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A Literatura Portuguesa:
das origens à atualidade
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Maringá
2010
Coleção Formação de Professores em Letras - EAD
ISBN 978-85-7628-289-1
Introdução > 11
Capítulo 1
Época medieval: cantigas trovadorescas – líricas e satíricas > 15
Capítulo 2
Humanismo: Gil Vicente > 55
Capítulo 3
Classicismo: Camões lírico e épico > 73
Capítulo 4
Outros autores importantes > 93
Capítulo 5
Almeida Garrett e a poesia de Folhas Caídas > 101
3
LITERATURA Capítulo 6
PORTUGUESA
Eça de Queirós e o olhar crítico sobre seu tempo > 121
Capítulo 7
Fernando Pessoa e o modernismo português > 133
Capítulo 8
A produção literária contemporânea: José Saramago >153
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S obre as autoras
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A presentação da Coleção
Os 54 títulos que compõem a coleção Formação de Professores em Letras fazem
parte do material didático utilizado pelos alunos matriculados no Curso de Licenciatu-
ra em Letras, habilitação dupla, Português-Inglês, na Modalidade a Distância, da Uni-
versidade Estadual de Maringá (UEM). O curso está vinculado à Universidade Aberta
do Brasil (UAB) que, por seu turno, faz parte das ações da Diretoria de Educação a
Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior
(Capes).
A UEM, na condição de Instituição de Ensino Superior (IES) proponente do curso,
assumiu a responsabilidade da produção dos 54 livros, dentre os quais 51 títulos fica-
ram a cargo do Departamento de Letras (DLE), 2 do Departamento de Teoria e Prática
da Educação (DTP) e 1 do Departamento de Fundamentos da Educação (DFE). O pro-
cesso de elaboração da coleção teve início no ano de 2009, e sua conclusão, seguindo
o cronograma de recursos e os trâmites gerais do Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação (FNDE), está prevista até 2013. É importante ressaltar que, visando a
atender às necessidades e à demanda dos alunos ingressantes no Curso de Graduação
em Letras-Português/Inglês a Distância, da UEM, no âmbito da UAB, nos diferentes
polos, serão impressos 338 exemplares de cada livro.
A coleção, não obstante a necessária organicidade que aproxima e estabelece a
comunicação entre diferentes áreas, busca contemplar especificidades que tornam o
curso de Letras uma interessante frente de estudos e profissional. Deste modo, as
três principais instâncias que compõem o curso de Letras na modalidade a distância
(Língua Portuguesa, Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa e
Língua Inglesa e Literaturas Correspondentes) são contempladas com livros que
são organizados tendo em vista a construção do saber de cada área. Semelhante cons-
trução não apenas trabalha conteúdos necessários de modo rigoroso tal como seria
de esperar de um curso universitário, como também atua decisivamente no sentido de
proporcionar ao aluno da Educação a Distância a autonomia e a posse do discurso de
modo a realizar uma caminhada plenamente satisfatória tanto em sua jornada acadê-
mica quanto em sua vida profissional posterior. Isso só é possível graças à competência
e comprometimento dos organizadores e autores dos livros dessa coleção, em sua
maior parte ligados aos departamentos da Universidade Estadual de Maringá envol-
vidos neste curso, além de convidados que enriqueceram a produção dos livros com
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LITERATURA sua contribuição. A excelência e a destacada contribuição científica e acadêmica desses
PORTUGUESA
autores e organizadores são outros elementos que garantem a seriedade do material
e reforça a oportunidade que se abre ao aluno da Educação a Distância. Além disso, o
material produzido poderá ser utilizado por outras instituições ligadas à Universidade
Aberta do Brasil, abrindo uma perspectiva nacional para os livros do curso de Letras
a Distância.
Além do trabalho desses profissionais, essa coleção não seria possível sem a con-
tribuição da Reitoria da UEM e de suas Pró-Reitorias, do Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes da UEM e seus respectivos representantes e departamentos, da Diretoria
de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do
Ensino Superior (Capes) e do Ministério da Educação (MEC). Todas essas esferas, de
acordo com suas atribuições, foram de suma importância em todas as etapas do traba-
lho. Diante disso, é imperativo expressar, aqui, nosso muito obrigada.
Por último, mas não menos importante, registramos nosso agradecimento especial
à equipe do NEAD-UEM: Pró-Reitoria de Ensino, Coordenação Pedagógica e equipe
técnica, pela dedicação e empenho, sem os quais essa empreitada teria sido muito
mais difícil, se não impossível.
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A presentação do livro
Ao apresentarmos o livro de Literatura Portuguesa para o Curso de Letras à Distân-
cia, perguntamos qual é o lugar do estudo da literatura na grade curricular da Universi-
dade, ponderando que o objeto de pesquisa da literatura é sério e o seu caráter passa,
naturalmente, por um enfoque crítico.
A resposta fundamenta-se na certeza de que o estudo da literatura deve basear-se
fundamentalmente na leitura de textos. Os seus valores estéticos específicos deverão
ser considerados, de acordo com as tendências da teoria da literatura, da crítica e da
história da literatura. De acordo com Spina (1961, p. 6) “Historia literária ensina-se;
literatura, não. Esta, cada um aprenderá por si, lendo, compreendendo e avaliando as
obras que constituem o patrimônio artístico e espiritual de um povo.”
Cabe-nos questionar também a metodologia e tentar responder “como” ensinar
uma disciplina que apresenta diferentes alternativas metodológicas e a própria especi-
ficidade de seu objeto de estudo conduz a opções dependentes de um planejamento
de investigação e de objetivos subjacentes à própria construção de um programa e
modos de execução.
Um breve olhar sobre as teorias metodológicas mostra-nos um percurso difícil des-
de o método biográfico e histórico do final do século XVIII e de todo o século XIX,
culminando com os métodos advindos do Formalismo Russo e do Estruturalismo,
passando pelas propostas pós-estruturalistas como a estilística, a sociológica, a psica-
nalista, entre muitas outras.
A literatura e seu ensino têm sido objetos de debates polêmicos, às vezes, radicali-
zados. Há riscos metodológicos que podem ser constatados desde a dissecação do ob-
jeto estético à utilização do texto literário como um simples pretexto para o exercício
de discursos diversos. Os conceitos de interdisciplinaridade ou de pluridiscipliridade,
bem como a contribuição das diversas áreas das Ciências Humanas no estudo e no
ensino da literatura devem também ser considerados, sem, porém, renunciar outros
métodos ou experiências metodológicas.
Todos parecem demonstrar um caminho para alcançar o objetivo final do trabalho
do professor, que deve dirigir-se à integridade ou à totalidade da obra literária, sem
nunca excluir dela a presença de seu criador (o autor), ou ignorar o discurso histórico-
cultural utilizado e, principalmente, sem negar as conexões de interdependência que
emergem de uma leitura pluridimensional.
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LITERATURA Ao retomarmos a idéia de que estudar (e ensinar) literatura é, fundamentalmente,
PORTUGUESA
ler, o livro passa a ser o suporte material mais importante nesse contexto. No estudo
da Literatura Portuguesa, especificamente, da Literatura Medieval e Clássica, o contato
direto com livro despertará no estudioso o interesse do conhecimento histórico e
do trabalho crítico do professor. Além do livro, o aproveitamento de outros recursos
torna-se prioridade. Consultas a arquivos e bancos de dados na internet, bibliotecas
presenciais e virtuais, além de sites e outros espaços onde o livro, o códice, o manus-
crito possam ser vistos mais de perto, encurtando (ou anulando) o distanciamento
com o passado e com uma geração de autores que marcaram época e eternizaram-se
pela universalidade dos temas e problemas abordados.
De acordo com Buescu (1990, p. 16-17), o ensino à distância, por meio de seus
métodos e técnicas próprias, é capaz de
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I ntrodução
ORIGENS DA LITERATURA PORTUGUESA: QUADRO GERAL
Se fosse possível estabelecer um esquema da criação da Literatura Portuguesa na
Idade Média, que ocorreu entre 1198 e 1597, dois grandes movimentos literários po-
deriam ser destacados nesses três séculos: a floração trovadoresca (séculos XII-XIV )
e a floração dos poetas palacianos (séculos XV-XVI). O primeiro movimento literário
ocorreu no reinado de D. Sancho I e estendeu-se até a morte de D.Dinis, período em
que se destaca a figura de Fernão Lopes, iniciador da prosa portuguesa. No segundo
movimento literário (reinados de Afonso V, D. João II e D. Manuel) a figura extraordi-
nária de Gil Vicente, criador do teatro português, e a poesia compilada no Cancioneiro
Geral de Garcia de Resende são os principais destaques.
Entre os dois períodos acima destacados ocorreram também outras formas literá-
rias de importância secundária como, por exemplo, a prosa doutrinal de caráter reli-
gioso no final do século XIV e princípios do século XV, tais como o Orto do Esposo, o
Boosco Deleitoso e o Livro da Corte Imperial. O Livro da Montaria de D. João I, o Leal
Conselheiro, entre outros são representantes da prosa didática da corte e a produção
dos cronistas que continuaram a obra de Fernão Lopes, Gomes Eanes de Zurara e Rui
de Pina também devem ser consideradas.
O livro Orto do Esposo, de autor anônimo, apresenta narrativas belas e edificantes
de caráter religioso:
Aqui se começa o livro que se chama Orto do Esposo, o qual compôs a honra
e louvor de nosso Senhor Jesu Cristo, flor mui preciosa e fruito mui doce de
todalas almas devotas, e da benta Virgem das virgens, Maria, rosa singular e
estremada da celestial deleitaçom e de toda a corte da cidade de Jerusalém, que
e ena gloria do paraíso (SPINA, 1961, p. 71).
11
das mui doces deleitações polo pecado dos primeiros padres, e lan-
çando em no vale da mesquindade deste mundo, padecia enel muitas
coitas e trabalhos e minguas e tribulações sem conto. [...] Este paraíso
espiritual da alma é a casa da boa consciência, em que é tanta abun-
dância de paz, que a abastença obedece e serve a castidade e a oraçom [...]
(SPINA, 1961, p. 75).
As novelas de cavalaria, segundo Spina (1961), fizeram-se presentes com certa des-
continuidade, não instituindo uma forma literária definida desde os fins do século XIV,
com as novelas A Demanda do Santo Graal e, possivelmente, Amadis de Gaula (fins
do século XVI). Destacam-se também as obras: Crônica do Imperador Clarimundo, de
João de Barros (1520); a terceira parte da novela Menina e Moça de Bernardim Ribeiro
(1554), entre outras.
No ano de 1434 ocorre a nomeação de Fernão Lopes ao cargo de cronista-mor
do Reino. Politicamente, este foi um ano importante. Portugal inicia a sua consolida-
ção política, após a vitória de Aljubarrota1 sobre os castelhanos, a língua portuguesa
adquire as suas características nacionais e a prosa literária se fixa com as crônicas de
Fernão Lopes. Devemos lembrar que a língua oficial do primeiro período literário foi o
galego-português, cuja data oficial decorre de fins do século XII estendendo-se a 1434,
quando, oficialmente, a prosa se inicia. Portanto, o que dissemos acima se refere ao
que podemos denominar de Época Medieval.
Em 1526 /1527, com o regresso de Sá de Miranda da Itália, trazendo as novas for-
mas poéticas dos italianos – o doce estilo novo – e prolongando-se até o ano de
1826, registra-se a época clássica.
Subdivide-se esta época em três períodos distintos:
a) Período Renascentista – estendendo-se até as primeiras décadas do século XVII;
b) Período Barroco (1580-1756) – conceptismo e cultismo na poesia e na prosa.
c) Período Neoclássico ou Escola Arcádica (1756-1826) – com a publicação do
poema D. Branca, de Almeida Garrett, introduzindo o Romantismo.
1 A batalha de Aljubarrota ocorreu no ano de 1385 entre as tropas portuguesas com aliados
ingleses sob o comando de D. João de Portugal e Nuno Álvares Pereira e as tropas castelhanas.
O resultado foi a derrota dos castelhanos, o fim da crise de 1385 e a consolidação de D. João I
como rei de Portugal, o primeiro da dinastia de Avis.
a) Romantismo compreendendo também o Ultra-Romantismo (1826-1865); Introdução
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1 Época medieval:
cantigas trovadorescas
– líricas e satíricas
Cantigas de portugueses
São como barcos no mar
Vão de uma alma para outra
Com riscos de naufragar
Fernando Pessoa
Estas qualidades inatas dos galegos e dos lusitanos do norte vêm acusadas
pelos conhecedores da região: desde antes de Cristo, com Diodoro Sículo;
Estrabão Sílio Itálico, S. Jerônimo, S. Martinho Dumiense, o próprio Santo
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LITERATURA Agostinho, referem-se às virtudes artísticas destes povos, especialmente para
PORTUGUESA a dança e a poesia. [...]
Ora, a penetração e o conhecimento da poesia provençal nestas plagas só têm
o condão de disciplinar à vocação poética dos galego-portugueses, transmitin-
do-lhes a sugestão de um mecenatismo oficial, um paradigma de vida galante
propício para o florescimento da poesia e um conjunto de normas para a ela-
boração poética.
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pelos trovadores portugueses e galegos. Dessa forma, foi notável a hegemonia da Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
língua na lírica peninsular. satíricas
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LITERATURA Época Medieval: Período dos Trovadores (1200-1385)
PORTUGUESA
Antes de iniciarmos o estudo da Poesia Trovadoresca, lancemos um breve olhar
ao ambiente cultural, aspectos culturais e políticos sociais da Idade Média.
Considerada popularmente uma época de trevas, de anarquia, de opressão polí-
tica, de fanatismo religioso, muitos se insurgiram contra a tirania da Igreja que, de
forma absoluta, impunha o seu poder espiritual e a conhecida “barbárie feudal”.
O espírito místico do Cristianismo e as misérias sofridas pelo mundo romano
geraram a lenda do “milênio”, período de mil anos em que todos, vivos e mártires,
haveriam de gozar as delícias do reino de Deus. Essa justiça implicava o fim do mun-
do que se aproximava repleto de dores e flagelos, crença de pessoas fracas e supers-
ticiosas que esperam ansiosamente por essa tragicidade. Os mortos ressuscitariam
e os vivos estariam sujeitos ao juízo final, em que se faria justiça. Os bons poderiam
ser recompensados e os maus castigados com severidade ao sofrimento do inferno.
Não podemos deixar de registrar a grande ignorância de todas as classes sociais,
salvo raras exceções. Até entre os eclesiásticos esse dia foi esperado, considerando
o analfabetismo existente na época.
No segundo período da Idade Média, século XI, a sociedade cristã entra numa
acentuada evolução. A Escolástica sobrevive ainda, mas ganha uma outra força no
século XIII, com São Tomás de Aquino (1225-1274)1 e Roger Bacon (1214-1294). 2
Do século IV ao IX, a língua falada era o latim, modificando-se e enriquecendo-se
de novos termos, tornando-se mais flexível e analítica. As frases começam a ser liga-
das através de preposições e perde a rigidez do latim falado em Roma, porque co-
meça a perder os casos gramaticais. Já o latim vulgar não se identificava com a língua
escrita falada pela Igreja – o baixo latim – e, de uma região para a outra, havia uma
grande variação de uso. Dos diversos falares latinos nasceram as novas línguas – as
línguas romanas ou neolatinas – menos sintéticas. As declinações desapareceram e
houve uma transformação sintática.
Conclui-se que essa época foi muito importante na formação da Civilização Oci-
dental, marcada pelos seguintes aspectos:
1 Pertenceu à Ordem dos Dominicanos, considerado o mais sábio dos santos. Estudou e en-
sinou questões filosóficas e teológicas. Seu maior mérito foi a síntese do cristianismo com a
visão aristotélica do mundo. Autor de duas "Summae", sistematizou o conhecimento teológico
e filosófico de sua época : são elas a "Summa Theologiae" e a "Summa Contra Gentiles", dentre
outras obras importantes.
2 Pertenceu à Ordem dos Dominicanos, dedicou-se a estudos nos quais introduziu a observação
da natureza e a experimentação como fundamentos do conhecimento natural. Bacon promoveu
uma defesa de seus pontos de vista, publicando a obra Speculum astronomiae, dentre outras.
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• Novas classes sociais foram criadas, como o proletariado, acompanhado de Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
novas formas de trabalho e outras concepções religiosas. satíricas
19
LITERATURA Séculos XI a XIV – típicos caracteres feudais.
PORTUGUESA
Havia uma profunda ligação de dependência de homem para homem: relação en-
tre os senhores (proprietários das terras) e os servos (que não eram proprietários,
mas estavam presos a ela). Assim:
• Aos servos: competia trabalhar;
• à nobreza feudal: competia defender a sociedade;
• à Igreja: orar pela sociedade;
3 O Alto Clero é formado por membros da nobreza feudal e se opõe ao baixo clero.
4 O clero regular constitui-se de todos aqueles consagrados da Igreja. Seguem as regras de uma
determinada ordem religiosa, possuem a sua própria hierarquia e títulos específicos. Distingue-
se do clero secular, composto por sacerdotes que atuam junto aos leigos.
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poucos que aprendiam a escrever aproximavam a linguagem escrita da linguagem Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
falada. Os conhecimentos eram transmitidos por via oral: as tradições populares, os satíricas
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LITERATURA A cultura da Provença
PORTUGUESA
Designa-se Provença, toda a civilização do Languedócio que está compreendida
entre o Mediterrâneo e o Maciço Central, os Pirineus e a fronteira italiana (sul da
França). Brotou nessa região uma poesia lírica cuja importância é indiscutível como
fonte de todo o lirismo europeu dos séculos posteriores. O século XII é considerado
o século de ouro da literatura medieval na França, século por excelência do grande
renascimento medieval. Todo o desenvolvimento da filosofia, da literatura e do pen-
samento artístico da França, no período que decorre entre 1150 e 1200, deve-se à
cultura da Provença. Portanto, essa importante região francesa, de solo fértil, que já
dividia as propriedades de maneira racional, possuía uma civilização superior, rica e
civilizada.
Foi no século anterior, denominado “o século das gêneses”, que surgem as can-
ções de gesta e a primeira poesia lírica; a primeira ogiva nas construções (cruzamento
de dois arcos que se cortam), o primeiro vitral, o primeiro drama litúrgico, o primei-
ro torneio cavaleiresco – todos se constituem criações autenticamente francesas. O
texto lírico mais conhecido desse período é a Chanson de Roland, possivelmente, de
autoria de Turold e divulgada pelo trovador Guilherme IX, duque da Aquitânia.
Nascem as duas literaturas: a épica (canções de gesta) e a lírica, constituídas re-
finadas e pressupondo um período anterior de elaboração, cujas raízes estão ainda
por determinar.
A produção literária do Norte forma-se de cantigas compostas pelos trouvères5,
celebrando o espírito heróico e guerreiro da sociedade aristocrática, cujo tema era
a luta. Possuidoras do perfil épico das canções de gesta desempenhavam um papel
acessório, de mero alívio dos heróis cansados de matar. Diversifica-se da produção
poética localizada no Sul – sentimental, cortês, elegante, refinado, transformando a
mulher no santuário de sua inspiração.
Compostas pelos troubadours6, as cantigas líricas privilegiam a mulher, que pos-
sui um papel importantíssimo. No sul da França7, ela encontrou condições favoráveis
para ter uma existência elevada. Herdava, possuía bens próprios e, depois de casada,
podia dispor deles sem o consentimento do marido. Essa igualdade jurídica teve uma
5 Do Francês trouver (achar). No Norte da França significava que os poetas deveriam ser capazes
de compor, achar sua canção ou cantiga.
6 Do Provençal, trovadores. A palavra refere-se aos poetas completos que compunham letra e
música das cantigas, acompanhando-as com instrumentos musicais.
7 Surgiu nas cortes, em fins do século XI, na França meridional. Conceito europeu de mitos
e etiquetas para enaltecer o amor, gerando vários gêneros de literatura medieval, incluindo o
romance. Espécie de contradição entre o desejo erótico e a realização espiritual.
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influência decisiva na cultura trovadoresca. Os trovadores privilegiavam a mulher ca- Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
sada (a domina, dona ou senhora), dedicando-lhes o seu amor, colocando-se numa satíricas
posição de servos, sempre lhes pedindo um favor. A mulher solteira (a donzela) não
atingira essa plenitude moral (e também física) e dependia do pai para tudo.
Os trovadores foram mais longe: denunciaram abertamente nas suas canções a
incompatibilidade entre o amor e o casamento e, assim, essa poesia, aparentemente
inofensiva, pôs pela primeira vez em julgamento um problema social, que tem pre-
ocupado a consciência da Europa moderna. Aparentemente imoral, a negação do
casamento explica-se justamente porque o amor conjugal se apresenta ao espírito
do trovador como um negócio, sem liberdade, diferentemente do conceito do amor
cortês8, cuja tendência era a plenitude e o infinito. Atitudes que hoje nos afigurariam
estranhas e até imorais, eram consideradas naturais ao tempo.
Essa concepção audaciosa, pela qual a mulher era livre para dispor de seus bens
e dar o seu amor a quem quisesse, configurava uma tendência revolucionária, que
brigava francamente com a doutrina oficial da Igreja. O Cristianismo, através do culto
à Maria, também elevou a condição social da mulher, fazendo-a, teoricamente, igual
ao homem.
O amor trovadoresco é, portanto, um fingimento, um produto da inteligência e
da imaginação do que propriamente da sensibilidade: amour courtois9, como dizem
os franceses, mas que apresenta, por vezes, os tormentos do grande e verdadeiro
amor. Os termos cuidar e cossirar (considerar) traduzem bem o trabalho interior e o
enlevo do poeta na adoração da sua dona. Fingia-se enamorado pela dona ou senhor,
mas amava a sua amiga (namorada) – esse dualismo é uma das mais fortes caracterís-
ticas do homem medieval. Todas essas características também serão encontradas no
lirismo trovadoresco galaico-português.
A POESIA LÍRICA
No estudo da poesia lírica a questão da hegemonia e da importância do galego-
português deve ser lembrada. O período histórico compreende entre os fins do século
XII, com o provável aparecimento dos primeiros documentos escritos, não literários,
e 1434, ano que Fernão Lopes foi nomeado pelo rei D. Duarte cronista-mor do reino.
Todas as produções literárias devem ser vistas e integradas num contexto peninsular.
8 Surgiu nas cortes, em fins do século XI, na França meridional. Conceito europeu de mitos
e etiquetas para enaltecer o amor, gerando vários gêneros de literatura medieval, incluindo o
romance. Espécie de contradição entre o desejo erótico e a realização espiritual.
9 Amor intelectualizado. Disciplina nobre e idealizadora.
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LITERATURA Assim, o galego-português, língua falada aquém e além do rio Minho até a fronteira
PORTUGUESA
do rio Tejo, foi o idioma usado por toda a Península e deu expressão a uma lírica de
amor surpreendente pela forma apaixonada e saudosa do homem português, como
demonstram os versos repletos de lirismo escritos por D. Sancho I:
10 Ai, triste de mim, como vivo/ preocupada com o meu namorado/ que se encontra ausente!
O meu namorado demora-se muito na Guarda! Tradução livre.
11 Desde o século XVIII, a cidade de Bordeaux é rica em história, cultura, artes, música e le-
gendários vinhos. Desde a Idade Media, a cidade ficou conhecida como um vibrante centro de
comércio, indústria e negócios.
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Esse mesmo sentimento transborda nos textos, mais tarde, nas cantigas medievais. Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
Escrever textos com tal temática era uma atitude ousada que desafiava o clero e os satíricas
valores tradicionais. Essa arte era desacreditada, por ser arte popular, de caráter sub-
jetivo e individualista. Daí as questões que permanecem até os dias atuais:
Como apareceram essas composições? Que interferências teria havido?
Para respondê-las, abordaremos as teses explicativas, de forma resumida.
Tese arábica
De acordo com Lapa (1973) os estudos arabísticos revelaram na cultura dos ára-
bes certas afinidades com alguns caracteres da civilização cristã medieval. A poesia
trovadoresca podia ter sido influenciada pela poesia arábico-andaluza, que tinha dois
tipos de composição estrófica: a moashaha, muaxaha ou muaxá era uma criação de
Mocaddam, que viveu entre os anos de 840 e 920 e o zéjel, de caráter mais simples
e popular.
Na primeira modalidade a forma estrófica apresentava-se com o esquema aa/bba/
aa ccca/aa/dda/aa [...] e terminava, geralmente, por uma carja, conjunto de versos à
maneira da cantiga de amor e que resumia toda a canção, segundo Lapa (1973, p. 46):
12 Vai-se o meu coração de mim/ Ai, Senhora, se me retornará?/ A minha dor é tão triste, meu
querido/ Sinto-me doente, quando retornará? – Tradução livre.
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LITERATURA Tese latino-medieval
PORTUGUESA
As origens do trovadorismo devem ser buscadas no latim medieval e na sua mé-
trica, segundo Lapa (1973, p. 66), o que comprova que o lirismo trovadoresco possui
caráter literário, fruto da cultura latina: “[...] natural seria procurar na literatura que
exprimia essa civilização dos séculos XI e XII, a literatura latino-medieval, as origens
da poesia trovadoresca”.
Entende-se, assim, que a tradição da cultura clássica não se perdeu na Idade Mé-
dia. Pelo contrário, houve uma continuidade entre os dois mundos (o clássico e o
medieval). E se o latim aparece modificado nas composições poéticas, prova que era
vivido e sentido, filtrado por outros homens, possuidores de outra alma e uma nova
cultura.
Historicamente, a grande imagem de Roma estava sempre presente ao homem
medieval, que se esforçava na imitação das suas instituições e do seu trabalho artís-
tico. Nas universidades existentes nessa época, em toda a Europa, foram criadas ca-
deiras de latim medieval. Ainda hoje, várias universidades, as alemãs, principalmente,
são centros ricos de erudição e pesquisa médio-latinística.
Tese Litúrgica
Essa terceira tese complementa a anterior. Defendida por Lapa (1973, p.78), que
afirma ser na liturgia que o estudioso deve ir buscar as origens da poesia trovadores-
ca. De acordo com o crítico, a cantiga de amigo parece ser uma perfeita imitação do
canto antifônico13 da Igreja. Há uma hipótese que estranha o fato de os trovadores
buscarem (ou se inspirarem) no ritmo e na música dos cantos religiosos, porque
faziam uso de uma linguagem profana e amorosa. A tese litúrgica, assim chamada,
porque pretende derivar o lirismo trovadoresco das formas da poesia da igreja cris-
tã. Devemos considerar, contudo que a Igreja era um espaço do canto e da música
instrumental. Cerimônias de enterros e outras manifestações profanas realizavam-se
no espaço sagrado das igrejas, onde se comia, bebia e falava-se em voz alta, a ponto
de os reis começarem a condenar essas práticas, nas ordenações, e os clérigos, nos
próprios atos litúrgicos.
A tese em questão estabelece, assim, uma ponte de ligação entre a poesia culta da
Igreja e os meios populares de cultura, familiarizados com as cerimônias litúrgicas e
muito influenciados por elas. Houve, assim, uma modalidade da tese latino-medieval
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e uma outra com a teoria folclórica, configurando que no decorrer do processo de Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
assimilação e transformação desse lirismo pelo povo, a música religiosa já continha satíricas
elementos populares.
De acordo com Lapa (1973, p. 82) vários temas encontrados nas cantigas trovado-
rescas são provenientes de rituais litúrgicos, principalmente, nos festejos da Ressur-
reição, da Páscoa. Do mesmo modo, as formas rítmicas também explicam e justificam
as origens do lirismo romântico. por elas. Houve, assim, uma modalidade da tese
latino-medieval e uma outra com a teoria folclórica, configurando que no decorrer do
processo de assimilação e transformação desse lirismo pelo povo, a música religiosa
já continha elementos populares.
De acordo com Lapa (1973, p. 82) vários temas encontrados nas cantigas trovado-
rescas são provenientes de rituais litúrgicos, principalmente, nos festejos da Ressur-
reição, da Páscoa. Do mesmo modo, as formas rítmicas também explicam e justificam
as origens do lirismo romântico.
Tese Folclórica
Semelhante à tese arábica, essa quarta tese é um produto do Romantismo, porque
se baseia na ideia romântica da criação popular. Exemplo disso é a influência das
festas da primavera ou festas de Maio, em honra a Vênus, que ocorreram na antigui-
dade Clássica e que influenciaram a lírica provençal. Gaston Paris, em 1891 e 1892
formalizou essa tese, ao analisar o livro “As origens da poesia lírica na França da Idade
Média”, de Alfred Jeanroy e comprovou que as cantigas de amor trazem vestígios da
festa pagã do mês de maio, quando jovens buscavam flores e ramos para enfeitar car-
ros e adornarem-se, cantando e dançando em roda, celebrando o amor e a primavera.
Tais canções, segundo Lapa (1973, p. 56), teriam “imprimido à poesia cortês o ca-
ráter libertino do seu amor, e os festivos refrões da Primavera ter-se-iam como cristali-
zado no começo da canção”. Essa tese, portanto, explica o caráter popular do lirismo
galego-português, pelas suas concepções filológicas e pelos resíduos românticos da
ideia de “povo ignorante, mas criador” (LAPA, 1973, p. 57).
