre o processo de tradução como reescritura, dessacralizando a
proeminência do discurso primeiro sobre o traduzido, mais especificamente no caso da
poesia. Consideramos ainda especular em que medida o autor cria sua tradição e como
essas relações implicam diretamente na sua criação poética. Esta leitura leva em conta a
visão de André Lefevere, principalmente no livro Tradução, reescrita e manipulação da
fama literária (2007). Entretanto não se esmiúça em torno da posição ideológica ao qual
o processo de reescritura geralmente é relacionado. Privilegiamos, portanto, a
reescritura que joga com o discurso sacralizado, que se apropria do texto do outro
recriando em meio ao processo tradutório. Para tais considerações, baseamo-nos,
sobretudo, no pensamento de Maurice Blanchot, e ainda em Foucault, Deleuze e
Compagnon. A relação entre a dessacralização do discurso, a reescritura e o cânone,
assim como a construção da poética particular de Helder a partir de suas afinidades
eletivas, nortearão nossa discussão.

PALAVRAS-CHAVE: Escritura, Linguagem, Poesia brasileira.

65
Aluno do Mestrado em Letras do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do
Ceará.
66
Professor Adjunto II do Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará e orientador da
pesquisa.

41 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

A PASSAGEM DO MÍTICO PARA O HISTÓRICO EM IRACEMA

Rodrigo Vieira Ávila de Agrela67


Marcelo Almeida Peloggio68

Neste artigo, trabalharemos com dois conceitos fundamentais: o de panteísmo e o de


totalidade do ser. No primeiro, Deus se faz presente na natureza de forma absoluta –
definição que nos remete ao princípio de totalidade do ser, ou seja, a heroína Iracema
viveria em um mundo fechado, numa esfera imperturbável, pois que tudo que precisa
encontra na natureza. Todavia, no correr da narrativa, há uma cisão, o que resulta na
formação de duas esferas: a da Iracema mítica, que vive em um mundo de perfeita
interação com a natureza; e da Iracema histórica, que vai servir de alegoria para explicar
a história do Ceará, destacando a submissão da índia tabajara ao branco europeu. Por
um lado, portanto, Iracema vive em total harmonia com o meio; não possui conflitos
psicológicos ou indecisões, o que a faz um ser pleno e mítico; por outro, é refém do
tempo e da mudança, isto é, da História.

PALAVRAS-CHAVE: Iracema, Panteísmo, Mítico, Totalidade, Natureza.

67
Estudante de Letras pela Universidade Federal do Ceará; membro do grupo de estudos José de Alencar
– UFC.
68
Professor Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense; Professor Adjunto
de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Ceará (UFC); coordenador do grupo de estudos José
de Alencar – UFC.

42 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

TRÊS RESÍDUOS EM PASÁRGADA

Rosiane de Sousa Mariano Aguiar69


Prof. Dr. Roberto Silveira de Pontes Medeiros (Co-autor)70
Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros (Orientador)71

O presente trabalho analisa o poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, de Libertinagem


(1930), do poeta modernista brasileiro Manuel Bandeira que foi, juntamente com
Oswald e Mário de Andrade, responsável pela divulgação e solidificação desse
movimento em nosso país, pois promoveu um rompimento com as estéticas tradicionais
através de uma quebra da linearidade estilística, ao desenvolver um viés original e
inovador em seu fazer literário. O objetivo é trabalhar três resíduos que povoaram o
imaginário de Bandeira na feitura desse poema. O primeiro traz certa aproximação com
o substrato mais antigo da idéia de Paraíso; o segundo, mostra que a imaginação de
Bandeira também estava a captar os prazeres da “Ilha dos Amores” no texto camoniano;
e o terceiro, apresenta analogias com a poética de Charles Baudelaire. A Pasárgada de
Bandeira é símbolo da ilha paradisíaca, um paraíso perdido, existente na sua
imaginação, na qual o poeta só teve livre acesso pela linguagem. Ela é uma soma da
projeção poética e simboliza o momento de sua chegada ao destino lírico por
representar o “reajustamento ao mundo dos sãos”. Nossa análise busca restituir o “Vou-
me embora pra Pasárgada” ao mundo da fabulação de onde veio. Antes de qualquer
coisa, “outra civilização” em que couberam o mito e o seu paraíso poético.

PALAVRAS-CHAVE: Poesia, Manuel Bandeira, Pasárgada, Resíduo.

69
Doutoranda em Literatura Comparada/UFRN.
70
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras/UFC.
71
Professor do Departamento de Letras/UFRN.

43 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

A PROSA DOUTRINÁRIA COMO FONTE PARA O CONHECIMENTO DA


CIÊNCIA MEDIEVAL: MEDICINA E FARMÁCIA NO LIVRO DA CARTUXA

Samantha de Moura Maranhão72

Este trabalho contextualiza a Prosa Doutrinária na sócio-história em que se desenvolve,


quando da instauração da Dinastia de Avis e a constituição de uma nova corte, de cuja
instrução moral e técnico-científica dependia a sua aceitação pelas demais cortes
européias. O registro do conhecimento técnico-científico nas obras então produzidas as
torna excelentes fontes históricas, a exemplo do Livro da Cartuxa, compilação de textos
sobre os mais diversos temas, como administração, astronomia, economia, educação,
engenharia, política, saúde e tradução, anotados por D. Duarte entre os anos de 1423 e
1438. O objetivo deste estudo é analisar o vocabulário de 25 capítulos do Livro da
Cartuxa que versam sobre Medicina, Farmácia e Nutrição para depreender o
conhecimento, nestas áreas, de que os portugueses quatrocentistas eram dotados. A
hipótese testada é a de que o vocabulário dos capítulos analisados testemunha práticas e
crenças peculiares à ciência medieval, caracterizando-se, hoje, como arcaísmos ou
obsoletos. A fundamentação teórica se pauta na Teoria dos Campos Semânticos,
conforme proposta por Trier (1931), empregando-se o método semasiológico na
constituição dos campos semânticos a serem investigados. Analisaram-se os vocábulos
distribuídos por 04 campos semânticos: 1. doenças e sintomas; 2. saúde; 3. tipos de
medicamentos e 4. unidades de peso e medida. Concluiu-se pela corroboração da
hipótese, dado que todos os campos semânticos registram vocábulos que já não mais se
usam ou que sofreram mudança semântica.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura e Memória; Prosa Doutrinária; Lexicologia;


Português Arcaico.

72
UFPI/UFC/CAPES.

44 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

CHEFE ZEQUIEL E A MEMÓRIA DA NOITE: UMA LEITURA DA


LINGUAGEM NOTURNA EM “BURITI” DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Sarah Maria Forte Diogo73

Introdução: Para João Guimarães Rosa, o sertão é figurado como espaço que
surpreende aquele que o adentra. A novela “Buriti” (1956) narra a estória da fazenda
Buriti Bom e dos personagens que a habitam ou por lá transitam, bem como as
mudanças que eles sofrem a partir de relações intersubjetivas que estabelecem. Essas
relações se desenvolvem sobre dois eixos: o profano – relações eróticas – e o sagrado –
relações com o transcendental. Chefe Zequiel é uma das figuras mais misteriosas desta
novela, desempenhando o papel de guardião de mistérios que ele próprio não
compreende. Habita um monjolo, vive da cultura de subsistência e é acossado por
pavores noturnos, pois acredita que alguém irá assassiná-lo durante a madrugada.
Objetivos: Identificar aspectos da memória da noite – sons e mitos – mediante a análise
da linguagem de Chefe Zequiel. Articular a linguagem dessa personagem ao enredo da
obra. Metodologia: Leitura crítico-reflexiva da narrativa “Buriti” e seleção dos
principais temas que surgem nessa novela. Resultados finais: A linguagem de Chefe
Zequiel, à primeira leitura, parece desconexa, mas é resultado de um amálgama cultural
que forja um discurso delirante constituído por sons que encenam o nascimento da
noite. Conclusão: Em “Buriti”, a memória da noite converte-se em linguagem e
apresenta duas faces: os sons que remetem para os mitos e os mitos reconstruídos que,
articulados à língua, encenam o drama da linguagem e a fuga do referente.

PALAVRAS-CHAVE: João Guimarães Rosa, Linguagem, Noite.

73
Mestre em Letras – Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC)

45 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

A CRISE DA REPRESENTAÇÃO DA ARTE, DO CLÁSSICO AO PÓS-


MODERNO: UMA LEITURA SOBRE O CONTO “RETRATO DE CAVALO”,
DE GUIMARÃES ROSA

Thiago Henrique Gonçalves Alves74


Pedro Jorge da Silva Marques75
Prof. Dr. Cid Ottoni Bylaardt76

A Literatura, como os demais campos da cultura e da arte, não é um fenômeno isolado.


Ela influencia e é influenciada por escritores do passado e do presente, por outras artes,
por fatores políticos e sociais, por modismos, por movimentos culturais etc. Esse
trabalho é uma reflexão, com base nos conceitos clássicos e pós-moderno, muito
pertinente ao meio acadêmico, sobre o questionamento e sobre a representação da arte
ou, como alguns preferem, sobre a crise da representação da arte que, no texto, ora
aparece como contemporânea, ora como clássica. Esta última, com maior freqüência. A
questão da concepção por trás da referência que as personagens fazem a respeito do
retrato do cavalo: é clássica? É pós-moderna? Ou são ambas? Foram essas indagações
que deram origem ao presente artigo que, através de uma leitura do conto Retrato de
cavalo de Guimarães Rosa, mostra como a arte é abordada tanto numa visão clássica
como pós-moderna, confirmando, assim, o conceito de desconstrução defendido por
Derrida que é justificado também pelo conceito de entropia, em que tudo é válido, todos
os discursos são possíveis, pois o conto, como sendo também uma forma de arte, tem
uma significação aberta que possibilita constantes modificações e interpretações.

PALAVRAS-CHAVE: Arte Clássica, Arte, Crise da Representação, Pós-Modernismo.

74
Graduando do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
75
Graduando do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
76
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

46 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

RESÍDUOS DO AMOR TROVADORESCO PROVENÇAL NO SONETO


CAMONIANO “QUANDO, SENHORA, QUIS AMOR QUE AMASSE”

Yashmin Michelle Ribeiro de Araujo77


Prof. Dr. Roberto Pontes78

Camões, célebre autor do Classicismo, muito contribuiu para o cenário literário europeu
com Os Lusíadas e sua extensa produção lírica, composta de odes, canções, sextinas,
églogas, elegias, sonetos. Nestes últimos trabalhou diferentes temáticas. Tomaremos
para análise a que vislumbra o amor de natureza platônica e irrealizável, destinado com
devoção suprema a uma Senhora inatingível. Defendemos que tais traços revelam
resíduos do serviço amoroso à moda trovadoresca, materializador da coyta d’amour e
de diversas regras do código do amor cortês, recebido da Provença pelos portugueses.
Sendo assim, o presente trabalho objetiva, valendo-se dos princípios da Teoria da
Residualidade, identificar como vêm a lume no soneto de Camões “Quando, senhora,
quis Amor que amasse”, os resíduos e os substratos mentais característicos desse tipo
de serviço amoroso cultivado no medievo. E, para tanto, propomos sua análise temática
e lexical. Dessa forma, procuramos enfatizar a presença viva de um modo de amar do
medievo, tornado resíduo e cristalizado nesse soneto do poeta quinhentista.

PALAVRAS-CHAVE: Resíduos, mentalidade, Camões, serviço amoroso.

77
Graduanda em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Bolsista de monitoria da disciplina
Literatura Portuguesa III e membro do grupo de pesquisa Estudos de Residualidade Literária e Cultural.
78
Professor Associado II do Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará - UFC.

47 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

A CONCEPÇÃO DE PALAVRA E A CONSTRUÇÃO DE SÍMBOLOS EM


LAVOURA ARCAICA, DE RADUAN NASSAR

Yvanna Peixoto de Vasconcelos Guimarães79


Prof. Dr. Cid Ottoni Bylaardt80

Raduan Nassar publicou, em 1975, seu primeiro romance, intitulado Lavoura Arcaica.
Como o título sugere, a obra trata de uma família que possui moral e costumes
medievais. Símbolos e parábolas bíblicas também são bastante presentes no livro, assim
como as subversões dos mesmos. Pretendemos, no presente trabalho, apresentar
algumas quebras e inversões de símbolos bíblicos encontrados no romance citado, assim
como realizar considerações sobre a construção de imagens e metáforas através de
André, personagem principal. Tentaremos também refletir sobre a concepção de palavra
e de linguagem através da fala do narrador-personagem e do seu pai. Em Lavoura
Arcaica, a palavra e a linguagem possuem um sentido fortemente ligado ao contexto
bíblico. No discurso do pai de André (que poderia ser entendido também como o pai da
palavra), bem organizado e articulado, elas são apresentadas como fontes inegáveis de
verdade e certeza. Elas são a solução para todos os conflitos, e precisamos ficar atentos
a elas, pois a palavra, segundo ele, liberta. A partir da construção do discurso do pai,
que é fundamentado na bíblia, André, o filho pródigo, irá transgredir toda a fala de seu
patriarca, a partir de sua fala não-linear, desconexa e confusa, mostrando ao leitor como
a palavra é traiçoeira, dissimulada, morta e cheia de ausências. A partir das teorias de
Maurice Blanchot e de Eni Puccinelli Orlandi, buscamos refletir sobre as duas
concepções de palavra e linguagem presentes na fala dos dois personagens.

PALAVRAS-CHAVE: Palavra, Linguagem, Símbolos.

79
Graduanda do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
80
Professor do Programa de Pós-Graduação do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.

48 ISSN: 2179-4154
TRABALHOS COMPLETOS
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
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A MARGINALIDADE DOS PEQUENOS HONESTOS: O COTIDIANO DOS


CONTOS DE MALAGUETA, PERUS E BACANAÇO DE JOÃO ANTÔNIO

Airton Uchoa Neto1


Irenísia Torres de Oliveira (Orientadora)2

Desde o fim da década de 1990, têm-se retomado o nome e a obra do escritor


paulistano João Antônio Ferreira Filho para tentar arrancar o autor do ostracismo em
que mergulhara o autor até sua trágica morte em 1996. Comentar esse dado
bibliográfico – e aqueles que conhecem a vida e a obra de João Antônio, ao ouvir uma
menção à sua morte, talvez pensem num outro autor, dedicado, que fizesse o relato vivo
e realista dos últimos momentos do autor morto, encontrado no próprio apartamento,
envolto em sua farta correspondência e pelos projetos literários a concluir, já em estado
de putrefação, pelos bombeiros e pela polícia depois de ter sido dado como
desaparecido durante semanas, um relato digno do próprio João Antônio – poderia
parecer desnecessário para uma análise que se detém no livro de estréia do autor. Mas
não é bem assim. Pense-se no contexto em que sua obra reapareceu, começou a ser
valorizada, em boa parte por iniciativa de jornalistas e escritores que tiveram contato
direto com João Antônio. Devido às próprias preocupações e ao ideal de literatura
reiteradamente confessado por João Antônio, pode se ter uma idéia de sua obra
(literária) como um relato meramente sociológico ou jornalístico – e a redescoberta
recente do autor muito se deve às discussões sobre o novo jornalismo americano dos
anos de 1960 e seus pares brasileiros – ou se ler a ficcionalização que o autor faz da
realidade de um ponto de vista excessivamente unívoco e, portanto, prejudicial à sua
compreensão.
João Antônio é conhecido como cronista da malandragem – de uma
malandragem já prestes a se extinguir nos grandes centros urbanos que a geraram; que
inspirava um imaginário romântico e boêmio sobre as camadas marginalizadas da
sociedade; que com o crescimento acelerado dessas mesmas cidades e o avanço da
industrialização acabou, mais diretamente em conseqüência do paralelo aumento da
desigualdade social, sendo paulatinamente substituída pelo crime organizado, que,
1
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.
2
Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense. Professora do Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

49 ISSN: 2179-4154
VI Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários
Universidade Federal do Ceará – 27 a 30 de outubro de 2009

como a malandragem romântica que a antecedia e de que descenderia conflituosamente,


se adaptava as transformações do espaço urbano. Mas é preciso ter em mente que,
quando João Antônio assimila na sua ficção esses elementos da realidade, esses
fenômenos mais nomeadamente “sociológicos”, os conceitos da malandragem e mesmo
de marginalidade são dinamizados de um modo específico, adaptado à estrutura de suas
narrativas.
Citar o tão polissêmico conceito “malandragem” naturalmente remete a que se
revejam as reflexões de Antonio Candido e os comentários de Roberto Schwarz sobre
esse fenômeno da malandragem como encontrado no seminal Memórias de um sargento
de milícias. A dialética da malandragem que Antonio Candido encontra e explica na
obra de Manuel Antônio de Almeida muito têm a ver com as práticas das personagens
marginalizadas de João Antônio – que mais de uma vez se confessou herdeiro de
Manuel Antônio de Almeida. Os malandros de João Antônio, os jogadores de sinuca
trapaceiros, os cafetões, os leões-de-chácara e, enfim, os operários e burocratas do baixo
escalão inconformados com a vida regrada e atraídos pela vida boêmia, também se
inserem, se salvam, dentro da dialética da ordem e da desordem, ou, como no caso dos
últimos citados, anseiam por poder se utilizar dela. Os primeiros, os claramente
marginalizados, fichados e espreitados pelas forças repressoras da polícia, se valem
orgulhosamente da picardia, o que os torna herdeiros de Leonardo Pataca e de sua
genealogia. Mas, diferentemente do herói de Antônio Manuel de Almeida, os
personagens de João Antônio não são facilmente identificáveis com tipos gerais,
estereótipos. Sua vida psicológica, apesar de relegada a segundo plano por esses seres
brutalizados, aflora complexa e pesadamente dolorosa depois de tanto tempo reprimida.
A ironia é mais ácida e o senso de humor, bem mais cínico e sombrio. Para essas
personagens, não há vitória permanente, pois são ao mesmo tempo agentes reativos e
vítimas da violência, violência que é mostrada, nesses contos, de um modo bem cru, nas
suas várias modalidades.
Para compreender a dinâmica dos contos de João Antônio e o drama sonâmbulo
das suas personagens, é preciso compreender a falta de perspectiva e os destinos
fechados como, também, uma forma de violência que se institucionaliza. Uma das
maiores tensões observadas nessas narrativas é a dos seus pequenos heróis, o homem
comum, ou anti-heróis, o marginal que ruma da crônica policial ao esquecimento, que

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tentam a todo instante, e como podem, vencer o atavismo, as forças deterministas que os
prenderiam onde estão – perceba-se isso no comentário de Rodrigo Lacerda (2009),
segundo o qual boa parte das personagens de João Antônio existiram na vida real, com
os seus mesmos apelidos, e presentemente são muito mais personagens da ficção do que
pessoas que viveram em carne e osso, mas de alguma forma continuam, presentes e
incômodas, graças a seus pares inventados. Os mais conhecidos, os bandidos e
marginais – Paulinho Perna Torta, Joãozinho Babilônia e o narrador do conto-título – e
os pequenos marginais, como as personagens Malagueta, Perus e Bacanaço, lutam mais
diretamente para sobreviver ou até para se vingar da sociedade de que os produziu (em
João Antônio as personagens que se encontram na franca condição de bandidos nunca
se encontram nessa mesma condição por decisão deliberada, mas sim por força de
circunstância totalmente fora do seu controle).
Mas não se pode esquecer da importância, na obra do autor, daquele outro tipo
de personagem, ainda mais invisível, o trabalhador comum sem perspectiva.
O livro de estréia de João Antônio, sobre o qual se concentra essa análise, é a
coletânea de contos Malagueta, Perus e Bacanaço, de 1963. A coletânea é dividida em
sessões, como o autor faria, também, nos livros posteriores. As sessões são: Contos
gerais, Caserna e Sinuca. Os três primeiros contos da primeira sessão remetem a uma
constante situação de insatisfação com a vida das personagens-narradoras. Segundo
Vima Lia Martin (2008, p. 73):

As personagens que protagonizam os três contos são “otários” que rejeitam


os valores burgueses cultivados por seu meio social e sofrem de uma
insatisfação profunda advinda de uma certa consciência que possuem acerca
das contradições sociais e das limitações inerentes ao lugar social que
ocupam. São personagens masculinas que, ao sofrerem a experiência do
deslocamento psíquico e ou social, acabam por ser porta-vozes da angústia
daqueles que não incorporam a ideologia burguesa, pautada em valores como
o trabalho e a família. (MARTIN, 2008, p. 73)

Esses contos são mais dedicados à memória da juventude do próprio autor, na


qual João Antônio recorre ao sumário-narrativo e a breves cenas postas mais ou menos
em ordem cronológica. Servem para ajudar a compreender a formação do cotidiano do
personagem. Ressalte-se, ainda, nesses contos, a fixação dos personagens pela rua, por
um distanciamento do cotidiano ordeiro e das expectativas mesquinhas das suas
famílias. E não por acaso o livro abre com um conto chamado “Busca”, sucedido pelo

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célebre “Afinação na arte de chutar tampinhas”. Mas é no conto “Visita”, o segundo da


sessão “Sinuca”, que esse conflito se torna mais gritante. Enquanto os personagens dos
contos anteriores vagam não sabendo ao certo em busca do que, mas talvez bem certos
daquilo que não querem, o personagem-narrador de “Visita” é um arrimo de família que
se torna um trabalhador responsável após um bom tempo preocupando a família e
escandalizando a vizinhança ao levar a vida no jogo de sinuca. A pressão social faz com
que ele mude, mas o narrador, claramente, não acredita no papel que lhe impuseram
nem lhe vê futuro.

(…) bobagem economizar níqueis. Jamais se tem alguma coisa. A taxa do


colégio, uma farra qualquer, levam tudo. O diabo é que eu não nasci trouxa,
aqueles tempos de jogo, quando desempregado, me ensinaram que eu não
nasci trouxa. Agora, o salário minguado dá para cigarros de vinte cruzeiros e
cachaça de quando em quando. Se o mês aperta, corta-se isso. (FERREIRA,
1987, p.72)

O descrédito, irônico e amargo, vem justamente de o narrador poder comparar as


duas situações.

Já curti um desemprego, cinco meses que eu sei… Vida do joguinho. O dia


na cama, a noite na rua. Cinco meses. Mas naquele tempo eu fumava cigarros
estrangeiros e mandava polir as unhas. Não engolia desaforos. Dinheiro? Eu
tinha muita cabeça e era um taco de verdade. Noites de levantar quatro-cinco
contos! Mas jogo é jogo e eu não nego – peguei rebordosas medonhas – não
foi uma vez que deixei o salão sem dinheiro para o ônibus. A casa… a
família reunida para as reprimendas que duravam duas horas. O vagabundo, o
ingrato, o perdido, o isto e o aquilo ouvia sem dizer nem pau nem pedra. Os
olhos no bico dos sapatos. Aborrecia-me. Puxava uma, duas das notas
maiores e entregava. Preocupação, remorso, vergonha? Não, não, nada disso.
Era sono, que eu passara a madrugada em volta da mesa me batendo,
jogando, suando, arriscando, perdendo, ganhando. Por isso aturava o esporro
– queria dormir. Falassem. Moral para a família rezadeira é agüentar máquina
de cálculo oito horas por dia, agüentar chefe estrangeiro. Bitola, manha,
idiotice e ganhar seis contos no fim do mês. Hoje sou um bom rapaz…
(FERREIRA, 1987, p.73-4)

Ainda tendo que admitir a condição predatória da sinuca (também expressa no


conto seguinte, “Meninão do caixote”, como se segue: “o joguinho castiga por
princípio. Castiga sempre, na ida e na vinda o jogo castiga. Ganhar ou perder, tanto faz”
(FERREIRA 1987:92)), o narrador, atraído pelo canto da sereia – como o próprio
personagem central de “Meninão do caixote”, uma criança aliciada ao jogo que, para
jogar, precisa se apoiar num caixote para alcançar a mesa verde – mesmo assim parece

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defender o antigo estilo de vida. Diferente, porém, da situação de Malagueta, Perus e


Bacanaço, também da terceira sessão, que simplesmente não conseguem enxergar uma
outra possibilidade.
Para as demais personagens – os casos específicos de “Busca” e “Afinação da
arte de chutar tampinhas”, da sessão Contos gerais, e de “Visita”, da sessão Sinuca – a
malandragem é um horizonte libertador, aparece quase unicamente na sua face
romântica. Ou é, pelo menos, uma alternativa, uma válvula de escape do circuito
fechado do seu cotidiano. O maior paradoxo está em que as personagens acabam ainda
mais presas em seus mundos ou perdidas em não-lugares. Pois, assim como o bandido
pronto e acabado dos contos mais célebres não consegue superar as forças atávicas que
o tornam o que é, nos contos de João Antônio, também o trabalhador cansado da
conduta ordeira que não lhe oferece nada, não consegue escapar dessa vida e se agarrar
a um ideal mais libertário. O que há em comum entre quase todas as personagens de
João Antônio é que todas acabam, em algum momento, solitárias, andando pelas ruas
vazias dos horários mais desoladores, refletindo a falta de perspectiva de suas vidas.
Estão sempre em busca de algo, mesmo que seja da fuga impossível. No fim, uma vida
boêmia, malandra, não é possível. Existe mais no passado ou na cabeça daqueles que a
idealizam. E mesmo ainda em busca – que é um modo de dizer que ainda têm esperança
ou precisam ignorar a impossibilidade da esperança, precisam esquecer – não se pode
esquecer que é essa realidade urbana, da rua, que torna as vidas suas tão cinzentas. Toda
personagem de João Antônio carrega para o esquecimento a sensação da perda.

REFERÊNCIAS
ABREU, Wagner Coriolano de. Cinzências da literatura: João Antônio com Nietzsche.
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em
literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
PUC-RS, 2007.
AGUIAR, Flávio. Evocação de João Antônio ou do purgatório ao inferno. In:
CHIAPPINI, Ligia; DIMAS, Antonio; ZILLY, Berthold. (Org.) Brasil, país do
passado? São Paulo: Edusp/Boitempo, 2000, p. 145-155.
CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. In: _____. O discurso e a cidade. 3.
ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul, 2004. p. 17-46.

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CHIAPPINI, Ligia. O Brasil de João Antônio e a sinuca dos pingentes. In: CHIAPPINI,
Ligia; DIMAS, Antonio; ZILLY, Berthold. (Org.) Brasil, país do passado? São Paulo:
Edusp/Boitempo, 2000, p.156-172.
FERREIRA, João Antônio, Filho. Merdunchos. In: ______. Casa de loucos. 4. ed. Rio
de Janeiro: Rocco, 1994, p. 65-72.
______. Leão-de-chácara. 5. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
______. Malagueta, perus e bacanaço. 4. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
______. Malagueta, perus e bacanaço / Malhação do Judas Carioca. São Paulo: Clube
do Livro, 1987.
LACERDA, Rodrigo. O primeiro amor de João Antônio. In: FERREIRA, João Antônio,
Filho. Malagueta, Perus e Bacanaço. 4. ed. Encarte. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
MARTIN, Vima Lia. Literatura e marginalidade – um estudo sobre João Antônio e
Luandino Vieira. São Paulo: FAPESP/Alameda, 2008.
ORNELAS, Clara Ávila. O conto na obra de João Antônio: uma poética da exclusão.
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira do
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2004.
SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de Dialética da malandragem. In:
_____. Que horas são? – ensaios. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.
129-156.
ZILLY, Berthold. João Antônio e a desconstrução da malandragem. In: CHIAPPINI,
Ligia; DIMAS, Antonio; ZILLY, Berthold. (Org.) Brasil, país do passado? São Paulo:
Edusp/Boitempo, 2000, p. 173-194.

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O VIÉS JORNALÍSTICO NA POESIA DE MANUEL BANDEIRA

Ana Cátia Silva de Lemos1


Fernando Viana Martins2
Odalice de Castro Silva (Orientadora)3

Introdução

Desde o inicio do século XX, no campo cientifico e no intelectual, surgiram


idéias de modernização mundial, impulsionadas, principalmente, pela criação, através
dos estudos sobre o inconsciente humano de Sigmund Freud; de um novo ramo da
medicina denominado Psicanálise, pela invenção do cinema e ainda do avião. Era um
período de grande sucesso das ciências humanas e tecnológicas, refletido, claramente,
na Literatura.
Foi durante esse momento, que surgiu o Modernismo, uma tendência literária
instaurada a partir da Semana de Arte Moderna (realizada em São Paulo no ano de
1922), buscando a renovação dos conceitos de poesia, uma vez que esta ainda estava
subordinada às doutrinas parnasiano-simbolista da época tratada.
Influenciados por um dos grandes poetas da estética modernista mundial, os
poetas deste período literário tinham como preceito básico: a liberdade poética em todos
os aspectos possíveis; formal, temático, lingüístico, composicional, entre outros.
Inserido nessa nova corrente literária nacional está Manuel Bandeira, que apesar
de uma formação baseada no Simbolismo e no Parnasianismo, alcançou o ápice de sua
produção artística após ter aderido aos ideais da poesia moderna.
Segundo Antonio Candido, Bandeira é “o grande clássico da nossa poesia
contemporânea” (CANDIDO, apud, CAMPEDELLI,1999, p.127), devido às
características da sua poética como a linguagem, o ritmo e o gosto pelos fatos rotineiros,
por exemplo.
Uma das obras de Bandeira mais enquadradas no Modernismo é Libertinagem,
publicada em 1930. Na qual podemos encontrar Poema tirado de uma Notícia de

1
Graduanda do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
2
Graduanda do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
3
Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

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Jornal, que servirá de base para alcançarmos o nosso objetivo neste trabalho; qual seja
estabelecer pontos comparativos entre a linguagem do poema e a linguagem jornalística.

Construindo relações

Tendo em vista que, objetivamos estabelecer um estudo entre a linguagem do


poema citado e a jornalística, tomamos como embasamento teórico às idéias de Nilson
Lage acerca da linguagem utilizada no jornalismo e de Davi Arrigucci sobre a ligação
existente entre a obra poética em questão e as produções jornalísticas.
Lage (1998, p.36) comenta a linguagem dos noticiários, a qual pode ser definida
de acordo com três conceitos: registros de linguagem, processo de comunicação e
compromissos ideológicos.
O primeiro está relacionado à ligação que, segundo o estudioso, deve haver
entre o português formal e o coloquial nas notícias o segundo diz respeito ao caráter
referencial desse gênero textual. E os compromissos ideológicos aludem à estreita
ligação entre o jornalismo, a sociedade e sua história.
Contudo, devido ao foco do nosso trabalho ser a relação entre as linguagens
jornalística e poética abordaremos somente a segunda idéia desse autor, uma vez que a
referencialidade é característica em ambos os discursos.
O processo de comunicação está relacionado ao caráter referencial das notícias,
pois é necessário existir um distanciamento entre as produções jornalísticas, o seu
emissor, o seu receptor e o processo de comunicação propriamente dito, ou seja, não
deve constar nenhuma influência do produtor, do destinatário e nem da realização da
comunicação na informação noticiada. Essa característica (como será explicitado),
também, poderá ser encontrada no poema bandeiriano mencionado, daí a importância
desse estudioso para a nossa pesquisa.
Arrigucci (2003) fez um estudo sobre o dinamismo que há entre a linguagem das
notícias e a linguagem do Poema tirado de uma noticia de jornal. A matéria jornalística
é “cotidiana, prosaica, heterogênea e fugaz”, segundo o autor (ARIGUCCI, 2003, p.89)
e possui peculiaridades como “novidade, brevidade, simplicidade coloquial, clareza e
objetividade na apresentação direta e impessoal dos fatos” (Idem, p.89). Todas essas

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características estão presentes no poema em questão, ocasionando, assim, uma relação,


íntima, entre a linguagem do poema e a jornalística.
No entanto, no presente projeto não teremos tempo nem espaço para analisar
todas essas peculiaridades, por isso optamos estudar, além da referencialidade, a
objetividade e a impessoalidade das notícias no discurso poético. Por isso, as idéias
desse autor são tão relevantes para a nossa análise.

Apresentando o método

Para estudarmos as semelhanças existentes entre as linguagens jornalística e


poética, foram examinadas, respectivamente, uma notícia retirada do jornal Diário do
Nordeste4 e o poema de Manuel Bandeira chamado poema tirado de uma noticia de
jornal. O método utilizado predispôs o diálogo entre o poema e a notícia. Com isso,
observamos a presença de elementos lingüísticos que caracterizam a notícia dentro da
linguagem do poema.
Essa comparação foi feita do seguinte modo: desmembramos a notícia,
tornando-a, no aspecto formal, similar ao poema em questão e a colocamos lado-a-lado
com a obra de Bandeira. Após, analisamos e encontramos semelhanças, que serão
explicitadas posteriormente, entre as linguagens desses dois gêneros textuais.

Expondo as relações

Eis o corpus da nossa pesquisa:


A) Noticia:

Homem é assassinado a tiro por desconhecidos


Um jovem identificado como Raimundo Nonato da Silva Bernandes,
Foi assassinado, na madrugada de ontem, na comunidade Barroso I
(zona sul de Fortaleza).
Segundo a polícia, o crime foi praticado por dois homens.
No local, a PM encontrou pedras de crack e uma arma (LOBO, 2009).

B) Poema: Poema tirado de uma noticia de jornal

4
Jornal publicado em: ano XXVIII, número 9895, circulado no dia 30/08/2009.

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João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia


num
barracão sem
numero
Uma noite ele chegou no bar Vinte de novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado (BANDEIRA,
2005).

Entre a notícia dada e o poema em questão, não é difícil estabelecer relações de


semelhança, principalmente, quando são levados em conta aspectos formais,
composicionais, temáticos e lingüísticos.
No que concerne à forma, quando a notícia é desmembrada, é possível perceber
uma grande aproximação entre ela e o poema bandeiriano, devido, essencialmente, a um
título longo e explicativo que contrasta com um texto breve e simples.Quanto às
características de composição, pode-se notar que ocorre o mesmo processo de produção
da noticia, pois esta é o resultado de uma simplificação da matéria jornalística, no
poema, uma vez que ele é um “recorte” da notícia do qual foi retirado.
O tema é bem similar, pois, tanto no texto poético quanto, no jornalístico,
identifica-se um tom narrativo objetivando contar, de modo seco e sucinto, o fato
acontecido que, no primeiro caso foi o assassinato de um jovem, num bairro da zona sul
de Fortaleza e, no segundo, a morte de um homem na lagoa Rodrigo de Freitas.
O discurso jornalístico é, majoritariamente, referencial, ou seja, “fala de algo do
mundo, exterior ao emissor, ao receptor e ao processo de comunicação” (Lage, p.39).
Com isso, podemos reconhecer esse caráter referencial tanto na notícia como no poema,
uma vez que o primeiro remete a um assassinato de um jovem e o segundo ao fato de
um homem ter morrido afogado na lagoa Rodrigo de Freitas.
Ou seja, há ligação entre os textos, seus produtores, seus destinatários e o
processo de comunicação. Deve-se isso, à natureza do lugar em que as notícias foram
encontradas.
Como é possível notar, tanto no título da produção jornalística, quanto no
primeiro verso do poema de Bandeira, há um distanciamento entre os fatos narrados, o
produtor do texto e o receptor, logo, estes dois últimos não influenciam na informação
propalada.

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Essa característica referencial da notícia é o que proporciona uma exposição


impessoal dos fatos, isso devido ao autor, quando nos mostra o evento, não interferir, o
autor não demonstra suas opiniões e emoções bem como no texto no jornalístico.
E ele faz isso através de elementos lingüísticos que o ajudam a se afastar da
noticia, como os verbos, por exemplo. Observe o título da notícia (Homem é
assassinado a tiro por desconhecidos)
A locução verbal é assassinado, na oração denota a idéia de distância entre o
texto e seu produtor, devido ao uso do verbo no tempo presente (é) e do verbo
assassinar no particípio-passado (assassinado), ou seja, é com a utilização desses dois
verbos que o autor consegue narrar, impessoalmente, o fato.
No poema, ocorre um processo semelhante, pois Bandeira, utilizando os verbos
“Bebeu”, “Cantou” e “Dançou”, expõe o que aconteceu com João Gostoso sem opinar
sobre o evento. Os verbos (beber, cantar e dançar) no tempo passado possibilitam que
Manuel Bandeira conte as ações do personagem sem estabelecer nenhum tipo de
influência, ou seja, o autor, assim como o jornalista, se distancia do seu texto.
Outra forma verbal que nos indica o caráter impessoal do texto poético é o
“tirado” encontrado no titulo do poema (Poema tirado de uma notícia de jornal), isso
deve-se ao verbo tirar no particípio-passado mostrando-nos que o poema foi extraído de
uma situação externa à Bandeira.
Mais uma peculiaridade presente nos noticiários impressos é a objetividade. Na
notícia percebemos que o autor narra o fato de forma direta e com informações objetivas
como o nome do jovem (Raimundo Nonato da Silva Bernandes) e o lugar onde tudo
aconteceu (Barroso I, bairro da zona sul de Fortaleza).
Podemos perceber o mesmo no poema, uma vez que Bandeira menciona dados
precisos acerca de João Gostoso: a profissão (carregador de feira-livre), a moradia (um
barracão sem número) e o lugar onde vive (morro da Babilônia).
Como pode ser observado no primeiro verso do poema percebemos as
informações objetivas, fornecidas pelo autor, as quais são necessárias para uma boa
interpretação desta obra poética, uma vez que é preciso compreender o personagem e
suas características para entendermos o paradoxo lançado por Bandeira: o encontro
inesperado de João Gostoso com a morte, após um momento de felicidade.

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Conclusão

A pesquisa propôs abrir um diálogo entre o poema de Manuel Bandeira (Poema


tirado de uma notícia de jornal) e a matéria do jornal, para tal foi necessário estudar os
aspectos da linguagem jornalística e, por isso, utilizamos as considerações de Lage
(1998) sobre o assunto.
Foi necessário, ainda, estudar profundamente a linguagem do poema, para isso
utilizamos o ensaio de Arriguci (2003) sobre a estrutura lingüística do poema. Para
efetivarmos nossa hipótese realizamos uma análise dos dois textos.
Após essas considerações acerca das semelhanças entre a linguagem poética e
jornalística, podemos revalidar nossa hipótese inicial confirmando as relações existentes
entre o corpus avaliado e, naturalmente, as diferenças, uma vez que o poema é um texto
literário.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRIGUCCI, Davi Jr. Humildade, paixão e morte: A poesia de Manuel Bandeira. 2.


ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
BANDEIRA, Manuel. Libertinagem & Estrela da manhã. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2005.
CAMPEDELLI, Samira Youssef. Literatura: história e texto. 6.ed. São Paulo: Saraiva,
1999.
LAGE, Nilson. Linguagem jornalística. 6.ed. São Paulo: Ática,1998.
LOBO, Natália. Assassinato no Barroso I. Diário do Nordeste, Fortaleza, 30, agosto,
2009. policial, p.12.

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CANUDOS E CALDEIRÃO NA LITERATURA DE CORDEL

Ana Cláudia Veras Santos


Martine Suzanne Kunz (Orientadora)

Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E


foi, na significação integral da palavra, um crime.
Denunciemo-lo. (CUNHA, 1993, p. 30).

Inicio falando de duas comunidades sertanejas abrigadoras de flagelados da


seca, nordestinos fugidos da miséria, “recém livres” das mãos da escravatura, da
dominação e exploração das elites. Essas juntaram-se em torno de dois homens:
Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, e José Lourenço Gomes da Silva, o
Beato.
Conselheiro, visionário de Canudos, aos finais do século XIX, na Bahia; e o
Beato idealizador do Caldeirão, durante os últimos anos da década de trinta do século
XX, no Ceará. Ambos, em épocas diferentes da história, “afrontaram” o poder
instituído, com o objetivo de ver prosperar em “terra seca” a esperança diante da
soberba e da desigualdade, tendo a fé como principal norteadora de seus passos.
Um cearense, outro paraibano: nordestinos predestinados, sertanejos fortes.
Tiveram suas ideologias arraigadas nas mentes de seus seguidores que mesmo as
mulheres armaram-se de utensílios domésticos e de coragem, orientadas pela fé em
Deus misericordioso e em Padim Ciço para enfrentar os ferozes militares.
Tombaram ante às lutas caracterizadas pelo signo da covardia e do abuso do
poder, não titubeante em direcionar um exército de milhares de homens para enterrar a
Belo Monte resistente e, em hipótese não confirmada oficialmente, ataques aéreos
sofisticados, para massacrar o Caldeirão resignado.
O misticismo e a miséria foram, também, o plano gerador dessas condutas,
envoltas pela religiosidade, marcaram nossa história que, omissa ou vergonhosamente, é
ainda hoje obscura. Aludindo a Canudos foi, quando muito, retratada aos privilegiados
pelas letras euclidianas, e concomitantemente à guerra, também, por periódicos
conhecidos como o que Valnice Galvão (1997) chamou de No calor da Hora, ou
chegou à claridade aos demais por conta de um traço peculiar à nossa gente, a oralidade,
e assim o é até os dias de hoje. E é esse o traço ao qual deteremos a nossa reflexão.

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As semelhanças entre essas histórias vão além da destruição dos grupos pelo
comando dos poderosos, que se constituíam a cada dia sob o descrédito perante a maior
parte da população pobre e invisível. As circunstâncias fizeram com que milhares de
pessoas se orientassem em torno da liderança desses homens, fidedignamente,
determinando a transformação deles em messias mitificados pela memória popular e em
momentos execrados por ela: um acusado de fanático e monarquista e o outro de
posseiro indevido das terras do sítio Caldeirão de Santa Cruz do Deserto; além de
aliciador, praticante de “comunismo primitivo” e ateu. Diferenciaram-se dos demais
líderes de sua época e ascenderam sob os desígnios da fé.
Interessa-nos, aqui, comparar as produções de folhetos referentes aos
fenômenos, atribuindo-lhes, também, aspectos documental e histórico; considerar a
perspectiva abordada nos versos do trovador, e sua orientação ao ilustrar as narrativas.
É pertinente o questionamento de como são retratadas as memórias que cercam
Conselheiro e o Beato, assim como suas comunidades geradoras e os seus seguidores:
jagunços, mulheres, crianças, velhos, inválidos, retirantes; a maioria atormentada pela
aspereza da terra, através do versar do poeta popular. Convém expor que a referida
pesquisa, bem como a sistematização dos resultados da problemática proposta ainda
estão em início.
Sugerimos que ao realizarmos a leitura desses versos, poderemos perceber como
se procedeu a metamorfose desses referidos homens em mitos na literatura de cordel:
“O sertanejo simples transmudava-se penetrando-o, no fanático desetencroso e bruto.
Absorvia-o a psicose coletiva.” (CUNHA, 1993, p.144) Preocupa-nos saber como foram
idealizados através dos tempos1, como se instauraram no imaginário popular, burlando
os limites entre o real e o fictício. “Não é a verdade das narrativas que está posta em
discussão, mas a constituição de valores, símbolos e mitos.” (CORDEIRO, 2004, p.30)
Pensemos então no mito do libertador: Conselheiro, um Sebastianista, assim
concebido sem o saber, e o Beato, seguidor ideal de Padre Cícero. Temos, por analogia,
a imagem de Dom Sebastião, rei de Portugal, expansionista e desbravador, perdido em
batalha na África (muitos esperam seu regresso, para que lhes tragam providência)
associado ao Conselheiro; e Padre Cícero, protetor dos miseráveis e injustiçados,
cercado pela ideologia de ter sido um empreendedor (em sua busca, milhares de

1
Tempo este referente ao período dos fenômenos envolvidos até hodiernamente.

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retirantes e crentes visitam a cidade de Juazeiro do Norte), sua imagem vincula-se


imediatamente ao Beato, seu sucessor natural.
Dessa forma, é digno de investigação o que há de pertinente nessa analogia e nas
suas relações, tais: povo – poder, exploração – liderança, contenda – repercussão, mito –
memória, oralidade – folheto.
Através de estudos realizados, identificamos que a figura de D. Sebastião
remetia-se a Conselheiro, já nos ABCs recolhidos por Euclides da Cunha2. Vejamos um
trecho:

U que reis de formosura/ como é São Sebastião/ foi chamado pelo mundo/
Visita vem fazer/ Rei D. Sebastião/ Coitadinho daquele pobre que estiver na
lei do cão (...) Indo pª Cidade/ se corro alcançar/ de tanta lapidadão/ de lá se
vae arrancar/ zinco e cobre e Dinheiro/ tudo está arrecolhido/para tentar
tomar conta/ do Rio de Janeiro/ no tal fallimos nós/ por ser letra de
portuguez/ Vir Antonio Conselheiro/ no Céo emtodo lugar.(CALASANS,
1984, 12-13)

Esses versos de autoria desconhecida impressionaram o autor de Os sertões, que


desde então atribuiu à poética popular, importância fundamental para o conhecimento
de nossas “rudes” raízes. Nesses visualizamos a fé na justiça provinda dos dois
“santos”.
De tal forma, a escolha por desvendar o mito deve-se por ele direcionar a
literatura “ao engrandecimento de personalidades ou de grupos. Algumas vezes é na
consciência comum que se produz a ‘mitificação’ e a literatura a registra”
(SEVCENKO, 1998, p.19). E fazendo minhas as palavras de Eliade, citado por Tavares
Júnior (1980, p.14), uma das características do mito é questionar os problemas
fundamentais do homem. Para esse intuito, o universo do Cordel é veículo facilitador:
“O mundo do Cordel, em seu espaço e tempo, podemos dizer, é um mundo mítico; suas
narrativas não podem ser entendidas, segundo a ordem temporal dos acontecimentos”.
(TAVARES, 1980, p. 15)
É notável que as histórias de Conselheiro e do Beato ultrapassaram as fronteiras
do anonimato e alcançaram as formas de mito no espírito coletivo. Observemos o
apontamento de Menezes:

2
ABCs recolhidos por Euclides da Cunha na época da campanha de Canudos, em sua Terceira
Expedição.

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O mito situa-se no núcleo primordial de todo imaginário social, como matriz


geradora do processo de produção social de sentido da humana condição. E,
portanto, no corolário de que a história e as ciências constituem a forma de
construir e de dizer o mito hoje, como resposta às aporias fundamentais e
incessantes da existência coletiva (MENEZES, 2004, p. 02).

Outro elemento importante para nós diz respeito ao silêncio e foi observado em
trabalhos como o de Kunz (2001), no qual comprova ser ampla a aparição no cordel, de
algumas personalidades que marcaram a história brasileira em detrimento de outras,
com similar importância:

No Dicionário Bio-Bibliografico de Repentistas e Poetas de Bancada,


publicado em 1978 e que menciona mais de 3000 títulos de folhetos, não
encontramos nada sobre Contestado ou Pau de Colher, apenas 3 folhetos
sobre Canudos, 2 sobre Caldeirão, 146 sobre Padre Cícero e 83 sobre
Frei Damião, o missionário capuchinho considerado outro Padre Cícero.
(KUNZ, 2001, p. 14 – grifo nosso).

Encontramos, portanto, pendência inquietadora: por que Canudos e Caldeirão


foram pouco referenciados nos folhetos, num período que vai até fins dos anos de 1970,
quando a produção foi catalogada em todo o Brasil, através do Dicionário? Quais
motivos ocasionaram esse silêncio do trovador, ante as terríveis circunstâncias, uma vez
que a literatura de cordel é caracterizada, também, por refletir a realidade das classes
“marginalizadas” pela sociedade? Numa pesquisa prévia, praticamente nada
encontramos acerca de Caldeirão, cristalizado em cordel, produzido em épocas
próximas ao acontecimento.
Por outro lado, e como expomos anteriormente, verificamos uma controvérsia,
pelo menos no que confere a Canudos, ao examinar os relatos de Calasans (1997, p.
150): “Há, portanto, grande número de composições da poética anônima que constitui o
cancioneiro histórico de canudos.” O mais expressivo estudioso de temas canudianos
constatou que a produção do vate foi relevante: “Numa mobilização geral, como no caso
em apreço, também são convocados os poetas. A lira é arma de combate em muitas
oportunidades.” (idem, ibidem).
Outro dado a ser mencionado diz respeito aos momentos de entusiasmo na
produção de folhetos, geralmente percebidos em datas próximas às comemorações de
aniversários dos acontecimentos, como deu-se em anos próximos à época dos cem anos
de publicação de Os sertões. Fato este que poderia servir de motivo para fomentar a
relação entre o erudito e o popular. Como salienta Gutiérrez:

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Outra face importante da obra Os sertões é a da sua contribuição à cultura por


apresentar um caráter seminal com relação às artes e à literatura. São
inúmeras as manifestações artísticas – na pintura, no desenho, no cinema, na
fotografia, no teatro, na escultura, no vídeo, na fotografia etc –, assim como
manifestações literárias – na poesia, na tragédia, no cordel, na ficção,
especialmente, no romance - que nesta obra se inspiram. (GUTIÉRREZ,
2002, p. 9. - grifo nosso).

O que já não se repete com o Caldeirão, pouco cantado em sua época pela lira
popular e que não teve a seu favor um livro vingador, para lhe representar; salvo
algumas publicações mais recentes, como Caldeirão: um estudo histórico sobre o Beato
José Lourenço e suas comunidades, de Lopes (1991).
Poderíamos especular que existem “lacunas” na historiografia do cordel que
merecem ser preenchidas, no que concerne aos fatos supramencionados. Teria sido,
portanto, somente a dificuldade em se denunciar fenômenos, cujas memórias envolvam
diretamente conflitos com o poder instituído que resultou nesse silêncio? Ou a
autocensura e o conservadorismo de alguns poetas populares?
No episódio do Caldeirão, apontamos ainda a possibilidade de ter havido
rejeição por parte do povo não envolvido diretamente no fenômeno, e aí, incluímos
também o poeta popular. Em que medida temia a repressão da igreja, a perseguição do
governo e das elites, uma vez que já tinham os exemplos do que foi o massacre em
Canudos e Pedra Bonita, além da perseguição de que foi vítima o Padre Cícero?
Embora as adversidades, é fato que esta Literatura é também, verdadeiramente,
promotora do social; como nos confirma Menezes em estudos, que nos servem de
elucidação:

A história dos oprimidos e das classes subalternas, quando não é


folclorizada ou reduzida a relatos fantasiosos, tende simplesmente a ser
omitida, dissimulada, silenciada, ou a ser elaborada pela mesma tradição
letrada, segundo sua óptica e, por serem frequentemente analfabetos e
pobres os seus protagonistas, não possui outros registros ou lugares sociais
de suas fontes senão a memória oral de sua gente ou a página policial de
nossos jornais e os arquivos de nossa justiça. Triste destino! Ou o silêncio
suspeitoso ou as versões deliberadas ou levianamente deformadoras.
(Menezes, 1995, p.2 e 3).

Igualmente, Canudos e Caldeirão representam a necessidade popular em trazer a


tona fatos extraordinários, mesmo quando sucedidos há muito tempo. Esta ressonância

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materializada no folheto representaria o caráter de protesto de determinada mentalidade


em preservar do anonimato ou do esquecimento episódios que lhes foram marcantes.
Percorramos a introdução da representação dos poetas a seguir: “Caros
apreciadores/Da escrita em poesia/Quero lembrar nestes versos/Um personagem que
havia /Que segundo meus estudos /Ficou famoso em canudos /Na região da Bahia”.
(FRANÇA e RINARÉ, 2006, p. 01).
É muito comum o poeta iniciar o folheto com a apresentação do personagem ao
qual os fatos associados a ele, vai narrar, usando de certa eloqüência com o leitor. E
segue: “No estado do Ceará / Região Sertão Central / Nasce Antônio Conselheiro / Num
ambiente rural / Desde sua juventude / Sofrera a vicissitude / Da situação social”. (idem,
ibidem)
O que é válido de observação, nesse momento específico, é a data de publicação
do cordel em questão, refere-se ao ano de 2006, ou seja, mais de um século depois da
guerra de Canudos. “Na apreciação dos fatos o tempo substitui o espaço para a
focalização das imagens: o historiador precisa de certo afastamento dos quadros que
contempla.” (CUNHA, 1993, p. 213).
Com o folheto do Caldeirão, o processo é o mesmo: “Para os que não têm
acesso/Ao livro, a história, ao fato/Nesse pequeno cordel/Tento fazer um relato/Do
mundo místico e tenso/ Do beato Zé Lourenço/E o Caldeirão do beato”. (AMÂNCIO,
2001, p. 01).
Constatamos que hoje há grande produção sobre os temas, devido, em partes, ao
fato de que esse meio é reconhecido, pelo povo, não apenas o pobre, mas o leitor, como
forma particular de comunicação. Portanto, o interesse em investigar a vida e os
acontecimentos ligados a essas personalidades se deu em decorrência de seus
respectivos significados para a história brasileira, pelas suas origens e, principalmente,
por conta da importância conquistada dentro da Literatura, mais especificamente, de
cunho social.
Essa perspectiva de confronto entre a história dos livros e a abordagem do cordel
pode ser relevante, uma vez que a história se processa através de diversas perspectivas e
o folheto pode vir a romper com a unilateralidade das letras eruditas, auxiliando no
entendimento da formação da linguagem e da história brasileiras.

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Temos através dos versos do poeta popular a possibilidade de tentar reconstruir


episódios fragmentados da nossa história num momento em que a imprensa3 oficial
ainda é inacessível, como outrora, e se direciona a uma minoria e o pouco que noticiou
naquele período, o fez sob censura do poder instituído. O cordel, por vezes, delineado
“outside”, poderia retratar assuntos considerados tabus pela sociedade, mesmo que para
isso sofresse intervalos de silêncio e usasse e use, por um lado, de uma maneira
mitificadora e peculiar na composição das narrativas, ornamentadas por códigos
inerentes ao canto popular.

REFERÊNCIAS
AMÂNCIO, Geraldo. O terrível massacre do Caldeirão do Beato José Lourenço.
Volume II. Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2001.
CALASANS, José. Canudos na Literatura de Cordel. São Paulo: Editora Ática, 1984.
______. Cartografia de Canudos. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, Conselho
Estadual de Cultura / EGBA, 1997.
CORDEIRO, Domingos Sávio Almeida. Um Beato Líder: Narrativas memoráveis do
Caldeirão. Fortaleza: UFC, 2004.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 9. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1993.
FRANÇA, Antônio Queiróz de, e RINARÉ, Rouxinol do. Antonio Conselheiro e a
Guerra de Canudos. Volume III. 3. ed. Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2006.
GALVÃO, Walnice Nogueira. No calor da hora. A guerra de Canudos nos jornais- 4ª
expedição. 2. ed. São Paulo: Ática, 1997.
GUTIÉRREZ, Angela. Os sertões: gênese e apocalipse. Fortaleza: XIX Jornada de
Estudos Lingüísticos do Nordeste-GELNE promovida pelo Centro de Humanidades da
UFC, 2002.
LOPES, Régis. Caldeirão: um estudo histórico sobre o beato José Lourenço e suas
comunidades. 1. ed. Fortaleza: Editora da Universidade Estadual do Ceará, 1991.
KUNZ, Martine. Cordel: A voz do verso. Fortaleza: Museu do Ceará / Secretaria de
Cultura e Desporto do Ceará, 2001.
MENEZES, Eduardo Diatahy B. de. A Historiografia tradicional de Canudos. In:
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Ano 165, No 422,
jan./mar. 2004: 33-57.
______; ARRUDA, João (org). Canudos : As falas e os olhares. Fortaleza: Edições
UFC, 1995, pp. 41-53.
SEVCENKO, Nicolau. “Prefácio da edição brasileira.” In: Dicionário de Mitos
Literários. 2. ed. Trad. Carlos Sussekind et alli. BRUNEL, Pierre (Org). Rio de Janeiro:
José Olympio, 1998.
TAVARES Júnior, Luíz. O mito na Literatura de Cordel. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1980.

3
É digno de nota mencionar que a imprensa só chega ao Brasil em 1808. Antes disso, principalmente
para o povo, os cancioneiros/repentistas eram fundamentais para disseminar informações, ainda assim,
quando essa popularizou-se, continuou “refém” do poder do Estado.

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CRÔNICAS DE VIDA COTIDIANA EM RACHEL DE QUEIROZ

Antônia Emanuele Silva Sales1

1. Escritos do dia-a-dia, a profissão da palavra

Minhas cantigas me dão/ Roupa, comida e transporte./


Deixarei este dever/ Quando um dia receber/ O beijo
fatal da Morte!(O cego Aderaldo)

Depois da publicação de O quinze (1930), muita coisa aconteceu na vida e


trajetória jornalística e literária de Rachel de Queiroz, uma delas – e talvez a crucial
nesse percurso –, foi a mudança da escritora para o Rio de Janeiro, em 1939.
Quando Rachel foi morar no Rio, ela já era uma escritora reconhecida na cidade,
tinha publicado, além da obra de estréia, os romances João Miguel (1932) e Caminho de
Pedras (1937) e cultivara amizades com literatos e jornalistas cariocas desde que
ganhara o Prêmio Graça Aranha. Também já havia iniciado a carreira no Jornalismo, ao
trabalhar nos periódicos
cearenses O Ceará e O Povo, onde atuou na reportagem, redação e direção da página
literária na qual também escrevia folhetins. Portanto, não foi nenhum espanto o fato de
Rachel ter ido para o Rio sozinha, recém-divorciada do primeiro marido, José Auto da
Cruz, sobreviver unicamente de seu trabalho de escritora. Na então capital federal, ela
começou a escrever semanalmente um artigo, crônica ou conto para o jornal Diário de
Notícias, “trabalhando em casa”. Logo, passou a colaborar também nos periódicos
cariocas Correio da Manhã, O Jornal, O Estado de S. Paulo e no doutrinário A
Vanguarda Socialista, espécie de porta-voz dos trotskistas. Em 1944, torna-se cronista
exclusiva da revista O Cruzeiro, onde permanece até 1975, quando o veículo acabou.
É da época de O Cruzeiro sua consolidação como escritora, cronista. Wilson
Martins (1997), ao mencionar a organização do Prêmio dos Mestres do Romance
Brasileiro por Guimarães Rosa e Jorge Amado, em 1967, assevera que naquele ano
Rachel de Queiroz era vista exclusivamente como cronista, o que mudou só em 1975,
com a publicação do romance Dôra Doralina.

1
Graduanda em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará.

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Seja Rachel romancista bissexta, jornalista ou ficcionista, o fato é que ela


adquiriu extraordinária popularidade como cronista ao mesmo tempo em que outros
grandes escritores como Carlos Drummond de Andrade e Rubem Braga faziam nome
nas páginas do jornal. Pela qualidade das crônicas e a constância da produção, Rachel
adquiriu, nessa época, uma persona literária de cronista, como pontua Martins
(MARTINS In FRANCESCHI, 1997, p.79).

2. O roteiro de um haver encoberto

Não são pois os jornalistas que abandonam os temas eternos. Mas os


abandonam os outros que se encerram na metafísica e no hermetismo
literário – esses que o vulgo põe tão acima dos simples gazeteiros.(Rachel
de Queiroz)

Mas que “cousa” é essa, a crônica, que não permite ao seu próprio escritor uma
autodefinição, se jornalista – mais ligado aos fatos reais e à informação atual – ou
ficcionista – em essência o recriador da realidade?
A crônica é um gênero ambíguo, anfíbio desde a origem. A crônica, tal qual
conhecemos no Brasil, nasce no meio jornalístico. Recebe o sopro de vida quando é
publicada em jornais e revistas, vida esta que pode perdurar nas páginas de um livro.
Daí a distinção que alguns estudiosos fazem entre crônica literária e crônica jornalística.
Ápio Campos assevera que “a crônica nasceu no jornal e para o jornal” (CAMPOS apud
MOISÉS, 1979, p.247). Essa afirmação corresponde apenas à gênese da crônica e não
diz respeito ao que acontece com ela após sua publicação. Massaud Moisés (1967)
assinala o caráter de fênix da crônica, a renascer das próprias cinzas, todos os dias,
como a matéria jornalística: “A crônica vive precisamente da existência fugaz do jornal
ou do periódico: lida com uma notícia ou artigo, logo é posta de lado, outras se lhe
seguem no fio dos dias; nenhuma nutre veleidades de perdurar” (MOISÉS, 1967,
p.107).
Entretanto, nascer no jornal não significa morrer com ele no dia seguinte,
conforme as considerações de Alceu Amoroso Lima sobre o que é efêmero: “Efêmero é
tudo o que, literatura ou não, é escrito ou falado sem poder de penetração na realidade
interior ou externa, visível ou invisível. Há literatura que fica e literatura que passa”
(LIMA, 1990, p.37). E, se Literatura, como aponta Lima (1990), é o meio de expressão

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da palavra escrita em que há uma ênfase, onde reside a beleza; ou ainda, se é a arte da
palavra capaz de provocar no leitor o sentimento estético, como afirma Afrânio
Coutinho (1987), a crônica da qual falamos está prenhe destes significados.
Portanto, a crônica dita literária, que pensamos ser a verdadeira expressão do
gênero – outros textos publicados no espaço da crônica que não se configuram como
literários em essência não são crônicas, na acepção moderna – possui em sua estrutura
características do Jornalismo e Literatura diluídas e espelhadas, oscilando entre o relato
impessoal de um acontecimento da atualidade e a recriação do cotidiano. Daí Massaud
Moisés afirmar que “o cronista pretende-se não o repórter, mas o poeta ou o ficcionista
do cotidiano, pretende desentranhar do acontecimento sua porção imanente de fantasia”
(MOISÉS, 1967, p.104).
Quem publica em jornais ou revistas deve ter em mente o fato de que seu texto
pode ser lido e esquecido no mesmo dia de sua publicação ou, que nem mesmo chegue a
ser lido. Daí Antonio Candido assegurar que o intuito do cronista “não é dos que
escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão” (CANDIDO, 1992, p. 14).
Seria a crônica um gênero menor por conta disso?
Primeiro, se crônica é também Literatura, não se pode dizer que ela seja um
gênero menor, porque não existe essa noção de maior ou menor em relação à qualidade
não existe (COUTINHO, 1987, p.746). Segundo, toda a leveza de estilo do texto de
quem escreve para o “consumo imediato” não implica em pobreza nem literária, nem de
conteúdo. Como pontuamos, o intuito do cronista talvez nem seja de ser o grande
literato, mas através de seus textos, ele pensa em voz alta sua filosofia de vida, contando
histórias e recriando belamente a realidade. E fazendo Literatura marcada pelo meio
onde reside, o jornal:

Ora, a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a


dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso,
numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele
uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas. Ela é amiga
da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas
formas mais fantásticas (CANDIDO, 1992, p. 14)

Essas reflexões despretensiosas podem despertar no leitor o que Afrânio


Coutinho (1987) diz do texto literário. Ao transformar a realidade em seus escritos, o
cronista colhe os fatos e os manuseia: “São as verdades humanas gerais, que traduzem

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antes um sentimento de experiência, uma compreensão e um julgamento das coisas


humanas, um sentido da vida, e que fornecem um retrato vivo e insinuante da vida”
(COUTINHO, 1987, p.729). É a vida presente no cotidiano – frequentemente não muito
aparente nas páginas de jornais ou de falsas literaturas – aparecendo na crônica. E essa
vida está na Literatura, assim como no Jornalismo: sua dosagem fica a cargo de quem
reage a ela, transmutando-a em palavra.

3. Crônicas de vida cotidiana

“Mesmo as vidas mais rotineiras transcorrem sem se repetir”(Italo


Calvino)

Quando se fala da obra Rachel de Queiroz lembra-se quase automaticamente do


sertão, principal tema presente em sua obra. Entretanto, em sessenta anos de produção
cronística, a escritora deixou algo mais que mergulhos nessa geografia pessoal. Outro
tema recorrente em suas crônicas é o cotidiano nas cidades, mais especificamente no
Rio de Janeiro.
Como predição do que seria tal sua obra em crônicas, a crônica de estréia de
Rachel em O Cruzeiro – intitulada Crônica nº1 –, aponta os temas que seriam abordados
pela escritora a cada edição da revista. No texto, um diálogo com o leitor, Rachel se
apresenta ao público revelando traços de sua personalidade que se reflete nos escritos:
“Em tudo o mais sempre me revelo uma alma lírica, cheia de boa vontade; eu sou triste
um dia ou outro, não sou mal humorada nunca. E tenho sempre casos para contar, casos
de minha terra, desta ilha onde moro; mentiras, recordações, mexericos, que talvez
divirtam seus tédios.”
Mais adiante, numa metáfora da relação entre cronista e leitor, mediada pela
crônica, Rachel propõe ambos darem os braços e saírem “andando por este mundo,
olhando tudo que há nele de bonito ou de comovente: os casais de namorados nos
bancos de jardim, o garotinho cacheado que faz bolos na areia da praia, a luz da rua
refletida nas águas da baía, ou simplesmente o brilho solitário da estrela da manhã”
(QUEIROZ, 1945), ou seja, elementos da vida cotidiana. Mas o que seria esse conceito
de cotidiano?

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Na perspectiva sociológica proposta por Agnes Heller, a vida cotidiana é a vida


de todo homem, que abrange as seguintes “partes orgânicas”: “a organização do
trabalho e da vida privada, os lazares e descanso, a atividade social sistematizada, o
intercâmbio e a purificação” (HELLER, 1992, p.18). Heller afirma ainda que, sendo a
vida cotidiana a vida de todo indivíduo, este é sempre, ao mesmo tempo, ser particular e
ser genérico. Particular em sua assimilação da realidade social – momento irredutível,
único – e em suas necessidades humanas que se tornam conscientes no indivíduo como
forma de necessidades e paixões do “Eu”. Genérico em suas atividades – embora seus
motivos sejam particulares – e até mesmo em seus sentimentos e paixões pois, “na
maioria dos casos, o particular não é nem o sentimento nem a paixão, mas sim seu
modo de manifestar-se” (HELLER, 1992. P.21). O representante desse “humano
genérico” é sempre a integração, ou seja, tribo, demos, classe, nação etc.
Para a estudiosa: “O homem singular não é pura e simplesmente indivíduo, no
sentido aludido [ser único e genérico]; nas condições da manipulação social e da
alienação, ele se vai fragmentando cada vez mais ‘em seus papéis” (HELLER, 1992.
P.22). Tal fragmentação pode ser potencializada pelo ambiente de integração, no caso a
cidade.
Nas crônicas de Rachel de Queiroz que abordam de alguma forma o ambiente
citadino e seu cotidiano, observamos uma ênfase na individualidade dos personagens
urbanos, tornando-a unitária. Tomemos por exemplo a crônica As chagas de Jó, de
1945. A autora principia o texto falando sobre o encontro com um leitor de suas
crônicas durante à espera de um bonde. Tal encontro é apenas um pretexto para narrar
aspectos da vida e personalidade do personagem, um homem pobre, triste e culto.
Logo no segundo parágrafo ela descreve: “Calçava tamancos e trajava uma velha
culote de soldado, junto com um paletó de casimira ex-marrom. Não usava chapéu na
cabeça nem dentes na boca: explicou-me mais tarde que isso são vaidades supérfluas.”
E continua citando o lugar onde o personagem nasceu, onde morou e onde mora, “aos
fundos de uma casa de cômodos, num galpão de sapé meio em ruínas”, etc. O sujeito
descrito poderia ser somente mais um personagem na urbe carioca, não fosse a
centralização da narrativa nas características comportamentais e físicas do homem e
acontecimentos em sua história de vida, que enfatiza a individualidade.

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É interessante notar que a narrativa se caracteriza pelo narrador que observa, e as


informações no texto são colocadas baseadas em supostos diálogos da cronista com o
personagem e relatos da vizinhança: “Há quem conte que, depois da tragédia, foi ele se
entregar nobremente no distrito, culpando-se e em pranto”, escreve Rachel ao narrar o
episódio do suicídio da esposa do homem. Tais características aproximam a crônica da
narrativa jornalística chamada reportagem humanizada.
Na crônica Viagem de bonde, de 1953, a escritora aborda uma cena cotidiana de
forma a cumprir o que foi prometido aos leitores, fornecendo-lhes diversão contra os
tédios. Vejamos o início do texto:

Era o bonde Engenho de Dentro, ali na Praça Quinze. Vinha cheio, mas como
diz, empurrando sempre encaixa. O que provou ser otimismo, porque talvez
encaixasse metade ou um quarto de pessoa magra, e a alentada senhora que
se guindou ao alto estribo e enfrentou a plataforma traseira junto com um
bombeiro e outros amáveis soldados, dela talvez coubesse um oitavo. Assim
mesmo, e isso prova bem a favor da elasticidade dos corpos gordos, ela
conseguiu se insinuar, ou antes, encaixar (QUEIROZ, 1953).

Mais adiante, no mesmo tom humorístico que chega a ser caricatural, outros
personagens são descritos no texto: uma baiana vendedora de doces, a menina de “olho
enviesado” que a acompanha, a moça que segura vários pacotes, um sujeito com bigode
à Stalin “que tinha cara de dirigente do Ministério do Trabalho”, o soldado, o
motorneiro, o condutor entre outros, todos “se apertando” no veículo lotado, a fim de
chegarem a seus destinos. A maneira como a narrativa do trajeto é conduzida e a
pluralidade de personagens pode levar à interpretação do texto como uma metonímia da
cidade do Rio de Janeiro. O Rio estaria naquele bonde, em seu cotidiano, como sugere
Rachel nas linhas finais da crônica:

(...)só um coração de ferro tem coragem de deixar este Rio, assim mesmo
apertado, superlotado, sem comida, sem transporte, sem luz e sem água.
Como disse um paraíba que vinha junto com o soldado: — Qual, se no céu
faltasse água ou luz, por isso os anjos haveriam de se largar de lá? Céu é céu,
de qualquer jeito... (QUEIROZ, 1953).

É o Rio humanizado em seus personagens urbanos que também povoam os


escritos da Rachel do sertão.

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REFERÊNCIAS
CANDIDO, Antonio et alli. A Crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no
Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui
Barbosa, 1992.
COUTINHO, Afrânio. Crítica e teoria literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1987.
FRANCESCHI, Antônio F. de (org.). Rachel de Queiroz. Vol. 4. Cadernos de Literatura
Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1997.
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e
Leandro Konder. 4.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
LIMA, Alceu Amoroso. O jornalismo como gênero literário. 20.ed. São Paulo: Edusp,
1990.
MOISÉS, Massaud. A criação literária: Prosa. 9. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1979.
QUEIROZ, Rachel. O brasileiro perplexo. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964.
QUEIROZ, Rachel. O caçador de tatu: 57 crônicas escolhidas. 2. ed. São Paulo:
Siciliano, 1994.
QUEIROZ, Rachel. A donzela e Moura Torta: 45 crônicas escolhidas. 2. ed. São Paulo:
Siciliano, 1994.

