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a LITERATURA PORTUGUESA:

Das origens à atualidade


Editora da Universidade Estadual de Maringá

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Marcos Roberto Andreussi
Marketing Marcos Cipriano da Silva
Comercialização Norberto Pereira da Silva
Paulo Bento da Silva
Solange Marly Oshima
Formação de Professores em letras - EAD

Clarice Zamonaro Cortez


Márcia Valéria Zamboni Gobbi

A Literatura Portuguesa:
das origens à atualidade

8
Maringá
2010
Coleção Formação de Professores em Letras - EAD

Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese


Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331
Revisão Gramatical: Manoel Messias Alves da Silva
Edição, Produção Editorial e Capa: Carlos Alexandre Venancio
Júnior Bianchi
Eliane Arruda

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

A literatura portuguesa: das origens à atualidade / Clarice Zamonaro Cortez, Márcia


L776 Valéria Zamboni Gobbi.-- Maringá : Eduem, 2010.
164p. 21cm (Formação de Professores em Letras – EAD; n. 8)

ISBN 978-85-7628-289-1

1. Literatura portuguesa – Estudo e ensino. 2. Literatura portuguesa – Classissismo.


3. Literatura portuguesa – Humanismo. 4. Literatura portuguesa - História. I. Cortez,
Clarice Zamonaro. II. Gobbi, Márcia Valéria Zamboni.

CDD 21. ed. 869.07

Copyright © 2010 para o autor


Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo
mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos
reservados desta edição 2010 para Eduem.

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87020-900 - Maringá - Paraná
Fone: (0xx44) 3011-4103 / Fax: (0xx44) 3011-1392
http://www.eduem.uem.br / eduem@uem.br
S umário

Sobre as autoras > 5

Apresentação da coleção > 7

Apresentação do livro > 9

Introdução > 11

Capítulo 1
Época medieval: cantigas trovadorescas – líricas e satíricas > 15

Capítulo 2
Humanismo: Gil Vicente > 55

Capítulo 3
Classicismo: Camões lírico e épico > 73

Capítulo 4
Outros autores importantes > 93

Capítulo 5
Almeida Garrett e a poesia de Folhas Caídas > 101

3
LITERATURA Capítulo 6
PORTUGUESA
Eça de Queirós e o olhar crítico sobre seu tempo > 121

Capítulo 7
Fernando Pessoa e o modernismo português > 133

Capítulo 8
A produção literária contemporânea: José Saramago >153

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S obre as autoras

CLARICE ZAMONARO CORTEZ


Possui graduação em Letras Inglês pela Universidade do Sagrado

Coração (1976), mestrado em Comunicação e Poéticas Visuais pela

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1995), doutorado

em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho

(1999), na Área de concentração Teoria da Literatura e Literatura

Comparada e pós-doutorado na Universidade do Estado do Rio de

Janeiro. Atualmente é professor adjunto da Universidade Estadual

de Maringá. Tem experiência na área dos estudos comparados, com

ênfase em Pintura, atuando principalmente no tema: poesia portuguesa

clássica, Camões e a pintura italiana. Atualmente desenvolve pesquisa

sobre a formação da lírica trovadoresca e sua influência na poesia

portuguesa, entre outros temas da Literatura Portuguesa.

MÁRCIA VALÉRIA ZAMBONI GOBBI


Possui graduação em Letras (Licenciatura Plena Português-Inglês) pela

Universidade do Sagrado Coração (1984), mestrado em Letras (Literatura

Portuguesa) pela Universidade de São Paulo (1991) e doutorado em

Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) pela

Universidade de São Paulo (1997). Em 2007 defendeu sua tese de livre-

docência em Literatura Portuguesa na UNESP, campus de Araraquara,

onde leciona desde 1990. Tem experiência na área de Letras, com

ênfase em Literatura Portuguesa, atuando principalmente nos seguintes

temas: narrativa portuguesa contemporânea, relações entre ficção

e história, análise do narrador e da organização da narrativa, ironia,

intertextualidade, identidade, mito e imaginário.

5
A presentação da Coleção
Os 54 títulos que compõem a coleção Formação de Professores em Letras fazem
parte do material didático utilizado pelos alunos matriculados no Curso de Licenciatu-
ra em Letras, habilitação dupla, Português-Inglês, na Modalidade a Distância, da Uni-
versidade Estadual de Maringá (UEM). O curso está vinculado à Universidade Aberta
do Brasil (UAB) que, por seu turno, faz parte das ações da Diretoria de Educação a
Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior
(Capes).
A UEM, na condição de Instituição de Ensino Superior (IES) proponente do curso,
assumiu a responsabilidade da produção dos 54 livros, dentre os quais 51 títulos fica-
ram a cargo do Departamento de Letras (DLE), 2 do Departamento de Teoria e Prática
da Educação (DTP) e 1 do Departamento de Fundamentos da Educação (DFE). O pro-
cesso de elaboração da coleção teve início no ano de 2009, e sua conclusão, seguindo
o cronograma de recursos e os trâmites gerais do Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação (FNDE), está prevista até 2013. É importante ressaltar que, visando a
atender às necessidades e à demanda dos alunos ingressantes no Curso de Graduação
em Letras-Português/Inglês a Distância, da UEM, no âmbito da UAB, nos diferentes
polos, serão impressos 338 exemplares de cada livro.
A coleção, não obstante a necessária organicidade que aproxima e estabelece a
comunicação entre diferentes áreas, busca contemplar especificidades que tornam o
curso de Letras uma interessante frente de estudos e profissional. Deste modo, as
três principais instâncias que compõem o curso de Letras na modalidade a distância
(Língua Portuguesa, Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa e
Língua Inglesa e Literaturas Correspondentes) são contempladas com livros que
são organizados tendo em vista a construção do saber de cada área. Semelhante cons-
trução não apenas trabalha conteúdos necessários de modo rigoroso tal como seria
de esperar de um curso universitário, como também atua decisivamente no sentido de
proporcionar ao aluno da Educação a Distância a autonomia e a posse do discurso de
modo a realizar uma caminhada plenamente satisfatória tanto em sua jornada acadê-
mica quanto em sua vida profissional posterior. Isso só é possível graças à competência
e comprometimento dos organizadores e autores dos livros dessa coleção, em sua
maior parte ligados aos departamentos da Universidade Estadual de Maringá envol-
vidos neste curso, além de convidados que enriqueceram a produção dos livros com

7
LITERATURA sua contribuição. A excelência e a destacada contribuição científica e acadêmica desses
PORTUGUESA
autores e organizadores são outros elementos que garantem a seriedade do material
e reforça a oportunidade que se abre ao aluno da Educação a Distância. Além disso, o
material produzido poderá ser utilizado por outras instituições ligadas à Universidade
Aberta do Brasil, abrindo uma perspectiva nacional para os livros do curso de Letras
a Distância.
Além do trabalho desses profissionais, essa coleção não seria possível sem a con-
tribuição da Reitoria da UEM e de suas Pró-Reitorias, do Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes da UEM e seus respectivos representantes e departamentos, da Diretoria
de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do
Ensino Superior (Capes) e do Ministério da Educação (MEC). Todas essas esferas, de
acordo com suas atribuições, foram de suma importância em todas as etapas do traba-
lho. Diante disso, é imperativo expressar, aqui, nosso muito obrigada.
Por último, mas não menos importante, registramos nosso agradecimento especial
à equipe do NEAD-UEM: Pró-Reitoria de Ensino, Coordenação Pedagógica e equipe
técnica, pela dedicação e empenho, sem os quais essa empreitada teria sido muito
mais difícil, se não impossível.

Rosângela Aparecida Alves Basso,


Organizadora da coleção.

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A presentação do livro
Ao apresentarmos o livro de Literatura Portuguesa para o Curso de Letras à Distân-
cia, perguntamos qual é o lugar do estudo da literatura na grade curricular da Universi-
dade, ponderando que o objeto de pesquisa da literatura é sério e o seu caráter passa,
naturalmente, por um enfoque crítico.
A resposta fundamenta-se na certeza de que o estudo da literatura deve basear-se
fundamentalmente na leitura de textos. Os seus valores estéticos específicos deverão
ser considerados, de acordo com as tendências da teoria da literatura, da crítica e da
história da literatura. De acordo com Spina (1961, p. 6) “Historia literária ensina-se;
literatura, não. Esta, cada um aprenderá por si, lendo, compreendendo e avaliando as
obras que constituem o patrimônio artístico e espiritual de um povo.”
Cabe-nos questionar também a metodologia e tentar responder “como” ensinar
uma disciplina que apresenta diferentes alternativas metodológicas e a própria especi-
ficidade de seu objeto de estudo conduz a opções dependentes de um planejamento
de investigação e de objetivos subjacentes à própria construção de um programa e
modos de execução.
Um breve olhar sobre as teorias metodológicas mostra-nos um percurso difícil des-
de o método biográfico e histórico do final do século XVIII e de todo o século XIX,
culminando com os métodos advindos do Formalismo Russo e do Estruturalismo,
passando pelas propostas pós-estruturalistas como a estilística, a sociológica, a psica-
nalista, entre muitas outras.
A literatura e seu ensino têm sido objetos de debates polêmicos, às vezes, radicali-
zados. Há riscos metodológicos que podem ser constatados desde a dissecação do ob-
jeto estético à utilização do texto literário como um simples pretexto para o exercício
de discursos diversos. Os conceitos de interdisciplinaridade ou de pluridiscipliridade,
bem como a contribuição das diversas áreas das Ciências Humanas no estudo e no
ensino da literatura devem também ser considerados, sem, porém, renunciar outros
métodos ou experiências metodológicas.
Todos parecem demonstrar um caminho para alcançar o objetivo final do trabalho
do professor, que deve dirigir-se à integridade ou à totalidade da obra literária, sem
nunca excluir dela a presença de seu criador (o autor), ou ignorar o discurso histórico-
cultural utilizado e, principalmente, sem negar as conexões de interdependência que
emergem de uma leitura pluridimensional.

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LITERATURA Ao retomarmos a idéia de que estudar (e ensinar) literatura é, fundamentalmente,
PORTUGUESA
ler, o livro passa a ser o suporte material mais importante nesse contexto. No estudo
da Literatura Portuguesa, especificamente, da Literatura Medieval e Clássica, o contato
direto com livro despertará no estudioso o interesse do conhecimento histórico e
do trabalho crítico do professor. Além do livro, o aproveitamento de outros recursos
torna-se prioridade. Consultas a arquivos e bancos de dados na internet, bibliotecas
presenciais e virtuais, além de sites e outros espaços onde o livro, o códice, o manus-
crito possam ser vistos mais de perto, encurtando (ou anulando) o distanciamento
com o passado e com uma geração de autores que marcaram época e eternizaram-se
pela universalidade dos temas e problemas abordados.
De acordo com Buescu (1990, p. 16-17), o ensino à distância, por meio de seus
métodos e técnicas próprias, é capaz de

[...] privilegiar a sensibilização estética, a capacidade de visualização contextual,


em suma, a hermenêutica potenciada pela interpretação da voz, eventualmen-
te, da expressão corporal e, principalmente, da associação visual dos objectos,
monumentos (no seu sentido mais amplo) como memórias captáveis e persis-
tentes de um passado que é também raiz. Deste modo se alcançará a grande
superação da dialétictica professor/aluno no quadro do ensino à distância: o
percurso conjunto e globalizante para, mediante técnicas que apontam para o
rigor, a precisão, a disciplina e a interacção; longe do amadorismo da intuição
natural [...] sem prescindir do estudo e do exercício quotidiano da leitura, fa-
zendo do texto suporte privilegiado [...]

Todos os capítulos foram construídos privilegiando-se o dado teórico, mas de


forma a aliá-lo a análises práticas de textos literários. Assim, as discussões teóricas
amarram-se, em todos os capítulos, a exemplos de leitura de textos. A fim de reforçar
o aspecto prático deste componente curricular, todos os capítulos apresentam, em seu
final, atividades de leitura que esperam suscitar no estudante a consulta à teoria de
modo a articulá-la com a leitura dos textos literários indicados por cada autor.

Clarice Zamonaro Cortez


Márcia Valéria Zamboni Gobbi

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I ntrodução
ORIGENS DA LITERATURA PORTUGUESA: QUADRO GERAL
Se fosse possível estabelecer um esquema da criação da Literatura Portuguesa na
Idade Média, que ocorreu entre 1198 e 1597, dois grandes movimentos literários po-
deriam ser destacados nesses três séculos: a floração trovadoresca (séculos XII-XIV )
e a floração dos poetas palacianos (séculos XV-XVI). O primeiro movimento literário
ocorreu no reinado de D. Sancho I e estendeu-se até a morte de D.Dinis, período em
que se destaca a figura de Fernão Lopes, iniciador da prosa portuguesa. No segundo
movimento literário (reinados de Afonso V, D. João II e D. Manuel) a figura extraordi-
nária de Gil Vicente, criador do teatro português, e a poesia compilada no Cancioneiro
Geral de Garcia de Resende são os principais destaques.
Entre os dois períodos acima destacados ocorreram também outras formas literá-
rias de importância secundária como, por exemplo, a prosa doutrinal de caráter reli-
gioso no final do século XIV e princípios do século XV, tais como o Orto do Esposo, o
Boosco Deleitoso e o Livro da Corte Imperial. O Livro da Montaria de D. João I, o Leal
Conselheiro, entre outros são representantes da prosa didática da corte e a produção
dos cronistas que continuaram a obra de Fernão Lopes, Gomes Eanes de Zurara e Rui
de Pina também devem ser consideradas.
O livro Orto do Esposo, de autor anônimo, apresenta narrativas belas e edificantes
de caráter religioso:
Aqui se começa o livro que se chama Orto do Esposo, o qual compôs a honra
e louvor de nosso Senhor Jesu Cristo, flor mui preciosa e fruito mui doce de
todalas almas devotas, e da benta Virgem das virgens, Maria, rosa singular e
estremada da celestial deleitaçom e de toda a corte da cidade de Jerusalém, que
e ena gloria do paraíso (SPINA, 1961, p. 71).

Também de autor anônimo, o livro Boosco Deleitoso publicado em 1515, apresenta


nos quinze primeiros capítulos, a peregrinação espiritual de um pecador solitário,
arrependido, que atravessa todas as etapas espinhosas para poder alcançar a perfeição
interior e, finalmente, recebido pela Graça divina, ingressar no reino da glória celestial.
A obra é dedicada à Rainha D. Leonor, esposa de D. João II:

[NO HORTO APRAZIVEL, EM COMPANHIA DAS VIRTUDES]


Eu, seendo pecador e mui mesquinho, desterrado do paraíso terreal

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das mui doces deleitações polo pecado dos primeiros padres, e lan-
çando em no vale da mesquindade deste mundo, padecia enel muitas
coitas e trabalhos e minguas e tribulações sem conto. [...] Este paraíso
espiritual da alma é a casa da boa consciência, em que é tanta abun-
dância de paz, que a abastença obedece e serve a castidade e a oraçom [...]
(SPINA, 1961, p. 75).

As novelas de cavalaria, segundo Spina (1961), fizeram-se presentes com certa des-
continuidade, não instituindo uma forma literária definida desde os fins do século XIV,
com as novelas A Demanda do Santo Graal e, possivelmente, Amadis de Gaula (fins
do século XVI). Destacam-se também as obras: Crônica do Imperador Clarimundo, de
João de Barros (1520); a terceira parte da novela Menina e Moça de Bernardim Ribeiro
(1554), entre outras.
No ano de 1434 ocorre a nomeação de Fernão Lopes ao cargo de cronista-mor
do Reino. Politicamente, este foi um ano importante. Portugal inicia a sua consolida-
ção política, após a vitória de Aljubarrota1 sobre os castelhanos, a língua portuguesa
adquire as suas características nacionais e a prosa literária se fixa com as crônicas de
Fernão Lopes. Devemos lembrar que a língua oficial do primeiro período literário foi o
galego-português, cuja data oficial decorre de fins do século XII estendendo-se a 1434,
quando, oficialmente, a prosa se inicia. Portanto, o que dissemos acima se refere ao
que podemos denominar de Época Medieval.
Em 1526 /1527, com o regresso de Sá de Miranda da Itália, trazendo as novas for-
mas poéticas dos italianos – o doce estilo novo – e prolongando-se até o ano de
1826, registra-se a época clássica.
Subdivide-se esta época em três períodos distintos:
a) Período Renascentista – estendendo-se até as primeiras décadas do século XVII;
b) Período Barroco (1580-1756) – conceptismo e cultismo na poesia e na prosa.
c) Período Neoclássico ou Escola Arcádica (1756-1826) – com a publicação do
poema D. Branca, de Almeida Garrett, introduzindo o Romantismo.

A éPOCA MODERNA inicia-se em 1826, quando foi publicado o poema épico-


narrativo D. Branca, de Almeida Garrett, até os nossos dias.
Apresenta a seguinte divisão:

1 A batalha de Aljubarrota ocorreu no ano de 1385 entre as tropas portuguesas com aliados
ingleses sob o comando de D. João de Portugal e Nuno Álvares Pereira e as tropas castelhanas.
O resultado foi a derrota dos castelhanos, o fim da crise de 1385 e a consolidação de D. João I
como rei de Portugal, o primeiro da dinastia de Avis.
a) Romantismo compreendendo também o Ultra-Romantismo (1826-1865); Introdução

b) Realismo, Naturalismo, Simbolismo (1865-1900);


c) Modernismo, a partir de 1900 (ano da morte de Eça de Queirós) aos nossos dias.

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1 Época medieval:
cantigas trovadorescas
– líricas e satíricas

Cantigas de portugueses
São como barcos no mar
Vão de uma alma para outra
Com riscos de naufragar
Fernando Pessoa

NATUREZA DOS MAIS ANTIGOS TEXTOS LITERÁRIOS


Os mais antigos textos literários são de natureza poética. A Literatura Portuguesa
arrebatou para a História antes do fim do século XII e o passo inicial deve-se à poesia
que, pela sua sensibilidade, teve a virtude de abrir as literaturas e também provocar e
caracterizar os vários movimentos literários.
A mais antiga composição literária portuguesa data do ano de 1198 (presumivel-
mente), uma cantiga de amor escrita pelo trovador Paai Soares de Taveirós, dedicada
a Maria Pais Ribeiro (a Ribeirinha), amante do rei D. Sancho I. Essa época pode ser
considerada exclusivamente poética até o ano de 1340, no reinado de D. Dinis. De
acordo com os historiadores, essa manifestação poética ocorrida na Península Ibérica
recebeu forte influência do movimento lírico do sul da França, especificamente, da
Provença (a poesia provençal), também do Minnesang na Alemanha, dos trovadores
do norte da Itália e da poesia dos árabes da Andaluzia.
As origens do movimento lírico da Galiza e do norte de Portugal podem ser ex-
plicadas, portanto, pela extensão dessas manifestações poéticas espalhadas pela Eu-
ropa. A poesia produzida no norte de Portugal (Entre-Douro-e-Minho), porém, não
foi fruto somente dessas culturas, mas teve um estímulo interior muito acentuado,
considerando que as virtudes musicais e poéticas dessa população são muito anterio-
res a todos os movimentos poéticos da época do feudalismo.
De acordo com Spina (1961, p. 13).

Estas qualidades inatas dos galegos e dos lusitanos do norte vêm acusadas
pelos conhecedores da região: desde antes de Cristo, com Diodoro Sículo;
Estrabão Sílio Itálico, S. Jerônimo, S. Martinho Dumiense, o próprio Santo

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LITERATURA Agostinho, referem-se às virtudes artísticas destes povos, especialmente para
PORTUGUESA a dança e a poesia. [...]
Ora, a penetração e o conhecimento da poesia provençal nestas plagas só têm
o condão de disciplinar à vocação poética dos galego-portugueses, transmitin-
do-lhes a sugestão de um mecenatismo oficial, um paradigma de vida galante
propício para o florescimento da poesia e um conjunto de normas para a ela-
boração poética.

A poesia lírica peninsular e a influência da corrente proven-


çal. A hegemonia da língua galego-portuguesa
As romarias, as danças primaveris tradicionais, a saudade provocada pela ausência
dos namorados nas forças do rei na luta travada para expulsar para o Sul os muçulma-
nos, o ciúme, o mar e tantos outros temas levavam, principalmente, as moças a cantar
cantigas. O campo, as fontes, as praias e os bailes eram cenários ideais para entoar
cantos saudosos e organizar danças para saudar a primavera. Desse modo, criara-se
indiscutivelmente na alma do povo da região da Galiza e das terras de Entre-Douro-e-
Minho um sentimentalismo originado de uma poesia espontânea, intensamente afeti-
va, caracterizada por um romance a dois de amores puros e consentidos. Algumas das
cantigas são denominadas paralelísticas, por serem constituídas por duas séries de
estrofes paralelas e remontam a um antiquíssimo passado, muito anterior à fundação
da nacionalidade portuguesa (1143). Tudo isso atesta a tradição lírica peninsular, o
lirismo tradicional, autóctone e genuíno.
A Provença (no sudoeste da França), a partir do século XI, foi o berço dum en-
cantador lirismo – o lirismo provençal – que concebia o amor como um culto, quase
uma religião, com os seus direitos e leis que formavam como que um código de amor.
Apresentava três características:
• A supremacia da mulher.
• O amor à margem do casamento.
• O fingimento de amor.
Esse código amoroso constituiu a fonte de todo o lirismo europeu dos séculos
posteriores, pois alguns trovadores levaram-no a toda à parte, viajando por cortes de
reis e senhores feudais.
O lirismo provençal (com a vinda de colonos, com o casamento dos príncipes,
com as romarias, etc.) não tardou a invadir toda a Península, tendo sido grande a sua
influência em Portugal e na Galiza. Portanto, não só a própria língua adotou nume-
rosos provençalismos, como também até os trovadores passaram a imitar as cantigas
provençais, embora as adaptando a formas já existentes. Por um lado, por seu liris-
mo tradicional a alma do povo estava preparada para receber a poesia provençal e,
por outro, a própria língua galaica-portuguesa, pela riqueza e melodia, era preferida

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pelos trovadores portugueses e galegos. Dessa forma, foi notável a hegemonia da Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
língua na lírica peninsular. satíricas

Quais foram as principais causas da difusão do lirismo provençal na


Galiza e em Portugal?
A arte poética da Provença difundiu-se mais acentuadamente na Península Ibérica.
Entre as principais causas dessa difusão, podemos mencionar:
• As visitas dos trovadores e jograis às cortes estrangeiras e aos palacetes dos
ricos-homens.
• As romarias e as peregrinações a Santiago de Compostela, um dos principais
centros de peregrinação de toda a cristandade, para onde os romeiros de toda
a Europa se dirigiam.
• Os guerreiros que partiam para as Cruzadas, dentre eles a presença de canto-
res que viviam na Península.
• Os casamentos entre príncipes e princesas que traziam os trovadores para a
corte.
• A vinda dos prelados franceses para as Sés das cidades reconquistadas pelos
mouros.
• A colonização para o repovoamento dos territórios devastados.

Em Portugal, de modo particular, além das causas anteriormente citadas, desta-


cam-se as que influenciaram a difusão da arte poética da Provença:
• A vinda de colonos e cruzadas.
• O casamento de D. Sancho I com D. Dulce, princesa ligada à corte da Provença.
• A permanência de D. Afonso III em França, durante treze anos, e a implantação
de costumes requintados na corte.
• A influência exercida sobre D. Dinis pelo seu educador de origem francesa e o
casamento com uma princesa de Aragão, em cuja corte a poesia provençal era
grandemente estimada.

São três os gêneros da poesia medieval:


• Cantigas de amor (lirismo amoroso masculino);
• Cantigas de amigo (lirismo amoroso feminino);
• Cantigas de escárnio e de maldizer (sátira)

A denominação cantiga (ou canções, ou ainda cantares) se justifica pelo acompa-


nhamento de instrumentos musicais e de grupos de cantores e dançarinas.

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LITERATURA Época Medieval: Período dos Trovadores (1200-1385)
PORTUGUESA
Antes de iniciarmos o estudo da Poesia Trovadoresca, lancemos um breve olhar
ao ambiente cultural, aspectos culturais e políticos sociais da Idade Média.
Considerada popularmente uma época de trevas, de anarquia, de opressão polí-
tica, de fanatismo religioso, muitos se insurgiram contra a tirania da Igreja que, de
forma absoluta, impunha o seu poder espiritual e a conhecida “barbárie feudal”.
O espírito místico do Cristianismo e as misérias sofridas pelo mundo romano
geraram a lenda do “milênio”, período de mil anos em que todos, vivos e mártires,
haveriam de gozar as delícias do reino de Deus. Essa justiça implicava o fim do mun-
do que se aproximava repleto de dores e flagelos, crença de pessoas fracas e supers-
ticiosas que esperam ansiosamente por essa tragicidade. Os mortos ressuscitariam
e os vivos estariam sujeitos ao juízo final, em que se faria justiça. Os bons poderiam
ser recompensados e os maus castigados com severidade ao sofrimento do inferno.
Não podemos deixar de registrar a grande ignorância de todas as classes sociais,
salvo raras exceções. Até entre os eclesiásticos esse dia foi esperado, considerando
o analfabetismo existente na época.
No segundo período da Idade Média, século XI, a sociedade cristã entra numa
acentuada evolução. A Escolástica sobrevive ainda, mas ganha uma outra força no
século XIII, com São Tomás de Aquino (1225-1274)1 e Roger Bacon (1214-1294). 2
Do século IV ao IX, a língua falada era o latim, modificando-se e enriquecendo-se
de novos termos, tornando-se mais flexível e analítica. As frases começam a ser liga-
das através de preposições e perde a rigidez do latim falado em Roma, porque co-
meça a perder os casos gramaticais. Já o latim vulgar não se identificava com a língua
escrita falada pela Igreja – o baixo latim – e, de uma região para a outra, havia uma
grande variação de uso. Dos diversos falares latinos nasceram as novas línguas – as
línguas romanas ou neolatinas – menos sintéticas. As declinações desapareceram e
houve uma transformação sintática.
Conclui-se que essa época foi muito importante na formação da Civilização Oci-
dental, marcada pelos seguintes aspectos:

1 Pertenceu à Ordem dos Dominicanos, considerado o mais sábio dos santos. Estudou e en-
sinou questões filosóficas e teológicas. Seu maior mérito foi a síntese do cristianismo com a
visão aristotélica do mundo. Autor de duas "Summae", sistematizou o conhecimento teológico
e filosófico de sua época : são elas a "Summa Theologiae" e a "Summa Contra Gentiles", dentre
outras obras importantes.
2 Pertenceu à Ordem dos Dominicanos, dedicou-se a estudos nos quais introduziu a observação
da natureza e a experimentação como fundamentos do conhecimento natural. Bacon promoveu
uma defesa de seus pontos de vista, publicando a obra Speculum astronomiae, dentre outras.

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• Novas classes sociais foram criadas, como o proletariado, acompanhado de Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
novas formas de trabalho e outras concepções religiosas. satíricas

• Formaram-se novas nacionalidades e a Europa reconstituiu-se adquirindo es-


tabilidade, quando as guerras germânicas e as árabes terminaram.
• Os dois poderes – Igreja e Império – travam uma luta constante, embora se
unam por ocasião da guerra contra os sarracenos, com o apoio e a aliança
com as Cruzadas.
• A mundividência do homem medieval assenta na realidade do mundo divino,
no teocentrismo. O mundo terreno não é mais que um símbolo do mun-
do divino, mais que uma passagem obrigatória para alcançar a verdadeira
felicidade.
• As obras de Platão, Aristóteles, Cícero, Sêneca, Virgilio e Ovídio são estuda-
das, integradas e adaptadas a nova mentalidade cristã, e todos os valores cul-
turais de inspiração clássica são subordinados a finalidades éticas e religiosas.
• O estudo da Teologia ocupa o primeiro lugar – o ideal de vida do homem me-
dieval torna-se essencialmente teocêntrico – tudo se converge para Deus.
Todos os valores culturais se direcionam à ética e à religião.
• Os centros de cultura medieval passam a ser os conventos. Os mosteiros
transformam-se em escolas e centros de difusão desta cultura, que tem gran-
de importância na formação da língua portuguesa, como na prosa literária.
As obras são traduzidas e redigidas nos conventos. São documentos valiosos
para o conhecimento da mentalidade e dos interesses do homem medieval.

Considerando os aspectos elencados acima, fica evidente que o trabalho dos


monges copistas foi extraordinário. Quer no campo artístico, quer como impulsio-
nadores do saber, permitindo-nos conhecer a realidade da Idade Média. Eles são os
únicos testemunhos dos acontecimentos desses primeiros anos da nacionalidade
portuguesa.
Concluímos também que a Idade Média não é a época obscura que tantos defen-
dem, mas uma ponte entre a Antiguidade e a Idade Moderna. A figura de Deus, o
Homem e o Mundo continuam a ser problematizados. Foi sim, uma época de guerra
e de grandes expedições empreendidas pelos senhores feudais peninsulares e pelas
Cruzadas a Terra Santa, consagrando o poder e o prestígio da classe aristocrática.
Sendo assim, ao mesmo tempo em que se afirma o regime feudal, instaura-se um
novo ideal – o da cavalaria – e todos lutam pela causa de Cristo. Os cavaleiros das
Cruzadas servem a Deus (a civilização cristã) e a Pátria, ao mesmo tempo.

19
LITERATURA Séculos XI a XIV – típicos caracteres feudais.
PORTUGUESA
Havia uma profunda ligação de dependência de homem para homem: relação en-
tre os senhores (proprietários das terras) e os servos (que não eram proprietários,
mas estavam presos a ela). Assim:
• Aos servos: competia trabalhar;
• à nobreza feudal: competia defender a sociedade;
• à Igreja: orar pela sociedade;

Os senhores eram autoridades absolutas, detinham os direitos de justiça suprema.


Acima deles havia os infanções (nobres de alta linhagem) e os fidalgos (cavaleiros
e escudeiros), que formavam uma pequena nobreza de homens de armas. Numa po-
sição mais alta ainda, os ricos homens exerciam um domínio administrativo, militar
e judicial num distrito chamado “terra” e cuja ação estava sempre limitada pela ação
do rei.
A Igreja Católica, única instituição centralizada, ditava as normas de comporta-
mento social na época, fazendo com que as leis obedecessem aos costumes e à “
vontade de Deus”. O clero possuía grande importância no mundo feudal, cumprindo
um papel específico na religião, de formação social, moral e ideológica. Muito rico,
dominava a religiosidade total do povo e era definido pela hierarquia da Igreja. Sub-
dividia-se em alto e baixo3; regular e secular4. Suas terras eram isentas dos impostos.
A agricultura era base da economia portuguesa. Cada grupo tinha os seus códigos
de comportamento, deveres e direitos bem diferenciados, mas todos se relacionavam
nesse nível de dependência vassálica. Essa organização social em pirâmide é reitera-
da pelo espírito teocêntrico: a visão de Deus como ser absoluto, capaz de ditar as
normas sociais, o comportamento individual, de estabelecer o limite entre o bem e
o mal, acaba por determinar também toda uma concepção servil em que o homem
nasce para obedecer ou mesmo para seguir o caminho determinado pelo Ser absolu-
to, previamente.
A explicação dos atos humanos por forças ocultas era a consequência da ignorân-
cia científica. A religiosidade era intensa, as igrejas eram lotadas e havia santuários nas
cidades e no campo. O amor e a humildade deveriam ser essências do cristianismo.
O analfabetismo era geral; ensinava-se a ler e a escrever a gramática do latim. Os

3 O Alto Clero é formado por membros da nobreza feudal e se opõe ao baixo clero.
4 O clero regular constitui-se de todos aqueles consagrados da Igreja. Seguem as regras de uma
determinada ordem religiosa, possuem a sua própria hierarquia e títulos específicos. Distingue-
se do clero secular, composto por sacerdotes que atuam junto aos leigos.

20
poucos que aprendiam a escrever aproximavam a linguagem escrita da linguagem Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
falada. Os conhecimentos eram transmitidos por via oral: as tradições populares, os satíricas

sermões e os provérbios populares tinham um papel importante na formação dos


indivíduos. A língua portuguesa converteu-se em língua oficial, a partir do reinado de
D. Dinis (1279-1325).
As classes civis agrupavam-se nos grandes centros, onde se mantinham as transa-
ções e as indústrias rudimentares do tempo. Nos pequenos burgos (pequenas cida-
des, povoações) os fugitivos das invasões dos mouros encontravam abrigo. Muitos
passaram, assim, dedicar-se a atividades comerciais, como os mercadores, homens
livres que se agrupavam em núcleos e passaram a chamarem-se burgueses.
Quanto ao povo (os servos), havia uma espécie de classe média – a dos proprie-
tários rurais, constituída por guerreiros cristãos, livres, não mouros, que os árabes
permitiam que eles ficassem depois da invasão da Península. Estes eram chamados
de “cavaleiros vilãos” e não estavam sujeitos a qualquer senhor e não pagavam ao rei
outro imposto senão a estadia nas fileiras do exército durante determinada época do
ano, quando iam para o fossado ou o ferido (as guerras).
Finalmente, havia a classe dos não proprietários, que cultivavam a terra, vestiam-
se de um pano tosco de lã, o burel, ou de linho, o bragal. Viviam em condições precá-
rias e sem direitos políticos, sujeitos aos grandes impostos e obrigações.
A literatura era oral e divulgada por jograis recitadores, cantores e músicos
que perambulavam pelas feiras, castelos e aldeias. Estes também obedeciam a certa
hierarquia:
• trovador (fr. troubadour, do verbo trouver = achar) – homem culto, com-
positor da melodia e dos versos das cantigas que deveriam ser executadas,
cantadas e dançadas;
• jogral (joglar, do provençal): ator mímico, músico; divulgava as composições;
• segrel (segrier, do provençal):de origem humilde, era o músico profissional
que recebia o soldo (do latim nummu solidu = moeda inteira, não fracionada;
uma gratificação) pelo seu trabalho;
• menestrel (fr. ménestrel = aquele que serve) – era contratado por um nobre
e vivia no palácio do amo, em vez de andar de terra em terra como era norma
dos jograis.
• soldadeiras (de soldo) = cantadeira e dançarina que acompanhava os jograis
nas suas andanças por castelos e palácios, a troco de um ordenado à maneira
de soldo. De moral duvidosa, as soldadeiras eram, geralmente, mais conhe-
cidas pelo seu comportamento licencioso do que pela qualidade das suas re-
presentações artísticas. No fim da vida, algumas se refugiavam nos conventos.

21
LITERATURA A cultura da Provença
PORTUGUESA
Designa-se Provença, toda a civilização do Languedócio que está compreendida
entre o Mediterrâneo e o Maciço Central, os Pirineus e a fronteira italiana (sul da
França). Brotou nessa região uma poesia lírica cuja importância é indiscutível como
fonte de todo o lirismo europeu dos séculos posteriores. O século XII é considerado
o século de ouro da literatura medieval na França, século por excelência do grande
renascimento medieval. Todo o desenvolvimento da filosofia, da literatura e do pen-
samento artístico da França, no período que decorre entre 1150 e 1200, deve-se à
cultura da Provença. Portanto, essa importante região francesa, de solo fértil, que já
dividia as propriedades de maneira racional, possuía uma civilização superior, rica e
civilizada.
Foi no século anterior, denominado “o século das gêneses”, que surgem as can-
ções de gesta e a primeira poesia lírica; a primeira ogiva nas construções (cruzamento
de dois arcos que se cortam), o primeiro vitral, o primeiro drama litúrgico, o primei-
ro torneio cavaleiresco – todos se constituem criações autenticamente francesas. O
texto lírico mais conhecido desse período é a Chanson de Roland, possivelmente, de
autoria de Turold e divulgada pelo trovador Guilherme IX, duque da Aquitânia.
Nascem as duas literaturas: a épica (canções de gesta) e a lírica, constituídas re-
finadas e pressupondo um período anterior de elaboração, cujas raízes estão ainda
por determinar.
A produção literária do Norte forma-se de cantigas compostas pelos trouvères5,
celebrando o espírito heróico e guerreiro da sociedade aristocrática, cujo tema era
a luta. Possuidoras do perfil épico das canções de gesta desempenhavam um papel
acessório, de mero alívio dos heróis cansados de matar. Diversifica-se da produção
poética localizada no Sul – sentimental, cortês, elegante, refinado, transformando a
mulher no santuário de sua inspiração.
Compostas pelos troubadours6, as cantigas líricas privilegiam a mulher, que pos-
sui um papel importantíssimo. No sul da França7, ela encontrou condições favoráveis
para ter uma existência elevada. Herdava, possuía bens próprios e, depois de casada,
podia dispor deles sem o consentimento do marido. Essa igualdade jurídica teve uma

5 Do Francês trouver (achar). No Norte da França significava que os poetas deveriam ser capazes
de compor, achar sua canção ou cantiga.
6 Do Provençal, trovadores. A palavra refere-se aos poetas completos que compunham letra e
música das cantigas, acompanhando-as com instrumentos musicais.
7 Surgiu nas cortes, em fins do século XI, na França meridional. Conceito europeu de mitos
e etiquetas para enaltecer o amor, gerando vários gêneros de literatura medieval, incluindo o
romance. Espécie de contradição entre o desejo erótico e a realização espiritual.

22
influência decisiva na cultura trovadoresca. Os trovadores privilegiavam a mulher ca- Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
sada (a domina, dona ou senhora), dedicando-lhes o seu amor, colocando-se numa satíricas

posição de servos, sempre lhes pedindo um favor. A mulher solteira (a donzela) não
atingira essa plenitude moral (e também física) e dependia do pai para tudo.
Os trovadores foram mais longe: denunciaram abertamente nas suas canções a
incompatibilidade entre o amor e o casamento e, assim, essa poesia, aparentemente
inofensiva, pôs pela primeira vez em julgamento um problema social, que tem pre-
ocupado a consciência da Europa moderna. Aparentemente imoral, a negação do
casamento explica-se justamente porque o amor conjugal se apresenta ao espírito
do trovador como um negócio, sem liberdade, diferentemente do conceito do amor
cortês8, cuja tendência era a plenitude e o infinito. Atitudes que hoje nos afigurariam
estranhas e até imorais, eram consideradas naturais ao tempo.
Essa concepção audaciosa, pela qual a mulher era livre para dispor de seus bens
e dar o seu amor a quem quisesse, configurava uma tendência revolucionária, que
brigava francamente com a doutrina oficial da Igreja. O Cristianismo, através do culto
à Maria, também elevou a condição social da mulher, fazendo-a, teoricamente, igual
ao homem.
O amor trovadoresco é, portanto, um fingimento, um produto da inteligência e
da imaginação do que propriamente da sensibilidade: amour courtois9, como dizem
os franceses, mas que apresenta, por vezes, os tormentos do grande e verdadeiro
amor. Os termos cuidar e cossirar (considerar) traduzem bem o trabalho interior e o
enlevo do poeta na adoração da sua dona. Fingia-se enamorado pela dona ou senhor,
mas amava a sua amiga (namorada) – esse dualismo é uma das mais fortes caracterís-
ticas do homem medieval. Todas essas características também serão encontradas no
lirismo trovadoresco galaico-português.

A POESIA LÍRICA
No estudo da poesia lírica a questão da hegemonia e da importância do galego-
português deve ser lembrada. O período histórico compreende entre os fins do século
XII, com o provável aparecimento dos primeiros documentos escritos, não literários,
e 1434, ano que Fernão Lopes foi nomeado pelo rei D. Duarte cronista-mor do reino.
Todas as produções literárias devem ser vistas e integradas num contexto peninsular.

8 Surgiu nas cortes, em fins do século XI, na França meridional. Conceito europeu de mitos
e etiquetas para enaltecer o amor, gerando vários gêneros de literatura medieval, incluindo o
romance. Espécie de contradição entre o desejo erótico e a realização espiritual.
9 Amor intelectualizado. Disciplina nobre e idealizadora.

23
LITERATURA Assim, o galego-português, língua falada aquém e além do rio Minho até a fronteira
PORTUGUESA
do rio Tejo, foi o idioma usado por toda a Península e deu expressão a uma lírica de
amor surpreendente pela forma apaixonada e saudosa do homem português, como
demonstram os versos repletos de lirismo escritos por D. Sancho I:

Ai eu, coitada, como vivo


en gran cuidado por meu amigo
que ei alongado! Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!10

O idioma falado e adotado no Noroeste da Península Ibérica tornou-se, portanto,


a língua literária de toda a Península até o ano de 1350. Segundo alguns historia-
dores, tal aceitação da língua demonstra que já existia um lirismo autóctone, que
passava das romarias e cortes, através dos jograis e músicos ambulantes. Vale lembrar
também que, na Galiza, o santuário de São Tiago recebia peregrinos e cruzados de-
votos e crentes no poder do santo. Vinham de todos os reinos cristãos peninsulares e
da França, seguiam o caminho francês que, de Bordeaux11 (cidade francesa), levava a
Compostela. A defesa do cristianismo era o principal motivo dessa longa jornada, bem
como o desejo de expulsão dos sarracenos (conhecidos como infiéis) da Península.
Podemos concluir que na Europa medieval há dois mundos culturais, que vivem
lado a lado, mas separados: uma cultura erudita, internacional, eclesiástica, cuja lín-
gua é o latim; e uma outra em latim vulgar, acessível aos iletrados, em sentido popu-
lar. O galego-português impõe-se, constituindo-se a única língua na lírica peninsular.

A origem das cantigas trovadorescas


A problemática
Muito se tem discutido sobre a origem dos cantares primitivos com a “revolucio-
nária concepção de amor”, segundo Natália Correia (p. 16). Mas se recuarmos no
tempo, antes de Cristo, já encontramos o sentimento amoroso na alma da poetisa
grega Safo, exprimindo-se de forma serena, singela e bela, o seu amor pelo amigo:

Deixa-te estar frente a mim, amigo,


E desvenda a meus olhos todo o teu encanto.

10 Ai, triste de mim, como vivo/ preocupada com o meu namorado/ que se encontra ausente!
O meu namorado demora-se muito na Guarda! Tradução livre.
11 Desde o século XVIII, a cidade de Bordeaux é rica em história, cultura, artes, música e le-
gendários vinhos. Desde a Idade Media, a cidade ficou conhecida como um vibrante centro de
comércio, indústria e negócios.

24
Esse mesmo sentimento transborda nos textos, mais tarde, nas cantigas medievais. Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
Escrever textos com tal temática era uma atitude ousada que desafiava o clero e os satíricas

valores tradicionais. Essa arte era desacreditada, por ser arte popular, de caráter sub-
jetivo e individualista. Daí as questões que permanecem até os dias atuais:
Como apareceram essas composições? Que interferências teria havido?
Para respondê-las, abordaremos as teses explicativas, de forma resumida.

Tese arábica
De acordo com Lapa (1973) os estudos arabísticos revelaram na cultura dos ára-
bes certas afinidades com alguns caracteres da civilização cristã medieval. A poesia
trovadoresca podia ter sido influenciada pela poesia arábico-andaluza, que tinha dois
tipos de composição estrófica: a moashaha, muaxaha ou muaxá era uma criação de
Mocaddam, que viveu entre os anos de 840 e 920 e o zéjel, de caráter mais simples
e popular.
Na primeira modalidade a forma estrófica apresentava-se com o esquema aa/bba/
aa ccca/aa/dda/aa [...] e terminava, geralmente, por uma carja, conjunto de versos à
maneira da cantiga de amor e que resumia toda a canção, segundo Lapa (1973, p. 46):

Vai-se meu corachon de mib


ai, Rab, si se me tornarádd?
tan mal meu doler li-l-habib
enfermo yed, quando sanardd?12

O tom, de caráter feminista, identifica-se com a cantiga de amigo, com as queixas da


donzela sempre enamorada e saudosa, reclamando a dor da saudade provocada pela
ausência do amado. A outra modalidade denominada Zéjel, apresenta o mesmo tipo de
estrofe da modalidade anterior, possuindo, porém, um caráter mais popular. Existe a hi-
pótese de que o lirismo galaico-português tenha se originado dessa segunda modalidade.
De acordo com Lapa (1973, p. 47), essa primeira tese tem pouco fundamento,
porque a poesia andaluza era erótica e obscena, contrariamente à poesia galego-
portuguesa. O zéjel tinha feição política (ausente nas cantigas galego-portuguesas)
e panegírica característica encontrada nas cantigas de amor, momento em que o
trovador louva as qualidades físicas e morais da senhora. Quanto à estrutura, a po-
esia árabe não possui ligação estrófica, principal traço diferenciador das cantigas
galego-portuguesas.