Tese etnográfica
Essa tese defende a idéia de que as cantigas trovadorescas devem ser estudadas
sob a perspectiva geral e pluridimensional, a partir de um entrelaçar das várias in-
fluências e teses que discutem sua origem. Audrey Bell, em sua obra Da Poesia Me-
dieval Portuguesa (1947), afirma que a cadência paralelística das cantigas de amigo
galego-portuguesas se deve ao ritmo que a jovem imprimia aos trabalhos caseiros,
embalando o irmão mais jovem, fiando o linho ou lavando a roupa na fonte. Esse
27
LITERATURA ritmo teria influenciado as cantigas de amigo, porque a donzela trabalhava cantando,
PORTUGUESA
como ainda ocorre hoje, nos trabalhos do campo.
Do mesmo modo, Menendez y Pelayo14 defende a tese etnográfica, questionando
sobre as raízes desse lirismo, justificando-o com o seu fundo étnico comum aos povos
da Península Ibérica ou de algum povo característico da Galiza. O lirismo galego-
português possui um caráter mais popular do que o provençal, apresentando certo
fundo de melancolia vaga, misteriosa e de devaneio. Segundo a crítica, tais caracterís-
ticas podem ser consideradas um complexo fenômeno trovadoresco.
Nesse sentido, uma tese só não bastaria para explicá-lo e para se entender o seu apa-
recimento. Para tanto, deve-se inserir o lirismo galego-português no contexto de uma so-
ciedade teocrática, que poderia sentir-se prejudicada por um ideal que canalizava a fervo-
rosa religiosidade medieval para um verdadeiro culto prestado à mulher, revelado numa
série de cantares profanos em que o amor é cantado de uma forma, às vezes, patética.
A origem desses cantares trovadorescos deve ser vista num entrelaçar de várias
influências e de várias teses, numa conjuntura, ou melhor, numa perspectiva geral e
pluridimensional.
De acordo com Lapa (1973) um fato pode ser considerado certo:
14 Marcelino Menendez Y Pelayo (1856-1912) foi polígrafo, crítico literário e erudito espa-
nhol. Recolheu toda poesia espanhola da Idade Média ao Renascimento.
28
os principais meios de defesa. A cavalaria surge como uma bênção, não deixando, Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
porém, de ser guerreira e combativa, ao proteger a pátria dos infiéis. Desse contexto, satíricas
surge uma poesia épica, que canta e exalta a coragem e a luta desses heróis – são as
canções de gesta15.
No norte da França floresce uma literatura de exaltação nacional e mística. Os
trovadores cantam e imortalizam os feitos heróicos de cavaleiros que partem para
defender a pátria e a causa de Cristo, criando epopéias onde celebram a coragem, a
honra, a determinação, o heroísmo desses homens bravos que ficaram imortalizados
na alma dos povos. Exemplo disso é a Canção de Rolando (La Chanson de Roland),
poema épico escrito em francês antigo, no século XI, muito influente na época, ins-
pirando a composição de outras obras sobre o tema (a chamada “Matéria de França”)
por toda a Europa.
O poema narra o fim heróico do conde Rolando, sobrinho de Carlos Magno, que
morre junto a seus homens na batalha de Roncesvales contra os árabes. A base histó-
rica do poema é uma batalha real, travada entre a retaguarda do exército de Carlos
Magno, sob o comando de Rolando, que abandonava a Península Ibérica e um grupo
de espanhois bascos que a chacinou. Embora histórico, o acontecimento é retratado
sem fidelidade histórica: os autores do massacre passaram de bascos a muçulmanos,
e tanto essa alteração como o tom geral do poema explica-se pelo contexto das Cru-
zadas e da Reconquista Cristã da Península, que se viveu no século XI.
Um trecho da Canção de Rolando exemplifica o tom épico, heróico e majestoso,
que percorre todo o poema:
15 Do francês, chansons de geste, ou canções de feitos heróicos. São poemas épicos que datam
dos fins do século XI e início do século XII e narram
16 A Canção de Rolando. Tradução Lígia Vassalo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
29
LITERATURA A guerra, porém, começa a esmorecer e outros interesses renascem e no sul des-
PORTUGUESA
ponta um novo ideal amoroso. Uma elite de nobres e clérigos procura nas letras
outras distrações que tivessem mais a ver com as suas almas sensíveis e líricas. No
século XI desperta o espírito cortês, cria-se um universo novo de sonho e fantasia,
que faz nascer uma literatura popular, que se tornou artística e penetrou nas cortes
senhoriais e reais.
Esse lirismo é divulgado em toda a Europa: é o renascer dessas canções líricas nas
populações românicas, incluindo-se Portugal. O cavaleiro já não combate mais pelo
seu Deus e nem pelo seu senhor, mas pela sua dama. Nasce, então, a arte dos trova-
dores, sutil e apaixonada. A arte do amor cortês, o amor puro que leva à virtude, à
perfeição, à razão de existir. Impõe deveres, num ritual à maneira da estrutura feudal:
assim como o vassalo deve vassalagem e obediência ao seu senhor, do mesmo modo,
o trovador deve obediência à sua dama – ela é a suserana e ele o seu vassalo.
O amor vive da admiração recíproca. Ele admira na senhora as virtudes morais, a
dignidade e a fidelidade, um amor quase idólatra, saudoso, torturado de um fatalismo
passional. Tudo contribuiu para o surgimento desse hino amoroso: o clima ameno,
a terra fértil, o contato sempre com o mediterrâneo e a sua abertura para todas as
civilizações que por lá passavam. As pessoas eram alegres, a paisagem verdejante com
horizontes a perder de vista.
A mulher, por sua vez, começa a ser reabilitada pelo cristianismo. No regime feu-
dal, vai ser exaltada, endeusada, principalmente no sul da Provença. Diferentemente
o que ocorreu na Grécia e em Roma, no paganismo, quando era desprezada e consi-
derada como um animal.
O trovador vê no amor de sua dona uma fonte de enobrecimento da alma. É atra-
vés da beleza feminina (considerada um testemunho de Deus na terra) que o amante
atinge o amor supremo. Para não atingirem a honra da mulher, os trovadores usavam
de uma linguagem muitas vezes hermética, a que chamavam “trobar clus”, ou seja,
fazer versos fechados. Para se aproximarem de sua dama, à maneira do vassalo para
com o seu senhor, o trovador tinha que seguir certo ritual:
1) Suspirante ou frenhedor: atitude de suspirar;
2) Suplicante ou precador: atitude de pronunciar algumas palavras à senhora,
pedindo-lhe atenção para a sua pessoa e correspondência ao seu amor.
3) Namorado ou entendedor: fase em que podia olhar para ela e a correspondên-
cia era quase completa.
4) Amante ou drudo: o último estágio do ritual, quando o trovador era corres-
pondido, não só espiritualmente, mas também fisicamente. Na cantiga de amor
portuguesa, era raro chegar a esse grau, porque se o marido descobrisse, uma
30
desgraça poderia ocorrer. Portanto, o amor deveria ser a arte pela arte, puro, Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
platônico. satíricas
Nesse sentido, mesmo o trovador provençal não deveria nunca revelar o nome da
senhora e sim, respeitar o senhal (o pseudônimo) para não ferir a honra e o nome
da mulher amada. Sendo assim, além do ritual, ele deveria respeitar os seguintes
aspectos: Ser humilde e paciente (a vassalagem amorosa); prestar obediência e sujei-
ção absoluta à sua senhora; prometer servi-la e honrá-la até a morte; não esquecer
o senhal, requisito essencial no código de amor cortês e ter em atenção a mesura
(virtude suprema), a mais preciosa das qualidades.
Quanto à estética desses cantares, a mulher era sempre a mais bela de todas e por
ela o trovador tudo desprezava, aspirando até a morte. As palavras fremosa (bela, for-
mosa), prez (caráter, dignidade) e talhada (belo corpo, bela aparência) fazem parte
dos versos das cantigas provençais e, consequentemente, das galego-portuguesas.
A invocação à natureza leva o trovador a falar nas frores de Maio (flores de maio) e
no tempo da frol (no tempo da flor), na primavera e nas aves como mensageiras da
paixão, para refletir ou contrastar com o estado de alma enamorada. Vale lembrar que
esta corrente provençal influenciou a lírica peninsular.
O lirismo galego-português
Ao estudar-se a literatura trovadoresca, é comum estabelecer os limites cronoló-
gicos, tanto na datação dos primeiros documentos, como também na determinação
de suas últimas expressões. Todavia, no que se refere à poesia galego-portuguesa,
estabelecer datas para o surgimento e o fim deste lirismo é um problema destacado
por vários críticos, em que há divergências significativas, ao mesmo tempo em que
revelam as opções metodológicas de cada estudo. Logo, devido a essas diferentes
perspectivas, é preferível apontar algumas datas a estabelecer limites precisos.
De acordo com Vieira (1992, p. 27), o primeiro texto que se pode datar com “certa
segurança” é o sirventês político de Johan Soarez de Pávia contra o rei de Navarra,
Ora faz ost’o senhor de Navarra, para a qual se aceita como provável a data de 1196.
Este trovador era um nobre português, feudatário do rei de Aragão e Catalunha, que
teria vivido, por volta de 1196, na corte de Barcelona. Acredita-se ainda que tivesse
escrito mais seis cantigas de amor, antes de 1196, mas que estão ausentes no códice.
Do mesmo modo, a famosa Cantiga de Guarvaia (também conhecida como “Can-
tiga da Ribeirinha”) tem sido considerada como a mais antiga composição. Nesta pers-
pectiva, os estudos de Carolina Michaëlis (apud Vieira, 1992, p. 27), admitindo a au-
toria do trovador Pai Soares de Taveirós, propõem que o poema tenha sido composto
31
LITERATURA antes de 1200, talvez em 1198, ou mesmo 1189. Por sua vez, como discorre Vieira
PORTUGUESA
(1992, p. 27), Pizzorusso17, (1963) opta por atribuir a autoria desta cantiga a Martim
Soares, devido sua localização no grupo de poemas no Cancioneiro da Ajuda e por
questões formais internas. Logo, esse exemplar teria sido composto alguns anos mais
tarde, porque a atividade desse poeta se situa, provavelmente, entre 1230 e 1270.
Segundo Tavani (1988, p. 41), a maior parte do patrimônio poético galego-portu-
guês pertence ao século XIII e à primeira metade do século XIV. Apenas um texto pode
ser situado no século XII, como é o caso da cantiga de escárnio já mencionada por
Vieira (1992). Assim, com datas aproximadamente delimitadas, a dificuldade reside
na gênese dos tipos de cantigas presentes nos Cancioneiros das Bibliotecas da Ajuda,
Nacional de Lisboa e do Vaticano, em que se distinguem três gêneros principais – can-
tigas de amor, cantiga de amigo e cantigas de escárnio e maldizer –, e também gê-
neros menores, como a pastorela, o pranto a alba, entre outros pouco representados.
Neste âmbito, a cantiga de amor, de inspiração provençal, seria uma das manifes-
tações periféricas da canso (canção) occitânica, pois reproduz bastante fielmente essa
ideologia, apesar de o substrato social ser completamente diferente. As cantigas de
escárnio e maldizer formam, por outro lado, um gênero pouco homogêneo, mas que
se vincula também aos gêneros provençais correspondentes. Enquanto que a cantiga
de amigo é uma cantiga de mulher, porém, bastante diferente das outras canções
de mulher da poesia medieval em língua vulgar. Isso fez com que, devido sua “origi-
nalidade” no que se refere à personagem, ao ambientes e seu aspecto dialogado, se
formulasse uma tese que atribui uma origem popular à cantiga de amigo.
Segundo Lapa (1973), esta distinção não é arbitrária, o que faz com que esses
gêneros interpenetrem-se na literatura galego-portuguesa, levando a encontrar nas
primeiras cantigas de amor resquícios da repetição paralelística e nas cantigas de
amigo algo que lembre a doutrina do amor cortês. Para este crítico, estes dois gêne-
ros têm ainda natureza totalmente diversa. Portanto, considera que é falso o processo
seguido por alguns romanistas ao forjar uma genealogia dos gêneros, considerando
a cantiga de amor o ponto de partida da cantiga de amigo. Do mesmo modo, re-
conhece um “pálido eco” do lirismo provençal no galego-português; enquanto que
outros autores atribuem analogias literais, ou quase, em nível de microestruturas,
entre poetas galego-portugueses e trovadores occitanos.
Assim, é preciso considerar duas correntes poéticas fundamentais, ao examinar-
mos as origens do lirismo galego-português, como evidenciam diversos estudiosos
17 Obra citada: PIZZORUSSO, V. B., Le Poesie di Martin Soares. Bologna: [s.n.], 1963. p.
25-28; 59-64.
32
deste lirismo18: uma que denuncia o influxo estrangeiro de além Pireneus, em que Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
sofre influência da poesia trovadoresca provençal, constituída em sua totalidade nas satíricas
cantigas de amor; e outra com raízes na terra, o elemento autóctone que manifesta
caráter popular e feminino, representada, essencialmente, pela cantiga de amigo
paralelística. Nesse sentido, verifica-se que alguns têm se inclinado para uma ou ou-
tra linha interpretativa, conforme a intenção seja de enfatizar as características que a
lírica galego-portuguesa compartilha com o lirismo provençal ou ainda marcar a sua
individualidade, por meio do caráter específico das cantigas de amigo, vistas como
manifestações de uma identidade nacional. Para tanto, busca-se neste estudo traçar
um percurso pela vertente autóctone e pelo lirismo provençal, tendo em vista suas
implicações para o trovadorismo galego-português.
As Cantigas de Amor
Definição
De origem provençal, essas cantigas refletem um estilo de vida diferente: cons-
tituem um retrato da vida feudal da corte, expressando um meio culto, refinado e
muito comprometido com o convencionalismo da vida palaciana e a cultura clássica.
O trovador apresenta a confissão de sua experiência passional diante de uma mu-
lher inacessível aos seus sentimentos e apelos amorosos, porque pertencia à classe
social superior e era casada. O sentimento amoroso posiciona-se no plano da espiri-
tualidade e de contemplação platônica, mas, segundo Moisés (1977, p. 25):
18 Lapa (1973), Vieira (1992), Tavani (1988, 2002), Lopes e Saraiva (1996).
33
LITERATURA Classificação e Estrutura
PORTUGUESA
As cantigas de amor recebem a seguinte classificação:
• Cantigas de mestria (ou maestria) consideradas as mais perfeitas. Os versos
possuem sete a dez sílabas métricas e o número de estrofes raramente passava
de três ou quatro.
• Cantigas de refrão (ou estribilho): no final de cada estrofe, repetia-se um ou
mais versos, tornando-a mais espontânea, natural, lírica e menos artificial.
19 E, pois Deus assim o quis, / Mas os meus olhos por alguém.../ choram e cegam, quando não
veem alguém. Tradução livre.
34
Temática das cantigas de amor Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
O trovador vê o amor cortês como uma força espiritual e mística em oposição satíricas
ao amor erótico. A mesura, o respeito pela senhora, leva-o a esquecer-se dele pró-
prio. Sendo assim, ele se humilha, apaga-se, temendo fazer mal à sua dona. É o
amor puro, desinteressado, cuja finalidade é aperfeiçoar-se moralmente. É o amor-
adoração que se satisfaz numa idolatração, veneração pela sua senhora. Só assim, ele
cresceria em espiritualidade e em grandeza de alma.
Na maior parte das vezes, porém, o trovador sofre com a não correspondência
amorosa da senhora, levando-o ao desejo de morrer por amor. Dirige-se, nesse
caso, à senhora numa apóstrofe plena de carga afetiva, atitude de humildade e súpli-
ca, num queixume, espécie de grito de dor o desconcerto de sua alma o desejo de
morrer. É o gosto de viver triste, o comprazimento na dor, características constantes
na estética das cantigas de amor. Mesmo a saudade da mulher amada poderia levar o
trovador à morte, como nos versos de Bernal de Bonaval: “A dona que eu amo e tenho
por senhor / amostrade-me-a, Deus, se vos en prazer for, / se non dade-mi a morte!”
E Deus está sempre presente na alma do trovador como o único que pode ajudá-
lo na sua dor de amor, fruto da extrema religiosidade existente e do platonismo, que
molda as almas, num amor espiritual.
O tema da separação também é comum nas cantigas de amor. A separação, tema
recorrente nas cantigas leva o trovador à loucura. Nesse caso, ele confessa que não
poderá viver sem ela, na certeza de ensandecer, como comprovam os versos de João
Garcia de Guilhade:
35
LITERATURA ou de oyto ou de mays, se quiseren”20.
PORTUGUESA
As estrofes podiam ser: uníssonas, quando têm a mesma rima; singulares, quan-
do apresentavam rimas diferentes e doblas ou parcadas, quando cada grupo de
duas coplas tinha a mesma rima. O perfil da cantiga denominava-se talho e os versos,
palavras. As cantigas galego-portuguesas não têm mais do que três ou quatro coplas,
excetuando-se as paralelísticas. Cada copla podia apresentar um número variável de
versos, sendo que o número máximo de versos era de dez e o mínimo, de dois.
Além do refrão, outros recursos poéticos também podem ser observados: a finda,
espécie de conclusão, constituía-se de uma copla (estrofe) de menor extensão – de um
a quatro versos – que rematava tudo quanto se tinha dito. Complementava a cantiga,
geralmente, a de mestria. A atafinda constitui-se num processo de ligação de coplas,
feita pela continuação da frase na copla seguinte. Feita pelas partículas como e, ca,
pois, quando, pero, que, entre outras. Poderiam ser empregadas tanto nas cantigas de
mestria, como nas de refrão. O enjambement ou transporte consiste em completar no
verso seguinte o sentido do verso anterior, processo que se tornou corrente na poesia,
até a atualidade. Há ainda o recurso do dobre, ou repetição simétrica da mesma palavra
de rima duas ou mais vezes, de preferência no primeiro e último verso e do mozdobr-
re, repetição da mesma palavra, mas variando-a de forma, no corpo das coplas.
Os demais recursos serão estudados nas cantigas de amigo.
36
senhor, com gran pesar que viu, Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
e non foi ledo, nem dormiu satíricas
37
LITERATURA aliteração dos sons nasais em “en”, acentuando-se a dramaticidade da realidade do
PORTUGUESA
sujeito-lírico. As rimas auxiliam na revelação do trágico, à maneira de um presságio.
Na terceira estrofe ou copla o eu-lírico dirige-se à amada e compara-se a um
“home” que “ensandeceu” (que enlouqueceu) com a tristeza que viu e, a partir, daí,
não foi mais feliz e nem dormiu (faz uso do pretérito perfeito para recriar sua dor pas-
sada). Reforça o trágico novamente no uso do polissíndeto e na gradação, além do
que as aliterações dos sons nasais adensam mais a angústia do eu-lírico, aproximando-
o das consequências dramáticas daquele fatalismo de amor: depois, mha senhor, e
moireu. Identifica-se a seguir, com essa desgraça e confessa com dor no refrão: “ai,
mnha senhor, assi moir’ eu”.
Na quarta e última estrofe, há uma retomada do paralelismo (Como moireu
quen amou tal / dona que lhe nunca fez ben) nos dois primeiros versos. Atinge a sua
angústia, numa paixão avassaladora e, ao repetir o polissíndeto revela o maior drama
daquele “home” - a senhora o deixou por outro que não a merecia (a non valia) e nem
a merece (non val). A aliteração em v, sugerindo o movimento de partida, juntamen-
te com o uso do imperfeito (a non valia) dá-nos o caráter durativo da ação, sugerindo
a intensidade desse absurdo. Termina numa queixa, que ecoa e se perde na alma da
sua senhor: ai, mnha senhor, assi moir’ eu!
Quanto à forma, essa cantiga de amor possui quatro estrofes (coplas) de versos
octossílabos agudos, dispostos segundo o esquema rimático: abbaC, acompanhados
de refrão.
As cantigas de Amigo
O emissor nas Cantigas de Amigo é a mulher, por isso dizemos que o “eu-lírico” é
feminino. Na verdade, também nas Cantigas de Amigo o autor é um homem, mas que
se faz passar pela mulher que namora ou pela qual tem interesse. A mulher continua
sendo como na cantiga de amor, o agente e o tema da poesia lírica trovadoresca.
Nessas cantigas, a mulher, geralmente pertencente a uma camada social mais popu-
lar e menos culta, lamenta a ausência do “amigo21” que está longe ou não se apresen-
tou no tempo esperado ou para o encontro combinado entre dois. O tom é de confi-
dência à mãe ou as amigas ou a algum elemento da natureza (ramo, flor, árvore, lago,
um pássaro, entre outros). Em muitas composições, a água (ondas, mar, lago, fonte)
assume uma forte conotação erótica, metaforicamente, uma vez que o relacionamento
entre os namorados era ou deveria vir a ser íntimo.
21 A palavra amigo pode ser traduzida por namorado, sempre está ausente, por ter ido combater
os mouros nas trincheiras (no ferido ou fossado).
38
Quase sempre, as Cantigas de Amigo apresentam uma elaboração estética diferen- Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
te, em consequência de sua origem popular. Seus compositores não são nobres im- satíricas
portantes, suas letras, têm menor riqueza vocabular e costumeiramente utilizam para-
lelismos e/ou refrões , bem como outros recursos que auxiliam no “prolongamento”
da canção, com a estruturação musical tornando-se mais acessível ao autor. Analisadas
sob o ponto de vista temático, as Cantigas de Amigo apresentam razoável variedade
graças às diferenças situações descritas ou abordadas.
Quanto a um possível valor histórico, documental, também o saldo é significativa-
mente positivo, pelo registro de vivências cotidianas, de usos e relações caracterizado-
ras, ao menos em parte, da sociedade da época. Outros aspectos, ainda, a contribuir
para o aumento desse valor documental, é a existência de vários modelos de cantigas
relacionados com situações ou acontecimentos, como a alva ou alba (matutina), bai-
lia (para a dança), romaria (fato religioso), marinha (referência ao mar), mal-maridada
(crise conjugal), pastorela (relativa ao campo, pastoreio), serena (noturna), barcarola
(paisagem marítima).
Dentre as variedades temáticas, as bailias exemplificarão a nossa leitura.
O canto e a dança, desde o paganismo, ligavam-se aos atos do culto e das diversões
populares. As mulheres, especialmente, solteiras, acompanhadas ou não de instru-
mentos ou apenas com o auxílio da própria voz, cantavam e dançavam em dias festivos.
Na Galiza, especialmente, na cidade de Santiago de Compostela (centro de devoção
do mundo inteiro), depois da descoberta do corpo de Sant’Iago, em honra do santo
eram entoados cantos, numa atitude de intensa fé, a princípio em latim, depois mes-
clados com outras palavras, chegando ao romanço. É atribuída a influência dos cantos
austeros e solenes, os quais, mais tarde, fizeram parte da poética galego-portuguesa e
da dança. Essas manifestações ocorriam sofriam a influência da igreja compostelana, as
quais, transigindo com as revelações de caráter religioso, ficaram gravadas na memória
do povo, transformando-as em cenas populares.
Na Idade Média, as mulheres reuniam-se nos adros das igrejas, ou em lugares públi-
cos, organizavam bailes de roda, cantando versos amorosos em coro. A Igreja, apesar
de inúmeros esforços, não conseguiu acabar com as danças profanas, preferindo as-
similá-las nos cultos, permitindo que os cantos em honra aos santos fossem entoados
pelas mulheres, principalmente depois da descoberta do corpo de São Tiago, fato que
tornou a cidade de Compostela o maior centro de devoção de todo o mundo. Deste
modo, as mulheres passaram a desempenhar um importante papel como intérpretes
no canto e na dança, em festividades religiosas ou profanas.
Nunes (1928, p. 125) registra que
39
LITERATURA [...] é de se presumir que nesse cortejo feminino figurassem as mais distintas
PORTUGUESA pelo nascimento e, sobretudo, pela habilidade em cantar e bailar. E já então
algumas haveria de certo que, exímias nas duas artes, fizessem disto profissão,
exercendo o seu ofício em público, cantando e bailando ao som do pandeiro.
Jazia el-rei em Lisboa ua noite na cama e nom lhe viinha sono pêra dormir e
fez levantar os moços e quantos dormiam no paaço e mandou chamar Joham
Mateus e Lourenço Pallos que trouxessem as trombas de prata e fez acender
tochas e meteo-se pella villa em dança com os outros. As gentes que dormiam
saíam aas janelas veer que festa era aquella ou porque se fazia; e quando virom
daquella guisa el-rei, tomarom prazer de o veer assi ledo. E andou el-rei assi
gram parte da noite e tornou-se ao paaço em dança... (CRÔNICAS, s.d., p. 48).
40
tradicional e folclórica, cuja estrutura pressupõe a existência de um grupo de moças Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
em diferentes funções: uma delas, dotada de melhor voz, a cantadeira, entoa as satíricas
41
LITERATURA Levando-se em consideração os conceitos acima, o clérigo Airas Nunes de Santia-
PORTUGUESA
go foi um dos mais significativos compositores de bailadas, representando o cotidia-
no das mulheres que viveram na Península durante o século XIII.
São comuns os cenários rurais e domésticos, as romarias, os locais como a fonte,
os rios, as praias e árvores floridas com moças dançando. As meninas podiam sair
de casa quando aconteciam as romarias, ou as festas da Primavera, significando pre-
ciosos momentos de liberdade. Nesses dias de festa, mostravam o seu potencial de
sedução, por meio dos cantos e da dança, deixando transparecer as formas de seu
corpo, a fim de chamar a atenção do amigo, tal como nos atesta Pimpão (1947, p.
106) “Pressente-se nela o desejo da moça de atrair o namorado, não só pela sua arte
coreográfica, mas ainda pela graça do seu corpo [...]”.
O amor, a primavera e a religião fazem parte de um ritual de dança feminina, que
remonta às antigas festas pagãs, realizadas durante o mês de Maio, também chamadas
de festas primaveris. As bailadas geralmente aconteciam sob as árvores floridas, re-
portando-nos à idéia de fecundidade, quando a flor precede ao fruto e, dessa forma,
a menina que dança sob as flores demonstra estar pronta para o amor.
Os ritos folclóricos das procissões do mês de maio ou celebrações da Primavera
remontam à Antigüidade Clássica. Sandro Botticelli (1444/5-1510), pintor florentino
do Quattrocento retratou o tema, numa das mais famosas de suas telas A Primavera
(1482). No jardim de Vênus, assistimos a uma metamorfose visual própria das narra-
ções de Ovídio, referindo-se à ninfa Clóris convertida em Flora, imagem que, como
indica a rica decoração de seu vestido e a sua touca de flores, anuncia o início da
primavera.
A dança das Graças (livres e soltas com suas vestimentas transparentes) simboliza
o circuito da generosidade, tal qual a entendeu Sêneca (De Beneficiis, I, 3, 2-7) e,
posteriormente, Alberti em seu Tratado sobre a pintura. Nesse bailado observamos
o gesto das mãos, colocadas palma com palma para sugerir um encontro (ausência de
conflito), formando no conjunto uma ilustração de beleza e paixão.
No século XV, o tema do jardim e do solo semeado de flores das mais diversas es-
pécies liga-se diretamente à série de imagens criadas nas escolas de pintura em todo
o Ocidente e a célebre tela de Botticelli vincula-se aos cortejos de maio em Florença.
Há registro, na poesia italiana, de um coro de jovens andando pelas ruas da cidade,
agitando ramos floridos ao vento e conduzindo um carro que leva o Amor, o deus da
festa. Esse Amor tinha o caráter de ligar-se às estações do ano, participando do grande
ciclo da vida e da morte, além de praticar o jogo da sedução, enquanto ele estivesse
presente.
A Igreja primitiva condenava esses cortejos de maio, mas não conseguia desviar
42
das multidões o gosto pela representação e pela chegada da estação mais bela do ano, Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
concordando em colocar no interior do templo, algumas representações concorren- satíricas
tes. Do mesmo modo, a poesia antiga faz referências a canteiros floridos, ao tema
das rosas e à sua fragilidade, comparada com a efemeridade da juventude. A cena
que nos oferece Airas Nunes na cantiga Bailemos nós já todas três, ai amigas, é um
quadro representativo da natureza e da vida social aliada às situações sentimentais
da donzela:
Três meninas numa dança de roda sob árvores floridas, repetindo-se o rito, que
atualiza o mito. Explorando a simbologia de algumas palavras da cantiga, temos a pre-
sença da aveleira florida. Na tradição clássica, as suas raízes possuíam um significado
místico pelo seu forte poder de fertilização; acreditava-se na sorte que poderia trazer
aos apaixonados. A beleza do quadro lírico se completa com a beleza das meninas (e
quen for velida, como nós, velidas,/ e quen for louçana, como nós, louçanas) que,
no estribilho, repetem o convite às amigas e às irmanas sob a influência do encanta-
mento dos ramos floridos, celebrando o Amor.
A graciosa cena reitera o costume já mencionado – com a presença ou não dos
rapazes, eram as meninas que organizavam o baile. De mãos dadas entre si, enquanto
fazem a roda, vão cantando versos, geralmente quadras seguidas de refrão, cujo canto
acompanham com movimentos lentos ou mais agitados do corpo, conforme o ritmo
da cantiga. No texto em questão, o convite é feito pelas amigas entre si, velidas, lou-
çanas e desejosas de conquistar e amar o amigo. O convite é reiterado nas demais
estrofes (Bailemos nós já todas três, ai irmanas,) para que a dança seja praticada
sob os ramos floridos das avelaneiras (so aqueste ramo destas avelanas; so aqueste
ramos frolido bailemos),
Nas bailias, quando a menina não aparece sozinha, o número das amigas, ge-
ralmente, chega a três, dançando juntas sob as aveleiras em flor. Tanto na narrativa
mitológica quanto na pintura, simbolicamente, esse número lembra as Três Graças,
as três irmãs, filhas de Júpiter e Vênus, que representam a alegria, a beleza e a moci-
dade. Tal como no texto poético, graça, formosura e amor lembram a célebre tela de
Botticelli A Primavera.
