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UNILETRAS
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Antônio João Teixeira - UEPG Luísa Cristina dos Santos Fontes - UEPG
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Daniel de Oliveira Gomes - UNICENTRO Rosana Apolônia Harmuch - UEPG
Elódia Constantino Roman - UEPG Tânia Regina Oliveira Ramos - UFSC
Genilda Azerêdo - UFPA Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa - UFMG
Jane Kelly Oliveira - UEPG Ubirajara Araujo Moreira - UEPG
ISSN 0101-8698
UNILETRAS
Diversidade e pluralidade na literatura, na leitura
e na escrita
V. 34, N. 1
Capa
Guilherme Theodore de Oliveira
Editoração eletrônica
Rubia Carla Dropa
Tiragem
500 exemplares
Anual de 1979-2007.
Semestral 2008-.
Correspondência/Distribuição/Permutas
Revista Uniletras
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Departamento de Letras Vernáculas
Praça Santos Andrade, nº 1
Ponta Grossa – Paraná – 84010-919
Fone: (42) 3220-3376
E-mail: uniletras@uepg.br
http://www.revista2.uepg.br/index.php/uniletras
Permutas: intercambio@uepg.br
2012
SUMÁRIO
07 Apresentação
ARTIGOS
RESENHA
Equipe editorial
Artigos
doi: 10.5212/Uniletras.v.34i1.0001
Abstract: This article discusses the pragmatic issues related to proper names using
the support of authors such as Searle, Derrida and others. The article studies the
different approaches used by Foucault and his innovations concerning the context
about the functioning of proper names as well as Foucault’s own way of speaking
and how he articulated his ideas.
Keywords: Proper name. Foucault. Searle.
atravessamentos marginais entre alguns pela criação deste tabou foi estranha-
autores, considerando que é um tema que, mente a assimilação considerável do
apesar de ter virado uma espécie de tabu no artigo de Michel Foucault “O que é um
fim da década de 1970, foi retomado, enfim, autor?”(1969) no mundo dos críticos. O
texto bem conhecido é entretanto tam-
na década de 1980, por muitos foucaultianos
bém um dos textos foucaultianos dos
(evidenciando que Foucault operou ele
mais problemáticos. A famosa ‘função-
mesmo, neste tema, o que chamava de uma -autor’ que o artigo esboça tem pertur-
“instauração de discursividade”). bado e inspirado por sua vez toda uma
Giorgio Agamben, no primeiro capí- geração de pesquisadores em história
tulo de Signatura rerum, trabalha a questão literária. No entanto, a função-autor
do termo “paradigma”, de que Foucault faz não foi nunca explicitamente defini-
muito uso em seus escritos arqueológicos, da e mesmo o emprego da distinção
suas exemplificações. Explica-nos, então, a entre autor e função-autor no peque-
no texto não está sempre resultante.1
exceção onde o procedimento foucaultiano
(BUCH-JEPSEN, 2001, p. 48).
se coloca. Para ele, o paradigma caracteriza
o próprio método discursivo foucaultiano, Pois bem, dentre esses leitores críticos
no sentido da energia deslocada para libe- que certamente passaram obrigatoriamente
rar-se do domínio historiográfico francês, por Foucault, citaríamos o filósofo Jacques
que pesaria contextos metonímicos des- Derrida, que retoma a semântica do nome
de o séc. XVIII. Acerca do tema do nome próprio a partir da metáfora de Babel e que
próprio, Foucault se encontrava o mais pa- (digamos de passagem) Foucault já havia ci-
radigmático possível, o que gerou muitas tado no primeiro capítulo de As Palavras e as
confusões imediatas na recepção de suas Coisas. Para Derrida, o nome próprio é uma
investigações e hipóteses, as quais, depois, unidade enunciativa que nos promove um
ficaram como que à margem das proble- pacto com a morte. O que é receber um nome
matizações filosóficas e históricas por um próprio, para Derrida? É estar prometido à
certo tempo, até, quem sabe, irem atingin- morte, receber um nome é receber um feri-
do certa maturação. mento sem nome. E ao receber o sobrenome
Hoje, o tema do nome próprio está se de meu pai recebo um “status natal” que não
tornando uma preocupação bem comum me pertence, nome falso, nome impróprio,
como elo transdisciplinar das interfaces en- promessa da morte. Derrida chamará de
tre Linguística, Literatura e Filosofia. Como “luto pressentido”. Nomear, assim, é sempre
dirá o professor de literatura comparada em simulacrum de um batismo que eu mesmo
Nova Iorque, Niels Buch-Jepsen, em artigo recebi. Tal como o nome próprio como tema
de 2001: é, filosoficamente, simulacrum, repetição de
um tema milenar que passou por Sócrates,
Há uma geração o estudo dos nomes
de autor representa um tipo de tabou Russel, Saussure, Searle, Derrida...
na crítica literária. Uma das razões
1 Tradução nossa.
O nome próprio de autor nasce quan- trivial quando este problema aparenta ter
do se instaurou um regime de propriedade sido tão exaustivamente trabalhado desde
para o texto literário. (Foucault dirá que é a Antiguidade e, no diálogo platoniano do
com a transgressão, quando o autor passa a Cratyle, Sócrates afirme que o estudo dos
ser passível de ser punido, quando inventa- nomes não é uma pequena tarefa. Mas se
ram as regras estritas dos direitos autorais, por um lado a questão poderia ser trivial e,
no final do século XVIII.) Antigamente, o por outro, parece que não é uma pequena
anonimato na Literatura era comum ou até tarefa, vemos talvez menos um choque
uma condição. Já no discurso científico, o de posturas do que uma necessidade
nome próprio era um atestado da legitimi- emergente de se explicar o prisma teórico
dade das fórmulas, Hipócrates disse isso, dos nomes próprios.
então é ciência..., Plínio disse... Mas houve Para explicar este prisma teórico tería-
uma inversão entre o século XVII e todo o mos que nos apoiar, teórica e expressiva-
XVIII, quando o anonimato passa a não ser mente, muito mais na dimensão do texto “O
mais suportável para o campo literário en- que é um autor?” (onde em determinado mo-
quanto que o científico passa a se legitimar mento Michel Foucault não pode deixar de
por si próprio e se tornar anônimo. citar Speech Acts, lançado no mesmo ano de
1969) do que nos métodos analíticos de John
2. Natureza da problemática Searle. Também não poderíamos deixar de
abordar os temas barthesianos sempre con-
Para contextualizar a natureza da temporâneos, ou seja, os que circulam sobre
problemática do nome próprio, recordemos o nascimento do autor moderno juntamen-
a frase com a qual John Searle abre seu te com seu texto, a dessacralização da ima-
célebre capítulo a respeito da relação gem do autor e a importância capitalista por
entre Nomes Próprios e Intencionalidade: sua pessoa. Igualmente, seria impraticável
“O problema dos nomes próprio deveria esquivar-se do alicerce temático estampado
ser trivial...” SEARLE, 2002, p. 321). No por Walter Benjamin, para quem o narrador
entanto, vários filósofos se dedicaram vem morrendo porque a sabedoria está em
ao tema desde os tempos mais antigos, e extinção. Lembremos que, segundo o filó-
resulta interessante que Searle inicie assim sofo, a narração dos romances teria perdido
este seu estudo (Searle é um autor muito o caráter da linguagem que comunica com
inovador: por exemplo, no que diz respeito valores que nem sempre precisam ser no-
a pressupor a tese de que a filosofia da vos, para a tendência à supervalorização da
linguagem apenas pode surgir como uma difusão da informação (cujo valor só se dá
ramificação da filosofia da mente, sendo no momento em que há novidade, e então
que os atos de fala e percepção são atos morre). Assim, relatos como os de Heródo-
do cérebro humano). Bem verdade, Searle to e de outros narradores do passado, em
fala do nome próprio como um problema que a oralidade não assimilava uma apenas
des problèmes que Foucault rencontre No debate final, lembremos que Lu-
dans sa théorie de la fonction-auteur. cien Goldmann aponta que Foucault es-
(BUCH-JEPSEN, 2001, p.54). taria, centrado numa posição filosófica
A armação de objeções constantes no anti-cientificista, inserido numa moda de
final da apresentação do ensaio “O que é um discurso da negação do sujeito da qual não
autor”, as quais Foucault desliza com des- é nem autor, nem instaurador. Foucault
treza, caminha para uma espécie de insatis- responde então, para sintetizar, que houve
fação coletiva para com um mesmo aspecto. um desvio de entendimento de sua preocu-
Parece que os debatedores sentiram-se toca- pação fundamental, a de analisar as regras
dos com um traço específico, muito afiado e de funcionamento da função autoria. Repa-
o mais complexo dentre os que foram enu- remos, portanto, no próprio texto, que ele
merados no próprio texto: o nome de autor efetua-se muito mais sobre a instância pa-
“não se define pela atribuição de um discur- ratópica do autor literário, a investigação
so ao seu produtor” (FOUCAULT, 1992, p.56). do espaço vazio onde quem escreve encon-
Quando se compreende a questão da autoria tra paragem, do que, para dar um exemplo,
correspondente ao modo de ser discursivo de Barthes em O rumor da língua:
uma obra – é o que faz Foucault – formula- Sem dúvida que foi sempre assim:
-se uma instância funcional, de certo modo desde o momento em que um facto é
diversa da maneira a qual um simples nome contado, para fins intransitivos, e não
próprio designa um indivíduo. O autor não para agir directamente sobre o real,
condiz nem com aquele que produziu a quer dizer, finalmente fora de qual-
quer função que não seja o próprio
obra, como também não pode estar no inte-
exercício do símbolo, produz-se este
rior da obra (em primeiro lugar, como saber
desfasamento, a voz perde a sua ori-
precisamente onde fixa-se a ideia de obra? gem, o autor entra na sua própria mor-
O próprio Foucault põe de imediato: não te, a escrita começa [...]. (BARTHES,
existe uma teoria da obra.) O autor se loca- 1984, p.49).
liza, então, não no lugar histórico ou no li-
terário, mas mais propriamente num hiato Problemática da interioridade, da
entre o indivíduo que escreveu e o narrador “perda da origem”, da voz em presença
da ficção, na cisão entre escritor real e locu- “castrada”, na constituição textual. A pre-
tor fictício: um espaço vazio. sença da escritura aparece em detrimento
O trabalho de Foucault dá-se justamen- da ausência, esvaziamento do sujeito em
te num momento crítico em que se intensifi- si, sujeito-escrevente dissociado do sujei-
ca uma necessidade: a afirmação teórica do to-autoria, onde “escrever assume a sim-
tema morte do autor. O fenômeno da extinção bologia da castração, pois é a falta simbó-
da arte narrativa e, com ela, da morte da pes- lica de um objeto imaginário, é necessário
soa do narrador, já é notado por Benjamin que o sujeito morra para que haja escrita.”
em 1936 (BENJAMIN, 1996, p.197-221). (MALISKA, 2006, p.104).
Ou seja, no interior de toda sociedade, mais citados por Searle –, defenderá uma
o espaço do discurso desdobra diversos mi- cadeia causal nunca pura. Em síntese: cada
cropoderes para efetuar sua autoproteção vez que emite um nome próprio, o falante
sistemática, impalpável, e os sujeitos, com está mimetizando o processo daquele que lhe
seus nomes próprios, não são mais que pi- transmitiu o nome, pela primeira vez, daque-
nos energéticos desse uso político. la coisa, quer dizer, a busca seria sempre de
Mas, voltando ao caso inicial de Fou- se aproximar do batismo originário de um
cault e Searle, notemos que eles escrevem objeto ou sujeito. Porém, Searle fortemen-
de modo totalmente diferente, são dois te o censura utilizando-se de vários contra-
nomes e dois estilos de composição. Nos -exemplos, um deles é o caso do nome pró-
confortando um pouco em produzir uma prio Ramsés VIII.
síntese enfraquecida do pensamento sear-
Suponhamos, apenas para argu-
leano, acreditamos que, mesmo achando-
mentar, que temos um vasto
-nos na linha diretiva de Foucault, não conhecimento acerca de Ramsés VII
podemos nos omitir de explicar o artigo e Ramsés IX. Neste caso, poderíamos
de Searle, para contextualizar a natureza empregar, sem sombra de hesitação,
da problemática dos nomes próprios. Eles o nome ‘Ramsés VIII’ para nos referir
“carecem de um conteúdo intencional ex- ao Ramsés surgido entre Ramsés VII
plícito”, para Searle, mas devem depender, e Ramsés IX, ainda que as diversas
de algum modo, de uma causalidade inten- cadeias causais do antigo Egito nos
omitam Ramsés VIII. (SEARLE, 2002,
cional, um conteúdo intencional. Essa é
p.331).
sua grande questão. Para propor um cabi-
de teórico a fim de entender a isso, Searle O que ocorre neste caso de Ramsés
recorre às duas escolas filosóficas que se VIII, enxertado entre os Ramsés VII e o IX,
preocuparam, exaustiva e historicamente, é que, como nome próprio, indica mais a to-
em definir o processo de como os nomes talidade de uma rede da Intencionalidade.
próprios se ligam ao seu objeto referido: o Conforme Antonio Campillo, para que cada
descritivismo e a teoria causal. nome próprio seja efetivamente “próprio”:
Em suma, a escola da teoria causal
[...] tiene que ser citable y classificable,
(Kripke, Devitt, Donnellan) refuta o des-
esto es, tiene que ser diferenciable en
critivismo e seus esquemas e, deste modo, relación consigo mismo y en relación
insiste que, para se entender o elo entre os com toda una red de nombres
nomes próprios e as coisas, é preciso haver propios. En otras palabras, tiene
um certo quadro causal externo, uma cadeia que ser desapropiable, comunicable,
exterior à comunicação. Os nomes, deste separabe del yo/aquí/ahora de cada
modo, sempre conotariam uma relação de- enunciación singular, atribuible a
signacional externa entre as coisas do mun- otros muchos ‘yo’, ‘aquí’ y ‘ahora’.
Precisamente por ello el significado
do mas chegam a elas de modo improfícuo.
de un nombre propio puede ser nunca
Kripke, por exemplo – um dos causalistas
del todo determinado, ya que no hace é uma variante dela – eis uma das maiores
sino remitir a otros nombres propios, contribuições do seu pensamento sobre
y éstos a su vez a otros, a lo largo esse assunto.
de una red o cadea interminable. Ademais, o interessante é que há, de
(CAMPILLO, 1992, p. 27).
certo modo, uma justaposição bem grande
Outro caso extremo é o dos numerais: da leitura foucaultiana do nome próprio,
cada número é apenas o nome de um núme- com o texto de Searle. Foucault, com toda
ro, o “um” é o nome do número um, dentro sua sofistificação, também se aproxima dos
de uma cadeia reguladora que não se refere propósitos de afastar o nome próprio do to-
essencialmente a nada, a não ser ao modo de pos causal, pois está notadamente dedicado
ser de um campo específico chamado mate- a mostrar que o nome de autor pactua-se
mático. Muito parecido com o pensamento mais com uma rede, um campo de coerência
foucaultiano. Quer dizer, para Foucault, (de textos, de estilos, de estatutos sociais, de
no seu intuito (como Barthes) de derrotar garantias de recepção, de sistemas jurídi-
a monarquia do autor, de dessublimá-lo, a cos), toda uma intencionalidade neutral e
rede seria a de “um certo modo de ser do invisível, do que com o próprio eu-escreven-
discurso”. Enfim, para botar Kripke contra te. Foucault enforca o sujeito. E Searle, de al-
a parede, Searle supõe uma comunidade gum modo, com todo seu epistemologismo,
primitiva em que todas as relações de nome sua tentativa de traduzir, desembaraçar, as
próprio sejam perceptíveis, diretas, onde (in)tensões biológicas e intrincamentos do
todos se conheçam e participem dos rituais cérebro humano e não do poder microfísi-
de batismo entre si. Nesse exemplo fictício, co, já havia dado um passo neste sentido,
Searle mostrará rapidamente que sempre ao mostrar que é da natureza de todo nome
haveria então um conteúdo intencional sa- próprio este liame com uma rede de con-
tisfeito pelo objeto referido. De todo modo, teúdos intencionais. Todavia, ainda se acha
Searle se aproxima um pouco mais de au- totalmente ancorado numa vontade de rea-
tores como Mill e Frege, para quem o nome bilitar uma investigação temporal. O que o
próprio é mais uma função de referência e estudo das hipóteses entre o perspectivismo
denotação do que uma conotação causal. mental e a natureza do nome próprio não o
Searle começa explicando a segunda faz, é tornar extremamente acessível, como
escola, a teoria causal, e não a primeira. conseguiu Foucault, mesmo com todas suas
Acreditamos que assim o faz porque possui obliterações, um debate novo – e ao mesmo
um interesse de sublinhar, mais à frente, tempo velho3 – sobre a relação entre nome
que os teóricos como Kripke e Donnellan,
apenas são suficientemente eficazes, em 3 Quem sabe, esta vem a ser a mais arrebatadora lição
seus argumentos, quando se aproximam aspirada pelo ensaio “O que é um autor?”. Este texto, em
peculiar, remonta a toda uma excentricidade que muito
do descritivismo. A teoria causal se colocou, tem a ver com Blanchot. Inclusive, Anna Poca afirma que
historicamente, em contraposição à teoria “tal vez sean los libros de M. Foucault, no cesamos de
constatarlo, los que operan la inversión más radical de la
descritivista quando, para Searle, ela apenas
constrangido, e que sua unidade e seria o modo de existência do autor nas cir-
sua coerência estão situados em um cunstâncias em questão – portanto pres-
sistema de valores, e é esta noção que supondo sua existência.” (FURLANETTO,
ele deseja por em questão mirando 2006, p.121). Teríamos que estar a ouvi-lo
a função-autor. Mas, reduzindo o
falar, para entender onde Foucault chega
nome de autor a um predicado que
indica um certo modo de discursos,
e Searle não chega, a ouvi-lo responder às
os proprietários desta noção são questões do debate. Foucault pode ser me-
vistos como fundados por concepções nos epistemologicamente “confiante” que
de literatura antes que pelas atitudes Searle, naquele fim dos anos 1960, coisa
psicológicas individuais. Isto está que denotamos, justamente, sob uma fala
bem. Mas aqui não há evidentemente paratópica que arruína a tecnologia de pro-
mais nenhum papel a desempenhar dução de uma monarquia autoral. Aconte-
para um autor-em-carne-e-osso com ce que seu próprio nome próprio entra em
uma personalidade, uma biografia, e
questão como assinatura e performance de
sobretudo com um estatuto jurídico
e social, e se o autor é somente
fala. Talvez sua própria voz nos convencesse
um ‘produto ideológico’ nessas que está a vislumbrar problemáticas especí-
concepções literárias, não se pode lhe ficas do funcionamento do nome próprio
repreender de reproduzir a ideologia com relação aos modos de funcionamentos
burguesa. Quando Foucault lança um discursivos que o englobam. Estes funcio-
ataque ao texto autoral porque este namentos são alternantes, móveis, oscilan-
conserva a ideologia burguesa conci- tes, e assim Foucault procede em seu texto
liando uma autoridade quase-divina como que capturando em movimento de
ao autor, é como se seu alvo fosse sem-
pensamento uma fluidez que estaria, no en-
pre o autor-em-carne-e-osso que infor-
ma o texto com um sentido secreto e
tanto, sob um rigoroso parâmetro prosódi-
interno. (BUCH-JEPSEN, 2001, p. 58).4 co. Se “O que é um autor?” se distingue da
tendência investigativa, ou até historiográ-
Acreditamos que Foucault, como mes- fica, de Searle ou Russel, e principalmente
mo diz em resposta a Lucien Goldmann, no de muitos demais textos anteriores do pró-
debate após a apresentação de sua confe- prio autor, se não é texto seguro e está cheio
rência, não está a “reduzir” o nome de au- de aporias, variações de luzes, de vozes, de
tor sob um modo equivocado ou restrito de perspectivas, queremos crer que isso ocorre
preconcebê-lo como simples produto ideo- a partir de uma ordem mais proposital do
lógico ou estético. Como diz Maria Marta que equivocada, ao falar sobre a questão do
Furlanetto, “Foucault deixa claro que não nome próprio. Pedro de Souza, ao investi-
está reduzindo o autor a uma função, mas gar o trajeto da voz de Foucault – após ouvir
apenas dando uma resposta possível a qual mais de 500 horas de gravações de seus
textos e entrevistas, na biblioteca france-
sa do Instituto da Memória das Edições
4 Tradução nossa.
Resumen: Desde la lectura de “Bartleby, the Scrivener – a story of Wall Street”, cuento
del escritor norte-americano Herman Melville (1817-1891), del elenco de sus montajes,
para cine y televisión, y también partiendo de la análisis de una de ellas, hecha en
2001, este articulo piensa brevemente la cena contemporánea, considerando algunas
teorías de la imagen y los impases de pasaje de la literatura al cine.
