Você está na página 1de 130

UNILETRAS

Diversidade e pluralidade na literatura, na leitura


e na escrita
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA
Reitor
João Carlos Gomes
Vice-Reitor
Carlos Luciano Sant´Ana Vargas
Diretor do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes
Jeane Silvane Eckert Mons
Chefe do Departamento de Letras Vernáculas
Marly Catarina Soares
Chefe do Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas
Dilma Heloisa Santos

UNILETRAS
Equipe Editorial
Marly Catarina Soares
Larissa de Cassia Antunes Ribeiro
Lucan Fernandes Moreno
Revisor ortográfico
Ubirajara Araujo Moreira
Revisor língua inglesa
Thaisa de Andrade Jamoussi

Conselho Editorial
Agnès Levécot - Sorbonne - Paris Maria Marta Furlanetto - UFSC
Alexandre Soares Carneiro - UNICAMP Maria Tereza Amodeo - PUCRS
Angélica Soares - UFRJ Orna Messer Levin - UNICAMP
Clarice Nadir Von Borstel - UNIOESTE Pedro Carlos Louzada Fonseca - UFG
Danglei de Castro Pereira - UEMS Regina Dalcastagnè - UnB
Fernando de Moraes Gebra - UNILA Rosane Cardoso - UNIVATES
Luciana Marino do Nascimento - UFAC Rozana Aparecida Lopes Messias - UNESP/ASSIS
Luís Isaías Centeno do Amaral - UFPEL Tânia Regina Oliveira Ramos - UFSC
Marcus Vinicius de Freitas - UFMG Tereza Virgínia Ribeiro barbosa - UFMG
Maria Cristina de Almenida Mello Laranjeira - UC Valdirene Zorzo-Veloso - UEL
Maria Cristina Fernandes Salles Altman - USP Vilson Leffa - UCPel

Comissão de avaliadores
Allan Valenza de Silveira - UFPR Keli C. Pacheco - UFSC
Antônio João Teixeira - UEPG Luísa Cristina dos Santos Fontes - UEPG
Clarice Nadir von Borstel - UNIOESTE Maria Marta Furlanetto - UNISUL
Clóris Porto Torquato - UEPG Naira de Almeida Nascimento - UFTPR
Daniel de Oliveira Gomes - UNICENTRO Rosana Apolônia Harmuch - UEPG
Elódia Constantino Roman - UEPG Tânia Regina Oliveira Ramos - UFSC
Genilda Azerêdo - UFPA Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa - UFMG
Jane Kelly Oliveira - UEPG Ubirajara Araujo Moreira - UEPG
ISSN 0101-8698

UNILETRAS
Diversidade e pluralidade na literatura, na leitura
e na escrita
V. 34, N. 1
Capa
Guilherme Theodore de Oliveira

Editoração eletrônica
Rubia Carla Dropa

Tiragem
500 exemplares

UNILETRAS (Universidade Estadual de Ponta Grossa).


Departamento de Letras Vernáculas e Departamento de Línguas
Estrangeiras Modernas. Ponta Grossa, PR, Brasil, 1979 -

Anual de 1979-2007.
Semestral 2008-.

ISSN 0101-8698 - impresso CCN 078192-4


1983-3431 - on-line

Os textos publicados na revista são de inteira responsabilidade de seus autores.

Periódico referenciado pelo Projeto Qualis-Capes


Revista indexada em GeoDados: http://www.geodados.utfpr.edu.br/
www.unilestemg.br/bbl/per3-21-20.html
www2.univille.edu.br/biblioteca

Correspondência/Distribuição/Permutas
Revista Uniletras
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Departamento de Letras Vernáculas
Praça Santos Andrade, nº 1
Ponta Grossa – Paraná – 84010-919
Fone: (42) 3220-3376
E-mail: uniletras@uepg.br
http://www.revista2.uepg.br/index.php/uniletras
Permutas: intercambio@uepg.br

Vendas - Editora e Livrarias UEPG


Fone/fax: (42) 3220-3306
E-mail: vendas.editora@uepg.br / livraria@uepg.br
http://www.uepg.br/editora

2012
SUMÁRIO

07 Apresentação

ARTIGOS

Sobre a consideração foucaultiana de nome próprio


11
Daniel de Oliveira Gomes

Bartleby no cinema: corpo espectral e tecnologia da imagem


25
Rita Lenira de Freitas Bittencourt

A poesia trovadoresca e a imagem da mulher na cantiga de amigo


37
Márcia Maria de Melo Araújo
Pedro Carlos Louzada Fonseca

Confrontos: a homoafetividade e a hegemonia em Pela Noite (1983)


49
de Caio Fernando Abreu
Karine Passeri
Silvio Ruiz Paradiso

Literatura e intelectualidade - as facetas intelectuais na obra vida e


59
morte de m. J. Gonzaga de sá, de lima Barreto

Cristiano Mello de Oliveira

Interdiscursividade e oralidade em “Gabriela, cravo e canela de


77
Jorge Amado: alteridades com a tradição da literatura de cordel
Anderson Carvalho Pereira

Deleuze e a política da literatura


91
Antonio Paulo-Benatte
Poder e decadência em São Bernardo, La casa de los espíritus e
97
O manual dos inquisidores
Josiane Franzó

Tempo e espaço em lavoura arcaica


113
Deise Ellen Pilati

RESENHA

BETTO, Frei - Minas do Ouro. 1ª edição. Rio de Janeiro: Editora


125
Rocco, 2011. 270 p. ISBN 978-85-325-2689-2.
André Jorge Catalan Casagrande
APRESENTAÇÃO

A Uniletras, revista do Departamento de Letras Vernáculas e Departamento de Línguas


Estrangeiras Modernas, traz, em seu volume 34, algumas novidades que complementam o
pacote de inovações iniciadas em 2007, quais sejam: criação da Uniletras on-line, publica-
ção semestral e adoção de dossiê temático, além, é claro, de continuar publicando artigos
de temática livre, resenhas, traduções. Com o intuito de acompanhar as transformações de-
correntes da evolução tecnológica, a equipe editorial empreendeu mudanças adotando um
projeto gráfico moderno, mais arrojado. Todas as inovações empreendidas têm como única
meta atingir a comunidade acadêmica da área de Linguística, Letras e Artes, assim como
outras que têm estreita afinidade com as primeiras: Ciências Humanas, Ciências Sociais,
entre outras.
O foco da Revista Uniletras é a publicação de trabalhos que apresentem rigor científico,
solidez teórica e análise crítica. Os artigos devem resultar de pesquisas ou ensaios com refle-
xões originais, sobretudo que desenvolvam interlocuções entre os mais variados campos da
ciência e do conhecimento. A originalidade, a interlocução entre as áreas, o rigor científico
permeiam todos os artigos que foram e são publicados nos 34 anos de circulação ininterrupta
da Revista Uniletras.
Para o dossiê temático deste volume “Diversidade e pluralidade na literatura, na leitura
e na escrita”, a revista publica artigos e uma resenha submetidos por autores/pesquisadores
de diferentes instituições de ensino superior do país, ligados a programas de pós-graduação
da área de Letras e um deles da área de História.

Equipe editorial
Artigos
doi: 10.5212/Uniletras.v.34i1.0001

Sobre a consideração foucaultiana de nome


próprio

Foucault’s considerations about proper


names
Daniel de Oliveira Gomes

Resumo: Trabalhamos, neste ensaio, a questão pragmática do “nome próprio de


autor”, atravessando alguns autores que focalizaram mais diretamente o tema.
Propomos um estudo das diferenças de abordagem de Michel Foucault e suas
inovações relativas tanto ao contexto das problemáticas efetivas do funcionamento
do nome próprio, quanto ao próprio modo de falar com a qual ele, decididamente,
articulava suas ideias.
Palavras-chave: Nome próprio. Foucault. Searle.

Abstract: This article discusses the pragmatic issues related to proper names using
the support of authors such as Searle, Derrida and others. The article studies the
different approaches used by Foucault and his innovations concerning the context
about the functioning of proper names as well as Foucault’s own way of speaking
and how he articulated his ideas.
Keywords: Proper name. Foucault. Searle.

1. Nome próprio: um velho tema, um Saussure identificou o nome próprio como


novo tema algo que funcionava somente dentro de um
“Nome próprio” é um tema milenar, sistema de diferenças entre outros nomes.
da ontologia e mais tarde da filosofia da Vira um tópico da análise do discurso e vem
linguagem. Um tema que foi estudado a ser retomado por John Searle e Michel
desde Platão, já constante nos mitos sacros, Foucault de modos distintos, em textos
nas narrativas do Velho Testamento, e que, simultâneos de 1969. “Nomes próprios e
sobremodo, passou como temática filosófica Intencionalidade” (Searle) versus “O que é
pela teoria russeliana. Foi, igualmente, um autor” (Foucault). Estudaremos, neste
uma questão do estruturalismo, quando artigo, um pouco dessas arguições, visando

* Professor adjunto na Universidade Estadual do Centro-Oeste - Paraná. E-mail: <setepratas@hotmail.com>.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 11-24, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 11
Daniel de Oliveira Gomes

atravessamentos marginais entre alguns pela criação deste tabou foi estranha-
autores, considerando que é um tema que, mente a assimilação considerável do
apesar de ter virado uma espécie de tabu no artigo de Michel Foucault “O que é um
fim da década de 1970, foi retomado, enfim, autor?”(1969) no mundo dos críticos. O
texto bem conhecido é entretanto tam-
na década de 1980, por muitos foucaultianos
bém um dos textos foucaultianos dos
(evidenciando que Foucault operou ele
mais problemáticos. A famosa ‘função-
mesmo, neste tema, o que chamava de uma -autor’ que o artigo esboça tem pertur-
“instauração de discursividade”). bado e inspirado por sua vez toda uma
Giorgio Agamben, no primeiro capí- geração de pesquisadores em história
tulo de Signatura rerum, trabalha a questão literária. No entanto, a função-autor
do termo “paradigma”, de que Foucault faz não foi nunca explicitamente defini-
muito uso em seus escritos arqueológicos, da e mesmo o emprego da distinção
suas exemplificações. Explica-nos, então, a entre autor e função-autor no peque-
no texto não está sempre resultante.1
exceção onde o procedimento foucaultiano
(BUCH-JEPSEN, 2001, p. 48).
se coloca. Para ele, o paradigma caracteriza
o próprio método discursivo foucaultiano, Pois bem, dentre esses leitores críticos
no sentido da energia deslocada para libe- que certamente passaram obrigatoriamente
rar-se do domínio historiográfico francês, por Foucault, citaríamos o filósofo Jacques
que pesaria contextos metonímicos des- Derrida, que retoma a semântica do nome
de o séc. XVIII. Acerca do tema do nome próprio a partir da metáfora de Babel e que
próprio, Foucault se encontrava o mais pa- (digamos de passagem) Foucault já havia ci-
radigmático possível, o que gerou muitas tado no primeiro capítulo de As Palavras e as
confusões imediatas na recepção de suas Coisas. Para Derrida, o nome próprio é uma
investigações e hipóteses, as quais, depois, unidade enunciativa que nos promove um
ficaram como que à margem das proble- pacto com a morte. O que é receber um nome
matizações filosóficas e históricas por um próprio, para Derrida? É estar prometido à
certo tempo, até, quem sabe, irem atingin- morte, receber um nome é receber um feri-
do certa maturação. mento sem nome. E ao receber o sobrenome
Hoje, o tema do nome próprio está se de meu pai recebo um “status natal” que não
tornando uma preocupação bem comum me pertence, nome falso, nome impróprio,
como elo transdisciplinar das interfaces en- promessa da morte. Derrida chamará de
tre Linguística, Literatura e Filosofia. Como “luto pressentido”. Nomear, assim, é sempre
dirá o professor de literatura comparada em simulacrum de um batismo que eu mesmo
Nova Iorque, Niels Buch-Jepsen, em artigo recebi. Tal como o nome próprio como tema
de 2001: é, filosoficamente, simulacrum, repetição de
um tema milenar que passou por Sócrates,
Há uma geração o estudo dos nomes
de autor representa um tipo de tabou Russel, Saussure, Searle, Derrida...
na crítica literária. Uma das razões
1 Tradução nossa.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 11-24, jan/jun. 2012


12 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Sobre a consideração foucaultiana de nome próprio

O nome próprio de autor nasce quan- trivial quando este problema aparenta ter
do se instaurou um regime de propriedade sido tão exaustivamente trabalhado desde
para o texto literário. (Foucault dirá que é a Antiguidade e, no diálogo platoniano do
com a transgressão, quando o autor passa a Cratyle, Sócrates afirme que o estudo dos
ser passível de ser punido, quando inventa- nomes não é uma pequena tarefa. Mas se
ram as regras estritas dos direitos autorais, por um lado a questão poderia ser trivial e,
no final do século XVIII.) Antigamente, o por outro, parece que não é uma pequena
anonimato na Literatura era comum ou até tarefa, vemos talvez menos um choque
uma condição. Já no discurso científico, o de posturas do que uma necessidade
nome próprio era um atestado da legitimi- emergente de se explicar o prisma teórico
dade das fórmulas, Hipócrates disse isso, dos nomes próprios.
então é ciência..., Plínio disse... Mas houve Para explicar este prisma teórico tería-
uma inversão entre o século XVII e todo o mos que nos apoiar, teórica e expressiva-
XVIII, quando o anonimato passa a não ser mente, muito mais na dimensão do texto “O
mais suportável para o campo literário en- que é um autor?” (onde em determinado mo-
quanto que o científico passa a se legitimar mento Michel Foucault não pode deixar de
por si próprio e se tornar anônimo. citar Speech Acts, lançado no mesmo ano de
1969) do que nos métodos analíticos de John
2. Natureza da problemática Searle. Também não poderíamos deixar de
abordar os temas barthesianos sempre con-
Para contextualizar a natureza da temporâneos, ou seja, os que circulam sobre
problemática do nome próprio, recordemos o nascimento do autor moderno juntamen-
a frase com a qual John Searle abre seu te com seu texto, a dessacralização da ima-
célebre capítulo a respeito da relação gem do autor e a importância capitalista por
entre Nomes Próprios e Intencionalidade: sua pessoa. Igualmente, seria impraticável
“O problema dos nomes próprio deveria esquivar-se do alicerce temático estampado
ser trivial...” SEARLE, 2002, p. 321). No por Walter Benjamin, para quem o narrador
entanto, vários filósofos se dedicaram vem morrendo porque a sabedoria está em
ao tema desde os tempos mais antigos, e extinção. Lembremos que, segundo o filó-
resulta interessante que Searle inicie assim sofo, a narração dos romances teria perdido
este seu estudo (Searle é um autor muito o caráter da linguagem que comunica com
inovador: por exemplo, no que diz respeito valores que nem sempre precisam ser no-
a pressupor a tese de que a filosofia da vos, para a tendência à supervalorização da
linguagem apenas pode surgir como uma difusão da informação (cujo valor só se dá
ramificação da filosofia da mente, sendo no momento em que há novidade, e então
que os atos de fala e percepção são atos morre). Assim, relatos como os de Heródo-
do cérebro humano). Bem verdade, Searle to e de outros narradores do passado, em
fala do nome próprio como um problema que a oralidade não assimilava uma apenas

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 11-24, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 13
Daniel de Oliveira Gomes

“novidade”, tendem a distanciar-se do ro- completamente feliz. Foucault procura


mance hoje. A verdadeira narrativa é, para tornar manifesto que o nome de autor situa-
Leskov, uma arte artesanal (diria Beijamin). se na cisão entre escritor e narrador, lugar e
Como hoje, com os processos sofisticados não-lugar, o que é talvez a investigação de
da imprensa, já não é assim, a arte de narrar uma experiência mais complexa do que a
está extinta. denúncia do afastamento (écart) histórico
Entretanto, voltando ao texto de Fou- perante o peso de uma imagem de autor.
cault, veríamos que se destina a averiguar Mas, em suma, no que se refere a uma
mais a função específica do nome de autor contextualização e a um culto com toda
do que em estudar a natureza do nome pró- uma tradição histórica dos nomes próprios,
prio, ou dos nomes próprios em geral – se podemos dizer que Searle foi quem melhor
bem que ele mesmo afirmará que o nome de colocou a questão às claras.
autor é um nome próprio, mas diferente dos
C’est la même objection que John
outros, e que sofre os mesmos problemas
Searle soulève dans son chapitre sur
dos nomes próprios. Apesar de ser Foucault les noms propres, et c’est probable-
quem estipula e arquiteta a função-autor, ment ce que Foucault a dans l’idée
abrindo, deste modo, todo um novo panora- quand il affirme dans le préambule
ma de compreensão da natureza dos nomes de ‘Qu’est-ce qu’un auteur?’ ‘l’impos-
próprios, podemos afirmar que ele passa sibilité de traiter [le nom] comme
um pouco por alto na contextualização di- une description définie’. Il est donc
reta do problema do nome próprio. Não era surprenant que Foucault, malgré la
réference explicite à Speech Acts, ne
essa sua missão. O que Foucault queria, ob-
se serve pas du tout de la simple solu-
viamente, era legitimar todo um modo di-
tion searléenne de ce problème bien
ferente de focalização do sujeito, e esse foi connu. Même si aucune description
um artigo que desembocava, neste caso, no particulière à propos de cet individu
estatuto da autoria. n’est analytiquement vraie, la disjonc-
Ao mesmo tempo, o texto “O que é um tion de ces descriptions l’est. L’amé-
autor” provavelmente foi mais longe do lioration de Searle consiste donc à
que se supunha. Um texto híbrido que se particulière, mais à un ensemble de
inspirou, notadamente, em vários estudos descriptions qui s’entrecroisent, sans
doute comme des ‘ressemblances de
do nome próprio, e, também, em Searle. Ao
famille’ wittgensteiniennes. Le nom
que se sabe, Roland Barthes havia publicado,
propre se référerait tout simplement
um ano antes, “A morte do autor”, e o filósofo à la personne qui satisfait au mieux
estava neste âmbito de debates, um tanto à tous moments dans la lecture fou-
quanto recentes, além disso, se destinava caldienne du chapitre de Searle. Ceci
a reavaliar alguns pontos nascidos em “As est particulièrement étonnant quand
Palavras e As Coisas”, redigido três anos nous nous rendons compte qu’en fait
antes, e que não havia deixado Foucault la solution searleene résoudra certains

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 11-24, jan/jun. 2012


14 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Sobre a consideração foucaultiana de nome próprio

des problèmes que Foucault rencontre No debate final, lembremos que Lu-
dans sa théorie de la fonction-auteur. cien Goldmann aponta que Foucault es-
(BUCH-JEPSEN, 2001, p.54). taria, centrado numa posição filosófica
A armação de objeções constantes no anti-cientificista, inserido numa moda de
final da apresentação do ensaio “O que é um discurso da negação do sujeito da qual não
autor”, as quais Foucault desliza com des- é nem autor, nem instaurador. Foucault
treza, caminha para uma espécie de insatis- responde então, para sintetizar, que houve
fação coletiva para com um mesmo aspecto. um desvio de entendimento de sua preocu-
Parece que os debatedores sentiram-se toca- pação fundamental, a de analisar as regras
dos com um traço específico, muito afiado e de funcionamento da função autoria. Repa-
o mais complexo dentre os que foram enu- remos, portanto, no próprio texto, que ele
merados no próprio texto: o nome de autor efetua-se muito mais sobre a instância pa-
“não se define pela atribuição de um discur- ratópica do autor literário, a investigação
so ao seu produtor” (FOUCAULT, 1992, p.56). do espaço vazio onde quem escreve encon-
Quando se compreende a questão da autoria tra paragem, do que, para dar um exemplo,
correspondente ao modo de ser discursivo de Barthes em O rumor da língua:
uma obra – é o que faz Foucault – formula- Sem dúvida que foi sempre assim:
-se uma instância funcional, de certo modo desde o momento em que um facto é
diversa da maneira a qual um simples nome contado, para fins intransitivos, e não
próprio designa um indivíduo. O autor não para agir directamente sobre o real,
condiz nem com aquele que produziu a quer dizer, finalmente fora de qual-
quer função que não seja o próprio
obra, como também não pode estar no inte-
exercício do símbolo, produz-se este
rior da obra (em primeiro lugar, como saber
desfasamento, a voz perde a sua ori-
precisamente onde fixa-se a ideia de obra? gem, o autor entra na sua própria mor-
O próprio Foucault põe de imediato: não te, a escrita começa [...]. (BARTHES,
existe uma teoria da obra.) O autor se loca- 1984, p.49).
liza, então, não no lugar histórico ou no li-
terário, mas mais propriamente num hiato Problemática da interioridade, da
entre o indivíduo que escreveu e o narrador “perda da origem”, da voz em presença
da ficção, na cisão entre escritor real e locu- “castrada”, na constituição textual. A pre-
tor fictício: um espaço vazio. sença da escritura aparece em detrimento
O trabalho de Foucault dá-se justamen- da ausência, esvaziamento do sujeito em
te num momento crítico em que se intensifi- si, sujeito-escrevente dissociado do sujei-
ca uma necessidade: a afirmação teórica do to-autoria, onde “escrever assume a sim-
tema morte do autor. O fenômeno da extinção bologia da castração, pois é a falta simbó-
da arte narrativa e, com ela, da morte da pes- lica de um objeto imaginário, é necessário
soa do narrador, já é notado por Benjamin que o sujeito morra para que haja escrita.”
em 1936 (BENJAMIN, 1996, p.197-221). (MALISKA, 2006, p.104).

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 11-24, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 15
Daniel de Oliveira Gomes

3. Entre Searle e Foucault do nome próprio que, ele nos lembra, o


próprio Lévi-Strauss assume em outras
Efetivamente, Foucault não parece partes de sua obra. Será lembrado que
muito empenhado em deflagrar as antigas a definição de Saussure de linguagem
questões do nome próprio e não as define, era de que ela é um sistema de dife-
não fala, por exemplo, em como os nomes renças, onde os significados não re-
próprios conectam-se com o objeto refe- sidem nos próprios termos, mas nas
rido, ou em como os nomes próprios se relações diferenciais entre eles. Lévi-
-Strauss, será novamente lembrado,
proveem de sentidos. Já, por sua vez, o ar-
adotou o modelo de Saussure do sis-
tigo de Searle transporta, desde o início, a tema diferencial e aplicou-o aos siste-
preocupação direta e clara de como o nome mas de parentesco e classificação de
próprio vem a ser uma função referencial sociedades tradicionais. Entretanto,
em relação a seu objeto. Em resumo, são as a conceituação de Saussure e, após
repetidas referências a um mesmo objeto ele, a de Lévi-Strauss, de diferença
que lhe atribuem um nome, de modo geral. em linguagem é fonocêntrica, segundo
Outra coisa é que o nome próprio só com- Derrida. Como ficamos sabendo aci-
preende um significado num senso contex- ma, a definição preliminar de Saussu-
re do escopo da ciência da linguística
tual com outros nomes associados a outras
exclui e descarta a escritura como um
coisas, portanto, num sistema de diferenças auxiliar não-essencial da linguagem
com outros termos classificados no interior falada, como simples mediação exter-
de uma dada língua. Mas isso é uma óbvia na do cerne autêntico e vivo da fala.
questão do estruturalismo. De modo semelhante, o estruturalis-
mo de Lévi-Strauss é um fonocentris-
Derrida determina, portanto, três ní-
mo na medida em que seus métodos
veis de violência na cena que ele inti-
de análise tomam como modelo os da
tula ‘A batalha dos nomes próprios’: o
fonologia, o ramo da linguística que
primeiro e mais primário, o mais fun-
estuda os sistemas de som de lingua-
damental, é o da instituição do nome
gens específicas ou de linguagens em
próprio, que pode apenas ser nome
geral [...]. (JOHNSON, 2001, p.31-32).
próprio como uma função de sua di-
ferença de outros nomes próprios. A problemática controvertida, em
Um nome próprio em si nada signifi- Searle, está no fato de esses objetos serem
ca, ele pode apenas desempenhar sua
realmente invisíveis no nosso sistema de
função de nomear em relação a outros
representação, cuja competência é, aparen-
termos numa dada classificação: ‘o
nome próprio nunca foi possível ex- temente, a de estratificar o mundo em ob-
ceto por meio de seu funcionamento jetos e nomes. Não é possível cobrar isso de
dentro de uma classificação: e, portan- Foucault, pois basicamente seu desejo não
to, dentro de um sistema de diferenças’. tinha a ver com o de Searle, que, por seu
É óbvio que o que Derrida está apresen- lado, se ligava a todo um projeto, no campo
tando aqui é uma definição estrutural das análises da mente, a respeito da teoria

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 11-24, jan/jun. 2012


16 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Sobre a consideração foucaultiana de nome próprio

da Intencionalidade. Há quem pense que do semanticista Eduardo Guimarães, para


Foucault propunha um trabalho mais cria- quem “a capacidade referencial não é assim
tivo do que investigativo. Não seria o caso o fundamento do funcionamento dos no-
dimensionar o grau de criatividade desses mes próprios” (GUIMARÃES, 2002, p. 42).
autores, isso sequer seria exatamente pos- Os nomes próprios de pessoa, segundo este
sível, talvez sim seria viável tentarmos no- autor, constituem um complexo processo de
tar seus distintos interesses. De todo modo, referenciação a partir de um acontecimento
sabemos que Foucault queria mais era inci- enunciativo. Tal acontecimento se localiza-
tar outras questões operacionais no campo ria no presente da enunciação e não no su-
da estética, tal como Derrida que, naquele jeito ou expressão, o que evoca outra acep-
momento, sustentava agudas divergências ção da temporalidade. Há toda uma gama
com o método de Searle. de renomeações e outras designações, pela
Dentre muitos outros textos que nos qual o sujeito passa, na cena social, e pela
possibilitam o que podemos chamar de uma qual reconstrói enunciativamente a unici-
identidade por um prisma teórico, temos dade do nome que lhe é próprio. Diferente-
o Tours de Babel, traduzido em 2002 para o mente da visão de Ducrot2, para Guimarães
português por Junia Barreto. Seria impossí- o falante é “uma figura política constituida
vel esquecer este livro. Babel é o nome pró- pelos espaços de enunciação”, tal como a
prio que condiz com a esfera mitológica da pessoa que nomeia não está, unicamente,
tradução e da origem dos nomes, da metáfo- numa atividade psicofisiológica do nomear,
ra, da confusão do próprio, da proliferação mas é um sujeito enquanto determinado
do simbólico. Jacques Derrida vai, brilhan- pelo processo discursivo de nomear.
temente, neste livro, tratar diretamente da Guimarães não cita diretamente Fou-
questão filosófica do nome próprio, situan- cault mas está relativamente próximo dele,
do-o como tema do tema, realçando a per- como vemos por exemplo quando, no come-
formance do nome mais próprio possível, o ço de A ordem do discurso, Foucault supõe que:
nome de Deus, o lamento de Deus sobre seu
em toda sociedade a produção do dis-
nome. Isso vai incitar alguns giros, alguns
curso é ao mesmo tempo controlada,
tours (torres, torções, contornos), sobre ou- selecionada, organizada e redistribuí-
tras questões filosóficas do nome próprio. da por um certo número de procedi-
No entanto, é graças, principal e mentos que têm por função conjurar
historicamente, a Foucault que houve toda seus poderes e perigos, dominar seu
uma reabertura da questão semântica dos acontecimento aleatório, esquivar
nomes próprios de pessoas, dos lugares sua pesada e temível materialidade.
enunciativos e seus confrontos, capacitando (FOUCAULT, 1998, p. 8-9).
os atuais estudos estéticos da designação,
entre filósofos, linguistas, historiadores, e
outros mais. No Brasil, temos, destacando- 2 Ver: GUIMARÃES, Eduardo. “Espaço de Enuncia-
-se dentre outras, as recentes investigações ção”, in Id. Ibid., p. 18.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 11-24, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 17
Daniel de Oliveira Gomes

Ou seja, no interior de toda sociedade, mais citados por Searle –, defenderá uma
o espaço do discurso desdobra diversos mi- cadeia causal nunca pura. Em síntese: cada
cropoderes para efetuar sua autoproteção vez que emite um nome próprio, o falante
sistemática, impalpável, e os sujeitos, com está mimetizando o processo daquele que lhe
seus nomes próprios, não são mais que pi- transmitiu o nome, pela primeira vez, daque-
nos energéticos desse uso político. la coisa, quer dizer, a busca seria sempre de
Mas, voltando ao caso inicial de Fou- se aproximar do batismo originário de um
cault e Searle, notemos que eles escrevem objeto ou sujeito. Porém, Searle fortemen-
de modo totalmente diferente, são dois te o censura utilizando-se de vários contra-
nomes e dois estilos de composição. Nos -exemplos, um deles é o caso do nome pró-
confortando um pouco em produzir uma prio Ramsés VIII.
síntese enfraquecida do pensamento sear-
Suponhamos, apenas para argu-
leano, acreditamos que, mesmo achando-
mentar, que temos um vasto
-nos na linha diretiva de Foucault, não conhecimento acerca de Ramsés VII
podemos nos omitir de explicar o artigo e Ramsés IX. Neste caso, poderíamos
de Searle, para contextualizar a natureza empregar, sem sombra de hesitação,
da problemática dos nomes próprios. Eles o nome ‘Ramsés VIII’ para nos referir
“carecem de um conteúdo intencional ex- ao Ramsés surgido entre Ramsés VII
plícito”, para Searle, mas devem depender, e Ramsés IX, ainda que as diversas
de algum modo, de uma causalidade inten- cadeias causais do antigo Egito nos
omitam Ramsés VIII. (SEARLE, 2002,
cional, um conteúdo intencional. Essa é
p.331).
sua grande questão. Para propor um cabi-
de teórico a fim de entender a isso, Searle O que ocorre neste caso de Ramsés
recorre às duas escolas filosóficas que se VIII, enxertado entre os Ramsés VII e o IX,
preocuparam, exaustiva e historicamente, é que, como nome próprio, indica mais a to-
em definir o processo de como os nomes talidade de uma rede da Intencionalidade.
próprios se ligam ao seu objeto referido: o Conforme Antonio Campillo, para que cada
descritivismo e a teoria causal. nome próprio seja efetivamente “próprio”:
Em suma, a escola da teoria causal
[...] tiene que ser citable y classificable,
(Kripke, Devitt, Donnellan) refuta o des-
esto es, tiene que ser diferenciable en
critivismo e seus esquemas e, deste modo, relación consigo mismo y en relación
insiste que, para se entender o elo entre os com toda una red de nombres
nomes próprios e as coisas, é preciso haver propios. En otras palabras, tiene
um certo quadro causal externo, uma cadeia que ser desapropiable, comunicable,
exterior à comunicação. Os nomes, deste separabe del yo/aquí/ahora de cada
modo, sempre conotariam uma relação de- enunciación singular, atribuible a
signacional externa entre as coisas do mun- otros muchos ‘yo’, ‘aquí’ y ‘ahora’.
Precisamente por ello el significado
do mas chegam a elas de modo improfícuo.
de un nombre propio puede ser nunca
Kripke, por exemplo – um dos causalistas

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 11-24, jan/jun. 2012


18 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Sobre a consideração foucaultiana de nome próprio

del todo determinado, ya que no hace é uma variante dela – eis uma das maiores
sino remitir a otros nombres propios, contribuições do seu pensamento sobre
y éstos a su vez a otros, a lo largo esse assunto.
de una red o cadea interminable. Ademais, o interessante é que há, de
(CAMPILLO, 1992, p. 27).
certo modo, uma justaposição bem grande
Outro caso extremo é o dos numerais: da leitura foucaultiana do nome próprio,
cada número é apenas o nome de um núme- com o texto de Searle. Foucault, com toda
ro, o “um” é o nome do número um, dentro sua sofistificação, também se aproxima dos
de uma cadeia reguladora que não se refere propósitos de afastar o nome próprio do to-
essencialmente a nada, a não ser ao modo de pos causal, pois está notadamente dedicado
ser de um campo específico chamado mate- a mostrar que o nome de autor pactua-se
mático. Muito parecido com o pensamento mais com uma rede, um campo de coerência
foucaultiano. Quer dizer, para Foucault, (de textos, de estilos, de estatutos sociais, de
no seu intuito (como Barthes) de derrotar garantias de recepção, de sistemas jurídi-
a monarquia do autor, de dessublimá-lo, a cos), toda uma intencionalidade neutral e
rede seria a de “um certo modo de ser do invisível, do que com o próprio eu-escreven-
discurso”. Enfim, para botar Kripke contra te. Foucault enforca o sujeito. E Searle, de al-
a parede, Searle supõe uma comunidade gum modo, com todo seu epistemologismo,
primitiva em que todas as relações de nome sua tentativa de traduzir, desembaraçar, as
próprio sejam perceptíveis, diretas, onde (in)tensões biológicas e intrincamentos do
todos se conheçam e participem dos rituais cérebro humano e não do poder microfísi-
de batismo entre si. Nesse exemplo fictício, co, já havia dado um passo neste sentido,
Searle mostrará rapidamente que sempre ao mostrar que é da natureza de todo nome
haveria então um conteúdo intencional sa- próprio este liame com uma rede de con-
tisfeito pelo objeto referido. De todo modo, teúdos intencionais. Todavia, ainda se acha
Searle se aproxima um pouco mais de au- totalmente ancorado numa vontade de rea-
tores como Mill e Frege, para quem o nome bilitar uma investigação temporal. O que o
próprio é mais uma função de referência e estudo das hipóteses entre o perspectivismo
denotação do que uma conotação causal. mental e a natureza do nome próprio não o
Searle começa explicando a segunda faz, é tornar extremamente acessível, como
escola, a teoria causal, e não a primeira. conseguiu Foucault, mesmo com todas suas
Acreditamos que assim o faz porque possui obliterações, um debate novo – e ao mesmo
um interesse de sublinhar, mais à frente, tempo velho3 – sobre a relação entre nome
que os teóricos como Kripke e Donnellan,
apenas são suficientemente eficazes, em 3 Quem sabe, esta vem a ser a mais arrebatadora lição
seus argumentos, quando se aproximam aspirada pelo ensaio “O que é um autor?”. Este texto, em
peculiar, remonta a toda uma excentricidade que muito
do descritivismo. A teoria causal se colocou, tem a ver com Blanchot. Inclusive, Anna Poca afirma que
historicamente, em contraposição à teoria “tal vez sean los libros de M. Foucault, no cesamos de
constatarlo, los que operan la inversión más radical de la
descritivista quando, para Searle, ela apenas

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 11-24, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 19
Daniel de Oliveira Gomes

próprio e o espaço. Assim, podemos reafir- A propósito do funcionamento do


mar que, no seio da indignidade, da desau- nome próprio e desse interesse por Pê-
toridade do nome próprio, a nossa proble- cheux, Claudine Haroche explicará que:
mática é de ordem foucaultiana.
O nome próprio, nome determinado
por excelência, garantido pela unici-
4. A lição invisível dade do sujeito que o designa, é igual-
mente suscetível de remeter ao inde-
Perguntemo-nos se não é isso mesmo terminado. Assim, o funcionamento
o que Foucault parece querer fazer, ou seja, gramatical do nome próprio, longe de
um artigo incompleto e, mais que isso, uma ser neutro e estritamente formal, isto
incompletude que faz da temporalidade é, de estar ao abrigo de toda ideologia,
do debate uma coreografia confusa entre está na realidade intrinsecamente
passado e futuro – trazendo à superfície ligado ao funcionamento jurídico.
teórica algo que parece velho e, simultanea- (HAROCHE, 1992, p.203-204).
mente, algo que parece original. Ao invés de Niels Buch-Jepsen, estudando, e por ve-
tentar-se pelo segredo dos nomes próprios zes criticando, as profundas consequencias
– usando de sua escrita, de seu discurso, do trabalho que Foucault realizou acerca
como operacionalidade para revelá-lo – ele dos nomes próprios, em seus “traçados du-
cria uma instância de discursividade, abre plos”, contestará este viés jurídico-estético.
um espaço heteromorfo de interpretação
que, por assim ser, ainda mais soterra o Um dos argumentos que Foucault nos
oferece em favor da tese que a função-
problema. Ele mesmo parece ser o instaura-
-autor é distinta do escritor real, e que
dor de uma maneira de discursividade que
é ao mesmo tempo sua justificação
anula um ponto de convergência total, for- para descrever o autor como ‘produto
mulando assim toda uma desadaptação da ideológico’ repousa sobre um aparen-
noção de escrevente que igualmente o en- te desacordo entre a maneira a qual
globa. E a podemos entender, para além do nós percebemos normalmente o au-
esforço em definir o termo “função-autor”, tor como pessoa (quer dizer como gê-
como algo que não foi talvez suficientemen- nio, como criador, como proliferador
te explicado: uma textualidade ambígua e de sentidos) e a maneira a qual nós
percebemos os textos que tem auto-
hesitante no que concerne a uma visão dos
res (ou seja, como constrangimentos
nomes próprios, e que assim o é justamente
em seu sentido e limitados em seus
porque ultrapassou certos deveres antigos, usos). Evidentemente, esse argumen-
mas ainda continua lado a lado com eles. to está estreitamente ligado à renún-
cia foucaultiana da ideologia bur-
guesa: ele discerne a noção que um
imagen propuesta por la lógica de la producción literaria
blanchotiana: su quehacer excéntrico, pues la imagen ex-
texto autorizado é um texto que pode
traña la verdad y no la entraña. Su lección todavía resue- ser submetido a uma interpretação
na de este modo sigiloso: hacer funcionar ficciones en el e que o sentido de um tal texto está
interior de la verdad...” (POCA, 1992, p. 106).

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 11-24, jan/jun. 2012


20 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Sobre a consideração foucaultiana de nome próprio

constrangido, e que sua unidade e seria o modo de existência do autor nas cir-
sua coerência estão situados em um cunstâncias em questão – portanto pres-
sistema de valores, e é esta noção que supondo sua existência.” (FURLANETTO,
ele deseja por em questão mirando 2006, p.121). Teríamos que estar a ouvi-lo
a função-autor. Mas, reduzindo o
falar, para entender onde Foucault chega
nome de autor a um predicado que
indica um certo modo de discursos,
e Searle não chega, a ouvi-lo responder às
os proprietários desta noção são questões do debate. Foucault pode ser me-
vistos como fundados por concepções nos epistemologicamente “confiante” que
de literatura antes que pelas atitudes Searle, naquele fim dos anos 1960, coisa
psicológicas individuais. Isto está que denotamos, justamente, sob uma fala
bem. Mas aqui não há evidentemente paratópica que arruína a tecnologia de pro-
mais nenhum papel a desempenhar dução de uma monarquia autoral. Aconte-
para um autor-em-carne-e-osso com ce que seu próprio nome próprio entra em
uma personalidade, uma biografia, e
questão como assinatura e performance de
sobretudo com um estatuto jurídico
e social, e se o autor é somente
fala. Talvez sua própria voz nos convencesse
um ‘produto ideológico’ nessas que está a vislumbrar problemáticas especí-
concepções literárias, não se pode lhe ficas do funcionamento do nome próprio
repreender de reproduzir a ideologia com relação aos modos de funcionamentos
burguesa. Quando Foucault lança um discursivos que o englobam. Estes funcio-
ataque ao texto autoral porque este namentos são alternantes, móveis, oscilan-
conserva a ideologia burguesa conci- tes, e assim Foucault procede em seu texto
liando uma autoridade quase-divina como que capturando em movimento de
ao autor, é como se seu alvo fosse sem-
pensamento uma fluidez que estaria, no en-
pre o autor-em-carne-e-osso que infor-
ma o texto com um sentido secreto e
tanto, sob um rigoroso parâmetro prosódi-
interno. (BUCH-JEPSEN, 2001, p. 58).4 co. Se “O que é um autor?” se distingue da
tendência investigativa, ou até historiográ-
Acreditamos que Foucault, como mes- fica, de Searle ou Russel, e principalmente
mo diz em resposta a Lucien Goldmann, no de muitos demais textos anteriores do pró-
debate após a apresentação de sua confe- prio autor, se não é texto seguro e está cheio
rência, não está a “reduzir” o nome de au- de aporias, variações de luzes, de vozes, de
tor sob um modo equivocado ou restrito de perspectivas, queremos crer que isso ocorre
preconcebê-lo como simples produto ideo- a partir de uma ordem mais proposital do
lógico ou estético. Como diz Maria Marta que equivocada, ao falar sobre a questão do
Furlanetto, “Foucault deixa claro que não nome próprio. Pedro de Souza, ao investi-
está reduzindo o autor a uma função, mas gar o trajeto da voz de Foucault – após ouvir
apenas dando uma resposta possível a qual mais de 500 horas de gravações de seus
textos e entrevistas, na biblioteca france-
sa do Instituto da Memória das Edições
4 Tradução nossa.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 11-24, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 21
Daniel de Oliveira Gomes

Contemporâneas, IMEC – chega, em seu Punir, por exemplo. Foucault empreenderia


pós-doutorado, à conclusão que: um complexo sentido de paradigma, concei-
to analógico, onde ali está para resistente-
Ao escutar Foucault falando, nota-se
mente mostrar o próprio cânone do seu uso.
certa alternância tonal, uma musica-
lidade entrecortando as frases para Pablo Perera Velamazán, no artigo “Pensar
mostrar o quanto o dizer de uma não de otro modo”, afirmava algo parecido ao
pode se reduzir ao de outra. Diria que dizer que o filósofo fazia nada mais que “pi-
ele não muda nunca, mesmo em con- ruetas que exponen el pensamiento ante sí
versas ocasionais, esta maneira de en- mismo.” (VELAMAZÁN, 1996, p. 111). Ora,
toar proferimentos orais. É como se Foucault foge da velha lógica das metófo-
para ele, sempre enredado em uma es- ras, das exemplificações modelares, onde
pécie de função fática no ato de falar,
o pensar está ante uma inabalável tradição
ostentasse não só ele mesmo falando,
metafísica, para propor uma voz mais pro-
mas sobretudo exibisse na voz o modo
como as mudanças de regimes de po- priamente paradigmática que seria
der e saber podem passar por nossas no sólo ejemplar y modelo, que
enunciações sem que nos deixemos impone la constituición de una
inteiramente ser capturados pelo que ciencia normal, sino también y sobre
se sedimenta nessa variação. Jamais todo exemplum, que permite reunir
se pode dizer que no jeito inventivo enunciados y prácticas discursivas
de falar fazendo história, o filósofo te- en un nuevo conjunto inteligible y
nha alguma vez comprado gato por le- en un nuevo contexto problemático.
bre, porque para ele não interessava a (AGAMBEN, 2008, p. 26).
identificação legítima de um e de ou-
tro, mas sim experimentar, expor va- Foucault nos ensina, além de tudo,
riações de luzes que ora obscurecem, através de um novo contexto problemático,
ora iluminam os respectivos contor- uma lição invisível: que só se pode discorrer
nos das coisas. (SOUZA, 2009, p. 49).
sobre o tema dos nomes próprios, pós-his-
Pois a questão do nome próprio, em toricamente, por uma escritura incompleta,
paralelo com a ação escritural, parece con- ou intempestiva – variações de falas, vozes
duzir a assinatura de Foucault, irresistivel- – cujas resoluções a serem determinadas se-
mente, para esse percurso paradigmático e jam paradigmaticamente novas e, ao mes-
babélico. Começamos este ensaio explican- mo tempo, velhas, ditas e já-ditas; enfim,
do que em Signatura rerum Agamben enfo- um texto que, deste modo, sabote o nome
ca o termo “paradigma” em Foucault. Para próprio, a assinatura tópica, daquele que
Agamben, o método foucauldiano é em si busca escrever, falar.
paradigmático, mas em determinado con-
ceito de paradigma que é propositalmente Referências
aberto pelo olhar do próprio filósofo, tanto
AGAMBEN, Giorgio. Signatura rerum. Sobre
em Arqueologia do Saber quanto em Vigiar e
el método. Traducción de Flavia Costa y

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 11-24, jan/jun. 2012


22 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Sobre a consideração foucaultiana de nome próprio

Mercedes Ruvituso. Buenos Aires: Adriana FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso.