As cantigas de bailadas propiciavam certa liberdade à menina, que se encontrava
distante da vigilância proibitiva da mãe, e dessa forma, entusiasmava-se com a idéia
43
LITERATURA de poder ver ou rever o amigo. Na cantiga de D. Dinis Ma madre velida,/ vou-m’a la
PORTUGUESA
bailia/ do amor, a donzela comunica à mãe sua intenção de ir ao baile, na casa do
amigo: Vou-m’a la bailada/ que fazem en casa/ do amor; Que fazem en casa / do
que eu muit’ amava,/ do amor. Lá poderia exibir sua beleza (Do que eu ben queria;
/ chamar-m’ am garrida / do amor), mesmo sem a aprovação da mãe. Depreende-se
que a idéia de liberdade estava acima da autoridade materna, uma vez que o verbo
ir, no presente (vou-m’ a la bailia / [...] Vou-m’ a la bailada), demonstra a firme
decisão de participar dos bailes.
Na cantiga – Bailad’oj’, ai filha, que prazer vejades,/ ant’o voss’amigo, que vós
muit’amades, de autoria de Airas Nunes de Santiago, a menina é intimada pela mãe a
dançar para o amigo, contradizendo as leis morais ligadas ao matriarcado medieval e
surpreendendo a filha. Embora houvesse certa liberdade no relacionamento entre mãe
e filha, era comum a mãe impedir a filha de ver o amigo, quanto mais dançar para ele.
No diálogo em questão, há uma clara insistência da mãe para que a moça demons-
tre a sua arte coreográfica ao namorado, repetindo-se na forma de um paralelismo
semântico, ao longo das quadras: - Bailad’oj, ai filha, que prazer vejades,/- Rogo-vos,
ai filha, por Deus, que bailades/ - Por Deus, ai mha filha, fazed’a bailada/ - Bailade
oj’, ai filha, por Sancta Maria. O clima já não é de alegria como na cantiga anterior,
porque a mãe roga por Deus e por Maria que a menina dance. O tom da resposta é
de submissão, concordando “desta vez” (d’aquesta vergada), porém, argumentando
com a mãe que “pouco vos interessa que ele viva” (de viver el pouco tomades perfia).
A natureza está representada na romãzeira, na terceira quadra da cantiga, segundo
verso: ant’o voss’amigo de so a milgranada. A romã simboliza fecundidade, abun-
dância e apelo sexual, que, desde os povos mais antigos, incorpora o amor e o casa-
mento. Na Antiguidade Clássica era conhecida como originária do sangue de Dionísio
(deus da fertilidade). Afrodite e Hera consideravam-na fruto sagrado, tornando-se o
símbolo do casamento. Presente também na pintura, na tela Proserpina (1874), de
Rossetti (pintor italiano pré-rafaelita). Outros artistas também a interpretaram como
o símbolo da ressurreição de Cristo.
Retomando a cantiga de Airas Nunes, a presença da romãzeira sugere sedução e
conquista do amigo, reiterada nas expressões prazer vejades (v. 1), que ben pare-
cedes (v. 8) e fazed’a bailada (v. 13), revelando a preocupação da mãe com a vida
amorosa da filha: ant’o voss’amigo, que vós muit’amades (v. 2). Completa-se, assim,
o quadro lírico em que a dança e a natureza unem-se e harmonizam-se diante do
amor da menina que deseja se casar.
Verdadeiros quadros líricos, as bailias apresentam sugestões da natureza e da vida
social aliadas às situações sentimentais.
44
A POESIA SATÍRICA: CANTIGAS DE ESCÁRNIO E MALDIZER Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
Analisadas do ponto de vista linguístico, histórico-social e ainda literário, as satíricas
cantigas do gênero satírico têm valor inapreciável. Até 1896, era o capítulo menos
estudado da poesia trovadoresca, por duas razões fundamentais: as palavras eram
menos legíveis e muitas dessas composições contêm expressões de baixo calão, obs-
cenidades que dificilmente poderiam ser publicadas, por razões de decoro, muito
discutíveis, aliás. Vencendo estes obstáculos, foi à professora Carolina Michaëlis de
Vasconcelos, que iniciou investigações para esclarecer as dificuldades sobre esse
gênero poético.
A ilustre pesquisadora e filóloga sacrificaram, por amor à ciência, o seu pudor
de mulher, para descer à “cloaca moral, que é tantas vezes o encarno galego-portu-
guês”. Há duas hipóteses quanto à origem dessas cantigas:
• Originárias de Portugal ou
• Derivadas do sirventês – poema cantado no Sul da França.
45
LITERATURA Na primeira categoria, o trovador “escarnecia” de alguém per palavras cubertas
PORTUGUESA
que ajam dous entendimentos pera lhe lo non entende ren ligeiramente.22 Eram
impessoais, de crítica velada e indireta. O efeito estilístico que predomina é, natu-
ralmente, a ironia. Na segunda, o trovador atacava diretamente, a descoberto, de-
clarando os nomes, os defeitos e os vícios das pessoas: son aquelas que fazem os
trobadores mais descubertamente: en elas entram palavras que queren dizer mal e
nom tem outro entendimento senom aquele que queren dizer chaâmente.23 Nessas
cantigas a pessoa satirizada é nomeada. Ferem diretamente, sem subterfúgios, nem
artifícios; a linguagem utilizada é baixa, vil e bruta. É o reverso, o contrário do amor
cortês, nobre e sublime das cantigas de amor.
A temática desenvolvida foi a seguinte:
a) Sátira política e religiosa:
• a covardia de cavaleiros cristãos frente ao perigo dos mouros – queixas contra
a decadência da cavalaria;
• a corrupção e os desmandos do clero;
Vi cotefes orpelados
estar mui espantados,
e gentes trosquiados
corriam-nos a redor
tinham-nos mal afincados
que perdiam na cor.
Há outras cantigas em que o trovador, numa critica direta, retrata esse medo dos
cristãos, a descoberto, mostrando a covardia de certos cavaleiros que, ao verem os
mouros, fugiam do campo de batalha como desertores.
22 “... por palavras cobertas que tenham dois entendimentos (sentidos) para que não o entenda
prontamente”. Ou seja, a crítica era feita indiretamente.
23 “... são aquelas que os trovadores fazem mais descobertamente: nelas entram palavras que
querem dizer mal e não têm outro entendimento senão aquele que querem dizer rasteiramente”.
Ou seja, a crítica era feita diretamente.
46
b) Sátira social e moral: Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
• crítica contra as mulheres; satíricas
Repare-se que ele andava bem sem o amor e, de repente, tudo mudou para mal;
antes podia dormir, podia “fazer as prol” (andar à vontade), mas tudo acabou. Perdeu
todo o seu poder, já nada está em suas mãos, “mais lo poder, já non é meu” (mas o
poder já não é meu) – o amor havia lhe pregado uma peça, fê-lo apaixonar-se por
outra senhora (senhor).
Depreende-se que a arte trovadoresca era mais aristocrática. Não podemos nos
esquecer que a cultura era do mundo do clero; os nobres poderiam ter acesso a ela,
mas nunca aos plebeus. Os jograis eram os aedos ou rapsodos do trovador: andavam
47
LITERATURA de terra em terra, por cortes de reis, castelos de fidalgos, conventos abastados, por
PORTUGUESA
ruas e ruelas, praças, feiras e romarias, tocando na cítara ou no violão, cantando e
divulgando a obra dos trovadores. Quando se aventuravam a “trovar” era motivo de
escândalo; eram ridicularizados, insultados, chegando a provocar a ira de seus pa-
trões ou a expulsão da corte.
Da mesma forma, o mundo em desconcerto está expresso nas cantigas que refle-
tem sobre a moral e os costumes da época. Há ironias sobre o fato de dizer a verdade,
ou sobre a pouca sorte dos bons e verdadeiros que são injustiçados, chegando-se à
conclusão de que a sorte favorece quem mente (o “mentireiro”), ou ainda refletem
sobre as mudanças da vida para pior, chegando à conclusão que mais vale morrer,
porque não vê mais prazer em nada. Esse tema será retomado mais tarde pelo poeta
Luís de Camões.
Finalmente, as reflexões e críticas recaíram sobre a nobreza decadente, espe-
cialmente os infanções. Desde os fins do século XII, os trovadores queixavam-se da
transformação social e do empobrecimento da nobreza, em virtude das guerras e das
ostentações exageradas. Os nobres viviam na penúria e muitos não tinham mais o
que comer.
Considerações finais
A maioria dos manuais de história da literatura, geralmente, não trata do perí-
odo poético que vai de 1350 a 1450, a que se convencionou chamar de “Período
Galego-Castelhano”, período de transição, muito limitado, considerado um prolon-
gamento e, ao mesmo tempo, o início da decadência da grande escola trovadoresca
galego-portuguesa.
Após a morte de D. Dinis, o rei trovador, em 1325, a poesia portuguesa arrasta
ainda uma vida confusa, até que se extingue em meados do século XIV. O gênio lite-
rário do povo galego-português abranda e quase termina, exatamente, no momento
em que se afirma a intensa vitalidade da nação portuguesa.
Por que a poesia teria sido “deserdada”, justamente no momento em que adquiri-
ra fortes razões para ficar e continuar?
Explica-se este fato, por três motivos distintos:
• Decadência e fim do mecenatismo dos reis D. Afonso X e D. Dinis – reis
portugueses que mantinham os jograis, segréis e menestréis na Corte. Essa
proteção durou cento e cinqüenta anos; mortos os mecenas, o entusiasmo e o
desejo de competir sofreram uma queda efetiva.
• Mudança de vida comum – Portugal começou a expandir-se e a revelar um
vigoroso espírito mercantil. A arte era palaciana e não condizia com a nova
48
realidade. Portanto, o novo sentido para a vida, voltado para uma realidade Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
concreta não favorecia o trabalho da imaginação. Era a imposição do cálculo satíricas
49
LITERATURA
PORTUGUESA
Referências
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 14. ed. São Paulo: Cultrix, 1977.
50
SPINA, Segismundo. Presença da Literatura Portuguesa: era medieval. 6. ed. São Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
Paulo; Rio de Janeiro: DIFEL, 1961. satíricas
Proposta de Atividade
Para você refletir e testar todas as informações acima, sugerimos os seguintes textos para
exercitar a leitura e análise:
TEXTO 1
Ben sabia eu, mia senhor,
que, pois m’eu de vós partisse,
que nunc’aveeria sabor
de ren, pois vos eu non visse,
porque vós sodes a melhor
dona de que nunca oísse
omen falar,
ca o vosso boõ semelhar
sei que par
nunca lh’ome Proposta
pod’achar. de Atividades e Análises
51
LITERATURA nen farei,
PORTUGUESA
ante ben sei ca moirerei
se non ei
vós, que sempre i amei.
(D. Afonso X -CBN 411)
VOCABULÁRIO: partisse: afastasse; nunc’aveeria sabor/de ren: nunca nada me daria pra-
zer; oísse: ouvisse; omem: homem, alguém; boõ semelhar: beleza; boa aparência; o: pronome
que se refere ao verso seguinte; seede fis: sede certa, sede firme; Paris: Páris – príncipe troiano
que raptou Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, originando a guerra de Tróia (Lê-se
Paris, palavra aguda, para rimar com fis); Tristan: herói de uma lenda céltica (lenda de Tristão
e Isolda) com que se introduziu na literatura um novo tema: a fatalidade da paixão; am: o
mesmo que hão, têm; seeram: serão, existirão; ende: daí; per ren: de modo nenhum; partir:
deixar de; ca: que; moirerei: morrerei; non ei vós: não tenho vós.
TEXTO 2
52
leda: alegre; en ment’avian: tinham no pensamento; enmentavan: recordavam nos seus gor- Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
jeios; tolhestes: tirastes; siian: estavam pousadas; bevian: bebiam. satíricas
TEXTO 3
VOCABULÁRIO: dona fea: dona, senhora feia; louv’, en: louve, elogie no; trobar: trovar,
fazer versos, trovas; mais ora: mas agora; un cantar: uma cantiga; um canto; loarei toda via:
louvarei para sempre, inteiramente; sandia: louca; loaçon: louvação; louvor.
ROTEIRO DE LEITURA:
a) Traduzir os textos para o português atual.
b) Analisar quanto ao talho (a forma, o perfil da cantiga, a metrificação dos versos, as rimas).
c) Quanto ao tema e assunto.
d) Quanto às características das cantigas.
e) Classificar quanto ao assunto, justificar e exemplificar com os versos do texto.
f ) Elaborar um parágrafo conclusivo/interpretativo.
53
LITERATURA
PORTUGUESA
Anotações
54
2 Humanismo:
Gil Vicente
Introdução
“É Gil Vicente o fundador do teatro português?” Esta pergunta dá nome a um dos
capítulos do livro Gil Vicente – o autor e a obra (1982), do francês Paul Teyssier,
estudioso das culturas de língua portuguesa e leitor arguto, especialmente, da obra
vicentina. A questão parece ser, de fato, uma boa forma de iniciarmos nossa aproxima-
ção ao teatro de Gil Vicente.
Costuma-se datar o período da produção literária vicentina de 1502, data da reci-
tação do “Monólogo do Vaqueiro”, até 1536, ano em que se tem notícia da encenação
de sua peça “Floresta de Enganos”. Como se vê, são mais de trinta anos que registram
uma intensa atividade dramatúrgica desse homem de cuja vida pouco se sabe. Teria
sido ourives da Corte antes de dedicar-se à criação, montagem e direção de peças de
teatro, das quais frequentemente participava também como ator. Esteve sempre sob
a proteção direta da família real, a serviço tanto da “Rainha Velha” D. Leonor como,
seguidamente, dos reis D. Manuel I e D. João III. Foi, portanto, um artista da corte. A
maior parte de suas peças foi escrita para circunstâncias festivas ligadas ao ambiente
cortesão: nascimentos e casamentos de príncipes, solenidades litúrgicas, visitas diplo-
máticas. No entanto, o caráter popular é um dos traços mais característicos de suas pe-
ças, como adiante demonstraremos. Esta dualidade – transitar entre a corte e o povo
– é mais uma a nos surpreender quando nos deparamos com a obra deste “homem
entre dois mundos”, como a ele se refere o Prof. Massaud Moisés, destacando, assim,
outra de suas mais notáveis características:
55
LITERATURA É exatamente esse aspecto – o trânsito entre uma visão de mundo que começava a
PORTUGUESA
esmaecer (a medieval, teocêntrica, calcada nos dogmas da fé e pouco afeita a valorizar
a vontade humana e sua capacidade de conhecer e expandir seus horizontes) e uma
nova cosmovisão que aos poucos se afirmava (a renascentista, cuja valorização do ho-
mem e de sua capacidade de pensar, de criar, de fazer será o traço mais característico)
- que vincula Gil Vicente ao que historicamente se convencionou denominar humanis-
mo. As mudanças na mentalidade, na organização social e política das comunidades
e na percepção dos homens sobre seu estar no mundo, a partir de meados do século
XV, irão aos poucos assentar uma tão radical transformação, em todas as esferas da
vida humana, que com elas se inicia uma nova era: a moderna. Gil Vicente aí encontra
terreno fértil para sua expressão artística e para seu acurado senso crítico.
56
se tratava, por exemplo, dos momos1), e, em algumas encenações voltadas ao povo Humanismo: Gil Vicente
– como era o caso das que faziam os grupos ambulantes que se deslocavam em
carroções que se tornavam também o palco -, permitia-se a liberdade de um gestual
que podia beirar o grotesco, provocando o “riso alegre destinado apenas a divertir”
(BAKHTIN, 2008, p. 11)2. Nesse caso, o que faltava, na maior parte das vezes, era
texto, já que tais representações baseavam-se muito mais no que podemos definir
como a encenação – cenário, gestual, canto, dança, figurino -, ficando a palavra em
segundo plano.
Ora, o que Gil Vicente irá fazer é se “aproveitar” de toda essa tradição (as repre-
sentações litúrgicas medievais e as fontes populares), criando peças tanto em torno
de temas sacros como “mundanos” e com um diferencial importantíssimo: textos
escritos para serem encenados. Linguagem e encenação: aquilo que melhor repre-
senta o gênero dramático, e que Gil Vicente inaugura em língua portuguesa, sem
prescindir, entretanto, das manifestações das formas dramáticas que o precederam.
Esta apropriação da tradição irá gerar formas diferentes de composição das pe-
ças. Estruturalmente, podemos pensar em três tendências principais a caracterizar a
produção vicentina – as peças processionais, as de enredo e as híbridas3. É a partir
desta tipologia simples que apresentaremos alguns comentários e exemplos que nos
permitirão uma maior aproximação aos textos de Gil Vicente.
1 “Os momos surgem em Portugal no começo do século XV mas estavam vulgarizados no resto
da Europa [...]. Realizavam-se em ocasiões solenes e acompanhavam justas e torneios, dando
motivo a manifestações grandiosas, com larga exibição de luxo e com os figurantes vestidos de
trajos especiais e mascarados. Os momos eram mais do género dos quadros vivos do que do
teatro, embora certas passagens faladas (a que se chamava ‘breves’) pudessem ser introduzidas
neles.” (TEYSSIER, 1982, p. 33).
2 Para um melhor conhecimento das manifestações da cultura popular na Idade Média, é in-
dispensável a leitura do já consagrado livro de Mikhail Bakhtin Cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Ver, principalmente, a introdução,
intitulada “Apresentação do problema”.
3 A classificação das peças vicentinas é um dos aspectos mais problemáticos levantados pela
crítica. Há uma divisão inicial, proposta já na publicação da Copilaçam (1562) das obras vi-
centinas levada a cabo por seu filho, Luís Vicente, considerada artificial pela crítica, e que separa
as peças em “obras de devação”, comédias, tragicomédias, farsas e obras miúdas. O Prof. Segis-
mundo Spina (1983) propõe a divisão em autos, teatro romanesco, fantasias alegóricas e farsas.
Paul Teyssier, por seu turno, retoma a divisão tripartida proposta pelo próprio Gil Vicente, em
documento datado, provavelmente, de 1522: moralidades, farsas e comédias, considerada por
Teyssier como a mais simples e conveniente, mas que não deixa, evidentemente, de ter pro-
blemas. Sabemos que toda classificação é redutora, e por isso apenas registramos as tentativas
de estabelecer uma tipologia da obra vicentina que nos auxilie a compor uma visão do todo. E
ressaltamos que nossa proposta não é de uma nova classificação: considerando a estrutura das
peças, comentaremos, a título de exemplo, uma de cada modalidade, com intenção didática,
facilitando, pois, o levantamento de alguns dados de sua composição para análise.
57
LITERATURA UMA PROPOSTA DE ABORDAGEM DOS TEXTOS
PORTUGUESA
As peças de enredo estarão aqui representadas por uma das mais conhecidas obras
de Gil Vicente: a “Farsa de Inês Pereira”4. Organizando-se, pois, segundo uma estrutura
regida pela causalidade (há uma sequência de acontecimentos que se desenrolam
segundo a lógica de causa e consequência, pautada na apresentação do problema, do
conflito e do desenlace, etapas que “tramam” o enredo), essa farsa tem ainda como
aspecto importante a caracterizar sua estrutura a oposição determinada pelo próprio
mote que o autor lhe antepõe: “Mais quero asno que me leve que cavalo que me der-
rube”. Assim, após a situação inicial, sucedem-se acontecimentos regidos por essa
estrutura opositiva que estabelece, também, paralelismos, como mais adiante descre-
veremos. Leiamos, então, como primeiro passo para a análise, o início da peça, que
tem Inês em cena:
58
E assim hão de ser logrados5 Humanismo: Gil Vicente
Como se percebe, Inês está inconformada, queixosa de sua situação. O uso de uma
pontuação expressiva (interrogações, exclamações) acentua o tom indignado que a es-
colha do vocabulário revela (coitada, cativa, cansada, encerrada nesta casa; tormento,
enfadamento, etc.). E que situação é esta? Certamente, ela nos ensina um pouco sobre
o modo de vida medieval, no que dizia respeito às moças que não faziam parte da
5 Logrados: empregados (nota da edição utilizada, como todas as seguintes, reproduzidas lite-
ralmente).
6 Desfiados: refere-se aos travesseiros desfiados, cheios de adornos, paramentados.
7 Entenda-se: para os diabos se eu der mais um ponto nesta costura!
8 Isto é: de ficar sempre no mesmo lugar.
59
LITERATURA nobreza: Inês vive praticamente “presa” em casa, “refém” das atividades cotidianas (a
PORTUGUESA
costura, o bordado, os pequenos trabalhos domésticos para ajudar a mãe), tendo raras
oportunidades de convívio social. Por isso Inês se rebela e decide “buscar maneira/dal-
gum outro aviamento”; ou seja, quer mudar o rumo da sua vida, libertando-se da vida
sem graça em vivia. E para isso, curiosamente, decide casar, já que assim entende que
poderá ser “dona do seu nariz”. A mãe tenta dissuadi-la de sua intenção, afirmando,
inclusive, que ela não tem motivo de queixa, já que “não lhe choram os filhos por pão”
e que melhor seria ter paciência e não se apressar para casar, mas Inês está decidida
e, para levar adiante seu intento, terá a ajuda de “casamenteiros”: Lianor Vaz, amiga
da mãe, e os judeus Vidal e Latão, todos esses cômicos personagens atuando, então,
como alcoviteiros.
Inês, no entanto, tem uma condição, uma exigência em relação aos possíveis
pretendentes:
60
seu futuro marido poderia ser pobre e pelado – ou seja, sem dinheiro, já que ele não Humanismo: Gil Vicente
representava exatamente um valor na concepção de status social que move Inês -, des-
de que fosse “herdeiro” do prestígio das maneiras cortesãs: ela deseja o fino cavalheiro
que saiba cantar, dançar, tanger viola e bem expressar-se (ressalte-se, nesse sentido, a
expressão “discreto em falar”). Perceba-se que, em última instância, o conflito acaba
por definir-se como uma questão de linguagem, já que a cultura da corte valorizava a
retórica sedutora, como bem nos mostram, por exemplo, as cantigas de amor. E era
isso que Inês, no fundo, desejava: ser cantada, como as senhoras da corte o eram, no
imaginário que o trovadorismo e a ética cavaleiresca haviam fixado.
Estas mesmas circunstâncias históricas irão determinar o desprezo pela vida cam-
pesina, pela rusticidade e “ignorância” que a caracterizavam, em tudo oposta à “moda”
cortesã. É precisamente esta oposição, estabelecida em traços caricaturescos, que os
dois pretendentes de Inês irão representar, sustentando, já, a dualidade inicial do
mote: asno x cavalo.
Pero Marques, o pretendente que será apresentado por Lianor Vaz (e que tem a pre-
ferência da mãe de Inês, que certamente vê nele o “bom partido” que dará segurança
material à filha), está, assim, em absoluta disjunção em relação ao desejo da moça:
ainda que proprietário de terras, “filho de lavrador rico”, provoca em Inês desprezo e
riso, por não partilhar dos indicadores de civilidade que caracterizam a vida na corte:
Pero não sabe como sentar-se numa cadeira, sugerindo que este tão prosaico móvel
não faz parte do ambiente em que vive; traz para Inês peras frescas como presente,
mas “transporta-as” no fundo do chapéu – o que provoca a fala claramente irônica da
protagonista (“Fresco vinha o presente/com folhinhas borrifadas ...”); mais que tudo
isso, no entanto, é a linguagem utilizada por Pero na carta em que se apresenta a
Inês o índice mais evidente da disjunção referida – daí Inês divertir-se com ela e, por
conseguinte, rir-se de quem a escreveu, o que é marcado no texto pela expressão “que
inda eu sou contente dele”:
61
LITERATURA E de mim também assi,
PORTUGUESA
Ainda que eu vos vi,
Estoutro dia de folgar,
E não quisestes bailar
Nem cantar presente mi...
Na boda de seu avô,
Ou onde me viu ora ele?
Lianor Vaz, este é ele?
Lede a carta sem dó,
Que inda eu sou contente dele.”
9 Escudeiro era o homem das armas que auxiliava os cavaleiros fidalgos; estava, pois, na base da
hierarquia cavaleiresca, numa condição, portanto, subalterna. Por isso, neles, a decadência da
instituição cavaleiresca é mais visível, o que, no caso da peça em estudo, “justificará” que Brás da
Mata se torne um “caça-dotes”, interessado em arranjar um casamento que o salve da penúria.
10 Vidal e Latão são a caricatura dos judeus hábeis no comércio, sugerindo, na peça em estudo,
uma “mercantilização” das relações amorosas na incipiente sociedade capitalista, já que estão
vivamente interessados no pagamento que receberão pelos “serviços prestados”.
62
Que amais a discrição Humanismo: Gil Vicente
O desfecho da “Farsa de Inês Pereira” é bastante conhecido: Inês casa-se com Brás
da Mata, que rapidamente se revela um marido nada galante: autoritário e presunçoso.
Prende Inês em casa, sob a vigilância do moço que o servia, e vai para a guerra, onde
morre covardemente; com a viuvez, Inês finalmente vê-se livre, e, “caindo na real”,
casa-se com Pero Marques. Faz dele, finalmente, o asno que a carrega, não só pelo fato
de o marido mostrar-se humildemente sujeito a todas as vontades da esposa, mas, lite-
ralmente, por Inês fazê-lo carregá-la às costas na cena final da peça, em que Pero, sem
o saber, está, ademais, levando Inês para um encontro amoroso com um falso ermitão
que a havia cortejado tempos antes. O mote está, assim, perfeitamente glosado.
É importante, ainda, que ressaltemos o caráter irônico do texto, provocador da
reviravolta do enredo e determinante da estrutura opositiva da peça, já que a ironia
põe em evidência a ambiguidade (e a alternância) entre o ser e o parecer: Brás da Mata
parecia o marido ideal; no entanto, a cena mesma que o introduz na peça mostra,
especialmente pelo diálogo que tem com o moço (seu criado) que o acompanhava, o
caráter dissimulado de suas ações: “E se me vires mentir,/Gabando-me de privado11,/
Está tu dissimulado,/Ou sai-te lá fora a rir”. Este “falseamento”, inclusive do seu cará-
ter, ficará explicitado na sequência dos eventos. A linguagem, portanto, nesse caso,
foi enganadora. Paralelamente, temos o outro pólo da oposição: Pero Marques, que
parecia estar muito distante do desejo de Inês, é, de fato, aquele que irá lhe dar a
liberdade almejada, colocando-se a serviço dela – como nas melhores demonstrações
da cortesia amorosa, aqui tratada em tom abertamente satírico.
Observe-se, por fim, como a “Farsa de Inês Pereira” confirma estar Gil Vicente
entre dois mundos, já que, comicamente, a peça metaforiza a passagem de uma
determinada ordem social a outra (e o dramaturgo não parece ser condescendente
com qualquer delas...).
11 Privado do Rei, nesse contexto; ou seja, aquele que priva (=convive intimamente) com ele –
portanto, que é familiar à corte.
63
LITERATURA As peças processionais12 serão aqui representadas pela “Romagem de Agravados” e
PORTUGUESA
incluem-se nesse tipo de estrutura dramática também os muito conhecidos Autos das
Barcas. Constituem-se de pequenas cenas, com poucos personagens em cada uma de-
las, apresentadas numa determinada sequência (que, entretanto, não é obrigatória13,
já que não há uma progressão dramática definida por relações de causa e consequên-
cia – ou seja, não há um enredo) e unidas por um único tema, que funciona como um
fio condutor de situações diversas. Temos, portanto, uma unidade na diversidade,
sendo que todos os quadros, na verdade, reiteram uma mesma idéia, rebuscada, re(a)
presentada em diferentes circunstâncias. É o caso da situação do Juízo Final nos autos
das barcas, que promovem uma “revisão de vida” dos recém-falecidos e a determina-
ção de sua salvação ou condenação, de acordo com um código de valores bastante
rigoroso, fundado na moral cristã, e é também o caso da peça que iremos analisar, a
qual nos parece, entretanto, mais complexa no que diz respeito à ideia reiterada e ao
sentido que lhe podemos atribuir.
Na “Romagem de Agravados” apresentam-se sete pares de agravados (que significa
aqueles que sofreram uma injustiça), os quais estão queixosos, descontentes com sua
situação e buscam, por isso, uma reparação, uma mudança que, de alguma maneira,
possa compensar o agravo sofrido. O primeiro par que se apresenta, formado pelo
camponês14 João Mortinheira e por seu filho Bastião, caracteriza muito bem a ideia que
será reiterada em todos os quadros seguintes: ele se queixa de Deus, da Providência
Divina, já que, como lavrador que é, depende da ajuda da Natureza para poder colher
o resultado de seu trabalho. E a injustiça está feita porque, quando a plantação pre-
cisa de chuva, ela não vem; e quando ela é desnecessária, nada a evita: “Que chove
quando não quero,/ e faz um sol das estrelas/quando chuva alguma espero.// Ora alaga
o semeado,/ora seca quando aí há,/ora venta sem recado,/ora neva e mata o gado,/e
Ele tanto se lhe dá.” Por isso, sua devoção está em crise (já que Deus não parece se
importar com sua desventura) e, desesperado, pensa em “negociar com Deus” fazendo
seu filho entrar para o seminário, pois assim ele terá o sustento assegurado e Deus
terá remediado a injustiça de que o pai foi vítima. A “lógica” dos argumentos apresen-
tados pelo lavrador é claramente cômica, e esse traço fica ainda mais evidente quando
12 O termo vem de procissão, no sentido de uma série de pessoas que seguem umas atrás das
outras. Como se verá, é nesse sentido de uma sequência de cenas que o termo será utilizado para
caracterizar um tipo de estrutura dramática bastante comum no conjunto da obra vicentina.