Palabras-llave: Literatura. Cine. Imagen. Bartleby. Melville.
Sospechava que el cine era el arte más Wall Street”, do escritor norte-americano
engañoso de todos y el único en el que Herman Melville. O conto foi publicado pela
nunca nada era cierto. primeira vez em 1853, na revista Putnam’s,
Enrique Vila-Matas, Nunca voy al de Nova Iorque, dividido em duas edições,
cine, 1982, p.18.
a de novembro e a de dezembro.
Sua fama, entretanto, é tardia. Apenas
as primeiras narrativas de Melville, de
1. Bartleby
caráter romântico, descrevendo aventuras
A personagem Bartleby pertence a marítimas, obtiveram a admiração do
um dos contos mais famosos do século público. As demais, mesmo a mais conhecida,
19, “Bartleby, the scrivener – a story of Moby Dick, não alcançaram, em sua época, o
* Professora adjunta de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora no PPGLet área
Literatura Comparada. E-mail: <rita.lenira@ufrgs.br>.
(Bartleby), Thorley Wlaters, Colin ças com relação ao texto de Melville, nas quais,
Jeavons, Raymond Mason, Charles paradoxalmente, sem traição, se define a ma-
Kinross, Neville Barber, Robin terialidade fílmica proposta por Friedman.
Askwith, Hope Jackman, John Com relação aos atores, o olhar arguto do
Watson, Christine Dingle, Rosalind
crítico percebe um trabalho cuidadoso, de
Elliot e Tony Parkin.
Duração de 78 minutos.
quem se identifica com os personagens não
País: Inglaterra3 apenas pelo que eles têm de evidente, en-
quanto tipos singulares, mas pelo que assi-
Segundo Roger Greenspun4, o diretor nalam para além do conto, pelo que deixam
Anthony Friedman move a ação do filme, em suspenso no espaço cenográfico.
de Nova Iorque, 1850, para Londres, 1970. Um longa-metragem francês, com o
E transforma a atividade do copista na de mesmo título, também desloca a ação, só
bibliotecário. A personagem Bartleby anda que, desta vez, de Nova Iorque, nos anos
pela cidade, em seu tempo livre, tem um 1850, para Paris, nos anos 1970. O filme é
pouco de vida pessoal e transmite algo a inicialmente produzido, em 1976, para a
respeito dos seus pontos de vista, o que não rede de televisão Antena 2. Mais tarde, sofre
ocorre no conto de Melville, no qual a sua adaptação para o cinema, tendo um conhe-
subjetividade e os seus dados de identifica- cido ator de comédias no papel de Bartleby:
ção permanecem incógnitos.
Bartleby (1978)
O crítico considera que estas mudan-
Direção: Maurice Ronet
ças, embora pareçam dar um tratamento
Adaptação de Melville: Yvan Bostel
inapropriado ao texto original, fazem com Gênero: Drama
que o filme tenha o senso, ou a inocência, Elenco: Michael Lonsdale, Maxence
de fazer de si mesmo algo mais. Este “algo Mailfort (Bartleby), Maurice Biraud,
mais”, que torna Bartleby um alienado mo- Dominique Zardi, Jacques Fontanelle,
derno e, ironicamente, inglês, revela-se efi- Hubert Deschamps, Albert Michel,
caz. O bibliotecário senta-se à sua mesa e Philippe Brigaud, Michel Fortin,
prefere não trabalhar; depois, prefere não Bruno Balp, Hervé Le Boterf, Florence
Blot, Simone Chatelain, Henri Attal e
se mover, até que a sua preferência chega
Serge Bento.
à absoluta discrição da morte, conservando
Duração: 96 minutos
muito do seu enigma. País: França
A partir da descrição de algumas se- Colorido5.
quências, pode-se ter uma ideia das diferen-
Ainda na França, a romancista e rotei-
rista Véronique Tacquin, seis anos depois,
3 Cf. <http://query.nytimes.com/search/article- exibe o experimental Bartleby ou Les Hommes
printpage.html>.
4 No artigo “Melville’s ‘Bartleby’ transformed for the
au rebut:
screen”, de 7 de janeiro de 1972, que, junto com a ficha
técnica do filme, pode se acessado na página citada na
nota anterior. 5 Ver <http://www.filmcritic.com/>.
vibração sutil, que se torna uma constante processo, muitas trapalhadas acontecem,
ameaça de desmoronamento. A entrada e a sendo que a mais interessante e que, ob-
saída de ar se dão pelo teto, por uma espécie viamente, está completamente fora do tex-
de exaustor que irá adquirindo um enfoque to de Melville, dá-se quando Mr. Waxman,
especial no decorrer do filme. após uma costumeira cena de sedução
As três personagens de Melville são com Vivian, se retira, e ela, em dueto com
conservadas, embora sofram modificações: Rocky, canta uma canção, acompanhada,
Turkey vira Ernie, um funcionário lento, por Ernie, numa viola country, que tem por
gordo e atrapalhado vivido por Maury refrão a frase de Bartleby “I would prefer
Chaykin; Nippers é Rocky, um homem not to”, e que também explora as diversas
forte e um tanto violento, vivido por Joe possibilidades do nome “waxman” – ho-
Piscopo; e Ginger Nut, que em Melville é mem de cera – tanto para falar da indife-
um menino de 12 anos, torna-se Vivian, rença e da palidez do colega, quanto para
uma secretária sonsa, sempre vestida avaliar sarcasticamente as atitudes do su-
de tailleurs vermelhos, vivida por Glenne perior. O episódio é constrangedor, tanto
Headly. Com Vivian, a história toma outros para Bartleby, quanto para o Mr. Waxman,
rumos, pois além dela manter um tipo de que ouve a musiquinha e retorna. O chefe
rivalidade com Bartleby, participa de um imediato – Paymer - acaba resolvendo a si-
jogo sedução, nunca levado a termo, com o tuação, que se apresenta, no filme, como o
superior de todos, Mr. Waxman, vivido por ponto alto da comicidade.
Seymor Cassel. Para Bartleby, quando este E aí talvez esteja um dos grandes pro-
responde a um anúncio e vai trabalhar no blemas da direção de Parker: ele dispõe de
escritório, ela mostra a saída de ar do teto, bons atores, de tipos bem construídos, de
afirmando que dali se pode ouvir o oceano. uma boa história, e de um cenário especial-
Este objeto se tornará o ponto de atração do mente criado para que a comicidade flua,
personagem, que irá voltar-se cada vez mais mas a atuação de Crispin Glover, como um
para ele, permanecendo em pé, olhando-o Bartleby triste e patético, muito próximo
fixamente, num alheamento crescente e da de um doente, com dificuldades físicas
perturbador. de expressão, que inspira mais piedade do
A confrontação, ou o conflito, é intro- que riso faz com que os demais se tornem
duzido pela primeira negativa de Bartleby caricaturas um tanto ridículas. A música
em cumprir uma ordem do chefe, recebi- também contribui para um desempenho os-
da com estranheza por todos, e segue num cilante, entre o drama e a comédia, e o filme
crescendo até a mudança de escritório, a se suspende neste limiar.
última saída, para o personagem de David No final, Bartleby é abandonado por
Paymer, já desesperado com a situação, que todos, e trêmulo, sob um viaduto, se recusa
se livra de Bartleby por um tempo, deixan- a comer, a reagir, a fazer qualquer coisa, re-
do-o, como uma mobília, para que os próxi- cuperando a cena da “carta morta”, exibida
mos ocupantes da sala cuidem dele. Neste no início, na qual Bartleby apresenta-se para
que “um filme funciona pelo que retira a participação na totalidade das outras ati-
do visível” (BADIOU, 2002, p.103). Mais vidades artísticas, em uma alusão constan-
importantes que a presença das ideias, te, contrastante e subtrativa.
nas imagens, são os cortes, executados Badiou denomina de “poética do ci-
não somente pelos efeitos de montagem, nema” ao enredo destas três acepções da
como também pelos enquadramentos e palavra “movimento”, e cujo efeito é a visi-
pela depuração controlada e planejada tação da ideia ao sensível. Insiste, entretan-
do que se faz visível. O modo segundo to, na expressão “visitação”, pois o cinema
o qual as coisas são aprisionadas pelo desmente a tese clássica de que a arte seria
recorte cinematográfico faz com que a forma sensível da ideia, no sentido platô-
elas, simultaneamente, se exibam como nico, posto que não possui, concretamente,
singularidades e sejam, em segundo plano, nenhum corpo. Não é algo separável, na prá-
uma corporificação, distraída e visual, de tica, e não existe, no cinema, mais do que
uma ideia. em sua passagem: a ideia é, concretamente,
O cinema seria, então, uma arte que é a própria visitação. Esta relação se explicita
visitada pelo passado, no sentido de que o como um “para fora” da relação direta entre
passado se institui ao passar, mobilizando a ideia e uma cópia, em imagem, que seria
um sentido do que já se havia visto ou ouvi- secundária, pois, segundo o teórico, “o cine-
do e que permanece enquanto passa, e que, ma é a menos mimética das artes”.
ao mesmo tempo, tenta organizar esta pas- O cinema faz aparecer o passar, a
sagem, do pensamento conectado ao visível, concretude mesma da visita, e nisto arti-
em operações cujas possibilidades são in- cula os três movimentos: o global, no qual
ventadas e reinventadas a partir das habili- a ideia nunca é mais que sua passagem; o
dades próprias de cada técnico e/ou artista. local, pelo qual é, também, diferente de sua
Assim, o movimento, no cinema, po- imagem; e o impuro, pelo qual se aloja nas
deria ser pensado de três modos diferentes. fronteiras oscilantes, entre as áreas artís-
Por um lado, remetendo a ideia à eternida- ticas abandonadas. Assim como a poesia é
de paradoxal de uma passagem, de uma es- uma suspensão na língua por efeito de um
pécie de visitação e, neste caso, se trataria artifício codificado de seu manejo, os movi-
de um movimento global. Por outro lado, mentos que compõem a poética do cinema
o movimento local, por meio de operações são, certamente, também, artifícios, falsos
complexas, é o que subtrai a imagem de si movimentos11.
mesma, ou o que faz com que ela, ainda que O movimento global é falso porque a ele
inscrita, permaneça não apresentada, por- nenhuma medida convém. A subestrutura
que é aí que se encarnam os efeitos do corte,
especialmente quando a detenção aparente 11 Alain Badiou associa os movimentos falsos, que con-
permite ver o esvaziamento do visível. Por figuram o cinema, ao filme O movimento falso, de Win
Wenders comparando, em chave política, as duas poéti-
último, o movimento impuro é a circulação, cas; uma, digamos, filosófica e constituinte, e outra, ar-
tística ou prática.
Para Agamben, a frase I would prefer not ______.; DELEUZE, Gilles. Bartleby, la
to é o anúncio exemplar da potencialidade formula della creazione. trad. Stefano
da linguagem. “Como um escriba que parou Verdicchio Macerata: Quodlibet. 1993.
de escrever”, salienta o teórico, “Bartleby BADIOU, Alain. Pequeno manual de
é a extrema figura do Nada da qual toda a inestética. Trad. Marina Appenzeller. São
criação deriva; e, ao mesmo tempo, ele cons- Paulo: Estação Liberdade, 2002.
titui a mais implacável vindicação deste ______. Imágenes y palabras. Escritos sobre
Nada como pura, absoluta, potencialidade” cine y teatro. Selección de textos y prólogo
(AGAMBEN; DELEUZE, 1993, p. 87). Gerardo Yoel; traducción María del Carmen
A partir da condição de desconectar- Rodríguez. Buenos Aires: Manantial, 2005.
-se, de estabelecer uma relação não mais com BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e
as estruturas montadas, pelos homens, para política. Trad. Sergio Paulo Rouanet, 7. ed.
sobreviver, mas, ao contrário, de entrar em São Paulo: Brasiliense, 1994.
contato com o “outro lado”, o dos mortos, o DELEUZE, Gilles. Bartleby ou la formule.
da gagueira, o do balbucio, o da falta, aque- Paris: Flammarion, 1989.
le onde a ordem falha e prevalece o vazio, ______. Bartleby, ou a fórmula. In: Crítica e
Bartleby permite recuperar uma discussão clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed.
que se ocupa do pensamento como cifra e da 34, 1997.
linguagem como pura potência, em relação a ______. A imagem-tempo. Trad. Eloisa de
tudo o que, neles, escapa da totalização racio- Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005.
nal do sentido e faz retornar ao indefinível. MELVILLE, Herman. Collected prose. Seleção
Espectralidade desdobrada, o cinema e notas Harrison Hayford. New York: The
“sobrevive”, descarnado, catatônico, nos Library of America, 1984.
interstícios que são cortes, recortes e mon- ______. Contos de Herman Melville. Seleção,
tagens, no limiar de um visível que aponta, tradução e introdução de Olívia Krähenbüld.
cada vez mais, aos limites de seu próprio São Paulo: Cultrix, 1969.
fazer, a partir dos quais se postula a fuga ______. Bartleby, o escriturário: uma história
da mensagem, o esvaziamento da ideia, su- de Wall Street. Trad. Cássia Zanon. Porto
pondo que as especificidades do meio man- Alegre: L & PM, 2003.
têm juntas as disjunções entre o cinema e a VILA-MATAS, Enrique. Nunca voy al cine.
literatura. Barcelona: alertes ediciones, 1982.
______. Bartleby & compañía. Barcelona:
5. Referências Anagrama, 2000.
Abstract: This study aims at investigating troubadour poetry and the female image
in Cantigas d’amigo dos trovadores galego-portugueses, assembled by José Joaquim
Nunes. The article compares the main reading sources on the view of women in the
Middle Ages, especially on aspects that point out the marginalization of women in
troubadour poems. Referring to the cantiga de amigo may allow us to characterize
and recover the dynamics of the female path in a literary panorama exclusively
centered on androcentric prerogatives. Thus, it may also allow us to place women
or the space they occupy in literature, their image and questionings through lyric
poetry. The cantiga acts as a source for the analysis of that profile and contributes
to the understanding of medieval thought and its traces in the contemporary world.
Keywords: Cantiga de amigo. Image of women. Ideology.
* Professora Mestre Titular de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Doutoranda em Estu-
dos Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal
de Goiás (UFG), sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Carlos Louzada Fonseca. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de Goiás (Fapeg). E-mail: <marcimelo@gmail.com>.
** Professor Doutor Titular de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Le-
tras e Linguística da Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: <pfonseca@globo.com>.
A pressão exercida pela Igreja aliada sob o n. 102 no Cancioneiro da Vaticana e sob
a ensinamentos associados à boa conduta, o n. 519 no Cancioneiro Colocci-Brancutti, e faz
baseada em preceitos religiosos da moral parte das Cantigas d’amigo dos trovadores ga-
cristã, apontam para a hipótese de que, nas lego- portugueses, reunidas por José Joaquim
cantigas de amigo, o trovador assume a voz Nunes. Este se regulou pela forma como o
da mulher como um artifício poético para assunto é tratado, ou seja, se é o namorado
cantar o amor proibido. Nesse artifício, ou a namorada que fala primeiro, pela indi-
simbólico e metafórico, cuja significação cação nos apógrafos italianos e pelo sistema
só pode ser mais bem compreendida nos adotado nas poesias de D. Dinis.
termos da própria cosmovisão medieval,
Ũa pastor se queixava
notamos certo reforço moralista, clerical e
muit’estando noutro dia,
secular, do amor como pecado, despertado e sigo medês falava
no homem pela face negativa da mulher. e chorava e dizia
Porque ela, a mulher, instituiu o pecado com amor que a forçava:
no mundo, segundo as tradicionais noções “par Deus, vi-t’en grave dia,
formadoras do pensamento e da crença ju- ai amor!”
daico-cristã da Idade Média, assim, a voz é Ela s’ estava queixando,
dada a ela, eximindo o homem da “culpa”. come molher con gram coita
Essa ideia da mulher como perdição, e que a pesar, des quando
atrelada às três letras EVA, povoou a men- nacera, non fôra doita,
talidade masculina da Idade Média e ecoou por en dezia chorando!
“Tu non és se non mia coita,
por outras épocas até os dias atuais. Na in-
ai, amor!”
trodução do Tratado do amor cortês, Claude
Buridant comenta ser frequente na Idade Coitas lhi davam amores,
Média o trocadilho AVE/EVA: “Eva, tuum que non lh’eran se non morte,
e deitou-s’antr’ũas flores
nomen dic retro! Fiet: Ave [Eva, diz teu nome
e disse con coita forte:
ao inverso! Será: Ave]”, prova inconteste da
“Mal ti venha per u fores,
dualidade constante no juízo feito sobre a ca non és se non mia morte,
mulher. Para o homem medieval, a mulher ai, amor!” (NUNES, 1973, p. 1-2).
representa características de Eva e da Vir-
gem, simbolizando ora a perdição da huma-
Uma pastora estava a queixar-se
nidade, ora a doce imagem da redenção. muito estando noutro dia,
Geralmente percebe-se nessas canti- e consigo mesmo falava
gas a voz de uma mulher solitária, em con- e chorava e dizia
tato com a natureza, sofrendo a dor do amor com amor que a forçava:
e lamentando a ausência do amado, como “por Deus, vi-te em penoso dia,
se pode ver na cantiga a seguir, da autoria ai amor!”
de El-rei D. Dinis. Essa cantiga encontra-se
feminina. Os homens eram vistos natural- Lopes, integra o universo dos poetas que
mente como superiores e criados à imagem buscam a intertextualidade com textos da
e semelhança de Deus, ao passo que a mu- tradição poética medieval portuguesa para
lher, reflexo dessa imagem, deveria ser do- compreender a própria razão de suas escri-
minada pelo esposo e sofrer as dores do par- tas e da cultura em que vivem. Esses poe-
to, entendidas, muitas vezes, como castigo tas têm uma preocupação constante com
(MACEDO, 1999). De qualquer modo, essas a possibilidade e os limites da linguagem.
ideias exemplificam que a ordem social Eis aqui novas perspectivas: escrever com
repousava no matrimônio, instituição cul- penas dos outros e a ideia do mundo não
turalmente criada. Assim, a mulher é con- apenas como uma subjetividade feita exclu-
cebida como uma ideia e não como um ser sivamente pelo pulsar linguístico, mas uma
humano e, de certa forma, empurrada para comunicação direta com a vida, aproximan-
as margens da sua própria história. do o sujeito do mundo. Daí o valor das can-
É inconteste que, entre as numerosas tigas de amigo ainda hoje.
investigações científicas consagradas aos
mitos e às obras populares líricas e épicas, Referências
as cantigas de amigo ocupam um lugar
modesto. Isso permite poder afirmar, sem ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN,
Maria Aparecida. História social da literatura
exagero, que a profunda originalidade dessa
portuguesa. 3. ed. São Paulo: Ática, 1990.
antiga arte não foi ainda, de todo, revelada.