12 Vai-se o meu coração de mim/ Ai, Senhora, se me retornará?/ A minha dor é tão triste, meu
querido/ Sinto-me doente, quando retornará? – Tradução livre.

25
LITERATURA Tese latino-medieval
PORTUGUESA
As origens do trovadorismo devem ser buscadas no latim medieval e na sua mé-
trica, segundo Lapa (1973, p. 66), o que comprova que o lirismo trovadoresco possui
caráter literário, fruto da cultura latina: “[...] natural seria procurar na literatura que
exprimia essa civilização dos séculos XI e XII, a literatura latino-medieval, as origens
da poesia trovadoresca”.
Entende-se, assim, que a tradição da cultura clássica não se perdeu na Idade Mé-
dia. Pelo contrário, houve uma continuidade entre os dois mundos (o clássico e o
medieval). E se o latim aparece modificado nas composições poéticas, prova que era
vivido e sentido, filtrado por outros homens, possuidores de outra alma e uma nova
cultura.
Historicamente, a grande imagem de Roma estava sempre presente ao homem
medieval, que se esforçava na imitação das suas instituições e do seu trabalho artís-
tico. Nas universidades existentes nessa época, em toda a Europa, foram criadas ca-
deiras de latim medieval. Ainda hoje, várias universidades, as alemãs, principalmente,
são centros ricos de erudição e pesquisa médio-latinística.

Tese Litúrgica
Essa terceira tese complementa a anterior. Defendida por Lapa (1973, p.78), que
afirma ser na liturgia que o estudioso deve ir buscar as origens da poesia trovadores-
ca. De acordo com o crítico, a cantiga de amigo parece ser uma perfeita imitação do
canto antifônico13 da Igreja. Há uma hipótese que estranha o fato de os trovadores
buscarem (ou se inspirarem) no ritmo e na música dos cantos religiosos, porque
faziam uso de uma linguagem profana e amorosa. A tese litúrgica, assim chamada,
porque pretende derivar o lirismo trovadoresco das formas da poesia da igreja cris-
tã. Devemos considerar, contudo que a Igreja era um espaço do canto e da música
instrumental. Cerimônias de enterros e outras manifestações profanas realizavam-se
no espaço sagrado das igrejas, onde se comia, bebia e falava-se em voz alta, a ponto
de os reis começarem a condenar essas práticas, nas ordenações, e os clérigos, nos
próprios atos litúrgicos.
A tese em questão estabelece, assim, uma ponte de ligação entre a poesia culta da
Igreja e os meios populares de cultura, familiarizados com as cerimônias litúrgicas e
muito influenciados por elas. Houve, assim, uma modalidade da tese latino-medieval

13 Antífona ou canto antifônico é uma resposta cantada, em canto gregoriano, a um Salmo, ou


a outra parte da liturgia, como as Vésperas ou uma Missa pelo celebrante, ao qual respondem
alternadamente duas metades do coro.

26
e uma outra com a teoria folclórica, configurando que no decorrer do processo de Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
assimilação e transformação desse lirismo pelo povo, a música religiosa já continha satíricas

elementos populares.
De acordo com Lapa (1973, p. 82) vários temas encontrados nas cantigas trovado-
rescas são provenientes de rituais litúrgicos, principalmente, nos festejos da Ressur-
reição, da Páscoa. Do mesmo modo, as formas rítmicas também explicam e justificam
as origens do lirismo romântico. por elas. Houve, assim, uma modalidade da tese
latino-medieval e uma outra com a teoria folclórica, configurando que no decorrer do
processo de assimilação e transformação desse lirismo pelo povo, a música religiosa
já continha elementos populares.
De acordo com Lapa (1973, p. 82) vários temas encontrados nas cantigas trovado-
rescas são provenientes de rituais litúrgicos, principalmente, nos festejos da Ressur-
reição, da Páscoa. Do mesmo modo, as formas rítmicas também explicam e justificam
as origens do lirismo romântico.

Tese Folclórica
Semelhante à tese arábica, essa quarta tese é um produto do Romantismo, porque
se baseia na ideia romântica da criação popular. Exemplo disso é a influência das
festas da primavera ou festas de Maio, em honra a Vênus, que ocorreram na antigui-
dade Clássica e que influenciaram a lírica provençal. Gaston Paris, em 1891 e 1892
formalizou essa tese, ao analisar o livro “As origens da poesia lírica na França da Idade
Média”, de Alfred Jeanroy e comprovou que as cantigas de amor trazem vestígios da
festa pagã do mês de maio, quando jovens buscavam flores e ramos para enfeitar car-
ros e adornarem-se, cantando e dançando em roda, celebrando o amor e a primavera.
Tais canções, segundo Lapa (1973, p. 56), teriam “imprimido à poesia cortês o ca-
ráter libertino do seu amor, e os festivos refrões da Primavera ter-se-iam como cristali-
zado no começo da canção”. Essa tese, portanto, explica o caráter popular do lirismo
galego-português, pelas suas concepções filológicas e pelos resíduos românticos da
ideia de “povo ignorante, mas criador” (LAPA, 1973, p. 57).

Tese etnográfica
Essa tese defende a idéia de que as cantigas trovadorescas devem ser estudadas
sob a perspectiva geral e pluridimensional, a partir de um entrelaçar das várias in-
fluências e teses que discutem sua origem. Audrey Bell, em sua obra Da Poesia Me-
dieval Portuguesa (1947), afirma que a cadência paralelística das cantigas de amigo
galego-portuguesas se deve ao ritmo que a jovem imprimia aos trabalhos caseiros,
embalando o irmão mais jovem, fiando o linho ou lavando a roupa na fonte. Esse

27
LITERATURA ritmo teria influenciado as cantigas de amigo, porque a donzela trabalhava cantando,
PORTUGUESA
como ainda ocorre hoje, nos trabalhos do campo.
Do mesmo modo, Menendez y Pelayo14 defende a tese etnográfica, questionando
sobre as raízes desse lirismo, justificando-o com o seu fundo étnico comum aos povos
da Península Ibérica ou de algum povo característico da Galiza. O lirismo galego-
português possui um caráter mais popular do que o provençal, apresentando certo
fundo de melancolia vaga, misteriosa e de devaneio. Segundo a crítica, tais caracterís-
ticas podem ser consideradas um complexo fenômeno trovadoresco.
Nesse sentido, uma tese só não bastaria para explicá-lo e para se entender o seu apa-
recimento. Para tanto, deve-se inserir o lirismo galego-português no contexto de uma so-
ciedade teocrática, que poderia sentir-se prejudicada por um ideal que canalizava a fervo-
rosa religiosidade medieval para um verdadeiro culto prestado à mulher, revelado numa
série de cantares profanos em que o amor é cantado de uma forma, às vezes, patética.
A origem desses cantares trovadorescos deve ser vista num entrelaçar de várias
influências e de várias teses, numa conjuntura, ou melhor, numa perspectiva geral e
pluridimensional.
De acordo com Lapa (1973) um fato pode ser considerado certo:

o esquema versificatório e o elemento musical forma tirados da arte litúrgica,


que continham, ao que parece, sugestões da arte popular; o fundo de ideias
e sentimentos é um produto da civilização do tempo: cristianismo, cavalaria,
tradição das culturas antigas e criação dos trovadores (LAPA, 1973, p. 92).

É o que veremos a seguir.

A Provença – situação político-social e cultural


A Provença, do latim, província, nome criado pelo Imperador Augusto, é uma
região do sul da França, um condado que, a partir do século XI, foi o “berço” de uma
poesia lírica masculina e que inspira o despontar do lirismo europeu nos séculos
subseqüentes. Os provençais, assim como os povos peninsulares, também sentiram a
força e a crueldade dos árabes, que avançavam e devastavam todo o Ocidente.
O feudalismo foi um meio muito eficaz contra os invasores árabes, a que ficavam
expostas às populações mais pobres e indefesas. A cristandade não estava só amea-
çada pelos mouros, porque também os eslavos e dinamarqueses representavam tam-
bém uma ameaça. O cavaleiro armado e o castelo fortificado do senhor feudal eram

14 Marcelino Menendez Y Pelayo (1856-1912) foi polígrafo, crítico literário e erudito espa-
nhol. Recolheu toda poesia espanhola da Idade Média ao Renascimento.

28
os principais meios de defesa. A cavalaria surge como uma bênção, não deixando, Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
porém, de ser guerreira e combativa, ao proteger a pátria dos infiéis. Desse contexto, satíricas

surge uma poesia épica, que canta e exalta a coragem e a luta desses heróis – são as
canções de gesta15.
No norte da França floresce uma literatura de exaltação nacional e mística. Os
trovadores cantam e imortalizam os feitos heróicos de cavaleiros que partem para
defender a pátria e a causa de Cristo, criando epopéias onde celebram a coragem, a
honra, a determinação, o heroísmo desses homens bravos que ficaram imortalizados
na alma dos povos. Exemplo disso é a Canção de Rolando (La Chanson de Roland),
poema épico escrito em francês antigo, no século XI, muito influente na época, ins-
pirando a composição de outras obras sobre o tema (a chamada “Matéria de França”)
por toda a Europa.
O poema narra o fim heróico do conde Rolando, sobrinho de Carlos Magno, que
morre junto a seus homens na batalha de Roncesvales contra os árabes. A base histó-
rica do poema é uma batalha real, travada entre a retaguarda do exército de Carlos
Magno, sob o comando de Rolando, que abandonava a Península Ibérica e um grupo
de espanhois bascos que a chacinou. Embora histórico, o acontecimento é retratado
sem fidelidade histórica: os autores do massacre passaram de bascos a muçulmanos,
e tanto essa alteração como o tom geral do poema explica-se pelo contexto das Cru-
zadas e da Reconquista Cristã da Península, que se viveu no século XI.
Um trecho da Canção de Rolando exemplifica o tom épico, heróico e majestoso,
que percorre todo o poema:

“La morte de la Belle Aude” (A morte de Alda, a bela)

O Imperador voltou de Espanha e chega a Aix, o melhor lugar da França. Diri-


ge-se para o palácio, entrou na sala. Eis que se aproxima dele Alda, uma bela
donzela. Ela diz ao rei: ‘Onde está o capitão Rolando que me jurou tomar para
esposa?’ Carlos sente ‘dor e pena, chora e puxa a barba branca:’ – Irmã, tu me
perguntas por um morto. Eu farei uma troca preciosa. Quero falar de Luís,
não posso dizer melhor. ‘É meu filho e ele continuará o meu caminho’. Alda
responde: ‘– O que dizes é estranho para mim. Não agrada a Deus, nem aos
santos, nem aos anjos, que eu continue viva depois de Rolando’. Ela perde a
cor e cai aos pés de Carlos Magno, morre em seguida. Deus tenha piedade de
sua alma! Os barões franceses choram e têm pena dela!
(Canção de Rolando16, 268, versos 3705 a 3722, p. 110).
(CANÇÃO, 1988, p. 110).

15 Do francês, chansons de geste, ou canções de feitos heróicos. São poemas épicos que datam
dos fins do século XI e início do século XII e narram
16 A Canção de Rolando. Tradução Lígia Vassalo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

29
LITERATURA A guerra, porém, começa a esmorecer e outros interesses renascem e no sul des-
PORTUGUESA
ponta um novo ideal amoroso. Uma elite de nobres e clérigos procura nas letras
outras distrações que tivessem mais a ver com as suas almas sensíveis e líricas. No
século XI desperta o espírito cortês, cria-se um universo novo de sonho e fantasia,
que faz nascer uma literatura popular, que se tornou artística e penetrou nas cortes
senhoriais e reais.
Esse lirismo é divulgado em toda a Europa: é o renascer dessas canções líricas nas
populações românicas, incluindo-se Portugal. O cavaleiro já não combate mais pelo
seu Deus e nem pelo seu senhor, mas pela sua dama. Nasce, então, a arte dos trova-
dores, sutil e apaixonada. A arte do amor cortês, o amor puro que leva à virtude, à
perfeição, à razão de existir. Impõe deveres, num ritual à maneira da estrutura feudal:
assim como o vassalo deve vassalagem e obediência ao seu senhor, do mesmo modo,
o trovador deve obediência à sua dama – ela é a suserana e ele o seu vassalo.
O amor vive da admiração recíproca. Ele admira na senhora as virtudes morais, a
dignidade e a fidelidade, um amor quase idólatra, saudoso, torturado de um fatalismo
passional. Tudo contribuiu para o surgimento desse hino amoroso: o clima ameno,
a terra fértil, o contato sempre com o mediterrâneo e a sua abertura para todas as
civilizações que por lá passavam. As pessoas eram alegres, a paisagem verdejante com
horizontes a perder de vista.
A mulher, por sua vez, começa a ser reabilitada pelo cristianismo. No regime feu-
dal, vai ser exaltada, endeusada, principalmente no sul da Provença. Diferentemente
o que ocorreu na Grécia e em Roma, no paganismo, quando era desprezada e consi-
derada como um animal.
O trovador vê no amor de sua dona uma fonte de enobrecimento da alma. É atra-
vés da beleza feminina (considerada um testemunho de Deus na terra) que o amante
atinge o amor supremo. Para não atingirem a honra da mulher, os trovadores usavam
de uma linguagem muitas vezes hermética, a que chamavam “trobar clus”, ou seja,
fazer versos fechados. Para se aproximarem de sua dama, à maneira do vassalo para
com o seu senhor, o trovador tinha que seguir certo ritual:
1) Suspirante ou frenhedor: atitude de suspirar;
2) Suplicante ou precador: atitude de pronunciar algumas palavras à senhora,
pedindo-lhe atenção para a sua pessoa e correspondência ao seu amor.
3) Namorado ou entendedor: fase em que podia olhar para ela e a correspondên-
cia era quase completa.
4) Amante ou drudo: o último estágio do ritual, quando o trovador era corres-
pondido, não só espiritualmente, mas também fisicamente. Na cantiga de amor
portuguesa, era raro chegar a esse grau, porque se o marido descobrisse, uma

30
desgraça poderia ocorrer. Portanto, o amor deveria ser a arte pela arte, puro, Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
platônico. satíricas

Nesse sentido, mesmo o trovador provençal não deveria nunca revelar o nome da
senhora e sim, respeitar o senhal (o pseudônimo) para não ferir a honra e o nome
da mulher amada. Sendo assim, além do ritual, ele deveria respeitar os seguintes
aspectos: Ser humilde e paciente (a vassalagem amorosa); prestar obediência e sujei-
ção absoluta à sua senhora; prometer servi-la e honrá-la até a morte; não esquecer
o senhal, requisito essencial no código de amor cortês e ter em atenção a mesura
(virtude suprema), a mais preciosa das qualidades.
Quanto à estética desses cantares, a mulher era sempre a mais bela de todas e por
ela o trovador tudo desprezava, aspirando até a morte. As palavras fremosa (bela, for-
mosa), prez (caráter, dignidade) e talhada (belo corpo, bela aparência) fazem parte
dos versos das cantigas provençais e, consequentemente, das galego-portuguesas.
A invocação à natureza leva o trovador a falar nas frores de Maio (flores de maio) e
no tempo da frol (no tempo da flor), na primavera e nas aves como mensageiras da
paixão, para refletir ou contrastar com o estado de alma enamorada. Vale lembrar que
esta corrente provençal influenciou a lírica peninsular.

O lirismo galego-português
Ao estudar-se a literatura trovadoresca, é comum estabelecer os limites cronoló-
gicos, tanto na datação dos primeiros documentos, como também na determinação
de suas últimas expressões. Todavia, no que se refere à poesia galego-portuguesa,
estabelecer datas para o surgimento e o fim deste lirismo é um problema destacado
por vários críticos, em que há divergências significativas, ao mesmo tempo em que
revelam as opções metodológicas de cada estudo. Logo, devido a essas diferentes
perspectivas, é preferível apontar algumas datas a estabelecer limites precisos.
De acordo com Vieira (1992, p. 27), o primeiro texto que se pode datar com “certa
segurança” é o sirventês político de Johan Soarez de Pávia contra o rei de Navarra,
Ora faz ost’o senhor de Navarra, para a qual se aceita como provável a data de 1196.
Este trovador era um nobre português, feudatário do rei de Aragão e Catalunha, que
teria vivido, por volta de 1196, na corte de Barcelona. Acredita-se ainda que tivesse
escrito mais seis cantigas de amor, antes de 1196, mas que estão ausentes no códice.
Do mesmo modo, a famosa Cantiga de Guarvaia (também conhecida como “Can-
tiga da Ribeirinha”) tem sido considerada como a mais antiga composição. Nesta pers-
pectiva, os estudos de Carolina Michaëlis (apud Vieira, 1992, p. 27), admitindo a au-
toria do trovador Pai Soares de Taveirós, propõem que o poema tenha sido composto

31
LITERATURA antes de 1200, talvez em 1198, ou mesmo 1189. Por sua vez, como discorre Vieira
PORTUGUESA
(1992, p. 27), Pizzorusso17, (1963) opta por atribuir a autoria desta cantiga a Martim
Soares, devido sua localização no grupo de poemas no Cancioneiro da Ajuda e por
questões formais internas. Logo, esse exemplar teria sido composto alguns anos mais
tarde, porque a atividade desse poeta se situa, provavelmente, entre 1230 e 1270.
Segundo Tavani (1988, p. 41), a maior parte do patrimônio poético galego-portu-
guês pertence ao século XIII e à primeira metade do século XIV. Apenas um texto pode
ser situado no século XII, como é o caso da cantiga de escárnio já mencionada por
Vieira (1992). Assim, com datas aproximadamente delimitadas, a dificuldade reside
na gênese dos tipos de cantigas presentes nos Cancioneiros das Bibliotecas da Ajuda,
Nacional de Lisboa e do Vaticano, em que se distinguem três gêneros principais – can-
tigas de amor, cantiga de amigo e cantigas de escárnio e maldizer –, e também gê-
neros menores, como a pastorela, o pranto a alba, entre outros pouco representados.
Neste âmbito, a cantiga de amor, de inspiração provençal, seria uma das manifes-
tações periféricas da canso (canção) occitânica, pois reproduz bastante fielmente essa
ideologia, apesar de o substrato social ser completamente diferente. As cantigas de
escárnio e maldizer formam, por outro lado, um gênero pouco homogêneo, mas que
se vincula também aos gêneros provençais correspondentes. Enquanto que a cantiga
de amigo é uma cantiga de mulher, porém, bastante diferente das outras canções
de mulher da poesia medieval em língua vulgar. Isso fez com que, devido sua “origi-
nalidade” no que se refere à personagem, ao ambientes e seu aspecto dialogado, se
formulasse uma tese que atribui uma origem popular à cantiga de amigo.
Segundo Lapa (1973), esta distinção não é arbitrária, o que faz com que esses
gêneros interpenetrem-se na literatura galego-portuguesa, levando a encontrar nas
primeiras cantigas de amor resquícios da repetição paralelística e nas cantigas de
amigo algo que lembre a doutrina do amor cortês. Para este crítico, estes dois gêne-
ros têm ainda natureza totalmente diversa. Portanto, considera que é falso o processo
seguido por alguns romanistas ao forjar uma genealogia dos gêneros, considerando
a cantiga de amor o ponto de partida da cantiga de amigo. Do mesmo modo, re-
conhece um “pálido eco” do lirismo provençal no galego-português; enquanto que
outros autores atribuem analogias literais, ou quase, em nível de microestruturas,
entre poetas galego-portugueses e trovadores occitanos.
Assim, é preciso considerar duas correntes poéticas fundamentais, ao examinar-
mos as origens do lirismo galego-português, como evidenciam diversos estudiosos

17 Obra citada: PIZZORUSSO, V. B., Le Poesie di Martin Soares. Bologna: [s.n.], 1963. p.
25-28; 59-64.

32
deste lirismo18: uma que denuncia o influxo estrangeiro de além Pireneus, em que Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
sofre influência da poesia trovadoresca provençal, constituída em sua totalidade nas satíricas

cantigas de amor; e outra com raízes na terra, o elemento autóctone que manifesta
caráter popular e feminino, representada, essencialmente, pela cantiga de amigo
paralelística. Nesse sentido, verifica-se que alguns têm se inclinado para uma ou ou-
tra linha interpretativa, conforme a intenção seja de enfatizar as características que a
lírica galego-portuguesa compartilha com o lirismo provençal ou ainda marcar a sua
individualidade, por meio do caráter específico das cantigas de amigo, vistas como
manifestações de uma identidade nacional. Para tanto, busca-se neste estudo traçar
um percurso pela vertente autóctone e pelo lirismo provençal, tendo em vista suas
implicações para o trovadorismo galego-português.

As Cantigas de Amor
Definição
De origem provençal, essas cantigas refletem um estilo de vida diferente: cons-
tituem um retrato da vida feudal da corte, expressando um meio culto, refinado e
muito comprometido com o convencionalismo da vida palaciana e a cultura clássica.
O trovador apresenta a confissão de sua experiência passional diante de uma mu-
lher inacessível aos seus sentimentos e apelos amorosos, porque pertencia à classe
social superior e era casada. O sentimento amoroso posiciona-se no plano da espiri-
tualidade e de contemplação platônica, mas, segundo Moisés (1977, p. 25):

[...] ‘estranham-se-lhe no mais fundo dos sentidos: o impulso erótico situado


na raiz das súplicas transubstancia-se, purifica-se, sublima-se’. Tudo se passa
de acordo o autor, “como se o trovador ‘fingisse’, disfarçando-se com o véu do
espiritualismo, obediente às regras de conveniência social e da moda literária
vinda da Provença’ [...].

As cantigas de amor galego-portuguesas são mais espontâneas, mais sentidas, mais


autênticas, identificando-se com a alma romântica e saudosa, com o gosto de estar
triste, configurando certo caráter melancólico do homem peninsular. Na verdade, o
que se imitou das cantigas provençais foi a forma poética e o respeito ao formalismo
do amor cortês. Nessa modalidade poética é raro aparecer elementos da natureza,
ou o espaço geográfico como cenário. É a coita de amor (a dor, o sofrimento amo-
roso) que domina a alma do eu-lírico de tal maneira que não há lugar para o espaço
exterior.

18 Lapa (1973), Vieira (1992), Tavani (1988, 2002), Lopes e Saraiva (1996).

33
LITERATURA Classificação e Estrutura
PORTUGUESA
As cantigas de amor recebem a seguinte classificação:
• Cantigas de mestria (ou maestria) consideradas as mais perfeitas. Os versos
possuem sete a dez sílabas métricas e o número de estrofes raramente passava
de três ou quatro.
• Cantigas de refrão (ou estribilho): no final de cada estrofe, repetia-se um ou
mais versos, tornando-a mais espontânea, natural, lírica e menos artificial.

Quanto à estrutura das composições:


• Tema configura-se sempre com o geral, independentemente da forma como é
tratado. O amor? A saudade? O ciúme? A morte? Deus? A violência?
• Assunto é o conteúdo, é a forma como se vai desenvolver o tema. Pode ser
traduzido numa frase, resumindo tudo o que o sujeito-lírico foi expressando
ao longo do texto. Por exemplo, o tema do amor pode ser abordado através
da separação dos amantes, de uma forma atormentada, desesperada, que pode
levar à loucura, como nas cantigas de amor galego-portuguesas.

Recursos Estilísticos são os recursos que o trovador recorre para expressar


melhor o que pensa e sente. Criam a matéria poética, são eles que nos envolvem
emocionalmente na interioridade do sujeito-lírico. Sem eles, o poeta pode cair num
discurso vazio, apático, indiferente. Por exemplo, um simples artigo definido pode
remeter o leitor a algo muito preciso, ou alguém que já conhecemos: “E, pois que
o Deus assi o quis,/ Mais os meus olhos por alguen/ choran e cegan, quando alguen
non veen.”19
Outros recursos estilísticos, tais como a adjetivação, que pode ser binária, ter-
nária ou múltipla também caracteriza e descreve melhor o objeto referido, como
por exemplo, os adjetivos “trist’ e coitada” (triste e sofrida) utilizados pelo trovador
para se referir à dor e a saudade sentidas na ausência do namorado. As figuras retó-
ricas ou figuras de estilo, como a metáfora, a hipérbole, a repetição, a comparação,
a sinestesia, entre outras, também são recursos utilizados nas cantigas de amor para
nos fazer sentir e compreender melhor uma realidade.

19 E, pois Deus assim o quis, / Mas os meus olhos por alguém.../ choram e cegam, quando não
veem alguém. Tradução livre.

34
Temática das cantigas de amor Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
O trovador vê o amor cortês como uma força espiritual e mística em oposição satíricas

ao amor erótico. A mesura, o respeito pela senhora, leva-o a esquecer-se dele pró-
prio. Sendo assim, ele se humilha, apaga-se, temendo fazer mal à sua dona. É o
amor puro, desinteressado, cuja finalidade é aperfeiçoar-se moralmente. É o amor-
adoração que se satisfaz numa idolatração, veneração pela sua senhora. Só assim, ele
cresceria em espiritualidade e em grandeza de alma.
Na maior parte das vezes, porém, o trovador sofre com a não correspondência
amorosa da senhora, levando-o ao desejo de morrer por amor. Dirige-se, nesse
caso, à senhora numa apóstrofe plena de carga afetiva, atitude de humildade e súpli-
ca, num queixume, espécie de grito de dor o desconcerto de sua alma o desejo de
morrer. É o gosto de viver triste, o comprazimento na dor, características constantes
na estética das cantigas de amor. Mesmo a saudade da mulher amada poderia levar o
trovador à morte, como nos versos de Bernal de Bonaval: “A dona que eu amo e tenho
por senhor / amostrade-me-a, Deus, se vos en prazer for, / se non dade-mi a morte!”
E Deus está sempre presente na alma do trovador como o único que pode ajudá-
lo na sua dor de amor, fruto da extrema religiosidade existente e do platonismo, que
molda as almas, num amor espiritual.
O tema da separação também é comum nas cantigas de amor. A separação, tema
recorrente nas cantigas leva o trovador à loucura. Nesse caso, ele confessa que não
poderá viver sem ela, na certeza de ensandecer, como comprovam os versos de João
Garcia de Guilhade:

Amigos, non poss’ eu negar


a gran coita que d’ amor hei,
ca me vejo sandeu andar,
e com sandece o direi:
os olhos verdes que eu vi
me fazem ora andar assi.

O eu-lírico dirige-se aos amigos, numa confissão afetiva e reveladora de que o


sofrimento amoroso resultou de ter visto os “olhos verdes” da senhora. A partir
desse dia, age e anda como um louco (ca me vejo sandeu andar), perdido na beleza
daqueles olhos.
Antes de analisarmos uma cantiga de amor, vale observar alguns artifícios po-
éticos que se encontram na Poética Fragmentária da Arte de Trovar. Segundo a
Poética, as estrofes tinham o nome de coblas ou cobras e o seu número ficava ao
critério do trovador: “Os trobadores poden fazer as cantigas ou de quatro ou de sys

35
LITERATURA ou de oyto ou de mays, se quiseren”20.
PORTUGUESA
As estrofes podiam ser: uníssonas, quando têm a mesma rima; singulares, quan-
do apresentavam rimas diferentes e doblas ou parcadas, quando cada grupo de
duas coplas tinha a mesma rima. O perfil da cantiga denominava-se talho e os versos,
palavras. As cantigas galego-portuguesas não têm mais do que três ou quatro coplas,
excetuando-se as paralelísticas. Cada copla podia apresentar um número variável de
versos, sendo que o número máximo de versos era de dez e o mínimo, de dois.
Além do refrão, outros recursos poéticos também podem ser observados: a finda,
espécie de conclusão, constituía-se de uma copla (estrofe) de menor extensão – de um
a quatro versos – que rematava tudo quanto se tinha dito. Complementava a cantiga,
geralmente, a de mestria. A atafinda constitui-se num processo de ligação de coplas,
feita pela continuação da frase na copla seguinte. Feita pelas partículas como e, ca,
pois, quando, pero, que, entre outras. Poderiam ser empregadas tanto nas cantigas de
mestria, como nas de refrão. O enjambement ou transporte consiste em completar no
verso seguinte o sentido do verso anterior, processo que se tornou corrente na poesia,
até a atualidade. Há ainda o recurso do dobre, ou repetição simétrica da mesma palavra
de rima duas ou mais vezes, de preferência no primeiro e último verso e do mozdobr-
re, repetição da mesma palavra, mas variando-a de forma, no corpo das coplas.
Os demais recursos serão estudados nas cantigas de amigo.

Exemplo de cantiga de amor (leitura e análise)

Como morreu quen nunca ben


ouve da ren que mais amor
e de quen viu quanto receou
d’ela e foi morto por em
ai, mha senhor, assi moir’ eu!
Como morreu quen foi amar
quen lhe nunca quis bem fazer
e de quen lhe fez Deus veer
de que foi morto com pesar,
ai, mha senhor, assi moir’ eu!

Como home que ensandeceu,

20 Os trovadores podem fazer as cantigas de quatro, ou de seis ou de oito ou de mais, se quise-


rem. Tradução livre.

36
senhor, com gran pesar que viu, Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
e non foi ledo, nem dormiu satíricas

depois, mha senhor, e moireu,


ai, mha senhor, assi moir’ eu!

Como morreu quen amou tal


dona que lhe nunca fez bem,
e quen a viu levar a quen
a non valia, em a val,
ai, mha senhor, assi moir’ eu!
Paai Soares de Taveiroos
(CA 35, CBN 122)

A análise desta composição constituirá, a princípio, um modelo, sugestões de


análise.
1) Quanto ao tema: a não correspondência amorosa, o fatalismo de amor.
2) Quanto ao assunto: o sujeito-lírico compara-se a alguém que morreu de amor
porque a sua senhora (“senhor”) nunca o amou: “nunca ben/ ouve da ren que
mais amou”, e, assim, também ele morre.
3) Logo no primeiro verso, na primeira estrofe, o trovador compara-se a alguém
que nunca foi correspondido no amor e nunca teve bem nenhum da parte
dela. Observa-se um sentido trágico, sugerido pelo uso do polissíndeto: e de
quen viu quanto receou / e foi morto por en (repetição expressiva da conjun-
ção coordenativa), ideia reforçada pela gradação ascendente, quando o eu-
lírico revela que nunca ben/ouve; receou d’ ela e foi morto por en (nunca
teve nenhum bem da parte dela, sentiu medo dela e foi morto por isso). Toda
essa tensão termina no refrão, numa queixa dolorosa, que nos é dada pela
interjeição ai mha senhor, assi moir’ eu!

Na segunda estrofe ou copla a tensão aumenta através do paralelismo (quen


nunca ben [...] / quen foi amar [...], numa obsessão de onde parece não conseguir
sair. O eu-lírico insiste e continua a comparar-se a alguém (quen) que nunca corres-
pondeu ao seu amor. Insiste no polissíndeto, numa progressão dramática, desdo-
brando a mesma ideia. A repetição do pronome indefinido “quen” sugere a obsessão
e confunde-se com esse alguém que morreu de amor por alguém que “nunca quis
ben fazer” (nunca quis fazer o bem). Percebe-se uma atmosfera tensa, através da

37
LITERATURA aliteração dos sons nasais em “en”, acentuando-se a dramaticidade da realidade do
PORTUGUESA
sujeito-lírico. As rimas auxiliam na revelação do trágico, à maneira de um presságio.
Na terceira estrofe ou copla o eu-lírico dirige-se à amada e compara-se a um
“home” que “ensandeceu” (que enlouqueceu) com a tristeza que viu e, a partir, daí,
não foi mais feliz e nem dormiu (faz uso do pretérito perfeito para recriar sua dor pas-
sada). Reforça o trágico novamente no uso do polissíndeto e na gradação, além do
que as aliterações dos sons nasais adensam mais a angústia do eu-lírico, aproximando-
o das consequências dramáticas daquele fatalismo de amor: depois, mha senhor, e
moireu. Identifica-se a seguir, com essa desgraça e confessa com dor no refrão: “ai,
mnha senhor, assi moir’ eu”.
Na quarta e última estrofe, há uma retomada do paralelismo (Como moireu
quen amou tal / dona que lhe nunca fez ben) nos dois primeiros versos. Atinge a sua
angústia, numa paixão avassaladora e, ao repetir o polissíndeto revela o maior drama
daquele “home” - a senhora o deixou por outro que não a merecia (a non valia) e nem
a merece (non val). A aliteração em v, sugerindo o movimento de partida, juntamen-
te com o uso do imperfeito (a non valia) dá-nos o caráter durativo da ação, sugerindo
a intensidade desse absurdo. Termina numa queixa, que ecoa e se perde na alma da
sua senhor: ai, mnha senhor, assi moir’ eu!
Quanto à forma, essa cantiga de amor possui quatro estrofes (coplas) de versos
octossílabos agudos, dispostos segundo o esquema rimático: abbaC, acompanhados
de refrão.

As cantigas de Amigo
O emissor nas Cantigas de Amigo é a mulher, por isso dizemos que o “eu-lírico” é
feminino. Na verdade, também nas Cantigas de Amigo o autor é um homem, mas que
se faz passar pela mulher que namora ou pela qual tem interesse. A mulher continua
sendo como na cantiga de amor, o agente e o tema da poesia lírica trovadoresca.
Nessas cantigas, a mulher, geralmente pertencente a uma camada social mais popu-
lar e menos culta, lamenta a ausência do “amigo21” que está longe ou não se apresen-
tou no tempo esperado ou para o encontro combinado entre dois. O tom é de confi-
dência à mãe ou as amigas ou a algum elemento da natureza (ramo, flor, árvore, lago,
um pássaro, entre outros). Em muitas composições, a água (ondas, mar, lago, fonte)
assume uma forte conotação erótica, metaforicamente, uma vez que o relacionamento
entre os namorados era ou deveria vir a ser íntimo.

21 A palavra amigo pode ser traduzida por namorado, sempre está ausente, por ter ido combater
os mouros nas trincheiras (no ferido ou fossado).

38
Quase sempre, as Cantigas de Amigo apresentam uma elaboração estética diferen- Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
te, em consequência de sua origem popular. Seus compositores não são nobres im- satíricas

portantes, suas letras, têm menor riqueza vocabular e costumeiramente utilizam para-
lelismos e/ou refrões , bem como outros recursos que auxiliam no “prolongamento”
da canção, com a estruturação musical tornando-se mais acessível ao autor. Analisadas
sob o ponto de vista temático, as Cantigas de Amigo apresentam razoável variedade
graças às diferenças situações descritas ou abordadas.
Quanto a um possível valor histórico, documental, também o saldo é significativa-
mente positivo, pelo registro de vivências cotidianas, de usos e relações caracterizado-
ras, ao menos em parte, da sociedade da época. Outros aspectos, ainda, a contribuir
para o aumento desse valor documental, é a existência de vários modelos de cantigas
relacionados com situações ou acontecimentos, como a alva ou alba (matutina), bai-
lia (para a dança), romaria (fato religioso), marinha (referência ao mar), mal-maridada
(crise conjugal), pastorela (relativa ao campo, pastoreio), serena (noturna), barcarola
(paisagem marítima).
Dentre as variedades temáticas, as bailias exemplificarão a nossa leitura.
O canto e a dança, desde o paganismo, ligavam-se aos atos do culto e das diversões
populares. As mulheres, especialmente, solteiras, acompanhadas ou não de instru-
mentos ou apenas com o auxílio da própria voz, cantavam e dançavam em dias festivos.
Na Galiza, especialmente, na cidade de Santiago de Compostela (centro de devoção
do mundo inteiro), depois da descoberta do corpo de Sant’Iago, em honra do santo
eram entoados cantos, numa atitude de intensa fé, a princípio em latim, depois mes-
clados com outras palavras, chegando ao romanço. É atribuída a influência dos cantos
austeros e solenes, os quais, mais tarde, fizeram parte da poética galego-portuguesa e
da dança. Essas manifestações ocorriam sofriam a influência da igreja compostelana, as
quais, transigindo com as revelações de caráter religioso, ficaram gravadas na memória
do povo, transformando-as em cenas populares.
Na Idade Média, as mulheres reuniam-se nos adros das igrejas, ou em lugares públi-
cos, organizavam bailes de roda, cantando versos amorosos em coro. A Igreja, apesar
de inúmeros esforços, não conseguiu acabar com as danças profanas, preferindo as-
similá-las nos cultos, permitindo que os cantos em honra aos santos fossem entoados
pelas mulheres, principalmente depois da descoberta do corpo de São Tiago, fato que
tornou a cidade de Compostela o maior centro de devoção de todo o mundo. Deste
modo, as mulheres passaram a desempenhar um importante papel como intérpretes
no canto e na dança, em festividades religiosas ou profanas.
Nunes (1928, p. 125) registra que

39
LITERATURA [...] é de se presumir que nesse cortejo feminino figurassem as mais distintas
PORTUGUESA pelo nascimento e, sobretudo, pela habilidade em cantar e bailar. E já então
algumas haveria de certo que, exímias nas duas artes, fizessem disto profissão,
exercendo o seu ofício em público, cantando e bailando ao som do pandeiro.

Em Portugal, o gosto de cantar e dançar das moças estendeu-se aos monarcas


como D. Afonso VII e D. Fernando, além das senhoras da corte que presidiam as
cerimônias. Entre os passatempos do rei, a caça e a dança eram muito comuns “por
ocasião dos jogos e estas que ordenava por desenfadamento, de dia e de noite andava
dançando por aqui mui grande espaço”, fato referido por Fernão Lopes, na Crônica
de D. Pedro, rei que nutria verdadeira paixão pela coreografia. Quando D. Pedro
chegava de viagem, os que vinham recebê-lo traziam os mestres de danças e o rei saía
dançando com eles até o paço. Relata-nos assim a crônica:

Jazia el-rei em Lisboa ua noite na cama e nom lhe viinha sono pêra dormir e
fez levantar os moços e quantos dormiam no paaço e mandou chamar Joham
Mateus e Lourenço Pallos que trouxessem as trombas de prata e fez acender
tochas e meteo-se pella villa em dança com os outros. As gentes que dormiam
saíam aas janelas veer que festa era aquella ou porque se fazia; e quando virom
daquella guisa el-rei, tomarom prazer de o veer assi ledo. E andou el-rei assi
gram parte da noite e tornou-se ao paaço em dança... (CRÔNICAS, s.d., p. 48).

No Ocidente da Península Ibérica já havia se desenvolvido uma poesia de inspira-


ção folclórica ligada a terra e ao contato da vida campesina com o mar. Na Provença,
existia uma poesia mais culta e elaborada de onde surgiram as cantigas de amor
que, segundo Lapa (1973, p. 136) “são poesias de visíveis tons retóricos”. Em outras
palavras, no que se refere à poesia medieval portuguesa, o que originariamente per-
tenceu as mais longínquas tradições medievais, situam-se os cantares de amigo e sua
variedade temática.
De caráter autóctone, essas cantigas sofreram, ainda que em maior número, as
variações de forma e conteúdo, conforme o contato cultural com os elementos pro-
vençais. Os elementos exteriores foram facilmente assimilados, levando-se em con-
sideração o fato de que a data estipulada para a primeira cantiga galego-portuguesa,
1189, a Cantiga da Ribeirinha, aproxima-se da formação da nacionalidade portuguesa
reconhecida pelo Papa Alexandre III, em 1179, desvinculando o Condado Portucalen-
se (MATTOSO, 1933, p. 54) dos domínios do reino de Castela. Esse acontecimento
histórico representa a compreensão da proximidade cultural, ou o acesso cultural
entre os reinos do Ocidente com a Provença.
De acordo com Nunes (1928), as bailias são originárias da Provença e vêm acom-
panhadas de movimentos coreográficos. São composições paralelísticas, de inspiração

40
tradicional e folclórica, cuja estrutura pressupõe a existência de um grupo de moças Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
em diferentes funções: uma delas, dotada de melhor voz, a cantadeira, entoa as satíricas

principais coplas e as demais, em coro, modulam o refrão. O número de figurantes


deveria corresponder ao de estrofes, cada uma das meninas era encarregada de uma
estrofe, e todas se reuniam para cantar o estribilho. Os temas eram sempre alegres e
festivos.
O contexto do qual se refere este estudo incorpora a tradição clássica greco-latina
que havia sido refundida na cultura que abrange os vários períodos da Idade Média.
Essa transmissão cultural, plurivalente devido às reelaborações que sofre, recebeu
significativa contribuição representada pelos progressos do conhecimento patrístico
e pelo trabalho classificador dos enciclopedistas da tardia época medieval.
Toda a simbologia existente na poética medieval foi transfigurada pela referência
alegorizante herdada da tradição religiosa, da prática e da utilização da alegoria, do
símbolo e do símile para destacar sentimentos e ideais religiosos. Somente a partir do
século XIII com a participação dos enciclopedistas, que a realidade natural e humana
sofre a laicização, porém, ainda não totalmente desvencilhada dos substratos éticos e
morais de longos séculos de tradição religiosa.
No estudo do secular lirismo amoroso, o simbolismo alegórico desempenha um
importante papel, embora permaneça a idéia horaciana da poesia como fonte de de-
leite e instrução. Na poética medieval, o simbolismo ou o estudo da alegoria possui a
propriedade de sugerir disfarçadamente os aspectos mundanos da natureza humana
que poderiam ser censurados, se expressados de outro modo. É evidente que esse
simbolismo poético, unido ao substrato da ética e da moral, revelava a influência do
procedimento alegórico utilizado principalmente com finalidade religiosa, apresen-
tando uma verdade divinamente inspirada. Daí os substratos mitológicos clássicos se
convertam em figuras históricas da época, sancionadas pelo sistema religioso.
Trata-se de uma complexa rede de conhecimentos relativos à natureza e à época
da permanência da lírica amorosa peninsular. No caso da cantiga de amigo, torna-se
ainda mais problemático, ao ser considerada uma produção autóctone, originária de
tempos imemoriais da tradicional oralidade popular como a mais genuína e autêntica
forma de expressão poética.
A partir da imensa carga plurissêmica (muitos significados) que define esse simbo-
lismo de raízes arcaicas, originárias na imaginação popular, percebe-se que os moti-
vos e as imagens que emanam do texto poético convertem-se nos elementos comuns
que a comunidade impõe na expressão poética pertencente à tradição peninsular
autóctone da cantiga de amigo. Esse fato não deve subestimar a provável influência
literária herdada da poética e da filosofia da ética amorosa dos trovadores provençais.