13 Isto significa que, por exemplo, pode ser alterada a ordem das cenas, sem prejuízo para a
compreensão do sentido da peça.
14 Na peça, chamado de vilão, que, naquele contexto, significava o que vivia na “vila”, no cam-
po, na aldeia – fora da cidade, portanto.
64
Bastião é então submetido a um teste por Frei Paço (de quem adiante trataremos mais Humanismo: Gil Vicente
detidamente) para verificar se está apto a ingressar na vida religiosa. Frei Paço propõe
que Bastião leia alguns versinhos os quais, na verdade, irão “avaliar” se o rapaz sabe
latim. Ironicamente, esta se apresenta como a única condição para a dedicação ao
sacerdócio. Como o garoto não consegue dizer nem Amém (que pronuncia “Abem”),
Frei Paço dá o veredicto: ele nunca conseguirá aprender – e, assim, não haverá chance
de mudar a sua condição.
Esta mesma ideia – as coisas devem ficar como estão – é reiterada mais ou menos
explicitamente em todas as demais cenas, ainda que mudem o motivo e o destinatário
da queixa (há, por exemplo, duas vendedoras de peixe, Marta do Prado e Branca do
Rego, que se queixam de terem sido enganadas por um falso fidalgo que se apresen-
tou como pretendente à sobrinha delas apenas para roubar-lhe o dote, situação bem
próxima à que é desenvolvida na “Farsa de Inês Pereira”, como vimos). A palavra
final, dada, na maioria das vezes, por Frei Paço, mas reiterada também por outros per-
sonagens da peça, direciona-se a uma insistência na impropriedade da queixa, já que
o melhor é “deixar as coisas ficarem como estão”, o que pode ser comprovado, por
exemplo, no final da cena em que duas freiras, Domicília e Dorósia, queixam-se dos ri-
gores do claustro, já que não podem falar nem com a família. Neste caso, o “veredicto”
é dado pelo personagem Frei Narciso: “Pois eu, senhoras, me fundo/ que quanto mais
encerradas15,/ tanto estais mais abrigadas/das tempestades do mundo.”
Se nos parece claro, assim, que a ideia central da peça, insistentemente rebuscada
na diversidade das situações apresentadas, funda-se na defesa de um determinado es-
tado das coisas16, na manutenção de uma ordem dentro da sociedade que prima pelo
conformismo e pela fixidez das posições ocupadas por cada indivíduo, nas diversas
funções que desempenha (já que aparecem também como queixosos fidalgos, padres,
pastores – ou seja, representantes de diversos estratos sociais), a presença em todas as
cenas, como “juiz”, de Frei Paço parece tornar mais complexa e um tanto suspeita esta
“clareza” de intenções plasmadas pelo texto de Gil Vicente.
Isto porque Frei Paço é um personagem ambíguo, em muitos sentidos: em primei-
ro lugar, porque seu nome alegoriza a união dos poderes eclesiásticos e seculares, da
Igreja e da Monarquia, já que é Frei (portanto, um religioso), mas é Paço (o termo pode
referir-se à corte e aos cortesãos, na acepção mais adequada a este contexto, embora
nomeie também – e isso é relevante – o palácio real ou episcopal). Entretanto, mais
15 enclausuradas.
16 “Agravos que não têm cura/procurai de os esquecer;/ que impossível é vencer/batalha contra
ventura/quem ventura não tiver”.
65
LITERATURA ambíguo ainda será ele por apresentar um comportamento pouco convencional no
PORTUGUESA
que diz respeito ao que se espera de um religioso: sua conduta é abertamente folgazã,
e ele ridiculariza sem pudores as convenções da instituição a que se filia. Apresenta-se,
por isso, como um dúplice paródico17, já que promove o rebaixamento, pelo riso, do
elemento de culto (o dogma religioso) e da espiritualidade a ele associada. Leiamos a
cena inicial da peça, em que ele se apresenta:
17 Segundo Bakhtin (2008), trata-se de um dos elementos mais característicos das manifesta-
ções da cultura popular.
66
Falo, mui doce cortês, Humanismo: Gil Vicente
67
LITERATURA Finalmente, apresentaremos breve caracterização de uma peça de estrutura mul-
PORTUGUESA
tiforme (ou híbrida, como inicialmente denominamos esse tipo de composição dra-
mática): o “Auto da Lusitânia”. Podemos considerar que esta peça compõe-se de
“núcleos” de ação que se vão encaixando na montagem de uma estrutura complexa
que justapõe:
a) a representação realista, em tom satírico, de uma situação cotidiana, caracterís-
tica da farsa (neste caso, a ação envolve uma família de judeus comerciantes: Le-
diça – uma jovem esperta e com excelente domínio dos “jogos da linguagem” -,
seu pai, sua mãe, dois irmãos pequenos e um jovem fidalgo que a vem cortejar);
b) um entreato, de caráter metalinguístico, em que, inicialmente, o pai de Lediça
faz referência direta à autoria da peça, já que a Gil Vicente será solicitado, por
ele e por seu amigo Jacó, que escreva um “auto novo” em homenagem aos
membros da família real:
68
Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que Humanismo: Gil Vicente
perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:
69
LITERATURA e Ninguém ser repreendido.
PORTUGUESA
Ninguém: Buscas mais, amigo meu?
Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.
Ninguém: A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
Belzebu: Escreve lá outra sorte.
Dinato: Que sorte?
Belzebu: Muito garrida:
Todo o Mundo busca a vida
e Ninguém conhece a morte.
Todo o Mundo: E mais queria o paraíso,
sem mo Ninguém estorvar.
Ninguém: E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
Belzebu: Escreve com muito aviso.
Dinato: Que escreverei?
Belzebu: Escreve
que Todo o Mundo quer paraíso
e Ninguém paga o que deve.
Todo o Mundo: Folgo muito d’enganar,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém: Eu sempre verdade digo
em nunca me desviar.
Belzebu: Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.
Dinato: Quê?
Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso,
E Ninguém diz a verdade.
Ninguém: Que mais buscas?
Todo o Mundo: Lisonjear.
Ninguém: Eu sou todo desengano.
Belzebu: Escreve, ande lá, mano.
Dinato: Que me mandas assentar?
Belzebu: Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.
70
O que se quer colocar em relevo é a estrutura dramática sofisticada, inteligente- Humanismo: Gil Vicente
mente trabalhada desta peça: nela, Gil Vicente lança mão de variados recursos estilísti-
cos e níveis de linguagem, adequados a cada situação dramática apresentada; transita
com grande familiaridade entre as referências eruditas e a cultura popular; faz rir de
situações cotidianas, encanta com a recriação mitológica e moraliza com a sátira feroz
da alegoria transcrita. Revela-se, enfim, um dramaturgo com inegável potencial criativo
e “domínio de cena”.
Sem submeter-se às regras do teatro clássico, Gil Vicente erigiu uma dramaturgia
que aproveitou toda a variedade de sugestões anteriores ou contemporâneas do teatro
medieval e especialmente do peninsular; legou-nos um retrato vivo da sociedade de
seu tempo, ao explorar temas e motivos do cotidiano – as “bagatelas da vida caseira”;
levou adiante sua intenção de, pela arte, corrigir a sociedade; e, para além disso tudo,
abriu com chave de ouro as portas de Portugal para o Renascimento, garantindo ainda,
à posteridade, diversão, reflexão e personagens inesquecíveis.
Referências
CEIA, C (Coord.) E-Dicionário de termos literários. [S. l.]: Carlos Ceia Ed., 2009.
Disponível em: <http://www.fcsh.unl.pt/edtl>. Acesso em: 9 dez. 2009.
SPINA, S (Ed.). Obras-primas do teatro vicentino. 4. ed. São Paulo: Difel, 1983.
71
LITERATURA
PORTUGUESA
Proposta de Atividade
Os personagens de Gil Vicente podem ser considerados tipos, nessa acepção? Apresente
uma discussão (com argumentos e exemplos) sobre a questão proposta.
Anotações
72
3 Classicismo:
Camões lírico e
épico
Este, de sua vida e sua cruz
uma canção eterna solta aos ares.
Luís de ouro vazando intensa luz
Por sobre as ondas altas dos vocábulos.
Carlos Drummond de Andrade
73
LITERATURA das causas e consequência do espírito renascentista. Contribuindo para a abertura de
PORTUGUESA
novos horizontes ao homem europeu, os descobrimentos determinaram um conjunto
de transformações:
• Econômicas: permitiram o comércio em larga escala, uma abundância da mo-
eda, a inflação, o monopólio da Coroa, a cidade de Lisboa como maior centro
comercial e político e a decadência da agricultura;
• Sociais: favoreceram o desenvolvimento da burguesia, que se opõe à nobreza;
emigração para a cidade e para o ultramar, além do luxo em todas as classes,
levando-as à desmoralização;
• Culturais: beneficiaram o desenvolvimento cultural da burguesia; o aumento de
estudantes portugueses no estrangeiro e da literatura sobre temas ultramarinos.
1 Na batalha de Alcácer Quibir contra o exército árabe, Portugal perde o rei D. Sebastião, fican-
do sob o domínio da Espanha, a partir de 1580.
74
uma ressurreição das formas greco-latinas, que nunca morreram. Classicismo: Camões
lírico e épico
• Humanismo – parte do estudo da cultura antiga, valorizando tudo o que é
humano e exalta os valores do Homem como centro do Universo.
• Classicismo – ganhou corpo no início do Renascimento e ficou definitivamen-
te estruturado na segunda metade do século XVI, constituindo-se numa esté-
tica que estabelece um rigoroso sistema de regras próprias dos vários gêneros
literários: o épico (Os Lusíadas, por exemplo); o lírico (as formas fixas como
o soneto e o verso decassílabo, a canção, a ode, a elegia, entre outras). As suas
principais características são: a) exaltação do Homem em contraste com o teo-
centrismo medieval; b) predomínio da Razão sobre o sentimento, evitando-se
os vôos da imaginação e da fantasia; c) imitação da Natureza pela Arte, sendo a
paisagem sempre amena (locus amoenus), idealizada, convencional e artificial,
excluindo o acidental, objetivando sempre refletir o eterno, essencial; d) imita-
ção dos autores greco-latinos nos temas e na utilização da mitologia.
75
LITERATURA • Textos poéticos que não sofreram qualquer influência estranha, sendo o resulta-
PORTUGUESA
do das suas reações emotivas e da sua experiência humana. Podem-se observar,
assim, no lirismo camoniano, faces (ou forças) intimamente relacionadas com
a experiência do homem e do artista. São elas: a) força musical expressa em
redondilhas, nas quais predominam a leveza e a graça, a musicalidade e o ritmo
de uma vida despreocupada; b) força intelectual presente na poesia expressa
em decassílabo, quando o poeta reconhece que a vida amorosa não está isenta
de contrariedades e decepções e procura dominar a dor através de uma teoria
sobre o amor com resignação. Ressalta-se, assim, a influência de Platão e de
Petrarca (“fase petrarquista”).
Para Platão havia dois mundos: o mundo sensível, no qual habitamos e o mundo
inteligível, das ideias puras e de suprema perfeição, de que o mundo sensível não
passava de mero reflexo ou sombra. Este mundo inteligível está resumido na Ideia Su-
prema, na Suprema Beleza, na Suprema Bondade e Justiça. A alma participa na paixão
mais que o corpo; assim, devemos amar a beleza espiritual mais do que a beleza geral.
A teoria platônica traduzia, em termos filosóficos, o pessimismo cristão sobre a
efemeridade da vida e a fugacidade de todos os bens materiais, considerado “vaidade”
(vanitas, vanitatum), conceito que aviva a eternidade dos bens espirituais. Tal filoso-
fia era tão parecida com a tradição cristã e tratada com muita expressividade, que os
poetas não tinham outra opção a não ser transplantar para sua poesia a essência da
doutrina platônica.
Platão admitia que o homem fora criado no mundo inteligível, elemento da Ideia
Suprema, espécie de beleza geral que teríamos mesmo antes de nascer. Mas desse
conhecimento conservava-se apenas as reminiscências, que diferem da memória,
pois esta pressupõe um mundo sensível, relativo, cronológico, espacial e temporal.
Tais reminiscências contribuíram para a insatisfação humana, visto serem uma ligeira
“recordação” subconsciente de um mundo melhor. Já no mundo sensível, na beleza
sensorial ou corpórea, no encanto da Natureza e na beleza física e moral da mulher
amada (do Ser), não devia ver-se mais que um reflexo, uma sombra da Beleza Geral,
fazendo com que um degrau da beleza divina para que, contemplando as realidades
objetivas, pudéssemos nos aproximar da Beleza Suprema.
A teoria platônica do amor estava na base da poesia provençal, nas cantigas de
amor, já estudadas. Lembremos que a Senhora era idealizada, inacessível. Na poesia de
Petrarca a mulher divinizada era considerada um raio de eterna luz; um raio de divina
formosura. Camões, herdeiro das tradições medievais, segue fielmente Petrarca, apre-
sentando-nos composições em que se observa a influência da concepção platônica do
76
Amor e da Mulher. Como exemplo, podemos citar o soneto Transforma-se o amador Classicismo: Camões
lírico e épico
na cousa amada; a redondilha Endechas a Bárbara Escrava e a composição Babel e
Sião. Podemos, assim, resumir a alegoria do platonismo:
Reminiscências
Nas redondilhas de Sôbolos rios, que se baseia no Salmo 136, de Davi, no qual os
judeus desterrados da Babilônia choram o tempo em que viveram felizes em Jerusalém
ou Sião, a concepção platônica é evidente. Camões chega a usar símbolos platôni-
cos como as palavras: reminiscências, beleza particular, beleza geral, mundo visível,
mundo inteligível para exprimir suas próprias crenças. Entretanto, o poeta afasta-se
do pensamento de Platão quando considera que não é pela simples contemplação
intelectual que o homem se eleva para o mundo inteligível, isto é, eleva-se para o Céu
cristão, mas por virtude da Graça e por impulso que vem de Deus.
Apontadas as composições líricas de Camões que, de qualquer maneira, receberam
influências filosóficas, podemos nos referir também às que foram compostas a partir
da reação e da emoção perante a vida. Ou seja, de acordo com a experiência vivida
pelo poeta: seus sentimentos religiosos, sua visão de mundo, a partir das mudanças.
Esta parte do lirismo camoniano responderia às questões:
• Como viveu o poeta, na realidade, o amor que platonicamente cantou em versos?
• Como se autobiografou?
• Como exprime os seus sentimentos religiosos?
• Como analisa os contrastes do mundo?
O amor e a mulher
Enquanto Petrarca teve uma única amada na vida, Laura, cuja verdadeira beleza
transcende a beleza física, na vida de Camões muitas mulheres foram presentes e, às
vezes, opõem-se à mulher idealizada e ao modelo de beleza petrarquista. Justifica-se o
amor ideal de concepção petrarquista (platônico) só existe em Camões como ponto
de partida para o estudo de sua obra lírica.
No soneto Busque Amor novas artes, novo engenho, escrito em 1595, e na canção
77
LITERATURA Manda-me Amor que cante docemente, do mesmo ano, percebe-se uma profunda
PORTUGUESA
experiência vivida do amor sensual. Entretanto, convém observar que, nesses senti-
mentos pessoais e apaixonados, há sempre uma espécie de timidez cristã que envolve
todo o texto. Daí a conclusão de que o poeta, mesmo tendo vivido várias paixões, não
deixou de notar o contraste existente entre o desejo carnal e o ideal do amor desinte-
ressado, que permanece apenas no pensamento.
O autobiografismo
Ocorre no momento em que o poeta nos coloca diante de seus erros cometidos e
das perseguições que sofreu. Esse lirismo de confissão, de arrependimento e de auto-
análise também faz parte do lirismo camoniano, podendo ser estudado nos textos:
Sôbolos rios e nos sonetos Erros meus, má fortuna, Amor ardente, entre outros.
O sentimento religioso
Esse sentimento baseia-se na fé cristã e na vida espiritual manifestadas e expres-
sas na poesia de Camões. Considerando o ambiente social da sua formação religiosa,
numa época em que a Inquisição havia sido criada em Portugal, imperando com todos
os rigores, fica evidente que o sentimento religioso deveria ser expresso em sua poesia
lírica. São diversos os textos em que o poeta exprime a sua crença religiosa, como, por
exemplo, no soneto Verdade, Amor, Razão e Merecimento.
O desconcerto do mundo
O problema do desconcerto do mundo é uma constante na lírica camoniana. O
poeta admite sempre a contradição entre o ser e o dever ser. Para ele o desconcerto
constitui-se em: a) distribuição do prêmio e do castigo, independentemente do mere-
cimento individual; b) a busca dos homens pelos bens que morte reduz a nada; c) o
absurdo de esperar o contentamento, porque essa sensação não passa de uma ilusão.
O texto exemplificador dessas ideias é Esparsa (Os bons vi sempre passar/ no mundo
graves tormentos; / e para mais m’ espantar,/ os maus vi sempre nadar/ em mar de
contentamentos.)
78
Um despejo quieto e vergonhoso; Classicismo: Camões
lírico e épico
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;
3 Movimento literário em torno de a figura tutelar de Petrarca e da sua obra Cancioneiro, sur-
gido na Itália do século XV, estendendo-se por toda Europa e à Península Ibérica. Temática
amorosa reforçada pela visão neoplatônica, em que o sujeito lírico sente-se dignificado ao servir
a sua dama. Debate-se com o conflito íntimo entre razão e desejo; gozo e dor; vida e morte.
4 Corrente filosófica introduzida por Plotino, Santo Agostinho, Fílon, entre outros, que visava
cristianizar o pensamento de Platão. Presente nas cantigas de amor e na obra lírica de Camões.
A beleza feminina constitui um arquétipo de beleza divina, espelho do mundo das Ideias – via
de acesso à união mística. O amor humano é um processo libertador do desejo de posse (Eros)
em ordem à supremacia do afeto espiritual (Ágape).
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LITERATURA poética, que só vai terminar no último terceto, chave de ouro e síntese do so-
PORTUGUESA
neto, constituindo um único período sintático.
• A 1ª quadra, embora esteja evocando os elementos físicos do retrato (olhar,
riso e rosto), não deixa de salientar a coloração predominantemente psíquica
que se estende por todo o soneto. O sentimento de doçura que se desprende
dessa caracterização, ainda que acentuado por uma nota de tristeza, tira o
brilho da artificialidade aristocrática (“sem ver de quê”; “um riso brando e
honesto”; “quase forçado; um doce e humilde gesto”; “de qualquer alegria
duvidoso”)
• As duas estrofes seguintes apresentam uma descrição psicológica e assinalam
a descrição exterior: despejo; repouso; ar; como a íntima essência: bonda-
de; medo; sofrimento, qualidades pertencentes à figura feminina idealizada.
Há, porém, um profundo contraste expresso pela antítese: despejo versus
repouso; “encolhido ousar” (oxímoro) e “medo sem ter culpa” (paradoxo),
representando o dinamismo da ação e a modéstia da timidez, a ousadia e a
serenidade.
• É esta complexa caracterização que fascina o artista poeta-pintor, a ponto de
não se limitar à acumulação de adjetivos de conotação predominantemente
positiva: “quieto e vergonhoso”; “gravíssimo e modesto”; “limpo e gracioso”;
“longo e obediente” e não temer o artifício da hipérbole “pura bondade”.
• A figura apresentada é um ser completo, equilibrado, na harmonia de contrá-
rios: calma e serena sem ser passiva; corajosa sem ser masculina; bondosa sem
ser tola; sofredora sem ser masoquista: “um despejo quieto e vergonhoso, /
um repouso gravíssimo e modesto, / uma pura bondade, manifesto/ indício da
alma, limpo e gracioso; um encolhido ousar, uma brandura; / um medo sem ter
culpa; um ar sereno; / um longo e obediente sofrimento”.
• Essa figura tão complexa é denominada de “celeste formosura”. Tal fascínio é
metaforicamente designado como “mágico veneno”, à luz intertextual da feiti-
ceira Circe cuja poção, transformando os companheiros de Ulisses em porcos,
permitiu a sua retenção na Ilha, embaraçando a realização do seu projeto de
regresso à Ítaca.
• Tal metamorfose amorosa operada pode perturbar o sujeito lírico, mas a sua
proveniência não é meramente humana. É, pois, a idealização clássica da “ce-
leste fermosura” que o poeta, apresenta como arquétipo da mulher quinhen-
tista, para não dizer universal: “esta foi a celeste fermosura que/ da minha
Circe, e o mágico veneno/ que pôde transformar meu pensamento”.
80
OS LUSÍADAS – Considerações gerais Classicismo: Camões
lírico e épico
A publicação de Os Lusíadas deu-se em 1572, momento em que o império por-
tuguês já mostrava sinais de decadência e crise política. O poema é considerado
uma “epopéia de imitação” pela crítica especializada. Epopéia, porque se trata da
narração em verso de um fato histórico grandioso que, pela sua transcendência,
interessa a toda a humanidade. E de imitação, porque Camões seguiu os modelos
das chamadas epopéias primitivas: a Ilíada e a Odisséia, de Homero e a Eneida,
de Virgílio. Como poema épico, canta a glória do povo português (“o peito ilustre
lusitano”), destacando o seu período mais glorioso – a época dos Descobrimentos
– representada pela viagem de Vasco da Gama em 1498.
A necessidade do surgimento de uma epopéia portuguesa que glorificasse os fei-
tos heróicos do povo vinha sendo solicitada, desde a publicação do Cancioneiro Ge-
ral de Garcia de Resende, no Prólogo, proclamando a urgência de um “novo canto/
heróico e generoso, / nunca ouvido dos nossos bons passados”, que imortalizasse
os “altos reis, altos feitos”. Portanto, Os Lusíadas representam a resposta aos apelos
dos poetas anteriores a Camões, adaptando com originalidade a estrutura clássica da
epopéia à narração da viagem do Gama e inserindo a História de Portugal anterior
e posterior à viagem.
Outros temas do Humanismo renascentista também são visíveis no poema. Ca-
mões não canta só as glórias e os feitos heróicos (o ideal cavaleiresco), como tam-
bém dá voz àqueles que, no seu tempo, opunham-se à aventura dos descobrimen-
tos. Podemos exemplificar com a figura do Velho do Restelo, a voz que condenava a
expansão no Oriente e que representava a opinião dos humanistas e, possivelmente,
também a voz de Camões. Essa lição recebeu-a da Antiguidade: “foi a ambição que
perdeu os homens, desterrando-os da Idade do Ouro para a do Ferro; e é a mesma
ambição que arrastava os portugueses para a perdição no Oriente”.
Existe, portanto, uma contradição entre as posições humanistas do Velho do Res-
telo e o ideal cavaleiresco de conquista, apontado nos acontecimentos históricos se-
lecionados (as batalhas) e no Canto X, quando exorta D. Sebastião na guerra da Áfri-
ca. Talvez, desta maneira, Camões tenha querido afirmar o seu próprio pensamento
humanista como independente da mentalidade guerreira inserida no contexto do
poema. O crítico António Saraiva (1972, p. 156-160) afirma: “O Velho do Restelo é
o próprio Camões erguendo-se acima do encadeamento histórico e medindo à luz
dos valores do humanismo europeu os acontecimentos pelos quais se apaixonou
(...); a sua voz se faz ouvir também nos conselhos e ensinamentos que dá ao Rei e
seus ministros, não poupando censuras àqueles que se colocavam contrários ao bem
público e pensavam apenas no seu interesse particular”.
81
LITERATURA A ESTRUTURA DO POEMA
PORTUGUESA
Obedecendo à estrutura renascentista, segundo Jorge de Sena (A Estrutura d’Os
Lusíadas), os dez cantos constituem dois ciclos épicos. O primeiro ciclo épico é
formado do Canto I ao Canto V: Introdução (Proposição, Invocação e Dedicató-
ria); viagem de Moçambique a Melinde (Cantos I e II); História de Portugal (Cantos
III e IV ) e a viagem de Belém a Melinde (Canto V ). O segundo ciclo épico é forma-
do do Canto VI ao Canto X: viagem de Melinde a Calecute (Canto VI); permanência
na Índia (Cantos VII e VIII); regresso e parada na Ilha dos Amores (Cantos IX e X)
e conclusão – apelo a D. Sebastião (Canto X). Portanto, o Canto V constitui-se uma
espécie de “ponte” entre o passado (a história de Portugal anterior à viagem de
1497-1498) e o futuro dos portugueses no Oriente. Já o Canto X congrega os quatro
planos: a viagem, a História de Portugal, transfigurada nas profecias da ninfa Sirena
e de Tétis, os deuses e as considerações pessoais do poeta e funciona, até à estrofe
144, como uma espécie de síntese otimista. A partir da estrofe 145, o pessimismo
toma conta do poeta, por ver que vem “cantar a gente surda e endurecida”. Camões
retoma o ânimo e dirige uma exortação a D. Sebastião em que chama a atenção para
a necessidade de promover e premiar a virtude e o heroísmo dos seus súditos. Ter-
mina na estrofe 156, por se manifestar disposto a retomar a pena e glorificar o ideal
de heroísmo de D. Sebastião.
Quanto à ação (o assunto desenvolvido na obra) trata da descoberta do cami-
nho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, como acontecimento culminante da
História de Portugal à data da composição da obra e definidor do perfil do herói “o
peito ilustre lusitano”, isto é, o povo português. A narrativa é íntegra (introdução,
desenvolvimento e conclusão) e a verdade consiste no tratamento de um assunto
real, ou pelo menos verossímil. A personagem é o povo português, um herói cole-
tivo, que na obra é simbolicamente representado por Vasco da Gama.
Há uma variedade de episódios (pequenas ações reais ou imaginárias), cuja
função é embelezar a ação e quebrar a monotonia de uma narração continuada, mas
sempre sem prejudicar a unidade, através do estabelecimento hábil de uma relação
com o acontecimento ou a figura de que a ação se ocupa em cada momento. São
variados os tipos de episódios que encontramos no texto:
• Mitológicos - Concílio dos deuses no Olimpo (Canto I) e Concílio dos deuses
marinhos (Canto VI);
• Bélicos – batalha de Ourique (III), batalha do Salado (III) e a batalha de
Aljubarrota (IV );
• Líricos – a Formosíssima Maria (III); a morte de Inês de Castro (III) e a des-
pedida do Restelo (IV );
82
• Naturalistas – a descoberta do Cruzeiro do Sul ( V ); o Fogo de Santelmo ( V ), Classicismo: Camões
lírico e épico
a Tromba Marítima e o escorbuto ( V ) e a Tempestade ( VI);
• Simbólicos – o sonho profético de D. Manuel e a figura do Velho do Restelo
(IV ); o Gigante Adamastor ( V ) e a Ilha dos Amores (IX e X);
• Humorístico ou herói-cômico - a figura de Fernão Veloso ( V );
• Cavaleiresco – a referência aos Doze da Inglaterra ( VI).
Por outro lado, Marte (que havia tido uma ligação amorosa com Vênus de que
nascera Cupido) não deixaria de tomar uma atitude dura e favorável, por ser o
deus da guerra e pelas seguintes razões: nutria um amor antigo por Vênus e era
de opinião que os atos heróicos do povo português o dignificavam “a gente forte o
merecia”. Já Júpiter, no seu discurso de abertura no Concílio dos deuses no Olim-
po, manifesta-se impressionado pelos muitos feitos heróicos praticados pelo povo
português, desde longa data e sabe que está prometido o sucesso: “Fado eterno/
Cuja alta lei não pode ser quebrada”. Prevê que hão de dominar o Oriente, sabe que
navegam no Índico e é de parecer que lhes seja “mostrada a nova terra” (a Índia).
Contrariamente, Baco se opõe a essa viagem, como o vilão da história. Ele persegue
os portugueses e tenta impedir a todo custo que a viagem de Vasco da Gama tenha
sucesso. Segundo a tradição mitológica, Baco, deus do vinho e da inspiração, era
festejado com procissões, dominava a Índia e temia que, se os portugueses conquis-
tassem o Oriente, ele seria esquecido. Por isso não concorda com Júpiter quando
declara proteger os marinheiros lusos. Também simboliza os obstáculos naturais
que uma viagem longa poderia ter.
N’Os Lusíadas o maravilhoso divide-se em:
83
LITERATURA • Maravilhoso pagão – intervenção de numerosas divindades da mitologia
PORTUGUESA
pagã;
• Maravilhoso cristão – o recurso ao Deus dos cristãos (a “Divina Guarda, An-
gélica, Celeste”), sobretudo nas súplicas do Gama em momentos de aflição e
em algumas das considerações pessoais do poeta. Há momentos em que tanto
a chamada Divina Providência (maravilhoso cristão) como os deuses pagãos
intervêm na ação, podendo considerar-se, nesse caso, a existência de um ma-
ravilhoso misto. Devemos considerar, ainda, como em qualquer narrativa,
a existência de uma estrutura interna (as três tradicionais partes lógicas):
introdução, desenvolvimento e conclusão:
DESENVOLVIMENTO DA
INTRODUÇÃO CONCLUSÃO
AÇÃO
(I,1-18) (X, 145-156)
(narração: I,19 – X,144)
Sobre a narração, a ação principal, vale dizer que Camões, à maneira clássica,
utilizou o recurso in media res, isto é, a narração se inicia na estância 19 do Canto
I, quando já os marinheiros navegavam em pleno Oceano Índico: “Já no largo Ocea-
no navegavam,/ As inquietas ondas apartando;/Os ventos brandamente respiravam,/
Das naus as velas côncavas inchando”. Quanto ao processo narrativo, são vários os
84
narradores e diferentes os pontos-de-vista. Camões é o que, habitualmente, se con- Classicismo: Camões
lírico e épico
sidera o primeiro narrador da epopéia – o narrador heterodiegético, conduzindo
a narrativa nos Cantos I, II,VI, VII, VIII (desde a estância 43 até o final do canto), IX
e X. Por outro lado, Vasco da Gama assume-se como narrador homodiegético em
grande parte do seu discurso perante o rei de Melinde (III, 3 e IV, 76). Em vários
momentos, Camões dá a palavra às personagens, como Vênus, o Velho do Restelo,
Inês de Castro, a Formosíssima Maria, entre outros.