No entanto, sua amplitude e importância na BLOCH, R. Howard. Misogenia medieval e a
invenção do amor romântico ocidental. Trad.
Idade Média eram consideráveis, conforme
Claudia Moraes. Rio de Janeiro: Editora 34,
reportam Saraiva e Lopes (1995).
1995.
Nos dias atuais, para uma compreen-
BURIDANT, Claude. Introdução. In: ANDRÉ
são e (re)conhecimento, as cantigas de ami-
CAPELÃO. Tratado do amor cortês. Trad.
go exigem do leitor um esforço de adaptação
Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins
e adequação das condições histórico-sociais
Fontes, 2000.
do contexto em que se desenvolveram. É
DUBY, Georges. Resistências parisienses. In:
desse contexto que emanam as primeiras
______. As três ordens ou o imaginário do
fontes do patrimônio lírico da Língua Por-
feudalismo. Lisboa: Editorial Estampa, 1982.
tuguesa. Poetas brasileiros e portugueses, a
______. Damas do século XII: Heloísa, Leonor,
exemplo de Manuel Bandeira e Fiama Hasse
Isolda e algumas outras. Trad. Telma Costa.
Paes Brandão, reportaram a essa fonte para
Lisboa: Teorema, 1995.
exprimir uma revisão crítica e reinterpreta-
______. Damas do século XII: a lembrança das
tiva de aspectos formais e conteudísticos e
ancestrais. Trad. Maria Lúcia Machado. São
de temas consagrados pela tradição poética Paulo: Companhia das Letras, 1997.
medieval portuguesa.
ECO, Umberto. Arte e beleza na estética
João Miguel Fernandes Jorge, recu-
medieval. Trad. de Mario Sabino. Rio de
perador das crônicas históricas de Fernão Janeiro; São Paulo: Record, 2010.
Confrontos: a homoafetividade e a
hegemonia em Pela Noite (1983), de Caio
Fernando Abreu
Abstract: Homoerotic literature and queer theory analyze sexuality and desire
in social relations, especially homosexuality. In the novel Pela Noite (1983) by Caio
Fernando Abreu, the homoerotic theme can be observed. Based on this theme,
this article analyzes the behavior of characters in the novel when they are in a gay
environment and when they are in a predominantly heterosexual space; in addition,
the article analyzes the moments when one of the characters asks himself: “is it
possible or not to exist love between two men?” Therefore, this study focuses on the
influence of ideology in a patriarchal and sexist society in the life and behavior of the
characters. As a result, it is expected that the characters that are so alienated with
the social “laws”, unconsciously submit to them and they demonstrate difficulties in
behaving in certain spaces and knowing how to love other men.
Keywords: Homoerotic literature. Homoeroticism. Society. Hegemony.
oposto do ideal masculino que a sociedade homossexuais, mas também nos ambientes
burguesa tanto pregava; o uso de tal palavra que frequentam.
reproduz, automaticamente, todo o pre- A minoria homossexual possui, segun-
conceito burguês patriarcal nela embutido do Foucault (2000), essa invisibilidade so-
(COSTA, 1992, p.24). Por tais razões, será cial, pois a classe dominante não os conside-
utilizado o termo homoafetividade ou ho- ra como integrantes do sistema social. Pelo
moerotismo para designar qualquer relação fato de eles terem afinidade com pessoas do
de cunho “homossexual” e, ainda, concorda- mesmo sexo, a hegemonia que é regida se-
-se com a seguinte afirmação de Costa (1992, gundo os padrões cristãos e patriarcais, os
p.21): “homoerotismo é uma noção mais fle- exclui da possibilidade de serem engajados
xível e que descreve melhor a pluralidade em sociedade e reconhecidos como cida-
das práticas ou desejos dos homens same-sex dãos que possuem uma comunidade e uma
oriented. [...] exclui toda e qualquer alusão à identidade.
doença, desvio, anormalidade, perversão”. Para entendermos melhor que o pre-
Em relação à novela, os dois persona- conceito é fruto de um sistema social cris-
gens principais – Santiago e Pérsio – são tão e patriarcal, o qual rege indiretamente
homossexuais e toda a ação da narrativa as atitudes dos personagens homossexuais,
acontece ao redor deles. Ambos já tiveram inicialmente, discutiremos a biografia de
relações sexuais com outros homens. Toda- Caio Fernando Abreu e a fábula de Pela Noite
via, enquanto Santiago viveu relacionamen- (1983).
tos duradouros, todas as relações de Pérsio
foram passageiras e superficiais. Assim, ob- 2. Caio Fernando Abreu e Pela Noite
serva-se que esse personagem nunca nutriu (1983)
um sentimento de amor por outro homem e,
O escritor gaúcho Caio Fernando
além disso, mostra-se contra a possibilidade
Abreu nasceu em Santiago, em 1948. Aos
de existir amor e afeto entre dois homens.
quinze anos sai da cidade e vai para um
Com base nessa contextualização, nos-
internato protestante americano em Porto
so objetivo será analisar como essa atitude
Alegre (ABREU, 1983). Devido ao jornalis-
de Pérsio contrária à homoafetividade está
mo, Abreu vai morar em São Paulo, onde
ligada ao preconceito social que essa ‘mi-
trabalhou como redator e editor por quase
noria’ de gênero sofre. Afinal, os homos-
toda sua vida e integrou a equipe de alguns
sexuais ocupam um lugar marginalizado
importantes jornais e revistas do país. Em
e invisível na divisão de classes, isto é, os
1996, em decorrência de complicações da
gays não possuem seus direitos civis porque
AIDS, Abreu falece (BESSA, 2006).
“não existem” na sociedade, como afirma
Na literatura, Abreu escreveu narrati-
Foucault (2000, p.16): “os homossexuais não
va infanto-juvenil, crônicas, contos, nove-
constituem uma classe social”. Este traba-
las, romances e peças; e foi como contista
lho debaterá esse preconceito, muitas ve-
que mais se destacou e ficou conhecido.
zes sutil, existente não só entre indivíduos
A respeito de sua obra, dizia que, como ele dos personagens principais, Pérsio, se mos-
próprio, ela também caminhava à margem tra em conflito não só com a sua homosse-
da literatura brasileira, porque ele não con- xualidade mas, principalmente, com o fato
seguia se encaixar no campo das letras, de poder existir amor entre dois homens.
principalmente devido à utilização, em seus Logo no início do conto, Pérsio se apre-
textos, de temas conhecidos como malditos senta como possuidor de um conflito inter-
pela sociedade majoritária (BESSA, 2006). no a respeito de quem ele é: “Eu tenho uma
É de acordo com a visão da sociedade sensação meio de amargura, de fracasso.
dominante – machista e patriarcal – que a Você me entende? Como se tivesse a obriga-
temática “maldita” pode ser identificada na ção de ter sido, ou tentado ser, outra pessoa.”
novela Pela Noite (1983); em outras palavras, (ABREU, 1983, p.111). Percebe-se que o per-
o tema central é a homoafetividade, algo sonagem vive um conflito, pois tem a sensa-
rejeitado, mal visto e ignorado pela classe ção de fracassado, ou seja, ele acredita que
dominante. deveria ter sido outra pessoa e não um ho-
A novela relata o reencontro de dois mossexual. Portanto, é fato que Pérsio tem
homossexuais que passaram a infância na problemas com sua homossexualidade, e
mesma cidade, mas nunca tiveram contato isso acontece porque a sociedade patriarcal
nesse período. Certo dia eles se reencontram elege o heterossexual como o modelo a ser
e marcam um encontro para o sábado se- seguido e valorizado, e, consequentemente,
guinte à noite; o que ocorre no apartamento o fracasso do personagem é devido às regras
de um deles. Ambos os personagens utilizam que compõem o sistema social que o colo-
nomes fictícios: Santiago e Pérsio; esses são ca na posição de marginalizado, “perverso”,
escolhidos por eles mesmos e em nenhum “pecador”, “subjugado” e “inferiorizado”.
momento são revelados seus reais nomes. Adiante, o mesmo personagem revela
Após o breve encontro no apartamento um pouco de sua infância e acaba explican-
de Pérsio, eles saem frequentando diversos do a origem de seu conflito:
locais, inclusive alguns de público gay. No
[...] Sabe que quando eu saía na rua as
decorrer da noite, eles começam a relem-
meninas gritavam biiiiiiiiicha! Não,
brar seu passado e a discutir sobre a homoa- não era bicha. Nem veado. Acho que
fetividade, e assim surgem diversas com- era maricas, qualquer coisa assim.[...]
plicações que são resolvidas somente no E eu nem era, porra, eu nem sabia de
amanhecer, com os dois terminando juntos. nada. Eu não entendia nada. Eu era
superinocente, nunca tinha trepado.
Só fui trepar aqui, já tinha quase vin-
3. Confrontos: a homoafetividade e a
hegemonia
te anos. E cheio de problemas, beijava
de boca fechada.[...] Mas não vem ao
Neste tópico, analisaremos como os caso, tudo superado. Ah, tão Maduro
espaços determinam as atitudes dos perso- & Equilibrado. Cinco anos de terapia,
nagens e também os momentos em que um sob controle. (ABREU, 1983, p.153).
Por meio desse outro excerto, pode- sociedade que muitos passam a vida inteira
mos concluir que Pérsio, além de sofrer marginalizados:
muito preconceito ainda jovem, também
[...] o homossexual é duplamente mar-
ficou traumatizado e teve de fazer terapia. ginal. É marginal no sentido de estar,
Observa-se que a sociedade o tratou de for- como a mulher, à margem do centro.
ma tão injusta e o subjugou tanto que isso Mas é marginal, ainda, no sentido co-
deixou marcas para toda sua vida, por isso notativo do termo, na acepção de fora
se sente amargurado e fracassado. Esses da lei, de pervertido, de imoral, de pe-
excertos mostram claramente como a mi- cador. (THOMÉ, 2009, p.22).
noria homossexual é recriminada pelas leis Ao decorrer da trama, os dois persona-
sociais, em que tudo que foge ao padrão é gens principais frequentam diversos locais,
discriminado. e em todas as situações eles estão conver-
É nesse clima entre se exporem como sando e raramente se envolvem com outras
homossexuais ou não que os dois persona- pessoas. Em um dado momento, após San-
gens principais acabam adotando nomes tiago contar que teve um relacionamento
fictícios: “Você vai se chamar Santiago” homoafetivo que durou dez anos, Pérsio
(ABREU, 1983, p.114), e o dono do apartamen- confessa: “Eu nunca consegui ficar mais do
to continua: “Pérsio, de agora em diante eu que um mês transando com a mesma pes-
vou me chamar Pérsio” (ABREU, 1983, p.114). soa” (ABREU, 1983, p.160). Essa afirmação
Com a nomeação, nota-se que eles não rece- de Pérsio mostra que ele, realmente, nunca
beram só um novo nome, mas esconderam conseguiu atingir uma relação sentimental
suas verdadeiras identidades e assumiram amorosa longínqua e estabilizada até o pre-
outra para justificar a relação homossexual: sente, tanto que cita o espaço de tempo em
“Com um nome desses, você pode virar a que transava e não o tempo de afeto. Pouco
noite impunemente [...] sem culpa alguma, depois, ele ainda argumenta que o amor en-
rapaz” (ABREU, 1983, p. 118). Os fragmentos tre dois homens se resume ao sexo, e o que
denotam que a escolha de outro nome é uma o sexo anal é nojento, porque faz-se pelo
metáfora, a qual significa que na esfera so- mesmo canal em que se eliminam as fezes
cial os homossexuais não podem revelar-se do corpo. Desta forma, esse personagem vê
como realmente são, pois a heteronormati- o relacionamento entre homens como algo
vidade acaba “obrigando-os” a assumirem repugnante (ABREU, 1983, p.164).
duas personalidades, ou seja, durante o dia Vale lembrar que tanto Pérsio quanto
ou no decorrer do trabalho, eles devem se Santiago assumem-se como homossexuais,
apresentar como homens heterossexuais, de o que fica explícito nas palavras:
acordo com o padrão vigente, e à noite, ou às
O que você quer que eles pensem de
escuras, eles assumem a identidade homos-
nós, de mim, aqui, a teus pés? E em
sexual – daí o título da novela – Pela Noite; é
qualquer das hipóteses as mammas
devido a todo esse preconceito existente na cutucarão seus maridos ruins de cama
assume toda a culpa pelo fato. Após isso, diado [...] cheio de criancinhas barulhentas”
Santiago argumenta que o amor vai além (ABREU, 1983, p.149). A partir dessas falas,
da higiene e do nojo e, segundo ele, isso é percebemos que a pizzaria é caracterizada
uma criação da sociedade burguesa e cristã como “normal” porque é um ambiente de
(ABREU, 1983, p.168). Quando Santiago ter- público heterossexual, mostrando isso que
mina sua explanação sobre o amor, Pérsio até os próprios personagens gays têm (pré)
se conscientiza do verdadeiro culpado pela conceito contra si, pois quando ele afirma
sua incapacidade de amar: “O meu proble- que aquilo é normal, quer dizer que eles não
ma é um problema juvenil, de adolescente são normais, uma imagem criada pela so-
enrustido. Ou de burguesinho que fez a pri- ciedade hegemônica.
meira comunhão e vai se sentir eternamen- Nesse espaço “normal” surge Carli-
te culpado com a possibilidade do prazer” nhos, um conhecido de Pérsio, o qual se
(ABREU, 1983, p.169 – grifo nosso). Aqui comporta o mais polidamente possível:
Pérsio confessa que veio de uma família “Carlinhos curvou a cabeça. Fez um ar tar-
burguesa e que foi educado de acordo com o diamente polido de não-quero-interrom-
cristianismo. Temos, portanto, a certeza de per-nada-entre-vocês, apertou a mão de
que o que gera nele a dificuldade em amar Santiago, levemente cúmplice, e foi saindo
outros homens e também de sentir prazer entre as mesas.” (ABREU, 1983, p.163). Todo
nas relações é a sua educação de acordo com esse comportamento educado e tímido de
a heteronormatividade. Assim, percebe-se Carlinhos entra em choque com as suas
mais uma vez que a sociedade cria regras próprias atitudes que se estabelecerão num
discriminatórias para com as minorias ho- outro espaço, no bar Deer’s, que é um local
mossexuais, transformando-os em pessoas destinado ao público gay:
naturalmente aptas a subverter moralmen-
Não quero interromper nada. – Car-
te a sociedade (COSTA, 1992, p.46).
linhos estendeu a mão para os copos.
Há na narrativa também outros con- – Posso dar um gole? [...] Desculpa eu
textos que deixam transparecer como o ser indiscreto, longe de mim, mas.
sistema majoritário influencia o comporta- Vocês são caso? [...] Aliás, meu bem,
mento dos homossexuais nas mais diversas me dá licença de dizer. De muito bom
situações. Neste caso, o espaço é algo impor- gosto, os dois. Umas gracinhas, uns
tante de ser pontuado no decorrer da trama. gatinhos. Sabia que vocês são lindos?
Pérsio e Santiago foram a uma pizza- – Bebeu outro gole de vinho. E debru-
çou-se na mesa. – Ah, deixa de onda,
ria: “Daqui a umas seis quadras tem uma
qual é? Conta logo, vai. Vocês são mes-
pizzaria absolutamente normal” (ABREU,
mo caso? (ABREU, 1983, p.182).
1983, p.145), e depois o narrador contex-
tualiza mais esse espaço: “Santiago olhou Nesse momento fica nítido o contraste
em volta. Localizou três mocinhas feias na entre as atitudes de Carlinhos na pizzaria e
mesa ao lado e, mais além, um casal ente- no bar, ou seja, quando ele está num espaço
de público hétero, tenta manter a imagem Nas últimas linhas, o amor entre eles
de um homem heterossexual, mas, a partir é concretizado com as palavras: “Provaram
do momento que ele se encontra no “gueto” um do outro, no colo da manhã. E viram que
– bar – ele se sente livre para agir da forma era bom.” (ABREU, 1983, p.210). Esse térmi-
que desejar. Costa (1992) discorre sobre os no mostra que a homoafetividade, apesar de
guetos: ser um obstáculo na vida de muitos homos-
sexuais, é uma conquista possível, ou seja,
O gueto é formado por um circuito
ela pode ser atingida por todos que real-
de locais de encontro exclusivo de ho-
mossexuais, que vão de praias a pon- mente desejam e acreditam no amor entre
tos de prostituição masculina. Nesses homens ou no amor entre mulheres e seus
locais, alguns extremamente sórdi- iguais.
dos, os indivíduos gozam da “liberda-
de” que a discriminação permite. Mas,
4. Conclusão
justamente por tratar-se de uma li-
berdade vigiada e concedida, carrega Concluímos que Pérsio, por ser trau-
todas as sequelas do preconceito. Os matizado pela discriminação e pelo precon-
sujeitos sabem, mesmo quando não ceito da sociedade, possui problemas em
explicitam, que a liberdade vivida no
aceitar a homoafetividade, pois inicialmen-
gueto é precária e, num certo sentido,
artificial. (COSTA, 1992, p.96).
te ele se mostra completamente contrário
à possibilidade de haver o sentimento do
Observa-se que a classe homossexual amor entre dois homens; entretanto, com
é vista com muito preconceito, já que nem o desenlace da trama, ele acaba se apaixo-
nesses lugares restritos tem-se real liberda- nando pelo amigo Santiago, e ambos vivem
de; a busca por locais ou situações privadas e passam a acreditar nesse amor como algo
de preconceito é um objetivo utópico em re- possível de ser realizado.
lação à sociedade vigente. Além disso, pode-se inferir que o sis-
No final da novela, o foco volta para os tema social vigente realmente trata os ho-
personagens; e Pérsio mostra certa supera- mossexuais com muito desprezo e discri-
ção a respeito de sua incapacidade de amar, minação, e um exemplo disso é a formação
o que fica claro na seguinte fala direciona- de guetos, locais onde os gays tentam buscar
da a Santiago: “Eu gosto de você, eu gosto uma liberdade de expressão, mas ainda as-
tanto de você, garoto. Me dá outra chance. sim, o fato desses lugares serem à parte do
Me deixa guiar a nossa noite.” (ABREU, restante da sociedade, só ratifica a existên-
1983, p.187). Nessa afirmação, nota-se que o cia da discriminação e do preconceito.
personagem conseguiu transgredir todas as
“leis” socialmente impostas e todo o precon- Referências
ceito existente e que, portanto, está come-
çando a amar um outro igual. ABREU, Caio Fernando. Triângulo das águas.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
Abstract: The book Vida e Morte de M. J. Gonzaga (Life and Death by M. J. Gonzaga)
de Sá has many passages that represent features of the intellectual and scholar
protagonist Gonzaga de Sá. The writer Lima Barreto wrote a true amalgam of
situations that indicate the readings of many writers of the time as well a great
capacity to record the affairs and tastes that demonstrate the intellectual choice of
these men. First, an analysis is done in order to introduce the object of study and
the problem. Next, some of the main peculiarities of the romance Vida e Morte de M. J.