Hidalgo, 2008. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio.
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: São Paulo: Loyola, 1998.
______. O rumor da língua. Trad. de Antônio ______. O que é um autor? Tradução de Antô-
Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1984. nio Fernando Caiscais e Eduardo Cordeiro.
BLANCHOT, Maurice. Michel Foucault tel que Rio de Janeiro: Passagens, 1992.
je l’imagine. Paris: Éditions Fata Morgana, 1986. FURLANETTO, Maria Marta. Função autor e
BUCH-JEPSEN, Niels. Le Nom propre et le interpretação: uma polêmica revisitada. In:
propre auteur. «Qu’est-se qu’une ‘fonction- ______. SOUZA, Osmar de. (Orgs.). Foucault e
auteur?». In: JACQUES-LEFEVRE, Nicole; a autoria. Florianópolis: Insular, 2006.
REGARD Frédéric. (Orgs.). Une histoire de GOMES, Daniel de Oliveira; SOUZA, Pedro de.
la ‘fonction-auteur’ est-elle possible? Saint- (Orgs.). Foucault com outros nomes. Lugares
Étienne: L’Université de Saint-Étienne, 2001. de enunciação. Ponta Grossa: UEPG, 2009.
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considera- GUIMARÃES, Eduardo. O nome próprio
ções sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. de Pessoa. In: ______. Semântica do
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre acontecimento. Campinas: Pontes, 2002.
literatura e história da cultura. 7. ed. Tradução HAROCHE, Claudine. Análise crítica dos
de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasilien- fundamentos da forma sujeito (de direito). In:
se, 1996. ______. Fazer dizer, querer dizer. Tradução
CAMPILLO, Antonio. El autor, la ficción, de Eni Pulcinelli Orlandi. São Paulo: Editora
la verdad. Daimon 5 Revista de Filosofia. Hucitec, 1992.
Edición de Compobell, Universidad de JOHNSON, Cristopher. Derrida. A cena da
Múrcia, 1992. Disponível em: < http://revistas. escritura. Tradução de Raul Filker. São Paulo:
um.es/daimon/article/view/12311/11851>. Editora da UNESP, 2001.
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: MALISKA, Maurício Eugênio. Algumas
Brasiliense, 1988. considerações acerca das implicações
DERRIDA, Jacques. Otobiographies. L’ensei- subjetivas da escrita. In: FURLANETTO, Maria
gnement de Nietzsche et la politique du nom Marta SOUZA, Osmar de. (Orgs.). Foucault e a
propre. Paris: Galilée, 1984. autoria. Florianópolis: Insular, 2006.
______. Salvo o nome. Tradução de Nícia Adan MILLER, James. La passion Foucault. Paris:
Bonatti. Campinas: Papirus, 1995. Plon, 1993.
______. Torres de Babel. Tradução de Junia PLATÃO. Cratyle. In: Oeuvres complètes.
Barreto. Belo Horizonte: Editora da UFMG, Paris : Les Belles Lettres, 1931. t.5.
2002. POCA, Anna. La latencia o la ficción de verdad.
DOSSE, François. História do estruturalismo. Sobre el método del discurso de M. Blanchot.
Tradução de Álvaro Cabral. Bauru: EDUSC, In: Daimon 5 Revista de Filosofia, Edición de
2007. v.2 Compobell, Universidad de Múrcia, 1992.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 11-24, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 23
Daniel de Oliveira Gomes

SEARLE, John R. Nomes próprios e intencio-


nalidade. In: ______. Intencionalidade. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
SOUZA, Pedro de. Michel Foucault. O trajeto
da voz na ordem do discurso. Campinas, SP:
Editor RG, 2009.
VELAMAZÁN, Pablo Perera. Pensar de otro
modo: Dos variaciones en torno a Michel
Foucault. Revista de Filosofia Anábasis.
Madrid, ano 3, n. 4, 1996/1.
ZOPPI-FONTANA, Mônica; GUIMARÃES,
Eduardo (Orgs.). Introdução às ciências da
linguagem: a palavra e a frase. Campinas:
Pontes, 2006.

Recebido para publicação em 21 set. 2012.


Aceito para publicação em 2 out. 2012.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 11-24, jan/jun. 2012


24 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
doi: 10.5212/Uniletras.v.34i1.0002

Bartleby no cinema: corpo espectral e


tecnologia da imagem

Bartleby en el cine: cuerpo espectral y


tecnología de la imagen
Rita Lenira de Freitas Bittencourt∗

Resumo: A partir da leitura de “Bartleby, the Scrivener – a story of Wall Street”,


conto do escritor norte-americano Herman Melville (1817-1891), do levantamento de
suas montagens, para cinema e TV, e da análise de uma delas, de 2001, este artigo
pretende refletir brevemente sobre a cena contemporânea, considerando algumas
teorias da imagem e os impasses de passagem da literatura ao cinema.
Palavras-chave: Literatura. Cinema. Imagem. Bartleby. Melville.

Resumen: Desde la lectura de “Bartleby, the Scrivener – a story of Wall Street”, cuento
del escritor norte-americano Herman Melville (1817-1891), del elenco de sus montajes,
para cine y televisión, y también partiendo de la análisis de una de ellas, hecha en
2001, este articulo piensa brevemente la cena contemporánea, considerando algunas
teorías de la imagen y los impases de pasaje de la literatura al cine.
Palabras-llave: Literatura. Cine. Imagen. Bartleby. Melville.

Sospechava que el cine era el arte más Wall Street”, do escritor norte-americano
engañoso de todos y el único en el que Herman Melville. O conto foi publicado pela
nunca nada era cierto. primeira vez em 1853, na revista Putnam’s,
Enrique Vila-Matas, Nunca voy al de Nova Iorque, dividido em duas edições,
cine, 1982, p.18.
a de novembro e a de dezembro.
Sua fama, entretanto, é tardia. Apenas
as primeiras narrativas de Melville, de
1. Bartleby
caráter romântico, descrevendo aventuras
A personagem Bartleby pertence a marítimas, obtiveram a admiração do
um dos contos mais famosos do século público. As demais, mesmo a mais conhecida,
19, “Bartleby, the scrivener – a story of Moby Dick, não alcançaram, em sua época, o

* Professora adjunta de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora no PPGLet área
Literatura Comparada. E-mail: <rita.lenira@ufrgs.br>.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 25-35, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 25
Rita Lenira de Freitas Bittencourt

sucesso esperado, e o escritor, desiludido apontou, ao analisá-lo em seus primórdios


e empobrecido, acabou aposentando-se, técnicos, o teórico Walter Benjamin.
num cargo de fiscal portuário da alfândega, Ao desenrolar, a partir de um fio bar-
e morreu no mais completo anonimato tlebiano, uma reflexão sobre a visualidade,
em 1891. Há quem afirme que Melville foi tento abordar as transformações trazidas pe-
Bartleby – um estranho escriturário, que se las experiências de dilaceramento do sujeito,
recusa a cumprir as ordens que lhe são dadas –, provocadas, especialmente, pela conexão en-
antes de escrevê-lo1. tre a guerra e o advento da técnica, tomada
Atualmente, Bartleby e Moby Dick em tempos superpostos – de Melville, das
trouxeram Melville de volta, fazendo apa- vanguardas, da alta modernidade –, e que se
recer os contornos de uma escritura singu- desdobram, anacronicamente, no presen-
lar, deslocada no seu tempo, pois propunha te. Além destas passagens temporais, nada
uma visão da literatura em chave teórica tranquilas, é preciso pensar outra, que vai
moderna e antecipava os enigmas e as dis- da literatura ao cinema, e, ainda, a partir
cussões formais do século 20. Por sua con- das teorias da imagem, entender uma for-
figuração espectral, reticente e catatônica, ma artística que se dá por negação e por au-
a personagem Bartleby, especialmente, irá sência. Os elementos da “teoria do Não” têm
alimentar os estudos das artes visuais, em sido o suporte básico da produção visual de
relação à predominância e à especificida- todos os tempos, mas tornaram-se o foco
de de seus meios, e também as pesquisas das discussões na pós-modernidade.
experimentais, que conjugam linguagem e Antes, porém, é preciso citar alguns
imagem. desdobramentos cinematográficos do texto
Contemporâneo de Melville, o cine- literário.
ma caracteriza-se, basicamente, pela esté-
tica fragmentária, que, através de cortes e 2. No cinema
disjunções, produz uma trama visual mais
vinculada à heterogeneidade do mundo A deriva bartlebiana, que utiliza
moderno e auxilia na configuração de uma “Bartleby, the scrivener – a story of Wall
sensibilidade estruturada por choques e Street” como argumento, para produzir
por rupturas espácio-temporais, como bem trabalhos visuais, é surpreendentemente
rica e proliferante. Passa pela TV e pelo
cinema, de curta e longa duração, e vai
1 Como o escritor espanhol Enrique Vila-Matas, por
exemplo, autor de Bartleby & Compañia (Barcelona: Edi- desde o campo experimental até o âmbito
torial Anagrama, 2000), uma narrativa que se estrutura mais comercial.
por notas de pé de página, elaboradas por um corcunda,
que comentariam um texto invisível. O narrador acre- No texto de apresentação da tradução
dita que Melville tornou-se vítima do que ele denomina do conto para o português, publicada no
de “síndrome de bartleby” – uma profunda atração pelo
“nada”, responsável pela produção do que ele denomina início da década de 1970, Olívia Krähenbüld,
de “literatura do Não” – antes mesmo de este personagem em artigo introdutório, comenta o retorno a
existir. Melville teria sido, então, o primeiro Bartleby, o
fundador desta estranha companhia de escritores. Melville e a amplitude deste interesse:

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 25-35, jan/jun. 2012


26 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Bartleby no cinema: corpo espectral e tecnologia da imagem

Herman Melville começou a ressur- na qual o personagem principal adquire o


gir entre 1924 e 1945; mas em 1960, prenome “Pierre-Jacques”:
nenhum autor, em toda a literatura
norte-americana, era estudado com Bartleby L’écrivain (1957)
maior afinco ou mais ardente entu- Direção: Claude Barma
siasmo do que ele – da França à Alema- Adaptação: Jacques Armand
nha, do Japão à Áustria, dos Estados Elenco: Pierre Moncorbier (como
Unidos à Austrália. A crítica moderna Pierre-Jacques Bartleby), Louis
considera, dentre os contos, “Bartleby” Seigner, Paul Préboist, Jean Bellanger,
e “Benito Cereno” autênticos triunfos Léonce Corne, Marcel Carpentier,
literários. Ainda recentemente, nos Jean Ozenne e Jean Berger2.
Estados Unidos, “Bartleby” foi dra-
As informações a respeito destas monta-
matizado e difundido com êxito pela
televisão. Mas acredita-se que, em gens para a TV são escassas e desencontradas,
sua maior parte, os leitores do conto mas as versões cinematográficas, por serem
e seus fãs de vídeo não chegaram a mais recentes, contam, na Internet, com al-
inteirar-se do motivo para tal prefe- guns comentários e releases, de conteúdo
rência: a obstinação do protagonista crítico, embora predominem as descrições
em afirmar a sua natureza individual, com o objetivo de promover a venda dos fil-
recusando-se, por meio da resistência mes, em cópias DVD ou VHS. Desconheço
passiva (no que se é levado a pensar em
um estudo especializado, de crítica cinema-
Thoreau, Gandhi e outros exemplos)
tográfica, sobre a filmografia de Bartleby.
a aceitar o insatisfatório estado do
mundo. (KRÄHENBÜLD, 1969, p.28). Com alguma sorte, às vezes se consegue
acessar, nos endereços virtuais que tratam
Associando as atitudes da personagem de cinema, descrições de cenas e raras aná-
ao pensamento político, bem aos moldes da- lises pontuais.
queles anos, a tradutora menciona um qua- Há uma produção inglesa bastante elo-
se lugar-comum, hoje, nas muitas análises giada, considerada ao mesmo tempo dra-
críticas de Bartleby: a resistência passiva, mática, engraçada, irônica e provocadora
algo que, de algum modo, vinha ao encontro de perplexidade:
dos desejos de superação de políticas e/ou
Bartleby (1970)
regimes autoritários, seja nos EUA, com o
Direção: Antony Friedman
fim da intervenção no Vietnã, seja na Amé-
Adaptação escrita do conto de Melville:
rica Latina, com o crescimento e avanço das Rodney Carr-Smith e Anthony Fried-
reações às ditaduras militares. man
Antes, porém, desta versão televi- Gênero: Drama
siva norte-americana, citada por Olívia Elenco: Paul Scofield, John MacEnery
Krähenbüld, houve outra, feita com uns vin-
te anos de antecedência, para a TV francesa,
2 Ver <http://www.filmcritic.com/>.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 25-35, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 27
Rita Lenira de Freitas Bittencourt

(Bartleby), Thorley Wlaters, Colin ças com relação ao texto de Melville, nas quais,
Jeavons, Raymond Mason, Charles paradoxalmente, sem traição, se define a ma-
Kinross, Neville Barber, Robin terialidade fílmica proposta por Friedman.
Askwith, Hope Jackman, John Com relação aos atores, o olhar arguto do
Watson, Christine Dingle, Rosalind
crítico percebe um trabalho cuidadoso, de
Elliot e Tony Parkin.
Duração de 78 minutos.
quem se identifica com os personagens não
País: Inglaterra3 apenas pelo que eles têm de evidente, en-
quanto tipos singulares, mas pelo que assi-
Segundo Roger Greenspun4, o diretor nalam para além do conto, pelo que deixam
Anthony Friedman move a ação do filme, em suspenso no espaço cenográfico.
de Nova Iorque, 1850, para Londres, 1970. Um longa-metragem francês, com o
E transforma a atividade do copista na de mesmo título, também desloca a ação, só
bibliotecário. A personagem Bartleby anda que, desta vez, de Nova Iorque, nos anos
pela cidade, em seu tempo livre, tem um 1850, para Paris, nos anos 1970. O filme é
pouco de vida pessoal e transmite algo a inicialmente produzido, em 1976, para a
respeito dos seus pontos de vista, o que não rede de televisão Antena 2. Mais tarde, sofre
ocorre no conto de Melville, no qual a sua adaptação para o cinema, tendo um conhe-
subjetividade e os seus dados de identifica- cido ator de comédias no papel de Bartleby:
ção permanecem incógnitos.
Bartleby (1978)
O crítico considera que estas mudan-
Direção: Maurice Ronet
ças, embora pareçam dar um tratamento
Adaptação de Melville: Yvan Bostel
inapropriado ao texto original, fazem com Gênero: Drama
que o filme tenha o senso, ou a inocência, Elenco: Michael Lonsdale, Maxence
de fazer de si mesmo algo mais. Este “algo Mailfort (Bartleby), Maurice Biraud,
mais”, que torna Bartleby um alienado mo- Dominique Zardi, Jacques Fontanelle,
derno e, ironicamente, inglês, revela-se efi- Hubert Deschamps, Albert Michel,
caz. O bibliotecário senta-se à sua mesa e Philippe Brigaud, Michel Fortin,
prefere não trabalhar; depois, prefere não Bruno Balp, Hervé Le Boterf, Florence
Blot, Simone Chatelain, Henri Attal e
se mover, até que a sua preferência chega
Serge Bento.
à absoluta discrição da morte, conservando
Duração: 96 minutos
muito do seu enigma. País: França
A partir da descrição de algumas se- Colorido5.
quências, pode-se ter uma ideia das diferen-
Ainda na França, a romancista e rotei-
rista Véronique Tacquin, seis anos depois,
3 Cf. <http://query.nytimes.com/search/article- exibe o experimental Bartleby ou Les Hommes
printpage.html>.
4 No artigo “Melville’s ‘Bartleby’ transformed for the
au rebut:
screen”, de 7 de janeiro de 1972, que, junto com a ficha
técnica do filme, pode se acessado na página citada na
nota anterior. 5 Ver <http://www.filmcritic.com/>.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 25-35, jan/jun. 2012


28 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Bartleby no cinema: corpo espectral e tecnologia da imagem

Bartleby ou Les hommes au rebut Música: Jonathan Parker e Seth


(1993) Asarnow
Direção e Roteiro: Véronique Tacquin Produção de desig: Rosario Provenza
Fotografia: Alain Levent Realização: Parker Film Company
Elenco: Daniel Gélin, Manuel Gélin, Duração: 82 minutos.
Marc Dudicourt, Jean-François Elenco: David Paymer, Crispin Glover
Perrier, Hugues Quester (Bartleby), Glenne Headly, Joe Piscopo,
34 minutos Maury Chaykin, Seymour Cassel,
Sépia Productions, 16 mm Carrie Snodgress e Dick Martin.
Preto e branco6 País: EUA
Colorido9
Um curta-metragem australiano, bas-
tante premiado em 20017, leva as referências Esta montagem recebeu várias críticas
a Melville para além do espaço de leitura à direção, que apela para uma saturação dos
americana ou europeia, a partir da adaptação sentidos, na qual os elementos técnicos re-
de um conhecido diretor, roteirista e crítico dundam os diálogos, que repetem, palavra
de cinema: por palavra, trechos do conto de Melville, o
que, associado à trilha sonora, acaba provo-
Bartleby (2000)
cando certo tédio.
Direção e roteiro: Miro Bilbrough
Por outro lado, é um trabalho exem-
Gênero: curta
País: Austrália8 plar, se tomado em relação a alguns as-
pectos da cinematografia contemporânea,
Voltando à referência inicial, a série como a noção de corpo espectral, por exem-
cômica “Bartleby”, exibida pela TV america- plo, desenvolvida pelo filósofo, dramaturgo
na, na década de 1970, é importante mencio- e romancista francês Alain Badiou, que me
nar que ela vai dar origem, em 2001, a um interessa discutir.
longa-metragem, para cinema: Sem a intenção de “contar o filme” em
Bartleby (2001) palavras, passo a descrever algumas cenas
Produção e Direção: Jonathan Parker e a tecer alguns comentários de cunho ge-
Roteiro: Jonathan Parker e Catherine ral, para, a partir daí, retornar às reflexões
di Napoli teóricas.
Direção de Fotografia: Wah Ho Chan
Edição: Rick LeCompte
3. Em 2001

Pensando num tipo convencional de


6 Ver <http://www.uhb.fr/alc/cellam/soi-disant/04Au
teurs/Veronique-T.html> roteiro, no qual os elementos são expressos
7 O filme recebeu Certificado de Mérito, no Festival
Internacional de São Francisco, EUA; Prêmio de Distin-
ção da Sociedade Cinematográfica Australiana; Segundo
Lugar, Categoria Curtas, no Festival Internacional de Bil- 9 Página do Film Festival Review, que aconteceu no
bao de Documentários e Curtas, Espanha, 2001. Museu de Arte moderna de Nova Iorque, assinada por A.
O. Scott, em 23 de março de 2001.
8 Ver <http://query.nytimes.com/search/article>.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 25-35, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 29
Rita Lenira de Freitas Bittencourt

dramaticamente dentro de uma sequência de- atravessando a pé uma espécie de passarela,


finida, com início, meio e fim, incorporando que é toda metálica e ocupa o espaço inteiro
uma ordem substantiva, isto é, pressupondo da tela. O personagem encosta-se a ela, e o
que se trata de um personagem, ou de per- seu corpo assim, com os braços semiaber-
sonagens, num lugar ou lugares, vivendo a tos, meio que crucificado por uma grade de
sua “coisa”, que é a própria ação, percebe-se arame, se desenha nas bordas da passarela,
que a adaptação de Jonathan Parker se ajus- sobre uma rodovia. A imagem congela. Em
ta muito bem a este modelo, tendo, inclusi- seguida, o seu futuro chefe, de carro, passa
ve, a preocupação inicial de deixar evidente logo abaixo e aí começa a sua apresentação.
a sua origem literária. Vemos a sua posse, como diretor do arqui-
Antes de o filme ter propriamente ini- vo público, e ele mesmo diz ser do ramo de
ciado, uma fotografia de Melville, sobre um negócios de administração de arquivos. Di-
fundo preto, é exibida na tela, como efígie, ferente do personagem melvilliano, que era
acompanhada de uma pequena biografia um antigo advogado, este, ainda jovem, é
escrita, dividida em três partes. Em seguida, um especializado guardador de memória.
entram os créditos, na seguinte ordem: o che- O conto de Melville inicia justamente
fe do escritório, sem nome (David Paymer) com a fala do advogado, que narra a histó-
e o funcionário Bartleby (Crispin Glover) – ria. Parker parece ter sentido necessidade de
apresentam o título do filme: “Bartleby”; de- apresentar Bartleby antes, e cria a sequência
pois, aparecem os demais personagens e os inicial, antecipando os dados que Melville
nomes dos atores, e se cita a equipe técnica. desenrolará ao longo do texto: anuncia a so-
A música, que será a marca mais evidente lidão, apresenta Bartleby fisicamente, e de-
do personagem principal, de autoria de Jo- senha a insularidade material e psicológica,
nathan Parker e Seth Asarnow, entra junto em relação ao mundo, na qual ele se move.
com a abertura, feita em computação gráfi- Os primeiros minutos do filme vão, junto
ca: uma espécie de espiral, em roxo, que faz com a abertura, portanto, criar o “clima” no
girar as imagens, como fotos recortadas, e qual este se desenvolverá.
também os nomes. Este efeito antecipa tan- O escritório é apresentado como um
to a palheta de cores e as escolhas estéticas edifício quadrado, uma espécie de pirâmide
da direção de arte do filme, quanto à trilha desenhada em computação gráfica, situado
sonora, cuja repetição será dominante e, por num platô, cercado por múltiplas rodovias,
isso, alvo de muitas críticas. A trilha sonora com acesso difícil para pedestres. Sem jane-
é repetitiva, funcionando como uma espécie las, pintado em verdes, amarelos e distintos
de “hino” bartlebiano de todos os trabalha- tons de marrom, tem as paredes decoradas
dores deslocados, o que não a impede de ser com paisagens enormes e falsas, mostrando
incrivelmente irritante. florestas e veadinhos, que não impedem que
Nos primeiros segundos, vê-se o per- se receba, de fora, a impressão barulhenta
sonagem principal, corretamente vestido, do lixo sendo recolhido, ou que o prédio seja
de terno escuro, gravata e camisa branca, sacudido, em alguns momentos, por uma

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 25-35, jan/jun. 2012


30 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Bartleby no cinema: corpo espectral e tecnologia da imagem

vibração sutil, que se torna uma constante processo, muitas trapalhadas acontecem,
ameaça de desmoronamento. A entrada e a sendo que a mais interessante e que, ob-
saída de ar se dão pelo teto, por uma espécie viamente, está completamente fora do tex-
de exaustor que irá adquirindo um enfoque to de Melville, dá-se quando Mr. Waxman,
especial no decorrer do filme. após uma costumeira cena de sedução
As três personagens de Melville são com Vivian, se retira, e ela, em dueto com
conservadas, embora sofram modificações: Rocky, canta uma canção, acompanhada,
Turkey vira Ernie, um funcionário lento, por Ernie, numa viola country, que tem por
gordo e atrapalhado vivido por Maury refrão a frase de Bartleby “I would prefer
Chaykin; Nippers é Rocky, um homem not to”, e que também explora as diversas
forte e um tanto violento, vivido por Joe possibilidades do nome “waxman” – ho-
Piscopo; e Ginger Nut, que em Melville é mem de cera – tanto para falar da indife-
um menino de 12 anos, torna-se Vivian, rença e da palidez do colega, quanto para
uma secretária sonsa, sempre vestida avaliar sarcasticamente as atitudes do su-
de tailleurs vermelhos, vivida por Glenne perior. O episódio é constrangedor, tanto
Headly. Com Vivian, a história toma outros para Bartleby, quanto para o Mr. Waxman,
rumos, pois além dela manter um tipo de que ouve a musiquinha e retorna. O chefe
rivalidade com Bartleby, participa de um imediato – Paymer - acaba resolvendo a si-
jogo sedução, nunca levado a termo, com o tuação, que se apresenta, no filme, como o
superior de todos, Mr. Waxman, vivido por ponto alto da comicidade.
Seymor Cassel. Para Bartleby, quando este E aí talvez esteja um dos grandes pro-
responde a um anúncio e vai trabalhar no blemas da direção de Parker: ele dispõe de
escritório, ela mostra a saída de ar do teto, bons atores, de tipos bem construídos, de
afirmando que dali se pode ouvir o oceano. uma boa história, e de um cenário especial-
Este objeto se tornará o ponto de atração do mente criado para que a comicidade flua,
personagem, que irá voltar-se cada vez mais mas a atuação de Crispin Glover, como um
para ele, permanecendo em pé, olhando-o Bartleby triste e patético, muito próximo
fixamente, num alheamento crescente e da de um doente, com dificuldades físicas
perturbador. de expressão, que inspira mais piedade do
A confrontação, ou o conflito, é intro- que riso faz com que os demais se tornem
duzido pela primeira negativa de Bartleby caricaturas um tanto ridículas. A música
em cumprir uma ordem do chefe, recebi- também contribui para um desempenho os-
da com estranheza por todos, e segue num cilante, entre o drama e a comédia, e o filme
crescendo até a mudança de escritório, a se suspende neste limiar.
última saída, para o personagem de David No final, Bartleby é abandonado por
Paymer, já desesperado com a situação, que todos, e trêmulo, sob um viaduto, se recusa
se livra de Bartleby por um tempo, deixan- a comer, a reagir, a fazer qualquer coisa, re-
do-o, como uma mobília, para que os próxi- cuperando a cena da “carta morta”, exibida
mos ocupantes da sala cuidem dele. Neste no início, na qual Bartleby apresenta-se para

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 25-35, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 31
Rita Lenira de Freitas Bittencourt

o emprego entregando uma carta de reco- fechados e frios, desconectados da natureza.


mendação, que menciona a sua ocupação an- Além disso, a certeza da impossibilidade,
terior, num escritório encarregado de resolver mesmo para um guardador da memória, de
o problema da correspondência extraviada, contar uma história, faz com que o estado
aquela que não chega aos destinatários. Em de inadaptação, exposto em Melville, seja
Melville, trata-se de um vago boato, que ajuda intensificado por Parker.
a construir o papel marginal do escriturário, De certo modo, a inadaptação de Bar-
nas linhas finais do conto. Em Parker, a “carta tleby acaba assombrando o filme, cujo ro-
morta” participa de uma lógica circular, que teiro, ainda que tenha proposto inovações
une o começo e o fim do filme. e atualizações, padece de uma inadaptação
O personagem de Paymer, após pro- fundamental, entre o drama e a comédia,
nunciar as palavras: “Ah, Bartleby! Ah, hu- que funciona, por um lado, por captar com
manidade!”, diante do rapaz morto, dá a precisão a natureza complexa da literatu-
entender que o filme acabou, mas Parker, ra de Melville, mas que não funciona, por
como bom diretor norte-americano, acres- outro, como peça dramática, e se perde ao
centa um último suspiro: corta para uma apontar, sem explorar, as suas próprias e
cena na qual um texto, escrito pelo perso- várias possibilidades. Outro agravante é que
nagem de David Paymer, contando a histó- não consegue desprender-se nem da lógica
ria de Bartleby, é recusado por uma editora nem da sequência do relato, tornando-se
(Carrie Snodgress), que só aparece nesta uma ilustração deste, um mero suporte para
sequência. E então, como numa espécie de o texto literário.
círculo vicioso e inevitável, o homem é cap- Alegoricamente, esta produção faz re-
turado pela onda Bartleby e passa a repetir tornar o lugar-comum, sobre o cinema, que
ininterruptamente “I would prefer not to”, afirma que se o filme não convence como
olhando fixamente para um condicionador filme, ao menos dá suporte para pensá-lo,
de ar. A parte frontal do aparelho, uma espé- outra vez, em suas especificidades. Neste
cie sonora de grade, é a imagem final, com a caso, a partir das instâncias do negativo,
fórmula repetida soando ao fundo. das quais a personagem Bartleby é o para-
Este final, que pertence apenas ao fil- digma, pode-se entendê-lo como um corpo
me, reforça as preocupações de Parker com desconjuntado e espectral.
o deslocamento temporal. Se a imagem, em
computação gráfica, do escritório e dos de- 4. Um corpo espectral
mais prédios da cidade, é a de um não-lugar
contemporâneo, o deslocamento da visão Em uma conferência, de 1994,
para aparelhos, como exaustores e condi- intitulada “Os falsos movimentos do
cionadores de ar, além de reforçar o caráter cinema”10, o filósofo Alain Badiou afirma
tecnológico das instâncias de poder, traz
uma dimensão ainda mais cruel das limita- 10 Originalmente “Le cinéma comme faux mouvement”.
ções impostas ao ser humano pelos lugares In: L’Art du cinéma, n.4, Paris, 1994.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 25-35, jan/jun. 2012


32 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Bartleby no cinema: corpo espectral e tecnologia da imagem

que “um filme funciona pelo que retira a participação na totalidade das outras ati-
do visível” (BADIOU, 2002, p.103). Mais vidades artísticas, em uma alusão constan-
importantes que a presença das ideias, te, contrastante e subtrativa.
nas imagens, são os cortes, executados Badiou denomina de “poética do ci-
não somente pelos efeitos de montagem, nema” ao enredo destas três acepções da
como também pelos enquadramentos e palavra “movimento”, e cujo efeito é a visi-
pela depuração controlada e planejada tação da ideia ao sensível. Insiste, entretan-
do que se faz visível. O modo segundo to, na expressão “visitação”, pois o cinema
o qual as coisas são aprisionadas pelo desmente a tese clássica de que a arte seria
recorte cinematográfico faz com que a forma sensível da ideia, no sentido platô-
elas, simultaneamente, se exibam como nico, posto que não possui, concretamente,
singularidades e sejam, em segundo plano, nenhum corpo. Não é algo separável, na prá-
uma corporificação, distraída e visual, de tica, e não existe, no cinema, mais do que
uma ideia. em sua passagem: a ideia é, concretamente,
O cinema seria, então, uma arte que é a própria visitação. Esta relação se explicita
visitada pelo passado, no sentido de que o como um “para fora” da relação direta entre
passado se institui ao passar, mobilizando a ideia e uma cópia, em imagem, que seria
um sentido do que já se havia visto ou ouvi- secundária, pois, segundo o teórico, “o cine-
do e que permanece enquanto passa, e que, ma é a menos mimética das artes”.
ao mesmo tempo, tenta organizar esta pas- O cinema faz aparecer o passar, a
sagem, do pensamento conectado ao visível, concretude mesma da visita, e nisto arti-
em operações cujas possibilidades são in- cula os três movimentos: o global, no qual
ventadas e reinventadas a partir das habili- a ideia nunca é mais que sua passagem; o
dades próprias de cada técnico e/ou artista. local, pelo qual é, também, diferente de sua
Assim, o movimento, no cinema, po- imagem; e o impuro, pelo qual se aloja nas
deria ser pensado de três modos diferentes. fronteiras oscilantes, entre as áreas artís-
Por um lado, remetendo a ideia à eternida- ticas abandonadas. Assim como a poesia é
de paradoxal de uma passagem, de uma es- uma suspensão na língua por efeito de um
pécie de visitação e, neste caso, se trataria artifício codificado de seu manejo, os movi-
de um movimento global. Por outro lado, mentos que compõem a poética do cinema
o movimento local, por meio de operações são, certamente, também, artifícios, falsos
complexas, é o que subtrai a imagem de si movimentos11.
mesma, ou o que faz com que ela, ainda que O movimento global é falso porque a ele
inscrita, permaneça não apresentada, por- nenhuma medida convém. A subestrutura
que é aí que se encarnam os efeitos do corte,
especialmente quando a detenção aparente 11 Alain Badiou associa os movimentos falsos, que con-
permite ver o esvaziamento do visível. Por figuram o cinema, ao filme O movimento falso, de Win
Wenders comparando, em chave política, as duas poéti-
último, o movimento impuro é a circulação, cas; uma, digamos, filosófica e constituinte, e outra, ar-
tística ou prática.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 25-35, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 33
Rita Lenira de Freitas Bittencourt

técnica regula um desfile discreto e unifor- chadas. Nenhuma pintura se transformaria


me, e toda sua arte consiste em não conside- em música, nenhuma dança em poema, e
rar nada mais que isso. As unidades de cor- todas as tentativas diretas, neste sentido,
te, assim como os planos ou as sequências seriam vãs. E ainda assim, o cinema é, cer-
não se compõem na medida do tempo, mas tamente, a organização desses movimentos
na de vizinhança, de chamado, de insistên- impossíveis. A alusão às outras artes, que
cia ou de ruptura, cujo verdadeiro pensa- o constitui, as arranca delas mesmas, e é
mento é uma topologia mais que um movi- justamente na mescla fronteiriça que se dá
mento. De certa forma, filtrado pelo espaço esta passagem como visitação, articulada
de composição, presente desde a filmagem, por subtrações.
se impõe como o falso movimento pelo qual O cinema, nos filmes, constitui um nó
a ideia não está dada senão como passagem. de falsos movimentos, o espaço por onde
Pode-se dizer que há ideia porque há espaço vibra a mistura, a impureza que perturba.
de composição, e que há passagem porque É uma arte impura, a “mais uma” das artes,
este espaço se libera, se expõe como tempo parasitária e inconsistente. Mas a sua força
global. O movimento global torna-se, então, de arte contemporânea consiste, justamen-
um estiramento pseudonarrativo de alguns te, em gerar a ideia de impureza de toda a
lugares. ideia, no tempo de um passar, constituindo,
O movimento local também é falso como a personagem Bartleby, um corpo hí-
porque é, somente, o efeito da subtração de brido e de consistência espectral.
uma imagem, que, ao subtrair acaba dizen- Bartleby é cinema quando se torna, por
do-se a si mesma. Aqui, tampouco, há movi- um lado, o sintoma da condição moderna,
mento original, movimento em si. O que há anestética e saturadora dos sentidos, re-
é uma visibilidade que, ao não ser reprodu- versão do excesso devolvida em hesitação e
ção de nada, cria um efeito temporal de já silêncio, e, por outro, quando se relaciona à
visto, já percorrido, para que este visível, de noção específica do discurso cinematográfi-
alguma maneira, seja testemunhado “fora co de “operação por subtração”.
da imagem”, pelo pensamento. Seria possível, então, aproximar a
O movimento local orienta-se para o noção de “passagem” elaborada por Alain
movimento impuro, que se instaura no li- Badiou da teoria sobre a “suspensão” da
mite entre o cinema como filme e o cinema linguagem, apontada, em relação à fórmu-
como configuração, ou como arte; no limite la de Bartleby, pelo filósofo italiano Gior-
entre o cinema, ele mesmo, ou como afetivi- gio Agamben, que leva adiante a discussão
dade, algo do passado que parece retornar. sobre a famosa frase pronunciada pelo es-
O movimento impuro, segundo Ba- criturário, I would prefer not to, nas diversas
diou, é o mais falso de todos, pois não exis- possibilidades em que ela funciona – ou não
te, na realidade, nenhum meio para que se funciona –, em sua capacidade de carregar
produza a transposição de uma arte a outra. as baterias dos sentidos da transgressão e
Em muitos aspectos, as artes estariam fe- de se exibir como potência da linguagem.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 25-35, jan/jun. 2012


34 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Bartleby no cinema: corpo espectral e tecnologia da imagem

Para Agamben, a frase I would prefer not ______.; DELEUZE, Gilles. Bartleby, la
to é o anúncio exemplar da potencialidade formula della creazione. trad. Stefano
da linguagem. “Como um escriba que parou Verdicchio Macerata: Quodlibet. 1993.
de escrever”, salienta o teórico, “Bartleby BADIOU, Alain. Pequeno manual de
é a extrema figura do Nada da qual toda a inestética. Trad. Marina Appenzeller. São
criação deriva; e, ao mesmo tempo, ele cons- Paulo: Estação Liberdade, 2002.
titui a mais implacável vindicação deste ______. Imágenes y palabras. Escritos sobre
Nada como pura, absoluta, potencialidade” cine y teatro. Selección de textos y prólogo
(AGAMBEN; DELEUZE, 1993, p. 87). Gerardo Yoel; traducción María del Carmen
A partir da condição de desconectar- Rodríguez. Buenos Aires: Manantial, 2005.
-se, de estabelecer uma relação não mais com BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e
as estruturas montadas, pelos homens, para política. Trad. Sergio Paulo Rouanet, 7. ed.
sobreviver, mas, ao contrário, de entrar em São Paulo: Brasiliense, 1994.
contato com o “outro lado”, o dos mortos, o DELEUZE, Gilles. Bartleby ou la formule.
da gagueira, o do balbucio, o da falta, aque- Paris: Flammarion, 1989.
le onde a ordem falha e prevalece o vazio, ______. Bartleby, ou a fórmula. In: Crítica e
Bartleby permite recuperar uma discussão clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed.
que se ocupa do pensamento como cifra e da 34, 1997.
linguagem como pura potência, em relação a ______. A imagem-tempo. Trad. Eloisa de
tudo o que, neles, escapa da totalização racio- Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005.
nal do sentido e faz retornar ao indefinível. MELVILLE, Herman. Collected prose. Seleção
Espectralidade desdobrada, o cinema e notas Harrison Hayford. New York: The
“sobrevive”, descarnado, catatônico, nos Library of America, 1984.
interstícios que são cortes, recortes e mon- ______. Contos de Herman Melville. Seleção,
tagens, no limiar de um visível que aponta, tradução e introdução de Olívia Krähenbüld.
cada vez mais, aos limites de seu próprio São Paulo: Cultrix, 1969.
fazer, a partir dos quais se postula a fuga ______. Bartleby, o escriturário: uma história
da mensagem, o esvaziamento da ideia, su- de Wall Street. Trad. Cássia Zanon. Porto
pondo que as especificidades do meio man- Alegre: L & PM, 2003.
têm juntas as disjunções entre o cinema e a VILA-MATAS, Enrique. Nunca voy al cine.
literatura. Barcelona: alertes ediciones, 1982.
______. Bartleby & compañía. Barcelona:
5. Referências Anagrama, 2000.

AGAMBEN, Giorgio. Bartleby, or on


contingency. In: ______. Potentialities: Recebido para publicação em 20 set. 2012.
collected essays in philosophy. Ed. and
Aceito para publicação em 09 out. 2012.
translated by Daniel Heller-Roazen.
California: Stanford University Press, 1999.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 25-35, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 35
doi: 10.5212/Uniletras.v.34i1.0003

A poesia trovadoresca e a imagem da mulher


na cantiga de amigo

Troubadour poetry and the image of women


in the cantiga de amigo
Márcia Maria de Melo Araújo*
Pedro Carlos Louzada Fonseca**

Resumo: Este estudo objetiva investigar a poesia trovadoresca e a imagem feminina


nas Cantigas d’amigo dos trovadores galego-portugueses, reunidas por José Joaquim
Nunes. Para o seu desenvolvimento, propõe-se uma aproximação das principais
fontes de leitura sobre a visão da mulher na Idade Média, em especial sobre aspectos
que apontam para a marginalidade feminina nos poemas trovadorescos. A remissão
às cantigas pode permitir caracterizar e recuperar a dinâmica do percurso feminino
dentro de um panorama literário exclusivamente centrado em prerrogativas
androcêntricas. Assim, situar a mulher ou o espaço ocupado por ela na literatura,
sua imagem e questionamentos através do gênero lírico, em que as cantigas servem
de fonte para a análise desse perfil, contribui para a compreensão do pensamento
medieval e seus resquícios na contemporaneidade.
Palavras-chave: Cantiga de amigo. Imagem da mulher. Ideologia.