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ENTRE ORFEU E ULISSES: UMA LEITURA DOS ROMANCES HISTÓRICOS


DE JOSÉ DE ALENCAR A PARTIR DAS IDEIAS DE MAURICE BLANCHOT

Arlene Fernandes Vasconcelos1


Marcelo Almeida Peloggio (Orientador)2

A partir das leituras de “A literatura e o direito à morte” e “A leitura de Kafka”,


de Maurice Blanchot, foi verificada uma possibilidade de diálogo entre as ideias
contidas nesses textos e algumas ideias sobre a recepção da obra literária e o processo
de escrita, principalmente dos romances históricos, desenvolvidos por José de Alencar
em seus textos “Benção paterna”, “Carta ao Dr. Jaguaribe”, “Rio de Janeiro - Prólogo” e
“Pós-escrito” de Diva.
Inicialmente, traçando um paralelo entre Kafka e Alencar, no que concerne à
verdade extraliterária contida em suas obras, deparamo-nos com um comentário de
Blanchot: “Talvez seja a singularidade de livros como O processo ou O castelo o que
nos remete sempre a uma verdade extraliterária” (BLANCHOT, 1997, p.1). Essa
observação permite entender que não era o desejo de Kafka fazer a ligação direta do
fato literário com a realidade. Mesmo porque o autor não tinha a intenção de publicar
sua produção, o que só ocorreu postumamente. Encontramos, então, o primeiro ponto
sobre o qual discutir, já que José de Alencar declarou, mais de uma vez, sua
preocupação em registrar uma realidade que o leitor pudesse apreender nas leituras de
suas obras, pensando claramente na recepção que ela teria, diretamente preocupado em
alcançar a “verdade extraliterária” citada por Blanchot. “Como se há de tirar a fotografia
dessa sociedade sem lhe copiar as feições?” (ALENCAR, 1959, p. 699). Afirmação
significativa que já denota que o autor tinha uma intenção, ainda que não a principal, de
copiar as feições da sociedade em que vivia. Ainda sobre a descrição da realidade, em
comentário sobre a língua indígena, ele afirmou:

É preciso que a vida civilizada se molde quanto possa à singeleza primitiva


da língua bárbara; e não represente3 as imagens e os pensamentos indígenas
senão por termos e frases que ao leitor pareçam naturais na boca do selvagem
(ALENCAR, 1958, p.306).

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.
2
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.
3
Grifo nosso.

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O termo “represente”, do trecho anterior, extraído da “Carta ao Dr. Jaguaribe”,


traduz bem a intenção de uma escrita comprometida com as exigências do mundo, uma
preocupação do escritor de atingir um objetivo específico e bem delineado por ele – de
apresentar o leitor a uma determinada imagem indígena –; ao contrário da
“apresentação”, identificada no escritor que se entrega completamente à escrita e busca
o novo, presente na origem de qualquer palavra, com a tentativa de livrar-se dos
“rótulos” conceituais e alcançar a pureza dessa palavra.
A preocupação do autor de Iracema com a leitura que será feita de sua obra pode
ser percebida em vários de seus escritos. Enquanto Blanchot identifica que, em Kafka,
“cada termo, cada imagem e cada narrativa são capazes de significar seu contrário”
(BLANCHOT, 1997, p. 5), podemos observar em Alencar um movimento exatamente
oposto – um desejo de esclarecer suas intenções, produzindo espécies de manuais de
leitura para o seu leitor, apontando o caminho e, em alguns casos, antecipando as
possíveis reações de seu público. Na própria obra Iracema, apresentou um “argumento
histórico” como forma de dar maior veracidade à lenda que estava criando. Buscando
para sua obra uma base sólida de confiabilidade com a qual presentear o leitor,
aplainando seu caminho, para atingir mais facilmente o fim almejado.
Sendo assim, Alencar não escrevia apenas para suprir uma necessidade, mas
para chegar a uma finalidade, ainda que não descartasse a primeira. Podemos observar
nele uma tentativa de realização de si mesmo, enquanto escritor, e de seus ideais através
de sua obra. E o escritor, conforme a ideia blanchotiana, “confunde-se com seu livro” de
uma forma tão profunda, que, no caso de Alencar, há sempre a necessidade de explicar
sua própria obra: “Sabe você agora o outro motivo que eu tinha de lhe endereçar o livro;
precisava dizer todas essas coisas, contar como e por que escrevi Iracema”
(ALENCAR, 1958, p.307).
Em “Rio de Janeiro – Prólogo” – texto onde confessa: “sou um historiador à
minha maneira” (ALENCAR, 1981, p. 111) –, o escritor de Iracema tenta explicar ao
leitor o desejo de criar um livro sobre a história do Rio de Janeiro:

Dar a cada um dos antigos edifícios da cidade a sua crônica, fazendo-os viver
no futuro senão pela sua beleza material, ao menos pelas tradições que

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encerram; dramatizar a história4 descrevendo a cena onde se passaram os


fatos mais importantes, e apresentando ao vivo seus personagens e a sua
decoração. – eis como eu compreendia o livro que tencionava escrever
(ALENCAR, 1981, p. 110).

Essa necessidade de justificar ou, até mesmo, explicar o que escreveu, afasta-se
do mito do Orfeu blanchotiano, uma vez que, para Blanchot, Orfeu/escritor arriscou-se
ao olhar para Eurídice/escrita, sucumbindo juntamente com ela; posto que ele não
sobreviveria sem ela ou ela sem ele. Isto é, o escritor comprometido com a escrita
literária, sem amarras que o prendam a fatores extraliterários, sempre está em risco; no
risco de perder-se completamente com a obra que escreve, no processo de sua escritura,
não podendo mais ser um homem real, e sim um ser literário. Por conseguinte, essa
prática do escritor que, escrevendo, se doa completamente à escrita, sem pensar nas
consequências, não pode ser considerada a mesma prática de escrita de José de Alencar.
Para Maurice Blanchot, o olhar do artista sobre sua obra é o “olhar de Orfeu” que não
consegue superar sua necessidade de entregar-se completamente à escrita. Com o autor
de As minas de prata ocorre o oposto. A “função” de sua obra não é jamais esquecida.
Ele não se volta para trás para não correr o risco de por tudo a perder. Mas não deixa de
ser o Orfeu que busca sua Eurídice na poesia de sua escrita.
Comparado ao mito da sereia de Ulisses, José de Alencar é ambíguo. Nem pode
ser considerado o Ulisses que tenta burlar o chamado da arte/sereia, nem o escritor que
se nega ao chamado social para entregar-se somente à arte. Sua produção de romances
históricos tem um caráter social, na medida em que tem por objetivo formar o leitor
nacional, despertar nele o interesse pelas coisas da pátria, mas tudo é feito com a mais
refinada arte. Ele se entrega à necessidade de escrever sem deixar de lado a ideologia. E,
dessa forma, ele se realiza, como escritor, em sua obra. Quando trabalha com a história
nacional dos séculos XVI e XVII, buscando fazer do índio o nosso cavaleiro medieval,
o autor de O guarani está realizando um plano. Porém, ao revestir sua prosa com a mais
pura poesia, deixa entrever o quão forte é o seu desejo de escrever, ainda que para
atingir um objetivo. A respeito de seu papel de historiador, ele diz:

As obras mais importantes da nossa história não são lidas por todos, já pela
sua raridade, já porque não estão ao alcance das pequenas fortunas; por isso
escrevendo para uma folha diária, para o povo, e não para os eruditos entendo
que a minha obrigação é vulgarizar aquilo que devemos às investigações de

4
Grifo nosso.

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homens profundos que se dedicaram ao estudo desta matéria (ALENCAR,


1981, p. 112).

Alencar escreve para um leitor específico. Conhecendo bem o seu público, ele
também conhece suas limitações. Sua finalidade era clara: fazer com que o leitor criasse
raízes brasileiras, identificando-se com a história nacional, através da literatura, ainda
que trabalhando com a “micro-história” do país, método intencional que servia para
aproximar os fatos históricos do homem comum, leitor de seus romances. Logo
percebendo que uma epopéia, retrato de um mundo perfeito e acabado, não mais se
encaixaria em seu objetivo, parte para o romance histórico e justifica-se: “Ora, escrever
um poema que devia alongar-se, para correr o risco de não ser entendido, e quando
entendido não apreciado, era para desanimar o mais robusto talento, quanto mais a
minha mediocridade” (ALENCAR, 1958, p.307). Assim sendo, Alencar pretende guiar
até mesmo o processo de formação do leitor como co-escritor de sua obra, escrevendo o
que ele supõe que será apreciado e entendido de forma clara, o que está mais em acordo
com a realidade brasileira de sua época.
Além da preocupação com a recepção da obra pelo público, o autor ainda
externa uma preocupação com a crítica literária, mais uma vez contrapondo-se a
Blanchot, quando este afirma que “o escritor dá mais importância ao sentido que sua
obra tem somente para ele” (BLANCHOT, 1997, p. 298). Porém, podemos apontar uma
semelhança entre o pensamento dos dois autores sobre o posicionamento do escritor
frente à recepção da obra pelos críticos. Segundo Alencar,

Quem mais ganha com esses rigores sou eu. Se provêm do bom gosto e da
cultura literária, são lições judiciosas, que se recebem, e mais tarde
aproveitam. Se nascem da inveja, do despeito, do desejo de celebrizar-se, ou
de qualquer outro lodo interior, onde se gere essa praga, ainda assim tem
serventia: revelam ao autor o apreço do público, pelo desprezo a que são
lançadas essas alicantinas (ALENCAR, 1959, p.701).

Blanchot tem posicionamento semelhante quando comenta a receptividade da


obra pela crítica, aos olhos do autor:

Se as circunstâncias a negligenciam, ele se felicita, pois só a escreveu para


negar as circunstâncias. Mas, que de um livro nascido por acaso, produto de
um momento de abandono e de fadiga, sem valor nem significação, os
acontecimentos façam subitamente uma obra-prima, que autor, no fundo do
seu espírito, não se atribuirá essa glória, não verá nessa glória o seu mérito,

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nesse dom da sorte sua própria obra, o trabalho do seu espírito em acordo
providencial com seu tempo? (BLANCHOT, 1997, p. 288-9).

As “circunstâncias” citadas pelo autor estão ligadas à crítica literária, bem como
a fatores extra-literários. E o comentário traz um toque de ironia ao colocar “abandono”
e “fadiga” – relacionados a empenho e trabalho – na mesma frase que “nascido por
acaso”. Além da ironia, pode-se observar a presença de uma das bases do pensamento
blanchotiano: de acordo com o teórico, a obra literária não é um trabalho manual, no
qual o escritor tem que trabalhar com a língua, escolhendo os melhores adjetivos, como
faz José de Alencar; a proposta de Blanchot alia-se à questão da inspiração e da escrita
ininterrupta, uma vez que o escritor, ao se entregar ao Canto das Sereias, que também é
o chamado da escrita, é tomado por um demônio interior que o lança no processo de
escrever; e o que ele inicia numa obra nunca terá fim, podendo reaparecer em várias
outras obras. E esse processo ininterrupto, por vezes cansa o próprio escritor, levando-o
a uma condição de cansaço e de vigília – estado entre o adormecido e o acordado. Nesse
estado dormente é que o escritor libera-se completamente de todas as amarras e passa a
escutar com mais força as “vozes internas” que passam a dominar sua escritura.
Ainda sobre a crítica – ou sobre os críticos – Blanchot alerta para a contradição
do escritor que se vê preso, “imobilizado em uma dessas formas” – os vários momentos
do escritor, desde o processo de escrita até o momento em que ele é negado pela própria
obra já realizada –, “posto em questão sobre um desses aspectos, ele só pode se
reconhecer sempre outro” (BLANCHOT, 1997, p. 301). Também por isso não há em
Blanchot a necessidade de se entender a literatura pelo mundo real, a literatura deve ser
vista por ela mesma, por sua arquitetura discursiva. Essa fluidez em desviar-se não
somente da crítica, mas de tudo que estiver exterior ao processo de escrita,
principalmente, no que diz respeito ao mundo real, aparece em Alencar como um ataque
direto ao próprio crítico: “Os críticos, deixa-me prevenir-te, são uma casta de gente, que
tem a seu cargo desdizer de tudo neste mundo” (ALENCAR, 1959, p. 692). E ele fala
com propriedade pois foi rejeitado e ignorado pela crítica em vários momentos.
Diante dessas observações, já podemos procurar identificar José de Alencar nas
“regras do escritor” (BLANCHOT, 1997, p. 301) que Maurice Blanchot escreveu,
baseado nas oposições que o escritor enfrenta durante seu processo de escrita e que
formam seus “momentos”: Alencar conhecia as palavras e não poderia ficar sem

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escrever, mas escrevia sempre “para dizer alguma coisa”, desejando o reconhecimento
de sua obra pelos outros, tentando “apagar o leitor”, na medida em que queria traçar-lhe
o caminho de leitura. Escrevia pela verdade e escrevia a verdade. Escrevia para agir.
Escrevia e agia. Ao mesmo tempo em que acorrentou a liberdade à palavra, permitiu-lhe
tornar-se a própria palavra.
A partir do uso da palavra, Alencar promove o afastamento do leitor de sua
realidade para inseri-lo no imaginário da realidade histórica brasileira, em toda a sua
grandiosidade, ainda em conformidade com seu projeto de nacionalização da literatura.
Usando a verossimilhança para alcançar a verdade íntima do ser humano, ele soube unir
seu programa de criar uma obra nacional com seu talento e inspiração para escrever,
examinando e revirando a própria língua para adequá-la à realidade que se lhe
apresentava à época. Tal qual o próprio escritor blanchotiano, que sabe o poder da
palavra que “dá o que significa, mas primeiro o suprime” (BLANCHOT, 1997, p. 310).

REFERÊNCIAS

ALENCAR, José de. Benção paterna. In: ______. Sonhos D’ouro. Obra completa. Rio
de Janeiro: Editora José Aguilar, 1959.
______. Carta ao Dr. Jaguaribe. In: ______. Iracema. Obra completa. Rio de Janeiro:
Editora José Aguilar, 1958.
______. O Rio de Janeiro – Prólogo. In: FREIXIEIRO, Fábio. Alencar: os bastidores e
a posteridade. 2. ed. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 1981.
______. Pós-escrito. In: ______. Diva. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora José
Aguilar, 1959.
BLANCHOT, Maurice. A leitura de Kafka. In: ______. A parte do fogo. Tradução de
Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
______. A literatura e o direito à morte. In: ______. A parte do fogo. Tradução de Ana
Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

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A PROCURA PELA LINGUAGEM EM ESTADO VIRGINAL NA


ESCRITA DE MANOEL DE BARROS

Bianca Albuquerque da Costa1


Cid Ottoni Bylaardt (Orientador)2

A linguagem literária se mostra como uma força inquietante, uma ruptura, um


movimento de negação que, ao negar a realidade, cria um novo mundo e, por isso, acaba
por nada negar. A escrita de Manoel de Barros é um exemplo desse rompimento, dessa
quebra provocada pela linguagem literária, pois, ao trabalhar com elementos incomuns e
sempre empreender uma caçada à infância das palavras, ao seu estado mais primitivo,
seu estado larval, rompe com todos os padrões. É inquietante, também, porque sua
procura é inesgotável, infinita dentro das diversas possibilidades que a palavra poética
possui e é uma negação, pois nega a realidade instaurando um novo mundo, que possui
uma lógica peculiar, intrínseca, mas que, por negar todo o real que está a sua volta, não
nega nada. Como afirma Blanchot em A parte do fogo (1997):

O que pode um autor? Primeiro, tudo: ele está agrilhoado, a escravidão o


aprisiona, mas se ele encontrar, para escrever, alguns momentos de liberdade,
ei-lo livre para criar um mundo sem escravo, um mundo onde o escravo,
agora senhor, instala a nova lei; assim, escrevendo, o homem acorrentado
obtém imediatamente a liberdade para ele e para o mundo; nega tudo o que
ele é para se tornar tudo o que ele não é. (...) Mas olhemos mais de perto. Se
se der imediatamente a liberdade que não tem, ele negligencia as verdadeiras
condições de sua alforria, negligencia o que deve ser feito de real para que a
idéia abstrata de liberdade se realize. Sua negação a ele é global. Ela não
nega apenas sua situação de homem emparedado, mas também passa por
cima do tempo que nessa parede deve abrir brechas, nega a negação do
tempo, nega a negação dos limites. Por essa razão, em suma, não nega nada,
e a obra em que se realiza não é ela própria um ato realmente negativo,
destruidor e transformador, mas realiza a impotência de negar, a recusa de
intervir no mundo, e transforma a liberdade que seria preciso encarnar nas
coisas segundo os caminhos do tempo num ideal acima do tempo, vazio e
inacessível (BLANCHOT, 1997, p. 304).

Blanchot afirma, então, que a negação presente na obra literária não é uma
negação transformadora do real, pois essa negação não possui como intuito contestar, ir
contra a realidade. A obra tudo nega por não se inserir no real, por não habitar a
realidade e, quando essa negação global acontece, há a criação de outro mundo – o

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.


2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

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contramundo literário onde a obra está efetivamente inserida. E Manoel de Barros, em


seus textos, apresenta essa negação do real ao leitor, primeiramente, através das
palavras por ele escolhidas para compor seu universo literário. Assim, Barros busca
sempre trabalhar com a palavra corrompida, desgastada, em estado de traste, e essa
busca não é meramente estética; antes, atende a um anseio do poeta, quase uma
necessidade, de utilizar o que já extrapolou as possibilidades de uso para trabalhar novas
significações. A palavra esquecida, desgastada, está livre dos estigmas poéticos e,
assim, pronta para o inusitado, para o novo olhar do autor, para o surgimento do
contramundo literário.
Há, então, uma procura incessante por alcançar o estado virginal das palavras,
por tomar os vocábulos em sua qualidade de coisa, o significante que se sobressai ao
significado. Essa espécie de degradação poética, que, além de utilizar palavras
corrompidas, corrompe-as em seu interior, acaba por provocar uma série de relações
ilógicas. Assim, a poesia barrense desafia o olhar do leitor, que sempre procura um
“sim, sim; não, não” naquilo que lê, trazendo para ele uma poesia que está além da mera
significação, que não busca representar, mas ser.
Maurice Blanchot, em A literatura e o direito à morte, afirma que:

O notável é que na literatura o engano e a mistificação são não apenas


inevitáveis, mas também formam a honestidade do escritor, a parte de
esperança e de verdade que existe nele. Muitas vezes, atualmente, fala-se da
doença das palavras, até nos irritamos com aqueles que falam disso,
suspeitando que as tornem doentes para delas poder falar. Talvez seja.
Infelizmente, essa doença é também a saúde das palavras (BLANCHOT,
1997, p. 300).

É exatamente essa palavra doente, esfacelada, que causa equívocos, que se


mostra vazia, sendo que “esse vazio é seu próprio sentido” (Blanchot, 1997, p.300), que
está presente nas obras barrenses. Mas essa doença é também a saúde das palavras, pois
permite múltiplos olhares e, assim, uma fuga do lugar-comum. Dessa maneira, o
inesperado acontece, a surpresa pode vir à tona e, dentro da obra poética, a palavra
doente permitirá que um gato não seja meramente um gato, mas um “não-gato”
(Blanchot, 1997, p.300).

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Em seu livro Arranjos para assobio, Manoel de Barros expressa a busca por esse
aspecto da palavra, por esse momento que antecede a própria significação, momento de
doença, como pode ser observado no poema a seguir:

Borboleta morre verde em seu olho sujo de pedra.


O sapo é muito equilibrado pelas árvores.
Dorme perante polens e floresce nos detritos.
Apalpa bulbos com seus dourados olhos.
Come ovo de orvalho. Sabe que a lua
Tem gosto de vagalume para as margaridas.
Precisa muito de sempre
Passear no chão. Aprende antro e estrelas.
(Tem dia o sapo anda estrelamente!)
Moscas são muito predominadas por ele.
Em seu couro a manhã é sanguínea.
Espera as falenas escorado em caules de pedras.
Limboso é seu entardecer.
Tem cios verdejantes em sua estagnação.
No rosto a memória de um peixe.
De lama cria raízes e engole fiapos de sol. (BARROS, 2007, p.27)

Há, nesse texto, uma quebra da razão, da lógica habitual. O leitor que se arriscar
na formação de imagens esbarrará na difícil barreira da compreensão, pois o próprio
sentido está corrompido, parece mesmo que o autor não quer ser compreendido (no
sentido usual da palavra). A razão e nem mesmo a imagem são privilegiadas nesse
texto, aqui, percebe-se o destaque das palavras. Há um trabalho quase artesanal em que
cada vocábulo é experimentado de modo a tentar extravasar o obstáculo da significação
reta, unilateral. Reina a plurissignificação, a ambiguidade, pois, como diz Blanchot
(1997, p.326), “a literatura é a linguagem que se faz ambiguidade”.
Quando se depara com um verso como “Em seu couro a manhã é sanguínea”,
automaticamente, a mente do leitor se esforça na tentativa de apreender o sentido, faz
ligações entre o couro e a pele do sapo, procura estabelecer relações entre manhã e
sangue, ou mesmo entre o couro e o aspecto matinal, já que o pronome “seu” não
delimita bem a quem faz referência. Mas o poema parece fugir do esquema dialético,
negar qualquer compreensão, qualquer estabelecimento de uma idéia, de um
encadeamento lógico entre as palavras, e, assim, parece requisitar a presença daquilo
que antecede a palavra, isto é, a presença da própria coisa. Como afirma Blanchot:

A linguagem da literatura é a busca desse momento que a precede.


Geralmente ela a nomeia existência; ela quer o gato tal como ele existe, o

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pedregulho em seu parti pris de coisa, não o homem, mas este, e neste, o que
o homem rejeita para dizê-lo, o que é fundamento da palavra e que a palavra
exclui para falar, o abismo, o Lázaro do túmulo, e não o Lázaro devolvido ao
dia, aquele que já tem mau cheiro, que é o Mal, o Lázaro perdido, e não o
Lázaro salvo e ressuscitado (BLANCHOT, 1997, p. 315).

Então, a reunião desses elementos, dessas palavras, não cria uma representação,
não sugere uma coisa que remeta a outra; há, na verdade, o nascimento de um novo
objeto – da palavra-objeto, da frase-objeto. Pois, como diz Sartre (1993, P.16), “(...)
quando o poeta junta vários desses microcosmos, dá-se com ele o mesmo que se dá com
os pintores quando juntam cores sobre a tela; dir-se-ia que ele compõe uma frase, mas é
só aparência; ele cria um objeto.” Assim, quando Barros reúne esses microcosmos –
palavras poéticas, segundo Sartre – que em sua maioria não pertencem àquilo que é
esperado dentro do universo literário, e da maneira como os reúne, ele não cria
simplesmente um período, uma oração, mas dá vida a esses vocábulos, aproximando-os
ao máximo de seu estado objetal.
É dessa tentativa de separação entre a ideia e a palavra em si, como coisa que ela
é, entre o significante e o significado, dessa busca em tomar o signo tal como ele é
(entenda-se: sem que se remeta a outra coisa) que surge o inesperado, pois, como
propõe Barthes:

Cada palavra poética é assim um objeto inesperado, uma caixa de Pandora de


onde saem voando todas as virtualidades da linguagem; é portanto produzida
e consumida com uma curiosidade particular, uma espécie de gulodice
sagrada. Essa Fome da Palavra, comum a toda poesia moderna, faz da
palavra poética uma palavra terrível e desumana. Institui um discurso cheio
de buracos e cheio de luzes, cheio de ausências e de signos supernutritivos,
sem previsão nem permanência de intenção e por isso mesmo tão oposto à
função social da linguagem, que o simples recurso a uma palavra descontínua
abre a via de todas as Sobrenaturezas (BARTHES, 2004, p. 43).

E é assim, através do empenho do autor em encontrar o lado primitivo da palavra


e os diversos olhares permitidos por um vocábulo “livre” de ideias pré-concebidas, que,
ao ser afastado de seu lugar habitual, afasta o leitor e o surpreende com seu estado quase
vegetativo (talvez mineral, ou mesmo animal), é assim que “pedra”, “sapo”, “detritos”,
“chão”, “antro, “moscas” e tudo mais que não pareça ter sentido ou mesmo capaz de
estabelecer relação entre si, entram na poesia da Barros. Todos esses elementos, quando
misturados pelo autor, e da forma que ele faz, se apresentam como uma tentativa de
negação do real, mas, ao fazer isso, nega-se tudo e, ao mesmo tempo, não se nega nada.

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Nasce, então, o contramundo literário, mundo das possibilidades, das fugas, da


liberdade imaginativa e onde o real não pode ser negado, pois não há com negar aquilo
que não existe. É nesse lugar, onde as possibilidades são infinitas por não mais
existirem as barreiras e limitações impostas pela realidade, que reside a arte poética de
Manoel de Barros.

REFERÊNCIAS

BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Tradução: Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1997.
BARROS, Manoel de. Arranjos para assobio. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.
BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. Tradução: Mario Laranjeira. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a Literatura? Tradução: Carlos Felipe Moisés. 2. ed. São
Paulo: Ática, 1993.

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O RISO DE EXU N’AS PELEJAS DE OJUARA – MARCAS DE UMA CULTURA


AFROBRASILUSA

Carolina de Aquino Gomes1


Elizabeth Dias Martins (Orientadora)2

O riso como princípio do Mal é uma concepção do medievo que culminou na


Alta Idade Média. Partindo dessa noção indicadora do caráter diabólico do riso,
observamos a remanescência dessa mentalidade medieval na obra de Nei Leandro de
Castro, As pelejas de Ojuara.
O Diabo, entidade relacionada à doutrina cristã, na obra, recebe vários nomes,
dentre eles o de Exu.
Observando a semelhança do orixá africano e do Diabo “cristão” encontrado na
cultura popular nordestina, percebemos a ligação deste ente, Exu demonizado, com a
manifestação e provocação do riso.
Exu foi transformado em Diabo devido ao sincretismo religioso em que se deu a
adaptação da religião africana no Brasil, principalmente com a criação da Umbanda.
Sobre esta religião escreve Monique Augras:

Essa religião é por definição sincrética, pois amalgama deuses e santos já


conhecidos com outros que aparecem todo dia. Religião nova, em fase de
grande desenvolvimento, a umbanda transforma-se sem cessar, e torna-se,
por isso, de difícil alcance para o observador. (AUGRAS, 1983, p.28)

Segundo Augras (1983), a Umbanda é uma religião que incorpora elementos de


várias seitas e religiões, dentre elas a Católica. Encontra-se aqui a herança medieval,
preservada pela doutrina Católica, da visão maniqueísta do Bem e do Mal nessa religião
afro-brasileira, o que não é encontrado no candomblé fiel às raízes africanas.
Câmara Cascudo (2002) nos adverte sobre este mal entendido ocorrido com a
figura de Exu em terras brasileiras:

1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará e bolsista
CAPES-Reuni.
2
Crítica, ensaísta, doutora pela PUC-RJ e professora adjunta do Depto. de Literatura e do Programa de
Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

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Com a liberdade irresponsável, surgem no Brasil os exus caudados e


cornudos, ampla bocarra escancarada para a deglutição de vítimas como um
Moloch. (CASCUDO, 2002, p. 111)

Mesmo assim, no sertão nordestino, preservou-se esta concepção diabólica de


Exu. A respeito nos confirma Augras (1983):

Nas regiões onde dominava a influência indígena, como Norte e Nordeste, o


culto dos espíritos e seus deuses (encantados) concorreu para a mistura de
crenças. (AUGRAS, 1983, p. 27)

Exu é o deus africano responsável por receber e repassar as oferendas aos outros
deuses, o mensageiro, e também é o deus da fertilidade, representado em seus altares
por objetos fálicos. Sua ligação com Lúcifer foi a priori identificada por nós pelo caráter
trickster, comum a ambos. Ao ler as histórias narradas pela Mitologia Africana,
conhecemos um Exu transformador da natureza. Ele aparece como o criador do mundo
terreno, o Ayê, ao mesmo tempo se torna transgressor. Modifica o lugar do sol e da lua,
desafia os deuses, é protagonista de aventuras obscenas, das quais sai muitas vezes
humilhado. O malicioso Exu é enganado e logo arranja sua vingança. O bem-feitor
também é o mal-feitor. Sendo assim, esse caráter que contraria as regras de conduta
aceitas foi que levou o deus mensageiro a alçada de Diabo na transmutação da religião
africana para alguns cultos de religiões afro-brasileiras.
Segundo Pierre Verger, Exu

Tem um caráter suscetível, violento, irascível, astucioso, grosseiro, vaidoso,


indecente [...] os primeiros missionários, espantados com tal conjunto,
assimilaram-no ao Diabo e fizeram dele o símbolo de tudo o que é maldade,
perversidade, abjeção e ódio, em oposição à bondade, pureza elevação e amor
de Deus. (VERGER apud PRANDI, 2001, p.01)

Para os cristãos é facilmente reconhecível a semelhança de Exu com o Diabo


popular, malicioso, tapeador e tapeado, perturbador e engraçado, figura geralmente
encontrada em folhetos de cordel. De acordo com o que foi descrito até o momento, o
riso está presente na figura de Exu, transmutado em Diabo “cristão”.
Observamos, então, que durante a Idade Média surgiram vários questionamentos
acerca da natureza do riso.

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Jacques Le Goff em seu livro Uma longa Idade Média, trata, no capítulo “Jesus
riu?”, sobre essa natureza diabólica do riso. O questionamento feito no início do
capítulo nos serve de ponto de partida para compreender como o riso é relacionado a
Lúcifer.
Na Alta Idade Média, período de maior condenação do riso, questionava-se sua
natureza, pois na Bíblia Sagrada não existe registro de que Jesus riu alguma vez. Essa
premissa reforça o caráter diabólico do riso. Segundo Le Goff (2008), “Se o riso é
próprio do homem, é próprio do homem decaído e pecador: o próprio riso é um pecado”
(LE GOFF, 2008, p. 287).
Já percebemos no início da Idade Média, como registra Le Goff (2008), que o
riso é relacionado ao corpo, dando uma importância essencial à boca e às orelhas. As
partes do corpo citadas serviriam umas para filtrar as provocações do riso feitas por
Satanás, as orelhas, e outra para prendê-las, mantendo a boca fechada para não rir.
Porém, nos deteremos neste estudo ao período do século IV ao século X, Alta Idade
Média, em que o riso já assumiu um status diabólico, sendo considerado como pecado,
como nos mostra Minois (2003) ao citar Qumran: “aquele que ri tola e ruidosamente
será punido durante trinta dias” (QUMRAM apud MINOIS, 2003, p.125).
Ao analisarmos a obra de Nei Leandro de Castro, As pelejas que Ojuara, de
acordo com a Teoria da Residualidade, de autoria do Prof. Dr. Roberto Pontes, em que
“Na cultura e na literatura nada é original, tudo é remanescente, logo, tudo é residual”.
(PONTES, 2006, p. 3), constatamos a permanência de substratos mentais oriundos do
medievo nesta obra contemporânea. O riso provocado e promovido pelo Diabo é
recorrente em toda a obra. No entanto, para a presente comunicação destacamos um
trecho da obra, capítulos três e quatro da terceira parte, em que o herói Ojuara tem seu
primeiro confronto com o ente diabólico, denominado pelo preto velho de Exu. O negro
alforriado conta a Ojuara que sonhou com uma mulher linda e branca, parecida com a
Princesa Isabel. Ela, em sonho, lhe mostrou como chegar a um tesouro debaixo de uma
jaqueira, dando instruções em números e rezas, porém o velho não sabia contar nem
rezar. Durante um sonho pediu ajuda a Exu, que prontamente o atendeu, mostrando-lhe
o caminho, porém já exigiu sua oferenda e sentenciou a vingança. A ambição do velho
foi mais forte e ele não cumpre sua parte no trato. Sendo assim, Exu vem à procura do
velho.

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A imagem construída de Exu na obra se assemelha ao Diabo. O orixá africano


aparece como um bicho preto e peludo, sob forma demoníaca. Apresenta-se de modo
grotesco, caindo em pedaços e apresentando um cheiro próprio do Belzebu, revelando
aspectos residuais da mentalidade medieval acerca do riso como princípio do Mal.
Esses atributos não fogem totalmente aos do Demônio cristão, preserva seus
aspectos físicos e morais. É sempre representado como preto, sujo, fedorento,
incorporando traços de animais e apegado aos prazeres mundanos. A especificidade
desse tipo cômico do Diabo parece estar na disposição dessas particularidades e da sua
própria relação com o Mal.
A partir da leitura do romance, observamos que os atributos característicos do
demônio medieval permanecem cristalizados na cultura popular nordestina. De acordo
com Muchembled (2001), devido às adaptações feitas dos cultos pagãos para o
cristianismo, o Diabo herdou alguns traços representativos do deus Pã, como os cornos,
a pelugem de bode, o falo desmesurado e o grande nariz. Já o Concílio de Toledo, em
477, o descrevia como “um ser grande e negro, com garras, orelhas de asno, olhos
grandes e dentes rangentes [...] e espalhando um odor de enxofre” (MUCHEMBLED,
2001, p. 27).
Outro aspecto que aproxima o Diabo do Exu é a obscenidade, presente no trecho
aqui estudado, em que o risível se revela em imagens escatológicas e obscenas, como
vemos no seguinte trecho da luta de Ojuara com a Besta-fera, Exu:

Mas também não foi brincadeira. Às vezes, o murro do papa-figo tinha força
da munheca do finado Zé Tabacão [...] Outras vezes ele ficava só pulando, se
desviando de Ojuara, fazendo careta e soltando uns peidos que pareciam
trovões com cheiro de xibiu de porca. (CASTRO, 2006, p. 240)

O obsceno e escatológico presente no trecho acima reforça o caráter demoníaco


do riso. Segundo Umberto Eco (2007), o obsceno, relacionado ao anticristo, é
provocador do riso. Sendo assim, por intermédio da derrisão, o Diabo perde sua
natureza aterrorizadora, como nos confirma Eco (2007):

Comicidade e obscenidade casam-se, ao contrário, quando nos divertimos à


custa de alguém que desprezamos [...] ou num ato liberador voltado contra
algo ou alguém que nos oprime. (ECO, 2007, p. 135)

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Concluímos previamente ser possível a remanescência de substratos mentais das


culturas africana e portuguesa na construção da brasileira, no que diz respeito ao aspecto
diabólico do riso.
A presente comunicação reforça a importância de se desenvolverem mais
estudos sobre a cultura e literatura africanas e suas contribuições para a formação das
nossas de modo a conseguirmos entender a origem de ambas em conexão com um
período de rica produção literária e cultural, a Idade Média.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUGRAS, Monique. O duplo e a metamorfose: a identidade mítica em comunidades
nagô. Petrópolis: Vozes, 1983.
BENISTE, José. Mitos yorubás: o outro lado do conhecimento. RJ: Bertrand Brasil,
2008.
BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.
CARNEIRO, Édison. Candomblés da Bahia. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1954.
CASCUDO, L. da Câmara. Made in África. São Paulo: Global editora, 2002.
CASTRO, Nei Leandro de. As pelejas de Ojuara: o homem que desafiou o diabo. 4ªed.
São Paulo: Arx, 2006.
ECO, Umberto. História da feiúra. Record, 2007.
FRANCHINI, A. S. SEGANFREDO, C. As melhores histórias da mitologia africana.
Porto Alegre: Artes e ofícios, 2008.
LE GOFF, Jacques. Uma longa idade média. RJ: Civilização Brasileira, 2008.
MARTINS, Adilson. Lendas de Exu. Rio de Janeiro: Pallas, 2005.
MARTINS, Elizabeth Dias. Quem ri de quem em Romagem de Agravados. In: Atas do
III Encontro Internacional de Estudos Medievais, 2001. Rio de Janeiro: ABREM/
Editora Ágora da Ilha.
MINOIS, G. História do riso e do escárnio. São Paulo: Unesp, 2003.
NOGUEIRA, Carlos R. F. O Diabo no imaginário cristão. São Paulo: Ática, 1986.
PONTES, Roberto. O viés afrobrasiluso e as literaturas africanas de Língua
portuguesa. Conferência proferida no II Encontro de professores africanos de língua
portuguesa. SP, USP, 2003.
PRANDI, Reginaldo. Exú, de mensageiro a diabo – sincretismo católico e demonização
do orixá Exú. In: Revista USP. São Paulo, 2001.
TRINDADE, Liana (org.). A cólera e o sagrado: pesquisas franco-brasileiras. São
Paulo: Terceira Margem, 2006.

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JOSÉ DE ALENCAR E A PREOCUPAÇÃO SUBSTANCIAL NA RELAÇÃO


HOMEM-NATUREZA

Carolina Morais Ribeiro da Silva1


Marcelo Almeida Peloggio2

Iremos tratar, neste artigo, da preocupação freqüente que teve José de Alencar em
alertar seus leitores para a degradação do meio ambiente.
No autor de O guarani, existe, com efeito, uma preocupação de educar o homem
para o belo, e, com ela, de se valorizar a natureza. É que Alencar se coloca em posição
firme contra os aspectos negativos da “modernidade”, que intervinha no país de forma
abrupta, com suas locomotivas e outras transformações técnicas – era, então, o
“progresso”. Assim, o caráter extemporâneo alencarino vai se tornando mais evidente à
medida que o autor faz críticas a uma sociedade que aceita a modernização, engessando
seu pensamento no “novo”, sem conjecturar as conseqüências negativas, principalmente
para o mundo natural.
As obras alencarinas são marcadas por assuntos que correspondem tanto ao
espaço geográfico quanto ao desenvolvimento histórico. No que diz respeito ao
primeiro, pode-se destacar O sertanejo (1875), que retrata o sertão nordestino; Iracema
(1865), a descrever o litoral cearense; O gaúcho (1870), que apresenta os campos do
Rio Grande do Sul; Til (1872), que faz ver a zona rural, tendo como cenário o interior
paulista; O Tronco do ipê (1871), abrangendo a zona da mata fluminense; e, nos
romances urbanos, tais como Senhora (1875), Lucíola (1862) e Diva (1864), há o
retrato da sociedade burguesa do Segundo Reinado. Quanto a nossa evolução histórica,
destacam-se Iracema e O guarani (1857), que constituem uma pintura da fase de
formação da nacionalidade brasileira, bem como As minas de prata (1865-6) e Guerra
dos mascates (1873-4).
Pode-se dizer que José de Alencar teve seu trajeto literário iniciado ao publicar,
em 1857, O guarani; pois que, nesta obra, busca enfatizar as belezas naturais do Brasil,
mostrando ao leitor o mundo tupiniquim: descreve, pois, a diversidade de nossa fauna e
flora. A obra procura exaltar, portanto, o ambiente pátrio, abrindo passagem para o

1
Graduanda em Letras da Universidade Federal do Ceará.
2
Professor do Programa de Pós-Graduação do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.

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nacionalismo de nosso indianismo. E a natureza como que guarda, aí, um grau de


superioridade em relação ao homem, deixando claro que este é apenas coadjuvante
quando em face da beleza e perfeição desta. O caráter superior e inquestionável da
natureza sobre o homem é retratado, por exemplo, nesta passagem:

A vegetação nessas paragens ostentava outrora todo o seu luxo e vigor;


florestas virgens se estendiam ao longo das margens do rio, que corria no
meio das arcarias de verdura e dos capitéis formados pelos leques das
palmeiras. Tudo era grande e pomposo no cenário que a natureza, sublime
artista, tinha decorado para os dramas majestosos dos elementos, em que o
homem é apenas um simples comparsa3.

Notamos, também, que Alencar utiliza-se de elementos naturais para a descrição


de suas personagens:

Os lábios vermelhos e úmidos pareciam uma flor da gardênia dos nossos


campos, orvalhada pelo sereno da noite; o hálito doce e ligeiro exalava-se
formando um sorriso. Sua tez alva e pura como um froco de algodão, tingia-
se nas faces de uns longes cor-de-rosa, que iam, desmaiando, morrer no colo
de linhas suaves e delicadas4.

Ainda ao descrever Cecília, em O guarani, o autor cearense lança mão do


ambiente natural de forma dinâmica, para que o leitor visualize, com mais nitidez, o
mundo interior da moça; numa palavra, ele se vale dos elementos naturais para a pintura
de sua psiquê: faz comparações com o vento, como forma de simbolizar o mistério e a
inconstância da alma feminina: “Os sopros tépidos da brisa que vinham impregnados
dos perfumes das madressilvas, e das açucenas agrestes, ainda excitavam mais esse
enlevo e bafejavam talvez nessa alma inocente algum pensamento indefinido, algum
desses mitos de um coração de moça aos dezoito anos”5.
Desse modo, portanto, a natureza se faz presente de forma profundamente
marcante na obra alencarina. Alencar entende ser justamente a natureza a fonte de
inspiração para qualquer poeta. Em suas “Cartas sobre A confederação dos Tamoios”
(1856), afirma ser filho da natureza, e, como um índio, se vê como filho da terra, do sol,
da lua, do céu. O autor como que esposa uma visão pagã, ou antes panteísta, mas
curiosamente moldada em padrões cristãos. De qualquer forma, reforçará a idéia de

3
ALENCAR, José de. O guarani. São Paulo: EDIGRAF, n/d, p. 7.
4
Ibidem, p. 28.
5
Ibid., p. 29.

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valorização da terra, do meio ambiente, em outras palavras, do próprio Brasil. Esse


vigor pátrio destina ao público leitor uma interpretação profundamente lírica das belezas
naturais de nosso país.
Mais do que um recurso de escrita, a descrição das paisagens naturais designa, em
Alencar, uma profunda valorização do belo. O autor, como jornalista, sabe o efeito que
pode causar a leitura de uma obra dirigida a milhares de brasileiros; pretende radicar nos
leitores, por conseguinte, um pensamento em defesa das belezas naturais. Suas obras
teriam, assim, um cunho pedagógico, por mais que o leitor não percebesse. É como se,
no momento da leitura, passasse a abraçar a causa preservacionista. O criador de
Iracema busca, portanto, sensibilizar o leitor, para que o mesmo sinta o que ele sente
em relação às belezas naturais do Brasil. José de Alencar, ao se dizer “filho da
natureza”6, realça, na memória do leitor, a brasilidade deste e sua conexão com a
natureza: porque o ato de preservação indica, também, a preservação do belo, da
cultura, do próprio país.
Em Sonhos d’ouro (1872), o homem se vê cercado pelas belezas naturais da
Floresta da Tijuca, como podemos notar, por exemplo, nesta passagem:

Entre o arvoredo tecido de grinaldas amarelas aparecia uma esfera do azul do


céu, como tela fina de um painel, cingindo por medalhão de ouro. A sombra
de uma nuvem errante infundia ao horizonte suave transparência7.

José de Alencar acompanhará, a partir dos anos 1850, um ligeiro surto de


industrialização no Brasil: acha-se diante, portanto, dos problemas que envolvem o
nosso “progresso” técnico.
Durante esse período de nossa industrialização temos, vigorando, a Lei Eusébio
de Queirós. A mesma repercute na vida econômica do país, uma vez que os recursos
que se aplicavam, antes, à compra de escravos, passaram a ser empregados em outros
setores, sobretudo na cafeicultura. Com o tempo, houve a necessidade de se modernizar
o escoamento de nossa produção cafeeira, o que culminou no aparecimento de nossas
primeiras ferrovias.

6
ALENCAR, José de. Cartas sobre A confederação dos Tamoios. In: ____. Obra completa. Rio de
Janeiro: José Aguilar, 1960, p. 865. v. IV.
7
ALENCAR, José de. Sonhos d’ouro. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1998, p. 4.

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A insatisfação alencarina, em face do agressivo desenvolvimento técnico de nossa


economia, é expresso, de modo bastante claro, em as “Cartas sobre A confederação dos
Tamoios”:
E entretanto a civilização aí vem; o wagon do progresso fumega e vai
precipitar-se sobre essa teia imensa de trilhos de ferros, que em pouco
cortarão as tuas florestas virgens; os turbilhões de fumaça e de vapor
começam a enovelar-se, e breve obscurecerão a limpidez dessa atmosfera
diáfana e pura8.

O autor torna saliente o fato de que o homem não possui o direito de agredir a
natureza, e que o primeiro não possui, também, em hipótese alguma, autoridade sobre a
mesma, já que essa haveria saído das “mãos de Deus”. Alencar como que transforma
seu discurso num grito de alerta – tenta “abrir os olhos” dos leitores para um problema
de ordem fundamentalmente ecológica: “A natureza veste-se com as roupagens da arte e
da civilização; e a natureza é como a Vênus Afrodite, que saiu nua dos seios das ondas,
e que as Graças não se animaram a vestir; a natureza saiu nua das mãos de Deus, e as
mãos dos homens não podem tocá-la sem ofendê-la”9.
Alencar tem por carro-chefe de sua poesia a natureza brasileira, e lamenta o fato
de os homens “civilizados” a tratarem de forma tão cruel e abrupta. Os índios, por sua
vez, mostram-se em perfeita harmonia com a vida natural; e não têm conhecimento das
normas de convivência urbana, ditas civilizadas; todavia, o homem que acompanha o
“progresso” parece fazer pouco caso das belezas naturais, que seria símbolo, até mesmo,
de sua origem: a própria floresta, e, nela, seus antepassados indígenas e a criação do
mundo pela mão de Deus.
Portanto, o homem “civilizado” é aquele que tem seus olhos voltados, única e
exclusivamente, para o “progresso”, quer dizer, para o seu efeito prático. O progresso é
um dado concreto; e, em nenhum momento, Alencar se insurge contra o processo de
industrialização, mas contra o vir a ser deste processo. É necessário que tenhamos em
mente a posição de Alencar, o qual não desconhece a importância das inovações
técnicas; muito pelo contrário. O pensamento alencarino tem, aqui e ali, caráter
extemporâneo; isto é, um pensamento coerente, e que, ao contrário do de outros
escritores e políticos da época, não se encontrava engessado. Suas obras foram
ferrenhamente criticadas, e seu pensamento taxado como inconveniente e peculiar

8
ALENCAR, José de. Cartas sobre A confederação dos Tamoios. Op. cit., p. 865.
9
Ibidem.

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dentro da incoerência de uma sociedade patriarcal e escravista de olhos fixos no


liberalismo econômico.
Diz Alencar: “A descrição do Brasil inspira-me mais entusiasmo do que o Brasil
da descrição”10. A obra alencarina traz, em relação à natureza, por conseguinte, uma
visão demasiado positiva, de grande significado moral e estético. Logo, outro problema
pode ser entrevisto nas palavras citadas acima: é o do homem que não vê a natureza
com os “olhos da alma”. Pois a natureza é explorada para o avanço de um país que não
sabe como avançar, que, ao tempo que adianta um passo, na corrida industrial do
mundo, retrocede mais dois passos, na questão ambiental e na educação para o belo, e
isso até hoje.
Com o “avanço” técnico, portanto, elide-se toda a carga poética da paisagem
natural. A maria-fumaça avança, violentamente, sobre as obras da natureza; o
pensamento passa a se concentrar na quantidade; a qualidade já não é prioridade: é
obscurecida, então, pela nuvem cinza das chaminés que avançam:

Aqui virá pisar com férrea pata


As flores mais mimosas de teus vales
E a túnica de relvas que te cobre.
Cavalga a fera o gênio do progresso,
Espírito de luz; são chama as asas,
Tem do corisco o vôo; o rastro é cinza.
E deve profanar-te, gentil pátria,
A graça virginal destas campinas,
Culto bastardo de emprestadas artes?11

Vazios são os homens por meio dos quais a civilização envereda-se pelo caminho
contrário do que supostamente deveria ser. Não há sincronia entre a razão humana e o
avanço industrial, pois que este vai carcomendo o verde de nossas matas:

Nem a civilização que o homem gasta


Como vil combustível, consumindo-o
Na chama que depura a humanidade;
Nem soberbos inventos, que do mundo
A loucura presume que o realçam,
Mas só revelam dele a niilidade,
A nobre singeleza desfloraram
Destes campos. Ainda aqui não veio
A ciência arrogante, cujo orgulho,

10
Ibid., p.865.
11
ALENCAR, José de. Os filhos de Tupã. In: ____. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960,
p. 565. v. IV.

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Se atreve a disputar, verme da terra,


Ao Senhor os mistérios do infinito12.

O posicionamento de José de Alencar é firme e intempestivo. É dotado, pois, de


uma visão ecológica demasiado ampla. Alencar tinha na natureza, portanto, sua fonte
valiosa de inspiração; e não é só como seu admirador que o autor se sente incomodado
pelo descaso com o nosso verde, mas em razão também de seu sentimento de amor à
pátria, que desejava ver em todos os brasileiros:

Viva imagem da loucura humana! Refazer à custa de anos, trabalho e


dispêndio de grande cabedal, o que destruiu em alguns dias pela cobiça de
um lucro insignificante! Aquelas encostas secas e nuas, que uma plantação
laboriosa vai cobrindo de plantas emprestadas, se vestiam outrora de matas
virgens, de árvores seculares, cujos esqueletos carcomidos às vezes se
encontram ainda escondidos nalguma profunda grota. Veio o homem
civilizado e abateu os troncos gigantes para fazer carvão; agora, que precisa
da sombra para obter água, arroja-se a inventar uma selva, como se fosse um
palácio. Ontem carvoeiro, hoje aguadeiro; mas sempre a mesma formiga,
abandonando a casa velha para empregar sua atividade em construir a nova13.

REFERÊNCIAS

ALENCAR, José de. Cartas sobre A confederação dos Tamoios. In: ______. Obra
completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960, v. IV.
______. Como e por que sou romancista. Campinas: Pontes, 1990.
______. Diva. São Paulo: Ática, 2005.
______. O Guarani. São Paulo: EDIGRAF, n/d.
______. Os filhos de Tupã. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar,
1960. v. IV.
______. Sonhos d’ouro. 2. ed. São Paulo: Ática, 1998.

12
Ibidem, p. 564.
13
Ibidem.

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O LIRISMO DOS ANJOS: A LITERALIDADE SOBRE A MORTE INFANTIL


NO CARIRI CEARENSE

Cícero Joaquim dos Santos1

No contemporâneo cenário social da morte no sul do Ceará, região do Cariri, em


especial nas espacialidades rurais, as práticas populares perante o padecimento revelam
a continuidades de entendimentos e práticas fúnebres antes presentes no cotidiano da
morte da primeira metade do século XX. Nesse sentido, a morte assume a conotação de
uma passagem para o outro mundo. Sendo anunciada, planejada e socializada com
familiares e amigos, o que representava a compreensão de um acontecimento social, era
recoberta por um conjuto de simbologias e ritualidades que contribuiam para a bem-
aventurança da alma: a entrada no paraíso (Santos, 2009, p.19). Tal contextura denuncia
as percepções e os modos de lidar com a experiência. Logo, é perspícua a permanência
de antigas práticas que recobriam os ritos mortuários no contorno da Chapada do
Araripe, o que elucida suas singularidades.
Exercitando essa perspectiva de estudo percebemos que o entendimento popular
sobre o padecimento infantil revela expressões bastante peculiares e um modo todo
especial de compreensão e tratamento da criança morta. Isso possibilita tecermos
reflexões sobre o universo fúnebre infantil e, desse modo, as práticas construídas sobre
a singularidade da morte das crianças. Nesse sentido, direcionamos nossas atenções para
o arcabouço literário que enlança as atitudes perante a morte: os ritos fúnebres, as
tradições de enterramentos e as percepções populares acerca da coexistência da vida na
terra e em outro lugar.
Nesse direcionamento, o interior do Ceará fora indicado em variadas
publicações como uma região marcada pela singularidade de práticas populares
bastantes peculiares, imersas em significações que nos remete a antigas tradições que
recobriam a relação entre os vivos e mortos, em especial no que tange a morte infantil.
Como ressalta o historiador João José Reis, antigos costumes presentes no Brasil do
século XIX concernente ao padecimento infantil adentraram o interior do Ceará do
século XX, como é o caso do aspecto festivo que recobria a ocasião, as canções e versos

1
Mestre em História e Culturas na Universidade Estadual do Ceará -UECE. Membro do Instituto da
Memória do Povo Cearense - IMOPEC.

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poéticos pronunciados nos cortejos e enterramentos (Reis,1991,p.140). De igual modo,


Câmara Cascuda denuncia a peculiaridade dessa experiência no sul do Ceará,
denunciando que no desenvolvimento dos seus estudos não tomara conhecimento de
práticas semelhantes em outros lugares (Cascudo, 2002,p.135).
Em Superstição no Brasil, Câmara Cascudo denuncia que a cultura fúnebre da
primeira metade do século XX relacionada aos ritos e cortejos do sepulcro infantil
revelava a peculiaridade de compreensão da morte e da posição intermediária da alma.
Além da terra, ela entremeava espacialidades imagéticas: o céu, o purgatório e o limbo.
O anjinho, aquele(a) que falecia após o sacramento do batismo, aliviava a passagem de
sua alma pelo purgatório. Nesse rápido percurso, esvaziava-se dos elementos terrenos,
como do leite materno ingerido, pois nada deveria ser levado ao céu. Seu corpo era
inumado nos cemitérios, entendidos como sagrados: a cidade propícia para os mortos
(Cascudo, 2002, p. 30).
Em contraposição, na tradição popular, o pagão, criança não batizada, não
possuía pecado, porém não era detentor de virtudes. Sua alma não adentrava o celeste.
Ficava presa a terra e anunciava o desejo do batismo aos vivos que poderiam contribuir
para a entrada no paraíso, realizando-o no pós-morte, com o simbolismo da água
santificada sendo depositada na cova em que fora sepultado. O anúncio era entoado
através de um choro fino, insistente e meloso. O pagão, depois de batizado, cessava de
chorar e voava para o céu (Cascudo, 2002, p.30-31; Reis,1997, p.112). No sul do Ceará
contemporâneo, tal entendimento faz-se presente na tradição oral. Também é comum a
prática de levar água aos cemitérios de pagãos e as cruzes de morte trágica dispersas na
ruralidade interiorana (Barroso,1989,p.106; Santos, 2009, p.179-191).
Consoante Cascudo, por não poderem ser inumados em território sagrado,
cemitérios oficiais, os enterramentos de pagãos eram direcionados para outra referência
que rememorasse a proteção cristã. Nesses casos, as estradas interioranas que denotam
as formas de cruzes eram entendidas como propícias para os sepultamentos. De igual
modo, os currais, por rememorarem o gado que também esteve no presépio de Jesus
Cristo, eram escolhidos, bem como eram inumados detrás de monumentos religiosos
onde existia pia bastimal (Cascudo, 2002,p.382). Todavia, no Cariri, tal prática estava
atrelada principalmente aos cruzeiros erguidos nas espacialidades interioranas por
marcarem o lugar de uma triste morte. Isso fez surgir cemitérios clandestinos de pagãos.

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Nesse emaranhado de memórias é indispensável realçar a formação do


imaginário religioso do Cariri. Nele, conforme Riedl, a construção dos entedimentos da
morte foi entrelaçada, entre imagens e discursos, por elementos mágicos e sobrenaturais
arraigadas no catolicisco popular, cuja formação denuncia “uma tônica maniqueísta
entre o bem e o mal, entre o justo e o pecador, entre o fial e o infiel, entre o salvamento
e a condenação” (Riedl, 2002, p.59). Tal imaginário também era revelador dos limites
sobre os ritos fúnebres e os lugares para o enterramento.
Vemos, portanto, que no sul do Ceará existiam critérios sócio-religiosos na
cultura funerária que estabeleciam os limites entre o sagrado e profano, nesse caso no
tocante aos rituais de sepultamento de crianças. Desse modo, apenas os pagãos mortos
antes ou depois de nascer, eram sepultados nos cemitérios clandestinos. Os demais, que
acreditamos serem batizados, eram cortejados percorrendo as localidades rurais até os
cemitérios das cidades.
Um segundo aspecto a ser assinalado diz respeito aos festejos que recobriam o
padecimento das crianças batizadas. No Cariri cearense foi processado o entendimento
do seu bom tempo: a inocência recobria a morte precoce e a celebração que ostentava o
cerimonial do enterramento do anjinho. Tradicionalmente a morte infantil era bem-
aventurança.
Como registrou Irineu Pinheiro na cidade do Crato da primeira metade do século
XX, havia cortejos comemorativos nos enterramento dos anjinhos, que enfeitados com
flores e papéis reluzentes, eram levados pelas ruas dos espaços urbanos ao som de
bandas de músicas e do estourar dos foguetes. Acompanhado dos vizinhos e familiares,
o anjinho era levado em andores alegremente. No entendimento popular não era um
pecador que padecia, mas um anjo inocente chamado pelo Pai Celestial. Segundo
Pinheiro, “Sempre se ouvia dizer no Cariri que as criancinhas morrem em bom tempo”
(Pinheiro, 1950, p.94-92).
Tradicionalmente, os festejos comemorativos aos anjinhos fizeram-se presentes
no cotidiano dos caririenses. De acordo com Cascudo (2002, p.153), esse costume
consistia em tiros de pistolas e roqueiras, a entonação de rezas em alto som e poesias
cantaroladas no momento em que o anjinho era levado ao sepulcro. Eram circunstâncias
em que nos terreiros se dançavam em sua homenagem. Bebidas e comidas faziam parte
da cerimônia. Suas mortes representavam pesares amenos na consciência e nos braços

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dos vivos. Desse modo, seus funerais não eram permeados de lágrimas, pois como já
revelava Cascudo não se deveria chorar pelas almas dos anjos. Logo, não havia forte
sufrágio para as mortes dos inocentes.
Nesse sentido, os versos entoados por cantadores e registrados pelo folclorista
Juvenal Galeno, em Lendas e Canções Populares, evidenciam essa concepção:

- Nós que somos cantadores


Da função junto à viola,
Enquanto dançam, cantemos
Ao soar da castanhola:
Louvemos da casa o dono,
Cantemos nosso louvor,
A quem mandou um anjinho
Para os pés do redentor

- Para os pés do redentor,


Por seu pai e mãe pedir:
Como são êles ditosos,
E mais serão no porvir;
Por isso agora se inflama
Nesta função o meu estro;
Haja aluá e aguardente,
Aí senão, senão não presto!

- Aí senão, senão, não presto,


Não é zombaria, não,
A roqueira não estoura,
Sem carrêgo, e sem tição;
Por isso sou atendido,
Já sou outro a voz se afina;
Vivam os pais do belo anjinho,
Enfeitado de bonita.

- Enfeitado de bonita,
O anjo pro céu subiu,
Um adeus dizendo ao mundo,
Quando a morrer se sorriu!
Por isso agora o louvamos
Nesta tão bela função,
Enquanto na igreja o sino,
Toca o bom sacristão.

- Toca o bom sacristão,


É o sinal da alegria,
De Jesus foi para o seio,
O anjinho nesse dia
Por isso o louvamos contente,
Contigo meu companheiro
Enquanto lá toca o sino,
Dança o povo no terreiro.
(Galeno, 1978. p. 140-141).

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A partir dessas considerações podemos imaginar que as crianças teriam uma


posição de menor destaque na cultura fúnebre brasileira de outrora. Todavia, o fator
comemorativo da morte elucida a projeção no imaginário religioso e, por conseguinte,
nas práticas fúnebres e religiosas de então. Diferente da morte de adultos, o
padecimento de crianças denotava positividade a um acontecimento certamente
doloroso.
Além de ser enviado ao céu um membro inocente da família, que a partir de
então passaria a proteger os vivos, a perda de um filho poderia estabelecer o
merecimento de que, sendo desejado e rogado pelos pais, outro filho poderia ser gerado,
em decorrência da providência do pequeno possuidor de um lugar privilegiado ao lado
do todo poderoso. Isso possibilitava a manutenção da linhagem familiar (Vailati, 2002,
p.372). Do céu o anjinho protegia a família na terra.
Soma-se a essa conjuntura outro fator: a auto-amenização dos sofreres terrenos.
Desse modo, morrer quando criança não era tão penoso quando associado à morte de
outrem com muitos anos já vividos. Nessa postura, quem morre jovem sofre menos na
terra. Tem assim seus pesares amenizados. Desse modo, voava direto ao céu com
prazer. Assim também registrou Cândida Galeno em Ritos Fúnebres no Interior
Cearense (1968, p.145-167).
Vejamos a continuação dos versos poéticos registrados Juvenal Galeno, na
passagem O Anjinho:

- Dança o povo no terreiro,


Onde corre a viração,
Pois o riso e f’licidade
Tem aqui habitação:
Por isso agora louvamos,
Ao som da corda dourada,
Do anjo o pai venturoso,
Do anjo a mãe estimada.

- Do anjo a mãe estimada,


Ouça atenta o meu dizer:
Como a rola ví seu filho
Voar ao céu com prazer;
Por isso cantando eu louvo
O anjinho que fugiu
Dêste vale só de prantos,
Onde a dor talvez sentiu.

- Onde a dor talvez sentiu,


Senti-la não pode mais,

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Na terra passou ligeiro,


Qual brisa dos laranjais:
Por isso louvando, eu digo
Da viola ao camarada:
- Brandemos três vezes – vivam
Os donos desta morada!

- Os donos desta morada,


Pai e mãe do belo anjinho,
Que por entre frescas flôres
Voou como um passarinho;
Por isso meu camarada
Brandemos na ocasião:
Salve o anjo, os donos vivam
Desta casa e da função.
(Galeno, 1978, p.140-141).

Em contraposição, no registro etnográfico de Oswald Barroso, referente a


segunda metade do século XX, em especial por volta das décadas de 70 e 80, a morte
infantil foi caracterizada pela oposição às práticas comemorativas supracitadas. Ele
observou no espaço urbano de Juazeiro do Norte, um homem atravessar a cidade com a
caixinha azul de um anjinho debaixo do braço, ainda enfeitado com folhas de papel
colorido. Sozinho, em silêncio, o homem paumilhou o percurso despercebidamente e
apressado, “como quem cumpria um mandato. Todos os dias, muitos outros anjos
cruzam a cidade” (Barroso, 1989, p. 31).
Percebemos, por conseguinte, um processo de simplificação dos rituais da morte
infantil nos espaços urbanos do Cariri. Todavia, a partir de narrativas orais é notória a
continuidade das celebrações da morte infantil nos espaços rurais que circundam a
Chapada do Araripe na contextura contemporâneo (Santos, 2009, p.179-191).
Portanto, entendemos que os registros mencionados são de igual modo fontes
para a pesquisa por vislumbrar o cenário social do entendimento da morte e dos mortos
no cotidiano cearense de outrora e da contextura contemporânea. Nesse caso, os textos
de folcloristas como Câmara Cascudo, Cândida Galeno, Oswald Barroso e Juvenal
Galeno, entre outros, possibilitam entender os processos culturais e as práticas
populares das áreas interioranas do Ceará, bem como os significados construídos e
processados no imaginário sobre a morte. Num segundo plano, essas fontes são bastente
significativas enquanto registros etnográficos. Por tudo isso, o trabalho de interpretação
de tais documentos é capaz de tornar inteligíveis os elos entre o passado e os retratos
sociais do presente.

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REFERÊNCIAS

BARROSO, Oswald. Romeiros. Fortaleza: Secretaria de Cultura, Turismo e Desporto;


Crato: URCA, 1989.
CASCUDO, Luis da Câmara. Superstição no Brasil. 5. ed. São Paulo: Global, 2002.
GALENO, Cândida. Ritos fúnebres no interior cearense. In: SERAINE, Florival.
Antologia do folclore cearense. Fortaleza: Henriqueta Galeno, 1968, p. 145-167.
GALENO, Juvenal. Lendas e canções populares. Fortaleza: Casa de Juvenal Galeno,
1978.
PINHEIRO, Irineu.O Cariri: seu descobrimento, povoamento, costumes. Fortaleza:S/E,
1950.
REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: ALENCASTRO, Luiz
Felipe (Org.). História da vida privada no Brasil. vol II. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
______. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
RIEDL, Titus. Últimas lembranças: retratos da morte no Cariri, região do Nordeste
brasileiro. São Paulo: Annablume; Fortaleza: SECULT, 2002.
SANTOS, Cícero Joaquim dos. No entremeio dos mundos: tessituras da morte da
Rufina na tradição oral. Fortaleza: UECE, 2009 (Dissertação de Mestrado em História).
VAILATI, Luiz Lima. Os funerais de “anjinho” na literatura de viagem. In: Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n°. 44, p 365-362, 2002.

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A LINGUAGEM LITERÁRIA E COTIDIANA NA PERSPECTIVA DE


MAURICE BLANCHOT

Davi Andrade Pimentel1


Cid Ottoni Bylaardt (orientador)2

Maurice Blanchot, no pequeno texto “Palavra bruta, palavra essencial”, do livro


O Espaço Literário, discorre exatamente sobre a suposta diferença entre o que
acreditamos ser a linguagem cotidiana e a linguagem literária. Primeiramente, o teórico
denomina a linguagem usual de palavra bruta, algo do tipo não-lapidado que serviria
para a comunicação diária, aquela em que o significante e o significado estariam
interligados puramente “para nos relacionarmos com os objetos, porque é uma
ferramenta num mundo de ferramentas onde o que fala é a utilidade, o valor de uso”
(BLANCHOT, 1987, p. 33). A palavra bruta representaria fidedignamente as coisas aos
homens, sendo, por assim dizer, um elemento útil. E, não devemos nos esquecer de que
para representar as coisas do mundo, as palavras usurpam os lugares dos objetos
representados, como se não houvesse nenhuma diferença entre aquilo que elas
representam e aquilo que elas realmente são. É nessa encenação que a utilidade da
palavra cotidiana é tão importante aos homens ou faz crer ser importante.
O que nos parece garantir que exista uma ligação direta entre o significante, a
palavra, e o significado, o sentido, na linguagem do mundo é a rotina, pois o uso
constante dessa linguagem leva-nos a ter com ela uma familiaridade, uma “felicidade
tranquilizadora das harmonias naturais” (BLANCHOT, 1987, p. 34). Para não nos
preocuparmos, negligenciamos a questão intrínseca a qualquer diálogo: a não-
viabilidade direta entre significante e significado. Nós, homens do mundo, damos uma
grande valorização à linguagem cotidiana, posto que, se atentarmos aos pressupostos da
comunicação humana, admitiremos que dotamos a palavra de um determinado valor e a
trocamos por significados que também são moedas de troca, e, nessa permuta, na qual
pensamos estar levando o verdadeiro significado da palavra, estamos, na verdade,
apenas levando uma inferência, uma interpretação, do significado daquela palavra. O
significado em estado puro, se existe, nós nunca alcançaremos, haja vista a

1
Mestre em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
do Ceará.
2
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

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arbitrariedade do signo: “Mas nada de mais estranho para a árvore do que a palavra
árvore, tal como a utiliza, não obstante, a linguagem cotidiana.” (BLANCHOT, 1987, p.
33).
Na outra margem, longe da linguagem bruta, estaria, segundo Blanchot, a
palavra essencial, a palavra literária, que não mantém ligação direta com qualquer
referente do mundo não-literário, visto que a literatura é detentora de um mundo
próprio, o contramundo literário, em que as imagens, as possíveis verdades e as
conjecturas que sublimamos ao ler uma obra de arte nascem no próprio terreno literário
e dele não podem escapar para se tornarem símbolo de saber. Não podemos auferir de
nossa interpretação da obra literária uma verdade indubitável, e sim perceber que essa
interpretação faz parte de muitas outras que se originam no espaço da literatura. A fala
essencial “é sempre alusiva, sugestiva, evocativa” (BLANCHOT, 1987, p. 32). E por ter
essas características, a linguagem literária é destituída de aplicabilidade, de uso e de
poder, uma vez que a ambiguidade, a errância e a fragmentação irrompem das
profundezas do texto literário, tomando-o por completo. Não existe, se refletirmos bem,
nada que garanta uma certeza para o que está sendo dito no discurso literário, até
mesmo pelo terreno instável em que se encontra alocado, o terreno das
impossibilidades, de acordo com Blanchot: a impossibilidade da morte e a
impossibilidade de manter um objetivo seguro. Lógico que não podemos negar que há
algo sendo apresentado no discurso literário; todavia, não devemos cunhar a nossa
interpretação como a única verídica e inalienável. E não podemos negar, também, que o
texto literário nos incomoda e, por vezes, nos assusta.
As palavras, no contexto literário, ganham novos semas, novas possibilidades de
choque, causando, muitas vezes, o estranhamento no leitor, pois a palavra que para ele
refere-se a um determinado significado no mundo organizacional, no terreno literário
refere-se a uma outra pluralidade de significados. Tomemos como base a palavra ético
do relato de Lucius, personagem da narrativa “Rútilos Nada”, do livro Rútilos, de Hilda
Hilst, para exemplificarmos o que até agora foi comentado: “e não é ético. / ético? que
criterioso e maduro para os teus 20 anos, ético é descobrir-se inteiro livre como me
sinto agora. minha filha se pudesse compreender, compreenderia” (HILST, 2003, p. 91).
O significado de ético para a nossa sociedade refere-se ao homem que se mantém sóbrio
em suas ações, aquele que não pensa somente em si, mas no bem geral; ou, numa outra

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perspectiva, mas semelhante à primeira, a palavra ético é dada como o conjunto de


regras e preceitos valorativos e morais que um indivíduo deve conhecer para se
estabelecer no meio social e para que possa reger bem a sua individualidade. Contudo,
esses dois referentes que a palavra ético adquire no mundo real não são aproveitados por
Lucius, personagem literário, uma vez que o significante ético ganha uma nova
roupagem em seu relato, a da liberdade e, por vezes, a do egoísmo. Ou seja, a palavra
ético ganhou um novo corpus semântico e uma nova modalização enquanto palavra e
enquanto não-referente, posto que a possibilidade de identificação entre a palavra ético
no discurso literário e no discurso do dia é impossível. Desse modo, a palavra ético, que
no texto de Lucius não tem um referente em que se basear, engendra outros semas.
Na questão da diferença entre a linguagem cotidiana e a linguagem literária
levantada por Maurice Blanchot, observamos que a real diferença consiste no contexto
onde estão inseridas essas linguagens e o seu estatuto de utilidade ou de não-utilidade,
pois usamos as mesmas palavras nas duas “diferentes” linguagens, porém, em lugares e
em perspectivas outras. Barthes, em seu texto Aula, chega à conclusão semelhante:
“Mas, do ponto de vista da linguagem, que é o nosso aqui, essa oposição é pertinente; o
que ela põe frente a frente não é aliás, forçosamente, o real e a fantasia, a objetividade e
a subjetividade, o Verdadeiro e o Belo, mas somente lugares diferentes de fala.”
(BARTHES, 2002, p. 20). Segundo Blanchot, não existe uma desigualdade muito
grande entre essas duas formas de linguagem, porque assim como não há uma imediata
relação entre palavra e significante/significado no mundo corrente, mesmo quando nos
exasperamos em sermos objetivos e claros, relação semelhante, e mais arriscada, ocorre
na linguagem literária, em que desde o primeiro momento sabemos que aquele mundo a
nós apresentado é estranho:

Pelo contrário, leitor das primeiras páginas de uma narrativa, e qualquer que
seja a boa vontade realista do autor, não sou apenas infinitamente ignorante
de tudo o que acontece no mundo que me mostram, mas também essa
ignorância faz parte da natureza desse mundo, desde o momento em que,
como objeto da narrativa, ele se apresenta como um mundo irreal, com o qual
entro em contato pela leitura e não por meu poder de viver. (BLANCHOT,
1987, p. 77-8)

Numa postura radical, Blanchot diz que a objetividade, a imediatização pura,


não existe na linguagem de um modo geral; e que a morte e a impossibilidade da morte

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seriam as bases da linguagem cotidiana e literária, respectivamente. No diálogo


corrente, troca-se o referente por uma palavra, essa palavra seria a representante desse
referente que desapareceu; mais adiante, trocamos essa mesma palavra por um
significado que estaria associado ao referente desaparecido e, assim, se faria o diálogo
entre os homens. Entretanto, esquecemos que na ilusão da linguagem usual, o que
realmente ocorre é uma chacina.
Na linguagem do mundo corrente, a primeira morte ocorre quando matamos o
referente para que a palavra lhe tome o lugar. Nós matamos o referente sem nenhum
peso de consciência, pois acreditamos que as palavras completarão a falta ocasionada
pela morte. Contudo, a palavra, como um infante malcriado, brinca em cima dos restos
cadavéricos do referente, posto que as palavras não irão representar fidedignamente o
referente morto, “pois um gato não é um gato, e aquele que o afirma não tem mais nada
em vista do que essa hipócrita violência” (BLANCHOT, 1997, p. 300). No diálogo,
partimos sempre de um paradigma, descartando e colhendo o que poderia ser o referente
aludido pelo nosso interlocutor; exemplo: quando contamos a história de um elefante, a
palavra elefante não nos remete de imediato ao referente animal mencionado pelo meu
companheiro de fala; pois, primeiramente, nós nos dirigimos ao nosso paradigma e
descartamos os outros animais que não possuem as mesmas características físicas e
alimentares do animal a que a imagem provocada pela palavra elefante nos faz agir
psiquicamente. Depois, postulamos qual seria a possível imagem de elefante a que o
meu interlocutor estaria se referindo, o elefante africano ou asiático; e ainda resta a
dúvida de qual elefante está sendo usado como base, se faz referência ao mamute,
parente próximo do elefante, ou ao elefante branco, símbolo mítico da cultura indiana.
Ou seja, a palavra elefante não guarda um significado e uma imagem pura e
única daquele animal que age como referente e que ganhou arbitrariamente o nome de
elefante. As palavras no espaço cotidiano, longe de assumirem fielmente o posto do
referente morto, fazem uma chacota com aquele que morreu, visto que morreu
gratuitamente, mas também com aquele que se utiliza delas, haja vista a necessidade de
um trabalho mental para tentarmos chegar aproximadamente à imagem e ao significado
das palavras que estão no discurso daquele que conosco fala. A palavra, em si, não
guarda e nem reflete o referente por inteiro: “Uma palavra que não denomina nada, que
não representa nada, que em nada sobrevive, uma palavra que nem mesmo é uma

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palavra e que desaparece maravilhosamente, por inteiro e de imediato, em seu uso.”