41
LITERATURA Levando-se em consideração os conceitos acima, o clérigo Airas Nunes de Santia-
PORTUGUESA
go foi um dos mais significativos compositores de bailadas, representando o cotidia-
no das mulheres que viveram na Península durante o século XIII.
São comuns os cenários rurais e domésticos, as romarias, os locais como a fonte,
os rios, as praias e árvores floridas com moças dançando. As meninas podiam sair
de casa quando aconteciam as romarias, ou as festas da Primavera, significando pre-
ciosos momentos de liberdade. Nesses dias de festa, mostravam o seu potencial de
sedução, por meio dos cantos e da dança, deixando transparecer as formas de seu
corpo, a fim de chamar a atenção do amigo, tal como nos atesta Pimpão (1947, p.
106) “Pressente-se nela o desejo da moça de atrair o namorado, não só pela sua arte
coreográfica, mas ainda pela graça do seu corpo [...]”.
O amor, a primavera e a religião fazem parte de um ritual de dança feminina, que
remonta às antigas festas pagãs, realizadas durante o mês de Maio, também chamadas
de festas primaveris. As bailadas geralmente aconteciam sob as árvores floridas, re-
portando-nos à idéia de fecundidade, quando a flor precede ao fruto e, dessa forma,
a menina que dança sob as flores demonstra estar pronta para o amor.
Os ritos folclóricos das procissões do mês de maio ou celebrações da Primavera
remontam à Antigüidade Clássica. Sandro Botticelli (1444/5-1510), pintor florentino
do Quattrocento retratou o tema, numa das mais famosas de suas telas A Primavera
(1482). No jardim de Vênus, assistimos a uma metamorfose visual própria das narra-
ções de Ovídio, referindo-se à ninfa Clóris convertida em Flora, imagem que, como
indica a rica decoração de seu vestido e a sua touca de flores, anuncia o início da
primavera.
A dança das Graças (livres e soltas com suas vestimentas transparentes) simboliza
o circuito da generosidade, tal qual a entendeu Sêneca (De Beneficiis, I, 3, 2-7) e,
posteriormente, Alberti em seu Tratado sobre a pintura. Nesse bailado observamos
o gesto das mãos, colocadas palma com palma para sugerir um encontro (ausência de
conflito), formando no conjunto uma ilustração de beleza e paixão.
No século XV, o tema do jardim e do solo semeado de flores das mais diversas es-
pécies liga-se diretamente à série de imagens criadas nas escolas de pintura em todo
o Ocidente e a célebre tela de Botticelli vincula-se aos cortejos de maio em Florença.
Há registro, na poesia italiana, de um coro de jovens andando pelas ruas da cidade,
agitando ramos floridos ao vento e conduzindo um carro que leva o Amor, o deus da
festa. Esse Amor tinha o caráter de ligar-se às estações do ano, participando do grande
ciclo da vida e da morte, além de praticar o jogo da sedução, enquanto ele estivesse
presente.
A Igreja primitiva condenava esses cortejos de maio, mas não conseguia desviar

42
das multidões o gosto pela representação e pela chegada da estação mais bela do ano, Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
concordando em colocar no interior do templo, algumas representações concorren- satíricas

tes. Do mesmo modo, a poesia antiga faz referências a canteiros floridos, ao tema
das rosas e à sua fragilidade, comparada com a efemeridade da juventude. A cena
que nos oferece Airas Nunes na cantiga Bailemos nós já todas três, ai amigas, é um
quadro representativo da natureza e da vida social aliada às situações sentimentais
da donzela:

Bailemos nós já todas três, ai amigas,


so aquestas avelaneiras frolidas
e quen for velida, como nós, velidas,
se amig’amar,
verrá bailar.

Três meninas numa dança de roda sob árvores floridas, repetindo-se o rito, que
atualiza o mito. Explorando a simbologia de algumas palavras da cantiga, temos a pre-
sença da aveleira florida. Na tradição clássica, as suas raízes possuíam um significado
místico pelo seu forte poder de fertilização; acreditava-se na sorte que poderia trazer
aos apaixonados. A beleza do quadro lírico se completa com a beleza das meninas (e
quen for velida, como nós, velidas,/ e quen for louçana, como nós, louçanas) que,
no estribilho, repetem o convite às amigas e às irmanas sob a influência do encanta-
mento dos ramos floridos, celebrando o Amor.
A graciosa cena reitera o costume já mencionado – com a presença ou não dos
rapazes, eram as meninas que organizavam o baile. De mãos dadas entre si, enquanto
fazem a roda, vão cantando versos, geralmente quadras seguidas de refrão, cujo canto
acompanham com movimentos lentos ou mais agitados do corpo, conforme o ritmo
da cantiga. No texto em questão, o convite é feito pelas amigas entre si, velidas, lou-
çanas e desejosas de conquistar e amar o amigo. O convite é reiterado nas demais
estrofes (Bailemos nós já todas três, ai irmanas,) para que a dança seja praticada
sob os ramos floridos das avelaneiras (so aqueste ramo destas avelanas; so aqueste
ramos frolido bailemos),
Nas bailias, quando a menina não aparece sozinha, o número das amigas, ge-
ralmente, chega a três, dançando juntas sob as aveleiras em flor. Tanto na narrativa
mitológica quanto na pintura, simbolicamente, esse número lembra as Três Graças,
as três irmãs, filhas de Júpiter e Vênus, que representam a alegria, a beleza e a moci-
dade. Tal como no texto poético, graça, formosura e amor lembram a célebre tela de
Botticelli A Primavera.
As cantigas de bailadas propiciavam certa liberdade à menina, que se encontrava
distante da vigilância proibitiva da mãe, e dessa forma, entusiasmava-se com a idéia

43
LITERATURA de poder ver ou rever o amigo. Na cantiga de D. Dinis Ma madre velida,/ vou-m’a la
PORTUGUESA
bailia/ do amor, a donzela comunica à mãe sua intenção de ir ao baile, na casa do
amigo: Vou-m’a la bailada/ que fazem en casa/ do amor; Que fazem en casa / do
que eu muit’ amava,/ do amor. Lá poderia exibir sua beleza (Do que eu ben queria;
/ chamar-m’ am garrida / do amor), mesmo sem a aprovação da mãe. Depreende-se
que a idéia de liberdade estava acima da autoridade materna, uma vez que o verbo
ir, no presente (vou-m’ a la bailia / [...] Vou-m’ a la bailada), demonstra a firme
decisão de participar dos bailes.
Na cantiga – Bailad’oj’, ai filha, que prazer vejades,/ ant’o voss’amigo, que vós
muit’amades, de autoria de Airas Nunes de Santiago, a menina é intimada pela mãe a
dançar para o amigo, contradizendo as leis morais ligadas ao matriarcado medieval e
surpreendendo a filha. Embora houvesse certa liberdade no relacionamento entre mãe
e filha, era comum a mãe impedir a filha de ver o amigo, quanto mais dançar para ele.
No diálogo em questão, há uma clara insistência da mãe para que a moça demons-
tre a sua arte coreográfica ao namorado, repetindo-se na forma de um paralelismo
semântico, ao longo das quadras: - Bailad’oj, ai filha, que prazer vejades,/- Rogo-vos,
ai filha, por Deus, que bailades/ - Por Deus, ai mha filha, fazed’a bailada/ - Bailade
oj’, ai filha, por Sancta Maria. O clima já não é de alegria como na cantiga anterior,
porque a mãe roga por Deus e por Maria que a menina dance. O tom da resposta é
de submissão, concordando “desta vez” (d’aquesta vergada), porém, argumentando
com a mãe que “pouco vos interessa que ele viva” (de viver el pouco tomades perfia).
A natureza está representada na romãzeira, na terceira quadra da cantiga, segundo
verso: ant’o voss’amigo de so a milgranada. A romã simboliza fecundidade, abun-
dância e apelo sexual, que, desde os povos mais antigos, incorpora o amor e o casa-
mento. Na Antiguidade Clássica era conhecida como originária do sangue de Dionísio
(deus da fertilidade). Afrodite e Hera consideravam-na fruto sagrado, tornando-se o
símbolo do casamento. Presente também na pintura, na tela Proserpina (1874), de
Rossetti (pintor italiano pré-rafaelita). Outros artistas também a interpretaram como
o símbolo da ressurreição de Cristo.
Retomando a cantiga de Airas Nunes, a presença da romãzeira sugere sedução e
conquista do amigo, reiterada nas expressões prazer vejades (v. 1), que ben pare-
cedes (v. 8) e fazed’a bailada (v. 13), revelando a preocupação da mãe com a vida
amorosa da filha: ant’o voss’amigo, que vós muit’amades (v. 2). Completa-se, assim,
o quadro lírico em que a dança e a natureza unem-se e harmonizam-se diante do
amor da menina que deseja se casar.
Verdadeiros quadros líricos, as bailias apresentam sugestões da natureza e da vida
social aliadas às situações sentimentais.

44
A POESIA SATÍRICA: CANTIGAS DE ESCÁRNIO E MALDIZER Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
Analisadas do ponto de vista linguístico, histórico-social e ainda literário, as satíricas

cantigas do gênero satírico têm valor inapreciável. Até 1896, era o capítulo menos
estudado da poesia trovadoresca, por duas razões fundamentais: as palavras eram
menos legíveis e muitas dessas composições contêm expressões de baixo calão, obs-
cenidades que dificilmente poderiam ser publicadas, por razões de decoro, muito
discutíveis, aliás. Vencendo estes obstáculos, foi à professora Carolina Michaëlis de
Vasconcelos, que iniciou investigações para esclarecer as dificuldades sobre esse
gênero poético.
A ilustre pesquisadora e filóloga sacrificaram, por amor à ciência, o seu pudor
de mulher, para descer à “cloaca moral, que é tantas vezes o encarno galego-portu-
guês”. Há duas hipóteses quanto à origem dessas cantigas:
• Originárias de Portugal ou
• Derivadas do sirventês – poema cantado no Sul da França.

De qualquer modo, a zombaria e outros tipos de ataques pessoais coincidem


com o gosto do povo português, pois são encontrados textos satíricos, desde o
século XIII.
Pelo que respeita à forma, o sirventês em nada difere das cantigas portuguesas, e
até o nome parece indicar que a sua estrutura seguia servilmente a melodia de uma
canção. O tema era diferente, de caráter mais objetivo e refletia opiniões e os sen-
timentos do trovador sobre as pessoas e a vida social. Daí, necessariamente, o seu
caráter moral e satírico. O gênero admitia três classes fundamentais, que represen-
tam outras tantas atitudes do trovador perante a vida: o sirventês moral ou religioso,
o político e o pessoal. Na primeira categoria entram as queixas sobre a decadência
da cavalaria, as sátiras contra as mulheres e os ataques à corrupção do clero. Na
segunda categoria, o trovador explora e comenta veementemente os sucessos do
tempo: a luta dos reis com os senhores feudais, as covardias e as manobras militares
e religiosas do Norte contra o Sul.
O sirventês pessoal ataca certos aspectos da vida íntima ou profissional, ridi-
cularizando as pessoas, seus vícios e defeitos. São colocados alguns apelidos, tais
como: Nuno Porco, Golparro (“raposão”), Airas Corpancho, Coxas Caentes e outros.
Surgiram as expressões: “fazer jogo”, “escarnir”, “escarnecer”, “desdizer”, “chufar”
(= caçoar), “travar palavras”, entre outras. Considerando o número expressivo de
sinônimos que expressavam o maldizer, numa época em que a língua ainda não
havia atingido uma riqueza lexical. Estabelece-se, assim, a diferença teórica entre a
cantiga de escárnio e a de maldizer.

45
LITERATURA Na primeira categoria, o trovador “escarnecia” de alguém per palavras cubertas
PORTUGUESA
que ajam dous entendimentos pera lhe lo non entende ren ligeiramente.22 Eram
impessoais, de crítica velada e indireta. O efeito estilístico que predomina é, natu-
ralmente, a ironia. Na segunda, o trovador atacava diretamente, a descoberto, de-
clarando os nomes, os defeitos e os vícios das pessoas: son aquelas que fazem os
trobadores mais descubertamente: en elas entram palavras que queren dizer mal e
nom tem outro entendimento senom aquele que queren dizer chaâmente.23 Nessas
cantigas a pessoa satirizada é nomeada. Ferem diretamente, sem subterfúgios, nem
artifícios; a linguagem utilizada é baixa, vil e bruta. É o reverso, o contrário do amor
cortês, nobre e sublime das cantigas de amor.
A temática desenvolvida foi a seguinte:
a) Sátira política e religiosa:
• a covardia de cavaleiros cristãos frente ao perigo dos mouros – queixas contra
a decadência da cavalaria;
• a corrupção e os desmandos do clero;

As composições questionavam a covardia dos cavaleiros cristãos, perante o recuo


das tropas cristãs, cavaleiros e ricos-homens que, covardemente, fugiram perante o
ímpeto e a braveza dos árabes na Espanha. Foram as composições de D. Afonso X, rei
de Leão e Castela, que melhor expressam a crítica, uma vez que o rei viu (vi) o modo
como os cristãos chegaram ao reino:

Vi cotefes orpelados
estar mui espantados,
e gentes trosquiados
corriam-nos a redor
tinham-nos mal afincados
que perdiam na cor.

Há outras cantigas em que o trovador, numa critica direta, retrata esse medo dos
cristãos, a descoberto, mostrando a covardia de certos cavaleiros que, ao verem os
mouros, fugiam do campo de batalha como desertores.

22 “... por palavras cobertas que tenham dois entendimentos (sentidos) para que não o entenda
prontamente”. Ou seja, a crítica era feita indiretamente.
23 “... são aquelas que os trovadores fazem mais descobertamente: nelas entram palavras que
querem dizer mal e não têm outro entendimento senão aquele que querem dizer rasteiramente”.
Ou seja, a crítica era feita diretamente.

46
b) Sátira social e moral: Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
• crítica contra as mulheres; satíricas

• os amores duvidosos entre fidalgos e plebéias;


• a ambição e o falso estilo de vida dos infanções – decadência da nobreza;
• o desconcerto, o sem sentido do mundo – a decadência da sociedade;
• reflexões sobre a moral e os bons costumes;
• as pretensões de poetas pobres e humildes e até de jograis imitarem os
trovadores

As lutas políticas do fim do reinado de D. Sancho I, de Afonso II e D. Sancho II


atuaram no desenvolvimento da poesia de gênero satírico. Os trovadores criticaram
duramente a traição dos políticos para ficarem nas boas graças do rei e da Igreja.
Os textos foram escritos sob o rigor da ironia, sem piedade, quando a corrupção
vinha do clero e da fidalguia militar. Acusava-se essencialmente o poder eclesiástico
de forçar as consciências e de, inclusivamente, abusar, de servirem-se do poder para
excomungar todos os que foram leais ao reinado de D. Sancho II, destituído do tro-
no, traiçoeiramente, pelo seu irmão, D. Afonso III, o Bolonhês.
Quanto ao amor das cantigas anteriores (lírico-amorosas), os trovadores parodia-
vam o amor cortês, principalmente, o seu convencionalismo, ironizando-o:

Ora começa o meu mal


de que já não temia ren
e cuidava que m’ia ben,
e todo se tornou en mal
[...]

E já dormia todo meu


sono e já non era fol
e podia fazer ma prol,
mais lo poder, já non é meu.
[...]

Repare-se que ele andava bem sem o amor e, de repente, tudo mudou para mal;
antes podia dormir, podia “fazer as prol” (andar à vontade), mas tudo acabou. Perdeu
todo o seu poder, já nada está em suas mãos, “mais lo poder, já non é meu” (mas o
poder já não é meu) – o amor havia lhe pregado uma peça, fê-lo apaixonar-se por
outra senhora (senhor).
Depreende-se que a arte trovadoresca era mais aristocrática. Não podemos nos
esquecer que a cultura era do mundo do clero; os nobres poderiam ter acesso a ela,
mas nunca aos plebeus. Os jograis eram os aedos ou rapsodos do trovador: andavam

47
LITERATURA de terra em terra, por cortes de reis, castelos de fidalgos, conventos abastados, por
PORTUGUESA
ruas e ruelas, praças, feiras e romarias, tocando na cítara ou no violão, cantando e
divulgando a obra dos trovadores. Quando se aventuravam a “trovar” era motivo de
escândalo; eram ridicularizados, insultados, chegando a provocar a ira de seus pa-
trões ou a expulsão da corte.
Da mesma forma, o mundo em desconcerto está expresso nas cantigas que refle-
tem sobre a moral e os costumes da época. Há ironias sobre o fato de dizer a verdade,
ou sobre a pouca sorte dos bons e verdadeiros que são injustiçados, chegando-se à
conclusão de que a sorte favorece quem mente (o “mentireiro”), ou ainda refletem
sobre as mudanças da vida para pior, chegando à conclusão que mais vale morrer,
porque não vê mais prazer em nada. Esse tema será retomado mais tarde pelo poeta
Luís de Camões.
Finalmente, as reflexões e críticas recaíram sobre a nobreza decadente, espe-
cialmente os infanções. Desde os fins do século XII, os trovadores queixavam-se da
transformação social e do empobrecimento da nobreza, em virtude das guerras e das
ostentações exageradas. Os nobres viviam na penúria e muitos não tinham mais o
que comer.

Considerações finais
A maioria dos manuais de história da literatura, geralmente, não trata do perí-
odo poético que vai de 1350 a 1450, a que se convencionou chamar de “Período
Galego-Castelhano”, período de transição, muito limitado, considerado um prolon-
gamento e, ao mesmo tempo, o início da decadência da grande escola trovadoresca
galego-portuguesa.
Após a morte de D. Dinis, o rei trovador, em 1325, a poesia portuguesa arrasta
ainda uma vida confusa, até que se extingue em meados do século XIV. O gênio lite-
rário do povo galego-português abranda e quase termina, exatamente, no momento
em que se afirma a intensa vitalidade da nação portuguesa.
Por que a poesia teria sido “deserdada”, justamente no momento em que adquiri-
ra fortes razões para ficar e continuar?
Explica-se este fato, por três motivos distintos:
• Decadência e fim do mecenatismo dos reis D. Afonso X e D. Dinis – reis
portugueses que mantinham os jograis, segréis e menestréis na Corte. Essa
proteção durou cento e cinqüenta anos; mortos os mecenas, o entusiasmo e o
desejo de competir sofreram uma queda efetiva.
• Mudança de vida comum – Portugal começou a expandir-se e a revelar um
vigoroso espírito mercantil. A arte era palaciana e não condizia com a nova

48
realidade. Portanto, o novo sentido para a vida, voltado para uma realidade Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
concreta não favorecia o trabalho da imaginação. Era a imposição do cálculo satíricas

frio e material da vida.


• Os conflitos entre Portugal e Espanha – fizeram com que a língua portu-
guesa passasse a ser o único meio de expressão. Além disso, as delicadezas da
fonética do português iam se tornando cada vez mais difíceis para o castelha-
no. Cada nação procurou formas próprias de expressão, abandonando o que
era feito em comum, até aquela data. Apesar disso foi, merecidamente, grande
o prestígio da escola galego-portuguesa, tão profunda e duradoura a sua in-
fluência, que o seu espírito persistiu até fins do século XV e a sua língua até o
início do século XVI.

No século XIII ultrapassa-se a fase da literatura oral, conforme estudamos acima.


Muitas cantigas dos trovadores foram recolhidas por colecionadores apaixonados,
copiadas em folhas de pergaminho e reunidas em cadernos, que se tornaram grandes
coletâneas, mais tarde, denominadas Cancioneiros Trovadorescos:
Cancioneiro da Ajuda - conservado na Biblioteca do Paço da Ajuda. É o mais
antigo dos cancioneiros e contém, na sua maioria, cantigas de amor, que datam do
século XIII ao primeiro quartel do século XIV.
Cancioneiro da Vaticana - descoberto em Roma, no reinado de D. João III, na
Biblioteca do Vaticano. Contém 1205 cantigas em que estão incluídas as de autoria de
D. Dinis. Uma verdadeira cópia do original que se perdeu.
Cancioneiro da Biblioteca Nacional - conhecido também por Cancioneiro de
Colocci-Brancutti, intelectual italiano que o adquiriu e depois o vendeu ao governo
português, em 1924. Cópia fiel do original, em papel de linho, que se supõe do
século XVI. Possui 1647 composições poéticas, considerado o mais rico de todos os
cancioneiros.
Cantigas de Santa Maria - de autoria de Afonso X, o Sábio, somam-se 426 com-
posições acompanhadas das partituras musicais.
Os Cancioneiros constituem um valiosíssimo documento histórico, linguístico e
literário do medievalismo português. As tradições, os costumes, as idéias, as preocu-
pações e o modo de viver dessa época refletem-se nas composições dos diferentes
trovadores. Daí o seu grande valor aos estudos linguísticos, históricos e sociais da
Idade Média, desde a primeira composição, que data do reinado de D. Afonso III
(1189-1250) ao reinado pós D. Dinis, de 1325 a 1350.

49
LITERATURA
PORTUGUESA

Referências

A Canção de Rolando. Tradução de Lígia Vassalo. Rio de Janeiro: Livraria Francisco


Alves, 1988.

BUESCU, Maria Leonor Carvalhão. Literatura portuguesa medieval. Lisboa:


Universidade Aberta, 1990.

CORREIA, Natália. Cantares trovadorescos Galego-Portugueses. Lisboa: Estampa,


[19--].

CRÔNICAS DE FERNÃO LOPES. Seleção, Introdução e notas de Maria Ema Tarracha


Ferreira. Lisboa: Ulisseia, [19--].

LAPA, Manuel Rodrigues. Lições de Literatura Portuguesa: época medieval. 8. ed.


Coimbra: Coimbra Editora, 1973.

MATTOSO, José. História de Portugal. A Monarquia Feudal. Lisboa: Estampa, 1993.


v. 2.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 14. ed. São Paulo: Cultrix, 1977.

NUNES, José Joaquim. Cantigas d’ Amigo dos trovadores galego-portugueses.


Coimbra: Imprensa da Universidade, 1928.

PIMPÃO, Álvaro Júlio da Costa. História da Literatura Portuguesa. Lisboa:


Quadrante, 1947.

PIZZORUSSO, V. Bertolucci. Cantigas de Santa Maria. In: LANCIANI, Giulia; TAVANI,


Giuseppe. Dicionário de Literatura galego-portuguesa. 2. ed. Tradução de José C.
Barreiros e Artur Guerra. Lisboa: Caminho, 1993.

______. Le poesie di Martin Soares. Bologna: [s.n.], 1963. p. 25-28; 59-64.

50
SPINA, Segismundo. Presença da Literatura Portuguesa: era medieval. 6. ed. São Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
Paulo; Rio de Janeiro: DIFEL, 1961. satíricas

TAVANI, Giuseppe. Ensaios portugueses: Filologia e Linguística. Lisboa: Imprensa


Nacional; Casa da Moeda, 1988.

VIEIRA, Yara Frateschi. A poesia lírica galego-portuguesa. In: MOISÉS, Massaud. A


Literatura Portuguesa em perspectiva. São Paulo: Atlas, 1992.

Proposta de Atividade

Para você refletir e testar todas as informações acima, sugerimos os seguintes textos para
exercitar a leitura e análise:

TEXTO 1
Ben sabia eu, mia senhor,
que, pois m’eu de vós partisse,
que nunc’aveeria sabor
de ren, pois vos eu non visse,
porque vós sodes a melhor
dona de que nunca oísse
omen falar,
ca o vosso boõ semelhar
sei que par
nunca lh’ome Proposta
pod’achar. de Atividades e Análises

E, pois que o Deus assi quis,


que eu sôo tan alongado
de vós, mui ben seede fis
que nunca eu sen cuidado
en viverei, ca já Paris
d’amor foi tan coitado
nen Tristan;
nunca sofrerom tal afam,
nen non am
quantos som, nen seeram.

Que farei eu, pois que non vir


o mui bom parecer vosso?
Ca o mal que vos foi ferir
aquel’ é meu e non vosso,
e por ende per ren partir
de vos muit’amar non posso,

51
LITERATURA nen farei,
PORTUGUESA
ante ben sei ca moirerei
se non ei
vós, que sempre i amei.
(D. Afonso X -CBN 411)

VOCABULÁRIO: partisse: afastasse; nunc’aveeria sabor/de ren: nunca nada me daria pra-
zer; oísse: ouvisse; omem: homem, alguém; boõ semelhar: beleza; boa aparência; o: pronome
que se refere ao verso seguinte; seede fis: sede certa, sede firme; Paris: Páris – príncipe troiano
que raptou Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, originando a guerra de Tróia (Lê-se
Paris, palavra aguda, para rimar com fis); Tristan: herói de uma lenda céltica (lenda de Tristão
e Isolda) com que se introduziu na literatura um novo tema: a fatalidade da paixão; am: o
mesmo que hão, têm; seeram: serão, existirão; ende: daí; per ren: de modo nenhum; partir:
deixar de; ca: que; moirerei: morrerei; non ei vós: não tenho vós.

TEXTO 2

Levad’, amigo, que dormide’las manhãas frias:


tôdalas aves do mundo d’amor dizian:
leda m’and’eu.

Levad’, amigo, que dormide’las frias manhãas:


tôdalas aves do mundo d’amor cantavan:
leda m’and’eu.

Tôdalas aves do mundo d’amor dizian,


do meu amor e do voss’en ment’avian:
leda m’and’eu.

Tôdalas aves do mundo d’amor cantavan;


do meu amor e do voss’enmentavan:
leda m’and’eu.

Do meu amor e do voss’en ment’avian;


vós lhi tolhestes os ramos em que siian:
leda m’and’eu.

Do meu amor e do voss’i enmentavan;


vós lhi tolhestes os ramos en que pousavan:
leda m’and’eu.

Vós lhi tolhestes os ramos en que siian


e lhis secastes as fontes en que bevian:
leda m’and’eu.

Vós lhi tolhestes os ramos en que pousavan


e lhis secastes as fontes u se banhavan:
leda m’and’eu (Nuno Fernandes Torneol – CV 242)

VOCABULÁRIO: Levad’: levantai-vos; tôdalas: todas as; dormide’: dormides, dormis;

52
leda: alegre; en ment’avian: tinham no pensamento; enmentavan: recordavam nos seus gor- Época medieval: cantigas
trovadorescas – líricas e
jeios; tolhestes: tirastes; siian: estavam pousadas; bevian: bebiam. satíricas

TEXTO 3

Ai dona fea! Foste-vos queixar


porque vos nunca louv’en meu trobar
mais ora quero fazer un cantar
en que vos loarei toda via
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia !

Ai dona fea! Se Deus me perdon!


e pois havedes tan gran coraçon
que vos eu loe en esta razon,
vos quero já loar toda via;
e vedes qual será a loaçon:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei


En meu trobar, pero muito trobei;
Mais ora já un bon cantar farei
En que vos loarei toda via;
E direi-vos como loarei:
Dona fea, velha e sandia!
(João Garcia de Guilhade - CV 1097)

VOCABULÁRIO: dona fea: dona, senhora feia; louv’, en: louve, elogie no; trobar: trovar,
fazer versos, trovas; mais ora: mas agora; un cantar: uma cantiga; um canto; loarei toda via:
louvarei para sempre, inteiramente; sandia: louca; loaçon: louvação; louvor.

ROTEIRO DE LEITURA:
a) Traduzir os textos para o português atual.
b) Analisar quanto ao talho (a forma, o perfil da cantiga, a metrificação dos versos, as rimas).
c) Quanto ao tema e assunto.
d) Quanto às características das cantigas.
e) Classificar quanto ao assunto, justificar e exemplificar com os versos do texto.
f ) Elaborar um parágrafo conclusivo/interpretativo.

53
LITERATURA
PORTUGUESA

Anotações

54
2 Humanismo:
Gil Vicente

E um Gil... um Gil... um Gil...,


um que nam tem nem ceitil,
que faz os aitos a el Rei
Gil Vicente, Auto Pastoril Português

Introdução
“É Gil Vicente o fundador do teatro português?” Esta pergunta dá nome a um dos
capítulos do livro Gil Vicente – o autor e a obra (1982), do francês Paul Teyssier,
estudioso das culturas de língua portuguesa e leitor arguto, especialmente, da obra
vicentina. A questão parece ser, de fato, uma boa forma de iniciarmos nossa aproxima-
ção ao teatro de Gil Vicente.
Costuma-se datar o período da produção literária vicentina de 1502, data da reci-
tação do “Monólogo do Vaqueiro”, até 1536, ano em que se tem notícia da encenação
de sua peça “Floresta de Enganos”. Como se vê, são mais de trinta anos que registram
uma intensa atividade dramatúrgica desse homem de cuja vida pouco se sabe. Teria
sido ourives da Corte antes de dedicar-se à criação, montagem e direção de peças de
teatro, das quais frequentemente participava também como ator. Esteve sempre sob
a proteção direta da família real, a serviço tanto da “Rainha Velha” D. Leonor como,
seguidamente, dos reis D. Manuel I e D. João III. Foi, portanto, um artista da corte. A
maior parte de suas peças foi escrita para circunstâncias festivas ligadas ao ambiente
cortesão: nascimentos e casamentos de príncipes, solenidades litúrgicas, visitas diplo-
máticas. No entanto, o caráter popular é um dos traços mais característicos de suas pe-
ças, como adiante demonstraremos. Esta dualidade – transitar entre a corte e o povo
– é mais uma a nos surpreender quando nos deparamos com a obra deste “homem
entre dois mundos”, como a ele se refere o Prof. Massaud Moisés, destacando, assim,
outra de suas mais notáveis características:

Servindo de ponte de trânsito, laço de união entre a Idade Média e a Renascen-


ça, fixou em suas peças o justo momento em que as duas formas de cultura se
defrontavam, uma para terminar (ou melhor, diminuir seu influxo e domínio), a
outra para começar [...]; é um teatro que tem, na exata medida do tempo, olhos
voltados para trás, contemplando o mundo que morria (e a que Gil Vicente per-
tencia por espírito e formação), e para a frente, na intuição feliz do novo rumo
tomado pelo embate das idéias (LAPA, 1973, p. 55).

55
LITERATURA É exatamente esse aspecto – o trânsito entre uma visão de mundo que começava a
PORTUGUESA
esmaecer (a medieval, teocêntrica, calcada nos dogmas da fé e pouco afeita a valorizar
a vontade humana e sua capacidade de conhecer e expandir seus horizontes) e uma
nova cosmovisão que aos poucos se afirmava (a renascentista, cuja valorização do ho-
mem e de sua capacidade de pensar, de criar, de fazer será o traço mais característico)
- que vincula Gil Vicente ao que historicamente se convencionou denominar humanis-
mo. As mudanças na mentalidade, na organização social e política das comunidades
e na percepção dos homens sobre seu estar no mundo, a partir de meados do século
XV, irão aos poucos assentar uma tão radical transformação, em todas as esferas da
vida humana, que com elas se inicia uma nova era: a moderna. Gil Vicente aí encontra
terreno fértil para sua expressão artística e para seu acurado senso crítico.

Gil vicente e as origens do teatro português


O que faz, então – e voltando à pergunta inicial –, com que Gil Vicente seja reco-
nhecido como o maior dos dramaturgos portugueses de todos os tempos, e um dos
maiores expoentes da literatura em língua portuguesa? De que tratam suas peças? A
que tradição se vinculam? De que se servem tanto em relação aos temas quanto às
formas em que se apresentam? Por que permanecem, mesmo passados tantos séculos
desde sua composição?
A primeira das questões que queremos abordar parte de um dado já aceito, indis-
cutivelmente, pela historiografia literária: Gil Vicente foi o primeiro autor português a
escrever textos para serem encenados. O que isso significa?
A Idade Média conheceu, sim, a representação dramática. Basicamente, ela se com-
punha, por um lado, das representações litúrgicas, dedicadas a encenar passagens
bíblicas, os mistérios da teologia cristã e as moralidades, que colocavam em cena, por
exemplo, conflitos entre o Bem e o Mal, sempre com uma mensagem edificante ou
mesmo punitiva. Tais peças aproximam-se de alegorias, uma vez que disseminam, mui-
tas vezes, “conteúdos abstratos”, como valores, conceitos e modos de comportamento
considerados exemplares, por meio de figuras que concretizam, que “encarnam” essas
idéias - todas elas, evidentemente, associadas à moral cristã, tão inabalavelmente domi-
nante na época. Um teatro sacro, portanto, representado num espaço que era condi-
zente com a sublimidade dos temas – as igrejas –, via de regra, em solenidades festivas
do calendário cristão e cujo texto era “preexistente” e não originariamente criado para
ser encenado, já que tais obras eram baseadas no aproveitamento dos textos litúrgicos.
Ao lado dessas representações, desenvolve-se o que podemos denominar de teatro
profano – fora do templo -, onde se admitia a alegria do canto e da dança, a irreve-
rência dos temas “mundanos”, a riqueza e o luxo no vestuário e no cenário (quando

56
se tratava, por exemplo, dos momos1), e, em algumas encenações voltadas ao povo Humanismo: Gil Vicente

– como era o caso das que faziam os grupos ambulantes que se deslocavam em
carroções que se tornavam também o palco -, permitia-se a liberdade de um gestual
que podia beirar o grotesco, provocando o “riso alegre destinado apenas a divertir”
(BAKHTIN, 2008, p. 11)2. Nesse caso, o que faltava, na maior parte das vezes, era
texto, já que tais representações baseavam-se muito mais no que podemos definir
como a encenação – cenário, gestual, canto, dança, figurino -, ficando a palavra em
segundo plano.
Ora, o que Gil Vicente irá fazer é se “aproveitar” de toda essa tradição (as repre-
sentações litúrgicas medievais e as fontes populares), criando peças tanto em torno
de temas sacros como “mundanos” e com um diferencial importantíssimo: textos
escritos para serem encenados. Linguagem e encenação: aquilo que melhor repre-
senta o gênero dramático, e que Gil Vicente inaugura em língua portuguesa, sem
prescindir, entretanto, das manifestações das formas dramáticas que o precederam.
Esta apropriação da tradição irá gerar formas diferentes de composição das pe-
ças. Estruturalmente, podemos pensar em três tendências principais a caracterizar a
produção vicentina – as peças processionais, as de enredo e as híbridas3. É a partir
desta tipologia simples que apresentaremos alguns comentários e exemplos que nos
permitirão uma maior aproximação aos textos de Gil Vicente.

1 “Os momos surgem em Portugal no começo do século XV mas estavam vulgarizados no resto
da Europa [...]. Realizavam-se em ocasiões solenes e acompanhavam justas e torneios, dando
motivo a manifestações grandiosas, com larga exibição de luxo e com os figurantes vestidos de
trajos especiais e mascarados. Os momos eram mais do género dos quadros vivos do que do
teatro, embora certas passagens faladas (a que se chamava ‘breves’) pudessem ser introduzidas
neles.” (TEYSSIER, 1982, p. 33).
2 Para um melhor conhecimento das manifestações da cultura popular na Idade Média, é in-
dispensável a leitura do já consagrado livro de Mikhail Bakhtin Cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Ver, principalmente, a introdução,
intitulada “Apresentação do problema”.
3 A classificação das peças vicentinas é um dos aspectos mais problemáticos levantados pela
crítica. Há uma divisão inicial, proposta já na publicação da Copilaçam (1562) das obras vi-
centinas levada a cabo por seu filho, Luís Vicente, considerada artificial pela crítica, e que separa
as peças em “obras de devação”, comédias, tragicomédias, farsas e obras miúdas. O Prof. Segis-
mundo Spina (1983) propõe a divisão em autos, teatro romanesco, fantasias alegóricas e farsas.
Paul Teyssier, por seu turno, retoma a divisão tripartida proposta pelo próprio Gil Vicente, em
documento datado, provavelmente, de 1522: moralidades, farsas e comédias, considerada por
Teyssier como a mais simples e conveniente, mas que não deixa, evidentemente, de ter pro-
blemas. Sabemos que toda classificação é redutora, e por isso apenas registramos as tentativas
de estabelecer uma tipologia da obra vicentina que nos auxilie a compor uma visão do todo. E
ressaltamos que nossa proposta não é de uma nova classificação: considerando a estrutura das
peças, comentaremos, a título de exemplo, uma de cada modalidade, com intenção didática,
facilitando, pois, o levantamento de alguns dados de sua composição para análise.

57
LITERATURA UMA PROPOSTA DE ABORDAGEM DOS TEXTOS
PORTUGUESA
As peças de enredo estarão aqui representadas por uma das mais conhecidas obras
de Gil Vicente: a “Farsa de Inês Pereira”4. Organizando-se, pois, segundo uma estrutura
regida pela causalidade (há uma sequência de acontecimentos que se desenrolam
segundo a lógica de causa e consequência, pautada na apresentação do problema, do
conflito e do desenlace, etapas que “tramam” o enredo), essa farsa tem ainda como
aspecto importante a caracterizar sua estrutura a oposição determinada pelo próprio
mote que o autor lhe antepõe: “Mais quero asno que me leve que cavalo que me der-
rube”. Assim, após a situação inicial, sucedem-se acontecimentos regidos por essa
estrutura opositiva que estabelece, também, paralelismos, como mais adiante descre-
veremos. Leiamos, então, como primeiro passo para a análise, o início da peça, que
tem Inês em cena:

“Renego deste lavrar


E do primeiro que o usou!
Ao diabo que o eu dou,
Que tão mau é de aturar!
Oh Jesus! Que enfadamento
E que raiva e que tormento,
Que cegueira e que canseira!
Eu hei-de buscar maneira
Dalgum outro aviamento.

Coitada! Assim hei-de estar


Encerrada nesta casa,
Como panela sem asa,
Que sempre está num lugar?

4 “A farsa é um dramático menor que a nível formal/estrutural se caracteriza pela ausência l


com as unidades de tempo e de espaço; pela utilização de parcos recursos cela coão em palco
de um reduzido número de personagens; pela abundância de tipos sociais característicos da
época; eventualmente pela presença de uma personagem redonda que sofre ao longo da peça
evolução psicológica e moral; pelo delineamento de uma intriga com um nó, desenvolvimento
e desenlace; pela presença de sátira, fonte de c; e pelo recurso frequente a uma linguagem de
conotações eróticas. A nível temático, a farsa privilegia a problematização da luta entre forças
opostas, do relacionamento humano, familiar e amoroso, da oposição dos valores tradicionais
e convencionais a valores individuais e pessoais e o recurso frequentemente ao equacionamento
de um triângulo amoroso.” (GONÇALVES, A.; CEIA, Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9,
<http://www.fcsh.unl.pt/edtl> Acesso em: 09 nov. 2009).

58
E assim hão de ser logrados5 Humanismo: Gil Vicente

Dois dias amargurados


Que eu possa durar viva?
E assim hei-de estar cativa
Em poder de desfiados6?

Antes darei ao diabo


Que lavrar mais nem pontada7;
Já tenho a vida cansada
De jazer sempre dum cabo8.
Todas folgam, e eu não;
Todas vêm e todas vão
Onde querem, senão eu.
Hui! Que pecado é o meu
Ou que dor de coração?

Esta vida é mais que morte.


Sou eu coruja ou corujo,
Ou sou algum caramujo,
Que não sai senão à porta?
E quando me dão algum dia
Licença, como a bugia,
Que possa estar à janela,
É já mais que a Madanela
Quando achou a aleluia”

Como se percebe, Inês está inconformada, queixosa de sua situação. O uso de uma
pontuação expressiva (interrogações, exclamações) acentua o tom indignado que a es-
colha do vocabulário revela (coitada, cativa, cansada, encerrada nesta casa; tormento,
enfadamento, etc.). E que situação é esta? Certamente, ela nos ensina um pouco sobre
o modo de vida medieval, no que dizia respeito às moças que não faziam parte da

5 Logrados: empregados (nota da edição utilizada, como todas as seguintes, reproduzidas lite-
ralmente).
6 Desfiados: refere-se aos travesseiros desfiados, cheios de adornos, paramentados.
7 Entenda-se: para os diabos se eu der mais um ponto nesta costura!
8 Isto é: de ficar sempre no mesmo lugar.

59
LITERATURA nobreza: Inês vive praticamente “presa” em casa, “refém” das atividades cotidianas (a
PORTUGUESA
costura, o bordado, os pequenos trabalhos domésticos para ajudar a mãe), tendo raras
oportunidades de convívio social. Por isso Inês se rebela e decide “buscar maneira/dal-
gum outro aviamento”; ou seja, quer mudar o rumo da sua vida, libertando-se da vida
sem graça em vivia. E para isso, curiosamente, decide casar, já que assim entende que
poderá ser “dona do seu nariz”. A mãe tenta dissuadi-la de sua intenção, afirmando,
inclusive, que ela não tem motivo de queixa, já que “não lhe choram os filhos por pão”
e que melhor seria ter paciência e não se apressar para casar, mas Inês está decidida
e, para levar adiante seu intento, terá a ajuda de “casamenteiros”: Lianor Vaz, amiga
da mãe, e os judeus Vidal e Latão, todos esses cômicos personagens atuando, então,
como alcoviteiros.
Inês, no entanto, tem uma condição, uma exigência em relação aos possíveis
pretendentes:

“Porém, não hei-de casar


Senão com homem avisado;
Ainda que pobre e pelado
Seja discreto em falar:
Que assim o tenho assentado.”

O termo avisado, no contexto em que aparece na cena, é determinante para a ins-


tauração do conflito que dará sustentação ao enredo da peça; ele pode ser entendido
na acepção dicionarizada de sábio, discreto – o que já nos diz alguma coisa sobre o
desejo de Inês. No entanto, este sentido pode ampliar-se para ser melhor compreendi-
do (e isto é fundamental para que se possa perceber mais significativamente a função
crítica da peça), levando-se em conta as circunstâncias históricas que certamente de-
finiram a opção de Inês, representativa de uma determinada situação social bastante
evidente nesse texto do dramaturgo português: a primeira metade do século XVI, em
que a ação dramática transcorre, é marcada, em Portugal, por uma intensa dinâmica
social que coloca, de um lado, uma ascendente classe mercantil que enriquecia graças
ao comércio ultramarino e, de outro, uma decadente aristocracia empobrecida, mas
que resistia à iminente perda de seu status valorizando a “nobreza de sangue” e os
ideais cavaleirescos que por séculos a haviam sustentado – e que certamente não eram
partilhados pela pequena burguesia que, então, se afirmava como “elite” financeira.
Disso decorre que as boas maneiras, o comportamento refinado, as práticas cortesãs
passam a ser, ao mesmo tempo, a “peça de resistência” da aristocracia falida e aquilo
que representava, para os novos ricos, a verdadeira ascensão social. Daí Inês dizer que

60
seu futuro marido poderia ser pobre e pelado – ou seja, sem dinheiro, já que ele não Humanismo: Gil Vicente

representava exatamente um valor na concepção de status social que move Inês -, des-
de que fosse “herdeiro” do prestígio das maneiras cortesãs: ela deseja o fino cavalheiro
que saiba cantar, dançar, tanger viola e bem expressar-se (ressalte-se, nesse sentido, a
expressão “discreto em falar”). Perceba-se que, em última instância, o conflito acaba
por definir-se como uma questão de linguagem, já que a cultura da corte valorizava a
retórica sedutora, como bem nos mostram, por exemplo, as cantigas de amor. E era
isso que Inês, no fundo, desejava: ser cantada, como as senhoras da corte o eram, no
imaginário que o trovadorismo e a ética cavaleiresca haviam fixado.
Estas mesmas circunstâncias históricas irão determinar o desprezo pela vida cam-
pesina, pela rusticidade e “ignorância” que a caracterizavam, em tudo oposta à “moda”
cortesã. É precisamente esta oposição, estabelecida em traços caricaturescos, que os
dois pretendentes de Inês irão representar, sustentando, já, a dualidade inicial do
mote: asno x cavalo.
Pero Marques, o pretendente que será apresentado por Lianor Vaz (e que tem a pre-
ferência da mãe de Inês, que certamente vê nele o “bom partido” que dará segurança
material à filha), está, assim, em absoluta disjunção em relação ao desejo da moça:
ainda que proprietário de terras, “filho de lavrador rico”, provoca em Inês desprezo e
riso, por não partilhar dos indicadores de civilidade que caracterizam a vida na corte:
Pero não sabe como sentar-se numa cadeira, sugerindo que este tão prosaico móvel
não faz parte do ambiente em que vive; traz para Inês peras frescas como presente,
mas “transporta-as” no fundo do chapéu – o que provoca a fala claramente irônica da
protagonista (“Fresco vinha o presente/com folhinhas borrifadas ...”); mais que tudo
isso, no entanto, é a linguagem utilizada por Pero na carta em que se apresenta a
Inês o índice mais evidente da disjunção referida – daí Inês divertir-se com ela e, por
conseguinte, rir-se de quem a escreveu, o que é marcado no texto pela expressão “que
inda eu sou contente dele”:

“Senhora amiga Inês Pereira,


Pero Marques, vosso amigo,
Que ora estou na nossa aldea,
Mesmo na vossa mercea
Me encomendo, e mais digo,
Digo que benza-vos Deus
Que vos fez de tão bom jeito;
Bom prazer e bom proveito
Veja vossa mãe de vós

61
LITERATURA E de mim também assi,
PORTUGUESA
Ainda que eu vos vi,
Estoutro dia de folgar,
E não quisestes bailar
Nem cantar presente mi...
Na boda de seu avô,
Ou onde me viu ora ele?
Lianor Vaz, este é ele?
Lede a carta sem dó,
Que inda eu sou contente dele.”