Abstract: This study aims at investigating troubadour poetry and the female image
in Cantigas d’amigo dos trovadores galego-portugueses, assembled by José Joaquim
Nunes. The article compares the main reading sources on the view of women in the
Middle Ages, especially on aspects that point out the marginalization of women in
troubadour poems. Referring to the cantiga de amigo may allow us to characterize
and recover the dynamics of the female path in a literary panorama exclusively
centered on androcentric prerogatives. Thus, it may also allow us to place women
or the space they occupy in literature, their image and questionings through lyric
poetry. The cantiga acts as a source for the analysis of that profile and contributes
to the understanding of medieval thought and its traces in the contemporary world.
Keywords: Cantiga de amigo. Image of women. Ideology.

* Professora Mestre Titular de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Doutoranda em Estu-
dos Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal
de Goiás (UFG), sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Carlos Louzada Fonseca. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de Goiás (Fapeg). E-mail: <marcimelo@gmail.com>.
** Professor Doutor Titular de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Le-
tras e Linguística da Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: <pfonseca@globo.com>.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 37-47, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 37
Márcia Maria de Melo Araújo, Pedro Carlos Louzada Fonseca

As concepções dos trovadores proven- valores do sentimento que a poesia trans-


çais ramificaram-se para muitas regiões forma em declaração subjetiva. Assim, o
do reino da França e fora dele, passando a ideal de cortesania realiza o tema do amor,
outros reinos e fazendo surgir uma cultura abrindo a problemática da valorização da
refinada que floresceu no Ocidente entre os mulher enquanto imagem apenas.
séculos XII e XIII. Essencialmente aristo- A cantiga de amigo focaliza o outro
crática, profana e cortês, essa cultura abri- lado da relação amorosa: a base do poema
gou o cultivo da lírica que ficou conhecida é representada pelo sofrimento amoroso
como trovadoresca, ou seja, a arte de trovar. da mulher, geralmente pertencente às ca-
Justamente nesse período, que envolve as madas populares (pastoras, camponesas e
chamadas cantigas de amigo galego-por- outras). Quer como altamente idealizada,
tuguesas, forma-se um imaginário sobre os enquanto dama da corte, quer como mulher
lamentos da mulher apaixonada, o qual se do povo em ambiente rural ou urbano, ela
pretende mostrar neste estudo, por meio de geralmente foi retratada por um eu lírico,
um esboço da influência da literatura na ca- cuja voz feminina pautava-se submetida a
racterização da imagem feminina. um discurso de autoria masculina. Especi-
O envolvimento da mulher nesse pro- ficamente nas cantigas, há uma voz do fe-
cesso de criação literária trovadoresca foi minino que se mostra por meio um eu lírico
considerável, principalmente como fonte que canta suas tristezas, sua solidão e suas
de inspiração poética e reflexo de relaciona- emoções em relação ao amigo. Entretanto, a
mentos sociais. Duby (1995, 1997) acrescenta voz autoral pertence ao trovador, cujo ima-
que houve um favorecimento por parte de ginário se ramifica pela representação artís-
damas da nobreza e da aristocracia no flo- tica e pelo fingimento poético.
rescimento dessa cultura de cortesania líri- Se na cantiga de amigo a voz autoral é
co-amorosa. Reforçando esse pensamento, masculina, deve haver, em razão da impossi-
Umberto Eco (2010) reitera que a mulher se bilidade de uma absoluta transformação do
transforma em centro da vida social e artís- eu no alter do outro, um comprometimento
tica que a época feudal havia ignorado. Com da visão do trovador acerca da mulher, rela-
o surgimento da cavalaria e do amor cor- tivamente às suas prerrogativas ideológicas
tês, os valores estéticos tornam-se valores e políticas. Sendo as coisas mimeticamente
sociais, entrando na literatura o elemento assim representadas, pensamos que algu-
feminino. ma reflexão deve ser dedicada ao fato de as
Embora o ideal de cortesania coloque imagens ou topoi das cantigas de amigo
em evidência as mulheres, o que aparece (natureza, espaço, descrição física da ami-
como tema central é o amor, que integra a ga), cunhadas pelo trovador, poderem pos-
imagem da mulher no jogo intelectual dos suir um tratamento estilístico e retórico que
poetas, acenando para um leque de mulheres se compromete com a visão androcêntrica
de diferentes classes sociais, acentuando-se e, portanto, possivelmente preconceituosa
em termos misóginos.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 37-47, jan/jun. 2012


38 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
A poesia trovadoresca e a imagem da mulher na cantiga de amigo

Além disso, a considerar a característi- Entretanto, apenas aparentemente


ca dualidade da mulher boa (virtuosa) e má paradoxal, no período trovadoresco, essa
(viciosa) no pensamento e na cultura me- ideia de São Jerônimo convivia com o culto
dievais de herança patrística, é de se cogitar incentivador da mulher à perfeição, enca-
que as idealizações das cantigas de amor beçado pela inderrogável Virgem Maria.
tendem para um retrato virginal e mariano No Concílio de Éfeso, em 431, Maria foi
da mulher. Ao passo que as cantigas de ami- proclamada “Mãe de Deus”, pois anterior-
go, ainda seguindo o rescaldo negativo do mente era chamada de “Mãe de Cristo”. E
platonismo, tendem a retratá-la mais realis- a produção poética do período vacila na
ticamente, portanto, de forma mais carnal e oscilação entre esses dois polos opostos de
sensorializada: a sua face negativa enquan- consideração. Ressoando esse paradoxo,
to corpo sinonimizado ao vício, à Eva pro- no século XII, Santo Anselmo e Abelardo
priamente dita. Desse modo, as cantigas de celebraram, com regozijo, essa nova reabi-
amigo, interesse principal deste estudo, pa- litação virginal de Eva. No tratado Cur Deus
recem representar mais fielmente esse se- homo, Santo Anselmo encoraja as mulheres
gundo termo da dualidade. Já que esse tipo vítimas da queda da sua primeva progeni-
de cantiga traz elementos que permitem o tora, Eva, pela reabilitação redentora de
trato da relação analógica entre concreto e uma nova Eva, saudada como Ave Maria.
profano, um exame mais detalhado dessa Essa extraordinária popularidade do culto
problemática da dualidade merece ser feito. marial depois do século XII é atestada nos
No estudo da imagem da mulher na sermões, tratados e poemas escritos em
Idade Média, dois pontos de vista opostos louvor da Virgem (MACEDO, 1999).
coexistem e se sobressaem: o da mulher es- Em meio a essas fontes ora misógi-
sencialmente má e outro da mulher invoca- nas, ora redentoras, desenvolveu-se uma
da a ser perfeita. No primeiro, singularmen- grande quantidade de obras literárias de
te sobressai a imagem de Eva e, no outro, o vários gêneros como poesias, baladas e
de Maria. Na cultura cristã, são nos textos romances. Entre os séculos XII e XIV, no
bíblicos que, geralmente, os moralistas, tan- meio religioso, nas cortes aristocráticas e
to clericais quanto seculares, buscam fun- no meio urbano, desenvolvem-se, ao lado
damento para, a partir de Eva e de outras do trovadorismo do amor cortês, os canta-
mulheres malsãs, construir a sua postura res dos trovadores das cantigas de amigo,
misógina, não raras vezes de cruel derro- tendo Galícia e Portugal como centros de
gação. São Jerônimo, um dos pioneiros da referência dessas composições galego-por-
patrística medieval, nutriu um desprezo tuguesas. As cantigas de amigo galego-por-
doentio pelas mulheres, comentando em tuguesas representam o mundo das ações e
seu Adversus Jovinianum [Contra Joviniano], emoções femininas, fruto de um fingimen-
que elas são o princípio de todos os males, to poético porque a voz do eu lírico opera
por seduzirem os homens aos prazeres vi- a sentimentalidade feminina por meio de
ciosos e não virtuosos (BLOCH, 1995).

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 37-47, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 39
Márcia Maria de Melo Araújo, Pedro Carlos Louzada Fonseca

uma autoria masculina: é o trovador que espírito e idealizações, dirige-se à dama da


oferece um perfil das relações amorosas e corte numa posição de vassalo; enquanto
sociais, envolvendo a mulher do campo e a que com os sentidos, à pastora. Talvez seja
da cidade. É forte nesses tipos de cantigas essa dualidade responsável pelo fato de o
a presença do diálogo, quer diretamente, trovador poder expressar, em termos de fin-
ou disfarçado na sua forma de monólogo, gimento poético, com autenticidade os dois
apontando para a vida cotidiana da mulher, tipos de experiência amorosa. Ora como
nos seus anseios alegres ou tristes, eufóri- se padecesse por não ser seu amor corres-
cos ou decepcionantes, via de regra relacio- pondido ou por ser impossível; ora como se
nados à satisfação amorosa. falasse pela mulher como uma pessoa outra
Abdala Junior e Paschoalin (1990, p.15) perdidamente apaixonada.
afirmam que “a mulher é personagem prin- Simultaneamente, essa dualidade
cipal, que vai se encontrar com o namorado aponta para os modelos que fixaram as ba-
junto à fonte, que vai à romaria e lá espera ses das relações homem-mulher, cuja regra
encontrar o amigo, que vai lavar as roupas geral se funde no interdito sexual, em que o
ou os cabelos etc. Há, portanto, uma ação prazer, visto como impuro e pecaminoso, se
da personagem, não apenas o desabafo contrapõe à superioridade do amor conju-
intimista”. Particularmente nas cantigas gal, destinado exclusivamente à procriação.
de amigo escolhidas para esta análise, é a Nesse sentido, constata-se o reforço da ima-
pastora a personagem e a dona das ações gem dual da mulher, engendrada pela civili-
narradas, sempre presente o ingrediente zação cristã e fortalecida pela Igreja. A esse
básico do diálogo. respeito, assim comenta Duby:
Massaud Moisés (2005) garante que,
A Igreja – esse Estado que se fortale-
nas cantigas de amigo, o drama é da mu-
ce a par dos reinos e dos principados,
lher, mas quem compõe a cantiga é o trova- erigindo os emblemas da sua força, as
dor, espécie de narrador desse drama femi- catedrais, a polifonia que enche por
nino. Reforça-se isso aqui pelo fato de ser completo as naves – acha que deve
ele, o trovador, precisamente o homem que manter cativos os seus súbditos pelo
presencia o sofrimento da mulher, e, segun- sentido do pecado. Pela ameaça do in-
do, por ser quase sempre um tradutor, visto ferno e dos castigos purgatórios. Daí a
que, na maioria das vezes, a moça não sabe pressão, cada vez mais forte, sobre as
representações da organização social
ler e nem escrever.
que emana das gentes da Igreja, de
Curioso, mas perfeitamente justifi-
uma definição, de uma classificação
cável em termos culturais e ideológicos, é das intenções pecaminosas. Os cri-
o fato de o trovador viver uma dualidade térios de culpa substituem-se, insen-
amorosa, dividindo-se entre a espiritua- sivelmente, aos critérios funcionais.
lidade das cantigas de amor e a concreta (DUBY, 1982, p. 342).
carnalidade das cantigas de amigo. Em

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 37-47, jan/jun. 2012


40 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
A poesia trovadoresca e a imagem da mulher na cantiga de amigo

A pressão exercida pela Igreja aliada sob o n. 102 no Cancioneiro da Vaticana e sob
a ensinamentos associados à boa conduta, o n. 519 no Cancioneiro Colocci-Brancutti, e faz
baseada em preceitos religiosos da moral parte das Cantigas d’amigo dos trovadores ga-
cristã, apontam para a hipótese de que, nas lego- portugueses, reunidas por José Joaquim
cantigas de amigo, o trovador assume a voz Nunes. Este se regulou pela forma como o
da mulher como um artifício poético para assunto é tratado, ou seja, se é o namorado
cantar o amor proibido. Nesse artifício, ou a namorada que fala primeiro, pela indi-
simbólico e metafórico, cuja significação cação nos apógrafos italianos e pelo sistema
só pode ser mais bem compreendida nos adotado nas poesias de D. Dinis.
termos da própria cosmovisão medieval,
Ũa pastor se queixava
notamos certo reforço moralista, clerical e
muit’estando noutro dia,
secular, do amor como pecado, despertado e sigo medês falava
no homem pela face negativa da mulher. e chorava e dizia
Porque ela, a mulher, instituiu o pecado com amor que a forçava:
no mundo, segundo as tradicionais noções “par Deus, vi-t’en grave dia,
formadoras do pensamento e da crença ju- ai amor!”
daico-cristã da Idade Média, assim, a voz é Ela s’ estava queixando,
dada a ela, eximindo o homem da “culpa”. come molher con gram coita
Essa ideia da mulher como perdição, e que a pesar, des quando
atrelada às três letras EVA, povoou a men- nacera, non fôra doita,
talidade masculina da Idade Média e ecoou por en dezia chorando!
“Tu non és se non mia coita,
por outras épocas até os dias atuais. Na in-
ai, amor!”
trodução do Tratado do amor cortês, Claude
Buridant comenta ser frequente na Idade Coitas lhi davam amores,
Média o trocadilho AVE/EVA: “Eva, tuum que non lh’eran se non morte,
e deitou-s’antr’ũas flores
nomen dic retro! Fiet: Ave [Eva, diz teu nome
e disse con coita forte:
ao inverso! Será: Ave]”, prova inconteste da
“Mal ti venha per u fores,
dualidade constante no juízo feito sobre a ca non és se non mia morte,
mulher. Para o homem medieval, a mulher ai, amor!” (NUNES, 1973, p. 1-2).
representa características de Eva e da Vir-
gem, simbolizando ora a perdição da huma-
Uma pastora estava a queixar-se
nidade, ora a doce imagem da redenção. muito estando noutro dia,
Geralmente percebe-se nessas canti- e consigo mesmo falava
gas a voz de uma mulher solitária, em con- e chorava e dizia
tato com a natureza, sofrendo a dor do amor com amor que a forçava:
e lamentando a ausência do amado, como “por Deus, vi-te em penoso dia,
se pode ver na cantiga a seguir, da autoria ai amor!”
de El-rei D. Dinis. Essa cantiga encontra-se

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 37-47, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 41
Márcia Maria de Melo Araújo, Pedro Carlos Louzada Fonseca

Ela estava se queixando, aditivo “e”: “e sigo medês falava/ e chorava e


como mulher com grande sofrer dizia” [e consigo mesmo falava e chorava e
e que apesar, desde quando dizia]; “e deitou-s’antr’ũas flores/ e disse con coi-
nascera, não fora ensinada, ta forte” [e deitou-se entre umas flores e dis-
porém dizia chorando!
se com forte sofrimento]. A repetição desse
“Tu és senão o meu sofrer,
ai, amor!”
termo além de dar ritmo à cantiga a aproxi-
ma da oralidade, garantindo a musicalidade
Amores causavam-lhe sofrimentos, natural da língua. No dizer de Paul Zumthor
que lhe eram como a morte, (1993, p.74), “o homem vive também a lin-
e deitou-se entre umas flores
guagem da qual ele provém, e é só no dizer
e disse com dor forte:
poético que a linguagem se torna verdadei-
“Maldito sejas por onde fores,
porque não és senão minha morte, ramente signo das coisas e, ao mesmo tem-
ai, amor!”. po, significante dela mesma”.
Na cantiga a seguir, de Airas Nunes,
Nessa cantiga, de autoria de Dom Di- clérigo possuidor de uma invulgar erudição,
nis, o rei trovador, fala primeiro um eu líri- um cavaleiro se põe a ouvir as queixas da
co que narra a queixa de uma pastora, e ao pastora. Dessa vez a queixa é feita em forma
mesmo tempo a observa. A pastora, que se de canção, escondendo-se para ouvi-la sem
diz forçada pelo amor e se encontra de cora- que ela saiba de sua presença.
ção roubado, monologa consigo mesma so-
bre o amigo ausente que a faz sofrer. Essas Oi’ oj’eu ũa pastor cantar,
du cavalgava per ũa ribeira,
características, não encontradas na imagem
e a pastor estava [i] senlheira,
da mulher das cantigas de amor, apresen-
e ascondi-me pola ascuitar
tam certa sinceridade psicológica, em ter- e dizia mui bem este cantar:
mos de fingimento poético, representando “So lo ramo verde frolido
um pequeno esboço do sofrimento amoroso vodas fazen a meu amigo
e da vida do campo. e choran olhos d’amor.”
Assim, a voz do eu lírico parece iden- E a pastor parecia mui bem
tificá-lo no mesmo ambiente ocupado pela e chorava e estava cantando
pastora, como se estivesse vendo-a naquele e eu mui passo fui-mi achegando
instante do flagrante campesino ou como pola oi’r e sol non falei rem,
um narrador onisciente que capta e traduz e dizia este cantar mui bem:
a alma da personagem. O nível das estrutu- “Ai estorninho do avelanedo
cantades vós e moir[o] eu e pen[o]:
ras rítmicas tem relevância no nível de sig-
e d’amores ei mal,
nificado e podem fornecer a chave para uma
tentativa de interpretação da cantiga. E eu oi’-a sospirar enton,
Distingue-se a presença de certa es- e queixava-s’estando con amores
e fazi’ [ũ]a guirlanda de flores,
trutura narrativa muito próxima da tradi-
des i chorava mui de coraçon
ção oral pela presença repetitiva do termo

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 37-47, jan/jun. 2012


42 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
A poesia trovadoresca e a imagem da mulher na cantiga de amigo

e dizia este cantar enton: e tornei-me logo a meu caminho


“Que coita ei tan grande de sofrer: porque de a molestar não houve desejo,
amar amigu’e non ‘ousar veer! e dizia este cantar bem a pastora:
e pousarei so l’avelanal.” “Pela margem do rio cantando
ia a virgem de amor: como dormirá
Pois que a guirlanda fez a pastor,
quem amores tem, ai bela flor!”.
foi-se cantand’, indo-s’em manselinho,
e tornei-m’eu logo a meu caminho, Nessa cantiga de Airas Nunes, a voz em
ca de a nojar non ouve sabor,
primeira pessoa mostra o comprometimen-
e dizia este cantar ben a pastor:
to do trovador com o próprio ato da enun-
“Pela ribeira do rio cantando
ia la virgo d’amor: quen amores ciação: “Oi’ oj’eu ũa pastor cantar,/ du cavalgava
á como dormirá, ai bel frol!”. per ũa ribeira” [Hoje, enquanto cavalgava por
(NUNES, 1973, p.233-234). uma ribeira, eu ouvi uma pastora a cantar].
Entretanto é uma voz habilmente dissimu-
Ouvi hoje uma pastora a cantar lada que procura manter-se nos interstícios
enquanto cavalgava por uma ribeira, elocucionais, trazendo, por conseguinte, a
e a pastora estava sozinha voz de uma mulher (a pastora) lamentando
e escondi-me para escutá-la a ausência do amigo: “So lo ramo verde frolido/
e dizia muito bem este cantar: vodas fazen a meu amigo/ e choran olhos d’amor”
“Sob o ramo verde florido
[Sob o ramo verde florido bodas fazem ao
bodas fazem ao meu namorado
meu amigo e os olhos choram de amor]. Em
e choram os olhos de amor.”
comentário sobre esses versos, J. J. Nunes
E a pastora parecia muito bem (1973, p.229, v.3) diz parecer que o sentido é
e chorava e estava cantando
de que celebram o casamento do amigo da
e eu muito devagar fui-me achegando
pastora e esta, não podendo conter-se, cho-
para ouvi-la e sozinho não falei coisa,
e dizia este cantar muito bem: ra, por ver-se preterida, juntamente com o
“Ai, pequeno pássaro da aveleira amor que lhe consagra. A expressão “So lo
cantades vós e morro eu e peno: ramo verde frolido” alude, segundo J. J. Nu-
e tenho mal de amores.” nes (1973, p. 229), “aos arcos de verdura que,
E eu a ouvi a suspirar então, ainda hoje, é uso fazerem-se nas províncias,
e queixava-se estando com amores, para, debaixo deles, passarem os noivos e
e fazia uma guirlanda de flores seu séquito”.
desde que chorava muito de coração A voz da pastora, nessa cantiga de Ai-
e dizia este cantar então: ras Nunes, é identificada pelas aspas, as-
“Que infelicidade tão grande hei de sim como acontece na de D. Dinis, ao passo
sofrer: que a voz do cavaleiro, em primeira pessoa,
amar amigo e não ousar ver!
utiliza-se de um “eu” na figura do narrador:
e pousarei sob a aveleira.”
“Oi’ oj’eu ũa pastor cantar”. O narrador, mes-
Depois, que a guirlanda a pastora fez, clado ao eu lírico, expõe a “coita” amorosa
foi-se cantando, indo-se de mansinho, da pastora pela ausência de seu namorado.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 37-47, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 43
Márcia Maria de Melo Araújo, Pedro Carlos Louzada Fonseca

Nessas cantigas é possível perceber o antiguidade com a fala; àquele costu-


domínio da religiosidade (“par Deus, vi-t’en ma chamar-se a linguagem do senti-
grave dia,/ ai amor!”) e os estratos sociais re- mento, como a esta a da razão. Ora, se
presentados tanto pelas pastoras (campone- na mulher aquele em geral sobreleva a
esta, não admira que ela cante mais do
sas) quanto pelo trovador na figura do cava-
que o homem. Sendo a vida dêste mui-
leiro (nobres). A expressão “par Deus” é uma to mais activa, não é de estranhar que,
espécie de juramento, em que se invoca a absorvido pelos múltiplos factos que a
Deus como testemunha de que o que se diz constituem e lhe prendem a atenção, o
é verdade. Desse modo o vocábulo “amor”, canto o preocupe menos do que á mu-
no final da expressão, toma-se em sentido lher; esta sim, que, recolhida no inte-
concreto, em vez da pessoa que é objeto do rior da sua casa, para em certo modo
amor. De acordo com J. J. Nunes (1973, p.2, amenizar essa quase solidão, se distrai
v.3), a frase soa como se a pastora dissesse cantando. (NUNES, 1973, p.5, v.1).
ao namorado: Por Deus, maldita a hora em Entretanto, as diferenças entre o can-
que gostei de ti. tar e o falar sugerem a presença de um dis-
A rigor, o aspecto que se destaca nessas curso dominante, cuja retórica é baseada
cantigas é o amor concebido, paradoxalmen- num complexo sistema binário de hierar-
te, como desejo e sofrimento: na primeira quia. Esse discurso revela-se marcado por
cantiga, o poeta observa a mulher queixar- sutis atitudes misóginas, comprometido
-se: “par Deus, vi-t’em grave dia”, “Tu non és se com uma subjetividade cultural androcên-
non mia coita”. Embora haja uma queixa, é trica. As categorias de diferença podem ser
esse “Tu” que ela deseja; na segunda, a pas- percebidas nessas cantigas em que o canto
tora chora a perda do amado enquanto faz é dado à mulher e a fala ao trovador, numa
uma guirlanda de flores, numa declarada alusão de que o cantar, por estar relaciona-
insinuação ao casamento. Todavia, essas do ao sentimento, conforme explicita Nu-
ideias de sofrimento e desejo podem exem- nes, encontra-se diretamente proporcional
plificar a associação da mulher com os sen- à voz da mulher, ao passo que o falar é atri-
tidos e, ao mesmo tempo, uma perspectiva buído ao homem, por ser discursiva e cultu-
do poeta que transfere para ela a sua voz: “e ralmente tratado como resultado do racio-
dizia este cantar mui bem”. O canto é apresen- cínio, ou seja, da razão. Estrategicamente,
tado da perspectiva do eu lírico, papel dado à na Idade Média, o discurso androcêntrico
mulher. Dessa maneira, ela é colocada numa se fundamenta em:
posição sobredeterminada, representada
pela voz que canta sua tristeza, dando-lhe toda uma tradição literária do pas-
sado que se baseou na tropologia da
autoridade para falar de si mesma. Sobre
naturalização da mulher considerada
esse aspecto, J. J. Nunes assim explica:
simplesmente como realidade vege-
Como é sabido, o cantar pertence a tativa, desprovida de quaisquer facul-
ambos os sexos e de-certo compete em dades mentais, inclusive do poder de

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 37-47, jan/jun. 2012


44 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
A poesia trovadoresca e a imagem da mulher na cantiga de amigo

desenvolvimento da fala. Essa natu- poder entre os sexos, a obsessão de-


ralização articulava outra tropologia bilitante com a mulher como fonte
igualmente derrogatória do femini- de todo o mal acabou invertendo-se
no: a infantilização, na medida em numa obsessão co-conspirante com
que o infante é aquele que não fala. a mulher como fonte de todo o bem.
E, não falar, para o código linguístico (BLOCH, 1995, p.18).
e cultural masculinista dessa época,
era sinônimo de não pensar, não se Para Bloch (1995, p. 18-19), a “relação dos
organizar, segundo a lição aristotélica discursos concorrentes sobre o feminino – o
de ser o homem um animal racional misógino e o cortês – é bem mais complicada
justamente por ter a capacidade de se do que a de uma simples oposição”.
organizar intelectual e politicamente. Retomando os trovadores analisados
(FONSECA, 2011, p.76). anteriormente – D. Dinis e Airas Nunes –,
Essa retórica faz parte de um longo pro- ambos destacam-se pela contribuição ao li-
cesso cultural e envolve as concepções sobre rismo popular e pela produção reinterpre-
a configuração do gênero masculino e femi- tativa das ações femininas suscitadas pelo
nino na mentalidade e na cultura do mundo amor, envolvendo as camadas sociais mais
ocidental, a partir de diferenças naturais e populares. Entretanto, destaca-se nas duas
institucionais entre os sexos. A configuração cantigas desses trovadores a visão do de-
dessa retórica contribui para o estudo da lite- sejo da mulher pelo casamento, a exemplo
ratura e da poética na definição dos gêneros da imagem da mulher deitando-se entre
sexuais no Ocidente e uma ligação entre os flores, na cantiga de D. Dinis, e da pastora
escritos patrísticos e a literatura cortês dos que faz uma guirlanda de flores na cantiga
séculos XII e XIII. Um elo definidor entre de Airas Nunes.
esses dois elementos é a castidade que, tanto Sobre essa visão do desejo da mulher
entre os Padres da Igreja como entre os poe- pelo casamento, é pertinente ressaltar o
tas, se situa como ponto crítico na história da que comenta Spina (1969, p. 15): “Na Galiza
relação dos gêneros porque representa tanto e em Portugal a mulher aparece represen-
uma ruptura na articulação da sexualidade tada principalmente pelas meninas casa-
do cristianismo primitivo, como assegura douras, que nestas composições vibram de
Bloch (1995, p.18), como uma transformação saudades pelo namorado que foi para as
do antifeminismo em adoração da mulher. trincheiras (fossados ou feridos) combater
Bloch ainda acrescenta que: o mouro invasor”. Contudo, essa imagem
de “meninas casadouras” contrasta com a
O aparecimento do amor romântico vida de muitas mulheres nobres que recu-
ocidental foi parte de um momento savam o casamento porque este transfor-
particular na história da misoginia –
mava em dever o dom gratuito do corpo.
um momento no qual, devido a mu-
(DUBY, 1995, p.73).
danças contemporâneas nas formas
de propriedade e nas relações de A rigor, o discurso dos religiosos sobre
o casamento foi endereçado a uma plateia

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 37-47, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 45
Márcia Maria de Melo Araújo, Pedro Carlos Louzada Fonseca

feminina. Os homens eram vistos natural- Lopes, integra o universo dos poetas que
mente como superiores e criados à imagem buscam a intertextualidade com textos da
e semelhança de Deus, ao passo que a mu- tradição poética medieval portuguesa para
lher, reflexo dessa imagem, deveria ser do- compreender a própria razão de suas escri-
minada pelo esposo e sofrer as dores do par- tas e da cultura em que vivem. Esses poe-
to, entendidas, muitas vezes, como castigo tas têm uma preocupação constante com
(MACEDO, 1999). De qualquer modo, essas a possibilidade e os limites da linguagem.
ideias exemplificam que a ordem social Eis aqui novas perspectivas: escrever com
repousava no matrimônio, instituição cul- penas dos outros e a ideia do mundo não
turalmente criada. Assim, a mulher é con- apenas como uma subjetividade feita exclu-
cebida como uma ideia e não como um ser sivamente pelo pulsar linguístico, mas uma
humano e, de certa forma, empurrada para comunicação direta com a vida, aproximan-
as margens da sua própria história. do o sujeito do mundo. Daí o valor das can-
É inconteste que, entre as numerosas tigas de amigo ainda hoje.
investigações científicas consagradas aos
mitos e às obras populares líricas e épicas, Referências
as cantigas de amigo ocupam um lugar
modesto. Isso permite poder afirmar, sem ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN,
Maria Aparecida. História social da literatura
exagero, que a profunda originalidade dessa
portuguesa. 3. ed. São Paulo: Ática, 1990.
antiga arte não foi ainda, de todo, revelada.
No entanto, sua amplitude e importância na BLOCH, R. Howard. Misogenia medieval e a
invenção do amor romântico ocidental. Trad.
Idade Média eram consideráveis, conforme
Claudia Moraes. Rio de Janeiro: Editora 34,
reportam Saraiva e Lopes (1995).
1995.
Nos dias atuais, para uma compreen-
BURIDANT, Claude. Introdução. In: ANDRÉ
são e (re)conhecimento, as cantigas de ami-
CAPELÃO. Tratado do amor cortês. Trad.
go exigem do leitor um esforço de adaptação
Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins
e adequação das condições histórico-sociais
Fontes, 2000.
do contexto em que se desenvolveram. É
DUBY, Georges. Resistências parisienses. In:
desse contexto que emanam as primeiras
______. As três ordens ou o imaginário do
fontes do patrimônio lírico da Língua Por-
feudalismo. Lisboa: Editorial Estampa, 1982.
tuguesa. Poetas brasileiros e portugueses, a
______. Damas do século XII: Heloísa, Leonor,
exemplo de Manuel Bandeira e Fiama Hasse
Isolda e algumas outras. Trad. Telma Costa.
Paes Brandão, reportaram a essa fonte para
Lisboa: Teorema, 1995.
exprimir uma revisão crítica e reinterpreta-
______. Damas do século XII: a lembrança das
tiva de aspectos formais e conteudísticos e
ancestrais. Trad. Maria Lúcia Machado. São
de temas consagrados pela tradição poética Paulo: Companhia das Letras, 1997.
medieval portuguesa.
ECO, Umberto. Arte e beleza na estética
João Miguel Fernandes Jorge, recu-
medieval. Trad. de Mario Sabino. Rio de
perador das crônicas históricas de Fernão Janeiro; São Paulo: Record, 2010.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 37-47, jan/jun. 2012


46 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
A poesia trovadoresca e a imagem da mulher na cantiga de amigo

FONSECA, Pedro Carlos Louzada. Bestiário


e discurso do gênero no descobrimento da
América e na colonização do Brasil. São
Paulo: Edusc, 2011.
MACEDO, José Rivair. A mulher na idade
média. 4. ed. São Paulo: Contexto, 1999.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa.
São Paulo: Pensamento-Cultrix, 2005.
NUNES, José Joaquim. Cantigas d’amigo
dos trovadores galego-portugueses. Lisboa:
Centro do Livro Brasileiro, 1973. 3 v.
SARAIVA, António José; LOPES, Óscar.
História da literatura portuguesa. Porto:
Porto, 1955.
SPINA, Segismundo. Presença da literatura
portuguesa: era medieval. 3. ed. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, 1969.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura”
medieval. Tradução de Amalio Pinheiro,
Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993.

Recebido para publicação em 16 fev. 2012.


Aceito para publicação em 15 março 2012.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 37-47, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 47
doi: 10.5212/Uniletras.v.34i1.0004

Confrontos: a homoafetividade e a
hegemonia em Pela Noite (1983), de Caio
Fernando Abreu

Conflicts: homoaffection and hegemony in


Pela Noite (1983), by Caio Fernando Abreu
Karine Passeri∗
Silvio Ruiz Paradiso∗*

Resumo: A literatura homoerótica e a teoria queer analisam a sexualidade e o


desejo nas relações sociais, principalmente a respeito do homossexual. Na novela
Pela Noite (1983), de Caio Fernando Abreu, percebemos essa temática homoerótica.
com base nesse tema, analisaremos o comportamento dos personagens quando
estão em ambiente de público gay e quando estão em espaço predominantemente
heterossexual; além disso, abordaremos também os momentos em que um dos
personagens se encontra com o seguinte questionamento: é possível ou não haver
amor entre dois homens? Diante disso, objetivamos estudar a influência da ideologia
da sociedade machista e patriarcal na vida e no comportamento dos personagens.
Como resultado, esperamos que os personagens, por estarem tão alienados em
relação às “leis” sociais vigentes, se submetam inconscientemente a elas e por isso
apresentem dificuldade a respeito de como se comportar em determinados espaços
e sobre como amar outros homens.
Palavras-chave: Literatura homoerótica. Homoerotismo. Sociedade. Hegemonia.

Abstract: Homoerotic literature and queer theory analyze sexuality and desire
in social relations, especially homosexuality. In the novel Pela Noite (1983) by Caio
Fernando Abreu, the homoerotic theme can be observed. Based on this theme,
this article analyzes the behavior of characters in the novel when they are in a gay
environment and when they are in a predominantly heterosexual space; in addition,
the article analyzes the moments when one of the characters asks himself: “is it
possible or not to exist love between two men?” Therefore, this study focuses on the
influence of ideology in a patriarchal and sexist society in the life and behavior of the

* Graduada em Letras português/inglês pelo Centro Universitário de Maringá. E-mail: <karinepasseri@hotmail.com>.


** Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Especialista em Religião e Reli-
giosidades nas literaturas pós-coloniais. E-mail: <silvinhoparadiso@hotmail.com>.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 49-57, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 49
Karine Passeri, Silvio Ruiz Paradiso

characters. As a result, it is expected that the characters that are so alienated with
the social “laws”, unconsciously submit to them and they demonstrate difficulties in
behaving in certain spaces and knowing how to love other men.
Keywords: Homoerotic literature. Homoeroticism. Society. Hegemony.

1. Introdução Observa-se que essa temática homoe-


rótica ganha mais espaço e mais força no
Os Estudos Culturais constituem uma
campo literário. Diversos escritores a traba-
área de pesquisa sobre comunicação e cul-
lham em sua obra, como João Gilberto Noll,
tura. Seu objetivo principal é estudar a cul-
Bernardo Carvalho e Caio Fernando Abreu,
tura como um campo em que ocorrem lutas
por exemplo.
entre várias culturas ligadas a determina-
Consoante o pensamento de Thomé
das classes sociais; em outras palavras, os
(2009, p. 32), a novela Pela Noite (1983) será
Estudos Culturais propõem a análise das
considerado como “texto gay”, pois seu tema
práticas culturais de grupos sociais margi-
central é o sentimento homoafetivo. Chega-
nalizados, como: a mulher, o negro, o gay,
mos a tal conclusão porque é sobre isso que
o novo. Dessa forma, pode-se contrastar a
os protagonistas – Santiago e Pérsio – dis-
cultura do subalterno com a cultura domi-
cutem a maior parte do tempo; pelo fato dos
nante (PARADISO; PELINCER, 2007).
personagens se assumirem como homosse-
A partir dos Estudos Culturais surgi-
xuais e ainda revelarem suas experiências
ram os queer studies ou a teoria queer no decê-
amorosas passadas; por eles frequentarem
nio de 1980, nos Estados Unidos, com o ob-
locais de público quase exclusivamente gay
jetivo de analisar a dinâmica da sexualidade
e, ainda, pelo fato de ao final eles termina-
e do desejo nas relações sociais, focando a
rem juntos, o que culmina a relação homoa-
hegemonia como objeto de estudo e análise
fetiva.
crítica, pois as estruturas sociais hegemôni-
Considerando esse assunto central,
cas criam sujeitos como normais e naturais e
torna-se relevante a justificação do uso da
outros perversos ou patológicos (MISKOLCI,
nomenclatura homoerotismo ou homoafe-
2009).
tividade ao invés de homossexualismo nes-
O termo inglês queer pode ser traduzi-
se contexto.
do por ‘estranho’, ‘esquisito’, mas também
De acordo com Costa (1992, p. 11), “ho-
se constitui na forma pejorativa com que
moerotismo é preferível a ‘homossexua-
são designados os homens e mulheres ho-
lidade’ ou ‘homossexualismo’ porque tais
mossexuais. Esta expressão foi escolhida
palavras remetem quem as emprega ao vo-
pelos teóricos pois caracteriza a intenção de
cabulário do século XIX”. Quando o termo
oposição à heteronormatividade, para eles
“homossexual” surgiu na língua corrente da
queer significa colocar-se contra a normali-
época, carregava forte conotação pejorati-
zação da sexualidade (LOURO, 2001).
va, pois o “homossexual” era visto como o

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 49-57, jan/jun. 2012


50 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Confrontos: a homoafetividade e a hegemonia em Pela Noite (1983), de Caio Fernando Abreu

oposto do ideal masculino que a sociedade homossexuais, mas também nos ambientes
burguesa tanto pregava; o uso de tal palavra que frequentam.
reproduz, automaticamente, todo o pre- A minoria homossexual possui, segun-
conceito burguês patriarcal nela embutido do Foucault (2000), essa invisibilidade so-
(COSTA, 1992, p.24). Por tais razões, será cial, pois a classe dominante não os conside-
utilizado o termo homoafetividade ou ho- ra como integrantes do sistema social. Pelo
moerotismo para designar qualquer relação fato de eles terem afinidade com pessoas do
de cunho “homossexual” e, ainda, concorda- mesmo sexo, a hegemonia que é regida se-
-se com a seguinte afirmação de Costa (1992, gundo os padrões cristãos e patriarcais, os
p.21): “homoerotismo é uma noção mais fle- exclui da possibilidade de serem engajados
xível e que descreve melhor a pluralidade em sociedade e reconhecidos como cida-
das práticas ou desejos dos homens same-sex dãos que possuem uma comunidade e uma
oriented. [...] exclui toda e qualquer alusão à identidade.
doença, desvio, anormalidade, perversão”. Para entendermos melhor que o pre-
Em relação à novela, os dois persona- conceito é fruto de um sistema social cris-
gens principais – Santiago e Pérsio – são tão e patriarcal, o qual rege indiretamente
homossexuais e toda a ação da narrativa as atitudes dos personagens homossexuais,
acontece ao redor deles. Ambos já tiveram inicialmente, discutiremos a biografia de
relações sexuais com outros homens. Toda- Caio Fernando Abreu e a fábula de Pela Noite
via, enquanto Santiago viveu relacionamen- (1983).
tos duradouros, todas as relações de Pérsio
foram passageiras e superficiais. Assim, ob- 2. Caio Fernando Abreu e Pela Noite
serva-se que esse personagem nunca nutriu (1983)
um sentimento de amor por outro homem e,
O escritor gaúcho Caio Fernando
além disso, mostra-se contra a possibilidade
Abreu nasceu em Santiago, em 1948. Aos
de existir amor e afeto entre dois homens.
quinze anos sai da cidade e vai para um
Com base nessa contextualização, nos-
internato protestante americano em Porto
so objetivo será analisar como essa atitude
Alegre (ABREU, 1983). Devido ao jornalis-
de Pérsio contrária à homoafetividade está
mo, Abreu vai morar em São Paulo, onde
ligada ao preconceito social que essa ‘mi-
trabalhou como redator e editor por quase
noria’ de gênero sofre. Afinal, os homos-
toda sua vida e integrou a equipe de alguns
sexuais ocupam um lugar marginalizado
importantes jornais e revistas do país. Em
e invisível na divisão de classes, isto é, os
1996, em decorrência de complicações da
gays não possuem seus direitos civis porque
AIDS, Abreu falece (BESSA, 2006).
“não existem” na sociedade, como afirma
Na literatura, Abreu escreveu narrati-
Foucault (2000, p.16): “os homossexuais não
va infanto-juvenil, crônicas, contos, nove-
constituem uma classe social”. Este traba-
las, romances e peças; e foi como contista
lho debaterá esse preconceito, muitas ve-
que mais se destacou e ficou conhecido.
zes sutil, existente não só entre indivíduos

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 49-57, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 51
Karine Passeri, Silvio Ruiz Paradiso

A respeito de sua obra, dizia que, como ele dos personagens principais, Pérsio, se mos-
próprio, ela também caminhava à margem tra em conflito não só com a sua homosse-
da literatura brasileira, porque ele não con- xualidade mas, principalmente, com o fato
seguia se encaixar no campo das letras, de poder existir amor entre dois homens.
principalmente devido à utilização, em seus Logo no início do conto, Pérsio se apre-
textos, de temas conhecidos como malditos senta como possuidor de um conflito inter-
pela sociedade majoritária (BESSA, 2006). no a respeito de quem ele é: “Eu tenho uma
É de acordo com a visão da sociedade sensação meio de amargura, de fracasso.
dominante – machista e patriarcal – que a Você me entende? Como se tivesse a obriga-
temática “maldita” pode ser identificada na ção de ter sido, ou tentado ser, outra pessoa.”
novela Pela Noite (1983); em outras palavras, (ABREU, 1983, p.111). Percebe-se que o per-
o tema central é a homoafetividade, algo sonagem vive um conflito, pois tem a sensa-
rejeitado, mal visto e ignorado pela classe ção de fracassado, ou seja, ele acredita que
dominante. deveria ter sido outra pessoa e não um ho-
A novela relata o reencontro de dois mossexual. Portanto, é fato que Pérsio tem
homossexuais que passaram a infância na problemas com sua homossexualidade, e
mesma cidade, mas nunca tiveram contato isso acontece porque a sociedade patriarcal
nesse período. Certo dia eles se reencontram elege o heterossexual como o modelo a ser
e marcam um encontro para o sábado se- seguido e valorizado, e, consequentemente,
guinte à noite; o que ocorre no apartamento o fracasso do personagem é devido às regras
de um deles. Ambos os personagens utilizam que compõem o sistema social que o colo-
nomes fictícios: Santiago e Pérsio; esses são ca na posição de marginalizado, “perverso”,
escolhidos por eles mesmos e em nenhum “pecador”, “subjugado” e “inferiorizado”.
momento são revelados seus reais nomes. Adiante, o mesmo personagem revela
Após o breve encontro no apartamento um pouco de sua infância e acaba explican-
de Pérsio, eles saem frequentando diversos do a origem de seu conflito:
locais, inclusive alguns de público gay. No
[...] Sabe que quando eu saía na rua as
decorrer da noite, eles começam a relem-
meninas gritavam biiiiiiiiicha! Não,
brar seu passado e a discutir sobre a homoa- não era bicha. Nem veado. Acho que
fetividade, e assim surgem diversas com- era maricas, qualquer coisa assim.[...]
plicações que são resolvidas somente no E eu nem era, porra, eu nem sabia de
amanhecer, com os dois terminando juntos. nada. Eu não entendia nada. Eu era
superinocente, nunca tinha trepado.
Só fui trepar aqui, já tinha quase vin-
3. Confrontos: a homoafetividade e a
hegemonia
te anos. E cheio de problemas, beijava
de boca fechada.[...] Mas não vem ao
Neste tópico, analisaremos como os caso, tudo superado. Ah, tão Maduro
espaços determinam as atitudes dos perso- & Equilibrado. Cinco anos de terapia,
nagens e também os momentos em que um sob controle. (ABREU, 1983, p.153).