(BLANCHOT, 1987, p. 33). Desse modo, mata-se o referente e com ele o seu
significado puro, visto que as palavras nos dão acerca do referente apenas pedaços,
partículas, ou seja, inferências. Matamos o referente, damos autonomia à palavra e
caímos no erro, na displicência de uma morte banal, porém, necessária, pois somente a
morte provoca o diálogo no mundo dos homens. Citemos uma consideração de Blanchot
sobre a palavra, o referente e o diálogo:

Na existência diária, ler e ouvir supõe que a linguagem, longe de nos dar a
plenitude das coisas nas quais vivemos, seja cortada delas, pois se trata de
uma linguagem de sinais, cuja natureza não é ser preenchida com aquilo a
que ela visa, mas ser esvaziada, nem nos dar o que ela quer que alcancemos,
mas nos torná-lo inútil substituindo-o, e assim afastar de nós as coisas
tomando seu lugar e tomar o lugar das coisas não preenchendo-se com elas,
mas abstendo-se delas. [...] Tudo então é nulidade. E, todavia, a compreensão
não para de se realizar, parecendo mesmo atingir um ponto de perfeição.
Haverá algo mais rico do que esse extremo despojamento? (BLANCHOT,
1997, p. 78)

Nem bem satisfeitos com a primeira morte, nós agimos cruelmente por uma
segunda vez. No diálogo, quando matamos o referente, logo depois, matamos a palavra
para que dela surja o significado puro daquele que morreu. Nessa segunda morte, a
palavra, acometida pela surpresa, morre e o suposto significado puro do referente que
dela se espera, em vez de revalidar e de não tornar tão injusta a morte daquela que o
acolheu, perde-se e morre juntamente com a palavra. Nós nunca alcançaremos o
significado puro, podemos ter apenas inferências, interpretações, que no mundo corrente
ganham caráter de normalidade, e não de surpresa ou de preocupação. Numa conversa,
matamos o referente, “Na palavra, morre o que dá vida à palavra; a palavra é a vida
dessa morte” (BLANCHOT, 1997, p. 314); matamos as palavras e o suposto significado
puro, “A palavra não basta para a verdade que ela contém.” (BLANCHOT, 1997, p.
314), soçobrando somente as inferências derredor da morte desses elementos. Mas tais
mortes são necessárias ao movimento diário dos homens, visto que “Somente a morte
me permite agarrar o que quero alcançar”, e “sem a morte, tudo desmoronaria no
absurdo e no nada” (BLANCHOT, 1997, p. 312). O locutor e o interlocutor nunca
realmente sabem o que dizem e, exasperadamente, tentam ser entendidos e se fazer de
entendidos. Em uma conversa de surdos e mudos, “a linguagem de sinais”, os homens,
no espaço cotidiano, pensam que se comunicam, haja vista que a linguagem usual lhes

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“dá a ilusão, a segurança do imediato, o qual, contudo, não é senão o rotineiro”


(BLANCHOT, 1987, p. 34).
A morte é a garantia da ordem no mundo humano, é o que concede o diálogo e a
vivência dos homens. No mundo, as coisas adquirem vida através da morte. As palavras
ganham notoriedade através da morte do referente. A morte, para Blanchot, é a base de
todo o alicerce humano, diferentemente do que ocorre no mundo literário. O teórico nos
diz que não há morte no terreno literário, mas a impossibilidade da morte. As palavras
no texto literário não possuem referentes para serem assassinados, porque elas não os
possuem. O que é originado na literatura refere-se à própria literatura, e não a algo do
mundo corrente, por isso a ambiguidade ser o tablado do texto literário: “Na literatura, a
ambiguidade é como entregue aos seus excessos pelas facilidades que ela encontra, e
esgotada pela extensão dos absurdos que pode cometer.” (BLANCHOT, 1997, p. 327-
8). No ambiente do texto literário, as palavras adquirem uma maior liberdade,
entendendo essa liberdade como uma multiplicidade inesgotável de semas. A
impossibilidade da morte na literatura, sobretudo, na literatura pós-moderna, diz
respeito ao não-fim das interpretações que o texto provoca; à não-estabilização das
fraturas e das quebras discursivas temporais e espaciais; e à não-tranquilização do caos
discursivo literário. Ou seja, a finalidade que a morte traz à linguagem do mundo real
não existe na linguagem poética, como, por exemplo, a compreensão total de algum
fato, de algum mal-entendido, a coerência e a objetividade.
No contramundo literário, não há qualquer preocupação, por parte da linguagem,
em estabelecer um entendimento; e quando o discurso literário intenta algo parecido,
desprende-se desse querer objetivista, defrontando-se com o erro, haja vista que a
ambiguidade é o seu alicerce. A literatura, segundo Blanchot, não procura uma
finalidade, não procura atingir algo ou provocar algo, ela simplesmente é; e o incômodo
e a perturbação que dela sentimos são reflexos do nosso desconhecimento e da nossa
ignorância frente a um mundo desconhecido e cheio de armadilhas, bem como a nossa
identificação ou não com o texto literário.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Editora Cultrix, 2002.


BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

109 ISSN: 2179-4154


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______. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.


HILST, Hilda. Rútilos. São Paulo: Globo, 2003.

110 ISSN: 2179-4154


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A CONFIGURAÇÃO DA NOITE EM HIATO, DE GUIMARÃES ROSA

Diana Oliveira de Melo1


Cid Ottoni Bylaardt (Orientador)2

As condensadas, e nem por isso simples ou velozes, narrativas oriundas de


Tutaméia: terceiras estórias (1967), de Guimarães Rosa, iludem os mais desavisados
que procuram as facilidades dos atalhos. Os textos curtos são muito mais um elaborado
e entranhado trabalho com a linguagem do que qualquer fluidez de outra breve
narrativa. Como incansáveis exercícios de uma prosa que mais dialoga com o verso, as
narrativas são um apanhado de recortes em que se delineia um jogo que encontra o seu
erro e a sua desmedida capacidade de ser ambíguo. As palavras devidamente colocadas
e suprimidas em cada exato lugar nos remetem mais ao mistério que ocultam, à
diversidade de significados naquilo que nos omitem, em suas fendas: “O livro pode
valer pelo muito que nele não deveu caber” (ROSA, 2001, p.40). Dentre esses contos,
Hiato é uma das narrativas do escritor que versa e olha em direção a seu próprio fazer.
Encontro de sílabas marcado por uma separação, o próprio título do conto nos remete a
uma falha, uma lacuna em que tal esbarro parece implicar. Através da figura de um
enorme e escuro touro saído das profundezas de um matagal, a narrativa evoca a
linguagem poética como um encontro inevitável que será feito através do embate com a
linguagem do cotidiano, inseridos no universo literário.
Essa denominada linguagem usual e linguagem literária são também esboçadas
por Maurice Blanchot (1987) como as que percebemos como “fala em estado bruto” e
“fala essencial”. Segundo Blanchot, a fala em estado bruto estaria ligada à representação
das coisas, à linguagem útil que serve para que nos apropriemos do mundo, que o
representemos com clareza, no momento em que matamos aquilo que nomeamos. Ela é
impositiva, pois exige um entendimento. E essa linguagem é capaz de comunicar
claramente o que deseja “porque é uma ferramenta num mundo de ferramentas onde o
que fala é a utilidade, o valor de uso, nela os seres falam como valores, assumem a
aparência estável de objetos existentes um por um e que se atribuem a certeza do
imutável” (BLANCHOT, 1987, p.33). Por outro lado, a chamada fala essencial nos diz

1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.
2
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

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do que não está no mundo, do irreal e da ficção, da linguagem que não representa, mas
que sempre sugere e evoca. Diferente de qualquer imposição e clareza que pretende a
linguagem usual, ela é apenas uma alusão. “Por si mesma, ela é imponente, ela impõe-
se, mas nada impõe” (BLANCHOT, 1987, p.33).
Ainda segundo Blanchot, no capítulo O lado de fora, a noite, de O espaço
literário (1987), esse estado da linguagem pode nos remeter à escuridão da noite, mas
não a noite que pertence ao dia, como o seu complemento, o seu momento de repouso
que angaria forças para a jornada de atividades seguinte. Essa outra noite que intitula é o
momento em que o sonho começa e todas as aparições possíveis também se mostram.
“(...) o invisível é então o que não se pode deixar de ver, o incessante que se faz ver”
(BLANCHOT, 1987, p.163). É o momento em que a ficção começa, que a linguagem
usual, que podemos chamar também do dia, e que encontra a morte, dá lugar à noite da
noite, ao momento em que só há incertezas e deslizes, e essa morte, essa finalidade, não
chega, não é encontrada, posto que não é da ordem humana.
Em Hiato, as paisagens belas e luminosas atravessadas pelos vaqueiros Nhácio e
Põe-Põe, acompanhados pelo narrador, parecem dar uma suposta certeza ao relato da
harmonia entre os inúmeros elementos que encontram. “Rompia-se por dentro de ervas
erguidas um raso de vale – ao ruído e refecho, cru, de desregra de folhagens – vindo-nos
os esfregados vegetais ao cuspe da boca. Iam os cavalos a mais – o céu sol, massas de
luz, nuvens drapuxadas, orvalho perla a pérola” (ROSA, 2001, p.102). E tal certeza era
equivalente a uma sensação de conforto, em um caminho de “tantas vias e retas”
(ROSA, 2001, p.102), em que a “manhã era indiscutível” (ROSA, 2001, p.102). Esse
suposto dizer convicto e repleto de luz evoca sempre a anteriormente citada linguagem
do dia. Embora a própria narrativa nos advirta o tempo inteiro, pela própria linguagem
concentrada, que todo o espaço inscrito seja inteiramente de uma ordem inumana, falha
e imprecisa, a dita fala em estado bruto é sugerida e evocada aqui como a trilha
escolhida previamente a seguir, o caminho que parece reto, sem desvios, da disposição
ao trabalho, da certeza de uma manhã útil, louvada pela fala das personagens. O que
parece prevalecer são as imutabilidades, as rotinas das atividades, a linguagem que
pretende ser dia.
Porém as certezas já oscilam pelo próprio ar, que “estava não estava. Ou nem
há-de detalhar-se o imprevisível” (ROSA, 2001, p.103), numa ameaça breve que logo

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apresenta o touro enorme e escuro que surge por detrás de uma densa e fechada mata,
aos olhos espantados dos vaqueiros, aos relinchos dos cavalos: “Touro mor que nenhuns
outros, e impossível, nuca e tronco, chifres feito foices, o bojo, arcabouço, desmesura de
esqueleto, total desforma” (ROSA, 2001, p.103). A aparição induz a um abalo, quando a
noite, instante em que nada mais é visível, atinge o seu estado de outra e traz o
momento em que “’tudo desapareceu’, aparece” (BLANCHOT, 1987, p.163). É esse o
instante da fenda, de seu hiato, da falha que se encontra na linguagem que finge ser
clara, mas é esse erro, revelando a incapacidade de seu uso. O próprio touro, sendo da
ordem da noite, do obscuro, do inalcançável, apresenta o discurso ambíguo e repleto de
significados a que a língua se abre. Diferente da linguagem do dia, que busca o
entendimento, a fala que se comunica sem que haja ruído algum, o que surge é uma fala
fragmentada, que mais parece afastar e desentender. “Era enorme e nada” (ROSA, 2001,
p.103) o animal, ao carregar o excesso da palavra que trabalha incessante, em sua
ausência de dizer.
Acompanhado dos outros dois vaqueiros, o narrador relembra os instantes em
que viu o touro, em um relato que parece vacilar diante do acontecido, ao dar pistas da
ficção, da aparição do invisível: “Ordem de mistérios sem contorno em mistérios sem
conteúdo. O que o azul nem é do céu: é de além dele” (ROSA, 2001, p.104). Ele então
remete à presença do universo literário, trazendo suspeita à exatidão do que diz: “Tudo
era possível e não acontecido” (ROSA, 2001, p.104). Embora cada uma das
personagens procure salientar que o negro e imponente bicho era apenas um inofensivo
“marruás manso” (ROSA, 2001, p.105), todo o anterior estado de certezas que se
regozijavam em si dá vazão à oscilação e à dúvida. Das incertezas, é Nhácio quem
desconfia de sua serventia para o trabalho de vaqueiro, da sua idade, numa tristeza que
desafia o anterior estado em que seguia os caminhos retos e claros. Por outro lado, Põe-
Põe recorda o assassinato do pai, e quer descobrir se foi mesmo vingado. Indecisos e
temerosos, agem como se ainda fossem observados pelo animal. Segundo Blanchot, o
encontro com essa linguagem instável na escritura é o inevitável.

Aquele que presente a aproximação da outra noite, presente que se aproxima


do âmago da noite, dessa noite essencial que ele busca. E é “nesse instante”,
sem dúvida, que ele se entrega ao não-essencial e perde toda a possibilidade.
Portanto, é esse instante que lhe caberia evitar, como é recomendado ao
viajante evitar o ponto em que o deserto se converte na sedução das
miragens. Mas essa prudência é inadmissível aqui: não existe instante exato

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em que se passaria da noite para a outra noite, nenhum limite onde parar e
voltar atrás. (BLANCHOT, 1987, p.170)

Em meio às desconfianças, o narrador então se pergunta: “De onde vem então o


medo? Ou este terráqueo mundo é de trevas, o que resta do sol tentando iludir-nos do
contrário” (ROSA, 2001, p.105). Ao estabelecer a suposição de que seu mundo é de
sombras, que sua linguagem não pode ser outra a não ser a literária, ele também
fragiliza a veracidade de seu relato, ao lado da também fraqueza dos outros
companheiros. Numa tentativa de trazer alguma evidência ao que diz, ele busca um
apelo à clareza quando apresenta traços da vida de Nhácio, que era casado, tinha
descendentes, e que o jovem vaqueiro Põe-Põe era um dos seus. Mas sua própria
linguagem é imprecisa, vaga, incompleta em sua tentativa de informar com afinco:
“Nascera no Verde-Grande e tanto. Tinha filhos, sobrinhos, netos, neste mundo e
tanto;” (ROSA, 2001, p.105), abrindo assim a um sem número de sentidos pelas lacunas
que deixa em sua fala. Talvez lacunas como essa que nos remetam ao título, à falha
deixada pelas ambiguidades do texto literário, ao touro escuro que descortina a
linguagem obscura. Ainda ao final, pretensamente desassombrados, os três arriscam um
repouso, acompanhados da “bem-aventurança do bocejo” (ROSA, 2001, p.105). Num
suposto esquecimento das incertezas, quem parece relembrar o ocorrido recente é o
bocejo. Ao convidar o sono, traz também consigo aquelas aparições que surgem quando
é o sonho quem chega, e de súbito se está, inevitavelmente, no encontro da outra noite.

REFERÊNCIAS

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.


______. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
ROSA, Guimarães. Tutaméia (terceiras estórias). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

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O DISCURSO LITERÁRIO EM RESSURREIÇÃO: DO ERUDITO AO


POPULAR

Fernanda Lima1
Odalice de Castro e Silva (Orientadora)2

INTRODUÇÃO
Tendo em vista a escassez de pesquisas acerca dos primeiros romances de
Machado de Assis, elegemos Ressurreição (1872) como cerne do nosso trabalho. Para
nossa pesquisa, consideramos os conceitos de “erudito” como “aquele que sabe muito,
tem muita erudição” (FERREIRA, 1986, p.679), e “popular” como “próprio do povo,
(...) agradável ao povo, que tem simpatias dele” (FERREIRA, 1986, p.1365).
A princípio, discordamos de Lúcia Miguel Pereira quando esta diz que “do real
talento do narrador, seus primeiros livros nada valem.” (PEREIRA, 1949, p.102). Não
podemos desmerecer a Primeira Fase Machadiana donde se teceu aquele que viria a ser
a referência literária que hoje conhecemos.

OBJETIVOS
Nosso trabalho objetiva analisar - através do discurso literário em Ressurreição -
por quais trajetos Machado de Assis migra do erudito ao popular e em que momentos a
confluência entre ambos ocorre, considerando-se a construção das personagens e suas
falas, o contexto em que as falas são proferidas, e de que maneira esses aspectos que
permeiam o erudito e o popular, e vice-versa, resultam em crítica social latente e
evidente.

METODOLOGIA
Utilizamos o método analítico-descritivo, onde fizemos análises críticas,
fichamentos e análises comparativas com base em material bibliográfico específico;
tentamos vislumbrar o contexto brasileiro vigente na época em que a obra foi publicada;
e, por fim, tivemos a orientação da Prof. Dra. Odalice de Castro e Silva (Universidade
Federal do Ceará) que muito nos auxiliou ao longo dessa trajetória percorrida.
1
Graduanda do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

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Para fundamentar nosso trabalho recorremos: às diferentes edições de


Ressurreição (versões publicadas em 1872 e 1998); às biografias e estudos analíticos de
Machado de Assis organizados por Lúcia Miguel Pereira e Luiz Antonio Aguiar,
respectivamente em 1949 e 2008; observamos o contexto da sociedade brasileira nos
idos de 1872 e anos próximos, antecedentes e precedentes, por meio do livro História
do Brasil (1992), de Francisco de Assis Silva; e, por fim, consultamos o documentário
Mestres da Literatura - Machado de Assis, produzido pela TV Escola, onde Roberto
Schwartz fornece informações específicas sobre estudos críticos acerca da obra de
Machado de Assis.

RESULTADOS PARCIAIS
Decidimos observar em Ressurreição alguns de seus personagens sob outro
prisma que vai além do óbvio. Exatamente porque Machado “não quis fazer romance de
costumes”, mas tentou “o esboço de uma situação e contraste de dois caracteres”
(ASSIS, 1872, 1ª edição), não acreditamos que os personagens que em nossa pesquisa
serão dissecados funcionem apenas como “três ou quatro tipos femininos” e como
“homens ainda mais estereotipados” como cita Lúcia Miguel (PEREIRA, 1949, p.103).
Nossa pesquisa se baseou na hipótese de que os personagens criados por Machado de
Assis em Ressurreição traziam consigo notáveis traços de críticas à própria sociedade
que o lia. A seguir, notemos de que possíveis maneiras a crítica social em Ressurreição
faz-se presente por meio de Dr. Félix, Viana, Lívia e Moreirinha, personagens que até
tentam ser eruditos – ou de fato são eruditos - mas que, no íntimo, são genuinamente
populares.
Inicialmente temos Dr. Félix, o protagonista, que é descrito como um

(...) rapaz vadio e desambicioso, cuja vida tinha sido uma singular mistura de
elegia e melodrama; passara os primeiros anos da mocidade a suspirar por
coisas fugitivas (...) e caiu-lhe nas mãos uma inesperada herança, que o
levantou da pobreza. (...) Félix conhecera o trabalho no tempo em que
precisava dele para viver; mas desde que alcançou os meios de não pensar
Duas faces tinha o seu espírito, e conquanto formassem um só rosto, eram
todavia diversas entre si, uma natural e espontânea, outra calculada e
sistemática.” (ASSIS, 1872, p.5-6)

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Em verdade, Félix carrega consigo um amálgama de características que podem


ser atribuídas a um jeito malandro e bem peculiar de agir e pensar, mas que por força do
dinheiro adquirido o faz assumir uma postura erudita perante a sociedade. Em Félix o
popular se camufla de erudito, visando demonstrar respaldo diante de uma burguesia
que vivia a promover bailes e que tomava ares contínuos de futilidade. Eis algumas
palavras de Félix: “Olhe, os meus dois pólos estão nas Laranjeiras e na Tijuca; nunca
passei destes dois extremos do meu universo. Confesso que é monótono, mas eu acho
felicidade nesta mesma monotonia.”(ASSIS, 1872, p.23), ou seja, Félix assume a
monotonia que lhe era integrar a elite da época, mas antes prefere uma monotonia de
elite que o contrário.
Viana, por sua vez, poderia figurar, em alguns aspectos, como um primo distante
do “O Soldado Fanfarrão” de Plauto. Irmão de Lívia, Viana é o típico “parasita
consumado, cujo estômago tinha mais capacidade que preconceitos, menos
sensibilidade que disposições.(...) Nasceu parasita como outros nascem anões. Era
parasita por direito divino.” (ASSIS, 1872, p.8)
Segundo a ótica de Lúcia Miguel Pereira, em Ressurreição “Ninguém é real a
não ser Viana (...) a única personagem viva do romance” (PEREIRA, 1949, p.106) que
assim pode ser considerada por ser o mais despudorado a ponto de “tornar-se aceitável e
querido, onde a princípio era recebido com tédio e frieza”(ASSIS, 1872, p.9).
Evidencia-se sua espontaneidade quando Viana enuncia o aforismo machadiano de que
“o dinheiro compra tudo, inclusive os bons vinhos” (ASSIS, 1872, p.8). Nessa frase,
indiscretamente Viana recorda a Félix que é só por causa de uma herança recebida que
Félix é valorizado como alguém significativo na sociedade, tendo sido o dinheiro
adquirido que possibilitou Félix ter bons vinhos colhidos em sua algibeira.
Viana tinha consciência de que Félix o via como um “parasita” e assumia-se
como tal, sem pudor algum, enquanto sarcasticamente retrucava Félix que, embora este
tivesse recebido uma herança, não era ele menos parasita que Viana. A diferença é que
enquanto Viana era “parasita por direito divino.” (ASSIS, 1872, p.8), Félix era parasita
de uma sociedade burguesa e hipócrita não por direito divino, mas pelo status comprado
mediante a herança adquirida. Viana representa o popular que invade o erudito sem
pedir permissão.

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A terceira personagem em análise é a irmã de Viana, Lívia, que se envolve


amorosamente com Félix, delineando, assim, o eixo da narrativa. Lívia foge à regra de,
enquanto protagonista, ser a heroína romântica, papel esse que coube à personagem
secundária Raquel. Inclusive, discordamos com Lúcia Miguel Pereira quando esta
delimita Lívia em um arcabouço de características que define a protagonista apenas
como um estereótipo de “beleza tentadora e fria, que desperta paixões sem as
compartilhar, todas caprichosas, orgulhosas misteriosas.” (PEREIRA, 1949, p.103).
Embora Lívia seja uma das mais próximas representações do erudito, em uma trama
popular e ciclicamente alinhavada, Machado confere à protagonista manipular atos
egocêntricos que se desvendam pausadamente aos olhos dos leitores e nos faz perceber
que o temperamento da personagem não é um mero aspecto romântico. É-nos de bom
grado, salientar ainda, que exatamente por ser Lívia “a viúva (...) um pouco sarcástica
(...) que sabe misturar espinhos com rosas” (ASSIS, 1872, p.25), cabe a ela a fala “a
sociedade está tomando chá” (ASSIS, 1872, p.55), quando Lívia retruca a preocupação
de Félix com terceiros sobre o que diriam se soubessem que Lívia tinha ido ao encontro
dele, quando o contrário seria o convencional e esperado segundo a etiqueta social
vigente. Mais adiante, evidencia-se ao longo da narrativa que o relacionamento entre
Lívia e Félix era muito mais reflexo de interesses egoístas do que propriamente um
romance espontâneo e benfazejo. Se antes Lívia sobrepunha sua postura erudita e
submissa aos anseios sociais acima de tudo, a “rainha” opta por perder sua “coroa” e
decide seguir vida comum como qualquer “plebéia”: antes sacia os seus anseios do que
os anseios alheios. O erudito cansa do erudito e migra para uma vida simples, popular, e
só então encontra paz de espírito como denota o final do romance.
“Machado era um autor popular em sua época. E queria ser popular.” (AGUIAR,
2008, p.24) não apenas no sentido de fazer-se reconhecido pela maioria, mas também
porque tinha a intenção de assumir a voz de uma consciência coletiva da sociedade que
mal parava para pensar a respeito de si e por si mesma, tamanhas eram as futilidades
com as quais se ocupavam. Machado de Assis não mediu esforços para lograr seu
objetivo. Prova disso é o próximo personagem que perscrutaremos, seus trejeitos e
arrebiques, que explicitamente reforça o que por hora discutimos:

Moreirinha tinha cêrca de trinta anos, um bigode espesso, uma aparência


agradável e um espírito frívolo.(...) Não se podia negar a influência de

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Moreirinha entre senhoras. Era ele galanteador por índole e por sistema;
tinha, além disso (coisa importante) a plena convicção de que sua conversa
era preferida pelas damas. Ninguém melhor que ele sabia lisongear o amor-
próprio feminino; ninguém prestava com mais alma esses leves serviços de
sociedade, que constituem muita vez tôda a reputação de um homem.
(ASSIS, 1872, p.21)

É curioso percebermos como esse típico e erudito playboy do século XIX, na


verdade, não passava de um homem inseguro e dependente do sexo feminino, na trama,
representado pela figura de Cecília, antes dócil, romântica e submissa amante de Félix e,
posteriormente, uma “rôla que fizera-se gavião pela única razão de que Moreirinha lhe
dera ensejo de conhecer a própria força.”(ASSIS, 1872, p. 81).
Apesar de integrar a corte, ou justamente por fazer parte dela, Moreirinha
configura-se como retrato fiel de uma sociedade com a mais alta compostura e erudição,
mas que em seu íntimo fugia de pensar por conta própria, de ter “reações salutares” e
que, por força de frivolidade – como era o caso de Moreirinha -, buscava saciar seus
vícios com mulheres incertas como Cecília, que “era amante para querer a um só
homem” mas que “era independente para o esquecer depressa.”(ASSIS, 1872, p. 27).
No momento em que Moreirinha encontra Cecília, e por ela se apaixona, temos
um encontro do erudito com o popular: é o bon vivant que arreda os pés da corte para
viver com Cecília, no humilde bairro do Rocio, e mostrar-se como de fato sempre foi,
sem convenções sociais e sem falsas restrições, mas com a espontaneidade e singeleza
que o aproxima de uma mulher sem modos e sem origens como Cecília. No momento
desse encontro os papéis são trocados: não é a mulher que sofre a dor de amar um
homem, que em nada se iguala com ela, mas é o homem que - mesmo ciente do seu
diferente status social - põe-se à mercê e à dependência de alguém que, aos olhos
alheios, nunca haveria de lhe ser aceitável, fosse qual fosse a situação.
Quando questionado por Félix sobre sair da corte por algum tempo, a fim de que
Cecília não mais o encontrasse, Moreirinha – só então – reflete e responde que não
sairia “Por duas razões (...) a primeira é que, apesar de tudo, não deixo de gostar dela
(...) a segunda razão, respondeu Moreirinha com hesitação, é que... não posso.” (ASSIS,
1872, p.81). Nessa cena, Félix “desce os olhos ao vestuário do rapaz” (ASSIS, 1872,
p.81) e não reconhece mais aquele que uma vez fora um representante nato da elite,
modelo de erudição e galanteador de corações solitários, e que já não mais conversava
acerca de “estréias literárias nem crises políticas” (ASSIS, 1872, p.81), mas que se

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restringira a ser “gazeta (...) dos mil episódios da vida de certa classe.” (ASSIS, 1872,
p.82).

CONCLUSÃO
Lúcia Miguel Pereira afirma que em Ressurreição “é interessante notar como foi
rápido o desenvolvimento do espírito crítico de Machado de Assis e tardio o
desabrochar de seu poder criador” (PEREIRA, 1949, p.105). Segundo a concepção da
pesquisadora, as personagens não foram bem construídas porque Machado de Assis “no
princípio da vida, (...) teve muita fantasia e nenhuma imaginação” (PEREIRA, 1949,
p.103). Essa perspectiva, na opinião da estudiosa, era proveniente de uma escritura
calcada no “preconceito, já observado, de descrever gente de uma sociedade que só
mais tarde veio a frequentar.” (PEREIRA, 1949, p.105). Entretanto, a presente pesquisa
vislumbrou demonstrar outra perspectiva sobre a obra em estudo: Ressurreição pode ter
sido escrita com base na fantasia e na imaginação de Machado de Assis, mas o maior
nome da Literatura Brasileira – como exímio observador que sempre foi – ressaltou
críticas sociais ao longo do discurso literário de seu primeiro romance por meio dos
personagens e suas falas, não apenas validando-os com o papel de imbricadores de
aspectos eruditos com aspectos populares, mas conferindo-lhes representar o estereótipo
de uma burguesia que precisava ser criticamente questionada nos seus modos, valores e
costumes.
Se no tempo em que Ressurreição foi publicada, Machado de Assis ainda não
frequentava a corte e esse, para alguns, viria a ser o diferencial que não atestaria
verossimilhança na história contada em seu primeiro romance, agregar-se à elite seria
apenas questão de tempo, fato que para Machado apenas fomentou maiores motivos
para evidenciar, cada vez mais explícitas em suas obras, críticas à sociedade que tantas
vezes refutava. Ressurreição, mesmo sendo o primeiro romance machadiano, tem sim
seu valor - embora nem todos percebam pérolas mesmo quando se tem uma ostra aberta
em mãos.

REFERÊNCIAS
AGUIAR, Luiz Antonio. Almanaque Machado de Assis – Vida, obra, curiosidades e
bruxarias literárias. Rio de Janeiro – São Paulo: Editora Record, 2008.

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______. Ressurreição. 1. ed. São Paulo: Editora Catania, 1872.


______. Ressurreição. 12. ed. São Paulo: Editora Ática, 1998.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2.
ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986.
PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis – Estudo crítico e biográfico. 4. ed. São
Paulo: Gráfica Editôra Brasileira Ltda., 1949.
SILVA, Francisco Assis. História do Brasil – Colônia, Império, República. 1. ed. São
Paulo: Editora Moderna Ltda., 1995.
Mestres da Literatura / Machado de Assis. Documentário produzido pela TV Escola,
apresentado por Roberto Schwartz.

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A PALAVRA VIVA: ENTRE A VOZ DAS MUSAS, NA TEOGONIA, DE


HESÍODO, E A VOZ DA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES

Francisco Alison Ramos da Silva1


Orlando Luiz de Araújo (Orientador)

Ai palavras, ai palavras,
Que estranha potência, a vossa!...
Todo o sentido da vida
Principia à vossa porta...
Reis, impérios, povos, tempos,
Pelo vosso impulso rodam.
(Cecília Meireles)

Introdução
Na obra poética de Cecília Meireles, é possível observar que a autora dedica
uma especial atenção à linguagem, não apenas numa perspectiva lingüística,
propriamente dita, mas também a partir de uma consciência que, semelhante ao que
observamos na Teogonia, de Hesíodo, focaliza uma compreensão primitiva e mítica do
sentido da palavra. Tal compreensão é própria dos tempos primordiais, recorrente na
antiguidade, cuja presença ainda se manifesta, em seus resquícios, na cultura de nossos
dias, em determinadas circunstâncias.
A verdade é que toda a poesia de Cecília Meireles carrega a marca dessa
profunda preocupação da autora com a linguagem. Vários poemas, dispersos em livros
diferentes, entre eles, Mar Absoluto e Outros Poemas, Viagem e O Estudante Empírico,
para citar somente alguns, são uma demonstração dessa verdade. E as palavras, a
linguagem, aparecem como tema nesse universo poético, sob os mais diversos aspectos.
Dentre esses, porém, o que mais interessa a este trabalho é analisar o aspecto pelo qual a
linguagem é vista em seu carácter mítico e, consequentemente, místico, ou mágico, uma
vez que tem por objetivo analisar como e até que ponto podemos traçar semelhanças
entre as obras de Hesíodo e Cecília Meireles. Pois há um ponto em comum entre as
duas: o poder da palavra, da linguagem, que aparece como tema especial e, ao mesmo
tempo, se apresenta como força, poder, capaz e ser recebida como uma verdadeira
experiência. O que implica uma compreensão um pouco mais complexa daquilo que a

1
Universidade Federal do Ceará.

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palavra significa, ultrapassando seus níveis, estando muito além de uma simples
referência às coisas.
De Cecília Meireles, o que aqui mais interessa é um poema do livro O Estudante
Empírico, intitilado: Todas as Coisas têm Nome. Disponho-me a analisar apenas este
poema, uma vez que sua obra é muito ampla, o que torna difícil a análise de outros no
momento. De Hesíodo, embora sejam utilizadas outras partes da Teogonia, o que mais
interessa é o proêmio às musas, parte introdutória que serve para desencadear todo o
resto do poema.

O poder da palavra na poesia de Cecília Meireles


Eis o poema intitulado: Todas as Coisas têm Nome, do livro O Estudante
Empírico, no qual a autora, Cecília Meireles, diz o seguinte:

Todas as coisas têm nome./ (Têm nome todas as coisas?)/ Todos os verbos
são atos./ (São atos todos os verbos?)/ Com a gramática e o dicionário/
Faremos nossos exercícios./ Mas quando lermos em voz alta o que
escrevemos/ Não saberão se era prosa ou verso, /E perguntarão o que se há de
fazer com esses escritos:/ Porque existe um som de voz/ E um eco – e um
horizonte de pedra/ E uma floresta de rumores e água/ Que modificam os
nomes e os verbos/ E tudo não é somente léxico e sintaxe./ Assim tenho visto
(MEIRELES, 2005, p.5).

Observamos que nos primeiros versos há uma preocupação com a relação entre
os nomes e as coisas. A autora afirma e em seguida questiona, num tom filosófico, a
necessidade de haver um nome para cada coisa. Também um ato para cada verbo, uma
vez que os verbos são atos. Mas até então não notamos uma distinção entre a linguagem
oral e a escrita. Tanto, que se faz menção à gramática e ao dicionário como
instrumentos de auxílio à elaboração de exercícios.
Depois temos uma distinção entre dois aspectos da linguagem, a saber, o oral e o
escrito. No poema, o primeiro prevalece diante do segundo, pois a partir do momento
em que a escrita é lida em voz alta não se sabe se é prosa ou verso, nem o que se deve
fazer com esses escritos. “Se era prosa ou verso” é uma questão de pouca importância
diante da leitura “em voz alta”, da pronúncia. Assim como de pouco interesse é o
destino dos escritos. Isso demonstra a importância dada ao poder da oralidade que,
superior, prevalece sobre a escrita.

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Interessante é observar ainda que o eu-lírico, ao colocar os verbos no futuro:


“quando lermos”, “saberão”, “perguntarão”, dá um tom profético ao que está sendo dito.
Quem fala, fala com certeza e autoridade. Tal certeza é resultado de sua própria
experiência. O eu-lírico, convicto, fecha o poema com as palavras: “Assim tenho visto”.
Os últimos versos dão-nos uma descrição dessa experiência. O estudante
empírico descreve sua experiência da palavra falada, dita “em voz alta”. Após dizer que
a escrita perde sua força diante da força da voz, ele explica o porquê: “porque existe um
som de voz e um eco”. Esse som e esse eco são metaforizados por “um horizonte de
pedra e uma floresta de rumores e água”, elementos que podem simbolizar, além de
concretude, força e energia, como é o caso dos rumores e da água. Tais elementos se
desencadeiam a partir do momento em que as palavras recebem voz, lidas em voz alta e,
em consequência disso, “modificam os nomes e os verbos”, transformando-os, até que
estes estejam para além do léxico e da sintaxe.
É óbvio que, se os nomes e os verbos, as palavras, modificam-se diante da voz
que os invoca, transferindo-se para um plano superior, “que não é somente léxico e
sintaxe”, mas que podemos compreender como a própria vida, já que se trata do
Estudante Empírico, são munidas de força. Não podem ser compreendidas como meros
significantes que são utilizados para fazer uma mera referência aos significados. Além
do mais, trata-se de um fenômeno experienciado pelo eu-lírico cuja experiência depende
do momento em que as palavras são lidas em voz alta. Trata-se de uma consciência
mítica da palavra. Esta, na visão mítica do mundo, não possui uma livre idealidade, pois
o simples referir ou significar não possui valor nenhum. Antes, conforme afirma Ernest
Cassirer:

Todo o conteúdo, para o qual tende e se projeta a consciência, é transformado


imediatamente em forma da existência e na do atuar. A consciência não se
coloca, aqui, em atitude de livre reflexão diante do conteúdo, a fim de
elucidá-lo em sua estrutura e conexões regulares, a fim de analisá-lo em suas
diversas partes e condições, mas, pelo contrário, é aprisionada pela inteireza
imediata deste (CASSIRER, 1992, p.74).

A presença do conteúdo lingüístico, a atualidade da palavra, é a presença do ser.


Este se manifesta por meio da palavra, que significa a experiência da vida e o mundo,
que se configuram no momento em que são pronunciados. Podemos assim falar de uma
espécie de palavra mágica cujo conteúdo não se infiltra na palavra, mas dela surge. O

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que significa que as palavras são substância, havendo, portanto, uma identidade entre as
palavras e as coisas.
Cecília Meireles categoriza as palavras em nomes e verbos, correspondentes a
coisas e a ações, respectivamente. Ambos ocupam uma posição suprema no mundo da
palavra, uma vez que são potências, das quais surgem os seres e os acontecimentos. É o
que afirma Cassirer, quando fala da existência de um vínculo originário entre a
consciência lingüística e a mítico-religiosa, pois:

Todas as formações verbais aparecem outrossim como entidades míticas,


providas de determinados poderes míticos, e... a palavra se converte numa
espécie de arquipotência, onde radica todo o ser e todo acontecer. Em todas
as cosmogonias míticas, por mais que remontemos em sua história, sempre
volvemos a deparar com esta posição suprema da palavra (CASSIRER, 1992,
p.64).

De fato, a consciência mítica concebe a palavra numa posição suprema, posição


em que esta se apresenta como uma “espécie de arquipotência”. Cassirer ainda afirma
que isso pode ser percebido nas cosmogonias míticas, por mais longe que remontemos
em sua história. Isso apóia a interpretação do poema, considerando que a obra de Cecília
Meireles é predominantemente marcada pela atemporalidade. O que nos dá a liberdade
de pensar na perspectiva da consciência mítico-religiosa.
Em outras obras, a autora focaliza a linguagem nessa visão. Em uma delas, por
exemplo, afirma que o sentido da vida tem o seu princípio na porta das palavras e que o
mundo roda pelo impulso destas. Se pensarmos nos relatos da criação da maioria das
grandes religiões culturais, veremos que a palavra pertence à esfera do sagrado e que
por isso são forças. Nos relatos do Gênesis, por exemplo, Deus se apresenta como um
ser espiritual que pensou o mundo e em seguida o criou através da palavra que, usada
em toda a sua potência, é tida, além de expressão, como instrumento de criação. Temos,
de fato, a perspectiva de uma consciência mítico-religiosa da palavra na poesia de
Cecília Meireles.

O poder da palavra na Teogonia de Hesíodo


O modo pelo qual se apresenta a compreensão da palavra na obra de Cecília
Meireles é muito semelhante ao modo em que aparece no prólogo da Teogonia, de
Hesíodo. Podemos até dizer que este último implica questões muito mais profundas, em

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se tratando do mito propriamente dito e considerando a esfera do sagrado em torno da


qual gira a Teogonia. Pois Hesíodo se propõe, antes de qualquer coisa, a catalogar os
deuses, nomeando-os. E é ao fazer isso que os nomes divinos são recebidos, tanto por
ele quanto por aqueles que o escutam, como forças divinas.
Hesíodo abre seu poema teogônico ao fazer uma invocação às Musas, no
primeiro verso, dizendo: “pelas Musas heliconíades comecemos a cantar”. Neste
momento, o poeta demonstra reconhecer que seu poema é fruto de uma inspiração
divina. As deusas precisam ser invocadas para que aconteça o seu desencadeamento. É
Por elas que se começa a cantar, pois o que o aedo canta não é originariamente seu, mas
das deusas. Hesíodo reconhece que seu canto é das musas, ao dizer, nos versos 22 e 23:
“Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto/ quando pastoreava ovelhas ao pé do
Hélicon divino”.
Hesíodo se inaugura a si mesmo como poeta que recebe uma força das deusas
para que ele cante, reproduza, o canto que ouve. Falando sobre os vários temas que
encerram a Teogonia, entre eles a apresentação da genealogia dos deuses, a glória de
Zeus e o louvor das Musas, Renate Schlesier (1982) afirma que podemos acrescentar
um outro tema “qui a connu une attention plus particulière dans diverses analyses
d’Hésiode: l’inauguration de l’auteur lui-même comme poète, muni d’une force
divine”. Na verdade, o aedo, poeta cantor, recebe a inspiração divina das musas. Ele as
ouve primeiro para em seguida cantar.
As musas são filhas de Zeus e de Mnemosýne (Memória). Isto significa que,
além de serem representação do poder supremo do soberano Zeus, são intérpretes da
Memória. É neste último aspecto que vemos a importância da oralidade no poema
teogônico. Não podemos nos esquecer, inclusive, de que as musas se apresentam na
noite, ocultas pela névoa, o que significa sua invisibilidade. Hesíodo não as vê, ele as
ouve, apenas. Portanto, o que ele vê é aquilo que é revelado, o que se torna presente,
pelo poder da voz do canto.
De acordo com Jean-Pierre Vernant, “Mnemosýne preside, como se sabe, a
função poética. É normal entre os gregos que essa função exija uma intervenção
sobrenatural. A poesia constitui uma das formas típicas da possessão e do delírio
divinos” (VERNANT, 2002, p.137). Tão grande relevância é dada à Memória porque
Hesíodo canta o passado de uma sociedade ágrafa. O catálogo dos nomes, feito por ele,

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recebe um papel de primeira importância em sua poesia, pois é constituído por arquivos
lendários dessa sociedade.
A poesia é usada como instrumento de resgate do passado desse grupo social
que não possui escrita. Toda a visão de mundo deste grupo, assim como a consciência
que ele tem de sua própria história, é conservada e transmitida pelo poeta. Assim sendo,
nessa cultura oral, os povos reconhecem a grande força da palavra, que só diminui com
a adoção do alfabeto. Reconhecem que a palavra possui uma carga de força que é capaz
de apresentar os seres que são nomeados, presentificando-os, a partir do momento em
que se tornam audíveis. Pois o poeta, bem como aqueles que o escutam, pelo poder da
palavra, pela voz do canto, segundo Jaa Torrano (2007, p. 16), podem “transcender suas
fronteiras geográficas e temporais... e entrar em contato e contemplar figuras, fatos e
mundos que pelo poder do canto se tornam audíveis , visíveis e presentes”.
A capacidade de presentificar os seres, revelá-los, torna-se explícita pelas
próprias musas, quando a Hesíodo dizem, nos versos 27 e 28: “Sabemos muitas
mentiras dizer símeis aos fatos/ e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações”. As
musas se auto-apresentam como reveladoras de mentiras e de verdades. São elas
portadoras do esquecimento ou da revelação. Impõem um ou outro como e quando o
querem. Podem revelar verdades, os seres e os fatos, presentificá-los, ou podem deixá-
los ocultos, no esquecimento. Tal presentificação acontece pelo viés da palavra, que faz
surgir o ser, a própria realidade que este possui.
É por isso que ao lermos a linhagem dos deuses primordiais na Teogonia, versos
116-153, compreendemos o fato de Hesíodo se negar a nomear, no verso 148, os “três
filhos enormes, violentos, não nomeáveis”, nascidos da Terra e do Céu. É verdade que
Hesíodo depois nomeia essas criaturas: Coto, Briareu e Giges. Embora sejam seres
apavorantes, são nomeados, assim como também o são outras divindades terríveis
quando a necessidade a isso obriga. Neste caso, Hesíodo está compondo uma teogonia,
está nomeando os deuses, falando de suas origens. Precisa, portanto, catalogá-los todos.
Mas, antes de nomear esses seres cuja presença é para ele indesejável, o poeta afirma
que eles são “não nomeáveis”. É como se ele dissesse que seus nomes não devessem ser
pronunciados em qualquer ocasião, por aqueles que ouvem o poema. Nomear seria o
mesmo que invocar a presença do ser nomeado. Isso explica o fato de as Erínias,

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entidades aniquiladoras e, portanto, indesejáveis, serem chamadas de Eumênides, que


significa benevolentes.
Cassirer afirma o seguinte: “o nome não é nunca um mero símbolo, sendo parte
da personalidade de seu portador; é uma propriedade que deve ser resguardada com o
maior cuidado e cujo uso exclusivo deve ser ciosamente reservado” (CASSIRER, 1992,
p.68). Trata-se de uma identidade essencial entre a palavra e aquilo que ela designa.
Refere-se ao poder que tem a palavra de trazer a presença do ser que é chamado por ela.
Por isso Cassirer fala da palavra como algo que é manejado como uma espécie de
propriedade física. Tal afirmação está de acordo com o que diz Torrano ao defender que
“este poder da força da palavra se instaura por uma relação quase mágica entre o nome e
a coisa nomeada, pela qual o nome traz consigo, uma vez pronunciado, a presença da
própria coisa” (TORRANO, 2007, p.17).
Podemos então considerar que a palavra ganha uma importância máxima na
Teogonia. É ela que possui o poder de tornar presentes os seres e fatos que são
anunciados pela voz do canto. As palavras configuram o próprio mundo e o sentido da
vida. Como afirma Torrano, elas “falam tudo, elas apresentam o mundo. Sendo as
palavras por excelência o mais real e consistindo o poder delas especificamente num
poder de presentificação, nas palavras é que reside o ser” (TORRANO, 2007, p.30). Por
essa razão Torrano fala de uma “imanência recíproca entre linguagem e ser”. E se se dá
essa correspondência entre linguagem e ser é porque existe uma correspondência entre
“linguagem e poder”. Porque a linguagem é o poder de ser, ou o poder ser, isto é, a
arquipotência.
E pelo modo como Hesíodo manuseia as palavras, percebemos que ele tem a
linguagem como um objeto sagrado, exprimindo por elas veneração. O sagrado é a mais
viva realidade que o poeta pode ter como experiência, viver. Pois é através dela que se
configuram diante de si os deuses e o mundo. Além do mais, o homem arcaico sabe que
a consciência que ele tem de si e do mundo é ordenada pela linguagem.

Conclusão
Diante do que foi exposto neste trabalho acerca das duas obras, O Estudante
Empírico e Teogonia, podemos concluir que ambas direcionam uma atenção especial à
compreensão do sentido da palavra. Referem-se à linguagem, não no seu sentido

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ideacional, apresentam-na, antes, como portadora do ser, pois é através dos nomes e dos
verbos que surgem o ser e o acontecer.
Em Hesíodo, há a representação de uma consciência estritamente mítico-
religiosa da palavra, como a bem compreendia o homem arcaico. A linguagem é
experienciada e o poeta testemunha a presença de seres sagrados que são nomeados pelo
canto. Vive a experiência da mais suprema realidade, durante a qual se preocupa
profundamente com o modo como ele deve usar as palavras. Ele sabe que as palavras
tem o poder de presentificar os deuses, desejáveis ou indesejáveis.
Em Cecília Meireles, não notamos uma referência direta e específica ao divino.
Por isso, a força da palavra ganha um sentido mais abrangente. Além do mais, assim
como em Hesíodo, a importância e o poder da oralidade prevalecem diante da escrita.
Isso se torna tão evidente em Cecília Meireles que, mesmo o eu-lírico, o estudante
empírico, estando situado em um tempo em que vigora a gramática e o dicionário, é a
força da oralidade, da palavra acompanhada por um “som” e por um “eco”, que
sobrevive. Além do mais, Cecília Meireles coloca a linguagem como um fenômeno que
é experienciado pelo eu-lírico. O estudante empírico vive a força da palavra. E o que ele
sabe sobre tal força, sua consciência, é por ter visto. É resultado do que ele vive ao ouvir
o som.
Ambos os autores acreditam no poder das palavras. Estas, quando faladas e
principalmente quando cantadas, apresentam sua potência, desencadeando uma série de
seres e de acontecimentos que só podem ser compreendidos se pensarmos pela
perspectiva de uma consciência primitiva da palavra. Isto é, se conseguirmos ouvir essa
voz cujo sentido funciona como princípio da vida e do mundo e ainda perpassa, em
nossos dias, em diferentes níveis de superstição, a consciência de indivíduos e de
sociedades.

REFERÊNCIAS

CASSIRER, Ernest. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 1992.


HESÍODO. Teogonia, a origem dos deuses. Tradução de Jaa Torrano. Edição Bilíngüe.
São Paulo: Iluminuras, 2007.
MEIRELES, Cecília. O Estudante Empírico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

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SCHLESIER, Renate. Les Muses dans le Prologue de la “Théogonie” d’Hésiode. In:


Revue de l’histoire dês religions, Volume 199, Numéro 2, p. 131-167, 1982.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e
terra, 2002.

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O PROCESSO TRADUTÓRIO DE ORLANDO: O DISCURSO FEMINISTA


REESCRITO PARA O PORTUGUÊS

Francisco Rafael Silva Barros1


Carlos Augusto Viana da Silva (Orientador)2

Introdução
Virginia Woolf foi sem dúvida uma das maiores escritoras da literatura inglesa
tanto pela sua técnica intimista, seu fluxo de consciência e o modo como a mesma
tratava o tempo em suas narrativas quanto pelo caráter vanguardista e temático no que
diz respeito àquilo que a literatura e os trabalhos de arte deviam se ater.
Dentre essas várias temáticas, apresentam-se os efeitos da guerra, os avanços
tecnológicos da sociedade britânica e as vidas íntimas dos seres humanos. Este artigo
focaliza a temática feminista presente nos textos de Woolf e, mais especificamente, no
romance Orlando – A Biography (1928) juntamente com as suas respectivas traduções
para o Brasil, primeiramente, Orlando (1948), traduzido pela “poeta” Cecília Meireles e
Orlando (1994), traduzido por Laura Alves.
Como prevê o conceito de reescrita, o nosso trabalho analisa além do texto em
si, todo o contexto social e histórico que envolveu o processo de produção e de edição
dessas traduções. Logo, a nossa visão de tradução também não se atém apenas ao texto
como produto. Acreditamos que o foco deve ser dado muito mais ao processo em que o
texto se cria que nele próprio, saindo “da unidade operacional da palavra para a macro-
estrutura da História e da Cultura...” (VIEIRA, 1996, p. 105), fugindo da idéia de
perceber a tradução como texto fidedigno a um “original”.
Tal trabalho se confirma num momento em que é crescente o número de
refrações de Woolf para diversos meios semióticos no Brasil, o que pode gerar o
aparecimento de uma ou diversas identidades da autora na literatura nacional.

Tradução e reescritura
Apropriamo-nos de duas teorias distintas, mas que compartilham da mesma
visão sobre o fenômeno tradução: de que a ela não é um simples fenômeno linguístico,

1
Graduando em Letras pela FECLESC/UECE.
2
Professor Doutor Adjunto do Departamento de Letras Estrangeiras da UFC.

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isolado de seu contexto, mas um fenômeno social e primordial no estabelecimento de


cânones literários ou da visão nacional das culturas estrangeiras.
André Lefevere (1992) deu uma grande contribuição às teorias tradutológicas
com a sua visão de que a tradução, juntamente com outros textos literários ou não
literários, é uma reescritura de um texto de partida. Logo, ela funciona no novo sistema
influenciando o modo como o público vê aquele texto e deve ser enxergada não como
uma “obra literária” em si, mas como uma releitura de um texto literário para outro
contexto receptor.
Outro teórico bastante importante para essa discussão é o americano Lawrence
Venuti (2002). O autor discorre sobre a necessidade da tradução, dentro do próprio
produto, afirmar-se como tradução e não como uma obra “original”, pois, o contrário
disso, a “camuflagem de original” poderia constituir-se um dos “escândalos”, conforme
sugere o título de seu livro. Tal efeito, considera o autor, torna-se nocivo à formação das
identidades estrangeiras em seu ambiente de chegada. Essa discussão que contextualiza
o texto traduzido no sistema de chegada torna-se bastante produtiva para a nossa
análise.

Orlando e feminismo
Uma das fontes mais fundamentadora da possível existência de um discurso
feminista em Orlando foi a da própria autora em seu diário de 1929, que encontramos
em um artigo de Silvia Maria Guerra Anastácio (2006) por ocasião de uma discussão
sobre A Room of One’s Own e Orlando. Nesse relato, a autora teme sobre a publicação
de Orlando e afirma o seguinte: “serei também atacada de feminista & vão insinuar um
toque de homossexualismo...” (WOOLF apud ANASTÁCIO, 2006, p. 41). Apesar do
receio de ser bem sucedido em sua recepção, o livro fora lançado e, muito pelo
contrário, fora bem recebido pelo público da época.
A primeira fase feminista de Woolf, envolvendo a escrita do romance que fora
para ela “a mere child’s play”3 (WOOLF apud PAWLOWSKI, 2003, v) expressava o
desejo de Woolf por “diversão”. Na visão de Marder (1975, p. 36): “Ela olhava avante,
para um tempo em que a vida se tornaria ordenada e harmoniosa, quando os homens e
mulheres triunfariam finalmente, compartilhando sua sabedoria”. Era um feminismo

3
“uma simples brincadeira de criança” (tradução do autor).

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denunciador da opressão masculina durante os séculos ao sexo feminino, como também


político, pregando a mudança da posição feminina perante a sociedade. A autora
acreditava que tal mudança havia de começar na vida interior dos sexos.
E, talvez o aspecto mais importante para a compreensão das idéias expostas em
Orlando é, além da relação homem e mulher simplesmente, a relação escritor/escritora
na “mente” desse escritor/escritora. Nas palavras da própria autora, essa mente
andrógina seria uma união de mentes, para se conseguir completa satisfação e
felicidade, afirmando que: “É quando ocorre essa fusão que a mente é fertilizada por
completo e usa todas as suas faculdades” (WOOLF, 1991, p. 120).
A androginia em Woolf, então, vai além da simples idéia “física” ou biológica
da realidade; a autora a prega como forma de fundamentar o seu feminismo não uma
corrente contrária ao machismo – patriarcalismo – mas como uma idéia “libertadora”
que pudesse ser estendida de maneira artística, consolidando conceitos importantes na
tessitura do romance em análise.

Análise dos dados


Quanto ao discurso andrógino e feminista dentro da narrativa de Orlando, fica-
nos bastante claro, logo no início da narrativa, quando o biógrafo, ao iniciar a sua
descrição do protagonista, surpreende-nos com a possível “dúvida” quanto a seu sexo.
Já podemos também afirmar que tal ambiguidade, fica latente em ambas as traduções.

Orlando – Virginia Woolf Orlando – Cecília Orlando – Laura Alves


Meireles
He – for there could be no Ele – porque não havia Ele – pois não havia
doubt of his sex, though the dúvida a respeito do seu dúvida quanto ao seu sexo,
fashion of the time did sexo, embora a moda do embora a moda da época
something to disguise it – tempo concorresse para fizesse algo para disfarçá-
was at the act of slicing the disfarçá-lo – estava lo – estava golpeando a
head of a Moor (...) atacando a cabeça de um cabeça de um mouro (...)
p. 09 mouro (...) p. 15
p. 09

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Percebemos que, nesse pequeno trecho, textualmente, eles não se diferem muito.
O mais importante aqui é frisar que a “dúvida” do sexo dos personagens se instaura
desde o primeiro momento da leitura e o leitor é levado a uma posição de estranhamento.
Outro ponto nesse sentido é que o texto é um misto de vários gêneros literários:
“Fantasia, novela, biografia, poema, história – todos estes termos podem ser aplicados
ao livro, mas nenhum o descreve adequadamente” (MARDER, 1975, p. 110). Como que
se fosse de forma propositada, a autora constrói um livro no qual um dos temas é a
transmutação sexual e o próprio livro também contem a transmutação e a mistura de
gêneros de escrita. Citamos aqui uma das poesias de Orlando:

Orlando – Virginia Woolf Orlando – Cecília Orlando – Laura Alves


Meireles
“Methinks it should be now “Acho que deveria haver “Penso que deveria haver
a huge eclipse agora um vasto eclipse do agora um grande eclipse
Of sun and moon, and that Sol e da Lua, e que o De sol e lua, e que o
the affrighted globe mundo assustado deveria assustado globo
Should yawn…” bocejar…” Bocejaria –”
p. 36 p. 38 p. 46

Aqui, ainda rapaz, Orlando após ter assistido a uma peça e ter se emocionado,
pronuncia essas palavras. É importante apontar que o eclipse nem é solar, ou lunar, mas
de ambos, expressando o desejo de Orlando pela união dos opostos. Interessante notar
que a tradução de Meireles não é em forma de poesia e o texto traduzido é apresentado
como nota de rodapé, diferente da de Alves que o traduz dentro do próprio texto, sem
referenciar o texto de partida. Esse recurso gera um efeito de “estranhamento” no
público leitor de Meireles, levando o texto a ficar mais estrangeirizado.
Em resenhas e comentários sobre as traduções do romance de Woolf,
encontramos informações importantes para o entendimento do impacto desses textos
nos sistemas receptores: no livro de Laurence Hallewell, O livro no Brasil (2005), o
autor fala que, na década de 30/40, a editora Globo começava a se estabilizar no
mercado editorial brasileiro e havia também uma crise financeira que deixou os livros
franceses a preços exorbitantes para o público leitor no país. A inserção de textos de

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língua inglesa foi a saída para a estabilização desse mercado. O surgimento de uma
nova editora no mercado e um “novo” mercado exigiam dos editores um investimento
maior em conseguir a confiança do público leitor brasileiro para essa nova literatura,
confiando a autores, tais como Mário Quintana, Érico Veríssimo e (neste caso) Cecília
Meireles o trabalho de assinar essas traduções.
A tradução de Cecília Meireles, assim, na década de 40, insere-se nessa
renovação da literatura traduzida para o Brasil. Tal tradução saía um tanto “desfocada”
do tópico feminista e libertador de Woolf, até porque as grandes revoluções feministas
só aconteceriam nos anos 60.
Contextualizando a tradução de Laura Alves nos anos 90, percebemos que houve
nessa época uma constante reeditoração e revisão dos textos de Woolf, especialmente
aqui no Brasil, como por exemplo: a peça homônima de Bia Lessa, Orlando (1991),
além de traduções de outros livros de Woolf que antecederam Orlando, como As Ondas
em 1980 por Lya Luft, em especial Um teto todo seu em 1985 por Vera Ribeiro em que
a temática feminista e outras ideologias de Woolf foram primeiramente apresentadas
para a então chegada de uma nova tradução de Orlando em 1994.
E, assim, nessa revisão dos trabalhos de Woolf, em especial os considerados
feministas, ou que abordassem em si a temática de sexo e gênero, o romance Orlando é
novamente traduzido revendo Woolf como uma revolucionária não só na literatura, mas
também na luta de gênero e de sexualidade.
Kelly Tetterton (1995) apontou em um artigo que analisava as capas de Orlando,
intitulado Virginia Woolf’s Orlando: the book as a critic, que as diferentes ênfases que
cada edição dava à história dependiam da época e do público a ser direcionado na
Europa. Por exemplo, no momento em que livro foi publicado, a autora afirma que: “(It)
was often first read by its contemporary audience as a gossipy portrait of Vita Sackville-
West; (…)”4 (TETTERTON, 1995, p. 05). Esse fato mostra que, para a época de Woolf,
o livro foi entendido como uma biografia não oficial de Victoria Sackville-West.

Conclusão
Concluímos, portanto, nessa breve análise do romance Orlando e suas traduções,
que, no tocante ao feminismo e a androginia, tais temáticas são assim vistas, pelo menos
4
“foi a priori lido pelo seu público contemporâneo como um retrato
escandaloso de Vita Sackville-West; (...)” (tradução do autor).

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em tradução, não como elemento óbvio que necessariamente está sempre presente na
recepção do público leitor de todas as épocas e lugares que o livro é apresentado, mas
trata-se de uma imagem criada nos sistemas de chegada. No caso da recepção aqui no
Brasil, o livro que tem tanta “liberdade” temática pôde ser traduzido por duas diferentes
pessoas em diferentes épocas gerando, logo, diferentes ideias e pensamentos sobre a
autora. O de Meireles como revolucionário na literatura; e o de Alves também como
revolucionário nas temáticas femininas.

REFERÊNCIAS
ANASTÁCIO, Silvia Maria Guerra. A criação de Orlando e sua adaptação fílmica.
Salvador: Edufba, 2006.
HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil. São Paulo: Edusp, 2005.
LEFEVERE, A. Translation, rewriting & the manipulation of literary fame. London
and New York: Routledge, 1992.
MARDER, Herbert. Feminismo e Arte: um estudo sobre Virginia Woolf. Tradução de
Fernando Cabral. Belo Horizonte: Interlivros, 1975.
PAWLOWSKI, Merry M. Introduction. In: WOOLF, Virginia. Orlando – A Biography.
London: Wordsworth, 2003.
TETTERTON, Kelly. Virginia Woolf’s Orlando: The Book as Critic. A paper
presented to The Fifth Annual Virginia Woolf Conference at Otterbein College, June
18, 1995. Disponível em: http://www.tetterton.net/orlando/orlando95_talk.html.
Acessado em: 16/01/2009.
VENUTI, Lawrence. Os escândalos da tradução: por uma ética da diferença. Tradução
de Laureano Pelegrino, Lucinéia Marcelino Villela, Marileide Dias Esquerda e Valéria
Biondo. São Paulo- Bauru: EDUSC, 2002.
VIEIRA, Else Ribeiro Pires (Org.) Teorizando e contextualizando a tradução. In: André
Lefevere: A teoria das refrações e da tradução como reescritura. Curso de Pós-
Graduação em Estudos Lingüísticos da FALE/UFMG, 1996.
WOOLF, Virginia. Orlando – A biography. London: Grafton Books, 1986.
______. Um teto todo seu. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Nova Fronteira, 1991.
______. Orlando. Tradução de Laura Alves. Rio de Janeiro: Ediouro, 1994.
______. Orlando. Tradução de Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

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A LINGUAGEM LITERÁRIA EM “A CONSTRUÇÃO DA MENTIRA”, DE


JOÃO GILBERTO NOLL

Francisco Renato de Souza1


Cid Ottoni Bylaardt (Orientador)2

No conto “A construção da mentira”, da obra O cego e a dançarina, de João


Gilberto Noll, o leitor é convidado por um homem idoso a adentrar a sua residência,
uma casa centenária que abrigou as histórias de várias gerações de sua família. A casa,
conforme informa o anfitrião durante a apresentação a um interessado grupo, tem uma
insólita característica, nela só se morre de juventude. Passada a idade jovem, propícia
para a morte, seus habitantes infernizam entre as suas paredes até que algum deus deles
se apiede. Assim se passou com ele, o idoso anfitrião, com a sua quase centenária mãe e
com o seu já entrevado cachorro de estimação, que não conseguem morrer.
Essa impossibilidade da morte dos personagens remete-nos à impossibilidade da
morte suscitada pelo filósofo Maurice Blanchot em seus escritos, ao referir-se ao espaço
literário. Essa impossibilidade, de acordo com o teórico, seria a impossibilidade de, no
espaço literário, não termos um saber que validasse a escrita que nos é apresentada.
Desse modo, se não há um saber, não há uma verdade e, por conseguinte, não há um
objetivo, não há um fim. A impossibilidade, no texto literário, está intrinsecamente
associada à ambiguidade: “Na literatura, a ambiguidade é como entregue aos seus
excessos pelas facilidades que ela encontra, e esgotada pela extensão dos absurdos que
pode cometer.” (BLANCHOT, 1997, p. 327-328).
O relato do personagem ancião está inserido em outro relato, o de um jornalista,
narrador personagem do conto, que fora à casa em busca de uma história que lhe
rendesse material para uma grande reportagem, mas que não encontrara nada que lhe
despertasse interesse, como confessa decepcionado à sua esposa: “Quase nada. A fala de
um velho caduco e uma casa mais literária que jornalística.” (NOLL, 2008, p. 119). É
interessante pontuarmos que a busca do jornalista, em termos de busca verídica e
objetiva como é próprio da matéria jornalística, fez com que ele adentrasse no espaço da
não-objetividade e do relato das incertezas, uma vez que nada no discurso do velho

1
Aluno do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.
2
Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

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pode ser validado ou comprovado. Nesse momento, em que a linguagem do jornalista e


a linguagem do velho se encontram, entrevemos duas formas de linguagem em
oposição, que nos remete ao texto “Palavra bruta, palavra essencial”, de Maurice
Blanchot, que se encontra no livro O espaço literário.
O paralelo entre a linguagem do mundo corrente e a linguagem própria do fazer
literário é enfatizado por Blanchot, que estabelece a distinção dos dois tipos de
linguagem, definindo-as como palavra bruta e palavra essencial. A fala no estado bruto
está relacionada com a realidade das coisas e é utilitária, tendo como função primeira
servir para nosso relacionamento com os objetos: “porque é uma ferramenta num
mundo de ferramentas onde o que fala é a utilidade, o valor de uso” (BLANCHOT,
1987, p. 33). Se a fala em estado bruto relaciona-se com a realidade das coisas,
aproximando-as e representando-as, a fala essencial, em contraposição, “distancia-as,
fá-las desaparecer; ela é sempre alusiva, sugestiva, evocativa” (BLANCHOT, 1987, p.
32). Estando, assim, a fala do velho próxima da fala essencial, já que não firma um
compromisso com o verídico e traz elementos somente possíveis na ficção.
No jogo de oposições das duas linguagens, a narração do velho sobre a sua casa
é relegada pelo narrador personagem ao relato do senil, do descrédito, distante, portanto,
do que ele buscava: um relato verídico que pudesse ser por ele retratado, pois, como
dito anteriormente, o relato do velho é da ordem do não-verificável, do que ainda está
por vir, nada em seu discurso pode ser dado como utilizável em uma matéria
jornalística. A linguagem do velho é “imponente, ela impõe-se, mas nada impõe.”
(BLANCHOT, 1987, p. 33). A fala anciã/literária impõe-se na medida em que está
sendo ouvida pelo grupo, porém, nada impõe, pois o que está sendo dito pode ser
desdito, redito ou não-dito, o que pode ser logo associado à mentira. Não por menos o
título do conto é a “A construção da mentira”.
Dentre as várias possibilidades de interpretação, podemos entender a mentira
como a própria construção da narrativa, bem como a mentira relacionada ao discurso do
ancião, ambas da ordem do literário. E não podemos deixar de destacar que a própria
casa é em si uma portentosa mentira, haja vista que toda ela está inserida numa
atmosfera noturna, cavernosa e, por vezes, disforme, em oposição a todo e qualquer

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elemento verificável: “foi sempre assim escuro, deu sempre essa impressão de túmulo”3;
“Não queiram mal ao arquiteto que a construiu por ter feito um corredor tão cavernoso”
(p. 117) e “vegetação arcaica e fontes artificiais” (p. 118). Por ser a casa um elemento
mentiroso, fantasioso, o discurso do ancião não pede uma adesão por parte daqueles que
o escutam, o que o aproxima da linguagem literária proposta por Blanchot, ao comentar
os romances de tese, aqueles romances que desejam pactuar com a verdade:
“Infelizmente, a obra de ficção nada tem a ver com honestidade: ela trapaceia e só existe
trapaceando. Ela tem parte, em todo leitor, com a mentira, o equívoco, um eterno
movimento de engodo e de esconde-esconde.” (BLANCHOT, 1997, p. 187)
No conto de Noll, o leitor é convidado a adentrar a insólita casa pelo olhar do
seu proprietário, como mais um participante do grupo no qual está inserido o narrador
personagem: “Do grupo que admirava a casa eu era o único jornalista.” (p. 119), que
logo após a visita, expõe o seu ponto de vista sob a perspectiva do olhar crítico que tem
um compromisso com a veracidade dos fatos narrados, desacreditando o relato ouvido:
“A fala do velho é monótona, doente.” (p. 119). O relato do velho era aberto a
admiradores, a quem se interessava pelo fascínio que a insólita casa e sua história
exerciam, não pedindo, assim, uma aceitação daqueles que o ouviam. A narrativa não se
deslocava aos ouvintes, era por eles visitada, não se direcionava a um destino específico
e nem direcionava uma intenção única. Movimento contrário ao do jornalista, que
intentava elaborar uma narrativa com objetividade e destino certo: “Desliguei o
gravador e me afastei um pouco dos demais, atingido por um desejo de percorrer a casa
sozinho, mergulhar completamente na sua solidão para poder descrevê-la com mais
dramaticidade para os meus leitores.” (p. 119)
A escrita intencional e dirigida a um objetivo específico, intentada pelo
jornalista no conto, distancia-se do movimento observado por Blanchot na composição
do texto literário. No capítulo “O canto das sereias”, de O livro por vir, o filósofo
interpreta literariamente o mito grego das Sereias, seres metade animal metade mulher,
que atraia os navegadores com seu canto, provocando sua morte, para devorá-los em
seguida. Blanchot enfatiza a imperfeição do canto das sereias, que não satisfazia
completamente os navegantes, apenas dava-lhes a entender onde o canto realmente tinha
começo, conduzindo-os aonde o cantar começava de fato, não passando, assim, de um
3
NOLL, 2008, p. 117. A partir daqui, as referências à narrativa “A construção da mentira” serão
indicadas apenas com o número da página entre parênteses.

