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COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil, v. 6, p. 97.
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teatro e arte. Com o tempo e pela recorrência dos conteúdos, esse espaço foi se dividindo e
criando assim folhetins diversos para cada área: arte, acontecimentos sociais, variedades,
política, enfim, tudo o que pudesse alcançar o gosto da maioria dos leitores.
No entanto, o que mais colaborou para o sucesso do folhetim no Brasil, assim
como na França, foi o lançamento do romance em partes, o que serviu, no caso do jornal,
como um meio de atrair mais compradores. E, para a literatura, esse fato também
proporcionou o surgimento gradual do romance brasileiro. Desse modo, a idéia aproveitada
dos jornais da Europa alcançou o mesmo sucesso no Brasil.
A crônica foi outro gênero que se desenvolveu a partir do folhetim. E, mesmo sem
apresentar uma caracterização e estrutura definida como o romance, ela obteve grande
repercussão no período. Isso porque discorria sobre os acontecimentos triviais ou importantes
da sociedade, especificamente os da corte, que, de certo modo, povoavam os enredos dos
romances.
Uma das marcas principais da crônica é a utilização de uma linguagem amena e
fluente, apresentando um refinamento estilístico, com impressões pessoais do autor sobre os
acontecimentos da semana, dirimindo assim o teor objetivo da linguagem jornalística. Por ser
contemporânea ao nascimento do romance no Brasil, a crônica foi por muito tempo
depreciada, vista como gênero menor. Todavia, nota-se na história da literatura brasileira que
a maioria dos melhores escritores esboçaram seus primeiros romances por meio de crônicas.
Escrever crônica para os jornais desde o período romântico até o Modernismo
funcionaria somente como meio de ascensão ao meio cultural, político e, principalmente,
social, desde que a sua composição não fugisse dos padrões ideológicos da opinião culta
vigente†.
O projeto de “construção de identidade literária”, iniciado no período romântico e
que vigorou até o fim do século dezenove, elegeu o romance como o melhor instrumento de
canalização da nossa “brasilidade”, unindo a isso o desejo dos intelectuais brasileiros de dotar
o País de uma literatura equivalente à européia ‡. Por ser um gênero híbrido do jornalismo e da
literatura, possuidora de um caráter ao mesmo tempo factual e artístico, a crônica não
alcançou o mesmo status que o romance, que exprimia mais adequadamente as necessidades
dos intelectuais da época.
O romance romântico, por sua vez, atendia à necessidade de fantasia que
objetivava construir miticamente a nossa origem, mesmo que fugisse à realidade da nação.
†
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira, v. 2, p. 107.
‡
Idem, p. 11.
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Desse modo, o tipo de crônica que vigorou no mesmo período foi a social, seguindo o mesmo
caminho do romance: agradar o público leitor, especialmente o da Corte. Ainda que
privilegiada em relação à população brasileira da época, a maioria dos leitores não possuía
uma cultura muito refinada, sendo um público pouco exigente em relação aos temas
explorados pelos cronistas, como afirma Nelson Werneck Sodré:
§
SODRÉ, Nelson Werneck. Historia da imprensa no Brasil, p. 198.
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COUTINHO, Afrânio. Op. cit., p. 198.
††
Idem, p. 124.
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especulação financeira promovida pela classe que detinha o poder político e à qual ele mesmo
pertencia. Por isso, é demitido do jornal em 1855 devido às palavras incisivas e diretas,
afirmando que
dantes os homens tinham as suas ações na alma e nos corações; agora tem-nas no
bolso ou na carteira. Por isso naquele tempo se premiavam, ao passo que agora se
compram. Outrora eram escritas em feitos de um país; hoje são escritas num papel
dado por uma comissão de cinco membros. Aquelas ações do tempo antigo iam
avaliadas pela consciência, espécie do cadinho que já caiu em desuso; as de hoje são
cotadas na praça e apreciadas conforme o juro e o interesse que prometem†††.
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MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira, p. 89.
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Como cronista, Machado de Assis se destacou por transpor para seus textos os
mesmos procedimentos estilísticos que o consagraram como romancista, principalmente sua
peculiar ironia. Assim, tanto nas crônicas como no romance, o narrador é quem maneja a
situação e o leitor deve percorrer a idéia e captar as intenções desse narrador. Essa interação
inaugurou mais um modo novo de se fazer e de se ler a crônica, portanto
§§§
ARAÚJO, Ricardo. "Machado de Assis e os novos meios: entre o livro e o jornal", p. 36.