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 49-57, jan/jun. 2012


52 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Confrontos: a homoafetividade e a hegemonia em Pela Noite (1983), de Caio Fernando Abreu

Por meio desse outro excerto, pode- sociedade que muitos passam a vida inteira
mos concluir que Pérsio, além de sofrer marginalizados:
muito preconceito ainda jovem, também
[...] o homossexual é duplamente mar-
ficou traumatizado e teve de fazer terapia. ginal. É marginal no sentido de estar,
Observa-se que a sociedade o tratou de for- como a mulher, à margem do centro.
ma tão injusta e o subjugou tanto que isso Mas é marginal, ainda, no sentido co-
deixou marcas para toda sua vida, por isso notativo do termo, na acepção de fora
se sente amargurado e fracassado. Esses da lei, de pervertido, de imoral, de pe-
excertos mostram claramente como a mi- cador. (THOMÉ, 2009, p.22).
noria homossexual é recriminada pelas leis Ao decorrer da trama, os dois persona-
sociais, em que tudo que foge ao padrão é gens principais frequentam diversos locais,
discriminado. e em todas as situações eles estão conver-
É nesse clima entre se exporem como sando e raramente se envolvem com outras
homossexuais ou não que os dois persona- pessoas. Em um dado momento, após San-
gens principais acabam adotando nomes tiago contar que teve um relacionamento
fictícios: “Você vai se chamar Santiago” homoafetivo que durou dez anos, Pérsio
(ABREU, 1983, p.114), e o dono do apartamen- confessa: “Eu nunca consegui ficar mais do
to continua: “Pérsio, de agora em diante eu que um mês transando com a mesma pes-
vou me chamar Pérsio” (ABREU, 1983, p.114). soa” (ABREU, 1983, p.160). Essa afirmação
Com a nomeação, nota-se que eles não rece- de Pérsio mostra que ele, realmente, nunca
beram só um novo nome, mas esconderam conseguiu atingir uma relação sentimental
suas verdadeiras identidades e assumiram amorosa longínqua e estabilizada até o pre-
outra para justificar a relação homossexual: sente, tanto que cita o espaço de tempo em
“Com um nome desses, você pode virar a que transava e não o tempo de afeto. Pouco
noite impunemente [...] sem culpa alguma, depois, ele ainda argumenta que o amor en-
rapaz” (ABREU, 1983, p. 118). Os fragmentos tre dois homens se resume ao sexo, e o que
denotam que a escolha de outro nome é uma o sexo anal é nojento, porque faz-se pelo
metáfora, a qual significa que na esfera so- mesmo canal em que se eliminam as fezes
cial os homossexuais não podem revelar-se do corpo. Desta forma, esse personagem vê
como realmente são, pois a heteronormati- o relacionamento entre homens como algo
vidade acaba “obrigando-os” a assumirem repugnante (ABREU, 1983, p.164).
duas personalidades, ou seja, durante o dia Vale lembrar que tanto Pérsio quanto
ou no decorrer do trabalho, eles devem se Santiago assumem-se como homossexuais,
apresentar como homens heterossexuais, de o que fica explícito nas palavras:
acordo com o padrão vigente, e à noite, ou às
O que você quer que eles pensem de
escuras, eles assumem a identidade homos-
nós, de mim, aqui, a teus pés? E em
sexual – daí o título da novela – Pela Noite; é
qualquer das hipóteses as mammas
devido a todo esse preconceito existente na cutucarão seus maridos ruins de cama

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 49-57, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 53
Karine Passeri, Silvio Ruiz Paradiso

repetindo baixinho, escandalizadas, Logo após seus questionamentos,


guarda, amore, questi belli ragazzi, Dio Pérsio chega a uma conclusão sobre o in-
mio, veados. (ABREU, 1983, p.150). divíduo gay:
Além disso, sabe-se também que Pér- Pois parece assim. Uma maldição.
sio não simpatiza com o sexo feminino “Eu Para sempre. Só acaba quando ampu-
não gosto de mulher. Até já transei, mas não tam os pés da moça. Quando você per-
sinto nada” (ABREU, 1983, p.166), porém, de um pedaço? Quando você se anula?
esses fatores não o impedem de sentir asco Quando você renuncia e nunca mais
trepa? (ABREU, 1983, p.166).
pelo modo mais recorrente nas relações
sexuais entre homossexuais masculinos: o Nesse fragmento vê-se a presença de
coito anal. outra metáfora a respeito de uma maldição
Esse ponto de vista de Pérsio, de que o dos homossexuais; é como se a soberania –
amor entre homens é nojento, constitui, na que determina as leis – tivesse amaldiçoado
verdade, a visão da sociedade cristã e ma- ou condenado todos os homossexuais, e eles
chista; pois é a hegemonia social que prega só se livrariam dessa maldição se renuncias-
que qualquer manifestação homossexual sem ao sexo com outros homens. Na reali-
é considerada perversa e nojenta. Pode-se dade, sabemos que é isso o que verdadeira-
dizer nojenta, pois a supremacia a vê como mente acontece, pois, como afirma Thomé
algo sujo, ilícito, de acordo com parâmetros (2009), o homossexual é marginalizado,
religiosos e morais construídos a partir de mas se ele deixar de ser o que é e se tornar
ideologias dominantes até então. Durante um “heterossexual”, ele entra em sintonia
séculos, o sexo anal foi chamado de sodo- com o padrão e deixa de ser inferiorizado.
mia, em alusão à cidade bíblica de Sodoma, Santiago e Pérsio ainda discutiam so-
na qual o magistério cristão, alegava que tal bre a homoafetividade entre homens, quan-
prática ocorria, sendo assim a cidade por do Pérsio comenta sobre o amor e sobre si:
Deus castigada (Gênesis, cap. 19), reforçan-
do a ideia de ser considerado algo contrário Mas e isso que falavam, amor? Essa
sua história, eu não conheço. Eu só
à vontade divina. O pesquisador brasilei-
tive vislumbres, parecia prometido,
ro Luiz Mott (2010) considera que a sodo-
preparado. E nunca aconteceu. Eu
mia homossexual sempre teria sido muito nunca consegui, eu nunca fui capaz,
mais reprimida que a heterossexual (qual- deve ser culpa minha. Ah, que banal.
quer relação sexual que não levasse à pro- Até que ponto as circunstâncias não
criação), por serem dois homens a desper- me favoreceram, ou eu é que não fa-
diçarem o esperma, indo contra os projetos voreço as circunstâncias? (ABREU,
expansionistas, tanto de judeus, como cris- 1983, p.166).
tãos e muçulmanos, como por representa- Nesse momento, Pérsio deixa trans-
rem um estilo de vida incompatível com o parecer que, na verdade, nunca conse-
modelo de família patriarcal (MOTT, 2010). guiu amar outro homem e, decepcionado,

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 49-57, jan/jun. 2012


54 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Confrontos: a homoafetividade e a hegemonia em Pela Noite (1983), de Caio Fernando Abreu

assume toda a culpa pelo fato. Após isso, diado [...] cheio de criancinhas barulhentas”
Santiago argumenta que o amor vai além (ABREU, 1983, p.149). A partir dessas falas,
da higiene e do nojo e, segundo ele, isso é percebemos que a pizzaria é caracterizada
uma criação da sociedade burguesa e cristã como “normal” porque é um ambiente de
(ABREU, 1983, p.168). Quando Santiago ter- público heterossexual, mostrando isso que
mina sua explanação sobre o amor, Pérsio até os próprios personagens gays têm (pré)
se conscientiza do verdadeiro culpado pela conceito contra si, pois quando ele afirma
sua incapacidade de amar: “O meu proble- que aquilo é normal, quer dizer que eles não
ma é um problema juvenil, de adolescente são normais, uma imagem criada pela so-
enrustido. Ou de burguesinho que fez a pri- ciedade hegemônica.
meira comunhão e vai se sentir eternamen- Nesse espaço “normal” surge Carli-
te culpado com a possibilidade do prazer” nhos, um conhecido de Pérsio, o qual se
(ABREU, 1983, p.169 – grifo nosso). Aqui comporta o mais polidamente possível:
Pérsio confessa que veio de uma família “Carlinhos curvou a cabeça. Fez um ar tar-
burguesa e que foi educado de acordo com o diamente polido de não-quero-interrom-
cristianismo. Temos, portanto, a certeza de per-nada-entre-vocês, apertou a mão de
que o que gera nele a dificuldade em amar Santiago, levemente cúmplice, e foi saindo
outros homens e também de sentir prazer entre as mesas.” (ABREU, 1983, p.163). Todo
nas relações é a sua educação de acordo com esse comportamento educado e tímido de
a heteronormatividade. Assim, percebe-se Carlinhos entra em choque com as suas
mais uma vez que a sociedade cria regras próprias atitudes que se estabelecerão num
discriminatórias para com as minorias ho- outro espaço, no bar Deer’s, que é um local
mossexuais, transformando-os em pessoas destinado ao público gay:
naturalmente aptas a subverter moralmen-
Não quero interromper nada. – Car-
te a sociedade (COSTA, 1992, p.46).
linhos estendeu a mão para os copos.
Há na narrativa também outros con- – Posso dar um gole? [...] Desculpa eu
textos que deixam transparecer como o ser indiscreto, longe de mim, mas.
sistema majoritário influencia o comporta- Vocês são caso? [...] Aliás, meu bem,
mento dos homossexuais nas mais diversas me dá licença de dizer. De muito bom
situações. Neste caso, o espaço é algo impor- gosto, os dois. Umas gracinhas, uns
tante de ser pontuado no decorrer da trama. gatinhos. Sabia que vocês são lindos?
Pérsio e Santiago foram a uma pizza- – Bebeu outro gole de vinho. E debru-
çou-se na mesa. – Ah, deixa de onda,
ria: “Daqui a umas seis quadras tem uma
qual é? Conta logo, vai. Vocês são mes-
pizzaria absolutamente normal” (ABREU,
mo caso? (ABREU, 1983, p.182).
1983, p.145), e depois o narrador contex-
tualiza mais esse espaço: “Santiago olhou Nesse momento fica nítido o contraste
em volta. Localizou três mocinhas feias na entre as atitudes de Carlinhos na pizzaria e
mesa ao lado e, mais além, um casal ente- no bar, ou seja, quando ele está num espaço

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 49-57, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 55
Karine Passeri, Silvio Ruiz Paradiso

de público hétero, tenta manter a imagem Nas últimas linhas, o amor entre eles
de um homem heterossexual, mas, a partir é concretizado com as palavras: “Provaram
do momento que ele se encontra no “gueto” um do outro, no colo da manhã. E viram que
– bar – ele se sente livre para agir da forma era bom.” (ABREU, 1983, p.210). Esse térmi-
que desejar. Costa (1992) discorre sobre os no mostra que a homoafetividade, apesar de
guetos: ser um obstáculo na vida de muitos homos-
sexuais, é uma conquista possível, ou seja,
O gueto é formado por um circuito
ela pode ser atingida por todos que real-
de locais de encontro exclusivo de ho-
mossexuais, que vão de praias a pon- mente desejam e acreditam no amor entre
tos de prostituição masculina. Nesses homens ou no amor entre mulheres e seus
locais, alguns extremamente sórdi- iguais.
dos, os indivíduos gozam da “liberda-
de” que a discriminação permite. Mas,
4. Conclusão
justamente por tratar-se de uma li-
berdade vigiada e concedida, carrega Concluímos que Pérsio, por ser trau-
todas as sequelas do preconceito. Os matizado pela discriminação e pelo precon-
sujeitos sabem, mesmo quando não ceito da sociedade, possui problemas em
explicitam, que a liberdade vivida no
aceitar a homoafetividade, pois inicialmen-
gueto é precária e, num certo sentido,
artificial. (COSTA, 1992, p.96).
te ele se mostra completamente contrário
à possibilidade de haver o sentimento do
Observa-se que a classe homossexual amor entre dois homens; entretanto, com
é vista com muito preconceito, já que nem o desenlace da trama, ele acaba se apaixo-
nesses lugares restritos tem-se real liberda- nando pelo amigo Santiago, e ambos vivem
de; a busca por locais ou situações privadas e passam a acreditar nesse amor como algo
de preconceito é um objetivo utópico em re- possível de ser realizado.
lação à sociedade vigente. Além disso, pode-se inferir que o sis-
No final da novela, o foco volta para os tema social vigente realmente trata os ho-
personagens; e Pérsio mostra certa supera- mossexuais com muito desprezo e discri-
ção a respeito de sua incapacidade de amar, minação, e um exemplo disso é a formação
o que fica claro na seguinte fala direciona- de guetos, locais onde os gays tentam buscar
da a Santiago: “Eu gosto de você, eu gosto uma liberdade de expressão, mas ainda as-
tanto de você, garoto. Me dá outra chance. sim, o fato desses lugares serem à parte do
Me deixa guiar a nossa noite.” (ABREU, restante da sociedade, só ratifica a existên-
1983, p.187). Nessa afirmação, nota-se que o cia da discriminação e do preconceito.
personagem conseguiu transgredir todas as
“leis” socialmente impostas e todo o precon- Referências
ceito existente e que, portanto, está come-
çando a amar um outro igual. ABREU, Caio Fernando. Triângulo das águas.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 49-57, jan/jun. 2012


56 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Confrontos: a homoafetividade e a hegemonia em Pela Noite (1983), de Caio Fernando Abreu

BESSA, Marcelo Secron. Melhores contos:


Caio Fernando Abreu. São Paulo: Global, 2006.
COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício:
estudos sobre o homoerotismo. 3 ed. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1992.
FOUCAULT, Michel. Um diálogo sobre os
prazeres do sexo. BARRETO, Jorge Lima;
CUPERTINO, Cristina Guimarães (Trad.), São
Paulo: Landy, 2000.
LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma
política pós-identitária para a educação.
Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.
9, n. 2, p. 541–553, 2001.
MISKOLCI, Richard. A teoria queer e a
sociologia: o desafio de uma analítica da
normatização. Sociologias, Porto Alegre, v. 11,
n. 21, p. 150–182, jan./jan. 2009.
MOOT, Luiz. Revolução homossexual: o
poder de um mito. Disponivel em: <http://
culturagay.planetaclix.pt/>. Acesso em: 21 jul.
2010.
PARADISO, Silvio Ruiz; PELINCER, Edilaine.
Estudos Culturais: o boom teórico para as
literaturas pós-modernas [apostila]. In:
SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR DE
EDUCAÇÃO, 5, 2007, Maringá. Mini curso.
Maringá: Centro Universitário de Maringá,
2007. p.1-14.
THOMÉ, Ricardo. Eros proibido: as ideologias
em torno da questão homoerótica na literatura
brasileira. Rio de Janeiro: Nova Razão Cultural
Editora, 2009.

Recebido para publicação em 29 out. 2010.


Aceito para publicação em 19 jan. 2011.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 49-57, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 57
doi: 10.5212/Uniletras.v.34i1.0005

Literatura e intelectualidade: as facetas


intelectuais na obra Vida e Morte de M. J.
Gonzaga de Sá, de Lima Barreto

Literature and intelectuality: the


intelectual facets in the novel Vida e Morte
de M. J. Gonzaga de Sá, Lima Barreto
Cristiano Mello de Oliveira*

Resumo: O romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, de Lima Barreto, apresenta


diversas passagens que apontam características da faceta intelectual e erudita
do protagonista Gonzaga de Sá. O escritor compôs um verdadeiro amálgama de
situações que evidenciam as muitas leituras alusivas a variados escritores de época,
assim como demonstra grande capacidade para inventariar inúmeros afazeres
e gostos que denotam a opção intelectual desses homens. Primeiramente, iremos
fazer uma análise no sentido de promover uma introdução do objeto e montarmos
a nossa problemática. Num segundo momento, pretendemos esboçar algumas
das principais particularidades do romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá.
Num terceiro momento, desenvolveremos a análise dos fragmentos selecionados
buscando identificar aqueles que mais evidenciem a temática do sujeito intelectual.
Como lastro teórico, iremos dialogar parcialmente com: Sartre (1994), Bobbio (1996)
e Said (2008), cada qual ao seu modo. A contribuição desse artigo visa despertar
novas pesquisas sobre uma obra literária pouco lembrada pela crítica literária.
Palavras-chave: Intelectual. Literatura Brasileira. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá.
Lima Barreto.

Abstract: The book Vida e Morte de M. J. Gonzaga (Life and Death by M. J. Gonzaga)
de Sá has many passages that represent features of the intellectual and scholar
protagonist Gonzaga de Sá. The writer Lima Barreto wrote a true amalgam of
situations that indicate the readings of many writers of the time as well a great
capacity to record the affairs and tastes that demonstrate the intellectual choice of
these men. First, an analysis is done in order to introduce the object of study and
the problem. Next, some of the main peculiarities of the romance Vida e Morte de M. J.
Gonzaga de Sá are outlined. The third step is the analysis of the fragments selected

* Mestre em Literatura pela UFSC, doutorando em Literatura pela UFSC, pesquisador CNPQ. E-mail: <literariocris@
hotmail.com>.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 59
Cristiano Mello de Oliveira

in order to identify those that best depict the thematic of the intellectual subject.
The article develops a theoretical dialogue with Sartre (1994), Bobbio (1996) and Said
(2008). The paper aims to stimulate further research about a literary work that has
received little attention from literary criticism.
Keywords: Intellectual. Brazilian Literature. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Lima
Barreto.

1. Alguns pressupostos É difícil escapar à tentação de


esmiuçar os escritos de Lima Barreto, o
O crítico literário e também romancis-
qual, possuidor de uma imbatível retórica
ta Osman Lins, no seu livro Lima Barreto e o
militante e de um estilo um tanto de caráter
espaço romanesco (1978), especificamente no
social, mesmo no desempenho frenético
capítulo VII, intitulado “Vida e Morte de M. J.
de ser cronista de jornal de época, sabia
Gonzaga de Sá”, aponta a relevância de com-
fisgar novos leitores e compor a sua ficção
preender a obra de Lima Barreto, quando
em plena República Velha. Podemos crer,
diz: “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá ofe-
quando o assunto é levantar alusões às obras
rece aspectos os mais atraentes ao amador
lidas e consultadas, que Lima atinge um
de ficção, capaz de perceber certas soluções e
grau bastante satisfatório, tendo em vista
singularidade” (LINS, 1978, p.113). Trata-se de
as variadas fontes de que se embebeu o seu
erudição coberta de preocupações literárias
discurso romanesco. “A habilidade de Lima
instigantes e, ao mesmo tempo, constitui
Barreto em trabalhar com dados históricos
uma excelente sugestão investigativa para
é admirável. Em poucas linhas ele situa o
valorizarmos novas perspectivas da ideologia
leitor em uma realidade histórica rica que
barretiana. Embora Osman Lins, autor de vá-
se esconde por trás de toda a atmosfera
rios romances privilegie, em sua abordagem,
de mistificação que envolve o conto.”
elementos que caracterizam o espaço roma-
(MARINS, 2004, p.226). O escritor carioca
nesco dessa obra, assim como as possíveis
era frequentador assíduo da Biblioteca
ligações com o contexto histórico da cidade
Nacional e um contumaz leitor dos
do Rio de Janeiro (assunto que o pesquisador
compêndios universais de filosofia, história
retoma ao longo de algumas páginas), perce-
universal e literatura. Não foi à toa que o
be-se que seu texto oferece vários desdobra-
seu último e póstumo livro Diário no Hospício
mentos que buscam o alicerce daquilo que
recebeu fortes influências e correlações da
será a característica primordial na feitura do
obra Recordações da Casa dos Mortos (2008),
personagem Gonzaga de Sá: “O interesse de
do escritor russo Fiodor Dostoievski. E
Gonzaga de Sá pelo estudo é também intro-
resta destacar que Lima foi uma espécie
duzido como um traço favorável da sua per-
de intelectual autodidata e canalizador
sonalidade […]” (idem, p.114). Em suma, é a
de muitos projetos culturais (linguagem
partir desse mote enviesado que iremos para
suburbana, estilo caricato e cômico, entre
uma análise mais direcionada.
outros) que antecipou muito daquilo

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan/jun. 2012


60 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Literatura e intelectualidade: as facetas intelectuais na obra ...

que outros escritores confeccionaram de Sá decorre na cidade do Rio de Janeiro,


posteriormente nos seus romances. onde nasceram e residem as personagens
A obra Vida e Morte de M. J. Gonzaga de centrais.” (LINS, 1978, p.118). Enfim, o ro-
Sá (BARRETO, 1969d), escrita no ano de 1918, mance apresenta muitos tópicos históricos
impõe um olhar mais aguçado do pesquisa- e sociais ao clima intelectual de época.
dor aos tipos intelectuais que formulam a Na verdade, o protagonista Gonzaga
conjuntura desse acurado romance. Publi- de Sá perfaz aquele individuo que valoriza
cada no ano de 1919 pelo escritor e editor as crenças intelectuais, o culto à sabedo-
Monteiro Lobato, a narrativa é, grosso modo, ria como fator de crescimento espiritual.
toda investida de lances memorialísticos e Novamente teremos as palavras de Osman
alusivos ao contexto histórico e social do úl- Lins: “Gonzaga de Sá, livro acentuadamen-
timo quartel do século XIX e do primeiro do te intelectual, nada tem entretanto de um
século XX. No decorrer dos acontecimentos romance de tese, nada quer provar, não se
que entremeiam o romance são realizados resolve ao longo de suas páginas equação
intensos diálogos entre Gonzaga de Sá e o nenhuma.” (idem, p.116) Sá é devoto das
narrador Augusto Machado1. A obra não pos- crenças populares, das aproximações do
sui um enredo muito bem definido, e tudo povo e ao mesmo tempo muito desconfia-
acaba girando em torno da personalidade do do casamento acabado e ajeitado pela
e das vontades particulares do personagem sociedade. Paradoxalmente, Sá se apegava
autocentrado Gonzaga de Sá. Muitos desses ao universo religioso por voluntariedade e
conflitos são narrados pelo seu fiel amigo a proximidade com Deus sem pretensão de
Augusto Machado de maneira filosófica, ser reconhecido pelo público fiel da própria
buscando questionar a sobrevivência de um igreja, ou seja, era um homem “antimonás-
homem espiritual no meio de uma socieda- tico”. De igual modo, Sá faz aquele tipo de
de absurda e incoerente com seus próprios personagem que busca uma contemplação
princípios. O romance possui como cenário nos livros e na sabedoria enciclopédica tão
a oleogravura dos variados rincões da cidade pregada pelo famoso protagonista Policar-
do Rio de Janeiro, ou seja, a pintura é fértil e po Quaresma. Em suma, o protagonista
o olhar sempre demasiadamente imagético é um contumaz leitor de variados livros e
e genuíno, pois Lima acrescentara com sua revistas importadas, buscando ser aquele
criativa imaginação toques de grande sensi- homem de letras que direciona sua vontade
bilidade aos seus escritos. “Todo o Gonzaga para algo inalcançável, messiânico e quase
utópico. Para começar, pertence à Secreta-
1 O trecho adiante esclarece o inicio da decisão do ria dos Cultos2, espécie de local burocrático
narrador Augusto Machado em contar os fatos da
vida do protagonista: “De Gonzaga de Sá, vou contar-
-lhe as suas cousas íntimas e dizer-lhes, antes de tudo, 2 O fragmento que segue marca muito bem a carac-
como morreu, para fazer bem ressaltar certos trechos terização dessa distinta secretaria: “Pouca gente co-
e particulares que serão mais tarde contados, de sua nhece a Secretaria dos Cultos e tem notícia dos seus
bela obscuridade. Narremos os fatos.” (BARRETO, serviços. É de admirar que aconteça isso, porquanto,
1969d, p.38) penso eu, se há secretaria que deva merecer o respeito

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 61
Cristiano Mello de Oliveira

onde muitos partícipes apreciam o hábito transmissores de conhecimentos que vanta-


exagerado da leitura e da procura por mate- josamente serviram o protagonista Gonza-
riais inéditos sobre vários assuntos. ga de Sá no decorrer de suas longas etapas
Pesquisar; ler; conhecer; analisar; ob- de sua vida espiritual. “Pelo livro, acompa-
servar; examinar; provavelmente esses se- nhava o movimento das letras pátrias, com
riam os verbos mais utilizados pela pena de vivo interesse mas sem paixão. Lia o Figaro
Lima Barreto durante esse intenso relato da e repetia, em francês e de cor, várias pilhé-
vida do protagonista Gonzaga de Sá, através rias do Masque de Fer.” (ibidem) Mesmo
das andanças pela cidade do Rio de Janeiro. pela tamanha curiosidade intelectual dos
O questionamento brota espontaneamen- livros lidos, Gonzaga de Sá e seus confiá-
te: como sobrepor tantos estudos e conhe- veis meios culturais não deixaram ou não
cimentos buscando uma aproximação com isolaram a possibilidade de expandir seus
a sociedade de época? Revistas nacionais e vastos conhecimentos para com os seus pa-
importadas, jornais, livros, compêndios, ca- res. Enfim, utilizar com vasta curiosidade
dernos de anotações são os variados meios esses meios culturais como fonte de conhe-
culturais para percorrer esse itinerário in- cimento e inspiração sem ao menos almejar
telectual serpenteado tão cansativo e longo. o título de doutor significava para Gonzaga
“O Rio de Janeiro oferecia pois um campo escapar das vaidades humanas burguesas,
ímpar de atuação dos intelectuais em um deixando de lado o reconhecimento e a no-
país pobre e quase que totalmente analfa- toriedade. Em suma, Gonzaga pavimenta
beto.” (SEVCENKO, 1983, p.94). Nesse sen- ao longo desse caminho espiritual as con-
tido, nas leituras das revistas importadas tradições sociais de época estabelecidas na
francesas, magazines em língua estrangei- cidade do Rio de Janeiro, buscando uma
ra, Gonzaga de Sá, com sua alma erudita, possível solução para a libertação de seus
alimenta boa parte do percurso de sua vida méritos, tanto para a sua satisfação pessoal,
e repousa no descanso do seu pensamento, tanto para o acervo cultural nacional.
nos mais variados episódios e acontecimen- O pesquisador Marcos Vinícius Scheffel,
tos, buscando levantar profundos aspectos na sua tese de doutorado Estações de passa-
culturais. “Gostava Gonzaga de Sá muito gem da ficção de Lima Barreto (2011), aborda as
de revistas. […] Assinava a Revue, o Mercu- crônicas e os escritos da intimidade de Lima
re, a Revue Philosophique; mas, de todas, a Barreto com o romance Vida e Morte de M. J.
Revue des Deux Mondes é a que mais queria Gonzaga de Sá. No acurado estudo, Scheffel
e citava.” (BARRETO, 1969d, p.51). busca rastrear as principais pistas conti-
Ora, possivelmente foram mais de cin- das nesses escritos, focando nas possíveis
co livros lidos arduamente desses distintos relações contidas no romance, consequen-
meios culturais, mas, ao mesmo tempo, temente envergando para perquirir sobre a
fortuna crítica de Lima Barreto. A pesquisa
e a consideração da nossa população é a dos cultos”.
de Marcos Scheffel faz uso de uma gama ex-
(BARRETO, 1969d, p.35). traordinária de estudiosos. Dentro do nosso

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan/jun. 2012


62 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Literatura e intelectualidade: as facetas intelectuais na obra ...

raciocínio, o autor esmiúça e reitera alguns nuanças literárias que fizeram parte do fre-
teóricos importantes sobre tal assunto, des- nético expediente de ambos os escritores,
de Osman Lins e Sonia Brayer, passando por buscando evidenciar que tanto a História
Nicolau Sevcenko, atravessando Carlos Fan- quanto a Literatura caminham no mesmo
tinati, entre outros importantes, para com- percurso narrativo. Ao concluir suas análi-
preensão do tema. Acentuando os entraves ses sobre o contexto dos séculos XIX e XX,
criados por alguns teóricos, problematizan- Sevcenko escreve: “Os fenômenos históri-
do algumas leituras, ele delineia as reflexões cos se reproduziram no campo das letras,
mais expressivas, como exemplo, a questão insinuando modos originais de observar,
da intimidade do autor carioca, mote espe- sentir, compreender, nomear e exprimir.
cífico de sua investigação e envergamento [...] Poucas vezes a criação literária esteve
epistemológico de sua tese. De igual modo, tão presa à própria epiderme da história
ele escolhe como objeto de análise os des- tout court.” (SEVCENKO, 1983, p.30). Ao que
dobramentos teóricos de Walter Benjamin, tudo indica, o estudioso deixa nítido que
João Hernesto Weber, entre outros. Uma o fio condutor do seu raciocínio é mostrar
reflexão do estudioso se faz importante na como que a literatura caminha em passos
sua tese atendendo a pertinência aqui es- estreitos com a história, uma influencian-
tabelecida nesse artigo. “Em Vida e Morte, do a outra, buscando diluir ao máximo suas
a comparação com os fragmentos do Diá- fronteiras, fazendo uma favorável interação
rio é produtiva já que o romance incorpora com o público leitor.
dados típicos das leituras praticadas por A aproximação do texto romanesco
Lima Barreto e chega ao limite extremo de com personagens intelectuais sempre foi
agregar objetos da ‘coleção’ do autor à sua motivo para grandes escritores continua-
estrutura final.” (SCHEFFEL, 2011, p.31). rem escrevendo e se entusiasmando cada
Outra contribuição sobre a perspectiva vez mais com seus projetos literários. Ro-
do contexto histórico vivenciado por Lima mance com toques eruditos e ao mesmo
Barreto, temos no acurado ensaio Literatu- tempo manejado com o espírito criativo,
ra como missão (1983), de Nicolau Sevcenko, fortalecera o louvor de muitos romancistas
que estuda as obras dos escritores Euclides que pregavam uma pureza mais sofisticada
da Cunha e Lima Barreto para descrever para o enredo de suas obras ficcionais. Na
problematicamente como se entrecruzam literatura brasileira uma safra de escritores
a prosa desses dois intelectuais. O espaço ousou implementar fatores intelectuais no
da Primeira República, repleto de aconte- bojo das suas personagens, evidenciando
cimentos importantes conjugados com a também os seus gostos eruditos. Machado
densa modernidade em expansão na cida- de Assis confeccionou citações eruditas,
de do Rio de Janeiro, é o pano de fundo da passagens bíblicas, imaginações frutíferas,
análise de Nicolau Sevcenko. Historiador através do gosto e da fala de suas persona-
contumaz e perspicaz, Sevcenko aborda as gens nos seus contos e romances. “Machado

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 63
Cristiano Mello de Oliveira

buscava um público leitor ainda em forma- cartórios, servindo de testemunha, quando


ção e que tinha muitas restrições ao inci- era preciso, indo comprar estampilhas, etc.,
piente romance nacional. [...] Com Lima não etc.” (BARRETO, 1969a, p.23) – relata o narra-
foi diferente. Dirigindo-se a uma gama de dor descrevendo as habilidades intelectuais
leitores mais diversificada e incluindo em do personagem. No romance Recordações do
seus textos personagens de estratos sociais Escrivão Isaías Caminha teremos o persona-
mais amplos, o escritor fez uso da língua gem Isaías buscando aprimorar os seus co-
portuguesa mais condizente com seus lei- nhecimentos para construir um futuro mais
tores/personagens.” (MARINS, 2004, p.215- próspero como migrante na cidade do Rio
216). Isto é, as semelhanças e as diferenças de Janeiro. “Dediquei-me açodadamente
servem para angariar as possíveis hipóteses ao estudo. Brilhei, e com o tempo foram-se
que podem ser refletidas sobre tais escrito- desdobrando as minhas primitivas noções
res, tarefa importante para uma aprofunda- sobre o saber.” (BARRETO, 1969c, p.02). Por
da pesquisa. Por outro lado, de forma relati- último e exceção àquilo que aqui estamos
va, Lima Barreto focaliza personagens que exemplificando, no romance Numa e Ninfa
possuem notórios conhecimentos eruditos observamos o personagem Numa envolvido
e intelectuais, observaremos que estes apa- com uma série de artifícios para fingir ser
recem nos seus quatro romances, buscando um intelectual atento: “Numa com a sua ir-
evidenciar uma vontade espiritual ao culti- remediável preguiça mental nem ao menos
var leituras e os hábitos de guardar livros na os autores que citava lia e deles compreendia
sua residência. alguma coisa. A sua atonia de inteligência
Uma breve digressão elucidativa faz-se requeria uma artificial alimentação intelec-
necessária e urgente: a galeria dos perso- tual e esta ainda não havia sido inventada.”
nagens de Lima Barreto ilustra e ecoa bem (BARRETO, 1969b, p.100), escreve o narrador
aquilo que aqui estamos buscando exempli- ironizando a má vontade e inércia erudita de
ficar: o romance Triste Fim de Policarpo Qua- Numa em relação aos estudos.
resma apresenta de maneira irônica o perso- O presente artigo visa a investigar o
nagem Policarpo Quaresma evidenciando a acervo intelectual do personagem Gonzaga
sede de manter em sua residência um acer- de Sá como fator preponderante da sua re-
vo grandioso de livros. “Sentado na cadeira presentação literária. Pretendemos ao longo
de balanço, bem ao centro de sua biblioteca, desse percurso rastrear os principais liames
o major abriu um livro e pôs-se a lê-lo à es- do enredo dessa significativa obra seguindo
pera do conviva.” (BARRETO, 2004, p.20), a trilha do acervo intelectual, basicamen-
escreve o narrador barretiano evidenciando te seguindo a personalidade intelectual
a natureza intelectual do protagonista Ma- de Gonzaga de Sá: cultivo ao conhecimen-
jor Quaresma. Já no romance Clara dos Anjos, to, vontade de aprimoramento constante,
teremos o personagem Doutor Praxedes: caráter da denúncia social, do intelectual
“Por tê-la assim, julgou-se uma inteligência, combatente, da erudição e sede insaciável
um grande advogado, e pôs a frequentar de adquirir conhecimentos humanísticos.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan/jun. 2012


64 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Literatura e intelectualidade: as facetas intelectuais na obra ...

Embora haja uma fortuna crítica sobre esta sabe como nenhum outro homem as varia-
obra, nenhuma se dispõe a analisá-la sob das vaidades do próprio amigo, ora faz uma
esse prisma tão original e profícuo. Diante alternância entre as lembranças, ora sobre
de tal perspectiva, possivelmente podemos as profundas reflexões. A esse respeito, “A
orquestrar a seguinte problemática: como o causa mais importante, todavia, prende-se
narrador barretiano consegue articular com à natureza mesma do romance, circunscrito
tamanha habilidade toda essa conjuntura à descrição dos encontros e deambulações
erudita nas suas personagens? Por que Gon- de Gonzaga e Machado através do Rio de
zaga de Sá desejou ser um homem culto e as- Janeiro, à transcrição do que pensam so-
pirante das coisas de espírito? Quais seriam bre a vida e a morte [...]” (LINS, 1978, p.128),
os trechos que evocam o enlace intelectual na observa Osman Lins. Por outro lado, o nar-
obra Vida e Morte de M. J. Gongaga de Sá? Como rador Augusto Machado, de caráter extre-
é formado o escopo das principais caracte- mamente social, ao oposto do protagonista
rísticas (aspectos linguísticos, históricos, Gonzaga, que era uma pessoa com caráter
denúncia social, aspectos urbanísticos da relacionado à própria situação da morte e
cidade do Rio de Janeiro) desse distinto ro- à decadência, está preso à própria vida. Ao
mance? Como poderíamos interpretar esses contrário do fiel amigo que sempre buscou
diversos fragmentos? Como esses fragmen- o isolamento como forma de comungar seu
tos se articulam e se desenvolvem no enredo conhecimento durante sua vida de funcio-
da obra? Como o lastro teórico desenvolvido nário público e silenciou-se em sua eru-
durante a análise dos fragmentos pode sofis- dição, o narrador Augusto Machado quer
ticar e clarificar a interpretação? Por último, fortalecer seus meios sociais e consequen-
quais seriam as contribuições intelectuais de temente manter contato com seus pares.
Gonzaga de Sá para a sociedade carioca de Enfim, o substrato intelectual encontrado
época? Ao longo desse percurso tentaremos e refletido em ambos os personagens desse
responder essas indagações que se articula- romance é material que merece uma inves-
rão como fio problematizador e ao mesmo tigação mais aprofundada.
tempo condensador de tais considerações. Seguindo um raciocínio interessante
teremos o livro Lima Barreto e o fim do sonho
2. Características da obra Vida e Morte republicano (1995), da pesquisadora Carmen
de M. J. Gonzaga de Sá Lúcia Negreiros de Figueiredo. Canalizan-
do seu objeto de estudo no contexto políti-
O ilustre narrador Augusto Machado
co republicano, especulando com grandes
resolve narrar à história do seu grandioso
resultados, na explanação da obra barre-
amigo Gonzaga de Sá e expor ao público lei-
tiana, a estudiosa compõe um verdadeiro
tor suas lembranças de natureza biográfica
mosaico bibliográfico explicativo. A autora
e intelectual. Ao que tudo indica, Augusto é
logo na introdução faz uma advertência,
aquele tipo de pessoa que admira muito o in-
em que salienta a importância de estudar
separável companheiro Gonzaga. O mesmo

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 65
Cristiano Mello de Oliveira

a obra do romancista carioca sem cair nas Pão de Açúcar dissolvia-se nas massas ondas
tentações de cunho biográfico do próprio da enseada.”; “O mar espelhajante e móvel
autor. O binômio humor/caricatura aparece realçava a majestade e a firmeza da serrania
demasiadamente nas suas reflexões eviden- e, em face da sua suntuosidade...”; “O poeta
ciando uma forte preocupação de Carmen tinha razão; era verdadeiramente a grandio-
em esclarecer tal perspectiva, apresentando sa Guanabara que eu via!” (BARRETO, 1969d,
várias exemplificações condizentes com o p.39). Não obstante, os aspectos contempla-
estilo da escrita barretiana. tivos citados nos escritos de M. J. Gonzaga de
Sá extraem a genialidade literária e linguís-
As reflexões feitas por Gonzaga de
tica amalgamando os elementos poéticos do
Sá demonstram que, de um modo
tão convincente quanto um filme romancista carioca. Em suma, uma série de
com o seu ilusionismo, a realidade incrustações ousadas que partem da simpli-
criara signos nos quais se projetam cidade do lado artístico e finaliza na obser-
os atributos da personalidade hu- vação da vida do Rio de Janeiro tão amada de
mana. (FIGUEIREDO, 1995, p.80). Lima Barreto e suas personagens.
Outro aspecto relevante da linguagem
Compartilhamos com o fragmento da
poética entrelaçada aos fatos históricos de
estudiosa que de forma acurada consegue
época seria o apelo aos dados e datas de um
angariar novas formas de enxergar o perfil
verdadeiro compêndio do Brasil. Episódios
interpretativo do protagonista do roman-
que revelam o forte apoio documental e as
ce. Portanto, o conteúdo exercitado pela
crônicas daquele período que terminam su-
pesquisadora não chega a aprofundar tais
mariamente ou mesmo iniciam alguns des-
dilemas da personalidade do protagonista
ses escritos literários de M. J. Gonzaga de Sá.
Gonzaga, que seriam extremamente impor-
Por esse motivo as linhas ficcionais de Lima
tantes para a investigação de outros estu-
Barreto ficam sempre guarnecidas de um
diosos no assunto.
espírito original e criativo de fazer literatu-
Reticências à parte, no âmbito da
ra histórica. Ao leitor mais conhecedor do
linguagem poética e do máximo das ri-
estilo e da própria linguagem do romancista
cas potencialidades da língua portuguesa
carioca é comum verificar nessas passagens
aplicadas à paisagem exótica e exuberante
um profundo grau de conhecimento de ou-
da cidade do Rio de Janeiro, Lima Barreto
tras obras, assim como a prosa inovadora de
explora densamente tudo isso no seu M. J.
um escritor ousado e determinado a “quei-
Gonzaga de Sá. A começar pela variedade de
mar os seus navios”.3 Diversas passagens do
detalhes pitorescos da poética Baía de Gua-
romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá
nabara: “[...] calma face da Guanabara, ligei-
ramente crispada, naquela hora de efusão e
confidência.”; “Villegagnon boiava na pla- 3 Expressão contida na palestra “O destino da Literatu-
ra”, proferida na cidade de Mirassol, interior de São Pau-
cidez das águas, com seus muros brancos e lo. Revista Souza Cruz, Rio de Janeiro, ns. 58-59, out-nov.
suas árvores solitárias”; “O negro costão do 1921. Apud BARRETO, Lima. Impressões de leitura. Op.
cit. p.55 56.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan/jun. 2012