Gonzaga de Sá are outlined. The third step is the analysis of the fragments selected
* Mestre em Literatura pela UFSC, doutorando em Literatura pela UFSC, pesquisador CNPQ. E-mail: <literariocris@
hotmail.com>.
in order to identify those that best depict the thematic of the intellectual subject.
The article develops a theoretical dialogue with Sartre (1994), Bobbio (1996) and Said
(2008). The paper aims to stimulate further research about a literary work that has
received little attention from literary criticism.
Keywords: Intellectual. Brazilian Literature. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Lima
Barreto.
raciocínio, o autor esmiúça e reitera alguns nuanças literárias que fizeram parte do fre-
teóricos importantes sobre tal assunto, des- nético expediente de ambos os escritores,
de Osman Lins e Sonia Brayer, passando por buscando evidenciar que tanto a História
Nicolau Sevcenko, atravessando Carlos Fan- quanto a Literatura caminham no mesmo
tinati, entre outros importantes, para com- percurso narrativo. Ao concluir suas análi-
preensão do tema. Acentuando os entraves ses sobre o contexto dos séculos XIX e XX,
criados por alguns teóricos, problematizan- Sevcenko escreve: “Os fenômenos históri-
do algumas leituras, ele delineia as reflexões cos se reproduziram no campo das letras,
mais expressivas, como exemplo, a questão insinuando modos originais de observar,
da intimidade do autor carioca, mote espe- sentir, compreender, nomear e exprimir.
cífico de sua investigação e envergamento [...] Poucas vezes a criação literária esteve
epistemológico de sua tese. De igual modo, tão presa à própria epiderme da história
ele escolhe como objeto de análise os des- tout court.” (SEVCENKO, 1983, p.30). Ao que
dobramentos teóricos de Walter Benjamin, tudo indica, o estudioso deixa nítido que
João Hernesto Weber, entre outros. Uma o fio condutor do seu raciocínio é mostrar
reflexão do estudioso se faz importante na como que a literatura caminha em passos
sua tese atendendo a pertinência aqui es- estreitos com a história, uma influencian-
tabelecida nesse artigo. “Em Vida e Morte, do a outra, buscando diluir ao máximo suas
a comparação com os fragmentos do Diá- fronteiras, fazendo uma favorável interação
rio é produtiva já que o romance incorpora com o público leitor.
dados típicos das leituras praticadas por A aproximação do texto romanesco
Lima Barreto e chega ao limite extremo de com personagens intelectuais sempre foi
agregar objetos da ‘coleção’ do autor à sua motivo para grandes escritores continua-
estrutura final.” (SCHEFFEL, 2011, p.31). rem escrevendo e se entusiasmando cada
Outra contribuição sobre a perspectiva vez mais com seus projetos literários. Ro-
do contexto histórico vivenciado por Lima mance com toques eruditos e ao mesmo
Barreto, temos no acurado ensaio Literatu- tempo manejado com o espírito criativo,
ra como missão (1983), de Nicolau Sevcenko, fortalecera o louvor de muitos romancistas
que estuda as obras dos escritores Euclides que pregavam uma pureza mais sofisticada
da Cunha e Lima Barreto para descrever para o enredo de suas obras ficcionais. Na
problematicamente como se entrecruzam literatura brasileira uma safra de escritores
a prosa desses dois intelectuais. O espaço ousou implementar fatores intelectuais no
da Primeira República, repleto de aconte- bojo das suas personagens, evidenciando
cimentos importantes conjugados com a também os seus gostos eruditos. Machado
densa modernidade em expansão na cida- de Assis confeccionou citações eruditas,
de do Rio de Janeiro, é o pano de fundo da passagens bíblicas, imaginações frutíferas,
análise de Nicolau Sevcenko. Historiador através do gosto e da fala de suas persona-
contumaz e perspicaz, Sevcenko aborda as gens nos seus contos e romances. “Machado
Embora haja uma fortuna crítica sobre esta sabe como nenhum outro homem as varia-
obra, nenhuma se dispõe a analisá-la sob das vaidades do próprio amigo, ora faz uma
esse prisma tão original e profícuo. Diante alternância entre as lembranças, ora sobre
de tal perspectiva, possivelmente podemos as profundas reflexões. A esse respeito, “A
orquestrar a seguinte problemática: como o causa mais importante, todavia, prende-se
narrador barretiano consegue articular com à natureza mesma do romance, circunscrito
tamanha habilidade toda essa conjuntura à descrição dos encontros e deambulações
erudita nas suas personagens? Por que Gon- de Gonzaga e Machado através do Rio de
zaga de Sá desejou ser um homem culto e as- Janeiro, à transcrição do que pensam so-
pirante das coisas de espírito? Quais seriam bre a vida e a morte [...]” (LINS, 1978, p.128),
os trechos que evocam o enlace intelectual na observa Osman Lins. Por outro lado, o nar-
obra Vida e Morte de M. J. Gongaga de Sá? Como rador Augusto Machado, de caráter extre-
é formado o escopo das principais caracte- mamente social, ao oposto do protagonista
rísticas (aspectos linguísticos, históricos, Gonzaga, que era uma pessoa com caráter
denúncia social, aspectos urbanísticos da relacionado à própria situação da morte e
cidade do Rio de Janeiro) desse distinto ro- à decadência, está preso à própria vida. Ao
mance? Como poderíamos interpretar esses contrário do fiel amigo que sempre buscou
diversos fragmentos? Como esses fragmen- o isolamento como forma de comungar seu
tos se articulam e se desenvolvem no enredo conhecimento durante sua vida de funcio-
da obra? Como o lastro teórico desenvolvido nário público e silenciou-se em sua eru-
durante a análise dos fragmentos pode sofis- dição, o narrador Augusto Machado quer
ticar e clarificar a interpretação? Por último, fortalecer seus meios sociais e consequen-
quais seriam as contribuições intelectuais de temente manter contato com seus pares.
Gonzaga de Sá para a sociedade carioca de Enfim, o substrato intelectual encontrado
época? Ao longo desse percurso tentaremos e refletido em ambos os personagens desse
responder essas indagações que se articula- romance é material que merece uma inves-
rão como fio problematizador e ao mesmo tigação mais aprofundada.
tempo condensador de tais considerações. Seguindo um raciocínio interessante
teremos o livro Lima Barreto e o fim do sonho
2. Características da obra Vida e Morte republicano (1995), da pesquisadora Carmen
de M. J. Gonzaga de Sá Lúcia Negreiros de Figueiredo. Canalizan-
do seu objeto de estudo no contexto políti-
O ilustre narrador Augusto Machado
co republicano, especulando com grandes
resolve narrar à história do seu grandioso
resultados, na explanação da obra barre-
amigo Gonzaga de Sá e expor ao público lei-
tiana, a estudiosa compõe um verdadeiro
tor suas lembranças de natureza biográfica
mosaico bibliográfico explicativo. A autora
e intelectual. Ao que tudo indica, Augusto é
logo na introdução faz uma advertência,
aquele tipo de pessoa que admira muito o in-
em que salienta a importância de estudar
separável companheiro Gonzaga. O mesmo
a obra do romancista carioca sem cair nas Pão de Açúcar dissolvia-se nas massas ondas
tentações de cunho biográfico do próprio da enseada.”; “O mar espelhajante e móvel
autor. O binômio humor/caricatura aparece realçava a majestade e a firmeza da serrania
demasiadamente nas suas reflexões eviden- e, em face da sua suntuosidade...”; “O poeta
ciando uma forte preocupação de Carmen tinha razão; era verdadeiramente a grandio-
em esclarecer tal perspectiva, apresentando sa Guanabara que eu via!” (BARRETO, 1969d,
várias exemplificações condizentes com o p.39). Não obstante, os aspectos contempla-
estilo da escrita barretiana. tivos citados nos escritos de M. J. Gonzaga de
Sá extraem a genialidade literária e linguís-
As reflexões feitas por Gonzaga de
tica amalgamando os elementos poéticos do
Sá demonstram que, de um modo
tão convincente quanto um filme romancista carioca. Em suma, uma série de
com o seu ilusionismo, a realidade incrustações ousadas que partem da simpli-
criara signos nos quais se projetam cidade do lado artístico e finaliza na obser-
os atributos da personalidade hu- vação da vida do Rio de Janeiro tão amada de
mana. (FIGUEIREDO, 1995, p.80). Lima Barreto e suas personagens.
Outro aspecto relevante da linguagem
Compartilhamos com o fragmento da
poética entrelaçada aos fatos históricos de
estudiosa que de forma acurada consegue
época seria o apelo aos dados e datas de um
angariar novas formas de enxergar o perfil
verdadeiro compêndio do Brasil. Episódios
interpretativo do protagonista do roman-
que revelam o forte apoio documental e as
ce. Portanto, o conteúdo exercitado pela
crônicas daquele período que terminam su-
pesquisadora não chega a aprofundar tais
mariamente ou mesmo iniciam alguns des-
dilemas da personalidade do protagonista
ses escritos literários de M. J. Gonzaga de Sá.
Gonzaga, que seriam extremamente impor-
Por esse motivo as linhas ficcionais de Lima
tantes para a investigação de outros estu-
Barreto ficam sempre guarnecidas de um
diosos no assunto.
espírito original e criativo de fazer literatu-
Reticências à parte, no âmbito da
ra histórica. Ao leitor mais conhecedor do
linguagem poética e do máximo das ri-
estilo e da própria linguagem do romancista
cas potencialidades da língua portuguesa
carioca é comum verificar nessas passagens
aplicadas à paisagem exótica e exuberante
um profundo grau de conhecimento de ou-
da cidade do Rio de Janeiro, Lima Barreto
tras obras, assim como a prosa inovadora de
explora densamente tudo isso no seu M. J.
um escritor ousado e determinado a “quei-
Gonzaga de Sá. A começar pela variedade de
mar os seus navios”.3 Diversas passagens do
detalhes pitorescos da poética Baía de Gua-
romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá
nabara: “[...] calma face da Guanabara, ligei-
ramente crispada, naquela hora de efusão e
confidência.”; “Villegagnon boiava na pla- 3 Expressão contida na palestra “O destino da Literatu-
ra”, proferida na cidade de Mirassol, interior de São Pau-
cidez das águas, com seus muros brancos e lo. Revista Souza Cruz, Rio de Janeiro, ns. 58-59, out-nov.
suas árvores solitárias”; “O negro costão do 1921. Apud BARRETO, Lima. Impressões de leitura. Op.
cit. p.55 56.
são enriquecidas pela linguagem de registro ampliação dos diálogos de caráter social
ou aquela que narra acontecimentos viven- existentes na prosa de M. J. Gonzaga de Sá.
ciados sob um efeito nostálgico de sabedo- Alguns trechos: “A nossa insignificância
ria aos marcos mais importantes. Sendo as- nas artes do desenho é manifesta. Não pe-
sim, o efeito predatório da implantação do cará tanto quanto à execução, mas no que
regime republicano em território brasileiro toca à imaginação criadora é cousa que não
acontece de forma alusiva. “As suas reminis- se discute.” (BARRETO, 1969d, p.53), escre-
cências de história não lhe davam de pronto ve o narrador ilustrando a notória carência
a ideia nítida do que fosse república.” Em da falta de criatividade dos nossos artistas.
outro episódio identificaremos o narrador Ora, o narrador e a matéria narrada se apro-
diante de uma passagem bem ilustrada aos ximam em demasia e ainda constrói uma
termos nacionalistas: “Vi regimentos, vi ba- crítica bastante construtiva sobre os efeitos
talhões, luzidos estados-maiores, pesadas nocivos da sociedade em apenas valorizar
carretas, bandeiras do Brasil, sem emoção, as profissões da elite e desprezar aquelas
sem entusiasmo, placidamente a olhar tudo ligadas às humanidades. “Há muita gente
aquilo, como se fosse uma vista de cinema- que, sem queda especial para médico, ad-
tógrafo.” (BARRETO, 1969d, p.51) Em suma, vogado, engenheiro, tem outras aptidões
entre tantos outros aspectos históricos que intelectuais, que a vulgaridade do público
ocupariam uma lista grandiosa de fragmen- brasileiro ainda não sabe apreciar, animar
tos que não certamente caberiam em um e manter.”, (idem, p. 48) novamente escreve
artigo tão breve. o narrador barretiano com um olhar mais
Por outro lado, para garantir uma lin- íntimo e realista dos problemas da socie-
guagem ainda mais distinta possivelmen- dade tão hipócrita de época. Enfim, mui-
te denunciadora das facetas sociais que se tas dessas denúncias de Lima Barreto são
diziam democráticas na época, as frases e indispensáveis para um bom historiador
os vocábulos do narrador barretiano não preocupado em compreender o Brasil de
poupam esforços de inovar atingindo um época, já que permanecem na resistência
grau da invenção e da militância intelec- da passagem do tempo.
tual. Muitas dessas palavras e expressões Essas denúncias de caráter social tam-
são lapidadas ao longo de sua maturação de bém atingem a amplitude jurídica do estado
escritor capaz de transformar sua voz e suas e o sistema político da época. Por esse moti-
variadas observações dos aspectos sociais vo, é notável que Lima consiga articular de
para uma maneira romanesca de demons- maneira disfarçada através da fala das suas
trar suas inquietações ao modelo vigente. É personagens uma série de situações intransi-
possível que Lima Barreto tenha inovado na gentes ao gasto ineficiente do erário público
linguagem durante alguns dos seus percursos da época, denunciando a péssima consciên-
de criação, facilitando assim sua invenção e cia desses políticos para o devido uso e in-
criatividade que futuramente resultaria na vestimento necessário a população. Muitas
dessas passagens ilustram que a literatura correlações aos meios progressistas urba-
de Lima não cumpria apenas um olhar de nísticos de época. Ao que tudo indica parece
deleite da sociedade de época, mas a função que o escritor Lima Barreto usa a fantasia
de questionar as instituições vigentes e pro- e o figurino daquele urbanista e arquiteto
blematizar de uma maneira mais consciente, sensato e determinado a verificar os proble-
outorgando a sua formulação de critérios e mas da cidade do Rio de Janeiro buscando
juízo. Por isso sua personagem Gonzaga ex- pequenas soluções e elucubrações necessá-
plica que a maneira que o: “ [...Barão do Rio rias que poderiam ajustar e melhorar vários
Branco] faz do Rio de Janeiro a sua cháca- tipos de serviços públicos. O fragmento
ra... Não dá satisfação a ninguém... Julga-se ilustra muito bem: “... Providência, Pinto,
acima da Constituição e das leis... Distribui Nheco – ficam muito distantes do Campo
o dinheiro do Tesouro como bem enten- de Santana, que está na vertente oposta;
de... É uma espécie de Roberto Walpole... mas com aperfeiçoamento da viação, aber-
O seu sistema de governo é a corrupção...” tura de túneis, etc., todos os inconvenientes
(BARRETO, 1969d, p.70). Ora, o fragmen- ficarão sanados.” (BARRETO, 1969d, p.65),
to apresentado demonstra um alto grau escreve em tom profético retratando que no
de descontentamento por parte de Lima e futuro haveria grandes túneis que sanariam
outros pares amigos da mesma época. os problemas. Ora, para bom leitor da geo-
Portanto, Lima tinha certeza da pro- grafia da urbs carioca, Lima antecipa e diag-
blemática enfrentada e fazia o possível para nostica uma espécie de premonição para fu-
denunciá-la sob a luz dos desafios enfrenta- turas melhorias que de fato ocorreram em
dos. O efeito dessa paixão e desse aspecto re- décadas posteriores. Em outro momento,
volucionário como fio condutor para romper teremos o imbricamento dessa questão bem
de forma desinteressada as contradições de explicado: “É que o Rio de Janeiro não foi
época é muito bem explicado pelo fragmento edificado segundo o estabelecido na teoria
transcrito abaixo, de Edward Said: das perpendiculares e oblíquas. Ela sofreu,
como todas as cidades espontâneas, o influ-
Os verdadeiros intelectuais nunca são
xo do local em que se edificou e das vicis-
tão eles mesmos como quando, mo-
vidos por paixões metafísicas e prin- situdes sociais por que passou, como julgo
cípios desinteressados de justiça e ter dito já.”, (idem, p. 66) observa o narrador
verdade, denunciam a corrupção, de- justificando a problemática existente dire-
fendem os fracos, desafiam a autori- tamente relacionada aos condicionamentos
dade imperfeita ou opressiva. (SAID, naturais da geografia urbana carioca como
2008, p.24). fator dificultoso para o estabelecimento de
A rigor, se fôssemos aqui explorar e grandes melhorias. Em suma, tais fragmen-
abstrair algumas frases e fragmentos na tos evidenciam a maneira progressista e
obra Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, iría- poética de todo o pensamento de um autor
mos brevemente remontar a uma série de preocupado em descrever as incoerências
de uma grande metrópole que se iniciava no – todos de lá, mais ou menos da ter-
seu processo de modernização. ra daquela gente! Lembrei-me grata-
mente de que alguns deles me deram
a sagrada sabedoria de me conhecer
3. Análisedas facetas intelectuais do
a mim mesmo, de poder assistir ao
protagonista M. J. Gonzaga de Sá
raro espetáculo das minhas emoções
Manuel Joaquim Gonzaga de Sá, ho- e dos meus pensamentos. (BARRETO,
mem determinado a cultivar o hábito da lei- 1969d, p.78).
tura e fazer disso a sua vontade espiritual, é Do fragmento transcrito acima é opor-
cidadão comprometido com os conceitos de tuno resgatarmos os nomes dos escritores
nação. Gradativamente, iremos observar no ao qual o narrador faz menção em relação à
decorrer da linha evolutiva do romance que leitura dos clássicos estabelecidos pela vai-
Gonzaga de Sá foi um sujeito que acumulou dade intelectual. Todos esses nomes evoca-
diversos tipos de conhecimentos, ou melhor, dos mantêm a finalidade de ilustrar acura-
adquiriu sabedoria e habilidade para usá-la damente o gosto pessoal e o critério de valor
na medida certa e comungá-la com os seus remetido a esses escritores tão consagra-
discípulos de época. Em outras palavras, Sá dos. Como podemos verificar a lista desse
foi um cidadão autodidata que compartilha- cânone completa de forma indispensável a
va suas aptidões humanas buscando praticá- “sagrada sabedoria” de qualquer intelec-
-las no seio da sociedade em que vivia. O pro- tual mais exigente e consciente de ter como
tagonista perfaz um perfil de caráter sábio pressuposto essa grandiosa bagagem lite-
e contestador das ideias vigentes daquele rária. Além disso, a safra desses escritores
período. Algumas passagens, que iremos descritos comporta um olhar mais respeito-
selecionar adiante, ilustram bem a vontade so pela formação clássica de uma excelente
profunda do protagonista em conhecer os literatura estrangeira. Ora, por esse motivo
clássicos da literatura universal, da filosofia o aproveitamento dessas leituras realizadas
de época, das humanidades e expandir suas por Sá condiciona um espírito mais sofisti-
escolhas e conhecimentos para o progresso cado e atento às condições já consagradas
de sua vida espiritual. da busca do autoconhecimento e determi-
Em um primeiro episódio, iremos ve- nação para uma vida mais emotiva. Algu-
rificar o narrador Machado tecendo alguns mas linhas adiante, iremos encontrar no-
comentários nostálgicos sobre as prefe- vamente o narrador Machado descrevendo
rências literárias universais do consagrado através de algumas minúcias o conteúdo
Gonzaga de Sá. Vejamos alguns desses de- espiritual do protagonista Gonzaga de Sá.
talhes que ilustram muito bem essa ótica de Vejamos alguns desses detalhes:
análise:
Gonzaga era desses homens cujo
Logo me recordei, porém, dos meus pensamento se transmite mal pelo
autores – de Taine, de Renan, de M. escrever ou por outro instrumento
Barres, de France, de Swift e Flaubert qualquer de comunicação criado pela
Abstract: Based on the French Discourse Analysis approach, this article aims at
analyzing alterity between orality and writing in “Gabriela, Cravo e Canela”, by Jorge
Amado. The article demonstrates that in some interdiscourse spaces (discursive
memory) linked to the oral tradition there are reading possibilities linked to aspects
of orality such as: discursive dispersion and organization of rhymes linked to
the cordel literature and that its presence demonstrates ways of resistance to the
dominant norms of written discourse.