Finalmente, devemos tratar dos valores ideológicos, morais e estéticos do
texto em questão:
85
LITERATURA
PORTUGUESA
Texto 1
Cantiga nº 52
A este moto:
Descalça vai para a fonte
Leanor pela verdura;
Vai fermosa e não segura.
VOLTAS
Leva na cabeça o pote,
o testo na mão de prata
cinta de fina escarlata,
saínho de chamalote;
traz a vasquinha de cote,
mais branca que a neve pura;
vai fermosa, e não segura,
Texto 2
Mote alheio
Perdigão perdeu a pena,
Não há mal que lhe não venha.
VOLTAS
Perdigão, que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
86
Perde a pena do voar, Classicismo: Camões
lírico e épico
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha.
Texto 3
Verdade, Amor, Razão, Merecimento
Qualquer alma farão segura e forte
Porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte
Têm do confuso mundo o regimento.
Texto 4
Texto 5
Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava amor somente.
88
Errei todo o discurso de meus anos; Classicismo: Camões
lírico e épico
Dei causa que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças,
1) Faça a análise da forma dos três sonetos, apresentado o tema, o assunto, além da
metrificação, ritmo, rimas, principais figuras etc.
89
LITERATURA OS LUSÍADAS - ATIVIDADES DE LEITURA
PORTUGUESA
1) O episódio de Inês de Castro, no Canto III, estâncias 118 a 135 e elabore uma
síntese do texto. Em seguida, responda:
a) Qual é o tema tratado por Camões neste episódio e como ele se desenvolve?
b) Descreva a personagem do Velho, apresentando as características físicas e
psicológicas, suas atitudes e significados.
c) Discuta as seguintes funções exercidas pelo Velho do Restelo: personagem
coletiva e simbólica; personagem alegórica e o coro trágico.
d) Interprete o discurso da personagem: no plano geral e no plano das alterna-
tivas (o Norte da África) e o seu significado.
90
Classicismo: Camões
lírico e épico
Referências
CAMÕES, Luis de. Rimas. Texto estabelecido e prefaciado por Álvaro Júlio da Costa
Pimpão. Coimbra: Almedina, 1994.
_______. Os Lusíadas. Edição organizada por Emanuel Paulo Ramos. Porto: Porto
Editora, s.d.
Anotações
91
LITERATURA
PORTUGUESA
Anotações
92
4 Outros autores
importantes
INTRODUÇÃO
A Literatura Portuguesa, ao longo de seus mais de oitocentos anos de expressão
criadora, integrou-se, em linhas gerais, à dinâmica dos movimentos literários mais sig-
nificativos que caracterizam a cultura ocidental, tendo, frequentemente, a Inglaterra e,
especialmente, a França como modelos mais imediatos e como influência mais direta.
É preciso registrar, no entanto, que muitas dessas tendências estéticas chegaram com
certo “atraso” a Portugal e foram, com grande frequência, “aclimatadas” a condições
histórico-sociais específicas e ao rico imaginário lusíada, o que nos permite observar,
ao mesmo tempo, as convergências de sua expressão em relação a estes modelos ar-
tísticos e as singularidades que a diferenciam no conjunto das literaturas européias.
Evidentemente, a própria questão da língua precisa ser considerada como um dos
aspectos fundamentais dessa “singularização”, já que a linguagem dá forma expressiva
específica à visão de mundo e aos traços culturais mais genuínos de um povo, de uma
Nação – suas tradições, sua história, sua forma de se relacionar com o espaço (a parti-
cular geografia portuguesa, marcada pela presença do mar como matriz fundamental
de seu imaginário e de sua “vida prática”, já que determinou, por exemplo, a expansão
ultramarina do século XVI) e com o tempo (que irá definir, por exemplo, o famoso
tema da saudade como um dos mais característicos da literatura portuguesa).
Diante desse quadro, a apresentação dos autores que compõem este capítulo in-
tenta dar uma visão geral, mas nem por isso menos representativa, da evolução1 da li-
teratura portuguesa, em consonância com o movimento mais geral das idéias artísticas
no mundo europeu. Nesse sentido, os autores escolhidos para compô-lo destacam-se
inegavelmente nos contextos em que produziram suas obras, mas elegê-los significa
93
LITERATURA também deixar de lado outros tantos que poderiam, na avaliação de outros leitores,
PORTUGUESA
melhor caracterizar a criação literária em Portugal. Assim, recomenda-se ao aluno que
não deixe de também interessar-se por nomes como os de Pe. Vieira, Bocage, Alexan-
dre Herculano, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Fialho de Almeida, Camilo
Pessanha, José Régio, Miguel Torga, Carlos de Oliveira, José Cardoso Pires, Antonio
Lobo Antunes e tantos outros que, em seu próprio tempo, contribuíram enormemente
para a edificação de uma literatura tão intensa e saborosa como a portuguesa.
94
romance ou poema de fundo autobiográfico, memorialismo, lirismo egocêntrico): o Outros autores
importantes
historicismo e o individualismo” (SARAIVA; LOPES, 1970, p. 674).
O Romantismo português não fugirá a esta regra: a poesia lírica, convencionalmen-
te associada à expressão da individualidade, e o romance histórico serão os gêneros
mais cultivados durante a prevalência do ideário romântico em Portugal, e justamente
por isso serão aqui representados, tomando-se Almeida Garrett como autor modelar,
nesse sentido. No primeiro caso, o da poesia lírica, o que iremos ressaltar é a presença,
na obra de Garrett, da ironia romântica. Conceito sediado no mundo alemão, uma
vez que parte da filosofia do idealismo transcendental proposto por F. Schlegel na re-
vista Athenaeum, ainda no século XVIII, constitui não apenas uma tendência ou uma
característica do Romantismo, mas o “fundamento de uma nova forma de literatura
que se queria uma diferente visão do mundo”, segundo defende M. L. Ferraz ao definir
o verbete no Dicionário do Romantismo Literário Português (1997, p. 107 ).
Trata-se de um processo discursivo em que o autor/enunciador questiona a sua pró-
pria prática literária, para colocá-la em causa. Embora manifeste-se em “antecedentes
ilustres”, como o teatro de Shakespeare e o Dom Quixote de Cervantes, não sendo,
portanto, “exclusividade” do Romantismo, torna-se central como problema da estética
romântica – daí constituir-se como procedimento muito característico da ficção da
época e, como tentaremos demonstrar na nossa leitura das Folhas Caídas, também
da criação poética. Ferraz chega mesmo a admitir que o conceito de ironia romântica
estabelece, se visto à distância, os próprios limites do Romantismo: “numa literatura
avessa a inscrições filosóficas, como foi a portuguesa do Oitocentos, o que continua
a ser mais significativo e tem consequências visíveis nos momentos históricos subse-
quentes radica na problemática da ironia romântica” (FERRAZ, 1997, p. 23).
Disso decorre a própria possibilidade de considerarmos a modernidade de Almei-
da Garrett, já que a presença da ironia em suas obras irá suplantar sua contingência e
torná-las objetos significativos para uma reflexão teórica sobre o que se define como
uma suspensão da ilusão, já que o escritor mostra-se como artífice de seu texto, reve-
lando os bastidores da escrita e assumindo-se explicitamente como sujeito criador do
“objeto” literário. Desta forma, não deixa de expressar a sua subjetividade, mas num
sentido diverso ao do confessionalismo tão frequentemente associado à expressão
romântica do eu: o que o poeta faz é já trazer à cena a possibilidade do fingimento
poético, de “fingir que é dor a dor que deveras sente”, síntese expressiva dessa ironia a
ser tão maximamente proposta, no século seguinte, por Fernando Pessoa.
Antonio José Saraiva afirma que “Garrett mascara-se quase constantemente”. Tudo,
nele, “pode ser um disfarce” (1972, v. I, p. 87). É a partir dessa proposição que ire-
mos, então, refletir sobre a obra poética de Garrett, mostrando, na sequência, como
95
LITERATURA também em sua narrativa histórica se manifesta a ironia romântica. E aí ainda teremos
PORTUGUESA
oportunidade de refletir sobre o segundo aspecto que, como vimos acima, Saraiva defi-
ne como característico do Romantismo: o historicismo. Literariamente, esta tendência
aparece vinculada especialmente ao modelo do romance histórico instituído por Wal-
ter Scott no final do século XVIII; em Portugal, este historicismo tem em Garrett e em
Alexandre Herculano os seus expoentes máximos. Ambos os escritores atuaram viva-
mente nos assuntos mais candentes de seu tempo, tendo sido, inclusive, participantes
ativos das rebeliões que opuseram os liberais comandados por D. Pedro IV de Portugal
(e I do Brasil) e seu irmão D. Miguel, absolutista. Por conta disso, viram-se também
perseguidos e passaram várias temporadas no exílio, na Inglaterra e na França, o que
propiciou o contato com as novas idéias estéticas que, naqueles países, já assentavam o
Romantismo. O que é interessante notar aqui é que esta vertente da narrativa histórica
mostra o empenho dos escritores românticos em refletir não só sobre as bases históri-
cas da Nação mas também sobre seu próprio tempo, já que entendiam a história como
processo, como uma relação de causas e consequências que faziam de Portugal aquilo
que ele era então, impulsionando-os a acreditar nas transformações futuras, na idéia
de um progresso constante e inelutável, para o qual sentiam-se compelidos a colabo-
rar através da atuação pública e da criação literária. Voltar-se para o passado da Nação
jamais significou, para eles, fuga ou desinteresse pelo tempo presente. Muito ao con-
trário: deu-lhes ensejo a que expressassem ficcionalmente a sua reflexão sobre o seu
tempo, tirando do passado lições a serem aprendidas por todos, governantes e povo,
a fim de que Portugal pudesse acompanhar a marcha civilizatória do Progresso, tão
cara àqueles tempos. Estas ideias estão cabalmente expressas nas Viagens na minha
terra, de Garrett, e são também reconhecíveis no seu romance O arco de Sant’Anna,
analisado a seguir.
Lembramos, enfim, a importância que Garrett teve como um dos maiores incenti-
vadores do restabelecimento do teatro em Portugal, não só como autor da peça mais
importante de todo o século XIX, Frei Luís de Sousa, mas como criador do Teatro D.
Maria I, onde atuou como diretor, dramaturgo, encenador e até como ator (represen-
tando, por exemplo, o personagem Telmo Pais do Frei Luís de Sousa). Isso nos parece
evidenciar que, na literatura de Garrett, esvaem-se os limites entre os gêneros – outra
das principais características da estética romântica, a opô-la às rígidas convenções clás-
sicas –, o que nos permite falar de uma poesia dramática ou de um drama lírico sem
que isso pareça improcedente.
Eça de Queirós, por seu turno, destaca-se como um dos maiores escritores da
língua portuguesa de todos os tempos. Seus romances são o que de melhor a litera-
tura portuguesa do século XIX produziu. Crítico mordaz da sociedade lusitana de seu
96
tempo, já quando exercia o jornalismo de opinião, n’As Farpas, deixava evidente seu Outros autores
importantes
senso de humor e sua lúcida reflexão sobre as mazelas morais e políticas da realidade
em que vivia, ao mesmo tempo em que afiava um estilo em que a ironia predominava.
“Homem do mundo”, diplomata por profissão, viveu muitos anos fora de Portugal, o
que lhe permitiu um olhar de longe que acentuou ainda mais a pequenez do seu país,
dominado por uma burguesia que insistia em fazer de uma Lisboa provinciana um
arremedo melancólico de Paris, então modelo de civilização, modernidade e cultura.
Cria, então, a sua Bovary, a Luísa de O Primo Basílio, corrompida pelas leituras ro-
mânticas, cujo embate psicológico com a criada Juliana – uma das personagens mais
intrigantes saídas da “forja” de Eça – a levará à morte como castigo. Cria, também, a
“saga” de Os Maias, obra-prima que acompanha três gerações de uma família marcada
por tragédias amorosas; este romance apresenta um dos mais completos painéis da
alta sociedade oitocentista, urbana, “civilizada”, corroída em suas entranhas. Eça não
deixou de retratar também a sociedade aldeã, em O crime do Padre Amaro, igual-
mente sujeita à degenerescência moral que tanto o incomodava. No final de sua vida,
amorosamente cria, no Gonçalo de A Ilustre Casa de Ramires, sua metonímia de
Portugal3, dando-se por “vencido”: sua crítica mordaz não “regenerou” o mundo, mas
certamente fez dele um escritor que merece ser lido sempre.
De Eça de Queirós analisaremos o conto “Civilização”, narrativa que posteriormen-
te Eça ampliou e “transformou” no romance A cidade e as serras. Nesse conto ma-
nifestam-se os traços mais característicos de seu estilo, bem como uma postura crítica
diante da organização social e das promessas ilusórias da modernidade que encami-
nham a obra de Eça para uma reconciliação com seu país, idealizado na simplicidade e
rusticidade da vida no campo, a que Jacinto, este personagem inesquecível, se rende.
97
LITERATURA
PORTUGUESA
Referências
QUEIRÓS, Eça de. A ilustre casa de Ramires. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1973.
Proposta de Atividades
98
Agora, temos a escola realista! Outros autores
importantes
Não – perdoem-me - não há escola realista. Escola é a imitação sistemática dos pro-
cessos dum mestre. Pressupõe uma origem individual, uma retórica ou uma maneira
consagrada. Ora, o naturalismo não nasceu da estética peculiar dum artista; é um mo-
vimento geral da arte, num certo momento da sua evolução. A sua maneira não está
consagrada, porque cada temperamento individual tem a sua maneira própria: Daudet
é diferente de Flaubert, como Zola é diferente de Dickens. Dizer ‘escola realista’ é tão
grotesco como dizer ‘escola republicana’. O naturalismo é a forma científica que toma
a arte, como a república é a forma política que toma a democracia, como o positivismo
é a forma experimental que toma a filosofia.
Tudo isto se prende e se reduz a esta fórmula geral: que fora da observação dos fatos e da
experiência dos fenômenos, o espírito não pode obedecerr nenhuma soma de verdade.
Outrora uma novela romântica, em lugar de estudar o homem, inventava-o. Hoje o
romance estuda-o na sua realidade social. Outrora no drama, no romance, concebia-
se o jogo das paixões a priori; hoje analisa-se a posteriori, por processos tão exatos
como os da fisiologia. Desde que se descobriu que a lei que rege os corpos brutos é
a mesma que rege os seres vivos, que a constituição intrínseca duma pedra obedeceu
às mesmas leis que a constituição do espírito de uma donzela, que há no mundo uma
fenomenalidade única, que a lei que rege os movimentos dos mundos não difere da lei
que rege as paixões humanas, o romance, em lugar de imaginar, tinha simplesmente
de observar. [...] A arte tornou-se o estudo dos fenômenos vivos e não a idealização das
imaginações inatas. [...]
Toda a diferença entre o idealismo e o naturalismo está nisto. O primeiro falsifica, o
segundo verifica (QUEIRÓS, 1980, p. 13;15).
Anotações
99
LITERATURA
PORTUGUESA
Anotações
100
5 Almeida Garrett
e a poesia de
Folhas Caídas
- aqui votado
Fica este livro – confissão sincera
Da alma que a ti voou e em ti só ‘spera
Almeida Garret
101
LITERATURA quer se tomem alguns textos em que esta dramaticidade é observável de forma mais
PORTUGUESA
significativa. Em outras palavras: pode-se dizer que, nestes poemas, se expressa a
tensão que envolve o sujeito diante de sua ‘verdade’ psicológica, mas também, e
principalmente, se pode refletir, a partir deles, sobre a ilusão referencial: o poeta
usa estratégias de construção do texto poético que pretendem causar no receptor a
impressão de que ele está, de fato, se confessando, se expondo incondicionalmente,
relatando fatos e emoções ‘verdadeiras’, fazendo-nos esquecer de que estamos diante
de um trabalho de elaboração estética. David Mourão-Ferreira, no texto a que já nos
referimos, identifica nesse procedimento de Garrett uma “alta comédia muito bem
representada para simular o carácter involuntário – e fatal – das confidências amoro-
sas que lá se fazem” (1981, p. 58).
Este mascaramento da intencionalidade do discurso (querer fazer-se passar por
aquilo que não é) é característica definidora da ironia. No Romantismo, a ironia é
menos um artifício retórico que um elemento constitutivo de sua própria concepção
de mundo e de literatura; é aquilo que garante ao poeta a sua liberdade de dizer outra
coisa, de afirmar o poder criador da linguagem, capaz de instaurar a tensão, a ambi-
guidade entre o real e o imaginário, entre a arte e a vida.
Para F. Schlegel1, a ironia é “[...] a única dissimulação absolutamente involuntária e,
no entanto, refletida [...] Nela tudo deve ser brincadeira e seriedade, expansão sincera
e profunda dissimulação[...]” (apud Brait, 1996, p. 26).
Enfatizando, portanto, este aspecto lúdico da criação poética associado ao jogo
que se estabelece entre confissão e dissimulação é que analisaremos alguns poemas
das Folhas Caídas, tratando a ironia como elemento formador do discurso poético,
indissoluvelmente atrelada à ambiguidade que é característica desse discurso.
O POEMA EM CENA
Aquilo que o projeto estético do realismo viria combater em nome da justiça e
da verdade – a “arte falsa”, a distância entre o ser e o parecer, entre o objeto e sua
representação – parece mostrar-se como o traço mais interessante para uma análise
das Folhas Caídas. O desafio da obra estaria, em nossa hipótese de análise, na con-
cepção de criação literária em que se fundamenta: a percepção de que a arte é artifício,
“artefazer”, o que implica um arranjo estético dos dados da experiência individual
que já a transforma em criação, em ficção. Assim, à sugestão da “confissão sincera” se
sobrepõem as “sombras” da dúvida, da ambiguidade, do fingimento, o que amplia a
1 Friedrich von Schlegel (10 de março de 1772 - 11 de janeiro de 1829) foi poeta, crítico,
filósofo e tradutor alemão.
102
distância e as contradições entre o ser e o parecer e amplia, também, as possibilidades Almeida Garrett e a
poesia de Folhas Caídas
de leitura das Folhas Caídas, que é o que nos interessa mostrar, saindo da leitura mais
cômoda que se pode fazer dos poemas, tratando-os como “intimistas”, “confessionais”.
Tratá-los assim pode ser redutor, se considerarmos o alto nível de elaboração artística
e de consciência sobre o fazer estético que Garrett, figura exponencial do Romantismo
português, atingiu em sua literatura.
Existe, no entanto, e não podemos passar ao largo disso, uma espécie de pacto
romântico do “eu confesso” que é bastante característico da produção literária daquele
momento e que exige que sejam atenuados – ou dissimulados – os procedimentos
que apontam para uma construção ficcional do sujeito poético. É como se o poeta, ao
mesmo tempo, declarasse sua sinceridade absoluta e desse uma “piscadela” ao leitor,
confundindo-o, brincando com a sua capacidade de perceber exatamente o jogo em
que está envolvido. Estas “piscadelas” podem se manifestar textualmente, por exem-
plo, na própria organização do conjunto de poemas, na própria ordem em que o poeta
os dispõe, já que isso tem também uma intenção. O poeta pode, até mesmo, criar uma
impressão de negligência, de desordem aparente que camufla, no entanto, a mais rigo-
rosa ordem. É o que parece acontecer com as Folhas Caídas.
Pensemos, então, na organização das Folhas Caídas, na sua “ordem interna”,
como o primeiro passo efetivo desse desvendar do trabalho estético refinado que
constitui o conjunto dos poemas de Garrett. O volume é constituído por quarenta
e três poemas divididos em “Livro Primeiro” e “Livro Segundo”; “Ignoto Deo”, como
já dissemos, é o poema-dedicatória que o abre e que exerce a função de definir a
motivação confidencial da obra – ou seja, intenta levar o leitor a crer que está diante
de um sincero extravazamento de alma do poeta2. Dois aspectos são relevantes para
indicar a presença da ironia romântica já na concepção deste poema de abertura: em
primeiro lugar, a própria instalação do “pacto irônico”. A ironia tem como fundamento
uma relação dialógica, pois mobiliza todas as instâncias participantes do processo co-
municativo: o enunciador, que marca intencionalmente o seu discurso como irônico;
o enunciatário, que necessariamente deve decodificar como irônico esse discurso; o
referente, que é aquilo que a ironia põe em questão. Na sequência desta análise vere-
mos como essas três instâncias são mobilizadas, começando pelo enunciatário: se o
2 É importante notar, todavia, o cuidado expresso por Garrett já na primeira edição do livro,
cuja “Advertência” previne o leitor no sentido de que não deveria querer adivinhar no “deus des-
conhecido” a quem o livro é dedicado “Alguma divindade meio velada com cendal transparente,
que o devoto está morrendo que lhe caia para que todos a vejam bem clara”. É possível perceber
o tom provocativo e irônico desta advertência.
103
LITERATURA pacto irônico supõe a conivência entre enunciador e enunciatário, este último deve
PORTUGUESA
ser capaz de transcender a literalidade da mensagem dada para vislumbrar, justamente
pelas marcas que o enunciador deixa, as significações ao mesmo tempo sugeridas e
escondidas por esse espaço significante (Brait, 1996). Ao instaurar a impressão – ou,
dizendo em termos mais precisos, o efeito de sentido - da confissão, o eu-lírico chama
o leitor a conhecê-lo, mas esse conhecimento do sujeito que se expressa e de seu caso
amoroso será tensionado pela desconfiança que esta mesma abertura sugere, descon-
fiança que assenta na natureza irremediavelmente representativa da linguagem, que
vai ser acentuada pela moldura dramática dos poemas, sugerindo uma encenação,
como já adiantamos.
Como o eu-lírico marca, então, em Folhas Caídas, a ambiguidade de seu discurso
supostamente confessional? Vejamos o segundo poema do volume: “Adeus!”
104
Não sabes o que pediste. Almeida Garrett e a
Não te bastou suportar poesia de Folhas Caídas
o cepo-rei; impaciente,
Tu ousas a deus tentar
Pedindo-lhe o rei-serpente!
E eu réprobo... eu se o verei?
Se em meus olhos encovados
Der a luz de teus ardores...
Se com ela cegarei?
Se o nada dessas mentiras
Me entrar pelo vão da vida...
Se, ao ver que feliz deliras,
Também eu sonhar ...
Perdida, perdida serás - perdida.
105
LITERATURA Vai, vai... para sempre adeus!
PORTUGUESA Para sempre aos olhos meus
Sumido seja o clarão
De tua divina estrela.
Faltam-me olhos e razão
Para a ver, para entendê-la:
Alta está no firmamento
De mais, e de mais é bela
Para o baixo pensamento
Com que em má hora a fitei;
Falso e vil o encantamento
Com que a luz lhe fascinei.
Que volte a sua beleza
Do azul do céu à pureza,
E que a mim me deixe aqui
Nas trevas em que nasci,
Trevas negras, densas, feias,
Como é negro este aleijão
Donde me vem sangue às veias,
Este que foi coração,
Este que amar-te não sabe
Porque é só terra - e não cabe
Nele uma ideia dos Céus ...
Oh!, vai, vai; deixa-me, adeus!
106
interlocutor. Contribuem, ainda, para este efeito de “veracidade” do discurso o atro- Almeida Garrett e a
poesia de Folhas Caídas
pelo, a fragmentação e a inconclusão dos versos, marcados pela presença de inúme-
ras reticências, bem como a simulação de oralidade nele presente, manifesta no tom
declamatório e interrogativo dos versos.
A “encenação” e a dramaticidade dos versos simulariam, então, a possibilidade
criada pelo eu lírico de olhar-se como se fosse um outro, ao mesmo tempo em que
olha o outro e seu “caso amoroso”. Esta simulação, este parecer ser é uma estraté-
gia irônica. É possível, ainda, a identificação de outras marcas de ironia no poema,
a começar pelo “rebaixamento” a que o eu lírico se submete, em contraposição
à promoção do interlocutor (“Perdoar-me, tu? ... Não mereço”), estratégia que se
fundamenta no sentido primeiro da palavra ironia: nos diálogos socráticos, o eíron é
definido como o homem que se censura, que se rebaixa e que finge não saber. É o que
nos ensina Northrop Frye em seu livro Anatomia da crítica:
O termo ironia, portanto, indica uma técnica de alguém parecer que é menos
do que é, a qual, em literatura, se torna muito comumente uma técnica de
dizer o mínimo e de significar o máximo possível, ou de modo mais geral, uma
configuração de palavras que se afasta da afirmação direta ou de seu próprio e
óbvio sentido (FRYE, 1973, p. 46).
107
LITERATURA o poema que acabamos de ver, segundo do livro, marca o fim do drama íntimo,
PORTUGUESA
cujos antecedentes serão só na sequência conhecidos, por meio de um conjunto
de poemas que Mourão-Ferreira agrupa sob a denominação de tríptico narrativo,
formado por “Quando eu sonhava”, “Aquela noite” e “O anjo caído” ( Vê-se logo que
a concepção dessa análise de Folhas Caídas prevê um leitor que siga, na leitura, a
sequenciação determinada pelos textos – o que nem sempre se dá, efetivamente,
em relação a um livro de poemas).
O primeiro poema do tríptico – “Quando eu sonhava”3 – é um texto curto que
funciona como uma espécie de monólogo de transição entre a técnica dramática do
“Adeus!” e a técnica narrativa (notemos, novamente, as (con)fusões de gêneros na
poesia garrettiana) que será empregada com fôlego pleno no longo poema “Aquela
noite”, que verseja o primeiro encontro: as circunstâncias (uma festa em que abundam
os “amores mundanos”) e o estado de espírito do eu-lírico (triste, melancólico, ten-
tando deixar-se contaminar pela alegria e a “artificialidade” reinantes) que precedem
a aparição da amada:
108
Um só fio há-de ser o feliz. Almeida Garrett e a
poesia de Folhas Caídas
Tudo o mais é ilusão, é mentira,
Brilho falso que um tempo seduz,
Que se apaga, que morre, que é nada
Quando o sol verdadeiro reluz.
É claro que se trata aí dos enganos de amor; mas é fato, também, que o romântico
frequentemente expressa em seu desencanto amoroso um desencanto existencial que
revela aquele deslocamento entre o que é e o que parece ser. Parece-nos haver, então,
nesse poema, uma dissipação da ilusão, da crença em que a linguagem seja capaz de
fixar sentidos (e, por inferência, em sentido contrário, a afirmação de que a criação po-
ética se realiza como busca dessa possibilidade, como tentativa de comunicação e de
conhecimento); embora não houvesse teoricamente definida no Romantismo, ainda, a
noção de autonomia da linguagem frente a significados pré-existentes – a concepção
da expressão literária ainda era fundamentalmente mimética -, a ironia romântica aca-
ba por instrumentalizar um novo entendimento do fazer literário como manifestação
da liberdade individual do poeta de criar sua própria verdade, ainda que em desacor-
do com o “mundo”. O poeta manifesta também sua resistência a convenções formais
e a regras de poetar que, na prática, pode se manifestar pela distância entre o que é
dito e o que o eu lírico pretende que seja entendido. E faz isso pelo discurso irônico,
portanto. É claro que essa estratégia supõe a existência de um leitor capaz de captar
a ambiguidade propositalmente contraditória desse discurso: afinal, o que merece ser
gravado no álbum da memória, da existência, da escrita? Mas se nada vale a pena
permanecer, porque tudo é provisório – o amor, a vida, a palavra -, qual o motivo do
esforço do poeta para fixar essa memória de que Folhas Caídas são o “documento”? E
109
LITERATURA se, na verdade, esse é um discurso ficcionalizado (como a nossa leitura está tentando
PORTUGUESA
demonstrar), então a memória e a escrita não fixam, mas criam?
É por tudo isso que a leitura aqui apresentada baseia-se na hipótese de que o que
está em causa de Folhas Caídas é o próprio estatuto confidencial da poesia, que se
realiza, então, como auto-ironia relativamente ao sujeito lírico que assim se expõe –
e, por extensão, relativamente ao estatuto do próprio discurso poético. Ao afirmar a
autenticidade, a verdade de sua poesia, o poeta acaba ele próprio, por lançar a des-
confiança em relação a este mesmo discurso – desconfiança, como já vimos, calcada
na natureza da linguagem: provisória, multívoca.
Também no “poema mundano” seguinte, “Saudades”4, há um dado que contribui
para a caracterização do discurso irônico, sugerido pelo que nos parece uma desperso-
nalização do sujeito lírico: ele quebra o efeito confidencial porque estrategicamente
desloca o foco da sua atenção, do eu para o outro; embora continue a falar de si, faz
isso em função do outro, nesse poema que acentua o “caráter pedagógico” que já se
delineara no poema “O Álbum”. Lá, o didatismo se manifestava no “conselho de ami-
go”: não escreva no álbum; aqui, no uso da dúvida – entre levar ou não levar o ramo
de saudades – como forma de argumentação (gracioso mote para sobrepor os temas
do individualismo e do nacionalismo que tão caracteristicamente se presentificam na
poesia garrettiana, e que será retomado num curioso poema do “Livro Segundo” – “A
Jovem Americana” - , em que há o deslocamento dos procedimentos da cortesia e do
4 Leva este ramo, Pepita,/De saudades portuguesas;/É flor nossa; e tão bonita/Não na há
noutras devesas.