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GRANJA, Lúcia. “A língua engenhosa: O narrador de Machado de Assis entre a invenção de histórias e citação
da história”, p. 71.
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28. (...) no Maranhão al guns escravos, que, depoi s de l i vres, com praram
t am bém escravos , quão m enor será a m el ancol i a desses que são agora
duas cousas ao m esm o t em po, ex- escravos e ex-senhores. B em di z o
Ecl esi ast es: Al gum as vezes t em o hom em domí ni o sobre out ro hom em
para desgraç a sua. O m el hor de tudo m e acrescent o, é possui r a gent e a si
m esm o. B oas noi t es † † † † .
††††
GLEDSON, John. Bons dias, pp. 11-2.
‡‡‡‡
Idem, Machado de Assis: Ficção e História, p. 120.
§§§§
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ARRIGUCCI Jr., Davi. Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência, p. 209.
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pelo modo inovador que imprimiram à sua escritura ficcional e pelo modo crítico como leram
a realidade do país através da ficção. Mesmo com fortes divergências, Lima Barreto
compartilha com Machado de Assis a autêntica vocação de romancista, expressa na aguda
sensibilidade frente à vida e à sua realidade. A obra de Lima Barreto,
O aspecto peculiar que distingue os dois escritores se resume no modo como cada
um apresentou a sociedade em suas obras. Essa diferença, contudo, não é tão marcante se
levarmos em consideração que ambos compartilharam o mesmo compromisso: retratar a
sociedade brasileira, não só de forma artística, mas também crítica. Lima Barreto percebeu
que a República havia produzido novas classes, a suburbana e a emergente. A despeito da
realidade apresentada na literatura da época, na qual figurava apenas a burguesia, o autor
retrata essas novas camadas, geradas pelo progresso e pelo surgimento do espaço urbano,
realçando os contrastes gritantes entre as classes sociais, principalmente aqueles produzidos
pela diferença do poder político-econômico.
A transposição da realidade da camada suburbana para a literatura torna-se a base
de suas principais propostas para compor uma arte militante, no objetivo de renovar os
recursos estilísticos e estéticos da época. A intenção de Lima Barreto era desestabilizar a
literatura vigente, estabelecer uma literatura mais acessível a um maior número de leitores -
especialmente o leitor médio, aquele que consumia o jornal. Segundo o historiador Nicolau
Sevcenko, o que determina a inovação de Lima Barreto no campo artístico é sua fusão de
estilos. Essa característica confere a sua obra um caráter uniforme e coerente, essencial para a
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PEREIRA, Lúcia Miguel. Prosa de ficção (de 1890 a 1920):história da literatura brasileira, p. 275.
†††††
BARRETO, Lima. Impressões de leitura, p. 190.
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busca de uma comunicabilidade mais ampla com o público, e permite uma abertura da
literatura para uma maior parcela da sociedade‡‡‡‡‡. Essa afirmação pode ser comprovada
claramente nas crônicas que compõem Os Bruzundangas.
A agressividade de sua escritura e a impaciência diante da realidade colaborou
para que muitos jornais acabassem excluindo-o quase que por completo das redações, não por
considerá-lo um artista incapaz. O que realmente incomodava era a atitude dissidente em
relação aos princípios estéticos e temáticos vigentes. Ao contrário do que ocorria com a maior
parte dos escritores da época, suas crônicas não se perdiam em torneios lingüísticos e
imagéticos: na grande maioria eram extremamente claras, chegando quase a uma conversa
direta "olhos nos olhos com o leitor".
O trato diferenciado presente em suas crônicas se deve ao jornal, que foi uma das
bases para a modernidade da obra barretiana, na medida que consegue imprimir elementos da
linguagem jornalística na literária. Mesmo que a crítica menospreze a confluência entre
literatura e jornalismo, é impossível não perceber a intersecção desses campos na produção de
Lima Barreto. O produto dessa equação abriu caminhos, no início do século XX, para libertar
a literatura brasileira de uma estética dogmática, que provocava a esterilidade na criação
literária.
Lima Barreto uniu a essência do jornal, que é a discussão da realidade dos fatos, à
capacidade de atualização e renovação da literatura, o que resultou em uma proposta artística
original. Tal convergência de campos, aparentemente distintos no tocante a seus objetivos,
estabeleceu a modernidade de sua obra, cuja leitura evidencia que "se o livro é o vislumbre
para a entrada no mundo moderno; o jornal [foi] a efetivação plena da modernidade"§§§§§.