Keywords: Discourse. Literature. Cordel literature. Jorge Amado.
* Doutor em Psicologia pela Universidade de Sao Paulo com estágio na Universidade de Paris 13. Professor Adjunto do
Departamento de Estudos Básicos e Instrumentais da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. E-mail: <apereira.
uesb@gmail.com>.
a atenção porque sinalizam, tal como este Seja por meio da adversidade à cultura
trabalho procura mostrar, aspectos rítmi- católica ou à erudição, esta forma de litera-
cos próximos à chamada literatura popular, tura, que também está recheada pela poesia
mais ainda, à literatura de cordel. e pela prosa, dá conta de articular nichos da
memória coletiva que admitem o improvi-
2. Metodologia so bem como uma infinidade de ritmos, na
medida em que se aproxima da música.
Aspectos dos corpora: romance es-
crito e literatura de cordel
No tocante à complexidade social do
universo da literatura, seja ela em que for-
Sem a pretensão de pontuar uma ori- mato se manifeste, Candido (1985) lembra
gem para a literatura oral ou escrita, e a que arte e literatura sempre estão interes-
partir de uma perspectiva sócio-histórica, sadas nos problemas sociais. Do ponto de
pode-se afirmar que em várias culturas vista do alcance, seja por um veículo anô-
sempre houve a pretensão de relatar feitos nimo, como muitas vezes ocorre na litera-
cotidianos ou extraordinários, conforme as tura de cordel, este autor ainda argumenta
possibilidades de uma realidade. que o dilema entre a iniciativa individual e
Assim sendo, entre os viajantes que as condições sociais da obra não deve dei-
percorriam de forma transversal o mundo xar de lado a discussão sobre o valor social
árabe até a Península Ibérica, toda a Europa relativo, valor este envolvido ao destino (à
– e mesmo quando se entra no hibridismo circulação) entre autor e público.
entre relatos de viajantes, narrativas No caso da poesia popular brasileira,
seculares ameríndias e correspondências que fortalece o que se denomina literatura
epistolares, presentes nas Américas –, oral popular, Romero (1977) ressalta que há
contos e narrativas fizeram e fazem parte o campo da poesia herdada da confluência
de modos coletivos de se discutir questões das diversas tradições preocupadas com
humanas de natureza vária, bem como suas narrativas e, podemos dizer, com essa
marcar lugares de peregrinação e tentativa circulação, mas há aquela que nos particula-
de singularidade entre os diversos povos. riza como brasileiros.
Marcada por este complexo universo, Neste caso, é a luta pela vida no meio
tão arraigado à condição humana, quanto o da peleja da migração e do enraizamento
próprio estatuto do que se entende por cul- de um novo clima cultural que faz o povo
tura, Luyten (1986) comenta que a chama- cantar e improvisar; o povo brasileiro can-
da literatura popular foi marcada por três ta os ciclos da natureza migrante e dos
pontos de disseminação coincidentes com desafios da vida no roçado, no plantio, na
os pontos de peregrinação: Roma e a Santa pesca, na fiação, sendo que a população
Sé; Jerusalém e a Terra Santa, e Santiago de fica aberta ao maravilhar-se com esta reali-
Compostela e a heterogeneidade linguísti- dade de que é parte.
co-cultural da Galícia.
Peregrino (1984), por sua vez, situa a quanto o universo dos romanceiros que
expressividade e a comunicabilidade desta preservam tal poesia na literatura de cor-
vida itinerante no universo do cordel, que del. Pergunta a autora: “qual é a realidade
preserva uma alteridade entre oral e escri- da presença do romanceiro na memória
ta, tal que permite perceber o ritmo da voz dos homens e das mulheres do Nordeste?”
num romance escrito, como defendemos (SANTOS, 2006, p.56).
neste artigo. Nas palavras de Peregrino Esta mesma autora responde ao afir-
(1984, p.22): mar que em meio à diversidade da cultura
nordestina, o lugar de honra ocupado pela
Sem cogitar das primeiras fontes da
poesia, nas quadras, trovas, pequenas poe-
literatura de cordel, pacificamente
identificadas com o romanceiro espa- sias, ainda mantém viva a figura do canta-
nhol-luso do Renascimento, podemos dor também como um difusor desta cultura
dizer, de nossa parte, que a poesia po- local, de modo que país afora, como tam-
pular dos folhetos tem sua pré-história bém aponta Luyten (1986), tornou-se quase
nos chamados cantadores, quando o sinônimo de cultura popular e nordestina
poeta popular exercia a sua criativida- tudo o que se refere ao universo do roman-
de apenas na cantoria dos repentistas. ceiro de versos.
Ali, na hora, explodiam os versos nas
O alcance da dimensão social ovacio-
pelejas encarniçadas ou nas cantorias
nada por Candido (op.cit.) como referência
amenas. E só a memorização respon-
dia pela fixação daquela poesia do aàs discussões sobre literatura passa pelo
povo, até que pesquisadores empreen- caráter de resistência de tal produção em
deram o recolhimento do que a memó- meio às produções midiáticas mais atuais.
ria guardava e do que eles diretamente, Isto se justifica porque a rica poesia
em trabalho de campo, anotavam. popular brasileira tem um de seus maiores
tentáculos na literatura de cordel, por meio
A respeito deste modo de cantar as
das sextilhas, ou seja, da forma de seis ver-
narrativas de uma tradição, ou mesmo de
sos setessílabos cantados (LUYTEN, 1986), e
um acontecimento pontual numa locali-
em menor grau, os de cinco sílabas; preser-
dade, Santos (2006) ensina que os textos
va a memória rítmica que também se traduz
formam um sistema na memória de uma
no corpo da escrita brasileira e na escrita da
comunidade e são transmitidos conforme
voz, que também ganha corpo nos modos
performances em eventos do cotidiano (ve-
de agir e de se relacionar, concatenando um
lórios, festas, jogos) que têm uma função de
paradigma de conduta.
mitificação de uma ação e preservam a di-
Além disso, vale ratificar neste caso as
mensão poética de uma criação local.
palavras de Lévy (1993) e o destaque dado
Em se tratando do nosso objeto de es-
por este autor à permanência do univer-
tudo, cabe uma pergunta feita pela autora,
so da oralidade mesmo em tempos de alto
que alcança tanto o universo pelo qual cir-
impacto das tecnologias da informação. Se-
cula o romance de Jorge Amado (1958/2008)
gundo Lévy (1993, p.10):
Tendo sido discutidos alguns aspec- Mussalim (2009, p.52) defende que “é possí-
tos do corpus formado a partir do romance vel considerar o fato literário como discurso
“Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado no sentido que a AD confere a este tema”.
e da literatura de cordel, a partir da qual A autora ressalva que a enunciação, e
serão analisados alguns pontos de alterida- suas condições e instituição (modos de cir-
de entre oral e escrita, passemos adiante à culação dos enunciados), considera a com-
apresentação dos aspectos discursivos pelos plexidade sócio-histórica do texto literário
quais se forma e analisa este corpus. dentro da possibilidade de ser analisado
pelas ciências da linguagem. Assim, o tex-
Formação do corpus discursivo de to literário não é reflexo de época histórica;
análise não é visão de mundo e/ou de subjetividade
determinada; em suma, não é uma entidade
Em AD, Pêcheux (1993) mostra o en-
em si mesmo.
trecruzamento da Formação Social (FS) e a
Fernandes (2009) complementa esta
delimitação ideológica da hierarquia entre
discussão ao analisar o texto literário con-
as práticas sociais. Como aponta o autor, as
forme a delimitação do dito concorde com
relações de produção incluem as leituras do
o lugar, ou seja, aquilo que é dito aqui e não
arquivo (PECHEUX, 1997; GUILHAUMOU,
em outro lugar e de outro modo. No texto
MALDIDIER, ROBIN, 1994) e o campo de
literário também se pode buscar articula-
possibilidades dos gestos de leitura funda-
dores da memória sócio-histórica, o que ex-
mentados nas bases materiais da ideologia.
plica em parte de que maneira as rimas pre-
Com relação a estas possibilidades de
sentes em Amado (2008) indicam relações
leitura, inclui-se o desnivelamento ideoló-
de alteridade com a literatura de cordel.
gico entre o romance escrito e a literatura
Mesmo com o desnível entre ambos os
de cordel. Ao se levar em conta ainda que o
universos discursivos, sua circulação, seus
arquivo é entendido como o campo sistema-
efeitos simbólicos, os efeitos de sentido
tizado da memória discursiva, é possível in-
mobilizados na posição do leitor sustentam
terpretar mecanismos de alteridade entre o
pontos de troca e de semelhança entre ambos
romance escrito e a literatura de cordel.
universos literários por estarem amparados
Isto porque, conforme aponta Orlandi
na mesma rede de memória discursiva.
(2001), para haver interpretação é neces-
Para mostrar isto, estabelecemos um
sário que haja textualidade, uma vez que
gesto de leitura no corpus analisado – se-
a atribuição de sentidos sócio-históricos é
quências discursivas retiradas do romance
possível conforme a sustentação de uma
“Gabriela, Cravo e Canela” (AMADO,
“realidade significativa” pela “exteriorida-
1958/2008) – para apontar esta realidade
de” constitutiva: memória discursiva, inter-
significativa. A análise de pistas pressupõe
discurso (ORLANDI, 2001, p.52).
a formação de um corpus, cujas sequências
Mas como interpretar um corpus no
discursivas foram retiradas de trechos da
caso da confluência entre AD e literatura?
obra “Gabriela, Cravo e Canela”, que sinali- permite que, deslocado da linearidade apa-
za rimas semelhantes àquelas encontradas rente do romance, o sujeito-escritor susten-
na literatura de cordel, possíveis de serem te movimentos de interpretação, em que se
analisadas conforme o paradigma indiciá- valoriza a tradição oral, principalmente a
rio de análise. literatura de cordel.
Trata-se de um “método” de análise Luyten (1986) e Santos (2006) destacam
indiciária, tal como proposto por Ginzburg várias formas “de versejar”, ou seja, de se
(1989), a partir de suas pesquisas sobre a organizar as rimas, na literatura de cordel,
base opaca da relação entre pesquisador a saber: aquelas apresentadas por Luyten
e objeto pesquisado. Neste paradigma, a (1996) de forma geral (mourão e quadrão); e
construção do “dado” em meio ao processo por Santos (2006), de forma mais detalhada,
de análise de indícios e pistas marginais re- dentre estas: gemedeira, mourão trocado, a
dimensiona os discursos e o valor simbólico quadra, oito pés a quadrão, quadrão minei-
dos saberes. ro, quadrão da beira-mar, a décima heptas-
Portanto, o “dado” nunca é diretamen- silábica, dez pés a quadrão, mourão voltado,
te acessível, nem tampouco segue a lógica martelo.
clássica da delimitação de hipóteses basea- A interpretação do corpus tal como
das em controle de variáveis, para a poste- segue procura destacar trechos da narra-
rior verificação ou refutação. ção em que há formas de descrição utili-
Tal como mostraremos, há sítios de zada pelo autor para delimitar o campo de
sentido que ao emergirem por meio da in- ações das personagens e chamam a atenção
terpretação revelam parte do que estava in- porque sinalizam, como se procurará mos-
terditado à interpretação, por conta de me- trar, aspectos rítmicos próximos à literatura
canismos ideológicos; no caso, parte-se da popular, mais ainda, à literatura de cordel.
crença dominante que na literatura do ro- Ressaltamos, entretanto, que não nos
mance escrito a escrita se organiza por meio preocupamos em delimitar precisamente
de gêneros textuais que não deixam marcas cada uma das categorias rítmicas descritas
da chamada literatura oral emergirem. por Luyten (1986) e Santos (2006), nos tre-
chos em destaque. A partir da perspectiva
3. Resultados e discussão discursiva, procuramos discutir o estatuto
desta mobilização do interdiscurso para
Em sequências discursivas elencadas tratar de aspectos da alteridade entre oral
da obra “Gabriela, Cravo e Canela” são mos- e escrita.
trados pontos de alteridade que sinalizam a Trata-se de três trechos a serem aqui
construção do lugar de autor, a partir de um analisados, tal como foram retirados da
mecanismo discursivo, talvez pouco notado obra “Gabriela, Cravo e Canela” (AMADO,
na obra em sua totalidade, a saber: a inter- 1958/2008). Cada um desses destaques se-
discursividade com a literatura de cordel gue o panorama elaborado por Serrani
(1997) ao tratar da perspectiva discursiva na romance escrito, tal como não deixamos de
abordagem de corpora em sua dimensão so- mencionar neste trabalho.
ciocultural. Vê-se que a maioria dos versos dispos-
Para a autora a análise conta então tos na SD1 mantém-se com cinco sílabas,
com a eleição a critério do pesquisador de que aparecem com relativa frequência na
uma sequência discursiva de referência obra de Patativa do Assaré, por exemplo,
(SDR) e uma sequência discursiva (SD), a porque também são expressão do “falar es-
partir da qual será feita a análise com base tropiado do sertanejo” (TAVARES JUNIOR,
na retomada da questão inicial ao analista; 1999, p. 7), embora em geral sejam mais co-
a questão inicial pode ser aqui resgatada, de muns tanto na literatura de cordel quanto
forma mais precisa, nas seguintes palavras: na obra de Assaré, a redondilha maior e a
de que forma os trechos do romance de Jor- sextilha; ainda assim, o que se tem é o que
ge Amado que indicam rima na descrição este autor aponta como o caráter lúdico da
dos personagens podem indicar filiações à rima no cordel.
literatura oral? Qual o valor discursivo des- Vejamos caso semelhante na Sequência
tas filiações? Discursiva de Referência (SDR) 2- “pensar
Sendo assim, cada SD foi reescrita pra quê? Valia a pena não.../seu Nacib era pra
conforme o formato encontrado na literatu- casar com moça distinta, toda nos trinques,
ra de cordel, para que seja dado destaque ao calçando sapato, meia de seda, usando per-
formato rítmico, a partir do qual serão mos- fume. Moça donzela, sem vício de homem.
tradas as relações de alteridade. Gabriela servia pra cozinhar, a casa arrumar,
Vejamos a SDR 1- “foi pro quintal, a roupa lavar, com homem deitar. Clemente
abriu a gaiola em frente à goiabeira. O gato na estrada, Nhozinho na roça, Zé do Carmo
dormia. Voou o sofrê, num galho pousou, também. Na cidade bebinho, moço estudan-
pra ela cantou. Que trinado mais claro e te, casa tão rica! Vinha mansinho, na ponta
mais alegre! Gabriela sorriu. O gato acor- dos pés, com medo da mãe. Primeiro de to-
dou” (AMADO, 2008, p. 227). dos, ela era menina, foi mesmo seu tio. Ela
A partir desta, vejamos a SD1: O gato era menina, de noite seu tio, velho e doente
dormia./Voou o sofrê,/num galho pousou,/ (AMADO, 1958/2008, p. 204).
pra ela cantou./Que trinado mais claro e mais Ao percebermos o ritmo mantido nes-
alegre!/Gabriela sorriu./O gato acordou. te trecho da narração, ela pode ser rees-
Nesta sequência, estabelecem-se for- crita da seguinte maneira, de que resulta
mas rítmicas que, tal como apontado por a SD2: Gabriela servia pra cozinhar./A casa
Santos (2006), sinaliza uma escritura da arrumar./A roupa lavar./Com homem deitar/
voz muito presente na literatura de cordel, [...] ela era menina, foi mesmo seu tio./Ela
ainda que a autora ressalte características era menina, de noite seu tio, velho e doente.
diferentes entre o cordel e a cantoria, bem Em relação a esta mobilização da me-
como a homogeneização dos gêneros poéti- mória discursiva da redondilha menor pode-
cos cantados pelo cordel, assim como pelo -se mostrar, por fim, a Sequência Discursiva
quais apareceriam duvidosas e pouco credi- criticadas por Santos (2006) de que o cordel
tadas a seus usos mais objetivos. seria uma “infância da literatura”.
Entretanto, parte de tal pretensão Como se nota, esses aspectos da orali-
escapa ao estabelecimento desta ordem, dade explicam a circulação seja do cordel ou
possibilitando aos sujeitos que fazem uso do romance escrito por conta da abertura da
disperso e mergulhado na pluralidade de circulação da polifonia da oralidade (BAKH-
gestos de interpretação aquilo que Certeau TIN, 1990), a partir da qual é legitimada par-
(2001) denominou de compartilhamento te da singularidade do efeito de autoria em
da experiência coletiva da memória; é o questão; isto decorre ainda da possibilida-
que vemos no caso em que parte da memó- de aberta ao leitor (efeito-leitor) de perce-
ria dos romanceiros é, ainda que esfacela- ber uma realidade significativa (ORLANDI,
da e disfarçada na voz dos personagens, 2001), a partir da textualidade investigada
presente nos modos de organização da in- em termos da trama de memória discursiva
terpretação do sujeito-autor, nas sequên- mobilizada no tênue fronteira com a litera-
cias em destaque. tura de cordel.
Este imperativo, tal como um eixo Ainda em relação às colocações de San-
organizador dos gestos de leitura a partir tos (2006), no lugar de uma “infância da lite-
de instrumentos formadores do processo ratura” temos no cordel uma oralidade que
de gramatização, fortalece os mecanismos também participa da dinâmica cultural, que
do discurso da escrita também cooptado renova as dimensões poética e narrativa,
por mecanismos de unidade linguística seja na forma oral, seja na forma escrita do
e de controle da interpretação alinhados romance.
ao referido processo de gramatização Vale ressaltar que o intuito mais amplo
(PEREIRA, 2009; TFOUNI, 2004). Ocorre desta análise foi o de apontar relações entre
que este efeito, como já foi dito, não impede oralidade e escrita, destacando que o ritmo
um regime complexo e multifacetado de da voz do narrador e da voz dos persona-
organização das formas da oralidade que, ao gens é marcado também pelos ritmos da voz
atravessarem a forma escrita do romance, se da literatura oral.
fazem presente de modo que mobilizam parte Desta maneira, foi possível marcar
da memória discursiva da literatura oral. indícios de semelhança e diferença com
Como aponta Santos (2006), seja can- as formas já categorizadas da literatura de
toria ou romance em folhetim, tudo con- cordel, sendo válido notar certo hibridismo
verge para o folheto e também passa por dessas formas, sendo mais importante des-
este lugar simbólico; e, vemos aqui, de que tacar de que maneira há uma interdiscursi-
maneira indícios dessas formas sinalizam vidade filiada aos aspectos da oralidade, que
formas que se encontram nos folhetos; no permitem mostrar a alteridade entre oral e
romance escrito veem-se metidos aspectos escrita, entre literatura oral e romance es-
da oralidade que contrariam as perspectivas crito, de modo que seja possível perceber
formas de ruptura com a economia escri- atores anônimos fazem de eventos do coti-
turística dominante e modos de circulação diano. Assim sendo, cada parte do grupo se
da oralidade por meio do alcance coletivo da compromete a “enterrar” a parte não selecio-
memória materializada em outro lugar sig- nada numa espécie de compromisso coletivo
nificativo do interdiscurso. com o luto, a partir do qual permanece circu-
lando a diversidade de textos orais e escritos.