Seu perfume não seduz,/Não tem variado matiz,/Vive à sombra, foge à luz,/As glórias d'amor
não diz;
Mas na modesta beleza/De sua melancolia/É tão suave a tristeza,/Inspira tal simpatia!...
E tem um dote esta flor/Que de outra igual se não diz:/Não perde viço ou frescor/Quando a
tiram da raiz.
Antes mais e mais floresce/Com tudo o que as outras mata;/Até às vezes mais cresce/Na terra
que é mais ingrata.
Só tem um cruel senão,/Que te não devo esconder:/Plantada no coração,/Toda outra flor faz
morrer.
E, se o quebra e despedaça/Com as raízes mofinas,/Mais ela tem brilho e graça,/É como a flor
das ruínas.
Não, Pepita, não ta dou.../Fiz mal em dar-te essa flor,/Que eu sei o que me custou/Tratá-la
com tanto amor.
110
enlevo amoroso, já que o poema elege como sua musa e interlocutora a liberdade). Almeida Garrett e a
poesia de Folhas Caídas
Mas a ambiguidade, a manifestação das dualidades que já se vinham afirmando
como característica da expressão amorosa nos poemas do “Livro Primeiro” - o viver e
o morrer de amor -, dentre os quais têm destaque os muito conhecidos “Este inferno
de amar”, “Destino” e “Não te amo”, acentua-se no poema final dessa primeira série,
“Víbora”5, em que se conjugam os sentimentos da dissimulação e da ferocidade trágica
de um amor que, para nascer, mata aquele em que é gerado.
Finalmente, é importante destacar, no poema “Retrato”, outro argumento a favor
da leitura que propomos, a qual objetiva enfatizar o estatuto irônico do discurso em
Folhas Caídas: nele, o poeta, travestido de pintor, com instrumentos próprios da es-
crita, no entanto (como faz questão de afirmar), constrói o retrato da amada. Ele ficará
incompleto, porque o poeta não consegue definir se o sorriso amável da musa é “todo
bondade ou se meio é zombaria”, e nestas “duas feições”(ou seja, na ambiguidade do
sorriso) todo o eu – do outro -, toda a alma está:
O retrato não está incompleto: está excessivo. O “a mais” que ele intencionalmente
não restringe, não apaga, é o que determina a sua indefinição. “Fiel como um espe-
lho” – diz o poeta – “é tudo o que nele fiz. E o que lhe falta – que é muito – também
o espelho não diz.”
Confissão? Simulacro? A resposta mais justa parece-nos ser a que identifica esta
tensão, esta ambiguidade entre o ser e o fazer crer como o apelo maior dessas folhas
garrettianas, legadas ao presente (e ao futuro) não pelo acaso, mas como inegável
testemunho da obra de um grande poeta.
O ROMANCE EM CENA
O romance é deste século: se tirou o seu argumento do XIV, foi escrito sob as
impressões do XIX; e não o pode nem o quer negar o autor. Todas as coisas
humanas têm o seu lado torpe, ou feio, ou ridículo. É permitido à arte virá-las
de um ou de outro lado quando quer “rir castigando” (GARRETT, 1963, p. 226).
5 Como a víbora gerado,/No coração se formou /Este amor amaldiçoado /Que à nascença o
espedaçou.
Para ele nascer morri; /E em meu cadáver nutrido, /Foi a vida que eu perdi /A vida que tem
vivido.
111
LITERATURA da terra em que nascemos” (GARRETT, 1963, p. 214); por outro lado, o roman-
PORTUGUESA
cista insiste, ainda naquele prefácio, especialmente, em desvincular-se do modelo
do romance histórico, definindo ironicamente o seu como um romance que é um
“esboçozinho”, um “estudo”, um “capricho”, já que “nunca houve escrito menos
pretensioso desde que há escritos”; no entanto, para “satisfazer aos escrupulosos”,
junta ao seu volume, naquela segunda edição, “alguns documentos indispensáveis que
provam haver no presente romance toda quanta verdade histórica um romance pode
suportar, sem cair em pedante e maçador”(GARRETT, 1963, p. 214).
Todo esse “escrúpulo”, no entanto, vai encontrar seu contraponto no modo am-
bivalente pelo qual a história e também a figura e a função do historiador, bem como
a do ficcionista, serão incorporadas à narrativa ficcional. “Já disse Lord Byron que a
verdade era muito mais estranha que a ficção”, afirma o narrador (GARRETT, 1963,
p. 105); a partir daqui já se pode começar a perceber como o comentário sobre essas
relações – entre a história e a ficção – se explicita no romance, numa escrita permeada
pela ironia.
Os acontecimentos narrados transcorrem na cidade do Porto, no século XIV, em
torno do seguinte núcleo: um cavaleiro, tempos atrás, fora acolhido por uma família
judia, após ter sofrido um grave acidente que o deixou entre a vida e a morte; recupe-
rado e “abusando da hospitalidade” oferecida, seduz e engravida Ester, a filha da famí-
lia, desaparecendo em seguida; Ester dá à luz um menino, Vasco. Anos mais tarde, o
cavaleiro torna-se bispo da cidade; despótico, devasso e inescrupuloso, rapta Aninhas,
mulher casada por quem se interessara. Aninhas é a melhor amiga de Gertrudes, noiva
daquele mesmo Vasco. A atitude cruel do bispo repercute por toda a cidade, graças à
ousadia de Gertrudes de espalhar o acontecido e instigar a comoção popular; isso se
torna a gota d’água para que contra o bispo se arme uma revolta, chefiada por Vasco
e alimentada pelo ódio da bruxa de Gaia, na qual se transformara a outrora inocente
Ester. Vitoriosa a rebelião, dá-se o reconhecimento das personagens, uma vez que,
àquela altura, Ester já não conseguia mais ocultar de Vasco o segredo de sua origem.
O bispo, desmascarado, enche-se de pavores e remorsos, já que, sem saber que Vasco
era seu filho, havia nutrido por ele, ao longo dos anos, cuidados de pai, como mentor
intelectual e espiritual que dele fora até então. Submetido o caso ao juízo do rei – o
famoso D. Pedro, o Cru, conhecido por seu aguçado senso de justiça -, que, avisado
pelos rebeldes, assistia disfarçado ao ato religioso em que o desmascaramento se dá, o
bispo é desterrado para Flandres, onde se faz monge e acaba em “santa vida”; quanto
a Ester, abjurou o judaísmo e, com ele, “seus implacáveis e vingativos ódios” – é o que
assegura a narrativa. Por fim, Vasco e Gertrudes se casam, selando a felicidade reinante.
Toda essa história nos é contada a partir da perspectiva de um narrador que, como
112
soldado liberal, está acantonado no Mosteiro dos Grilos, na mesma cidade do Porto, Almeida Garrett e a
poesia de Folhas Caídas
onde descobre um manuscrito. Para “matar o tédio”, reescreve aquela história, intro-
metendo nela seus comentários sobre a situação política, em especial, que vive Portu-
gal naquele momento (os anos da Revolução Liberal) de que o narrador não é apenas
um “mero observador”, mas participante ativo. Essa estratégia permite que a narrativa
se desenvolva jogando com os dois tempos distintos (o XIV em que se passa a ação e o
XIX em que ela é reescrita a partir dos manuscritos antigos). O interessante é que, em
suas entrelinhas, o narrador propõe questões significativas sobre o modo pelo qual a
ficção pode dialogar com a História.
A primeira dessas relações estabelece-se já a partir dos juízos que o narrador vai
manifestando sobre a sua própria fonte histórica, cuja credibilidade – e cuja existên-
cia, na verdade – pode sempre ser contestada, exatamente pelo traço irônico que, o
tempo todo, a narrativa deixa entrever. Ou seja, não temos certeza se, de fato, aquele
manuscrito existiu ou se se trata apenas de uma estratégia narrativa que implica a pró-
pria ficcionalização da (suposta) fonte documental. De todo modo, no romance, é
como absolutamente fiel a suas fontes que o narrador se apresenta, imprimindo a elas,
assim, uma autoridade que se institui pela palavra “douta” e que, obviamente, se pro-
jeta sobre o seu próprio relato. Vejamos o que nos sugere este fragmento do romance:
E Aninhas? E a pobre Aninhas que está no Aljube? O que é feito dela, Sr. Histo-
riador? Deixa-se assim por tanto tempo nas asquerosas inxovias de uma prisão
a uma bela rapariga tão interessante, tão boa, a amiga da nossa Gertrudes, a
Helena enfim desta Tróia, por cujo roubo arde já a invicta cidade nas labaredas
da revolta, da guerra civil, quase? E passam-se capítulos e capítulos – cada qual
mais pequeno, é verdade, mas são muitos – sem nos dizer o descuidado cro-
nista o que é feito dela?
Contesto, amigo leitor; a culpa não é minha. Cervantes não podia ser respon-
sável pelos descuidos e lapsos de Cid-Hamete-Ben-Enjeli. Se Dulcineia está mal
incantada, e tão depressa a vemos trotando na sua burra pelos campos de To-
boso como passeando com suas donzelas nos deliciosos jardins da Cova de
Montezinhos; se o nosso amigo Sancho aparece aqui montado no seu ruço, que
duas páginas antes lhe subtraíra tão subtilmente dentre os calções o honrado
Ginez de Passamonte – é o cronista mouro, não o seu ortodoxo editor, que tem
a culpa desses lapsos.
O mesmo me sucede a mim com esta verídica história do meu Arco. Traduzo
umas vezes, copio outras, segundo a vestustade da linguagem o pede, no pre-
cioso manuscrito que tive a fortuna de achar. E se alguma reflexão ou pondera-
ção minha lhe ajunto em forma de glossa, nunca me meti a alterar a ordem da
história, e sigo fielmente o douto Grilo, a quem devemos estas incomparáveis
memórias que tanto ilustram e ingrandecem a nossa cidade e a história do Se-
nado e povo portucalense (GARRETT, 1963, p. 329, grifos nossos).
É interessante notar o modo pelo qual o narrador diz relacionar-se com as suas
fontes observando–se os termos destacados do fragmento: sua atividade “resume-
se” a editar, traduzir e copiar, como faziam os cronistas antigos (cuja atividade se
113
LITERATURA aproximaria, posteriormente, à do historiador), encarregados de apenas “arranjar”
PORTUGUESA
cronologicamente os fatos históricos, sem permitirem-se qualquer intervenção mais
subjetiva, interpretativa ou criadora, sobre os materiais históricos tratados. É claro que
aqui se vislumbra também a “piscadela” irônica que ao mesmo tempo institui e solapa
a credibilidade destas fontes, até porque a comparação que o narrador faz entre a sua
atividade e a do autor do Quixote mostra exatamente que estamos em pleno domínio
da ficcionalidade. De todo modo, o romance dissimula a invenção, a ficção sob o véu
da autenticidade das fontes citadas
A essa fonte “incontestável”, então, junta-se, como lemos no prefácio ao romance,
a força da tradição oral, que, no arranjo da narrativa, vem manifestada por Briolanja
Gomes, tia de Gertrudes, observadora e relatora fiel, além de prolixa, dos aconteci-
mentos de então (discurso que, evidentemente, só a ficção poderá fixar – ou inventar,
já que a tradição oral fatalmente se perde no tempo se a escrita não a vier recobrir).
Curioso é que o excessivo poder palrador da tia acaba por obstruir – assim assegura
ironicamente o narrador – o registro historiográfico, já que este último não consegue
“competir” com a fineza de detalhes e de ramificações que a história por ela contada
asseguram. Ou seja, ela falava tanto e contava tudo com tanta minúcia que nada mais
restava a ser registrado – e por isso esses acontecimentos não fazem parte do “discurso
histórico oficial”. Assim é que o ficcionista justifica ironicamente, risonhamente, até,
para os “escrupulosos”, a ausência de documentos históricos que efetivamente deem
suporte a sua narração:
É fama que a história de Aninhas e do bispo, contada por ela [Briolanja], era
de nunca acabar. A ponto que, passando assim em tradição, lhe tomaram medo
os cronistas, e por inevitável reacção a escreveram tão sucintamente que mal se
intende, e nem os nomes das pessoas nos conservaram. Se não fosse descobrir
eu o precioso manuscrito dos Grilos, nem o menor particular saberíamos dela
(GARRETT, 1963, p. 194-195).
Além dessas duas formas de registro pela palavra que o narrador incorpora em seu
relato (os manuscritos por ele encontrados no Mosteiro dos Grilos e a tradição oral
perpetuada pela tia Briolanja), e que nos mostram o processo de ficcionalização das
próprias fontes, há ainda as ruínas como “texto”: no romance, o espaço – a rua de
Sant’Ana na cidade do Porto – é assinalado por um signo de ausência: a do Arco, que
existia no século XIV e já não existe mais naquele em que o romance é escrito. Esta au-
sência se torna significativa, já que motiva uma outra sobreposição temporal, assinala-
da no romance: o soldado “de hoje” não conhece a história do lugar por onde passa, o
que justifica, mais uma vez, a necessidade de o romance perpetuar o que ali se passou:
114
Mal pensa o voluntário académico, quando descendo Rua de Sant’Ana abaixo, Almeida Garrett e a
o braço no armão da peça, [...] mal pensa ele que terreno clássico vai pisando, poesia de Folhas Caídas
por que veneráveis padrões históricos vai passando, sem os conhecer, que inte-
ressantíssima cena romântica é essa em que, depois de tantos séculos, novo e
não menos interessante actor, lhe coube vir figurar.
Falta-te, é verdade, ó nobre e histórica Rua de Sant’Ana, falta-te já aquele teu
respeitável e devoto arco, precioso monumento da religião de nossos antepas-
sados.[...]
Caíste pois tu, ó Arco de Sant’Ana, como, em nossos tristes e minguados dias,
vai caindo quanto há nobre e antigo às mãos de inovadores plebeus (GARRETT,
1963, p. 5).
115
LITERATURA da ordem existente. Assim, um romance é verdadeiramente histórico quando não fica
PORTUGUESA
fechado sobre um passado voltado para si mesmo, mas, pela justeza de suas análises,
mostra um caminho possível, possuindo em direção ao futuro uma perspectiva – con-
cepção que pressupõe certo “caráter pedagógico” ao entendimento que Lukács dá às
relações ente história e ficção.
116
vasta pintura dos costumes e das circunstâncias que envolvem os acontecimentos6; c) Almeida Garrett e a
poesia de Folhas Caídas
a adoção de um vocabulário e de referências que remetem diretamente o leitor ao es-
paço cênico, o que se comprova, por exemplo, pelo seguinte fragmento do romance:
“A última parte da jaculatória foi dita em aparte, que segundo é sabido e aceito, fica em
segredo entre o actor que o diz e os espectadores que o ouvem; e não o pode ouvir
ninguém que esteja em cena... tirando o ponto no seu buraco” (GARRETT, 1963, p. 52).
O que se quer enfatizar é que também atua na esfera da ironia romântica a revela-
ção dos bastidores da escrita, da “cena” que indicia o próprio fazer da ficção, magis-
tralmente registrada neste último fragmento que destacamos do romance:
Dez anos esteve Cervantes para fazer trasladar e pôr em ordem os manuscritos
de Cid-Hamet-Ben-Enjeli, e nos dar enfim a última parte da história do Cavalei-
ro da Mancha. Eu não te fiz esperar senão cinco, leitor amigo e benévolo, por
este segundo e derradeiro tomo do bendito Arco de Sant’Ana. E tive de fazer eu
tudo, só por minha mão, decifrar a inrevesada letra do Códice dos Grilos, que
entre palavras safadas7, linhas inteiras ilegíveis, folhas rotas e outras dificulda-
des semelhantes, me deu mais que fazer do que um verdadeiro palimpsestes8
(GARRETT, 1963, p. 79).
6 Estas duas estratégias (a e b) são consideradas por Lukács (1965)como novos traços artísticos
introduzidos na ficção por Walter Scott e que, como podemos perceber, são efetivamente apro-
veitadas por Almeida Garrett em suas narrativas de caráter histórico.
7 Apagadas (nota 180 da edição utilizada)
8 Palimpsestes – palimpsesto: pergaminho manuscrito em que se raspou a escrita primitiva para
nele se escrever de novo (nota 181 da edição utilizada).
117
LITERATURA
PORTUGUESA
Proposta de Atividades
1) Retomemos a palavra palimpsestes, que encerra o último fragmento do texto que trans-
crevemos. Como vimos (nota 12), ela significa um manuscrito sob cujo texto se descobre
outro. Esta acepção decorre do fato de que, inicialmente, o palimpsesto designava antigos
materiais de escrita, especialmente o pergaminho, que, em razão de sua escassez ou alto
custo, era usado mais de uma vez, raspando-se o texto anterior. O termo passou por um
alargamento de sentido e atualmente, no âmbito dos estudos literários, remete às mui-
tas “camadas da escrita”, entendidas como as relações intertextuais que qualquer texto
estabelece. Segundo Roland Barthes (1987), a intertextualidade é a própria condição da
textualidade (ou seja, um texto é sempre, e inevitavelmente, intertextual, apropriando-se
de textos anteriores e estabelecendo uma “circularidade infinita” de textos). Nesse sentido,
podemos considerar que a própria narrativa de Almeida Garrett constitui um palimpsesto.
Que argumentos e exemplos poderíamos elencar para justificar esta afirmação?
2) Vale lembrar que o romance se constrói pela referência direta a outros textos – o Manus-
crito dos Grilos, o D. Quixote, o próprio Arco de Sant’Ana (semiologicamente passível de
ser caracterizado como texto); além disso, Garrett elenca, ao final do romance, inúmeras
notas que se referem a documentos históricos que lhe serviram de fonte de informação
para a elaboração da trama ficcional (a que se refere no prefácio, para “satisfazer os escru-
pulosos”). Este conjunto de referências, “acomodados” à moldura ficcional que o romance
institui, ganha nele novos sentidos e novas funções, mas são ainda “reconhecíveis”, como
as camadas apagadas do palimpsesto.
Referências
118
SARAIVA, A. J (Org.) As crónicas de Fernão Lopes. Lisboa: Gradiva, 1993. Almeida Garrett e a
poesia de Folhas Caídas
Anotações
119
LITERATURA
PORTUGUESA
Anotações
120
6 Eça de Queirós
e o olhar crítico
sobre seu tempo
1 Os contos de Eça de Queirós foram reunidos num único volume publicado em 1902.
121
LITERATURA tantas “facilidades” e de tanto luxo, vivia entediado, mantendo quase que por obriga-
PORTUGUESA
ção uma vida social que não lhe dava prazer nem vigor. A certa altura, vê-se obrigado
a deslocar-se para as serras, onde tinha uma propriedade. Envia para lá tudo o que
lhe parecia necessário para adequar a quinta à sua comodidade durante o período
em que ali permaneceria, mas quando chega, acompanhado somente de um grande
amigo (e narrador do conto), percebe que os caixotes enviados não tinham chegado e
que nenhuma de suas ordens, relativas à realização de obras na casa, havia sido cum-
prida. Inicialmente, fica arrasado e ainda mais pessimista com tamanha “tragédia”; no
entanto, Jacinto é, subitamente, invadido e transformado pela beleza e simplicidade
da vida campestre. E vai ser assim, longe da civilização, dispensando os exageros do
luxo, que Jacinto redescobrirá o prazer e a alegria de viver. Antonio Candido propõe,
em sua leitura, que a integridade significativa do texto de Eça – a espinha dorsal da
construção de seu sentido, digamos assim - está pautada na contradição violenta da
civilização capitalista do século XIX, provocadora de um estado desarmônico (em
Portugal, especialmente) que colocava, de um lado, a MODERNIDADE, representada
pelo processo crescente de urbanização e avanço tecnológico (expresso, no romance,2
pela “equação metafísica” de Jacinto: SUMA CIÊNCIA + SUMA POTÊNCIA = SUMA
FELICIDADE, por meio da qual propõe que ao máximo do saber, aliado ao máximo da
ação, do fazer, corresponderia a plena realização do homem) e, de outro lado, a IMPO-
TÊNCIA (da sociedade portuguesa) para resolver as suas próprias oposições históricas,
que implicavam, naquele final de século, a permanência do estilo agrário da sociedade
aldeã num mundo que entrava cada vez mais rapidamente no compasso da civilização
industrial. Daí deriva, então, o TEMA do conto: Eça alia às contradições do século XIX
“em geral” aquelas próprias ao seu país; os motivos que vão dar corpo a esse grande
tema podem ser sumariamente assim representados:
Campo cidade
2 No conto, esta equação não aparece, embora sintetize exatamente o que o enredo se propõe
a representar.
122
Estas contradições, então, é que estruturam o todo do texto, constituindo o “eixo Eça de Queirós e o olhar
crítico sobre seu tempo
de sustentação” da discussão sobre o sentido de modernidade e de civilização que, cer-
tamente, o conto deseja promover. Interessante é que esta proposição vem textualiza-
da; ou seja, é referida explicitamente pelo narrador, não deixando dúvidas sobre qual
é o tema da narrativa. Vejamos os fragmentos que confirmam esta nossa afirmação:
Àquela hora, decerto, Jacinto, na varanda em Torges, sem fonógrafo e sem te-
lefone, reentrado na simplicidade, via, sob a paz lenta da tarde, ao tremeluzir
da primeira estrela, a boiada recolher entre o canto dos boiadeiros (QUEIROZ,
2002, p. 92-93).
123
LITERATURA DA CIDADE em oposição à EXALTAÇÃO DO CAMPO. Alguns dos recursos de que se
PORTUGUESA
utiliza para isso são apresentados a seguir:
a) o discurso superlativo, hiperbólico, minucioso. No exemplo que segue, Jacinto
está diante de sua primeira refeição servida em Torges, logo depois de ter chegado a
sua quinta e descoberto que nada do “aparato civilizacional” que para lá enviara havia
chegado. Horrorizado, espanta-se com a rusticidade do ambiente e dos costumes. Aos
poucos, este temor vai sendo quebrado pelo encantamento dos sabores, das cores e
dos aromas que a comida servida no campo provoca nele. Inicia-se aí a transformação
pela qual o personagem passará. Observemos, então, a minúcia na descrição da cena
(ainda que o fragmento do texto venha transcrito só em partes) e, principalmente, a
gradação que vai marcando a rendição de Jacinto à refeição que lhe é oferecida:
124
b) o contraste na caracterização dos espaços. Bom exemplo desse recurso pode ser Eça de Queirós e o olhar
crítico sobre seu tempo
visto na descrição da biblioteca do Jasmineiro
A biblioteca – que em duas salas, amplas e claras como praças, forrava as pa-
redes, inteiramente, desde os tapetes de Caramânia até ao tecto, donde, al-
ternadamente, através dos cristais, o sol e a electricidade vertiam uma luz es-
tudiosa e calma – continha vinte e cinco mil volumes, instalados em ébano,
magnificamente revestidos de marroquim escarlate. Só sistemas filosóficos (e
com justa prudência, para poupar espaço, o bibliotecário apenas coleccionara
os que irreconciliavelmente se contradizem) havia mil oitocentos e dezassete!4
(QUEIROZ, 2002, p. 68).
Nada restava senão recolher, cear o caldo do Zé Brás, e dormir nas palhas que
os fados nos concedessem. Subimos. [...] Entrámos. E o meu pobre Jacinto
contemplou, enfim, as salas do seu solar! Eram enormes, com as altas paredes
rebocadas a cal que o tempo e o abandono tinham enegrecido, e vazias, desola-
damente nuas, oferecendo apenas como vestígio de habitação e de vida, pelos
cantos, algum monte de cestos ou algum molho de enxadas. Nos tectos remo-
tos de carvalho negro alvejavam manchas – que era o céu já pálido do fim da
tarde, surpreendido através dos buracos do telhado. Não restava uma vidraça.
Por vezes, sob os nossos passos, uma tábua podre rangia e cedia (QUEIROZ,
2002, p. 81).
4 É de se destacar a ironia presente nas observações do narrador que sucedem a minuciosa des-
crição que faz da biblioteca: sua comodidade era tanta que, ao sentar na confortável poltrona
que lá havia, invariavelmente ele dormia logo nas primeiras páginas da leitura; além disso, nota
que os livros estavam, praticamente em sua totalidade, “imaculados”, sem nunca terem sido
lidos. É uma “aparência de saber”, portanto, que a biblioteca sinaliza.
5 O nosso grifo marca a diferença em relação ao que foi assinalado na nota anterior.
125
LITERATURA É no campo que Jacinto recobrará o vigor embaçado pelo tédio da civilização cita-
PORTUGUESA
dina, que o fazia bocejar frequentemente, expressão de um cansaço existencial que o
narrador não deixa de assinalar: “E era este bocejo, perpétuo e vago, que nos inquieta-
va [...] Que faltava a este homem excelente?” (p. 74). É lá, portanto, que ocorrerá uma
espécie de irradiação semântica, uma projeção do espaço natural para o “sentimento
do mundo”, existencial e afetivo, de Jacinto. Isto nos leva a refletir sobre a importân-
cia que adquire, neste conto, o lugar da experiência humana – ou melhor dizendo,
o modo como o homem se relaciona com o lugar da sua experiência, em termos de
COMPATIBILIDADE / INCOMPATIBILIDADE, dicotomia dialeticamente trabalhada no
conto, já que se alternam, no seu desenrolar, os pólos deste quadro relacional. Ou
seja, se de início Jacinto parece integrado à vida urbana, civilizada, e o espaço da
Quinta, para o qual é obrigado a deslocar-se, se lhe apresenta como absolutamente
adverso, provocando nele a sensação de incompatibilidade, o que o conto revela é
a inversão desses sentidos: a lição que Jacinto tira é justamente a de que no campo
está a possibilidade de reencontro com a sua verdadeira natureza. Nesse sentido, é
importante destacar:
1) que não há, no conto, uma discussão sobre essas questões, mas a REPRESENTA-
ÇÃO DA AÇÃO HUMANA nesses espaços, mediada pela voz do narrador;
2) o argumento do historiador Joel Serrão, ao destacar que ocorre, no século XIX,
uma nostalgia do campo como reação às transformações da modernidade. Lembra
Serrão (1959) que a ILUMINAÇÃO ARTIFICIAL muda a percepção da natureza (o dia
se prolonga e deixa de ser regido pela ordem natural; muda o ritmo da vida humana
por causa dessa ARTIFICIALIZAÇÃO da vida – do trabalho, das relações sociais). Isto
aparece figurativizado no conto de modo muito significativo, e para justificar nosso
argumento, destacamos uma vez mais dois fragmentos importantes do texto:
Ora justamente depois desse Inverno, em que ele se embrenhara na moral dos
negróides e instalara a luz eléctrica entre os arvoredos do jardim, sucedeu
que Jacinto teve a necessidade moral iniludível de partir para o Norte, para o
seu velho solar de Torges (p. 76; grifo nosso).
126
como Torges! Aí todas essas belas estrelas olham para nós de perto, rebrilhan- Eça de Queirós e o olhar
do, à maneira de olhos conscientes, umas fixamente, com sublime indiferença, crítico sobre seu tempo
outras ansiosamente, com uma luz que palpita, uma luz que chama, como se
tentassem revelar os seus segredos ou compreender os nossos... E é impossível
não sentir uma solidariedade perfeita entre essses imensos mundo e os nossos
pobres corpos. Todos são obra da mesma vontade. Todos vivem da acção dessa
vontade imanente. Todos, portanto, dede os Uranos até aos Jacintos, consti-
tuem modos diversos de um ser único, e através das suas transformações so-
mam na mesma unidade (QUEIROZ, 2002, p. 84; grifo nosso).
Deste último (e belíssimo) fragmento do conto vem o seu argumento maior: a pos-
sibilidade do homem de encontrar o seu lugar no mundo em estreita solidariedade
“cósmica”, que irmana “Uranos e Jacintos”, astros e homens, num mesmo movimento
universal. Evidentemente idealizada, esta formulação aproxima-se da concepção míti-
ca da “Idade de Ouro”, era em que, poeticamente, a natureza cerca o homem de tudo
o que ele necessita, e tudo o que o cerca é, também, fruto de sua intervenção direta.
A esta época da inocência opõe-se a decadência, a degradação do homem e da socie-
dade que promove a fetichização do indivíduo e das suas relações, a coisificação: as
coisas se tornam objeto de adoração e culto. No conto, vê-se claramente isso em sua
primeira parte: Jacinto é “definido” pelo que tem, pelas coisas de que se cerca, e é tão
submetido por elas que pensa não poder mais dispensá-las. Quando se vê sem nada
disso, passado o desesperador impacto incial, redescobre-se em sua inteireza, em sua
humanidade. Agora, ser e parecer se (con)fundem, e Jacinto deixa de ser determinado
pelo que tem.
Curiosa na trajetória de uma personalidade tão incisivamente crítica como foi Eça
de Queirós, esta espécie de rendição final ao seu país, a sua terra e a suas “raízes”
opõe-se, de fato, à imagem do jovem Eça, socialista, “nutrido de cultura francesa, [que]
concebia a sociedade como organismo em progresso constante, impelido pela tecno-
logia industrial sob o signo da concorrência econômica” (CANDIDO, 1971, p. 31 ).