66 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Literatura e intelectualidade: as facetas intelectuais na obra ...

são enriquecidas pela linguagem de registro ampliação dos diálogos de caráter social
ou aquela que narra acontecimentos viven- existentes na prosa de M. J. Gonzaga de Sá.
ciados sob um efeito nostálgico de sabedo- Alguns trechos: “A nossa insignificância
ria aos marcos mais importantes. Sendo as- nas artes do desenho é manifesta. Não pe-
sim, o efeito predatório da implantação do cará tanto quanto à execução, mas no que
regime republicano em território brasileiro toca à imaginação criadora é cousa que não
acontece de forma alusiva. “As suas reminis- se discute.” (BARRETO, 1969d, p.53), escre-
cências de história não lhe davam de pronto ve o narrador ilustrando a notória carência
a ideia nítida do que fosse república.” Em da falta de criatividade dos nossos artistas.
outro episódio identificaremos o narrador Ora, o narrador e a matéria narrada se apro-
diante de uma passagem bem ilustrada aos ximam em demasia e ainda constrói uma
termos nacionalistas: “Vi regimentos, vi ba- crítica bastante construtiva sobre os efeitos
talhões, luzidos estados-maiores, pesadas nocivos da sociedade em apenas valorizar
carretas, bandeiras do Brasil, sem emoção, as profissões da elite e desprezar aquelas
sem entusiasmo, placidamente a olhar tudo ligadas às humanidades. “Há muita gente
aquilo, como se fosse uma vista de cinema- que, sem queda especial para médico, ad-
tógrafo.” (BARRETO, 1969d, p.51) Em suma, vogado, engenheiro, tem outras aptidões
entre tantos outros aspectos históricos que intelectuais, que a vulgaridade do público
ocupariam uma lista grandiosa de fragmen- brasileiro ainda não sabe apreciar, animar
tos que não certamente caberiam em um e manter.”, (idem, p. 48) novamente escreve
artigo tão breve. o narrador barretiano com um olhar mais
Por outro lado, para garantir uma lin- íntimo e realista dos problemas da socie-
guagem ainda mais distinta possivelmen- dade tão hipócrita de época. Enfim, mui-
te denunciadora das facetas sociais que se tas dessas denúncias de Lima Barreto são
diziam democráticas na época, as frases e indispensáveis para um bom historiador
os vocábulos do narrador barretiano não preocupado em compreender o Brasil de
poupam esforços de inovar atingindo um época, já que permanecem na resistência
grau da invenção e da militância intelec- da passagem do tempo.
tual. Muitas dessas palavras e expressões Essas denúncias de caráter social tam-
são lapidadas ao longo de sua maturação de bém atingem a amplitude jurídica do estado
escritor capaz de transformar sua voz e suas e o sistema político da época. Por esse moti-
variadas observações dos aspectos sociais vo, é notável que Lima consiga articular de
para uma maneira romanesca de demons- maneira disfarçada através da fala das suas
trar suas inquietações ao modelo vigente. É personagens uma série de situações intransi-
possível que Lima Barreto tenha inovado na gentes ao gasto ineficiente do erário público
linguagem durante alguns dos seus percursos da época, denunciando a péssima consciên-
de criação, facilitando assim sua invenção e cia desses políticos para o devido uso e in-
criatividade que futuramente resultaria na vestimento necessário a população. Muitas

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 67
Cristiano Mello de Oliveira

dessas passagens ilustram que a literatura correlações aos meios progressistas urba-
de Lima não cumpria apenas um olhar de nísticos de época. Ao que tudo indica parece
deleite da sociedade de época, mas a função que o escritor Lima Barreto usa a fantasia
de questionar as instituições vigentes e pro- e o figurino daquele urbanista e arquiteto
blematizar de uma maneira mais consciente, sensato e determinado a verificar os proble-
outorgando a sua formulação de critérios e mas da cidade do Rio de Janeiro buscando
juízo. Por isso sua personagem Gonzaga ex- pequenas soluções e elucubrações necessá-
plica que a maneira que o: “ [...Barão do Rio rias que poderiam ajustar e melhorar vários
Branco] faz do Rio de Janeiro a sua cháca- tipos de serviços públicos. O fragmento
ra... Não dá satisfação a ninguém... Julga-se ilustra muito bem: “... Providência, Pinto,
acima da Constituição e das leis... Distribui Nheco – ficam muito distantes do Campo
o dinheiro do Tesouro como bem enten- de Santana, que está na vertente oposta;
de... É uma espécie de Roberto Walpole... mas com aperfeiçoamento da viação, aber-
O seu sistema de governo é a corrupção...” tura de túneis, etc., todos os inconvenientes
(BARRETO, 1969d, p.70). Ora, o fragmen- ficarão sanados.” (BARRETO, 1969d, p.65),
to apresentado demonstra um alto grau escreve em tom profético retratando que no
de descontentamento por parte de Lima e futuro haveria grandes túneis que sanariam
outros pares amigos da mesma época. os problemas. Ora, para bom leitor da geo-
Portanto, Lima tinha certeza da pro- grafia da urbs carioca, Lima antecipa e diag-
blemática enfrentada e fazia o possível para nostica uma espécie de premonição para fu-
denunciá-la sob a luz dos desafios enfrenta- turas melhorias que de fato ocorreram em
dos. O efeito dessa paixão e desse aspecto re- décadas posteriores. Em outro momento,
volucionário como fio condutor para romper teremos o imbricamento dessa questão bem
de forma desinteressada as contradições de explicado: “É que o Rio de Janeiro não foi
época é muito bem explicado pelo fragmento edificado segundo o estabelecido na teoria
transcrito abaixo, de Edward Said: das perpendiculares e oblíquas. Ela sofreu,
como todas as cidades espontâneas, o influ-
Os verdadeiros intelectuais nunca são
xo do local em que se edificou e das vicis-
tão eles mesmos como quando, mo-
vidos por paixões metafísicas e prin- situdes sociais por que passou, como julgo
cípios desinteressados de justiça e ter dito já.”, (idem, p. 66) observa o narrador
verdade, denunciam a corrupção, de- justificando a problemática existente dire-
fendem os fracos, desafiam a autori- tamente relacionada aos condicionamentos
dade imperfeita ou opressiva. (SAID, naturais da geografia urbana carioca como
2008, p.24). fator dificultoso para o estabelecimento de
A rigor, se fôssemos aqui explorar e grandes melhorias. Em suma, tais fragmen-
abstrair algumas frases e fragmentos na tos evidenciam a maneira progressista e
obra Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, iría- poética de todo o pensamento de um autor
mos brevemente remontar a uma série de preocupado em descrever as incoerências

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan/jun. 2012


68 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Literatura e intelectualidade: as facetas intelectuais na obra ...

de uma grande metrópole que se iniciava no – todos de lá, mais ou menos da ter-
seu processo de modernização. ra daquela gente! Lembrei-me grata-
mente de que alguns deles me deram
a sagrada sabedoria de me conhecer
3. Análisedas facetas intelectuais do
a mim mesmo, de poder assistir ao
protagonista M. J. Gonzaga de Sá
raro espetáculo das minhas emoções
Manuel Joaquim Gonzaga de Sá, ho- e dos meus pensamentos. (BARRETO,
mem determinado a cultivar o hábito da lei- 1969d, p.78).
tura e fazer disso a sua vontade espiritual, é Do fragmento transcrito acima é opor-
cidadão comprometido com os conceitos de tuno resgatarmos os nomes dos escritores
nação. Gradativamente, iremos observar no ao qual o narrador faz menção em relação à
decorrer da linha evolutiva do romance que leitura dos clássicos estabelecidos pela vai-
Gonzaga de Sá foi um sujeito que acumulou dade intelectual. Todos esses nomes evoca-
diversos tipos de conhecimentos, ou melhor, dos mantêm a finalidade de ilustrar acura-
adquiriu sabedoria e habilidade para usá-la damente o gosto pessoal e o critério de valor
na medida certa e comungá-la com os seus remetido a esses escritores tão consagra-
discípulos de época. Em outras palavras, Sá dos. Como podemos verificar a lista desse
foi um cidadão autodidata que compartilha- cânone completa de forma indispensável a
va suas aptidões humanas buscando praticá- “sagrada sabedoria” de qualquer intelec-
-las no seio da sociedade em que vivia. O pro- tual mais exigente e consciente de ter como
tagonista perfaz um perfil de caráter sábio pressuposto essa grandiosa bagagem lite-
e contestador das ideias vigentes daquele rária. Além disso, a safra desses escritores
período. Algumas passagens, que iremos descritos comporta um olhar mais respeito-
selecionar adiante, ilustram bem a vontade so pela formação clássica de uma excelente
profunda do protagonista em conhecer os literatura estrangeira. Ora, por esse motivo
clássicos da literatura universal, da filosofia o aproveitamento dessas leituras realizadas
de época, das humanidades e expandir suas por Sá condiciona um espírito mais sofisti-
escolhas e conhecimentos para o progresso cado e atento às condições já consagradas
de sua vida espiritual. da busca do autoconhecimento e determi-
Em um primeiro episódio, iremos ve- nação para uma vida mais emotiva. Algu-
rificar o narrador Machado tecendo alguns mas linhas adiante, iremos encontrar no-
comentários nostálgicos sobre as prefe- vamente o narrador Machado descrevendo
rências literárias universais do consagrado através de algumas minúcias o conteúdo
Gonzaga de Sá. Vejamos alguns desses de- espiritual do protagonista Gonzaga de Sá.
talhes que ilustram muito bem essa ótica de Vejamos alguns desses detalhes:
análise:
Gonzaga era desses homens cujo
Logo me recordei, porém, dos meus pensamento se transmite mal pelo
autores – de Taine, de Renan, de M. escrever ou por outro instrumento
Barres, de France, de Swift e Flaubert qualquer de comunicação criado pela

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 69
Cristiano Mello de Oliveira

nossa humanidade. A sua inteligência psicologia clássica e a metafísica de


não sabia dar logo um pulo da cabeça todos os tempos. Comparava opiniões
para o papel; e só a sua palavra viva, de Visconde de Araguaia com o se-
assim mesmo em palestra camarada, nhor Teixeira de Mendes. (BARRETO,
era capaz de dizer dele tudo o que lhe 1969d, p.47).
era próprio e profundamente seu.
(BARRETO, 1969d, p.43). Neste excerto observamos grandes
nuances daquela educação voltada a com-
A descrição, coberta de efeitos psicoló- preender o pensamento de época através
gicos, revela uma integridade com o espírito das cadeiras clássicas do acervo cultural
e a vida. A distinção do caráter de Sá faz res- brasileiro. A começar pela tradição e quali-
soar aspectos comportamentais daqueles dade do Colégio Dom Pedro II, que buscava
indivíduos que valorizam o culto e o hábito modelar nos seus alunos um conhecimento
da leitura como fator nobre do progresso mais aprofundado da realidade nacional e
intelectual. Tirando o lado preocupado da daqueles que exigiam adquirir conhecimen-
insatisfação capitalista e consumista, Lima tos de ordem e civilidade. A amplitude de
Barreto constrói uma personalidade exótica conhecimentos ligados à área de humanas
aos padrões do brasileiro de época, ironi- provavelmente fez com que Gonzaga de Sá
zando em forma caricatural, já que boa par- projetasse uma condição básica para conhe-
te da população carioca não tinha nenhuma cer os aspectos humanísticos como fator
vontade ou aspiração ao conhecimento de essencial da riqueza do seu espírito. “O que
sua história ou mesmo de sua memória. caracteriza o intelectual não é tanto o tipo
Tarefa um tanto complexa para os padrões de trabalho, mas a função:” (BOBBIO, 2004,
de época? Obviamente que essa questão po- p.114). Esta citação de Norberto Bobbio (tra-
deria ser relativizada, tendo em vista a forte balhada em um contexto diferenciado) pau-
vontade da maioria dos homens em atingir ta a importância fundamental do papel pú-
sucesso em curto prazo e se colocar finan- blico do intelectual, enquanto função a ser
ceiramente frente aos outros amigos com- exercida por essa categoria, problematizada
petidores. muito bem com a função desempenhada
Em outro fragmento, a caracterização pelo personagem Sá. O maior problema é
do personagem Gonzaga de Sá é ilustrada que Gonzaga de Sá fazia jus a sua incansável
pela sua formação clássica e robustecida de sabedoria como vontade e desejo de saciar
fatores principiantes de uma sólida forma- sua sede de conhecimento. Ao que tudo in-
ção educacional. Vejamos os detalhes: dica, sem confundir autor com a obra, Lima
Manuel Antonio Gonzaga de Sá era Barreto também tinha uma vontade enor-
bacharel em letras pelo antigo Impe- me de conhecer a fundo muitas áreas de
rial Colégio Dom Pedro II. Possuía conhecimento e junto a isso construir per-
boas luzes e teve sólidos princípios sonagens que tinham quase o mesmo perfil.
de educação e instrução. Conhecia Vejamos alguns desses detalhes:

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan/jun. 2012


70 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Literatura e intelectualidade: as facetas intelectuais na obra ...

A sua ânsia e a sua febre de conhe- intelectual, que o animava e man-


cimento, tais como via nele, sempre tinha nas suas leituras árduas [...].
a par do movimento intelectual do (BARRETO, 1969d, p.50).
mundo, fazendo árduas leituras difí-
ceis, deviam procurar transformar-se Ao enfatizar a determinada sede de
em obra própria, tanto mais que não conhecimento por Gonzaga de Sá e seu nar-
era um repetidor e sabia ver fatos e co- rador Machado, podemos desdobrar certei-
mentar casos a seu modo. (BARRETO, ramente com aquilo que Jean Paul-Sartre ti-
1969d, p.50). nha refletido em uma de suas conferências
sobre a função do intelectual e suas vonta-
Do excerto acima pinçamos apenas os
des canalizadas para atingir o “universal”,
vocábulos “ânsia” “febre”; “árduas” que dire-
sem restrições. Isto é, o intelectual seria
cionam um olhar mais solidário a sua real
aquele sujeito que remaria através de sua
sede de conhecimento. Na tríade vocabular
total autonomia, conseguindo administrar
verificamos uma forte acepção de conhe-
conceitos indispensáveis ao crescimento
cer as humanidades a fundo por parte de
humano. “O intelectual é, portanto, um téc-
Gonzaga de Sá. Tamanha complexidade in-
nico do universal que se apercebe de que,
telectual e inquieta é mencionada pelo nar-
em seu próprio domínio, a universalidade
rador desejando demonstrar que Gonzaga
ainda não está pronta, está perpetuamente
tinha a capacidade de transformar o seu
a fazer.” (SARTRE, 1994, p. 35). Ora, como
conhecimento acumulado através de suas
podemos verificar o tiro certeiro do narra-
profundas reflexões. Curiosidade motivada
dor Machado em dizer que Gonzaga de Sá
em reconhecer que sua sabedoria ainda não
era um intelectual voltado a alimentar sua
estava pronta, todavia, precisava ser proble-
curiosidade por simples vocação ao dire-
matizada para fins do avanço científico. É
cionamento espiritual acaba condizendo ao
lógico que, pela quantidade de leituras e di-
universalismo que Sartre atribui aos seus
recionamentos intelectuais, Gonzaga suge-
anseios. Em suma, os dizeres de Sartre aca-
re que o próprio narrador deveria o quanto
bam postulando um olhar mais amistoso e
antes elaborar seu próprio livro das formu-
sensível para os desdobramentos da perso-
lações lidas e abstraídas ao longo das suas
nalidade de Gonzaga.
“árduas leituras.” A indagação surge: para
De igual modo, respaldando consis-
que tanta sede de conhecimento? Dinhei-
tentemente o nosso mote de leitura iremos
ro, fama, contatos com pessoas ilustres e
ter novamente uma reflexão de Sartre em
importantes? Movimento que adiante iria
relação ao conhecimento amplo e dedica-
atestar e condicionar uma resposta um tan-
do desse mesmo intelectual sujeito a com-
to coerente e ao mesmo tempo desinteres-
preender, aos moldes de Gonzaga de Sá, os
sada de projeções individualistas.
“princípios universais” da humanidade que
Mais tarde, porém, fiquei perfeita- direcionava o seu olhar. Vejamos algumas
mente certo de que era só curiosidade considerações de Sartre a esse respeito:

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 71
Cristiano Mello de Oliveira

O intelectual atua assim com base em incongruências e injustiças praticadas pe-


princípios universais: todos os seres las autoridades insensíveis. A sensibilidade
humanos têm direito a contar com de Gonzaga era aquela que agia como: “[...]
padrões de comportamento decentes uma espécie de pura inteligência que via a
em matéria de liberdade e justiça da
vida e as suas instituições para lhe colher os
parte dos poderes ou das nações do
mundo, e as violações deliberadas ou
aspectos contraditórios.” (BARRETO, 1969d,
inadvertidas destes padrões têm de p.136). Portanto, a nosso ver, Gonzaga de Sá
ser denunciadas e combatidas corajo- foi aquele personagem que demonstrou ge-
samente. (SARTRE, 1994, p.28). nuinamente o seu amor pelas letras e pela
pátria, evidenciando uma retórica vazia que
O vocábulo “intelectual” neste fragmen-
era praticada pelas autoridades, assim como
to possui acepções que remetem a mentor, a
o próprio autor Lima Barreto demonstrou
proteção divina, a interdependência, a com-
ao longo de sua breve vida.
batente, a excesso de responsabilidade devido
No próximo fragmento iremos verificar
aos fatores do seu próprio pensamento. Ora,
o real propósito dos seus objetivos em relação
como podemos verificar novamente nas pala-
à época. Percebemos que Gonzaga desejava
vras de Jean Paul-Sartre o intelectual é um ser
compor um alicerce de conhecimentos que
humano voltado a compreender e denunciar
logicamente garantiria uma profissão mais
aquilo que se encontra de injusto na socie-
pragmática e burocrática, consequentemen-
dade. Ao que tudo indica, isso se assemelha
te isso lhe tiraria toda a razão de sua fiel von-
perfeitamente às variadas passagens já ex-
tade espiritual de continuar compondo as
plicitadas no corpo desse artigo. Além disso,
suas reflexões. Aliás, podemos perceber atra-
o personagem Gonzaga de Sá, como já veri-
vés das páginas desse acurado romance que
ficamos, foi um homem que possuiu vontade
Gonzaga de Sá não completa o perfil daquele
interna de viver sua vida com suas leituras,
sujeito tão apaixonado pela burocracia. Gon-
dedicando profundamente o seu tempo livre,
zaga desejava continuar o seu afunilamento
agindo em boa fé e comunhão com seus prin-
nos estudos intelectuais sem compromisso
cipais ideais. O “comportamento decente”
e, aliás, coberto de ousadias para reproduzir
apontado por Sartre seria aquele que dificil-
independentemente seus estudos. O foco se-
mente aceita as contradições humanas como
ria estudar e ler sem desejar futuros ganhos
algo plenamente justificado e conformado,
imediatos e tampouco manter o senso estéti-
ou seja, luta em descobrir as “verdades” e as
co da consagração da vaidade intelectual de
“contradições” tão enraizadas na sociedade.
época, como versa o narrador Machado,
Por esse motivo, Gonzaga de Sá adquire co-
nhecimento e sabedoria em função desinte- Deixando de seguir um curso profis-
ressada4, ou seja, desmascara as principais sional qualquer, foi como se fugisse
aos programas, para ler com mais
4 Sobre a função desinteressada de Gonzaga de Sá
poderíamos brevemente sumariar com essa notável despreocupação da notoriedade, ou melhor, da posição
passagem do narrador: “Aliava a tudo isso, uma estóica fácil e barulhenta.” (BARRETO, 1969d, p. 47)

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan/jun. 2012


72 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Literatura e intelectualidade: as facetas intelectuais na obra ...

ordem e método os autores, ao jeito Fechando nosso raciocínio, durante a


de quem vai escrever uma memória leitura desses fragmentos verificamos que
ou um Felix Alcan, de sete francos e o narrador delegado por Lima Barreto não
cinquenta. Fez o curso à antiga, em evidenciou apenas um certeiro diagnóstico
matérias isoladas, abandonando o
da personalidade intelectual de Gonzaga de
seriado das universidades medievais,
tradição que, dominando nas nossas
Sá, e sim buscou chamar atenção para ou-
faculdades, faz estabelecer os mais tras especificidades menos radicais. Na ver-
absurdos encadeamentos de matérias dade, essa paixão construída pela literatura
e disciplinas nos seus anos ou séries. e fazer dela instrumento de arte necessário
(BARRETO, 1969d, p.51). para comungar seus desejos de caráter so-
cial atribuído à denúncia daquilo que obser-
A frase “curso profissional qualquer”
vava de mais injusto na sociedade brasileira,
já alimenta semanticamente critérios de
especificamente a cidade do Rio de Janeiro,
valor e força. Isto é, o protagonista Gonza-
fez com que Lima ousasse nos seus escritos
ga não desejava nada que lhe fosse impos-
por uma ideologia mais coerente. Sobretu-
to ou influenciado por determinada pessoa
do, o escritor carioca desvencilha o provin-
próxima. Ao que tudo indica, Gonzaga não
cianismo acomodado à brasileira que se per-
parecia muito satisfeito com as imposições
petuou durante décadas e que, sobretudo,
profissionais no tocante às carreiras mais
iria diante dessas passagens “abrir cortinas”
glamorosas de época, por isso reconduz o
para novos horizontes. Os aspectos filosófi-
seu olhar e sua formulação de juízo, fazendo
cos tomam conta do diálogo longo entre am-
ressoar um comportamento de uma pessoa
bos os locutores (Machado e Gonzaga) e faz
altamente esclarecida para fortalecer a sua
com que o leitor possa refletir sobre os crité-
opinião convicta da realidade que já conhe-
rios para a escolha daqueles que mais repre-
cia muito bem. Como salienta novamente
sentam as humanidades. Gonzaga sugere
o crítico Edward Said: “Uma das tarefas do
que todos aqueles sentimentos emotivos que
intelectual consiste no esforço em derrubar
temos no âmago da nossa personalidade in-
os estereótipos e as categorias redutoras
dividual fluem como um aspecto bastante li-
que tanto limitam o pensamento humano
gado ao saber fechado que dificilmente será
e a comunicação.” (SAID, 2008, p. 14). Ob-
tocado por alguém. A questão parece óbvia,
viamente que, se considerássemos as entre-
mas impõe uma perspectiva mais crítica de
linhas da citação transcrita acima, baseado
análise ao refletirmos que Gonzaga fazia
no objeto narrado, iríamos interpretar que
honra para representar seu caráter forte e ao
Gonzaga não fazia pouco caso daquelas pro-
mesmo tempo quase ambivalente nos seus
fissões mais afastadas do meio intelectual,
comentários orais. Enfim, tamanha trajetó-
porém não chegava a se identificar pessoal-
ria intelectual que postergou muito daquilo
mente com o que era reproduzido de ma-
que desejava guardar enquanto sujeito per-
neira massacrante.
suasivo nas suas decisões.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 73
Cristiano Mello de Oliveira

4. Considerações finais seu personagem Manuel Joaquim Gonzaga


de Sá. Provavelmente, o romance poderá
Literatura com viés social, intelectual
ser lido como documento, reportagem dos
e revolucionário, mas não tendo a inten-
episódios que cercavam a cidade do Rio de
ção de afastar a arte das reais intenções do
Janeiro à luz do seu sincero pensamento.
artista, em outras palavras, a arte de Lima
Talvez Lima Barreto, sem saber ou tomar
Barreto era aquela primeiramente disposta
consciência, refez antecipadamente todo
a representar o estético e o sublime para de-
um documentário de época sobre o compor-
pois atingir outros patamares relevantes. A
tamento desse sujeito intelectual frente às
arte literária para Lima Barreto deveria re-
condições precárias. Essa leitura não signi-
presentar o lado social e intelectual, como
fica a única maneira de verificarmos esses
já mencionamos em linhas anteriores. Por
problemas emergentes da falta de vontade
esse motivo, a arte literária não deveria ficar
intelectual de muitas pessoas, mas impõe
estagnada e deveria refletir abertamente as
um olhar mais para aquilo que aqui estamos
contradições de época, sem ser panfletária
buscando comprovar através desse breve
ou com intenção apenas de incomodar uma
artigo. Portanto, o certo é que ainda existem
minoria que fosse antagonista aos projetos
muitas inesgotáveis maneiras de explorar o
de nação. Podemos postular que para o ro-
manancial desse grandioso romance, po-
mancista carioca à medida que fossem ces-
rém postulamos que lançamos algumas se-
sando as batalhas políticas, a ganância e o
mentes que certamente irão brotar no solo
egoísmo acentuado do homem – numa so-
dos estudos literários de outros centros de
ciedade onde não haja grandes abismos en-
investigação.
tre as classes ou extinga o próprio conceito
de classes –, as paixões pela arte e o acesso à
cultura iriam fomentar novas esperanças e Referências
perspectivas de vida para aqueles que ainda BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima
continuam à margem do processo criativo e Barreto. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.
dos bens que a burguesia ainda detém. BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de
As contribuições intelectuais deixa- Janeiro: Brasiliense, 1969a.
das por Lima Barreto na obra Vida e Morte ______. Numa e Ninfa. Rio de Janeiro:
de M. J. Gonzaga de Sá projetam uma espécie Brasiliense, 1969b.
de consciência atual aos problemas que são ______. Recordações do escrivão Isaías
históricos e iluminam possíveis reformula- Caminha. São Paulo: Brasiliense, 1969c.
ções nas instituições que elaboram as polí-
______. Triste fim de Policarpo Quaresma,
ticas de combate em favor de uma educação Curitiba: UFPR, 2004.
de qualidade nesse país. Seus escritos dei-
______. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá.
xaram uma espécie de semente para o valor Rio de Janeiro: Brasiliense, 1969d.
da erudição e do espírito intelectual desin-
BOBBIO, Noberto. Os intelectuais e o poder.
teressado representado muito bem pelo
São Paulo: Editora da Unesp, 1996.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan/jun. 2012


74 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Literatura e intelectualidade: as facetas intelectuais na obra ...

DOSTOIEVSKI, Fiodor. Recordações da casa


dos mortos. São Paulo: L&M Pocket, 2008.
FANTINATI, Carlos Erivany. O profeta e o
escrivão: estudo sobre Lima Barreto. São
Paulo: Hucitec, 1978.
FIGUEIREDO, Carmen Lúcia Negreiros. Lima
Barreto e o fim do sonho republicano. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço
romanesco. São Paulo: Ática, 1978.
MARINS, Álvaro. Machado e Lima: da ironia à
sátira. Rio de Janeiro: Utópos, 2004.
SAID, Edward. Representações do intelectual.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
SCHEFFEL, Marcos Vinicius. Estações
de passagens da ficção de Lima Barreto.
Florianópolis, 2011 (Tese de Doutorado)
SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos
intelectuais. São Paulo: Ática, 1994.
SUSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Recebido para publicação em 3 agosto 2011.


Aceito para publicação em 5 jul. 2012.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 59-75, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 75
doi: 10.5212/Uniletras.v.34i1.0006

Interdiscursividade e oralidade em Gabriela,


cravo e canela, de Jorge Amado: alteridades
com a literatura de cordel

Interdiscursivity and orality in Gabriela,


cravo e canela by Jorge Amado: alterity with
the brazilian cordel literature
Anderson Carvalho Pereira*

Resumo: A partir do referencial teórico da Análise de Discurso francesa (AD), nosso


objetivo é apontar gestos de interpretação concernentes à alteridade entre oralidade
e escrita, por meio da análise de um corpus formado a partir da obra “Gabriela, Cravo
e Canela” (1958/2008), de Jorge Amado. Mostramos por meio de quais lugares do
interdiscurso (memória discursiva) filiados à tradição oral há possibilidades de
gestos de leitura que sinalizam regiões de sentido ligadas aos seguintes aspectos da
oralidade: dispersão discursiva e organização de rimas filiadas à literatura de cordel;
e cuja presença denota modos de resistência aos formatos dominantes do discurso
da escrita.
Palavras-Chave: Discurso. Literatura de cordel. Jorge Amado.

Abstract: Based on the French Discourse Analysis approach, this article aims at
analyzing alterity between orality and writing in “Gabriela, Cravo e Canela”, by Jorge
Amado. The article demonstrates that in some interdiscourse spaces (discursive
memory) linked to the oral tradition there are reading possibilities linked to aspects
of orality such as: discursive dispersion and organization of rhymes linked to
the cordel literature and that its presence demonstrates ways of resistance to the
dominant norms of written discourse.
Keywords: Discourse. Literature. Cordel literature. Jorge Amado.

* Doutor em Psicologia pela Universidade de Sao Paulo com estágio na Universidade de Paris 13. Professor Adjunto do
Departamento de Estudos Básicos e Instrumentais da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. E-mail: <apereira.
uesb@gmail.com>.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 77-89, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 77
Anderson Carvalho Pereira

1. Introdução diferentes, é que indicamos a presença


do “outro” universo no “mesmo” tal como
Jorge Amado (1912-2001), gênio da lite-
na abertura decorrente da repetição nes-
ratura nacional, traduzido em mais de vinte
te “mesmo”, tal que seja possível indicar o
idiomas mundo afora, marcou o imaginário
outro diferente (cujo nome genérico é alte-
nacional com a captura do tipo social e da
ridade).
figura emblemática de Gabriela.
Sendo assim, inicialmente coube per-
Inventivo nos diálogos curtos, flui-
guntar: quais são os mecanismos discur-
dos e profundos, indicadores dos lugares
sivos de tal intercâmbio, troca, alteridade,
sociais de seus personagens, bem como ao
entre estes universos? Quais os limites de
alcance do diálogo estreito e refinado com
apontamentos de semelhanças? Quais os
a denominada cultura popular, o escritor
efeitos de sentido em termos discursivos na
deixa transbordar em sua escrita marcas
posição ocupada pelo autor e em termos de
deste universo, sobretudo evidenciado pela
possibilidade de interpretação, a partir do
tenacidade do ritmo das falas e da musica-
interdiscurso, ao pesquisador? O leitor não
lidade presente de modo mais ou menos
preocupado com questões ligadas à alteri-
explícito em sua obra. Muito conhecidos
dade oral e escrita também poderá perceber
são universos ambientados em torno de
tal semelhança? Mesmo se não percebê-la,
personagens como Tieta, Vadinho, ou de
qual a importância desta alteridade do pon-
obras como “Tenda dos Milagres” e “São Jor-
to de vista da preservação da memória cole-
ge dos Ilhéus”, nas quais as “vozes do povo”
tiva oral no romance escrito?
(expressão nossa) provocam giros e revira-
Tal análise segue alguns pressupostos
voltas dos sentidos dominantes, bem como
teóricos da Análise de Discurso francesa
tocam o campo mítico de constituição da
(AD), que postula que não há linguagem
cultura brasileira.
sem sujeito, nem sujeito sem ideologia
Especificamente no caso de “Gabriela”,
(PÊCHEUX, 1993), bem como que as rela-
objeto de estudo deste trabalho, vemos esta
ções das condições de produção de um corpus
possibilidade de leitura nas falas dos perso-
linguístico-discursivo relacionam-se de for-
nagens que evocam “falas anônimas”, indi-
ma indireta com a construção de um arqui-
cativas de ritmos e rimas muito comuns na
vo, a partir do qual ocorrem gestos de leitura,
literatura oral, mais especificamente pre-
em que uma realidade significativa (recor-
sentes na literatura de cordel.
tada de uma textualidade; ORLANDI, 2001)
Isto demonstra que o ritmo empres-
fornece subsídios ao analista para estranhar
tado à obra escrita de Jorge Amado provém
campos semanticamente estabilizados e
inegavelmente do estreitamento com o
construir caminhos singulares de análise.
universo da oralidade, o que dá consistên-
Como será demonstrado, há trechos
cia política à envergadura social que denota
da narração em que a descrição penetra
sua excelência. Desta percepção de um in-
nos momentos de decisiva retrospectiva do
tercâmbio possível entre universos literários
campo de ações das personagens e chamam

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 77-89, jan/jun. 2012


78 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Interdiscursividade e oralidade em Gabriela, cravo e canela ...

a atenção porque sinalizam, tal como este Seja por meio da adversidade à cultura
trabalho procura mostrar, aspectos rítmi- católica ou à erudição, esta forma de litera-
cos próximos à chamada literatura popular, tura, que também está recheada pela poesia
mais ainda, à literatura de cordel. e pela prosa, dá conta de articular nichos da
memória coletiva que admitem o improvi-
2. Metodologia so bem como uma infinidade de ritmos, na
medida em que se aproxima da música.
Aspectos dos corpora: romance es-
crito e literatura de cordel
No tocante à complexidade social do
universo da literatura, seja ela em que for-
Sem a pretensão de pontuar uma ori- mato se manifeste, Candido (1985) lembra
gem para a literatura oral ou escrita, e a que arte e literatura sempre estão interes-
partir de uma perspectiva sócio-histórica, sadas nos problemas sociais. Do ponto de
pode-se afirmar que em várias culturas vista do alcance, seja por um veículo anô-
sempre houve a pretensão de relatar feitos nimo, como muitas vezes ocorre na litera-
cotidianos ou extraordinários, conforme as tura de cordel, este autor ainda argumenta
possibilidades de uma realidade. que o dilema entre a iniciativa individual e
Assim sendo, entre os viajantes que as condições sociais da obra não deve dei-
percorriam de forma transversal o mundo xar de lado a discussão sobre o valor social
árabe até a Península Ibérica, toda a Europa relativo, valor este envolvido ao destino (à
– e mesmo quando se entra no hibridismo circulação) entre autor e público.
entre relatos de viajantes, narrativas No caso da poesia popular brasileira,
seculares ameríndias e correspondências que fortalece o que se denomina literatura
epistolares, presentes nas Américas –, oral popular, Romero (1977) ressalta que há
contos e narrativas fizeram e fazem parte o campo da poesia herdada da confluência
de modos coletivos de se discutir questões das diversas tradições preocupadas com
humanas de natureza vária, bem como suas narrativas e, podemos dizer, com essa
marcar lugares de peregrinação e tentativa circulação, mas há aquela que nos particula-
de singularidade entre os diversos povos. riza como brasileiros.
Marcada por este complexo universo, Neste caso, é a luta pela vida no meio
tão arraigado à condição humana, quanto o da peleja da migração e do enraizamento
próprio estatuto do que se entende por cul- de um novo clima cultural que faz o povo
tura, Luyten (1986) comenta que a chama- cantar e improvisar; o povo brasileiro can-
da literatura popular foi marcada por três ta os ciclos da natureza migrante e dos
pontos de disseminação coincidentes com desafios da vida no roçado, no plantio, na
os pontos de peregrinação: Roma e a Santa pesca, na fiação, sendo que a população
Sé; Jerusalém e a Terra Santa, e Santiago de fica aberta ao maravilhar-se com esta reali-
Compostela e a heterogeneidade linguísti- dade de que é parte.
co-cultural da Galícia.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 77-89, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 79
Anderson Carvalho Pereira

Peregrino (1984), por sua vez, situa a quanto o universo dos romanceiros que
expressividade e a comunicabilidade desta preservam tal poesia na literatura de cor-
vida itinerante no universo do cordel, que del. Pergunta a autora: “qual é a realidade
preserva uma alteridade entre oral e escri- da presença do romanceiro na memória
ta, tal que permite perceber o ritmo da voz dos homens e das mulheres do Nordeste?”
num romance escrito, como defendemos (SANTOS, 2006, p.56).
neste artigo. Nas palavras de Peregrino Esta mesma autora responde ao afir-
(1984, p.22): mar que em meio à diversidade da cultura
nordestina, o lugar de honra ocupado pela
Sem cogitar das primeiras fontes da
poesia, nas quadras, trovas, pequenas poe-
literatura de cordel, pacificamente
identificadas com o romanceiro espa- sias, ainda mantém viva a figura do canta-
nhol-luso do Renascimento, podemos dor também como um difusor desta cultura
dizer, de nossa parte, que a poesia po- local, de modo que país afora, como tam-
pular dos folhetos tem sua pré-história bém aponta Luyten (1986), tornou-se quase
nos chamados cantadores, quando o sinônimo de cultura popular e nordestina
poeta popular exercia a sua criativida- tudo o que se refere ao universo do roman-
de apenas na cantoria dos repentistas. ceiro de versos.
Ali, na hora, explodiam os versos nas
O alcance da dimensão social ovacio-
pelejas encarniçadas ou nas cantorias
nada por Candido (op.cit.) como referência
amenas. E só a memorização respon-
dia pela fixação daquela poesia do aàs discussões sobre literatura passa pelo
povo, até que pesquisadores empreen- caráter de resistência de tal produção em
deram o recolhimento do que a memó- meio às produções midiáticas mais atuais.
ria guardava e do que eles diretamente, Isto se justifica porque a rica poesia
em trabalho de campo, anotavam. popular brasileira tem um de seus maiores
tentáculos na literatura de cordel, por meio
A respeito deste modo de cantar as
das sextilhas, ou seja, da forma de seis ver-
narrativas de uma tradição, ou mesmo de
sos setessílabos cantados (LUYTEN, 1986), e
um acontecimento pontual numa locali-
em menor grau, os de cinco sílabas; preser-
dade, Santos (2006) ensina que os textos
va a memória rítmica que também se traduz
formam um sistema na memória de uma
no corpo da escrita brasileira e na escrita da
comunidade e são transmitidos conforme
voz, que também ganha corpo nos modos
performances em eventos do cotidiano (ve-
de agir e de se relacionar, concatenando um
lórios, festas, jogos) que têm uma função de
paradigma de conduta.
mitificação de uma ação e preservam a di-
Além disso, vale ratificar neste caso as
mensão poética de uma criação local.
palavras de Lévy (1993) e o destaque dado
Em se tratando do nosso objeto de es-
por este autor à permanência do univer-
tudo, cabe uma pergunta feita pela autora,
so da oralidade mesmo em tempos de alto
que alcança tanto o universo pelo qual cir-
impacto das tecnologias da informação. Se-
cula o romance de Jorge Amado (1958/2008)
gundo Lévy (1993, p.10):

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 77-89, jan/jun. 2012


80 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Interdiscursividade e oralidade em Gabriela, cravo e canela ...

a sucessão da oralidade, da escrita e da A nosso ver, esta observação é impor-


informática como modos fundamen- tante porque se pode dizer que é deixado
tais de gestão social do conhecimento de lado no romance escrito tal caráter de
não se dá por simples substituição, enigma. Bakhtin (1990) explica que litera-
mas antes por complexificação e des-
tura mais dogmática do romance escrito
locamento de centros de gravidade.
O saber oral e os gêneros do conheci-
submeteu a literatura oral, por meio da
mento fundados sobre a escrita ainda imposição de uma voz única para carac-
existem, é claro, e sem dúvida irão terizar os personagens. Tal mecanismo
continuar existindo sempre. silencia a polifonia das manifestações dos
personagens por meio de vozes próprias,
Isto demonstra que se deve levar em
bem como abala a linearidade do campo
conta não apenas o contexto de fortaleci-
conjunto da experiência.
mento da literatura de cordel, bem como
Na contracorrente da marcação desta
sua alteridade com o romance escrito e a re-
cisão, operada principalmente pelo predo-
lação de ambas com suas verdades autorais.
mínio do romance escrito como manifesta-
A este respeito, Matos (1994) mostra
ção literária, pode-se citar o caso do cordel
que entre o universo da literatura oral e es-
como uma manifestação literária que ainda
crita se passam formas de mediação tam-
preserva formas das narrativas orais, por
bém condizentes às ciências e às artes. Da
exemplo. É o caso da delimitação da voz de
mesma forma, no campo artístico, popu-
personagens, em folhetos analisados por
lar ou não, não se tem um espelho direto
Abreu (2004), a propósito de uma pesquisa
do mundo e da vida. A construção poética
que analisou formas de ressignificação de
é muito mais definida pelo campo de suas
tradicionais romances escritos presentes na
condições de produção.
literatura de cordel.
Mesmo que se admita no caso da obra
Tal apagamento faz parecer que o ro-
popular que sua marca esteja na ausência de
mance deixa de ser também uma reflexão
qualquer veleidade autoral, pois o que é do
sobre o cotidiano e as contradições entre
povo é de ninguém, o atrelamento a esta
as necessidades humanas e suas condições
categoria do anonimato faz com que um
existenciais de base material. Na literatura
sistema de manipulações e ambiguidades
de cordel vemos estes aspectos preservados,
perniciosas impeça a ampliação das pes-
inclusive de tal forma que os aspectos rítmi-
quisas neste campo; tais pesquisas não de-
cos de que fazem parte as tentativas de res-
vem deixar de lado uma interpretação par-
gatar uma memória mítica e coletiva enal-
ticular relativa a este universo, mostrando
tecem a participação ativa de personagens
que tal universo tem valor em meio à cir-
que “são” e “não são” fictícios no momento
culação das diversas manifestações cultu-
da encenação em que o improviso ganha va-
rais porque preserva o caráter de enigma
lor social, mesmo a despeito dos furos que
(MATOS, 1994).
provoca na linearidade, linearidade esta tão
importante no romance escrito.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 77-89, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 81
Anderson Carvalho Pereira

Tendo sido discutidos alguns aspec- Mussalim (2009, p.52) defende que “é possí-
tos do corpus formado a partir do romance vel considerar o fato literário como discurso
“Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado no sentido que a AD confere a este tema”.
e da literatura de cordel, a partir da qual A autora ressalva que a enunciação, e
serão analisados alguns pontos de alterida- suas condições e instituição (modos de cir-
de entre oral e escrita, passemos adiante à culação dos enunciados), considera a com-
apresentação dos aspectos discursivos pelos plexidade sócio-histórica do texto literário
quais se forma e analisa este corpus. dentro da possibilidade de ser analisado
pelas ciências da linguagem. Assim, o tex-
Formação do corpus discursivo de to literário não é reflexo de época histórica;
análise não é visão de mundo e/ou de subjetividade
determinada; em suma, não é uma entidade
Em AD, Pêcheux (1993) mostra o en-
em si mesmo.
trecruzamento da Formação Social (FS) e a
Fernandes (2009) complementa esta
delimitação ideológica da hierarquia entre
discussão ao analisar o texto literário con-
as práticas sociais. Como aponta o autor, as
forme a delimitação do dito concorde com
relações de produção incluem as leituras do
o lugar, ou seja, aquilo que é dito aqui e não
arquivo (PECHEUX, 1997; GUILHAUMOU,
em outro lugar e de outro modo. No texto
MALDIDIER, ROBIN, 1994) e o campo de
literário também se pode buscar articula-
possibilidades dos gestos de leitura funda-
dores da memória sócio-histórica, o que ex-
mentados nas bases materiais da ideologia.
plica em parte de que maneira as rimas pre-
Com relação a estas possibilidades de
sentes em Amado (2008) indicam relações
leitura, inclui-se o desnivelamento ideoló-
de alteridade com a literatura de cordel.
gico entre o romance escrito e a literatura
Mesmo com o desnível entre ambos os
de cordel. Ao se levar em conta ainda que o
universos discursivos, sua circulação, seus
arquivo é entendido como o campo sistema-
efeitos simbólicos, os efeitos de sentido
tizado da memória discursiva, é possível in-
mobilizados na posição do leitor sustentam
terpretar mecanismos de alteridade entre o
pontos de troca e de semelhança entre ambos
romance escrito e a literatura de cordel.
universos literários por estarem amparados
Isto porque, conforme aponta Orlandi
na mesma rede de memória discursiva.
(2001), para haver interpretação é neces-
Para mostrar isto, estabelecemos um
sário que haja textualidade, uma vez que
gesto de leitura no corpus analisado – se-
a atribuição de sentidos sócio-históricos é
quências discursivas retiradas do romance
possível conforme a sustentação de uma
“Gabriela, Cravo e Canela” (AMADO,
“realidade significativa” pela “exteriorida-
1958/2008) – para apontar esta realidade
de” constitutiva: memória discursiva, inter-
significativa. A análise de pistas pressupõe
discurso (ORLANDI, 2001, p.52).
a formação de um corpus, cujas sequências
Mas como interpretar um corpus no
discursivas foram retiradas de trechos da
caso da confluência entre AD e literatura?