O contexto histórico-literário do início do século passado exigia um protesto.
Entretanto, as avaliações críticas, preocupadas exclusivamente em realçar supostas limitações
de elaboração estética, encobriram a verdadeira dimensão da obra barretiana no processo
renovador da literatura brasileira. Um dos motivos dessa recusa talvez seja o fato de Lima
Barreto ter sido contemporâneo de Machado de Assis, escritor já consagrado na época pela
crítica vigente, dominada pelos mesmos princípios estéticos dogmatizados.
O trato da palavra em Lima Barreto nunca aconteceu de maneira solidária entre
pensamento e escritura: a sua extrema agilidade de reflexão e temperamento pode ter sido a
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SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão, p. 164.
§§§§§
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ARAÚJO, Ricardo. Op. cit., p. 36.
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grande dificuldade para uma melhor elaboração artística. Suas crônicas escritas "com carne",
quase manifestos, e outras "com espírito", sem uma preocupação direta de denúncia social,
são exemplos evidentes desse obstáculo. Isso não impede que sua obra revele um escritor
consciente do seu papel político e, sobretudo, literário.
A República representava para Lima Barreto, assim como para a maioria dos
marginalizados da sociedade brasileira, a esperança de um país mais democrático e menos
estratificado. Todavia, a mudança de regime político em nada, ou quase nada, havia mudado a
situação da maioria desses brasileiros. Lima Barreto percebeu o modo arbitrário como foi
instituída a República:
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Marginália, http://www.bibvirt.futuro.usp.br/ p. 6
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críticas podem ser vistas como equivocadas e sem valor em função da atualidade que a obra
barretiana mantém na literatura brasileira.
A crítica literária dos jornais da época aproximava-se do colunismo, do noticiário,
ou mesmo da crônica literária, carregando nas amenidades e curiosidades sobre a obra e o
autor em foco. Via de regra, o gosto do público e suas condições de entendimento norteavam
a escolha do assunto e o enfoque a ser privilegiado por essa crítica ††††††. Por isso, não é de se
estranhar que o melhor da crônica barretiana seja encontrado nos pequenos e efêmeros
periódicos da época. As revistas A quinzena e O diabo, ambas de breve duração, demarcam o
início de sua produção intelectual.
N’O diabo, o cronista aparece sob o pseudônimo de Rui de Pina, o mesmo que
posteriormente usaria em O pau e no Tagarela. O jornalismo não funcionou para o autor
somente como campo de exercício de sua intelectualidade. Foi, essencialmente, um dos
principais meios de sobrevivência. Por meio de Carlos Viana, colega de colégio, Lima Barreto
chega A Revista, assumindo o cargo de secretário. Essa revista acaba não sendo publicada
com a mesma regularidade dos jornais devido à falta de recursos financeiros, fato que ocorria
com a maioria das revistas da época. No intuito de garantir sua manutenção, o diretor aceita
publicar louvores a políticos, prática recorrente nos periódicos da pequena imprensa. Por tal
razão, Lima Barreto sentiu-se muito constrangido, demitindo-se meses depois e ficando em
apuros ainda maiores para sanar as suas dificuldades financeiras, mas em paz com a
consciência.
Um ano mais tarde, ingressou no jornal Correio da manhã, que naquele período, a
despeito da maioria dos outros, denunciava as negociatas dos políticos do Rio de Janeiro e
todas as suas mazelas, inclusive as da periferia que surgia como conseqüência da urbanização
promovida pela prefeitura da cidade. O único jornal da época que se opunha ao governo de
Campos Sales era marcado pela estagnação econômica e pela indiferença às classes populares.
Portanto, esse jornal quebrava a corrente da imprensa sustentada pelo suborno político, além
de ser o primeiro a dar voz às classes populares, coisa rara na imprensa da época ‡‡‡‡‡‡. A
passagem de Lima Barreto por esse jornal foi transitória, mas decisiva para que o autor
denunciasse as transformações da imprensa na época. À medida que o jornal se tornava
empresa, o jornalismo individual começou a ser enterrado, realidade essa retratada em
Recordações do escrivão Isaías Caminha.
††††††
MARTHA, Alice Penteado.http://www.ucm.es/info/especulo/numero16/barreto.html/, p. 6.
‡‡‡‡‡‡
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil, p. 287.
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SEVCENKO, Nicolau. Op. cit., p. 212.