É por isso que julgamos necessário, para fazer justiça ao que de fato é a literatura
de Eça de Queirós em termos de uma leitura crítica da sociedade de seu tempo, abso-
lutamente articulada aos princípios da representação realista, que se leia, como con-
traponto a esta atitude mais otimista e conciliatória que o conto “Civilização” propõe,
o conto “No Moinho” e sobre o qual serão apresentados alguns apontamentos que
podem orientar uma reflexão sobre ele.
Podemos considerar este como um conto fundamentalmente realista de Eça de
Queirós, se levarmos em conta não só os princípios básicos dessa estética mas tam-
bém a própria “declaração de princípios” que o escritor expõe no artigo “Idealismo e
Realismo”, que citamos logo no início deste capítulo, em que Eça defende que a re-
presentação realista, baseada na observação, deve valer como “documento duma certa
127
LITERATURA sociedade”, dando uma “lição de vida social”, longe da idealização romântica capaz
PORTUGUESA
de fornecer, apenas, “um livro inútil”, “uma moeda falsa” (QUEIRÓS, 1980, p. 16).
Esta “lição” é dada visto que, no conto, “[a] reconstrução dos sentimentos é feita a
partir dos comportamentos e das vicissitudes das personagens, como acontece no
quotidiano e na realidade da vida” (DI MUNNO, 1997, p. 55).
Eça retrata, em “No Moinho”, um tipo de mulher: “Encerradas emblematica-
mente no próprio nome, Maria da Piedade, estavam toda a dedicação e a abnega-
ção da protagonista ao viver ao lado de um marido velho e paralítico.” De fato, a
protagonista revela-se como uma “fraca vítima das circunstâncias”: acordada para a
vida quando o primo Adrião lhe faz “entrever perspectivas de felicidade, Maria da
Piedade é afinal arrastada à perdição.” (DI MUNNO, 1997, p. 53). Isto faz com que,
em termos de progressão narrativa, seja possível facilmente identificar, no conto,
dois momentos antagonicamente dispostos: o primeiro, centrado em caracterizar
a abnegação de Piedade, reforçada pelos epítetos que lhe são atribuídos e ressal-
tados por todos na vila em que vive (“uma senhora modelo”, “uma santa”, “uma
fada”, “beata”), o que faz o leitor, em consonância com aqueles personagens que
esporadicamente com ela convivem, comover-se com sua dedicação e apiedar-se de
sua condição, determinada por circunstâncias cujo controle não está exatamente
em suas mãos (a infância pobre, o pai bêbado e a mãe “azeda”, de forma que o
casamento, aos vinte anos, mesmo com um pretendente “entrevado”, lhe pare-
cesse menos pesaroso que a situação em que vivia). A segunda parte da narrativa
sofre uma virada brusca: a presença do primo do marido aciona a manifestação de
uma natureza até então disfarçada, controlada e mesmo reprimida: Piedade revela
toda a violência de uma sensualidade incontida, de modo que, “[n]a articulação
progressiva das sequências narrativas verifica-se a oposição entre a inocência e a
perversão” (DI MUNNO, 1997, p. 55).
É evidente, pois, a intenção moralizante do conto, tão presente em toda a ficção
de Eça e condicionada à sua concepção da literatura como lição. Ressalte-se, ainda,
que a ação de “No moinho” se passa numa vila; segundo Amina Di Munno a vila
representa um espaço, “para o Eça sempre dividido entre a nota urbana e a rural,
idealmente equidistante da cidade e do campo e, por isso mesmo, abrangendo a
dualidade social e natural” (1997, p. 54). Se reconhecemos aí a importância do lugar
da experiência humana, como ressaltamos em nossa análise do conto “Civilização”,
notamos, por outro lado, que em “No moinho” não há uma oposição explícita entre
um e outro meio; a paisagem campestre é, aliás, como lembra Di Munno, “monóto-
na como a vida da protagonista” (1997, p. 54), mimetizando-a, em grande medida.
Neste conto não está presente, assim, a concepção eufórica e regeneradora da vida
128
no campo, mas sim a idéia de uma crise moral que atinge até os aparentemente mais Eça de Queirós e o olhar
crítico sobre seu tempo
imunes a ela, resguardados que pareciam estar no seu isolamento e no seu abando-
no, não suficientes, porém, para alijar deles a iminência da degradação, consideran-
do-se o rígido código de valores que orienta a visão de mundo do escritor realista.
Finalmente, vale ressaltar, apoiando-nos mais uma vez na avaliação da professora
e crítica literária italiana Amina Di Munno, que
É nesse sentido que acreditamos poder ter oferecido, pela análise de dois contos
de Eça, uma significativa amostragem da grandeza de sua produção ficcional e da
inegável importância que tem na edificação de uma literatura indispensável como a
portuguesa.
Referências
CANDIDO, Antonio. Entre campo e cidade. In: ________. Tese e antítese. 2. ed.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971. p. 29-56.
DI MUNNO, Amina. Eça de Queirós e a narrativa breve: uma leitura do conto “No
Moinho”. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE QUEIROSIANOS: 150 ANOS COM
EÇA DE QUEIRÓS, 3., 1997, São Paulo. Anais... São Paulo: Centro de Estudos
Portugueses; FFLCH/USP, 1997. p. 52-56.
QUEIRÓS, Eça de. Idealismo e realismo: Literatura comentada. São Paulo: Abril
Educação, 1980. p. 13-16.
129
LITERATURA
PORTUGUESA
Proposta de Atividades
1) Tomando como base o fragmento do conto “Civilização” transcrito abaixo, responda: po-
demos entender ironicamente, no contexto em que é inserida, a fala do conselheiro Pinto
Porto? Por quê? Que estratégias discursivas o narrador utiliza para imprimir o tom irônico
ao texto?
[...] Jacinto recolhera no fonógrafo a voz do conselheiro Pinto Porto, uma voz
oracular e rotunda, no momento de exclamar com respeito, com autoridade:
- Maravilhosa invenção! Quem não admirará os progressos deste século?
Pois, numa doce noite de S. João, o meu supercivilizado amigo, desejando que
umas senhoras parentas de Pinto Porto (as amáveis Gouveias) admirassem o
fonógrafo, fez romper do bocarrão do aparelho, que parece uma trompa, a
conhecida voz rotunda e oracular:
- Quem não admirará os progressos deste século?
Mas, inábil ou brusco, certamente desconcertou alguma mola vital – porque de
repente o fonógrafo começa a redizer, sem descontinuação, interminavelmente,
com uma sonoridade cada vez mais rotunda, a sentença do conselheiro:
- Quem não admirará os progressos deste século?
Debalde Jacinto, pálido, com os dedos trémulos, torturava o aparelho. A excla-
mação recomeçava, rolava, oracular e majestosa:
- Quem não admirará os progressos deste século?
Enervados, retirámos para uma sala distante, pesadamente revestida de panos
de Arrás. Em vão! A voz de Pinto Porto lá estava, entre os panos de Arrás, impla-
cável e rotunda:
- Quem não admirará os progressos deste século?
Furiosos, enterrámos uma almofada na boca do fonógrafo, atiramos por cima
mantas, cobertores espessos, para sufocar a voz abominável. Em vão! Sob a
mordaça, sob as grossas lãs, a voz rouquejava, surda mas oracular:
- Quem não admirará os progressos deste século?
As amáveis Gouveias tinham abalado, apertando desesperadamente os xales so-
bre a cabeça. Mesmo à cozinha, onde nos refugiámos, a voz descia, engasgada
e gosmosa:
- Quem não admirará os progressos deste século?
Fugimos espavoridos para a rua.
[...] Recolhemos ao Jasmineiro, com o sol já alto, já quente. Muito de manso
abrimos as portas, como no receio de despertar alguém. Horror! Logo da ante-
câmara percebemos sons estrangulados, roufenhos: “admirará... progressos...
130
século!...” Só de tarde um eletricista pôde emudecer aquele fonógrafo horrendo Eça de Queirós e o olhar
crítico sobre seu tempo
(p. 69-71).
Anotações
131
LITERATURA
PORTUGUESA
Anotações
132
7 Fernando Pessoa
e o modernismo
português
O poeta é um fingidor.
Fernando Pessoa
133
LITERATURA (1924-1925); entre 1927 e 1940 publica-se a revista Presença, que não só faz
PORTUGUESA ecoar o legado cultural da chamada Geração de Orpheu como, segundo alguns
autores, pode ser considerada o órgão cultural de um segundo Modernismo
português (REIS, 1995, p. 455-456, grifos do autor).
Além disso, talvez seja importante também assinalar, como lembra João Gaspar
Simões,1 que a instalação do Modernismo em Portugal foi lenta – embora estivesse em
sintonia cronológica com outros movimentos das primeiras vanguardas européias –,
por dois motivos, especialmente: primeiro, porque embora Baudelaire fosse conheci-
do dos portugueses desde a década de 1860 (mais precisamente, a partir de sua morte,
em 1867), aquilo que se pode considerar como “mais caracteristicamente moderno”
em sua obra só foi compreendido pelos precursores mais diretos do Modernismo por-
tuguês, já quase na virada do século: Cesário Verde, Gomes Leal, Camilo Pessanha,
Eugenio de Castro; segundo, porque, antes do aparecimento dos primeiros poetas re-
almente modernos em Portugal, ainda se assiste a uma tentativa de nacionalização da
poesia portuguesa inteiramente desvinculada das diversas manifestações estrangeiras
da arte moderna: o Saudosismo de Teixeira de Pascoaes, que, sem dúvida, constituiu
um nó, uma resistência à afirmação do Modernismo português, ainda que nas páginas
da Águia, órgão de divulgação do movimento, tenha estreado, como crítico, Fernando
Pessoa - e a sua idéia de um supra-Camões (Simões, 1983)2.
A revista Orpheu, então, marca, em março de 1915, o início “oficial” do primeiro
modernismo português. Seu título faz referência ao mito do poeta que desce aos infer-
nos, na esteira do que dizia Rimbaud (“O objetivo da arte é chegar ao desconhecido,
desfrutar o invisível, ouvir o inaudível”), ideário que já vinha marcando presença nas
estéticas finisseculares do Decadentismo e do Esteticismo, e que encontra eco na obra
de Mário de Sá-Carneiro - poeta fundador da revista, ao lado do próprio Pessoa -, como
1 As avaliações críticas desse autor têm parecido a alguns estudiosos de Pessoa, contemporanea-
mente, discutíveis; ele vem aqui citado por meio de um dado informativo e de um julgamento
que, no entanto, tomamos como pertinentes, considerando-se o eixo tratado em nossa reflexão:
Pessoa e o Modernismo.
2 O Saudosismo de Pascoaes, entretanto, empolgara jovens literatos de Lisboa. Pessoa mes-
mo entusiasmara-se com a proposta de revigoramento da cultura portuguesa a que Teixeira de
Pascoaes dava corpo no movimento da “Renascença Portuguesa”, que intentava criar um novo
Portugal – ou melhor, ressuscitar a Pátria portuguesa. Pacoaes assentava sua proposta no que
definia como uma filosofia autenticamente lusitana – o Saudosismo - , afirmando, no primeiro
número da revista Águia (1912), que dirigiu e que foi o órgão divulgador oficial do movimento,
que “a saudade é o próprio sangue espiritual da raça; o seu estigma divino, o seu perfil eterno”.
Dava à saudade, no entanto, um sentido profundo: o de “sentimento-idéia” ou de “emoção
refletida”. Este sentir pensando será absolutamente caro à estética de Pessoa, como celebram seus
conhecidos versos “O que em mim sente ‘stá pensando”, do poema do ortônimo “Ela canta,
pobre ceifeira”.
134
se verifica no seguinte fragmento, da novela intitulada “A grande sombra”, que integra Fernando Pessoa e o
modernismo português
Céu em fogo, livro publicado um ano antes do início do Orfismo em Portugal:
- O Mistério...
Oh! desde a infância esta obsessão me perturba – o seu encanto me esvai... No
quarto onde eu dormia receava longas horas antes de adormecer, no ondular
da luz indecisa da lamparina de azeite que deixavam sobre o toucador. Temia
que as sombras de súbito transviassem, animando-se – e monstros de bruma
corressem sobre mim aos esgares, arrepanhando-me... Horas longes, porém,
de medo infantil – só vos posso recordar em saudade. É que então, se sofria, a
minha febre era já a cores – voluptuosidade arraiada também. E assim, quantas
horas até, durante o dia, lasso dos brinquedos sempre iguais, eu ansiava a noi-
te, sinuosamente, para latejar a ela os meus receios prateados (SÁ-CARNEIRO,
1956, p. 39).
135
LITERATURA de sol por todos os lados soldados parados soldados cinzentos de um pró
PORTUGUESA outro lado pretos contra o sol por todos os lados curvados prá sombra sol-
dados cinzentos meios nus de brim cinzento de chumbo redondo de forma
com reflexos de lata ao sol cinzento impessoal de brim de parada quadrada e
fechada prá relva em espeques de brim pobre igual e mínimo sol de brim [...]
(ALMADA NEGREIROS, 1970, p. 37).
O non sense é instalado no texto pela frase desintegrada, já que dela se retirou
toda a pontuação, o que a faz, também, muito próxima da expressão oral (de que
são evidências o uso das contrações “co”, “prós”, “pra”); há no fragmento uma série
de elementos imagéticos justapostos, e não articulados, aproximando-se, este proce-
dimento discursivo, da colagem cubista, reveladora da recusa da lógica tradicional,
já que esta subordina e hierarquiza a realidade representada (daí que todo o texto se
constitua como um único período – considerando-se que seja possível categorizar
sintaticamente o fragmento); a intenção, como se infere, é justamente a de romper
com o convencionalismo da representação, mostrando o caráter de ruptura, de re-
beldia e de (re)invenção sempre associado à arte de vanguarda.
Na obra de Fernando Pessoa, talvez o heterônimo Álvaro de Campos seja aquele
em que fica mais evidente essa rebeldia, manifestada na intenção de chocar e até
numa certa agressividade que sugerem o inconformismo com um modo de vida
aburguesado, consumidor da Arte e símbolo da estagnação da cultura portuguesa
naquelas primeiras décadas do século XX. Os versos da “Saudação a Walt Whitman”
ilustram bem este tom provocativo, marcado pela pontuação expressiva, pelo vo-
cabulário e pela sintaxe coloquiais, pela função fática dos verbos que convocam o
leitor, aproximando-o ainda mais da realidade re(a)presentada no poema:
[...]
Vamos lá pra frente sem ser para parte nenhuma...
Infinito! Universo! Meta sem meta! Que importa?
136
Aos trambolhões me inspiro, Fernando Pessoa e o
Mal podendo respirar, ter-me de pé me exalto, modernismo português
3 O Sensacionismo é a corrente literária que considera a sensação como base de toda a arte.
Segundo Fernando Pessoa, são três os princípios do Sensacionismo: 1) Todo objeto é uma sensa-
ção nossa; 2) Toda a arte é a conversão de uma sensação em objeto; 3) Toda a arte é a conversão
de uma sensação numa outra sensação.
137
LITERATURA Camões4, bem como em contemporâneos de Pessoa, como o poeta modernista bra-
PORTUGUESA
sileiro Mário de Andrade5, em Pessoa essa “multiplicação do eu” é levada à máxima
potência expressiva, a ponto de efetivar-se pela criação de personalidades poéticas
distintas, com uma história pessoal própria e estilos poéticos característicos, indivi-
dualizadores, tornando cada poeta criado por Pessoa um “ser” único. Para fazer arte,
o eu tem que se anular: esta é a síntese de muito do que afirma Pessoa. Há, portanto,
uma sugestão de “desumanização” no processo heteronímico. Como defende José
Saramago6, “os heterónimos, mais do que ‘drama em gente’, são, cada um deles, a
expressão individualizante de um conteúdo plural que se tornou singular no seu
fazer-se, um ser que é diferente porque diferente foi o fazer dele.” Ou seja, estamos
no amplo campo da ficcionalização, da reinvenção “de si mesmo”, plenamente pos-
sível nos domínios da linguagem: tudo é palavra, tudo é criação, mesmo aquela que
Fernando Pessoa assina com seu próprio nome – a conhecida obra ortônima. “Para
o auto-sentimento cristão” – diz o “Ultimatum” de Álvaro de Campos, publicado no
primeiro número da revista Portugal Futurista, em 1927 – “o homem mais perfeito
é o que mais verdadeiramente possa dizer ‘eu sou eu’; para a ciência, o homem mais
perfeito é o que com mais justiça possa dizer ‘eu sou todos os outros.”
É famosa a carta em que Fernando Pessoa explica a seu amigo Adolfo Casais Mon-
teiro7 como “nasceram” os heterônimos. Dela transcrevemos abaixo alguns trechos,
suficientes para revelar como Pessoa concebia a heteronímia e como procedia na sua
“concretização”:
138
Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictí- Fernando Pessoa e o
cio, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram (Não sei, modernismo português
bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo.
Nestas cousas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) [...]
Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este
mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases,
entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de
espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou,
ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamen-
te, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história
acrescentava, e cuja figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamen-
te eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e
conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta
anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo... E tenho
saudades deles.
(Em eu começando a falar – e escrever à máquina é para mim falar –,
custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro!
Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o
que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história
da mãe que os deu à luz.)
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia
escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas em verso irre-
gular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regula-
ridade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra
mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo (Tinha
nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida
ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada,
e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de reali-
dade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em
que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de
uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como
escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa
espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal
da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O
Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém
em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me
o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação
imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tan-
tos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também,
os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa.
Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto
Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando
Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
É curioso notar, neste final da carta, que Pessoa fala de Fernando Pessoa – o
poeta a que regressa depois de criar Alberto Caeiro – como ele, o que reforça a
ideia sugerida por Saramago, no fragmento anteriormente transcrito, de que todos
os poetas (os heterônimos e o ortônimo) devem ser lidos como sua invenção, como
139
LITERATURA “ficção”,8 o que coloca em cena o tema a isso relacionado do fingimento poético, que
PORTUGUESA
põe em questão a confessionalidade do eu lírico – tópico do qual já tratamos em
Garrett -, dando a ele, porém, maior complexidade, já que, como lemos no poema “Au-
topsicografia”, o poeta pode fingir que é dor a dor que de fato sente, impossibilitando
que se assente definitivamente qualquer limite entre a ficção e a confissão:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
8 Continua Saramago: “Posta a questão nestes termos, seria fascinante ler Ricardo Reis como
Ricardo Reis, e não como Fernando Pessoa. E o mesmo com Álvaro de Campos. Ou Alberto
Ceiro. Ou Bernardo Soares.[...] E finalmente duvidar que os poemas ortónimos tenham sido
realmente escritos por um Fernado Pessoa, tal como ele, com esse próprio nome, duvidou da sua
existência.” A radicalidade da proposta de José Saramago, ainda que de difícil execução, dada a
tradição que nos ensina serem todos Fernando Pessoa, merece, no entanto, nossa atenção, pelo
que pode mostrar do quanto ainda falta estudarmos e refletirmos sobre a tão densa questão da
heteronímia pessoana.
140
nos parecer sempre tão atual9. Nas Páginas íntimas e de auto-interpretação (1966, Fernando Pessoa e o
modernismo português
p. 164), encontra-se um texto em que Pessoa exprime uma avaliação sobre a sociedade
em que vivia, dizendo tratar-se de
9 Em Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna (1996, p. 25), Baudelaire afirma que
“a Modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente; é a metade da arte, sendo a outra
metade o eterno e o imutável”. Essa afirmação sustenta dois eixos de reflexão sobre a literatura
da modernidade que desejamos aqui destacar, em consonância com o propósito inicial deste
texto: um, o que aponta para a incorporação, pela arte, dos traços dessa modernidade, cuja repre-
sentação mais antológica talvez esteja nos “Tempos Modernos” (1936), de Chaplin, em que se
expõe o homem moderno triturado pelas engrenagens de uma produção industrial desenfreada,
caracterizando um estágio de civilização exteriormente pujante e eufórico, mas atravessado, no
seu interior, por tensões e excessos de muito problemática harmonização. A modernização passa
a impor-se de forma quase obsessiva e, pela sua desmesura e desumana intensidade, suscita dú-
vidas, ansiedades, resistências. Por outro lado, a afirmação de Baudelaire aponta para a “outra
metade da arte” – o eterno e imutável, que implica a busca de uma expressão própria, única e
que se irmana à aspiração de toda arte: transcender a contingência, permanecer. É evidente que
a poesia de Pessoa é capaz de responder a essa dupla expectativa de, simultaneamente, dar conta
de um determinado “estágio civilizacional” e de uma expressão artística singular.
141
LITERATURA Entre “aquilo que deve ser ensinado”, nesse sentido, destaca-se a preocupação hora-
PORTUGUESA
ciana de despertar a consciência para a brevidade da vida, o que culminará no tópico
do carpe diem, tão característico a esta visão de mundo. Daí a frequência com que a
referência ao tempo através da metáfora do rio (que não permite que se o pise duas
vezes) aparecerá nos poemas de Reis. No entanto, a solução final dada por ele aos
grandes temas horacianos é diversa da de seu inspirador: a decisão do heterônimo
pessoano é a de aceitar a vida como ela é, com resignação e renúncia, aderindo ao seu
ritmo inelutável (“Só de aceitar tenhamos a ciência”10), ao passo que, para Horácio, a
“solução” é a de viver a vida enquanto dure, o que implica forte impulso para fazer a
vida agradável pela imersão nos bons momentos.
Também o tópico clássico da aurea mediocritas determina a cosmovisão reisiana.
Ela se pauta pela temperança, pela rejeição dos extremos, uma vez que tem a equani-
midade como fonte de sabedoria, associada à consciência da fugacidade da vida. Isso
significa que o poeta “ensinará” a busca por uma disposição equânime e imperturbável
diante das dificuldades e das alegrias; o que rege esse modo de ser e de sentir na poe-
sia de Ricardo Reis é a consciência da morte, ainda que seu poder seja introduzido nas
odes de modo indireto, eufêmico: “Não consentem os deuses mais que a vida”, dirá,
nesse sentido. A consequência dessa visão de mundo é o sentimento de desimportân-
cia dos bens materiais, do poder e da glória mundanos.
Todas essas características da concepção poética de Ricardo Reis podem ser exem-
plarmente reconhecidas no poema que segue:
Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,
Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
142
De Natureza... Fernando Pessoa e o
modernismo português
Á beira-rio,
à beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.
O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.
Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.
Girassóis sempre
Fitando o Sol,
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.
Seja, então, pela intenção de apresentar-se como pagão em sua visão de mundo e
clássico em sua expressão, o que supõe uma ascese e um despojamento pouco condi-
zentes com o contexto em que seus poemas foram criados; seja pelas constantes refe-
rências filosóficas e mitológicas que os permeiam; seja, ainda, pela sintaxe rebuscada
e pela aparência de frieza, de distanciamento que suas odes expressam, Ricardo Reis é
considerado um dos mais difíceis dos heterônimos pessoanos. A atenuar esta avaliação,
temos a considerar, em primeiro lugar, a sua preocupação em supor um interlocutor
(virtual ou textualmente presente), característica que se liga ao caráter doutrinário de
sua poesia, manifestada no tom exortativo dos poemas, provocando, então, a empatia
já referida; em segundo lugar, o fato de que é muito claro (e declarado) o “suporte”
filosófico de sua visão de mundo, o que facilita o reconhecimento e a compreensão de
143
LITERATURA suas idéias: vem este suporte dos epicuristas11 e dos estóicos – os primeiros tentando
PORTUGUESA
concentrar-se no momento e vivê-lo intensamente, em busca do prazer mas condicio-
nados pela ataraxia (a imperturbabilidade diante da vida); os segundos perseguindo
um estado de indiferença no qual nada deveria perturbá-los em sua busca pela virtude.
No entanto, considerando a proposição fundamental de que o poeta é um fingidor,
poderíamos nos indagar: Ricardo Reis simula uma paz que não tem? Parece a ela ter
chegado só pelo pensamento – daí dar a si mesmo a ilusão de ter alcançado a almejada
serenidade e impassibilidade. Parece-nos ser, portanto, mais um fingidor, que simula a
vida que diz ter: “Nós, o que nos supomos, nos fazemos”, diz na ode “Gozo sonhado”.
Vem disso o seu “epicurismo triste”, “à beira-mágoa”, que reflete o sonho que ele sabe
ser apenas um sonho, já que conseguir alcançar a felicidade através do Epicurismo é
quase uma desumanização, uma vez que ele supõe uma “indiferença olímpica” que
não temos coragem nem condições de ter.12
Estes paradoxos que começamos a ver delineados na poesia de Pessoa correspon-
dem, em nossa proposta de análise, aos paradoxos da modernidade artística, em
seus traços mais gerais, os quais poderiam assim ser sintetizados: a imaginação é ex-
tremamente racionalizada – trabalhada racionalmente - , para levar ao leitor determi-
nados efeitos; pela imaginação consciente, o artista atingiria o que é essencial no tran-
sitório (e nisso consiste exatamente a modernidade de um artista, para Baudelaire,
acima citado); estilisticamente, adquirem relevo a fragmentação e o simultaneísmo (e
o que se tem em mira é a unidade da obra); enfatiza-se a idéia da criação fundadora, do
novo que, segundo afirma Ricardo Reis, deve conter em si um dado de revisionismo:
Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde
se note que existiu Homero. A novidade em si mesma, nada significa, se não
houver nela uma relação com o que a precedeu. Nem, propriamente, há novi-
dade sem que haja essa relação. Saibamos distinguir o novo do estranho, o que,
conhecendo o conhecido, o transforma e varia, e o que apareceu de fora, sem
conhecimento de coisa nenhuma (PESSOA, 1966, p. 106).
11 O Epicurismo é uma filosofia prática: quer ensinar como viver bem, com menos dor, atra-
vés do prazer (mas não os imediatos): a ausência de sofrimento e angústia significava o prazer
máximo, o objetivo perseguido pelos epicuristas. É uma filosofia que decorre da consciência do
tempo e que assim enuncia seus “procedimentos” práticos: 1) é preciso pesar as consequências
do prazer para que ele não se transforme num sofrimento (“prazer refletido”); 2) é preciso ba-
nir a preocupação com o dia de amanhã, com os deuses (que são “homens aperfeiçoados” que
mantêm uma atitude serena, distante, impassível e, por isso, são paradigmas para a existência
dos homens, que, nessa perspectiva, são “deuses virtuais”) e com morte (porque a vida se baseia
nas sensações).
12 Parece-nos brilhantemente problematizada essa “indifernça olímpica” (e falhada) de Reis no
romance de José Saramago O ano da morte de Ricardo Reis (1984), cuja leitura sugerimos em
complemento à reflexão sobre a poesia de Fernando Pessoa e seus heterônimos.
144
Um último paradoxo ainda merece ser apontado – talvez o mais fundamental para Fernando Pessoa e o
modernismo português
o “caso” de que tratamos: o de uma acentuada despersonalização que está em estreita
inter-relação com uma igualmente acentuada subjetivização.
Vejamos como esse paradoxo se realiza: se, na representação do real pelo fazer
artístico, ele, o real, é transfigurado pela imaginação (no sentido de “criação com o
pensamento”), isso só é possível a partir da idéia de um sujeito que acredita no seu
potencial infinito de criação; no entanto, por conta disso mesmo, podemos chegar à
conclusão de que todas as realidades se tornam ficções subjetivas. Isso contribui para
o que se pode chamar de uma desestabilização de um sentido coletivo, “comunitário”
da realidade e, no limite, para a destruição da coesão do caráter individual,. levando
àquela despersonalização que se fundamenta numa contenção “anticonfessional”.
No poema moderno, o autor não é o “eu” do texto (que é construído racional-
mente); daí a reformulação do conceito de sinceridade poética – e o remetamos, aqui,
para o fingimento que gera os heterônimos, como vimos. Com eles – mais uma vez,
paradoxalmente – se recupera a possibilidade da subjetividade (no sentido do sujeito
que transfigura o real pela força da sua imaginação criadora e consciente): “O que a
poética modernista da impessoalidade e da extrema subjetividade têm em comum (e
isto compensa o que as possa separar) é uma revolta contra a relação tradicional do
sujeito com o mundo exterior” (REIS, 1995, p. 466).
A partir dessas considerações é que propomos a análise do seguinte poema de
Fernando Pessoa ortônimo, leitura em que o relacionaremos à perspectiva da repre-
sentação da realidade, acoplada à crise do sujeito na modernidade (como a poesia de
Pessoa problematiza essa questão fundamental?)
De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?
Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Para mim próprio mesmo
Em alma mal existo,
Toma um outro sentido
Em mim o Universo –
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha idéia das coisas.
145
LITERATURA Se acenderem as velas
PORTUGUESA E não houver apenas
A vaga luz de fora –
Não sei que candeeiro
Aceso onde na rua –
Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é a minha vida agora:
Um momento afluente
Dum rio sempre a ir.
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nulo
E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa
Metafisicamente.
Embora este poema não pertença à série da “Chuva Oblíqua”, com freqüência to-
mada como o mais característico exemplo do Interseccionismo13 pessoano, parece-nos
lícito emoldurar também este terceiro poema de uma outra série com os termos que,
para Carlos Reis (1995), definem esta faceta – este “ismo” – da poética do Modernismo.
Para o crítico português, o Interseccionismo ilustra a preocupação modernista com a
percepção do real e com a sua representação, em função do olhar e das sensações do
sujeito que com esse real se relaciona – uma relação que envolve também uma defini-
ção de coordenadas espaço-temporais, regida por um dinamismo que anuncia um tema
fundamental do Modernismo: o da crise da unidade do sujeito (REIS, 1995, p. 458).