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 77-89, jan/jun. 2012


82 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Interdiscursividade e oralidade em Gabriela, cravo e canela ...

obra “Gabriela, Cravo e Canela”, que sinali- permite que, deslocado da linearidade apa-
za rimas semelhantes àquelas encontradas rente do romance, o sujeito-escritor susten-
na literatura de cordel, possíveis de serem te movimentos de interpretação, em que se
analisadas conforme o paradigma indiciá- valoriza a tradição oral, principalmente a
rio de análise. literatura de cordel.
Trata-se de um “método” de análise Luyten (1986) e Santos (2006) destacam
indiciária, tal como proposto por Ginzburg várias formas “de versejar”, ou seja, de se
(1989), a partir de suas pesquisas sobre a organizar as rimas, na literatura de cordel,
base opaca da relação entre pesquisador a saber: aquelas apresentadas por Luyten
e objeto pesquisado. Neste paradigma, a (1996) de forma geral (mourão e quadrão); e
construção do “dado” em meio ao processo por Santos (2006), de forma mais detalhada,
de análise de indícios e pistas marginais re- dentre estas: gemedeira, mourão trocado, a
dimensiona os discursos e o valor simbólico quadra, oito pés a quadrão, quadrão minei-
dos saberes. ro, quadrão da beira-mar, a décima heptas-
Portanto, o “dado” nunca é diretamen- silábica, dez pés a quadrão, mourão voltado,
te acessível, nem tampouco segue a lógica martelo.
clássica da delimitação de hipóteses basea- A interpretação do corpus tal como
das em controle de variáveis, para a poste- segue procura destacar trechos da narra-
rior verificação ou refutação. ção em que há formas de descrição utili-
Tal como mostraremos, há sítios de zada pelo autor para delimitar o campo de
sentido que ao emergirem por meio da in- ações das personagens e chamam a atenção
terpretação revelam parte do que estava in- porque sinalizam, como se procurará mos-
terditado à interpretação, por conta de me- trar, aspectos rítmicos próximos à literatura
canismos ideológicos; no caso, parte-se da popular, mais ainda, à literatura de cordel.
crença dominante que na literatura do ro- Ressaltamos, entretanto, que não nos
mance escrito a escrita se organiza por meio preocupamos em delimitar precisamente
de gêneros textuais que não deixam marcas cada uma das categorias rítmicas descritas
da chamada literatura oral emergirem. por Luyten (1986) e Santos (2006), nos tre-
chos em destaque. A partir da perspectiva
3. Resultados e discussão discursiva, procuramos discutir o estatuto
desta mobilização do interdiscurso para
Em sequências discursivas elencadas tratar de aspectos da alteridade entre oral
da obra “Gabriela, Cravo e Canela” são mos- e escrita.
trados pontos de alteridade que sinalizam a Trata-se de três trechos a serem aqui
construção do lugar de autor, a partir de um analisados, tal como foram retirados da
mecanismo discursivo, talvez pouco notado obra “Gabriela, Cravo e Canela” (AMADO,
na obra em sua totalidade, a saber: a inter- 1958/2008). Cada um desses destaques se-
discursividade com a literatura de cordel gue o panorama elaborado por Serrani

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 77-89, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 83
Anderson Carvalho Pereira

(1997) ao tratar da perspectiva discursiva na romance escrito, tal como não deixamos de
abordagem de corpora em sua dimensão so- mencionar neste trabalho.
ciocultural. Vê-se que a maioria dos versos dispos-
Para a autora a análise conta então tos na SD1 mantém-se com cinco sílabas,
com a eleição a critério do pesquisador de que aparecem com relativa frequência na
uma sequência discursiva de referência obra de Patativa do Assaré, por exemplo,
(SDR) e uma sequência discursiva (SD), a porque também são expressão do “falar es-
partir da qual será feita a análise com base tropiado do sertanejo” (TAVARES JUNIOR,
na retomada da questão inicial ao analista; 1999, p. 7), embora em geral sejam mais co-
a questão inicial pode ser aqui resgatada, de muns tanto na literatura de cordel quanto
forma mais precisa, nas seguintes palavras: na obra de Assaré, a redondilha maior e a
de que forma os trechos do romance de Jor- sextilha; ainda assim, o que se tem é o que
ge Amado que indicam rima na descrição este autor aponta como o caráter lúdico da
dos personagens podem indicar filiações à rima no cordel.
literatura oral? Qual o valor discursivo des- Vejamos caso semelhante na Sequência
tas filiações? Discursiva de Referência (SDR) 2- “pensar
Sendo assim, cada SD foi reescrita pra quê? Valia a pena não.../seu Nacib era pra
conforme o formato encontrado na literatu- casar com moça distinta, toda nos trinques,
ra de cordel, para que seja dado destaque ao calçando sapato, meia de seda, usando per-
formato rítmico, a partir do qual serão mos- fume. Moça donzela, sem vício de homem.
tradas as relações de alteridade. Gabriela servia pra cozinhar, a casa arrumar,
Vejamos a SDR 1- “foi pro quintal, a roupa lavar, com homem deitar. Clemente
abriu a gaiola em frente à goiabeira. O gato na estrada, Nhozinho na roça, Zé do Carmo
dormia. Voou o sofrê, num galho pousou, também. Na cidade bebinho, moço estudan-
pra ela cantou. Que trinado mais claro e te, casa tão rica! Vinha mansinho, na ponta
mais alegre! Gabriela sorriu. O gato acor- dos pés, com medo da mãe. Primeiro de to-
dou” (AMADO, 2008, p. 227). dos, ela era menina, foi mesmo seu tio. Ela
A partir desta, vejamos a SD1: O gato era menina, de noite seu tio, velho e doente
dormia./Voou o sofrê,/num galho pousou,/ (AMADO, 1958/2008, p. 204).
pra ela cantou./Que trinado mais claro e mais Ao percebermos o ritmo mantido nes-
alegre!/Gabriela sorriu./O gato acordou. te trecho da narração, ela pode ser rees-
Nesta sequência, estabelecem-se for- crita da seguinte maneira, de que resulta
mas rítmicas que, tal como apontado por a SD2: Gabriela servia pra cozinhar./A casa
Santos (2006), sinaliza uma escritura da arrumar./A roupa lavar./Com homem deitar/
voz muito presente na literatura de cordel, [...] ela era menina, foi mesmo seu tio./Ela
ainda que a autora ressalte características era menina, de noite seu tio, velho e doente.
diferentes entre o cordel e a cantoria, bem Em relação a esta mobilização da me-
como a homogeneização dos gêneros poéti- mória discursiva da redondilha menor pode-
cos cantados pelo cordel, assim como pelo -se mostrar, por fim, a Sequência Discursiva

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 77-89, jan/jun. 2012


84 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Interdiscursividade e oralidade em Gabriela, cravo e canela ...

de Referência 3 (SDR3) – “Gabriela ia andan- relação a essas formas de versejar, descritas


do, aquela canção rera cantada em menina. por Luyten (1986) e por Santos (2006); seja o
Parou a escutar, a ver a roda rodar. Antes “quadrão” (que embora não tenha o número
da morte do pai e da mãe, antes de ir para exato de sílabas tanto no chamado “oito pés
a casa dos tios. Que beleza os pés pequeni- a quadrão”, quanto no “quadrão mineiro”
nos no chão a dançar! Seus pés reclamavam, traz a repetição tripla de sílabas finais, aqui
queriam dançar. Resistir não podia, brin- vista na repetição da forma infinitiva “ar”),
quedo de roda adorava brincar. Arrancou ou ainda o “mourão” e a sextilha.
os sapatos, largou na calçada, correu pros Vê-se um hibridismo destas formas;
meninos. De um lado Tuísca, de outro lado sem a preocupação de delimitar precisa-
Rosinha. Rodando na praça, a cantar e a mente quais destas é a predominante, vale
dançar” (AMADO, 1958/2008, p.253). fazer notar marcas da literatura oral e da
Desta resulta a Sequência Discursiva 3 oralidade na forma escrita da literatura.
(SD3): Parou a escutar,/a ver a roda rodar./ Neste ínterim da discussão, podem-se
(...) Seus pés reclamavam, queriam dançar./ debater ainda os aspectos da gramatização
Resistir não podia,/brinquedo de roda ado- empreendida pela revolução tecnológica
rava brincar. traduzida em artefatos como o texto im-
Luyten (1986) ressalta que há diversas presso e a dicionarização, tal como discuti-
formas de versejar, ordenar os versos na li- das por Auroux (1992), bem como o caráter
teratura de cordel. Mais importante, contu- de improviso e inventividade que marca a
do, para a autora, é ressaltar que na literatu- poesia cantada presente no cordel, tal como
ra de cordel, o ritmo tem prioridade, ritmo discutida por autores como Romero (1977),
este que vemos nestas SDs. Peregrino (1984) e Matos (1994).
Como se pode perceber, dividimos os Para tratar da relação com a gramati-
versos de uma maneira que preserva a rima zação, por sua vez, ou seja, do ponto de vista
nela encontrada, bem como indica aproxi- do mecanismo ideológico que supervaloriza
mações possíveis com algumas formas de instrumentos linguísticos voltados para as
ordenar os versos (a chamada “prática de unidades referenciais em detrimento da dis-
versejar”), encontradas no cordel. De modo persão discursiva. Trata-se de recursos vol-
geral, isto demonstra a presença da poética tados para a manutenção de uma economia
popular na prosa de Jorge Amado. escriturística (expressão de CERTEAU, 2001),
Indo adiante, poder-se-ia afirmar que que, tal como aparecem em discursos seman-
nestas SDs, temos uma mobilização inter- ticamente estabilizados (PÊCHEUX, 1993),
discursiva ainda que haja uma definição no podem ser considerados altamente letrados
campo já estabelecido entre as principais (TFOUNI, 2004; TOFUNI; PEREIRA, 2009).
três formas encontradas no cordel, a saber: Tal “economia escriturística” faz pare-
mourão, quadrão e sextilha. cer que as práticas ordinárias de linguagem
Este lugar da interdiscursividade não é devem obedecer ao regime de adequação
possível de ser definido de forma exata, em dos significados precisos e lineares, sem os

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 77-89, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 85
Anderson Carvalho Pereira

quais apareceriam duvidosas e pouco credi- criticadas por Santos (2006) de que o cordel
tadas a seus usos mais objetivos. seria uma “infância da literatura”.
Entretanto, parte de tal pretensão Como se nota, esses aspectos da orali-
escapa ao estabelecimento desta ordem, dade explicam a circulação seja do cordel ou
possibilitando aos sujeitos que fazem uso do romance escrito por conta da abertura da
disperso e mergulhado na pluralidade de circulação da polifonia da oralidade (BAKH-
gestos de interpretação aquilo que Certeau TIN, 1990), a partir da qual é legitimada par-
(2001) denominou de compartilhamento te da singularidade do efeito de autoria em
da experiência coletiva da memória; é o questão; isto decorre ainda da possibilida-
que vemos no caso em que parte da memó- de aberta ao leitor (efeito-leitor) de perce-
ria dos romanceiros é, ainda que esfacela- ber uma realidade significativa (ORLANDI,
da e disfarçada na voz dos personagens, 2001), a partir da textualidade investigada
presente nos modos de organização da in- em termos da trama de memória discursiva
terpretação do sujeito-autor, nas sequên- mobilizada no tênue fronteira com a litera-
cias em destaque. tura de cordel.
Este imperativo, tal como um eixo Ainda em relação às colocações de San-
organizador dos gestos de leitura a partir tos (2006), no lugar de uma “infância da lite-
de instrumentos formadores do processo ratura” temos no cordel uma oralidade que
de gramatização, fortalece os mecanismos também participa da dinâmica cultural, que
do discurso da escrita também cooptado renova as dimensões poética e narrativa,
por mecanismos de unidade linguística seja na forma oral, seja na forma escrita do
e de controle da interpretação alinhados romance.
ao referido processo de gramatização Vale ressaltar que o intuito mais amplo
(PEREIRA, 2009; TFOUNI, 2004). Ocorre desta análise foi o de apontar relações entre
que este efeito, como já foi dito, não impede oralidade e escrita, destacando que o ritmo
um regime complexo e multifacetado de da voz do narrador e da voz dos persona-
organização das formas da oralidade que, ao gens é marcado também pelos ritmos da voz
atravessarem a forma escrita do romance, se da literatura oral.
fazem presente de modo que mobilizam parte Desta maneira, foi possível marcar
da memória discursiva da literatura oral. indícios de semelhança e diferença com
Como aponta Santos (2006), seja can- as formas já categorizadas da literatura de
toria ou romance em folhetim, tudo con- cordel, sendo válido notar certo hibridismo
verge para o folheto e também passa por dessas formas, sendo mais importante des-
este lugar simbólico; e, vemos aqui, de que tacar de que maneira há uma interdiscursi-
maneira indícios dessas formas sinalizam vidade filiada aos aspectos da oralidade, que
formas que se encontram nos folhetos; no permitem mostrar a alteridade entre oral e
romance escrito veem-se metidos aspectos escrita, entre literatura oral e romance es-
da oralidade que contrariam as perspectivas crito, de modo que seja possível perceber

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 77-89, jan/jun. 2012


86 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Interdiscursividade e oralidade em Gabriela, cravo e canela ...

formas de ruptura com a economia escri- atores anônimos fazem de eventos do coti-
turística dominante e modos de circulação diano. Assim sendo, cada parte do grupo se
da oralidade por meio do alcance coletivo da compromete a “enterrar” a parte não selecio-
memória materializada em outro lugar sig- nada numa espécie de compromisso coletivo
nificativo do interdiscurso. com o luto, a partir do qual permanece circu-
lando a diversidade de textos orais e escritos.
Conclusão Para finalizar, retomamos as pergun-
tas introdutórias e defendemos que os me-
Ao longo da análise, procurou-se em canismos de alteridade entre oral e escrita
algumas sequências assemelhar as rimas vistos a partir da análise do corpus indicia
encontradas na prosa de Jorge Amado com semelhanças tênues e significativas com a
os modos de versejar encontrados na litera- literatura de cordel, de modo que foi pos-
tura de cordel. sível ser apontada em parte por conta do
Em defesa da argumentação principal modo singular pelo qual esta questão afeta o
vista neste trabalho, pode-se constatar que pesquisador como organizador de gestos de
há aspectos da oralidade em trechos descri- leitura interpelados pela posição que ocupa,
tivos observados no romance mencionado mas também possível de ser mobilizada em
que indicam uma alteridade entre oralidade gestos de leitura deslocados desta mesma
e escrita e que sinalizam marcas das con- posição, caso haja um compromisso com a
dições de produção da literatura de cordel, preservação e o funcionamento do caráter
como indícios da alteridade entre o roman- coletivo dos usos da linguagem e das cons-
ce escrito e a literatura oral. truções literárias em geral.
Mesmo num universo complexo do A partir dos resultados deste trabalho,
ponto de vista enunciativo, em que as di- vemos que na alteridade estabelecida entre
versas mídias se voltam para a informação “Gabriela, cravo e canela” de Jorge Amado
padronizada e veloz, tal como novos arte- (1958/2008) e as formas da literatura popu-
fatos do que Auroux (1992) denominou de lar de cordel debatida por meio das contri-
gramatização, persiste a presença do ritmo buições de vários autores, parte de cada um
da voz e da escrita nas formas do folheto e desses universos foi enterrado para renas-
do romance, numa alteridade em que tal di- cer naquele que, tomado como referência,
mensão sócio-histórica pode ser analisada, pode assim, contribuir para mostrar a in-
conforme aponta Santos (2006), pela pere- terpenetração, o intercâmbio e a circulação
nidade de sua resistência. que envolve oralidade e escrita.
Deste modo, vale resgatar as observa-
ções de Cavignac (1997): a autora analisa o
Referências
testemunho coletivo encontrado na litera-
tura de cordel e seu papel na construção da ABREU, M. Então se forma a história bonita
identidade coletiva por meio da seleção que – relações entre folhetos de cordel e literatura
erudita. Horizontes Antropológicos, Porto

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 77-89, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 87
Anderson Carvalho Pereira

Alegre, ano 10, n. 22, p. 199-218, jul./dez. 2004. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São
AMADO, J. Gabriela, cravo e canela. São Paulo: editora 34, 1993.
Paulo: Companhia das Letras. 2008. Edição LUYTEN, J. M. O que é literatura popular? RJ/
original: 1958. RJ: Brasiliense. 3.ed. 1986.
AUROUX, S. A revolução tecnológica MATOS, C. N. O povo autor. In.: MATOS, C.
da gramatização. Campinas, SP: Ed. da N. A poesia popular na República das Letras:
UNICAMP. 1992. Sílvio Romero folclorista. Rio de Janeiro:
BAKHTIN, MIKHAIL. Formas de tempo e de MinC/FUNARTE. 1994. p.150-176.
cronotopo no romance (ensaios de poética MUSSALIM, F. Análise do discurso literário:
histórica). Em: M. BAKHTIN. Questões de delimitações. In: FERNANDES, C. A.; GAMA-
literatura e de Estética (a teoria do romance). KHALIL, M. M.; ALVES JUNIOR, J. A. Análise do
São Paulo/SP: HUCITEC/UNESP, 1990, p. discurso na literatura: rios turvos de margens
263-397. indefinidas. São Carlos, SP: Claraluz, 2009 p.
CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos pp.:5 46-53P: Claraluz, 2009. a: rios turvos de
de teoria e história literária. 7. ed. São Paulo: margensAnndiefinidas. des com a tradiçde e
Editora Nacional. 1985. escrita que fundamentaras falas e da 46-53.
CAVIGNAC, J. Repenser le récit et l’oral. Em: ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura
CAVIGNAC, J. La littérature de colportage au e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis, RJ:
Nord-est du Brésil: de l’histoire écrite au récit Vozes. 2001.
oral. Paris: CNRS, 1997. p. 187-220. PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma
CERTEAU, M. Ler: uma operação de caça. In: crítica à afirmação do óbvio. Campinas, SP:
DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: UNICAMP. 1993.
1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes. 6. ed. ______. Ler o arquivo hoje. In ORLANDI, E.
2001. p 259-273. P. (Org.). Gestos de Leitura: da história no
FERNANDES, C. A. Análise do Discurso discurso. Campinas, SP. Ed. da UNICAMP.
na Literatura: rios turvos de margens 1997. p.55-67.
indefinidas. Em: FERNANDES, C. A.; GAMA- PEREGRINO, U. Literatura de Cordel –
KHALIL, M. M.; ALVES JUNIOR, J. A. Análise considerações gerais. IN: Literatura de Cordel
do Discurso na literatura: rios turvos de em Discussão. Rio de Janeiro: Presença. 1984.
margens indefinidas. São Carlos, SP: Claraluz, p.13-43.
2009. p.8-25. ROMERO, S. Estudos sobre a poesia popular
GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais: do Brasil. IN: S. ROMERO. Estudos sobre
morfologia e História. São Paulo: Companhia a poesia popular do Brasil. Petrópolis, RJ:
das Letras. 1989. Vozes. 1977. p.37-54.
GUILHAUMOU, J. ; MALDIDIER, D. ; ROBIN, SANTOS, I. M-F. Memória das vozes: cantoria,
R. Discours et archive. Liège: Pierre Mardaga romanceiro & cordel. Salvador: Secretaria
éditeur, 1994. da Cultura e Turismo; Fundação Cultural do
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o Estado da Bahia. 2006.
futuro do pensamento na era da informática. SERRANI, S. M. Um método para estudar a

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 77-89, jan/jun. 2012


88 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Interdiscursividade e oralidade em Gabriela, cravo e canela ...

discursividade na abordagem de questões


socioculturais. In: SERRANI, S. M. A
linguagem na pesquisa sociocultural: um
estudo da repetição na discursividade.
Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1997. 53-71.
TAVARES JUNIOR, L. Patativa: um cordelista
revisitado. In: ASSARÉ, P. Cordéis. Fortaleza/
CE: EUFC. 1999. p.5-11.
TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetização. 8.
ed. Campinas: Cortez Editora. 2006.
______.; PEREIRA, A. C. Letramento e formas
de resistência à economia escriturística.
Fórum Linguístico, Florianópolis, v.6, n.2 (67-
79), jul-dez, 2009.

Recebido para publicação em 30 jan. 2012.


Aceito para publicação em 12 jul. 2012.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 77-89, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 89
doi: 10.5212/Uniletras.v.34i1.0007

Deleuze e a política da literatura: algumas


observações

Deleuze and the politics of literature: some


observations
Antonio Paulo-Benatte*

Resumo: Esta nota de leitura discorre brevemente sobre a concepção de literatura


e política no pensamento do filósofo Gilles Deleuze. As noções de linha de fuga e
máquina de guerra afirmam a literatura enquanto um devir minoritário da linguagem.
Palavras-chave: Literatura. Política. Linguagem. Gilles Deleuze.

Abstract: This commented reading briefly discusses the conception of literature and
political thought of the philosopher Gilles Deleuze. The notions of line of escape and
war machine state literature as becoming a minority language.
Keywords: Literature. Politics. Language. Gilles Deleuze.

O que é a literatura? Muitas e diferen- ser (ser autor, ser escritor), mas de devir, de
tes respostas foram dadas a essa pergunta. tornar-se outra coisa que não um escritor.
Roland Barthes, por exemplo, definiu a li- Elogiando a superioridade da literatura an-
teratura como “o grafo complexo de uma glo-americana – Hardy, Melville, Stevenson,
prática: a prática de escrever” (BARTHES, Woolf, Wolfe, Lawrence, Fitzgerald, Miller,
1997, p.10). Mas em que consiste essa prá- Kerouac – sobre a literatura europeia, De-
tica? O que os escritores fazem quando es- leuze, na contracorrente da mitologia bur-
crevem? Trata-se realmente de escrever? guesa da escritura, concebe a literatura,
Que fluxos cruzam as linhas traçadas por muito prosaicamente, como um fluxo entre
um texto? outros:
O filósofo Gilles Deleuze deu a esse
Escrever é um fluxo entre outros,
questionário uma resposta bastante singu-
sem nenhum privilégio em relação
lar: escrever é devir. A literatura (a chamada aos demais, e que entra em relação
“grande literatura”) não é uma questão de

* Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (2002), professor na Universidade Estadual de Ponta
Grossa (UEPG), na área de Teoria da História. Professor do Programa de Pós-Graduação em História da UEPG. E-mail:
<apbenatti@ibest.com.br>.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 91-96, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 91
Antonio Paulo-Benatte

de corrente, contracorrente, de rede- lugar. “Por que se escreve? É que não se tra-
moinho com outros fluxos, fluxos de ta de escritura. [...] Escrever não tem outra
merda, de esperma, de fala, de ação, função: ser um fluxo que se conjuga com ou-
de erotismo, de dinheiro, de política, tros fluxos – todos os devires-minoritários
etc. (DELEUZE, 1992, p.17).
do mundo”. (Idem, p.63).
A filosofia deleuziana constrói cate- A literatura não é o fruto sublime de
gorias para pensar a relação complexa da um gênio transcendente, mas o produto
literatura com a subjetividade ou, o que dá histórico imanente de um agenciamen-
no mesmo, com a vida. Contra o formalis- to (coletivo) de enunciação. Para Deleuze,
mo, estruturalista ou quejandos, afirma que a literatura politicamente “efetiva”, como
o estilo de um escritor é antes uma questão prática de luta, de combate, de resistência,
de vida que de forma. Esse vitalismo nun- está do lado das minorias. O escritor é tão
ca é individual, mas social, pois que o texto, somente uma minoria, em conexão com ou-
produto imanente de uma prática, pode ser tras minorias. As minorias não são necessa-
agenciado a outras práticas que atravessam riamente numéricas, mas aquelas que, nas
e constituem o social, e com os quais um flu- relações de poder, formam minoria (as mu-
xo de escrita pode conectar-se, agenciar-se, lheres, por exemplo, são uma minoria entre
“fazer rizoma”. Em Deleuze e Guattari, a no- outras).
ção de agenciamento suplanta os conceitos A escritura, claro, é uma obra de lin-
de estrutura, sistema, forma, etc. “Um agen- guagem, um trabalho sobre a linguagem;
ciamento comporta componentes heterogê- mas uma língua não é ela mesma uma es-
neos, tanto de ordem biológica, quanto so- trutura ou um sistema em equilíbrio. Uma
cial, maquínica, gnosiológica, imaginária” língua é constituída por uma série de devi-
(GUATTARI; ROLNIK, 1986, p.317). res. A literatura (uma determinada literatu-
O escritor, para Deleuze, não é pro- ra) faz (pode fazer) rizoma com os devires-
priamente um sujeito; é um inventor de -minoritários da linguagem. Na medida em
agenciamentos, um contrabandista das que agencia, foge dos códigos dominantes,
multiplicidades: “O escritor inventa agen- que buscam capturá-la, domesticar sua as-
ciamentos a partir de agenciamentos que pereza selvagem. O exemplo de Kafka no
o inventaram, ele faz passar uma multipli- gueto judeu de Praga: “Uma língua domi-
cidade para outra.” (DELEUZE; PARNET, nante (uma língua que opera num espaço
1998, p.65). Não é falar por ninguém ou no nacional) pode ser localmente capturada
lugar de alguém: “Ao contrário, é preciso num devir minoritário. Ela será qualifica-
falar com, escrever com. Com o mundo, da de “devir menor”, como o dialeto alemão
com uma porção de mundo, com pessoas. de Praga utilizado por Kafka.” (GUATTARI;
De modo algum uma conversa, mas uma ROLNIK, op.cit., p.317).
conspiração, um choque de amor ou de ódio.” O devir do escritor não se confunde com
(Idem, p.65). Agenciar é simplesmente estar a figura historicamente construída do autor.
no meio de um mundo, nômade sem sair do O autor, como mostrou Michel Foucault, é

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 91-96, jan/jun. 2012


92 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Deleuze e a política da literatura: algumas observações

uma invenção recente, um dispositivo de um escritor a outro, ela salta como o


controle de uma nova ordem do discurso, e que deve ser recomeçado. (DELEUZE;
que anuncia o sistema literário da moderni- PARNET, 1998, p.52-53).
dade (FOUCAULT, 1992). Para a concepção Próximo da noção de linha de fuga está
deleuziana de escritura, trata-se justamen- o conceito de máquina de guerra. A litera-
te de confrontar esses controles, de criar tura é uma máquina de guerra que, numa
o que chama linhas de fuga. “É possível que errância nômade, pode conjugar-se a qual-
escrever esteja em uma relação essencial com quer outra matéria social. A literatura é
as linhas de fuga. Escrever é traçar linhas de assim uma relação (real ou virtual) com
fuga...” (DELEUZE; PARNET, 1998, p.56). todos os fluxos que constituem a socieda-
Não é uma contradição (como na dialética de. Ela foge ativamente dos aparelhos que
hegeliano-marxista), mas uma linha de de- bloqueiam e capturam as linhas de fuga,
riva, uma errância no sistema, e que apon- reterritorializando-as (no caso da escritu-
ta para fora do sistema ou para um sistema ra, transformando-a em mercadoria ou do-
aberto, rizomático. Numa sociedade, diz, mesticando-a sob a forma rígida do cânone
tudo foge: “uma sociedade, um campo so- ou da obra de autor). A intensidade de um
cial não se contradiz, mas ele foge, e isto é fluxo de escritura, força entre forças, con-
primeiro. Ele foge de antemão por todos os juga-se às máquinas de guerra contra as
lados; as linhas de fuga é que são primei- potências estabelecidas; e mesmo que, na
ras (mesmo que ‘primeiro’ não seja crono- sequência, essa intensidade seja capturada
lógico).” (DELEUZE, 1993, p.19). O filósofo e controlada, ela é, em sua finitude mesma,
reivindica a primazia ontológica, e não cro- uma ruptura, ou uma série de rupturas,
nológica, das linhas de fuga. Mesmo que, na com os modos dominantes de produção da
sequência, ela seja capturada, essas linhas linguagem. A politização da prática literá-
têm, efetivamente, uma “espontaneidade ria implica, pois, que se pense o poder mo-
rebelde”. rando na linguagem, constituindo jogos de
Experimentação ambígua a das linhas linguagem e sendo por eles constituído.
de fuga, e tanto mais perigosa quanto maior Escrever é traçar uma linha de fuga
for sua potência de vida; pois: dentro da linguagem, mas buscando o fora
O que nos diz que, sobre uma linha da linguagem, sua exterioridade. Histo-
de fuga, não iremos reencontrar ricamente, uma língua dominante não se
tudo aquilo de que fugimos? [...] constitui e se institui senão por relações de
Não se pode prever. Uma verdadeira poder. A política da literatura (de certa lite-
ruptura pode se estender no tempo ratura) é rebelde em relação a toda (re)co-
[...] ela deve ser continuamente pro-
dificação, quer dizer, às tomadas de poder
tegida não apenas contra suas falsas
operantes na história da linguagem. Como
aparências, mas também contra si
mesma, e contra as reterritorializa- devir minoritário, a literatura é sulcada no
ções que as espreitam. Por isso, de corpo mesmo da linguagem, trapaceando

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 91-96, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 93
Antonio Paulo-Benatte

com ela, fazendo-a deslocar-se. Afinal, toda É evidente que o devir revolucionário
obra de arte é uma ruptura, ainda que um do escritor não passa, necessariamente,
experimento vital imperceptível, pois “So- pelo engajamento militante de sua pessoa
bre as linhas de fuga, só pode haver uma civil ou pela tendência política de sua oeuvre.
coisa, a experimentação-vida.” (Idem, p.61) Não passa pela sua “ideologia” (para Deleu-
Uma linha de fuga não é capitulação covar- ze, não existe ideologia porque uma socie-
de, evasão da vida ou recusa da ação; uma dade não se define por suas contradições,
fuga é positiva e propositiva: ela é ação, quer mas por suas linhas de fuga, que são onto-
dizer, produção de acontecimentos, mesmo logicamente primeiras); a política da litera-
que sejam acontecimentos imperceptíveis. tura pouco ou nada tem a ver com os “equi-
valentes de classe” ou os compromissos
Fugir não é renunciar às ações, nada
mais ativo que uma fuga. É o contrá- políticos de uma vanguarda artística. Bar-
rio do imaginário. É também fazer thes afirmou uma concepção semelhante:
fugir, não necessariamente os outros, o escritor é tão somente “um senhor entre
mas fazer alguma coisa fugir, fazer outros” (BARTHES, 1997, p.12). O radicalis-
um sistema vazar como se fura um mo próprio da literatura opera na transver-
cano. (Idem, p.49). salidade. Os aparelhos do Estado, do capital,
Surge, portanto, uma questão política: dos códigos, se constituem por captura das
o que pode essa prática? Qual a potência da máquinas de guerra, mas uma máquina de
literatura contra os poderes do mundo? A guerra é sempre irredutível a todos os apa-
resposta deleuziana é muito simples. Con- relhos. Segundo o filósofo, seria necessário:
tra uma vida miserável, fascista, a literatu- buscar um estatuto para as ‘máqui-
ra, quando consegue traçar uma verdadeira nas de guerra’, que já não seriam de-
linha de fuga, conectando-se com uma má- finidas de modo algum pela guerra,
quina de guerra, ela converte-se em “pro- mas por uma certa maneira de ocu-
gramas de vida” ou “protocolos de experiên- par, de preencher o espaço-tempo, ou
cia”. Torna-se ela mesma uma arma capaz de inventar novos espaços-tempos.
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.12).
de resistir e criar, porque, afinal, a única
forma de resistência é a criação permanente Quando um fluxo de escritura traça
de novas possibilidades de vida. Na medida uma linha de fuga, de desterritorialização/
em que a equação literatura = vida for uma dessubjetivação, ele entra numa relação
equação efetiva, uma verdadeira traição aos com a exterioridade. Se toda fuga é uma es-
aparelhos e códigos, a potência da vida atra- pécie de delírio, a literatura é o delírio su-
vessa a obra, tornando-a singularidade e di- premo da linguagem, febre ou incandescên-
ferença ativa. Por isso, a literatura está do cia do discurso, intensidade capaz de fazer
lado do informe, do que ainda não tem uma a linguagem sair dos eixos, pirar, saltitar
forma e que, por vezes, é uma cesura, uma como um demônio em busca da segunda
experiência-limite. noite. Essa concepção de literatura libera os

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 91-96, jan/jun. 2012


94 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Deleuze e a política da literatura: algumas observações

impulsos experimentadores da linguagem. Ao inventar, ao experimentar novas


Não se trata de representar, significar ou possibilidades de vida, a literatura, como
interpretar, mas de experimentar. No limite estilística da existência, remete necessaria-
(que é onde as coisas realmente acontecem), mente à ética e à política, pois, afinal, são
a equação literatura = vida implica, para o os estilos de vida que nos constituem histo-
escritor, produzir a própria vida como obra ricamente de um modo ou de outro. Criar,
de arte, quer dizer, singularidade e diferen- nesse contexto, significa, pois, estabelecer
ça ativas. Experimentação da linguagem e “uma relação consigo que nos permita re-
de si mesmo num processo de estetização sistir, furtar-nos, fazer a vida ou a morte
da existência, a literatura torna-se assim voltarem-se contra o poder.” (DELEUZE,
uma espécie de cartografia do informe. 1992, p.123). No limite trágico de uma linha
Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari se valem de fuga, mesmo o silêncio, a solidão, o de-
de uma concepção geográfica da escritura serto, a loucura, o suicídio, fazem parte dos
para criticar as teorias da representação e estilos de vida.
da significação: “Escrever nada tem a ver Para quem se depara pela primeira
com significar, mas com agrimensar, car- vez com a linguagem hermética do pós-
tografar, mesmo que sejam regiões ainda -estruturalismo e com as idiossincrasias do
por vir.” (Idem, p.13) Daí essa noção vita- pensamento deleuziano, sua concepção de
lista, nietzschiana, de estilo: “O estilo, num literatura pode parecer estranha, esquizo-
grande escritor, é sempre também um es- frênica, um pouco clown. É, com efeito, um
tilo de vida, de nenhum modo algo pessoal, pensamento que desestabiliza nosso modo
mas a invenção de uma possibilidade de vida, costumeiro de pensar. Mas, por isso mes-
de um modo de existência.” (DELEUZE, mo, ela importa para o campo dos estudos
1992, p.126). literários e linguísticos, especialmente nos
Ao cabo, essa concepção vitalista de li- domínios da sociolinguística, da história da
teratura implica uma nova imagem do livro: literatura e no estudo das relações entre li-
teratura, indivíduo e sociedade.
Um livro existe apenas pelo fora e
no fora. Assim, sendo o próprio livro
uma pequena máquina, que relação, Referências
por sua vez mensurável, esta máquina
literária entretém com uma máqui- BARTHES, Roland. Aula. 6. ed. São Paulo:
na de guerra, uma máquina de amor, Cultrix, 1997.
uma máquina revolucionária, etc. – e DELEUZE, Gilles; GUATTARI, F. Mil platôs:
com uma máquina abstrata que as ar- Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro:
rasta. [...] a única questão, quando se Editora 34, 1995, v. 1.
escreve, é saber com que outra máqui- ______.; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo:
na a máquina literária pode estar liga- Editora Escuta, 1998.
da, e deve ser ligada, para funcionar.
______. Conversações. Rio de Janeiro: Editora
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.12).
34, 1992.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 91-96, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 95
Antonio Paulo-Benatte

______. Desejo e prazer. Cadernos de


subjetividade, São Paulo: PUC-SP, v. 1, n. 1,
1993.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa:
Vega, 1992.
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolí-
tica: cartografias do desejo. 2.ed. Petrópolis:
Vozes, 1986.

Recebido para publicação em: 04 abr. 2012.


Aceito para publicação em: 31 ago 2012.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 91-96, jan/jun. 2012


96 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Doi: 10.5212/Uniletras.v.34i1.0008

Poder e decadência em São Bernardo, La casa


de los espíritus e O manual dos inquisidores

Poder y decadencia en São Bernardo, La casa


de los espíritus y O manual dos inquisidores
Josiane Aparecida Franzó*

Resumo: O objetivo deste estudo é fazer uma comparação entre os romances São
Bernardo, La casa de los espíritus e O manual dos inquisidores tendo como foco principal
os personagens masculinos: suas posições de poder, muito bem representadas em
suas propriedades; a necessidade da total apropriação da mulher, suas esposas; a
impossibilidade desta apropriação e, consequentemente, a decadência psicológica,
física e moral desses indivíduos. A comparação aqui proposta leva em consideração
o contexto histórico em que estes personagens estão inseridos: golpes militares e
mudanças do cenário político e econômico, bem como o papel fundamental que as
mulheres exercem sobre seus esposos, funcionando mesmo como ativadoras do
processo de transformação deles.
Palavras-chave: Homem. Poder. Mulher. Decadência.

Resumen: El objetivo de este estudio es hacer una comparación entre las novelas
de San Bernardo, La casa de los espíritus y El manual de los inquisidores teniendo como
enfoque principal los personajes masculinos: sus posiciones de poder, muy bien
representadas en sus propiedades; la necesidad de total apropiación de la mujer,
sus esposas; la imposibilidad de esta apropiación y por lo tanto, la decadencia
psicológica, física y moral de estos individuos. La comparación que aquí se propone
tiene en cuenta el contexto histórico en que estos personajes se introducen: los
golpes militares y los cambios de la escena política y económica, así como, el papel
crucial que las mujeres tienen sobre sus maridos, actuando mismo como activadoras
del proceso de transformación de ellos.
Palabras-clave: Hombre. Poder. Mujer. Decadencia.