Em oposição a Pero Marques, o escudeiro9 Brás da Mata, apresentado a Inês pelos


judeus Vidal e Latão10, encontra-se em perfeita conjunção com o desejo da protago-
nista; observe-se a fala sedutora com que se apresenta à futura esposa, toda marcada
pelos sinais da cortesia amorosa (o uso dos termos “senhora”, “donzela”, “fresca rosa”;
a sugestão da beleza ímpar da amada nos versos “vossa formosura [...] é tal que [...]
outra tal não se acontece”):

“Antes que mais diga agora,


Deus vos salve, fresca rosa,
E vos dê por minha esposa,
Por mulher e por senhora.
Que bem vejo
Nesse ar, nesse despejo,
Mui graciosa donzela,
Que vós sois, minha alma, aquela
Que eu busco e que desejo.

Obrou bem a Natureza


Em vos dar tal condição

9 Escudeiro era o homem das armas que auxiliava os cavaleiros fidalgos; estava, pois, na base da
hierarquia cavaleiresca, numa condição, portanto, subalterna. Por isso, neles, a decadência da
instituição cavaleiresca é mais visível, o que, no caso da peça em estudo, “justificará” que Brás da
Mata se torne um “caça-dotes”, interessado em arranjar um casamento que o salve da penúria.
10 Vidal e Latão são a caricatura dos judeus hábeis no comércio, sugerindo, na peça em estudo,
uma “mercantilização” das relações amorosas na incipiente sociedade capitalista, já que estão
vivamente interessados no pagamento que receberão pelos “serviços prestados”.

62
Que amais a discrição Humanismo: Gil Vicente

Muito mais que a riqueza.


Bem parece
Que só discrição merece
Gozar vossa formosura
Que é tal que, de ventura,
Outra tal não se acontece.”

O desfecho da “Farsa de Inês Pereira” é bastante conhecido: Inês casa-se com Brás
da Mata, que rapidamente se revela um marido nada galante: autoritário e presunçoso.
Prende Inês em casa, sob a vigilância do moço que o servia, e vai para a guerra, onde
morre covardemente; com a viuvez, Inês finalmente vê-se livre, e, “caindo na real”,
casa-se com Pero Marques. Faz dele, finalmente, o asno que a carrega, não só pelo fato
de o marido mostrar-se humildemente sujeito a todas as vontades da esposa, mas, lite-
ralmente, por Inês fazê-lo carregá-la às costas na cena final da peça, em que Pero, sem
o saber, está, ademais, levando Inês para um encontro amoroso com um falso ermitão
que a havia cortejado tempos antes. O mote está, assim, perfeitamente glosado.
É importante, ainda, que ressaltemos o caráter irônico do texto, provocador da
reviravolta do enredo e determinante da estrutura opositiva da peça, já que a ironia
põe em evidência a ambiguidade (e a alternância) entre o ser e o parecer: Brás da Mata
parecia o marido ideal; no entanto, a cena mesma que o introduz na peça mostra,
especialmente pelo diálogo que tem com o moço (seu criado) que o acompanhava, o
caráter dissimulado de suas ações: “E se me vires mentir,/Gabando-me de privado11,/
Está tu dissimulado,/Ou sai-te lá fora a rir”. Este “falseamento”, inclusive do seu cará-
ter, ficará explicitado na sequência dos eventos. A linguagem, portanto, nesse caso,
foi enganadora. Paralelamente, temos o outro pólo da oposição: Pero Marques, que
parecia estar muito distante do desejo de Inês, é, de fato, aquele que irá lhe dar a
liberdade almejada, colocando-se a serviço dela – como nas melhores demonstrações
da cortesia amorosa, aqui tratada em tom abertamente satírico.
Observe-se, por fim, como a “Farsa de Inês Pereira” confirma estar Gil Vicente
entre dois mundos, já que, comicamente, a peça metaforiza a passagem de uma
determinada ordem social a outra (e o dramaturgo não parece ser condescendente
com qualquer delas...).

11 Privado do Rei, nesse contexto; ou seja, aquele que priva (=convive intimamente) com ele –
portanto, que é familiar à corte.

63
LITERATURA As peças processionais12 serão aqui representadas pela “Romagem de Agravados” e
PORTUGUESA
incluem-se nesse tipo de estrutura dramática também os muito conhecidos Autos das
Barcas. Constituem-se de pequenas cenas, com poucos personagens em cada uma de-
las, apresentadas numa determinada sequência (que, entretanto, não é obrigatória13,
já que não há uma progressão dramática definida por relações de causa e consequên-
cia – ou seja, não há um enredo) e unidas por um único tema, que funciona como um
fio condutor de situações diversas. Temos, portanto, uma unidade na diversidade,
sendo que todos os quadros, na verdade, reiteram uma mesma idéia, rebuscada, re(a)
presentada em diferentes circunstâncias. É o caso da situação do Juízo Final nos autos
das barcas, que promovem uma “revisão de vida” dos recém-falecidos e a determina-
ção de sua salvação ou condenação, de acordo com um código de valores bastante
rigoroso, fundado na moral cristã, e é também o caso da peça que iremos analisar, a
qual nos parece, entretanto, mais complexa no que diz respeito à ideia reiterada e ao
sentido que lhe podemos atribuir.
Na “Romagem de Agravados” apresentam-se sete pares de agravados (que significa
aqueles que sofreram uma injustiça), os quais estão queixosos, descontentes com sua
situação e buscam, por isso, uma reparação, uma mudança que, de alguma maneira,
possa compensar o agravo sofrido. O primeiro par que se apresenta, formado pelo
camponês14 João Mortinheira e por seu filho Bastião, caracteriza muito bem a ideia que
será reiterada em todos os quadros seguintes: ele se queixa de Deus, da Providência
Divina, já que, como lavrador que é, depende da ajuda da Natureza para poder colher
o resultado de seu trabalho. E a injustiça está feita porque, quando a plantação pre-
cisa de chuva, ela não vem; e quando ela é desnecessária, nada a evita: “Que chove
quando não quero,/ e faz um sol das estrelas/quando chuva alguma espero.// Ora alaga
o semeado,/ora seca quando aí há,/ora venta sem recado,/ora neva e mata o gado,/e
Ele tanto se lhe dá.” Por isso, sua devoção está em crise (já que Deus não parece se
importar com sua desventura) e, desesperado, pensa em “negociar com Deus” fazendo
seu filho entrar para o seminário, pois assim ele terá o sustento assegurado e Deus
terá remediado a injustiça de que o pai foi vítima. A “lógica” dos argumentos apresen-
tados pelo lavrador é claramente cômica, e esse traço fica ainda mais evidente quando

12 O termo vem de procissão, no sentido de uma série de pessoas que seguem umas atrás das
outras. Como se verá, é nesse sentido de uma sequência de cenas que o termo será utilizado para
caracterizar um tipo de estrutura dramática bastante comum no conjunto da obra vicentina.
13 Isto significa que, por exemplo, pode ser alterada a ordem das cenas, sem prejuízo para a
compreensão do sentido da peça.
14 Na peça, chamado de vilão, que, naquele contexto, significava o que vivia na “vila”, no cam-
po, na aldeia – fora da cidade, portanto.

64
Bastião é então submetido a um teste por Frei Paço (de quem adiante trataremos mais Humanismo: Gil Vicente

detidamente) para verificar se está apto a ingressar na vida religiosa. Frei Paço propõe
que Bastião leia alguns versinhos os quais, na verdade, irão “avaliar” se o rapaz sabe
latim. Ironicamente, esta se apresenta como a única condição para a dedicação ao
sacerdócio. Como o garoto não consegue dizer nem Amém (que pronuncia “Abem”),
Frei Paço dá o veredicto: ele nunca conseguirá aprender – e, assim, não haverá chance
de mudar a sua condição.
Esta mesma ideia – as coisas devem ficar como estão – é reiterada mais ou menos
explicitamente em todas as demais cenas, ainda que mudem o motivo e o destinatário
da queixa (há, por exemplo, duas vendedoras de peixe, Marta do Prado e Branca do
Rego, que se queixam de terem sido enganadas por um falso fidalgo que se apresen-
tou como pretendente à sobrinha delas apenas para roubar-lhe o dote, situação bem
próxima à que é desenvolvida na “Farsa de Inês Pereira”, como vimos). A palavra
final, dada, na maioria das vezes, por Frei Paço, mas reiterada também por outros per-
sonagens da peça, direciona-se a uma insistência na impropriedade da queixa, já que
o melhor é “deixar as coisas ficarem como estão”, o que pode ser comprovado, por
exemplo, no final da cena em que duas freiras, Domicília e Dorósia, queixam-se dos ri-
gores do claustro, já que não podem falar nem com a família. Neste caso, o “veredicto”
é dado pelo personagem Frei Narciso: “Pois eu, senhoras, me fundo/ que quanto mais
encerradas15,/ tanto estais mais abrigadas/das tempestades do mundo.”
Se nos parece claro, assim, que a ideia central da peça, insistentemente rebuscada
na diversidade das situações apresentadas, funda-se na defesa de um determinado es-
tado das coisas16, na manutenção de uma ordem dentro da sociedade que prima pelo
conformismo e pela fixidez das posições ocupadas por cada indivíduo, nas diversas
funções que desempenha (já que aparecem também como queixosos fidalgos, padres,
pastores – ou seja, representantes de diversos estratos sociais), a presença em todas as
cenas, como “juiz”, de Frei Paço parece tornar mais complexa e um tanto suspeita esta
“clareza” de intenções plasmadas pelo texto de Gil Vicente.
Isto porque Frei Paço é um personagem ambíguo, em muitos sentidos: em primei-
ro lugar, porque seu nome alegoriza a união dos poderes eclesiásticos e seculares, da
Igreja e da Monarquia, já que é Frei (portanto, um religioso), mas é Paço (o termo pode
referir-se à corte e aos cortesãos, na acepção mais adequada a este contexto, embora
nomeie também – e isso é relevante – o palácio real ou episcopal). Entretanto, mais

15 enclausuradas.
16 “Agravos que não têm cura/procurai de os esquecer;/ que impossível é vencer/batalha contra
ventura/quem ventura não tiver”.

65
LITERATURA ambíguo ainda será ele por apresentar um comportamento pouco convencional no
PORTUGUESA
que diz respeito ao que se espera de um religioso: sua conduta é abertamente folgazã,
e ele ridiculariza sem pudores as convenções da instituição a que se filia. Apresenta-se,
por isso, como um dúplice paródico17, já que promove o rebaixamento, pelo riso, do
elemento de culto (o dogma religioso) e da espiritualidade a ele associada. Leiamos a
cena inicial da peça, em que ele se apresenta:

“Quem me vir entrar assi


Com estes jeitos que eu faço,
Cuidará que endoudeci,
Até que saiba de mi
Que sou o padre Frei Paço.
Deo gratias não me pertence,
Nem para sempre nem nada,
Senão espada dourada;
porque muito bem parece
Ao Paço trazer espada.

Eu sou fino de pessoa,


E por se não duvidar
Fiz uma cousa mui boa:
Deixei crescer a coroa,
Sem nunca a mandar rapar,
E portanto vos não digo
Deo gratias, se atentais nisto,
Nem louvado Jesus Cristo,
Inda que trago comigo
Hábito que é muito disso.

Eu sou tão paço em mi,


Que me posso bem gabar
Que invejar, mexericar
São meus salmos de Davi
Que costumo de rezar.

17 Segundo Bakhtin (2008), trata-se de um dos elementos mais característicos das manifesta-
ções da cultura popular.

66
Falo, mui doce cortês, Humanismo: Gil Vicente

Grã soma de cumprimentos;


Obras, não nas esperês,
Senão que vos contentês
Com palavrinhas de ventos.

Sou favor e desfavor,


Mestre-mor dos namorados,
Engano dos confiados,
Sou templo do Deus do amor,
Inferno de magoados.
Porém não como soía
É já a lei namorada;
E porque tudo s’enfria,
Amo assim de sesmaria
E suspiro de empreitada.

Frei Paço é, portanto, o primeiro personagem a entrar em cena, o único a estar


presente durante toda a peça e, como dissemos, atuará como uma espécie de media-
dor, interagindo com as duplas de agravados, comentando as queixas apresentadas e
proferindo juízos sobre elas. É, portanto, personagem fundamental na estrutura dra-
mática e, por desempenhar função avaliativa, deve ser também aquele que determina
a “mensagem” do texto, no sentido que indicamos anteriormente. E aí “entra em cena”
a suspeita a que nos referimos: que autoridade tem Frei Paço para determinar se as
queixas apresentadas são justas ou não? Que justiça pode promover, se ele próprio é
o avesso daquilo que deveria defender? Que ordem é essa pela qual “peleja” com sua
espada dourada, se não a de um “mundo às avessas” de que ele próprio é o represen-
tante modelar?
É nesse sentido que consideramos a “mensagem” conformista da peça suspeita,
reversível, por força da ironia que entrevemos no texto e que só nos pode levar a ad-
mirar ainda mais o grande dramaturgo português, capaz de deixar ver nas entrelinhas
as ambiguidades que – mais uma vez – configuram a tensão entre dois mundos que
Gil Vicente tão bem soube representar: a ordem do mundo estava mudando. Daí a
“Romagem de Agravados”, peça das menos estudadas do autor, parecer-nos merecer
maior atenção, pelo muito que pode revelar sobre o modo como Gil Vicente percebia
o processo histórico e concebia o lugar do homem na organização da sociedade de
seu tempo.

67
LITERATURA Finalmente, apresentaremos breve caracterização de uma peça de estrutura mul-
PORTUGUESA
tiforme (ou híbrida, como inicialmente denominamos esse tipo de composição dra-
mática): o “Auto da Lusitânia”. Podemos considerar que esta peça compõe-se de
“núcleos” de ação que se vão encaixando na montagem de uma estrutura complexa
que justapõe:
a) a representação realista, em tom satírico, de uma situação cotidiana, caracterís-
tica da farsa (neste caso, a ação envolve uma família de judeus comerciantes: Le-
diça – uma jovem esperta e com excelente domínio dos “jogos da linguagem” -,
seu pai, sua mãe, dois irmãos pequenos e um jovem fidalgo que a vem cortejar);
b) um entreato, de caráter metalinguístico, em que, inicialmente, o pai de Lediça
faz referência direta à autoria da peça, já que a Gil Vicente será solicitado, por
ele e por seu amigo Jacó, que escreva um “auto novo” em homenagem aos
membros da família real:

“Para que compridamente


Aito novo inventemos,
Vejamos um excelente
Que presente Gil Vicente,
E por aí nos regeremos.
Ele o faz em louvor
Do Príncipe nosso senhor.
Porque não pôde em Alvito,
Logo virá o relator,
Veremos com que primor
Argumenta bem seu dito”

c) um segundo momento desse entreato, em que um licenciado expõe o argu-


mento da comédia alegórica que foi criada em atendimento à solicitação feita, e
que será a partir de então representada (observe-se que aqui se inicia uma peça
dentro da outra)
d) a comédia alegórica que recria a origem mítica de Portugal – daí o título “Auto
da Lusitânia”; nela, assiste-se ao casamento de Portugal, cavaleiro grego, com
a princesa Lusitânia. Dois demônios, Belzebu e Dinato, vêm presenciar o casa-
mento e escutam o diálogo entre Todo o Mundo e Ninguém. É a “deixa” para
que na peça se encaixe esta outra alegoria – a antológica cena reproduzida
abaixo:

68
Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que Humanismo: Gil Vicente

perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:

Ninguém: Que andas tu aí buscando?


Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.
Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?
Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.
Ninguém: Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.
Belzebu: Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que escreverei, companheiro?
Belzebu: Que Ninguém busca consciência.
e Todo o Mundo dinheiro.
Ninguém: E agora que buscas lá?
Todo o Mundo: Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.
Belzebu: Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra Todo o Mundo
e Ninguém busca virtude.
Ninguém: Buscas outro mor bem qu’esse?
Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém: E eu quem me repreendesse
em cada cousa que errasse.
Belzebu: Escreve mais.
Dinato: Que tens sabido?
Belzebu: Que quer em extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,

69
LITERATURA e Ninguém ser repreendido.
PORTUGUESA
Ninguém: Buscas mais, amigo meu?
Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.
Ninguém: A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
Belzebu: Escreve lá outra sorte.
Dinato: Que sorte?
Belzebu: Muito garrida:
Todo o Mundo busca a vida
e Ninguém conhece a morte.
Todo o Mundo: E mais queria o paraíso,
sem mo Ninguém estorvar.
Ninguém: E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
Belzebu: Escreve com muito aviso.
Dinato: Que escreverei?
Belzebu: Escreve
que Todo o Mundo quer paraíso
e Ninguém paga o que deve.
Todo o Mundo: Folgo muito d’enganar,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém: Eu sempre verdade digo
em nunca me desviar.
Belzebu: Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.
Dinato: Quê?
Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso,
E Ninguém diz a verdade.
Ninguém: Que mais buscas?
Todo o Mundo: Lisonjear.
Ninguém: Eu sou todo desengano.
Belzebu: Escreve, ande lá, mano.
Dinato: Que me mandas assentar?
Belzebu: Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.

70
O que se quer colocar em relevo é a estrutura dramática sofisticada, inteligente- Humanismo: Gil Vicente

mente trabalhada desta peça: nela, Gil Vicente lança mão de variados recursos estilísti-
cos e níveis de linguagem, adequados a cada situação dramática apresentada; transita
com grande familiaridade entre as referências eruditas e a cultura popular; faz rir de
situações cotidianas, encanta com a recriação mitológica e moraliza com a sátira feroz
da alegoria transcrita. Revela-se, enfim, um dramaturgo com inegável potencial criativo
e “domínio de cena”.
Sem submeter-se às regras do teatro clássico, Gil Vicente erigiu uma dramaturgia
que aproveitou toda a variedade de sugestões anteriores ou contemporâneas do teatro
medieval e especialmente do peninsular; legou-nos um retrato vivo da sociedade de
seu tempo, ao explorar temas e motivos do cotidiano – as “bagatelas da vida caseira”;
levou adiante sua intenção de, pela arte, corrigir a sociedade; e, para além disso tudo,
abriu com chave de ouro as portas de Portugal para o Renascimento, garantindo ainda,
à posteridade, diversão, reflexão e personagens inesquecíveis.

Referências

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto


de François Rabelais. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2008.

CEIA, C (Coord.) E-Dicionário de termos literários. [S. l.]: Carlos Ceia Ed., 2009.
Disponível em: <http://www.fcsh.unl.pt/edtl>. Acesso em: 9 dez. 2009.

GIRARD, G.; OUELLET, R. O universo do teatro. Coimbra: Almedina, 1980.

LAPA, M. Rodrigues. Lições de Literatura Portuguesa. Época Medieval. 8. ed.


Coimbra: Coimbra Editora, 1973.

SPINA, S (Ed.). Obras-primas do teatro vicentino. 4. ed. São Paulo: Difel, 1983.

TEYSSIER, P. Gil Vicente o autor e a obra. Lisboa: ICALP, 1982.

71
LITERATURA
PORTUGUESA

Proposta de Atividade

1) Considere a seguinte afirmação:


“O tipo é uma imagem mental comum a toda uma comunidade, uma figura
que comporta geralmente poucas constantes, das quais uma ou algumas são
atualizadas em personagens que acrescentam ao tipo acidentes provenientes de
circunstâncias do contexto intraficção. Alguns tipos desenvolveram-se a partir
de personagens muito próximas de realidades sociais extra-ficção precisas [...]
[e são] particularmente apreciados por um teatro militante que se desejaria
que não estivesse divorciado da história e do povo [...]. Um único tipo pode
dar origem a outros tipos e numerosas personagens que se distinguem pelas
indicações que dão sobre um determinado lugar na sociedade de referência”
(GIRARD; OUELLET, R. 1980, p. 112).

Os personagens de Gil Vicente podem ser considerados tipos, nessa acepção? Apresente
uma discussão (com argumentos e exemplos) sobre a questão proposta.

Anotações

72
3 Classicismo:
Camões lírico e
épico
Este, de sua vida e sua cruz
uma canção eterna solta aos ares.
Luís de ouro vazando intensa luz
Por sobre as ondas altas dos vocábulos.
Carlos Drummond de Andrade

No plano histórico o Renascimento estabeleceu a ruptura da unidade cristã, quan-


do faz renascer o espírito antigo. Reúne experiências provenientes da revelação de
dois mundos: o descoberto pelos humanistas (a interpretação das civilizações extintas)
e o mundo terrestre (as novas raças, costumes e religiões).
A larga utilização da bússola tornou possível a navegação em mares remotos e a
invenção da imprensa por Gutemberg (1390-1468), por volta de 1439, permitiram ao
Renascimento os descobrimentos e a abertura das portas ao mundo moderno. Foi,
sem dúvida, um dos grandes períodos da história da civilização.
No plano pessoal, a fé se enfraquece, debilitando o pensamento do Infinito e tor-
nando mais agudo no homem o desejo e a curiosidade de conhecer-se e reafirmar a
dignidade do próprio espírito humano. Surge uma admiração intensa pelos valores
da cultura pagã, despertada pelo Humanismo. O homem faz da arte um absoluto e do
estudo das letras, vida e costumes clássicos uma idolatria. Foi essa admiração que mo-
dificou a concepção de vida do homem desse tempo, alterando também a concepção
de arte, transformando-a em desejo de imitação. Daí o culto ao modelo, o desinteresse
pelo conteúdo e pela mensagem artística, acompanhado pelo entusiasmo à forma – a
Arte pela Arte.
O século XVI foi um dos maiores séculos da história de Portugal, pelo que o ho-
mem português revelou do mundo, pelo que conquistou e pelas transformações que
determinou na história do Ocidente e do Oriente.
Historicamente, todos os poetas do Renascimento são clássicos: Sá de Miranda,
Pero de Andrade Caminha e Luís de Camões, considerado o maior lírico português.
A vida de Camões decorre entre 1524 (possivelmente) e 1580. Durante esse perío-
do, reinam em Portugal D. João III, D. Sebastião e D. Henrique. Camões assiste ao fim
do ciclo épico dos descobrimentos, que foram no século XV, simultaneamente, uma

73
LITERATURA das causas e consequência do espírito renascentista. Contribuindo para a abertura de
PORTUGUESA
novos horizontes ao homem europeu, os descobrimentos determinaram um conjunto
de transformações:
• Econômicas: permitiram o comércio em larga escala, uma abundância da mo-
eda, a inflação, o monopólio da Coroa, a cidade de Lisboa como maior centro
comercial e político e a decadência da agricultura;
• Sociais: favoreceram o desenvolvimento da burguesia, que se opõe à nobreza;
emigração para a cidade e para o ultramar, além do luxo em todas as classes,
levando-as à desmoralização;
• Culturais: beneficiaram o desenvolvimento cultural da burguesia; o aumento de
estudantes portugueses no estrangeiro e da literatura sobre temas ultramarinos.

Cerca de doze anos após o nascimento de Camões, surge em Portugal o Tribunal


da Inquisição. Em 1531, registra-se um grande terremoto em todo o reino, ficando
danificadas povoações inteiras. A desproporção entre a escassez de recursos hu-
manos e a vastidão geográfica das terras descobertas, a sucessão de naufrágios e a
derrota em Alcácer Quibir, em 15781 foram fatores que contribuíram para a queda
do império português. Pode-se dizer, portanto, que o tempo biográfico de Camões
corresponde à trajetória da decadência política portuguesa, que culmina com a per-
da da independência em 1580.
O século de Camões, porém, é marcado pelo grande movimento cultural do
Renascimento, cuja origem está no desenvolvimento do comércio, das atividades
industriais e das cidades. A velha cultura clerical da Idade Média não consegue mais
satisfazer as novas necessidades e nem as aspirações culturais do povo.
O Renascimento, com o Humanismo e o Classicismo, representou uma decisiva
virada em relação à concepção medieval do Homem e do Mundo. Ao teocentrismo
medieval sucede o antropocentrismo, em que o homem passa a ser “a medida de to-
das as coisas”, ou seja, o seu valor máximo. Assume o papel de sujeito da História e do
progresso. No entanto, esse movimento cultural não representou uma ruptura total
com os valores medievais. Coexistem as formas e ideias medievais e renascentistas,
como já constatamos no estudo das obras de Gil Vicente e também na de Camões.
Ocorre o movimento novo, que se desenvolveu em três planos fundamentais:
• Renascimento – define-se como a adoção e a valorização das formas artísticas
greco-latinas e a assimilação do espírito que as anima. É uma aceitação e não

1 Na batalha de Alcácer Quibir contra o exército árabe, Portugal perde o rei D. Sebastião, fican-
do sob o domínio da Espanha, a partir de 1580.

74
uma ressurreição das formas greco-latinas, que nunca morreram. Classicismo: Camões
lírico e épico
• Humanismo – parte do estudo da cultura antiga, valorizando tudo o que é
humano e exalta os valores do Homem como centro do Universo.
• Classicismo – ganhou corpo no início do Renascimento e ficou definitivamen-
te estruturado na segunda metade do século XVI, constituindo-se numa esté-
tica que estabelece um rigoroso sistema de regras próprias dos vários gêneros
literários: o épico (Os Lusíadas, por exemplo); o lírico (as formas fixas como
o soneto e o verso decassílabo, a canção, a ode, a elegia, entre outras). As suas
principais características são: a) exaltação do Homem em contraste com o teo-
centrismo medieval; b) predomínio da Razão sobre o sentimento, evitando-se
os vôos da imaginação e da fantasia; c) imitação da Natureza pela Arte, sendo a
paisagem sempre amena (locus amoenus), idealizada, convencional e artificial,
excluindo o acidental, objetivando sempre refletir o eterno, essencial; d) imita-
ção dos autores greco-latinos nos temas e na utilização da mitologia.

Como cristão Camões não podia aceitar, incondicional e ilimitadamente as doutri-


nas discutidas acima. Os temas líricos atualizam-se com sua vida agitada (experiência),
o seu temperamento ardente, apaixonado e a sua profunda cultura. É a experiência
do amor, vivida integralmente, que ele canta sem emancipar-se do lirismo tradicional.
O encanto do lirismo tradicional atraiu Camões. Ao contrário de António Ferreira
(1528-1569)2 que o desprezou, Camões inspirou-se no lirismo do “doce estilo novo”
trazido da Itália, deu-lhe continuidade, renovando-lhe o conteúdo, ao acrescentar sua
profunda cultura humanista e clássica, além da temática petrarquista e platonizante.
Deste modo, o seu lirismo representa a conciliação da corrente tradicional (medida
velha) com a corrente renascentista (medida nova - o doce estilo novo).
Podemos estudar a poesia lírica de Camões, quanto às influências que nelas se
exerceram e devido às suas próprias relações emotivas e experiência humana que ex-
primem, três categorias ou grupos:
• Inspiração da poesia tradicional: glosa, vilancete, esparsas, cantiga, redondilhas,
escritas em “metro real” ou redondilha menor e maior (cinco e sete sílabas mé-
tricas), em continuidade ao Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende.
• Influência da cultura humanística de Quinhentos, no tema e na forma: soneto,
écloga, elegia, ode, sextina, canção etc. em metro decassílabo.

2 António Ferreira foi o doutrinador do Classicismo em Portugal. Considerado mestre da pureza


de linguagem, foi autor de Poemas Lusitanos (1598) e da tragédia clássica A Castro (1587), drama
amoroso de Inês de Castro e D. Pedro I, entre outras obras.

75
LITERATURA • Textos poéticos que não sofreram qualquer influência estranha, sendo o resulta-
PORTUGUESA
do das suas reações emotivas e da sua experiência humana. Podem-se observar,
assim, no lirismo camoniano, faces (ou forças) intimamente relacionadas com
a experiência do homem e do artista. São elas: a) força musical expressa em
redondilhas, nas quais predominam a leveza e a graça, a musicalidade e o ritmo
de uma vida despreocupada; b) força intelectual presente na poesia expressa
em decassílabo, quando o poeta reconhece que a vida amorosa não está isenta
de contrariedades e decepções e procura dominar a dor através de uma teoria
sobre o amor com resignação. Ressalta-se, assim, a influência de Platão e de
Petrarca (“fase petrarquista”).

Para Platão havia dois mundos: o mundo sensível, no qual habitamos e o mundo
inteligível, das ideias puras e de suprema perfeição, de que o mundo sensível não
passava de mero reflexo ou sombra. Este mundo inteligível está resumido na Ideia Su-
prema, na Suprema Beleza, na Suprema Bondade e Justiça. A alma participa na paixão
mais que o corpo; assim, devemos amar a beleza espiritual mais do que a beleza geral.
A teoria platônica traduzia, em termos filosóficos, o pessimismo cristão sobre a
efemeridade da vida e a fugacidade de todos os bens materiais, considerado “vaidade”
(vanitas, vanitatum), conceito que aviva a eternidade dos bens espirituais. Tal filoso-
fia era tão parecida com a tradição cristã e tratada com muita expressividade, que os
poetas não tinham outra opção a não ser transplantar para sua poesia a essência da
doutrina platônica.
Platão admitia que o homem fora criado no mundo inteligível, elemento da Ideia
Suprema, espécie de beleza geral que teríamos mesmo antes de nascer. Mas desse
conhecimento conservava-se apenas as reminiscências, que diferem da memória,
pois esta pressupõe um mundo sensível, relativo, cronológico, espacial e temporal.
Tais reminiscências contribuíram para a insatisfação humana, visto serem uma ligeira
“recordação” subconsciente de um mundo melhor. Já no mundo sensível, na beleza
sensorial ou corpórea, no encanto da Natureza e na beleza física e moral da mulher
amada (do Ser), não devia ver-se mais que um reflexo, uma sombra da Beleza Geral,
fazendo com que um degrau da beleza divina para que, contemplando as realidades
objetivas, pudéssemos nos aproximar da Beleza Suprema.
A teoria platônica do amor estava na base da poesia provençal, nas cantigas de
amor, já estudadas. Lembremos que a Senhora era idealizada, inacessível. Na poesia de
Petrarca a mulher divinizada era considerada um raio de eterna luz; um raio de divina
formosura. Camões, herdeiro das tradições medievais, segue fielmente Petrarca, apre-
sentando-nos composições em que se observa a influência da concepção platônica do

76
Amor e da Mulher. Como exemplo, podemos citar o soneto Transforma-se o amador Classicismo: Camões
lírico e épico
na cousa amada; a redondilha Endechas a Bárbara Escrava e a composição Babel e
Sião. Podemos, assim, resumir a alegoria do platonismo:

Reminiscências

Mundo Sensível <------------------------> Mundo Inteligível


(visível) reminiscências

BELEZA PARTICULAR BELEZA GERAL


OU SOMBRA OU REAL

Nas redondilhas de Sôbolos rios, que se baseia no Salmo 136, de Davi, no qual os
judeus desterrados da Babilônia choram o tempo em que viveram felizes em Jerusalém
ou Sião, a concepção platônica é evidente. Camões chega a usar símbolos platôni-
cos como as palavras: reminiscências, beleza particular, beleza geral, mundo visível,
mundo inteligível para exprimir suas próprias crenças. Entretanto, o poeta afasta-se
do pensamento de Platão quando considera que não é pela simples contemplação
intelectual que o homem se eleva para o mundo inteligível, isto é, eleva-se para o Céu
cristão, mas por virtude da Graça e por impulso que vem de Deus.
Apontadas as composições líricas de Camões que, de qualquer maneira, receberam
influências filosóficas, podemos nos referir também às que foram compostas a partir
da reação e da emoção perante a vida. Ou seja, de acordo com a experiência vivida
pelo poeta: seus sentimentos religiosos, sua visão de mundo, a partir das mudanças.
Esta parte do lirismo camoniano responderia às questões:
• Como viveu o poeta, na realidade, o amor que platonicamente cantou em versos?
• Como se autobiografou?
• Como exprime os seus sentimentos religiosos?
• Como analisa os contrastes do mundo?

O amor e a mulher
Enquanto Petrarca teve uma única amada na vida, Laura, cuja verdadeira beleza
transcende a beleza física, na vida de Camões muitas mulheres foram presentes e, às
vezes, opõem-se à mulher idealizada e ao modelo de beleza petrarquista. Justifica-se o
amor ideal de concepção petrarquista (platônico) só existe em Camões como ponto
de partida para o estudo de sua obra lírica.
No soneto Busque Amor novas artes, novo engenho, escrito em 1595, e na canção

77
LITERATURA Manda-me Amor que cante docemente, do mesmo ano, percebe-se uma profunda
PORTUGUESA
experiência vivida do amor sensual. Entretanto, convém observar que, nesses senti-
mentos pessoais e apaixonados, há sempre uma espécie de timidez cristã que envolve
todo o texto. Daí a conclusão de que o poeta, mesmo tendo vivido várias paixões, não
deixou de notar o contraste existente entre o desejo carnal e o ideal do amor desinte-
ressado, que permanece apenas no pensamento.

O autobiografismo
Ocorre no momento em que o poeta nos coloca diante de seus erros cometidos e
das perseguições que sofreu. Esse lirismo de confissão, de arrependimento e de auto-
análise também faz parte do lirismo camoniano, podendo ser estudado nos textos:
Sôbolos rios e nos sonetos Erros meus, má fortuna, Amor ardente, entre outros.

O sentimento religioso
Esse sentimento baseia-se na fé cristã e na vida espiritual manifestadas e expres-
sas na poesia de Camões. Considerando o ambiente social da sua formação religiosa,
numa época em que a Inquisição havia sido criada em Portugal, imperando com todos
os rigores, fica evidente que o sentimento religioso deveria ser expresso em sua poesia
lírica. São diversos os textos em que o poeta exprime a sua crença religiosa, como, por
exemplo, no soneto Verdade, Amor, Razão e Merecimento.

O desconcerto do mundo
O problema do desconcerto do mundo é uma constante na lírica camoniana. O
poeta admite sempre a contradição entre o ser e o dever ser. Para ele o desconcerto
constitui-se em: a) distribuição do prêmio e do castigo, independentemente do mere-
cimento individual; b) a busca dos homens pelos bens que morte reduz a nada; c) o
absurdo de esperar o contentamento, porque essa sensação não passa de uma ilusão.
O texto exemplificador dessas ideias é Esparsa (Os bons vi sempre passar/ no mundo
graves tormentos; / e para mais m’ espantar,/ os maus vi sempre nadar/ em mar de
contentamentos.)

Leitura do soneto “Um mover d’ olhos brando e piedoso”, de Camões.

Um mover d’ olhos, brando e piedoso


Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;

78
Um despejo quieto e vergonhoso; Classicismo: Camões
lírico e épico
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; uma brandura;


Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento:

Esta foi a celeste fermosura


Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.

CAMÕES, Luís de. Rimas, 1993, p. 161.

Linhas de direção de leitura


• Petrarquismo3
• Neoplatonismo4
• Tensão agônica (viver dividido entre anseios do corpo e anseios do espírito, en-
tre desejo de posse do objeto amado e consciência pecaminosa), que permitem
o entendimento de um sujeito lírico repartido entre a enumeração analítica e a
concentração sintética, num equilíbrio dialético entre o movimento (descrição
dinâmica) e o repouso (descrição estática), entre doçura clássica e a inquietação
maneirista. O soneto reassume a rica herança intertextual da metamorfose mito-
lógica greco-latina para exprimir a complexidade do processo amoroso.
• Ritmo binário: a anáfora do determinante indefinido um encabeça quase todos
os hemistíquios (metade de um verso alexandrino) de cada verso, enumerando
a gradação ascendente de qualidades físicas e psicológicas do retrato feminino,
revelador, incutidos de sentimentos.
• Ritmo reforçado pela dupla adjetivação predominante e pela estrutura da frase

3 Movimento literário em torno de a figura tutelar de Petrarca e da sua obra Cancioneiro, sur-
gido na Itália do século XV, estendendo-se por toda Europa e à Península Ibérica. Temática
amorosa reforçada pela visão neoplatônica, em que o sujeito lírico sente-se dignificado ao servir
a sua dama. Debate-se com o conflito íntimo entre razão e desejo; gozo e dor; vida e morte.
4 Corrente filosófica introduzida por Plotino, Santo Agostinho, Fílon, entre outros, que visava
cristianizar o pensamento de Platão. Presente nas cantigas de amor e na obra lírica de Camões.
A beleza feminina constitui um arquétipo de beleza divina, espelho do mundo das Ideias – via
de acesso à união mística. O amor humano é um processo libertador do desejo de posse (Eros)
em ordem à supremacia do afeto espiritual (Ágape).

79
LITERATURA poética, que só vai terminar no último terceto, chave de ouro e síntese do so-
PORTUGUESA
neto, constituindo um único período sintático.
• A 1ª quadra, embora esteja evocando os elementos físicos do retrato (olhar,
riso e rosto), não deixa de salientar a coloração predominantemente psíquica
que se estende por todo o soneto. O sentimento de doçura que se desprende
dessa caracterização, ainda que acentuado por uma nota de tristeza, tira o
brilho da artificialidade aristocrática (“sem ver de quê”; “um riso brando e
honesto”; “quase forçado; um doce e humilde gesto”; “de qualquer alegria
duvidoso”)
• As duas estrofes seguintes apresentam uma descrição psicológica e assinalam
a descrição exterior: despejo; repouso; ar; como a íntima essência: bonda-
de; medo; sofrimento, qualidades pertencentes à figura feminina idealizada.
Há, porém, um profundo contraste expresso pela antítese: despejo versus
repouso; “encolhido ousar” (oxímoro) e “medo sem ter culpa” (paradoxo),
representando o dinamismo da ação e a modéstia da timidez, a ousadia e a
serenidade.
• É esta complexa caracterização que fascina o artista poeta-pintor, a ponto de
não se limitar à acumulação de adjetivos de conotação predominantemente
positiva: “quieto e vergonhoso”; “gravíssimo e modesto”; “limpo e gracioso”;
“longo e obediente” e não temer o artifício da hipérbole “pura bondade”.
• A figura apresentada é um ser completo, equilibrado, na harmonia de contrá-
rios: calma e serena sem ser passiva; corajosa sem ser masculina; bondosa sem
ser tola; sofredora sem ser masoquista: “um despejo quieto e vergonhoso, /
um repouso gravíssimo e modesto, / uma pura bondade, manifesto/ indício da
alma, limpo e gracioso; um encolhido ousar, uma brandura; / um medo sem ter
culpa; um ar sereno; / um longo e obediente sofrimento”.
• Essa figura tão complexa é denominada de “celeste formosura”. Tal fascínio é
metaforicamente designado como “mágico veneno”, à luz intertextual da feiti-
ceira Circe cuja poção, transformando os companheiros de Ulisses em porcos,
permitiu a sua retenção na Ilha, embaraçando a realização do seu projeto de
regresso à Ítaca.
• Tal metamorfose amorosa operada pode perturbar o sujeito lírico, mas a sua
proveniência não é meramente humana. É, pois, a idealização clássica da “ce-
leste fermosura” que o poeta, apresenta como arquétipo da mulher quinhen-
tista, para não dizer universal: “esta foi a celeste fermosura que/ da minha
Circe, e o mágico veneno/ que pôde transformar meu pensamento”.

80
OS LUSÍADAS – Considerações gerais Classicismo: Camões
lírico e épico
A publicação de Os Lusíadas deu-se em 1572, momento em que o império por-
tuguês já mostrava sinais de decadência e crise política. O poema é considerado
uma “epopéia de imitação” pela crítica especializada. Epopéia, porque se trata da
narração em verso de um fato histórico grandioso que, pela sua transcendência,
interessa a toda a humanidade. E de imitação, porque Camões seguiu os modelos
das chamadas epopéias primitivas: a Ilíada e a Odisséia, de Homero e a Eneida,
de Virgílio. Como poema épico, canta a glória do povo português (“o peito ilustre
lusitano”), destacando o seu período mais glorioso – a época dos Descobrimentos
– representada pela viagem de Vasco da Gama em 1498.
A necessidade do surgimento de uma epopéia portuguesa que glorificasse os fei-
tos heróicos do povo vinha sendo solicitada, desde a publicação do Cancioneiro Ge-
ral de Garcia de Resende, no Prólogo, proclamando a urgência de um “novo canto/
heróico e generoso, / nunca ouvido dos nossos bons passados”, que imortalizasse
os “altos reis, altos feitos”. Portanto, Os Lusíadas representam a resposta aos apelos
dos poetas anteriores a Camões, adaptando com originalidade a estrutura clássica da
epopéia à narração da viagem do Gama e inserindo a História de Portugal anterior
e posterior à viagem.
Outros temas do Humanismo renascentista também são visíveis no poema. Ca-
mões não canta só as glórias e os feitos heróicos (o ideal cavaleiresco), como tam-
bém dá voz àqueles que, no seu tempo, opunham-se à aventura dos descobrimen-
tos. Podemos exemplificar com a figura do Velho do Restelo, a voz que condenava a
expansão no Oriente e que representava a opinião dos humanistas e, possivelmente,
também a voz de Camões. Essa lição recebeu-a da Antiguidade: “foi a ambição que
perdeu os homens, desterrando-os da Idade do Ouro para a do Ferro; e é a mesma
ambição que arrastava os portugueses para a perdição no Oriente”.
Existe, portanto, uma contradição entre as posições humanistas do Velho do Res-
telo e o ideal cavaleiresco de conquista, apontado nos acontecimentos históricos se-
lecionados (as batalhas) e no Canto X, quando exorta D. Sebastião na guerra da Áfri-
ca. Talvez, desta maneira, Camões tenha querido afirmar o seu próprio pensamento
humanista como independente da mentalidade guerreira inserida no contexto do
poema. O crítico António Saraiva (1972, p. 156-160) afirma: “O Velho do Restelo é
o próprio Camões erguendo-se acima do encadeamento histórico e medindo à luz
dos valores do humanismo europeu os acontecimentos pelos quais se apaixonou
(...); a sua voz se faz ouvir também nos conselhos e ensinamentos que dá ao Rei e
seus ministros, não poupando censuras àqueles que se colocavam contrários ao bem
público e pensavam apenas no seu interesse particular”.