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canto ainda por vir. Portanto, o canto era a navegação, a distância, e a revelação da
possibilidade de percorrer essa distância, de fazer do canto o movimento em direção ao
canto. Mas, apesar do caminho dado pelo canto, os navegantes ou se precipitavam em
um ponto aquém do canto ou o ultrapassavam, pois desejavam traçar racionalmente o
caminho, não se deixando cair no abismo do canto.
O fracasso dos navegantes se dava pelo planejamento da navegação, pela sua
intenção deliberada de atingir um ponto certo. Para chegar ao local desconhecido do
canto era preciso se deixar levar pelo canto, se entregar a ele sem precauções ou
planejamentos. Deixar-se levar pelo canto, entregar-se a ele sem restrições, é o
movimento visto por Blanchot para a composição literária. E chegar ao ponto do canto e
nele deixar-se perder é escutar o chamado inumano desse canto, momento onde a
narrativa, nas suas palavras, “torna-se a riqueza e a amplitude de uma exploração, que
ora abarca a imensidão navegante, ora se limita a um quadradinho de espaço no
tombadilho, ora desce às profundezas do navio onde nunca se soube o que é a esperança
do mar.” (BLANCHOT, 2005, p. 6).
A navegação do jornalista no conto de Noll, dessa forma, é guiada e estabelecida
por uma intenção e objetivo certos, retratar para os leitores uma história intrigante,
porém crível. A história de uma casa que inflige longevidade e eternidade é do caráter
do irracional, deixar-se levar por tal relato seria deixar-se entregar ao inumano, a uma
navegação descomprometida, seria a audição e a entrega ao canto das sereias ao qual
alude Blanchot, que aponta uma só direção, a do desconhecido: “A palavra de ordem
que se impõe aos navegantes é esta: que seja excluída toda alusão a um objetivo e a um
destino.” (BLANCHOT, 2005, p. 6).
O jornalista despreza a história do velho por seu caráter fantasioso, já que
intentava um material de conteúdo crível para reportar, mas, na sua última busca na casa
pela matéria desejada, revela anseios semelhantes àqueles por ele desprezados: “Me
enfurnei pelo soturno corredor imaginando encontrar uma porta e um aposento
misterioso, desses que li em velhos romances ingleses, mas os meus passos pelo
corredor foram em vão” (p. 119). Demonstra, assim, um paradoxo na atitude, já que
despreza o relato do morador da casa por seu caráter extraordinário, definido por ele
como literário, mas busca o mistério só encontrado na ficção dos romances ingleses

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antigos. Intenta a objetividade para o seu artigo jornalístico, mas o embasa na


subjetividade das características literárias.
A objetividade intentada pelo jornalista se perde definitivamente na
subjetividade, no final do conto. Ao reproduzir para sua esposa a gravação que fizera da
casa, se surpreende com uma voz inexplicavelmente surgida nos seus momentos de
isolamento pelos silenciosos aposentos da casa, sendo mais surpreendente ainda a
constatação de ser sua aquela voz reproduzida no gravador. Através dos mistérios da
casa, pelo eco do seu silêncio quase ameaçador, encontra no ineditismo das palavras de
sua própria voz aquilo que buscava: “E foi quando pela primeira vez eu ouvi realmente
as palavras daquela voz. Elas falavam de um herói que eu procurava para a minha
reportagem. Um herói que não deixara herdeiros.” (p. 120).
A casa não deu ao jornalista o material desejado para sua matéria, posto que a
casa, enquanto escrita literária, não pactua com nenhum elemento verificável ou
validável, como havíamos dito anteriormente. A casa ofertou-lhe algo, não uma matéria,
mas palavras sussurradas pela voz dele que só afloraram através do silêncio dela. Um
murmúrio que “Uma vez ouvido, não poderá deixar de se fazer ouvir, e como nunca o
ouvimos verdadeiramente, como escapa à escuta, escapa também a toda distração, tanto
mais presente quanto mais tentarmos evitá-lo” (BLANCHOT, p. 2005). O murmúrio
falou-lhe de heroísmo, elemento mais literário que jornalístico. O silêncio que libertou
as palavras silenciadas por sua busca objetiva é, segundo Blanchot, o espaço contrário
ao da verdade, do saber e da objetividade, o que acarreta a ambiguidade das palavras do
contexto literário. Assim, o jornalista se encontra no espaço que renegou inicialmente, o
espaço literário, e se perde no canto do inumano, o da voz literária.
Agradecemos o apoio dado pela Funcap

REFERÊNCIAS
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
______. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
______. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
NOLL, João Gilberto. O cego e a dançarina. Rio de Janeiro: Record, 2008.

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JOÃO CABRAL DE MELO NETO: O ESPÍRITO CIENTÍFICO NO HOMEM


SEM ALMA

Francisco Sócrates Costa de Abreu1


André Haguette (Orientador)2

Nasce em 9 de janeiro de 1920, no Recife, João Cabral de Melo Neto. Quinze


anos depois seria campeão juvenil de futebol pelo Santa Cruz, jogando somente a final,
contratado como reforço após todo o campeonato pelo outro time. Dores de cabeça, que
o acompanhariam até 9 de outubro de 1999, quando morre, tiram-no da vida esportiva e
ele as atribui à deslealdade na final. Em 1947, como vice-cônsul, dois anos depois de
ingressar na carreira diplomática, é removido para o Consulado Geral em Barcelona. A
Espanha seria um de seus temas favoritos, ao lado de Pernambuco e do próprio fazer
poético. Somente em 1990 se aposentaria na diplomacia, depois do quê, ainda publica
dois livros inéditos, já distantes do primeiro, em 42, fazendo um total de 20 obras.
João Cabral é conhecido como um poeta racional, que expurgou de sua obra
todo o lirismo com que seus antecessores “encharcaram” a tradição poética brasileira.
Um poeta que se quis preso à objetividade, optou por uma linguagem de não-
dissimulação, partindo sempre das condições externas do “problema”; “exalta” a
vigilância e a lucidez da eterna criação, da intelectualização em vez da espontaneidade
ou academicismo. Vendo nisso uma semelhança entre João Cabral e o que chamo de
espírito científico, após uma breve análise do que sejam, arrisco uma aproximação entre
ambos.

I. Do olho que se ganha na escola das facas


Marly de Oliveira, em seu prefácio à obra completa de João Cabral, colocando
em estado de alerta o leitor que espera da poesia versos de amor, exaltações do belo,
flertes com o inefável, tudo o que sempre foi a poesia brasileira e a de língua
portuguesa, de antemão avisa:

... [quer] despertar o seu interesse [do leitor] para uma leitura que, na
verdade, não é fácil nem simples, nem pode iludir com a musicalidade que

1
Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará.
2
Professor Doutor titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará.

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caracteriza a poesia lírica no Brasil. Porque esta é uma poesia anti-lírica, é


uma poesia dirigida ao intelecto e, de certa forma, mais presa à realidade que
o próprio autor, que sempre teve, por função de trabalho, cindidos, o pensar
sobre a matéria do poema e o dia-a-dia de funcionário público, ocupado com
negociações internacionais, independentes da coerência de sua visão de
mundo. (MELO NETO, 2003, p.15).

Cronologicamente um poeta da geração de 45, João Cabral tem uma atitude


poética bastante diversa de seus contemporâneos. Avesso a qualquer confessionalismo,
nunca quis versos para distração do leitor, nunca uma identificação repentina com
alguns versos irrompidos do além do poeta, fugia do rapto por qualquer estado
emocional ditado pela inspiração. Quer, antes, uma poesia que exija do leitor um
despertar, o uso de sua razão e inteligência, indo também de encontro ao automatismo
surrealista vigente (inda que seu primeiro livro tenha profunda influência do
surrealismo).
Frente à poesia brasileira, João Cabral nunca foi um opositor, mas, antes,
apresenta-se como uma nova possibilidade poética. Não se insurgindo contra nenhum
modelo, toma por mais importante a diferenciação de sua poesia após assimilados certos
conceitos com que visivelmente tinha afinidade, tais como a poesia-prosaica de
Drummond, a do cotidiano de Manuel Bandeira, a imagem visionária e surrealista de
Murilo Mendes e, sobretudo, a idéia de construção de Joaquim Cardozo (OLIVEIRA
apud MELO NETO, 2003). Além disso, a leitura de teóricos franceses do trabalho
artístico, entre eles, Mallarmé, Paul Valéry e Le Corbusier, (sendo este arquiteto)
ajudaram-no a formar sua própria idéia de construção poética, baseada na objetividade
dos temas, na escolha da palavra concreta, na preferência da símile à metáfora. O que só
afirma seu desejo de sair de qualquer situação que lhe pareça obscura ou equívoca,
buscando uma poesia clara, com tendência à objetivação do poema, num projeto de
rigor que tem por fundo a clara consciência.
Seu projeto poético tem um caráter, pode-se dizer, positivo, ou seja, tenta erigir-
se sobre um plano objetivo, de absoluta possibilidade de compartilhamento inter-
subjetivo. Nada haveria em sua poesia fruto de suas próprias aventuras subjetivas. Para
o autor, o poema deve estar desligado de seu criador e ter “[...] uma vida objetiva
independente, uma validade que, para ser percebida, dispensa qualquer referência
posterior à pessoa de seu criador ou às circunstâncias de sua criação [...]”, diz em
Poesia e Composição (MELO NETO, 2003).

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Dessa forma, é possível aproximar João Cabral de Melo Neto do espírito


científico, com isso não digo que este tentava fazer ciência com sua poesia, o que
levanto como questão é sua atitude científica, ou melhor, empírica/positiva, fazendo
uma subversão de jogos entre ciência e poesia.

II. O espírito científico, que também é uma faca só lâmina


Para poder dizer que um poeta tem uma atitude científica, talvez seja preciso
pensar a ciência sob dois aspectos, grosso modo: método e prática, que, tomando certa
licença poética, prefiro chamar de olhar. Ao fazer essa distinção, não faço uma cisão no
processo científico, isto é só um recurso analítico. O método seriam as regras postas
pela comunidade científica, tidas como modelo para que se proceda à pesquisa. Já a
prática sempre vai um pouco além do método, engloba relativamente toda a atividade do
cientista frente a seu objeto, indo desde a escolha do método até possíveis
questionamentos críticos. Há uma retro-alimentação inevitável entre tais aspectos da
ciência, não há método sem olhar e não se exerce o olhar científico sem um método –
mesmo que seu método seja não usar nenhum método estipulado.
Uma coisa é o olhar de um antropólogo diante de uma partida de futebol em um
Castelão lotado; outra bastante diferente – mas não separada – é a maneira como isso se
converte em um trabalho acadêmico, que pode necessitar ou prescindir de uma câmara
fotográfica ou de interlocutores explícitos; que precisa de articulação teórica,
bibliografia e de uma gama de fatores à disposição do pesquisador para a satisfação de
suas necessidades, o que, com o conhecimento de método, é discriminado a partir de sua
prática, por seu olhar.
Quando disse que João Cabral tem uma atitude científica, digo que compartilha
do espírito científico e este, por vezes, se confunde com o olhar, pois em como visa seus
objetos está a diferenciação essencial entre o pensamento científico e qualquer outra
espécie de conhecimento. Enquanto existem vários métodos, a visão científica pode
assumir um eixo comum às mais variadas formas de se fazer ciência. Essa visão tem três
características fundamentais. A primeira delas é a ciência querer-se um espelho da
realidade; certamente, a ciência é uma representação abstrata, mas se apresenta como
representação do real. A segunda característica é que a ciência visa a objetos para
descrever e explicar, não diretamente para agir. A busca do saber pelo cientista é um

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trabalho intenso, mas também um jogo: o primeiro resultado da visão científica é a


satisfação de compreender, com um caráter desinteressado, anterior à técnica. E a
terceira característica seria a preocupação constante com critérios de validação, com a
possibilidade de reprodução da experiência, ou seja, o exercício de um controle. Assim,
o conhecimento científico é necessariamente público, exposto ao controle – competente
– de quem quer que seja. A verificação de um fato científico depende, pois, de uma
interpretação ordenada no interior de uma teoria explícita (GRANGER, 1994).
Além dessas características, esse espírito científico é permeado pela
racionalidade e pela lógica. Todas as teorias racionais são sistemas de idéias, primeiro,
coerentes, isto é: a) cujos diferentes elementos estão estreitamente ligados entre si
segundo processos lógicos de dedução e/ou indução; b) cujos enunciados obedecem ao
princípio da não-contradição. E, segundo, estabelecendo uma relação verificável e não
arbitrária com o mundo objetivo a que se aplicam (MORIN, 2005). Assim, a ciência
aparece como um sistema racional de exploração/explicação da realidade, entendendo-
se esta como a realidade objetiva compartilhada por todos os seres humanos, sejam
astrofísicos ou cronistas.
Com esta sucinta tentativa de caracterização da ciência aqui exposta, podemos
agora acompanhar o percurso desses elementos científicos na obra cabralina.

III. Alguns objetos da poética cabralina feita museu de tudo


Salvas as devidas proporções de uma tal comparação, na poética de João Cabral
estão presentes o olhar, a representatividade do real, os critérios de validação – no caso,
auto-impostos, baseados em seu próprio sistema –, além da racionalidade e da lógica.
Sobre o olhar algo já foi dito até agora, mas um dado a mais é pertinente em
relação ao autor: sua assunção como poeta do “ver”, predisposto muito mais a ver que a
ouvir e que repudiava todo tipo de música, mas sobretudo a melodia, a musicalidade do
verso. O que lhe proporcionava ver a palavra, como diria Guimarães Rosa, até à
primitividade, quando ela ainda mal se despregou da coisa. Talvez aqui esteja a
fundação de sua representação do real. Como disse Marly de Oliveira, sua poesia era
mais presa à realidade que o próprio autor. Porque assim funcionava seu processo:
valia-se do real que a linguagem permitia, o real “indiscutível” estabelecido pelas
práticas sociais, além de optar por recursos que reduzam a dúvida, caso já citado da

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preferência pela símile à metáfora. Um bom exemplo disso é o poema O Cão Sem
Plumas, sobre o curso do rio Capibaribe. O título dá margem a que se pense tratar de
uma metáfora, mas logo na segunda parte deixa bem claro o que seja esse cão: “Como o
rio/ aqueles homens/ são como cães sem plumas/ (um cão sem plumas/ é mais/ que um
cão saqueado;/ é mais/ que um cão assassinado.// [ ...] É quando a alguma coisa/ roem
tão fundo/ até o que não tem).// O rio sabia/ daqueles homens sem plumas”.
Por conta dessa aproximação da palavra à realidade, de sua afinidade com o
construtivismo dos cubistas, que procuravam na pintura “o equivalente plástico da
realidade”, João Cabral é considerado um precursor do Concretismo (OLIVEIRA apud
MELO NETO, 2003).
O uso da razão e a necessidade do reconhecimento inter-subjetivo fizeram com
que muitos de seus poemas partissem de objetos, refugando o explicitamente
confessional e fazendo da imagem o núcleo do poema. De Quaderna a Serial, parece
consolidar-se sua idéia de uso das formas que iriam marcar o resto de sua poesia; os
livros posteriores têm inovações, variações, mas o essencial parece já estar presente
nessa época (SECCHIN, 1985).
Quando uma vez reunidos na Itália, na casa de Vinicius de Moraes, muitos
artistas tocavam e cantavam, e João Cabral estava lá. Então, a uma certa altura,
terminada uma das canções de amor de Vinicius, João fala, do outro lado da sala: ô,
Vinicius, o coração é sua única víscera? O mesmo Vinicius certa vez comentou que na
poesia de João Cabral não havia a problemática do amor, ao que ele teria respondido
que usar uma atitude subjetiva, falando de algo pessoal, seria ir de encontro à
objetividade que defendia no poema, o que, no entanto, não o impediu de fazer poemas
para a figura feminina objetivada, chegando até a dedicar um de seus últimos livros,
Sevilha Andando, a sua segunda esposa, Marly.
Aparentemente livre da problemática sobre o “estar-no-mundo”, João Cabral
consegue perceber o homem do Nordeste, os cassacos do eito, os retirantes severinos, a
gente dos alagados. Sem qualquer sentimentalismo, o autor faz desse homem uma
matéria de seu poema. Da seca que o assola, da luz, da pedra, João não cria um tipo
ideal, à Euclides da Cunha com seu quasímodo-hercúleo, mas continua fazendo uso de
sua razão, com uma poesia clara, que, se não fala subjetivamente de si, também não o
fará acerca dos outros. Dessa forma, o que consegue João Cabral é uma vasta etnografia

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dos engenhos e cidades por onde morou e passou, das figuras que conheceu, não só de
Pernambuco, mas também da Andaluzia, que são, como o próprio autor diz, as duas
coisas que conseguiram (des)feri-lo até a poesia. Em A Escola das Facas, Morte e Vida
Severina e em O Rio e O Cão Sem Plumas, ambos sobre o Capibaribe, está um
compêndio pernambucano de grande valor etnográfico; e em tantos outros poemas que
falam dos cemitérios do Agreste, de duelo de foice, alpendres e etc.
Antes de A Escola das Facas, publica Museu de Tudo, um livro singular por não
ter um tema comum ligando todos os poemas, o que era uma exigência íntima do autor:
escrever livros sobre algo, em vez de escrever poemas e depois reuni-los
arbitrariamente. É também marca de sua atitude racional de construção poética dar-se a
entender claramente pelo leitor, mas exige deste sua atuação intelectual, sua leitura
como um exercício ou ocupação. Indo contra a característica de ser uma obra
construída, Museu de Tudo assim é feito justamente porque João Cabral chega ao
paroxismo de seu rigor, quando então se permite escrever um livro sem uma estrutura
prévia, reunindo poemas soltos e com diversas linguagens.

Conclusão: Do que não se vê


Um apanhado geral foi o que fiz neste texto, todos esses aspectos caros à ciência
que aparecem na obra de João Cabral de Melo Neto podem ainda ter desdobramentos
passíveis de estudo mais profundo. Minha pretensão, no entanto, era colocar a idéia de
que a ciência é uma forma de pensamento, de olhar, e que esse olhar não está restrito ao
que se conhece academicamente por ciência. Tal olhar seria, mais que isso, uma atitude
crítica frente aos fenômenos do mundo, estejamos frente a um microscópio ou a uma
banca de jogo do bicho.
O que diferencia a atitude racional de João Cabral da de qualquer cientista,
principalmente o moderno, é sua linguagem, é isso que faz da poesia poesia e da ciência
ciência e nisso não há equívoco.
Em João Cabral, o trabalho artístico é produto do olhar objetivo, da ação
racional e da linguagem poética. É com a linguagem poética que ele se afirma como
autor, apesar de inserir elementos do jogo da racionalidade – jogo quase ausente na
poesia brasileira – em sua poesia. E, apesar da intromissão desse elemento alheio ao

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jogo poético, o que continua fazendo é poesia, com uma nova dimensão agora, mas
ainda poesia; isso porque foi a linguagem desta última a utilizada e não a da ciência.
Tal como Vinicius disse não haver a problemática do amor em João Cabral, sua
obra é bastante identificada com a ausência – imitação da forma, poética do silêncio,
poesia com coisas, poesia do menos, construção às avessas... – a ponto de uma sua
biografia crítica, escrita a partir de entrevistas com o próprio João, ter o título de O
Homem Sem Alma (CASTELLO, 2006). Para o ambiente poético em que viveu, essa era
a impressão deixada por sua poesia e, identificado com sua poesia, ele assim o queria.
Para um homem que preza pela objetividade e que se vê incapaz do vago, sua alma
talvez não seja o que ele mais vê.

REFERÊNCIAS
CASTELLO, José. O Homem Sem Alma & Diário de Tudo. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2006.
GRANGER, Gilles-Gaston. A Ciência e as Ciências. São Paulo: UNESP, 1994.
MELO NETO, João Cabral. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
MORIN, Edgar. O Método IV: as idéias. Porto Alegre: Sulinas, 2005.
SECCHIN, Antônio Carlos. João Cabral: a poesia do menos. São Paulo: Duas Cidades,
1985.

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AURA, DE CARLOS FUENTES: MAIS DO QUE UMA NOVELA DA FICÇÃO


CONTEMPORÂNEA

Huston Dantas1
Roberto Pontes2

Carlos Fuentes (1928) é um escritor mexicano que publicou seu primeiro livro
ainda no ano de 19543, tendo, ao longo de mais de cinquenta anos de carreira,
acumulado vasta fortuna crítica em torno de sua obra. Por isso mesmo, a princípio,
pareceu-nos temerário produzir um trabalho acerca de Aura (1962) que não fosse
considerado simples repetição sem valor do que já comentaram os críticos especialistas
em literatura latino-americana.
Contudo, abordaremos neste trabalho uma perspectiva elaborada e sistematizada
nas freqüentes reuniões do Grupo de estudos de residualidade literária e cultural.
Usaremos um axioma criado pelo Professor Roberto Pontes, coordenador do
referido grupo, para tentar resumir, sem discorrer longamente sobre a Teoria da
Residualidade, o que seria a ferramenta metodológica que norteia nosso trabalho, o
resíduo: “na Cultura e na Literatura nada é original, tudo é remanescente, logo tudo é
residual” (PONTES, no prelo), sendo que, “a residualidade se caracteriza por aquilo
que resta, que remanesce de um tempo em outro, podendo significar a presença de
atitudes mentais arraigadas no passado próximo ou distante” (MARTINS, 2000).
Gostaríamos, dito isto, de situar o leitor acerca da nossa perspectiva analítica de Aura,
novela de Carlos Fuentes.
O leitor atento, conhecedor das teorias do “pós-moderno”, poderia facilmente
enquadrar – e aqui o verbo é forte diante das dificuldades de conceituar a prosa hodierna
– Aura como uma novela da ficção contemporânea, recorrendo a caracterizações
evidentes, e recorrentes, em obras de autores contemporâneos.
Uma característica que enquadraria Aura como uma novela da ficção
contemporânea é a fragmentação das personagens no enredo, onde as mesmas acabam
confundindo-se umas com as outras, sendo difícil isolá-las dando-lhes personalidades

1
Mestrando do Programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará, Mestrado em
Literatura Comparada.
2
Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação e, Letras da Universidade Federal do Ceará.
3 O livro de contos Los dias enmascarados.

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bem definidas. Podemos observar o jogo duplo das personagens Consuelo/Aura e


Felipe/General Llorente.
Temos também a descontinuidade temporal. Essa descontinuidade, esse caos,
permite transgredir o tempo. O tempo passa a ser psicológico, o sujeito pode retornar ao
passado e experimentar sensações sinérgicas estranhas, como no caso de Felipe na
novela, um déjà vu.
Notadamente, podemos acrescentar a opção narrativa do autor (a ausência
mesmo do narrador, do contador de história, ou a dificuldade de identificá-lo), por
“desfazer a ordem cronológica, fundindo passado, presente e futuro”, segundo Anatol
Rosenfeld, em Análise e interpretação do romance moderno:

O indivíduo, a pessoa, o herói são revelados como ilusão ou convenção. Em


seu lugar encontramos a visão microscópica e por isso não perspectívica de
mecanismos psíquicos fundamentais ou de situações arquetípicas... a
perspectiva desaparece porque não há mais nenhum mundo exterior a
projetar, uma vez que o próprio fluxo psíquico, englobando o mundo, se
espraia sobre o plano da tela. (ROSENFELD, 2006, p. 86-87).

A realidade alterada que “deixou de ser ‘um mundo explicado’, exige adaptações
estéticas capazes de incorporar o estado de fluxo e insegurança dentro da própria
estrutura da obra” (ROSENFELD, 2006, p.86). Como afirmamos anteriormente,
formalmente Aura possui características mesmo da prosa contemporânea. Contudo,
vários aspectos do enredo parecem querer levar as personagens a um refúgio seguro,
longe da agitação e celeridade do mundo moderno: à época glamourosa do General
Llorente

a infância em uma fazenda oaxaquenha do século XIX, os estudos militares


na França, a amizade com o Duque de Morny, com o círculo íntimo de
Napoleão III, o regresso ao México no estado maior de Maximiliano, as
cerimônias e vigílias do Império, as baralhas, a queda, o encerramento das
campanhas, o exílio em Paris (FUENTES, 2001, p. 31-32).

Um “refúgio seguro” parece ser o local onde os personagens acabam por desejar
regressar, por ser o tempo do amor, da juventude, da glória. O advento da modernidade,
dado o capitalismo em sua fase imperialista, teria posto um fim às ocasiões de amores e
continuidades. As referências a ervas utilizadas em práticas de magia e consagradas a
deuses e deusas da mitologia ligados ao telúrico, ao rural (Ceres, Circe), sugerem um

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modo do homem vencer o tempo e poder retornar a uma época de vigor e solidez
(juventude), relembrando práticas rituais e mágicas perdidas no tempo, e que são
resgatadas por Consuelo na novela. A questão do duplo tão referida também na
mitologia4 e na literatura mundial, também seriam imagens residuais (arquetípicas)
presentes na novela de Carlos Fuentes: Aura/ Consuelo; Felipe/General Llorente.
As hipóteses analíticas levantadas neste ensaio são apenas isso: hipóteses.
Aparentemente não se pode ter nenhuma certeza sobre as coisas neste tempo “pós-
moderno”, no qual “os prognósticos, catastróficos ou redencionistas, a respeito do
futuro foram substituídos por decretos sobre o fim disto ou daquilo” (JAMENSON,
2007, p.14) – como a morte do autor, fim da Literatura, etc. (BLANCHOT, 2005).
Entretanto, nosso objetivo com esta comunicação, é referir que, Aura, apesar de manter
aspectos da forma contemporânea de feitura de romances e novelas, não possui, a nosso
ver, uma das características, “um sintoma singularmente privilegiado”, da prosa
contemporânea: o da perda da historicidade.
Aura é uma narrativa que compõe um grande projeto memorialístico de Carlos
Fuentes intitulado La Edad del Tiempo, onde o autor busca recontar a história mexicana
de forma não oficial, mas ficcional, mesclando fatos e personagens históricos com
ficção. A novela é colocada pelo autor em um ciclo intitulado El mal del tiempo. Cabe a
observação que Fuentes acrescentou obras e outros ciclos ao longo dos anos ao seu
projeto memorialístico, contudo Aura foi uma das primeiras obras deste projeto5.
Em Aura, Fuentes faz referências ao fato histórico da ocupação do México pelos
franceses durante a Segunda invasão francesa (1862), que depôs o governo republicano
de Benito Juárez e instaurou o Império por iniciativa de Napoleão III, e sob os auspícios
de outras potências européias como Espanha e Reino Unido.
Representantes da elite mexicana, contrários ao presidente Benito Juárez,
juntamente com representantes das monarquias européias decidem entregar o trono do
México a Maximiliano de Habsburgo. O General Llorente, cujas memórias Felipe

4 “Dupla forma simbólica de representação, a mitologia e a literatura exibem exemplos, paradigmas,


ícones do duplo, configurando um repertório inesgotável, que só tende, com a história das culturas, a
ampliar-se, num processo de significação sempre em aberto. Forma arquetípica, a mitologia grega
apresenta exemplos fulcrais de narrativas de duplo: a história de Anfitrião, o discurso sobre o andrógino e
o mito de Narciso” (MUCCI, 2006).
5 As obras, e suas disposições em vários ciclos, podem ser conferidas na página oficial do autor na rede
mundial de computadores:
http://www.clubcultura.com/clubliteratura/clubescritores/carlosfuentes/edad.htm.

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Montero deve preparar para serem publicadas, era oficial do exército imperial. Não
parece ser coincidência que Fuentes tenha lançado Aura no ano de 1962, no centenário
da investida francesa em terras mexicanas.
Pesa no conjunto da obra e na vida do cidadão Carlos Fuentes, os
aproximadamente três mil anos de história e cultura mesoamericana. História e cultura
também caras a outros artistas como Diego Rivera, Frida Kahlo, David Siqueiros e José
Orozco, apenas para citar alguns coetâneos de Fuentes. È constante a temática da
história e as reflexões acerca da sociedade mexicana nas obras dos artistas mexicanos
do século XX, e pelo menos em Fuentes, em seus romances e na sua obra ensaística,
podemos encontrar

uma visão ampla de sua nação, retomando desde os primórdios pré-


colombianos até a ‘relação’ com os E.U.A., afim de compreender a
identidade do México, forjando, à força da sua imaginação, narrativas que
questionam e problematizam os maiores conflitos da cultura mexicana. O
autor, inventando ou recriando outras ‘realidades’, enreda seus leitores entre
deuses e mitos, religiões antigas e crônicas de viagem, fatos históricos e
acontecimentos inventados, enfim, convida-os a penetrar num mundo no qual
a verdade pode ser múltipla e o tempo, ubíquo: o universo literário
(CARDOSO, 2007, p. 12).

Assim encontramos personagens históricos, (Montezuma, Hernán Cortez, Felipe


II), deidades mitológicas, (Quetzalcóatl, a serpente emplumada), fatos históricos (a
revolução mexicana de 19106), temas políticos (a proximidade e tensões do México
com os Estados Unidos) e reflexões sobre o fazer literário na extensa obra de Fuentes
(CARDOSO, 2007, p. 5-12).
História e ficção, realidade e ficção, e, no caso de Aura, SEMPRE realidade e
ficção, passado e presente mesclados, alternados, enfim tornados uma única coisa: um
real fantástico.
Assim, a novela de Fuentes chama-nos a atenção para a história mexicana,
sempre às voltas com tentativas de dominação estrangeiras e busca de identidade
nacional. Ocorre que, levando em consideração aspectos historiográficos, nossa análise
é levada a relacionar algumas características da colonização brasileira com outras
colonizações promovidas, por exemplo, pela Espanha. Porque a Península Ibérica

6 La muerte de Artemio Cruz (1962).

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promoveu, grosso modo, a exportação para as Américas de uma curiosa visão de


mundo, ou como Sergio Buarque de Holanda preferiu: uma Visão do Paraíso7.
Havia algo em comum entre o mais ignorante marujo das naus dos
descobrimentos e os doutos responsáveis por fazer os registros das descobertas: ambos
possuíam a mesma mentalidade mítica
Não só o deslumbramento de um Colombo divisava as suas índias e as
pintava, ora segundo os modelos edênicos provindos largamente de esquemas
literários, ora segundo os próprios termos que tinham servido aos poetas
gregos e romanos para exaltar a idade feliz, posta no começo dos tempos, ...
até os de mais profundo e repousado saber, se inclinavam a encarar os novos
mundos sob a aparência de modelos antigos (HOLANDA, 1996, p.185).

Estes “modelos antigos” são os da antiguidade clássica e “aludem expressamente


à Idade de Ouro”, chegando mesmo a materializarem-se nos relatos acerca dos
“descobrimentos”, como imitação, pastiche, de obras como Metamorfoses de Ovídio
(HOLANDA, 1996, p.185).
Sendo assim, não nos surpreende encontrarmos nos relatos de Américo
Vespúcio, Antonio Pigafetta (autores italianos da época do início do renascimento
científico) - algo similar às histórias de Marco Polo, (também italiano, comerciante da
Alta Idade Média) no século XIII. Relatos impregnados de encontro com seres
mitológicos, buscas por terras de promissão, bravas aventuras, hierofanias e toda sorte
de acontecimentos fantásticos. Achamos importante tratar desses assuntos, porque eles
deixaram uma herança indelével na mentalidade dos colonos e, mais tarde, na dos povos
nacionais: a preferência pelo heróico, o mítico, o religioso, o mágico.
O exposto até aqui deve servir para corroborar com nossa idéia de que Aura -
sem dúvida uma novela da ficção contemporânea por seus aspectos formais - pode ser
interpretada, por mais contraditório que possa parecer, como uma busca dessas
reminiscências anciãs da humanidade, do princípio das coisas, da arché, que longe de
significar apenas a origem, a causa, representa também a substância das coisas, ou seja,
é a origem mas não como algo que ficou no passado, porém como algo que permanece
nas coisas, que lhe é ontológico, é próprio do ser.
Por conta disso, nossa análise não poderia enveredar pelos dramas psicológicos
que a novela possa suscitar, senão pela psicologia analítica, pelas imagens do

7 Visão do Paraíso é o nome do livro de Sérgio Buarque de Holanda que discute a mentalidade dos
“descobridores” no tempo das grandes navegações.

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inconsciente coletivo, dos resíduos mentais presentes na obra, pelos arquétipos,


patrimônio comum da humanidade, segundo Carl Gustav Jung8.
Consideramos a busca da eterna juventude uma dessas imagens, visto que em
várias culturas existem referências à sua busca em várias mitologias, como a grega (a
ambrósia era capaz de dar a imortalidade a quem a comesse), a nórdica (as maças de
Iduna), as lendas acerca das fontes da juventude (até mesmo Alexandre Magno teria
procurado a fonte da juventude na índia, posto que na filosofia védica possuímos
também esse relato), o elixir da longa vida buscado pelos alquimistas, etc.
O que inferimos em nossa análise é que, a alternância entre realidade e ficção,
presente e passado, em Aura cumprem uma função de serem “campos de tensão”, linhas
de força, em que fica implícito um sentido alegórico da novela. E aí as formas de
duplicação das personagens acobertariam um conflito entre uma mentalidade arcaica e a
mentalidade contemporânea. Onde a descrença nas instituições atuais impulsionaria um
desejo de regresso a um passado que se demonstra mais ordenado, menos caótico.
A busca de Consuelo por incorporar Felipe ao seu objetivo de retomada de um
passado onde havia a glória, um status glorioso, demonstra a impossibilidade de
inadequação ao mundo atual, que, se formos relacionar ao México de 1962, ano de
publicação de Aura, podemos ver, novamente, a luta do povo mexicano contra as, mais
uma vez, pretensões imperialistas dos estadunidenses em questões de fronteiras e as
tentativas do governo mexicano do presidente Adolfo López Mateo de nacionalizar
empresas de eletricidade e telefonia que estavam nas mãos de “testas-de-ferro” dos
Estados Unidos. Entretanto, a continuidade de sujeição dos mexicanos ao jugo
estrangeiro continuaria como um pesadelo, sendo que, já em 1965 os povos do México
viam serem instaladas as primeiras indústrias maquiladoras que culminariam em 1994
com a criação do NAFTA9, após o quê, a classe trabalhadora mexicana se veria
sujeitada a formas extremas de exploração através de ínfimos salários pagos pelas
grandes empresas, principalmente estadunidenses, instaladas agora em todo território
mexicano.

8 Jung descobrira que além do consciente e inconsciente pessoais, já estudados por Freud, existiria uma
zona ou faixa psíquica onde estariam as figuras, símbolos e conteúdos arquetípicos de caráter universal,
frequentemente expressos em temas mitológicos.
9 Sigla em inglês para o Tratado de livre comércio da América do Norte, cujos signatários, Estados
unidos, Canadá e México, acordam a livre circulação de mercadorias entre os países do bloco, mas não de
pessoas.

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Aparentemente quanto maior o jugo, a sujeição dos homens a um presente de


tormentos, maior será uma exaltação, o louvor e a nostalgia de um passado idealizado,
venturoso e idílico. Se não se faz, ou não se pode fazer, uma opção pela continuidade da
luta - ou talvez mesmo por estar cansado de tanta luta - um passado ordenado, já
conhecido, sob este aspecto favorecido pela distância temporal, serve de refúgio, não
como exortação a sublevação, dá segurança embora existam configurações de
dominação de classes sociais, essas já são bem conhecidas e fornecem segurança.
Ou será que esse mal estar, esse splen, de nossa época, esse “pessimismo
fundamental” que vivemos quanto à ciência, a razão e às artes na contemporaneidade já
não seriam “o ponto de partida necessário para a glorificação de outros mundos”, outras
épocas e “terras incógnitas, porventura ainda virgens e indenes dessa decadência geral”?
De toda forma, essa busca por um passado, a um déjà vécu10, perseguido de
forma sistemática por Consuelo na novela ainda é uma forma de denunciar a corrupção
destes tempos e a condição humana na atualidade. Mesmo parecendo uma proposta
acomodada, essa busca por tornar ao passado na novela apenas é aventada através dos
esforços de Consuelo e de rigorosas práticas mágicas, o uso de ervas como o
meimendro, a dulcamara, o verbasco, o evônimo e a beladona que, associadas a orações
e processos ritualísticos – “Venha, Cidade de Deus; soe, trombeta de Gabriel. Ai, como
o mundo está custando para morrer!” (FUENTES, 2001, p. 27) – proporcionem o efeito
desejado de visão e retorno do passado, favorecendo a magia simpática e criando o
ambiente psicológico de um ambiente exterior: a aura.
As beberagens de Consuelo, os vapores exalados pelas umidades do casarão,
sempre a mesma dieta de rins, o contato necessário de Felipe com as memórias
(história) do General Llorente, tudo isso fortalece a sugestão quase hipnótica que
Consuelo imprime a Felipe e que Fuentes também acaba por instigar ao leitor desde o
começo, através da narração em segunda pessoa:

Você lê esse anúncio: uma oferta assim não é feita todos os dias. Lê e relê o
anúncio. Parece dirigido a você, a ninguém mais. Distraído, deixa cair a cinza
do cigarro dentro da xícara de chá que estava bebendo neste café sujo e
barato. Torna a ler... (FUENTES, 2001, p. 7).

10 Do francês: já vivido.

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Neste ponto perguntamo-nos se Aura possui mesmo o espírito de nossa época


(Zeitgeist). Acreditamos que sim. Entretanto, mais do que ser uma novela da ficção
contemporânea, Aura, de Carlos Fuentes, é uma alegoria do homem e do mundo
contemporâneo. O autor narra uma história para nos falar de outra. Para nos falar do
povo mexicano na, sempre difícil, encruzilhada de ser e não ser mais sujeito a
imperialismos. Para nos falar de nós mesmos diante dos paradoxos da
contemporaneidade. Ao contar a história de um casal incomum buscando
reminiscências e revivê-las, leva-nos a refletir sobre o mundo e o estado geral das coisas
na atualidade.
Carlos Fuentes manuseia resíduos, substratos mentais, mentalidades, para
descrever sua visão acerca da aventura e dilema da humanidade em nossa época. Devido
às limitações que tem uma novela, talvez Aura não esteja colocada no nível que lhe é
merecido, falando de repercussão, entre os estudiosos. Embora seu autor seja
muitíssimo celebrado entre os críticos.

REFERÊNCIAS

CARDOSO, Camila Chaves. As imagens duplas e a narração em segunda pessoa em


Aura, obra fantástica de Carlos Fuentes. Dissertação (Mestrado). Campinas, São
Paulo: [s.n.], 2007.
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: (A Idade da Fábula) histórias de
deuses e heróis. Tradução de Davi Jardim Júnior. 13. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
FUENTES, Carlos. Aura. Tradução de Olga Savary. Porto Alegre: L&PM, 2001.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no
descobrimento e colonização do Brasil. 6. ed.. São Paulo: Brasiliense, 1996.
JAMENSON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio.
Tradução de Maria Elisa Cevasco. São Paulo: editora Ática, 2007.
MARTINS, Elizabeth Dias. O caráter afrobrasiluso e residualno Auto da Compadecida.
In: SOARES, Maria Elias et ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de (orgs.). Anais da

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XVII Jornada de estudo Lingüísticos. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará –


UFC/Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste-GLEN, 2000, v.II p. 264-267.
ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: Texto/contexto I. São
Paulo: Perspectiva, 2006.

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ANARQUISMO E LITERATURA: IDEAIS LIBERTÁRIOS EM ROMANCES


DE LIMA BARRETO

Jane Mary Cunha Bezerra1


Irenísia Torres de Oliveira (Orientadora)2

Em um texto que abre as Impressões de Leitura, intitulado “O Destino da


Literatura”, título bem a propósito de suas intenções com relação à criação artística, o
escritor carioca Lima Barreto deixa bem claro suas expectativas no que diz respeito a
sua produção e suas relações com a sociedade. Ainda quando estudante da Escola
Politécnica, havia já uma preocupação do futuro escritor em atingir o público, através de
“revistas e jornalecos que nasciam, eram lidos e morriam na Rua do Ouvidor”. Essa
preocupação precoce com a responsabilidade e a razão de ser da Literatura, ao longo do
tempo vão se tornando cada vez mais recorrentes em seus escritos (tanto em artigos e
crônicas de jornais quanto em sua ficção). Assim, Lima Barreto propõe que “a arte,
tendo o poder de transmitir sentimentos e ideias, sob a forma de sentimentos, trabalha
pela união da espécie; assim trabalhando, concorre portanto, para o seu acréscimo de
inteligência e de felicidade” (BARRETO, 1956, p. 67). E mais: “a literatura reforça o
nosso natural sentimento de solidariedade com os nossos semelhantes, explicando-lhes
os defeitos, realçando-lhes as qualidades e zombando dos fúteis motivos que nos
separam uns dos outros” (BARRETO, 1956, p.67-68).
Desenvolver uma literatura nos moldes do Parnasianismo, por exemplo, não
fazia sentido para Lima Barreto, pois esta ficava restrita a um número seleto de pessoas,
privilegiando tão somente aspectos formais, em detrimento das reais necessidades da
sociedade e do homem comum, que compunha a maioria da população brasileira.
Acusado de ressentido pela crítica da época, Lima Barreto, em sua estréia, ficou
no anonimato do mundo das letras. Esse fato, no entanto, não o impediu de continuar
com sua escrita polêmica; pelo contrário, tornou-se um dos críticos mais ferrenhos
dentre os polemistas brasileiros do início do século. É claro que a crítica oficial e a
imprensa dominante reagiram sempre de forma negativa e, o que era pior, ignoravam as

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.
2
Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense. Professora do Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Ceará.

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posições e o pensamento de Lima Barreto; pobre, mulato e boêmio, não teria muitas
chances de se projetar no meio oficial composto por intelectuais já patenteados e
consagrados pela “boa sociedade”, como era o caso, por exemplo, de um Coelho Neto.
Hoje é possível vermos Lima Barreto sendo apontado pela crítica como um dos
maiores romancistas brasileiros dos primeiros anos do século XX, em cuja obra
observamos o uso de uma linguagem coloquial, com conteúdo predominantemente
social e de caráter crítico, no que diz respeito a um período de transição por que passava
o Brasil rumo à Modernidade.
Por causa do caráter despojado de sua escrita e devido à sua narrativa deslocada
das normas cultas, o escritor carioca tornou-se alvo de duras críticas; além disso, foi
encarado como um artista que inseriu em sua ficção elementos retirados de sua vida
pessoal, sobretudo nas Recordações do Escrivão Isaías Caminha, romance publicado
em 1909, por uma editora lisboeta, uma vez que as grandes casas publicadoras que
existiam no Brasil se recusaram a fazê-lo. Lima Barreto é um dos mais importantes
escritores brasileiros do começo do século XX. Suas narrativas se caracterizam, entre
outras peculiaridades, por combinar elementos de gêneros diversos (romances, contos,
novelas, crônicas, crítica literária e teatro), linguagem coloquial, ironia e a
representação da sociedade e dos homens num período conturbado da história do Brasil.
Sendo um observador desse momento histórico e consciente dos problemas da jovem
República, desenvolveu uma literatura militante e objetiva, relacionada aos aspectos
sociais. Afinal, como observa Antonio Candido:

Para Lima Barreto, a literatura devia ter alguns requisitos indispensáveis.


Antes de mais nada, ser sincera, isto é, transmitir diretamente o sentimento e
as ideias do escritor, da maneira mais clara possível. Devia também dar
destaque aos problemas humanos em geral e aos sociais em particular,
focalizando os que são fermento de drama, desajustamento, incompreensão.
Isso, porque no seu modo de entender ela tem a missão de contribuir para
libertar o homem e melhorar a sua convivência (CANDIDO, 2006, p.4).

No Brasil, chegado o século XX, o anarquismo se fortaleceu, ganhando um


número grande de adeptos e simpatizantes, principalmente na imprensa e entre alguns
escritores. Surgiram então, duas tendências anarquistas entre os brasileiros: um grupo
mais numeroso, influenciado pelas ideias de Kropotkin, Reclus, Malatesta, entre outros,
tendo em Neno Vasco, Benjamin Mota e Fábio Luz os maiores divulgadores e adeptos

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das ideias de revolução social, abolição do Estado e da propriedade privada no Brasil,


sendo o sindicalismo sua arma de luta. O outro grupo diferenciava-se do primeiro por
seu exacerbado individualismo, baseado principalmente nas ideias de Max Stirner. Esse
grupo, além de pregar a abolição do Estado, levantava uma bandeira contra qualquer
forma de organização que não fosse espontânea, ou seja, que pudesse comprometer a
liberdade de qualquer indivíduo.
Situado nesse contexto de efervescência política e de manifestações literárias e
ideológicas diversas, e influenciado por autores como Dostoiévski e Tolstói (este último
considerado pela crítica mundial como o maior dos escritores anarquistas), Lima
Barreto assume um papel de destaque nas letras brasileiras. Inclusive foi apontado por
alguns críticos como Francisco Foot Hardman, Antonio Arnoni Prado e por seu biógrafo
Francisco de Assis Barbosa, como um escritor voltado para os ideais anarquistas. Essas
ideias divulgadas sobretudo em suas Crônicas escritas para os jornais da imprensa
libertária brasileira, como por exemplo, A Lanterna, O Suburbano, Tagarela, O Diabo,
Gazeta da Tarde e Voz do Trabalhador (este último, órgão da Confederação Operária
Brasileira), constam também de sua ficção.
Antônio Arnoni Prado o percebe como mais do que um simples observador dos
problemas por que passava o Brasil no início da República, mas também como
apreciador dos ideais de liberdade e de revolução propostos pelos anarquistas. Vejamos
o que este crítico nos revela a respeito do posicionamento de Lima Barreto em relação
ao anarquismo:

A sua percepção da crise do sistema, vital para o escritor entusiasmado com


as tese maximalistas da revolução russa de 1917, desdobrava-se na
desconfiança nas oligarquias e na burguesia em ascenso, contra as quais abre
fogo em meio a decisão que o leva pra o anarquismo em 1913. Na verdade
esse inimigo do progresso setorizado que as classes dominantes celebravam
com a exaltação nacionalista da República nutria grandes simpatias pelo
movimento operário, do qual se aproxima, numa primeira incursão
passageira, já em 1906, quando o então socialista Pausílipo da Fonseca...o
inscreve no recém fundado Partido Operário Idependente. (PRADO, 1989, p.
66-67)

Outro crítico renomado que destaca o valor do autor das Recordações do


Escrivão Isaías Caminho como interessado e preocupado com os problemas sociais,
além do estético, é Astrogildo Pereira, cônscio de seu papel imprescindível com relação

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aos problemas e acontecimentos polêmicos que envolviam o mundo e seus reflexos no


Brasil, destacado em seu ensaio “Posições Políticas de Lima Barreto”:

Nenhum dos outros [escritores] soube como êle penetrar o sentido profundo
dos acontecimentos que se desenrolavam aos olhos de todos. Nenhum dos
outros foi capaz de perceber a importância histórica da Revolução Russa de
1917, e nenhum deles pode rivalizar com Lima Barreto no que se refere ao
instinto seguro da sua visão relativamente aos problemas políticos e sociais
do após-guerra. (PEREIRA, 1963, p. 38)

Reforçando os críticos acima citados, temos ainda Francisco de Assis Barbosa,


em cuja biografia do escritor carioca, A Vida de Lima Barreto, também concorda que
ele esteve deliberadamente envolvido com os movimentos e com a imprensa libertária,
embora não partindo para a ação direta: “Lima Barreto nunca foi, nem seria nunca, um
revolucionário militante. Mas é fora de dúvida que sempre alimentou ideias, princípios
e sentimentos anarquistas. Era, como se usa dizer, um simpatizante.” (BARBOSA,
2003, p. 253)
No periódico libertário A Voz do Trabalhador, Lima Barreto deixa bem clara
sua simpatia pelas ideias anarquistas num artigo intitulado “Palavras de um snob
anarquista”, no qual faz crítica aos jornalistas que estão ligados aos ideais capitalistas.

Os anarquista falam da humanidade para a humanidade, do gênero humano


para o gênero humano, e não em nome de pequenas competências de
personalidades políticas; e se há muitos que são por ignorância ou
“esnobismo” que dão gordas sinecuras na política e sucessos sentimentais nos
salões burgueses (BARRETO, 1956, p. 218, v. X).

Assim, além de enaltecer as ideias libertárias, o articulista não mede palavras


para questionar a falta de compromisso com o povo, com toda a gente do Brasil que
construiu sua economia através do trabalho árduo de gerações, cujo sofrimento foi
provocado pela classe dominante, preocupada somente com a manutenção do seu poder.
Assim conclui seu artigo:

Sentimos que o jornalista se haja emperrado no regímen capitalista, mas


estamos certos que de, por mais emperrado que seja, a de haver ocasiões em
que pergunte de si para si: é justo que o esforço de tantos séculos, que a
inteligência de tantas gerações, que o sangue de tantos homens de coração e o
sofrimento de tantas raças, que tudo isso, enfim, venha simplesmente
terminar nessa miséria, nesse opróbrio que anda por aí? É justo?
(BARRETO, 1956, p. 218, v. X).

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Em seus escritos para a imprensa libertária, observamos também a sua


indignação em relação ao poder do Estado, e principalmente sua inutilidade, uma vez
que a autoridade compromete o direito à liberdade e autonomia, naturalmente inerente
ao ser humano, de acordo com os preceitos anarquistas. No Correio da Noite, em
28/01/1915, Lima Barreto publicou um pequeno texto intitulado “Não é possível”, no
qual mostra sua visão em relação ao futuro do governo: “O governo já deu o que tinha
de dá; agora, é um agonizante, breve um cadáver a enterrar no panteão das nossas
concepções” (BARRETO, 1956, p. 86).
Mesmo em jornais não declaradamente libertários, Lima Barreto expõe sua
opinião sobre a questão do poder, usando a imprensa como um veículo vivo para
mostrar sua indignação e sua vontade de chamar à atenção da opinião pública para o
valor do cidadão, de sua liberdade e de sua consciência política na construção da
democracia, como é possível observarmos em um de seus escritos para o A.B.C., em
19/19/1918:

A República no Brasil é o regímen da corrupção. Todas as opiniões devem,


por esta ou aquela paga, ser estabelecidas pelos poderosos do dia. Ninguém
admite que se divirja deles e, para que não haja divergências, há a “verba
secreta”, os reservados deste ou daquele ministério e os empreguinhos que os
medíocres não sabem conquistar por si e com independência (BARRETO,
2004, p. 392).

Ainda sobre as questões que envolvem a política e seu verdadeiro papel e função
na sociedade brasileira, sua descrença e decepção levam à composição de uma escrita
irônica e ao mesmo tempo séria, de caráter notadamente debochado e direto, onde
levanta a bandeira de um regime maximalista, como forma de resolver as mazelas da
nação. É o que diz em “Palavras de um simples”, publicado no Hoje, em 20/07/1922:

Nunca me meti em política, isto é, o que se chama política no Brasil. Para


mim a política, conforme Bossuet, tem por fim tornar a vida cômoda e os
pobres felizes. Desde menino, pobre e oprimido, que vejo a ‘política’ do
Brasil ser justamente o contrário. Seria capaz de deixar-me matar, para
implantar aqui o regímen maximalista (BARRETO, 1956, p. 58-59).

Em outros artigos, o autor de Recordações de Escrivão Isaías Caminha destaca e


critica a atuação de órgãos a serviço ou não do poder estatal, cujo objetivo era censurar

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e calar a opinião de elementos da sociedade que se utilizavam da imprensa menor para


demonstrar sua insatisfação perante a ordem vigente; muitas vezes a polícia agia de
forma violenta com relação à imprensa libertária; é claro que as ordens emanavam de
cima, das instancias superiores do poder estatal; isso era encarado pelas mentes mais
esclarecidas como uma atitude arbitrária e coercitiva; quem estivesse ligado ao
pensamento anarquista de forma oficial, ou pelo menos lhe dedicasse alguma simpatia,
pegaria da pena para demonstrar sua revolta, como vemos no artigo “A Maçã e a
Polícia”, publicado no Careta, em 11/03/1922, no Rio de Janeiro, numa referência
ousada acerca da ação da polícia contra um semanário de Humberto de Campos:

A polícia, pela sua feição própria, é incapaz dêsse papel de censura de


qualquer manifestação do pensamento. Ela é uma emanação do govêrno; e é
da natureza dos governos não admitirem crítica. Quando se os critica, ela
apela para a ordem e para a moralidade. Daí o perigo que há em se entregar à
polícia, qualquer poder que incida sobre a liberdade de pensamento.
(BARRETO, 1956, p. 74, v. XII)

A formação intelectual de Lima Barreto, a partir do que constava da biblioteca


particular (Limana) e considerando que os críticos acima o tinham como simpatizante
do anarquismo, contribui para entendermos o fato dele não ter se adequado a uma
literatura convencional e floreada, notadamente quando explicita de forma tão corajosa
suas convicções. As ideias libertárias podem constituir um elemento importante para a
construção de seu estilo. Assim, a revolução proposta e defendida por Lima Barreto não
se limita somente ao âmbito social, mas, sobretudo, ao âmbito artístico. Os ideais de
liberdade, plena e absoluta, propostos pelos anarquistas não foram somente alvo de
admiração do escritor, mas, provavelmente, foram inseridos na elaboração de sua obra e
no estilo desnudo e satírico, características que fazem de sua arte um dos momentos
mais férteis, ousados e criativos da produção intelectual do Brasil no início do século
XX.
Assim, podemos apontar, entre outros, o romance Numa e a Ninfa, à época,
pouco apreciado e valorizado, como contendo em toda sua narrativa a difusão de ideias
libertárias através do Dr. Bogóloff, personagem caricata, comum no estilo de Lima
Barreto.
Além da divulgação de ideias de caráter libertário que perpassam alguns
romances de Lima Barreto, podemos observar que sua obra segue uma dinâmica

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própria, fazendo frente ao cânone, mas sem se comprometer com as vanguardas; parece
que o autor procura fugir de todo e qualquer enquadramento; a estrutura de seus
romances vai além do esperado. Podemos constatar nas Recordações do escrivão Isaías
Caminha algo peculiar que nos permite eleger Lima Barreto como um escritor que
supera o estilo memorialista e pessoal. Em seu romance de estréia, em “Breve Notícia”
(espécie de nota esclarecedora que antecede o texto ficcional propriamente dito), o autor
se insere na realidade ficcional, a fim de convencer o leitor da existência de Isaías, não
como personagem de ficção, mas como personagem real. No entanto, esse jogo entre
ficção e realidade se apresenta como artifício que foge aos padrões ficcionais da
produção literária da época, já que Isaías Caminha é, na verdade, uma criação do autor,
como se verifica trecho abaixo:

Quando comecei a publicar, na Floreal, uma pequena revista que editei, pelos
fins de 1907, as Recordações de meu amigo, Isaías Caminha, escrivão da
Coletoria Federal de Caxambi, Estado do espírito Santo, publiquei-as com
um pequeno prefácio do autor. Mais tarde, graças ao encorajamento que
mereceu a modesta obra do escrivão, tratei de publicá-la em volume
(BARRETO, 1956, p.39, v. I).

Reforçando essa idéia, Lima Barreto, de forma insistente, ainda insere nessa
“Breve Notícia”, palavras de próprio punho de Isaías Caminha, constantes do prefácio
de suas memórias, retirado diretamente do manuscrito entregue ao escritor carioca,
nesse caso também uma ficção.

REFERÊNCIAS
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 9. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2003.
BARRETO, Lima. Feiras e Mafuás. São Paulo: Brasiliense, 1956, v. X.
______. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956, v. XIII.
______. Marginália. São Paulo: Brasiliense, 1956, v. XII.
______. Numa e a ninfa. São Paulo: Brasiliense, 1956, v. III.
______. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Brasiliense, 1956, v.I.
CANDIDO, Antonio. Os olhos, a barca e o espelho. In: ______. A educação pela noite.
5. ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006.

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PEREIRA, Astrogildo. Posições políticas de Lima Barreto. In: ______. Crítica impura.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
PRADO, Antonio Arnioni. O crítico e a crise. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

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ESPAÇOS PARA O DEVANEIO: AS MUITAS CASAS DE MARIO QUINTANA

Jaqueline Soares Moura1


Fernanda Coutinho (Orientadora)2

O presente trabalho pretende analisar algumas das criações poéticas de Mário


Quintana, numa abordagem que considera as representações da casa como espaços
plenos de simbolismo, de significados mágicos e como elemento recorrente em sua
criação poética.
A partir da aproximação entre os conceitos de memória – entendida como a
capacidade de reter e manipular informações sobre o mundo, transformando-as através
do ato imaginativo – e do de contemplação, enquanto uma observação sensível e
distanciada do ser ou do objeto contemplado, sobretudo do invisível ou das imagens de
sonho e desejo presentes no imaginário do sujeito lírico, partimos para uma possível
leitura de seus poemas, muitos deles associados diretamente ao espaço da casa, quer
como representação de tempos guardados na memória do eu-lírico, quer como espaço
poeticamente (re)criado.
Os espaços poéticos aparecem, na obra de Mario Quintana, representados em
poemas oníricos, carregados de simbolismo, e associados, muitas vezes, à morada. A
poesia configura-se aqui como componente de transformação do espaço físico em
espaço memória – devaneio.

A casa grande

... mas eu queria ter nascido numa dessas casas de meia-água


com o telhado descendo logo após as fachadas
só de porta e janela
e que tinham, no século, o carinhoso apelido
de cachorros sentados.
Porém nasci em um solar de leões.
(...escadarias, corredores, sótãos, porões, tudo isso...)
Não pude ser um menino da rua...
Aliás, a casa me assustava mais do que o mundo, lá fora.
A casa era maior que o mundo!
E até hoje
- mesmo depois que destruíram a casa grande –

1
Mestranda em Literatura Comparada do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
do Ceará.
2
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

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até hoje eu vivo explorando os seus esconderijos... (QUINTANA, 2005,


p.479)

Esta casa abriga locais de aconchego (nos esconderijos do tempo) e de medo


(nos refúgios da imaginação). As múltiplas possibilidades de apropriação do espaço
pelo sujeito poético permitem sonhá-la afetivamente: coberta por telhados de meia-
água, carinhosamente apelidados de cachorros sentados – e circunscrevê-la num
universo ilimitado do devaneio poético, acrescida de singularidades: uma única porta,
uma janela, um telhado, uma escada – por vezes inacessíveis. A casa grande, composta
por uma infinidade de cômodos, recantos, esconderijos e circulações, contém (e
mantém) o tempo vivido. O ato de rememorar, portanto, recolhe o passado, sem assumir
a forma de produto acabado ou de uma narrativa configurada. Esta afirmação é bastante
adequada à decifração da poesia, modalidade de escrita na qual prevalece o fluxo de
sensações acima da consciência. É como um “deixar-se levar” pelas imagens que se vão
formando a partir de estímulos sensoriais. Dessa relação entre a simplicidade da casa de
meia-água e a opulência do solar podemos depreender que “o devaneio deseja sua casa
de retiro e a deseja pobre e tranqüila, isolada no pequeno vale” (BACHELARD, 2003,
p.78)
Neste trânsito pela memória do eu-poemático, esbarramos na descrição da
escada, a qual se apresenta com múltiplas feições, entre elas a imagem das escadas dos
filmes policiais – aquelas que são propícias a assassinatos – passando pelos recantos que
a cercam e por seus inevitáveis abismos. Tânia Carvalhal observa que “[...] nas velhas
casas, os fantasmas que as habitam reiteram sentimentos que unificam passado e
presente, em busca de uma unidade impossível” (QUINTANA, 2005, p. 18-9). A
ruptura da continuidade do tempo, marcada pelo instante presente, também se
transfigura na subdivisão da casa, descontínua e interligada por uma escada ou por
escadas de diferentes aspectos e funções. De cima da escada, é possível avistar o seu
fosso. De baixo, a perspectiva é nebulosa e não descrita pelo poeta, pois ele afirma que:
“hoje em dia todas as escadas são para descer”. Tais aspectos são retratados no poema a
seguir:

Escadas

Escadas de caracol
Sempre

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São misteriosas: conturbam.


Quando as descem, a gente
Se desparafusa.
Quando a gente as sobe
Se parafusa
- o peito
estreito –
o teto descendo
Descendo descendo como nas histórias de imortal horror!
Mas de que jeito,
Mas como pode ser,
Morrer cair rolar por uma escada de parafuso?
Além disso não têm, pelo que dizem, nenhuma acústica...
Oh! não há como as escadarias daqueles antigos edifícios públicos
Para ser assassinado...
Porém não fiques tão eufórico,
- nem tudo são rosas:
Há,
no sonho das velhas casas de cômodos onde moras,
Passos que vêm subindo degrau por degrau em direção ao teu quarto
E “sabes” que é um fantasma chamejante e fosfóreo
- o corpo todo feito de inconsumíveis labaredas verdes!
O melhor
Mesmo
É fechar os olhos
E pensar numa outra coisa...
Pensa, pensa
- o quanto antes!
Naquelas pobres escadas de madeira das casas pobres
- escurinho dos teus primeiros aconchegos...
Pensa em cascatas de risos
Escada abaixo
De crianças deixando a escola...
Pensa na escada do poema
Que tu
comigo
vens descendo
agora...
(Hoje em dia todas as escadas são para descer)
Mas não! este poema não é
Nenhum
Abrigo
Antiaéreo...
Ah, tu querias que eu te embalasse?!
Eu estava, apenas, explorando uns abismos... (QUINTANA, 2005, p.62-3)

E o eu-lírico, de maneira exemplar, explora os seus e os nossos abismos! As


escadas imaginadas no ato de “fechar os olhos” conduzem o leitor (e o poeta) à
memória da infância.
Sua casa tem vários níveis ou pelo menos dois: um sótão e um porão. Ela pode
assumir o porte de um edifício público, sem deixar de ser a “velha casa” povoada por
fantasmas que sobem escadas de madeira, provocando ruídos com seus passos. A

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memória do poeta sugere, então, manter-se resguardada nos seus porões ou propõe-se
ainda representar a fundação de sua casa, ou seja, o elemento seguro, firme e primordial
que traz estabilidade ao percurso poético. Nesse sentido, Mario Quintana repercute o
pensamento do filósofo francês Gaston Bachelard, que, em A Terra e os devaneios do
repouso, trata do que ele chama casa onírica que corresponde à casa de intimidade
absoluta, centro de nossas primeiras impressões, que tem seu eixo fixado pela vida
dinâmica recíproca do sótão e do porão. Assim, segundo o filósofo:

não há verdadeira casa onírica que não se organize em altura; com seu porão
enterrado, o térreo da vida comum, o andar de cima onde se dorme e o sótão
junto ao telhado. Tal casa tem tudo o que é necessário para simbolizar os
medos profundos, a trivialidade da vida comum, ao rés-do-chão, e as
sublimações. (BACHELARD, 1990, p. 86.)

Para Bachelard, o porão traz consigo a conotação do inconsciente e o sótão, a do


consciente. Logo, esses locais mantêm a atmosfera de mistério nas casas. Nesse sentido,
o poeta alegretense faz menção a uma arquitetura nova, que não abriga os sonhos e
mistérios das casas velhas.

Arquitetura funcional

Não gosto da arquitetura nova


Porque a arquitetura nova não faz casas velhas
Não gosto das casas novas
Porque as casas novas não têm fantasmas
E, quando digo fantasmas, não quero dizer essas assombrações
vulgares
Que andam por aí...
E não-sei-quê de mais sutil
Nessas velhas, velhas casas,
Como, em nós, a presença invisível da alma.... Tu nem sabes
A pena que me dão as crianças de hoje!
Vivem desencantadas como uns órfãos:
As suas casas não têm porões nem sótãos,
São umas pobres casas sem mistério.
Como pode nelas vir morar o sonho?
O sonho é sempre um hóspede clandestino e é preciso
(Como bem sabíamos)
Ocultá-lo das visitas
(Que diriam elas, as solenes visitas?)
É preciso ocultá-lo das outras pessoas da casa,
É preciso ocultá-lo dos confessores,
Dos professores,
Até dos Profetas
(Os Profetas estão sempre profetizando outras cousas...)
E as casas novas não têm ao menos aqueles longos, intermináveis
corredores

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Que a Lua vinha às vezes assombrar! (QUINTANA, 2005, p.50)

A casa aqui não cumpre seu papel de abrigar as impressões de individualidade,


ou, por fim, da solidão e dos devaneios de cada um de nós. Os arquétipos do morar são
espaços que, aos poucos, vão sendo consumidos por essa “arquitetura funcional”.
Pobres crianças que não têm mais onde se esconder, sonhar ou simplesmente se
encolher num refúgio seguro e carregado de surpresas!
Quintana elabora uma trajetória de retorno ao passado, não apenas de forma
saudosista, mas como possibilidade de (re)viver os sonhos acalentados na infância.
Seus textos, marcados por enganadora simplicidade, trazem espaços e tempos
ampliados pelo imaginário poético, os quais afirmam a maturidade do poeta no trânsito
entre universos reais e fantásticos, bem como sua permanente referência ao tempo
passado.
O poeta, como espectador de seus tempos, passado e presente, teoriza, critica e
dá visibilidade aos seus pensamentos através da linguagem escrita.
Juntando a reflexão do passado com sua experiência presente e mais suas
projeções de futuro, o leitor tem uma perspectiva não apenas de pretérito, mas uma
visão atemporal de um autor que, através de seus quintanares, nos leva a um
recolhimento e estabelece, através de seus itinerários poéticos, uma simbiose entre
presente, passado e futuro.
Quintana segue os caminhos da memória prefigurados pelas leituras da morada e
nos coloca diante da necessidade de refletir sobre a experiência proporcionada pelo
espaço e por sua tradução expressa na poesia.

REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço. 2. ed. Tradução Antonio de Pádua
Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade.
Tradução Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
QUINTANA, Mário. Apontamentos de história sobrenatural. São Paulo: Globo, 2005.
______. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.

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UMA TRANSPOSIÇÃO DO O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA DA


LITERATURA PARA O CINEMA

Larissa Pinheiro Xavier1


Soraya Ferreira Alves (Orientadora)

Um pouco sobre Gabriel Garcia Márquez


Gabriel García Márquez é um dos escritores mais importantes e influentes da
literatura universal, dentre suas obras mais conhecidas está o clássico Cien años de
soledad (1967). Nascido em Aracataca, Colômbia, é um dos intelectuais latino-
americanos merecedores do Prêmio Nobel de Literatura (1982). Suas obras são repletas
de um universo fantástico, universo esse baseado na realidade de onde vivia e nas
histórias contadas por seus familiares, principalmente por seu avô, uma figura
determinante na sua formação como escritor. É contista, ensaísta, crítico
cinematográfico, autor de roteiros e, além disso, um intelectual comprometido com os
grandes problemas do nosso tempo.
Um dos seus romances El amor en los tiempos del cólera (1985) é o objeto do
presente estudo. Essa obra literária foi transposta para o cinema em 2007, levando o
mesmo nome da obra literária, Love in theTime of the Cholera, com produção nos
Estados Unidos, direção de Mike Newell e protagonizada por Javier Bardem, Benjamin
Bratt e Fernanda Montenegro.
A trama se passa no final do século XIX e conta a história de um homem,
Florentino Ariza, que se apaixona perdidamente por uma mulher, Fermina Daza, que
corresponde a esse amor. Quando o pai descobre o romance, os dois são obrigados a se
afastar e depois de algum tempo ela retorna e nada mais quer com ele. Então, ele passa a
acompanhar sua vida durante seus próximos cinquenta anos, sonhando com o momento
em que ficarão juntos.

A tradução intersemiótica
Há uma grande quantidade de obras literárias que são traduzidas diretamente
para a televisão e para o cinema. Assim, ao levar uma obra literária para o cinema,
deve-se considerar não só as características presentes na própria obra literária, mas

1
Universidade Estadual do Ceará.

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também as presentes na produção cinematográfica, à qual a obra está inserida. São


vários os aspectos que constituem cada uma delas, e não se pode fazer "comparações",
pois cada semiose tem seus próprios recursos, suas técnicas, sua linguagem. Trata-se,
pois, de fazer a tradução similar ou equivalente à obra, porém com estruturas distintas e
específicas.
Hoje, seria inadequado encarar o problema da relação cinema-literatura
unicamente com a atenção voltada para a prática das adaptações. É necessário tentar ler
o cinema e ver a literatura, partindo do jogo dialético de estruturas contrastantes capaz
de superar as diferenças tradicionais entre essas duas formas específicas, favorecendo o
surgimento de mecanismos que efetivem o material disponível, tanto para o filme
quanto para a literatura.
Portanto, as reflexões e análises sobre as teorias e práticas da adaptação de um
meio para o outro se tornam cada vez mais necessárias, à medida que vemos o seu uso
em diversos contextos sociais e culturais. E perceber que esse processo não se dá ao
acaso, pois tem que levar em consideração que a tradução é feita com base em dois
sistemas de signos distintos e por isso deve apresentar estruturas diferentes. O resultado
da tradução proposta constitui um novo produto, uma obra que adquire característica e
status independente.
A partir disso, surge o que se conhece por Tradução Intersemiótica, um modelo
que consiste na interpretação de um meio artístico para outro, como no caso aqui
estudado, do livro para o cinema. Também se pode identificá-lo na interpretação de
outros meios como do livro para o teatro, para a dança, para a música ou vice-versa.
Jakobson (1973) foi o pioneiro nessa discriminação e na definição de outros
modelos como a Tradução Interlingual e a Intralingual. Para ele, ao traduzir ou
transmitir uma mensagem de fonte diferente se estarão envolvendo duas mensagens
distintas em dois meios também distintos. Ele afirma ainda que “a tradução
intersemiótica ou transmutação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de
sistemas de signos não-verbais.” (p. 65).