* Doutoranda em Teoria Literária no Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Cata-
rina. E-mail: <josianefranzo@hotmail.com>.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 97-111, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 97
Josiane Aparecida Franzó

Em geral, quando nos deparamos com Em relação ao produto acabado, ou


uma obra literária que aborda fatos históri- seja, a criação, Walter Benjamin (1994) irá
cos, nós, leitores, temos a tendência de pro- dizer que articular historicamente o passa-
curar compreender esta obra como registro do não significa conhecê-lo como ele foi de
real de determinada época, não separando fato, mas significa apropriar-se de uma re-
muito bem o limite entre ficção e realidade, miniscência. Tal ideia é avalizada por Már-
esquecendo que a literatura é a tentativa de cio Seligmann-Silva (2005) que diz que a li-
reprodução do real de acontecimentos res- teratura encena a criação do “real”. Embora
gatados pela memória. nesta encenação as palavras nem sempre
Mikhail Bakhtin (1997, p.211), em sua deem conta do real, do vivido, como bem ex-
obra Estética da criação verbal, defende que pressou Lobo Antunes1 em entrevista: “E de-
quando se tende exclusivamente a reconhe- pois aquilo que a gente sente é tão mais forte
cer, quando se busca unicamente o conheci- que as palavras...”. Contudo, a literatura faz
do (o que já ocorreu), impede-se a revelação parte da história e, como parte desta, está
do novo, daquilo que constitui o essencial, o carregada de elementos daquele momento.
conjunto irreproduzível. Conforme Bakhtin Cabe ao escritor, enquanto artesão (nos ter-
(1997, p.211), a pessoa aproxima-se da obra mos de Sartre), reorganizar estes elementos
com uma visão do mundo já formada, a par- e transpô-los para sua criação. Neste senti-
tir de um dado ponto de vista. Ainda segun- do, partindo da visão de que o escritor, em
do o autor, esta situação em certa medida sua obra, de modo acidental ou proposital,
determina o juízo sobre a obra, mas nem por depõe sempre sobre sua época, propomo-
isso permanece inalterada: ela é submetida à -nos a estabelecer uma comparação entre
ação da obra que sempre introduz algo novo, São Bernardo, de Graciliano Ramos, publica-
pois uma obra, poderosa e profunda, é, sob do em 1933, La casa de los espíritus, de Isabel
muitos aspectos, inconsciente e portadora de Allende, publicado em 1982, e O manual dos
sentidos múltiplos (idem, p.211). inquisidores, de António Lobo Antunes, pu-
Sobre a posição do leitor diante de uma blicado em 1996. Escritos em épocas dife-
obra, Jean-Paul Sartre (1994, p.64) considera rentes, em países diferentes – Brasil, Chile
que: e Portugal respectivamente, esses romances
trazem como pano de fundo, ainda que não
[...] a verdadeira relação do leitor com
se perca o foco de que são ficções, recortes
o autor continua sendo o não-saber;
ao ler o livro, o leitor deve ser levado da vida, do governo vigente, da sociedade,
indiretamente a sua própria realidade enfim, do contexto histórico em um deter-
de singular universal; ele deve se re- minado momento de cada um desses países.
alizar – não só porque entra no livro, Vale a pena ressaltar que os criadores
mas porque nele não entra totalmen- destes romances tiveram, cada qual de um
te – como uma outra parte do mesmo
todo, como uma outra visão do mun-
do sobre ele mesmo (grifos nossos). 1 Disponível em: <http://www.ala.nletras.com/citario/
politica.htm>. Acesso em: 10 ago. 2010.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 97-111, jan/jun. 2012


98 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Poder e decadência em São Bernardo, La casa de los espíritus e O manual ...

modo particular, contato direto com as dita- de refletir sobre a semelhança temática que
duras retratadas em suas obras, bem como permeia os três romances: o poder concen-
com o que se estabeleceu depois delas. Graci- trado na figura de um indivíduo, os golpes
liano Ramos, sensível aos problemas sociais, militares, a opressão aos desfavorecidos, a
consciente do seu papel enquanto homem tentativa de posse da mulher amada e a de-
das letras, filia-se ao Partido Comunista e cadência financeira, física e moral.
acaba sendo preso pelos militares2. Isabel Estes romances têm em comum a figu-
Allende, como parenta direta do presiden- ra masculina como personagem principal,
te Salvador Allende, assassinado no Chile, é sua propriedade como reflexo de seu poder e
obrigada a abandonar o país, e será a partir a fragilidade diante de mulheres, que foram
deste exílio que irá compor a obra aqui refe- amadas, porém, incompreendidas por eles.
rida. E Lobo Antunes, que em entrevista ex- Há entre os três personagens uma
pressou que é preciso muito sofrimento para força motriz natural que os torna opresso-
escrever bem – para tocar os outros –, e que res das classes menos favorecidas, de todas
queria que cada página de sua obra fosse um as formas possíveis. São três patriarcas,
espelho – para o leitor, serviu em Angola no representações do poder, que fazem o que
período ditatorial, e anos mais tarde torna-se bem entendem com tudo e todos, agindo
militante da Aliança Povo Unido – APU, por como se pessoas não passassem de meros
um curto período de tempo3. objetos de uso: “encolhida de medo por ser o
Desse modo, tendo ciência de que em patrão, por ser rico, por ser ministro ou as-
algum momento da vida destes escritores, sim, por mandar em muita gente em Lisboa
eles foram testemunhas oculares das mu- [...]” (ANTUNES, s/d, p.17).
danças políticas ocorridas em seus países Dos três romances, São Bernardo é
e, ainda que em recortes, levaram para suas o único que tem apenas um narrador, o
obras fatos da realidade4, não se pode deixar próprio Paulo Honório, que nos relata toda
a sua trajetória – de menino pobre a grande
latifundiário. Com pais desconhecidos, não
2 Para exemplo meramente ilustrativo citamos frag- mencionados em sua certidão de nascimen-
mentos de Auto-retrato aos 56 anos, onde Graciliano assim
se define (em terceira pessoa): “É ateu”, “Odeia a burgue- to, e sendo, como ele próprio anuncia no
sia”, “Deseja a morte do capitalismo”, “Apesar de o acha- início de sua narração, o “iniciador de uma
rem pessimista, discorda de tudo”, “Esteve preso duas
vezes. É lhe indiferente estar preso ou solto”. família”, o que para ele não deixa de ser um
3 Em entrevista no ano de 1997, Lobo Antunes assim bônus, pois o livrou “da maçada de suportar
explica seu desligamento do partido: “A forte hierarquia,
a ausência de debate aberto e alargado, isso assusta-me
parentes pobres” (RAMOS, 1983, p.12).
um bocado”. Disponível em: <http://www.ala.nletras. Paulo Honório, ainda jovem, decide
com/citario/politica.htm>. Acesso em: 10 ago. 2010.
ganhar dinheiro, mas “o capital se desviava”
4 Seligmann-Silva assim discorre sobre a literatura de
testemunho: “Na qualidade de produto do intelecto, seu dele e depois de muita penúria, determina-
testemunho está inscrito na própria linguagem, no uso ção e coragem: “sofri sede e fome, dormi
que faz dela, no modo como através de uma intrincada
tecedura ela amarra o ‘real’, a imaginação, os conceitos e na areia dos rios secos, briguei com gen-
o simbólico”. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p.76). te que fala aos berros e efetuei transações

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 97-111, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 99
Josiane Aparecida Franzó

comerciais de armas engatilhadas” (idem, p.73-74). Embora seu braço direito na fazen-
p.14), consegue enganar o filho do anti- da insistisse em lhe dizer que não seriam es-
go patrão e obter a fazenda São Bernardo. tas casas ou algum alimento que o tornaria
Com todos os esforços possíveis recons- um bom patrão, e sim um salário digno pelo
trói a propriedade. Adepto das novidades trabalho recebido.
tecnológicas de plantio, adquire máquinas Já de Francisco se sabe que é proprietá-
modernas, emprestando dinheiro do banco rio da Quinta Palmela, ministro do governo
e ganhando várias causas no fórum graças de Salazar e com grande influência sobre
ao seu advogado. Além disso, maneja os vá- todos os poderes da sociedade portuguesa:
rios poderes ao seu redor: padre, capanga, “o retrato do senhor cardeal com o senhor
advogado, jornalista, passando por cima doutor, o retrato do almirante com o senhor
de tudo com um único propósito: o ganho. doutor, o retrato do professor Salazar com
Tudo e todos são para Paulo Honório ape- o senhor doutor, o retrato do Papa com o
nas objetos de lucro, ou intermediários para senhor doutor [...]” (ANTUNES, s/d, p.30).
este fim. Francisco era tão influente que não tirava
Esteban tem uma caminhada pareci- o chapéu nem para Salazar: “que nem para
da com a de Paulo Honório. De sobrenome ele tirava o chapéu da cabeça nem deixava
nobre por parte de mãe, mas com infância de fumar [...]” (idem, p.30).
pobre, decide, depois de ganhar algum di- Os três protagonistas, independente-
nheiro nas minas onde: “Trabajaba como mente da origem de sua classe social, apre-
um animal y las pocas veces que me senta- sentam um caráter selvagem, autoritário e
ba a descansar, obligado por el tedio de al- ao mesmo tempo solitário. No caso de Fran-
gún domingo, sentía que estaba perdiendo cisco e Esteban Trueba, o lado animal de seu
momentos preciosos [...]” (ALLENDE, 2001, apetite sexual predomina e o modo de apla-
p.31), recuperar a fazenda em ruína que per- car esta selvageria é estuprando as filhas
tencera a sua família: “Para sacar a Las Tres dos empregados das suas propriedades:
Marías de la miseria destiné todo el capital
Esteban no se quitó la ropa. La acometió
que habiá ahorrado […]”, “pero no fue el di-
con fiereza incrustándose en ella
nero el que salvó a esa tierra, sino el traba- sin preámbulos, con una brutalidad
jo y la organización” (idem, p.63). Esteban inútil. Se dio cuenta demasiado tarde,
torna-se um latifundiário rico, poderoso, por las salpicaduras sangrientas en
cruel e reacionário, transformando Las Tres su vestido, que la joven era virgen,
Marías em uma potência, tanto que “en el pero ni la humilde condición de
transcurso de los diez años siguientes, Es- Pancha, ni las apremiantes exigencias
teban Trueba se convirtió en el patrón más de su apetito, le permitieron tener
contemplaciones. Pancha García no
respetado de la región, construyó casas de
se defendió, no se quejó, no cerró los
ladrillo para sus trabajadores, consiguió un
ojos. Se quedó de espaldas, mirando
maestro para la escuela y subió el nivel de el cielo con expresión despavorida,
vida de todo el mundo en sus tierras (idem,

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 97-111, jan/jun. 2012


100 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Poder e decadência em São Bernardo, La casa de los espíritus e O manual ...

hasta que sintió que el hombre se minha nuca e designando com des-
desplomaba con un gemido a su lado. prezo a cozinha, os quartos das cria-
Entonces empezó a llorar suavemente. das, o pomar, a quinta inteira, o mun-
Antes que ella su madre, y antes que do [...]. (ANTUNES, s/d, p.03). [...]
su madre su abuela, habían sufrido el [...] o senhor doutor de cinto desaper-
mismo destino de perra. (ALLENDE, tado, de colete aberto, prendendo-me a
2001, p.68). […] cintura com as coxas, a rir-se sopran-
No pasaba ninguna muchacha de la do-me o fumo da cigarrilha na nuca
pubertad a la edad adulta sin que la - Quietinha rapariga
hiciera probar el bosque, la orilla del eu assustada pelo meu sangue a pin-
río o la cama de fierro forjado. Cuando gar nas estrias do cimento, pela ebuli-
no quedaron mujeres disponibles en ção das vacas, pelos guinchos do moi-
Las Tres Marías, se dedicó a perseguir nho a trambulhar a sul, a querer pedir
a las de otras haciendas, violándolas en ao senhor sem ser capaz de pedir
un abrir y cerrar de ojos, en cualquier - Jure que não me corta a garganta não
lugar del campo, generalmente al me corte a garganta por favor não me
atardecer. No se preocupaba de hacerlo corte a garganta [...]. (idem, p.40-41).
a escondidas, porque no le temía a
nadie. (idem, p.74). Todavia, independente de que mulher
esteja ao seu lado, em todos os seus atos
Francisco, após ser rejeitado e aban- não deixa de afirmar sua posição de senhor:
donado por Isabel – a quem amava muito – “Faço tudo o que elas querem mas nunca
passa a sentir uma grande necessidade de tiro o chapéu da cabeça para que se saiba
autoafirmação, por isso, além de violentar a quem é o patrão” (idem, p.13).
filha do empregado, começa a manter rela- Paulo Honório, antes de sentir amor
ções sexuais com mulheres de várias cama- por Madalena, ainda que tenha mantido re-
das sociais – de sua cozinheira até a viúva do lações com outras mulheres, não tinha estes
farmacêutico: ímpetos descritos acima e sua única preocu-
O meu pai de mão aberta na nuca da pação era providenciar um herdeiro:
filha do caseiro, uma adolescente des- Amanheci um dia pensando em casar.
calça, suja, ruiva, suspensa das tetas Foi uma ideia que me veio sem que
das vacas acocorada num banquinho nenhum rabo-de-saia a provocasse.
de pau, a filar-lhe o cachaço e a obri- Não me ocupo com amores, devem
gá-la a dobrar-se para a manjedoura ter notado, e sempre me pareceu que
sem largar os baldes do leite, o meu mulher é um bicho esquisito, difícil de
pai outra vez escarlate a esmagar-lhe o governar.
umbigo nas nádegas, de cigarrilha ace-
sa apontada às vigas do tecto sem que A que eu conhecia era a Rosa do Marcia-
a filha do caseiro protestasse, sem que no, muito ordinária. Havia conhecido
ninguém protestasse ou imaginasse também a Germana e outras dessa
protestar, o meu pai tirando a mão da laia. Por elas eu julgava todas. Não me

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 97-111, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 101
Josiane Aparecida Franzó

sentia, pois, inclinado para nenhuma seus respectivos pares entram num proces-
mulher: o que sentia era desejo de so catártico. Pode-se dizer que a decadência
preparar um herdeiro para as terras dos três personagens começa exatamente a
de S. Bernardo. (RAMOS, 1983, p.59, partir da ausência delas. Tal função funda-
grifo nosso).
mental das mulheres projeta-se na própria
Seu plano é tão racional que, dentre os estrutura do enredo de São Bernardo e de
três personagens, é o único que não tem fi- La casa de los espíritus, já que a partir de sua
lhos bastardos. Filho bastardo significa par- entrada bem como de sua saída, a estrutura
tilha de posses, e este risco definitivamente global do enredo disso fica dependente. Ou
Paulo Honório não estava disposto a correr. seja, a estrutura da narrativa se organiza em
Embora façam e desfaçam das mulhe- função (ou em grande parte) da presença/
res que cruzam seus caminhos, usando de ação de cada uma dessas mulheres5. Em São
todo seu poder como “senhor da casa gran- Bernardo isso é colocado de forma bem ex-
de”, Paulo Honório, Esteban e Francisco plícita. A partir do momento em que Paulo
– ainda que este passe a ter essas atitudes Honório conhece Madalena, a fazenda pas-
somente depois de Isabel traí-lo e deixá- sa a um segundo plano. Segundo João Luís
-lo – encontram na figura de suas esposas Lafetá (1983), com a entrada de Madalena
a impossibilidade de dominação. Pode-se em cena, todos os motivos temáticos – ma-
dizer que, por conta disso, os papéis delas nobras, negócios, brigas – convergem e en-
são fundamentais para o processo de auto- contram sua unidade no novo fito de Paulo
desvelamento pelo qual os respectivos per- Honório: a posse da mulher.
sonagens-narradores passam em relação ao A princípio, Madalena reluta em casar,
conhecimento de si próprios. Ou, dizendo mesmo assim, diante da pressão de Paulo
de outro modo, são três narrativas em que Honório, ela sucumbe, contrai matrimônio
os protagonistas masculinos vivem um pro- sem amor e acaba prisioneira de um tirano.
cesso de crise existencial e de identidade, e Como militante dos trabalhadores mi-
elas (Madalena, Clara e Isabel) são essen- seráveis da fazenda, Madalena enfrenta um
ciais para provocar o início e a evolução des- senhor de posses, seu próprio marido, tenta
se processo psicomoral em cada um deles. derrubar a barreira de classe e de poder que
É pela ação, ideias e sentimentos, pelo está instalada em São Bernardo, e com seu
modo de ser e pelos questionamentos de- amor ao próximo, desestrutura o mundo
las que cada protagonista masculino acaba capitalista de Paulo Honório, que diz, por
passando por um processo de transforma- exemplo que: “[...] Essa gente faz o que se
ção. Basta observar como eles são no início
do relacionamento, o conflito existencial 5 Ainda que Isabel seja retomada pelos diversos narra-
dores do romance (havendo momentos em que também
pelo qual passam e como se encontram de- “fala/narra”), é inegável que seu papel seja fundamental
pois da ausência delas. E é após a morte ou para a transformação ocorrida com o personagem prin-
cipal. Todavia, será complexo falar que o enredo esteja
abandono de cada uma dessas mulheres que estruturado em função dela, uma vez que esta ficção pos-
sui uma estrutura fragmentada.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 97-111, jan/jun. 2012


102 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Poder e decadência em São Bernardo, La casa de los espíritus e O manual ...

manda, mas não vai sem pancada. E Mar- nele. Um homem rude, racional e extrema-
ciano não é propriamente um homem”. mente egoísta e que se vê de repente num
(RAMOS, 1983, p.110). Ou seja, ela uma hu- dilema entre Madalena e São Bernardo, en-
manitária em potencial e ele um explorador tre o amor desapegado e o sentimento de
de mão de obra que não considera o empre- propriedade.
gado como ser humano, mas sim como bi- Acerca deste dilema, FELDMANN
cho: “Havia bichos domésticos, como o Padi- (1998) afirma que Paulo Honório não conse-
lha, bicho do mato, como o Casimiro Lopes, e gue abandonar a sua gaiola dourada de São
muitos bichos para o serviço do campo, bois Bernardo e entranhar-se no mundo de sua
mansos” (idem, p.182, grifos nossos). esposa, tão diversamente estruturado: “Co-
Helmut Feldmann (1998) diz que em nhecia nada! Era justamente o que me tirava
São Bernardo, onde se exterioriza toda a au- o apetite. Viver com uma pessoa na mesma
toexpansão e afirmação incondicionais de casa, comendo na mesma mesa, dormindo
Paulo Honório, qualquer forma de altruís- na mesma cama, e perceber ao cabo de anos
mo atua como dinamite. Assim, Madalena, que ela é uma estranha!” (idem, p.148).
com sua compaixão espontânea pela infeli- Esta talvez tenha sido a maior angús-
cidade dos pobres, começa a minar os fun- tia de Paulo Honório – não ter conseguido
damentos de São Bernardo. penetrar no mundo de Madalena, não tê-la
Paulo Honório aos poucos vai enten- compreendido em vida. Seu altruísmo, seu
dendo que sua mulher se torna o adversário desapego a bens materiais, sua sensibilida-
mais perigoso da sua obra: “Misturei tudo ao de, tudo lhe fugiu à compreensão. Incom-
materialismo e ao comunismo de Madalena” preensão que LAFETÁ (1983, p.204) descreve
(idem, p.132), e, por conseguinte, da sua pes- assim:
soa: “Eu construindo e ela desmanchando”.
[...] Paulo Honório: egoísta e brutal.
Mas o que está sendo desmanchado
Não consegue compreender a mulher,
por Madalena? A ordem na propriedade? pois é incapaz de senti-la em sua inte-
Um sistema já instaurado e consolidado. gridade humana e em sua liberdade,
“Conheci que Madalena era boa em de- e a considera apenas como mais uma
masia [...]” (idem, p.101), ela é exatamente coisa a ser possuída.
o oposto do esposo. É culta, solidária, ge-
Somente após a morte de sua amada e
nerosa, comunista, intelectual, sensível aos
da solidão que se instalou em São Bernardo,
problemas alheios, adepta de mudanças e
é que Paulo Honório reflete sobre sua vida
inconformada com o sistema vigente. Por
e a consequência de seus atos, e percebe o
tudo isso, interfere na rotina de exploração
quão errado agiu em relação a Madalena e a
e domínio perpetuada pelo esposo.
sua própria vida:
Podemos acreditar que, em verdade,
Paulo Honório não sabe como lidar com os Madalena entrou aqui cheia de bons
sentimentos que a companheira desperta sentimentos e bons propósitos. Os

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 97-111, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 103
Josiane Aparecida Franzó

sentimentos e os propósitos esbarra- ausências de seus filhos, nada muda. Clara


ram com a minha brutalidade e o meu continua no seu mundo, no seu silêncio.
egoísmo. (RAMOS, 1983, p.187). [...] Já Isabel, esposa de Francisco, não tinha
Foi este modo de vida que me inutili- este lado altruísta. O que a move a desistir
zou. Sou um aleijado. Devo ter um co-
de uma vida de luxo, prestígio e até mesmo
ração miúdo, lacunas no cérebro, ner-
vos diferentes dos nervos dos outros
de seu filho pequeno, é a constante carência
homens. E um nariz enorme, uma do esposo que, com sua necessidade a cerca-
boca enorme, dedos enormes. va de todos os modos: “– Não me deixas em
Se Madalena me via assim, com cer- paz nem um momento Francisco?” (ANTU-
teza me achava extraordinariamente NES, s/d, p.101). O esposo, sem entender,
feio. (ibidem). ou até mesmo perceber sua situação, seu
desejo de liberdade, passa a interrogá-la
Do mesmo modo, Esteban não conse-
constantemente: “gostas de mim não gostas
gue trazer Clara para seu mundo, violento,
Isabel”? (idem, p.291), e “a senhora a fitá-lo e a
capitalista e fechado. É preciso dizer que,
desinteressar-se dele” (idem, p.103). Sentindo-
apesar de conviverem anos e anos juntos,
-se prisioneira, incapaz de sustentar por mais
ela sempre esteve num mundo à parte, aju-
tempo o casamento, foge com alguém inferior
dando os camponeses, socorrendo os neces-
à figura do marido, e na sequência passa a vi-
sitados, abrigando os desconhecidos.
ver modestamente, porém com o que sempre
Quanto mais Clara se doava para as
desejou: “foi para ficar sozinha, longe deles, da
pessoas ao seu redor, mais Esteban sen-
sua angústia e da sua pressa, da sua ansieda-
tia a necessidade de possuir sua atenção.
de de antes e do seu desprezo de depois [...]”
O desejo de posse e ciúme de Esteban che-
(idem, p. 349). Por esta opção de viver em li-
ga ao ponto de odiar seus filhos e expulsar
berdade6, Isabel transgride os padrões deter-
sua irmã Férula por sentir neles um obstá-
minados para mulheres de sua classe social e
culo entre ele e Clara: “Cada obstáculo que
da sua posição – a de esposa de ministro.
su hermana atravesaba entre Clara y él,
Este sentimento de se libertar daquela
lo ponía fuera de sí. Llegó a detestar a sus
vida aparentemente tão bem estruturada,
propios hijos porque absorbían la atención
protótipo de família feliz, e do seu marido
de la madre […]” (ALLENDE, 2001, p.142).
carente, persiste mesmo depois desta ter
Porém, ainda que tente isolá-la, para que
assim pudesse tê-la totalmente, cada passo
que dá em direção a ela, cada atitude para 6 Nos trechos a seguir percebemos o drama de uma
mulher que sente o desejo de se libertar do fardo de ter
afastá-la de outros acaba por ampliar o dis- que viver uma vida a dois: “eu que não pedira, que na que-
tanciamento que já se anunciava entre eles: ria nada, a quem não apetecia nada salvo estar sozinha
sem homens a perseguirem-me com os seus interrogató-
“Mientras más distante estaba Clara, más rios sem sentido” - “sozinha sem o peso insuportável de
grande era la necesidad que yo sentía de su acharem que gostavam de mim, me acordarem no meio
da noite sobressaltando-me com perguntas” - “onde não
amor” (idem, p.190). Depois da partida de me inquietavam, não me aborreciam, não me visitavam
Férula, que morre em seguida, e frequentes nem me tocavam nem me faziam perguntas, onde me
deixavam em paz [...]”. (ANTUNES, s/d, p.349).

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 97-111, jan/jun. 2012


104 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Poder e decadência em São Bernardo, La casa de los espíritus e O manual ...

deixado o amante e de ser procurada por de Madalena e então (como efeito) se põe a
Francisco, que insiste em implorar a sua escrever suas memórias.
volta: “Não adianta chorar Francisco não Nos outros dois romances, apesar de
chores eu estou bem palavra que estou bem múltiplos narradores, há momentos em
não te preocupes não vou voltar contigo que os próprios personagens resgatam re-
não insistas não me digas nada não adianta cordações na tentativa de entender o que
chorar [...] (idem, p.315). Tal rejeição nunca se passou. Em O manual dos inquisidores, em
foi superada por Francisco: “quando a Isa- que toda a história de Francisco é relatada
bel me trocou por outro” (idem, p. 354), que por outros narradores, é ele que fecha o ro-
depois de convencer uma outra mulher a mance, retomando a figura de sua esposa:
se vestir e se portar como Isabel7, desabafa: “não concebo este nome sempre a voltar-me
“– A pessoa que me fazes lembrar também à ideia, sempre a voltar-me à boca, esta re-
nunca me teve amor” (idem, p.310). cordação, esta lembrança [...]” (ANTUNES,
A narrativa em primeira pessoa tem s/d, p.356), e continua: “a ver se consigo
caráter confessional: o protagonista narra- entender-lhe a importância, o sentido [...]”
dor é levado a narrar catarticamente o pro- (ibidem).
cesso transformador pelo qual passou numa Em suma, pode-se dizer que Madalena,
tentativa de, através da palavra-narrativa Clara e Isabel funcionam como o elemen-
(seu papel ordenador do cosmo – O Logos), to ativador do processo de transformação
tentar entender o que se passou. Em São desses protagonistas. Pois é a impossibili-
Bernardo, especificamente, a necessidade de dade de compreendê-las, a impossibilidade
narrar está diretamente vinculada à neces- de penetrar em suas almas e desvendá-las,
sidade de procurar organizar o seu cosmo/ querendo dominá-las, sufocando-as, na ten-
vida para tentar entendê-la. Mas, o auto- tativa de moldá-las às suas maneiras que os
conhecimento passa pelo conhecimento do coloca em situações de conflitos, conduzin-
outro – da outra – que é/foi a causadora, a do-os a um drama interior. Se não alcançam
motivadora do processo de transformação a essência das mulheres, não compartilham
no qual ele foi projetado. Paulo Honório, suas ideias, não se fundem, não tocam seus
por exemplo, ouve o pio da coruja, se lembra espíritos, isso para eles se torna insuportá-
vel, fazendo-os se sentirem incapazes. Justo
eles que, a priori, se quisessem, teriam tudo
7 Esta atitude de Francisco é uma tentativa de reviver
a sua mão.
uma época em que era feliz com sua esposa: “entrava num
apartamento empoleirado sobre as trevas do parque, que Vale lembrar que, se não conseguiram
aluguei e decorei e paguei e fazia de conta ser a minha casa
penetrar na intimidade de suas esposas e
como fazia de conta que a mulher que me recebia no capa-
cho e se vestia como a Isabel, se penteava como a Isabel, desvendar seus mistérios, não foi por fal-
usava o perfume da Isabel era de facto a Isabel, não a Isabel
ta de desejo nem de tentativas – ainda que
da altura da separação mas a Isabel do tempo em que nos
conhecemos, uma mulher que aluguei e decorei e paguei tentativas ao seu modo –, mas sim por não
[...] e eu a afagar a Isabel através daquela a quem chamava
compreenderem que suas mulheres não
Isabel [...]”. (ANTUNES, s/d, p.355).

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 97-111, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 105
Josiane Aparecida Franzó

compartilhavam dos mesmos objetivos, dos em sua vida, mesmo que nunca tivesse per-
mesmos pensamentos, nem tampouco esta- cebido plenamente isto: “La muerte de Clara
vam dispostas a mudar seus ideais em prol transtornó por completo la vida de la gran
de uma convivência menos conflituosa. Em casa de la esquina. Los tiempos cambiaron.
consequência disto, cada uma buscou um Con ella se fueron los espíritus, los huéspe-
escape para que assim pudessem conviver des y aquella luminosa alegría que estaba
com seus maridos. Madalena e Clara, na as- siempre presente […] (ALLENDE, 2001, p.
sistência aos desvalidos, e Isabel se refugiou 310). E este brilho natural que Clara possuía
nos braços de um amante. Clara, por amar funcionava como uma espécie de energia
seu marido e por viver no seu mundo parti- para todos e tudo que estivesse ao seu re-
cular, conseguiu, a seu modo, manter-se por dor, tanto que: “En el transcurso de los años
muito mais tempo ao lado de Esteban. siguientes la casa convertió en una ruina”
Como dito acima, Paulo Honório, Es- (idem, p.311). E assim como sua proprieda-
teban e Francisco veem suas mulheres como de, após a morte de Clara, o senador Trueba
propriedades e tentam de certa forma se também vê seu mundo desmoronar.
apossar de sua alma, do seu pensar, embo- O mesmo ocorre com a quinta Palmela,
ra em momento algum consigam tê-las por cuja ruína é possível visualizar já no pará-
completo, pois estas nutrem visões de mundo grafo inicial do livro: “as estátuas do jardim
diferentes de seus maridos e não se deixam quebradas, a piscina vazia, o capim que de-
tragar para seu universo de autoritarismo e vorava os canis e destroçara os canteiros, a
posse. E, sem elas, as propriedades que até grande casa destelhada onde chovia no pia-
então simbolizavam poder, controle e ordem, no [...]” (ANTUNES, s/d, p.1). E também com
deixam de ser o “tudo” para seus proprietá- Francisco:
rios e, assim, São Bernardo, Las Tres Marías
[...] o meu pai mais solitário do que
e Palmela entram em um processo lento de
em toda a vida o conheci, sem mulher,
decadência, até o seu total abandono. sem amigos, sem subordinados, sem
Após a morte de Madalena, Paulo cúmplices, afastando à coronhada as
Honório, que até então tinha um alto sen- vacas do estábulo na ideia de procurar
timento de posse, de poder e de domínio revolucionários nas manjedouras, nas
sobre todas as coisas e pessoas, perde o ím- bilhas de leite, nos sacos de sementes,
peto de adquirir e adquirir. A Revolução de na palha [...]. (idem, p.10).
30 dificulta-lhe os negócios e ele não reage.
Outra semelhança entre os três roman-
A propriedade que até então passara por
ces é que, após a saída das mulheres da vida
inúmeras melhorias, independente de qual
destes protagonistas, ocorrem revoluções
fosse o sistema, torna-se decadente dia após
políticas que foram determinantes para
dia e seu dono não faz absolutamente nada.
mudanças no poder e consequentemente
Para Esteban, a morte de Clara signi-
mudanças em torno desses personagens,
ficou o fim de uma Era em que havia brilho
o que viria naturalmente a comprometer

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 97-111, jan/jun. 2012


106 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Poder e decadência em São Bernardo, La casa de los espíritus e O manual ...

também seus negócios. Em São Bernar- em relação à raça negra mesmo: “[...] se os
do e em O manual dos inquisidores é o golpe pretos soubessem o que querem não havia
militar que vem derrubar o sistema vigente. problemas eram brancos” (ANTUNES, s/d,
Naquele, o golpe que instalaria Getúlio Var- p.106).
gas no poder, dando fim à República Velha e Não se pode deixar de dizer que neste
inaugurando uma nova política econômica, romance também os pobres são vistos como
o que viria a afetar diretamente os grandes animais, porém, não qualquer animal, mas
latifúndios. E neste, um golpe militar dis- um animal domesticado: “enquanto eu ti-
posto a substituir o anterior, determinando nha um pobre só para mim”, “quando o meu
assim mudanças de mando. Em La casa de pobre morreu [...]”, “e após a morte do meu
los espíritus é o governo popular que vence pobre ofereceram-me um pobre mais novo
as eleições, o que causa um grande choque que durasse mais tempo [...]” (ANTUNES,
para a oligarquia que comandava o país por s/d, p.54).
décadas. Todavia, este governo não perdura Em relação ao trato com os seus tra-
por muito tempo, pois a mesma oligarquia balhadores, Esteban, por sua própria ini-
que sofreu derrota nessas eleições conspira ciativa, constrói moradia e escola para eles,
e financia um novo golpe militar. além de não lhes negar alimentos. O que
Até essas revoluções, o poder se man- faz com que ele fique indignado é ter que
tinha estável. Uma porção pequena de pagar salário ou distribuir suas terras para
mandatários mantinha em rédeas curtas os camponeses, pois isso significaria perda
a grande maioria de subservientes. Nos da concentração de poder. Além do que, re-
dois primeiros romances percebe-se que a compensar os camponeses com dinheiro ou
mão de obra era explorada e não se podia terra, no pensamento de Esteban, seria uma
conceber que os camponeses tivessem se- grande injustiça para homens como ele, que
quer alguma pretensão de direito. No caso se tinha o que tinha, era devido a muita de-
de São Bernardo, a preocupação com o lado terminação e privações.
humano dos trabalhadores é praticamente O tema das revoluções é bastante fre-
nula, e Paulo Honório não tinha nenhuma quente nos três romances, funcionando
intenção de despertar neles qualquer desejo mesmo como fator determinante na vida
individual que afetasse o coletivo, pois, se- dos personagens. Nenhum deles, enquanto
gundo ele tudo estava em seu devido lugar: centralizadores de poder, consegue passar
“os pretos não sabiam que eram pretos, e por elas sem sentir seu efeito.
os brancos não sabiam que eram brancos” Em São Bernardo, os primeiros indícios
(RAMOS, 1983, p.36). Ou seja, independente de que algo iria mudar são apresentados
da raça, pobre era igual a pobre e nada mais. pelo Padre Silvestre tido como “danada-
Esta distinção de raça por parte de Paulo Ho- mente liberal”, oposicionista do governo
nório também está em O manual dos inquisi- e que achava “que os políticos, individual-
dores, mas de maneira mais preconceituosa mente, são criaturas como as outras, mas

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 97-111, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 107
Josiane Aparecida Franzó

em conjunto são uns malfeitores” (idem, não os afetaria diretamente. Assim Nogueira,
p.127). Para o Padre, a mudança de mando advogado de Paulo Honório, opina sobre o
do país estaria prestes a acontecer: “A fac- que estava ocorrendo e sua situação parti-
ção dominante está caindo de podre. O país cular dentro desse novo panorama político:
naufraga, seu doutor. É o que lhe digo; o
[...] tanto me faz estar em cima como
país naufraga” (ibidem). E prenuncia: “Há
embaixo, que política nunca me ren-
de haver uma revolução!” (ibidem). Porém deu nada. Estou embaixo e não pre-
a revolução pretendida pelo Padre não tem tendo subir. É verdade que sempre
nada a ver com o comunismo: “Essas dou- achei a democracia um contra-senso.
trinas exóticas não se adaptam entre nós. Muitas vezes lhe disse. O diabo é que
O comunismo é a miséria, a desorganização votei na chapa do governo. Mas aqui
da sociedade, a fome” (idem, p.128). entre nós a ditadura só não presta
E um dia, como o Padre dissera, a re- porque estamos no chão. (RAMOS,
1983, p.175).
volução acontece: “Um dia Azevedo Gondim
trouxe boatos de revolução. O sul revoltado, Em La casa da los espíritus, o persona-
o centro revoltado, o nordeste revoltado” gem Esteban, além de grande latifundiário,
(RAMOS, 1983, p.173). A síntese deste movi- é senador pelo partido da situação. Como seu
mento é assim descrito: partido mandava no país há décadas, não lhe
Depois os boatos engrossaram e vira- passava pela cabeça que pudesse haver outro
ram fatos: batalhões aderindo, regi- resultado que não fosse uma vitória para os
mentos aderindo, colunas organizan- seus: “Ganaremos los de siempre” (ALLEN-
do-se e deslocando-se rapidamente, DE, 2001, p.357). Por isso, quando o candi-
bandeiras encarnadas por toda a par- dato da oposição vence as eleições, ele, como
te, o governo da República encurrala- interessado direto pelos resultados, lamenta
do no Rio. (RAMOS, 1983, p.173). amargamente a derrota. Derrota esta senti-
Em pouco tempo “a onda vermelha da por toda a classe favorável à situação: “Los
inundou o Estado” (ibidem), e os “Figu- de siempre, acostumbrados al poder desde
rões do governo apareceram de repente tiempos inmemoriales […]” (ibidem).
com lenços vermelhos no pescoço” (idem, Os trechos abaixo resumem o que foi
p.175). Passado o momento de euforia por para o povo aquele momento de sensação
parte dos vitoriosos, os bancos cessaram de libertação do regime há muito estabele-
os empréstimos, compradores quebraram, cido, bem como a frustração da burguesia
começam as falências e o desaparecimento derrotada:
das plantações, o dólar sofre alta e, por fim, En las señoriales residencias blancas,
muitos suicídios. azules y amarillas del Barrio Alto,
Para aqueles que viviam de outro modo comenzaron a cerrar las persianas,
que não fosse o da terra ou comercialização a trancar las puertas y a retirar
de produtos, as novas medidas do governo apresuradamente las banderas y los
retratos de su candidato, que se habían

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 97-111, jan/jun. 2012


108 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Poder e decadência em São Bernardo, La casa de los espíritus e O manual ...

anticipado a poner en los balcones. país se dividió en dos bandos irreconcilia-


Entretanto, de las poblaciones bles y la división comenzó a extenderse en-
marginales y de los barrios obreros tre todas las familias” (idem, p.359-360).
salieron a la calle familias enteras, Posteriormente, com o novo governo,
padres, niños, abuelos, con su ropa de
uma série de novas medidas começou a ser
domingo, marchando alegremente en
dirección al centro. […] En el Barrio
implantada, entre elas, a reforma agrária:
Alto, algunos estudiantes, inflamados Las Tres Marías fue uno de los últimos
de idealismo, hicieron una morisqueta fundos que expropió la Reforma
a sus parientes congregados alrededor Agraria en el Sur. Los mismos
del televisor con expresión fúnebre, campesinos que habían nacido y
y se volcaron también a la calle. De trabajado por generaciones en esa
los cordones industriales llegaron los tierra, formaron una cooperativa y
trabajadores en ordenadas columnas, se adueñaron de la propiedad. (idem,
con los puños en alto, cantando los p.373).
versos de la campaña. En el centro se
juntaron todos, gritando como un solo Todavia, esta mesma classe que amar-
hombre que el pueblo unido jamás será gou derrota e que viu seus negócios serem
vencido. (ALLENDE, 2001, p.358). […] afetados violentamente pelo governo popu-
[…] Y entonces se vio el inusitado lar, não se dá por vencida e planeja um golpe
espectáculo de la gente del pueblo,
militar: “– Una cosa es ganar la elección y otra
hombres con sus zapatones de la
muy distinta es ser Presidente […]. (idem,
fábrica, mujeres con sus hijos en los
brazos, estudiantes en mangas de p.360). E assim se dá: “El día del golpe militar
camisa, paseando tranquilamente por amaneció con un sol radiante, poco usual en
la zona reservada y preciosa donde la tímida primavera que despuntaba. (idem,
muy pocas veces habían aventurado y p. 385). Os militares tomam o poder, matam
donde eran extranjeros. (ibidem). […] o presidente e começam uma caçada ferre-
Al día siguiente, los mismos que habían nha aos oposicionistas: “La alta burguesía y la
pasado la noche en vela aterrorizados derecha económica, que habían propiciado el
en sus casas salieron como una
cuartelazo, estaban eufóricas” (idem, p.403).
avalancha enloquecida y tomaron por
Para Esteban tudo estaria bem depois
asalto los bancos, exigiendo que les
entregaran su dinero. Los que tenían deste êxito, pois para ele a ordem havia sido
algo valioso, preferían guardarlo restabelecida. Mas, a morte do seu filho
debajo del colchón o enviarlo al Jaime, e em seguida a prisão de sua filha
extranjero. (idem, p.359). Blanca pelos militares, levam o senador a
tomar consciência de que, se um governo
Como era de se esperar, logo após o
populista não seria o ideal para seu país,
resultado das eleições o país já começava a
tampouco o novo regime instalado que
sentir seus efeitos: “En veinticuatro horas, el
financiara seria a melhor saída: “Empecé
valor de la propiedad disminuyó a menos de
a pensar que me había equivocado en el
la mitad” (idem, p.359), e: “En pocas horas el

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 97-111, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 109
Josiane Aparecida Franzó

procedimiento y que tal vez no era esa la às bruxas, a classe alta volta a usufruir dos
mejor solución para derrocar al marxismo” mesmos privilégios e a classe desfavorecida
(idem, p.396). permanece na mesma situação de outrora,
Esta tomada de consciência não ocor- ou seja, na pobreza. Odete, a filha do caseiro
re em Francisco que, passado tempos após assim vê o movimento:
a revolução, continua com a mesma ideolo-
os operários da fábrica que discur-
gia de antes e detestando os “comunistas”.
savam na rua a tratarem-nos por ca-
Não é para menos. O golpe, para ele, afeta maradas, a prometerem-nos casas de
diretamente a sua pessoa, pois seu posto de graça, a afirmarem que éramos livres
ministro era uma das estruturas do regime e eu pensei – Livres de quê? já que a
salazarista, era em sua quinta que Salazar miséria permanecia a mesma [...].
costumava discutir o governo do país. Por- (ANTUNES, s/d, p.25).
tanto, a queda deste governo, visto como “a [...] a vida continuava como antes dos
última barreira contra o comunismo ateu” foguetes, dos morteiros, do acordeão
do café e dos discursos sobre casas de
(ANTUNES, s/d, p.106) que soprava do orien-
graça e liberdade [...]. (idem, p.25).
te, será inevitavelmente a sua queda enquan-
to representante do seu cargo, enquanto fi- Mas, para Francisco nada continuou
gura do poder e enquanto indivíduo. como antes. Sem esposa, sem cargo e cien-
Do mesmo modo que a revolução abala te da sua condição: “já não há nada que me
a posição de Francisco, assim ela é sentida possam levar” (idem, p.32), confundindo os
pelos membros da classe alta, simpatizantes seus funcionários da quinta com aqueles
da causa da situação: que haviam tomado o poder, ele expulsa to-
dos e passa a viver na mais repleta solidão.
[...] soldados marchas militares armas
prisões a minha sogra e as cunhadas Um ano depois da revolução ainda esperava
em Espanha em hotéis de terceira os comunistas: “– O primeiro comunista que
ordem nos arredores de Madrid sem se atrever a entrar leva um tiro nos cornos”
malas de viagem sem passaporte apa- (idem, p.10). Passado o tempo, é internado
voradas tentando ligar para Lisboa em um asilo e já não lembra mais o homem
sem que lhes respondessem tentando poderoso que fora um dia:
ligar para a herdade e os camponeses
a insultarem-nas aos berros a minha o meu pai de queixo pendente, de
sogra e as cunhadas em Espanha nádegas bambas, a tentar limpar o
com vários casacos de peles uns por nariz com a manga que treme [...]
cima dos outros com vários relógios o meu pai calado, submisso, inútil,
de ouro em cada pulso e os irmão da sem cigarrilha, sem dentadura posti-
minha sogra humilhados por civis de ça, sem lábios, sem chapéu estendido
pistola [...]. (ANTUNES, s/d, p.09). no colchão, como um espantalho de
cama [...]. (ANTUNES, s/d, p.33).
O interessante neste romance é que
passados os primeiros momentos de caça

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 97-111, jan/jun. 2012


110 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Poder e decadência em São Bernardo, La casa de los espíritus e O manual ...