Esse olhar, que vem textualmente marcado já no primeiro verso do poema, confirma
que o que está em jogo, ali, é a forma de percepção da realidade, configurando um dos
eixos sustentadores da poética pessoana: a realidade da vida é a sensação; a realidade
da arte, a consciência da sensação. É um olhar que, entretanto, espreita – espia, inves-
tiga, intromete-se num outro olhar, caracterizando uma simultaneidade não exclusiva
entre duas realidades. Dizendo melhor: esta simultaneidade, ou esta ambivalência de
sensações provocada pelo duplo olhar, tende a criar no sujeito que observa e sente uma
divisão que o coloca no limiar da fragmentação heteronímica – e quantas recorrências
à idéia de cisão se apresentam nestas duas primeiras estrofes do poema!
146
A dualidade existencial que os versos constróem, então – essa expressão labiríntica Fernando Pessoa e o
modernismo português
do outro em si mesmo –, pode aproximar-se do que Octavio Paz define, em O arco e
a lira, como a outridade: “Experiência feita do tecido de nossos atos diários, a outri-
dade é antes de mais nada a percepção de que somos outros sem deixarmos de ser o
que somos, e que, sem deixarmos de estar onde estamos, nosso verdadeiro ser está em
outra parte.” (PAZ, 1982, p. 325). A não-coincidência do homem consigo mesmo – esta
mesma impossibilidade de coincidência, marca recorrente da poética pessoana – pa-
rece ter levado Leyla Perrone-Moisés (1982) a caracterizar o “eu do texto” de Pessoa
como lacunar, vazio, “ao lado”. No grande poeta português, a crise do sujeito da mo-
dernidade envolve a fragmentação heteronímica, já sugerida neste poema ortônimo.
Tal fragmentação, evidentemente, não é percepção exclusiva de Pessoa, como disse-
mos, mas nele se realiza exponencialmente porque envolve um ato de fingimento que
se completa numa “linguagem pluridiscursiva responsável”, como se expressa Carlos
Reis (1995) ao definir os estilos poéticos próprios dos heterônimos.
O jogo de luz e sombra que o poema instala (o que há por trás das coisas, quando
se apaga a luz? – exatamente como vimos em Sá-Carneiro) contribui não só para a
construção de um sentimento de irrealidade de todas as coisas como prepara a mani-
festação plena, na última estrofe, da dissolução do sujeito, que acaba por caracterizar
o desenlace até certo ponto frustrante de todo um esforço de auto-conhecimento,
de interrogação ontológica e moral que se “resolve” num radical relativismo – para
dizer o mínimo -, uma vez que as palavras com que o poema praticamente se encerra
propõem uma visada francamente niilista. Isto porque ao problematizar a questão da
existência, o poeta tropeça em “soluções-confusões” que talvez sugiram – mais uma
vez paradoxalmente – que a “vida autêntica” só se realiza na confluência dessa diver-
gência entre “eu” e “outro”; mais do que isso, até, o “eu sou eu” de matriz cartesiana
é substituído pelo “eu sou todos os outros” da criação artística pessoana, que, se não
leva a um pleno deciframento do ser, reitera a validade do percurso em detrimento
do “fim”: “E assim a hora passa/metafisicamente”. O paradoxo da subjetivização an-
teriormente apontado atinge expressão modelar nessa última estrofe do poema, ao
colocar em cena o desejo de inconsciência e a consciência dele: este espaço entre que
a penumbra, a nódoa esbatida, os foscos desejos, as velas e a vaga luz de fora poetica-
mente configuram.
Retomando, finalmente, o motivo condutor dos comentários feitos – como a poe-
sia de Pessoa lida com a questão da representação? –, consideramos que este sujeito
disforme, oblíquo, “em trânsito” do poema analisado só poderia, mesmo, chegar a
conclusão idêntica à dos heterônimos (que é também a do sujeito moderno cindido
que eles poeticamente referem): a “realidade” é uma ilusão, uma insignificância, uma
147
LITERATURA vez que, como expressa Nietzsche (2004, p. 222), “O mundo, para nós, voltou a tornar-
PORTUGUESA
se infinito, no sentido em que não lhe podemos recusar a possibilidade de se prestar
a uma infinidade de interpretações.” É nesse sentido que, parece-nos, a criação dos
heterônimos, em Pessoa, figurativiza muito mais uma indecisão do que uma solução.
Não é uma tentativa de criar visões de mundo modelares que permitissem ao leitor
optar por aquela que lhe parecesse mais correta ou conveniente.O que se afirma é, no
máximo, a possibilidade de se estar entre esses lugares. Daí o entendimento, possivel-
mente paradoxal, de que o sujeito se afirma na sua própria dissolução, na sua própria
impossibilidade de ser um, íntegro, total.
Para representar poeticamente esta impossibilidade de unidade, Pessoa cria heterô-
nimos até contraditórios entre si. Vimos acima como à ultramodernidade de Campos
se contrapõe a estirpe clássica de Reis. No mesmo sentido, à ideia de que há algo que
se oculta para além do que vemos, um sentido para as coisas a ser perscrutado na
penumbra, nas sombras, nas entrelinhas, captado pela emoção racionalizada que o
verso emblemático “o que em mim sente ‘stá pensando” define – tudo isso presente
no poema do ortônimo que acabamos de ler -, opõe-se, em grande medida, a visão
de mundo do mestre Alberto Caeiro. Ele não aceita o mistério, a transcendência ou a
metafísica. “Há metafísica bastante em não pensar em nada”, dirá.14 O poema XXIV de
O Guardador de rebanhos nos ajuda a entender melhor esta concepção:
148
direta do “estado de natureza”). De todo modo, é preciso “estreitar o corredor” que Fernando Pessoa e o
modernismo português
vai da palavra à coisa, estabelecer uma ponte cada vez menor entre o sujeito e aquilo
que ele vê, tomando o olhar, aqui, também papel preponderante, mas num sentido
diferente daquele que tem na poesia do ortônimo. A visão deve ser clara, limpa, dire-
ta. As coisas devem surgir virgens ao olhar, mostrando uma face diferente a cada vez,
surpreendendo-o. Por isso o olhar deve ser atento (“Saber ver quando se vê”).
Vêm reforçar esta busca de uma (re)integração com o mundo natural os tópicos
do locus amoenus e do fugere urbem, os quais criam, no conjunto dos poemas de O
guardador de rebanhos, uma atmosfera harmônica, iluminada por um sol que parece
eterno, contribuindo para a visão clara das coisas.
Em Caeiro, então, o homem realiza sua natureza ao integrar-se à Natureza – ou an-
tes, ao compreender que ela está integrada nele. Nesse sentido, alcança a eternidade.
Estatuto equivalente à natureza adquire, nesse sentido, a própria criação poética, já
que ela é capaz de também eternizar. Esta talvez seja a única e plena verdade que se
possa estabelecer diante da tão complexa, arrebatadora e eterna poesia de Pessoa: o
sentido afirmativo da existência transita pela criação poética. Ela é que será responsá-
vel pela superação de toda contingência e pela eternidade que constitui a outra me-
tade da arte, como vimos em Baudelaire (1996). Para ressaltar isso, encerrando nossa
aproximação ao poeta, fica a proposta de leitura do poema XLVIII de
O guardador de rebanhos:
Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a Humanidade.
149
LITERATURA
PORTUGUESA Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
A beleza extasiadora do poema não nos deve impedir de verificar que aqui também
há um sujeito que observa – “da mais alta janela da minha casa” – e age – “digo adeus/
aos meus versos que partem para a Humanidade”. Entretanto, recusa-se a interpretar
o destino de seus versos: contempla, constata e se submete... Convoca esta mesma
humanidade: que juízo o poeta quer que façamos dele? O de “qualquer coisa natural”,
porque a natureza existe para sempre: se não “em si mesma”, ao menos no movimento
cíclico do cosmos e nos vestígios de fecundidade que ela, natureza, vai disseminando.
Assim também os versos do poeta; assim também a sua existência, dispersa, multiplica-
o e fortalece-o: porque “a dispersão não é pluralidade, mas repetição: sempre o mesmo eu
que combate cegamente um outro eu cego” (PAZ, 1982, p. 318). Para exprimir essa luta,
que é sempre a busca de um sentido, é bom não esquecer de Pessoa, porque “a literatura,
como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta”(PESSOA, 1995, p. 504).
Referências
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin
Claret, 2004.
150
PAZ, Octavio. O arco e a lira. 2. ed. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fernando Pessoa e o
modernismo português
Fronteira, 1982.
Proposta de Atividades
1) A partir da leitura do poema “Isto”, “assinado” pelo ortônimo, disserte sobre o tema do
fingimento poético que está na base da concepção da heteronímia pessoana.
151
LITERATURA Livre do meu enleio,
PORTUGUESA
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
2) Aponte e exemplifique, na ode de Ricardo Reis que segue, as suas principais características
temáticas e formais:
4) Que princípios regem a concepção de vida e de poesia em Alberto Caeiro, sugeridas por
este fragmeno do poema XXXIX de “O Guardador de Rebanhos”?
Anotações
152
8 A produção
literária
contemporânea:
José Saramago
Costuma-se marcar o ano de 1974 como aquele que determina a referência ao que
é a produção contemporânea em Portugal, por conta de um acontecimento histórico
de enorme relevância que, de fato, estabeleceu novas diretrizes político-sociais, ideo-
lógicas e culturais no país: a Revolução dos Cravos. Após cerca de cinquenta anos de
vigência de um regime político autoritário que teve à frente, por longo tempo, Oliveira
Salazar – daí a ditadura portuguesa ser conhecida como o salazarismo -, uma rebelião
militar apoiada maciçamente pela população dá início a um novo período em que mu-
dam as instituições e formas de “estar no mundo” que alteram as relações do homem
com o seu contexto - e isso incide significativamente sobre o ato criador. Assim, a Re-
volução de 74 delimita, ainda que de forma não excludente (pois, no âmbito artístico,
como a seguir discutiremos, não é contemporâneo só o que vem depois da revolução),
um novo modo de ser da literatura portuguesa que, entretanto, herda dos movimentos
precedentes uma série de aquisições estilísticas e experiências formais que serão con-
jugadas de forma significativa no desenvolvimento de temas mais diretamente ligados
às novas circunstâncias históricas que a partir de então se estabelecem.
É nesse contexto que surgirão nomes importantes, como o de José Saramago, certa-
mente o mais renomado escritor português da atualidade, ganhador do Prêmio Nobel de
Literatura em 1998 – o único até hoje atribuído a um escritor de língua portuguesa -, ao
mesmo tempo em que outras vozes, conhecidas já no período pré-revolucionário (como
a de José Cardoso Pires, por exemplo), se afirmam e se expandem, o que nos permite
avaliar como bastante fecunda a produção literária em Portugal nas últimas décadas.
No entanto, tratar da literatura contemporânea é sempre bastante complexo, já
que, como afirma a ensaísta portuguesa Maria Alzira Seixo, “o contemporâneo é o
que está conosco” (1986, p. 169). Esta ausência de distanciamento entre a leitura e a
produção dos textos constitui um desafio ainda maior à crítica literária, uma vez que os
escritores vivos estão, regra geral, em plena efervescência criativa, modificando muitas
vezes a direção de sua escrita, tratando de novos temas, sob novas formas, impedindo
153
LITERATURA qualquer compreensão ou avaliação mais “estável” de sua produção. Por outro lado,
PORTUGUESA
acompanhar uma escrita que se faz “à nossa vista”, da qual podemos seguir o modo
como é recebida por crítica e público, ou mesmo as polêmicas que muitas vezes em
torno dela se cria; a possibilidade de olhar, de ler o nosso mundo pela mediação da fic-
ção, abrindo horizontes muitas vezes insuspeitados para a compreensão dos grandes
temas que nos afetam são motivos mais que suficientes para que nos entreguemos sem
hesitação ao prazer que esses textos nos podem proporcionar, a despeito do desafio
que sua leitura certamente representa.
Para chegarmos a uma sistematização das principais tendências da literatura con-
temporânea em Portugal, consideramos importante passar rapidamente pelos movi-
mentos literários que ocuparam o século XX após o momento inaugural do Modernis-
mo no país, tão bem representado pela figura exponencial de Fernando Pessoa.
OS ANTECEDENTES SIGNIFICATIVOS
Em 1927, inicia-se o chamado segundo modernismo português – o Presencismo -,
cuja relação com o movimento precedente não será de polêmica ou de ruptura, mas,
em grande medida, de continuidade; os escritores reunidos em torno da revista Presen-
ça irão valorizar o que caracterizavam como uma literatura viva1, em oposição a uma
literatura livresca que viam como estéril e “oficialesca”, sem qualquer contribuição sig-
nificativa para a expressão poética do que entendiam como a arte moderna em Portugal.
Por conta disso, irão resgatar autores que consideravam esquecidos, mas indispensá-
veis, como Camilo Pessanha, o grande nome do Simbolismo português, e irão publi-
car intensamente os que consideravam “mestres contemporâneos” – Fernando Pessoa,
Mário de Sá-Carneiro e Almada-Negreiros –, denominando-os assim porque “mestres
contemporâneos são os homens que, pior ou melhor, exprimem as tendências mais
avançadas do seu tempo, isto é: a parte do futuro que já existe no presente” (RÉGIO
apud MOISÉS, 1980, p. 318). Muitas polêmicas e dissidências irão marcar a história da
Presença, que será publicada até 1940, ano que marca “oficialmente” o estabelecimento
do Neo-Realismo em Portugal.
Este novo movimento literário terá grande importância porque assume a necessida-
de, naquelas circunstâncias contextuais, de a literatura exercer uma função que, se as
1 José Régio, no primeiro número da Presença, assim sintetiza o programa de ação do movimen-
to: “Em Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem,
mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística [...] Pretendo aludir nestas linhas
a dois vícios que inferiorizam grande parte da nossa literatura contemporânea, roubando-lhe
esse caráter de invenção, criação e descoberta que faz grande a arte moderna. São eles: a falta de
originalidade e a falta de sinceridade” (RÉGIO apud MOISÉS, 1980, p. 317-318).
154
condições históricas fossem diferentes, poderia ser assumida por outras instituições, A produção literária
contemporânea: José
como a imprensa, os partidos políticos, os sindicatos, etc. De que estamos falando? Em Saramago
155
LITERATURA da própria estrutura narrativa; a expressão de um fluxo verbal caótico e cauda-
PORTUGUESA
loso que nem sempre distingue quem fala; a mescla do real com o imaginário,
o onírico e o fantástico; a presença do estilo dubitativo como forma de desven-
darem-se as várias camadas do real e de suas possibilidades de verdades, dando
do mundo uma imagem incerta e cambiante. Essas características estarão muitas
vezes presentes na literatura portuguesa pós-74
2) o Existencialismo, na década de 1950, que tem em Vergílio Ferreira seu nome
de maior destaque e no retorno à subjetividade, ao “eu” que dá medida ao
mundo a sua característica mais imediatamente reconhecível, em substituição
às situações e personagens coletivos e à objetividade narrativa que marcavam a
literatura neo-realista; diretamente influenciado pela filosofia existencialista de
Sartre e de Heidegger, o existencialismo elegerá como tema dominante a busca
do sentido da vida, da compreensão da vida diante da morte e da passagem
inexorável do tempo, problematizada a partir da reflexão sobre a incomunica-
bilidade entre os seres e dominada pelo ceticismo e pela angústia geradas pela
crise existencial do pós-guerra;
3) o Experimentalismo, que domina os anos 60, quando a narrativa se apropria de
experiências formais mais ligadas à expressão poética, como o aproveitamento
significativo do espaço da página, e investe na rarefação da ação em proveito da
criação de certo “clima”, com personagens e situações só vagamente delineadas
e onde a descrição é mais frequente que a narração; outro elemento fundamen-
tal definidor desta nova relação do escritor com a linguagem é justamente a que
a coloca como o próprio objeto de interesse da criação literária: o texto fala
dele mesmo, de seu próprio fazer, caracterizando a presença da metanarrativa,
a ser cada vez mais explorada pelos escritores interessados em incitar uma pro-
blematização da narrativa, desejosos de compreender mais amplamente não
só a realidade circundante como a própria estrutura romanesca que dá forma à
sua representação.
Diante dos ganhos formais e temáticos que as tendências estéticas brevemente as-
sinaladas trazem em relação ao movimento neo-realista, a publicação do romance O
Delfim, de José Cardoso Pires, em 1968, é considerada um marco na trajetória da lite-
ratura portuguesa, justamente por, de dentro do Neo-Realismo – já que Cardoso Pires
era um de seus mais renomados representantes – promover o resgate do discurso e
mesmo a subversão da exigência do romance realista de “refletir” a vida (lembremos, a
propósito, o prefácio do romance Gaibéus, de Alves Redol, publicado em 1939 e con-
siderado o marco inicial do Neo-Realismo português, em que o autor afirma pretender
156
que sua narrativa atue como um documento da realidade ali representada). Sem per- A produção literária
contemporânea: José
der o sentido crítico da realidade e sem deixar de denunciar a opressão, em diferentes Saramago
157
LITERATURA cujo “ideário”, centrado na problematização do imaginário e do dogmatismo cristão,
PORTUGUESA
é retomado no até agora último romance publicado por Saramago, Caim, de 2009.
158
humanista, sempre empenhado em revelar a força de penetração da literatura como A produção literária
contemporânea: José
transformadora do homem e do meio social. Saramago
159
LITERATURA recolheu-se o provincial à província para ordenar os actos congratulatórios ade-
PORTUGUESA quados e dar a boa nova, ficou o rei, que está em sua casa, agora esperando que
regresse o almoxarife que foi pelos livros da escrituração, e quando ele volta
pergunta-lhe, depois de colocados sobre a mesa os enormes in-fólios, Então
diz-me lá como estamos de deve e haver. O guarda-livros leva a mão ao queixo
parecendo que vai entrar em meditação profunda, abre um dos livros como
para citar uma decisiva verba, mas emenda ambos os movimentos e contenta-se
com dizer, Saiba vossa majestade que, haver, havemos cada vez menos, e dever,
devemos cada vez mais, Já o mês passado me disseste o mesmo, E também o
outro mês, e o ano que lá vai, por este andar ainda acabamos por ver o fundo ao
saco, majestade, Está longe daqui o fundo dos nossos sacos, um no Brasil, outro
na Índia, quando se esgotarem vamos sabê-lo com tão grande atraso que pode-
remos então dizer, afinal estávamos pobres e não sabíamos, Se vossa majestade
me perdoa o atrevimento, eu ousaria dizer que estamos pobres e sabemos,
Mas, graças sejam dadas a Deus, o dinheiro não tem faltado, Pois não, e a minha
experiência contabilística lembra-me todos os dias que o pior pobre é aquele a
quem o dinheiro não falta, isso se passa em Portugal, que é um saco sem fundo,
entra-lhe o dinheiro pela boca e sai-lhe pelo cu, com perdão de vossa majesta-
de, Ah, ah, ah, riu o rei, essa tem muita graça, sim senhor, queres tu dizer na
tua que a merda é dinheiro, Não, majestade, é o dinheiro que é merda, e eu
estou em muito boa posição para o saber, de cócoras, que é como sempre deve
estar quem faz as contas do dinheiro dos outros. Este diálogo é falso, apócrifo,
calunioso, e também profundamente imoral, não respeita o trono nem o altar,
põe um rei e um tesoureiro a falar como arrieiros em taberna, [...] porém, isto
que se leu é somente a tradução moderna do português de sempre, posto o
que disse o rei, A partir de hoje, passas a receber vencimento dobrado para que
te não custe tanto fazer força, Beijo as mãos de vossa majestade, respondeu o
guarda-livros (SARAMAGO, 1983, p. 281; 283-284).
160
caso, construído: o convento e a passarola, máquina de voar idealizada pelo inventor A produção literária
contemporânea: José
e cientista de existência real – o Pe. Bartolomeu Lourenço de Gusmão – que será Saramago
Baltasar entrou logo atrás do padre, curioso, olhou em redor sem compreender
o que via, talvez esperasse um balão, umas asas de pardal em maior, um saco de
penas, e não teve mão que não duvidasse, Então é isto, e o padre Bartolomeu
Lourenço respondeu, Há-de ser isto, e, abrindo uma arca, tirou um papel que
desenrolou, onde se via o desenho de uma ave, a passarola seria, isso era Balta-
sar capaz de reconhecer, e porque à vista era o desenho um pássaro, acreditou
que todos aqueles materiais, juntos e ordenados nos lugares competentes, se-
riam capazes de voar. Mais para si próprio do que para Sete-Sóis, que do dese-
nho não via mais que a semelhança da ave, e ela lhe bastava, o padre explicou,
em tom primeiramente sereno, depois animando-se, Isto que aqui vês são as
velas que servem para cortar o vento e que se movem segundo as necessida-
des, e aqui é o leme com que se dirigirá a barca, não ao acaso, mas por mão e
ciência do piloto, e este é o corpo do navio dos ares, à proa e à popa em forma
de concha marinha, onde se dispõem os tubos do fole para o caso de faltar o
vento, como tantas vezes sucede no mar, e estas são as asas, sem elas como se
haveria de equilibrar a barca voadora, e destas esferas não te falarei, que são
segredo meu, bastará que te diga que sem o que elas levarão dentro não voará
a barca, mas sobre este ponto ainda não estou seguro, e neste tecto de arames
penduraremos umas bolas de âmbar, porque o âmbar responde muito bem ao
calor dos raios do sol para o efeito que quero, e isto é a bússola, sem ela não se
vai a parte alguma, e isto são roldanas, servem para largar ou recolher as velas,
como nos navios do mar. Calou-se alguns momentos, e acrescentou, E quando
tudo estiver armado e concordante entre si, voarei. A Baltasar convencia-o o de-
senho, não precisava de explicações, pela razão simples de que não vendo nós
a ave por dentro, não sabemos o que a faz voar, e no entanto ela voa, porquê,
por ter a ave forma de ave, não há nada mais simples, Quando, limitou-se a
perguntar, Ainda não sei, respondeu o padre, falta-me quem me ajude, sozinho
não posso fazer tudo, e há trabalhos para que a minha força não é suficiente.
Calou-se outra vez, e depois, Queres tu vir ajudar-me, perguntou. Baltasar deu
um passo atrás, estupefacto, Eu não sei nada, sou um homem do campo, mais
do que isso só me ensinaram a matar, e assim como me acho, sem esta mão,
Com essa mão e esse gancho podes fazer tudo quanto quiseres, e há coisas que
um gancho faz melhor que a mão completa, um gancho não sente dores se tiver
de segurar um arame ou um ferro, nem se corta, nem se queima, e eu te digo
que maneta é Deus, e fez o universo.
2 Parece-nos que, de fato, a maneira pouco convencional, bastante crítica e abertamente paródi-
ca com que Saramago trata a religião em seus romances justifica-se basicamente pelo questiona-
mento que sua literatura visa propor em relação a qualquer sistema ideológico que crie relações
de poder. Além disso, a forte presença do catolicismo numa cultura como a portuguesa também
viria justificar esta atitude desafiadora em relação à religião, uma vez que ela se constitui como
uma das bases culturais que a literatura de Saramago deseja colocar em questão nesse processo
de revisão crítica do passado que sua ficção realiza.
161
LITERATURA Baltasar recuou assustado, persignou-se rapidamente, como para não dar tem-
PORTUGUESA po ao diabo de concluir as suas obras, Que está a dizer, padre Bartolomeu Lou-
renço, onde é que se escreveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não está
escrito, só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua direita,
à sua mão direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda
de Deus, nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à esquerda
de Deus não se senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência, portanto Deus é
maneta. Respirou fundo o padre, e concluiu, Da mão esquerda.
Sete-Sóis ouvira com atenção. Olhou o desenho e os materiais espalhados pelo
chão, a concha ainda informe, sorriu, e, levantando um pouco os braços, disse,
Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o
arame que hão-de voar3 (SARAMAGO, 1983, p. 67-68).
3 Baltasar havia perdido a mão esquerda na guerra, já que era soldado, e no lugar dela tinha um
gancho encaixado.
162
Disse o padre, Dentro de nós existem vontade e alma, a alma retira-se com a A produção literária
morte, vai lá para onde as almas esperam o julgamento, ninguém sabe, mas a contemporânea: José
vontade, ou se separou do homem estando ele vivo, ou a separa dele a mor- Saramago
te, é ela o éter, é portanto a vontade dos homens que segura as estrelas, é a
vontade dos homens que Deus respira, E eu que faço, perguntou Blimunda,
mas adivinhava a resposta, Verás a vontade dentro das pessoas, Nunca a vi, tal
como nunca vi a alma, Não vês a alma porque a alma não se pode ver, não vias
a vontade porque não a procuravas, Como é a vontade, É uma nuvem fechada,
Que é uma nuvem fechada, Reconhecê-la-ás quando a vires, experimenta com
Baltasar, para isso viemos aqui, Não posso, jurei que nunca o veria por dentro,
Então comigo.
Blimunda levantou a cabeça, olhou o padre, viu o que sempre via, mais iguais
as pessoas por dentro do que por fora, só outras quando doentes, tornou a
olhar, disse, Não vejo nada. O padre sorriu, Talvez que eu já não tenha vontade,
procura melhor, Vejo, vejo uma nuvem fechada sobre a boca do estômago. O
padre persignou-se, Graças, meu Deus, agora voarei. Tirou do alforge um frasco
de vidro que tinha presa ao fundo, dentro, uma pastilha de âmbar amarelo, Este
âmbar, também chamado electro, atrai o éter, andarás sempre com ele por onde
andarem pessoas, em procissões, em autos-de-fé, aqui nas obras do convento,
e quando vires que a nuvem vai sair de dentro delas, está sempre a suceder,
aproximas o frasco aberto, e a vontade entrará nele, E quando estiver cheio,
Tem uma vontade dentro, já está cheio, mas esse é o indecifrável mistério das
vontades, onde couber uma, cabem milhões, o um é igual ao infinito, E que
faremos entretanto, perguntou Baltasar, Vou para Coimbra, de lá, a seu tempo,
mandarei recado, então irão os dois para Lisboa, tu construirás a máquina, tu
recolherás as vontades, encontrar-nos-emos os três quando chegar o dia de
voar, abraço-te Blimunda, não me olhes tão de perto, abraço-te Baltasar, até à
volta. Montou a mula e começou a descer a ladeira. O sol aparecera por cima
dos cabeços. Come o pão, disse Baltasar, e Blimunda respondeu, Ainda não,
primeiro vou ver a vontade daqueles homens (SARAMAGO, 1983, p. 124-125).
Ainda que a estrutura opositiva do romance possa ser tão facilmente esquematiza-
da, a sua complexidade adensa-se por força da ironia, que, ao longo da narrativa, irá
subverter os polos das oposições, especialmente aquela que se pode designar como o
alto x o baixo, já que enquanto a Igreja “negocia” o Céu com a Corte, as pessoas que
vivem um sonho é que serão elevadas ao plano do sublime. Daí que as personagens
realmente nobres deste romance, aquelas que se identificam com o que de melhor se
pode esperar da humanidade, são Baltasar e Blimunda, os quais, ainda, protagonizam
uma história de amor das mais comoventes de toda a obra de Saramago. Inversamente,
a figura do Rei é ridicularizada, rebaixada, de modo que assim se desestabiliza tudo
aquilo que ele representa – inclusive a própria Nação.
Esta breve análise de alguns dos componentes significativos do romance Memorial
do Convento parece-nos ser, contudo, suficiente para assegurar que, na ficção de Sa-
ramago, o mundo inventado pela linguagem criadora assume função crítica na medida
em que põe em causa a História que foi (e que é) ao justapor – e ao contrapor – a
ela a “história que poderia ter sido”. Esta tem sido uma das principais linhas de força
da literatura portuguesa contemporânea, representada tão bem pelo autor visto, mas
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LITERATURA também por nomes de peso como Antonio Lobo Antunes, Lídia Jorge, Mário Cláudio,
PORTUGUESA
Mário de Carvalho, Almeida Faria, Agustina Bessa-Luís, Helder Macedo, Teolinda Ger-
são, todos eles merecedores de uma leitura atenta, já que registram, cada um a seu
modo, o vigor da ficção em Portugal nas últimas décadas.
Referências
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 16. ed. São Paulo: Cultrix, 1980.
Proposta de Atividades
1) Num artigo publicado no Jornal de Letras, Artes e Idéias, de Lisboa (nº. 400, p. 17-
20, 6-12 mar. 1990), intitulado “História e Ficção” Saramago afirma o seguinte:
“Duas serão as atitudes possíveis do romancista que escolheu, para a sua ficção, os caminhos
da História: uma discreta e respeitosa, consistirá em reproduzir ponto por ponto os fatos
conhecidos, sendo a ficção mera servidora duma fidelidade que se quer inatacável; a outra,
ousada, levá-lo-á a entretecer dados históricos não mais que suficientes num tecido ficcional
que se manterá predominante. Porém, estes dois vastos mundos, o mundo das verdades
históricas e o mundo das verdades ficcionais, à primeira vista inconciliáveis, podem vir a ser
harmonizados na instância narradora.”
2) Tomando este fragmento do texto como motivação, e levando em conta a análise apre-
sentada do romance Memorial do Convento, redija um texto dissertativo que registre
sua reflexão sobre o modo como se estabelecem, na literatura de José Saramago, as
relações entre a ficção e a história e sobre a importância que esta modalidade narrativa
(que chamamos de “romance histórico inventado”) adquire no processo de revisão
crítica da história e da cultura de Portugal.
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