A obra adaptada

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A obra literária em estudo, El amor en los tiempos del cólera (1985),


juntamente com a adaptação cinematográfica, Love in the time of the cholera (2007),
servirá como suporte para a análise de algumas características pertinentes à adaptação.
Alguns traços aparecem distintos, como características físicas dos protagonistas,
exclusão de alguns personagens e o narrador, que no livro está em terceira pessoa,
enquanto no filme é o próprio protagonista, Florentino Ariza, quem relata os
acontecimentos.
Uma característica forte no escritor Garcia Márquez é o uso de adjetivos para
caracterizar as pessoas e detalhar o espaço. Pode-se perceber que no filme houve uma
preocupação em manter essas características quanto à descrição de alguns locais do
romance:

[...] Lo encontró en el parquecito de los Evangelios, en una de las casas más


antiguas, medio arruinada, cuyo patio interior parecía el claustro de una
abadía, con malezas en los canteros y una fuente de piedra sin agua.
Florentino Ariza no percibió ningún ruido humano cuando siguió una criada
descalza bajo los arcos del corredor, donde había cajones de mudanza todavía
sin abrir, y útiles de albañiles entre restos de cal y bultos de cemento
arrumados, pues la casa estaba sometida a una restauración radical […]
(MÁRQUEZ, 1985, p. 85).

A história de amor entre o protagonista Florentino Ariza e Fermina Daza


atravessa cinquenta anos de história na América Latina. Logo, o contexto histórico,
cultural e ideológico em que os personagens estão inseridos é percebido e bem marcado
no transcurso dos fatos.
O pai mantém a filha sob seus cuidados após a mãe ter falecido. Então, ele
apresenta certos valores morais de acordo com a época como, encontrar um marido
digno para a filha, só permite que esta se case virgem, proibe o contato dela com outro
homem que não seja de seu consentimento, dar uma educação religiosa, dentre outros.
Vale ressaltar que a religião e a fé são percebidas em ações durante toda a trama e
caracteriza o perfil dos personagens. Uma delas é quando Fermina Daza descobre o
adultério do marido, devido às suas atitudes perante a Igreja:

[...] Por último cayó en la cuenta de que el esposo no comulgó el jueves de


Corpus Christi, ni tampoco en ningún domingo de las últimas semanas, y no
encontró tiempo para los retiros espirituales de aquel año. Cuando ella le
preguntó a qué se debían esos cambios insólitos en su salud espiritual, recibió
una respuesta ofuscada. (MÁRQUEZ, 1985, p. 344)

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Outro ponto interessante quanto à adaptação é que o filme soube manter a ordem
cronológica presente no romance, obedecendo o tempo e o modo como os fatos foram
narrados. Inicia do “fim”, com a morte do marido de Fermina, Juvenal Urbino, e o
reapareciamento de Florentino Ariza em sua vida. Depois, faz um flashback para relatar
como iniciou o encontro dos protagonistas e tudo o que se passou com eles até voltar
para essa mesma cena e, assim, finalizar a história.
Não se pode esquecer também do tema que leva o título da obra na literatura e
no cinema: o cólera. Foi uma doença que marcou o período onde a história se passa, em
Cartagena, Colômbia, no final do século XIX e início do século XX, e estava fortemente
ligada ao contexto social dos persongens. Foi motivo de muitas mortes e um dos fatores
que refletiu na vida dos personagens, provocando mudanças, encontros e desencontros
dos protagonistas durante a trama. Um tema interessante que necessita de um
aprofundamento maior num estudo posterior.
Um aspecto interessante, de acordo com Ismail Xavier, é que o filme pode tanto
optar por:

Estar mais atento à fábula extraída de um romance, tratando de tramá-la de


outra forma, mudando, portanto, o sentido, a interpretação das experiências
focalizadas. Ou pode querer reproduzir com fidelidade a trama do livro, [...]
sem mudar a ordem dos elementos. [...] Nesse aspecto, é possível saber com
precisão o que manteve, o que se modificou, bem como o que se suprimiu ou
acrescentou. Mas dificilmente haverá consenso quanto ao sentido de tais
permanências e transformações, pois elas deverão ser avaliadas em conexão
com outras dimensões do filme que envolve elementos que se sobrepõem ao
eixo da trama, como os de estilo que se engajam os traços específicos ao
meio (XAVIER, 2003, p. 67).

A motivação para o estudo da obra literária El amor en los tiempos del cólera
(1985) se deve a que a adaptação de um texto ao cinema normalmente apresenta visões
muito pessoais do diretor, linguagem diferente, influência das tecnologias, o que passa a
um leigo como distorsão de sentido ou “infidelidade à obra de partida”, de modo que
nosso objetivo é verificar até que ponto há submissão ao texto original e como se notam
as interpretações livres do diretor e do roteirista ao traduzir a história de amor de
Florentino Ariza e Fermina Daza.

Considerações finais

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A adaptação não é uma simples versão interlinguística é, além disso, um recurso


para ser utilizado com uma determinada função, seja para adequar o texto base para
outro meio; seja quando o destino dessa adaptação é um público adolescente ou adulto
que o texto precisa de reflexões a referências sexuais, sociais, políticas. Até mesmo
porque possui palavras de difícil compreensão ou porque as características culturais do
público alvo são tão diferentes que necessita uma modificação do conteúdo do texto
para que ele se adapte melhor à realidade na qual será utilizado.
A relevância desse estudo é que este tipo de tradução não está relacionado à
preocupação de perceber ou avaliar se o filme está sendo ou não fiel à obra literária,
mas a questão de que cada uma dessas semioses tem suas características específicas e
traços distintos necessários à construção delas. A obra literária tem seus próprios
recursos que lhe são únicos, assim como o cinema.
O amor pelo qual move toda a história e ação dos personagens esteve presente,
assim como na obra literária, no filme. Este, de acordo com as suas especificidades,
procurou levar para a telona os principais pontos abordados pelo romance escrito, bem
como apresentou outras características e aspectos que lhe são peculiares de maneira
bastante concisa, não fugindo por completo ao que a obra literária propôs.
Há ainda muito mais por pesquisar e refletir, principalmente com relação ao
contexto social e cultural da época, aos valores e costumes presentes na obra e o tema
do cólera, pois são esses aspectos que caracteriza todo o enredo da obra e reflete nas
atitudes/ações dos personagens. Temas que serão frutos de um estudo mais profundo
posteriormente.

REFERÊNCIAS
BRITO, João Batista de. Literatura no cinema. São Paulo, Ed. Unimarco, 2006.
JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo, Ed. Cultrix, 1973.
MÁRQUEZ, Gabriel García. El amor en los tiempos del cólera. Barcelona, Editora
Debolsillo, 1985.
______. O amor nos tempos do cólera. Mike Newell. Fox Films, EUA, 2007.
XAVIER, Ismael. In: ______. Literatura, cinema e televisão: Do texto ao filme: a
trama, a cena e a construção do olhar do cinema. São Paulo, Ed. Senac São Paulo–
Instituto Itaú Cultural, 2003.

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A RESIGNIFICAÇÃO DA LEITURA E DA ARTE PARA CRIANÇAS


TEMPORARIAMENTE AFASTADAS DA ESCOLA

Larissa Rogério Bezerra1


Letícia Adriana Pires Teixeira2

INTRODUÇÃO
A educação é primordial na vida de qualquer indivíduo. Sem ela, o homem seria apenas
mais um alienado social, sujeito a toda e qualquer submissão ideológica ou física. Segundo
muitos pedagogos, não existe maneira melhor de se educar do que através a leitura. A prática da
leitura sempre esteve presente na nossa vida, desde o momento em que começamos a “perceber
e compreender” o mundo a nossa volta. São muitas as razões para a leitura ser considerada umas
das principais atividades de comunicação com o mundo. Cada leitor tem a sua maneira de
perceber e de atribuir significado ao que lê. Essa particularização da leitura é que estimula, por
meio de um processo artístico, emoções e vivências diferentes no leitor permitindo-lhe o
conhecimento de si mesmo, o reconhecimento do outro e a descoberta do mundo. A
comunicação só é possível quando se tem o conhecimento e a necessidades de trocar
informações. Partindo dessa premissa, podemos concluir que a leitura se torna indispensável na
vida de todos os indivíduos.
Como referencial teórico, a pesquisa partiu dos estudos realizados no âmbito da teoria
lingüística e educacional, por autores como: Koch (2003) que determina o aspecto de atividade
atribuído à linguagem como sendo uma atividade geral, inerente a todo ser humano; Ângela
Kleiman (2001), que focaliza, em seus trabalhos, a leitura como um processo psicológico em
que o leitor utiliza diversas estratégias, baseadas no seu conhecimento lingüístico, sociocultural
e enciclopédico, para construir um significado; e, finalmente, Paulo Freire (1986) com alguns
conceitos e teorias a respeito da importância social da leitura;
Esses autores teorizaram sobre a importância e a relevância de um incentivo à leitura na
nossa sociedade. Apontaram que o texto é criado à medida que é lido, e que ele não passa de um
retalho de significados que juntos podem transmitir uma mensagem. Mostraram também a
necessidade veemente de um método que facilite o acesso à leitura através de uma linguagem
mais facilitada e uma motivação diferenciada.
Outra fonte de pesquisa e inspiração veio a partir da leitura do livro “O que é Arte?”,
escrito por Leon Tolstoi (2002). Segundo o autor, a atividade da arte é baseada no fato de que o

1
FIC.
2
Doutoranda UFC.

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homem, através dos sentidos (audição, visão, tato, paladar, olfato), é capaz de experimentar os
mesmos sentimentos daquele que os expressa, ou seja, ela é considerada, no mínimo, um forte
instrumento de comunicação entre os indivíduos.
Por fim, na tentativa de se compreender como essa arte poderia ser transformada, ou até
mesmo direcionada, na busca por um incentivo à leitura e à educação junto às crianças,
buscamos apoio nas teorias de lingüística, comunicação e arte-educação, para fundamentar os
argumentos aqui utilizados e tentar confirmar a hipótese anteriormente formulada.
Todos esses estudos confirmaram a importância da leitura que já havíamos citado no
começo do projeto. Segundo Paulo Freire, 1986, p. 73 e 74, ler é um processo no qual a ação
leitora se confunde com o fato de se estar no mundo, biologicamente e socialmente, falando. Ou
seja, o ato de ler é um processo de relacionamento com a realidade em que estamos inseridos,
sendo assim imprescindível o aprendizado e a motivação para que o indivíduo adquira a
“inteligência de mundo” e assim possa desenvolver seus valores e princípios.
Tomando esse conceito como realidade presente no nosso dia a dia, podemos dizer que
a arte é um instrumento importante na construção de uma “inteligência de mundo”,
principalmente para as crianças, que ainda estão desenvolvendo sua capacidade de refletir sobre
a realidade. A visão de mundo de uma criança e o meio social em que está inserida pode
desenvolver, com a ajuda da arte, um maior interesse no seu relacionamento com a educação e a
leitura.

OBJETIVOS
Os objetivos principais dessa pesquisa é observar e analisar o perfil leitor das Crianças
hospedadas na Casa do Menino Jesus e a partir disso avaliar se a arte pode ou não servir de
incentivo a leitura.

METODOLOGIA
Na primeira etapa da pesquisa, podemos dizer que o método científico empregado foi a
teoria da investigação. Nesse estudo foi utilizado, como método de abordagem, o hipotético-
dedutivo em “que se inicia pela percepção de uma lacuna nos conhecimentos acerca da qual
formula hipóteses e, pelo processo de inferência dedutiva, testa a predição da ocorrência de
fenômenos abrangidos pela hipótese” (LAKATOS; MARCONI, 2000, p. 106).
Escolhemos, então, a pesquisa aplicada, pois se caracteriza “por seu interesse prático,
isto é, que os resultados sejam aplicados ou utilizados, imediatamente, na solução de problemas
que ocorrem na realidade.” (LAKATOS; MARCONI, 2000, p. 19). Além dessa classificação,
podemos também dizer que o nosso estudo foi descritivo, delineando o que é; descrevendo,

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registrando, analisando e interpretando os processos inerentes à motivação da leitura. Foi


utilizada também uma pequena amostragem, abordada na Casa do Menino Jesus. A amostragem
só ocorre, segundo Lakatos, Marconi, 2002, p. 108, quando “a pesquisa não é censitária, isto é,
não abrange a totalidade dos componentes do universo, surgindo a necessidade de investigar
apenas uma parte dessa população”. Todas as crianças e jovens presentes no momento da
observação, análise a aplicação das atividades da pesquisa, participaram de forma ativa e de
livre e espontânea vontade. Buscamos desenvolver um tipo de amostragem aleatória simples em
que os sujeitos não se sentissem, em momento algum, constrangidos, nem obrigados a participar
do experimento. (LAKATOS; MARCONI, 2000, p. 47).
O desenvolvimento do estudo se deu da seguinte forma: primeiramente, visitamos a
instituição semanalmente para observar o comportamento e o relacionamento das crianças e
jovens com a leitura. Todas as observações foram anotadas e catalogadas para posterior análise.
Em seguida, começamos a interação com os sujeitos. O método de abordagem utilizado foi a
entrevista semi-estruturada, possibilitando-nos desenvolver uma análise quantitativa e
qualitativa dos posicionamentos dos sujeitos diante da leitura.
A segunda etapa se caracterizou pela aplicação de jogos, dinâmicas e atividades
artísticas como a produção de um CD de historinhas infantis interpretado pelas próprias
crianças. Esse foi um momento decisivo onde tivemos a oportunidade de testar o interesse das
crianças frente a uma atividade ligando arte e leitura.

RESULTADOS
Primeiramente, pensávamos que a realidade da Instituição impossibilitaria o
aprofundamento das análises e aplicações de atividades devido à grande rotatividade e
inconstância da presença das crianças. Além do mais, achávamos que a grande variação de
idades encontradas seria um desafio para a adaptação das atividades artísticas aos níveis de
incentivo e motivação necessários para cada faixa etária. Agora, pensamos diferente. A não
homogeneidade etária e a rotatividade ampliam o nosso universo de pesquisa, de acordo com o
mencionado na metodologia.
Foram realizadas, no primeiro momento, quatorze visitas à Casa do Menino Jesus.
Geralmente, elas ocorriam toda quinta-feira no período de 13h00min as 17h00min, contando
com o tempo em que as voluntárias se reuniam para preparar o material das ‘aulas’.
Participaram das atividades realizadas com arte, em média, doze crianças em dias e situações
diferentes.
Das doze crianças participantes, dez foram entrevistadas, nas cinco primeiras visitas.
Três delas disseram que gostavam de ler, principalmente revistinha e livros que tivessem

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figuras. E dos dez, um número significativo, sete crianças, afirmaram não gostar de ler,
enfatizando a preferência pela brincadeira: “Prefiro brincar!”, afirmaram.
Esses dados tornam evidente um problema que o nosso sistema de ensino, melhor
dizendo, a nossa sociedade em geral enfrenta diante da desmotivação leitora dos indivíduos.
Desde a infância, a criança é induzida a acreditar que a leitura é uma obrigação escolar e não
uma atividade prazerosa que estimula a imaginação e a criatividade tanto quanto qualquer
brincadeira. De acordo com Kleiman, 1998, p. 16, a atividade árida e tortuosa de decifração de
palavras que é chamada de leitura, em sala de aula, não tem nada a ver com a atividade
prazerosa descrita e proposta por muitos pedagogos e estudiosos, e que, de fato, não é leitura,
por mais que esteja legitimada pela tradição escolar. A tarefa de ler, para a maioria das crianças,
é difícil demais, justamente porque para elas, os textos não possuem nenhum sentido, a não ser
o de uma soma de palavras. Após o primeiro impacto, observamos que seria necessário uma
resignificação da leitura para os sujeitos da pesquisa.
A partir da quinta visita, começamos a criar situações que os colocassem em contato
direto com a leitura para atingir o objetivo principal de qualquer brincadeira desejada, por
exemplo, quando alguma criança queria jogar um jogo de tabuleiro nós a estimulávamos a ler as
instruções para que a partir da interpretação do que estava escrito nós pudéssemos compreender
como se jogar. Além disso, realizamos atividades teatrais (interpretar uma historinha lida),
atividades musicais (fazendo paródias com o assunto que eles mais gostavam de ler), oficinas de
desenhos (trabalhando a imaginação através da criação dos personagens das historias) e a
contação de histórias através de um CD de historinhas infantis, intitulado “Conte um Conto”,
criado e produzido pelos alunos da FIC, coordenados pela aluna bolsista Larissa Bezerra e
supervisionados pelas Professoras Letícia Adriana e Rosane Nunes. Esses tipos de atividades
demonstraram, com o passar do tempo, a importância da leitura em todas as atividades que elas
realizavam no dia a dia. Desde pedir uma informação na rua, até ler uma bula de remédio. À
medida que entendiam a importância da leitura, nas relações sociais e interacionais que elas
mantinham com os outros, passaram a enxergar esse processo construtivo com outros olhos.
Na última entrevista, realizada na 14ª visita, fizemos uma avaliação do desempenho das
atividades motivadoras - através de entrevistas semi-estruturadas e anotações em protocolos - e
constatamos que duas crianças mudaram de opinião e passaram a totalizar cinco sujeitos que
diziam gostar de ler. As outras cinco permaneceram com a idéia de que ler não passa de um
‘dever chato’. Aparentemente esses dados podem parecer pouco expressivos, mas quando
pensamos em percentuais, sabemos que o universo de cinqüenta por cento de pessoas dizendo
que gostam de ler é significativo no contexto brasileiro.

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Após traçar o perfil leitor de algumas crianças da Casa do Menino Jesus, aplicamos o
passo seguinte do projeto, a produção de um segundo CD de historinhas infantis feito pelas
próprias crianças, intitulado “Conte um Conto II”. Continuamos com as visitas semanais as
quintas e começamos a desenvolver e estimular a criação de desenhos e histórias para compor o
novo CD. A idéia era que, por ser uma atividade artística diferente, eles teriam que criar
histórias novas, ir ao estúdio gravar as narrações, ouvir suas vozes gravadas num CD,
representar vários personagens, e isso de alguma forma iria estimulá-los a lerem para buscar
inspiração. Encontramos uma biblioteca muito diversificada na Casa do Menino Jesus, que ia de
livros clássicos infantis à revistinhas de quadrinhos atuais.
Na época das gravações foram convidadas sete crianças para irem até o estúdio e
representassem duas historinhas escolhidas por elas. Apenas três puderam, as outras não
compareceram devido à impossibilidades médicas. Essas três crianças escolheram duas histórias
clássicas ‘A Bela Adormecida’ e ‘Rapunzel’ para representar. Elas se empenharam ao máximo
para ler as historinhas, decorar as falas e ensaiar os personagens. Para compreender os
personagens elas tinham que ler o livro todo e decorar apenas as suas falas, porém os ensaios
eram tão empolgantes que elas acabavam decorando toda a história. Diante disso, observamos
que elas começaram a encarar a leitura de uma forma mais divertida e lúdica, amenizando até os
sintomas emocionais da doença. Elas conseguiam entrar na história e se sentir como os
personagens esquecendo, mesmo que por momentos, as “dores” físicas.
Uma delas chegou a relatar a seguinte frase: “Tia, eu me sinto tão bem. Me sinto igual a
qualquer outra criança”. Essa frase ficou marcada de uma maneira especial por que mostra o
quanto ainda existe a exclusão social dessas crianças e como um projeto como esse pode fazer a
diferença na vida de um pequeno indivíduo em fase de desenvolvimento social.
De uma forma descontraída, esse trabalho conseguiu modificar a visão de leitura dessas três e
mostrar como a leitura é importante e necessária no dia a dia delas. Essas crianças estavam entre
as cinco primeiras que diziam não gostar de ler e mudaram de opinião. Elas foram
acompanhadas durante cerca de oito meses pela pesquisadora e, levando em consideração as
dificuldades de permanência dos pequenos hospedes da Casa do Menino Jesus, consideramos
que foi uma vitória conseguir resignificar a leitura na vida dessas crianças.

CONCLUSÃO
As conclusões que chegamos é que os informantes, participantes como sujeitos deste
projeto, evidenciaram que ler é uma atividade importante não só para a aquisição de
conhecimento, mas para o desenvolvimento do ser humano como indivíduo construtor das suas
relações com as outras pessoas e com o mundo.

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Os resultados obtidos são bastante satisfatórios, apesar dos imprevistos e das dificuldades.
Tentamos mostrar, através de dados concretos, que a arte pode sim ser um instrumento de
incentivo a leitura, desde que tenha como principal objetivo resignificar e reforçar sua
importância, mostrando que ela é um instrumento indispensável de informação e estímulo à
criatividade e a imaginação.

REFERÊNCIAS
KLEIMAN, Ângela. Oficina de Leitura: teoria e prática. 6. ed. Campinas, São Paulo: Pontes
Editora da Unicamp, 1998.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 7. ed. São Paulo:
Contexto, 2003.
LAKATOS, Eva Maria, MARCONI, Maria de Andrade. Metodologia Científica. 3. ed. São
Paulo: Atlas, 2000.
TOLSTOI, Leon. O que é Arte? Tradução: Bete Torii. São Paulo: Ediouro,2002. (Clássicos
Ilustrados).

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O DESMORONAMENTO DA LITERATURA

Mara Rúbia Freire Jucá1


Cid Ottoni Bylaardt (Orientador)2

Com a globalização, percebe-se uma mudança de valores com relação à


Literatura de uma maneira geral. Leyla Perrone-Moisés, em seu livro Altas literaturas,
trata de questões concernentes à pós-modernidade. Uma dessas questões é “a literatura
na era da globalização”. A autora fala sobre como a cultura de massa está se
sobressaindo à literatura canônica, numa relação de disputa entre cultura e descultura.
Segundo ela, “A luta não se trava mais entre concepções diferentes da cultura, entre a
cultura e a contracultura, alta cultura e cultura de massa, mas entre a cultura e a
descultura pura e simples”. (Perrone-Moisés, 1998, p. 203).
Está ocorrendo uma mudança de valores. A cada dia a indústria cultural vem
ganhando espaço, propiciando uma destruição do poder de criação sem interesse
mercadológico, diminuindo o poder de expressão da língua, do senso crítico, da
imaginação. A literatura canônica vem sendo abandonada pelos escritores e leitores
causando uma estagnação e um conformismo. Segundo Perrone, “Os valores literários e
a própria literatura, como valor, estão passando certamente por uma fase mais difícil do
que aquela em que a rejeição burguesa ocasionou a assunção, pelos poetas modernos, de
um projeto altivo, desafiador e potencialmente suicida”. (Perrone-Moisés, 1998, p. 207).
Nessa perspectiva, ao analisarmos o conto “Anão de jardim”, último conto do
livro A noite escura e mais eu, de Lygia Fagundes Telles, percebemos que a autora
parece tratar dessa questão do desamparo da literatura, em meio à ascensão da cultura
de massa. Desse modo, tentaremos mostrar alguns pontos de contato entre o conto e os
pontos de vista de alguns teóricos que tratam dessa temática.
Logo no início do conto, o anão de jardim, que representará para nós a literatura,
chama a atenção para a data na qual ele foi modelado: “A data na qual fui modelado
está (ou não) gravada na sola da minha bota mas esse detalhe não interessa, parece que
os anões já nascem velhos e isso deve vigorar para os anões de jardim, sou um anão de
jardim”. (Telles, 1998, p. 145). Quando ele diz que isso não é importante é porque,

1
Graduanda do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
2
Prof. Dr. da Universidade Federal do Ceará.

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realmente, a literatura não necessita de datas certas, nem de modelos a serem seguidos,
pois ela sobrevive ao tempo. A cada leitura ela se renova, independente de ter início,
meio e fim. Ela é infinita, atemporal.
Em seguida, o anão fala sobre as semelhanças e as divergências entre ele e os
outros anões que são alegres: “Sou feio mas sou de pedra e do tamanho de um anão de
verdade com aquela roupeta meio idiota das ilustrações das histórias tradicionais, a
carapuça. (...) A diferença é que os anões decorativos são risonhos e eu sou um anão
sério”. (Telles, 1998, p. 145). A literatura convive, faz algum tempo, com uma cultura
de massa voltada para o entretenimento do leitor. E a literatura é “séria”, questionadora,
instigante. Essa literatura séria, tomando como base os pensamentos do anão, trata do
humano, das inquietações e dos medos do homem. No conto, o anão consegue ver a
vida além do seu tempo, fazendo indagações sobre o futuro. Ele consegue enxergar o
que há de mais profundo, íntimo no homem: a personalidade:

Quais desses pequeninos modelados pela vulgaridade dos pais vão chegar à
plenitude de seres honestos? Verdadeiros? Não quero ser um anão puritano,
afinal, não estou pedindo heróis, não estou pedindo santos mas dentre esses
machos e fêmeas, quais deles serão ao menos limpos? (Telles, 1998, p. 146).

Essa passagem do texto nos chama atenção, também, para um elemento muito
importante para que a literatura continue existindo, assim também, como para a sua
destruição: o leitor. O leitor da cultura de massa tem uma “queda” por uma linguagem
que seja mais fácil, por uma linguagem que não necessite de muito esforço para ser
compreendida. E a literatura “séria” chama o leitor para pensar sobre a realidade através
de uma linguagem mais elaborada, trabalhada: “Tirante o Professor (bom e bobo) pude
ver (por dentro) a sedutora Hortênsia que desde o começo desconfiou de mim, Não
parece um anão filosofante? Prefiro os inocentes, ela disse”. (Telles, 1998, p. 146).
No conto, Hortênsia troca o professor pelo jovem corretor de imóveis. Parece
representar o leitor que, nessa batalha cultural, troca o velho pelo novo, contribuindo
com o desmoronamento da literatura canônica, tornando-se cúmplice daqueles que
fazem da cultura, da literatura, algo vendável: “Depois de tão longa temporada com um
músico velho, só um corretor tão jovem quanto voraz, foram cúmplices no crime.”
(Telles, 1998, p. 149).

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Há algum tempo, a discussão entre a literatura canônica e a cultura de massa faz


com que alguns teóricos reavaliem como o sistema literário se apresenta. Paul Valéry,
em Variedades, através do seu texto intitulado “Primeira aula do curso de poética”, trata
do trabalho com o cânone e com o que está à margem. Segundo o autor, o fazer-poético
toma algumas palavras emprestadas da economia, como produção e valor. Para ele, a
produção literária ganha status de obra do espírito através de duas condições que podem
ser consideradas independentes:

(...) uma é necessariamente a própria produção da obra; a outra, a produção


de um certo valor da obra por aqueles que a conheceram, experimentaram a
obra produzida, que lhe impuseram a fama e garantiram a transmissão, a
conservação, a vida posterior. (Valéry, 1999, p. 181).

Nesse sentido, parece haver uma defasagem da literatura causada pela invasão
dessa cultura de massa, já que o leitor (consumidor) prefere essa leitura mais fácil,
menos filosofante. A partir daí, surge uma problemática que envolve o conceito de
literatura. Se tomarmos o pensamento de Valéry como base, teremos que, já que o leitor
é responsável por valorizar uma obra por intermédio da leitura e, se o leitor atual prefere
a literatura que é considerada como estando à margem do que é canônico, temos que a
literatura não tem um conceito fixo, sendo, assim, um processo dinâmico. É nesse
processo que parece estar havendo uma perda de valores no julgamento do leitor. Por
isso, ele ser tão importante nessa querela sobre o que é ou não é literatura. No conto,
Lygia parece sugerir, através da descrição do anão em processo de degradação, essa
destruição de valores:

Fui feito de uma pedra bastante resistente mas há um limite, meu nariz está
carcomido e carcomidas as pontas destes dedos que seguram o meu pequeno
cachimbo. E me pergunto agora, se eu fosse um anão de carne e osso não
estaria (nesta altura) com estas mesmas gretas? (Telles, 1998, p. 147).

Nessa última parte do trecho anterior, o anão faz uma indagação muito
importante, pois se a literatura está em defasagem, o homem também está? O homem
enquanto ser social também se encontra exposto aos fenômenos do mundo, e a literatura
parece ser um reflexo disso. Perrone, sobre esse ponto, a literatura como função, faz um
comentário sobre a representação social da literatura, falando, também, dessa mudança
de valores que vem acontecendo: “Atualmente, a literatura parece contentar-se com

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espelhar uma realidade fragmentada, desprovida de valores e, portanto, de utopia”.


(Perrone-Moisés, 1998, p. 206).
No conto, quando o anão fala: “Mas tudo já acabou, as pessoas, os bichos,
desapareceram todos. Fiquei só dentro de um caramanchão em meio a um jardim
abandonado.” (Telles, 1998, p. 147), leva-nos à reflexão de que a literatura está sendo
abandonada. Os livros considerados canônicos estão deixando de ser lidos, estão sendo
trocados por livros de descontração, de relaxamento, de autoajuda. Estão sendo
desprezados nas estantes, tendo como companhia somente a poeira.
Mas o anão não se deixa abater pelo momento que está vivendo. Ele diz que a
criação, “o invento”, ainda pulsam dentro dele. Ele sabe disso, mas não consegue se
impor porque ele está fincado no lugar onde o depositaram e o esqueceram. É como se a
autora do conto em estudo quisesse mostrar que a literatura não está totalmente
destruída ela ainda existe e sobrevive. Apesar da renúncia do público leitor, ela ainda
tem o poder de inventar: “Invento (de vez em quando) o que é sempre melhor do que o
nada que nem chega a ser nada porque meu coração pulsante diz EU SOU EU SOU EU
SOU.” (Telles, 1998, p. 150).
Ao falar desse poder de invenção, o anão nos remete ao escritor. A figura do
professor, que possuía “o halo luminoso”, o poder da criação, parece representar o
escritor e a casa (que também tinha “o halo luminoso”) parece ser a inspiração. Mas
essa luz foi se apagando assim como a da casa demolida, restando apenas névoa:

Pela porta (porta?) deste caramanchão em ruínas vejo a casa que está sendo
demolida, resta pouco dessa antiga casa. Quando ainda estava inteira havia
em torno uma espécie de auréola, não eram as pessoas mas era a casa que
tinha essa auréola mais intensa nas tardes de céu azul.(...) Esse suave halo
também surpreendi (às vezes) em redor da cabeça do Professor mas isso foi
nos primeiros tempos, quando ele ainda tinha forças para vir compor no seu
violoncelo, ele compunha aqui ao meu lado. (Telles, 1998, p. 148).

A partir desse trecho poderíamos dizer que o escritor moderno foi desaparecendo
juntamente com a literatura. Aquele que tinha o sonho de transformar o mundo através
da linguagem foi ficando triste, sem desejo para criar. Desde o momento em que essa
cultura de massa surgiu com suas facilidades orais, desde que o leitor deixou de se
interessar, de se importar pelo que estava velho, um sonho foi interrompido: “O
Professor tocava seu violoncelo e sonhava até que interrompeu (ou continuou?) o sonho
debaixo da terra”. (Telles, 1998, p. 148). Valéry nos fala da importância da manutenção

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dessa força criadora, embora esse poder seja tomado apenas como “ato de produção ou
de consumo”, pois:

O timbre do violoncelo, sozinho, exerce em muitas pessoas um verdadeiro


domínio visceral. Há palavras cuja freqüência em um autor revela-nos
estarem dotadas de ressonância de uma qualidade completamente diferente
nele e, em conseqüência, de uma força positivamente criadora, que
normalmente não possuem. (Valéry, 1999, p. 190).

Dessa forma, podemos dizer que o escritor procura expressar os seus


pensamentos através da literatura. Ela é ouvinte dos seus desabafos, das suas histórias,
das suas composições, presenciando os seus momentos de criação, que podem durar
muito ou pouco tempo. É Kobold, o anão, que parece representar o papel da literatura,
como podemos perceber nesse fragmento:

Esse anão tem um furinho lá dentro do ouvido como as imagens dos deuses
chineses para ouvir melhor as preces. Não vai ouvir preces mas o meu
violoncelo, ele avisou ao me instalar no chão arenoso do caramanchão, entre
os tufos de samambaia. (Telles, 1998, p. 154).

A partir daí, apesar de ser uma pedra, percebemos que o anão parece ter uma
alma que seria, talvez, o lugar onde são guardadas memórias que o fazem ter esperança
de se perpetuar em outro corpo. Podemos considerar esse sentimento como sendo a
literatura que permanece com o passar do tempo, através da memória. E isso a faz altiva
por saber que será imortal:

É com arrogância que agora espero a morte? Não tenho medo, não tenho o
menor medo e essa é outra diferença entre o anão de pedra e o homem, a
carne é que sofre o temor e tremor mas meu corpo é insensível, sensível é
esta habitante que se chama alma. (...) Falei em alma, seria ela um simples
feixe de memórias? (...) Não sei, sei apenas que esta alma vai continuar não
mais neste corpo rachado mas em algum outro corpo que Deus vai me
destinar. Ele sabe. (Telles, 1998, p. 152).

Porém, essa imortalidade se configura como incerta quanto à forma de


apresentação ou de permanência, já que podemos considerar que esse corpo rachado
representa a divisão que está ocorrendo nas manifestações artísticas em literatura
canônica e cultura de massa. O que percebemos como resultado da querela que envolve
essa temática é a busca do entre, ou seja, a busca do entre-lugar da literatura. Esse
processo de revitalização mútua entre teoria e arte, no âmbito dos estudos literários,

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busca a relativização dos valores, sem vínculo com entidades supremas. Maria Eneida
de Souza, em seu texto “O não-lugar da literatura”, defende que a posição elitista de
muitos críticos, quanto à diferenciação entre a alta e a baixa literatura, corre sempre o
risco de realizar uma classificação equivocada. Ela diz que, segundo Piglia, “as ficções
atuais situam-se além das fronteiras, nessa terra de ninguém (sem propriedades e sem
pátria) que é o lugar mesmo da literatura, mas que, ao mesmo tempo, localizam-se com
precisão em um espaço claramente definido”. (Souza, 1999, p. 113). No entanto,
verifica-se que, provavelmente, a autora do conto, através das súplicas do anão, queira
expressar o desejo de que a literatura se eternize, permaneça, assim, como o escorpião o
qual os deuses inscreveram no Zodíaco, apesar de ser tão odiado:

Um ser odiado odiado odiado e que resiste porque os deuses o inscreveram


no Zodíaco, lá está o signo do Escorpião o Scorpio e se Deus me der essa
mínima forma eu aceito, quero a ilusão de esperança, quero a ilusão do sonho
em qualquer tempo espaço e o demolidor jovem está aqui junto de mim.
(Telles, 1998, p. 157- 158).

Dessa forma, podemos dizer que, numa leitura superficial do conto, o leitor pode
não assimilar o provável tema o qual pretensamente procuramos trabalhar. Um leitor
desavisado pode perceber apenas uma história comum de um homem que é assassinado
pela mulher com o intuito de ficar com a herança do mesmo, desejando usufrui-la com o
jovem amante. Mas, após todas as considerações acerca do tema trabalhado, poderíamos
comprovar, assim, que o conto retrata bem as características que a autora propõe
resgatar, como a linguagem rica de significados e bem trabalhada. A transgressão da
linguagem, que a autora faz tão bem, dando a um ser inanimado o foco narrativo,
sugerindo, através de tão bem feitas alegorias, essa problemática que vem ocasionando
o abandono da literatura canônica trocada pela a da cultura de massa. É como se fosse
um chamamento, alertando o leitor para ir de encontro à literatura, com o intuito de
eternizá-la na memória dos mesmos. E o escritor parece ser o meio de alcançar esse
objetivo. Portanto, é necessário que ele reaja, pois a literatura ainda vive dentro dos
corações daqueles que tem a vocação para exercer o domínio da linguagem.

REFERÊNCIAS
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Modernidade em ruínas. In: ______. Altas literaturas. SP:
Companhia das Letras, 1998.

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SOUZA, Maria Eneida de. O não-lugar da literatura. In: ______. Leituras do ciclo.
Andrade, Ana Luiza (org.). SC: Ed. Grifos, 1999.
TELLES, Lygia Fagundes. A noite escura e mais eu. 4. ed. – Rio de Janeiro: Rocco,
1998.
VALÉRY, Paul. Primeira aula do curso de poética. In: Variedades. São Paulo:
Iluminuras, 1999.

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CIÊNCIA E COMPORTAMENTO NO CONTO “O ALIENISTA” DE


MACHADO DE ASSIS

Maria da Paz de Freitas e Sousa1

I - A prosa realista
O romance brasileiro do século XIX se deparou com a sociedade em fases de
transições políticas, sociais e econômicas (libertação dos escravos, lutas republicanas,
cafeicultura no momento auge de produção). E para descrever a realidade com seus
comportamentos de valores e moralidade ao meio. A literatura realista brasileira recria
uma leitura cientifica baseada nos moldes vigentes da época (positivismo,
determinismo, socialismo e psicologia). E com isso, sugeri uma critica efêmera ao
homem.
A escrita realista do século XIX toma como procedimento de composição
verbal, o advento das ciências positivistas em todo o mundo e sua propagação como
meio de explicar a relação do homem no seu fazer, pensar e agir.
Para o estudioso Alfredo Bosi “O escrito realista tomara a sério as suas
personagens e se sentirá no dever de descobrir-lhes a verdade, no sentido positivista de
dissecar os moveis de seu comportamento”. (2004, P.169.)
Com isto, a literatura brasileira com a prosa de ficção realista desenha
verbalmente a critica aos “bons costumes” do homem pós-romântico, e principalmente
as instituições sociais. O ensaio critico na obra “o alienista” (1881) de Machado de
Assis mostra de modo científico, comportamental e irônico como o homem é
conceituado na sociedade realista.
Para Móisses :

na prosa de ficção realista o escrito e a literatura se revestem. “o realismo


exterior, que defendia o aproveitamento das conquistas da ciência, de molde
a buscar o máximo de objetividade na fotogração da realidade concreta, e a
transforma a obra de arte em arma de combate das instituições julgadas
decadentes e incapazes de atender reclames dos novos tempos (2004,p.248).

II – Quem é O alienista?

1
Graduada em Letras – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.

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A obra machadiana desenha verbalmente o alienista como sendo o maior médico


da vila de Itaguaí, Dr. Simão Bacamarte. Representante da nobreza de Portugal e
também de um brio maior o cientificismo, em que tinha fascínio e interesse por leituras
psíquicas relacionadas ao comportamento do outrem.
O interessante da ironia machadiana em que o nome bacamarte “significa arma
de fogo de cano curto, alargado na boca”. Com essa descrição se percebe que o autor
conceitua o personagem de modo a provocar medo, ou melhor, supremacia. Pois, é isto
o que acontece, bacamarte funda a casa de orantes na contemplação exclusiva de estuda
“o recanto psíquico, o exame da patologia cerebral” (O alienista, 1997, p. 01).
Para Cunha:

O próprio nome atribuído ao personagem revela a proverbial ironia de


Machado: bacamarte, arma de fogo, comporta a dimensão da violência
contida em um saber onipotente que se pretende capaz de informar a razão e
a conduta humanas, de findo -lhes um campo uniforme de normas e critérios
( 2005, p.30).

Simão Bacamarte significa o investigador do comportamento realista a procurar


no intimo dos indivíduos suas franquezas, valores morais e crises. ”O realismo interior,
que preconizava como realidade objetiva não aparência, mas a essência dos seres e das
coisas; de onde procurasse vasculhar a psicologia intima dos personagens, e anunciasse
alguns caminhos percorridos pela introspecção moderna”. (Móisses, 2004, p.248).

III - A ciência
Dona Evarista, Falcão, Sr.Soares, O Boticário, Crispim Soares, Padre Lopes,
Mateus, Costa e outros são tecidos apartir de uma visão determinista e dominadora pelo
doutor de Itaguaí. “Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da
Ciência”. ( O alienista,1997,p.07).
Nesse sentido, vemos o enredo do conto “O alienista” recriado o discurso da
concepção determinista, em que a população de Itaguaí não tem direito a escolha, pois
esses personagens são produtos do meio, ou seja, da ciência e do poder do
Dr.Bacamarte. Percebemos que os personagens são frutos desse alienismo. Isso porque,
estes são destituídos de liberdade total de decidir e influir nos acontecimentos em que
tomam parte, ou seja, a liberdade destes é condicionada a natureza do evento ou meio.
Para Gomes:

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A tensão fundamental do texto está noutro lugar: O poder da ciência que a


retórica cientifica pretende mascara”. Machado esta, além do século, não
apenas por questionar. “A concepção racionalista é positivista das ciências,
mas por questionar o poder de todo e qualquer saber que pretendia
apresentar-se como rigorosamente objetivo e com pretensões universais
(1994, p.153).

Itaguaí é um universo fechado ao mundo só a ciência patológica de Simão


Bacamarte tem o dom de conhecer, saber e diagnosticar as mazelas psíquicas que
adoece alma e a saúde da população. Pois, para o nosso médico “a ciência tem o dom
de curar todas as mágoas.” (O alienista, 1997, p.01).
O alienista na escrita machadiana é o positivismo nos moldes de uma concepção
racional. Surgi para a explicação do homem e o conhecimento. Mais também é
interessante ver que o autor realista ao descrever verbalmente um sábio como
personagem principal do enredo científico na vigência e ascensão das teorias, acaba
criando paradoxos. Razão X sentimento, Deus X ciências, senso comum X medicina.
Essas relações dicotômicas no conto comprovam que Machado de Assis esta “ciente do
papel cientifico” mesmo assim denúncia que a ciência e seus métodos de observações e
experimentos não são suficientes para explicar o homem e o meio de maneira rigorosa
e universal. Quando usamos o termo ironia no inicio do ensaio queríamos mostrar não
o alienista, mas Machado. Isso por que, o autor se reveste de leituras e coloca na voz do
alienista um discurso alegórico contra as ciências modernas e seu poder
comportamental na sociedade.
As disparidades no alienista:
-Razão X sentimento
“O passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão
Bacamarte estudava por todos os lados, certa ideia arrojada e nova própria a alargar as
bases da psicologia”. (idem, p.07)
-Deus X ciências
“A casa verde – disse ela ao vigário – é agora uma espécie de mundo em há o governo
temporal e o governo espiritual.” (idem, p.05).
“Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência”. (idem, p.07)

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“A ciência contentou-se em estender à mão a teologia-com tal segurança, que a teologia


não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí é o universo ficava a beira da
revolução”. (Idem, p.09).
-Senso comum X medicina
“No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu
isto com grande cópia de raciocínios, de textos e exemplos.” (idem, p.09).
“Não se sabia já que quem estava são, nem que estava doido” (idem, p.15).

IV - Um caso
Um caso de Itaguaí entre tantos outros foi o do costa que foi recolhido à casa
verde sem nenhum motivo de demência. Um grande homem estimado pela sociedade
que herdara uma quantia significativa do tio. Com esse dinheiro de herança Costa deu
sucessivos empréstimos que durante 05 anos não apresentava renda financeira alguma.
“Ele foi passando da opulência à abastança, da abastança à mediana, da mediana
à pobreza, da pobreza à miséria, gradualmente. (Idem. p.10).
Por apresenta valores positivos em relação à vida e a circunstâncias, e acima de
tudo expor o “desapego” ao mundo materialista é visto como lunático na visão do
alienista. “Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas
acrescentava que a ciência era a ciência, e que não podia deixar na rua um mentecapto”.
(idem. p.10).
Bacamarte exerce uma relação de domínio sobre a sociedade de Itaguaí e
Machado defende uma posição da ciência ao meio e as causas do homem. ”O alienista
disse-lhe confidencialmente que este digno homem não estava no perfeito equilíbrio das
faculdades mentais, à vista do modo como dissipara os cabedais que...” (Idem, p.11).
Esse domínio se dar exclusivamente por um modelo de sistema que vai contra os
interesses da população. O poder maior de uma ciência anarquista.
Para cozmam:

A ciência é morada de Bacamarte: A casa verde é um corpo de imagens que


dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade (...), é imaginada como um
ser concentrado. Nos chama a uma consciência de centralidade .É como se o
protagonista entrasse na ciência para adquirir uma estabilidade diante das
vicissitudes e dos percalços do mundo externo ,e pudesse refugiar ali sua
sede de conhecimento .O centro ,para Bacamarte,é a dimensão cognitiva: A
afetividade , em grande medida ,passa a estar na periferia não ter
transcendência alguma (2004, p.09).

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V-A casa verde


A obra machadiana munida de caráter racionalista recria uma atmosfera de
dominação e reclusão ao meio. “O Principal nesta minha obra da casa verde é estudar
profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir
enfim a causa do fenômeno e o remédio universal” (O alienista, 1997, p.03).
A casa verde é o símbolo do poder ao meio na sociedade de Itaguaí. A
importância da instituição asilar se dar pelo saber cientifico psiquiátrico que entender e
definir os doentes mentais .Mas,o Dr.Bacamarte age de forma equivocada quanto aos
procedimentos coerentes na ciência psíquica.
“Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a casa verde; daí a
alegação de que não havia regra para completa sanidade mental”. (Idem, p.03).
As práticas voltadas para a casa de orantes são equivocadas quanto aos
procedimentos coerentes das ciências. Isso porque, Machado de Assis não critica a
ciência na personificação do alienista, mas os saberes impostos pelos conhecimentos
científicos como algo absolutamente metódico e rigoroso anti as relações providas da
natureza, do meio e do homem.
Cozmam cita que o alienista “manifesta uma racionalidade positivista: rende
respeito quase absoluto a ciência significa ter uma fé cega nesta última e considera que
o discurso cientifico é superior a qualquer outro saber como mito ou a filosofia
metafísica. (2004,p.04).
A casa verde é uma instituição asilar, e acima desta uma instituição social da
medicina e da saúde que tem como finalidade tratar de aprisionar, anular e transformar
comportamentos ou não.
“O pobre Mateus, apenas notou que era objeto da curiosidade ou admiração do
primeiro vulto de Itaguaí, redobrou de expressão, deu outro relevo às atitudes”... Triste!
Triste, não fez mais do que condenar-se; no dia seguinte, foi recolhida a casa verde.
(Idem, p.13).
Machado de Assis critica as ciências positivistas na caricatura comportamental
de Bacamarte, utiliza a ironia para refletir de modo questionador sob as instituições
sociais e ideológicas como; Os asilos, as igrejas e a família. A sociedade na visão do
autor realista criar uma aparência enganadora de razões, regras e convenções

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ideológicas no seu modo de viver e se comportamental em relação ao outrem na


sociedade mais tudo se revela através de uma aparência hipócrita e alienada.
Assim mencionar Bosi:

O normal seria algo de homogêneo repetido ao infinito. O normal é a forma


pura da aparência pública, a forma formada, a forma alheia a qualquer
movimento interior. O institucional sem surpresas está é a essência da razão
que se impõe como critério na cabeça do alienista (1999, p.90e91).

VI - Revolta: racionalidade e insanidade


Além do costa e Mateus que foram levados a casa verde e tantos outros da
sociedade de Itaguaí, a ilustração de Machado de Assis e seu desfecho contra a tirania
da ciência e os difíceis limites entre razão e a loucura, passa pela Revolta das Canjicas
liderada por Porfírio e João Pina. Que mostram e confirmam o poder inabalável da
ciência. A revolta que destina a derruba o anarquismo do alienista, fortalece o cada vez
mais. Isso devido a 50 homens que foram presos a casa e entre estes estava crispim
soares.O alienista é um Quixote de contradições e insensatez, assim é a sociedade do
século XIX. Conte no positivismo descreve essa ciência como apropriada ao
entendimento do mundo, homem e meio. Machado no alienista recria a concepção cega
desse olhar científico. Itaguaí encontra se submetida as leis naturais .A observação
descobre, a ciência organiza os fatos e a tecnologia dos meios explicam.
A escrita machadiana desenha retratos de tantos casos e suas insanidades
comportamentais, o próprio alienista, e ainda D. Evarista que é vista como uma
observação insânia por apresenta apego às sedas, veludos, e rendas. A ciência
diagnostica através das observações que esta é portadora de “mania suntuaria”, isso fez
com que o alienista levasse a casa verde e a trancafiasse.
Machado de Assis incorporou as leis naturais existentes nas varias categorias dos
fenômenos que Augusto Conte distinguiu; Matemático (a exatidão do meio e das
ciências para as explicações metódicas), físicos (as observações externas ao meio sobre
os corpos D. Evarista, Mateus, Costa),Químicos (as relações que encandeiam a
formação do átomo humano no circulo da sociedade),biológico (o homem
predeterminado as leis naturais ,os gêneses não foge ao meio já imposto),sociais (a
sociedade no seu comportamento e nas suas relações de fazer e agir) e a psicológica (a
ciência o único meio de curar a demência humana). Para Sousa:

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Aquilo que aparece apenas implícito na narrativa de Machado de Assis é o


mesmo que levará os frankfutianos a se perguntarem por que as promessas
iluministas não foram cumpridas ? Por que o mundo da boa vontade e da paz
perpétua não se concretizou? Eles acreditam que o progresso se apaga com
coisas negativas e aterradoras, entre elas o desaparecimento do sujeito
autônomo e o totalitarismo uniformizante. Eles se afastam da crença na
ciência e na técnica como pressuposto da emancipação social,pois ,segundo
eles,do conhecimento científico da natureza resultou a nulidade do homem
(2004, p.91).

O alienista nunca chegará a uma definição exata. .Razão e loucura são descritas
não como método experimental finalizado, é isso que Machado coloca em evidência nas
ciências do alienista. Poder e comportamento nesse pequeno ensaio literário, denúncia
como à literatura realista do século XIX ressaltou mais as dúvidas do que a certeza.
“Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim, ou o que pareceu
cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?” (O
alienista, 1997, p.34).
“Fechada a porta da casa verde, entregou – se ao estudo e a cura de si mesmo”.
(idem, p.35).A ciência terá como explicar o positivismo e o comportamento do
alienista? A visão machadiana esta paradoxal. Ex: Bacamarte liberta os pacientes e
interna a si mesmo no processo de autorreconstrução comportamental. Segundo
Cozman:

Em o alienista, observamos, além disso, o que Bajtin chamava de permutação


do alto e do baixo. No inicio da obra, a razão está na esfera do alto, mais
depois à medida que está avança a narrativa passa a estar no âmbito do baixo
e deixa que a loucura ocupe a esfera do alto (2004, p.26).

Ciência e o comportamento no alienista é um resultado da critica ao


mascaramento do homem nas suas relações ao meio por força do poder? “A obra trás a
tona e evidencia como já foi exposta a loucura como doença. Mas, o interessante é que
machado de Assis não esta preocupado essencialmente com as analises do homem no
seu comportamento “Machado torna inevitável a percepção das semelhanças com a
legitimação da psiquiatria nos anos que cercam o final da monarquia e o inicio do
regime republicano” (CUNHA, 2005, p.31).

REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo. Scipione. 1997.

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BOSI, Alfredo. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999.
______. História concisa da literatura brasileira. São Paulo. Cultrix. 2003.
COZMAM, Camilo Fernández. O difícil oficio da sensatez. Espaço, retórica e
carnavalização em O alienista de Machado de Assis. Revista Rhêtorike.
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Artigo; Hospício a céu aberto. In: A Revista de
História da Biblioteca nacional. Ano I.N° 2. 2005.
GOMES, Roberto. O alienista: loucura, poder e ciência. Tempo social; ver. Sociol.
USO, São Paulo. 1994.
GOMES. In: Revista Espaço Acadêmico .Nº. 72 maio /2007 ano VI.
Moisés, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. São Paulo. Cultrix. 2000.
SOUZA, Jaime Luis cunha de. Racionalidade moderna, ciência e loucura-especulações
sobre o alienista de Machado de Assis, 2004.

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“RETRATO DE CAVALO”: UMA METÁFORA DA CRIAÇÃO


LITERÁRIA

Maria Tatiana Silva de Sousa1


Tércia Montenegro Lemos (Orientadora)2

No conto “Nenhum e Nenhuma”, Guimarães Rosa escreve: “Tem horas em que,


de repente, o mundo fica pequeninho, mas noutro de-repente ele já torna a ser demais de
grande, outra vez. A gente deve de esperar o terceiro pensamento” (ROSA, 1964, p.57).
É esse “terceiro pensamento” que o autor nos transmite em sua obra: o pensamento da
incerteza, da impossibilidade, dos sentimentos, os mistérios da alma são posto à tona em
sua escritura. Somado a isso, ele nos mostra um dom único de lidar com as palavras, de
levar o seu léxico às últimas conseqüências, mostrando, ainda, toda a poesia que um
texto em prosa possa nos oferecer.
Ler Guimarães Rosa é isso: encontrar-se imerso em um novo mundo criado pela
linguagem que tem o poder de envolver e de encantar o leitor, levando-o a uma viagem
ao mundo das palavras, ao mundo do inalcançável, em suma, à ficção.
Dada a riqueza da obra roseana, neste trabalho iremos centrar-nos no conto
“Retrato de cavalo”, presente em seu último livro publicado em vida, Tutaméia.
Começaremos comentando um pouco sobre esse título, buscando, para isso, uma
definição do próprio autor, encontrada em um dos prefácios dessa obra, ao final de
“Sobre a escova e a dúvida”. Nele, Rosa nos apresenta um glossário, no qual temos o
significado de “tutaméia: nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui,
tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada; mea omnia” (ROSA, 1967,
p.166).
Tendo em vista que o título nos remete a coisas sem importâncias (ninharias),
torna-se paradoxal essa atribuição à obra, uma vez que ela é uma das mais densas de
Rosa, estando repleta de significações. Seus contos, apesar de curtos, tendem a não ter
um final delimitado, ou seja, muitas vezes o texto é enigmático, cheio de uma misteriosa
beleza.

1
Graduanda do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará
2
Prof. Dra. Adjunta do departamento de Letras Vernáculas da UFC

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Devido às características expostas, pretendemos fazer uma interpretação de


“Retrato de cavalo”, lembrando que esta é apenas uma das muitas abordagens possíveis.
Defenderemos, assim, que o texto possui, em suas entrelinhas, uma metalinguagem que,
segundo Roman Jakobson (1974), acontece quando a linguagem fala da linguagem,
voltando-se para si mesma. Para descrevermos esse mecanismo, iremos estabelecer um
paralelo entre o cavalo de Bio e o retrato do animal, funcionando primeiro como uma
metáfora do nosso mundo de fato (o real) e o segundo, como uma metáfora da
Literatura.
O enredo tem início quando Bio fica descontente com uma fotografia tirada de
seu cavalo . A criação desse retrato, o qual será amado e odiado por Bio, será fruto de
intensa inquietação. Para Bio, o cavalo era “o que lhe influía a única vaidade” (ROSA,
1967, p.130). Percebemos, assim, a presença de a forte adoração que o dono tem por seu
animal.
Essa representação do cavalo em um retrato “moderno, aumentado, nas veras
cores, mandado rematar no estrangeiro por alto preço, guarnecido de moldura” (ROSA,
1967, p. 131), nos faz lembrar o texto literário, que tem seu referente no mundo real,
mas quando passado para o papel se transforma em outro mundo, outro cavalo, “um
cavalo do universo” (ROSA, 1967, p.131). É essa uma das funções da Literatura:
transformar, modelar o real, convertendo-o em ficção.
O mais impressionante é como esse jogo com o signo consegue produzir outro
espaço, outra dimensão de idéias e de significações. Além disso, o maior desafio do
escritor é traduzir em signos o inefável, ou seja, a alma humana, os sentimentos, os
conflitos internos, enfim, o inexplicável.
O retrato, então, gera um encantamento em Bio, que muito o deseja, alegando
que, assim como o cavalo real é dele, o retrato, ou qualquer outra representação do
animal, também deveria ser. Nesse momento, podemos constatar a existência de uma
sobreposição, uma vez que tal personagem não sabe até onde o retrato é apenas
representação e até onde ele faz parte do próprio cavalo.
É preciso lembrar, também, que o retrato (representação/signo) não possuía
apenas um significado, mas sim vários, dependendo do olhar posto sobre ele. Assim,
para Bio, o retrato era belo devido à grandiosidade de seu cavalo, enquanto que, para Iô
Wi, era devido à moça por quem se apaixonara. Ao analisarmos esse ponto da narrativa,

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podemos constatar, a metalinguagem implícita no conto. Assim como foi feito com o
retrato, os leitores podem conferir diversas interpretações a um mesmo texto, a uma
mesma obra.
Uma prova da presença de múltiplas significações e de diferentes olhares postos
sobre a Literatura é o desentendimento entre Bio e Iô Wi, visto que, para este, “o cavalo,
de verdade, não era potentoso desse jeito, mas mixe, somente favorecido de indústrias
do retratista e do aspecto e existir da Moça” (ROSA, 1967, p.131).
Em frente a essa cena, podemos apontar, também, o fato de querermos trazer
para o nosso mundo muito do que a Literatura coloca em plano, visto que tentamos
alcançar o espaço de sedução, onde tudo é possível, criado pela arte. É devido a essa
característica da arte que Bio tanto se inquieta. Qual é mais perfeito: seu cavalo de
verdade ou o retratado na pintura? Qual possuía melhores qualidades? Assim, para
acabar com a dúvida, a única solução para Bio era destruir a arte, responsável pelo
engrandecimento, pela superação do real, ou seja, pela criação de algo ilusório: “abolir
aquele, destruído em os setecentos pedaços. Só depois sossegasse.” (ROSA,
1967,p.132). Vemos, dessa forma, o quanto de sofrimento essa figuração gera para ele.
Ao voltar do seu passeio, Bio encontra seu patrão “jururu-roxo” (ROSA, 1967,
p.132), a moça tinha ido embora e não voltaria mais, o noivado findou-se. “Bio se
coçava os dedos das mãos”, ou seja, pensava que iria ganhar o retrato, pois diz a crença
popular que quando o indivíduo coça a mão, é sinônimo de que ganhará um presente,
nesse caso, o retrato. Mas isso não aconteceu; apesar de a moça ter ido embora, Iô Wi
“carecia daquilo, para conferir saudades” (ROSA, 1967, p.132).
É interessante atentarmos para a parte em que a moça abandona Iô Wi,
deixando-o apenas com o retrato. Ao observarmos a seguinte passagem: “A moça não
podia de todo assim fugir. No viso daquela enfeitada arte, também alguma parte dela
parava presa, semelhante da alma, por sobejos e vivente parecença” percebemos a
imortalidade dada pela arte a alguns de seus personagens ou aos momentos da história
relatados por ela. A partir desse raciocínio, podemos concluir que, no conto, a Moça se
vai, mas sua foto, sua representação e um pouco dela fica gravado na imagem, assim
como a figura do cavalo.
Logo após esse acontecimento, somos informados de que Bio tivera um sonho
ruim com seu cavalo, e, ao entrar no estábulo para conferir a situação do animal,

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encontrara-o “prostado, a cara arreganhada, ralada, às muitas moscas, os dentes de fora,


estava morrendo”(ROSA, 1967, p.133). Esse pode ser tido como o ponto máximo da
narrativa, pois ele trabalha muito bem a relação do real com a ficção. Vejamos:

Bio também gemeu, lavando com morna água salgada aqueles beiços, desfez
o arreganhamento, provou-lhe as juntas, pôs o cabresto, ele fazia um esforço
para obedecer. Bebia sem bastar, baldes de água com fubá e punhadinho de
sal. Mas mirava-o, agradecido, nos olhos as amizades da noite. Sofrimento e
sede... Isto se grava em retratos? (ROSA, 1967, p.133).

Notamos que o narrador põe em jogo não mais a imagem, ou seja, o material do
real e do ficcional, mas sim a essência, as emoções do mundo real, as quais não
poderiam ser expressas de forma tão verídica. Vemos, assim, uma relação do texto
literário com o que ele reproduz, pois, como diria Tolstói, “se descreves o mundo tal
qual é, não haverá em tuas palavras senão mentiras e nenhuma verdade” (TOLSTÓI
apud Rosa, 1967, p.160).
O desfecho do conto se dá com a decisão de levar o retrato para casa do Seo
Drães – “uma vivenda em apalaço” (ROSA, 1967, p.131) – ,visto que era o local ideal
para manter a glória da arte, preservando-a de sentimentos externos e mantendo-a
desinteressada, com a única função de ser, essencialmente, arte. Assim, o sentimento de
amor, de adoração que uniu os dois personagens principais do texto àquele quadro já
não iria interferir na significação dele, conservando apenas a sua magnitude.
Foi essa relação entre o real e o figurado que tentamos estabelecer neste
trabalho. Vale ressaltar que o que consideramos real é apenas uma metáfora, visto que
estamos trabalhando com um texto, o qual é, em si, uma representação. Assim, o conto
é uma representação do real que trata de outra uma representação, o retrato do cavalo e
da Moça.
Percebemos, dessa forma, como é bela a escrita de Rosa, como esse escritor traz
à tona discussões tão complexas em um texto prazeroso de ler e trabalhar, mas que, no
entanto, exige a atenção do leitor, como ele relata em carta a Harriet de Onis: “O leitor
tem que ser chocado, despertado de sua inércia mental, da preguiça e dos hábitos. Tem
de tomar a consciência viva do escrito, a todo momento. Tem quase de aprender novas
maneiras de sentir e de pensar”( ROSA apud MARTINS, 2001, p. 09).
É essa escrita, aparentemente nebulosa, que conduz a tantas pesquisas, dada a
riqueza do texto. Dessa forma, partindo desse mesmo conto, poderíamos abordar

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diversos outros temas, como a formação sintática da frase, a força da numerologia e a


presença das crendices populares como formadores de uma nova leitura. Serão, porém,
tarefas que ultrapassam o escopo deste artigo, apontando para objetivos futuros.

REFERÊNCIAS
ROSA, João Guimarães. Tutaméia (Terceiras estórias). Rio de janeiro: José Olympio,
1967.
______. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.
MARTINS, Nilce Sant’Anna. O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp, 2001.
JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo
Paes. São Paulo: Cultrix, 1974.

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O USO DE TEXTOS LITERÁRIOS NAS AULAS DE LÍNGUA ESTRANGEIRA:


PROMOVENDO INTERAÇÕES INTER E EXTRATEXTUAIS

Maria Viviane Matos de Lima1


Ana Célia Clementino Moura2

Língua(s) e literatura: juntando os cacos a partir de uma breve reflexão histórica


Para alcançar o objetivo do presente trabalho é bastante conveniente que se
entenda um pouco de como o homem lidou com a língua(gem) e a literatura ao longo
dos tempos. Prontamente, seria possível mesmo separar literatura e língua? Tanto é
possível como é isso que se pode verificar ao fazer uma análise ao longo da história do
ensino de línguas. É sabido pelos pesquisadores que a língua – entendida como
expressão do pensamento, bem como a literatura – compreendida como a mais elevada
manifestação da língua, foram postas em patamares elevados de veneração e
sacralização pelos filósofos da tão sublevada Grécia Antiga. Com os sofistas, por
exemplo, a linguagem foi reduzida a um ato “vazio”, sem grande comprometimento ou
engajamento; ela recebe uma importância fundamental, mas não passa de uma
convenção. Trazendo essa visão ao âmbito do ensino-aprendizagem de LE, ela seria
apenas mais uma disciplina na qual professor e aluno se comprometeriam com os
aspectos técnicos e gramaticais, somente. A esse respeito, Neves (2005, p.4) afirma:

Tendo a atenção voltada para a função persuasiva da linguagem, era natural


que os sofistas desenvolvessem esforços para obter o máximo de eficiência
linguística e se preocupassem de modo particular com o ensino do uso
correto da linguagem.

A aspiração de alguns é alcançar o uso correto da linguagem, um uso baseado na


norma padrão. Não há nada de inadequado nesse desejo. A problemática é: o que se
entende por linguagem correta, norma padrão e quais os meios que se usa para alcançar
esse objetivo. De fato muitas pessoas ainda acreditam ser a linguagem “bem
empregada” algo supranatural, mérito apenas de alguns privilegiados que conseguem
utilizá-la com polidez; eles também acreditam num único falar “correto” da língua, seja
ela qual for. Se passarmos ao plano escolar, às instituições de ensino, será possível

1
Graduanda em Letras pela Universidade Federal do Ceará.
2
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará.

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perceber que essa mesma idéia permeia o discurso dos professores. Uma ideologia que
aos poucos vem sendo quebrada. A respeito desse assunto, Bagno (2002, p. 25) traz sua
reflexão:

A língua é tratada como se existisse numa outra dimensão, supranatural, à


maneira das formas da filosofia platônica, que só podem ser captados pelo
intelecto e não pelos sentidos”. (...) Essas concepções se baseiam, por sua
vez, em visões de mundo pré-científicas e em estruturas sociais organizadas
em sistemas aristocráticos, como era o caso da sociedade grega na
antiguidade clássica, quando nasceu a gramática tradicional.

Nesse sentido, a língua se reduz a fragmentos que por sua vez se perdem na
eloquência e formalismo dos que insistem em sacralizá-la. Em continuação, o que dizer
da literatura e das concepções acerca d’Ela, do seu uso e acessibilidade? Ao falar de
literatura, pode-se perceber que os caminhos a serem trilhados não são diferentes, pois
ela passou pelo mesmo processo de endeusamento que a linguagem, sendo elevada a um
nível alcançado pelos “cultos” que conseguiam compreendê-la. Esse ideal estético de
arte inacessível que permeou o curso da história do homem colaborou com o
distanciamento da literatura com a prática de ensino e, consequentemente, com sua
ruptura com o ensino de línguas, seja materna ou estrangeira. Em salas de aula,
atualmente, é possível destacar dois blocos fechados de estudo e análise: Língua e
Literatura. Hoje, estudante e professor ainda afirmam não entender nada de literatura
por acreditarem se tratar de algo acessível aos cultos, possível somente àqueles que
dominam a língua falada e escrita. As palavras de Pennac (2008, p.121), ao falar sobre
bibliotecas, leitores e livros nos levam a refletir sobre o papel que profissionais da área
estão desempenhando em sala, e como os estudantes têm limitado sua visão acerca
desse assunto que se arrastou há longo tempo de maneira bastante distorcida.

[...] objeto misterioso, praticamente indescritível, dada a inquietante


simplicidade de suas formas e a ploriferante multiplicidades de suas funções,
um “corpo estranho”, carregado de todos os poderes e de todos os perigos,
objeto sagrado, infinitamente cuidado e respeitado, arrumados com gestos de
celebrante nas prateleiras de uma biblioteca impecável, para ser venerado por
uma seita de admiradores de olhar enigmático.

Com base nessas palavras, o mais conveniente a se fazer é refletir sobre o


quadro em que se encontra atualmente o ensino de línguas. Não somente fazer
conjeturas, mas chegar a propostas viáveis para uma mudança nessa área.

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Nesse sentido, “Língua” e “Literatura” terão a possibilidade de sair das


caixinhas cerradas em que foram postas, desfazendo-se dessa perspectiva separatista
que gera a idéia de ensino de língua e depois ensino de Literatura.

A humanização do ensino de línguas estrangeiras: um convite à literatura


A partir da década de 70, com a alavancada das pesquisas linguísticas à luz dos estudos
cognitivos, psicolinguísticos e sociolinguísticos, o foco acerca do ensino começa sofrer
algumas mudanças. Se antes o eixo do ensino e da aprendizagem era o produto, agora,
com as pesquisas realizadas, a atenção se volta ao processo. Entende-se, assim, que não
basta alcançar o produto final de maneira aleatória e superficial, tem-se que
compreender o caminho percorrido e os entraves envolvidos na caminhada que leva ao
produto final. Baseada nessa perspectiva teórica, a abordagem da leitura como um
processo vem ganhando espaço nos estudos linguísticos. Para Kleiman (1989), trata-se
de uma atividade interacionista de construção de sentido e atribuição de significado, um
ato diretamente relacionado com a vivência social do leitor e sua posição frente ao
mundo. A autora (ibid, p. 13) adverte ainda sobre a complexidade desse processo
cognitivo e também sobre os fatores nele envolvidos (percepção, atenção, memória)
para que se construa o sentido do texto.
Tal concepção também se estende e orientara a aquisição de língua materna e
estrangeira. A última ganhou uma visão mais ampla nos estudos linguísticos com a
renovação dos enfoques e das orientações ligadas a essa área. Com isso, lançou-se um
olhar mais crítico aos métodos que centralizavam o ensino em práticas tecnicistas
baseadas apenas nos aspectos estruturais em detrimento de outros aspectos também
importantes. Como exemplo desses métodos, temos: Método Gramática-tradução,
Método Direto, Método Áudio-Lingual, Método Resposta física total, etc. Essas práticas
fizeram parte da construção do pensamento acerca do ensino de línguas. Para tanto,
algumas já incorporavam as idéias psicolinguísticas que estavam surgindo naquele
momento, embora com uma visão focalizada no produto.
Segundo Paiva (2005, p.31), algo importante que deve ser levado em
consideração no que tange ao ensino de uma língua estrangeira é a existência do próprio
aprendiz.

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O aprendiz é parte central do processo e deve ser visto como agente de sua
própria aprendizagem e não como um objeto que se plasma de acordo com
as imposições dos métodos e do professor. Por ignorar o papel do aprendiz,
os vários métodos de ensino e modelo de aquisição geraram propostas e
explicações lineares sem levar em conta que o ser humano é sempre o signo
mediador de sua aprendizagem e que efeitos diferentes poderão surgir em
reação ao mesmo conjunto de variáveis.

Nesse sentido, os avanços nessa área contribuíram no processo de humanização


do ensino, levando em consideração o importante papel que o aprendiz exerce e as
interações estabelecidas nesse continuum chamado aprendizagem.

Textos Literários nas aulas de línguas estrangeiras: uma possibilidade de


interações
Após o avanço dos estudos linguísticos, língua e literatura saltaram de uma visão
fragmentada para uma concepção mais dinâmica e interativa tornando-se termos que se
associam coerentemente. Agora, com a inserção do “ser humano” e de suas demandas
dentro da perspectiva processual, as palavras (o literário) estão a favor do ensino-
aprendizagem de línguas, podendo contribuir efetivamente dentro desse processo
dinâmico. Dinâmico por ser social, cultural e interativo. Dentro dele a língua ganha
sentido, ou deve, e assume um papel sócio-cultural que começa a fazer parte do
cotidiano do aprendiz. O que é aprendido pelo estudante começará a fazer sentido na
medida em que ele relaciona o que lhe está sendo acrescentado com aquilo que ele já
experienciou, conheceu e aprendeu através de sua própria língua e de suas próprias
vivências. Na construção desses sentidos, o estudante poderá formar suas próprias
opiniões, fazer inferências por meio de seus conhecimentos e, consequentemente,
desenvolver habilidades na língua meta. Esses aspectos fazem parte de um processo
interativo que se estabelece entre texto e leitor.

Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas


verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis
ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de
um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras
e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas
ou concernentes à vida. (Bakhtin,1929:95)

Nessa perspectiva, o texto literário carrega um papel singular, pois ele é um dos
suportes que reflete a língua meta, trazendo os valores que o discurso pode assumir e

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possibilitando ao aprendiz-leitor construir suas próprias ideias. Ao ler, o estudante


poderá interpretar, julgar, indagar, concordar, discordar, defender etc. Ao chegar em
suas mãos, o texto literário proporcionará essa interação por meio de uma leitura
comprometida. A respeito do leitor, Lajolo (1994 p. 35) destaca: “Desses leitores-
interlocutores de carne e osso, os que discordam são dignos do maior apreço. Os que
reclamam, então, são os preferidos, muito embora não sejam, necessariamente, os
pretendidos.”
É nesse jogo de interação que o trabalho com textos literários em aulas de língua
estrangeira deve ser pautado. A literatura poderá contribuir com o desenvolvimento das
habilidades linguísticas do estudante, desde que seja trabalhada como um recurso que
estabelece interações com o leitor. As páginas de um livro poderão render aos
estudantes informações indispensáveis para o enriquecimento de uma situação
comunicativa. Para tanto, o leitor deverá se apropriar do texto lançando seu olhar
particular sobre a escrita.
O aprendiz de uma nova língua poderá, por meio das leituras literárias, enxergar
o outro, “o desconhecido”, e alcançar seus objetivos como um aprendiz aberto às
demandas desse processo de aquisição. Sobre o assunto, Mendonza (2001, p. 1,
tradução nossa) afirma que “a concepção didática da educação literária- tendo em conta
as orientações cognitivas y a funcionalidade dos conhecimentos prévios- toma como
eixo a atividade do leitor e os processos da recepção.”
Em seguida, o autor expõe a necessidade do desenvolvimento de atividades que
promovam a interação entre leitor e texto, a fim de que o êxito no processo de leitura
seja alcançado.
Por ello se desarrolla a través de actividades formativas que favorecen la
interconexión de saberes y de contenidos, que desarrollan la habilidad lectora
para que el lector sepa establecer su interacción con el texto y de actividades
que fomentan la cooperación del lector con el texto, de modo que de ese
conjunto de actividades resulte la re-creación de la obra y la construcción de
una interpretación coherente y adecuada. (ibdem, p. 1)

Ressalte-se ainda o caráter motivador que as leituras podem ter se forem


trabalhadas adequadamente, sem os aparatos técnicos e explorações superficiais que
pouco rendem de maneira geral. Além da motivação que pode ser aguçada, a leitura
também induz à curiosidade e à busca constante; através de atividades leitoras, o
aprendiz estará conhecendo o outro que ele se propôs a conhecer; nesse processo, que é

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constante, ele desenvolverá sua capacidade leitora, bem como sua escrita e aumentará as
chances de alcançar êxito em situações comunicativas distintas. Conforme Mendonza
(2002:116):

La recepción del texto literario requiere que vincule diversos conocimientos y


aportaciones de la competencia literaria y también de la competencia
comunicativa: los saberes de ambas se comparten y se activan en respuestas a
los estímulos textuales. Y en su lectura, las habilidades y estrategias
linguísticas ponen en marcha los saberes referidos a los aspectos normativos
y pragmáticos.

O trabalho com textos literários em aulas de LE possibilitam tanto o


desenvolvimento sociocultural, que culminam em aplicações práticas, pragmáticas e
funcionais, como a aprendizagem dos aspectos linguísticos relacionados à língua que se
aprende. Através de um processo de ensino-aprendizagem pautado na interação de
saberes, o aprendiz poderá ampliar sua visão e estabelecer relações intertextuais e
extratextuais por meio da prática leitora.

REFERÊNCIAS
BAGNO, Marcos; GAGNÉ, Gillés; STUBBUS, Michael. Língua materna: letramento,
variação e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2002.
BAKHTIN, Michael. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec,
1988.
BRUNO, Fátima et alli. Ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras: reflexão e
prática. São Carlos: Clara Luz, 2005.
CORACINI, M.J.F et alli. O jogo discursivo na aula de leitura: língua materna e língua
estrangeira. Campinas, SP: Pontes, 1999.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.
São Paulo, SP: Martins Fontes, 1999.
KLEIMAN, Angela. Leitura: ensino e pesquisa. Campinas, SP: Pontes, 1989.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. SP: Editora Ática,
1997.
MENDOZA, Antonio. La utilización de materiales literarios en la enseñanza de lenguas

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extranjeras. In: GUILLÉN C. (Ed.): Lenguas para abrir camino. Madrid: Ministerio de
Educación, Ciencia y Deporte, 2002.
MENDONZA, Antonio. El intertexto lector. La Mancha, Cuenca: Ediciones de la
Universidad de Castilla, 2001. Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes. Disponível em:
http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/12470624320125064621457/p000
0001.htm#I_12_.
NEVES, Maria. A vertente grega na gramática tradicional: uma visão do pensamento
grego sobre a linguagem. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
PENNAC, Daniel. Como um romance. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008.
ROCHA, Cláudia et alli. Ensinar e aprender língua estrangeira nas diferentes idades:
reflexões para professores e formadores. São Carlos: Editora Clara Luz, 2008.
SEDYCIAS, João et alli. O ensino de espanhol no Brasil: passado, presente, futuro. São
Paulo: Parábola Editorial, 2005.

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CONCEIÇÃO E MARIA AUGUSTA: DUAS MULHERES SERTANEJAS


DE RACHEL DE QUEIROZ

Mayara de Miranda Lima1


Marcílio Garcia de Queiroga2

1. Introdução
O presente trabalho faz uma análise de duas protagonistas de Rachel de Queiroz:
Conceição de O Quinze e Maria Augusta de As três Marias, mostrando assim os pontos
de convergência existentes nas personagens. Rachel de Queiroz mostra nas obras
estudadas uma mulher sertaneja que hora é moderna e decidida, e hora é confusa e
desentendida.
A escritora mostra, enfim, uma mulher sertaneja diferente daquela vista aos
olhos da sociedade da época e ainda vista nos dias atuais.
Em O Quinze temos Conceição, professora e leitora assídua que se mostra culta,
independente e só, que se vê dividida entre os problemas dos retirantes e entre o amor
de Vicente, amor que não se concretiza pelo fato dela ter um nível de conhecimento
mais alto que o dele. Em As três Marias temos Maria Augusta, que entre medos da
infância e conflitos da adolescência, narra toda sua história de vida; Guta acha o sertão,
seu lugar de origem, monótono, e sai desse lugar de origem em busca de sua identidade.
A análise mostra a sublimidade de duas mulheres que em pleno sertão
nordestino, onde a religiosidade e a sociedade são extremamente fortes, vivem como
desejam, e que apesar de tantos conflitos pessoais, quebram os conceitos impostos para
a mulher naquela época e ainda nos dias atuais.

2. O Sertão De Conceição E Maria Augusta


Em O Quinze, Conceição é a professora moderna e culta, que vivia entre o
mundo dos livros:

1
Graduanda do curso de Letras da UFCG. Especializanda em Língua, Lingüística e Literatura pela FIP –
Faculdades Integradas de Patos.
2
Mestre em Literatura Brasileira pela UFPB e Professor do curso de Letras da UFCG.

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Pegou o primeiro livro que a mão alcançou, [...] abriu à toa o volume [...]
Conceição folheou devagar, relendo trechos conhecidos [...] Largou-o, tomou
outros [...] E ao repô-los na mesa, lastimava-se: - Está muito pobre essa
estante! Já sei quase tudo decorado! (QUEIROZ, 2004, p. 12).

Entre o mundo da problemática dos retirantes:

A conversa principiou a incomodar Conceição; o mau cheiro do campo


parecia mais intenso; e levantou-se, dando uma prata à mulher:
- Amanhã eu volto e vejo como vocês vão... Todos os dias venho aqui, ajudar
na entrega dos socorros... Se voe tiver muita precisão de alguma coisa, me
peça, que eu faço o que puder... (QUEIROZ, 2004, p. 63).

E entre o amor não irrealizado que sentia por seu primo Vicente, pois, Conceição
acreditava que não seria feliz ao lado de Vicente pelo fato do mesmo viver apenas para
a fazenda e ter um nível intelectual totalmente diferente do seu:

Conceição tinha vinte e dois anos e não falava em casar. As suas poucas
tentativas de namoro tinham-se ido embora com os dezoito anos [...] Chegara
até a se arriscar em leituras socialistas, e justamente dessas leituras é que lhe
saíam as piores das tais idéias, estranhas e absurdas à avó. (QUEIROZ, 2004,
p. 13 e 14).

Acostumada a viver por si, a viver isolada, criara para o seu uso de idéias e
preconceitos próprios, às vezes largos, às vezes ousados [...] (QUEIROZ,
2004, p. 14).

Nas citações acima percebemos o quanto Conceição se diferenciava das


mulheres sertanejas, que lutavam por sua sobrevivência diante da seca, que tinha sua
vida em família, criavam seus filhos, trabalhavam na plantação e colheita e eram
extremamente submissas aos seus maridos. Diferente dessas mulheres, Conceição não
pretendia casar e só possuía tempo para seus livros; não suportava ver tanta desgraça no
sertão e não se conformava em ter uma vida igual a tantas mulheres sofredoras e
dependentes de seus homens.
Em As três Marias, Maria Augusta, apelidada carinhosamente por Guta, vive no
mundo religioso e duro do colégio de freiras em que foi internada pelo Pai e pela
Madastra, que por Guta era chamada de Madrinha: “Papai, comovido e pálido, fora
embora. Madrinha fora embora. O parlatório, onde eu esperava, estava àquela hora
vazio e silencioso” (QUEIROZ, 2009, p. 11 e 12). E dentro do colégio vivia também no
mundo de Maria José e Maria da Glória:

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Irmã Germana entrou de repente, bateu secamente o sinal:


- Maria José, Maria Augusta, Maria da Glória, por que não fazem silêncio?
São as inseparáveis! Já notaram, meninas? Essas três vivem juntas,
conversando, vadiando, afastadas de todas. São as três Marias! (QUEIROZ,
2009, p. 36).

Na obra, Guta diz ter sua infância dividida entre duas fases: a época em que sua
mãe existia e a época em que sua mãe havia partido: “A minha infância, sempre a dividi
em duas fases: “o tempo de mamãe” e “depois”. (QUEIROZ, 2009, p. 50). Pois, para
ela, tudo em sua casa havia mudado, seu pai se casou novamente e teve outros filhos:

“Depois” tudo mudou lá em casa. Não para pior, todo o mundo dizia até que
para melhor. Havia agora ordem, equilíbrio, economia. A louça não se
quebrava tanto, eu vivia penteada e limpa no meu vestido de luto. Comecei a
ir à escola[...]
Papai casou depois de cinco meses de viúvo, com uma prima, creio que sua
namorada dos velhos tempos. (QUEIROZ, 2009, p. 52).

Depois de todos esses anos, ao terminar os estudos, Guta vai para a cidade e
conhece o mundo:

Menina-e-moça me tiraram do ninho quente e limitado do Colégio – e eu


afinal conheci o mundo.
Depois das férias que se seguiram aos diplomas, via-me afinal na cidade,
instalada, defendendo a vida. (QUEIROZ, 2009, p. 79).

Porém, Guta, por estar tão presa e por sonhar com um mundo seu, se decepciona
com o que encontra e vê seu lar como um lugar monótono e melancólico:

No colégio, cantavam-se em todas as composições e todos os hinos de fim de


ano as belezas e as delícias do lar. Por isso, talvez, minha decepção foi tão
funda.
Os meninos me importunavam, não os amava, sentia por eles apenas aquela
ternura convencional que me tinham ensinado os livros, “a ternura devida aos
irmãozinhos”. Achava-os hostis, malignos, teimosos. Perturbavam-me nas
minhas horas de abstração [...]
De começo, quando cheguei, corria para eles, de braços abertos, num grande
entusiasmo. Esperava que me pedissem histórias, que me sentassem no colo,
cheirosos e angélicos. Mas os garotos viviam sempre sujos [...]
E em casa a monotonia era tão opressora, tão constante, que chegava a doer
como um calo de sangue. Chegava a ter equimoses de tédio. (QUEIROZ,
2009, p. 79 e 80).

Guta não suportava viver da forma em que todos queriam e que a sociedade
determinava:

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Logo no dia seguinte de minha chegada, houve uma sessão solene, onde,
depois de breve prólogo, Madrinha explicou meus novos deveres de filha e
irmã mais velha, falou na colaboração que a família esperava de mim. E
como me horrorizavam, minha Nossa Senhora, as camas por fazer, as meias
por cerzir, as mesas a pôr e a tirar, as famosas semanas de cozinha que eu
deveria revezar com minha madrasta. (QUEIROZ, 2009, p. 80).

Guta também é a mulher no sertão diferente de todas as outras, que não quer
viver a vida lavando, passando, cuidado da casa e das crianças mal cheirosas. Guta não
suporta a submissão, os deveres que a minha deveria ter. É uma personagem que mesmo
perdida permanece inquieta a procura de uma felicidade. Uma esperança surge, quando
Guta vê no jornal o edital para um concurso de datilógrafo em Fortaleza. Guta agarra a
oportunidade e consegue a nomeação:

Comecei a trabalhar. E parecia-me que a felicidade começava. Viver sozinha,


viver de mim, viver por mim, livrar-me da família, livrar-me das raízes, ser
só, ser livre! (QUEIROZ, 2009, p. 82).

As últimas citações mostram o quanto a protagonista Maria Augusta se via


perdida, infeliz e inconformada no lugar em que vivia. Se via triste, perdida, solitária e
sem gosto de viver.
Porém ao arrumar um emprego e ao sair de casa, vivendo somente para ela, sem
familiares ao redor. Guta acha que agora sim irá conhecer o mundo, chega a sentir a
impressão de libertação, de felicidade, mas:

[...] na cidade, a vida era igualmente monótona, cheia de outros pequenos


deveres enfadonhos. Tudo corria dentro de uma rotina que eu teimava em
querer imaginar provisória, mas que se eternizava implacavelmente.
Tinha eu dezoito anos quando comecei a trabalhar, e seis meses depois já
sentia medo de ficar velha sem saber o que era o mundo. (QUEIROZ, 2009,
p. 83).

Assim como Conceição, Maria Augusta se apaixonou. Em primeiro momento,


Guta se apaixona por Raul, um pintor casado, mais velho e mais experiente que ela. E
também, não diferentemente de Conceição acaba se decepcionando profundamente, sem
entender os homens:

Ele me decepcionava horrivelmente. Só queria aquilo, aquelas intimidades


violentas, sempre de mãos estendidas, sempre ávido.

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Onde estavam as maravilhosas coisas que o seu olhar prometia tanto? Onde
estava o homem longínquo do primeiro dia em que o vi, sentado
melancolicamente à sua cadeira de teatro, fumando e com tédio da vida?
Onde estavam as inebriantes palavras que eu esperava, os contos do mundo
dos sonhos, a divina embriaguez, abolindo a consciência de tudo, o amor
diferente, as carícias sem forma nem peso? (QUEIROZ, 2009, p. 133 e 134).

Em um segundo momento, já no Rio de Janeiro, em momento de férias, Guta se


apaixona por um estrangeiro chamado Dr. Isaac, médico que havia chegado ao Brasil a
um ano e estudava para reavaliar o diploma. Apesar de tudo parecer puro e doce, Guta
se decepciona novamente:

Mais que a dor física, ficou-me dessa primeira entrega uma sensação de
medo e secreta humilhação; aquele gozo, que ele tirava de mim, era tão-só
dele, tão separado de mim, diminuía-me tanto! Eu não ressentia nada do
misterioso prazer cuja aproximação o fizera arquejar como se sofresse, e
depois o deixara sonolento e quieto, atirado na areia, numa espécie de
inconsciência feliz, com o rosto encostado ao meu colo.
Eu estava lúcida, lúcida e magoada, e extraordinariamente triste e medrosa.
Queria que ele me consolasse, me abraçasse, me compensasse de tudo. Porém
Isaac, na sua sonolência, deixava-me estar sozinha, e parecia que minha
função terminara ali – pelo menos até que o seu desejo renascesse.
(QUEIROZ, 2009, p. 175 e 176).

Vemos que tanto Conceição quanto Guta são desiludidas com o sertão e com o
amor entre homem e mulher. Conceição não agüenta viver na miséria contida no sertão
sem intelectualidade, e Maria Augusta não suporta o que lhe é determinado no sertão.
Sendo assim, as duas personagens correm atrás de sua felicidade fora do sertão.
Já em relação ao amor, Conceição não se entrega a Vicente por causa do nível de
conhecimento, e Guta se entregou a Raul e a Isaac, porém, os dois a decepcionaram
profundamente, fazendo com que Guta não entendesse como o amor funcionava.

3. Conclusão
Chegamos à conclusão de que em Conceição de O Quinze e Maria Augusta de
As três Marias, Rachel de Queiroz nos apresenta duas personagens que apesar de
viverem rodeadas de uma religiosidade exagerada e de uma sociedade de espera forte
diante da mulher, lutaram para viver livres tanto dessa religião quanto dessa sociedade
que a faziam infelizes. Conceição e Maria Augusta representam as mulheres, que ainda
hoje, em pleno século XXI, ainda lutam contra a opressão de uma religião hipócrita e de
uma sociedade injusta.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix,
2006.

COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. 7. ed. São Paulo: Global, 2004.

MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. 6. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

______; PAES, José Paulo (org). Pequeno dicionário de literatura brasileira. São
Paulo: Cultrix, 1969.

Queiroz, Rachel de. As três Marias. 25. ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2009.

Queiroz, Rachel de. O Quinze. 75. ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2004.

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LITERATURA INFANTIL: ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO DE


SENTIDOS EM RECONTOS DE HISTÓRIAS

Meire Virginia Cabral Gondim1


Prof.ª Drª Sylvie Ghislaine Delacours Soares Lins2

Introdução
Este trabalho tem como principal objetivo analisar, a partir de dados obtidos em
nossa dissertação (GONDIM, 2004), as estratégias de construção de sentidos, sobretudo
as repetições utilizadas pelos participantes, alunos do 5º ano de uma escola pública
municipal de Fortaleza. As atividades desenvolvidas com os alunos se configuraram sob
quatro momentos: a) 1ª Recontação de uma narrativa conhecida pela criança; b) leitura
individual da história completa; c) 2ª Recontação da história recém-lida; e, d) 3ª
Recontação da mesma história anteriormente lida e recontada pelo aluno, realizada em
média quatro meses depois da primeira atividade.
As estratégias de formulação de textos, foco deste artigo, requerem de seu
produtor a execução de atividades distintas, explícitas no uso da linguagem, cujas
manifestações surgem nas duas modalidades. No entanto, faremos uma análise das
repetições, expressas na materialidade lingüística dos recontos infantis produzidos pelos
sujeitos de nossa pesquisa.

Repetição: estratégia de construção de sentido do texto oral


As estratégias que nos propomos a evidenciar estão ligadas a recorrência da
repetição. Ela é apontada como um mecanismo de formulação do texto oral e já foi
discutida por alguns autores (FÁVERO, ANDRADE E AQUINO, 2003; MARCUSHI,
2001; RAMOS, 1999; KOCH, 2001) que analisaram a repetição e a paráfrase em
conversas espontâneas, com intuito de rastear o processo de construção de sentidos dos
textos na modalidade oral. Para construção de um texto oral, o produtor utiliza

1
Mestre em Educação - UFC, Especialista em Psicopedagogia-UFC, Graduada em Letras -UECE.
Doutoranda em Lingüística-UFC. O presente trabalho contou com o apoio CAPES-FUNCAP.
2
Graduada em Psicologia - Université Paris VIII, Mestre em Educação - Université
Paris V- Doutora em Educação - Université Paris V. Pós doutorado - Institut National
de la Recherche Pédagogique- Paris. Professora de Psicologia da Educação- UFC

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diferentes estratégias - pragmáticas, objetivando alimentar a interação com o seu


ouvinte, bem como estratégias cognitivas - necessárias à construção de sentido
(RAMOS, 1999, p.42).
Segundo Marcushi (1996 apud FÁVERO, ANDRADE E AQUINO, 2003, p.61),
a repetição é uma das atividades de formulação mais presentes na oralidade, podendo
assumir um variado conjunto de funções.
Em nosso estudo, nos remeteremos a repetição nos seguintes aspectos:
1- responsável pela manutenção do tópico discursivo que proporciona a progressão
textual, funcionando como um elo de coesão;
2- utilizada com intuito de dar clareza ao enunciado que julgado pela criança como
não-claro, repete o enunciado dito anteriormente, acrescentando a ele mais informações,
ou reestruturando-o;
3- inserida como recurso para expressar a continuidade, a sucessão e/ou a intensidade
das ações.
Nas histórias recontadas pelos sujeitos de nossa pesquisa, observamos que eles
repetiam determinadas palavras, quando, provavelmente, percebiam que seu enunciado
desviava daquilo que pretendiam dizer.
Ao tratar da repetição, Koch (2001, p.98) a menciona como uma estratégia
relacionada ao efeito semântico que o enunciador deseja produzir em seu enunciado.
Assim, com base em nossos dados, chamamos esse tipo de repetição: repetição a favor
da clareza e/ou da intensidade do enunciado. Para exemplificar essa atividade
estratégica de construção de sentido, observamos um trecho (re)construído por Gustavo
na história A Polegarzinha:
O7B1. na história... a Polegarzinha... tinha dizendo...que uma bruxa queria...tava
ardentemente querendo ter uma filha...
A repetição das expressões que indicam a manifestação da instância do desejo da
bruxa, queria seguida de tava ardentemente querendo reforça a intensidade de um
desejo, relacionado à bruxa, assimilada pela criança ao ler a história. Ela compreendeu
que não era apenas uma vontade de ter uma filha, mas algo mais forte e lembrou-se que
era um querer ardente. Esse termo, ardentemente, mais usado na escrita, inserido à
repetição do verbo querer, demonstra que a criança considerou a intensidade do desejo

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um dado importante. Assim, incorporou no reconto, na medida em que evidenciou sua


capacidade de perceber o que pode ser essencial na reconstrução de uma história.
Outro aspecto da repetição é o seu uso para favorecer a progressão textual,
contribuindo para a coesão e a manutenção do tópico discursivo, além de a
compreendemos, como uma estratégia que pretende dar ênfase ou intensidade à ação, no
caso supracitado, explicitar o desejo da rã em ter uma filha.
Na história Branca de Neve e os sete anões extraímos o trecho abaixo, para
exemplificar a repetição como atividade que objetiva promover a clareza do enunciado,
O13A3. aí pegou uma raposa... e tirou o coração da que ia passando por ali... tirou o
coração da raposa...
Conforme já explicitado, a construção de um texto oral, nos permite investigar
todo o seu processo de criação. Marcelo, ao produzir o trecho na ocorrência O13A3, já
havia compreendido que o guarda ao ver passar uma raposa, tirou-lhe o coração. No
entanto, no momento em que o aluno vai recontar ele inverte a ordem, não utiliza a
forma canônica, porém não satisfeito com a clareza de seu enunciado, repete a
construção tirou o coração da raposa, com intuito de esclarecer que: a raposa estava
passando; é vista pelo caçador; e este tira o coração do animal.
De fato, esses exemplos nos mostram que as crianças, ao utilizar a estratégia da
repetição na (re)formulação dos trechos extraídos de suas narrativas, demonstraram
preocupação em esclarecer, evidenciar e/ou intensificar as informações que
consideraram importantes na história.
No que diz respeito à continuidade das ações, presumimos que as crianças, ao
(re)construírem as narrativas, utilizaram a estratégia de repetição de palavras com
intuito de expressar uma idéia de continuidade, sucessão de ações ou de tempo. Otávio,
na (re)produção do fragmento abaixo, utilizou a estratégia da repetição com intuito de
enfatizar uma ação contínua:
O7B7. e a Polegarzinha chorando... chorando disse que não ia casar com o seu
filho... e os peixinhos tudo vendo
O fato de a Polegarzinha estar chorando para não se casar com o filho da rã, a
ponto de os peixinhos ficarem sensibilizados e ajudá-la a fugir, induziu o nosso
adaptador a repetir a palavra chorando...chorando. Provavelmente, a criança utilizou
esse recurso para exprimir a ação contínua de chorar, causando simultaneamente um
efeito estilístico e semântico em relação ao choro da menina. Assinalamos, ainda neste

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exemplo, que a repetição também pode assumir um papel de ênfase, o choro da menina
sendo mencionado duas vezes pode nos indicar a intensidade do pesar sentido pela
Polegarzinha e transferido para a criança no momento da recontação.
Também, a repetição apareceu nos recontos para expressar uma continuidade
temporal, como nos mostra o exemplo extraído da 2ª Recontação de José, na história A
Bela Adormecida:
O9B3. aí... passou... passou mais um mês...aí eles tiveram... aí chamaram as três boas
fada... aí na hora que as... as fadas tava coizando... né?
A criança para nos mostrar a dinamicidade temporal dos acontecimentos da
narrativa, apresentou a repetição do verbo passar: passou passou mais um mês até que
tiveram a menina. Essa construção parece nos indicar que a criança visualiza o
desenrolar das ações acontecidas em um tempo. No entanto, a ficção e a realidade se
misturam, pois a criança não se atém a determinar um tempo real de gestação, no caso
nove meses, satisfeita em expressar que o tempo passou e a menina nasceu.
Outro aspecto da repetição, observada nos recontos, é concernente a utilização
dessa atividade estratégica para a recuperar alguma informação da história que, no
momento da narração oral, foi esquecida pela criança. Assim, o recontador repete a
palavra para resgatar um dado perdido em sua memória, assegurando a interação com o
seu interlocutor. Koch (2001, p.101) denomina essa estratégia como auto-repetição, pois
é produzida pelo falante devido a uma exigência de ordem cognitiva-interacional, tendo
como principal função ganhar tempo para o planejamento de sua fala. Observemos o
exemplo:
O7B2. ela pegou... ela pegou botou...fez um feitiço num grão de éh:: de um grão... um
grão... um grão...
Nesta ocorrência, a criança não lembrava que tipo de grão a bruxa utilizou para
fazer o feitiço, o grão mencionado no livro lido era o de cevada. Provavelmente, esse
termo não fazia parte do contexto da criança, por isso, embora ela tenha se esforçado
para lembrar, o que nos faz averiguar devido à repetição da palavra grão, ela não
conseguiu especificá-lo. Dessa atitude da criança, podemos inferir que o tipo grão -
cevada, ou não se deslocou para a memória de longo prazo no momento da leitura
porque a criança não conseguiu associá-lo a nenhum de seus conhecimentos prévios ou,
naquele momento da recontação, a criança não conseguiu recuperá-lo de sua memória.

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Para Weiten (2002, p. 195), a memória “envolve mais do que absorver


informação e armazená-la em algum compartimento mental”. Segundo ele, há três
principais processos envolvidos na memória: a codificação que registra a informação, a
armazenagem responsável em manter a informação e a recuperação, a qual recupera a
informação da memória.
Esses processos envolvidos na memória necessitam de outra capacidade
cognitiva, a atenção. Ela é um importante componente seletivo para a codificação da
memória, pois, caso centrássemos nossa atenção durante todos os estímulos recebidos,
não conseguiríamos ler ou conversar. Assim, ao lermos, focalizamos naquilo que é
mais importante, no caso da história A Polegarzinha, em relação ao nome do grão,
houve uma “falha” ou: na codificação que resultou no esquecimento da palavra; no
armazenamento que ocasionou a não recuperação da informação; na atenção dispensada
para o nome específico do grão; na falta de relação com o conhecimento de mundo da
criança. Na verdade, a repetição da palavra grão nos indica que a criança sabia que o
grão tinha um nome peculiar. Mas, a essa palavra, provavelmente durante a leitura, a
criança não focalizou a sua atenção, o que poderá ter resultado em problemas de
armazenamento, ou de recuperação.
Outro exemplo de repetição encontra-se no fragmento em que a criança que
recontou a história O casamento de Dona Baratinha:
O11B10. aí a Dona Baratinha... num certo tempo ela encontrou... um outro... um outro
bara uma outra Barata só que era uma barata macho... (...)
A criança hesitou em mencionar que a Dona Baratinha encontrou uma barata
macho, provavelmente por ficar indecisa quanto ao masculino de barata e optando pelo
feminino barata acrescido da palavra macho, quando nos explica só que era uma barata
macho.
Para finalizar, extraímos o trecho abaixo da história Gato de Botas em que o
gato come o gigante malvado transformado em rato, com o intuito de tomar posse do
castelo e anuncia aos escravos do gigante:
O14B.39. o feiticeiro morreu... agora eu e meu amo somos somos... somos o seu rei
Ronald repetiu o verbo ser três vezes. Supomos que a criança, ao fazer a
transposição de um texto escrito para um texto oral, utilizou a estratégia da repetição
para ganhar tempo no planejamento e na produção de sentido que esse trecho da história
remetia. Ele a utilizou porque o texto oral tem a peculiariedade de ser produzido on-line,

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fato que nos confere compreender o seu processo de produção sem correções prévias
para sua exposição.

Considerações finais
Em vista da análise desses fragmentos textuais, reconhecemos que as repetições
nos possibilitaram visualizar mais de perto os caminhos que levaram a compreensão e a
(re)produção das histórias pelas crianças que participaram de nossa pesquisa. Para dotar
o texto de sentido em relação ao tempo decorrido, à continuidade e a intensidade das
ações, os narradores utilizaram a estratégia da repetição, como um recurso lingüístico-
discursivo e cognitivo para construção dos sentidos que eles intencionavam produzir no
ouvinte.
Essas estratégias estudadas a partir das repetições foram possíveis pela presença
da literatura infantil nas atividades realizadas na escola, em especial, os contos que
trazem em sua essência a marca da oralidade e a arte de recontar, arte muitas vezes
destinadas apenas ao professor, fato que tem limitado a aprendizagem e a ênfase em
textos orais na escola.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FÁVERO, L.; ANDRADE, M.; AQUINO, Z. G. O. Oralidade e escrita: perspectivas


para o ensino de língua materna. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2003.

KOCH, I. G.V. O texto e a construção dos sentidos. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2001.
(Caminhos da Lingüística).

GONDIM, M.V.C. Conta outra vez...: O texto literário como suporte mediador do
desenvolvimento de narrativas orais. Dissertação. (Mestrado em Educação).
Universidade Federal do Ceará - UFC. 2004. 333f.

MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 3.ed. São


Paulo: Cortez, 2001.

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REUTER, Y. A análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Tradução de Mário


Pontes. Rio de Janeiro: Difel, 2002. (Coleção Enfoques Letras).

RAMOS, J. M. O espaço da oralidade na sala de aula. São Paulo: Martins Fontes,


1999. (Texto e Linguagem).

WEITEN, Wayne. Introdução à Psicologia: temas e variações. Tradução de Maria


Lúcia Brasil, Zaira G. Botelho, Clara A. Colotto, José Carlos B. dos Santos. 4. ed. São
Paulo: Pioneira Thomson, 2002.

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ANTÔNIO CONSELHEIRO: UM EXEMPLO DO PERSONALISMO


BRASILEIRO

Monalisa Lima Torres1


Aline Cristina S. Muritiba2
Profª Ana Maria Tavares (Orientadora)3

Introdução
A partir da década de 1930 inaugura-se no Brasil um novo estilo de pesquisa
científica: o ensaio sociológico. Nesses ensaios, em vez de analisar grandes
acontecimentos históricos (como as guerras de Canudos, do Paraguai, a Independência
do Brasil, entre outros) a novidade é estudar a formação da sociedade, da cultura
brasileira.
Utilizando-se da Antropologia, da História, da Geografia e da Sociologia
estudiosos como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, por
exemplo, se tornaram clássicos da Sociologia brasileira e contribuíram profundamente
para os avanços dos estudos nessa área. “(...) O maior mérito de suas primeiras obras é
ter oferecido uma visão moderna da sociedade brasileira. Sempre apegados à pesquisa
histórica, eles nos legaram interpretação de nossa tradição, em imagens que cobrem a
formação do país desde as origens” (WEFFORT, 2006, pág. 279.)
Nessa perspectiva, de tentar entender a formação da sociedade brasileira,
usaremos como mote teórico o conceito de Personalismo de Sérgio Buarque de Holanda
a partir do personagem histórico que foi/é Antônio Conselheiro. Basearemos nossos
estudos no filme brasileiro “Guerra de Canudos”, de Sérgio Rezende.

Personalismo: característica que veio nas caravelas


Tendo como ponto de partida o estudo de Sérgio Buarque de Holanda
iniciaremos esta discussão (re)pensando o ponto chave de Raízes do Brasil: o
Personalismo.
O ator o conceitua como “(...) importância particular que atribuem ao valor
próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em relação

1
Bacharelanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará – UECE.
2
Bacharelanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará – UECE.
3
Mestre em Literatura comparada pela Universidade de Dijon na França e Professora do Curso de Letras
da Universidade Estadual do Ceará – UECE.

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as semelhantes no tempo e no espaço, devem os espanhóis e portugueses


muito de sua originalidade nacional. Para eles, o índice do valor de um
homem infere-se, antes de tudo, da extensão em que não precise depender
dos demais, em que não necessite de ninguém, em que se baste. Cada qual é
filho de si mesmo, de seu esforço próprio, de suas virtudes (HOLANDA,
2004, p, 32).

Portugal e Espanha não viveram um Período Feudal propriamente dito, isso


explica, em parte, a tese do culto a personalidade. O Feudalismo valorizava o homem
em função dos seus pertences e de seu nome (fidalguia herdada) em detrimento dos
próprios esforços e qualidades pessoais. Daí entende-se como os ibéricos desconheciam
e/ou se negavam a (re)conhecer o princípio da hierarquia.

Toda a hierarquia funda-se necessariamente em privilégios. E a verdade é que


(...) portugueses e espanhóis parecem ter sentido vivamente a irracionalidade
específica, a injustiça social de certos privilégios, sobretudo dos privilégios
hereditários. O prestígio pessoal, independente do nome herdado, manteve-se
continuamente nas épocas mais gloriosas da história das nações ibérica
(HOLANDA, 2004, p. 35).

Prova disso é que, se pararmos para analisar, nas nações ibéricas assim como no
Brasil a relação entre cultura da personalidade e legitimação do poder central
perceberemos que há uma anarquia das instituições e dos costumes, onde não se respeita
as autoridades ou mesmo a hierarquia. Pessoas personalistas resistem em obedecer – é
como se não aceitassem a hierarquia, o poder central, já que “bastam a si mesmas”.
Cabe lembrar, também, que Portugal, como um país marcadamente cristão,
viveu intensamente o período das Cruzadas4 - isso nos mostra como o personalismo
estava enraizado na metrópole. Participar das Cruzadas era privilégio de alguns e
conseguir provar esse caráter de independência do homem perante os outros era uma
virtude para os povos ibéricos. Fazer parte nessas expedições era uma oportunidade que
se tinha de provar seu merecimento, suas qualidades e virtudes, mesmo que, e
principalmente, não fosse nobre (de sangue).
No Brasil esse culto da personalidade chegou até nós através da colonização
portuguesa com auxílio da política de povoamento, a princípio, adotada: Capitanias
Hereditárias ou Sesmarias. As sesmarias eram grandes faixas de terras doadas pelo rei
de Portugal à pessoas (cidadãos portugueses chamados de donatários) que se

4
Expedições militares de cunho religioso contra os mulçumanos que tinham com objetivo tomar as
consideradas “Terras Santas” e pô-las sob domínio cristão.

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encarregariam de produzir nelas. Por serem muito extensas essas propriedades ficavam
muito isoladas umas das outras, por isso era importante e/ou necessário que fossem
“auto-dependentes” – ou que buscassem isso.
Durante esse período (Colonial) não havia cidades. As relações sociais se davam
nas grandes propriedades rurais. A figura do senhor de engenho dominava e era
cultuada tanto na Casa Grande quanto na Senzala e as pessoas legitimavam essa
autoridade – começa aí, no Brasil, o enraizamento do culto a personalidade – todas as
decisões giravam em torno do senhor de engenho. Dessa maneira, as famílias assumiam
caráter de “Repúblicas”.

A esse tempo, a família exerce o máximo de funções sociais, atinge o apogeu


de sua evolução hipertrófica; é um agrupamento político quase completo. Ela
concentrava também, em si, todas as funções sociais: centro de produção,
baseada na propriedade latifundiária e no trabalho escravo, era, mais do que
uma unidade econômica, uma unidade religiosa, com sua religião e seus
deuses, e uma unidade política, com suas leis e sua justiça interior, acima da
qual não haveria outra a que se pudesse apelar, em uma palavra, ‘um pequeno
Estado (PASSOS, 2007).

Hoje, mesmo decadente, o Personalismo ainda persiste na sociedade brasileira –


tanto que elegemos, como presidente da República um candidato bastante carismático.

Brasil pós-proclamação da República


Para início de conversa é interessante ressaltar o contexto histórico brasileiro,
em particular, do sertão nordestino à época da Guerra de Canudos ou um pouco antes
disso.
No Nordeste do país reinava, muito fortemente, o poder dos coronéis (grandes
senhores de engenho/latifundiários). A influência desses homens se dava não somente
em âmbito econômico, como também político e social. Passos descreve esse poder
como caudilhismo “caracterizado pela separação do poder entre líderes locais,
fundamentalmente em regiões rurais. Poder carismático exercido de forma autoritária e
paternalista” (PASSOS, 2007).
Distante do centro de decisões do Império – do poder central do imperador – e
pela própria história de formação do território brasileiro (sesmarias – isolamento das
propriedades rurais) entende-se o motivo de tamanho domínio dos coronéis. Domínio
esse que era “reconhecido” pelo império – já que esse não encontrava outra opção – e

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mascarados, através do paternalismo, para que os sertanejos não sentissem e não


acabassem se voltando contra ele. Esse poder de mando dos grandes proprietários de
terra nordestinos é entendido através de toda a cultura social brasileira. Como nação de
raízes rurais onde o personalismo muito forte atua sem grandes obstáculos é plausível a
influência desses coronéis e/ou de grandes líderes carismáticos como Antônio
Conselheiro.
Com a recente Proclamação da República pouco houve de mudança na vida
social dos cidadãos. A nação ainda preservava fortes características de um país rural. O
patriarcalismo presente nas grandes propriedades permanecia. Aliou-se a isso a
insatisfação do povo perante o poder das autoridades republicanas, que, do nada,
aparecem para reclamar deveres desses cidadãos, até então, esquecidos pelo Estado.
É nesse contexto de desinteresse do Estado em relação às demandas sociais e
insatisfação do povo perante seus “representantes” que surge a figura do beato Antônio
Conselheiro. Num lugar onde o misticismo – também herdado dos portugueses – é
muito acentuado, a idéia de um homem que reclama os direitos sociais do povo e,
principalmente, prega a palavra de Deus ganha corpo e força. Antônio Conselheiro
deixa de ser um “homem comum” transformando-se num líder.

Antônio Conselheiro: de beato à líder carismático


Nascido em Quixeramobim, interior do Ceará, Antônio Vicente Mendes Maciel
conheceu de perto a realidade sofrido do sertão: “miserável, violento, onde a vida
humana nada valia. Matava-se e morria-se por qualquer coisa, de qualquer jeito, por
qualquer meio” (CÁRCERES, 1997, p. 250).
Antônio Vicente Mendes iniciou estudo celibatário, mas em conseqüência da
morte do pai foi forçado a largar os estudos para cuidar de sua família. Depois daí
exerceu várias profissões, casou-se. Após ser abandonado pela esposa, endividado e sem
dinheiro, partiu para a Bahia e iniciou uma vida de peregrinação. Andava pelos sertões
pregando a palavra de Deus, dando conselhos – daí o nome de Antônio Conselheiro. E a
cada lugar que passava ganhava mais seguidores.
Com palavras bonitas – prometendo o reino dos céus aos que sofriam na miséria
do sertão e com o descaso do governo – a figura carismática do beato alcança poder,
que é legitimado pelos sertanejos, e passa a ser única autoridade reconhecida por eles.

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As características de Conselheiro o transformam em líder; um líder carismático,


descrito por Weber como “autoridade que se funda em dons pessoais e extraordinários
de um indivíduo (carisma) – devoção e confiança estritamente confiados em alguém que
se singulariza por qualidades prodigiosas, por heroísmo ou por outras qualidades
exemplares que delem fazem o chefe” (WEBER, 2000, p. 57). Euclides da Cunha ao
escrever Os Sertões percebe a “magia” (poder legitimado através da dominação
carismático) que encanta o povo e os faz seguir Conselheiro.
Ilustrando a força desse poder carismático, o personalismo do beato, recorremos
ao filme “Guerra de Canudos”. O personagem Zé Lucena (interpretado por Paulo Betti)
após receber em casa o beato Conselheiro (vivido por José Wilken), ouve sua pregação,
e convencido de que Conselheiro é um homem santo, o segue em busca da “Terra
Prometida”. No decorrer do longa metragem Lucena é obrigado a tomar decisões que só
o faz após consultar seu “pai Conselheiro”. Outros personagens menos importantes
aparecem igualmente pedindo conselhos ao beato. Todos ouvem o que seu líder tem a
dizer. Em outro momento do filme, Luiza (Cláudia Abreu), filha de Lucena, percebe
que todas as atitudes tomadas por seu pai foram fruto da influência do Conselheiro,
dirigidas pela vontade do velho, causando indignação na moça.
No Brasil onde as pessoas são afeiçoadas à líderes carismáticos, onde o
personalismo permanece firme, não é de se espantar a força que ganhou Conselheiro.
Para Sérgio Buarque de Holanda o brasileiro não sabe dividir responsabilidade – se
alguém acredita que tem a capacidade de resolver um determinado problema, o faz
sozinho; caso contrário, delega essa responsabilidade a outro. Nesse caso, Antônio
Vieira Mendes ganhou o apelido de Conselheiro na medida em que assume a
responsabilidade de tentar guiar/aconselhar/apontar respostas para os problemas dos
sertanejos humildes. Conselheiro auto denominava-se “delegado dos céus”
comprovando/acentuando seu caráter personalista. A grande reflexão do autor é a idéia
de personalizar as pessoas e foi assim que se legitimou e/ou fortaleceu o poder de
Conselheiro. Personalizou-se o beato transformando-o numa alternativa para as formas
tradicionais de dominação, ou seja, um risco à autoridade/poder dos coronéis e do
Estado.

A atuação de Conselheiro como chefe religioso desdobrava-se naturalmente


na de chefe político, deixando sem função os coronéis. O exemplo de

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Canudos, (...) amedrontava as oligarquias sertanejas. Os homens de Canudos


não temiam mais os coronéis, as autoridades políticas e policiais
(CÁRCERES, 1997. p. 252-253).

A partir daí, Conselheiro era entendido como uma ameaça que deveria ser
exterminada junto com sua cidadela. E após três tentativas frustradas, a quarta e última
expedição conseguiu, finalmente, destruir/eliminar do mapa brasileiro o que um dia foi
Canudos. Entretanto não conseguiu apagar da história do país a grande figura que foi
Antônio Conselheiro, muito menos a charqueada (como se refere Euclides da Cunha ao
massacre feito à Canudos) proferida a cidadela do beato. E assim, mas uma vez, “ficou
na história a definição célebre da ‘questão social’ como ‘questão de polícia’. As
reivindicações sociais diriam respeito à ordem pública cabendo ao governo tratar como
desordeiros os que ousassem apresentá-las como demandas ao Estado” (WEFFORT,
2006, p. 225).

Conclusão
Como dizia Sérgio Buarque de Holanda, o triunfo de uma idéia é o triunfo de um
personalismo sobre outro. Percebemos isso no caso acima estudado. Vemos, desse
modo, o personalismo de Conselheiro se sobrepondo à oligarquia sertaneja.
A intenção de Conselheiro não era uma mudança na estrutura social do nordeste,
era, antes de tudo, uma espécie de fuga de uma situação miserável na qual se achavam.
Ele não criticava o sistema republicano em si e como um todo; não propunha uma
modificação desse sistema; muito menos questionava o poder dos coronéis. Apenas não
concordava com algumas modificações que vieram junto com a “luz e o progresso da
República” – como, por exemplo, o pagamento de impostos, o casamento civil [fora da
igreja], entre outros. A grande idéia suscitada por ele era a de fundar uma comunidade
onde “pela vida limpa e piedosa e pelo sofrimento, os fiéis se preparassem para o Reino
de Deus” (CÁRCERES, 2007, p. 252-253).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CÁRCERES, Florival. História do Brasil. 1. ed. São Paulo: Editora Moderna, 1997.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 1. ed. São Paulo: Editora Rideel, 2000.

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FILME GUERRA DE CANUDOS – BATTLE OF CANUDOS, Direção: Sérgio


Rezende. Sony Pictures. Brasil, 1997.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.

PASSOS, Matheus. As origens do personalismo-caudilhismo no Brasil. Brasília,


2007. Acessado em :
http://profmatheus.blogspot.com/search?q=as+origens+do+parnasianismo+caudilho+no
+brasil.

WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Editora Cultrix, 2000.

WEFFORT, Francisco Correa. Formação do pensamento político brasileiro: idéias e


personagens. 1. ed. São Paulo: Editora Ática, 2006.

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ELEMENTOS EMBRIONÁRIOS DAS OBRAS INDIANISTAS DE JOSÉ DE


ALENCAR NAS CARTAS SOBRE A CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS

Nathan Matos Magalhães1


Sandra Mara Alves da Silva2
Marcelo Peloggio (Orientador)3

Introdução
José de Alencar foi o grande defensor de uma literatura legitimamente brasileira,
no âmbito lingüístico, na valorização da natureza e do índio. O autor defendia que nossa
literatura deveria basear-se na exuberância da natureza, na valorização do indígena e
buscar uma dicção mais brasileira. Esses pensamentos foram comuns a muitos teóricos
do século XIX, dentre eles Gonçalves de Magalhães, que até então era considerado
como o maior literato brasileiro por ter iniciado o nosso movimento romântico com
Suspiros Poéticos e Saudades, em 1836.
Em 1856 Gonçalves de Magalhães publica, patrocinado pelos cofres públicos e
em uma edição luxuosíssima, o poema épico A Confederação dos Tamoios, que
intencionava ser a epopeia nacional, um quadro do herói brasileiro e a identidade de
nosso povo.
Nesse período, o escritor cearense que estava como redator chefe do Diário do
Rio de Janeiro, iniciou a publicação de uma série de cartas em que explorava
exaustivamente A Confederação dos Tamoios. Essas cartas chegaram a um total de oito
e apontavam falhas que iam desde a cadência dos versos até a forma como o autor
descrevia a cor do Brasil.
Lendo as cartas, percebemos uma forte ligação entre as ideias nelas apresentadas
e os livros indianistas de José de Alencar: O Guarani (1857), Iracema (1865) e
Ubirajara (1874). O que nos leva a perceber a existência desta ligação? Que relação há
entre as cartas e os livros citados? O que o motivou a publicar tais cartas? Existem
resquícios das cartas nas obras indianistas alencarinas?

1
Graduando do curso Letras Literatura/Português da Universidade Federal do Ceará.
2
Graduanda do curso Letras Literatura/Português da Universidade Federal do Ceará.
3
Doutor em Letras pela Universidade Federal Fluminense, Brasil (2006). Atuação em Literatura
Comparada. Professor Adjunto da Universidade Federal do Ceará, Brasil.

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Trabalhamos com a hipótese de que há uma forte relação entre as cartas e os


livros mencionados, pois percebemos que falhas cometidas por Magalhães são evitadas
nas obras de Alencar. José Aderaldo Castelo chama atenção para o que motivou a
publicação das cartas: “o objetivo determinado, entre outros, de motivar
uma polêmica que, por sua vez, conduziria os críticos ou escritores da época a uma
tomada de posição em face do romantismo brasileiro, particularmente do indianismo
que o caracterizava tão bem” (CASTELLO, 1979).

Metodologia
Este trabalho trata de um estudo comparativo entre as obras indianistas de José
de Alencar e a crítica feita A Confederação dos Tamoios. Nossa pesquisa tem por
objetivo verificar se nas cartas existem elementos embrionários das obras indianistas,
partindo da ideia de que os problemas apontados por Alencar foram “solucionados” nas
suas obras.
Analisamos as principais ideias defendidas pelo autor nas Cartas sobre a
Confederação dos Tamoios, e em seguida demos início à leitura de Iracema, O Guarani
e Ubirajara, observando as influências das ideias contidas nas cartas sobre essas obras.
Confrontamos os principais pensamentos escritos por Alencar em suas cartas,
com passagens das suas obras indianistas e chegamos a conclusão que os pontos
observados por ele como falhas na obra de Gonçalves de Magalhães foram solucionadas
ao compor seus personagens: Iracema, Peri e Ubirajara.

Resultados e Discussão
Utilizando-se do pseudônimo Ig, referente a Iguaçu, heroína do poema de
Magalhães, Alencar, em sua primeira carta começa afirmando: “Não é um juízo crítico
que pretendo escrever sobre o poema do Sr. Magalhães, nem tenho habilitações, nem
tempo para o fazer com a calma e o estudo preciso” (ALENCAR, 1960,P.864). Mas o
que se observa no decorrer da leitura é uma crítica ferrenha, feita com muito
detalhamento e erudição. Isso nos leva a crer que as falhas apontadas seriam
solucionadas, a posteriori, nas obras indianistas do autor: O Guarani, Iracema e
Ubirajara, visto que elas apresentam um aprimoramento das ideias apresentadas. A
respeito disto afirmou Araripe Júnior: “As cartas sobre A Confederação dos Tamoios,

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portanto, nenhum nome melhor teriam do que este: – plano da epopeia que José de
Alencar teria feito, se se colocasse no lugar de Magalhães” (JÚNIOR, 1980, p.148).
O autor de Iracema defendia que a literatura brasileira deveria ter por base não
só a valorização de um herói nacional – papel que deveria ser assumido pelo índio –,
mas também sua produção em língua portuguesa ao modo americano; ele não via em
Magalhães a melhor pintura de nossa terra e de nosso epônimo. Sobre de que maneira
Magalhães descreveu o índio, Alencar diz: “o autor não aproveitou a ideia mais bela da
pintura; o esboço histórico dessas raças extintas, a origem desses povos desconhecidos,
as tradições primitivas dos indígenas, davam por si só matérias a um grande poema”
(ALENCAR, 1960, p.865).
Quanto à metrificação dos versos d’A Confederação dos Tamoios, Alencar
afirma:

Há no seu poema um grande abuso de hiatos, e um desalinho de frase, que


muitas vezes ofende a eufonia e a doçura de nossa língua; tenho encontrado
nos seus versos defeitos de estilo e dicção, que um simples escritor de prosa
tem todo cuidado de evitar para não quebrar a harmonia das palavras (...) um
verdadeiro poeta não tem licença para estropear as palavras, e fazer delas
vocábulos ininteligíveis, enfileirados em linhas de onze sílabas (ALENCAR,
1960, p.867).

O escritor de O Guarani defendia que a harmonia na escrita deveria ser


respeitada pelo autor. Tanto que os cinco primeiros parágrafos de Iracema obedecem à
cadência e à metrificação poética – em heptassílabos ou redondilha maior.
Mesmo escrita em prosa, a dicção alencarina possui uma harmonia e
musicalidade comuns à poesia. Verifica-se então que a crítica feita a Magalhães, quanto
à ausência dessa sensibilidade poética, serviu de guia à obra de Alencar. Sânzio de
Azevedo em sua Releitura de Iracema reproduziu a divisão em redondilhas feita por
Joaquim Nabuco:

Verdes mares que brilhais


como líquida esmeralda
aos raios do sol nascente,
perlongando as alvas praias
ensombradas de coqueiros; (AZEVEDO, 1977)

Apesar de Nabuco preferir que o autor não se utilizasse de “metro na prosa”,


reconhece em Alencar a preocupação com a metrificação e o ritmo da dicção. Vemos a

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sua preocupação em trabalhar cuidadosamente com as palavras no intuito de não perder


a sonoridade, mesmo quando se tratando de prosa.
Quanto ao uso exacerbado de termos indígenas na poesia, o autor de Ubirajara
não concordava que se combatesse o uso de tais termos, pois acreditava que a vida e a
linguagem indiana eram dotadas de poesia. Esse pensamento é retomado em O Guarani,
quando narra as impressões em que Peri deixa nos civilizados a beleza, a simplicidade e
o ar poético do índio:

Cecília não pode reprimir um sorriso ouvindo esse silogismo rude, a que
linguagem singela e concisa do índio dava uma certa poesia e originalidade.
(ALENCAR, 2006, p.60)
O índio começou, na sua linguagem tão rica e poética, com a doce pronúncia
que parecia ter aprendido das auras da sua terra. (ALENCAR, 2006, p.109)
Álvaro fitou no índio um olhar admirado. Onde é que este selvagem sem
cultura aprendera a poesia simples, mas graciosa; onde bebera a delicadeza
da sensibilidade que dificilmente se encontra num coração gasto pelo atrito
da sociedade? (ALENCAR, 2006, p.137)

A nosso ver, o autor de O Guarani responde àqueles que não viam poesia na
linguagem indígena (VARNHAGEM, 1850). Essa linguagem poética, para ele,
provinha da natureza e para compreendê-la era necessário se desfazer do olhar do
homem civilizado.
O autor aponta como falha, em A Confederação dos Tamoios, a abertura do
poema, que considera indigna de uma epopéia. Baseia-se em Milton, Homero, Camões
e Tasso para nos afirmar que um poema épico deve abrir-se por um quadro majestoso,
por uma cena digna do elevado assunto de que vai tratar, diz ele: “não se entra em um
palácio real por uma portinhola travessa, mas por um pórtico grandioso” (ALENCAR,
1960, p.866). E sobre o assunto afirmará: “a poesia, tenho medo de dizê-lo, não está na
altura do assunto (...) a descrição do Brasil inspira-me mais entusiasmo do que o Brasil
da descrição” (ALENCAR, 1960, p.866).
Em O Guarani, estruturado epicamente, lemos o primeiro capítulo como se
olhássemos para um painel. A descrição do cenário realizada pelo escritor servirá de
palco para o restante do livro; o quadro descrito torna-se grandioso e realmente nos faz
visualizar uma pintura magistral, podendo ser imaginado a partir da rica e detalhada
descrição do ambiente que é dada pelo autor. Este afirma que tal pintura não é
encontrada na obra de Magalhães “É força dizer, meu amigo, que o Sr. Magalhães não

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só não conseguiu pintar a ossa terra, como não soube aproveitar todas as belezas que lhe
ofereciam os costumes e tradições indígenas” (ALENCAR, 1960, p.866).
Alencar censura a ausência de uma descrição mais real da beleza das índias de A
Confederação dos Tamoios. Para ele, as ações e a aparência da heroína de um poema
indianista deveriam, no mínimo, estar voltadas para a valorização dessas mulheres.
Ao criar o tipo Iracema, o autor cearense teve a preocupação de não cair no erro
cometido pelo autor de Suspiros Poéticos e Saudades; em Iracema, observa-se o
detalhamento de todas as atitudes tomadas pela heroína. Encontramos na terceira carta o
que poderia vir a ser a personagem, na qual o autor faz a descrição da imagem da bela
índia, já tendo sido idealizada por ele, antes mesmo de ter escrito a obra. Tendo isto em
conta, comparemos a citação encontrada na terceira carta com a descrição de Iracema
encontrada no segundo capítulo da obra homônima, respectivamente:

Sorriu-lhe de longe a imagem graciosa de uma virgem índia, de faces cor de


jambo, de cabelos pretos e olhos negros, com seu talhe esbelto como a haste
de uma flor agreste, com suas formas ondulosas como a verde palma que se
balança indolentemente ao sopro da brisa. (ALENCAR, 1960, p.867)
Além, muito além da serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinham os cabelos mais negros que
a asa da graúna e mais longos que o talhe da palmeira. (ALENCAR, 1965,
p.56)

“Aimbire é um índio valente, mas não é decerto um herói” (ALENCAR, 1960,


p.891). Isto é afirmado por Alencar ao analisar a personalidade do protagonista de A
Confederação dos Tamoios. A fraqueza de caráter, e as ações anti-heróicas de Aimbire
são atestadas pelo autor de Iracema.
Ao lermos O Guarani e Ubirajara observamos que as ações dos heróis estão
cheias de coragem e desejo para alcançar um objetivo; no caso de Peri, salvar Ceci, e no
de Ubirajara, ser chefe de sua tribo.

De pé, fortemente apoiado sobre a base estreita que formava a rocha, um


selvagem coberto com ligeiro saio de algodão metia o ombro a uma lasca de
pedra que se desencravara do seu alvéolo e ia rolar pela encosta.
(ALENCAR, 2006, p.108)
Para ser aclamado guerreiro por sua nação é preciso que o jovem caçador
conquiste esse título por uma grande façanha. (...)
– Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro invencível que tem por
uma arma a serpente. Reconhece o teu vencedor, Pojucã, e proclama o
primeiro dos guerreiros, pois te venceu a ti, o maior guerreiro que existiu
antes dele.(ALENCAR, 1994, p.36)

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É nítido como Alencar soube dar a seus personagens a verdadeira essência épica,
transmitindo valores nobres e fazendo com que ações magnânimas envolvessem os seus
heróis.
Magalhães pecou inclusive na escolha da estrutura usada para narrar as ações de
nosso povo, quando optou pelo uso da epopeia clássica. Alencar não via nesta forma a
melhor estrutura para se narrar a formação de nossa nacionalidade, pois compreendia
que a época exigia uma nova forma de expressão “A forma com que Homero cantou os
gregos não serve para cantar os índios” (ALENCAR, 1960, p.876/976).
Por possuir a convicção de que o uso da epopeia já estaria fora de contexto, via
ele, então, que, naquele momento, o romance seria a forma mais adequada por
apresentar maior flexibilidade na expressão. Sobre a estrutura que mais se adequaria,
Afrânio Coutinho disse sobre Magalhães: “ainda procurava escrever longos poemas
épicos, sob imediata inspiração do que então se fazia no velho continente; não tinha,
portanto, uma compreensão muito justa do problema brasileiro” (ALENCAR, 2002,
p.253). Havia em Alencar a preocupação de desvencilhar a literatura brasileira do estilo
clássico realizado pelos portugueses. Para Alencar “a expressão ardente e animada de
nossa literatura não casa com essa lenta e pausada inflexão da frase antiga”.

Conclusão
Alencar, sempre motivado a escrever uma literatura nacional, cantou o nosso
herói como nenhum outro. Preocupado em criar uma nova maneira de escrever, criou
um estilo peculiar, uma prosa poética. Portanto, José de Alencar, além de crítico,
escritor, teatrólogo, era, acima de tudo, um inovador. Possuindo sempre consciência do
que realizava, realizou umas das mais belas maneiras de escrita em nossa literatura.
Se compararmos o índio de Magalhães aos índios de Alencar, não será possível
concluir que Ubirajara e Peri são tudo que Aimbire não foi? Se nos apoiarmos nos
pensamentos clássicos de Homero, Tasso e Virgílio quanto à formação de um herói
épico, concluímos afirmando que Alencar segue à risca a composição de um herói
épico, o que torna seus personagens superiores aos de Magalhães.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCAR, José de. Iracema. Ed. Comemorativa do Centenário. Imprensa


Universitária do Ceará, 1965.
ALENCAR, José de. O Guarani. Fortaleza. Edições UFC, 2006.
ALENCAR, José de. Ubirajara. Ed. Coleção Grandes Clássicos. São Paulo. FTD, 1994.
ARARIPE JUNIOR, T. A.; COLARES, Otacílio. Luizinha / Perfil Literário de José de
Alencar. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
AZEVEDO, Sânzio. Alencar 100 anos depois. Fortaleza. 1977.
CASTELO, José Aderaldo. Iracema e o indianismo de Alencar. In A Fortuna crítica de
Iracema. Ed. Crítica de M. Cavalcanti Proença. Ed. 2. São Paulo. EDUSP, 1979.
RIBEIRO, Maria Aparecida. Iracema, lenda do Ceará e Cartas sobre “A Confederação
dos Tamoios. Coimbra. Livraria Almedina, 1994.

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LUXÚRIA: LEITURA DE UM PECADO CAPITAL NA IDADE


MÉDIA

Patrícia Elainny Lima Barros (UFC)


Elizabeth Dias Martins (Orientadora/UFC)

O mal já era uma questão amplamente discutida bem antes da Idade Média,
mas foi neste período que ganhou atenção redobrada, a partir da concepção cristã
ocidental. A Igreja cuidou de separar o joio do trigo definindo o que era bom e o que
não era segundo a vontade de Deus; dessa forma, deteve todo o poder e a autoridade
necessários para ditar as regras que deveriam ser seguidas pelos fiéis obedientes ao
princípio do Bem.
Aqueles que transgredissem quaisquer das normas eclesiais estariam se
insurgindo contra os mandamentos divinos e, portanto, cometendo pecado, conforme
definido o § 1849 do Catecismo da Igreja Católica: “uma falta contra a razão, a verdade,
a consciência reta”.
O Mal, então, passou a pecado, uma vez que “para o cristianismo o nome que
melhor identifica o mal é pecado” (AQUINO, p. xi).
O Quarto Concílio Lateranense, ocorrido em 1215, configurou-se como um dos
mais significativos acontecimentos eclesiásticos da Idade Média no que concerne ao
combate ao pecado. A partir de então, a heresia, um dos males a serem dizimados por
decisão do Concílio, seria combatida com duas penas, de acordo com a declaração de fé
ali publicada.
Com intuito de reforçar seus dogmas e combater toda e qualquer forma de
resistência contra a Igreja, esta instituiu, no século XII, a Tribunal do Santo Ofício
através do Papa Gregório IX. Entre as faltas mais duramente perseguidas pelos “fiscais”
da inquisição estava o sexo, responsável por desviar os fiéis do caminho que os
conduzia a Cristo. Vejamos:
O movimento contínuo da Igreja para aprimorar seu controle sobre o
casamento e eliminar as ligações sexuais irregulares, sua propensão a impor o celibato
clerical, o desenvolvimento de um corpo detalhado e coerente de leis da igreja sobre
assuntos sexuais, definindo e prescrevendo condutas pormenorizadamente, são fatores

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que testemunham sobre o desejo da Igreja de exercer um controle sobre toda a


sexualidade dos fiéis. (RICHARDS, 1993, p.25)
Os que se entregavam aos prazeres carnais eram instantaneamente associados
ao Demônio, o difusor do pecado. À época, bruxos, judeus, prostitutas, homossexuais e
leprosos foram identificados como minorias, como pecadores. A luxúria era um vício
comum a todos.
O sexo, segundo a Igreja, principalmente durante o período medieval, estava
ligado à perversão. Relações sexuais só podiam se dar dentro do casamento, para fins de
procriação, e ainda assim deveriam acontecer somente da maneira aceitável pela Igreja:
o homem por cima e a mulher por baixo. O ato sexual jamais deveria ter como meta o
prazer carnal, mesmo entre marido e mulher. As penitências para os que desobedeciam
a essas leis eclesiásticas se concentravam em jejuns a pão e água e em abstinência
sexual durante vários dias seguidos – “em múltiplos de dez” (GESCHÉ, 2003, p.39).
Para se chegar à perfeição, dever-se-ia polir o espírito, cuidar da alma, e isso ia além da
carne.
À época, a mulher devia ser completamente subordinada ao marido –
mentalidade desenvolvida pelos doutos da Igreja – pois que herdeira de Eva, estava na
origem do pecado e sempre ludibriada pela Serpente.
Nos dias de festa religiosa, a prática do sexo era completamente proibida.
Também não podia se dar aos domingos nem nos dias em que a esposa estivesse
menstruando. Dessa forma, o número de vezes que o ato sexual se dava entre cônjuges
era o menor possível, “menos de uma vez por semana” (RICHARDS, 1993, p.40).
Punições severas eram aplicadas também aos que praticavam sexo oral – três
anos de castigo – e sexo anal, independente das variações em que se davam; este último
rebaixava o homem, visto ser dessa maneira que os animais copulavam. A masturbação
e a homossexualidade em qualquer de suas formas também não ficavam atrás.
Em suma, todo e qualquer comportamento que culminasse em prazer sexual era
considerado pecado.
Seduzidas pelo Demônio, as minorias medievais foram as principais vítimas da
sanção eclesiástica no período em questão. Os minoritários eram pessoa consideradas
perigosas para a manutenção da ordem. Por isso, deveriam ser punidas e segregadas da
sociedade.

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Entre os principais perseguidos pela moral eclesiástica medieval estavam os


bruxos (com freqüência, mulheres). Eram acusados de manterem pactos com o Demo,
recusando, então, o Deus cristão. Acreditava-se que a consumação dos acordos
diabólicos se dava na prática do sexo com o próprio Satanás. Assim pensavam os
doutores da igreja a respeito dos bruxos:

Reuniam-se em sabás regulares, os quais envolviam canibalismo, orgias


sexuais e paródias blasfemas dos cultos cristãos. Os bruxos possuíam
“familiares” animais, desfrutavam de poder voar e às vezes da capacidade de
mudar de forma. Recebiam o poder de realizar o mal. Faziam parte uma
conspiração satânica de âmbito mundial, visando a minar o cristianismo.
(RICHARDS, 1993, p.82).

Os bruxos eram culpados por valorizar a carne em detrimento do espírito. A


cópula com o Diabo era comparada ao batismo cristão. O sexo era completamente
desregrado e praticado durante os rituais. As mulheres tomadas por bruxas eram alvo
constante do Tribunal Inquisitório. A luxúria, o amor desvairado, a sedução, e muitas
outras questões ligadas à lascívia são tratadas com detalhes no Mallleus Maleficarum
em Martelo das Bruxas, documento escrito por dois inquisitores respaldados por
Inocêncio III que trata das bruxas, de seus atos, e de como se devia proceder diante de
feitiçarias. Nele, inclusive, faz-se distinções entre atos naturais e os causados por
feiticeiras. Para citarmos um exemplo, vejamos o que diz o Martelo das Bruxas a
respeito da disfunção erétil masculina:

como a impotência, vez ou outra, é causada por frieza natural, ou por alguma
outra falha natural, pergunta-se de que modo seria possível distinguir entre a
determinada por bruxaria e a de outra natureza. Hostiense dá a resposta em
sua Summa (embora esta não deva ser pregada publicamente): “Quando o
membro não fica ereto de forma alguma, e nunca é capaz de realizar o coito,
tem-se então o sinal de impotência natural; todavia, quando se excita e fica
ereto mas, mesmo assim, não consegue realizá-lo, tem-se então o sinal de
impotência por bruxaria.” (MALLEUS, 1991(?), p.137)

Na verdade, as bruxas eram mulheres que causavam algum tipo de desconforto


à sociedade, e sendo mal-humoradas, solitárias, praticantes de medicina popular,
parteiras, foram acusadas de ser anticristãs. Assim, a elas foi atribuído o sortilégio da
magia e do sexo, o que concorreu decisivamente para terem sido transformadas pelos
controladores da boa moral em malignas feiticeiras.

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Os judeus foram também duramente perseguidos pelos inquisitores. Viviam em


meio aos cristãos, mas por pertencerem a outra raça, ter orientação religiosa distinta,
consumir alimentos desiguais e educar suas crianças separadamente, foram
atormentados. A usura, a inveja da riqueza judaica, a tentativa de regrar o pensamento
divergente às crenças cristãs contribuíram para o pensamento antijudáico na Idade
Média. Os judeus tiveram também de se diferenciar dos cristãos virtuosos por meio de
vestes. Assim, como outros hereges, foram responsabilizados por práticas de magias, de
sexo ilícito e por isso, associados ao Diabo.
Também à margem da sociedade ficaram as mulheres prostitutas que
compunham a vida urbana medieval. Segundo Richards (1993, p.121), “as mulheres
entravam para a prostituição por razões basicamente iguais às que levam a fazê-lo em
qualquer época: pobreza, inclinação natural, perda de status, um passado familiar
perturbado, violento ou incestuoso.”
Apesar de ser considerado um ato promíscuo, a prostituição era tida como um
mal necessário, pois mantinha os jovens longe das moças virtuosas, satisfazendo as
necessidades sexuais daqueles, além de atalhar a sodomia. Da mesma forma que os
judeus, tiveram de usar vestes ou acessórios especiais que as diferenciassem. A “luz
vermelha” surgiu nessa época também com o objetivo de segregação.
A vida em luxúria não permitia que as prostitutas gozassem certos direitos
oferecidos pela lei canônica:

A lei canônica impedia que as prostitutas acusassem outras pessoas de crime,


exceto a simonia, e que comparecessem ao tribunal. As prostitutas eram
proibidas de herdar propriedade. Eram consideradas incapazes de ser vítimas
de estupro. Sexo com uma prostituta contra a vontade dela, portanto, não era
passível de punição, segundo a lei canônica. (RICHARDS, 1993, p.134)

Não menos à parte da sociedade ficaram os homossexuais (sodomitas) no


período em questão. Acreditava-se que a prática da sodomia era adquirida de própria
vontade.
Por ir contra a natureza, uma vez que tinha como único fim a reprodução, a
sodomia era tida como pecado, um dos mais graves do período, dadas as rigorosas
penitências que deviam cumprir os que se entregavam a esse mal: “No período inicial da
Idade Média, a punção era a penitência; no período posterior, a fogueira.” (RICHARDS,
1993, p.152)

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Não menos punidos naquele tempo foram os leprosos. As enfermidades físicas


eram interpretadas como conseqüência do pecado, mais precisamente o pecado sexual.
Não havia diferença entre as doenças sexualmente transmissíveis e a lepras. Por isso, os
portadores desta eram proibidos de freqüentar bordéis. As mulheres, em particular, eram
consideradas “fonte potencial de infecção” (RICHARDS, 1993, p.162). O homem que
tivesse relação sexual com uma mulher em período menstrual corria o risco de ser
contaminado pela lepra; e a mulher que tivesse relação sexual com um leproso, mesmo
que não se contaminasse, poderia passar a doença para outro homem com quem se
relacionasse.
Da mesma forma que os judeus, os homossexuais e as prostitutas foram
segregados do convívio social por meio de vestimentas diferenciadas, e os leprosos
também o foram, pois representavam a lascívia, a luxúria, a promiscuidade.
Como podemos perceber, as minorias foram responsabilizadas pela difusão do
Mal e do pecado na Idade Média. Se o Demônio representava a própria manifestação do
Mal, bruxos, judeus, prostitutas, homossexuais e leprosos certamente estavam
mancomunados com Satanás. Sendo a Igreja a entidade que detinha a missão de
propagar a idéia de Deus, era seu dever execrar do convívio em sociedade todo e
qualquer pecador, tal qual fez.
Na literatura, diversos autores fizeram uso de elementos relacionados às más
inclinações humanas causadas e difundidas por Satanás, com que compuseram seus
enredos para dar lições de moral e de boa conduta, como foi o caso de Eça de Queirós.
A fase realista em que se enquadra o romance eciano coincide com o combate a
importantes instituições do período. As teorias deterministas e científicas estavam em
voga. A literatura passou a ser arma de luta em questões sociais, deixando de lado a
“Arte pela Arte” para propor um engajamento. A fim de criticar a hegemonia social
burguesa, os realistas escolhiam seus personagens de forma a demonstrar a decadência
da sociedade por eles considerada hipócrita.
Durante a segunda fase de sua carreira, Eça de Queirós usa palavra escrita para
combater a Monarquia, a Igreja e a Burguesia, instituições vigentes na época. N’Os
Maias, a alta sociedade lisboeta é analisada e criticada através de finas ironias, devido,
principalmente, à insensatez de seus atos, às vezes dialogando com as transgressões
cristãs originadas no contexto medieval.