81
LITERATURA A ESTRUTURA DO POEMA
PORTUGUESA
Obedecendo à estrutura renascentista, segundo Jorge de Sena (A Estrutura d’Os
Lusíadas), os dez cantos constituem dois ciclos épicos. O primeiro ciclo épico é
formado do Canto I ao Canto V: Introdução (Proposição, Invocação e Dedicató-
ria); viagem de Moçambique a Melinde (Cantos I e II); História de Portugal (Cantos
III e IV ) e a viagem de Belém a Melinde (Canto V ). O segundo ciclo épico é forma-
do do Canto VI ao Canto X: viagem de Melinde a Calecute (Canto VI); permanência
na Índia (Cantos VII e VIII); regresso e parada na Ilha dos Amores (Cantos IX e X)
e conclusão – apelo a D. Sebastião (Canto X). Portanto, o Canto V constitui-se uma
espécie de “ponte” entre o passado (a história de Portugal anterior à viagem de
1497-1498) e o futuro dos portugueses no Oriente. Já o Canto X congrega os quatro
planos: a viagem, a História de Portugal, transfigurada nas profecias da ninfa Sirena
e de Tétis, os deuses e as considerações pessoais do poeta e funciona, até à estrofe
144, como uma espécie de síntese otimista. A partir da estrofe 145, o pessimismo
toma conta do poeta, por ver que vem “cantar a gente surda e endurecida”. Camões
retoma o ânimo e dirige uma exortação a D. Sebastião em que chama a atenção para
a necessidade de promover e premiar a virtude e o heroísmo dos seus súditos. Ter-
mina na estrofe 156, por se manifestar disposto a retomar a pena e glorificar o ideal
de heroísmo de D. Sebastião.
Quanto à ação (o assunto desenvolvido na obra) trata da descoberta do cami-
nho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, como acontecimento culminante da
História de Portugal à data da composição da obra e definidor do perfil do herói “o
peito ilustre lusitano”, isto é, o povo português. A narrativa é íntegra (introdução,
desenvolvimento e conclusão) e a verdade consiste no tratamento de um assunto
real, ou pelo menos verossímil. A personagem é o povo português, um herói cole-
tivo, que na obra é simbolicamente representado por Vasco da Gama.
Há uma variedade de episódios (pequenas ações reais ou imaginárias), cuja
função é embelezar a ação e quebrar a monotonia de uma narração continuada, mas
sempre sem prejudicar a unidade, através do estabelecimento hábil de uma relação
com o acontecimento ou a figura de que a ação se ocupa em cada momento. São
variados os tipos de episódios que encontramos no texto:
• Mitológicos - Concílio dos deuses no Olimpo (Canto I) e Concílio dos deuses
marinhos (Canto VI);
• Bélicos – batalha de Ourique (III), batalha do Salado (III) e a batalha de
Aljubarrota (IV );
• Líricos – a Formosíssima Maria (III); a morte de Inês de Castro (III) e a des-
pedida do Restelo (IV );

82
• Naturalistas – a descoberta do Cruzeiro do Sul ( V ); o Fogo de Santelmo ( V ), Classicismo: Camões
lírico e épico
a Tromba Marítima e o escorbuto ( V ) e a Tempestade ( VI);
• Simbólicos – o sonho profético de D. Manuel e a figura do Velho do Restelo
(IV ); o Gigante Adamastor ( V ) e a Ilha dos Amores (IX e X);
• Humorístico ou herói-cômico - a figura de Fernão Veloso ( V );
• Cavaleiresco – a referência aos Doze da Inglaterra ( VI).

O último elemento a ser considerado é a inclusão do maravilhoso, que consiste


na intervenção de entidades sobrenaturais na ação, umas favorecendo os portugue-
ses, como Vênus, Marte e Júpiter e outras dificultando a viagem, como Baco. Cada
interventor tem as suas razões para desejar o sucesso ou o insucesso da viagem. Vale
a pena lembrar que Vênus favorece os portugueses por várias razões:
• O sentimentalismo lusitano (“os fortes corações”);
• Os portugueses lembram-lhe os romanos, sempre seus protegidos, mesmo
porque seu filho Enéias já fora o herói da Eneida de Virgílio;
• Os bravos marinheiros mostravam coragem e bravura na “terra Tingitana” (lo-
calizada ao norte da África);
• Os lusitanos falam uma língua romana: “na qual quando imagina/ Com pouca
corrupção crê que é latina”.

Por outro lado, Marte (que havia tido uma ligação amorosa com Vênus de que
nascera Cupido) não deixaria de tomar uma atitude dura e favorável, por ser o
deus da guerra e pelas seguintes razões: nutria um amor antigo por Vênus e era
de opinião que os atos heróicos do povo português o dignificavam “a gente forte o
merecia”. Já Júpiter, no seu discurso de abertura no Concílio dos deuses no Olim-
po, manifesta-se impressionado pelos muitos feitos heróicos praticados pelo povo
português, desde longa data e sabe que está prometido o sucesso: “Fado eterno/
Cuja alta lei não pode ser quebrada”. Prevê que hão de dominar o Oriente, sabe que
navegam no Índico e é de parecer que lhes seja “mostrada a nova terra” (a Índia).
Contrariamente, Baco se opõe a essa viagem, como o vilão da história. Ele persegue
os portugueses e tenta impedir a todo custo que a viagem de Vasco da Gama tenha
sucesso. Segundo a tradição mitológica, Baco, deus do vinho e da inspiração, era
festejado com procissões, dominava a Índia e temia que, se os portugueses conquis-
tassem o Oriente, ele seria esquecido. Por isso não concorda com Júpiter quando
declara proteger os marinheiros lusos. Também simboliza os obstáculos naturais
que uma viagem longa poderia ter.
N’Os Lusíadas o maravilhoso divide-se em:

83
LITERATURA • Maravilhoso pagão – intervenção de numerosas divindades da mitologia
PORTUGUESA
pagã;
• Maravilhoso cristão – o recurso ao Deus dos cristãos (a “Divina Guarda, An-
gélica, Celeste”), sobretudo nas súplicas do Gama em momentos de aflição e
em algumas das considerações pessoais do poeta. Há momentos em que tanto
a chamada Divina Providência (maravilhoso cristão) como os deuses pagãos
intervêm na ação, podendo considerar-se, nesse caso, a existência de um ma-
ravilhoso misto. Devemos considerar, ainda, como em qualquer narrativa,
a existência de uma estrutura interna (as três tradicionais partes lógicas):
introdução, desenvolvimento e conclusão:

DESENVOLVIMENTO DA
INTRODUÇÃO CONCLUSÃO
AÇÃO
(I,1-18) (X, 145-156)
(narração: I,19 – X,144)

Proposição do assunto: 1. Os deuses (o mitológico) Desencanto perante a


I, 1-3; e a viagem – ação central; 2. Musa Calíope: X, 145;
Invocação: I, 4-5; A História de Portugal – ação Exortação e apelo ao
Dedicatória a D. secundária, composta pelos Rei D. Sebastião, como
Sebastião: I, 6-18 discursos (história passada) última esperança
e pelas profecias (história de regeneração
futura); 3. As considerações da Pátria: X, 146-
pessoais do poeta (nos 156. Aconselha-o
finais dos Cantos) refletindo a “favorecer”
sobre a fragilidade da vida todos aqueles
humana e as lamentações, que estivessem
(representando o gênero dispostos a servir
lírico); a crítica da sociedade desinteressadamente.
do seu tempo, representando Conclui a obra,
o gênero satírico, a ironia. oferecendo-se para
cantar os feitos que o
Rei viesse a praticar na
África.

Sobre a narração, a ação principal, vale dizer que Camões, à maneira clássica,
utilizou o recurso in media res, isto é, a narração se inicia na estância 19 do Canto
I, quando já os marinheiros navegavam em pleno Oceano Índico: “Já no largo Ocea-
no navegavam,/ As inquietas ondas apartando;/Os ventos brandamente respiravam,/
Das naus as velas côncavas inchando”. Quanto ao processo narrativo, são vários os

84
narradores e diferentes os pontos-de-vista. Camões é o que, habitualmente, se con- Classicismo: Camões
lírico e épico
sidera o primeiro narrador da epopéia – o narrador heterodiegético, conduzindo
a narrativa nos Cantos I, II,VI, VII, VIII (desde a estância 43 até o final do canto), IX
e X. Por outro lado, Vasco da Gama assume-se como narrador homodiegético em
grande parte do seu discurso perante o rei de Melinde (III, 3 e IV, 76). Em vários
momentos, Camões dá a palavra às personagens, como Vênus, o Velho do Restelo,
Inês de Castro, a Formosíssima Maria, entre outros.
Finalmente, devemos tratar dos valores ideológicos, morais e estéticos do
texto em questão:

VALORES IDEOLÓGICOS VALORES MORAIS VALORES ESTÉTICOS

• Exaltação da vitória do • Ideal cristão da • Aproveitamento


Homem sobre as forças da dilatação da Fé, estético da pluralidade
Natureza; exaltando-se o espírito cultural
das Cruzadas contra os
mouros

• Glorificação do esforço • Afirmação do sentido • Valorização da


do Homem na descoberta crítico e filosófico: Mitologia Clássica,
de um Novo Mundo; considerações pessoais presente nos dois
do Poeta e de figuras Concílios e na Ilha dos
míticas (o Velho do Amores;
Restelo)

• Valorização do • Exaltação de atitudes • Arquitetura da obra:


conhecimento científico e comportamentos divisão em Cantos,
e experimental reveladores do narração em media res,
em detrimento do equilíbrio, harmonia transfiguração poética
conhecimento livresco; e perfeição: o amor, a da História de Portugal
virtude, a lealdade, a e o significado simbólico
justiça, a coragem, o dos episódios;
mérito, o próprio ideal
cavaleiresco: Inês de
Castro, Nuno Álvares, etc.

• Defesa do progresso • Condenação de: a • A riqueza da


– a viagem de Vasco da violência; a imoralidade; linguagem e a
Gama; a ambição desmedida; multiplicidade dos seus
• Nacionalismo - exaltação os abusos; o poder registros;
da coragem e da lealdade despótico; as guerras • A definição da poesia
dos portugueses. inúteis; a ociosidade e a como “pintura que fala”:
ingratidão. de fatos históricos ou
lendários, de locais e
objetos reais ou míticos.

85
LITERATURA
PORTUGUESA

Proposta de Atividades e Análises

1) Análise de textos líricos: medida velha

Texto 1
Cantiga nº 52
A este moto:
Descalça vai para a fonte
Leanor pela verdura;
Vai fermosa e não segura.

VOLTAS
Leva na cabeça o pote,
o testo na mão de prata
cinta de fina escarlata,
saínho de chamalote;
traz a vasquinha de cote,
mais branca que a neve pura;
vai fermosa, e não segura,

Descobre a touca a garganta,


cabelos d’ouro o trançado,
fita de cor d’encarnado,
tão linda que o mundo espanta;
chove nela graça tanta
que dá graça à fermosura;
vai fermosa e não segura.

Texto 2
Mote alheio
Perdigão perdeu a pena,
Não há mal que lhe não venha.

VOLTAS
Perdigão, que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
86
Perde a pena do voar, Classicismo: Camões
lírico e épico
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha.

Quis voar a uma alta torre,


Mas achou-se desasado;
E vendo-se depenado
De puro penado morre.
Se a queixumes se socorre
Lança no fogo mais lenha
Não há mal que lhe não venha.

Roteiro de leitura e análise:


1) Determinar qual é o assunto dos poemas e quais foram os processos estilísticos
utilizados pelo poeta no seu desenvolvimento?
2) Descreva a estrutura formal dos textos (estrofe, versos, ritmo, metrificação,
figuras, etc).
3) No texto 1, caracterize a mulher e o amor visionados pelo poeta.
4) O texto 2 faz parte do lirismo satírico de Camões. Faça uma síntese do sentido
das duas voltas do texto, fazendo-o corresponder ao ditado popular “um mal
nunca vem só”.

2) Análise de sonetos – medida nova

Texto 3
Verdade, Amor, Razão, Merecimento
Qualquer alma farão segura e forte
Porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte
Têm do confuso mundo o regimento.

Efeitos mil revolve o pensamento


E não sabe a que causa se reporte;
Mas sabe que o que é mais que vida e morte,
Que não o alcança humano entendimento.

Doutos varões darão razões subidas;


87
LITERATURA Mas são experiências mais provadas,
PORTUGUESA
E por isso é melhor ter muito visto.

Cousa há aí que passam sem ser cridas


E cousas cridas há sem ser passadas...
Mas o melhor de tudo é crer em Cristo.

Texto 4

Transforma-se o amador na cousa amada,


Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenh9o a parte desejada.

Se nela está minh’ alma transformada,


Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada,

Mas esta linda e pura semideia


Que, como um acidente em seu sujeito,
Assim coa alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia:


O vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples, busca a forma.

Texto 5
Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente


A grande dor das cousas, que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

88
Errei todo o discurso de meus anos; Classicismo: Camões
lírico e épico
Dei causa que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças,

De amor não vi senão breves enganos,


Oh! Quem tanto pudesse que fartasse
Este meu duro Gênio de vinganças!

Roteiro de leitura e análise dos sonetos

1) Faça a análise da forma dos três sonetos, apresentado o tema, o assunto, além da
metrificação, ritmo, rimas, principais figuras etc.

a) No texto 3, no primeiro quarteto, estabelece-se uma antítese entre o plano dos


princípios (ideal) e o plano dos acontecimentos (experiência de vida). Expli-
que com suas palavras, em que consiste essa antítese e as consequências que ela
projeta sobre a vida do homem.
b) Ainda sobre o texto 3, quatro elementos negativos são contrapostos a quatro
elementos positivos no texto. Que intenção poderá haver na correlação (4-4)?
Por que é que esses elementos aparecem escritos com letras maiúsculas?
c) O texto 4 muitas vezes é apresentado como documentando a filosofia do amor
platônico: à força do pensar na amada, o amador acaba por fazer parte dela,
portanto, para quê deseja-la? Porém, a segunda parte do soneto (os tercetos)
não se encaixa na filosofia platônica, mas extrapola para conceitos aristotélicos:
a amada está no amador apenas como ideia (intelectualmente) e esse puro amor
busca a forma, isto é, tende a passar do domínio virtual, para o domínio da rea-
lidade. Considerando isto, responda: a) Que relação existe entre o conteúdo das
duas partes do soneto (quartetos e tercetos) no que diz respeito à concepção do
amor? b) Qual das duas partes reflete a experiência vivida pelo poeta? Justifique a
sua resposta. C) Procure mostrar que a poesia de Camões ganha em emotividade
e dramatismo pelo fato de não se confinar nos limites do amor platônico.
d) No texto 5, a amargura do eu-lírico parece dever-se ao que na sua vida existiu
em excesso e, por outro lado, ao que faltou. Se concorda com essa ideia, justifi-
que, com base no texto, a afirmação.
e) Ainda sobre o texto 5, destaque do texto elementos que ressaltam uma conota-
ção de amargura e até de cólera: vocabulário, encadeamento de ideias, tipos de
frases, atitude perante o amor. Dê ênfase aos últimos versos.

89
LITERATURA OS LUSÍADAS - ATIVIDADES DE LEITURA
PORTUGUESA

Pesquise num exemplar de Os Lusíadas, de Camões os seguintes episódios:

1) O episódio de Inês de Castro, no Canto III, estâncias 118 a 135 e elabore uma
síntese do texto. Em seguida, responda:

a) Pesquise sobre a verdade histórica desse episódio e as alterações resultantes


da poetização feita por Camões.
b) Encontre o no texto, a chamada “lei das três unidades”: ação, tempo e espa-
ço, exemplificando com o texto.
c) Em seguida, considere as três partes lógicas do texto: introdução (estâncias
118-119), desenvolvimento (estâncias 120-132) e conclusão (estâncias 133 e
134), identificando os acontecimentos importantes em cada parte.
d) A dimensão trágico-lírica deste episódio fez da história dos amores de Pedro
e Inês um símbolo da paixão fatal que correu mundo e mereceu tratamentos
artísticos mais variados, ao longo dos tempos: na poesia lírica, no teatro, ma
pintura e na música. No texto literário, foi a expressividade linguística de
Camões que recuperou a história. Faça o levantamento de exemplos de ad-
jetivação e das figuras utilizadas pelo poeta que confirmam a grandiosidade
do texto, na caracterização das personagens Pedro e Inês.

2) O episódio do Velho do Restelo, no Canto IV, estâncias 94 a 104 e elabore uma


síntese do texto. Em seguida, responda:

a) Qual é o tema tratado por Camões neste episódio e como ele se desenvolve?
b) Descreva a personagem do Velho, apresentando as características físicas e
psicológicas, suas atitudes e significados.
c) Discuta as seguintes funções exercidas pelo Velho do Restelo: personagem
coletiva e simbólica; personagem alegórica e o coro trágico.
d) Interprete o discurso da personagem: no plano geral e no plano das alterna-
tivas (o Norte da África) e o seu significado.

90
Classicismo: Camões
lírico e épico

Referências

CAMÕES, Luis de. Rimas. Texto estabelecido e prefaciado por Álvaro Júlio da Costa
Pimpão. Coimbra: Almedina, 1994.

_______. Os Lusíadas. Edição organizada por Emanuel Paulo Ramos. Porto: Porto
Editora, s.d.

CIDADE, Hernani. Luís de Camões - o lírico. 3. ed. Lisboa: Presença, 1992.

______. Luís de Camões - o épico. 3. ed. Lisboa: Bertrand, 1968.

CORTEZ, Clarice Zamonaro. O retrato feminino como um cânone do século XVI


na poesia camoniana. Assis, 1999. Tese de Doutorado.

SARAIVA, António José. Luis de Camões - estudo e antologia. 2. ed. Lisboa:


Publicações Europa-América, 1972.

Anotações

91
LITERATURA
PORTUGUESA

Anotações

92
4 Outros autores
importantes

INTRODUÇÃO
A Literatura Portuguesa, ao longo de seus mais de oitocentos anos de expressão
criadora, integrou-se, em linhas gerais, à dinâmica dos movimentos literários mais sig-
nificativos que caracterizam a cultura ocidental, tendo, frequentemente, a Inglaterra e,
especialmente, a França como modelos mais imediatos e como influência mais direta.
É preciso registrar, no entanto, que muitas dessas tendências estéticas chegaram com
certo “atraso” a Portugal e foram, com grande frequência, “aclimatadas” a condições
histórico-sociais específicas e ao rico imaginário lusíada, o que nos permite observar,
ao mesmo tempo, as convergências de sua expressão em relação a estes modelos ar-
tísticos e as singularidades que a diferenciam no conjunto das literaturas européias.
Evidentemente, a própria questão da língua precisa ser considerada como um dos
aspectos fundamentais dessa “singularização”, já que a linguagem dá forma expressiva
específica à visão de mundo e aos traços culturais mais genuínos de um povo, de uma
Nação – suas tradições, sua história, sua forma de se relacionar com o espaço (a parti-
cular geografia portuguesa, marcada pela presença do mar como matriz fundamental
de seu imaginário e de sua “vida prática”, já que determinou, por exemplo, a expansão
ultramarina do século XVI) e com o tempo (que irá definir, por exemplo, o famoso
tema da saudade como um dos mais característicos da literatura portuguesa).
Diante desse quadro, a apresentação dos autores que compõem este capítulo in-
tenta dar uma visão geral, mas nem por isso menos representativa, da evolução1 da li-
teratura portuguesa, em consonância com o movimento mais geral das idéias artísticas
no mundo europeu. Nesse sentido, os autores escolhidos para compô-lo destacam-se
inegavelmente nos contextos em que produziram suas obras, mas elegê-los significa

1 O termo evolução é aqui usado no sentido de um movimento que determina a passagem de


uma posição a outra, sem que isso implique julgamento de valor progressivo de uma “posição”
(neste caso, de um movimento estético) em relação a outra.

93
LITERATURA também deixar de lado outros tantos que poderiam, na avaliação de outros leitores,
PORTUGUESA
melhor caracterizar a criação literária em Portugal. Assim, recomenda-se ao aluno que
não deixe de também interessar-se por nomes como os de Pe. Vieira, Bocage, Alexan-
dre Herculano, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Fialho de Almeida, Camilo
Pessanha, José Régio, Miguel Torga, Carlos de Oliveira, José Cardoso Pires, Antonio
Lobo Antunes e tantos outros que, em seu próprio tempo, contribuíram enormemente
para a edificação de uma literatura tão intensa e saborosa como a portuguesa.

I - Almeida Garrett e Eça de Queirós


O século XIX será marcado, em Portugal como em toda a Europa, por dois impor-
tantes movimentos literários que darão corpo a uma nova visão de mundo e a um novo
posicionamento do homem diante de seu tempo e no seio da sociedade em que vive.
Estes dois movimentos – o Romantismo na primeira metade do século e o Realismo/
Naturalismo na segunda metade, traçados estes limites cronológicos de forma eviden-
temente simplificadora2 – terão como marco histórico precursor e determinante de
um novo código de valores e de posicionamento social a Revolução Francesa, que,
trazendo em seu bojo a ascensão de uma nova classe social, a burguesia, determina
não só uma nova relação entre o escritor e seu público como, em função disso, uma
nova forma de expressão artística, distante das regras clássicas até então vigentes e
cada vez mais livre, aproximando-se a linguagem do registro coloquial, que dará voz
a novos temas, mais “antenados” com os interesses e com o “estar no mundo” desse
público burguês.
Antonio José Saraiva (1972, p. 54) afirma que “[o] Romantismo é um amplo mo-
vimento que abrange numerosas literaturas e um longo período histórico. Apresenta
variados aspectos e variadas formas de literatura para literatura e de época para época,
aspectos e formas que são até contraditórios ente si.” No entanto, não deixa de res-
saltar que, mesmo diante dessa diversidade, a dois aspectos se costuma dar um relevo
especial, “pela importância que assumem nos géneros literários mais típicos da época
romântica (historiografia, ficção histórica, ficção e investigação de objecto sociológico,

2 “Na verdade, as escolas ‘realistas’ e ‘naturalistas’ sucedem às escolas ‘românticas’ no sentido


restrito, mas pode dizer-se que o Romantismo, em sentido lato, as abrange a todas e só chega
ao seu termo no final do século XIX, quando surge o Simbolismo. Os escritores realistas e na-
turalistas não trazem alterações fundamentais quanto ao estilo; e as suas relações com o público,
a natureza mesma deste público, são as já características dos escritores que os precedem. Zola,
Geoge Eliot, tal como Hugo e Michelet, consideram-se antes de tudo semeadores de ideias,
medem o valor da palavra pelo poder comunicativo, apreciam os grandes efeitos, têm a cons-
ciência de desempenhar uma autoridade espiritual, estão animados de confiança no Progresso”
(SARAIVA; LOPES, 1970, p. 680).

94
romance ou poema de fundo autobiográfico, memorialismo, lirismo egocêntrico): o Outros autores
importantes
historicismo e o individualismo” (SARAIVA; LOPES, 1970, p. 674).
O Romantismo português não fugirá a esta regra: a poesia lírica, convencionalmen-
te associada à expressão da individualidade, e o romance histórico serão os gêneros
mais cultivados durante a prevalência do ideário romântico em Portugal, e justamente
por isso serão aqui representados, tomando-se Almeida Garrett como autor modelar,
nesse sentido. No primeiro caso, o da poesia lírica, o que iremos ressaltar é a presença,
na obra de Garrett, da ironia romântica. Conceito sediado no mundo alemão, uma
vez que parte da filosofia do idealismo transcendental proposto por F. Schlegel na re-
vista Athenaeum, ainda no século XVIII, constitui não apenas uma tendência ou uma
característica do Romantismo, mas o “fundamento de uma nova forma de literatura
que se queria uma diferente visão do mundo”, segundo defende M. L. Ferraz ao definir
o verbete no Dicionário do Romantismo Literário Português (1997, p. 107 ).
Trata-se de um processo discursivo em que o autor/enunciador questiona a sua pró-
pria prática literária, para colocá-la em causa. Embora manifeste-se em “antecedentes
ilustres”, como o teatro de Shakespeare e o Dom Quixote de Cervantes, não sendo,
portanto, “exclusividade” do Romantismo, torna-se central como problema da estética
romântica – daí constituir-se como procedimento muito característico da ficção da
época e, como tentaremos demonstrar na nossa leitura das Folhas Caídas, também
da criação poética. Ferraz chega mesmo a admitir que o conceito de ironia romântica
estabelece, se visto à distância, os próprios limites do Romantismo: “numa literatura
avessa a inscrições filosóficas, como foi a portuguesa do Oitocentos, o que continua
a ser mais significativo e tem consequências visíveis nos momentos históricos subse-
quentes radica na problemática da ironia romântica” (FERRAZ, 1997, p. 23).
Disso decorre a própria possibilidade de considerarmos a modernidade de Almei-
da Garrett, já que a presença da ironia em suas obras irá suplantar sua contingência e
torná-las objetos significativos para uma reflexão teórica sobre o que se define como
uma suspensão da ilusão, já que o escritor mostra-se como artífice de seu texto, reve-
lando os bastidores da escrita e assumindo-se explicitamente como sujeito criador do
“objeto” literário. Desta forma, não deixa de expressar a sua subjetividade, mas num
sentido diverso ao do confessionalismo tão frequentemente associado à expressão
romântica do eu: o que o poeta faz é já trazer à cena a possibilidade do fingimento
poético, de “fingir que é dor a dor que deveras sente”, síntese expressiva dessa ironia a
ser tão maximamente proposta, no século seguinte, por Fernando Pessoa.
Antonio José Saraiva afirma que “Garrett mascara-se quase constantemente”. Tudo,
nele, “pode ser um disfarce” (1972, v. I, p. 87). É a partir dessa proposição que ire-
mos, então, refletir sobre a obra poética de Garrett, mostrando, na sequência, como

95
LITERATURA também em sua narrativa histórica se manifesta a ironia romântica. E aí ainda teremos
PORTUGUESA
oportunidade de refletir sobre o segundo aspecto que, como vimos acima, Saraiva defi-
ne como característico do Romantismo: o historicismo. Literariamente, esta tendência
aparece vinculada especialmente ao modelo do romance histórico instituído por Wal-
ter Scott no final do século XVIII; em Portugal, este historicismo tem em Garrett e em
Alexandre Herculano os seus expoentes máximos. Ambos os escritores atuaram viva-
mente nos assuntos mais candentes de seu tempo, tendo sido, inclusive, participantes
ativos das rebeliões que opuseram os liberais comandados por D. Pedro IV de Portugal
(e I do Brasil) e seu irmão D. Miguel, absolutista. Por conta disso, viram-se também
perseguidos e passaram várias temporadas no exílio, na Inglaterra e na França, o que
propiciou o contato com as novas idéias estéticas que, naqueles países, já assentavam o
Romantismo. O que é interessante notar aqui é que esta vertente da narrativa histórica
mostra o empenho dos escritores românticos em refletir não só sobre as bases históri-
cas da Nação mas também sobre seu próprio tempo, já que entendiam a história como
processo, como uma relação de causas e consequências que faziam de Portugal aquilo
que ele era então, impulsionando-os a acreditar nas transformações futuras, na idéia
de um progresso constante e inelutável, para o qual sentiam-se compelidos a colabo-
rar através da atuação pública e da criação literária. Voltar-se para o passado da Nação
jamais significou, para eles, fuga ou desinteresse pelo tempo presente. Muito ao con-
trário: deu-lhes ensejo a que expressassem ficcionalmente a sua reflexão sobre o seu
tempo, tirando do passado lições a serem aprendidas por todos, governantes e povo,
a fim de que Portugal pudesse acompanhar a marcha civilizatória do Progresso, tão
cara àqueles tempos. Estas ideias estão cabalmente expressas nas Viagens na minha
terra, de Garrett, e são também reconhecíveis no seu romance O arco de Sant’Anna,
analisado a seguir.
Lembramos, enfim, a importância que Garrett teve como um dos maiores incenti-
vadores do restabelecimento do teatro em Portugal, não só como autor da peça mais
importante de todo o século XIX, Frei Luís de Sousa, mas como criador do Teatro D.
Maria I, onde atuou como diretor, dramaturgo, encenador e até como ator (represen-
tando, por exemplo, o personagem Telmo Pais do Frei Luís de Sousa). Isso nos parece
evidenciar que, na literatura de Garrett, esvaem-se os limites entre os gêneros – outra
das principais características da estética romântica, a opô-la às rígidas convenções clás-
sicas –, o que nos permite falar de uma poesia dramática ou de um drama lírico sem
que isso pareça improcedente.
Eça de Queirós, por seu turno, destaca-se como um dos maiores escritores da
língua portuguesa de todos os tempos. Seus romances são o que de melhor a litera-
tura portuguesa do século XIX produziu. Crítico mordaz da sociedade lusitana de seu

96
tempo, já quando exercia o jornalismo de opinião, n’As Farpas, deixava evidente seu Outros autores
importantes
senso de humor e sua lúcida reflexão sobre as mazelas morais e políticas da realidade
em que vivia, ao mesmo tempo em que afiava um estilo em que a ironia predominava.
“Homem do mundo”, diplomata por profissão, viveu muitos anos fora de Portugal, o
que lhe permitiu um olhar de longe que acentuou ainda mais a pequenez do seu país,
dominado por uma burguesia que insistia em fazer de uma Lisboa provinciana um
arremedo melancólico de Paris, então modelo de civilização, modernidade e cultura.
Cria, então, a sua Bovary, a Luísa de O Primo Basílio, corrompida pelas leituras ro-
mânticas, cujo embate psicológico com a criada Juliana – uma das personagens mais
intrigantes saídas da “forja” de Eça – a levará à morte como castigo. Cria, também, a
“saga” de Os Maias, obra-prima que acompanha três gerações de uma família marcada
por tragédias amorosas; este romance apresenta um dos mais completos painéis da
alta sociedade oitocentista, urbana, “civilizada”, corroída em suas entranhas. Eça não
deixou de retratar também a sociedade aldeã, em O crime do Padre Amaro, igual-
mente sujeita à degenerescência moral que tanto o incomodava. No final de sua vida,
amorosamente cria, no Gonçalo de A Ilustre Casa de Ramires, sua metonímia de
Portugal3, dando-se por “vencido”: sua crítica mordaz não “regenerou” o mundo, mas
certamente fez dele um escritor que merece ser lido sempre.
De Eça de Queirós analisaremos o conto “Civilização”, narrativa que posteriormen-
te Eça ampliou e “transformou” no romance A cidade e as serras. Nesse conto ma-
nifestam-se os traços mais característicos de seu estilo, bem como uma postura crítica
diante da organização social e das promessas ilusórias da modernidade que encami-
nham a obra de Eça para uma reconciliação com seu país, idealizado na simplicidade e
rusticidade da vida no campo, a que Jacinto, este personagem inesquecível, se rende.

3 “- Talvez se riam, mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a


doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o senhor Padre Soeiro... Os fogachos e entu-
siasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se
filia à sua ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos
de muita honra, uns escrúpulos quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre
a exagerar até a mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil.
A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no
velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar,
de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de
melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o
acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até aquela
antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para
a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
- Quem?...
- Portugal.” (QUEIRÓS, 1973, p. 227).

97
LITERATURA
PORTUGUESA

Referências

FERRAZ, M. L. Ironia romântica. In: BUESCU, H. C (Ed.). Dicionário do


romantismo literário português. Lisboa: Caminho, 1997.

QUEIRÓS, Eça de. A ilustre casa de Ramires. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1973.

______. Idealismo e realismo: Literatura comentada. São Paulo: Abril Educação,


1980. p. 13-16.

SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 6. ed.


Porto: Porto Editora, 1970.

______. Para a História da cultura em Portugal. Mem Martins: Europa-América,


1972. 2 v.

Proposta de Atividades

1) Para complementar as breves informações dadas sobre o Romantismo e sobre as especifi-


cidades do contexto em que se insere, sugere-se ao aluno que realize uma pesquisa biblio-
gráfica sobre o tema, registrando por escrito os dados mais relevantes sobre os tópicos que
seguem:
a) as origens do Romantismo;
b) as características gerais de sua proposta estética;
c) o Romantismo em Portugal: condições histórico-sociais, limites cronológicos, principais
autores e características mais específicas das fases do movimento que representam.

2) O artigo “Idealismo e Realismo”, publicado nas Cartas Inéditas de Fradique Mendes,


foi concebido por Eça de Queirós como prefácio à segunda edição de O crime do Pa-
dre Amaro, mas apenas alguns trechos dele foram aproveitados para a “Nota à segunda
edição” que antecede aquele romance. Nele, o escritor opõe os princípios ideológicos e
estéticos de ambos os movimentos, ressaltando a verdade da representação realista em
detrimento da imaginação romântica. Esta espécie de “declaração de princípios estéticos
da arte realista” é de leitura muito interessante; dela destacamos alguns trechos:

98
Agora, temos a escola realista! Outros autores
importantes
Não – perdoem-me - não há escola realista. Escola é a imitação sistemática dos pro-
cessos dum mestre. Pressupõe uma origem individual,  uma retórica ou uma maneira
consagrada. Ora, o naturalismo não nasceu da estética peculiar dum artista; é um mo-
vimento geral da arte, num certo momento da sua evolução. A sua maneira não está
consagrada, porque cada temperamento individual tem a sua maneira própria: Daudet
é diferente de Flaubert, como Zola é diferente de Dickens. Dizer ‘escola realista’ é tão
grotesco como dizer ‘escola republicana’. O naturalismo é a forma científica que toma
a arte, como a república é a forma política que toma a democracia, como o positivismo
é a forma experimental que toma a filosofia.
Tudo isto se prende e se reduz a esta fórmula geral: que fora da observação dos fatos e da
experiência dos fenômenos, o espírito não pode obedecerr nenhuma soma de verdade.
Outrora uma novela romântica, em lugar de estudar o homem, inventava-o. Hoje o
romance estuda-o na sua realidade social. Outrora no drama, no romance, concebia-
se o jogo das paixões a priori; hoje analisa-se a posteriori, por processos tão exatos
como os da fisiologia. Desde que se descobriu que a lei que rege os corpos brutos é
a mesma que rege os seres vivos, que a constituição intrínseca duma pedra obedeceu
às mesmas leis que a constituição do espírito de uma donzela, que há no mundo uma
fenomenalidade única, que a lei que rege os movimentos dos mundos não difere da lei
que rege as paixões humanas, o romance, em lugar de imaginar, tinha simplesmente
de observar. [...] A arte tornou-se o estudo dos fenômenos vivos e não a idealização das
imaginações inatas. [...]
Toda a diferença entre o idealismo e o naturalismo está nisto. O primeiro falsifica, o
segundo verifica (QUEIRÓS, 1980, p. 13;15).

3) Feita a leitura, responda (se necessário, amplie sua pesquisa):


a) Por que o escritor afirma que não há uma escola realista?
b) Em que diferem os românticos e os realistas em sua maneira de ver o homem, objeto
da representação literária?
c) “O romance, em lugar de imaginar, tinha simplesmente de observar.” Há uma relação
entre esta afirmação e as teorias cientificistas que embasaram o realismo? Por quê? Quais
são estas teorias?

Anotações

99
LITERATURA
PORTUGUESA

Anotações

100
5 Almeida Garrett
e a poesia de
Folhas Caídas

- aqui votado
Fica este livro – confissão sincera
Da alma que a ti voou e em ti só ‘spera
Almeida Garret

Folhas Caídas, volume publicado em 1853, é considerado por grande parte da


crítica como a mais importante obra poética de Almeida Garrett. Inicialmente, o que
este conjunto de poemas sugere a nós, leitores (e que pode ser percebido já nos versos
finais do poema que abre o livro – “Ignoto Deo” - , colocados aqui como epígrafe), é
que estamos diante do drama íntimo do poeta, de sua aventura existencial e de suas
desventuras amorosas, em especial, que serão dadas a conhecer.
Esta exposição do poeta e a consequente sugestão de cumplicidade entre ele e
o leitor, intencionalmente buscada por Garrett (e podemos pensar até mesmo numa
sugestão de certa indiscrição por estarmos todos nós penetrando nos segredos mais
guardados do sujeito que liricamente ordena sua experiência amorosa, partilhando-a
conosco) são reforçadas por outra característica também já apontada pela leitura crí-
tica das Folhas Caídas: a sua teatralidade. David Mourão-Ferreira, num importante
estudo sobre a obra, publicado pela primeira vez em 1954, examina de forma bastante
cuidadosa as que considera linhas de força da organização do volume, e a primeira que
destaca é justamente este pendor dramático de Garrett, visível em qualquer dos gêne-
ros em que se expressasse. Se, com o Romantismo, a lei dos gêneros herdada da tra-
dição clássica é efetivamente posta em questão, e é reivindicada a “originalidade” das
formas híbridas, Garrett consuma esta fusão como uma encenação da escrita poética.
E o que é colocado em cena, efetivamente, nesses poemas? O jogo, a ambiva-
lência entre a confissão e a simulação do “eu”, entre realidade e invenção; estas
dualidades são tornadas matéria poética, ao mesmo tempo revelando e resguardando
sentimentos atribuíveis ao sujeito lírico e instalando o espaço dramático da repre-
sentação do eu, quer se considere o conjunto dos poemas que compõem o livro,

101
LITERATURA quer se tomem alguns textos em que esta dramaticidade é observável de forma mais
PORTUGUESA
significativa. Em outras palavras: pode-se dizer que, nestes poemas, se expressa a
tensão que envolve o sujeito diante de sua ‘verdade’ psicológica, mas também, e
principalmente, se pode refletir, a partir deles, sobre a ilusão referencial: o poeta
usa estratégias de construção do texto poético que pretendem causar no receptor a
impressão de que ele está, de fato, se confessando, se expondo incondicionalmente,
relatando fatos e emoções ‘verdadeiras’, fazendo-nos esquecer de que estamos diante
de um trabalho de elaboração estética. David Mourão-Ferreira, no texto a que já nos
referimos, identifica nesse procedimento de Garrett uma “alta comédia muito bem
representada para simular o carácter involuntário – e fatal – das confidências amoro-
sas que lá se fazem” (1981, p. 58).
Este mascaramento da intencionalidade do discurso (querer fazer-se passar por
aquilo que não é) é característica definidora da ironia. No Romantismo, a ironia é
menos um artifício retórico que um elemento constitutivo de sua própria concepção
de mundo e de literatura; é aquilo que garante ao poeta a sua liberdade de dizer outra
coisa, de afirmar o poder criador da linguagem, capaz de instaurar a tensão, a ambi-
guidade entre o real e o imaginário, entre a arte e a vida.
Para F. Schlegel1, a ironia é “[...] a única dissimulação absolutamente involuntária e,
no entanto, refletida [...] Nela tudo deve ser brincadeira e seriedade, expansão sincera
e profunda dissimulação[...]” (apud Brait, 1996, p. 26).
Enfatizando, portanto, este aspecto lúdico da criação poética associado ao jogo
que se estabelece entre confissão e dissimulação é que analisaremos alguns poemas
das Folhas Caídas, tratando a ironia como elemento formador do discurso poético,
indissoluvelmente atrelada à ambiguidade que é característica desse discurso.

O POEMA EM CENA
Aquilo que o projeto estético do realismo viria combater em nome da justiça e
da verdade – a “arte falsa”, a distância entre o ser e o parecer, entre o objeto e sua
representação – parece mostrar-se como o traço mais interessante para uma análise
das Folhas Caídas. O desafio da obra estaria, em nossa hipótese de análise, na con-
cepção de criação literária em que se fundamenta: a percepção de que a arte é artifício,
“artefazer”, o que implica um arranjo estético dos dados da experiência individual
que já a transforma em criação, em ficção. Assim, à sugestão da “confissão sincera” se
sobrepõem as “sombras” da dúvida, da ambiguidade, do fingimento, o que amplia a

1 Friedrich von Schlegel (10 de março de 1772 - 11 de janeiro de 1829) foi poeta, crítico,
filósofo e tradutor alemão.

102
distância e as contradições entre o ser e o parecer e amplia, também, as possibilidades Almeida Garrett e a
poesia de Folhas Caídas
de leitura das Folhas Caídas, que é o que nos interessa mostrar, saindo da leitura mais
cômoda que se pode fazer dos poemas, tratando-os como “intimistas”, “confessionais”.
Tratá-los assim pode ser redutor, se considerarmos o alto nível de elaboração artística
e de consciência sobre o fazer estético que Garrett, figura exponencial do Romantismo
português, atingiu em sua literatura.
Existe, no entanto, e não podemos passar ao largo disso, uma espécie de pacto
romântico do “eu confesso” que é bastante característico da produção literária daquele
momento e que exige que sejam atenuados – ou dissimulados – os procedimentos
que apontam para uma construção ficcional do sujeito poético. É como se o poeta, ao
mesmo tempo, declarasse sua sinceridade absoluta e desse uma “piscadela” ao leitor,
confundindo-o, brincando com a sua capacidade de perceber exatamente o jogo em
que está envolvido. Estas “piscadelas” podem se manifestar textualmente, por exem-
plo, na própria organização do conjunto de poemas, na própria ordem em que o poeta
os dispõe, já que isso tem também uma intenção. O poeta pode, até mesmo, criar uma
impressão de negligência, de desordem aparente que camufla, no entanto, a mais rigo-
rosa ordem. É o que parece acontecer com as Folhas Caídas.
Pensemos, então, na organização das Folhas Caídas, na sua “ordem interna”,
como o primeiro passo efetivo desse desvendar do trabalho estético refinado que
constitui o conjunto dos poemas de Garrett. O volume é constituído por quarenta
e três poemas divididos em “Livro Primeiro” e “Livro Segundo”; “Ignoto Deo”, como
já dissemos, é o poema-dedicatória que o abre e que exerce a função de definir a
motivação confidencial da obra – ou seja, intenta levar o leitor a crer que está diante
de um sincero extravazamento de alma do poeta2. Dois aspectos são relevantes para
indicar a presença da ironia romântica já na concepção deste poema de abertura: em
primeiro lugar, a própria instalação do “pacto irônico”. A ironia tem como fundamento
uma relação dialógica, pois mobiliza todas as instâncias participantes do processo co-
municativo: o enunciador, que marca intencionalmente o seu discurso como irônico;
o enunciatário, que necessariamente deve decodificar como irônico esse discurso; o
referente, que é aquilo que a ironia põe em questão. Na sequência desta análise vere-
mos como essas três instâncias são mobilizadas, começando pelo enunciatário: se o

2 É importante notar, todavia, o cuidado expresso por Garrett já na primeira edição do livro,
cuja “Advertência” previne o leitor no sentido de que não deveria querer adivinhar no “deus des-
conhecido” a quem o livro é dedicado “Alguma divindade meio velada com cendal transparente,
que o devoto está morrendo que lhe caia para que todos a vejam bem clara”. É possível perceber
o tom provocativo e irônico desta advertência.

103
LITERATURA pacto irônico supõe a conivência entre enunciador e enunciatário, este último deve
PORTUGUESA
ser capaz de transcender a literalidade da mensagem dada para vislumbrar, justamente
pelas marcas que o enunciador deixa, as significações ao mesmo tempo sugeridas e
escondidas por esse espaço significante (Brait, 1996). Ao instaurar a impressão – ou,
dizendo em termos mais precisos, o efeito de sentido - da confissão, o eu-lírico chama
o leitor a conhecê-lo, mas esse conhecimento do sujeito que se expressa e de seu caso
amoroso será tensionado pela desconfiança que esta mesma abertura sugere, descon-
fiança que assenta na natureza irremediavelmente representativa da linguagem, que
vai ser acentuada pela moldura dramática dos poemas, sugerindo uma encenação,
como já adiantamos.
Como o eu-lírico marca, então, em Folhas Caídas, a ambiguidade de seu discurso
supostamente confessional? Vejamos o segundo poema do volume: “Adeus!”

Adeus!, para sempre adeus!


