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A carta1

Ele está vindo à Capital duas vezes por mês para prestar contas das obras da
empresa. Traz notícias, o pedido de encomenda ou carta do amigo para a noiva. Estudaram
juntos no colégio e ocupam agora o mesmo quarto na pensão. Buzina, aquele som de
buzina já conhecido e esperado, em frente ao portão da noiva do amigo. Ela dá toque rápido
aos cabelos diante do espelho, aligeira os passos, cintura reduzida, pernas bem-feitas.
Conversa com ele debruçada na porta do automóvel, protegendo o decote na alvura da pele.
A mãe dela às vezes aparece para notícias do futuro genro, já quase um filho, o casamento
marcado para dezembro. Ele desce do automóvel para a xícara de café em pé na sala. Bate
o cigarro contra a unha polida, e a mão longa (o anel de engenheiro) protege com elegância
a chama do isqueiro.

As noticias que traz do outro são quase sempre as mesmas. Ótimo de saúde.
Continua a trabalhar muito no banco. O extraordinário aos sábados. Por último, a notícia
boa da promoção que teve. Ele chega à conclusão, rindo, de que o casamento poderá ser
apressado. A velha ri, e a filha também, girando no dedo a aliança do noivado.

Ao retornar na segunda-feira pela manhã, novamente buzina em frente à casa, para


notícia dela ou carta, encomenda que tenha. Ela já o espera. Talvez inquieta, porque volta a
olhar pela janela do quarto, afastando a cortina. De passagem, ajeita na penteadeira, sem
necessidade, o vaporizador de água-de-colônia ou estala os dedos. Anda nervosa. Aborrece-
se com a mãe. A velha tem mania de mandar pacotinhos de doce para o futuro genro.
Porque era aniversário dele, aquele bolo difícil e ridículo, que o moço teve de ajeitar com
muito cuidado no porta-malas, limpando depois os dedos no lenço de que se evolava o
perfume.

Zanga-se:

- Acho isso absurdo!

A mãe se aborrece também. Entende que não há abuso nenhum, se os dois são
amigos, e o moço sempre tão atencioso:

1
Publicado em Os doze parafusos, 1978 e em Dizem que os cães vêem coisas, 2ª ed. 1993, que serviu de base
para esta edição.
- Absurda é você!

Numa dessas viagens o amigo o acompanhou. Quando ela viu o noivo dentro do
carro, surpreendeu-se:

- Ah, você?

Ele desceu com a pasta na mão. Beijou-a no rosto. Passou-lhe o braço sobre os
ombros e a estreitou. O outro tinha pressa de chegar em casa. A mãe fica sempre aflita,
pensando em desastre.

- Tchau.

- Tchau.

Da última vez em que parou o carro ali, disse-lhe que trouxera carta do noivo.
Esticou-se para apanhá-la no porta-luvas. Ela pousou-lhe a mão no braço com uma
pergunta que o desviou do propósito. Conversava com a graça de sempre. Aquele jeito
delicioso de arranjar os cabelos atrás da orelha. Ria. Movimentava-se na calçada sob a luz
do poste. Quis descansar o corpo contra o carro. Ele lhe disse que poderia sujar o vestido
por causa da poeira, e voltou à elegância do cigarro e do isqueiro. Ela indagava se aquelas
viagens não o cansavam. Dizia que não. A estrada era boa, asfaltada, e tinha como
companhia os próprios pensamentos. Ela quis saber que pensamentos eram esses.

- Ah, bem! Isso é mistério.

Riam muito. Despediram-se.

Quando ele chegou em casa e buzinou para que a empregada abrisse o portão,
lembrou-se de que não lhe entregara a carta, nem ela a reclamara. Teve um gesto de
contrariedade: bateu o punho contra a mão. A mãe, que lhe vinha sempre ao encontro,
indagou:

- Alguma preocupação, meu filho?

- Não, não. Nada.

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