Conclusão Para finalizar, retomamos as pergun-
tas introdutórias e defendemos que os me-
Ao longo da análise, procurou-se em canismos de alteridade entre oral e escrita
algumas sequências assemelhar as rimas vistos a partir da análise do corpus indicia
encontradas na prosa de Jorge Amado com semelhanças tênues e significativas com a
os modos de versejar encontrados na litera- literatura de cordel, de modo que foi pos-
tura de cordel. sível ser apontada em parte por conta do
Em defesa da argumentação principal modo singular pelo qual esta questão afeta o
vista neste trabalho, pode-se constatar que pesquisador como organizador de gestos de
há aspectos da oralidade em trechos descri- leitura interpelados pela posição que ocupa,
tivos observados no romance mencionado mas também possível de ser mobilizada em
que indicam uma alteridade entre oralidade gestos de leitura deslocados desta mesma
e escrita e que sinalizam marcas das con- posição, caso haja um compromisso com a
dições de produção da literatura de cordel, preservação e o funcionamento do caráter
como indícios da alteridade entre o roman- coletivo dos usos da linguagem e das cons-
ce escrito e a literatura oral. truções literárias em geral.
Mesmo num universo complexo do A partir dos resultados deste trabalho,
ponto de vista enunciativo, em que as di- vemos que na alteridade estabelecida entre
versas mídias se voltam para a informação “Gabriela, cravo e canela” de Jorge Amado
padronizada e veloz, tal como novos arte- (1958/2008) e as formas da literatura popu-
fatos do que Auroux (1992) denominou de lar de cordel debatida por meio das contri-
gramatização, persiste a presença do ritmo buições de vários autores, parte de cada um
da voz e da escrita nas formas do folheto e desses universos foi enterrado para renas-
do romance, numa alteridade em que tal di- cer naquele que, tomado como referência,
mensão sócio-histórica pode ser analisada, pode assim, contribuir para mostrar a in-
conforme aponta Santos (2006), pela pere- terpenetração, o intercâmbio e a circulação
nidade de sua resistência. que envolve oralidade e escrita.
Deste modo, vale resgatar as observa-
ções de Cavignac (1997): a autora analisa o
Referências
testemunho coletivo encontrado na litera-
tura de cordel e seu papel na construção da ABREU, M. Então se forma a história bonita
identidade coletiva por meio da seleção que – relações entre folhetos de cordel e literatura
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futuro do pensamento na era da informática. SERRANI, S. M. Um método para estudar a
Abstract: This commented reading briefly discusses the conception of literature and
political thought of the philosopher Gilles Deleuze. The notions of line of escape and
war machine state literature as becoming a minority language.
Keywords: Literature. Politics. Language. Gilles Deleuze.
O que é a literatura? Muitas e diferen- ser (ser autor, ser escritor), mas de devir, de
tes respostas foram dadas a essa pergunta. tornar-se outra coisa que não um escritor.
Roland Barthes, por exemplo, definiu a li- Elogiando a superioridade da literatura an-
teratura como “o grafo complexo de uma glo-americana – Hardy, Melville, Stevenson,
prática: a prática de escrever” (BARTHES, Woolf, Wolfe, Lawrence, Fitzgerald, Miller,
1997, p.10). Mas em que consiste essa prá- Kerouac – sobre a literatura europeia, De-
tica? O que os escritores fazem quando es- leuze, na contracorrente da mitologia bur-
crevem? Trata-se realmente de escrever? guesa da escritura, concebe a literatura,
Que fluxos cruzam as linhas traçadas por muito prosaicamente, como um fluxo entre
um texto? outros:
O filósofo Gilles Deleuze deu a esse
Escrever é um fluxo entre outros,
questionário uma resposta bastante singu-
sem nenhum privilégio em relação
lar: escrever é devir. A literatura (a chamada aos demais, e que entra em relação
“grande literatura”) não é uma questão de
* Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (2002), professor na Universidade Estadual de Ponta
Grossa (UEPG), na área de Teoria da História. Professor do Programa de Pós-Graduação em História da UEPG. E-mail:
<apbenatti@ibest.com.br>.
de corrente, contracorrente, de rede- lugar. “Por que se escreve? É que não se tra-
moinho com outros fluxos, fluxos de ta de escritura. [...] Escrever não tem outra
merda, de esperma, de fala, de ação, função: ser um fluxo que se conjuga com ou-
de erotismo, de dinheiro, de política, tros fluxos – todos os devires-minoritários
etc. (DELEUZE, 1992, p.17).
do mundo”. (Idem, p.63).
A filosofia deleuziana constrói cate- A literatura não é o fruto sublime de
gorias para pensar a relação complexa da um gênio transcendente, mas o produto
literatura com a subjetividade ou, o que dá histórico imanente de um agenciamen-
no mesmo, com a vida. Contra o formalis- to (coletivo) de enunciação. Para Deleuze,
mo, estruturalista ou quejandos, afirma que a literatura politicamente “efetiva”, como
o estilo de um escritor é antes uma questão prática de luta, de combate, de resistência,
de vida que de forma. Esse vitalismo nun- está do lado das minorias. O escritor é tão
ca é individual, mas social, pois que o texto, somente uma minoria, em conexão com ou-
produto imanente de uma prática, pode ser tras minorias. As minorias não são necessa-
agenciado a outras práticas que atravessam riamente numéricas, mas aquelas que, nas
e constituem o social, e com os quais um flu- relações de poder, formam minoria (as mu-
xo de escrita pode conectar-se, agenciar-se, lheres, por exemplo, são uma minoria entre
“fazer rizoma”. Em Deleuze e Guattari, a no- outras).
ção de agenciamento suplanta os conceitos A escritura, claro, é uma obra de lin-
de estrutura, sistema, forma, etc. “Um agen- guagem, um trabalho sobre a linguagem;
ciamento comporta componentes heterogê- mas uma língua não é ela mesma uma es-
neos, tanto de ordem biológica, quanto so- trutura ou um sistema em equilíbrio. Uma
cial, maquínica, gnosiológica, imaginária” língua é constituída por uma série de devi-
(GUATTARI; ROLNIK, 1986, p.317). res. A literatura (uma determinada literatu-
O escritor, para Deleuze, não é pro- ra) faz (pode fazer) rizoma com os devires-
priamente um sujeito; é um inventor de -minoritários da linguagem. Na medida em
agenciamentos, um contrabandista das que agencia, foge dos códigos dominantes,
multiplicidades: “O escritor inventa agen- que buscam capturá-la, domesticar sua as-
ciamentos a partir de agenciamentos que pereza selvagem. O exemplo de Kafka no
o inventaram, ele faz passar uma multipli- gueto judeu de Praga: “Uma língua domi-
cidade para outra.” (DELEUZE; PARNET, nante (uma língua que opera num espaço
1998, p.65). Não é falar por ninguém ou no nacional) pode ser localmente capturada
lugar de alguém: “Ao contrário, é preciso num devir minoritário. Ela será qualifica-
falar com, escrever com. Com o mundo, da de “devir menor”, como o dialeto alemão
com uma porção de mundo, com pessoas. de Praga utilizado por Kafka.” (GUATTARI;
De modo algum uma conversa, mas uma ROLNIK, op.cit., p.317).
conspiração, um choque de amor ou de ódio.” O devir do escritor não se confunde com
(Idem, p.65). Agenciar é simplesmente estar a figura historicamente construída do autor.
no meio de um mundo, nômade sem sair do O autor, como mostrou Michel Foucault, é
com ela, fazendo-a deslocar-se. Afinal, toda É evidente que o devir revolucionário
obra de arte é uma ruptura, ainda que um do escritor não passa, necessariamente,
experimento vital imperceptível, pois “So- pelo engajamento militante de sua pessoa
bre as linhas de fuga, só pode haver uma civil ou pela tendência política de sua oeuvre.
coisa, a experimentação-vida.” (Idem, p.61) Não passa pela sua “ideologia” (para Deleu-
Uma linha de fuga não é capitulação covar- ze, não existe ideologia porque uma socie-
de, evasão da vida ou recusa da ação; uma dade não se define por suas contradições,
fuga é positiva e propositiva: ela é ação, quer mas por suas linhas de fuga, que são onto-
dizer, produção de acontecimentos, mesmo logicamente primeiras); a política da litera-
que sejam acontecimentos imperceptíveis. tura pouco ou nada tem a ver com os “equi-
valentes de classe” ou os compromissos
Fugir não é renunciar às ações, nada
mais ativo que uma fuga. É o contrá- políticos de uma vanguarda artística. Bar-
rio do imaginário. É também fazer thes afirmou uma concepção semelhante:
fugir, não necessariamente os outros, o escritor é tão somente “um senhor entre
mas fazer alguma coisa fugir, fazer outros” (BARTHES, 1997, p.12). O radicalis-
um sistema vazar como se fura um mo próprio da literatura opera na transver-
cano. (Idem, p.49). salidade. Os aparelhos do Estado, do capital,
Surge, portanto, uma questão política: dos códigos, se constituem por captura das
o que pode essa prática? Qual a potência da máquinas de guerra, mas uma máquina de
literatura contra os poderes do mundo? A guerra é sempre irredutível a todos os apa-
resposta deleuziana é muito simples. Con- relhos. Segundo o filósofo, seria necessário:
tra uma vida miserável, fascista, a literatu- buscar um estatuto para as ‘máqui-
ra, quando consegue traçar uma verdadeira nas de guerra’, que já não seriam de-
linha de fuga, conectando-se com uma má- finidas de modo algum pela guerra,
quina de guerra, ela converte-se em “pro- mas por uma certa maneira de ocu-
gramas de vida” ou “protocolos de experiên- par, de preencher o espaço-tempo, ou
cia”. Torna-se ela mesma uma arma capaz de inventar novos espaços-tempos.
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.12).
de resistir e criar, porque, afinal, a única
forma de resistência é a criação permanente Quando um fluxo de escritura traça
de novas possibilidades de vida. Na medida uma linha de fuga, de desterritorialização/
em que a equação literatura = vida for uma dessubjetivação, ele entra numa relação
equação efetiva, uma verdadeira traição aos com a exterioridade. Se toda fuga é uma es-
aparelhos e códigos, a potência da vida atra- pécie de delírio, a literatura é o delírio su-
vessa a obra, tornando-a singularidade e di- premo da linguagem, febre ou incandescên-
ferença ativa. Por isso, a literatura está do cia do discurso, intensidade capaz de fazer
lado do informe, do que ainda não tem uma a linguagem sair dos eixos, pirar, saltitar
forma e que, por vezes, é uma cesura, uma como um demônio em busca da segunda
experiência-limite. noite. Essa concepção de literatura libera os
Resumo: O objetivo deste estudo é fazer uma comparação entre os romances São
Bernardo, La casa de los espíritus e O manual dos inquisidores tendo como foco principal
os personagens masculinos: suas posições de poder, muito bem representadas em
suas propriedades; a necessidade da total apropriação da mulher, suas esposas; a
impossibilidade desta apropriação e, consequentemente, a decadência psicológica,
física e moral desses indivíduos. A comparação aqui proposta leva em consideração
o contexto histórico em que estes personagens estão inseridos: golpes militares e
mudanças do cenário político e econômico, bem como o papel fundamental que as
mulheres exercem sobre seus esposos, funcionando mesmo como ativadoras do
processo de transformação deles.
Palavras-chave: Homem. Poder. Mulher. Decadência.
Resumen: El objetivo de este estudio es hacer una comparación entre las novelas
de San Bernardo, La casa de los espíritus y El manual de los inquisidores teniendo como
enfoque principal los personajes masculinos: sus posiciones de poder, muy bien
representadas en sus propiedades; la necesidad de total apropiación de la mujer,
sus esposas; la imposibilidad de esta apropiación y por lo tanto, la decadencia
psicológica, física y moral de estos individuos. La comparación que aquí se propone
tiene en cuenta el contexto histórico en que estos personajes se introducen: los
golpes militares y los cambios de la escena política y económica, así como, el papel
crucial que las mujeres tienen sobre sus maridos, actuando mismo como activadoras
del proceso de transformación de ellos.
Palabras-clave: Hombre. Poder. Mujer. Decadencia.
* Doutoranda em Teoria Literária no Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Cata-
rina. E-mail: <josianefranzo@hotmail.com>.
modo particular, contato direto com as dita- de refletir sobre a semelhança temática que
duras retratadas em suas obras, bem como permeia os três romances: o poder concen-
com o que se estabeleceu depois delas. Graci- trado na figura de um indivíduo, os golpes
liano Ramos, sensível aos problemas sociais, militares, a opressão aos desfavorecidos, a
consciente do seu papel enquanto homem tentativa de posse da mulher amada e a de-
das letras, filia-se ao Partido Comunista e cadência financeira, física e moral.
acaba sendo preso pelos militares2. Isabel Estes romances têm em comum a figu-
Allende, como parenta direta do presiden- ra masculina como personagem principal,
te Salvador Allende, assassinado no Chile, é sua propriedade como reflexo de seu poder e
obrigada a abandonar o país, e será a partir a fragilidade diante de mulheres, que foram
deste exílio que irá compor a obra aqui refe- amadas, porém, incompreendidas por eles.
rida. E Lobo Antunes, que em entrevista ex- Há entre os três personagens uma
pressou que é preciso muito sofrimento para força motriz natural que os torna opresso-
escrever bem – para tocar os outros –, e que res das classes menos favorecidas, de todas
queria que cada página de sua obra fosse um as formas possíveis. São três patriarcas,
espelho – para o leitor, serviu em Angola no representações do poder, que fazem o que
período ditatorial, e anos mais tarde torna-se bem entendem com tudo e todos, agindo
militante da Aliança Povo Unido – APU, por como se pessoas não passassem de meros
um curto período de tempo3. objetos de uso: “encolhida de medo por ser o
Desse modo, tendo ciência de que em patrão, por ser rico, por ser ministro ou as-
algum momento da vida destes escritores, sim, por mandar em muita gente em Lisboa
eles foram testemunhas oculares das mu- [...]” (ANTUNES, s/d, p.17).
danças políticas ocorridas em seus países Dos três romances, São Bernardo é
e, ainda que em recortes, levaram para suas o único que tem apenas um narrador, o
obras fatos da realidade4, não se pode deixar próprio Paulo Honório, que nos relata toda
a sua trajetória – de menino pobre a grande
latifundiário. Com pais desconhecidos, não
2 Para exemplo meramente ilustrativo citamos frag- mencionados em sua certidão de nascimen-
mentos de Auto-retrato aos 56 anos, onde Graciliano assim
se define (em terceira pessoa): “É ateu”, “Odeia a burgue- to, e sendo, como ele próprio anuncia no
sia”, “Deseja a morte do capitalismo”, “Apesar de o acha- início de sua narração, o “iniciador de uma
rem pessimista, discorda de tudo”, “Esteve preso duas
vezes. É lhe indiferente estar preso ou solto”. família”, o que para ele não deixa de ser um
3 Em entrevista no ano de 1997, Lobo Antunes assim bônus, pois o livrou “da maçada de suportar
explica seu desligamento do partido: “A forte hierarquia,
a ausência de debate aberto e alargado, isso assusta-me
parentes pobres” (RAMOS, 1983, p.12).
um bocado”. Disponível em: <http://www.ala.nletras. Paulo Honório, ainda jovem, decide
com/citario/politica.htm>. Acesso em: 10 ago. 2010.
ganhar dinheiro, mas “o capital se desviava”
4 Seligmann-Silva assim discorre sobre a literatura de
testemunho: “Na qualidade de produto do intelecto, seu dele e depois de muita penúria, determina-
testemunho está inscrito na própria linguagem, no uso ção e coragem: “sofri sede e fome, dormi
que faz dela, no modo como através de uma intrincada
tecedura ela amarra o ‘real’, a imaginação, os conceitos e na areia dos rios secos, briguei com gen-
o simbólico”. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p.76). te que fala aos berros e efetuei transações
comerciais de armas engatilhadas” (idem, p.73-74). Embora seu braço direito na fazen-
p.14), consegue enganar o filho do anti- da insistisse em lhe dizer que não seriam es-
go patrão e obter a fazenda São Bernardo. tas casas ou algum alimento que o tornaria
Com todos os esforços possíveis recons- um bom patrão, e sim um salário digno pelo
trói a propriedade. Adepto das novidades trabalho recebido.
tecnológicas de plantio, adquire máquinas Já de Francisco se sabe que é proprietá-
modernas, emprestando dinheiro do banco rio da Quinta Palmela, ministro do governo
e ganhando várias causas no fórum graças de Salazar e com grande influência sobre
ao seu advogado. Além disso, maneja os vá- todos os poderes da sociedade portuguesa:
rios poderes ao seu redor: padre, capanga, “o retrato do senhor cardeal com o senhor
advogado, jornalista, passando por cima doutor, o retrato do almirante com o senhor
de tudo com um único propósito: o ganho. doutor, o retrato do professor Salazar com
Tudo e todos são para Paulo Honório ape- o senhor doutor, o retrato do Papa com o
nas objetos de lucro, ou intermediários para senhor doutor [...]” (ANTUNES, s/d, p.30).
este fim. Francisco era tão influente que não tirava
Esteban tem uma caminhada pareci- o chapéu nem para Salazar: “que nem para
da com a de Paulo Honório. De sobrenome ele tirava o chapéu da cabeça nem deixava
nobre por parte de mãe, mas com infância de fumar [...]” (idem, p.30).