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Em se tratando de luxúria, encontramos em Os Maias várias relações afetivas


que se dão fora do casamento: Maria Monforte e Tancredo, Raquel Cohe (casada) e
Ega, para citarmos exemplos, sem esquecermo-nos da relação incestuosa que se dá entre
Carlos da Maia e Maria Eduarda.
A sociedade local acreditava ser Maria Eduarda casada com o Conde de
Gouvarinho, já que esta se passava por Condessa de Gouvarinho, sem o ser. A partir de
então, Carlos e Eduarda mantém um relacionamento às escondidas. Mesmo após
descobrirem o grau de parentesco que os unia – eram irmãos –, não conseguiram se
separa de imediato, tamanho era o desejo carnal que mutuamente sentiam.
Levando-se em conta que o enredo eciano acima mencionado está inserido no
século XIX lisboeta, podemos dizer que a mentalidade cristã medieval, quanto à
luxúria, faz-se presente nessa obra, mas de forma nova, em novo contexto. Portanto,
temos aí um resíduo– aquilo que permanece de uma época em outra, dotado de força
capaz de originar nova obra. Dessa forma, a mentalidade mediévica passa por um
processo de cristalização, transformada e recriada em tempo posterior.
Podemos então concluir que a mentalidade eclesiástica medieval encontra-se
inserida n’Os Maias por meio do pecado capital em questão, conceituado pela Igreja em
época de grande perseguição aos pecadores através da chamada Santa Inquisição.
Resíduos do universo cristão se fazem presentes, de modo consistente e considerável,
num romance realista português do século XIX.

*Sobre os conceitos operacionais da Teoria da Residualidade, formulada por Roberto Pontes, conferir
Poesia Insubmissa Afrobrasilusa. Rio de Janeiro / Fortaleza: Oficina do Autor / Edições UFC, 1999.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AQUINO, São Tomás de. Sobre o Mal – Tomo I. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2005.
BLACKBURN, Simon. Luxúria. São Paulo: Arx 2005. – Coleção Sete Pecados
Capitais.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA – Edição Típica Vaticana. São Paulo: Edições
Loyola, 2000.
GESCHÉ, Adolphe. O Mal. São Paulo: Paulinas, 2003. (Coleção Deus para pensar, 1)

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MARTINS, Elizabeth Dias. “Sanção e metamorfose no cordel nordestino: resíduos do


imaginário cristão medieval ibero-português.. In: XIX Encontro Brasileiro de
Professores de Literatura Portuguesa, 2003, Curitiba - PR. Anais do XIX Imaginário: o
não espaço do real - Encontro Brasileiro de Professores de Literatura Portuguesa.
Curitiba-PR : UFPR/Mídia Curitibana, 2003. p. 304-311.
MOSER, Frei Antonio. Pecado: do descrédito ao aprofundamento. Rio de Janeiro:
Editora Vozes, 1996.
NOGUEIRA, Roberto F. O diabo no imaginário cristão. Bauru: EDUSC, 2000.
PONTES, Roberto. “Três modos de tratar a memória coletiva nacional” In: Literatura e
memória cultural – anais. Vol. II. 2º congresso da Associação Brasileira de Literatura
Comparada: Belo Horizonte, 1991.
_______________. Poesia Insubmissa Afrobrasilusa. Rio de Janeiro / Fortaleza:
Oficina do Autor / Edições UFC, 1999.
Eça de Queirós. Os Maias.Vol. I e II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1961.
RICHARDS, Jefrey. Sexo, desvio e danação: as minorias da Idade Média. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1993.
VOUVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 2004.

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DÔRA, DORALINA: PODER E SUBMISSÃO

Raquel Guimarães Mesquita1


Sulamita Vieira2

1. Introdução
Tomei como objeto de estudo o livro Dôra, Doralina, da escritora cearense
Rachel de Queiroz. Publicado pela primeira vez em 1975, a estória é contata pela
personagem Dôra, Doralina, que relata suas memórias, alternando a narração dos fatos
com suas próprias opiniões, idéias e sentimentos. A narrativa ocorre em dois espaços, a
fazenda Soledade, no interior do estado do Ceará e a cidade do Rio de Janeiro, tendo
como recorte temporal três décadas, as de trinta, quarenta e cinqüenta do século vinte.
Dôra, Doralina conta sua estória em duas esferas espaciais principais, marcadas,
cada uma, por um personagem. A estória se passa, então, ora na fazenda Soledade, em
que Dôra aparece sob os olhos da mãe, Senhora (mulher viúva, que administra sozinha
as propriedades da família, exercendo seu poder de mando sobre a filha; as cunhãs, o
genro e os empregados); ora na cidade do Rio de Janeiro, agora não mais submissa à
mãe, mas sim sob a vista grossa do marido, Asmodeu (apaixonado e ciumento, que a
proíbe de continuar atuando, fazendo com que Dôra se transforme em uma simplória
dona de casa).
Analiso, sobretudo, o exercício de mando da personagem Senhora. Como esse
poder era legitimado? Como se estabelecia essa relação de hierarquia entre Senhora, os
empregados e agregados e a filha, Dôra, Doralina? É a partir de uma visão weberiana de
poder que analiso como se dá o processo de legitimação do mando da personagem em
questão.
A pesquisa foi feita baseada em leituras bibliográficas e dentre os autores que
utilizamos para nortear nossa pesquisa, os mais importantes são: Max Weber com o
clássico Economia e Sociedade, Gilberto Freyre, com Sobrados e Mucambos e June
Hanter, em A emancipação do sexo feminino.

1
Universidade Federal do Ceará – UFC.
2
Doutora em Sociologia, professora da Universidade Federal do Ceará – UFC.

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2. Quadro teórico
Segundo Weber, dominação é “a probabilidade de encontrar obediência para
ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de pessoas” (WEBER, 1994,
p.139). Para o autor, existem diversas formas de dominação, pois esta pode se basear
em diferentes tipos de submissão; as pessoas podem estar vinculadas à obediência ao
senhor, por costume, por afetividade ou por interesses materiais. Porém, esses fatores
não são suficientes para o exercício do mando, juntando-se a estes um outro elemento,
que é o que garante o exercício do poder, a legitimidade. É sob este aspecto que Weber
estuda a dominação.
Para o autor, há três tipos de dominação legítima: a racional, baseada em um
conjunto de regras estatuídas que devem ser obedecidas por quem estar ocupando o
poder; nesta, se obedece a uma ordem impessoal, vista a legalidade das decisões dos
superiores que estão sob a legitimidade das leis; a tradicional, baseada na crença da
verdade das tradições vigentes desde sempre; aqui, se obedece a pessoa do senhor,
devido aos hábitos já cristalizados pelo tempo e a carismática, baseada na simpatia, no
espírito heróico, na idéia de santidade, de bom caráter que se tem de quem domina;
aqui, é suposto um líder que, de alguma forma, consegue obter a confiança dos
dominados.

3. A personagem senhora e seu poder de mando


Como Senhora conseguiu ocupar esse lugar, essa posição de mando? De que
maneira ela, na condição de mulher, em uma sociedade ainda marcada pelo
patriarcalismo conseguiu ser respeitada e obedecida? Como conseguiu, sozinha,
administrar uma propriedade e criar uma filha, sem ficar mal falada, sem cair nos
mexericos tão comuns no contexto desenhado? Foi com base nas formulações de Weber
sobre a legitimação do poder que busquei as respostas para essas indagações.
Segundo Weber, verifica-se a existência de dominação quando há a presença de
um chefe, líder ou superior. Assim, encontramos dominação em vários campos da
sociedade: família, Igreja, Estado, partidos-políticos, dentre outros. Porém, o que de fato
caracteriza a dominação é como o poder é legitimado por parte dos dominados; é o que
faz com que as pessoas aceitem ser governadas, administradas, sem questionarem esse
poder. A estrutura social, no que diz respeito à relação de dominação, envolve: o sujeito

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que ordena (dominador) e o conjunto de pessoas (dominados) que obedece


voluntariamente, dando legitimidade ao dominador. Visto que os dominados apenas
obedecem às ordens do superior, eles acabam perdendo o papel de sujeitos da ação
social, passando a ter um papel de meros instrumentos para que a ação do dominador se
realize.
A dominação exercida por Senhora é, segundo a categoria weberiana, de caráter
tradicional. Morrendo o marido sem uma descendência masculina que assuma seu
posto, tradicionalmente, o poder passa à esposa, que assume o papel do marido falecido.
O mando está garantido devido ao costume, como se o poder exercido pelo marido, com
sua morte passasse quase que instantaneamente para a esposa, que, a partir de então,
passa a exercer uma espécie de patriarcado às avessas, visto não ser um homem que está
mandando e sim uma mulher. Os empregados e agregados que antes obedeciam ao
senhor, passam agora a respeitar e obedecer à mulher. Não há, por parte destes, um
questionamento sobre a legitimidade do poder da nova chefe; a crença segundo a qual se
deve obedecer agora a viúva, ante o desaparecimento do marido, está cristalizada e
ninguém se colocará contra a tradição.
O quadro de funcionários de Senhora também se encaixa na categorização
weberiana: são pessoas já ligadas a ela, como a própria filha e depois o genro, Laurindo
e funcionários domésticos, Antônio Amador (vaqueiro), Xavinha, Zeza, Luiza (criadas).
A dominação se dava também em relação à filha, segundo o pensamento
expresso em: “Mãe viúva é mãe e pai” (QUEIRÓZ, 1994, p.25); e vemos a efetivação
desse modo de pensar quando nesta outra citação: “Baile nunca fui, tinha o clube e nos
mandava os convites, mas vai ver se Senhora admitia filha dela botar o pé em bailes
daqueles, onde todo mundo entrava e qualquer moleque caixeiro de loja podia me tirar
pra dançar” (QUEIRÓZ, 1994, p.67). O poder legitimado pela tradição se mostrou tão
forte no caso da dominação de Dôra, que a mesma só pôde se desvencilhar dos laços
maternos quando seu marido faleceu, tornando-se dona de si, sem o dever de dar
satisfações, seja à mãe ou ao cônjuge. Foi só quando seu lugar social se modificou que a
mesma pode “fugir” para uma outra esfera social, na qual o poder de Senhora não
chegava. Foi só quando Dôra se tornou viúva, passando a ocupar o mesmo lugar da mãe
que ela teve coragem suficiente não só para desafiar como também para agir, de fato,
tomando uma atitude concreta e mudando, enfim, sua vida.

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Ao se casar, Dôra voltou para a casa materna, agora com o marido. Os dois
passaram a viver na Soledade, sem pagar nada. Dôra tinha direito à parte da herança que
lhe cabia, o que, teoricamente, lhe possibilitaria o sentimento de proprietária da fazenda;
todavia, não era isso que acontecia:

Pra dizer tudo, naquela casa de Soledade nunca me senti propriamente uma
dona, mais como uma hóspede que não tinha ninguém por mim nem possuía
nada meu. Eram tudo as comadres de Senhora, as cunhas de Senhora, as
cabras de Senhora. A casa de Senhora, o gado de Senhora. Aliás, ninguém no
geral da fazenda nem mais dizia Senhora - só ‘a Dona’. ‘A Dona quer’, ‘a
Dona mandou’ (QUEIRÓZ, 1994, p.28).

Ao voltar para Soledade, Dôra permaneceu na condição de submissa,


continuando a integrar o quadro de funcionários de Senhora. Estando ela e o marido sob
o teto de Senhora e uma vez sendo ambos sustentados pela mesma, não modificaram a
ordem estabelecida; apenas reproduziam o que já estava posto, Senhora exercendo seu
poder legitimado pela tradição. A inserção de um casal dentro da dinâmica da fazenda e
da tradição daquela época não se mostrava com força para alterar o costume vigente.
Ao se casar com Dôra e passando a morar na fazenda, sendo o único homem,
Laurindo poderia se achar na condição de mando; mas, como Dôra descreve:

[Laurindo] [e]ra o senhor macho naquela casa de mulheres, parecia até que os
ares mudavam. Se bem que ele não fosse o dono nem mandasse em nada e
pedisse tudo por favor (pois nem ele tinha ousadia de disputar o lugar de
Senhora), mas era o filho querido, o sinhozinho a quem todo mulherio os
fazia os gostos, correndo (QUEIRÓZ, 1994, p.49).

Laurindo era o “sinhozinho querido”, paparicado pelas mulheres, não porque


ocupava o poder de mando; na verdade, o personagem nunca se mostrou numa posição
de superior; estava mais para parasita, ou aproveitador, como certas pessoas
comentavam: “Não se vê que casando com a viúva ele só pega metade da meação dela,
porque a outra metade é herança da filha? Mas casando com a moça leva logo a legítima
do pai e depois vem a herança da mãe, direta, sem repartimento” (QUEIRÓZ, 1994,
p.26). Mesmo após o casamento, Laurindo não assumiu o papel de provedor da mulher:
“Dinheiro, por exemplo, ele nunca me deu [...] Também nas despesas da casa não
entrava com nada”. (QUEIRÓZ, 1994, p.49). Em nenhum momento o personagem
pretendeu medir forças com Senhora. Sua condição de homem, o que supostamente lhe

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possibilitaria uma posição privilegiada em relação a Senhora, só fez com que as cunhãs
o adulassem; mas, em termos práticos de legitimidade de mando, não surtiu nenhum
efeito. Senhora era o homem da casa e isso ninguém conseguiria mudar, “Só havia um
homem, que era Senhora” (QUEIRÓZ, 1994, p.45).
Antônio Amador, braço direito de Senhora era o único que recebia pagamento,
devido também a um costume, qual seja: a cada quatro bezerros nascidos, um era dele.
Os outros empregados não recebiam nenhum salário fixo. As cunhãs que trabalhavam
na casa não tinham ordenado fixo, dormiam e se alimentavam na casa, à custa do
dinheiro de Senhora. Não há registro de um pagamento mensal pré-estabelecido entre as
partes. Amador, além de vaqueiro foi designado como uma espécie de administrador,
costume corriqueiro: o vaqueiro fazia sempre mais do que simplesmente tomar conta do
gado, como ilustra o seguinte trecho: “[m]as talvez o de admirar é que Amador não
tinha apenas medo dela; também lhe tinha amizade e fazia sem discutir tudo que ela
mandasse. E Senhora confiava nele, lhe queria bem, deixava Amador escolher as
bezerras da sorte [...]”(QUEIRÓZ, 1994, p.186).
Não existia também uma preocupação com a formação dos funcionários; não era
necessária nenhuma especialização para realizar o trabalho na fazenda; as cunhãs
cuidavam da casa, limpavam, cozinhavam, lavavam roupa, faziam alguma costura e isso
se aprendia no dia a dia, com a própria vida. Na dominação tradicional não existe esse
tipo de cuidado, uma vez que as funções desenvolvidas pelos funcionários também são
executadas devido a crença na tradição. Assim como existe a Sinhá que manda, também
existem as cunhãs que obedecem, realizando o trabalho designado pela primeira.

4. Considerações finais
Foi através da teoria weberiana que procuramos explicar de que maneira
Senhora conseguiu fazer valer sua autoridade não só sobre a filha, como também sobre
o genro e os funcionários da fazenda. Utilizando o conceito de dominação tradicional,
abarcamos a realidade apresentada no romance e analisamos os discursos das
personagens, observando uma aproximação entre a lógica apresentada no livro de
Rachel e a que regia organizações sociais existentes no sertão nordestino, conforme
indicado em outras fontes literárias. Se entendermos a literatura como processo
mimético, tendo em mente, claro, que o autor tem autonomia para criar sobre essa

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representação imediata do real, podemos dizer que a autora de Dôra, Doralina


representou com maestria a realidade imediata, tão bem que o comportamento e a forma
de organização social dos personagens se dão tal qual se daria na própria realidade
imediata.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENDIX, Reinhard. Max Weber, um perfil intelectual. Capítulo XI, Dominação


Tradicional. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1996.

FALCI, Miridan. Mulheres do sertão nordestino. In: DEL PRIORE, Mary


(organização). História das mulheres no Brasil. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2000.

HANTER, June. A emancipação do sexo feminino: a luta pelos direitos da mulher no


Brasil, 1850-1940. Florianópolis: Ed. Mulheres, Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003.

QUEIRÓZ, Rachel de. Dora, Doralina. 9. ed. São Paulo: Siciliano, 1992.

SAINT-PIERRE, Héctor L. Max Weber: entre a paixão e a razão. Parte II, Do agir
metódico à decisão valorativa. 2. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.

WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.


Capítulo III, Os tipos de dominação. 3. ed. Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 1994.

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DESSACRALIZAÇÃO DO DISCURSO, REESCRITURA E CÂNONE: OS


DOZE NÓS DE HERBERTO HELDER

Roberto Bezerra de Menezes


Cid Ottoni Bylaardt (Orientador)
Universidade Federal do Ceará

Jorge Luis Borges, no conto “Pierre Menard, autor de Quixote”, do livro Ficções
(2007), oferece-nos grande oportunidade de refletir sobre a ideia de escrita e de
originalidade, além da figura do autor e do próprio leitor. Intentando escrever a obra de
Cervantes em pleno século XX, Menard

não queria compor outro Quixote – o que seria fácil – mas o Quixote.
Inútil acrescentar que nunca levou em conta uma transcriação
mecânica do original; não se propunha copiá-lo. Sua admirável
ambição era produzir páginas que coincidissem – palavra por palavra
e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes. (2007, p. 38)

Tão ambicioso projeto parece-nos ser calcado numa impossibilidade, o que o


próprio personagem reconhece, sabendo que para levar a cabo tal façanha teria de ser
“imortal”. Lembrando que no conto, ao transcrever uma passagem escrita por Cervantes
e a empreendida por Menard, Borges não mostra diferença nenhuma entre ambas, o que
pode ser entendido como o sucesso ou o fracasso do projeto. Pensando mais
especificamente na singularidade de um texto, como podemos receber essa atitude de
Pierre Menard? Estaria ele desestabilizando algo sacralizado pelo cânone ocidental?
Teria, pois, o poder de tocar o texto de Cervantes? Ora, é sabido que da mesma maneira
que nós leitores do mundo não podemos modificar diretamente uma obra literária, ainda
mais uma que está no cânone ocidental, um leitor-autor de papel como Pierre Menard
também não consegue fazê-lo.1
Entretanto, se pensarmos na posição do tradutor, em que medida ele toca o texto
literário escrito primeiramente por outrem? É ele também responsável pela difusão,
leitura e interpretação de uma dada obra? Ambos partilham, autor e tradutor, uma
imagem, a que o texto ganha numa determinada sociedade?

1
Por hora não cabe falar das possibilidades que a leitura de um texto literário oferece.

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Propomo-nos aqui a tecer algumas reflexões sobre o processo de tradução como


reescritura, dessacralizando a proeminência do discurso primeiro sobre o traduzido,
mais especificamente no caso da poesia, usando como objeto poemas do livro Doze nós
numa corda (1997), de Herberto Helder. Tencionamos ainda especular em que medida o
autor cria sua tradição e como essas relações implicam diretamente na sua criação
poética. Esta leitura leva em conta a visão de André Lefevere, principalmente no livro
Tradução, reescrita e manipulação da fama literária (2007). A relação entre
dessacralização do discurso, o processo de reescritura e o estabelecimento do cânone,
assim como a construção da poética particular de Helder a partir de suas afinidades
eletivas, nortearão nossa discussão.

1 – Reescritura e tradução

No livro Tradução, reescrita e manipulação da fama literária (2007), André


Lefevere incita-nos a pensar acerca da tradução como reescritura de um texto na medida
em que dialoga diretamente com a noção de cânone e a repercussão de uma obra num
dado contexto político e cultural. Lefevere acredita que o texto literário traduzido, ou
reescrito, sofre influências em sua recepção, podendo tanto ajudar quanto dificultar a
sua aceitação. Para ele, uma obra tem sempre de dividir o espaço com as reescrituras
efetivadas, sejam elas traduções, inserções em antologias, resenhas críticas, adaptações
teatrais ou fílmicas etc.

No passado, assim como no presente, reescritores criaram imagens de


um escritor, de uma obra, de um período, de um gênero e, às vezes, de
toda uma literatura. Essas imagens existiam ao lado das originais com
as quais elas competiam, mas as imagens sempre tenderam a alcançar
mais pessoas do que a original correspondente e, assim, certamente o
fazem hoje. (2007, p. 18-9)

Em outro livro, Translating literature (1994), o autor deixa-nos claro o que


considera reescritura:

Traduções, monografias, extratos em antologias e histórias literárias


têm dois traços em comum: referem-se a livros que não eles mesmos e
reivindicam representá-los. Não têm razão para ter existência própria.

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Não são “escrituras”, como os textos sobre os quais escrevem são; são
“reescrituras”.2

O problema em tratar da referência à coisa e não da coisa em si, princípio básico


da linguagem, cabe perfeitamente na visão de Lefevere. Assim, uma tradução qualquer
seria antes de tudo uma percepção através de uma subjetividade, no caso a do tradutor,
já que a objetividade na tradução é hoje rechaçada por conta da inclusão de outros
fatores além da linguagem no processo, como os aspectos socioculturais, por exemplo.3
Uma tradução é, portanto, uma referência ao texto original, não tendo existência
própria diretamente, mas somente através da ciência do texto fonte, mas o que nem
sempre é pensado pelos leitores. Por mais que se considere uma tradução como
legítima, sempre será uma representação do texto original, mostrando acúmulos de
subjetividades, não somente a do autor.
O que Lefevere inicialmente coloca como menos presente no processo, o “valor
intrínseco” da obra, parece-nos discutível. Desconsiderar que exista algo na obra que a
mantenha no cânone, ou que ao menos a faça ser considerada de bom gosto, é resumir o
problema do valor literário desconsiderando seu próprio objeto: a literatura. Ora, sabe-
se que o gosto realmente é exterior à obra, mas realiza-se nela e com ela. Muitas são as
mudanças no gosto ao correr dos séculos e, como bem disse Antoine Compagnon, “a
instabilidade do gosto é uma evidência desconcertante para todos aqueles que gostariam
de repousar em padrões de excelência imutáveis” (2001, p. 253-4).

2 - Os doze nós de Herberto Helder

Parece-nos claramente ser Herberto Helder um desses poetas exemplares de que


os teóricos de literatura se ocupam em vida. Sua poética calcada em experimentações
estéticas, eivada de traços surrealistas, transporta-nos a espaços imaginativos criados
numa linguagem fraturada, fragmentada, movendo-se no risco que a destruição da
língua permite, ou, nas palavras de Gilles Deleuze em Crítica e clínica (2000), “é um
estrangeiro na sua própria língua: ele não mistura outra língua à sua língua, ele talha na

2
Original: Translations, monographs, extracts in anthologies, and literary histories all have two features
in common: they refer to books other than themselves and they claim to represent these books. They have
no reason to exist on their own. They are not “writing” as the texts they write about are; they are
“rewriting”.
3
Importante dizer que, aqui, não será trabalhada a transposição de originais no processo tradutório
atrelada diretamente aos aspectos socioculturais, o que demandaria maior espaço para aprofundamento.

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sua língua uma língua estrangeira que não preexiste. Fazer gritar, fazer gaguejar,
balbuciar, murmurar a língua nela mesma” (p. 149). As “«antropofagias» gramaticais”
de Helder sugerem esse mesmo poder de desconstrução e de busca de renovação da
linguagem, das maneiras de expressar o poético. Deleuze afirma ainda que “a literatura
apresenta já dois aspectos, na medida em que ela opera uma decomposição ou uma
destruição da língua materna, mas também opera a invenção de uma nova língua dentro
da língua, por criação de sintaxe” (p. 15-16), e complementa mais à frente: “Para
escrever talvez seja preciso que a língua materna seja odiosa, mas de tal modo que uma
criação sintática trace aí uma espécie de língua estrangeira, e que toda a linguagem
revele o seu exterior, para além de toda a sintaxe” (p. 16). As operações linguageiras
aplicadas por Helder não se restringem à sintaxe, mas ultrapassam e muito a embalagem
da língua, subvertendo os significados usuais, fazendo uma palavra ser muito mais o
que não é efetivamente.
Decorrente dessa tensão da linguagem é o estranhamento do poeta com a sua
própria língua materna. O que poderia causar maior conforto e segurança acaba por
desestabilizar toda a estrutura dos poemas e de sua poética em geral. Assim, é na busca
dessa nova língua, na irrupção de uma voz poética, que Herberto Helder, em um duplo
movimento complementar, destrói e constrói o seu caminho que, como ele mesmo
aponta, é essencialmente feito de questionamentos: “[...] conheço agora a existência de
uma pergunta inesgotável que se formula, se assim posso dizer, pela objectivação dos
arredores evasivos, das alusões, dos sinais remotos” (HELDER, 2001, p.191).
A “pergunta inesgotável” da qual Helder fala é consequência da “dupla falta”
que, no ensaio “A criação do texto literário”, do livro Flores da escrivaninha (1990),
Leyla Perrone-Moisés assinala: “A literatura nasce de uma dupla falta: uma falta sentida
no mundo, que se pretende suprir pela linguagem, ela própria sentida em seguida com
falta” (p. 103). A insatisfação diante do real é o que faz com que o escritor recaia na
ilusão de tentar mostrar o que falta ou de apontar o que deveria ser. Não podemos,
assim, confundir linguagem e vida, pois “a linguagem não pode substituir o mundo,
nem ao menos representá-lo fielmente. Pode apenas evocá-lo, aludir a ele através de um
pacto que implica a perda do real concreto” (p. 105).
Giorgio Agamben, no livro Estâncias (2007), relaciona essa condição da
linguagem com a “fratura original da presença”, e que somente através do “diabólico”

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(o que atravessa), em vez do “simbólico” (o que une), denunciaríamos “a verdade deste


conhecimento” (p. 219). O conjunto de saberes denominado metafísica ocidental,
trabalha no discurso formulando verdades com palavras e na ausência do objeto. A
literatura e a filosofia são questionadoras e operam na desconstrução da metafísica,
enquanto outras áreas fazem uso dela. Agamben complementa dizendo que “aquilo que
vem à presença, vem à presença como lugar de diferimento e de uma exclusão, no
sentido de que o seu manifestar-se é, ao mesmo tempo, um esconder-se, o seu estar
presente, um faltar” (p. 219). E se a linguagem é faltante, como o poeta pode trabalhar
nessa impossibilidade, seja criando ou recriando, escrevendo ou reescrevendo?
No início de sua tâche de traducteur, Herberto Helder reuniu poemas do antigo
Egito, do Velho Testamento, maias, astecas, esquimós e indochineses, no livro O
bebedor noturno, de 1966. Em 1988, Helder publica As magias, também composto de
versões (como o autor nomeia nos dois volumes). Apenas em 1997, com os títulos
Ouolof, Poemas ameríndios e Doze nós numa corda, voltamos a ter acesso às escolhas
pessoais de Herberto Helder e, nos três volumes, temos o que o poeta chama de
“poemas mudados para o português”, deixando de lado a nomenclatura “versão”.
Herberto Helder, em Doze nós numa corda (1997), apresenta poemas de Edgar
Allan Poe, de Antonin Artaud, de Carlos Edmundo de Ory, de Henry Michaux e de
Hermann Hesse. Aqui, exporemos apenas o poema de Edgar Allan Poe, “Israfel”, e as
versões de Stéphane Mallarmé, Antonin Artaud e a que o próprio Helder fez. Como está
explicitado na capa do livro, não se trata de uma reunião de traduções empreendidas
pelo autor, mas, por princípio, do que ele chama de “poemas mudados para o
português”. Essa atitude revela muito mais do que uma simples nomenclatura. Estamos
aqui diante de uma posição teórica e pessoal acerca do processo de tradução, que deixa
de ser efetiva e terminologicamente tradução. Temos, assim, uma mudança no poema,
que, por conseguinte, deixou de ser o mesmo. Ora, parece exagerado supor que a
mudança de língua gere também uma mudança no poema, mas, como sugere Haroldo de
Campos, a

tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação


paralela, autônoma porém recíproca. Quanto mais inçado de
dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto
possibilidade aberta de recriação. Numa tradução dessa natureza, não
se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua
fisicalidade, sua materialidade mesma. (grifo do autor, p. 35)

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No poema de Poe, vemos a figura do anjo Israfel e seu canto místico que,
comparado ao canto do homem-poeta, encanta e emudece a todos que a ele tem acesso.
Lembremos do canto das sereias, que lança sobre os marinheiros um feitiço de ordem
desconhecida, seduzindo com seu terrível canto e levando-os a sucumbir.

No céu vive um coração de que as fibras são as cordas de um alaúde


como a alma de uma labareda, no céu mais alto.
Não há tão selvagem canto no fundo do absoluto como
o canto deste alaúde em voragem
angélica, que é a corda vibrante do coração do Anjo
Israfel. (1997, p. 21)

Numa leitura focalizada na criação literária, vemos o canto do anjo que forma o
mundo, céus e terra, que parte de si, de seu corpo, fonte inesgotável da criação literária,
predominantemente orgânica, assim como para Helder o é o do poeta. Assim,
percebemos a confluência entre as duas poéticas, que, nesse caso, multiplicam-se: não
podemos considerar somente Edgar Allan Poe e Herberto Helder, mas também devemos
a Stéphane Mallarmé e a Antonin Artaud a leitura do conjunto. Este último
principalmente, pois Helder muda a primeira versão que Artaud fez, e não o faz a partir
do original de Poe. Percebemos, nessa atitude, mais uma vez, a dessacralização do
original frente as reescrituras empreendidas posteriormente. Helder poderia ter realizado
sua mudança a partir do original de Poe, mas as afinidades entre ele e Antonin Artaud,
tanto na criação quanto na recriação, levou-o a seguir por tal caminho.
Constatamos que, tanto para Artaud quanto para Helder, o processo de tradução
ou reescritura ou mudança em poesia, funde-se ao de criação, na medida em que ambos
não se predem em questões simplificadoras de igualdade, mas, essencialmente,
adentram nas diferenças entre os textos, na impossibilidade de apresentar o mesmo,
abandonando a ideia de imagem-cópia. Assim como na produção, tem-se na reescritura
um forte embate com o abismo da linguagem, a inevitabilidade em lidar com o estranho,
que não é nem a língua materna do tradutor, nem a do poema original, mas a língua
estrangeira da qual Deleuze afirma ser feita a poesia. Assim como Helder desconstroi
sua língua materna em prol de sua poética particular, ele o faz com os textos que de
tanto admirar empreende mudanças e os publica.

2 – A tradição, o cânone, a ruptura

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A atitude de Herberto Helder de publicar os “poemas mudados para o


português” cria-nos uma suposição: poderia ele estar revelando sua possível tradição
literária? Ao passo que investiga, lê, reescreve e publica textos tidos por não-canônicos,
estaria Helder subvertendo a ideia de cânone, ou melhor, criando seu cânone particular,
longe do já massificado conhecido por ‘ocidental’? A princípio pode parecer
pretensioso estabelecer o cânone de um autor simplesmente por suas publicações, mas,
como se sabe, Herberto Helder não é dado a entrevistas, o que nos obriga a especular
quando o assunto é ele, não suas obras.
Borges acredita que a tradição está na própria linguagem e que o jogo que ela
nos obriga a enfrentar é o desafio máximo de um poeta.

[...] não há dúvida de que Homero tinha seu Homero, já que a


literatura sempre pressupõe um mestre, ou uma tradição. Pode-se dizer
que a linguagem já é uma tradição, cada linguagem é uma tradição,
cada linguagem oferece uma série de possibilidades e também de
impossibilidades, ou de dificuldades. (2009, p. 160)

Assim, podemos claramente supor que a tradição e o cânone que rodeiam as


escolhas de Herberto Helder são da ordem da linguagem; afinidades que perpassam pelo
seu gosto literário e que se mostram nas experimentações linguageiras. Sabemos que “o
cânone não é fixo, mas também não é aleatório e, sobretudo, não se move
constantemente. É uma classificação relativamente estável, e, se os clássicos mudam, é
à margem, através de um jogo, analisável, entre o centro e a periferia” (COMPAGNON,
2001, p. 254). Entretanto, Herberto Helder, ao escolher deslindar esses poemas, não se
ocupa basicamente com a ideia de centro/periferia que o cânone traz, mas,
essencialmente, com o que lhe apraz literariamente, apesar de nunca ter se manifestado
sobre o fato, pois não é dado a entrevistas.
Tanto em seus escritos, quanto nos reescritos que ora pensamos sobre, vemos
um poeta que busca ir além do que a linguagem usual nos diz. Nisso podemos fazer uma
aproximação entre o fazer poético e a tradução, ou mudança de Helder. Ambos são atos
que desestruturam a linguagem, trabalham na incerteza e constroem um caminho que
independe de normas da língua ou de estética.
Para tanto, cabe ainda pensar que a leitura participa de tal processo. Ora, quando
um autor se doa para a escrituração, ele tem em si todas as leituras já feitas. O mesmo

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acontece com a reescritura. Além do texto fonte, que de alguma maneira deve servir ao
propósito, e sua utilização varia de tradutor para tradutor, de um posicionamento teórico
para outro, ou mesmo de um texto para outro, já que cada texto exige uma atitude
diferente no momento da tradução, cada texto suscita palavras, termos e formas
diferentes, mesclam-se ao ato as leituras pessoais e as escolhas de outra ordem de
subjetividade. Temos uma superposição de subjetividades e, portanto, não mais apenas
um texto. Leyla Perrone-Moisés diz que

no ato de recriação da obra pela leitura, a proposta inicial se amplia e


as intenções primitivas do autor são superadas. Entre o dizer e o ouvir,
entre o escrever e o ler, ocorrem coisas maiores do que os propósitos
de um emissor e as expectativas de um receptor: há um saber
inconsciente circulando na linguagem, instituição e bem comum de
autores e leitores. (1990, p. 109)

Se considerarmos que todo processo de tradução/mudança exige uma leitura e


que cada leitura é feita de subjetividade (mesmo que com pretensões objetivas dos
“engravatados” da Crítica), podemos voltar a questionar: em que medida Helder toca o
texto literário escrito primeiramente por outrem? É ele também responsável pela
difusão, leitura e interpretação dos poemas? Os autores e Helder partilham uma
imagem, a que o texto ganha numa determinada sociedade?
Tarefa árdua e sísifica a de quem se aventurar em destrinchar tais caminhos, já
que são reduzidas as possibilidades de conclusão. Procuramos não diretamente verificar
em que medida cada autor escolhido para compor o livro pode ter alguma aproximação
com a poética de Helder, mas, muito mais, ocupamo-nos em pensar a atitude do poeta.
Como Helder coloca na epígrafe do livro Doze nós numa corda: “Saisir: traduire. Et
tout est traduction / à tout niveau, en toute direction.” Além de agir na
tradução/mudança de poemas, Helder se mostra reflexivo sobre o processo, levando-nos
a pensar que mesmo na criação temos tradução, já que a mediação está presente em
qualquer procedimento da linguagem, e mediar é traduzir.
Podemos, por fim, afirmar a proeminência da diferença como parte da
tradutologia, inclusive no processo de reescritura. Nunca será possível uma tradução
idêntica ao original, tanto por diferenças linguageiras e estéticas, quanto por estarem
delimitadas em solos culturais diferentes, e nisso vale lembrar que acontece tanto na
produção quanto na recepção. Pensemos, assim, num diálogo que se estabelece entre o

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texto fonte ou original e as suas versões, traduções e mudanças, havendo certa


aproximação entre eles, mas nunca identificação plena.

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007.
BORGES, Jorge Luis. “Pierre Menard, autor de Quixote”. In: ______. Ficções. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
BORGES, Jorge Luis; FERRARI, Osvaldo. Sobre a filosofia e outros diálogos. São
Paulo: Hedra, 2009.
CAMPOS, Haroldo de. “Da tradução como criação e como crítica”. In: ______.
Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2006.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Lisboa: Edições Século XXI, 2000.
HELDER, Herberto. Doze nós numa corda. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997.
HELDER, Herberto. Entrevista. In: Inimigo Rumor, n. 11. Rio de Janeiro: 7letras, 2°
semestre de 2001.
LEFEVERE, André. Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. Bauru, SP:
Edusc, 2007.
LEFEVERE, André. Translating literature: practice and theory in a comparative
literature context. New York: The Modern Language Association of America, 1994.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.

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A PASSAGEM DO MÍTICO PARA O HISTÓRICO EM


IRACEMA

Rodrigo Vieira Ávila de Agrela1


Marcelo Almeida Peloggio (Orientador)2

“A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro; mas não repetia já o


mavioso nome de Iracema. Tudo passa sobre a terra.” (José de
Alencar, Iracema)

1. Introdução
Neste trabalho nos preocupamos em mostrar um ambiente panteísta em Iracema.
A virgem tabajara é uma heroína mítica que está atrelada a uma atmosfera pura,
harmônica e que tudo que precisa busca na natureza.
No decorrer da leitura da obra percebemos que os índios Tabajaras possuem um
respeito pela natureza que o cercam. Como se cada elemento que constitui o espaço em
que vive fizessem parte de um todo, de um universo homogêneo. A obra possui uma
visão Panteísta, ou seja, a personificação de Deus na natureza. Os elementos são
descritos por Alencar em uma esfera, onde só existe uma substância ou natureza, um ser
único e absoluto.
Trabalharemos com a hipótese de que há uma cisão em duas partes: a Iracema
mítica, que vive em uma relação perfeita com a natureza, e a Iracema histórica, que aos
poucos perde a sua essência mítica e que serve de alegoria para contar a história do
Ceará.

2. Fundamentação teórica
Este trabalho tem como foco fazer uma analise em Iracema e descobrir a cisão
onde acontece a passagem da ambiência mítica para a ambiência histórica. Para chegar-
se a esta conclusão baseamos nossos estudos em duas idéias essenciais: panteísmo e
totalidade do ser.

1
Estudante de Letras pela Universidade Federal do Ceará; membro do grupo de estudos José de Alencar –
UFC.
2
Professor Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense; Professor Adjunto
de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Ceará (UFC); coordenador do grupo de estudos José
de Alencar.

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O panteísmo desenvolve a ideia de que Deus é infinito e está em toda parte,


manifesta-se na natureza. Portanto, tudo é parte integrante de Deus. Ele é imutável, sua
inteligência se revela nas suas obras. Podemos até confundir o criador com a criatura
Walter Brugger (1977), concebe o panteísmo de várias maneiras, “como vida
(Bérgson), como substância imutável (Spinoza), como ser abstrato indeterminado
(Hegel),como absoluto (Fichte), como vontade cega (Schopenhauer), como ideia e
vontade ao mesmo tempo (Ed. Von Hartmann)” (BRUGGER , 1977, p.311).
Já a ideia de totalidade descrita por Georg Lukács no seu livro Teoria do
romance é bem complexa. Lukács (2000) afirma que a alma repousa em si e que
“encontra um centro próprio e traça a seu redor uma circunferência fechada”
(LUCÁKS, 2000, p.25). Ainda diz que

o mundo homogêneo e tampouco a separação entre homem e mundo, entre eu


e tu é capaz de perturbar sua homogeneidade. Como qualquer outro elo dessa
rítmica, a alma encontra-se em meio ao mundo; a fronteira criada por seus
contornos não direfe, em essência, dos contornos das coisas: ela traça linhas
precisas e seguras, mas separa somente de modo relativo; só separa em
referencia a e em beneficio de um sistema homogêneo de equilíbrio adequado
(LUCÁKS, 2000, p.29).

3. Metodologia
O desenvolvimento desta pesquisa, de caráter exploratório, deu-se a partir das
leituras de Teoria do Romance, de Georg Lukács em diálogo com o livro Iracema, de
José de Alencar, durante o período de abril a junho de 2009. Acrescenta-se a estas
leituras o conceito de panteísmo de Walter Brugger, muito importante para o
desenvolvimento deste artigo.
Foi feita a leitura desses teóricos e, logo após, fomos identificar no livro de
Alencar trechos que comprovassem a ideia de panteísmo de totalidade do ser.

4. Resultados e discussões
Trabalharemos com a hipótese de que há uma quebra na narrativa de Alencar. O
autor, no inicio da narrativa, trabalha com elementos inseridos em um espaço mítico;
mas acontece uma quebra na narrativa que faz com que Iracema, elemento principal do
espaço mítico, passe para uma ambiência histórica. Dentro desse contexto a personagem
vai servir como elemento alegórico para explicar a história do Ceará.

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No romance, existe um momento da narrativa que serve como símbolo dessa


quebra. É quando Iracema e Martim se conhecem:

Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco


partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido.[...] O
sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem
lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa
que causara.[...] Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao
desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.
O guerreiro falou:
— Quebras comigo a flecha da paz? (ALENCAR, 2005, p.91 e 93).

Quando Martim diz: “quebras comigo a flecha da paz?”, vemos uma simbologia
dessa cisão. Seria o acontecimento primordial que divide a narrativa: a Iracema mítica
vai dando espaço para a histórica. Nesse momento, Alencar demonstra muito bem o
primeiro contato do branco com o índio. Este vive em um mundo livre, independente,
sem nenhuma interferência. Mas o branco vai ser o responsável por mudar os costumes
do nativo. Iracema, como vimos, vivia em um mundo harmônico. Tinha estreita relação
com os seres da natureza, mas aos poucos a virgem dos lábios de mel vai perdendo esse
caráter mítico. Ao fazer a escolha de como quer viver, se entrega à paixão.

4.1. Iracema Mítica


Iracema é exaltada por Alencar como símbolo da natureza. Por isso, é um ser
pleno, que vive em um mundo fechado, sem nenhuma perturbação e angústia. No
começo do romance, vemos, como foi explicitado no tópico anterior, que a virgem de
tupã busca o que precisa na natureza.
A virgem dos lábios de mel é vista como um ser divino, guardiã de um segredo
fundamental: O segredo da Jurema. O fato de ser a portadora deste segredo faz com que
a índia de Alencar fique mais próxima da plenitude divina. Podemos ver no ritual da
fabricação do mel que em Iracema, manifesta-se a divindade com maior ênfase, ou seja,
um panteísmo imanente – transcendente.

— Estrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ela que guarda o segredo
da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o pajé a bebida de
Tupã (ALENCAR, 2005, p.101).

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Iracema, depois que ofereceu aos guerreiros o licor de Tupã, saiu do bosque.
Não permitia o rito que ela assistisse ao sono dos guerreiros e ouvisse falar os
sonhos (ALENCAR, 2005, p.195).

Quando acontece a cisão, Iracema escolhe seguir Martim e desde então vai
perdendo o caráter mítico. No próximo trecho fica clara a submissão da índia ao
europeu

Iracema acendeu o fogo da hospitalidade; e trouxe o que havia de provisões


para satisfazer a fome e a sede[...] Depois a virgem entrou com a igaçaba, que
enchera na fonte próxima de água fresca para lavar o rosto e as mãos do
estrangeiro (ALENCAR, 2005, p.95 e 97).

Ao longo da narrativa, a virgem de tupã se envolve cada vez mais e nutre uma
dependência pelo homem branco; um choque de culturas que a atrai e,
conseqüentemente, a distancia de suas raízes.
Alencar vai contando as ações da virgem enquanto tira-a do cenário mítico. A
jandaia, que no começo da narrativa era a sua mais fiel companheira e amiga, é deixada
de lado, simbolizando o afastamento de Iracema e seu desligamento com a natureza.

Se repetia o mavioso nome da senhora, o sorriso de Iracema já não se voltava


para ela, nem o ouvido parecia escutar a voz da companheira e amiga, que
dantes tão suave era ao seu coração.[...] Mas agora, triste e muda, desdenhada
de sua senhora, não parecia mais a linda jandaia, e sim o feio urutau que
somente sabe gemer (ALENCAR, 2005, p.143).

A partir de então, acontece o fato que é a representação da quebra total entre o


mítico e o histórico. Iracema e Martim têm a primeira noite de amor:

Agora podia viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo, que ali
viçava entre sorrisos, como o fruto na corola da flor. Podia amá-la, e sugar
desse amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da virgem.
O gozo era vida, pois o sentia mais vivo e intenso; o mal era sonho e ilusão,
que da virgem ele não possuía mais que a imagem (ALENCAR, 2005,
p.187).

É importante notar que, a partir desse acontecimento, Alencar se refere à


Iracema não mais como a virgem, mas como a “senhora” ou a “esposa”. Agora, vai
prevalecer a Iracema histórica; aquela anterior, a mítica, já não está presente na
narrativa. A índia deixa de ser a protagonista da história e passa a ser um elemento

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alegórico para contar os conflitos entre o índio e o branco, a história do Ceará e o


nascimento do primeiro brasileiro.

4.2. Iracema Histórica


Continuando a cronologia dos fatos, destaca-se aqui a Iracema histórica, sem
harmonia com a natureza, que rompe com o meio e faz a escolha de seguir Martim.
Nessa jornada, movida pelo amor e totalmente submissa, é capaz de quebrar as ligações
com o próprio sangue, ou seja, Iracema é capaz de matar o irmão, Caubi, para proteger o
branco europeu, ato que não chega a finalizar.

Iracema, unida ao flanco de seu guerreiro e esposo, viu de longe Caubi e


falou assim:
— Senhor de Iracema, ouve o rogo de tua escrava; não derrama o sangue do
filho de Araquém. Se o guerreiro Caubi tem de morrer, morra ele por esta
mão, não pela tua.
Martim pôs no rosto da virgem olhos de horror:
— Iracema matará seu irmão? (ALENCAR, 2005, p.209).

Alencar continua a narração e, até então, a índia vive feliz com o branco. Não
lembra da sua tribo e não se arrepende de ter deixado a terra. O elo de ligação entre a
índia e Martim aumenta cada vez mais. Porém, Martim começa a ficar entediado com a
convivência com Iracema e lembra da virgem que deixou na Europa. Viver ali já não é o
suficiente, ele precisa voltar para a sua terra. Começa então a sair em jornadas com Poti
para ajudar os Pitiguaras a combater outra nação indígena, uma forma de refúgio,
deixando Iracema sozinha e grávida.

A triste esposa e mãe só abriu os olhos, ouvindo a voz amada. Com esforço
grande, pôde erguer o filho nos braços e apresentá-lo ao pai, que o olhava
extático em seu amor.
— Recebe o filho de teu sangue. Chegastes a tempo; meus seios ingratos já
não tinham alimento para dar-lhe! (ALENCAR, 2005, p.315).

É importante destacar que embora Iracema, nesta parte da narrativa, seja uma
alegoria para contar a história do Ceará e nela já não predomina a essência mítica, a
índia de Alencar ainda possui uma relação com a natureza. Está em territórios novos,
mas ela sabe como conseguir o que precisa. Porém, já não tem o mesmo equilíbrio que
tinha no início da narrativa, a esposa de Martim começa a ficar triste e sente a falta de
seu esposo.

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Outro fator importante é o aparecimento da jandaia que faz Iracema reviver as


lembranças da sua terra natal e ainda mostra a ligação entre natureza e a índia. Mas o
espaço cósmico é invadido por um sentimentalismo e angústia da personagem. Talvez a
ave seja o único elemento simbólico que ligue a índia com a natureza A esfera total do
ser pleno já está violada e ela já não encontra na natureza as respostas para solucionar
suas perguntas.
Iracema ao final da narrativa vive à espera de Martim. Foi a sua escolha seguir
Martim; e faria isso até o fim. Voltar para a sua tribo não poderia e nem queria. Dentro
desse contexto, Iracema morre, talvez de tristeza, talvez como necessidade de selar
definitivamente a sua ligação com a terra. Ela percebia que o amor que Martim sentia
antes, já não era o mesmo. E o seu filho, Moacir, seria o filho da sua dor, uma metáfora
para simbolizar as suas angustias.

5. Conclusão
Após a análise exposta neste trabalho, confirmamos que existe uma quebra na
narrativa. O cenário descrito por Alencar faz com que percebamos de forma clara esta
cisão. A virgem tabajara, no início do romance, é inserida num mundo mítico e de
acordo com o desenvolvimento dos fatos se desloca para um mundo histórico.
Este trabalho é muito importante, pois serve como ponto inicial para se
desenvolver um trabalho maior, ou até mesmo, outras pesquisas, baseadas nas ideias
metafísicas expostas aqui. O mundo alencarino é muito rico. Sempre haverá nas obras
de José de Alencar algo para se pesquisar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCAR, José de. Iracema: lenda do Ceará - 140 anos. Edição bilíngüe e reprodução
fac-similar do francês de 1928. Org. Ângela Gutierrez e Sânzio Azevedo. Fortaleza:
Editora UFC, 2005.
BRUGGER, Walter. Dicionário de Filosofia. 3. ed. São Paulo: Editora Pedagógica e
Universitária, 1977.
COUTINHO, Afrânio. Literatura no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editorial Sul
Americana, 1969.
LUCÁKS, Georg. Teoria do Romance.São Paulo: Editora 34, 2000.

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TRÊS RESÍDUOS EM PASÁRGADA

Rosiane de Sousa Mariano Aguiar1


Prof. Dr. Roberto Silveira de Pontes Medeiros (Co-autor)2
Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros (Orientador)3

O propósito do presente trabalho é saber onde é Pasárgada ou por onde andava a


imaginação de Bandeira na construção do poema. Vamos aos versos de “Vou-me
embora pra Pasárgada”:

Vou-me embora pra Pasárgada


Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada


Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica


Andarei de bicicleta
Montarei em burro brado
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo


É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

1
Doutoranda em Literatura Comparada/UFRN.
2
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras/UFC.
3
Professor do Departamento de Letras/UFRN.

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E quando eu estiver mais triste


Mas triste de não de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
(BANDEIRA, 1986, p. 117)

Leiamos as palavras de Bandeira sobre a feitura desse poema e sua significação:

“Vou-me embora pra Pasárgada” foi o poema de mais longa gestação em


toda minha obra. Vi pela primeira vez esse nome de Pasárgada quando tinha
os meus dezesseis anos e foi num autor grego. Estava certo de ter sido em
Xenofonte, mas já vasculhei duas ou três vezes a Ciropédia e não encontrei a
passagem. O doutor frei Damião Berge informou-me que Estrabão e Arriano,
autores que nunca li, falam na famosa cidade fundada por Ciro, o antigo, no
local precioso em que vencera a Astíages. Ficava a sueste de Persépolis. Esse
nome de Pasárgada, que significa “campo dos persas” ou “tesouro dos
persas”, suscitou na minha imaginação uma paisagem fabulosa, um país de
delícias, como o “L’Invitation au voyage” de Baudelaire. Mais de vinte anos
depois, quando eu morava só na minha casa da rua do Curvelo, num
momento de fundo desânimo, da mais aguda sensação de tudo o que eu não
tinha feito na minha vida por motivo da doença, saltou-me de súbito do
subconsciente esse grito estapafúrdio: “Vou-me embora pra Pasárgada!”
Senti na redondilha a primeira célula de um poema, e tentei realizá-lo, mas
fracassei. Já nesse tempo eu não forçava a mão. Abandonei a idéia. Alguns
anos depois, em idênticas circunstâncias de desalento e tédio, me ocorreu o
mesmo desabafo de evasão da “vida besta”. Desta vez o poema saiu sem
esforço como se já tivesse pronto dentro de mim. Gosto desse poema porque
vejo nele, em escorço, toda a minha vida; e também porque parece que nele
soube transmitir a tantas outras pessoas a visão e promessa da minha
adolescência – essa Pasárgada onde podemos viver pelo sonho o que a vida
madrasta não nos quis dar. Não sou arquiteto, como meu pai desejava, não fiz
nenhuma casa, mas reconstruí e “não como forma imperfeita neste mundo de
aparências”, uma cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de Ciro, e
sim a “minha” Pasárgada (BANDEIRA, 1997, p. 341).

É possível detectar três resíduos4, um da mitologia e dois da Literatura,


povoando o imaginário poético de Bandeira em Pasárgada. O primeiro e mais distante
paraíso estava:

Na parte ocidental da Terra, banhada pelo Oceano, [onde] ficava um lugar


abençoado, os Campos Elísios, para onde os mortais favorecidos pelos deuses

4
A Teoria da Residualidade, no campo dos estudos literários, foi desenvolvida pelo pesquisador Roberto
Pontes (1999), segundo o qual “a residualidade é aquilo que remanesce de um tempo para outro, podendo
significar a presença de atitudes mentais arraigadas no passado próximo ou distante” (PONTES, R.,
2003, p. 88, Nota 3).

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eram levados, sem provar a morte, a fim de gozar a imortalidade da bem-


aventurança. Essa região feliz era também conhecida como os Campos
Afortunados ou Ilha dos Abençoados (BULFINCH, 2001, p. 8).

As palavras de Bandeira a respeito de Pasárgada, “paisagem fabulosa e país de


delícias”, trazem certa aproximação com o substrato mais antigo da idéia de Paraíso. Na
mitologia, Elísion era um “Lugar também conhecido como Ilha dos Bem-aventurados
(Makaron Nésoi), onde as criaturas humanas queridas pelos deuses desfrutavam depois
de mortas uma existência completamente feliz” (KURY, 2001, p. 12).
No Itinerário de Pasárgada, Bandeira diz que sabia de cor Os Lusíadas.
Portanto, é certo que sua imaginação também estava a captar os prazeres da “Ilha dos
Amores” no texto camoniano. No canto nono, a partir da estrofe 20, vale a pena ver o
momento em que os nautas param para descansar:

Algum repouso enfim, com que pudesse


Refocilar a lassa humanidade
Dos navegantes seus, como interesse
Do trabalho que encurta a breve idade.
Parece-lhe razão que conta desse
A seu filho, por cuja potestade
Os Deuses faz descer ao vil terreno
E os humanos subir ao Céu sereno.

Isto bem resolvido, determina


De ter-lhe aparelhada, lá no meio
Das águas algũa ínsula divina,
Ornada de esmaltado e verde arreio,
Que muitas tem no reino que confina
Da mãe primeira co’o terreno seio,
Afora as que possui soberanas
Para dentro das Portas Herculanas.

Ali quer que as aquáticas donzelas


Esperem os fortíssimos barões
- Todas as que têm título de belas,
Glória dos olhos, dor dos corações –
Com danças e coreias, porque nelas
Influirá secretas afeições,
Para com mais vontade trabalharem
De contentar a quem se afeiçoarem.

(CAMÕES, 1979, p. 320)

Três semelhanças apresentam os textos dados à comparação: a parada, a


recompensa e o desejo por prazeres amorosos. Tanto Pasárgada quanto a “Ilha dos
Amores” representam paradas para descanso e recompensa pelo desafio do dia-a-dia

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para deleite amoroso. Assim como a “Ilha dos Amores”, de Camões, é, alegoricamente,
a recompensa pelas lutas dos navegantes, Pasárgada é compensação de tudo o que
Bandeira não podia fazer por causa da doença. Os nautas repousam “Do trabalho que
encurta a breve idade” e o eu-lírico bandeiriano deita-se à beira-rio e “[manda] chamar a
mãe-d’água” que, na cultura popular, é a Yara, certamente, a mesma figura que os
nautas avistam “lá no meio / Das águas algũa ínsula divina / Ornada de esmaltado e
verde arreio”.
A quarta estrofe de “Vou-me embora pra Pasárgada”, verso 6, nos faz saber do
último resíduo literário encontrado n’Os Paraísos Artificiais (1851), de Charles
Baudelaire.5 A substância química, citada por Bandeira no poema, encontra consonância
com as drogas “Do vinho e do Haxixe”, referidas por Baudelaire. Essa equivalência
pode ser lida no seguinte comentário de Mário Pontes no artigo, que precede a obra do
autor francês:

O eixo da visão do mundo baudelaireana é uma certa noção de queda, exílio e


degradação. Para alguns, essa noção é a mesma da Bíblia. [...] Para ele, no
entanto, parecia importar menos o motivo da Queda – fosse ela o que fosse -,
e muito mais a conseqüência, a dramática privação do Paraíso. Essa
tendência tinha a ver com a sua formação, mas também, e muito com a sua
própria infância, quando se sentiu expulso do Éden familiar pela morte do pai
e o novo casamento da mãe. Numa atitude mais estóica do que cristã, o
homem baudelaireano assume a queda, mas não se resigna a ela para sempre.
Atirado à certeza, procura, por diferentes meios, recuperar o seu primitivo
jardim. O uso de drogas, Baudelaire admitia, é uma tentativa de reconquistá-
lo “de um só golpe” (PONTES, M., 2002, p. 348).

A aproximação do texto de Bandeira com o de Baudelaire é somente em relação


à menção a droga em Pasárgada, pois se, para este, essa prática foi verídica, para aquele,
por causa das privações que a tuberculose lhe impunha, o “alcalóide à vontade”6 talvez
tenha ficado no plano poético, no paraíso simbólico, conforme a definição da palavra
“paraíso”. Além disso, Pasárgada não traz a idéia de expulsão, privação, queda, exílio e
degradação. Pelo contrário, a poesia foi tábua de salvação para os infortúnios de
Bandeira e o seu “desabafo de evasão da vida besta”. Pior que a de Baudelaire foi sua
vida, pois o recifense perdeu a família inteira e o mal da tuberculose o acompanhou por

5
Bandeira foi leitor d’Os Paraísos Artificiais, de Baudelaire, pois comenta a respeito desta em “Flauta de
Papel” (BANDEIRA, 1997. p. 135).
6
Bandeira também escreve a propósito do vinho em “Bacanal” (Carnaval) e registra outra droga no
poema “Não sei dançar” (Libertinagem).

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longos anos. Mas encontrou na poesia braços acolhedores que o mantiveram altivo até
os 82 anos. Em Pasárgada, viveu “pelo sonho o que a vida madrasta não [lhe] quis dar”.
Bandeira admite que o nome Pasárgada suscitou-lhe uma “paisagem fabulosa”, como o
“L’Invitation au voyage”7 de Baudelaire. Esse “país de delícias” também guarda certa
aproximação com a obra Utopia, de Thomas Morus e com a obra República, de Platão.
Nesta, o filósofo grego idealiza uma cidade ideal, constituída por homens perfeitos, pois
exerciam bem as funções atribuídas pela polis. Porém, no campo do poético, tanto
Baudelaire quanto Bandeira, apenas idealizaram um lugar de delícias. Já, os escritos de
Thomas Morus e Platão projetaram um modelo político, com a pretensão de ser seguido
pelos políticos. Pasárgada não é propriamente uma utopia, pois nela temos o reino em
que Bandeira projetou sua energia criativa, desprendeu-se da poesia formal, deixou-o
livre para soltar a imaginação. A inventividade no seu jogo bandeiriano permitiu a
realização de um fazer amadurecido, longe de qualquer proibição, academicismo caduco
ou senso lógico. Não somente Pasárgada, mas toda a lírica de Libertinagem é
independente de formas rígidas, coincidindo, no plano semântico, com o tudo que é
permitido na ilustre cidade do poeta.
Em “O Pintor da Vida Moderna”, de Charles Baudelaire, encontramos maior
ressonância entre esses dois poetas. Leiamos suas palavras:

Ora, a convalescença é como uma volta à infância. O convalescente goza, no


mais alto grau, como uma criança, da faculdade de se interessar intensamente
pelas coisas, mesmo por aquelas que aparentemente se mostram mais triviais.
Retornemos, se possível, através de um esforço retrospectivo da imaginação,
às mais jovens, às mais matinais de nossas impressões, e constataremos que
elas possuem um singular parentesco com as impressões tão vivamente
coloridas que recebemos ulteriormente, depois de uma doença, desde que esta
tenha deixado puras e intactas nossas faculdades espirituais. A criança vê
tudo como novidade; está sempre inebriada. Nada se parece tanto com o que
chamamos inspiração quanto a alegria com que a criança absorve a forma e a
cor. [...] Mas o gênio é somente a infância redescoberta sem limites; a
infância agora dotada, para expressar-se, de órgãos viris e do espírito
analítico que lhe permitem ordenar a soma de materiais involuntariamente
acumulada. É à curiosidade profunda e alegre que se deve atribuir o olhar
fixo e animalmente estático das crianças diante do novo, seja o que for, rosto
ou paisagem, luz, brilhos, cores, tecidos cintilantes, fascínio da beleza
realçada pelo traje (BAUDELAIRE, 2002, p. 856).

7
Em “O convite à viagem”, poema que integra a obra As Flores do Mal, de Baudelaire, há,
semelhantemente à Pasárgada, um lugar, vivido na fantasia do eu-lírico baudelaireano, de beleza, de
liberdade e de exuberância (BAUDELAIRE, 2002, p. 145).

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O francês atribui à infância a força salvadora para quem está num período de
convalescença; já o brasileiro encontrou, na arte, pelo viés da infância, a força e o prazer
para a cura da doença. No poema “À Sombra das Araucárias”, de A Cinza das Horas,
admitiu ser a arte a “fada que transmuta / E transfigura o mau destino.” Não obstante,
encontra, na poética da infância, o testamento que o torna dono da Pasárgada, sua
“ilustre cidade”. O poeta admitiu a verdade de sua vida no âmbito poético e “só no chão
da poesia [pisou] com alguma segurança” (BANDEIRA, 1997, p. 346). Benjamim
Abdala explica:

No espaço carente, o poeta sofre toda sorte de limitações; no futuro, em


Pasárgada, tem toda felicidade. Neste espaço de sonho ele é irreverente,
libertino. Lá o poeta encontra um rei bonachão, que assumiria a paternidade
de uma infância mítica, atualizada em suas formas lúdicas, próprias do jogo
poético (ABDALA JR., 1991, p. 559).

Eis, pois, o mundo rico de analogias encontradas em “Vou-me embora pra


Pasárgada”. Destes, aprendemos onde estava a imaginação do poeta na feitura do texto
lírico. Bandeira foi assíduo leitor da mitologia, do Classicismo Português e do
Simbolismo europeu, condição que faz dele o poeta mais representativo do Modernismo
Brasileiro, segundo as palavras de seu amigo Mário de Andrade, com as quais
concordamos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABDALA Jr., Benjamim. Utopia e Memória Cultural: Literaturas e Línguas. In: Anais
do 2º Congresso da Abralic. V. I. Belo Horizonte, 1991, p. 551-561.
AGUIAR, Rosiane de S. Mariano. Das cinzas à Pasárgada: a infância como itinerário
na lírica bandeiriana. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira). 139 f. Fortaleza:
Programa de Pós-Graduação em Letras da UFC, impresso, 2007.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
______. Seleta de Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna. In: Poesia e Prosa. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 851-881.
______. Os Paraísos Artificiais. In: Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
2002, p. 351-366.
______. As Flores do Mal. In: Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p.
102-256.
BULFINCH, Thomas. O livro de Ouro da Mitologia: História de Deuses e Heróis. São
Paulo: Ediouro, 2001.

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CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Abril Cultural, 1979.


KURY, Mário da Gama. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2001.
PONTES, Mário. Notícia para Os Paraísos Artificiais. In: BAUDELAIRE, Charles.
Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 347-350.
PONTES, Roberto. Mentalidade e Residualidade na Lírica Camoniana. In: CASTRO E
SILVA, Odalice de; LANDIM, Teoberto (orgs.). Escritos do cotidiano: Estudos de
Literatura e Cultura. Fortaleza: 7 Sóis, 2003, p. 149-159.

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A PROSA DOUTRINÁRIA COMO FONTE PARA O CONHECIMENTO DA


CIÊNCIA MEDIEVAL: MEDICINA E FARMÁCIA NO LIVRO DA CARTUXA

Samantha de Moura Maranhão1

Introdução
Este trabalho contextualiza a Prosa Doutrinária na sócio-história em que se
desenvolve, quando da instauração da Dinastia de Avis e a constituição de uma nova
corte, de cuja instrução moral e técnico-científica dependia a sua aceitação pelas demais
cortes européias. O registro do conhecimento técnico-científico nas obras então
produzidas as torna excelentes fontes históricas, a exemplo do Livro da Cartuxa,
compilação de textos sobre os temas mais variados, como administração, astronomia,
economia, educação, engenharia, política, saúde e tradução, anotados por D. Duarte
entre os anos de 1423 e 1438.
O objetivo deste estudo é analisar o vocabulário de 25 capítulos do Livro da
Cartuxa que versam sobre Medicina, Farmácia e Nutrição, o qual registra o
conhecimento, nestas áreas, de que os portugueses quatrocentistas eram dotados.
Analisam-se aqui os vocábulos distribuídos por 04 campos semânticos: 1. doenças e
sintomas; 2. saúde; 3. tipos de medicamentos e 4. unidades de peso e medida.
A hipótese testada é a de que o vocabulário dos capítulos analisados testemunha
conhecimentos, práticas e crenças peculiares à ciência medieval, havendo, em cada
campo semântico, formas hoje caracterizadas como arcaísmos ou obsoletas. A
fundamentação teórica se pauta na Teoria dos Campos Semânticos, conforme proposta
por Trier (1931) e a metodologia empregada é constituição de campos semânticos
mediante análise semasiológica do vocabulário do corpus.
Concluiu-se pela corroboração da hipótese, dado que todos os campos
semânticos investigados registram vocábulos que já não mais se usam ou que sofreram
mudança semântica.

A prosa doutrinária e o Livro da Cartuxa

1
UFPI/UFC/CAPES.

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No século XV, verifica-se, em Portugal, menor interesse pela expressão lírica.


Morto D. Fernando, assumiu a regência sua viúva, Da Leonor Teles, de origem
castelhana, a qual pretendia restituir Portugal ao reino de Castela. A Batalha de
Aljubarrota (14 de agosto de 1385) determinou a liberação de Portugal do jugo
estrangeiro. Em 1411, D. João I, Mestre de Avis, instaurava a dinastia joanina,
cumprindo a seu filho, D. Duarte, consolidá-la (SARAIVA, 1996, p. 118-122;
SARAIVA, 19--, v. 3, p. 79-88; MATTOSO, 19--, v. 2, p. 494-498; OLIVEIRA
MARQUES, 1996, p. 117-118).
A instituição da Dinastia de Avis levou à reestruturação da sociedade,
especificamente à substituição da aristocracia até então vigente, aliada dos interesses de
Castela, pela burguesia comercial e marítima do Porto e de Lisboa, o que demandou a
sua imediata educação, nos planos moral e técnico, inclusive, fato de que dependia a sua
aceitação junto às demais cortes européias (António Sérgio, 1972, p. 31; SOARES
AMORA, v. 2).
No período em que governam os reis e príncipes da Casa de Avis, a Prosa
Doutrinária tem livre curso em Portugal. Interessa-nos aqui a produção literária de D.
Duarte, filho primogênito de D. João I com Da Felipa de Lancaster, nascido em 1391 e
morto em 1438, tendo sido o décimo primeiro soberano português. Três são as obras
conhecidas de D. Duarte: o Leal Conselheiro, o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar
Toda Sela e o Livro dos Conselhos d’El Rei (ALVES DIAS, 1982, p. xiii.).
O Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte é também conhecido como Livro da
Cartuxa, por ter existido uma cópia sua no Convento da Ordem Cartuxa de Scala Coeli,
em Évora. Nesta obra, a menos conhecida de D. Duarte, há 97 capítulos, redigidos entre
os anos de 1423 e 1438. Publicou-se uma edição diplomática da mesma, elaborada por
Alves Dias, apenas em 1982, embora constitua rica fonte de informações sobre a
sociedade e a história portuguesas que, inadvertidamente, não tem sido explorada de
modo satisfatório (ALVES DIAS, 1982, p.xiii).

A teoria dos campos semânticos


A teoria dos campos semânticos resulta da aplicação de princípios estruturais
saussureanos aos estudos semânticos. Até então “atomicistas”, por analisarem, no
âmbito da Lingüística historicista do século XIX, a evolução do sentido de um único

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vocábulo em diferentes fases da língua cujo sistema lexical integra, passa-se, na


perspectiva da Lingüística de primórdios do século XX, à análise do sentido de um
conjunto de vocábulos que compartilham traços semânticos, em determinado momento
da história da língua sob análise. Assim, os conceitos de sincronia e sistema passam a
integrar e a dominar as pesquisas semânticas (ULLMANN, 1967, p. 22-23; LEHRER,
1974, p. 15).
Quanto à Metodologia, e com base em conceitos referenciais de significado, que
associam, recíproca e reversivelmente, nome e sentido, a noção do vocabulário como
estrutura permite distintas abordagens dos dados: a pesquisa onomasiológica ou busca
das designações de um sentido, a exemplo da pesquisa dialetológica de designações
regionais de um sentido, e a pesquisa semasiológica, que incide sobre os sentidos
vinculados a um significante, ilustrado pelos dicionários gerais de língua.
No estudo de campos semânticos se emprega o método semasiológico, isto é,
agrupam-se vocábulos que têm em comum determinado(s) sema(s). Aqui, o campo
semântico “alimentos e bebidas” é constituído por micro-campos que tipificam os
referentes designados pelos vocábulos que o integram: dentre os alimentos. No sentido
inverso, o estudo das designações de um conceito caracteriza a pesquisa
onomasiológica, a exemplo das designações dos tipos de cura e de prevenção de
doenças, quando se arrolam os vocábulos que os nomeiam, na constituição de campos
lexicais (ULLMANN, 1967, p. 132-133).
As pesquisas sobre campos semânticos têm destaque a partir de Trier (1931),
que, em monografia sobre vocábulos do campo do conhecimento no alemão do século
XIII, estudo posteriormente estendido aos vocábulos do século seguinte, concebeu-os
como setores entrelaçados do vocabulário, delimitando-se mutuamente, dado que a
mudança no sentido de um dos vocábulos acarretou a reorganização do sentido em
todos os demais e a reconfiguração do campo (ULLMANN, 1967, p. 494-496, 508-512;
LEHRER, 1974, p. 15-16).