Vai-te, oh!, vai-te,
que nesta hora
Sinto a justiça dos Céus
Esmagar-me a alma que chora.
Choro porque não te amei,
Choro o amor que me tiveste;
O que eu perco, bem no sei,
Mas tu... tu nada perdeste:
Que este mau coração meu
Nos secretos escaninhos
Tem venenos tão daninhos
Que o seu poder só sei eu.

Oh!, vai... para sempre adeus!


Vai, que há justiça nos Céus.
Sinto gerar na peçonha
Do ulcerado coração
Essa víbora medonha
Que por seu fatal condão
Há-de rasgá-lo ao nascer:
Há-de, sim, serás vingada,
E o meu castigo há-de ser
Ciúme de ver-te amada,
Remorso de te perder.

Vai-te, oh!, vai-te, longe, embora,


Que sou eu capaz agora
De te amar - Ai!, se eu te amasse!
Vê se no árido pragal
Deste peito se ateasse
De amor o incêndio fatal!
Mais negro e feio no Inferno
Não chameja o fogo eterno.

Que sim? Que antes isso? - Ai, triste!

104
Não sabes o que pediste. Almeida Garrett e a
Não te bastou suportar poesia de Folhas Caídas
o cepo-rei; impaciente,
Tu ousas a deus tentar
Pedindo-lhe o rei-serpente!

E cuidas amar-me ainda?


Enganas-te: é morta, é finda,
Dissipada é a ilusão.
Do meigo azul de teus olhos
Tanta lágrima verteste,
Tanto esse orvalho celeste
Derramado o viste em vão
Nesta seara de abrolhos,
Que a fonte secou. Agora
Amarás... sim, hás-de amar,
Amar deves... Muito embora...
Oh!, mas noutro hás-de sonhar
Os sonhos de oiro encantados
Que o mundo chamou amores.

E eu réprobo... eu se o verei?
Se em meus olhos encovados
Der a luz de teus ardores...
Se com ela cegarei?
Se o nada dessas mentiras
Me entrar pelo vão da vida...
Se, ao ver que feliz deliras,
Também eu sonhar ...
Perdida, perdida serás - perdida.

Oh!, vai-te, vai, longe, embora!


Que te lembre sempre e agora
Que não te amei nunca... ai!, não:
E que pude a sangue-frio,
Covarde, infame, vilão,
Gozar-te - mentir sem brio,
Sem alma, sem dó, sem pejo,
Cometendo em cada beijo
Um crime... Ai!, triste, não chores,
Não chores, anjo do Céu,
Que o desonrado sou eu.

Perdoar-me, tu?... Não mereço.


A imundo cerdo voraz
Essas pérolas de preço
Não as deites: é capaz
De as desprezar na torpeza
De sua bruta natureza.
Irada, te há-de admirar,
Despeitosa, respeitar,
Mas indulgente... Oh!, o perdão
É perdido no vilão,
Que de ti há-de zombar.

105
LITERATURA Vai, vai... para sempre adeus!
PORTUGUESA Para sempre aos olhos meus
Sumido seja o clarão
De tua divina estrela.
Faltam-me olhos e razão
Para a ver, para entendê-la:
Alta está no firmamento
De mais, e de mais é bela
Para o baixo pensamento
Com que em má hora a fitei;
Falso e vil o encantamento
Com que a luz lhe fascinei.
Que volte a sua beleza
Do azul do céu à pureza,
E que a mim me deixe aqui
Nas trevas em que nasci,
Trevas negras, densas, feias,
Como é negro este aleijão
Donde me vem sangue às veias,
Este que foi coração,
Este que amar-te não sabe
Porque é só terra - e não cabe
Nele uma ideia dos Céus ...
Oh!, vai, vai; deixa-me, adeus!

Este poema parece-nos ser o mais efetivamente dramático de Folhas Caídas.


Isto porque o poeta cria nele um efeito de representação, de encenação: o leitor
“assiste” ao drama do eu-lírico como se este objetivasse, através de um monólogo
em cena, a sua confissão íntima. Verifica-se, entretanto, que nele se constrói um
jogo retórico em que, pela auto-ironia e pelo uso da técnica do falso diálogo, o
eu-lírico se justifica e se redime, acabando por realizar uma autocrítica na verdade
muito complacente, porque indefine a responsabilidade pela emissão do enuncia-
do. Observem-se estes versos: “Que sim? Que antes isso? – Ai, triste/Não sabes o que
pediste”. E estes outros: “E cuidas amar-me ainda?/Enganas-te [...]” Quem é que diz
o que vai dito, afinal? Como a voz do interlocutor só é ouvida pela mediação da voz
do eu-lírico, este sujeito produtor do discurso tem, portanto, total controle sobre
aquilo que pretende “confessar” e sobre aquilo que deseja dar a conhecer da fala do
“outro”: revela-se até onde quer revelar-se, além de instalar a desconfiança do leitor
a respeito da autenticidade dessa “outra voz”.
Esta técnica de apropriação do discurso do interlocutor pelo sujeito lírico esca-
moteia a versão do outro à medida em que a única verdade dada pelo texto ao leitor
é aquela que parte do ponto de vista do “eu”. Por outro lado, a técnica do “falso
diálogo”garante, paradoxalmente, também o crédito à “expressão confessa”, pois
outra de suas características de efeito é aquela que remete a um discurso “impensa-
do”, imediato, “no calor da hora”, apoiado em réplicas a intervenções – inauditas- do

106
interlocutor. Contribuem, ainda, para este efeito de “veracidade” do discurso o atro- Almeida Garrett e a
poesia de Folhas Caídas
pelo, a fragmentação e a inconclusão dos versos, marcados pela presença de inúme-
ras reticências, bem como a simulação de oralidade nele presente, manifesta no tom
declamatório e interrogativo dos versos.
A “encenação” e a dramaticidade dos versos simulariam, então, a possibilidade
criada pelo eu lírico de olhar-se como se fosse um outro, ao mesmo tempo em que
olha o outro e seu “caso amoroso”. Esta simulação, este parecer ser é uma estraté-
gia irônica. É possível, ainda, a identificação de outras marcas de ironia no poema,
a começar pelo “rebaixamento” a que o eu lírico se submete, em contraposição
à promoção do interlocutor (“Perdoar-me, tu? ... Não mereço”), estratégia que se
fundamenta no sentido primeiro da palavra ironia: nos diálogos socráticos, o eíron é
definido como o homem que se censura, que se rebaixa e que finge não saber. É o que
nos ensina Northrop Frye em seu livro Anatomia da crítica:

O termo ironia, portanto, indica uma técnica de alguém parecer que é menos
do que é, a qual, em literatura, se torna muito comumente uma técnica de
dizer o mínimo e de significar o máximo possível, ou de modo mais geral, uma
configuração de palavras que se afasta da afirmação direta ou de seu próprio e
óbvio sentido (FRYE, 1973, p. 46).

Parece-nos, então, que a avaliação sobre o merecimento – ou não – do perdão


da amada, feita pelo eu lírico, é intencionalmente ambígua, bem como todo o jogo
entre o que é e o que parece ser que dinamiza este longo poema. Observemos,
neste sentido, os seguintes versos: “O que eu perco bem no sei,/Mas tu... nada
perdeste:/Que este mau coração meu/Nos secretos escaninhos/Tem venenos tão
daninhos/Que o seu poder só sei eu”. Ao culpar-se tanto, rebaixando-se, o poeta
na verdade induz a complacência do interlocutor, sem, no entanto, pedir explici-
tamente isso – ao contrário, manifestando abertamente o desejo de que a amada
“vá”. É este jogo que estamos qualificando como irônico, capaz, também, de criar
a ambiguidade necessária à suspeita sobre a confessionalidade do discurso que no
poema se configura.
Como passo adiante do comentário acerca da organização interna de Folhas
Caídas, voltemos a recuperar a análise já referida de David Mourão-Ferreira: ele
distingue, na obra, duas séries de poemas – os de circunstância mundana e os
de circunstância amorosa, advertindo para o fato de que desprezar os poemas de
circunstância mundana implica uma traição às intenções últimas do autor, que
os coloca exatamente como atenuantes cujo intuito é o de abrandar as tensões
provocadas pelos inquietantes poemas da segunda série (os de circunstância amo-
rosa). Estes, os “amorosos”, também são dispostos de forma interessante: “Adeus!”,

107
LITERATURA o poema que acabamos de ver, segundo do livro, marca o fim do drama íntimo,
PORTUGUESA
cujos antecedentes serão só na sequência conhecidos, por meio de um conjunto
de poemas que Mourão-Ferreira agrupa sob a denominação de tríptico narrativo,
formado por “Quando eu sonhava”, “Aquela noite” e “O anjo caído” ( Vê-se logo que
a concepção dessa análise de Folhas Caídas prevê um leitor que siga, na leitura, a
sequenciação determinada pelos textos – o que nem sempre se dá, efetivamente,
em relação a um livro de poemas).
O primeiro poema do tríptico – “Quando eu sonhava”3 – é um texto curto que
funciona como uma espécie de monólogo de transição entre a técnica dramática do
“Adeus!” e a técnica narrativa (notemos, novamente, as (con)fusões de gêneros na
poesia garrettiana) que será empregada com fôlego pleno no longo poema “Aquela
noite”, que verseja o primeiro encontro: as circunstâncias (uma festa em que abundam
os “amores mundanos”) e o estado de espírito do eu-lírico (triste, melancólico, ten-
tando deixar-se contaminar pela alegria e a “artificialidade” reinantes) que precedem
a aparição da amada:

Minha Júlia, um conselho de amigo;


Deixa em branco este livro gentil:
Uma só das memórias da vida
Vale a pena guardar, entre mil.

E essa n’alma em silêncio gravada


Pelas mãos do mistério há-de ser;
Que não tem língua humana palavras,
Não tem letra que a possa escrever.

Por mais belo e variado que seja


De uma vida o tecido matiz ,
Um só fio da tela bordada,

3 Quando eu sonhava, era assim


Que nos meus sonhos a via;
E era assim que me fugia,
Apenas eu despertava,
Essa imagem fugidia
Que nunca pude alcançar.
Agora, que estou desperto,
Agora a vejo fixar...
Para quê? - Quando era vaga,
Uma ideia, um pensamento,
Um raio de estrela incerto
No imenso firmamento,
Uma quimera, um vão sonho,
Eu sonhava - mas vivia:
Prazer não sabia o que era,
Mas dor, não na conhecia...

108
Um só fio há-de ser o feliz. Almeida Garrett e a
poesia de Folhas Caídas
Tudo o mais é ilusão, é mentira,
Brilho falso que um tempo seduz,
Que se apaga, que morre, que é nada
Quando o sol verdadeiro reluz.

De que serve guardar monumentos


Dos enganos que a esp’rança forjou?
Vãos reflexos de um sol que tardava
Ou vãs sombras de um sol que passou!

Crê-me, Júlia: mil vezes na vida


Eu coa minha ventura sonhei;
E uma só, dentre tantas, o juro,
Uma só com verdade a encontrei.

Essa entrou-me pela alma tão firme,


Tão segura por dentro a fechou,
Que o passado fugiu da memória,
Do porvir nem desejo ficou.

Toma pois, Júlia bela, o conselho:


Deixa em branco este livro gentil,
Que as memórias da vida são nada,
E uma só se conserva entre mil.

É claro que se trata aí dos enganos de amor; mas é fato, também, que o romântico
frequentemente expressa em seu desencanto amoroso um desencanto existencial que
revela aquele deslocamento entre o que é e o que parece ser. Parece-nos haver, então,
nesse poema, uma dissipação da ilusão, da crença em que a linguagem seja capaz de
fixar sentidos (e, por inferência, em sentido contrário, a afirmação de que a criação po-
ética se realiza como busca dessa possibilidade, como tentativa de comunicação e de
conhecimento); embora não houvesse teoricamente definida no Romantismo, ainda, a
noção de autonomia da linguagem frente a significados pré-existentes – a concepção
da expressão literária ainda era fundamentalmente mimética -, a ironia romântica aca-
ba por instrumentalizar um novo entendimento do fazer literário como manifestação
da liberdade individual do poeta de criar sua própria verdade, ainda que em desacor-
do com o “mundo”. O poeta manifesta também sua resistência a convenções formais
e a regras de poetar que, na prática, pode se manifestar pela distância entre o que é
dito e o que o eu lírico pretende que seja entendido. E faz isso pelo discurso irônico,
portanto. É claro que essa estratégia supõe a existência de um leitor capaz de captar
a ambiguidade propositalmente contraditória desse discurso: afinal, o que merece ser
gravado no álbum da memória, da existência, da escrita? Mas se nada vale a pena
permanecer, porque tudo é provisório – o amor, a vida, a palavra -, qual o motivo do
esforço do poeta para fixar essa memória de que Folhas Caídas são o “documento”? E

109
LITERATURA se, na verdade, esse é um discurso ficcionalizado (como a nossa leitura está tentando
PORTUGUESA
demonstrar), então a memória e a escrita não fixam, mas criam?
É por tudo isso que a leitura aqui apresentada baseia-se na hipótese de que o que
está em causa de Folhas Caídas é o próprio estatuto confidencial da poesia, que se
realiza, então, como auto-ironia relativamente ao sujeito lírico que assim se expõe –
e, por extensão, relativamente ao estatuto do próprio discurso poético. Ao afirmar a
autenticidade, a verdade de sua poesia, o poeta acaba ele próprio, por lançar a des-
confiança em relação a este mesmo discurso – desconfiança, como já vimos, calcada
na natureza da linguagem: provisória, multívoca.
Também no “poema mundano” seguinte, “Saudades”4, há um dado que contribui
para a caracterização do discurso irônico, sugerido pelo que nos parece uma desperso-
nalização do sujeito lírico: ele quebra o efeito confidencial porque estrategicamente
desloca o foco da sua atenção, do eu para o outro; embora continue a falar de si, faz
isso em função do outro, nesse poema que acentua o “caráter pedagógico” que já se
delineara no poema “O Álbum”. Lá, o didatismo se manifestava no “conselho de ami-
go”: não escreva no álbum; aqui, no uso da dúvida – entre levar ou não levar o ramo
de saudades – como forma de argumentação (gracioso mote para sobrepor os temas
do individualismo e do nacionalismo que tão caracteristicamente se presentificam na
poesia garrettiana, e que será retomado num curioso poema do “Livro Segundo” – “A
Jovem Americana” - , em que há o deslocamento dos procedimentos da cortesia e do

4 Leva este ramo, Pepita,/De saudades portuguesas;/É flor nossa; e tão bonita/Não na há
noutras devesas.

Seu perfume não seduz,/Não tem variado matiz,/Vive à sombra, foge à luz,/As glórias d'amor
não diz;

Mas na modesta beleza/De sua melancolia/É tão suave a tristeza,/Inspira tal simpatia!...

E tem um dote esta flor/Que de outra igual se não diz:/Não perde viço ou frescor/Quando a
tiram da raiz.

Antes mais e mais floresce/Com tudo o que as outras mata;/Até às vezes mais cresce/Na terra
que é mais ingrata.

Só tem um cruel senão,/Que te não devo esconder:/Plantada no coração,/Toda outra flor faz
morrer.

E, se o quebra e despedaça/Com as raízes mofinas,/Mais ela tem brilho e graça,/É como a flor
das ruínas.

Não, Pepita, não ta dou.../Fiz mal em dar-te essa flor,/Que eu sei o que me custou/Tratá-la
com tanto amor.

110
enlevo amoroso, já que o poema elege como sua musa e interlocutora a liberdade). Almeida Garrett e a
poesia de Folhas Caídas
Mas a ambiguidade, a manifestação das dualidades que já se vinham afirmando
como característica da expressão amorosa nos poemas do “Livro Primeiro” - o viver e
o morrer de amor -, dentre os quais têm destaque os muito conhecidos “Este inferno
de amar”, “Destino” e “Não te amo”, acentua-se no poema final dessa primeira série,
“Víbora”5, em que se conjugam os sentimentos da dissimulação e da ferocidade trágica
de um amor que, para nascer, mata aquele em que é gerado.
Finalmente, é importante destacar, no poema “Retrato”, outro argumento a favor
da leitura que propomos, a qual objetiva enfatizar o estatuto irônico do discurso em
Folhas Caídas: nele, o poeta, travestido de pintor, com instrumentos próprios da es-
crita, no entanto (como faz questão de afirmar), constrói o retrato da amada. Ele ficará
incompleto, porque o poeta não consegue definir se o sorriso amável da musa é “todo
bondade ou se meio é zombaria”, e nestas “duas feições”(ou seja, na ambiguidade do
sorriso) todo o eu – do outro -, toda a alma está:
O retrato não está incompleto: está excessivo. O “a mais” que ele intencionalmente
não restringe, não apaga, é o que determina a sua indefinição. “Fiel como um espe-
lho” – diz o poeta – “é tudo o que nele fiz. E o que lhe falta – que é muito – também
o espelho não diz.”
Confissão? Simulacro? A resposta mais justa parece-nos ser a que identifica esta
tensão, esta ambiguidade entre o ser e o fazer crer como o apelo maior dessas folhas
garrettianas, legadas ao presente (e ao futuro) não pelo acaso, mas como inegável
testemunho da obra de um grande poeta.

O ROMANCE EM CENA

O romance é deste século: se tirou o seu argumento do XIV, foi escrito sob as
impressões do XIX; e não o pode nem o quer negar o autor. Todas as coisas
humanas têm o seu lado torpe, ou feio, ou ridículo. É permitido à arte virá-las
de um ou de outro lado quando quer “rir castigando” (GARRETT, 1963, p. 226).

Além de explicitar a ligação entre os tempos, Garrett levanta a questão, no mes-


mo prefácio à segunda edição de O Arco de Sant’Ana, da “verdade histórica” (que,
para ele, tanto pode advir do registro historiográfico como das “tradições populares

5 Como a víbora gerado,/No coração se formou /Este amor amaldiçoado /Que à nascença o
espedaçou.

Para ele nascer morri; /E em meu cadáver nutrido, /Foi a vida que eu perdi /A vida que tem
vivido.

111
LITERATURA da terra em que nascemos” (GARRETT, 1963, p. 214); por outro lado, o roman-
PORTUGUESA
cista insiste, ainda naquele prefácio, especialmente, em desvincular-se do modelo
do romance histórico, definindo ironicamente o seu como um romance que é um
“esboçozinho”, um “estudo”, um “capricho”, já que “nunca houve escrito menos
pretensioso desde que há escritos”; no entanto, para “satisfazer aos escrupulosos”,
junta ao seu volume, naquela segunda edição, “alguns documentos indispensáveis que
provam haver no presente romance toda quanta verdade histórica um romance pode
suportar, sem cair em pedante e maçador”(GARRETT, 1963, p. 214).
Todo esse “escrúpulo”, no entanto, vai encontrar seu contraponto no modo am-
bivalente pelo qual a história e também a figura e a função do historiador, bem como
a do ficcionista, serão incorporadas à narrativa ficcional. “Já disse Lord Byron que a
verdade era muito mais estranha que a ficção”, afirma o narrador (GARRETT, 1963,
p. 105); a partir daqui já se pode começar a perceber como o comentário sobre essas
relações – entre a história e a ficção – se explicita no romance, numa escrita permeada
pela ironia.
Os acontecimentos narrados transcorrem na cidade do Porto, no século XIV, em
torno do seguinte núcleo: um cavaleiro, tempos atrás, fora acolhido por uma família
judia, após ter sofrido um grave acidente que o deixou entre a vida e a morte; recupe-
rado e “abusando da hospitalidade” oferecida, seduz e engravida Ester, a filha da famí-
lia, desaparecendo em seguida; Ester dá à luz um menino, Vasco. Anos mais tarde, o
cavaleiro torna-se bispo da cidade; despótico, devasso e inescrupuloso, rapta Aninhas,
mulher casada por quem se interessara. Aninhas é a melhor amiga de Gertrudes, noiva
daquele mesmo Vasco. A atitude cruel do bispo repercute por toda a cidade, graças à
ousadia de Gertrudes de espalhar o acontecido e instigar a comoção popular; isso se
torna a gota d’água para que contra o bispo se arme uma revolta, chefiada por Vasco
e alimentada pelo ódio da bruxa de Gaia, na qual se transformara a outrora inocente
Ester. Vitoriosa a rebelião, dá-se o reconhecimento das personagens, uma vez que,
àquela altura, Ester já não conseguia mais ocultar de Vasco o segredo de sua origem.
O bispo, desmascarado, enche-se de pavores e remorsos, já que, sem saber que Vasco
era seu filho, havia nutrido por ele, ao longo dos anos, cuidados de pai, como mentor
intelectual e espiritual que dele fora até então. Submetido o caso ao juízo do rei – o
famoso D. Pedro, o Cru, conhecido por seu aguçado senso de justiça -, que, avisado
pelos rebeldes, assistia disfarçado ao ato religioso em que o desmascaramento se dá, o
bispo é desterrado para Flandres, onde se faz monge e acaba em “santa vida”; quanto
a Ester, abjurou o judaísmo e, com ele, “seus implacáveis e vingativos ódios” – é o que
assegura a narrativa. Por fim, Vasco e Gertrudes se casam, selando a felicidade reinante.
Toda essa história nos é contada a partir da perspectiva de um narrador que, como

112
soldado liberal, está acantonado no Mosteiro dos Grilos, na mesma cidade do Porto, Almeida Garrett e a
poesia de Folhas Caídas
onde descobre um manuscrito. Para “matar o tédio”, reescreve aquela história, intro-
metendo nela seus comentários sobre a situação política, em especial, que vive Portu-
gal naquele momento (os anos da Revolução Liberal) de que o narrador não é apenas
um “mero observador”, mas participante ativo. Essa estratégia permite que a narrativa
se desenvolva jogando com os dois tempos distintos (o XIV em que se passa a ação e o
XIX em que ela é reescrita a partir dos manuscritos antigos). O interessante é que, em
suas entrelinhas, o narrador propõe questões significativas sobre o modo pelo qual a
ficção pode dialogar com a História.
A primeira dessas relações estabelece-se já a partir dos juízos que o narrador vai
manifestando sobre a sua própria fonte histórica, cuja credibilidade – e cuja existên-
cia, na verdade – pode sempre ser contestada, exatamente pelo traço irônico que, o
tempo todo, a narrativa deixa entrever. Ou seja, não temos certeza se, de fato, aquele
manuscrito existiu ou se se trata apenas de uma estratégia narrativa que implica a pró-
pria ficcionalização da (suposta) fonte documental. De todo modo, no romance, é
como absolutamente fiel a suas fontes que o narrador se apresenta, imprimindo a elas,
assim, uma autoridade que se institui pela palavra “douta” e que, obviamente, se pro-
jeta sobre o seu próprio relato. Vejamos o que nos sugere este fragmento do romance:

E Aninhas? E a pobre Aninhas que está no Aljube? O que é feito dela, Sr. Histo-
riador? Deixa-se assim por tanto tempo nas asquerosas inxovias de uma prisão
a uma bela rapariga tão interessante, tão boa, a amiga da nossa Gertrudes, a
Helena enfim desta Tróia, por cujo roubo arde já a invicta cidade nas labaredas
da revolta, da guerra civil, quase? E passam-se capítulos e capítulos – cada qual
mais pequeno, é verdade, mas são muitos – sem nos dizer o descuidado cro-
nista o que é feito dela?
Contesto, amigo leitor; a culpa não é minha. Cervantes não podia ser respon-
sável pelos descuidos e lapsos de Cid-Hamete-Ben-Enjeli. Se Dulcineia está mal
incantada, e tão depressa a vemos trotando na sua burra pelos campos de To-
boso como passeando com suas donzelas nos deliciosos jardins da Cova de
Montezinhos; se o nosso amigo Sancho aparece aqui montado no seu ruço, que
duas páginas antes lhe subtraíra tão subtilmente dentre os calções o honrado
Ginez de Passamonte – é o cronista mouro, não o seu ortodoxo editor, que tem
a culpa desses lapsos.
O mesmo me sucede a mim com esta verídica história do meu Arco. Traduzo
umas vezes, copio outras, segundo a vestustade da linguagem o pede, no pre-
cioso manuscrito que tive a fortuna de achar. E se alguma reflexão ou pondera-
ção minha lhe ajunto em forma de glossa, nunca me meti a alterar a ordem da
história, e sigo fielmente o douto Grilo, a quem devemos estas incomparáveis
memórias que tanto ilustram e ingrandecem a nossa cidade e a história do Se-
nado e povo portucalense (GARRETT, 1963, p. 329, grifos nossos).

É interessante notar o modo pelo qual o narrador diz relacionar-se com as suas
fontes observando–se os termos destacados do fragmento: sua atividade “resume-
se” a editar, traduzir e copiar, como faziam os cronistas antigos (cuja atividade se

113
LITERATURA aproximaria, posteriormente, à do historiador), encarregados de apenas “arranjar”
PORTUGUESA
cronologicamente os fatos históricos, sem permitirem-se qualquer intervenção mais
subjetiva, interpretativa ou criadora, sobre os materiais históricos tratados. É claro que
aqui se vislumbra também a “piscadela” irônica que ao mesmo tempo institui e solapa
a credibilidade destas fontes, até porque a comparação que o narrador faz entre a sua
atividade e a do autor do Quixote mostra exatamente que estamos em pleno domínio
da ficcionalidade. De todo modo, o romance dissimula a invenção, a ficção sob o véu
da autenticidade das fontes citadas
A essa fonte “incontestável”, então, junta-se, como lemos no prefácio ao romance,
a força da tradição oral, que, no arranjo da narrativa, vem manifestada por Briolanja
Gomes, tia de Gertrudes, observadora e relatora fiel, além de prolixa, dos aconteci-
mentos de então (discurso que, evidentemente, só a ficção poderá fixar – ou inventar,
já que a tradição oral fatalmente se perde no tempo se a escrita não a vier recobrir).
Curioso é que o excessivo poder palrador da tia acaba por obstruir – assim assegura
ironicamente o narrador – o registro historiográfico, já que este último não consegue
“competir” com a fineza de detalhes e de ramificações que a história por ela contada
asseguram. Ou seja, ela falava tanto e contava tudo com tanta minúcia que nada mais
restava a ser registrado – e por isso esses acontecimentos não fazem parte do “discurso
histórico oficial”. Assim é que o ficcionista justifica ironicamente, risonhamente, até,
para os “escrupulosos”, a ausência de documentos históricos que efetivamente deem
suporte a sua narração:

É fama que a história de Aninhas e do bispo, contada por ela [Briolanja], era
de nunca acabar. A ponto que, passando assim em tradição, lhe tomaram medo
os cronistas, e por inevitável reacção a escreveram tão sucintamente que mal se
intende, e nem os nomes das pessoas nos conservaram. Se não fosse descobrir
eu o precioso manuscrito dos Grilos, nem o menor particular saberíamos dela
(GARRETT, 1963, p. 194-195).

Além dessas duas formas de registro pela palavra que o narrador incorpora em seu
relato (os manuscritos por ele encontrados no Mosteiro dos Grilos e a tradição oral
perpetuada pela tia Briolanja), e que nos mostram o processo de ficcionalização das
próprias fontes, há ainda as ruínas como “texto”: no romance, o espaço – a rua de
Sant’Ana na cidade do Porto – é assinalado por um signo de ausência: a do Arco, que
existia no século XIV e já não existe mais naquele em que o romance é escrito. Esta au-
sência se torna significativa, já que motiva uma outra sobreposição temporal, assinala-
da no romance: o soldado “de hoje” não conhece a história do lugar por onde passa, o
que justifica, mais uma vez, a necessidade de o romance perpetuar o que ali se passou:

114
Mal pensa o voluntário académico, quando descendo Rua de Sant’Ana abaixo, Almeida Garrett e a
o braço no armão da peça, [...] mal pensa ele que terreno clássico vai pisando, poesia de Folhas Caídas
por que veneráveis padrões históricos vai passando, sem os conhecer, que inte-
ressantíssima cena romântica é essa em que, depois de tantos séculos, novo e
não menos interessante actor, lhe coube vir figurar.
Falta-te, é verdade, ó nobre e histórica Rua de Sant’Ana, falta-te já aquele teu
respeitável e devoto arco, precioso monumento da religião de nossos antepas-
sados.[...]
Caíste pois tu, ó Arco de Sant’Ana, como, em nossos tristes e minguados dias,
vai caindo quanto há nobre e antigo às mãos de inovadores plebeus (GARRETT,
1963, p. 5).

O último período do fragmento destacado acima é um dos muitos que, ao longo


do romance, estabelecem mais abertamente a referida perspectiva histórica, em que,
na narração do passado, o narrador intromete o comentário crítico sobre o presente
da narração.
Se recorrermos à teoria do romance histórico proposta por G. Lukács (1965), veri-
ficaremos a importância que nela adquire a noção de perspectiva histórica, segundo
a qual o romance que se volta para o passado está interessado, de fato, em colocar em
cena todo um processo histórico, uma dinâmica histórica de que o presente é resul-
tante. Por isso é que, da perspectiva lukácsiana, o romance histórico jamais representa
uma fuga ao presente; pelo contrário, está sobejamente interessado no seu tempo.
Disso resulta que não só o conhecimento do presente é decisivo para a compreensão
do passado como o passado é capaz de, em alguma medida, “fazer ver” criticamente
o presente. Daí a estratégia de Garrett, em O Arco de Sant’Ana, de vincular as lutas
liberais e seu ideário à rebelião popular do século XIV, justificando as primeiras, assim,
pela autoridade que o reconhecimento histórico da participação popular nas grandes
mudanças políticas e sociais favorece. Esse “anacronismo”, ainda segundo Lukács, é
necessário para a percepção de que a história é processo; além disso, a ficção, pela sua
liberdade de (re)criação, permite que se estabeleça a comparação entre os tempos,
marcando suas semelhanças mas também suas diferenças, já que o texto literário não
tem compromisso com uma suposta verdade histórica.
Sendo assim, a ficção pode “concentrar” os acontecimentos para melhor caracte-
rizar a dinâmica histórica, elidindo o que é menos significativo; pode intensificá-los
para despertar a consciência histórica; nos termos lukácsianos, temos no romance a
encenação do processo histórico pela apresentação de um microcosmo que generaliza
e concentra: pela singularidade histórica da época tratada, o romance histórico seria
capaz de recriar o devir, o processo histórico, ativando sua função de dar a conhecer
para mover (já que, como intelectual marxista, Lukács acreditava na radical transfor-
mação da sociedade, a ser alcançada pela mobilização consciente das forças popula-
res). A consciência histórica permite questionar a imutabilidade das formas sociais e

115
LITERATURA da ordem existente. Assim, um romance é verdadeiramente histórico quando não fica
PORTUGUESA
fechado sobre um passado voltado para si mesmo, mas, pela justeza de suas análises,
mostra um caminho possível, possuindo em direção ao futuro uma perspectiva – con-
cepção que pressupõe certo “caráter pedagógico” ao entendimento que Lukács dá às
relações ente história e ficção.

A IRONIA, OUTRA VEZ


Embora o termo ironia romântica, segundo M. de Lourdes Ferraz (1997), jamais
tenha sido empregado efetivamente na literatura e na crítica portuguesa do Roman-
tismo, não é possível deixar de reconhecê-la, em sua forma mais característica, na
escrita de Garrett. Entendendo-a, de modo bem simples, em termos de construção
da narrativa, como o mecanismo discursivo pelo qual o escritor reflete sobre a sua
própria prática – ou seja, sobre o processo de criação ficcional -, percebemos que a
ironia permite que o romance “se faça” às vistas do leitor. O diálogo que assim se esta-
belece entre o “autor”-narrador e o receptor do texto tem uma natureza ambivalente:
por um lado, escancara a ficção, ao expor abertamente as hesitações, os desvios, as
interrupções na escrita do romance, mostrando-a como criação que não se nega como
tal; por outro lado, produz ou intensifica um efeito de realidade, de ancoragem da
ficção no real, porque nos faz observadores ou mesmo “cúmplices” da narrativa que se
constrói, trazendo-a para mais perto de nós, acentuando o como se (aquilo que lemos
fosse real).
Esta consciência auto-irônica do escritor que, normalmente, se apresenta como
um narrador implicado no texto é assim definida por Ferraz (1997, p. 248): “Assu-
mindo as duas funções [autor e narrador] pode de fato jogar ao mesmo tempo com
um expor-se sincero e ficcional, confessando o seu artifício, o que acaba sempre por
ser, nas melhores circunstâncias, uma auto-crítica muito complacente, quando não um
auto-elogio” (grifos nossos).
Assim, o “esboçozinho” anunciado no prefácio por Garrett adquire contornos de
romance que se deseja estabelecer como uma voz que fala de seu tempo – e fala criti-
camente. O leitor, então, percebe a tensão entre arte e vida, entre a invenção e o real e
“resolve-a” compreendendo que a ficção necessariamente reenvia ao mundo, promo-
vendo, dele, uma percepção mais íntegra e profunda, pelo próprio arranjo estético a
que submete os dados da realidade.
Contribui para essa tensão entre a ficção e o real, no romance em estudo, a con-
cepção teatral da narrativa, o seu caráter de encenação, marcada textualmente pelas
seguintes estratégias: a) o recurso às cenas, em que predominam os diálogos; b) a

116
vasta pintura dos costumes e das circunstâncias que envolvem os acontecimentos6; c) Almeida Garrett e a
poesia de Folhas Caídas
a adoção de um vocabulário e de referências que remetem diretamente o leitor ao es-
paço cênico, o que se comprova, por exemplo, pelo seguinte fragmento do romance:
“A última parte da jaculatória foi dita em aparte, que segundo é sabido e aceito, fica em
segredo entre o actor que o diz e os espectadores que o ouvem; e não o pode ouvir
ninguém que esteja em cena... tirando o ponto no seu buraco” (GARRETT, 1963, p. 52).
O que se quer enfatizar é que também atua na esfera da ironia romântica a revela-
ção dos bastidores da escrita, da “cena” que indicia o próprio fazer da ficção, magis-
tralmente registrada neste último fragmento que destacamos do romance:

Dez anos esteve Cervantes para fazer trasladar e pôr em ordem os manuscritos
de Cid-Hamet-Ben-Enjeli, e nos dar enfim a última parte da história do Cavalei-
ro da Mancha. Eu não te fiz esperar senão cinco, leitor amigo e benévolo, por
este segundo e derradeiro tomo do bendito Arco de Sant’Ana. E tive de fazer eu
tudo, só por minha mão, decifrar a inrevesada letra do Códice dos Grilos, que
entre palavras safadas7, linhas inteiras ilegíveis, folhas rotas e outras dificulda-
des semelhantes, me deu mais que fazer do que um verdadeiro palimpsestes8
(GARRETT, 1963, p. 79).

Os fragmentos destacados do romance de Garrett são capazes, por si mesmos, de


caracterizar o cuidado formal e a inventividade na manufatura da trama que dão corpo
ao jogo dos tempos que nele reconhecemos. Mais do que confirmar, então, a nossa
certeza do quanto Garrett foi um homem de seu tempo, a sua escrita o revela como
um escritor de todos os tempos, mestre na arte da ironia que, nesse sentido, o afirma
como um modelo - não a ser admirado à distância, mas a ser sempre (re)lido para que
possamos constantemente nos lembrar do quanto a ficção pode tornar mais viva e
significativa a leitura que fazemos da história (e do homem nela).

6 Estas duas estratégias (a e b) são consideradas por Lukács (1965)como novos traços artísticos
introduzidos na ficção por Walter Scott e que, como podemos perceber, são efetivamente apro-
veitadas por Almeida Garrett em suas narrativas de caráter histórico.
7 Apagadas (nota 180 da edição utilizada)
8 Palimpsestes – palimpsesto: pergaminho manuscrito em que se raspou a escrita primitiva para
nele se escrever de novo (nota 181 da edição utilizada).

117
LITERATURA
PORTUGUESA

Proposta de Atividades

1) Retomemos a palavra palimpsestes, que encerra o último fragmento do texto que trans-
crevemos. Como vimos (nota 12), ela significa um manuscrito sob cujo texto se descobre
outro. Esta acepção decorre do fato de que, inicialmente, o palimpsesto designava antigos
materiais de escrita, especialmente o pergaminho, que, em razão de sua escassez ou alto
custo, era usado mais de uma vez, raspando-se o texto anterior. O termo passou por um
alargamento de sentido e atualmente, no âmbito dos estudos literários, remete às mui-
tas “camadas da escrita”, entendidas como as relações intertextuais que qualquer texto
estabelece. Segundo Roland Barthes (1987), a intertextualidade é a própria condição da
textualidade (ou seja, um texto é sempre, e inevitavelmente, intertextual, apropriando-se
de textos anteriores e estabelecendo uma “circularidade infinita” de textos). Nesse sentido,
podemos considerar que a própria narrativa de Almeida Garrett constitui um palimpsesto.
Que argumentos e exemplos poderíamos elencar para justificar esta afirmação?

2) Vale lembrar que o romance se constrói pela referência direta a outros textos – o Manus-
crito dos Grilos, o D. Quixote, o próprio Arco de Sant’Ana (semiologicamente passível de
ser caracterizado como texto); além disso, Garrett elenca, ao final do romance, inúmeras
notas que se referem a documentos históricos que lhe serviram de fonte de informação
para a elaboração da trama ficcional (a que se refere no prefácio, para “satisfazer os escru-
pulosos”). Este conjunto de referências, “acomodados” à moldura ficcional que o romance
institui, ganha nele novos sentidos e novas funções, mas são ainda “reconhecíveis”, como
as camadas apagadas do palimpsesto.

Referências

BARTHES, R. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.

BRAIT, B. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas, SP: Unicamp, 1996.

FERRAZ, M. L. Ironia romântica. In: BUESCU, H. C (Ed.). Dicionário do


romantismo literário português. Lisboa: Caminho, 1997.

FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973.

GARRETT, A. O Arco de Sant’Ana. Porto: Sello & Irmão, 1963.

LUKÁCS, G. Le roman historique. Paris: Payot, 1965.

118
SARAIVA, A. J (Org.) As crónicas de Fernão Lopes. Lisboa: Gradiva, 1993. Almeida Garrett e a
poesia de Folhas Caídas

Anotações

119
LITERATURA
PORTUGUESA

Anotações

120
6 Eça de Queirós
e o olhar crítico
sobre seu tempo

Como anunciamos na introdução a este capítulo, para exemplificar a reflexão críti-


ca que Eça de Queirós estabelece sobre a realidade de seu tempo, apresentamos uma
análise do conto “Civilização”1. As linhas gerais da leitura aqui apresentada estão basea-
das no ensaio de Antonio Candido “Entre campo e cidade”, que integra o volume Tese
e antítese, recentemente reeditado. No entanto, é preciso ressalvar que a análise de
Candido é sobre o romance A cidade e as serras – uma espécie de “amplificação” do
conto aqui tratado, que mantém com ele, todavia, muitas semelhanças no que diz res-
peito ao núcleo da ação narrada. Por isso, tomaremos todo o cuidado na adequação da
leitura a este outro objeto literário – o conto – e apresentaremos alguns argumentos
e discussões que nos parecem também interessantes para o entendimento do texto,
e que não fazem parte da análise de Candido “Entre campo e cidade”, que integra o
volume Tese e antítese, recentemente reeditado. No entanto, é preciso ressalvar que
a análise de Candido é sobre o romance A cidade e as serras – uma espécie de “am-
plificação” do conto aqui tratado, que mantém com ele, todavia, muitas semelhanças
no que diz respeito ao núcleo da ação narrada. Por isso, tomaremos todo o cuidado na
adequação da leitura a este outro objeto literário – o conto – e apresentaremos alguns
argumentos e discussões que nos parecem também interessantes para o entendimento
do texto, e que não fazem parte da análise de Candido.
Resumidamente, o enredo de “Civilização” centra-se na figura de Jacinto, homem
rico e culto que vivia, na Lisboa do final do século XIX, no palácio de sua família,
o Jasmineiro, cercado de todas as facilidades tecnológicas e de todos os índices de
cultura e de civilidade que lhe permitiam aqueles tempos: uma biblioteca com mais
de 25 mil volumes, telefone, fonógrafo, máquina de escrever, elevadores para o trans-
porte da comida preparada por um renomado cozinheiro e tantos outros equipamen-
tos técnicos e apetrechos que julgava indispensáveis a uma vida civilizada. Apesar de

1 Os contos de Eça de Queirós foram reunidos num único volume publicado em 1902.

121
LITERATURA tantas “facilidades” e de tanto luxo, vivia entediado, mantendo quase que por obriga-
PORTUGUESA
ção uma vida social que não lhe dava prazer nem vigor. A certa altura, vê-se obrigado
a deslocar-se para as serras, onde tinha uma propriedade. Envia para lá tudo o que
lhe parecia necessário para adequar a quinta à sua comodidade durante o período
em que ali permaneceria, mas quando chega, acompanhado somente de um grande
amigo (e narrador do conto), percebe que os caixotes enviados não tinham chegado e
que nenhuma de suas ordens, relativas à realização de obras na casa, havia sido cum-
prida. Inicialmente, fica arrasado e ainda mais pessimista com tamanha “tragédia”; no
entanto, Jacinto é, subitamente, invadido e transformado pela beleza e simplicidade
da vida campestre. E vai ser assim, longe da civilização, dispensando os exageros do
luxo, que Jacinto redescobrirá o prazer e a alegria de viver. Antonio Candido propõe,
em sua leitura, que a integridade significativa do texto de Eça – a espinha dorsal da
construção de seu sentido, digamos assim - está pautada na contradição violenta da
civilização capitalista do século XIX, provocadora de um estado desarmônico (em
Portugal, especialmente) que colocava, de um lado, a MODERNIDADE, representada
pelo processo crescente de urbanização e avanço tecnológico (expresso, no romance,2
pela “equação metafísica” de Jacinto: SUMA CIÊNCIA + SUMA POTÊNCIA = SUMA
FELICIDADE, por meio da qual propõe que ao máximo do saber, aliado ao máximo da
ação, do fazer, corresponderia a plena realização do homem) e, de outro lado, a IMPO-
TÊNCIA (da sociedade portuguesa) para resolver as suas próprias oposições históricas,
que implicavam, naquele final de século, a permanência do estilo agrário da sociedade
aldeã num mundo que entrava cada vez mais rapidamente no compasso da civilização
industrial. Daí deriva, então, o TEMA do conto: Eça alia às contradições do século XIX
“em geral” aquelas próprias ao seu país; os motivos que vão dar corpo a esse grande
tema podem ser sumariamente assim representados:

Campo cidade

Tradicionalismo vida moderna

Sentido paternal nas relações entre as intercâmbios sociais intensos


classes
economia agrária integrada à civilização capitalista do
Ocidente

2 No conto, esta equação não aparece, embora sintetize exatamente o que o enredo se propõe
a representar.

122
Estas contradições, então, é que estruturam o todo do texto, constituindo o “eixo Eça de Queirós e o olhar
crítico sobre seu tempo
de sustentação” da discussão sobre o sentido de modernidade e de civilização que, cer-
tamente, o conto deseja promover. Interessante é que esta proposição vem textualiza-
da; ou seja, é referida explicitamente pelo narrador, não deixando dúvidas sobre qual
é o tema da narrativa. Vejamos os fragmentos que confirmam esta nossa afirmação:

Assim o deixei – e daí a pouco, estendido na minha enxerga também espartana,


subia, através de um sonho jovial e erudito, ao planeta Vénus, onde encontrava,
entre os olmos e os ciprestes, num vergel, Platão e o Zé Brás, em alta camarada-
gem intelectual, bebendo o vinho da Rética pelos copos de Torges! Travámos
todos três bruscamente uma controvérsia sobre o século XIX [...] (p. 86,
grifos nossos).