pobre, decide, depois de ganhar algum di- Os três protagonistas, independente-
nheiro nas minas onde: “Trabajaba como mente da origem de sua classe social, apre-
um animal y las pocas veces que me senta- sentam um caráter selvagem, autoritário e
ba a descansar, obligado por el tedio de al- ao mesmo tempo solitário. No caso de Fran-
gún domingo, sentía que estaba perdiendo cisco e Esteban Trueba, o lado animal de seu
momentos preciosos [...]” (ALLENDE, 2001, apetite sexual predomina e o modo de apla-
p.31), recuperar a fazenda em ruína que per- car esta selvageria é estuprando as filhas
tencera a sua família: “Para sacar a Las Tres dos empregados das suas propriedades:
Marías de la miseria destiné todo el capital
Esteban no se quitó la ropa. La acometió
que habiá ahorrado […]”, “pero no fue el di-
con fiereza incrustándose en ella
nero el que salvó a esa tierra, sino el traba- sin preámbulos, con una brutalidad
jo y la organización” (idem, p.63). Esteban inútil. Se dio cuenta demasiado tarde,
torna-se um latifundiário rico, poderoso, por las salpicaduras sangrientas en
cruel e reacionário, transformando Las Tres su vestido, que la joven era virgen,
Marías em uma potência, tanto que “en el pero ni la humilde condición de
transcurso de los diez años siguientes, Es- Pancha, ni las apremiantes exigencias
teban Trueba se convirtió en el patrón más de su apetito, le permitieron tener
contemplaciones. Pancha García no
respetado de la región, construyó casas de
se defendió, no se quejó, no cerró los
ladrillo para sus trabajadores, consiguió un
ojos. Se quedó de espaldas, mirando
maestro para la escuela y subió el nivel de el cielo con expresión despavorida,
vida de todo el mundo en sus tierras (idem,
hasta que sintió que el hombre se minha nuca e designando com des-
desplomaba con un gemido a su lado. prezo a cozinha, os quartos das cria-
Entonces empezó a llorar suavemente. das, o pomar, a quinta inteira, o mun-
Antes que ella su madre, y antes que do [...]. (ANTUNES, s/d, p.03). [...]
su madre su abuela, habían sufrido el [...] o senhor doutor de cinto desaper-
mismo destino de perra. (ALLENDE, tado, de colete aberto, prendendo-me a
2001, p.68). […] cintura com as coxas, a rir-se sopran-
No pasaba ninguna muchacha de la do-me o fumo da cigarrilha na nuca
pubertad a la edad adulta sin que la - Quietinha rapariga
hiciera probar el bosque, la orilla del eu assustada pelo meu sangue a pin-
río o la cama de fierro forjado. Cuando gar nas estrias do cimento, pela ebuli-
no quedaron mujeres disponibles en ção das vacas, pelos guinchos do moi-
Las Tres Marías, se dedicó a perseguir nho a trambulhar a sul, a querer pedir
a las de otras haciendas, violándolas en ao senhor sem ser capaz de pedir
un abrir y cerrar de ojos, en cualquier - Jure que não me corta a garganta não
lugar del campo, generalmente al me corte a garganta por favor não me
atardecer. No se preocupaba de hacerlo corte a garganta [...]. (idem, p.40-41).
a escondidas, porque no le temía a
nadie. (idem, p.74). Todavia, independente de que mulher
esteja ao seu lado, em todos os seus atos
Francisco, após ser rejeitado e aban- não deixa de afirmar sua posição de senhor:
donado por Isabel – a quem amava muito – “Faço tudo o que elas querem mas nunca
passa a sentir uma grande necessidade de tiro o chapéu da cabeça para que se saiba
autoafirmação, por isso, além de violentar a quem é o patrão” (idem, p.13).
filha do empregado, começa a manter rela- Paulo Honório, antes de sentir amor
ções sexuais com mulheres de várias cama- por Madalena, ainda que tenha mantido re-
das sociais – de sua cozinheira até a viúva do lações com outras mulheres, não tinha estes
farmacêutico: ímpetos descritos acima e sua única preocu-
O meu pai de mão aberta na nuca da pação era providenciar um herdeiro:
filha do caseiro, uma adolescente des- Amanheci um dia pensando em casar.
calça, suja, ruiva, suspensa das tetas Foi uma ideia que me veio sem que
das vacas acocorada num banquinho nenhum rabo-de-saia a provocasse.
de pau, a filar-lhe o cachaço e a obri- Não me ocupo com amores, devem
gá-la a dobrar-se para a manjedoura ter notado, e sempre me pareceu que
sem largar os baldes do leite, o meu mulher é um bicho esquisito, difícil de
pai outra vez escarlate a esmagar-lhe o governar.
umbigo nas nádegas, de cigarrilha ace-
sa apontada às vigas do tecto sem que A que eu conhecia era a Rosa do Marcia-
a filha do caseiro protestasse, sem que no, muito ordinária. Havia conhecido
ninguém protestasse ou imaginasse também a Germana e outras dessa
protestar, o meu pai tirando a mão da laia. Por elas eu julgava todas. Não me
sentia, pois, inclinado para nenhuma seus respectivos pares entram num proces-
mulher: o que sentia era desejo de so catártico. Pode-se dizer que a decadência
preparar um herdeiro para as terras dos três personagens começa exatamente a
de S. Bernardo. (RAMOS, 1983, p.59, partir da ausência delas. Tal função funda-
grifo nosso).
mental das mulheres projeta-se na própria
Seu plano é tão racional que, dentre os estrutura do enredo de São Bernardo e de
três personagens, é o único que não tem fi- La casa de los espíritus, já que a partir de sua
lhos bastardos. Filho bastardo significa par- entrada bem como de sua saída, a estrutura
tilha de posses, e este risco definitivamente global do enredo disso fica dependente. Ou
Paulo Honório não estava disposto a correr. seja, a estrutura da narrativa se organiza em
Embora façam e desfaçam das mulhe- função (ou em grande parte) da presença/
res que cruzam seus caminhos, usando de ação de cada uma dessas mulheres5. Em São
todo seu poder como “senhor da casa gran- Bernardo isso é colocado de forma bem ex-
de”, Paulo Honório, Esteban e Francisco plícita. A partir do momento em que Paulo
– ainda que este passe a ter essas atitudes Honório conhece Madalena, a fazenda pas-
somente depois de Isabel traí-lo e deixá- sa a um segundo plano. Segundo João Luís
-lo – encontram na figura de suas esposas Lafetá (1983), com a entrada de Madalena
a impossibilidade de dominação. Pode-se em cena, todos os motivos temáticos – ma-
dizer que, por conta disso, os papéis delas nobras, negócios, brigas – convergem e en-
são fundamentais para o processo de auto- contram sua unidade no novo fito de Paulo
desvelamento pelo qual os respectivos per- Honório: a posse da mulher.
sonagens-narradores passam em relação ao A princípio, Madalena reluta em casar,
conhecimento de si próprios. Ou, dizendo mesmo assim, diante da pressão de Paulo
de outro modo, são três narrativas em que Honório, ela sucumbe, contrai matrimônio
os protagonistas masculinos vivem um pro- sem amor e acaba prisioneira de um tirano.
cesso de crise existencial e de identidade, e Como militante dos trabalhadores mi-
elas (Madalena, Clara e Isabel) são essen- seráveis da fazenda, Madalena enfrenta um
ciais para provocar o início e a evolução des- senhor de posses, seu próprio marido, tenta
se processo psicomoral em cada um deles. derrubar a barreira de classe e de poder que
É pela ação, ideias e sentimentos, pelo está instalada em São Bernardo, e com seu
modo de ser e pelos questionamentos de- amor ao próximo, desestrutura o mundo
las que cada protagonista masculino acaba capitalista de Paulo Honório, que diz, por
passando por um processo de transforma- exemplo que: “[...] Essa gente faz o que se
ção. Basta observar como eles são no início
do relacionamento, o conflito existencial 5 Ainda que Isabel seja retomada pelos diversos narra-
dores do romance (havendo momentos em que também
pelo qual passam e como se encontram de- “fala/narra”), é inegável que seu papel seja fundamental
pois da ausência delas. E é após a morte ou para a transformação ocorrida com o personagem prin-
cipal. Todavia, será complexo falar que o enredo esteja
abandono de cada uma dessas mulheres que estruturado em função dela, uma vez que esta ficção pos-
sui uma estrutura fragmentada.
manda, mas não vai sem pancada. E Mar- nele. Um homem rude, racional e extrema-
ciano não é propriamente um homem”. mente egoísta e que se vê de repente num
(RAMOS, 1983, p.110). Ou seja, ela uma hu- dilema entre Madalena e São Bernardo, en-
manitária em potencial e ele um explorador tre o amor desapegado e o sentimento de
de mão de obra que não considera o empre- propriedade.
gado como ser humano, mas sim como bi- Acerca deste dilema, FELDMANN
cho: “Havia bichos domésticos, como o Padi- (1998) afirma que Paulo Honório não conse-
lha, bicho do mato, como o Casimiro Lopes, e gue abandonar a sua gaiola dourada de São
muitos bichos para o serviço do campo, bois Bernardo e entranhar-se no mundo de sua
mansos” (idem, p.182, grifos nossos). esposa, tão diversamente estruturado: “Co-
Helmut Feldmann (1998) diz que em nhecia nada! Era justamente o que me tirava
São Bernardo, onde se exterioriza toda a au- o apetite. Viver com uma pessoa na mesma
toexpansão e afirmação incondicionais de casa, comendo na mesma mesa, dormindo
Paulo Honório, qualquer forma de altruís- na mesma cama, e perceber ao cabo de anos
mo atua como dinamite. Assim, Madalena, que ela é uma estranha!” (idem, p.148).
com sua compaixão espontânea pela infeli- Esta talvez tenha sido a maior angús-
cidade dos pobres, começa a minar os fun- tia de Paulo Honório – não ter conseguido
damentos de São Bernardo. penetrar no mundo de Madalena, não tê-la
Paulo Honório aos poucos vai enten- compreendido em vida. Seu altruísmo, seu
dendo que sua mulher se torna o adversário desapego a bens materiais, sua sensibilida-
mais perigoso da sua obra: “Misturei tudo ao de, tudo lhe fugiu à compreensão. Incom-
materialismo e ao comunismo de Madalena” preensão que LAFETÁ (1983, p.204) descreve
(idem, p.132), e, por conseguinte, da sua pes- assim:
soa: “Eu construindo e ela desmanchando”.
[...] Paulo Honório: egoísta e brutal.
Mas o que está sendo desmanchado
Não consegue compreender a mulher,
por Madalena? A ordem na propriedade? pois é incapaz de senti-la em sua inte-
Um sistema já instaurado e consolidado. gridade humana e em sua liberdade,
“Conheci que Madalena era boa em de- e a considera apenas como mais uma
masia [...]” (idem, p.101), ela é exatamente coisa a ser possuída.
o oposto do esposo. É culta, solidária, ge-
Somente após a morte de sua amada e
nerosa, comunista, intelectual, sensível aos
da solidão que se instalou em São Bernardo,
problemas alheios, adepta de mudanças e
é que Paulo Honório reflete sobre sua vida
inconformada com o sistema vigente. Por
e a consequência de seus atos, e percebe o
tudo isso, interfere na rotina de exploração
quão errado agiu em relação a Madalena e a
e domínio perpetuada pelo esposo.
sua própria vida:
Podemos acreditar que, em verdade,
Paulo Honório não sabe como lidar com os Madalena entrou aqui cheia de bons
sentimentos que a companheira desperta sentimentos e bons propósitos. Os
deixado o amante e de ser procurada por de Madalena e então (como efeito) se põe a
Francisco, que insiste em implorar a sua escrever suas memórias.
volta: “Não adianta chorar Francisco não Nos outros dois romances, apesar de
chores eu estou bem palavra que estou bem múltiplos narradores, há momentos em
não te preocupes não vou voltar contigo que os próprios personagens resgatam re-
não insistas não me digas nada não adianta cordações na tentativa de entender o que
chorar [...] (idem, p.315). Tal rejeição nunca se passou. Em O manual dos inquisidores, em
foi superada por Francisco: “quando a Isa- que toda a história de Francisco é relatada
bel me trocou por outro” (idem, p. 354), que por outros narradores, é ele que fecha o ro-
depois de convencer uma outra mulher a mance, retomando a figura de sua esposa:
se vestir e se portar como Isabel7, desabafa: “não concebo este nome sempre a voltar-me
“– A pessoa que me fazes lembrar também à ideia, sempre a voltar-me à boca, esta re-
nunca me teve amor” (idem, p.310). cordação, esta lembrança [...]” (ANTUNES,
A narrativa em primeira pessoa tem s/d, p.356), e continua: “a ver se consigo
caráter confessional: o protagonista narra- entender-lhe a importância, o sentido [...]”
dor é levado a narrar catarticamente o pro- (ibidem).
cesso transformador pelo qual passou numa Em suma, pode-se dizer que Madalena,
tentativa de, através da palavra-narrativa Clara e Isabel funcionam como o elemen-
(seu papel ordenador do cosmo – O Logos), to ativador do processo de transformação
tentar entender o que se passou. Em São desses protagonistas. Pois é a impossibili-
Bernardo, especificamente, a necessidade de dade de compreendê-las, a impossibilidade
narrar está diretamente vinculada à neces- de penetrar em suas almas e desvendá-las,
sidade de procurar organizar o seu cosmo/ querendo dominá-las, sufocando-as, na ten-
vida para tentar entendê-la. Mas, o auto- tativa de moldá-las às suas maneiras que os
conhecimento passa pelo conhecimento do coloca em situações de conflitos, conduzin-
outro – da outra – que é/foi a causadora, a do-os a um drama interior. Se não alcançam
motivadora do processo de transformação a essência das mulheres, não compartilham
no qual ele foi projetado. Paulo Honório, suas ideias, não se fundem, não tocam seus
por exemplo, ouve o pio da coruja, se lembra espíritos, isso para eles se torna insuportá-
vel, fazendo-os se sentirem incapazes. Justo
eles que, a priori, se quisessem, teriam tudo
7 Esta atitude de Francisco é uma tentativa de reviver
a sua mão.
uma época em que era feliz com sua esposa: “entrava num
apartamento empoleirado sobre as trevas do parque, que Vale lembrar que, se não conseguiram
aluguei e decorei e paguei e fazia de conta ser a minha casa
penetrar na intimidade de suas esposas e
como fazia de conta que a mulher que me recebia no capa-
cho e se vestia como a Isabel, se penteava como a Isabel, desvendar seus mistérios, não foi por fal-
usava o perfume da Isabel era de facto a Isabel, não a Isabel
ta de desejo nem de tentativas – ainda que
da altura da separação mas a Isabel do tempo em que nos
conhecemos, uma mulher que aluguei e decorei e paguei tentativas ao seu modo –, mas sim por não
[...] e eu a afagar a Isabel através daquela a quem chamava
compreenderem que suas mulheres não
Isabel [...]”. (ANTUNES, s/d, p.355).
compartilhavam dos mesmos objetivos, dos em sua vida, mesmo que nunca tivesse per-
mesmos pensamentos, nem tampouco esta- cebido plenamente isto: “La muerte de Clara
vam dispostas a mudar seus ideais em prol transtornó por completo la vida de la gran
de uma convivência menos conflituosa. Em casa de la esquina. Los tiempos cambiaron.
consequência disto, cada uma buscou um Con ella se fueron los espíritus, los huéspe-
escape para que assim pudessem conviver des y aquella luminosa alegría que estaba
com seus maridos. Madalena e Clara, na as- siempre presente […] (ALLENDE, 2001, p.
sistência aos desvalidos, e Isabel se refugiou 310). E este brilho natural que Clara possuía
nos braços de um amante. Clara, por amar funcionava como uma espécie de energia
seu marido e por viver no seu mundo parti- para todos e tudo que estivesse ao seu re-
cular, conseguiu, a seu modo, manter-se por dor, tanto que: “En el transcurso de los años
muito mais tempo ao lado de Esteban. siguientes la casa convertió en una ruina”
Como dito acima, Paulo Honório, Es- (idem, p.311). E assim como sua proprieda-
teban e Francisco veem suas mulheres como de, após a morte de Clara, o senador Trueba
propriedades e tentam de certa forma se também vê seu mundo desmoronar.
apossar de sua alma, do seu pensar, embo- O mesmo ocorre com a quinta Palmela,
ra em momento algum consigam tê-las por cuja ruína é possível visualizar já no pará-
completo, pois estas nutrem visões de mundo grafo inicial do livro: “as estátuas do jardim
diferentes de seus maridos e não se deixam quebradas, a piscina vazia, o capim que de-
tragar para seu universo de autoritarismo e vorava os canis e destroçara os canteiros, a
posse. E, sem elas, as propriedades que até grande casa destelhada onde chovia no pia-
então simbolizavam poder, controle e ordem, no [...]” (ANTUNES, s/d, p.1). E também com
deixam de ser o “tudo” para seus proprietá- Francisco:
rios e, assim, São Bernardo, Las Tres Marías
[...] o meu pai mais solitário do que
e Palmela entram em um processo lento de
em toda a vida o conheci, sem mulher,
decadência, até o seu total abandono. sem amigos, sem subordinados, sem
Após a morte de Madalena, Paulo cúmplices, afastando à coronhada as
Honório, que até então tinha um alto sen- vacas do estábulo na ideia de procurar
timento de posse, de poder e de domínio revolucionários nas manjedouras, nas
sobre todas as coisas e pessoas, perde o ím- bilhas de leite, nos sacos de sementes,
peto de adquirir e adquirir. A Revolução de na palha [...]. (idem, p.10).
30 dificulta-lhe os negócios e ele não reage.