Metodologia
Analisados os 97 capítulos do Livro da Cartuxa, selecionaram-se 24, um dos
quais desdobrado em 02 textos, perfazendo o total de 25 textos. Atribuímos a estes
capítulos tornados corpus de pesquisa uma nova numeração de 01 a 25. Dado alguns

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textos estarem inseridos em capítulos mais extensos, com temática distinta da que ora
nos interessa, procedemos ao recorte dos mesmos. Mantiveram-se títulos ou partes de
títulos atribuídos pelo editor, para identificação do conteúdo dos textos.
Constituem o corpus deste estudo os textos abaixo relacionados, aqui
apresentados com a numeração que lhes atribuímos e o número do capítulo consoante a
edição diplomática de Alves Dias. Um asterisco (*) indica os textos que não tiveram o
seu título ou parte deste considerado na análise dos dados do corpus e o duplo asterisco
(**) indica não ter sido o texto considerado na íntegra. [01, 16] [Carta do Doutor Diogo
*, **
Afonso] (excerto 1) ; [02, 16] [Carta do Doutor Diogo afonso] (excerto 2) *, **; [03,
69] Este Regym(en)to deue ter o que filhar os pos do teixugo; [04, 70] Esta he reçepta d
agoa p(er)a dor d olhos; [05, 71] Reçepta de mezinha v(er)de p(er)a os olhos; [06, 72]
*,**
Regimento que fez o muy claro s(e)n(ho)r rey dom eduart(e) ; [07, 73] P(er)A as
tetas das molheres quando paryrem.; [08, 74] P(er)a restringuyr o fluxo do ue(n)tre; [09,
75] Contra as febres q(ue) no(n) uenha(m) e contra outras muytas dores de dentes; [10,
76] Esta mezinha he boa p(er)a a frieldade que esta no oso ou Ju(n)tura; [11, 77] Esta he
a reçeita das mezinhas q(ue) prestão p(er)a a corrença segundo os remedios que a fernão
da Sylua foro(m) feitos, Prymeiram(en)te no Começo da dita corrença; [12, 78]
Mezinha p(er)a quando cae(m) os mamilos; [13, 79] Mezinha p(er)a a corre(n)ça; [14,
81] Regime(n)to que o home(m) deue d(e) ter p(er)a auer em pouco tempo boa lena, e
he este o qual deu a el rey noso s(enh)or mosse(m) Joa(m) marsala e lhe dise que o
ouuera do seniscal de frança *; [15, 83] Poos do duque; [16, 84] Como se faze(m) as
pirolas comu(n)s; [17, 85] P(er) esta guisa se ha de tomar a herua p(er)a as maleytas;
[18, 86] Esta he a mezinha que se ha de dar p(er)a a pestenença; [19, 87] Mezinha p(er)a
giolho Jnçhado de gota ou ciatica; [20, 88] A maneira de que se faze(m) os pos do
teixugo; [21, 89] Reçepta contra pest(e); [22, 90] [Trouas] feita p(er) o doctor dioguo
afonso *, **
[23, 91] [Mezinha para febres terçãs] *,**; [24, 92] Mezinhas q(ue) rompe(m) apostemas
depois de maduras; [25, 95] [Mezinha p(er)a gota e maçam(en)to] *.
Apresentam-se neste estudo os vocábulos reunidos em cada campo semântico
proposto: 1.. doenças e sintomas; 2. tipos de cura e prevenção de doenças; 3. saúde; 4.
tipos de medicamentos e 5. unidades de peso e medida.

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Identifica-se a localização das formas encontradas, inclusive as suas variantes


fonéticas ou gráficas, por texto. Separam-se as variantes por barra inclinada, os
vocábulos do mesmo campo por ponto-e-vírgula e por vírgula a identificação dos textos
em que os vocábulos ocorrem. Quando a forma masculina, singular ou infinitiva não se
encontra documentada no corpus, esta é apresentada aqui entre colchetes, indicando
nossa intervenção, para logo e seguida apresentarmos a forma efetivamente encontrada
nos textos analisados, exceto nos casos em que o plural constitui a única forma
empregada. Quando o corpus documenta formas flexionadas de um mesmo vocábulo,
estas são separadas pela conjunção aditiva “e”.

O vocabulário de medicina e farmácia no Livro da Cartuxa

1. Doenças e sintomas
Ardor (22); çeso(m) (17); ciatica (19); corrença (11)/Corre(n)ça
(11)/corre(n)ça (13); dor (11, 18, 25); dor de dentes (09); dor d olhos (04, 05); febre
(01) e febres (09); febre terçãa (23); fluxo do ue(n)tre (08)); frieldade (10); gota (19,
25), Jnfirmjdade (22); leuaço(m) (22); maçame(n)to (25); [maleyta] maleytas
(17)/maleitas (17); pest(e) (21); pestença (01)/pestenença (01, 18, 22)/pestene(n)ça
(01)/pestele(n)ça (22); po(n)to (03); postema (24,25)/apostema (24); [puxo] puxos
(11); que(n)tura (06)/quentura (17, 22); trama (02, 03, 22); zimja (24).
Destacam-se, aqui, as formas corre(n)ça e fluxo do uentre para ‘diarréia’;
puxos para ‘cólicas’; frieldade para ‘reumatismo’; leuaço(m) e po(n)to para ‘caroço,
bubão da peste’; maçame(n)to para ‘hematoma’ e o arabismo zimja, ‘tipo de abscesso
mais profundo que o apostema’.

2. Saúde
Lena (14); saude (03).

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À lena corresponde o sentido de ‘saúde, vigor físico e mental’, ao passo que


saude se refere apenas à ‘ausência de moléstia, estado de quem tem as funções
orgânicas normais’.
4.3. tipos de medicamentos
Emprasto (07); herua (17)/erua (17); Jngoento (19) e Jngoentos (19);
Jngoento agripa (19); Jngoento tostinho (19); mezinha (02, 05, 06, 10, 12, 18, 24) e
mezinhas (24); [pyrola comu(m)] pyrolas comu(n)s (06, 16)/pirolas comu(n)s (16);
[po] pos (01, 02, 15, 20); [po do duque] pos do duque (14)/poos do duque (15); [po
do teuxugo] pos do teixugo (20); remedio (06) e remedios (01, 11)/Remedios (23).
Observe-se, neste campo, a ocorrência de uma série de medicamentos em uso
em Portugal na Idade Média, cuja etimologia é de difícil estabelecimento, a exemplo de
Jngoento agripa; Jngoento tostinho e poos do duque, ainda que para este último,
assim como para pyrolas comu(n)s e pos do teixugo o corpus traga os ingredientes e
descreva o processo empregado no seu preparo.
4.4. unidades de peso e medida
Ano (01, 06, 10) e anos (01); aue m(ari)a (08); auelã (05); canada (01);
cantaro (11); casca de noz (04, 23); casca d ouo (17) e cascas d ouo (11); colher de
prata (16); copo (03); coroa (14) e coroas (20); [dedo] dedos (02), dia (05) e dias
(05); [drama] dagmas [sic] (24) e dramas (24); eruanço (04); fatya (14)/fatia (14);
[grão de triguo] grãos de triguo (07)/grãos de t(ri)go (20); mão çhea (03, 18); onça
(02, 04, 20) e onças (02, 04); ora (06) e oras (02, 03); ouo (05); parte (01) e partes
(16); p(ar)ter n(oste)r (08); peso (16); [punhado] punhados (03); [punho çheo]
punhos çheos (18); qartilho (02)/quartylho (20); talhada (11, 14).
Aqui se verifica o curioso emprego de orações na medição do tempo, bem como
de objetos variados (partes do corpo, cascas diversas, plantas, diferentes grãos,
recipientes variados e outros utensílios) e de valores monetários na medição de
tamanhos e de quantidades. Há, ainda, o uso de antigas medidas, como a canada, drama,
onça, peso e qartilho.

Considerações finais
Considerando-se a hipótese investigada, de que o vocabulário analisado reflete
conhecimentos, práticas e crenças próprios da Medicina, Farmácia e Nutrição do

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medievo português, lingüisticamente expressos por formas hoje consideradas arcaísmos


ou obsoletas, concluiu-se pela sua corroboração, dado os 04 campos semânticos
analisados serem constituídos por vocábulos e usos não integrantes da norma padrão da
língua portuguesa do século XXI, ainda que eventualmente presentes em alguma
variedade regional mais arcaizante.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES DIAS, J. J. (ed.). Livro dos conselhos de el-rei D. Duarte: livro da cartuxa.
Edição diplomática. Lisboa: Estampa, 1982.
ANTÓNIO SÉRGIO. Breve interpretação da história de Portugal. Lisboa: Sá da Costa,
1972.
BRAGA, T. Historia da litteratura portugueza. Porto: Chardron, 1909.
Duarte, D. Rei de Portugal (1433-1438). Leal conselheiro. Ed. crítica por Joseph M.
Piel. Lisboa: Bertrand, 1942.
FIGUEIREDO, F. História literária de Portugal: séculos XII-XX. Coimbra: Nobel,
1944.
LEHRER, A. Semantic fields and lexical structure. Amsterdam: North Holland, 1974.
MATTOSO, J.; SOUSA, A. A monarquia feudal (1096-1480) In: MATTOSO, J.
(coord.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, [19--]. v. 2. p. 494-543.
OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Breve história de Portugal. 2. ed. Lisboa: Presença,
1996.
SARAIVA, J. H. (dir.). História de Portugal. Lisboa: Alfa, [19--]. v. 3.
SOARES AMORA, A. s. v. Leal conselheiro. In: PRADO COELHO, J. do (dir.).
Dicionário de literatura. 3. ed. Porto: Figueirinhas, 1973. v. 2.
ULLMANN, S. Semântica: uma introdução à ciência do significado. Trad. por J. A.
Osório Mateus. Lisboa: Gulbenkian, 1967.

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CHEFE ZEQUIEL E A MEMÓRIA DA NOITE: UMA LEITURA DA


LINGUAGEM NOTURNA EM “BURITI” DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Sarah Maria Forte Diogo1

João Guimarães Rosa surge num contexto de investigação da realidade nacional,


num país que já apresentava inúmeras possibilidades de identidade. Sua escrita procura
destacar traços de culturas diversas e peculiaridades regionais, mas que não se limitam
espacialmente, antes são ampliadas pela força da linguagem construída nos textos.
“Buriti” integra o ciclo de novelas Noites do sertão (1965). É possível resumir
“Buriti” como a estória dos personagens que habitam a fazenda Buriti Bom ou por lá
transitam. Formalmente, constitui-se enquanto narrativa polifônica, cujo foco é
administrado por alguns personagens que apresentam seu ponto de vista sobre os
demais. Os detentores do discurso são: o narrador onisciente, Miguel – veterinário –,
Lalinha – trazida da cidade pelo sogro –, e Gualberto, fazendeiro vizinho, figurado
sempre como malicioso. Iô Liodoro, o dono da fazenda, e suas filhas – Maria da Glória
e Maria Behú – são descritos e vez por outra assumem algum discurso. Chefe Zequiel
participa deste mosaico como detentor de uma fala desconexa, objeto de compaixão
para uns, por exemplo, a beata Behú, ou alvo de chacota para outros. Gualberto
considera-o um tolo.
O objetivo deste artigo é analisar Chefe Zequiel e sua linguagem, à primeira
vista desconexa, que revela aspectos da memória da noite. Chefe Zequiel cultiva lavoura
de subsistência. Planta e colhe para seu uso. Não há referências sobre sua família –
ascendentes ou descendentes – nem local de moradia fixa. O único pouso certo para ele
é o moinho: “O Chefe era baixote e risonho, quando respondia sabia fazer toda espécie
de gestos. Risonho de sorriso, apesar de sua palidez. E ele muito se coçava.” (idem,
p.172) Seu modo de vida é assim sumariado:

[...] o Chefe plantava do que queria, o lucrozinho para si, e fechava sua roça
no lugar que ele mesmo escolhesse. Mas transportava consigo, cada manhã,
uns mantimentos, guardava latas e cabaças no ranchinho da roça, lá ele fazia
questão de cozinhar seu almoço. Com isso, perdia tempo. E, de agora, por
conta de abrir em claro as noites, de dia em vez de trabalhar ele vadiava,

1
Mestre em Letras – Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC)

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deitava para se dormir, bôas horas. O que entendia era do oficio dos
barulheiros do campo, quando que queremos ver visagens... (Rosa, 2001,
p.250)

Zequiel é apresentado entre os bichos do mato:

A certo, que todos ficavam escutando o corpo de noturno rumor, descobrindo


os seres que o formam. Era uma necessidade. [...] Discorria da dificuldade
em separarem-se sons, de seu amontôo contínuo. – ‘Só por precisão’ –
completou o segundo, o setelagoano. E mais disse: que dirá, então, os bichos,
obrigados a constante defesa ou ataque? O lobo, o veado. O rato. O coelho,
que, para melhor captar os anúncios de perigo, desenvolveu-se um pavilhão
tão grande? Principal, na jungla, não é tanto a rapidez de movimentos, mas a
paciência dormida e sagaz, a arma da imobilidade. À cabecinha de um coelho
peludo, sentado à porta de sua lura, no fim de tarde, devem chegar mais
envios sonoros que a uma central telefônica. [...] Falou-se no Chefe Zequiel.
(idem, 2001, p.119)

No excerto selecionado, temos o elenco de alguns bichos: lobo, veado e coelho.


Há um sentimento que predomina entre os animais e que é aquele sentido pelo Chefe: o
medo. A alusão à capacidade auditiva do coelho prenuncia a chegada de Zequiel: aos
ouvidos do Chefe também chegam inúmeros envios sonoros. Também ele é uma espécie
de central telefônica, porém os pulsos captados tornam-se um emaranhado em meio à
jungla, revestidos de pavor.
De acordo com Luis Costa Lima, a respeito da associação com o profeta
Ezequiel,

Ezequiel é o que recebera do Senhor a missão de difundir a sua palavra entre


os israelitas, para isto sendo chamado a abrir a boca e engolir o livro da
sabedoria, no qual se encontram as palavras: ‘Lamentações, gemidos e
queixas’ (Ez 2,10). As palavras de Ezequiel não visam, portanto, a trazer
conforto, mas sim a anunciação apocalíptica, onde os raios, as tormentas e as
bestas misteriosas auguram desgraças semelhantes às do próprio Apocalipse.
Não menos enigmáticas e catastróficas são as anunciações do profeta
sertanejo. (Lima, 1974, p.143)

Ezequiel, um dos profetas maiores, é um sacerdote exilado em Babilônia,


exercendo sua atividade entre os anos 593 a 571 a.C. No local de seu exílio, ele anuncia
as sentenças divinas. Para Zequiel, a sua comunidade será destruída, pois é uma
sociedade corrupta e hipócrita, fadada, portanto, ao sofrimento. Apesar dessa
negatividade, o futuro é de ressurreição. As descrições que surgem das palavras de
Ezequiel são extremamente difíceis de imaginar, mas assustam pela grandiosidade das
visões:

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[...] “Criatura humana, obedeça ao que vou lhe dizer. Não seja rebelde como
essa casa de rebeldes. Abra a boca e coma o que vou lhe falar.” Então notei
que certa mão se estendia para mim com um rolo de pergaminho. A mão
desenrolou o pergaminho diante de mim: estava escrito por dentro e por fora,
e o que nele estava escrito eram lamentações, gemidos e gritos de dor. (Ez 2,
8-10).

Javé coloca Ezequiel como uma sentinela: “Estou colocando você como
sentinela” (Ez 3,17), para advertir ao povo ignorante as intempéries que estariam por
vir. Engolindo um livro de lamentações, gemidos e gritos de dor, Ezequiel profetiza o
que comera, como simples criatura humana diante da potência de Deus. No Buriti Bom,
temos o chefe Zequiel, que também parece ter engolido um livro da sabedoria, mas,
atordoado, consome-se na noite profunda, no caos, veiculando uma linguagem que, à
sua comunidade, é pitoresca e curiosa.
O Chefe sente-se acossado pela fantasia de uma Inimiga que virá para
disseminar o sofrimento. Essa é a principal obsessão: a idéia de ser assassinado durante
a noite. A essa idéia fixa, agregam-se os múltiplos barulhos noturnos.
A novela “Buriti” é marcadamente sonora. As noites relatadas são povoadas de
silêncios, que dão origem a sinais: “À noite, o mato propõe uma porção de silêncios;
mas o campo responde e se povoa de sinais.” (Rosa, 2001, p.127). Os sons, então,
seriam as respostas do campo ao profundo silêncio que a noite encerra.
O sertão é figurado como espaço que surpreende aquele que o adentra: “Quando
se vem vindo sertão a dentro, a gente pensa que não vai encontrar coisa nenhuma.”
(idem, p.127). A gente pensa, mas, à medida que se vai adentrando, o sertão se revela
em seus silêncios e sons. O Chefe Zequiel capta esses sons: “Aziago, o Chefe Zequiel
espera um inimigo, que desconhece, escuta até aos fundos da noite, escuta as minhocas
dentro da terra. Assunta, o que tem de observar, para ele a noite é um estudo terrível.
[...] O que o Chefe devassou, assim, encheria livros.” (idem, p.127)
Os delírios de Zequiel são povoados por imagens assustadoras. As figuras
recorrentes são a coruja, o urutau, o sapo, a lua, a cobra-grande e os macaquinhos.
Câmara Cascudo, ao inventariar as superstições em torno da coruja, confirma o que é de
conhecimento do imaginário popular: a crença na má sorte que esse bicho traz. É
interessante a reiterada presença desse animal na maioria dos delírios do Chefe, o que
reforça o mau pressentimento que habita seus pesadelos. Sobre o sapo, Cascudo aponta

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que é um animal muito utilizado na feitiçaria, pelas bruxas: “É um elemento


indispensável nas bruxarias, servindo de paciente para a transmissão mágica do feitiço.
O sapo é um personagem vivo em todas as literaturas orais do mundo.” (Cascudo, 1960,
p.591). Acerca do Quibungo, que aparece em um dos delírios, o estudioso aponta sua
procedência na literatura oral africana, como o monstro que comia crianças.
Os delírios, portanto, são um amálgama de tradições culturais diversas, que
aportam na narrativa, a ela se misturam. Escutando de modo escarafunchado,
entranhando-se na terra, noite após noite, o chefe escuta. Escuta a tal ponto que o
mundo, durante o dia entre paredes, surge noturno e devassado, pois que perdeu as
travas que o isolavam da natureza.
A novela, quando focalizada a partir da linguagem de Zequiel, reconstrói o mito
do nascimento da noite. Na narrativa mítica, temos a figura da Cobra-Grande que
manda seus servos buscarem a noite num caroço de tucumã. Eles não resistem à
curiosidade e abrem os caroços, que fazem tudo escurecer. Como castigo, a filha da
Cobra transformou-se em macaquinhos. Em “Buriti”, há o seguinte trecho: “Os
macaquinhos gritam, gritam, não é bem de frio – dansam ao redor de um trem nú. Cobra
grande comeu um deles. Sucurí chega vem dentro de roça. Um macaco pulava num pé
só, sacudia no ar uma perna tesa dura de frio, entanguida, ele assim parecia até um
senhor.”(Rosa, 2001, p.179-180)
“Buriti” possibilita à lenda um final diferenciado: a cobra devora um dos
macaquinhos, o que sugere que tudo retorna para suas origens, não importando em que
tenham se transformado. O trem nu em torno do qual dançam os macaquinhos poderia
ser o caroço de tucumã violado, despido de sua segurança que aprisionava as trevas, de
onde brotara toda a noite e sua força sonora.
Para reconstituir a noite, bem como uma das lendas que lhe dá origem, a
linguagem curva-se à sintaxe caótica, descontínua, salteada, integrando em seu magma
lingüístico termos do tupi, expressões aforísticas, onomatopéias, crendices, figuras do
folclore africano, animais da nossa fauna imantados de agouro campestre.
Concluímos que os delírios do Chefe constituem um caldeirão cultural e um
laboratório de experimentação verbal enunciados, ora por um narrador maestro, que
rege sutilmente o suposto caos, ora enunciado por uma personagem profeta, que narra
da noite e de seus percalços. Sons e mitos articulam-se sob a figura deste personagem

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hermético que, para além da noite, encena o drama da linguagem daqueles que se
curvam sob o peso do transcendente e são considerados como loucos para a sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA SAGRADA. O Livro de Ezequiel. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 2v. Brasileira de Ouro:
Rio de Janeiro, 1960.
LIMA, Luís Costa. O buriti entre os homens ou O exílio da utopia. In:______. A
metamorfose do silêncio. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974.
ROSA, João Guimarães. Buriti. In:_______. Noites do sertão. 9. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2001.

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A PRESENÇA DA OUTRA NOITE E A PROBLEMÁTICA DA ESCRITA EM


“O VÔO DA MADRUGADA”.

Soraya Rodrigues Madeiro1


Cid Ottoni Bylaardt2

Abro então a janela, deixando que penetrem


no quarto o ar puro e a claridade. No
entanto, nesta minha escrita, é e será
sempre noite.
(SANT’ANNA, 2003, p. 27)

A escrita de Sérgio Sant’Anna, assim como acontece com um grande percentual


da narrativa inserida neste e no século passado, está eivada de elementos que a
distanciam de um compromisso com a História. Não se pode precisar ainda se o fato de
essa escrita vir sendo marcada pela indefinição no que diz respeito à temática e à
estrutura tem relação com a proximidade histórica que a crítica tem dessas obras, o que
torna seu olhar ainda turvo e impede uma crítica consistente, capaz de estabelecer uma
estética precisa à contemporaneidade, ou ainda se é de fato a particularidade mutável de
autor para autor que faz com que já não haja uma fórmula para as narrativas.
Em seu livro Isto não é um cachimbo, Michel Foucault, ao refletir sobre o
quadro do pintor francês René Magritte, no qual temos o desenho de um cachimbo e
logo abaixo dele uma frase que diz “Ceci n’est pas une pipe”, parece ver nessa obra a
essência das artes, as quais devem buscar a não-representação. Essa arte a que Foucault
se refere joga com o reconhecimento de algo para se opor, para fugir da coisa
“representada”. Assim acontece na obra que estudaremos: o narrador do conto “O vôo
da madrugada” decide contar uma história que é, para ele, digna de registro, ou seja, que
tem um compromisso com o que é verdadeiro, mas o que representa a verdade para ele é
o que essa mesma verdade denominaria como fantasiosa, ficcional.
A linguagem cotidiana está ligada a um tipo de saber, a um propósito, tem uma
finalidade, que é representar, através da comunicação, algum aspecto da realidade do
nosso dia-a-dia; já a de ficção, atentando para a visão blanchotiana, não está ligada a um

1
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Letras (mestrado em Literatura Comparada), da
Universidade Federal do Ceará.
2
Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais e professor adjunto do
Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará.

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tipo de saber, não tem um fim. Esta, então, apresenta uma irrealidade, a qual nos
desvincula, de certo modo, de nossas vivências e nos prende apenas àquele universo,
“faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus
gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a
linguagem.” (BARTHES, 1999, p.22).
Deparamo-nos, por essa razão, com a ausência de um saber, visto que nos
desligamos de um referente, pois só temos conhecimento deste mundo irreal no
momento da leitura. É somente ali que ele nos é revelado. Essa falta de referente causa,
assim, a falta de garantia de uma verdade inquestionável, não há como exigir da
literatura verdade ou mentira, até porque não há como conferir o valor do que ela diz.
Encontramo-nos diante de uma escrita feita de ausência, mas essa ausência não é o
vazio, pelo contrário, a própria escrita literária está nessa ausência de verdade absoluta,
possibilitando a ela “um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam
escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações,
oriundas dos mil focos de cultura.” (BARTHES, 2004, p. 62)
Um exemplo dessa ausência a qual observamos é o personagem Bartleby, do
livro de Herman Melville Bartleby, o escriturário: uma história de Wall Street ( L&PM,
2003), o qual repete sempre a mesma frase quando lhe pedem algo: I would prefer no
to. Segundo a citação que Deleuze faz do escritor Philippe Jaworski, a frase de Bartlebly
é uma espécie de fórmula da literatura, pois ela não é “nem uma afirmação nem uma
negação. Bartleby não recusa, mas também não aceita, avança e recua neste movimento
avante, expõe-se um pouco numa ligeira retirada da palavra.” (DELEUZE, 2000, p. 99).
Dessa forma, entendemos esta escrita como desprovida de força de negar algo ou
de afirmar algo, já que ambas as atitudes estão relacionadas a uma forma de poder,
como alerta-nos Blanchot:
Rien de plus impressionant que cette surprise devant le silence de l’art, ce
malaise de l’amateur de paroles, de l’homme fidèle à l’honnêteté de la parole
vivante: qu’est-ce que cela qui a l’immutabilité des choses éternelles et qui
pourtant n’est qu’apparence, qui dit des choses vraies, mais derrière quoi il
n’y a que le vide, l’impossibilité de parler, de telle manière qu’ici le vrai n’a
rien pour le soutenir, apparaît sans fondement, est le scandale de ce qui
semble vrai, n’est qu’image et, par l’image et le semblent, attire la vérité dans
la profondeur où il n’y a ni vérité, ni sens, ni même erreur? (BLANCHOT,
2002, p. 54)

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Ou seja, quanto mais a literatura tenta sustentar verdades, mais essas verdades se tornam
um peso que ela não consegue suportar. Vemos essa relação dentro do conto “O vôo da
madrugada” quando o narrador, sem saber o que era a mulher que viu dentro do avião,
que apareceu sem que ele soubesse de onde e sumiu do mesmo modo, começa a levantar
hipóteses: “Mas quem era ela: o inconcebível? Uma das mortas do acidente [...], pois
não disse ela que já estava entre ‘eles’?” (p. 23). O que elimina sua hipótese é o fato de
que o narrador vai a jornais, procura fotografia dos mortos e não encontra nenhum
registro sobre ela. Sua segunda dedução – “mas o que dizer, então, aos mais
desconfiados, entre os quais me julgo com direito de incluir-me? Que não passou tudo
de um sonho?” (pp. 23/24) – leva-nos a pensá-la com um teor mais realístico, visto que,
diante dos fatos apresentados pelo narrador, seria essa a possibilidade mais aceitável em
relação ao plano da realidade, já que o próximo questionamento a ser levantado é a
respeito da possibilidade de que aquela mulher seja uma alucinação, haja vista que ele
havia misturado comprimidos para dormir com vinho. Seria, então, uma alucinação
fruto do estágio intermediário entre a vigília e o sono ou mesmo “um fantasma – e de
carne e osso.” (p.25).
Mas por que há a aceitação desse estranhamento quando nos dizemos que algo
irreal só pode ser sonho? Por que só existe um pacto de aceitação dessa coisa irreal
dentro dos sonhos? Podemos notar nos contos a serem estudados uma narrativa que
sempre tem a noite como cenário. Em “O vôo da madrugada” o narrador encontra-se em
um vôo especial, que carrega os restos mortais de pessoas que sofreram um acidente
fatal e é lá que as coisas ditas absurdas se passam, no momento em que ele deveria estar
dormindo, mas acontece que, inevitavelmente, o passageiro quebra esse acordo com o
Dia e se torna alguém que encontra seu lugar na Noite. Ao estar em sua casa, o próprio
narrador nos confessa: “Abro então a janela, deixando que penetrem no quarto o ar puro
e a claridade. No entanto, nesta minha escrita, é e será sempre noite.” (p. 27).
No conto “A barca da noite”, temos a barca como o veículo pelo qual o rapaz
tenta encontrar, buscar o seu destino, busca que é incontestavelmente necessária, mas
inalcançável. Notamos, então, na contemporaneidade literária, um jogo paradoxal que
atenua a linha entre o que é onírico e o que faz parte da realidade: ora procura-se
debilitar o real, tratando-o como sonho, ora se quer elogiar o sonho, dando-lhe caráter
de real.

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Através desses fatos das narrativas, parece-nos que o elemento da noite, aqui,
não significa a paz, mas sim a angústia, a busca constante, infinita, a que proporciona
delírios e desejos – que não são factualmente realizados, mas que são perseguidos
durante todo o enredo.
De acordo com Maurice Blanchot, há uma noite que é transformada pelo sono
em possibilidade, que é uma exigência para a sobriedade do dia. Deve-se dormir com o
objetivo de estar descansado para realizar as tarefas diurnas, pois “o sono é um ato de
fidelidade, de união. Confio-me aos grandes ritmos naturais, às leis, à estabilidade da
ordem.” (BLANCHOT, 1987, p. 267), estabilidade essa que é coordenada pelo Dia, já
que é através do sono da noite que se consegue aproveitá-lo, torná-lo útil.
A outra noite é a do mau dormidor, o qual “revolve-se na busca desse lugar
verdadeiro que ele sabe ser único e que somente nesse ponto o mundo renunciará a sua
imensidade errante. O sonâmbulo é-nos suspeito, sendo o homem que não encontra
repouso no sono.” (BLANCHOT, 1987, p. 267). Temos, assim, dentro dos contos de O
vôo da madrugada, personagens-sonâmbulas, que vivem a Noite, o que ela tem a
proporcionar, em sua profundidade. Essa é a essência da Noite, para Blanchot, é a que
possibilita o sonho, o qual é:
despertar do interminável, uma alusão, pelo menos, e como que um perigoso apelo, pela
resistência do que não pode ter fim, à neutralidade do que se passa atrás do começo. Daí
resulta que o sonho parece fazer surgir, em cada um, o ser dos primeiros tempos – e não
somente a criança, mas para além, para o mais longínquo, o mítico, o vazio e o vago do
anterior. (BLANCHOT, 1987, p.269)
Esse mundo é, então, a literatura, pois o sonho é “a realização do indubitável
dessa dúvida, é o que não pode “verdadeiramente” ser.” (1987, p. 269), é o lugar da
escrita perturbadora, para as personagens: “E, já que me dispus a escrever – talvez uma
das maiores maldições entre todas, por nunca alcançarmos verdadeiramente, pelas
palavras, a fusão que tanto almejamos –, me permitirei avançar um pouco mais para
dizer que sim, muitas vezes já pensara em buscar a morte.” (SANT’ANNA, p. 18). As
personagens, no entanto, não deixam de pensar que podem ter esse controle de realizar
seus sonhos através do que escrevem:

Nesta escrita, em que sinto em minha mão a leveza do “outro”, há, sobretudo,
um vôo da madrugada com seu carregamento de mortos e a passageira que

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veio estar comigo. Exultante, dou-lhe novamente à luz, materializo-a. aqui


ela será para sempre minha. (p. 27)

Segundo Blanchot, existe uma derrota nesta vitória, nesta verdade que rege a
história que nos é contada, pois há dentro dessa esperança uma mentira. Nessa
esperança, a qual “nos concede um além ilusório ou um futuro sem morte ou uma lógica
sem acaso, existe talvez a traição de uma esperança mais profunda, que a poesia (a
escrita) deve nos ensinar a reafirmar.” (BLANCHOT, 2001, p. 74). É através, então, da
escrita que as personagens obtêm esse domínio: fingem que realizam seus desejos, que
têm o controle sobre o que acontece, mas esse fingimento, essa “realidade”
proporcionada, é artifício da própria literatura, para que busquemos sua essência
incessantemente.
Essa é, então, a impossibilidade de morrer que a obra tem. Ela é sustentada por
essa ilusão, pois uma grande literatura sempre tem uma significância, cabe a nós,
porém, conjeturar o processo de tal significância, visto que seu terreno é ilusório, como
já constatamos, cheio de segredos e de símbolos. Ela “se dissipa quando desperta; morre
se vem à luz do dia” (BLANCHOT, 1997, p. 87).
Segundo Giorgio Agamben, citando Hegel, em seu livro A linguagem e a morte:
um seminário sobre o lugar da negatividade (UFMG, 2006), “Na sensação e na
imaginação, a consciência ainda não saiu à luz, é ainda imersa na sua noite.” (p. 64). Ou
seja, se entendemos a noite como um elemento provido de irrealidades, de
irracionalidades, posto que é o lugar da imaginação, a luz do dia parece-nos ser a razão.
É essa luz que não pode estar contida na escrita sem fim, sem finalidade, pois ela é
racional e sua racionalidade, sua claridade, causaria a morte da literatura, de sua
ambigüidade inata.
Nossa proposta é estudar a escrita de Sant’Anna pelo viés da fragmentação e dos
valores que encontramos dentro da literatura da contemporaneidade, tais como o
esvaziamento da história, como a própria linha de pesquisa que almejamos sugere, e o
preenchimento da literatura por ela mesma, haja vista que, segundo Blanchot, “a obra –
a obra de arte, a obra literária – não é acabada nem inacabada: ela é. O que ela nos diz é
exclusivamente isso: ela é – e nada mais. Fora disso, não é nada. Quem quer fazê-la
exprimir algo mais, nada encontra, descobre que ela nada exprime.” (BLANCHOT,
1987, p. 12).

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REFERÊNCIAS
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negatividade. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1999.
BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário; tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
Rocco,1987.
______. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
______. A conversa infinita. São Paulo: Escuta, 2001.
______.“La bête de Lascaux”, in: Une voix venue d’ailleurs. Paris: Galimard, 2002.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Lisboa: Século XXI, 2000.
FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo; tradução de Jorge Coli. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1988.
MELVILLE, Herman. Bartleby, o escriturário: uma história de Wall Street. Porto
Alegre: L&PM, 2003.
SANT’ANNA, Sérgio. O vôo da madrugada. São Paulo: Companhia das letras, 2003

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A CRISE DA REPRESENTAÇÃO DA ARTE, DO CLÁSSICO AO PÓS-


MODERNO: UMA LEITURA SOBRE O CONTO “RETRATO DE CAVALO”,
DE GUIMARÃES ROSA

Thiago Henrique Gonçalves Alves1


Pedro Jorge da Silva Marques2
Prof. Dr. Cid Ottoni Bylaardt3

Introdução
O pensamento central, e que gera toda a discussão deste ensaio, é propor uma
reflexão sobre o questionamento da representação da arte no conto “retrato de cavalo”,
de Guimarães Rosa, ou melhor, refletir sobre qual prisma as personagens fazem
referência à arte4, se a julgam numa óptica ligada aos princípios clássicos ou pós-
modernos; para isso iremos trabalhar com conceitos de arte de ambas as teorias.
Iniciaremos nossa leitura com o título do conto de Guimarães Rosa, “Retrato de
Cavalo”. Já pelo título podemos perceber que há, no mínimo, relação de arte com vida.
O retrato representa a arte no seu conceito mais clássico “possível”, como uma imitação
idealizada da vida; e o Cavalo representa a vida em si, o ser vivo. Já em nossa leitura
inicial, podemos destacar algumas passagens que nos dão pistas sobre o conceito de
representação da arte clássica, como propunha Aristóteles, em seu livro Arte Poética
(2005. p.21): “Parece, de modo geral, darem origem à poesia duas causas, ambas
naturais. Imitar é natural ao homem desde a infância”. Com essa afirmação, podemos
constatar que a poesia (arte) clássica vem da imitação do homem ou, pelo menos, da
tentativa do homem de imitar algo; geralmente a vida, o que nem sempre é possível.
Nesse tipo de literatura (clássica) há uma constante busca pelo equilíbrio; uma
literatura esteticamente bem feita, procurando sempre o embelezamento. Há uma
preocupação do autor com o ato de comunicar, passar uma idéia e para isso o artista se
impunha uma série de normas, isso era considerado de essencial função para “o fazer”
artístico, quando mais um autor seguisse as normas, mais ele era exaltado: “O artista era
julgado na medida em que estritamente dentro da norma realizava sua obra”.

1
Graduando do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
2
Graduando do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
3
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.
4
Entenda como arte o retrato do cavalo

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Segundo Aristóteles, os seres naturais originam-se de causas necessárias que


independem da nossa vontade. Os produtos da arte, decorrentes da atividade prática
(práxis), são contingentes, ou seja, dependem de nós pra existir. Sob esse aspecto,
natureza (vida) e arte ocupam pólos opostos: a primeira possui movimento próprio,
como demonstram a geração e a corrupção das coisas, determinadas pela ação de duas
causas principais: matéria e forma; a segunda, que tem na atividade prática o seu
princípio produtivo, acrescenta à natureza uma dimensão puramente humana, artificial,
que em nada participaria dos processos naturais. Compondo a natureza, estão às coisas
brutas e os organismos animados - plantas, animais e homens -, de nascer, crescer e que
morrer. No domínio artificial e contingente da arte, os objetos fabricados, os artefatos,
que nascem de uma ação formadora, mobilizada pelas necessidades humanas. “Das
coisas que nascem ou começam a existir, umas são produção da natureza, outras da arte,
outras do acaso” (ARISTÓTELES, Metafísica, 2. Ed. Espasa- Calpe, p.151).
Podemos, então, inferir que, a partir do pensamento de Aristóteles de que a
natureza seria uma espécie de arte da inteligência divina, a arte seria o prolongamento
da natureza na atividade humana, enquanto esta dá nascimento a objetos que, pela
composição da matéria e pela forma, assemelham-se a seres vivos, orgânicos, dotados
de alma. E é justamente aqui que focalizaremos o objetivo central deste ensaio: arte x
vida, no qual o retrato representa a arte no seu conceito mais clássico possível, o de
imitação da realidade (vida); e o cavalo representa a vida em si, o ser vivo, a natureza,
ou, como diria Aristóteles: “Arte da inteligência divina”.
No inicio do conto, no seu título, que já destacamos antes, podemos estabelecer
essa relação, como também outra relacionada à arte clássica, a verossimilhança, um dos
princípios fundamentais da arte greco-romana, que consiste não em ser o retrato fiel da
realidade, a arte precisa, acima de tudo, ter uma coerência interna que a faça
assemelhar-se à verdade:

Parece haver duas causas, e ambas devida à nossa natureza, que deram
origem à poesia. A tendência para imitação é instintiva no homem, desde a
infância. Neste ponto distingui-se de todos os outros seres, por sua aptidão
muito desenvolvida para a imitação. Pela imitação adquire seus primeiros
conhecimentos, por ela todos experimentam prazer.(ARISTÓTELES, 1973,
p. 274)

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Conforme ficou anteriormente dito, o conceito de verossimilhança está na


dependência do possível e do necessário. Sem esses elementos, a mimese, como
pensada por Aristóteles, ainda seria dependente do modelo platônico que estabelecia
uma relação de sacralidade com a idéia original, e a criação artística pôde deixar de ser
uma imitação da imitação, uma forma menor da atividade humana.
Aristóteles valoriza a obra de arte em função de sua semelhança com o real.
Aceita-a como aparência mesmo. Ela não é nem completamente real, verdadeira, nem
cabal ilusão. Está a meio caminho da existência e da inexistência, apoiada nesse termo
médio da realidade, que Aristóteles chama verossimilhança, o que pode reforçar bem
nosso ponto de vista. Não paramos por aqui. Outra passagem do texto que remete aos
ideais clássicos de arte (verossimilhança) é quando o retrato é descrito: “Não o retrato.
O que: moderno, aumentado, nas veras cores, mandado rematar no estrangeiro por alto
preço, guarnecido de moldura p. 189” e quando ele descreve o que há no retrato:

Seu cavalo avultava, espelhado, bem descrito, no destaque dessa regrada


representação, realçado de Luz: grosso liso, alvinitoso, vagaroso belo
explicando as formas, branco feito leite no copo, sem perder espaço. E que
com coragem fitava alguma autoridade de maior respeito - era um cavalo do
universo! – cavalo de terrível alma. (ROSA, 1976, p.189)

Como vemos, o próprio retrato pode ser comparado a um quadro clássico, em


que o belo predomina em sua forma estética. Porém, esse pensamento clássico não se
perpetua durante o conto. Temos várias passagens que nos levam a crer na existência de
uma referência à arte numa óptica mais centrada nos conceitos pós-modernos, como,
por exemplo, quando o cavalo está definhando, prostrado, a cara arreganhada, ralada, às
muitas moscas, os dentes de fora, estava morrendo. E diante desse sofrimento o
personagem Bio indaga: “Isso se grava em retratos?”. A partir desse trecho do conto de
Guimarães Rosa, começamos a perceber que a postura da personagem começa
enveredar para os princípios da teoria pós-modernista acerca da arte na qual fica clara
que esta não pode representar o real, ou seja, é uma arte não mimética, não há
verossimilhança, ou seja, há uma negação dos valores clássicos que permeavam a arte
até então.
O que se denomina "Crise da Representação", que assombra a arte e as
linguagens no contexto pós-moderno, é um fenômeno diretamente ligado à destruição
dos referenciais que vinham norteando o pensamento até bem recentemente. O registro

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do real (figurativismo) era o principal eixo da pintura até 1870, assim como de resto de
toda a arte, até o pós-guerra. Dali em diante, valoriza-se a entropia; “tudo vale”, e todos
os discursos são válidos. O resultado é que não há mais padrões limitados para
representar a realidade, resultando numa crise ética e estética.
A justificativa para essa mudança pode ser mais objetiva: com a História
apontando para a formação de uma sociedade global (nível macro), nenhuma das visões
de mundo preexistentes (nível micro) poderia ser descartada, sob pena de excluir
interessantes mercados consumidores do sistema-mundo capitalista. O pós-moderno,
assim, pelo seu caráter policultural, sua multiplicidade, sua hiperinformação, serve bem
à constituição de uma rede inclusiva de consumidores. E dentro disso está inserida a
dejeção dos referenciais de representação. É o distanciamento da arte como forma de
representação realista da realidade, nesse sentido é uma arte anti-realista, não mimética.
O método da desconstrução foi proposto por Jacques Derrida e adotado pelos
pós-modernistas. Segundo Paul de Man, um dos maiores divulgadores da desconstrução
como método de análise e seguidor de Derrida, o texto (e nós aplicamos essa teoria a
qualquer tipo de arte) tem uma significação aberta que possibilita constantes
modificações, em contraste com a concepção modernista de significados únicos e
fechados (Stern, 1996b). Desconstrução não quer dizer destruição. Desmontar, para
analisar e entender o real significado do significante, as entrelinhas e elementos
subjacentes ao discurso que, quase sempre, têm a voz do contador da história (Boje e
Dennehy, 1993; Foucault, 1998). A proposta de desconstrução elaborada por Stern
(1996a, 1996b) segue o leito de Derrida (1967), na qual é feita uma leitura aproximada
do texto e que, neste artigo, aplicamos a arte em geral.
Esses pontos e contrapontos acerca da arte é que nos leva a crer que há uma crise
na representação da arte: ela já não supriria todas as necessidades. A prova disso é que,
no retrato, o cavalo permanece imutável, imortal e eterno; nunca irá envelhecer, ficar
doente ou morrer. Já no mundo real, da vida, isso acontece; temos claramente essa idéia,
no seguinte trecho:

Bebia, sem bastar, baldes de água com fubá e punhadinho de sal. Mas
mirava-o, agradecido, nos olhos as amizades da noite. Sofrimento e sede...
Isto se grava em retratos? Nhô da Moura não tivera ocasião daquilo.(ROSA,
1976, p.192)

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Como na metáfora que encontramos logo no início: “ao dono da faca é que
pertence a bainha”. Neste enunciado, podemos perceber um rompimento da vida com
arte, em que a vida, representada pela faca, separa-se da arte, representada pela bainha.
Porém, ambas têm uma ligação; ligação, essa, que deixa Bio tão confuso a ponto de ora
ele gostar do retrato, ora abominá-lo: “alvo no meio dos verdes que pastando--mesmo
quando assim, declinado entortado. Vistoso mais que no retrato, ou menos, ou tanto?”.
A arte representava tão bem a realidade que deixava Bio confuso a respeito de quem era
mais belo: o retrato ou cavalo; o que não acontecia com Iô Wi, que considerava o cavalo
inferior ao retrato. Dizia Iô Wi caçoadamente e por palavras travessas: “o cavalo, de
verdade, não era portentoso desse jeito, mas mixe, somente favorecido das indústrias de
retratistas e do aspecto e existir da moça”.
Ainda referente ao questionamento da vida pela arte ou a crise da representação
da arte, temos no panorama pós-moderno esse tipo de dúvida, não há hoje um padrão
para a arte, cada escritor, pintor, musico, tem seu próprio método de composição. Com
isso existe uma dificuldade enorme de elaborar um conceito fixo para o que seria arte
pós-moderna. Isso acarreta um tom de dúvida e mistério, no crítico, no leitor
(apreciador) e no próprio autor. “Isto se grava em retratos?” é justamente nessa dúvida
de Bio que podemos perceber e questionar, aqui, a representação da vida pela arte.

Considerações finais
Este trabalho, apesar de breve, teve como principal objetivo investigar alguns
traços da cultura e da arte clássicas, como também, pós-modernos que perpassam o
discurso de Guimarães Rosa, bem como a reflexão sobre a crise da representação da
arte, ao longo do seu conto “Retrato de cavalo”. Para isso, detivemo-nos em alguns
conceitos de Arte clássica e pós-moderna. Esses conceitos, como o de beleza, o de
verossimilhança e o de mimese podem ser facilmente percebidos na relação do
personagem Bio com o seu cavalo e com o retrato tirado deste sem a sua permissão.
Pudemos, comparando a representação artística ao objeto com o que se relaciona, obter
uma satisfação proporcional à semelhança da arte (retrato) com a realidade e pudemos
também admirar a forma e a beleza intrínseca da arte, resultante da maestria com que foi
concebida e executada. E percebemos que concomitante ao discurso clássico está o
discurso pós-moderno com que Guimarães Rosa trabalha paralelamente com maestria,

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deixando-nos bem claro que a arte pós-moderna é perpassada por vários discursos,
várias visões de mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Arte Poética. In: A poética clássica. 12. ed. São Paulo: Cultrix: 2005
______. Dos argumentos sofísticos. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. In:
______. Coleção Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973, vol. IV.
______. Retórica. Trad. Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto, Abel do
Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998c.
DERRIDA, Jaques. Pensar a desconstrução. Tradução de Adriana Maria Soares da
Cunha, Evandro Nascimento, Jesus Ribeiro Medeiros, Maria Clara Castellões de
Oliveira, Milene de Paula Borges e Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Saraiva,1995.
LACOSTE, Jean. A filosofia da arte. Trad. Álvaro Cabral, Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editora,1997.
MOISÉS, Leyla Perrone. A Modernidade em ruínas. In: ______. Altas Literaturas. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
______. Vira e mexe, nacionalismo: Paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
NETO, João Cabral de Melo. Poesia e Composição – A inspiração e o trabalho de arte.
In: TELES, Gilberto de Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. 18.
ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. Editora Àtica, 1989.
ROSA, João Guimarães. Retrato de Cavalo. In: ______. Tutaméia terceiras estórias. 4.
ed. Rio de Janeiro: J.Olympio, 1976.

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RESÍDUOS DO AMOR TROVADORESCO PROVENÇAL NO SONETO


CAMONIANO “QUANDO, SENHORA, QUIS AMOR QUE AMASSE”

Yashmin Michelle Ribeiro de Araujo1


Prof. Dr. Roberto Pontes (Orientador)2

Considerações iniciais
Tomar o viés épico, bem como o lírico, para estudo, quando nos referimos à
figura de Camões, significa debruçarmo-nos em uma vastidão profícua de material
instigante para análise. Assim, o presente trabalho, optando por não discutir a relevância
da produção lírica camoniana, vinda a lume postumamente, no ano de 1595, com a
edição das Rithmas (ou Rimas), apresentará alguns traços residuais e mentais do
medievo, no que concerne ao serviço amoroso trovadoresco, num soneto de Camões,
“Quando, Senhora, quis Amor que amasse”, a partir de sua análise textual e lexical.
Os termos residuais e mentais dizem respeito a dois dos princípios que
fundamentam a Teoria da Residualidade, interessada em demonstrar a remanescência
de traços, aspectos ou características marcantes de dada época e espaço, em outra
cultura, histórica e espacialmente distante da primeira. Assim, indicando existir uma
hibridação cultural entre os povos, propugnadora da materialidade efetiva de
mentalidades diversas e até certo ponto (aparentemente) contrastantes,
interinfluenciando-se, ao mesmo tempo em que estas (re)constroem-se, (re)criam-se e se
ressignificam numa cultura determinada.

Acerca de alguns dos conceitos que fundamentam a Teoria da Residualidade


É perceptível haver uma remanescência mental de grupos culturais anteriores, no
que diz respeito às formas de comportamento, modos de entender e de se relacionar com
a coletividade, interpretações ideológicas, posicionamentos morais, forma de interagir e
sentir as pressões do meio, em culturas posteriores. Essa crença fez com que a Teoria da
Residualidade tomasse forma, corpo, e constituição teórica, para fundamentação
norteadora de estudos. Tão logo, aceitamos que os substratos mentais, resultam de um

1
Graduanda em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Bolsista de monitoria da disciplina
Literatura Portuguesa III e membro do grupo de pesquisa Estudos de Residualidade Literária e Cultural.
2
Professor Associado II do Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará - UFC.

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processo de hibridação cultural, natural aos povos espaço-temporalmente em


constituição dinâmica e permanente, e que a cristalização de alguma forma de arte tem
natureza residual.
Assim, podemos entrever os princípios basilares da teoria da qual nos
serviremos para defesa do objetivo acima exposto, que são: resíduo, cristalização,
mentalidade e hibridação cultural. É bom frisar, que tais termos advêm de outros ramos
das ciências, e que o papel fundamental do professor Roberto Pontes foi justamente o de
gestor da sistematização de tais conceitos e do aprofundamento de seus estudos
orientados para os campos literário e cultural. Neste trabalho, entretanto, resolvemos
adentrarmo-nos apenas no que concerne ao resíduo e à mentalidade.
Segundo as palavras do próprio idealizador desta teoria, em entrevista concedida
a Rubenita Moreira, os “resíduos são aquilo que remanesce de uma época para outra e
tem a força motriz de criar de novo toda uma obra, toda uma cultura. [...] É
manifestação dotada da força do novo porque passa sempre por uma cristalização.”
(MOREIRA, 2006: 8). É, portanto, aquilo que surge como dado ou elemento
contraditório numa época e num espaço diferentes, ao tornar-se matéria viva e
aproveitável por uma cultura, tendo sido selecionada dentre a pluralidade de suas
tradições.
Cada indivíduo carrega consigo algo singular, firme e assente, que lhe constitui
a identidade, ao mesmo tempo que o integra a uma formação societária. É essa
reciprocidade cultural que une uma sociedade e marca seu imaginário coletivo,
existindo, todavia, vários resíduos dentro dela. Tais resíduos são fruto de uma seleção
tradicional, devido ao grau de importância atribuído a determinado elemento residual
vigorante, o qual é reinserido e reinventado artisticamente na atualidade.
O crítico marxista Raymond Williams postula:

Por “residual” quero dizer alguma coisa diferente do “arcaico. [...] Qualquer
cultura inclui elementos disponíveis do seu passado, mas seu lugar no
processo cultural contemporâneo é profundamente variável. Eu chamaria de
“arcaico” aquilo que é totalmente reconhecido como um elemento do
passado, a ser observado, examinado, ou mesmo, ocasionalmente, a ser
“revivido” de maneira consciente, de uma forma deliberadamente
especializante. O que entendo pelo “residual” é muito diferente. O residual,
por definição, foi efetivamente formado no passado, mas ainda está ativo no
processo cultural, não só como um elemento do passado, mas como um
elemento efetivo do presente. Assim, certas experiências, significados e
valores que não se podem expressar ou verificar substancialmente, em termos

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da cultura dominante, ainda são vividos e praticados à base do resíduo –


cultural bem como social – de uma instituição ou formação social e cultural
anterior. (Williams, 1979, p. 125).

Já mentalidade é o que conjuga o indivíduo à sua comunidade, identificando-o e


integrando-o pela adoção de manifestações, como crenças e condicionamentos morais,
comportamentais e ideológicos, com raízes mentais atualizadas no seio de uma
coletividade. Enfim, é aquilo que identifica e particulariza uma “cultura material”,
formada pelos resíduos oriundos do passado, de uma cultura intangível.
Foi na década de 50, que os estudiosos da École des Annales, na França,
empenharam-se em desenvolver a Nouvelle Histoire, resignificando o termo
mentalidade. E a partir deste novo enfoque de estudos, foram valorizados os caracteres
dinâmico e mutável da historicidade. Roberto Pontes, citando Coulanges, afirma que
“felizmente o passado nunca morre por completo para o homem. O homem pode
esquecê-lo, mas continua sempre a guardá-lo em seu íntimo, pois o seu estado em
determinada época é produto e resumo de todas as épocas anteriores”. (Pontes, 2003, p.
89).
É através de uma apropriação desse resíduo, tornado objeto atual na
contemporaneidade, porque apropriado de um passado ainda com força revitalizadora,
que se reelabora e surge de forma cristalizada alguma manifestação artística ou cultural.
Por isso, acreditamos na natureza residual das produções literárias e culturais.

Ai, essa dor de amar!


No Ocidente, o primeiro lirismo a surgir em língua românica e vulgar nos foi
dado em “langue” d’oc (ou occitânica), do sul da França, mais especificamente na
Provença, a partir do século XI. Este lirismo deu surgimento à poesia trovadoresca
provençal, tornada instrumento amatório dos troubadours a fim de exercitarem o seu
jogo suplicante e plangente quando do apelo à musa e “santuário” inspirador. Tal
espécie de poesia foi a responsável pela formulação da postura comportamental do
modo de amar e conduzir as relações afetivas naquele período, dando proeminência ao
código normativo e rigoroso do “amor cortês”. Além disso, foi a partir dos trovadores
occitânicos que a Europa inseriu a temática amorosa em suas produções líricas.
Assinale-se que, o código de comportamento ético do “amor cortês”, surgiu
como imperativo da pequena nobreza para relacionar-se com os grandes nobres,

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originando uma erotização das relações sociais de vassalagem, transferidas do “senhor”


para a “senhora”. Daí, na poesia provençal, ter sido corrente o uso de termos como
“midons”, “mia senhor”, “mia dona”, dentre outros.
O clima transmitido pela leitura de uma produção lírica inspirada na poesia
provençal trovadoresca, quer seja das cantigas de amor, inicialmente reveladoras dessa
influência na Península Ibérica, quer sejam os sonetos classicistas de Camões, é o de
súplica, plangência, dor sentimental pela falta de correspondência ou pela ciência de que
aquela que se deseja, dificilmente será sua.
Por conseguinte, um sofrimento penoso é confessado: a coyta d’amour. E esta
era até certo ponto, desejada, uma vez que um sentimento masoquista conduzia o
trovador no trato amoroso, já que nutre um amor incondicional por uma mulher que não
lhe corresponde os sentimentos, da mesma forma que deve subordinar-se às regras
postas pelas convenções sociais e pelo código do “amor cortês”.

Resgatando reminiscências residuais e mentais nos sonetos camonianos


Massaud Moisés (Org.) ressalta que “toda a arte erótica ocidental, toda a poesia
amatória posterior está idelevelmente marcada pela maneira de amar elaborada pelos
provençais, pelo código de comportamento amoroso a que chamavam a “fin amors” e
que mais tarde ficou conhecido como o “amor cortês” (Moisés, 1992, p. 32). No soneto
que segue, poderemos perceber além da opção por esse modo poético, o uso métrico do
decassílabo, a residualidade do código do “amor cortês” trovadoresco e da coyta
amorosa das cansós provençais.

Quando, Senhora, quis Amor que amasse


essa grã perfeição e gentileza,
logo deu por sentença que a crueza
em vosso peito amor acrescentasse.
Determinou que nada me apartasse:
nem desfavor cruel, nem aspereza;
mas que em minha raríssima firmeza
vossa isenção cruel se executasse.
E pois tendes aqui oferecida
esta alma vossa a vosso sacrifício,
acabai de fartar vossa vontade.
Não lhe alargueis, Senhora, mais a vida;
acabará morrendo em seu ofício,
sua fé defendendo e lealdade. (Camões, 1981, p. 24)

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Observamos no primeiro quarteto do soneto, três resíduos principais,


materializadores da mentalidade medieval relacionada ao cavaleiro que presta cortesia à
dama e que tem seu amor não correspondido. Primeiro, há a dignificação da perfeição
feminina, a idolatria a ela dedicada, idealizando-a como um santuário de beleza,
requinte e encanto. O uso dos termos “perfeição” e “gentileza” traduzem essa
magnificência da subserviência cortesã. Segundo, deixam entrever os dois versos finais,
a amplitude da não correspondência amorosa e a insatisfação do apaixonado. Tal
ideologia da “crueldade” feminina que não responde aos apelos do amante é
representada ainda no segundo quarteto, em que se ressalta a indiferença e
imparcialidade aos sentimentos de seu “vassalo”. Por último, nota-se a impossibilidade
de desprender-se de um amor tirânico, do qual se não consegue fugir: chaga ou
holocausto imposto ao apaixonado por conta da perfeição da musa.
Nos dois tercetos, o eu-lírico oferece o coração e todo o seu sentimento
passional em sacrifício, já que o amor é de difícil concretização. Por isso afirma que,
caso morra por sua amada, morrerá dignamente no seu posto de amante-cavaleiro,
defensor leal do sentimento que o conduz.

Considerações finais
Valendo-nos da Teoria da Residualidade, pudemos apreender no soneto
analisado, as marcas residuais do código de amor cortês e do sofrimento traduzidos na
coyta de amor. A mentalidade do cavaleiro medieval segue rigorosamente as regras do
código ético pregado ao defender a “cousa amada”, valorizando o respeito e culto à
dama, que não lhe corresponde ou ignora mesquinhamente os sentimentos. Também
algumas regras rígidas pressupostas por esse código de comportamento são fielmente
respeitadas, tais como a mesura e a senhal, por exemplo. Entretanto, o polo da renúncia
não foi priorizado, em contrapartida a excelência da mulher e seu desprezo passional.
Talvez isso traduza o liame existente entre a temática amorosa e o desconcerto do
mundo na lírica camoniana, como bem traduzem essas palavras de Cleonice
Berardinelli: “O tema central de sua poesia é [...] o amor, e amor infeliz. Por quê?
Porque ama e não é amado, ou porque a amada está ausente – mesmo quando próxima,
pois o ignora ou desdenha. No seu amor há desconcerto. Como em tudo.” (Berardinelli,
2000, p. 164).

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Dessa forma, esperamos ter conseguido mostrar as marcas residuais e os


substratos mentais do serviço amoroso trovadoresco cristalizados no soneto, as quais
comprovariam o resgate feito por Camões do modo de amar mediévico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERARDINELLI, Cleonice. Estudos Camonianos. 2. ed. Ver. e ampl. Rio de Janeiro:


Nova Fronteira: Cátedra Padre António Vieira, Instituto Camões, 2000.
CAMÕES, Luís de. Lírica Completa II. Prefácio e notas de Maria de Lurdes Saraiva.
Lisboa: IN-CM, 1981.
CIDADE, Hernani. Luís de Camões: O Lírico. 4. ed. Lisboa: Editorial Presença, 2003.
LEODEGÁRIO, A. de Azevedo Filho. Lírica de Camões. Vol 2 – sonetos. Tomo I
(temas porugueses). [s/n]: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987.
LOPES, Oscar; SARAIVA, António José. História da Literatura Portuguesa. 17 ed.
Porto: Porto Editora, 1996.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 33. ed. São Paulo: Cultrix, 2005.
______. A Literatura Portuguesa em Perspectiva. Vol I – Trovadorismo, Humanismo.
São Paulo: Atlas, 1992.
MOREIRA, Rubenita; PONTES, Roberto. Entrevista Sobre a Teoria da Residualidade
com Roberto Pontes. Comunicação na Jornada Literária “A Residualidade ao alcance de
todos”. Departamento de Literatura da UFC, Fortaleza, julho de 2006.
______. Residualidade e Mentalidade Trovadoresca no Romance de Clara Menina.
(Comunicação) III Encontro Internacional de Estudos Medievais. Rio de Janeiro, 1999.
______. Residualidade e Mentalidade na Lírica Camoniana. In: CASTRO E SILVA,
Odalice et alii. Escritos do Cotidiano: estudos de literatura e cultura. Fortaleza: 7 Sóis,
2003.
SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. São Paulo: EDUSP, 1991.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores,
1979.

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A CONCEPÇÃO DE PALAVRA E A CONSTRUÇÃO DE SÍMBOLOS EM


LAVOURA ARCAICA, DE RADUAN NASSAR

Yvanna Peixoto de Vasconcelos Guimarães1


Prof. Dr. Cid Ottoni Bylaardt2

Raduan Nassar publicou, em 1975, seu primeiro romance, intitulado Lavoura


Arcaica. Como o título sugere, a obra trata de uma família que possui moral e costumes
medievais. Símbolos e parábolas bíblicas também são bastante presentes no livro, assim
como as subversões dos mesmos. Pretendemos, no presente trabalho, apresentar um
aspecto interessante do romance, que é a concepção de palavra apresentada por André e
por seu pai.
Em Lavoura Arcaica, a palavra e a linguagem possuem um sentido fortemente
ligado ao contexto bíblico. No discurso do pai de André (que poderia ser entendido
também como o pai da palavra), bem organizado e articulado, elas são apresentadas
como fontes inegáveis de verdade e certeza. Elas são a solução para todos os conflitos, e
precisamos ficar atentos a elas, pois a palavra, segundo ele, liberta. A partir da
construção do discurso do pai, que é fundamentado na bíblia, André, o filho pródigo, irá
transgredir toda a fala de seu patriarca, a partir de sua fala não-linear, desconexa e
confusa, mostrando ao leitor como a palavra é traiçoeira, dissimulada, morta e cheia de
ausências. A partir das teorias de Maurice Blanchot e de Eni Puccinelli Orlandi,
buscamos refletir sobre as duas concepções de palavra e linguagem presentes na fala
dos dois personagens.
O narrador-personagem, em seu quarto de pensão, diz ao seu irmão: "(...) era ele
sempre dizendo coisas assim na sua sintaxe própria (...)" (p. 42). O pai construía sua
fala quase como um outro idioma. E era a sua língua que dominava a casa: "(...) tudo em
nossa casa é morbidamente impregnado da palavra do pai; era ele, Pedro, era o pai que
dizia sempre é preciso começar pela verdade e terminar do mesmo modo, era ele sempre
dizendo coisas assim, eram pesados aqueles sermões de família" (p. 41). Para o pai de
André, a palavra é sinônima de verdade. Essa concepção de palavra é semelhante à

1
Graduanda do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
2
Professor do Programa de Pós-Graduação do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.

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visão bíblica: “Disse Jesus aos judeus que haviam crido nele: ‘Se vocês permanecerem
firmes na minha palavra, verdadeiramente serão meus discípulos. E conhecerão a
verdade, e a verdade os libertará. ’” (Jo 8, 31-32). Segundo a bíblia, a palavra é a
verdade que liberta, e é um artefato seguro no qual poderemos nos firmar. Na concepção
bíblica (que é a mesma do pai do narrador-personagem), a linguagem é um instrumento
garantido e fiel.
André é a erva daninha no seio da família, é o elemento de desordem. Sua
concepção de palavra não poderia ser diferente. Sobre a palavra dominante do pai (que
não pertence a ele, pertence a um discurso cujo criador não foi ele), o filho discorre:

(...) cada palavra era uma folha seca e eu nessa carreira pisoteando as páginas
de muitos livros, colhendo entre gravetos este alimento ácido e virulento,
quantas mulheres, quantos varões, quantos ancestrais, quanta peste
acumulada, que caldo mais grosso neste fruto da família! (p. 88).

Essa língua que o pai usava pertencia a um discurso que predominava na


família, e, para André, era composta de várias palavras que eram como folhas secas,
como objetos mortos e vazios nos quais ele pisava, e dos quais escorria um “alimento
ácido e virulento” que fez acumular peste em toda a família.
Quando André retorna à casa da família, seu pai o chama para conversar na
mesa, e, nessa conversa, o filho mostra-se incompreensível, difícil de fazer entender.
Até esse momento, o narrador-personagem havia descrito os fatos em uma fala poética
fortemente não-linear, na qual quase abolia o uso de letras maiúsculas, conectivos, etc.
No capítulo da conversa entre André e seu pai, percebemos que há linearidade, uso de
travessão e letra maiúscula:

- (...) Para que as pessoas se entendam, é preciso que ponham ordem em suas
ideias. Palavra com palavra, meu filho.
- Toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza, uma semente de
obscuridade, não é por outro motivo que falo como falo. (p. 158)

Para o pai, o entendimento é algo simples, a palavra é um objeto que, quando


usado corretamente com outro objeto, funciona perfeitamente. Porém, como André em
relação a sua família, a linguagem carrega em si sua própria contradição, leva em si
mesma a doença. Segundo o pensamento de Blanchot (1997), a linguagem contém em si
mesma ausências e vazios:

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Na existência diária, ler e ouvir supõe que a linguagem, longe de nos dar a
plenitude das coisas nas quais vivemos, seja cortada delas, pois se trata de
uma linguagem de sinais, cuja natureza não é ser preenchida com aquilo a
que ela visa, mas ser esvaziada, nem nos dar o que ela quer que alcancemos,
mas nos torná-lo inútil substituindo-o, e assim afastar de nós as coisas
tomando seu lugar e tomar o lugar das coisas não preenchendo-se com elas,
mas abstendo-se delas. O valor, a dignidade das palavras do dia a dia é estar
o mais perto possível do nada. Invisíveis, não mostrando nada, sempre além
delas mesmas, sempre aquém das coisas, uma pura consciência as atravessa,
e tão discretamente que às vezes elas próprias faltam. (...) E, todavia, a
compreensão não para de se realizar, parecendo mesmo atingir um ponto de
perfeição. (p. 78)

Para Blanchot, a linguagem é vazia, e seu destino não é ser preenchida com seu
objetivo, mas ser esvaziada, não nos dando o que queremos, afastando-nos do que
buscamos, entretando, nos dá a ilusão de perfeição por conseguirmos nos comunicar no
cotidiano. A linguagem potencializa sua falha intrínseca na literatura. O pai de André
simboliza essa linguagem cotidiana, pretensamente organizada, útil e sem falhas, e, o
filho, a linguagem literária, cheia de desordem, obscuridade, imperfeições.
Ainda no diálogo entre pai e filho, temos as seguintes falas:

- Conversar é muito importante, meu filho, toda palavra, sim, é uma semente;
entre as coisas humanas que podem nos assombrar, vem a força do verbo em
primeiro lugar; precede o uso das mãos, está no fundamento de toda prática,
vinga, e se expande, e perpetua, desde que seja justo.
- Admito que se pense o contrário, mas ainda que eu vivesse dez vidas, os
resultados de um diálogo para mim seriam sempre frutos tardios, quando
colhidos. (p. 160)

Para o pai, toda palavra é uma semente, o verbo é uma coisa humana que possui
força e longevidade. Para André, é inútil tentar semear em um campo que pode jamais
dar frutos, por mais que se fale infinitamente (“ainda que eu vivesse dez vidas”). O pai
de André prioriza a semente ao invés do fruto, e, ao fim do diálogo, afirma que achava
que havia falado em vão: "Cheguei a pensar por um instante que eu tinha outrora
semeado em chão batido, em pedregulho, ou ainda num campo de espinhos." (p. 169). A
afirmação do pai nos faz lembrar de outra parábola bíblica do semeador.
O semeador (mensageiro) espalha a semente (mensagem) em vários tipos de
solos (pessoas), alguns solos são pedregosos, outros são cheios de espinhos, mas há o

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solo fértil, no qual a semente dá boa colheita, ou seja, é “aquele que ouve a palavra e a
entende, e dá uma colheita de cem, sessenta e trinta por um” (Mt 13: 23).
André tem consciência de que as palavras são sementes, e afirma:

(...) foi o senhor mesmo que disse há pouco que toda palavra é uma semente:
traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva em seu bojo:
corremos graves riscos quando falamos. (p. 165-166)

Temos aí a concepção de que a linguagem é corrosiva, perigosa, ambígua. André


tem consciência disso, e usa as palavras tendo isso em mente, como afirma para seu pai:

- Misturo coisas quando falo, não desconheço esses desvios, são as palavras
que me empurram, mas estou lúcido, pai, sei onde me contradigo, piso quem
sabe em falso, pode até parecer que exorbito, e se há farelo nisso tudo, posso
assegurar, pai, que tem também aí muito grão inteiro. Mesmo confundindo,
nunca me perco, distingo pro meu uso os fios do que estou dizendo. (p. 163-
164)

As palavras empurram umas às outras e levam o personagem a perder-se nos


significados e ideias, mas ele tem consciência de que isso faz parte da própria
linguagem, sua natureza é oferecer “farelos” e “grãos”, “confundindo” no uso de seus
fios. Inclusive, a combinação dessa mistura e da potência explosiva da palavra, a
incompreensão e o silêncio tem seu lugar garantido: “- (...) Se eu depositasse um ramo
de oliveira sobre esta mesa, o senhor poderia ver nele simplesmente um ramo de
urtigas.” (p. 166), diz André a seu pai quando este pede simplicidade e clareza do uso da
palavra. Orlandi (1997) afirma: “As palavras são cheias de sentidos a não se dizer e,
além disso, colocamos no silêncio muitas delas.” (p. 14).
Por fim, o pai culpa o filho da própria perdição e aspereza das palavras, como se
ele fosse o culpado de não conseguir comunicar nada: "(...)domine a víbora debaixo da
tua língua, não dê ouvidos ao murmúrio do demônio, me responda como deve responder
um filho, (...) seja claro como deve ser um homem, acabe de vez com esta confusão!"
(p. 166-167). A linguagem é demoníaca, pois não é clara, é confusa, doente, venenosa e
vazia, como André.
Através desse pequeno passeio literário pelo romance de Raduan Nassar,
pudemos perceber a problemática da linguagem em Lavoura Arcaica, a concepção de

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palavra existente no romance, assim como a simbologia da palavra, segundo a bíblia,


presente na obra literária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bíblia Sagrada: nova versão internacional. [traduzido pela comissão de tradução da


Sociedade Bíblica Internacional]. São Paulo: 2002.
BLANCHOT, Maurice. A linguagem da ficção. In: A parte do fogo. Trad. Ana Maria
Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3. ed. Rev. pelo autor. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989/2006.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. São
Paulo: Editora da UNICAMP, 1997.

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