Assim terminam os personagens aqui Referências


resgatados, velhos, solitários em sua cami-
ALLENDE, Isabel. La casa de los espíritus.
nhada final, delirando e chamando pelo
Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2001.
nome de suas mulheres. Três homens que
ANTUNES, António Lobo. O manual dos
chegaram ao auge do poder, bem simbo-
inquisidores. Lisboa: Publicações Dom
lizado na magnitude de suas proprieda-
Quixote, s/d.
des, mas que, condicionados por este po-
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação
der, foram incapazes de vivenciar as mais
verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
simples experiências humanas acerca de
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e
sentimentos. Três homens entre o poder e
política: ensaios sobre literatura e história da
suas mulheres, e com um mesmo fim – de-
cultura. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
cadentes, imersos em seus próprios fantas-
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder:
mas – com a culpa, o sentimento de perda
dúvidas e opções dos homens de cultura na
e totalmente fragilizados. Apenas sombras
sociedade contemporânea. São Paulo: Editora
do que foram um dia.
da UNESP, 1997.
Entendendo que a literatura é uma
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade:
reorganização do mundo, segundo An-
estudos de teoria e história literária. São
tonio Candido (1973), e que ninguém faz
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1973.
um discurso sem conhecer a realidade dos
FELDMANN, Helmut. Graciliano Ramos:
fatos, conforme Norberto Bobbio (1997),
reflexos de sua personalidade na obra. 2. ed.
não podemos deixar de associar a questão
Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará,
social, as mazelas da classe dominante e a 1998.
coisificação do homem, retratadas nestes
LAFETÁ, João Luís. O mundo à revelia. In:
romances, com a realidade conflituosa que
RAMOS, Graciliano Ramos. São Bernardo.
permeou o século XX e, consequentemente, Rio de Janeiro: Record, 1983.
com a percepção dos autores destas obras
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 40.ed. Rio
em relação a essa realidade.
de Janeiro: Record, 1983.
Bobbio (1997) diz que o problema não é
SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos
saber se os intelectuais são rebeldes ou con-
intelectuais. São Paulo: Ática, 1994.
formistas, livres ou servis, independentes
SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da dife-
ou dependentes, mas sim o que estes, ao se
rença: ensaios sobre memória, arte, literatura
reconhecerem em uma determinada parte
e tradução. São Paulo: Editora 34, 2005.
política, fariam ou deveriam fazer. Avaliar se
os autores, nas obras aqui citadas, fizeram
o que deveriam fazer, é assunto para outro
Recebido para publicação em 01 set. 2010.
trabalho.
Aceito para publicação em 19 jan. 2012.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 97-111, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 111
doi: 10.5212/Uniletras.v.34i1.0009

Tempo e espaço em Lavoura Arcaica

Time and space in Lavoura Arcaica


Deise Ellen Piati*

Resumo: O objetivo deste estudo é analisar no romance Lavoura Arcaica (1975), de


Raduan Nassar, a configuração do espaço e do tempo, bem como a relação estética
que tais elementos têm com a psicologia do narrador-personagem. Para tanto, nos
fundamentaremos, sobretudo, em autores como Gaston Bachelard, Poética do espaço
(2000), e Jean Pouillon, O tempo no romance (1974).
Palavras-chave: Espaço. Tempo. Lavoura Arcaica.

Abstract: The main purpose of this paper is to analyze space and time configuration
in the romance Lavoura Arcaica, (1975), by Raduan Nassar, as well as the aesthetic
relation these elements have with the psychology of the narrator-character. To this
end, the article is supported by authors as Gaston Bachelard, - Poética do Espaço
(2000), and Jean Pouillon, O tempo no romance (1974).
Keywords: Space. Time. Lavoura Arcaica.

[...] e se acaso distraído eu perguntasse implícito, o universo do narrador-perso-


“para onde estamos indo?” [...] “estamos nagem do romance. Nesta obra, que é a de
indo sempre para casa”. maior importância do escritor brasileiro
(NASSAR, R. Lavoura Arcaica)
Raduan Nassar, tais valores são representa-
dos por aqueles que provêm da tradição reli-
giosa cristã ortodoxa (FILHO, 2002, p. 102).
1. O universo arcaico: espaço da fazen-
da, espaço da casa Enquanto valores autênticos, vemos que
eles regem as ações e delimitam claramente
O romance Lavoura Arcaica (1975) narra o espaço de cada um dos atores da família –
a história de uma investigação degradada pai, mãe, irmãos – de tal forma que de modo
(também chamada de demoníaca) de valo- algum é permitido romper com os preceitos
res autênticos num mundo igualmente de- que foram há muito tempo autenticados por
gradado. Por valores autênticos compreen- grupos pertencentes a esta mesma tradição
dem-se os valores que organizam, de modo religiosa e social.

* Mestrado em letras (Linguagem e Sociedade, linha de pesquisa “Linguagem Literária e interfaces sociais: Estudos
Comparados”) pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: <deellenpiatti@gmail.com>.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 113-122, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 113
Deise Ellen Piati

O universo de atuação do romance diversas manifestações religiosas que re-


Lavoura Arcaica encontra-se em degrada- gem a espiritualidade e a vida dos homens.
ção, assim como o herói-problemático da Transmitido socialmente, não resguarda,
obra se encontra em estado igualmente ao contrário, do que se perpetua nas co-
degradante. Isto porque há no romance munidades cristãs, caráter inerente ao
uma ruptura insuperável entre as persona- homem. Segundo Freud (1970) é peculiar
gens Ana, a Mãe, Lula e, sobretudo, André ao sistema totêmico que “los miembros de
(o narrador-personagem), e o universo do un único y mismo tótem no deben entrar
qual fazem parte. Esta ruptura é, conforme en relaciones sexuales y, por lo tanto,
aponta Lukács em A teoria do romance (2000), no deben casarse entre sí. Es esta la ley
característica do gênero romance. O que há de la exogamia, inseparable del sistema
em comum entre ambos, herói e mundo, totémico” (FREUD, 1970, p. 10). A isogamia,
é o fato de estarem ambos degradados em princípio por meio do qual ficam interdita-
relação aos valores autênticos. Enquanto das as relações sexuais com a mãe, as irmãs
romance psicológico, a análise sobre a qual ou ainda com qualquer mulher com quem
incide a narrativa de Lavoura Arcaica é acerca haja consanguinidade, é um princípio in-
da vida interior de André, personagem cuja serido nas comunidades aborígines no mo-
consciência é demasiadamente vasta para mento em que houve a necessidade de se
contentar-se com aquilo que o mundo da ditar restrições matrimoniais. Ainda que a
convenção lhe oferece. A busca de André é isogamia totêmica aparente ser uma ins-
uma busca degradada e, por isso, inautênti- tituição sagrada, de origem e desenvolvi-
ca de valores autênticos, situada num mun- mento desconhecido, para Freud ela é uma
do de conformismos e convenções: é, pois, legislação consciente e intencional por
esta busca degradada que constitui o conflito meio da qual se reforça a proibição do in-
deste romance. cesto. A Igreja Católica estendeu a proibi-
Antes, porém, de falarmos propria- ção que recaía sobre os matrimônios entre
mente acerca do modo como interpretamos irmãos e irmãs aos matrimônios entre pri-
os elementos Tempo e Espaço no romance mos “inventando” (este é o termo utilizado
Lavoura Arcaica, parece-nos importante que por Freud em Tóten y Tabú), para justificar
o termo “degradação” seja um pouco mais sua medida, a existência de graus espiri-
explicitado, e que se especifique a natureza tuais de parentesco.
desta degradação em Lavoura Arcaica. Para A psicanálise nos mostra que o primei-
tanto temos de considerar um elemento de ro objeto sobre o qual recai a eleição sexual
grande importância nesta obra, a saber, a do jovem é a mãe ou a irmã. Ou seja, à medi-
questão do incesto. Assim, há que se enten- da que este sujeito se desenvolve é influen-
der como este elemento se hierarquizou em ciado pelo princípio da isogamia social-
nossa sociedade. Vejamos. mente estabelecida. Entretanto, o sujeito
O totemismo surgiu nas sociedades passará a traçar um caminho para evadir-se
aborígines australianas como uma das da atração do incesto, de modo que o que já

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 113-122, jan/jun. 2012


114 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Tempo e espaço em Lavoura Arcaica

foi algo essencialmente comum e corriquei- 1.1 Os espaços “subterrâneos” do uni-


ro passou a ser concebido enquanto com- verso patriarcal

plexo da neurose. Como tudo em Lavoura Arcaica, tam-


Após institucionalizar-se a proibição bém a caracterização do espaço da fazenda,
da isogamia, ela passa a constituir um valor da casa da família, da casa velha e do quarto
autêntico de toda a sociedade. Sua manu- de pensão supera a convencional descrição
tenção se dá por meio do enquadramento das imagens de tal modo que atinge as vir-
da memória dos sujeitos a uma “memória tudes primárias destes espaços, revelando a
oficial” – sendo, pois, a memória operação função original do habitar.
coletiva dos acontecimentos e das inter- A casa é o nosso canto no mundo, nos-
pretações do passado –, que se opõe à “me- so primeiro universo. E os pontos dos quais
mória subterrânea”, esta sustentada por André parte para construir suas imagens
valores inautênticos. Esta memória oficial, acerca dos espaços da fazenda e da pensão
enquanto interpretação do passado, serve revelam os valores atribuídos por ele sobre
para manter a coesão dos grupos e das ins- os espaços que foram por ele habitado, e
tituições, ou seja, atuam de forma a defi- isso se faz importante na medida em que
nir e reafirmar seu lugar respectivo. Neste o ser abrigado sensibiliza os limites de seu
contexto, o totemismo atua como material abrigo. André, num fluxo de consciência,
histórico de que se alimenta o trabalho de rememora os espaços por ele frequentados
enquadramento da memória a fim de se durante a infância em suas realidades e em
manter as fronteiras sociais. Toda organiza- suas virtualidades, ou seja, por meio do pen-
ção política veicula seu próprio passado e a samento e dos sonhos, sendo por isso ima-
imagem que ele forjou para si mesmo, e que gens rememorativas.
não pode ser mudada, a não ser que seus André narra a partir de um tempo dis-
membros se deixem identificar com estas tante ao dos fatos ocorridos, e sua narração
imagens e passem a construir um material se faz a partir de um processo rememora-
histórico para modificar estas fronteiras tivo deste passado. Enquanto experiência
sociais. Assim, vemos que estão em conflito rememorativa, André tenta lembrar o pas-
na memória sentidos de identidades indi- sado, tenta restaurá-lo para dar sentido ao
viduais e sentidos de identidades do grupo, seu presente. Mas as imagens do passado
cujas imagens por ambos os polos veicula- que lhe surgem à mente não são represen-
das se dão por meio de uma volta reflexiva tações deste passado, pois, ao retomá-las,
ao passado nacional. Em Lavoura Arcaica elas são ressignificadas a partir do momen-
vemos que é contra estas identidades indi- to presente. Isto porque o entendimento de
viduais que se opõem as imagens do grupo, um momento histórico se dá por meio da
estas citadas por Iohána, o pai, a fim de que imaginação da vida e da história das coisas
haja a manutenção das imagens forjadas e dos homens, de modo a percebê-los em
pela “memória oficial”. suas infinitas e concretas aparições neste

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 113-122, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 115
Deise Ellen Piati

presente e a partir deste mesmo presente. afirma que o espaço da casa é dotado de
Por isso, sua história surge como dimensão uma das maiores forças de integração para
do passado que só existe no presente como os pensamentos, as lembranças e os sonhos
possibilidade em processo de realização. Ao do homem. Nessa integração, o princípio de
falar da fazenda, da casa, da luz boa de sua ligação é o devaneio:
infância, do relógio do avô, do pão caseiro,
A casa abriga o devaneio, a casa pro-
das árvores do bosque, da igreja, André refe-
tege o sonhador, a casa permite so-
re-se a um espaço datado que é rastro, ma- nhar em paz. Só os pensamentos e as
terialidade física do passado como futuro a experiências sancionam os valores
ser decifrado no presente, e é a partir de um humanos. Ao devaneio pertencem os
espaço-tempo que ele lança um olhar sobre valores que marcam o homem em sua
outro tempo, este imaginado no presente. profundidade. O devaneio tem mesmo
O processo de rememoração se ca- um privilegio de autovalorização. Ele
racteriza pelo movimento de relembrar o usufrui diretamente de seu ser. Então,
os lugares onde se viveu o devaneio
passado visando à mudança do presente.
reconstituem-se por si mesmos num
Conforme Gagnebin (2006), na rememora-
novo devaneio. É exatamente porque
ção não se repete aquilo de que se lembra, as lembranças das antigas moradas são
mas abrem-se espaços que se estabelecem revividas como devaneios que as mora-
entre uma imagem e outra a fim de se dar das do passado são imperecíveis dentro
visibilidade ao que foi recalcado para dizer, de nós. (BACHELARD, 1993, p.26).
com hesitações, solavancos e incompletude,
Ao narrar sua história passional, An-
aquilo que ainda não teve o direito nem à
dré constrói uma espécie de topoanálise, ou
lembrança nem às palavras. É, pois, a reme-
seja, um estudo psicológico sistemático dos
moração uma atenção precisa ao presente
locais de sua vida íntima, de modo a desven-
uma vez que, por meio do processo reme-
dar a plenitude original da casa. É por meio
morativo, não se trata somente de evitar o
da topoanálise que nos dissociamos das
esquecimento do passado, mas, sobretudo,
nossas grandes lembranças e atingimos o
de não permitir que este mesmo passado e
plano dos devaneios que vivenciávamos nos
suas experiências traumáticas venham a se
espaços de nossa solidão: somente desta
repetir no presente.
forma é-se possível analisar o nosso incons-
André, o sonhador do lar, se abre para
ciente, adormecido em nossas moradas pri-
além das mais antigas memórias. A casa
mitivas. Para responder as indagações do
possibilita-lhe evocar luzes fugidias de de-
inconsciente temos de nos voltar para estes
vaneios que iluminam a síntese do ime-
espaços que são dotados da primitividade,
morial com a lembrança. Neste processo
pois, conforme aponta Bachelard, o tempo
rememorativo, memória e imaginação não
não anima a memória, o inconsciente per-
se deixam dissociar. Ambas constituem, na
manece é nos locais. O espaço retém o tempo
ordem dos valores, uma união da lembran-
comprimido: é essa a função do espaço.
ça com a imagem. Gaston Bachelard (1993)

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 113-122, jan/jun. 2012


116 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Tempo e espaço em Lavoura Arcaica

O quarto de pensão onde André se exi- devaneios cinzentos, destecendo desde


lou após sua fuga, os bosques mais distantes cedo a renda trabalhada a vida inteira em
da fazenda, a antiga igrejinha e a casa velha, torno do amor e da união da família” (p.38-9),
são apresentados pelo narrador como os es- também ela reservara a si este espaço de so-
paços de sua solidão: lidão. Muito mais que dotada de espaços de
solidão, a casa natal constitui um grupo de
era num sítio lá do bosque que eu
hábitos orgânicos que particularizaram os
escapava aos olhos apreensivos da
família; amainava a febre dos meus sonhos e devaneios de seus habitantes. A
pés na terra úmida, cobria meu corpo estes somam-se os espaços onde reinam os
de folhas e dormia na postura quie- seres dominantes – é na mesa dos sermões
ta de uma planta enferma vergada onde o Pai faz o seu exercício de domínio:
ao peso de um botão vermelho; não ele, sentado à cabeceira da mesa, “o reló-
eram duendes aqueles troncos todos gio da parede às suas costas, cada palavra
ao meu redor, velando em silêncio e sua ponderada pelo pêndulo” (p. 53). Nes-
cheios de paciência meu sono ado-
ta casa complexa, os valores de intimidade
lescente? [...] (meu sono, quando
aí se dispersam, estabilizam-se mal. O Pai
maduro, seria colhido com a volúpia
religiosa com que se colhe um pomo). tenta fazer da fazenda uma espécie de Cos-
(NASSAR, 1989, p.13-14)1. mo sagrado que se opõe ao “‘outro mundo’,
um espaço estrangeiro, caótico, povoado
Mais do que espaço de solidão e refú- de espectros, demônios [...]” (ELIAD, 1992,
gio, o quarto está de tal forma associado à p.32). Na mesa dos sermões o pai diz, me-
imagem de André que corpo e espaço aca- taforicamente:
bam por se fundir, sendo o primeiro ele-
mento constituinte do segundo: o mundo das paixões é o mundo do
desequilíbrio, é contra ele que deve-
Os olhos no teto, a nudez dentro do mos esticar o arame das nossas cer-
quarto; róseo azul ou violáceo, o quar- cas, e com as farpas de tantas fiadas
to é inviolável; o quarto é individual, tecer um crivo estreito, e sobre este
é um mundo, quarto catedral, onde crivo emaranhar uma sebe viva, cerra-
nos intervalos da angústia, se colhe, da e pujante, que divide e proteja a luz
de um áspero caule, na palma da mão, calma e clara de nossa casa, que cubra
a rosa branca do desespero, pois entre e esconda dos nossos olhos as trevas
os objetos que o quarto consagra es- que ardem do outro lado. (NASSAR,
tão primeiro os objetos do corpo; [...] 1989, p. 56).
(id., p. 7).
Bachelard diz que é na solidão que
Já a Mãe, “sentada na cadeira de balan- se encontram as paixões: é encerrado em
ço, absolutamente só e perdida nos seus sua solidão que o ser de paixão prepara
a sua explosão ou seus feitos. Assim, é
1 Todas as citações do romance referem-se a: NASSAR, o próprio ser que não deseja apagar os
Raduan. Lavoura Arcaica. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1989.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 113-122, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 117
Deise Ellen Piati

lugares em que sofreu a solidão, o espaço no nos orienta para seu onirismo, mas não o
qual a desfrutou. A este espaço de solidão conclui. E nós, leitores, para formularmos
o homem sempre retornará. Em Lavoura uma imagem a partir do que lemos, temos
Arcaica André vai ainda mais longe, pois o que nos depreender dos detalhes e permitir
seu espaço de solidão é um repouso ante- que também nossas lembranças divaguem
humano. O ante-humano atinge aqui o por nosso inconsciente. Se o narrador tudo
imemorial, o espaço reconfortante: falar sobre os cheiros da casa, sobre os sons,
a luz, enfim, porque o leitor também não
Onde eu tinha a cabeça? que feno era
buscar em sua imaginação, em seu incons-
esse que fazia a cama, mais macio,
mais cheiroso, mais tranquilo, me ciente, as imagens de sua casa? Este efeito
deitando no dorso profundo dos está- é alcançado pelo narrador por meio de uma
bulos e dos currais? que feno era esse narrativa fragmentada. Daí ser Lavoura Ar-
que me guardava em repouso, entor- caica dividida em trinta capítulos e narrada
pecido pela língua larga de uma vaca pelo fluxo de consciência. Para evocar os
extremosa, me ruminando carícias na valores de intimidade, é necessário induzir
pele adormecida? que feno era esse o leitor ao estado de leitura suspensa. É no
que me esvaía em calmos sonhos, so-
momento em que os olhos do leitor deixam
brevoando a queimadura das urtigas
o livro que a evocação do quarto do narrador
e me embalando como o vento no len-
ço imenso da floração dos pastos? (Id., pode tornar-se porta de entrada de oniris-
p.50-51). mo para outrem.

No âmbito da lembrança, do devaneio,


2. Intuição do passado, intuição do
este espaço de solidão atinge a categoria destino
do reconfortante, onde o inconsciente está
instalado, alojado neste espaço de felicida- A importância que se atribui ao tempo
de. Estes espaços são tonalizados da mesma no romance Lavoura Arcaica se deve ao con-
forma que nosso espaço interior. teúdo por ele expresso, ou seja, ao significa-
Enquanto espaço da lembrança e da do intemporal dos acontecimentos desen-
imaginação, a casa para onde nossos sonhos cadeados na narrativa.
nos conduzem, casas ricas de um fiel oniris- Conforme Jean Pouillon (1974), ao es-
mo, rejeitam qualquer descrição: a casa pri- tudarmos o tempo do romance, o que ques-
mordial deve guardar sua penumbra. Dela tionamos não é, propriamente, a estrutura
há que se dizer somente o necessário para do tempo e sim a psicologia das persona-
nos colocarmos em situação de onirismo, gens, mas não de modo a buscar conhecer
para nos situarmos num limiar de um deva- o herói, e sim o ambiente. A este respeito,
neio em que vamos repousar no nosso pas- não se compreenda, contudo, que há um de-
sado. O que o narrador comunica não passa sejo de ver o herói condenado ao ambiente
de orientações acerca de seus segredos, não em que está inserido. Se para estudarmos o
passíveis de serem ditos objetivamente. André tempo do romance temos que estudar a psi-

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 113-122, jan/jun. 2012


118 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Tempo e espaço em Lavoura Arcaica

cologia do herói para então compreendermos através da expectativa e o passado


o espaço, o que nos interessa em Lavoura Ar- subsiste, apenas, enquanto memória.
caica não é, portanto, a fazenda em si, mas (FORTES; ZANCHET, 2007, p.293).
a reação que André cultivou com a família e André é determinado por seu passado
com o espaço da fazenda. E, dada a reação porque ele o retoma no momento presente,
que seu irmão Pedro e suas irmãs Zuleika, tornando-o presente: deste modo, é o pre-
Huda e Rosa cultivam com o pai e com toda sente que determina o passado.
a família, torna-se claro que esta reação Em relação à situação do tempo, Pouillon
para com o ambiente é livre e pessoal, con- distingue dois tipos de romances: o “de den-
forme aponta Pouillon. É por esta razão que tro” e o “de fora”. Lavoura Arcaica representa,
não buscaremos em Lavoura Arcaica uma in- pois, o romance “de fora” – também deno-
terpretação filosófica do tempo, mas o sen- minado de romance “com” – visto que nele é
timento que existe e que é manifestado na a fatalidade oriunda do ambiente em que o
consciência de André. herói se encontra que determina o seu desti-
André narra num tempo distante ao no. André é quem experimenta a fatalidade,
dos fatos ocorridos. No entanto, vive o seu é quem se diz por ela determinado. Já o ro-
passado, mas num tempo presente. E este mancista acredita poder explicar o destino
passado lendário, de existência puramen- do herói estando do lado de fora, acreditan-
te subjetiva, surge à sua mente enquanto do poder revelar os sentimentos do homem
memória, enquanto destino, demonstran- a partir de seu exterior. Esta posição “por
do que o passado é obra do presente, e fora” derruba a ordem real dos sentimentos
que, portanto, seu destino é fruto de uma e dos fatos, revelando uma maneira particu-
convicção, e não efeito de alguma lei exte- lar de se ver o mundo.
rior ao indivíduo. Ao analisar o conto “Aí O narrador-personagem de Lavoura
pelas três da tarde”, também do escritor Ra- Arcaica é bem sucedido porque fala acerca
duan Nassar, Rita Félix Fortes (2007) apro- do destino que é por ele experienciado, que
xima-se da concepção de tempo segundo diz respeito a ele próprio, não é uma ideia,
Santo Agostinho. A concepção agostiniana um conceito, uma abstração. Assim como
demonstra-se congênere à concepção de Dostoievski, como Faulkner e tantos ou-
Pouillon no que tange ao aspecto do tempo tros romancistas, Raduan Nassar nos leva
no romance, conforme podemos constatar a sentir tão intensamente a existência de
na citação que segue: André que chega por vezes a permitir que
É possível relacionar a crise nos coloquemos “com” a personagem em
prenunciada no conto em questão dadas situações: é, pois, quase que im-
com a concepção sobre o tempo de possível resistirmos à vontade de gritar-
Santo Agostinho, quando ele postula mos junto à personagem: “a impaciência
que o presente é o momento concreto também tem os seus direitos!” (NASSAR,
da atenção, o futuro se anuncia
1989, p.90).

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 113-122, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 119
Deise Ellen Piati

Em Lavoura Arcaica tudo é revelador. passeia o leitor: de temporal, resta


Estando o romancista “com” as persona- apenas a persistência de uma direção
gens e, portanto, também com o leitor, ele de percurso, o que no entanto só se
se considera livre e disso se aproveita para aplica verdadeiramente na primeira
leitura pois, como as ressonâncias to-
escolher – por motivos particulares – o fato
das só podem ser extraídas da ordem
que irá registrar. Trata-se assim de uma do conjunto, nós só as podemos sentir
organização da contingência, que consiste nas leituras seguintes [...] as quais su-
na escolha de cenas reveladoras. Estas es- põem uma visão instantânea do con-
colhas dos acontecimentos contingentes junto. [...] O romance é feito para ser
dependem do problema psicológico que tomado como um todo, um todo espa-
constitui o núcleo do romance. Mas esta es- cial. (POUILLON, 1974, p.166).
colha pode não ser puramente psicológica.
Raduan Nassar, em sua escrita labirín-
Pode-se pretender que as revelações assim
tica, estrutura o romance Lavoura Arcaica de
distribuídas por todo o romance correspon-
modo a ocultar muitas coisas do leitor. E o
dam umas às outras e conduzam o espírito
destino na obra não constitui um encadea-
do leitor, sendo esta, pois, uma escolha es-
mento geométrico de instantes, de aconte-
tético-psicológica. Conforme Paul Ricoeur
cimentos ou de sentimentos; assemelha-se
em Tempo e narrativa, “o mundo exibido por
mais a uma impressão de peso, inerente a
qualquer obra narrativa é sempre um mun-
tudo o que acontece, a tudo o que existe se-
do temporal. [...] O tempo torna-se humano
gundo o ponto de vista do narrador. Um dos
na medida em que está articulado de modo
objetivos da aparente desordem da narrati-
narrativo; em compensação, a narrativa é
va é mostrar que esse peso não é um artifí-
significativa na medida em que esboça os
cio da narração continuada, mas que é um
traços da experiência temporal”. (FORTES;
modo pelo qual o narrador está sendo fiel às
ZANCHET, 2007, p.293-4).
coisas narradas, ao tema da obra, que dis-
Pouillon diz que esta estética da dispo-
pensa qualquer lógica. E, para que de fato
sição não substitui a psicologia, mas a ela se
houvesse afinidade entre o plano estético e
soma, como vemos em Lavoura Arcaica, na
o plano psicológico é que, em Lavoura, An-
qual a estética surge enquanto expressão
dré narra por meio do “fluxo de consciência”
ordenada e típica da psicologia do narrador,
e do “monólogo interior”.
ou seja, como materialização de seu discur-
O monólogo interior é o “entrecruzar
so. Há na obra de Nassar uma distribuição
de acontecimentos presentes e de remi-
interna estética que coincide com as inten-
niscências de acontecimentos passados”
ções do que se pretende sugerir como sendo
(POUILLON, 1974, p.172). Este entrecruzar
a “psicologia” de André. E, conforme Pouil-
é apresentado de diferentes maneiras. Em
lon:
Lavoura Arcaica ele surge enquanto persis-
[...] o resultado desta estética psico- tência das impressões passadas, sobretudo
lógica é o seguinte: o romance sur- das impressões da infância, e faz com que
ge como um quadro, diante do qual

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 113-122, jan/jun. 2012


120 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Tempo e espaço em Lavoura Arcaica

tudo o que vivemos no presente fique sub- gens: o tempo nada representa independen-
merso naquilo que vivemos no passado. As- temente da consciência do tempo. Sendo as
sim, a consciência é antes de tudo memória, ações do passado intocáveis, irremediáveis,
mas não se reconhece como memória e sim elas são a única realidade, são o Destino.
como o real, e como a memória só pode ser A subversão cronológica permanece
o sentido do passado, este real é o próprio sempre como um recurso do autor, indepen-
passado (POUILLON, 1974, p.173). E, por es- dente da consciência real que as persona-
tar sempre presente, este real (novamente, gens têm de sua própria vida. Raduan, sem
o próprio passado) é o presente. Neste caso, prevenir o leitor, como o faz Faulkner, faz
o homem é determinado pelo passado, tal surgir um momento no outro, desorganiza
como o narrador-personagem de Lavoura a ordem habitual, porque também a vida de
Arcaica. Mas há que se ter cuidado com esta André foi vivida fora da cronologia e é isto
afirmação. Para que uma coisa determi- que os monólogos interiores se propõem
ne outra, diz Pouillon (1974), é preciso que a nos fazer compreender. Ao contrário do
ambas existam plenamente, e voltamos à que pareça, a não linearidade da narrativa
necessidade de ligar instantes igualmente representa de igual maneira uma ordem, e
reais. Deste modo, o que de fato existe é a que é bastante real e dotada de sentido para
coexistência do passado e do presente: o quem viveu os fatos narrados.
passado forma um bloco, entretanto não o André não é determinado pelo seu pas-
devemos imaginar como uma ordem cro- sado, ele é esse passado, sendo em sua psi-
nológica. Ele é, de certa forma, intemporal. cologia que se faz necessário buscar o mo-
O fato de que um acontecimento deslize tivo que o leva a sentir-se sob o império de
para o passado não o leva a alinhar-se uma fatalidade. O esmagamento de André
entre as “lembranças puras”, bem classi- vem de seu interior, e não do exterior. As-
ficadas por datas, mas apenas o retira da sim sendo, para que esta afirmação não seja
temporalidade na medida em que esta é gratuita, é preciso que essa fatalidade seja
transformação, dispersão. Este passado, constantemente sentida pelo herói. Como
estando inserido no tempo, se foi, sen- esse herói tem uma consciência obscura,
do, por conseguinte, passado na acepção porém viva, da fatalidade que pesa sobre ele,
usual da palavra, mas sendo, porém, pre- é normal que o romancista nos desvele esta
sente, na medida em que subsiste, sen- última valendo-se do monólogo interior.
do por isso intemporal (POUILLON, 1974, O romance não poderia ter maior rea-
p.174). Este intemporal não se situa num lidade a não ser como impressão subjetiva.
plano superior: fica por detrás de um pre- Por meio do romance e do monólogo inte-
sente cronológico para fazer com que este rior Nassar pretende transmitir ao leitor a
presente signifique e para o retomar ime- mesma impressão que oprime a persona-
diatamente. E tudo o que ficou dito, ficou gem e, para tanto, é preciso não lhe pro-
sobre a maneira com que vivem as persona- porcionar uma compreensão privilegiada

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 113-122, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 121
Deise Ellen Piati

dessa impressão, uma compreensão mais GAGNEBIN, Jeanne M. Lembrar, escrever,


clara que a que tem o próprio herói. Desta esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.
forma é que vemos o autor se situar “com” LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São
a personagem, e, consequentemente, coloca Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000.
seu leitor também com a personagem. Co- NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. São
nhecer o que é o destino equivale a dissolvê- Paulo: Companhia das Letras, 1989.
-lo. Assim, o destino só é real quando não POUILLON, Jean. O tempo no romance. Trad.
conhecido e sim confusamente sentido. Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix /
Por fim, o que leva André a se sentir Editora da Universidade de São Paulo, 1974.
“esmagado”, a nosso ver, é sua psicologia
da vertigem e das paixões com ela relacio-
Recebido para publicação em 10 abr. 2012.
nadas; é o que revela o monólogo interior
Aceito para publicação em 20 maio 2012.
de André, e também é a explicação de sua
conduta. O passado surge a ele como um
abismo no qual não pode deixar de precipi-
tar-se. Mas também parece-nos que André
é igualmente levado por uma psicologia do
corpo, considerando-se que é também seu
corpo que conserva parte de seus hábitos,
representando de certa forma o seu passado
e seu presente.

Referências
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço.
Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano.
Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
FILHO, Plínio M. (Ed.). Luiz Fernando
Carvalho sobre o filme Lavoura Arcaica. Cotia,
SP: Ateliê Editorial, 2002.
FORTES, Rita Félix; ZANCHET, Maria B.
Sabor e saberes: o lugar do conto na escola.
Foz do Iguaçu, PR: Editora Parque, 2007.
FREUD, Sigmund. Tótem y tabú. Madrid:
Alianza Editorial, 1970.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 113-122, jan/jun. 2012


122 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
Resenha
doi: 10.5212/Uniletras.v.34i1.0010

BETTO, Frei. Minas do Ouro. 1ª edição. Rio de Janeiro: Editora


Rocco, 2011. 270 p. ISBN 978-85-325-2689-2.

André Jorge Catalan Casagrande*

Nos últimos anos tive a honra de tro- do tesouro passará pelas mãos de muitos
car e-mails com o escritor mineiro Frei Betto. Arienims, que não medirão esforços na ten-
Isto se deve ao fato de minha pesquisa de tativa de encontrar as riquezas apontadas
mestrado remeter ao seu primeiro romance pelo mapa, sem nunca, no entanto, conse-
histórico Um homem chamado Jesus, baseado guir achá-las.
nos evangelhos canônicos, que revisita a sua O narrador desta saga familiar é o úl-
maneira a mais que conhecida história do timo dos Arienim, um jornalista que, em
Cristo. A dissertação se tornou livro, sendo busca de um furo de reportagem na festa de
o título - Jesus na ótica da literatura - sugestão aniversário de ninguém mais que ninguém
do próprio Frei Betto, que ainda chancela menos que Elizabeth Taylor, descobre que o
minha obra com uma nota na quarta-capa. diamante de 40 milhões de dólares em posse
No segundo semestre de 2011 foi lan- de Miss Taylor fora pago com o fragmento
çado o seu segundo romance histórico, in- de mapa que por tantos séculos ficara sob a
titulado Minas do Ouro e, por conta desta guarda de seus ancestrais e que fora vendi-
amizade virtual, ganhei um exemplar auto- do por seu avô, Antenor Arienim, a mister
grafado. Destarte, não poderia deixar de lê- Burton, um inglês colecionador de antigui-
-lo, não obstante minha demora em fazê-lo.1 dades que esteve em terras brasileiras.
O romance conta a “estória” da famí- A contextualização do romance fica
lia Arienim – mineira ao contrário –, tendo por conta dos cinco séculos de história das
como pano de fundo a história das Minas Minas Gerais. O que ocorre é uma revisi-
Gerais. Tudo se inicia com um fragmento tação dessa história, em que personagens
de mapa, possivelmente de uma mina de fictícias convivem e dialogam com persona-
ouro, enrolado em um cartucho de couro, gens históricas. Não obstante, em presença
que passa às mãos de Fulgêncio Arienim no de romances assinalados como históricos,
cais de Salvador por um oficial inglês à bei- surgem alguns questionamentos: por que
ra da morte, após ter sido apunhalado por recontar outra vez a história das Minas Ge-
uma prostituta. Daí em diante, o tal mapa rais, e ainda mais de modo fictício? Haveria

* Mestre em Ciências da Religião, com concentração em teologia e literatura, pela Universidade Presbiteriana Macken-
zie, licenciado em Letras e bacharel em Teologia.
1 Registro aqui meu agradecimento ao velho amigo, Leandro Thomaz de Almeida, pela revisão e apontamentos
pertinentes para a confecção desta resenha.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 125-127, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 125
André Jorge Catalan Casagrande

aí uma tentativa de reinterpretar o que já romance histórico é um gênero híbrido que


disse a historiografia sobre o tema? Quais acaba por combinar literatura e realidade
as diferenças entre a escrita da história pela histórica.
historiografia e pelo romance? A história, A metaficção historiográfica, por sua
estaria ligada ela, de alguma maneira, aos vez, é apontada por Linda Hutcheon, em seu
fatos, ou tudo não passa de (mera?) inter- livro Poética do Pós-Modenismo (1988), como
pretação? um gênero tipicamente pós-moderno. O ro-
Em determinado momento do roman- mance histórico tradicional seria nada mais
ce, Frei Betto parece ponderar questões que uma espécie de ratificação da história
como essas, como, por exemplo, quando o oficial, enquanto a metaficção historiográfi-
professor Bretas convida Maria Veridiana ca se apresenta como uma história alternati-
Arienim para auxiliá-lo na redação de seu va, que lança um novo olhar sobre o passado,
livro sobre a vida e a obra de Antonio Fran- por vezes parodiando-o, e dando voz e vez a
cisco Lisboa, o Aleijadinho. Bretas não está minorias e aos excluídos, tais como negros,
interessado na verdade objetiva dos traços gays, mulheres, pobres, entre outros grupos
biográficos do mestre barroco, mas no sen- sociais, que não foram devidamente ouvidos
sacionalismo de uma biografia que impac- pela historiografia tradicional e oficial.
tasse os leitores e, para tanto, interpreta a Em qual destes dois gêneros roma-
história de Aleijadinho à sua maneira, pas- nescos se enquadra Minas do Ouro? Seria de
sando por cima, muitas vezes, dos dados fato um romance histórico? Ou metaficção
históricos. historiográfica? Penso que embora haja
Contudo, os questionamentos ante- uma tendência maior ao romance históri-
riormente levantados regem as diferenças co tradicional – por conta da tentativa de
entre o romance histórico tradicional e o fidelidade à historiografia oficial das Minas
gênero romanesco contemporâneo deno- Gerais –, ainda assim parece existir uma
minado metaficção historiográfica. Destar- parcela de metaficção historiográfica, uma
te, o primeiro crítico a se preocupar com o vez que a família protagonista do romance,
estudo do romance histórico foi o filósofo os Arienim, representa todas as famílias de
húngaro György Lukács, em ensaio intitula- mineradores que vivenciaram a esperança
do O romance histórico, de 1937 (recentemen- de enriquecer com o garimpo. Percebe-se,
te publicado em língua portuguesa), no qual portanto, que Frei Betto reescreve a história
o autor apresenta as características deste dando voz e vez aos mineiros, povo humil-
gênero literário que situa sua ação, ainda de e simples que desbravou os rincões das
que fictícia, num passado histórico, isto é, Gerais, e que por este motivo merece não
real. Este tipo de romance tem como pano apenas ser ouvido, como também ocupar o
de fundo um contexto anterior ao do escri- papel de protagonistas na história das Mi-
tor e é sobre esse contexto que o romancista nas Gerais, tal qual os tropeiros em relação
situará seu enredo fictício. Sendo assim, o à historiografia paranaense.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 125-127, jan/jun. 2012


126 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
BETTO, Frei. Minas do Ouro. 1ª edição. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2011. 270 p. ISBN 978-85-325-2689-2.

Referências
HUTCHEON, Linda - Poética do Pós-
Modernismo. Rio de Janeiro: Imago Editora,
1988.
LUKÁCS, György – O romance histórico. São
Paulo: Boitempo editorial, 2011.

Recebido para publicação em 27 abr. 2012.


Aceito para publicação em 8 jun. 2012.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 125-127, jan./jun. 2012


Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 127
Normas para encaminhamento de trabalhos

UNILETRAS é uma revista científica semestral do Departamento de Letras Vernáculas e Departa-


mento de Línguas Estrangeiras Modernas da Universidade Estadual de Ponta Grossa, destinada à divulgação
de trabalhos total ou parcialmente inéditos concernentes a questões de Letras. Está aberta a colaborações
nacionais e estrangeiras.
A revista submeterá anonimamente os originais a dois membros do Conselho Editorial, cujos nomes
permanecerão em sigilo. Com base nos pareceres emitidos, o Conselho Executivo da UNILETRAS poderá
recusar ou reapresentar os trabalhos aos autores com sugestões para que sejam feitas alterações necessárias
no texto e/ou para que os adaptem às normas editoriais da revista.

Quanto à apresentação de trabalhos:


• Os artigos deverão ser anexados no sistema de editoração de revistas pelo site http://www.revistas2.
uepg.br/index.php/uniletras/index. Solicitamos aos autores que, ao submeterem o artigo ou resenha,
preencham o cadastro completo (metadados).
• Indicar, após o nome do autor, a instituição de origem.
• Incluir resumo do trabalho, abstract, palavras-chave e keywords, nesta mesma ordem. (o resumo
deve ser em inglês e as palavras-chave também). O resumo deverá ter entre 150 a 200 palavras.
• O artigo deve ter no mínimo 10 e no máximo 20 páginas.
• O original deve desenvolver-se na seguinte sequência: título do trabalho em Português e em língua
estrangeira, nome(s) do(s) autor(es), abstract, resumo, palavras-chave, keywords, corpo do trabalho,
anexos e referências bibliográficas.

Formatação:
• A fonte deve ser Times New Roman, tamanho 12; espaçamento 1,5; margens superior e esquerda
3 cm e inferior e direita 2,5 cm.
• O número de páginas fica a critério do(s) autor(es) podendo chegar até 20 páginas e mínimo de10
páginas. As resenhas não deverão ultrapassar a 4 laudas.
• Referências bibliográficas: devem ser dispostas em ordem alfabética pelo sobrenome do primeiro
autor seguindo a normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), n.6023. Referenciar
somente as obras mencionadas no trabalho.
• As notas devem ser de rodapés reduzidas ao mínimo numeradas a partir de 1, no caso de citação
usar sistema AUTOR, data.
• Para os destaques, usar preferencialmente itálico.
• Tabelas, gráficos, desenhos, quadros e árvores devem ser encaminhados separadamente, indicando
no texto onde devem ser inseridas.
A UNILETRAS detém o copyright dos trabalhos a ela submetido. Os trabalhos submetidos à Revista
UNILETRAS não devem, sob hipótese alguma, ser retirados depois de iniciado o processo de avaliação.

Revista UNILETRAS
Editora da Revista – Profa. Dra. Marly Catarina Soares
Fone: 42-3220-3376
Departamento de Letras Vernáculas
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Praça Santos Andrade, 1, Bloco B 84030-900 - Ponta Grossa-PR
E-mail: <marlycs@uepg.br> ou <marlycs@yahoo.com.br>

Você também pode gostar