A chuva de abril secara: os telhados remotos da cidade negrejavam sobre um


poente de carmesim e ouro. E, através das ruas mais frescas, eu ia pensando
que este nosso magnífico século XIX se assemelharia um dia àquele Jasmineiro
abandonado, e que outros homens, com uma certeza mais pura do que é a Vida
e a Felicidade, dariam como eu com o pé no lixo da supercivilização e, como eu,
ririam alegremente da grande ilusão que findara, inútil e coberta de ferrugem.

Àquela hora, decerto, Jacinto, na varanda em Torges, sem fonógrafo e sem te-
lefone, reentrado na simplicidade, via, sob a paz lenta da tarde, ao tremeluzir
da primeira estrela, a boiada recolher entre o canto dos boiadeiros (QUEIROZ,
2002, p. 92-93).

É fundamental, no conto, o papel desempenhado pelo narrador: homodiegético,


tem a proximidade suficiente para imprimir autoridade ao seu relato (ele viu, ele esta-
va lá, ele acompanha Jacinto em seus deslocamentos e aventuras) e, ao mesmo tempo,
distanciamento suficiente (já que conta a história de outro e não a sua própria) para
observar, analisar e avaliar sem comprometer a sua credibilidade, a sua legitimidade,
adequadas e necessárias à proposição do ensinamento postulado pelo conto, exposto
quase didaticamente no fragmento que segue:

Na Terra tudo vive – e só o homem sente a dor e a desilusão da vida. E tanto


mais as sente, quanto mais alarga e acumula a obra dessa inteligência que o
torna homem, e que o separa da restante Natureza, impensante e inerte. É no
máximo da civilização que ele experimenta o máximo de tédio. A sapiência, por-
tanto, está em recuar até esse honesto mínimo de civilização, que consiste em
ter um teto de colmo, uma leira de terra e o grão para nela semear. Em resumo,
para reaver a felicidade, é necessário regressar ao paraíso – e ficar lá, quieto, na
sua folha de vinha, inteiramente desguarnecido de civilização, contemplando
o anho aos saltos entre o tomilho, e sem procurar, nem com o desejo, a árvore
funesta da Ciência. Dixit! (QUEIROZ, 2002, p. 90).

Esse narrador coordena um processo radical: eleva a caracterização de cada um dos


polos (o campo e a cidade) ao máximo possível para configurar uma CONDENAÇÃO

123
LITERATURA DA CIDADE em oposição à EXALTAÇÃO DO CAMPO. Alguns dos recursos de que se
PORTUGUESA
utiliza para isso são apresentados a seguir:
a) o discurso superlativo, hiperbólico, minucioso. No exemplo que segue, Jacinto
está diante de sua primeira refeição servida em Torges, logo depois de ter chegado a
sua quinta e descoberto que nada do “aparato civilizacional” que para lá enviara havia
chegado. Horrorizado, espanta-se com a rusticidade do ambiente e dos costumes. Aos
poucos, este temor vai sendo quebrado pelo encantamento dos sabores, das cores e
dos aromas que a comida servida no campo provoca nele. Inicia-se aí a transformação
pela qual o personagem passará. Observemos, então, a minúcia na descrição da cena
(ainda que o fragmento do texto venha transcrito só em partes) e, principalmente, a
gradação que vai marcando a rendição de Jacinto à refeição que lhe é oferecida:

E aí, o meu supercivilizado Jacinto recuou com um pavor genuíno. Na mesa de


pinho, recoberta com uma toalha de mãos, encostada à parede sórdida, uma
vela de sebo, meio derretida num castiçal de latão, alumiava dois pratos de
louça amarela, ladeados por colheres de pau e por garfos de ferro. Os copos,
de vidro grosso e baço, convervavam o tom roxo do vinho que neles passara em
fartos anos de fartas vindimas. O covilhete de barro com as azeitonas deleitaria,
pela sua singeleza ática, o coração de Diógenes. Na larga broa estava cravado
um facalhão... Pobre Jacinto!
[...]
- Está bom! [o caldo]
[...]
- Está óptimo! [as favas]
[...]
- Está divino! [o frango] (QUEIROZ, 2002, p. 82-83).

A esta singeleza opõe-se a sofisticação e artificialidade da refeição servida no Jas-


mineiro (o palácio que Jacinto habitava em Lisboa), cujos rituais são ironicamente
descritos pelo narrador em vários momentos, como este:

A sua [do cozinheiro, Mestre Sardão] sopa de alcachofras e ovas de carpa; os


seus filetes de veado macerados em velho Madeira com puré de nozes; as suas
amoras geladas em éter, outros acepipes ainda, numerosos e profundos (e os
únicos que tolerava o meu Jacinto) eram obras de um artista, superior pela
abundância das ideias novas – e juntavam sempre a raridade do sabor à mag-
nificência da forma. Tal prato desse mestre incomparável parecia, pela orna-
mentação, pela graça florida dos lavores, pelo arranjo dos coloridos frescos
e cantantes, uma jóia esmaltada do cinzel de Meurice ou Cellini.[...] E essa
superfinidade3 do comer condizia deliciosamente com a do servir (QUEIROZ,
2002, p. 72).

3 O neologismo “superfinidade” parece-nos a marca discursiva mais característica da ironia neste


fragmento.

124
b) o contraste na caracterização dos espaços. Bom exemplo desse recurso pode ser Eça de Queirós e o olhar
crítico sobre seu tempo
visto na descrição da biblioteca do Jasmineiro

A biblioteca – que em duas salas, amplas e claras como praças, forrava as pa-
redes, inteiramente, desde os tapetes de Caramânia até ao tecto, donde, al-
ternadamente, através dos cristais, o sol e a electricidade vertiam uma luz es-
tudiosa e calma – continha vinte e cinco mil volumes, instalados em ébano,
magnificamente revestidos de marroquim escarlate. Só sistemas filosóficos (e
com justa prudência, para poupar espaço, o bibliotecário apenas coleccionara
os que irreconciliavelmente se contradizem) havia mil oitocentos e dezassete!4
(QUEIROZ, 2002, p. 68).

em contraste com a da Quinta: “e na parede, suspensa de dois pregos, uma estante-


zinha continha quatro ou cinco livros, folheados e usados5, o ‘D. Quixote’, um Virgílio,
uma ‘História de Roma’, as ‘Crónicas’ de Froissart” (p. 88).

c) o aparato tecnológico, que Jacinto considerava indispensável, contrasta eviden-


temente com a rusticidade e despojamento do ambiente da Quinta:

O que, porém, mais completamente imprimia àquele gabinete um portentoso


carácter de civilização eram, sobre as suas peanhas de carvalho, os grandes apa-
relhos, facilitadores do pensamento – a máquina de escrever, os auto-copistas,
o telégrafo Morse, o fonógrafo, o telefone, o teatrofone, outros ainda, todos
com metais luzidios, todos com longos fios. Constantemente sons curtos e se-
cos retiniam no ar morno daquele santuário. Tique, tique, tique! Dlim, dlim,
dlim! Craque, craque, craque! Trrre, trrre, trrre!... Era o meu amigo comuni-
cando. Todos esses fios mergulhados em forças universais transmitiam forças
universais (p. 69)

Nada restava senão recolher, cear o caldo do Zé Brás, e dormir nas palhas que
os fados nos concedessem. Subimos. [...] Entrámos. E o meu pobre Jacinto
contemplou, enfim, as salas do seu solar! Eram enormes, com as altas paredes
rebocadas a cal que o tempo e o abandono tinham enegrecido, e vazias, desola-
damente nuas, oferecendo apenas como vestígio de habitação e de vida, pelos
cantos, algum monte de cestos ou algum molho de enxadas. Nos tectos remo-
tos de carvalho negro alvejavam manchas – que era o céu já pálido do fim da
tarde, surpreendido através dos buracos do telhado. Não restava uma vidraça.
Por vezes, sob os nossos passos, uma tábua podre rangia e cedia (QUEIROZ,
2002, p. 81).

4 É de se destacar a ironia presente nas observações do narrador que sucedem a minuciosa des-
crição que faz da biblioteca: sua comodidade era tanta que, ao sentar na confortável poltrona
que lá havia, invariavelmente ele dormia logo nas primeiras páginas da leitura; além disso, nota
que os livros estavam, praticamente em sua totalidade, “imaculados”, sem nunca terem sido
lidos. É uma “aparência de saber”, portanto, que a biblioteca sinaliza.
5 O nosso grifo marca a diferença em relação ao que foi assinalado na nota anterior.

125
LITERATURA É no campo que Jacinto recobrará o vigor embaçado pelo tédio da civilização cita-
PORTUGUESA
dina, que o fazia bocejar frequentemente, expressão de um cansaço existencial que o
narrador não deixa de assinalar: “E era este bocejo, perpétuo e vago, que nos inquieta-
va [...] Que faltava a este homem excelente?” (p. 74). É lá, portanto, que ocorrerá uma
espécie de irradiação semântica, uma projeção do espaço natural para o “sentimento
do mundo”, existencial e afetivo, de Jacinto. Isto nos leva a refletir sobre a importân-
cia que adquire, neste conto, o lugar da experiência humana – ou melhor dizendo,
o modo como o homem se relaciona com o lugar da sua experiência, em termos de
COMPATIBILIDADE / INCOMPATIBILIDADE, dicotomia dialeticamente trabalhada no
conto, já que se alternam, no seu desenrolar, os pólos deste quadro relacional. Ou
seja, se de início Jacinto parece integrado à vida urbana, civilizada, e o espaço da
Quinta, para o qual é obrigado a deslocar-se, se lhe apresenta como absolutamente
adverso, provocando nele a sensação de incompatibilidade, o que o conto revela é
a inversão desses sentidos: a lição que Jacinto tira é justamente a de que no campo
está a possibilidade de reencontro com a sua verdadeira natureza. Nesse sentido, é
importante destacar:
1) que não há, no conto, uma discussão sobre essas questões, mas a REPRESENTA-
ÇÃO DA AÇÃO HUMANA nesses espaços, mediada pela voz do narrador;
2) o argumento do historiador Joel Serrão, ao destacar que ocorre, no século XIX,
uma nostalgia do campo como reação às transformações da modernidade. Lembra
Serrão (1959) que a ILUMINAÇÃO ARTIFICIAL muda a percepção da natureza (o dia
se prolonga e deixa de ser regido pela ordem natural; muda o ritmo da vida humana
por causa dessa ARTIFICIALIZAÇÃO da vida – do trabalho, das relações sociais). Isto
aparece figurativizado no conto de modo muito significativo, e para justificar nosso
argumento, destacamos uma vez mais dois fragmentos importantes do texto:

Ora justamente depois desse Inverno, em que ele se embrenhara na moral dos
negróides e instalara a luz eléctrica entre os arvoredos do jardim, sucedeu
que Jacinto teve a necessidade moral iniludível de partir para o Norte, para o
seu velho solar de Torges (p. 76; grifo nosso).

Assim jantámos deliciosamente, sob os auspícios do Zé Brás. E depois voltá-


mos para as alegrias únicas da casa, para as janelas desvidraçadas, a contemplar
silenciosamente um sumptuoso céu de Verão, tão cheio de estrelas que todo
ele parecia uma densa poeirada de ouro vivo, suspensa, imóvel, por cima dos
montes negros. Como eu observei ao meu Jacinto, na cidade nunca se olham
os astros por causa dos candeeiros – que os ofuscam; e nunca se entra por
isso numa completa comunhão com o universo. O homem nas capitais per-
tence à sua casa, ou, se o impelem fortes tendências de sociabilidade, ao seu
bairro. Tudo o isola e o separa da restante Natureza – os prédios obstrutores
de seis andares, a fumaça das chaminés, o rolar moroso e grosso dos ónibus, a
trama encarceradora da vida urbana... Mas que diferença, num cimo de monte,

126
como Torges! Aí todas essas belas estrelas olham para nós de perto, rebrilhan- Eça de Queirós e o olhar
do, à maneira de olhos conscientes, umas fixamente, com sublime indiferença, crítico sobre seu tempo
outras ansiosamente, com uma luz que palpita, uma luz que chama, como se
tentassem revelar os seus segredos ou compreender os nossos... E é impossível
não sentir uma solidariedade perfeita entre essses imensos mundo e os nossos
pobres corpos. Todos são obra da mesma vontade. Todos vivem da acção dessa
vontade imanente. Todos, portanto, dede os Uranos até aos Jacintos, consti-
tuem modos diversos de um ser único, e através das suas transformações so-
mam na mesma unidade (QUEIROZ, 2002, p. 84; grifo nosso).

Deste último (e belíssimo) fragmento do conto vem o seu argumento maior: a pos-
sibilidade do homem de encontrar o seu lugar no mundo em estreita solidariedade
“cósmica”, que irmana “Uranos e Jacintos”, astros e homens, num mesmo movimento
universal. Evidentemente idealizada, esta formulação aproxima-se da concepção míti-
ca da “Idade de Ouro”, era em que, poeticamente, a natureza cerca o homem de tudo
o que ele necessita, e tudo o que o cerca é, também, fruto de sua intervenção direta.
A esta época da inocência opõe-se a decadência, a degradação do homem e da socie-
dade que promove a fetichização do indivíduo e das suas relações, a coisificação: as
coisas se tornam objeto de adoração e culto. No conto, vê-se claramente isso em sua
primeira parte: Jacinto é “definido” pelo que tem, pelas coisas de que se cerca, e é tão
submetido por elas que pensa não poder mais dispensá-las. Quando se vê sem nada
disso, passado o desesperador impacto incial, redescobre-se em sua inteireza, em sua
humanidade. Agora, ser e parecer se (con)fundem, e Jacinto deixa de ser determinado
pelo que tem.
Curiosa na trajetória de uma personalidade tão incisivamente crítica como foi Eça
de Queirós, esta espécie de rendição final ao seu país, a sua terra e a suas “raízes”
opõe-se, de fato, à imagem do jovem Eça, socialista, “nutrido de cultura francesa, [que]
concebia a sociedade como organismo em progresso constante, impelido pela tecno-
logia industrial sob o signo da concorrência econômica” (CANDIDO, 1971, p. 31 ).
É por isso que julgamos necessário, para fazer justiça ao que de fato é a literatura
de Eça de Queirós em termos de uma leitura crítica da sociedade de seu tempo, abso-
lutamente articulada aos princípios da representação realista, que se leia, como con-
traponto a esta atitude mais otimista e conciliatória que o conto “Civilização” propõe,
o conto “No Moinho” e sobre o qual serão apresentados alguns apontamentos que
podem orientar uma reflexão sobre ele.
Podemos considerar este como um conto fundamentalmente realista de Eça de
Queirós, se levarmos em conta não só os princípios básicos dessa estética mas tam-
bém a própria “declaração de princípios” que o escritor expõe no artigo “Idealismo e
Realismo”, que citamos logo no início deste capítulo, em que Eça defende que a re-
presentação realista, baseada na observação, deve valer como “documento duma certa

127
LITERATURA sociedade”, dando uma “lição de vida social”, longe da idealização romântica capaz
PORTUGUESA
de fornecer, apenas, “um livro inútil”, “uma moeda falsa” (QUEIRÓS, 1980, p. 16).
Esta “lição” é dada visto que, no conto, “[a] reconstrução dos sentimentos é feita a
partir dos comportamentos e das vicissitudes das personagens, como acontece no
quotidiano e na realidade da vida” (DI MUNNO, 1997, p. 55).
Eça retrata, em “No Moinho”, um tipo de mulher: “Encerradas emblematica-
mente no próprio nome, Maria da Piedade, estavam toda a dedicação e a abnega-
ção da protagonista ao viver ao lado de um marido velho e paralítico.” De fato, a
protagonista revela-se como uma “fraca vítima das circunstâncias”: acordada para a
vida quando o primo Adrião lhe faz “entrever perspectivas de felicidade, Maria da
Piedade é afinal arrastada à perdição.” (DI MUNNO, 1997, p. 53). Isto faz com que,
em termos de progressão narrativa, seja possível facilmente identificar, no conto,
dois momentos antagonicamente dispostos: o primeiro, centrado em caracterizar
a abnegação de Piedade, reforçada pelos epítetos que lhe são atribuídos e ressal-
tados por todos na vila em que vive (“uma senhora modelo”, “uma santa”, “uma
fada”, “beata”), o que faz o leitor, em consonância com aqueles personagens que
esporadicamente com ela convivem, comover-se com sua dedicação e apiedar-se de
sua condição, determinada por circunstâncias cujo controle não está exatamente
em suas mãos (a infância pobre, o pai bêbado e a mãe “azeda”, de forma que o
casamento, aos vinte anos, mesmo com um pretendente “entrevado”, lhe pare-
cesse menos pesaroso que a situação em que vivia). A segunda parte da narrativa
sofre uma virada brusca: a presença do primo do marido aciona a manifestação de
uma natureza até então disfarçada, controlada e mesmo reprimida: Piedade revela
toda a violência de uma sensualidade incontida, de modo que, “[n]a articulação
progressiva das sequências narrativas verifica-se a oposição entre a inocência e a
perversão” (DI MUNNO, 1997, p. 55).
É evidente, pois, a intenção moralizante do conto, tão presente em toda a ficção
de Eça e condicionada à sua concepção da literatura como lição. Ressalte-se, ainda,
que a ação de “No moinho” se passa numa vila; segundo Amina Di Munno a vila
representa um espaço, “para o Eça sempre dividido entre a nota urbana e a rural,
idealmente equidistante da cidade e do campo e, por isso mesmo, abrangendo a
dualidade social e natural” (1997, p. 54). Se reconhecemos aí a importância do lugar
da experiência humana, como ressaltamos em nossa análise do conto “Civilização”,
notamos, por outro lado, que em “No moinho” não há uma oposição explícita entre
um e outro meio; a paisagem campestre é, aliás, como lembra Di Munno, “monóto-
na como a vida da protagonista” (1997, p. 54), mimetizando-a, em grande medida.
Neste conto não está presente, assim, a concepção eufórica e regeneradora da vida

128
no campo, mas sim a idéia de uma crise moral que atinge até os aparentemente mais Eça de Queirós e o olhar
crítico sobre seu tempo
imunes a ela, resguardados que pareciam estar no seu isolamento e no seu abando-
no, não suficientes, porém, para alijar deles a iminência da degradação, consideran-
do-se o rígido código de valores que orienta a visão de mundo do escritor realista.
Finalmente, vale ressaltar, apoiando-nos mais uma vez na avaliação da professora
e crítica literária italiana Amina Di Munno, que

A dimensão do conto surge na narrativa queirosiana como a expressão de


um microcosmo em que nunca resultam comprometidos certos princípios
da sua elaboração artística: a fixação dos tipos, a graça, a ironia, a arte do
paisagista. Nos contos, talvez não menos do que nas obras de maior fôle-
go, se manifesta a intrínseca capacidade do escritor de criar personagens,
figuras humanas e de meditar sobre a crise moral e a problemática da de-
cadência (1997, p. 53).

É nesse sentido que acreditamos poder ter oferecido, pela análise de dois contos
de Eça, uma significativa amostragem da grandeza de sua produção ficcional e da
inegável importância que tem na edificação de uma literatura indispensável como a
portuguesa.

Referências

CANDIDO, Antonio. Entre campo e cidade. In: ________. Tese e antítese. 2. ed.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971. p. 29-56.

DI MUNNO, Amina. Eça de Queirós e a narrativa breve: uma leitura do conto “No
Moinho”. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE QUEIROSIANOS: 150 ANOS COM
EÇA DE QUEIRÓS, 3., 1997, São Paulo. Anais... São Paulo: Centro de Estudos
Portugueses; FFLCH/USP, 1997. p. 52-56.

QUEIRÓS, Eça de. Idealismo e realismo: Literatura comentada. São Paulo: Abril
Educação, 1980. p. 13-16.

______. Contos. Lisboa: Livros do Brasil, 2002.

SERRÃO, Joel. Temas oitocentistas. para a História de Portugal no século passado.


Lisboa: Ática, 1959.

129
LITERATURA
PORTUGUESA

Proposta de Atividades

1) Tomando como base o fragmento do conto “Civilização” transcrito abaixo, responda: po-
demos entender ironicamente, no contexto em que é inserida, a fala do conselheiro Pinto
Porto? Por quê? Que estratégias discursivas o narrador utiliza para imprimir o tom irônico
ao texto?

[...] Jacinto recolhera no fonógrafo a voz do conselheiro Pinto Porto, uma voz
oracular e rotunda, no momento de exclamar com respeito, com autoridade:
- Maravilhosa invenção! Quem não admirará os progressos deste século?
Pois, numa doce noite de S. João, o meu supercivilizado amigo, desejando que
umas senhoras parentas de Pinto Porto (as amáveis Gouveias) admirassem o
fonógrafo, fez romper do bocarrão do aparelho, que parece uma trompa, a
conhecida voz rotunda e oracular:
­- Quem não admirará os progressos deste século?
Mas, inábil ou brusco, certamente desconcertou alguma mola vital – porque de
repente o fonógrafo começa a redizer, sem descontinuação, interminavelmente,
com uma sonoridade cada vez mais rotunda, a sentença do conselheiro:
- Quem não admirará os progressos deste século?
Debalde Jacinto, pálido, com os dedos trémulos, torturava o aparelho. A excla-
mação recomeçava, rolava, oracular e majestosa:
- Quem não admirará os progressos deste século?
Enervados, retirámos para uma sala distante, pesadamente revestida de panos
de Arrás. Em vão! A voz de Pinto Porto lá estava, entre os panos de Arrás, impla-
cável e rotunda:
- Quem não admirará os progressos deste século?
Furiosos, enterrámos uma almofada na boca do fonógrafo, atiramos por cima
mantas, cobertores espessos, para sufocar a voz abominável. Em vão! Sob a
mordaça, sob as grossas lãs, a voz rouquejava, surda mas oracular:
- Quem não admirará os progressos deste século?
As amáveis Gouveias tinham abalado, apertando desesperadamente os xales so-
bre a cabeça. Mesmo à cozinha, onde nos refugiámos, a voz descia, engasgada
e gosmosa:
- Quem não admirará os progressos deste século?
Fugimos espavoridos para a rua.
[...] Recolhemos ao Jasmineiro, com o sol já alto, já quente. Muito de manso
abrimos as portas, como no receio de despertar alguém. Horror! Logo da ante-
câmara percebemos sons estrangulados, roufenhos: “admirará... progressos...

130
século!...” Só de tarde um eletricista pôde emudecer aquele fonógrafo horrendo Eça de Queirós e o olhar
crítico sobre seu tempo
(p. 69-71).

1) Feita a leitura atenta do conto “No moinho”, responda:


a) é possível verificar a influência do espaço na construção do conflito deste conto? De
que forma?
b) Informe-se sobre o sentido do termo bovarismo e discuta a pertinência de sua aplica-
ção a este conto, no que diz respeito à personagem Maria da Piedade.

Anotações

131
LITERATURA
PORTUGUESA

Anotações

132
7 Fernando Pessoa
e o modernismo
português

O poeta é um fingidor.
Fernando Pessoa

O importante intelectual e renomado crítico literário português Eduardo Lourenço


abre seu livro Fernando, rei da nossa Baviera (1986, p. 9) com estas significativas pa-
lavras: “Custa-me imaginar que alguém possa um dia falar melhor de Fernando Pessoa
que ele mesmo”. Esta afirmativa remete, de imediato, para a rara singularidade pesso-
ana de metapoetizar, oferecendo aos seus leitores indicadores que, arriscadamente,
poderíamos qualificar até como “didáticos” para a análise da concepção de seus pro-
cessos poéticos.
Arriscado é também, e sempre, propor uma leitura de Fernando Pessoa, levando-
se em conta a diversidade e qualidade de sua fortuna crítica, que documenta todo
um percurso interpretativo do qual nenhuma vereda parece ter escapado. Por isso,
apresentamos aqui uma leitura aproximativa da obra de Pessoa que toma como eixo
a sua vinculação à estética modernista, tendo como pressupostos dois dados que este
recorte sugere: primeiro, o de que há um determinado ideário do Modernismo, ao
menos relativamente estabelecido, que se realiza na literatura portuguesa, nas primei-
ras décadas do século XX, em consonância com o movimento mais amplo da cultura
ocidental, genericamente tomada; segundo, o de que a poesia de Fernando Pessoa é a
expressão máxima desse modernismo em Portugal.
É importante lembrar, ainda a título introdutório, o fato, já amplamente caracteri-
zado por críticos como Carlos Reis, de que,

Em Portugal, o aparecimento e a maturação do Modernismo literário relacio-


nam-se com a relevância cultural assumida por algumas revistas e naturalmente
pelos autores que nelas colaboram; os marcos decisivos da afirmação moder-
nista são constituídos, em 1915, pelos dois números da revista Orpheu (um
terceiro, já em provas, acabou por não vir a público). A par desta, outras re-
vistas servem de lugar de manifestação literária e doutrinária do Modernismo
português: Centauro e Exílio (1916), Contemporânea (1922-1926) e Athena

133
LITERATURA (1924-1925); entre 1927 e 1940 publica-se a revista Presença, que não só faz
PORTUGUESA ecoar o legado cultural da chamada Geração de Orpheu como, segundo alguns
autores, pode ser considerada o órgão cultural de um segundo Modernismo
português (REIS, 1995, p. 455-456, grifos do autor).

Além disso, talvez seja importante também assinalar, como lembra João Gaspar
Simões,1 que a instalação do Modernismo em Portugal foi lenta – embora estivesse em
sintonia cronológica com outros movimentos das primeiras vanguardas européias –,
por dois motivos, especialmente: primeiro, porque embora Baudelaire fosse conheci-
do dos portugueses desde a década de 1860 (mais precisamente, a partir de sua morte,
em 1867), aquilo que se pode considerar como “mais caracteristicamente moderno”
em sua obra só foi compreendido pelos precursores mais diretos do Modernismo por-
tuguês, já quase na virada do século: Cesário Verde, Gomes Leal, Camilo Pessanha,
Eugenio de Castro; segundo, porque, antes do aparecimento dos primeiros poetas re-
almente modernos em Portugal, ainda se assiste a uma tentativa de nacionalização da
poesia portuguesa inteiramente desvinculada das diversas manifestações estrangeiras
da arte moderna: o Saudosismo de Teixeira de Pascoaes, que, sem dúvida, constituiu
um nó, uma resistência à afirmação do Modernismo português, ainda que nas páginas
da Águia, órgão de divulgação do movimento, tenha estreado, como crítico, Fernando
Pessoa - e a sua idéia de um supra-Camões (Simões, 1983)2.
A revista Orpheu, então, marca, em março de 1915, o início “oficial” do primeiro
modernismo português. Seu título faz referência ao mito do poeta que desce aos infer-
nos, na esteira do que dizia Rimbaud (“O objetivo da arte é chegar ao desconhecido,
desfrutar o invisível, ouvir o inaudível”), ideário que já vinha marcando presença nas
estéticas finisseculares do Decadentismo e do Esteticismo, e que encontra eco na obra
de Mário de Sá-Carneiro - poeta fundador da revista, ao lado do próprio Pessoa -, como

1 As avaliações críticas desse autor têm parecido a alguns estudiosos de Pessoa, contemporanea-
mente, discutíveis; ele vem aqui citado por meio de um dado informativo e de um julgamento
que, no entanto, tomamos como pertinentes, considerando-se o eixo tratado em nossa reflexão:
Pessoa e o Modernismo.
2 O Saudosismo de Pascoaes, entretanto, empolgara jovens literatos de Lisboa. Pessoa mes-
mo entusiasmara-se com a proposta de revigoramento da cultura portuguesa a que Teixeira de
Pascoaes dava corpo no movimento da “Renascença Portuguesa”, que intentava criar um novo
Portugal – ou melhor, ressuscitar a Pátria portuguesa. Pacoaes assentava sua proposta no que
definia como uma filosofia autenticamente lusitana – o Saudosismo - , afirmando, no primeiro
número da revista Águia (1912), que dirigiu e que foi o órgão divulgador oficial do movimento,
que “a saudade é o próprio sangue espiritual da raça; o seu estigma divino, o seu perfil eterno”.
Dava à saudade, no entanto, um sentido profundo: o de “sentimento-idéia” ou de “emoção
refletida”. Este sentir pensando será absolutamente caro à estética de Pessoa, como celebram seus
conhecidos versos “O que em mim sente ‘stá pensando”, do poema do ortônimo “Ela canta,
pobre ceifeira”.

134
se verifica no seguinte fragmento, da novela intitulada “A grande sombra”, que integra Fernando Pessoa e o
modernismo português
Céu em fogo, livro publicado um ano antes do início do Orfismo em Portugal:

- O Mistério...
Oh! desde a infância esta obsessão me perturba – o seu encanto me esvai... No
quarto onde eu dormia receava longas horas antes de adormecer, no ondular
da luz indecisa da lamparina de azeite que deixavam sobre o toucador. Temia
que as sombras de súbito transviassem, animando-se – e monstros de bruma
corressem sobre mim aos esgares, arrepanhando-me... Horas longes, porém,
de medo infantil – só vos posso recordar em saudade. É que então, se sofria, a
minha febre era já a cores – voluptuosidade arraiada também. E assim, quantas
horas até, durante o dia, lasso dos brinquedos sempre iguais, eu ansiava a noi-
te, sinuosamente, para latejar a ela os meus receios prateados (SÁ-CARNEIRO,
1956, p. 39).

Percebe-se no fragmento o culto à beleza das formas, característica do Esteticismo,


sua fulgurância e encantamento entrevistas no “mistério do escuro”, na atração por co-
nhecer o que há por trás das coisas quando se apaga a luz. O jogo de luz e sombra, na
verdade, põe em questão o grande tema do conhecimento: a grande sombra intercepta
o conhecimento das coisas, mas ativa todos os sentidos, todas as sensações, liberando
de todo preconceito a percepção da realidade pelo homem, fazendo amalgamarem-
se nele o visto, o sentido e o imaginado. Esta será, sem dúvida, uma das grandes
características que a obra poética de Sá-Carneiro irá partilhar com a do poeta maior
do modernismo português, Fernando Pessoa, como veremos adiante, ao tratar mais
especialmente do Sensacionismo.
O Orfismo foi um movimento eminentemente poético: mesmo quando seus ex-
poentes escreviam em prosa, era de prosa poética que se tratava. Foi também um
movimento explicitamente ligado às vanguardas, nome dado às modernas correntes
estéticas e filosóficas da Europa, como o Futurismo de Marinetti (associado pela crítica
especialmente à obra do heterônimo pessoano Álvaro de Campos) e o Cubismo, tão
importante nas artes plásticas, cuja “transposição” para a literatura pode ser apreciada
no fragmento de “Saltimbancos” (1916), de Almada-Negreiros, prosa experimentalista
que tenta fixar várias perspectivas simultaneamente na descrição de um circo que está
montado perto de um quartel:

a casa em altura era só metade de casa co telhado guardado pra dentro da


metade de tudo guardado pra dentro das janelas fingidas no muro amarelo ao
sol cuma guarita verde também a querer fugir pra dentro do sol por todos os
lados do sol sempre pra baixo do sol sempre prós olhos do sol co mastro sem
bandeira cor de lenço vermelho de rapé a corar ao sol com quatro pedras nos
cantos pra não voar até ao mar o lenço vermelho de rapé a corar ao sol com
quatro montes nos cantos pra não voar pró mar longe do quartel por dentro
co mesmo muro de sol de quartel igual ao amarelo de fora menos metade cum
telhado encostado ao muro menos livre por dentro de portas negras e paredes

135
LITERATURA de sol por todos os lados soldados parados soldados cinzentos de um pró
PORTUGUESA outro lado pretos contra o sol por todos os lados curvados prá sombra sol-
dados cinzentos meios nus de brim cinzento de chumbo redondo de forma
com reflexos de lata ao sol cinzento impessoal de brim de parada quadrada e
fechada prá relva em espeques de brim pobre igual e mínimo sol de brim [...]
(ALMADA NEGREIROS, 1970, p. 37).

O non sense é instalado no texto pela frase desintegrada, já que dela se retirou
toda a pontuação, o que a faz, também, muito próxima da expressão oral (de que
são evidências o uso das contrações “co”, “prós”, “pra”); há no fragmento uma série
de elementos imagéticos justapostos, e não articulados, aproximando-se, este proce-
dimento discursivo, da colagem cubista, reveladora da recusa da lógica tradicional,
já que esta subordina e hierarquiza a realidade representada (daí que todo o texto se
constitua como um único período – considerando-se que seja possível categorizar
sintaticamente o fragmento); a intenção, como se infere, é justamente a de romper
com o convencionalismo da representação, mostrando o caráter de ruptura, de re-
beldia e de (re)invenção sempre associado à arte de vanguarda.
Na obra de Fernando Pessoa, talvez o heterônimo Álvaro de Campos seja aquele
em que fica mais evidente essa rebeldia, manifestada na intenção de chocar e até
numa certa agressividade que sugerem o inconformismo com um modo de vida
aburguesado, consumidor da Arte e símbolo da estagnação da cultura portuguesa
naquelas primeiras décadas do século XX. Os versos da “Saudação a Walt Whitman”
ilustram bem este tom provocativo, marcado pela pontuação expressiva, pelo vo-
cabulário e pela sintaxe coloquiais, pela função fática dos verbos que convocam o
leitor, aproximando-o ainda mais da realidade re(a)presentada no poema:

[...]
Vamos lá pra frente sem ser para parte nenhuma...
Infinito! Universo! Meta sem meta! Que importa?

(Deixa-me tirar a gravata e desabotoar o colarinho.


Não se pode ter muita energia com a civilização à roda do pescoço...)
Agora, sim, partamos, vá lá pra frente.

Numa grande marche aux flambeaux – todas-as-cidades-da-Europa,


Numa grande marcha guerreira a indústira, o comércio e ócio,
Numa grande corrida, numa grande subida, numa grande descida
Estrondeando, pulando, e tudo pulando comigo,
Salto a saudar-te,
Berro a saudar-te,
Desencadeio-me a saudar-te, aos pinotes, aos pinos, aos guinos!

Por isso é a ti que endereço


Meus versos saltos, meus versos pulos, meus versos espasmos
Os meus versos-ataques-histéricos,
Os meus versos que arrastam o carro dos meus nervos.

136
Aos trambolhões me inspiro, Fernando Pessoa e o
Mal podendo respirar, ter-me de pé me exalto, modernismo português

E os meus versos são eu não poder estoirar de viver. [...]

Também o Sensacionismo3, como indicamos anteriormente, será outra das ten-


dências marcantes do Modernismo português - e da obra de Pessoa, portanto. Pode-
se defini-lo pela seguinte equação: a realidade da vida são as sensações; a realidade
da arte, a consciência dessas sensações. Neste processo estaria, para Pessoa, o futuro
da arte, a única forma de sua expressão verdadeiramente moderna, já que ela se
baseia numa deformação da realidade que exige um reaprendizado, uma maneira
nova de ler, de perceber o Universo e todas as coisas: não mais a fotografia do real,
mas uma leitura total, com todos os órgãos dos sentidos. A Arte seria, então, a ex-
pressão harmônica da consciência das sensações, para causar sensações nos outros.
Nesse postulado estaria ancoarada a própria gênese da heteronímia, poeticamente
(e didaticamente) expressa nos antológicos versos do poema “Passagem das horas”,
do heterônimo Álvaro de Campos:

Sentir tudo de todas as maneiras,


Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo.
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.
[...]
Multipliquei-me, para me sentir
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente. [...]

Não há dúvida de que a questão da heteronímia pessoana é das mais fascinan-


tes não só da literatura portuguesa, mas no âmbito de toda a literatura ocidental.
Embora, evidentemente, a percepção do “eu fragmentado” não tenha se iniciado
com Pessoa, e seja evidente como matéria poética – para exemplificar – já nos clás-
sicos autores do século XVI português, como Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda e

3 O Sensacionismo é a corrente literária que considera a sensação como base de toda a arte.
Segundo Fernando Pessoa, são três os princípios do Sensacionismo: 1) Todo objeto é uma sensa-
ção nossa; 2) Toda a arte é a conversão de uma sensação em objeto; 3) Toda a arte é a conversão
de uma sensação numa outra sensação.

137
LITERATURA Camões4, bem como em contemporâneos de Pessoa, como o poeta modernista bra-
PORTUGUESA
sileiro Mário de Andrade5, em Pessoa essa “multiplicação do eu” é levada à máxima
potência expressiva, a ponto de efetivar-se pela criação de personalidades poéticas
distintas, com uma história pessoal própria e estilos poéticos característicos, indivi-
dualizadores, tornando cada poeta criado por Pessoa um “ser” único. Para fazer arte,
o eu tem que se anular: esta é a síntese de muito do que afirma Pessoa. Há, portanto,
uma sugestão de “desumanização” no processo heteronímico. Como defende José
Saramago6, “os heterónimos, mais do que ‘drama em gente’, são, cada um deles, a
expressão individualizante de um conteúdo plural que se tornou singular no seu
fazer-se, um ser que é diferente porque diferente foi o fazer dele.” Ou seja, estamos
no amplo campo da ficcionalização, da reinvenção “de si mesmo”, plenamente pos-
sível nos domínios da linguagem: tudo é palavra, tudo é criação, mesmo aquela que
Fernando Pessoa assina com seu próprio nome – a conhecida obra ortônima. “Para
o auto-sentimento cristão” – diz o “Ultimatum” de Álvaro de Campos, publicado no
primeiro número da revista Portugal Futurista, em 1927 – “o homem mais perfeito
é o que mais verdadeiramente possa dizer ‘eu sou eu’; para a ciência, o homem mais
perfeito é o que com mais justiça possa dizer ‘eu sou todos os outros.”
É famosa a carta em que Fernando Pessoa explica a seu amigo Adolfo Casais Mon-
teiro7 como “nasceram” os heterônimos. Dela transcrevemos abaixo alguns trechos,
suficientes para revelar como Pessoa concebia a heteronímia e como procedia na sua
“concretização”:

4 É conhecidíssima a cantiga de Sá de Miranda: “Comigo me desavim,/vejo-m’em grande pe-


rigo:/não posso viver comigo,/nem posso fugir de mim.//Antes qu’este mal tevesse/da outra
gente fugia;/agora já fugiria/de mim, se de mim podesse./Que cabo espero, ou que fim,/deste
cuidado que sigo,/pois trago a mim comigo/tamanho imigo de mim?”. Também Camões glosa
o mote “De que me serve fugir/de morte, dor e perigo, se me eu levo comigo?” Antes deles,
Bernardim Ribeiro assim se expressava no “Vilancete seu”: “Antre mim mesmo e mim/não sei
que s’alevantou/que tão meu imigo sou.” Todos os trechos foram citados a partir do ensaio
“A dimensão tradicional na poesia lírica camoniana”, de Cleonice Berardinelli, publicado no
volume Estudos Camonianos (Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Cátedra Padre Antonio Vieira,
Instituto Camões, 2000. p. 167-201).
5 “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,/mas um dia afinal eu toparei comigo.../ Tenha-
mos paciência, andorinhas curtas,/ Só o esquecimento é que condensa,/E então minha alma
servirá de abrigo” (“Eu sou trezentos...” poema de Remate de Males. ANDRADE, M. de.
Poesias completas. São Paulo: Martins Fontes, 1955)
6 Em “As máscaras que se olham”, artigo publicado no JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias,
Lisboa, ano V, nº. 177, 26 de nov. a 2 de dez. de 1987, p. 12.
7 Escrita em Lisboa, em 13 de janeiro de 1935 e publicada pela primeira vez, por Casais Mon-
teiro, na revista Presença nº. 9, de junho de 1937. Transcrita da Correspondência 1923-1935,
ed. Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999.

138
Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictí- Fernando Pessoa e o
cio, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram (Não sei, modernismo português
bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo.
Nestas cousas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) [...]
Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este
mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases,
entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de
espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou,
ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamen-
te, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história
acrescentava, e cuja figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamen-
te eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e
conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta
anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo... E tenho
saudades deles.
(Em eu começando a falar – e escrever à máquina é para mim falar –,
custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro!
Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o
que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história
da mãe que os deu à luz.)
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia
escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas em verso irre-
gular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regula-
ridade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra
mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo (Tinha
nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida
ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada,
e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de reali-
dade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em
que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de
uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como
escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa
espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal
da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O
Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém
em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me
o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação
imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tan-
tos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também,
os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa.
Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto
Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando
Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

É curioso notar, neste final da carta, que Pessoa fala de Fernando Pessoa – o
poeta a que regressa depois de criar Alberto Caeiro – como ele, o que reforça a
ideia sugerida por Saramago, no fragmento anteriormente transcrito, de que todos
os poetas (os heterônimos e o ortônimo) devem ser lidos como sua invenção, como

139
LITERATURA “ficção”,8 o que coloca em cena o tema a isso relacionado do fingimento poético, que
PORTUGUESA
põe em questão a confessionalidade do eu lírico – tópico do qual já tratamos em
Garrett -, dando a ele, porém, maior complexidade, já que, como lemos no poema “Au-
topsicografia”, o poeta pode fingir que é dor a dor que de fato sente, impossibilitando
que se assente definitivamente qualquer limite entre a ficção e a confissão:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

Todas as características até aqui vistas da obra de Pessoa e exemplificadas


brevemente também na obra de alguns de seus contemporâneos, como Sá-
Carneiro e Almada-Negreiros, nos remetem, enfim, ao eixo central de nosso
estudo: a vinculação da poesia pessoana ao ideário do Modernismo e ao contexto
que lhe dá corpo – as décadas iniciais do século XX, marcadas por uma intensa crise
na Europa e no mundo que viria culminar na Primeira Grande Guerra (aquela que viria
para “acabar com todas as guerras”, e que falhou enormemente em seu intento). Em
Pessoa se reconhecem os traços do homem de seu tempo, instável, quase desesperado,
com sua realidade em pedaços, com o movimento e a velocidade que caracterizavam
a industrialização crescente, o acelerado processo de urbanização, a caoticidade e as
mudanças que só viriam a se acentuar com o passar dos anos – daí a poesia de Pessoa

8 Continua Saramago: “Posta a questão nestes termos, seria fascinante ler Ricardo Reis como
Ricardo Reis, e não como Fernando Pessoa. E o mesmo com Álvaro de Campos. Ou Alberto
Ceiro. Ou Bernardo Soares.[...] E finalmente duvidar que os poemas ortónimos tenham sido
realmente escritos por um Fernado Pessoa, tal como ele, com esse próprio nome, duvidou da sua
existência.” A radicalidade da proposta de José Saramago, ainda que de difícil execução, dada a
tradição que nos ensina serem todos Fernando Pessoa, merece, no entanto, nossa atenção, pelo
que pode mostrar do quanto ainda falta estudarmos e refletirmos sobre a tão densa questão da
heteronímia pessoana.

140
nos parecer sempre tão atual9. Nas Páginas íntimas e de auto-interpretação (1966, Fernando Pessoa e o
modernismo português
p. 164), encontra-se um texto em que Pessoa exprime uma avaliação sobre a sociedade
em que vivia, dizendo tratar-se de

[u]m tipo de civilização em que a emoção, a inteligência, a vontade, participam


da rapidez, da instabilidade e da violência das manifestações propriamente,
diariamente típicas do estádio civilizacional. Em cada homem moderno há um
neurastênico que tem que trabalhar. A tensão nervosa tornou-se um estado
normal na maioria dos incluídos na marcha das cousas públicas e sociais. A
hiperexcitação passou a ser regra (PESSOA, 1966, p. 164).