Outra semelhança entre os três roman-
A propriedade que até então passara por
ces é que, após a saída das mulheres da vida
inúmeras melhorias, independente de qual
destes protagonistas, ocorrem revoluções
fosse o sistema, torna-se decadente dia após
políticas que foram determinantes para
dia e seu dono não faz absolutamente nada.
mudanças no poder e consequentemente
Para Esteban, a morte de Clara signi-
mudanças em torno desses personagens,
ficou o fim de uma Era em que havia brilho
o que viria naturalmente a comprometer
também seus negócios. Em São Bernar- em relação à raça negra mesmo: “[...] se os
do e em O manual dos inquisidores é o golpe pretos soubessem o que querem não havia
militar que vem derrubar o sistema vigente. problemas eram brancos” (ANTUNES, s/d,
Naquele, o golpe que instalaria Getúlio Var- p.106).
gas no poder, dando fim à República Velha e Não se pode deixar de dizer que neste
inaugurando uma nova política econômica, romance também os pobres são vistos como
o que viria a afetar diretamente os grandes animais, porém, não qualquer animal, mas
latifúndios. E neste, um golpe militar dis- um animal domesticado: “enquanto eu ti-
posto a substituir o anterior, determinando nha um pobre só para mim”, “quando o meu
assim mudanças de mando. Em La casa de pobre morreu [...]”, “e após a morte do meu
los espíritus é o governo popular que vence pobre ofereceram-me um pobre mais novo
as eleições, o que causa um grande choque que durasse mais tempo [...]” (ANTUNES,
para a oligarquia que comandava o país por s/d, p.54).
décadas. Todavia, este governo não perdura Em relação ao trato com os seus tra-
por muito tempo, pois a mesma oligarquia balhadores, Esteban, por sua própria ini-
que sofreu derrota nessas eleições conspira ciativa, constrói moradia e escola para eles,
e financia um novo golpe militar. além de não lhes negar alimentos. O que
Até essas revoluções, o poder se man- faz com que ele fique indignado é ter que
tinha estável. Uma porção pequena de pagar salário ou distribuir suas terras para
mandatários mantinha em rédeas curtas os camponeses, pois isso significaria perda
a grande maioria de subservientes. Nos da concentração de poder. Além do que, re-
dois primeiros romances percebe-se que a compensar os camponeses com dinheiro ou
mão de obra era explorada e não se podia terra, no pensamento de Esteban, seria uma
conceber que os camponeses tivessem se- grande injustiça para homens como ele, que
quer alguma pretensão de direito. No caso se tinha o que tinha, era devido a muita de-
de São Bernardo, a preocupação com o lado terminação e privações.
humano dos trabalhadores é praticamente O tema das revoluções é bastante fre-
nula, e Paulo Honório não tinha nenhuma quente nos três romances, funcionando
intenção de despertar neles qualquer desejo mesmo como fator determinante na vida
individual que afetasse o coletivo, pois, se- dos personagens. Nenhum deles, enquanto
gundo ele tudo estava em seu devido lugar: centralizadores de poder, consegue passar
“os pretos não sabiam que eram pretos, e por elas sem sentir seu efeito.
os brancos não sabiam que eram brancos” Em São Bernardo, os primeiros indícios
(RAMOS, 1983, p.36). Ou seja, independente de que algo iria mudar são apresentados
da raça, pobre era igual a pobre e nada mais. pelo Padre Silvestre tido como “danada-
Esta distinção de raça por parte de Paulo Ho- mente liberal”, oposicionista do governo
nório também está em O manual dos inquisi- e que achava “que os políticos, individual-
dores, mas de maneira mais preconceituosa mente, são criaturas como as outras, mas
em conjunto são uns malfeitores” (idem, não os afetaria diretamente. Assim Nogueira,
p.127). Para o Padre, a mudança de mando advogado de Paulo Honório, opina sobre o
do país estaria prestes a acontecer: “A fac- que estava ocorrendo e sua situação parti-
ção dominante está caindo de podre. O país cular dentro desse novo panorama político:
naufraga, seu doutor. É o que lhe digo; o
[...] tanto me faz estar em cima como
país naufraga” (ibidem). E prenuncia: “Há
embaixo, que política nunca me ren-
de haver uma revolução!” (ibidem). Porém deu nada. Estou embaixo e não pre-
a revolução pretendida pelo Padre não tem tendo subir. É verdade que sempre
nada a ver com o comunismo: “Essas dou- achei a democracia um contra-senso.
trinas exóticas não se adaptam entre nós. Muitas vezes lhe disse. O diabo é que
O comunismo é a miséria, a desorganização votei na chapa do governo. Mas aqui
da sociedade, a fome” (idem, p.128). entre nós a ditadura só não presta
E um dia, como o Padre dissera, a re- porque estamos no chão. (RAMOS,
1983, p.175).
volução acontece: “Um dia Azevedo Gondim
trouxe boatos de revolução. O sul revoltado, Em La casa da los espíritus, o persona-
o centro revoltado, o nordeste revoltado” gem Esteban, além de grande latifundiário,
(RAMOS, 1983, p.173). A síntese deste movi- é senador pelo partido da situação. Como seu
mento é assim descrito: partido mandava no país há décadas, não lhe
Depois os boatos engrossaram e vira- passava pela cabeça que pudesse haver outro
ram fatos: batalhões aderindo, regi- resultado que não fosse uma vitória para os
mentos aderindo, colunas organizan- seus: “Ganaremos los de siempre” (ALLEN-
do-se e deslocando-se rapidamente, DE, 2001, p.357). Por isso, quando o candi-
bandeiras encarnadas por toda a par- dato da oposição vence as eleições, ele, como
te, o governo da República encurrala- interessado direto pelos resultados, lamenta
do no Rio. (RAMOS, 1983, p.173). amargamente a derrota. Derrota esta senti-
Em pouco tempo “a onda vermelha da por toda a classe favorável à situação: “Los
inundou o Estado” (ibidem), e os “Figu- de siempre, acostumbrados al poder desde
rões do governo apareceram de repente tiempos inmemoriales […]” (ibidem).
com lenços vermelhos no pescoço” (idem, Os trechos abaixo resumem o que foi
p.175). Passado o momento de euforia por para o povo aquele momento de sensação
parte dos vitoriosos, os bancos cessaram de libertação do regime há muito estabele-
os empréstimos, compradores quebraram, cido, bem como a frustração da burguesia
começam as falências e o desaparecimento derrotada:
das plantações, o dólar sofre alta e, por fim, En las señoriales residencias blancas,
muitos suicídios. azules y amarillas del Barrio Alto,
Para aqueles que viviam de outro modo comenzaron a cerrar las persianas,
que não fosse o da terra ou comercialização a trancar las puertas y a retirar
de produtos, as novas medidas do governo apresuradamente las banderas y los
retratos de su candidato, que se habían
procedimiento y que tal vez no era esa la às bruxas, a classe alta volta a usufruir dos
mejor solución para derrocar al marxismo” mesmos privilégios e a classe desfavorecida
(idem, p.396). permanece na mesma situação de outrora,
Esta tomada de consciência não ocor- ou seja, na pobreza. Odete, a filha do caseiro
re em Francisco que, passado tempos após assim vê o movimento:
a revolução, continua com a mesma ideolo-
os operários da fábrica que discur-
gia de antes e detestando os “comunistas”.
savam na rua a tratarem-nos por ca-
Não é para menos. O golpe, para ele, afeta maradas, a prometerem-nos casas de
diretamente a sua pessoa, pois seu posto de graça, a afirmarem que éramos livres
ministro era uma das estruturas do regime e eu pensei – Livres de quê? já que a
salazarista, era em sua quinta que Salazar miséria permanecia a mesma [...].
costumava discutir o governo do país. Por- (ANTUNES, s/d, p.25).
tanto, a queda deste governo, visto como “a [...] a vida continuava como antes dos
última barreira contra o comunismo ateu” foguetes, dos morteiros, do acordeão
do café e dos discursos sobre casas de
(ANTUNES, s/d, p.106) que soprava do orien-
graça e liberdade [...]. (idem, p.25).
te, será inevitavelmente a sua queda enquan-
to representante do seu cargo, enquanto fi- Mas, para Francisco nada continuou
gura do poder e enquanto indivíduo. como antes. Sem esposa, sem cargo e cien-
Do mesmo modo que a revolução abala te da sua condição: “já não há nada que me
a posição de Francisco, assim ela é sentida possam levar” (idem, p.32), confundindo os
pelos membros da classe alta, simpatizantes seus funcionários da quinta com aqueles
da causa da situação: que haviam tomado o poder, ele expulsa to-
dos e passa a viver na mais repleta solidão.
[...] soldados marchas militares armas
prisões a minha sogra e as cunhadas Um ano depois da revolução ainda esperava
em Espanha em hotéis de terceira os comunistas: “– O primeiro comunista que
ordem nos arredores de Madrid sem se atrever a entrar leva um tiro nos cornos”
malas de viagem sem passaporte apa- (idem, p.10). Passado o tempo, é internado
voradas tentando ligar para Lisboa em um asilo e já não lembra mais o homem
sem que lhes respondessem tentando poderoso que fora um dia:
ligar para a herdade e os camponeses
a insultarem-nas aos berros a minha o meu pai de queixo pendente, de
sogra e as cunhadas em Espanha nádegas bambas, a tentar limpar o
com vários casacos de peles uns por nariz com a manga que treme [...]
cima dos outros com vários relógios o meu pai calado, submisso, inútil,
de ouro em cada pulso e os irmão da sem cigarrilha, sem dentadura posti-
minha sogra humilhados por civis de ça, sem lábios, sem chapéu estendido
pistola [...]. (ANTUNES, s/d, p.09). no colchão, como um espantalho de
cama [...]. (ANTUNES, s/d, p.33).
O interessante neste romance é que
passados os primeiros momentos de caça
Abstract: The main purpose of this paper is to analyze space and time configuration
in the romance Lavoura Arcaica, (1975), by Raduan Nassar, as well as the aesthetic
relation these elements have with the psychology of the narrator-character. To this
end, the article is supported by authors as Gaston Bachelard, - Poética do Espaço
(2000), and Jean Pouillon, O tempo no romance (1974).
Keywords: Space. Time. Lavoura Arcaica.
* Mestrado em letras (Linguagem e Sociedade, linha de pesquisa “Linguagem Literária e interfaces sociais: Estudos
Comparados”) pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: <deellenpiatti@gmail.com>.
presente e a partir deste mesmo presente. afirma que o espaço da casa é dotado de
Por isso, sua história surge como dimensão uma das maiores forças de integração para
do passado que só existe no presente como os pensamentos, as lembranças e os sonhos
possibilidade em processo de realização. Ao do homem. Nessa integração, o princípio de
falar da fazenda, da casa, da luz boa de sua ligação é o devaneio:
infância, do relógio do avô, do pão caseiro,
A casa abriga o devaneio, a casa pro-
das árvores do bosque, da igreja, André refe-
tege o sonhador, a casa permite so-
re-se a um espaço datado que é rastro, ma- nhar em paz. Só os pensamentos e as
terialidade física do passado como futuro a experiências sancionam os valores
ser decifrado no presente, e é a partir de um humanos. Ao devaneio pertencem os
espaço-tempo que ele lança um olhar sobre valores que marcam o homem em sua
outro tempo, este imaginado no presente. profundidade. O devaneio tem mesmo
O processo de rememoração se ca- um privilegio de autovalorização. Ele
racteriza pelo movimento de relembrar o usufrui diretamente de seu ser. Então,
os lugares onde se viveu o devaneio
passado visando à mudança do presente.
reconstituem-se por si mesmos num
Conforme Gagnebin (2006), na rememora-
novo devaneio. É exatamente porque
ção não se repete aquilo de que se lembra, as lembranças das antigas moradas são
mas abrem-se espaços que se estabelecem revividas como devaneios que as mora-
entre uma imagem e outra a fim de se dar das do passado são imperecíveis dentro
visibilidade ao que foi recalcado para dizer, de nós. (BACHELARD, 1993, p.26).
com hesitações, solavancos e incompletude,
Ao narrar sua história passional, An-
aquilo que ainda não teve o direito nem à
dré constrói uma espécie de topoanálise, ou
lembrança nem às palavras. É, pois, a reme-
seja, um estudo psicológico sistemático dos
moração uma atenção precisa ao presente
locais de sua vida íntima, de modo a desven-
uma vez que, por meio do processo reme-
dar a plenitude original da casa. É por meio
morativo, não se trata somente de evitar o
da topoanálise que nos dissociamos das
esquecimento do passado, mas, sobretudo,
nossas grandes lembranças e atingimos o
de não permitir que este mesmo passado e
plano dos devaneios que vivenciávamos nos
suas experiências traumáticas venham a se
espaços de nossa solidão: somente desta
repetir no presente.
forma é-se possível analisar o nosso incons-
André, o sonhador do lar, se abre para
ciente, adormecido em nossas moradas pri-
além das mais antigas memórias. A casa
mitivas. Para responder as indagações do
possibilita-lhe evocar luzes fugidias de de-
inconsciente temos de nos voltar para estes
vaneios que iluminam a síntese do ime-
espaços que são dotados da primitividade,
morial com a lembrança. Neste processo
pois, conforme aponta Bachelard, o tempo
rememorativo, memória e imaginação não
não anima a memória, o inconsciente per-
se deixam dissociar. Ambas constituem, na
manece é nos locais. O espaço retém o tempo
ordem dos valores, uma união da lembran-
comprimido: é essa a função do espaço.
ça com a imagem. Gaston Bachelard (1993)
lugares em que sofreu a solidão, o espaço no nos orienta para seu onirismo, mas não o
qual a desfrutou. A este espaço de solidão conclui. E nós, leitores, para formularmos
o homem sempre retornará. Em Lavoura uma imagem a partir do que lemos, temos
Arcaica André vai ainda mais longe, pois o que nos depreender dos detalhes e permitir
seu espaço de solidão é um repouso ante- que também nossas lembranças divaguem
humano. O ante-humano atinge aqui o por nosso inconsciente. Se o narrador tudo
imemorial, o espaço reconfortante: falar sobre os cheiros da casa, sobre os sons,
a luz, enfim, porque o leitor também não
Onde eu tinha a cabeça? que feno era
buscar em sua imaginação, em seu incons-
esse que fazia a cama, mais macio,
mais cheiroso, mais tranquilo, me ciente, as imagens de sua casa? Este efeito
deitando no dorso profundo dos está- é alcançado pelo narrador por meio de uma
bulos e dos currais? que feno era esse narrativa fragmentada. Daí ser Lavoura Ar-
que me guardava em repouso, entor- caica dividida em trinta capítulos e narrada
pecido pela língua larga de uma vaca pelo fluxo de consciência. Para evocar os
extremosa, me ruminando carícias na valores de intimidade, é necessário induzir
pele adormecida? que feno era esse o leitor ao estado de leitura suspensa. É no
que me esvaía em calmos sonhos, so-
momento em que os olhos do leitor deixam
brevoando a queimadura das urtigas
o livro que a evocação do quarto do narrador
e me embalando como o vento no len-
ço imenso da floração dos pastos? (Id., pode tornar-se porta de entrada de oniris-
p.50-51). mo para outrem.
tudo o que vivemos no presente fique sub- gens: o tempo nada representa independen-
merso naquilo que vivemos no passado. As- temente da consciência do tempo. Sendo as
sim, a consciência é antes de tudo memória, ações do passado intocáveis, irremediáveis,
mas não se reconhece como memória e sim elas são a única realidade, são o Destino.
como o real, e como a memória só pode ser A subversão cronológica permanece
o sentido do passado, este real é o próprio sempre como um recurso do autor, indepen-
passado (POUILLON, 1974, p.173). E, por es- dente da consciência real que as persona-
tar sempre presente, este real (novamente, gens têm de sua própria vida. Raduan, sem
o próprio passado) é o presente. Neste caso, prevenir o leitor, como o faz Faulkner, faz
o homem é determinado pelo passado, tal surgir um momento no outro, desorganiza
como o narrador-personagem de Lavoura a ordem habitual, porque também a vida de
Arcaica. Mas há que se ter cuidado com esta André foi vivida fora da cronologia e é isto
afirmação. Para que uma coisa determi- que os monólogos interiores se propõem
ne outra, diz Pouillon (1974), é preciso que a nos fazer compreender. Ao contrário do
ambas existam plenamente, e voltamos à que pareça, a não linearidade da narrativa
necessidade de ligar instantes igualmente representa de igual maneira uma ordem, e
reais. Deste modo, o que de fato existe é a que é bastante real e dotada de sentido para
coexistência do passado e do presente: o quem viveu os fatos narrados.
passado forma um bloco, entretanto não o André não é determinado pelo seu pas-
devemos imaginar como uma ordem cro- sado, ele é esse passado, sendo em sua psi-
nológica. Ele é, de certa forma, intemporal. cologia que se faz necessário buscar o mo-
O fato de que um acontecimento deslize tivo que o leva a sentir-se sob o império de
para o passado não o leva a alinhar-se uma fatalidade. O esmagamento de André
entre as “lembranças puras”, bem classi- vem de seu interior, e não do exterior. As-
ficadas por datas, mas apenas o retira da sim sendo, para que esta afirmação não seja
temporalidade na medida em que esta é gratuita, é preciso que essa fatalidade seja
transformação, dispersão. Este passado, constantemente sentida pelo herói. Como
estando inserido no tempo, se foi, sen- esse herói tem uma consciência obscura,
do, por conseguinte, passado na acepção porém viva, da fatalidade que pesa sobre ele,
usual da palavra, mas sendo, porém, pre- é normal que o romancista nos desvele esta
sente, na medida em que subsiste, sen- última valendo-se do monólogo interior.
do por isso intemporal (POUILLON, 1974, O romance não poderia ter maior rea-
p.174). Este intemporal não se situa num lidade a não ser como impressão subjetiva.
plano superior: fica por detrás de um pre- Por meio do romance e do monólogo inte-
sente cronológico para fazer com que este rior Nassar pretende transmitir ao leitor a
presente signifique e para o retomar ime- mesma impressão que oprime a persona-
diatamente. E tudo o que ficou dito, ficou gem e, para tanto, é preciso não lhe pro-
sobre a maneira com que vivem as persona- porcionar uma compreensão privilegiada
Referências
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço.
Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano.
Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
FILHO, Plínio M. (Ed.). Luiz Fernando
Carvalho sobre o filme Lavoura Arcaica. Cotia,
SP: Ateliê Editorial, 2002.
FORTES, Rita Félix; ZANCHET, Maria B.
Sabor e saberes: o lugar do conto na escola.
Foz do Iguaçu, PR: Editora Parque, 2007.
FREUD, Sigmund. Tótem y tabú. Madrid:
Alianza Editorial, 1970.
Nos últimos anos tive a honra de tro- do tesouro passará pelas mãos de muitos
car e-mails com o escritor mineiro Frei Betto. Arienims, que não medirão esforços na ten-
Isto se deve ao fato de minha pesquisa de tativa de encontrar as riquezas apontadas
mestrado remeter ao seu primeiro romance pelo mapa, sem nunca, no entanto, conse-
histórico Um homem chamado Jesus, baseado guir achá-las.
nos evangelhos canônicos, que revisita a sua O narrador desta saga familiar é o úl-
maneira a mais que conhecida história do timo dos Arienim, um jornalista que, em
Cristo. A dissertação se tornou livro, sendo busca de um furo de reportagem na festa de
o título - Jesus na ótica da literatura - sugestão aniversário de ninguém mais que ninguém
do próprio Frei Betto, que ainda chancela menos que Elizabeth Taylor, descobre que o
minha obra com uma nota na quarta-capa. diamante de 40 milhões de dólares em posse
No segundo semestre de 2011 foi lan- de Miss Taylor fora pago com o fragmento
çado o seu segundo romance histórico, in- de mapa que por tantos séculos ficara sob a
titulado Minas do Ouro e, por conta desta guarda de seus ancestrais e que fora vendi-
amizade virtual, ganhei um exemplar auto- do por seu avô, Antenor Arienim, a mister
grafado. Destarte, não poderia deixar de lê- Burton, um inglês colecionador de antigui-
-lo, não obstante minha demora em fazê-lo.1 dades que esteve em terras brasileiras.
O romance conta a “estória” da famí- A contextualização do romance fica
lia Arienim – mineira ao contrário –, tendo por conta dos cinco séculos de história das
como pano de fundo a história das Minas Minas Gerais. O que ocorre é uma revisi-
Gerais. Tudo se inicia com um fragmento tação dessa história, em que personagens
de mapa, possivelmente de uma mina de fictícias convivem e dialogam com persona-
ouro, enrolado em um cartucho de couro, gens históricas. Não obstante, em presença
que passa às mãos de Fulgêncio Arienim no de romances assinalados como históricos,
cais de Salvador por um oficial inglês à bei- surgem alguns questionamentos: por que
ra da morte, após ter sido apunhalado por recontar outra vez a história das Minas Ge-
uma prostituta. Daí em diante, o tal mapa rais, e ainda mais de modo fictício? Haveria
* Mestre em Ciências da Religião, com concentração em teologia e literatura, pela Universidade Presbiteriana Macken-
zie, licenciado em Letras e bacharel em Teologia.
1 Registro aqui meu agradecimento ao velho amigo, Leandro Thomaz de Almeida, pela revisão e apontamentos
pertinentes para a confecção desta resenha.
Referências
HUTCHEON, Linda - Poética do Pós-
Modernismo. Rio de Janeiro: Imago Editora,
1988.
LUKÁCS, György – O romance histórico. São
Paulo: Boitempo editorial, 2011.
Formatação:
• A fonte deve ser Times New Roman, tamanho 12; espaçamento 1,5; margens superior e esquerda
3 cm e inferior e direita 2,5 cm.
• O número de páginas fica a critério do(s) autor(es) podendo chegar até 20 páginas e mínimo de10
páginas. As resenhas não deverão ultrapassar a 4 laudas.
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autor seguindo a normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), n.6023. Referenciar
somente as obras mencionadas no trabalho.
• As notas devem ser de rodapés reduzidas ao mínimo numeradas a partir de 1, no caso de citação
usar sistema AUTOR, data.
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