Como “resposta”, em contraponto, a esta sociedade ultracivilizada, Pessoa irá ma-


nifestar, no heterônimo Ricardo Reis, um apego às formas e temas do passado clássico.
Reis escreve odes, predominantemente curtas, o que revela uma contenção verbal em
tudo oposta, por exemplo, aos frequentemente longos poemas de Álvaro de Cam-
pos, o poeta da modernidade por excelência. Nelas, os argumentos são apresenta-
dos em tom solene, com intenções didáticas – mas nem por isso o poeta se coloca
em condição de superioridade em relação a seus destinatários; o que resulta disso é
uma cumplicidade com o leitor que, pela empatia, torna os argumentos convincentes,
ainda que os temas tratados sejam tão complexos e amplos como aqueles ligados à
incontrolável força do tempo, desdobrados em reflexões sobre a brevidade da vida e a
fugacidade do momento vivido.
É nítida, então (e aceita conscientemente por Reis), a influência de Horácio em sua
poesia. Para o poeta latino, a poesia deve ser imortal e duradoura, em vez de circuns-
tancial e passageira como as glórias, os poderes e os bens materiais; já em Horácio se
manifesta a “tendência pedagógica” da criação poética, uma vez que, em sua concep-
ção, a poesia deve ser um meio de orientar as pessoas a viverem bem e corretamente.

9 Em Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna (1996, p. 25), Baudelaire afirma que
“a Modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente; é a metade da arte, sendo a outra
metade o eterno e o imutável”. Essa afirmação sustenta dois eixos de reflexão sobre a literatura
da modernidade que desejamos aqui destacar, em consonância com o propósito inicial deste
texto: um, o que aponta para a incorporação, pela arte, dos traços dessa modernidade, cuja repre-
sentação mais antológica talvez esteja nos “Tempos Modernos” (1936), de Chaplin, em que se
expõe o homem moderno triturado pelas engrenagens de uma produção industrial desenfreada,
caracterizando um estágio de civilização exteriormente pujante e eufórico, mas atravessado, no
seu interior, por tensões e excessos de muito problemática harmonização. A modernização passa
a impor-se de forma quase obsessiva e, pela sua desmesura e desumana intensidade, suscita dú-
vidas, ansiedades, resistências. Por outro lado, a afirmação de Baudelaire aponta para a “outra
metade da arte” – o eterno e imutável, que implica a busca de uma expressão própria, única e
que se irmana à aspiração de toda arte: transcender a contingência, permanecer. É evidente que
a poesia de Pessoa é capaz de responder a essa dupla expectativa de, simultaneamente, dar conta
de um determinado “estágio civilizacional” e de uma expressão artística singular.

141
LITERATURA Entre “aquilo que deve ser ensinado”, nesse sentido, destaca-se a preocupação hora-
PORTUGUESA
ciana de despertar a consciência para a brevidade da vida, o que culminará no tópico
do carpe diem, tão característico a esta visão de mundo. Daí a frequência com que a
referência ao tempo através da metáfora do rio (que não permite que se o pise duas
vezes) aparecerá nos poemas de Reis. No entanto, a solução final dada por ele aos
grandes temas horacianos é diversa da de seu inspirador: a decisão do heterônimo
pessoano é a de aceitar a vida como ela é, com resignação e renúncia, aderindo ao seu
ritmo inelutável (“Só de aceitar tenhamos a ciência”10), ao passo que, para Horácio, a
“solução” é a de viver a vida enquanto dure, o que implica forte impulso para fazer a
vida agradável pela imersão nos bons momentos.
Também o tópico clássico da aurea mediocritas determina a cosmovisão reisiana.
Ela se pauta pela temperança, pela rejeição dos extremos, uma vez que tem a equani-
midade como fonte de sabedoria, associada à consciência da fugacidade da vida. Isso
significa que o poeta “ensinará” a busca por uma disposição equânime e imperturbável
diante das dificuldades e das alegrias; o que rege esse modo de ser e de sentir na poe-
sia de Ricardo Reis é a consciência da morte, ainda que seu poder seja introduzido nas
odes de modo indireto, eufêmico: “Não consentem os deuses mais que a vida”, dirá,
nesse sentido. A consequência dessa visão de mundo é o sentimento de desimportân-
cia dos bens materiais, do poder e da glória mundanos.
Todas essas características da concepção poética de Ricardo Reis podem ser exem-
plarmente reconhecidas no poema que segue:

Mestre, são plácidas


Todas as horas
Que nós perdemos
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.

Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,

Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios

10 Da ode “Não consentem os deuses mais que a vida”.

142
De Natureza... Fernando Pessoa e o
modernismo português
Á beira-rio,
à beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.

O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.

Não vale a pena


Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.

Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.

Girassóis sempre
Fitando o Sol,
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.

Seja, então, pela intenção de apresentar-se como pagão em sua visão de mundo e
clássico em sua expressão, o que supõe uma ascese e um despojamento pouco condi-
zentes com o contexto em que seus poemas foram criados; seja pelas constantes refe-
rências filosóficas e mitológicas que os permeiam; seja, ainda, pela sintaxe rebuscada
e pela aparência de frieza, de distanciamento que suas odes expressam, Ricardo Reis é
considerado um dos mais difíceis dos heterônimos pessoanos. A atenuar esta avaliação,
temos a considerar, em primeiro lugar, a sua preocupação em supor um interlocutor
(virtual ou textualmente presente), característica que se liga ao caráter doutrinário de
sua poesia, manifestada no tom exortativo dos poemas, provocando, então, a empatia
já referida; em segundo lugar, o fato de que é muito claro (e declarado) o “suporte”
filosófico de sua visão de mundo, o que facilita o reconhecimento e a compreensão de

143
LITERATURA suas idéias: vem este suporte dos epicuristas11 e dos estóicos – os primeiros tentando
PORTUGUESA
concentrar-se no momento e vivê-lo intensamente, em busca do prazer mas condicio-
nados pela ataraxia (a imperturbabilidade diante da vida); os segundos perseguindo
um estado de indiferença no qual nada deveria perturbá-los em sua busca pela virtude.
No entanto, considerando a proposição fundamental de que o poeta é um fingidor,
poderíamos nos indagar: Ricardo Reis simula uma paz que não tem? Parece a ela ter
chegado só pelo pensamento – daí dar a si mesmo a ilusão de ter alcançado a almejada
serenidade e impassibilidade. Parece-nos ser, portanto, mais um fingidor, que simula a
vida que diz ter: “Nós, o que nos supomos, nos fazemos”, diz na ode “Gozo sonhado”.
Vem disso o seu “epicurismo triste”, “à beira-mágoa”, que reflete o sonho que ele sabe
ser apenas um sonho, já que conseguir alcançar a felicidade através do Epicurismo é
quase uma desumanização, uma vez que ele supõe uma “indiferença olímpica” que
não temos coragem nem condições de ter.12
Estes paradoxos que começamos a ver delineados na poesia de Pessoa correspon-
dem, em nossa proposta de análise, aos paradoxos da modernidade artística, em
seus traços mais gerais, os quais poderiam assim ser sintetizados: a imaginação é ex-
tremamente racionalizada – trabalhada racionalmente - , para levar ao leitor determi-
nados efeitos; pela imaginação consciente, o artista atingiria o que é essencial no tran-
sitório (e nisso consiste exatamente a modernidade de um artista, para Baudelaire,
acima citado); estilisticamente, adquirem relevo a fragmentação e o simultaneísmo (e
o que se tem em mira é a unidade da obra); enfatiza-se a idéia da criação fundadora, do
novo que, segundo afirma Ricardo Reis, deve conter em si um dado de revisionismo:

Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde
se note que existiu Homero. A novidade em si mesma, nada significa, se não
houver nela uma relação com o que a precedeu. Nem, propriamente, há novi-
dade sem que haja essa relação. Saibamos distinguir o novo do estranho, o que,
conhecendo o conhecido, o transforma e varia, e o que apareceu de fora, sem
conhecimento de coisa nenhuma (PESSOA, 1966, p. 106).

11 O Epicurismo é uma filosofia prática: quer ensinar como viver bem, com menos dor, atra-
vés do prazer (mas não os imediatos): a ausência de sofrimento e angústia significava o prazer
máximo, o objetivo perseguido pelos epicuristas. É uma filosofia que decorre da consciência do
tempo e que assim enuncia seus “procedimentos” práticos: 1) é preciso pesar as consequências
do prazer para que ele não se transforme num sofrimento (“prazer refletido”); 2) é preciso ba-
nir a preocupação com o dia de amanhã, com os deuses (que são “homens aperfeiçoados” que
mantêm uma atitude serena, distante, impassível e, por isso, são paradigmas para a existência
dos homens, que, nessa perspectiva, são “deuses virtuais”) e com morte (porque a vida se baseia
nas sensações).
12 Parece-nos brilhantemente problematizada essa “indifernça olímpica” (e falhada) de Reis no
romance de José Saramago O ano da morte de Ricardo Reis (1984), cuja leitura sugerimos em
complemento à reflexão sobre a poesia de Fernando Pessoa e seus heterônimos.

144
Um último paradoxo ainda merece ser apontado – talvez o mais fundamental para Fernando Pessoa e o
modernismo português
o “caso” de que tratamos: o de uma acentuada despersonalização que está em estreita
inter-relação com uma igualmente acentuada subjetivização.
Vejamos como esse paradoxo se realiza: se, na representação do real pelo fazer
artístico, ele, o real, é transfigurado pela imaginação (no sentido de “criação com o
pensamento”), isso só é possível a partir da idéia de um sujeito que acredita no seu
potencial infinito de criação; no entanto, por conta disso mesmo, podemos chegar à
conclusão de que todas as realidades se tornam ficções subjetivas. Isso contribui para
o que se pode chamar de uma desestabilização de um sentido coletivo, “comunitário”
da realidade e, no limite, para a destruição da coesão do caráter individual,. levando
àquela despersonalização que se fundamenta numa contenção “anticonfessional”.
No poema moderno, o autor não é o “eu” do texto (que é construído racional-
mente); daí a reformulação do conceito de sinceridade poética – e o remetamos, aqui,
para o fingimento que gera os heterônimos, como vimos. Com eles – mais uma vez,
paradoxalmente – se recupera a possibilidade da subjetividade (no sentido do sujeito
que transfigura o real pela força da sua imaginação criadora e consciente): “O que a
poética modernista da impessoalidade e da extrema subjetividade têm em comum (e
isto compensa o que as possa separar) é uma revolta contra a relação tradicional do
sujeito com o mundo exterior” (REIS, 1995, p. 466).
A partir dessas considerações é que propomos a análise do seguinte poema de
Fernando Pessoa ortônimo, leitura em que o relacionaremos à perspectiva da repre-
sentação da realidade, acoplada à crise do sujeito na modernidade (como a poesia de
Pessoa problematiza essa questão fundamental?)

De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?

Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Para mim próprio mesmo
Em alma mal existo,
Toma um outro sentido
Em mim o Universo –
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha idéia das coisas.

145
LITERATURA Se acenderem as velas
PORTUGUESA E não houver apenas
A vaga luz de fora –
Não sei que candeeiro
Aceso onde na rua –
Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é a minha vida agora:

Um momento afluente
Dum rio sempre a ir.
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nulo
E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa
Metafisicamente.

(Episódios/A Múmia - III)

Embora este poema não pertença à série da “Chuva Oblíqua”, com freqüência to-
mada como o mais característico exemplo do Interseccionismo13 pessoano, parece-nos
lícito emoldurar também este terceiro poema de uma outra série com os termos que,
para Carlos Reis (1995), definem esta faceta – este “ismo” – da poética do Modernismo.
Para o crítico português, o Interseccionismo ilustra a preocupação modernista com a
percepção do real e com a sua representação, em função do olhar e das sensações do
sujeito que com esse real se relaciona – uma relação que envolve também uma defini-
ção de coordenadas espaço-temporais, regida por um dinamismo que anuncia um tema
fundamental do Modernismo: o da crise da unidade do sujeito (REIS, 1995, p. 458).
Esse olhar, que vem textualmente marcado já no primeiro verso do poema, confirma
que o que está em jogo, ali, é a forma de percepção da realidade, configurando um dos
eixos sustentadores da poética pessoana: a realidade da vida é a sensação; a realidade
da arte, a consciência da sensação. É um olhar que, entretanto, espreita – espia, inves-
tiga, intromete-se num outro olhar, caracterizando uma simultaneidade não exclusiva
entre duas realidades. Dizendo melhor: esta simultaneidade, ou esta ambivalência de
sensações provocada pelo duplo olhar, tende a criar no sujeito que observa e sente uma
divisão que o coloca no limiar da fragmentação heteronímica – e quantas recorrências
à idéia de cisão se apresentam nestas duas primeiras estrofes do poema!

13 O Interseccionismo caracteriza-se pelo cruzamento de “planos” (percepções, sensações) que


se cortam. Sua “base”, portanto, é o Sensacionismo.

146
A dualidade existencial que os versos constróem, então – essa expressão labiríntica Fernando Pessoa e o
modernismo português
do outro em si mesmo –, pode aproximar-se do que Octavio Paz define, em O arco e
a lira, como a outridade: “Experiência feita do tecido de nossos atos diários, a outri-
dade é antes de mais nada a percepção de que somos outros sem deixarmos de ser o
que somos, e que, sem deixarmos de estar onde estamos, nosso verdadeiro ser está em
outra parte.” (PAZ, 1982, p. 325). A não-coincidência do homem consigo mesmo – esta
mesma impossibilidade de coincidência, marca recorrente da poética pessoana – pa-
rece ter levado Leyla Perrone-Moisés (1982) a caracterizar o “eu do texto” de Pessoa
como lacunar, vazio, “ao lado”. No grande poeta português, a crise do sujeito da mo-
dernidade envolve a fragmentação heteronímica, já sugerida neste poema ortônimo.
Tal fragmentação, evidentemente, não é percepção exclusiva de Pessoa, como disse-
mos, mas nele se realiza exponencialmente porque envolve um ato de fingimento que
se completa numa “linguagem pluridiscursiva responsável”, como se expressa Carlos
Reis (1995) ao definir os estilos poéticos próprios dos heterônimos.
O jogo de luz e sombra que o poema instala (o que há por trás das coisas, quando
se apaga a luz? – exatamente como vimos em Sá-Carneiro) contribui não só para a
construção de um sentimento de irrealidade de todas as coisas como prepara a mani-
festação plena, na última estrofe, da dissolução do sujeito, que acaba por caracterizar
o desenlace até certo ponto frustrante de todo um esforço de auto-conhecimento,
de interrogação ontológica e moral que se “resolve” num radical relativismo – para
dizer o mínimo -, uma vez que as palavras com que o poema praticamente se encerra
propõem uma visada francamente niilista. Isto porque ao problematizar a questão da
existência, o poeta tropeça em “soluções-confusões” que talvez sugiram – mais uma
vez paradoxalmente – que a “vida autêntica” só se realiza na confluência dessa diver-
gência entre “eu” e “outro”; mais do que isso, até, o “eu sou eu” de matriz cartesiana
é substituído pelo “eu sou todos os outros” da criação artística pessoana, que, se não
leva a um pleno deciframento do ser, reitera a validade do percurso em detrimento
do “fim”: “E assim a hora passa/metafisicamente”. O paradoxo da subjetivização an-
teriormente apontado atinge expressão modelar nessa última estrofe do poema, ao
colocar em cena o desejo de inconsciência e a consciência dele: este espaço entre que
a penumbra, a nódoa esbatida, os foscos desejos, as velas e a vaga luz de fora poetica-
mente configuram.
Retomando, finalmente, o motivo condutor dos comentários feitos – como a poe-
sia de Pessoa lida com a questão da representação? –, consideramos que este sujeito
disforme, oblíquo, “em trânsito” do poema analisado só poderia, mesmo, chegar a
conclusão idêntica à dos heterônimos (que é também a do sujeito moderno cindido
que eles poeticamente referem): a “realidade” é uma ilusão, uma insignificância, uma

147
LITERATURA vez que, como expressa Nietzsche (2004, p. 222), “O mundo, para nós, voltou a tornar-
PORTUGUESA
se infinito, no sentido em que não lhe podemos recusar a possibilidade de se prestar
a uma infinidade de interpretações.” É nesse sentido que, parece-nos, a criação dos
heterônimos, em Pessoa, figurativiza muito mais uma indecisão do que uma solução.
Não é uma tentativa de criar visões de mundo modelares que permitissem ao leitor
optar por aquela que lhe parecesse mais correta ou conveniente.O que se afirma é, no
máximo, a possibilidade de se estar entre esses lugares. Daí o entendimento, possivel-
mente paradoxal, de que o sujeito se afirma na sua própria dissolução, na sua própria
impossibilidade de ser um, íntegro, total.
Para representar poeticamente esta impossibilidade de unidade, Pessoa cria heterô-
nimos até contraditórios entre si. Vimos acima como à ultramodernidade de Campos
se contrapõe a estirpe clássica de Reis. No mesmo sentido, à ideia de que há algo que
se oculta para além do que vemos, um sentido para as coisas a ser perscrutado na
penumbra, nas sombras, nas entrelinhas, captado pela emoção racionalizada que o
verso emblemático “o que em mim sente ‘stá pensando” define – tudo isso presente
no poema do ortônimo que acabamos de ler -, opõe-se, em grande medida, a visão
de mundo do mestre Alberto Caeiro. Ele não aceita o mistério, a transcendência ou a
metafísica. “Há metafísica bastante em não pensar em nada”, dirá.14 O poema XXIV de
O Guardador de rebanhos nos ajuda a entender melhor esta concepção:

O que nós vemos das cousas são as s convictas de um só dia,


Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

Como se percebe pela leitura, Caeiro parece querer restabelecer poeticamente um


estado anterior à cisão entre o homem e as coisas que corresponde a um momento
anterior ao privilégio do logos sobre as sensações. Isso significa que todo o esforço do
homem para compreender, para entender, para racionalizar sua relação com o mundo
só o distanciou cada vez mais da Natureza à qual ele próprio pertence. Por isso, tudo
o que vem com essa desintegração é ilusório, não corresponde à verdade das coisas.
Esta visão de mundo expressa-se num estilo quase prosaico, em que a falta de disci-
plina poética parece querer aproximar-se da melodia desigual da Natureza e em que as
palavras procuram “colar-se” com simplicidade à ideia representada, recusando a ex-
pressão metafórica (o que nem sempre é alcançado plenamente, já que a própria me-
diação das palavras – paradoxalmente - constitui um entrave a uma desejada expressão

14 Poema V de O guardador de rebanhos.

148
direta do “estado de natureza”). De todo modo, é preciso “estreitar o corredor” que Fernando Pessoa e o
modernismo português
vai da palavra à coisa, estabelecer uma ponte cada vez menor entre o sujeito e aquilo
que ele vê, tomando o olhar, aqui, também papel preponderante, mas num sentido
diferente daquele que tem na poesia do ortônimo. A visão deve ser clara, limpa, dire-
ta. As coisas devem surgir virgens ao olhar, mostrando uma face diferente a cada vez,
surpreendendo-o. Por isso o olhar deve ser atento (“Saber ver quando se vê”).
Vêm reforçar esta busca de uma (re)integração com o mundo natural os tópicos
do locus amoenus e do fugere urbem, os quais criam, no conjunto dos poemas de O
guardador de rebanhos, uma atmosfera harmônica, iluminada por um sol que parece
eterno, contribuindo para a visão clara das coisas.
Em Caeiro, então, o homem realiza sua natureza ao integrar-se à Natureza – ou an-
tes, ao compreender que ela está integrada nele. Nesse sentido, alcança a eternidade.
Estatuto equivalente à natureza adquire, nesse sentido, a própria criação poética, já
que ela é capaz de também eternizar. Esta talvez seja a única e plena verdade que se
possa estabelecer diante da tão complexa, arrebatadora e eterna poesia de Pessoa: o
sentido afirmativo da existência transita pela criação poética. Ela é que será responsá-
vel pela superação de toda contingência e pela eternidade que constitui a outra me-
tade da arte, como vimos em Baudelaire (1996). Para ressaltar isso, encerrando nossa
aproximação ao poeta, fica a proposta de leitura do poema XLVIII de

O guardador de rebanhos:
Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a Humanidade.

E não estou alegre nem triste.


Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos

Porque não posso fazer o contrário


Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência


E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?


Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.


Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

149
LITERATURA
PORTUGUESA Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

A beleza extasiadora do poema não nos deve impedir de verificar que aqui também
há um sujeito que observa – “da mais alta janela da minha casa” – e age – “digo adeus/
aos meus versos que partem para a Humanidade”. Entretanto, recusa-se a interpretar
o destino de seus versos: contempla, constata e se submete... Convoca esta mesma
humanidade: que juízo o poeta quer que façamos dele? O de “qualquer coisa natural”,
porque a natureza existe para sempre: se não “em si mesma”, ao menos no movimento
cíclico do cosmos e nos vestígios de fecundidade que ela, natureza, vai disseminando.
Assim também os versos do poeta; assim também a sua existência, dispersa, multiplica-
o e fortalece-o: porque “a dispersão não é pluralidade, mas repetição: sempre o mesmo eu
que combate cegamente um outro eu cego” (PAZ, 1982, p. 318). Para exprimir essa luta,
que é sempre a busca de um sentido, é bom não esquecer de Pessoa, porque “a literatura,
como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta”(PESSOA, 1995, p. 504).

Referências

ALMADA NEGREIROS, José de. Obras completas. Lisboa: Estampa, 1970. v. 1.

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Tradução


de Teixeira Coelho. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

CABRAL MARTINS, Fernando (Coord.) Dicionário de Fernando Pessoa e do


modernismo português. Lisboa: Caminho, 2008.

LOURENÇO, Eduardo. Fernando, rei da nossa Baviera. Lisboa: Imprensa Nacional;


Casa da Moeda, 1986.

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin
Claret, 2004.

OSAKABE, Haquira. Fernando Pessoa: resposta à decadência. Curitiba: Criar, 2002.

150
PAZ, Octavio. O arco e a lira. 2. ed. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fernando Pessoa e o
modernismo português
Fronteira, 1982.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. O Vácuo-Pessoa. In:______. Aquém do eu, além do


outro. São Paulo: Martins Fontes, 1982. p. 71-112.

PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus (seleção poética). Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

______. Obra em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

______. Obra poética. Lisboa: Europa-América, 1986.

______. Páginas íntimas e de auto-interpretação: selecção e apresentação de J.


do Prado Coelho e G. Rudolf. Lind. Lisboa: Ática, 1966.

PORTUGAL Futurista. Ed. facsimil. Lisboa: Contexto, 1981.

REIS, Carlos. Modernismo e futurismo. In: ______. O conhecimento da literatura:


introdução aos estudos literários. Coimbra: Almedina, 1995. p. 452-475.

SÁ-CARNEIRO, Mário de. Céu em fogo. Lisboa: Ática, 1956.

Proposta de Atividades

1) A partir da leitura do poema “Isto”, “assinado” pelo ortônimo, disserte sobre o tema do
fingimento poético que está na base da concepção da heteronímia pessoana.

Dizem que finjo ou minto


Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,


O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio


Do que não está ao pé,

151
LITERATURA Livre do meu enleio,
PORTUGUESA
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

2) Aponte e exemplifique, na ode de Ricardo Reis que segue, as suas principais características
temáticas e formais:

As rosas amo dos jardins de Adónis,


Essas volucres amo, Lydia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.

A luz para elas é eterna, porque


Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apollo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lydia, voluntariamente,
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.

3) Escolha e transcreva um poema ou fragmentos de poemas de Álvaro de Campos que ex-


pressem o estar no mundo do homem do século XX, em consonância com as característi-
cas que apresentamos desse poeta.

“Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: -


As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.”

4) Que princípios regem a concepção de vida e de poesia em Alberto Caeiro, sugeridas por
este fragmeno do poema XXXIX de “O Guardador de Rebanhos”?

Anotações

152
8 A produção
literária
contemporânea:
José Saramago

Costuma-se marcar o ano de 1974 como aquele que determina a referência ao que
é a produção contemporânea em Portugal, por conta de um acontecimento histórico
de enorme relevância que, de fato, estabeleceu novas diretrizes político-sociais, ideo-
lógicas e culturais no país: a Revolução dos Cravos. Após cerca de cinquenta anos de
vigência de um regime político autoritário que teve à frente, por longo tempo, Oliveira
Salazar – daí a ditadura portuguesa ser conhecida como o salazarismo -, uma rebelião
militar apoiada maciçamente pela população dá início a um novo período em que mu-
dam as instituições e formas de “estar no mundo” que alteram as relações do homem
com o seu contexto - e isso incide significativamente sobre o ato criador. Assim, a Re-
volução de 74 delimita, ainda que de forma não excludente (pois, no âmbito artístico,
como a seguir discutiremos, não é contemporâneo só o que vem depois da revolução),
um novo modo de ser da literatura portuguesa que, entretanto, herda dos movimentos
precedentes uma série de aquisições estilísticas e experiências formais que serão con-
jugadas de forma significativa no desenvolvimento de temas mais diretamente ligados
às novas circunstâncias históricas que a partir de então se estabelecem.
É nesse contexto que surgirão nomes importantes, como o de José Saramago, certa-
mente o mais renomado escritor português da atualidade, ganhador do Prêmio Nobel de
Literatura em 1998 – o único até hoje atribuído a um escritor de língua portuguesa -, ao
mesmo tempo em que outras vozes, conhecidas já no período pré-revolucionário (como
a de José Cardoso Pires, por exemplo), se afirmam e se expandem, o que nos permite
avaliar como bastante fecunda a produção literária em Portugal nas últimas décadas.
No entanto, tratar da literatura contemporânea é sempre bastante complexo, já
que, como afirma a ensaísta portuguesa Maria Alzira Seixo, “o contemporâneo é o
que está conosco” (1986, p. 169). Esta ausência de distanciamento entre a leitura e a
produção dos textos constitui um desafio ainda maior à crítica literária, uma vez que os
escritores vivos estão, regra geral, em plena efervescência criativa, modificando muitas
vezes a direção de sua escrita, tratando de novos temas, sob novas formas, impedindo

153
LITERATURA qualquer compreensão ou avaliação mais “estável” de sua produção. Por outro lado,
PORTUGUESA
acompanhar uma escrita que se faz “à nossa vista”, da qual podemos seguir o modo
como é recebida por crítica e público, ou mesmo as polêmicas que muitas vezes em
torno dela se cria; a possibilidade de olhar, de ler o nosso mundo pela mediação da fic-
ção, abrindo horizontes muitas vezes insuspeitados para a compreensão dos grandes
temas que nos afetam são motivos mais que suficientes para que nos entreguemos sem
hesitação ao prazer que esses textos nos podem proporcionar, a despeito do desafio
que sua leitura certamente representa.
Para chegarmos a uma sistematização das principais tendências da literatura con-
temporânea em Portugal, consideramos importante passar rapidamente pelos movi-
mentos literários que ocuparam o século XX após o momento inaugural do Modernis-
mo no país, tão bem representado pela figura exponencial de Fernando Pessoa.

OS ANTECEDENTES SIGNIFICATIVOS
Em 1927, inicia-se o chamado segundo modernismo português – o Presencismo -,
cuja relação com o movimento precedente não será de polêmica ou de ruptura, mas,
em grande medida, de continuidade; os escritores reunidos em torno da revista Presen-
ça irão valorizar o que caracterizavam como uma literatura viva1, em oposição a uma
literatura livresca que viam como estéril e “oficialesca”, sem qualquer contribuição sig-
nificativa para a expressão poética do que entendiam como a arte moderna em Portugal.
Por conta disso, irão resgatar autores que consideravam esquecidos, mas indispensá-
veis, como Camilo Pessanha, o grande nome do Simbolismo português, e irão publi-
car intensamente os que consideravam “mestres contemporâneos” – Fernando Pessoa,
Mário de Sá-Carneiro e Almada-Negreiros –, denominando-os assim porque “mestres
contemporâneos são os homens que, pior ou melhor, exprimem as tendências mais
avançadas do seu tempo, isto é: a parte do futuro que já existe no presente” (RÉGIO
apud MOISÉS, 1980, p. 318). Muitas polêmicas e dissidências irão marcar a história da
Presença, que será publicada até 1940, ano que marca “oficialmente” o estabelecimento
do Neo-Realismo em Portugal.
Este novo movimento literário terá grande importância porque assume a necessida-
de, naquelas circunstâncias contextuais, de a literatura exercer uma função que, se as

1 José Régio, no primeiro número da Presença, assim sintetiza o programa de ação do movimen-
to: “Em Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem,
mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística [...] Pretendo aludir nestas linhas
a dois vícios que inferiorizam grande parte da nossa literatura contemporânea, roubando-lhe
esse caráter de invenção, criação e descoberta que faz grande a arte moderna. São eles: a falta de
originalidade e a falta de sinceridade” (RÉGIO apud MOISÉS, 1980, p. 317-318).

154
condições históricas fossem diferentes, poderia ser assumida por outras instituições, A produção literária
contemporânea: José
como a imprensa, os partidos políticos, os sindicatos, etc. De que estamos falando? Em Saramago

plena ditadura salazarista surge uma literatura engajada, de intenção conscientizadora,


empenhada em denunciar o estado de miséria e de opressão – econômica, social, ideo-
lógica – que dominava o país. A censura era implacável, o discurso autoritário acompa-
nhava a ascensão do nazismo na Alemanha, do fascismo na Itália, do franquismo na vi-
zinha Espanha, e a Segunda Guerra Mundial não deixava dúvidas às pessoas de que era
preciso, cada vez mais, assumirem-se como seres históricos, afetados irremediavelmen-
te pela marcha dos acontecimentos que aos poucos iriam modificar a face do mundo.
A literatura, assim, aproxima fato e ficção, e o Neo-Realismo cumpre sua tarefa de
voltar-se para a realidade, assumindo, como já queriam os realistas do século XIX, a
observação como princípio artístico por excelência, vendo e fazendo ver. Entretanto,
o Neo-Realismo irá esgotar-se justamente por esse alto grau de referencialidade, pelo
desgaste do discurso, que perde sua força e seu poder de significação.
O resgate do discurso caracterizará exatamente a nova fase que se anuncia como
uma nova forma de dizer o mundo; de dentro do próprio Neo-Realismo (ou seja,
por autores que se filiavam ao movimento) delineiam-se tentativas de renovação do
discurso literário, marcadas principalmente por três tendências muito expressivas na
configuração do “perfil” da literatura portuguesa contemporânea:
1) o Surrealismo: em 1947, ainda em plena vigência dos postulados neo-realistas,
surge o Grupo Surrealista de Lisboa. Influenciados pelos manifestos surrealistas
do francês André Breton, de 1924 e 1930, os poetas alinhados a este primeiro
grupo (Candido da Costa Pinto, Antonio Pedro, Alexandre O’Neill e Mário Ce-
sariny de Vasconcelos, entre outros) e também ao grupo dissidente, que surge
dois anos depois (Pedro Oom, Antonio Maria Lisboa, o mesmo Mário Cesariny
e, mais tarde, Mário Henrique Leiria, para registrarmos os nomes mais represen-
tativos de ambas as “facções”) entendiam que a arte deveria buscar a expressão
do que paira além da realidade, acima da realidade, evidente no prefixo francês
sur. Em repúdio ao Neo-Realismo, propunham uma visão do mundo que reco-
locasse o eu profundo do artista em lugar das questões sociais.Ainda que sua
existência fosse conturbada e curta, o Surrealismo exerceu profunda influência,
até hoje visível, na literatura portuguesa do último século, “não só pela ebulição
crítica que estimulou, mas também pelos caminhos estéticos que abriu” (MOI-
SÉS, 1980, p. 350). Dentre esses últimos, podemos destacar, resumidamente,
a fragmentação do tempo convencional (com a anulação das fronteiras entre
presente, passado e futuro e com a presença de um “tempo da memória” que
nega a temporalidade linear da narrativa) e, por consequência, a fragmentação

155
LITERATURA da própria estrutura narrativa; a expressão de um fluxo verbal caótico e cauda-
PORTUGUESA
loso que nem sempre distingue quem fala; a mescla do real com o imaginário,
o onírico e o fantástico; a presença do estilo dubitativo como forma de desven-
darem-se as várias camadas do real e de suas possibilidades de verdades, dando
do mundo uma imagem incerta e cambiante. Essas características estarão muitas
vezes presentes na literatura portuguesa pós-74
2) o Existencialismo, na década de 1950, que tem em Vergílio Ferreira seu nome
de maior destaque e no retorno à subjetividade, ao “eu” que dá medida ao
mundo a sua característica mais imediatamente reconhecível, em substituição
às situações e personagens coletivos e à objetividade narrativa que marcavam a
literatura neo-realista; diretamente influenciado pela filosofia existencialista de
Sartre e de Heidegger, o existencialismo elegerá como tema dominante a busca
do sentido da vida, da compreensão da vida diante da morte e da passagem
inexorável do tempo, problematizada a partir da reflexão sobre a incomunica-
bilidade entre os seres e dominada pelo ceticismo e pela angústia geradas pela
crise existencial do pós-guerra;
3) o Experimentalismo, que domina os anos 60, quando a narrativa se apropria de
experiências formais mais ligadas à expressão poética, como o aproveitamento
significativo do espaço da página, e investe na rarefação da ação em proveito da
criação de certo “clima”, com personagens e situações só vagamente delineadas
e onde a descrição é mais frequente que a narração; outro elemento fundamen-
tal definidor desta nova relação do escritor com a linguagem é justamente a que
a coloca como o próprio objeto de interesse da criação literária: o texto fala
dele mesmo, de seu próprio fazer, caracterizando a presença da metanarrativa,
a ser cada vez mais explorada pelos escritores interessados em incitar uma pro-
blematização da narrativa, desejosos de compreender mais amplamente não
só a realidade circundante como a própria estrutura romanesca que dá forma à
sua representação.

Diante dos ganhos formais e temáticos que as tendências estéticas brevemente as-
sinaladas trazem em relação ao movimento neo-realista, a publicação do romance O
Delfim, de José Cardoso Pires, em 1968, é considerada um marco na trajetória da lite-
ratura portuguesa, justamente por, de dentro do Neo-Realismo – já que Cardoso Pires
era um de seus mais renomados representantes – promover o resgate do discurso e
mesmo a subversão da exigência do romance realista de “refletir” a vida (lembremos, a
propósito, o prefácio do romance Gaibéus, de Alves Redol, publicado em 1939 e con-
siderado o marco inicial do Neo-Realismo português, em que o autor afirma pretender

156
que sua narrativa atue como um documento da realidade ali representada). Sem per- A produção literária
contemporânea: José
der o sentido crítico da realidade e sem deixar de denunciar a opressão, em diferentes Saramago

modalidades (inclusive a do homem sobre a mulher, no âmbito da vida privada), Car-


doso Pires investe na construção de uma narrativa fragmentada, em que a justaposição
das várias vozes dos personagens propõe diferentes versões dos acontecimentos, que
compõem o núcleo da ação do romance. Tem-se, assim, uma estrutura narrativa polifô-
nica que impede que se estabeleça uma única versão da história, ou uma verdade, que
é, assim, relativizada, mostrando como a linguagem pode servir a pontos de vista e a
posicionamentos ideológicos diversos. Assim, O Delfim sintetiza tendências e aponta
para novos rumos da ficção portuguesa, ancorada numa geração de romancistas que
herda, do Presencismo e do Existencialismo, a “luta” contra o mascaramento social;
do Surrealismo e do Experimentalismo, a ousadia das renovações formais; do Neo-
Realismo, a concepção do romance como resistência a todo tipo de opressão e autori-
tarismo – inclusive aquele que se exerce sobre e pela linguagem.
A década de 1970 é aquela que trará a revolução e o conturbado período pós-
revolucionário, até o estabelecimento, em Portugal, de um certo equilíbrio diante das
novas injunções históricas. Este será um tempo preparatório para o grande boom lite-
rário que tomará fôlego na década seguinte. A partir de então, o que se verá é a tendên-
cia a promover uma revisão da História por meio de um olhar crítico sobre o que foi
e o que é Portugal, mas sempre de forma mediatizada, assumindo-se a ficção cada vez
mais como invenção, como criação de uma outra coisa que, paradoxalmente, é capaz
de propor uma reflexão muito mais ampla, profunda e significativa sobre a realidade
da vida, do mundo, da História – e do homem nela.
É nesse contexto que tomará o proscênio o romance histórico inventado de Sara-
mago. Em sua ficção, o escritor estabelece uma relação instigante e salutar entre mo-
dernidade e tradição, mostrando como a recriação permite aguçar a consciência do
passado e compreender melhor o processo histórico e a realidade atual, em que es-
tamos todos inseridos. Em termos formais, em Saramago identificamos a presença de
uma elaborada técnica narrativa que se utiliza tanto de recursos inovadores como de
uma aguda percepção, trabalhada em termos de reinvenção, de elementos tradicionais
da prosa em língua portuguesa. São esses procedimentos que observaremos melhor
pela análise do romance Memorial do Convento (1983), que apresentaremos a seguir.
Com a proximidade do final do século, a ficção de Saramago abre-se para te-
mas mais universais em romances que tendem, muitas vezes, para a fábula alegórica,
como A caverna (2000), Ensaio sobre a cegueira (1995) e As intermitências da
morte (2005). A grande viragem, nesse sentido, se dá com o romance O Evangelho
segundo Jesus Cristo, de 1991, até hoje uma das narrativas mais polêmicas do autor,

157
LITERATURA cujo “ideário”, centrado na problematização do imaginário e do dogmatismo cristão,
PORTUGUESA
é retomado no até agora último romance publicado por Saramago, Caim, de 2009.

PROPOSTA DE ROMANCE: MEMORIAL DO CONVENTO

Ó glória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó pátria sem justiça”


(SARAMAGO, 1983, p. 293).

O romance Memorial do Convento exemplifica modelarmente a relação de rein-


venção, de recriação estética que se estabelece entre o texto ficcional e a realidade
histórica na literatura portuguesa contemporânea. Nele, Portugal aparece como o país
da decadência, representando a visão crítica da narrativa contemporânea sobre o país,
em oposição ao discurso apologético que, durante séculos, criou de Portugal a ima-
gem da “Nação eleita”, sustentáculo de um imaginário que, assim, sublimava o fato de,
passados os tempos gloriosos da expansão ultramarina, Portugal ter sido cada vez mais
relegado a uma posição marginal em relação às grandes potências da Europa.
O romance irá, em termos de macro-estrutura narrativa, sustentar-se sobre um
jogo de oposições – como se verá pela análise – que nos permitem identificar a iro-
nia como procedimento discursivo privilegiado, já que ela é capaz de trazer à tona a
ambiguidade entre o que é e o que parece ser que esteve na base dos desmandos, da
corrupção, da vaidade e da extravagância que marcaram, praticamente sem exceções,
a história de Portugal. Assim, o romance ativa o processo de tomada de consciência
histórica que nos permite conhecer o presente à luz do passado; faz nos ver, por ou-
tro lado, a força e a grandeza do povo, seu poder de busca e seu “desejo de sonho”,
absolutamente esquecidos pelos registros oficiais da história mas imprescindíveis para
a edificação de uma Nação; mostra, ainda, o poder da imaginação criadora, já que a
realidade que o romance apresenta, ainda que baseada em fatos reais, é transfigurada
pela adoção de pontos de vista narrativos alternativos, pela presença do insólito e pela
atitude cética, demonstrada em especial pelas intervenções do narrador, em relação às
“grandes verdades” e aos clichês que sustentam o discurso histórico oficial.
Tudo isso permite-nos falar de um romance histórico inventado, já que narrativas
como esta de Saramago põem a recircular, pelas provocações da ficção, as bases his-
tóricas da cultura e da identidade nacionais, garantindo que se lance a estas bases um
olhar sempre “desconfado”. Isso não significa que a questão da verdade esteja afastada
das preocupações do homem contemporâneo, mas sim que tomá-la como provisória e
historicamente condicionada (e não como eterna, universal e fixa) é condição para que
ela seja sempre repensada, não permitindo que se perca de vista a sua relatividade. A
preocupação de Saramago com os valores, com a ética caracteriza-o como um grande

158
humanista, sempre empenhado em revelar a força de penetração da literatura como A produção literária
contemporânea: José
transformadora do homem e do meio social. Saramago

A ação narrada no romance transcorre no século XVIII, durante o reinado de D. João


V, que durou de 1705 a 1750. Mais especificamente, o fato instaurador do problema
que sustentará a narrativa se dá em 1711 (D. João decide construir um convento na ci-
dade de Mafra, em pagamento a uma promessa feita aos franciscanos, caso a rainha, D.
Maria Ana, engravidasse); em 1730 dá-se a sagração do convento; em 1739 encerra-se
o período compreendido pela narrativa, com a morte de Baltasar Sete-Sóis nas foguei-
ras da Inquisição. No entanto, ainda que seja possível reconhecer esta cronologia, a
narrativa rompe esses limites temporais instalando um tempo da ficção, especialmente
pela atitude rigorosamente interferente do narrador, que deslinda passado presente e
futuro, já que assume, inclusive, funções “premonitórias”. Paradoxalmente, ao invés
de atrapalhar, essa ausência de limites temporais favorece a tomada de consciência his-
tórica, na medida em que nos faz rever o passado à luz de questões sempre presentes.
Além disso, estas mesmas intervenções do narrador fazem do ato de escrever também
matéria do romance, revelando aquela intenção da literatura contemporânea de co-
locar em causa a própria fatura do romance, centrada numa preocupação cada vez
mais evidente com a linguagem – seus limites, seu poder, suas manifestações sempre
ideologicamente condicionadas.
É assim que, como mostra o fragmento que segue, o endividamento de Portugal,
cada vez maior em função da megalomania do rei, interessado em construir um con-
vento que competisse em tamanho com a própria Basílica de São Pedro, é tratado
sarcasticamente no diálogo (que o narrador explicita ser inventado) que traz à cena
as causas da decadência de Portugal: o desejo excessivo de poder - e de ostentá-lo -,
o descontrole financeiro, o pouco caso com que a “coisa pública” sempre foi tratada
pelos governantes portugueses. E esse diálogo, como ressaltará o narrador, é simples-
mente a “tradução moderna do português de sempre”, sugerindo que a história se
repete e que, indiscutivelmente, o passado ensina e ajuda a compreender o presente.

Enfim o rei bate na testa, resplandece-lhe a fronte, rodeia-a o nimbo da inspi-


ração, E se aumentássemos para duzentos frades o convento de Mafra, quem
diz duzentos, diz quinhentos, diz mil, estou que seria uma acção de não menor
grandeza que a basílica que não pode haver. O arquitecto ponderou, Mil frades,
quinhentos frades, é muito frade, majestade, acabávamos por ter de fazer uma
igreja tão grande como a de Roma, para lá poderem caber todos, Então, quan-
tos, Digamos trezentos, e mesmo assim já vai ser pequena para eles a basílica
que desenhei e está a ser construída, com muitos vagares, se me é permitido o
reparo, Sejam trezentos, não se discute mais, é esta a minha vontade, Assim se
fará, dando vossa majestade as necessárias ordens. [...]

Retirou-se rasando vénias João Frederico Ludovice para ir reformar os desenhos,

159
LITERATURA recolheu-se o provincial à província para ordenar os actos congratulatórios ade-
PORTUGUESA quados e dar a boa nova, ficou o rei, que está em sua casa, agora esperando que
regresse o almoxarife que foi pelos livros da escrituração, e quando ele volta
pergunta-lhe, depois de colocados sobre a mesa os enormes in-fólios, Então
diz-me lá como estamos de deve e haver. O guarda-livros leva a mão ao queixo
parecendo que vai entrar em meditação profunda, abre um dos livros como
para citar uma decisiva verba, mas emenda ambos os movimentos e contenta-se
com dizer, Saiba vossa majestade que, haver, havemos cada vez menos, e dever,
devemos cada vez mais, Já o mês passado me disseste o mesmo, E também o
outro mês, e o ano que lá vai, por este andar ainda acabamos por ver o fundo ao
saco, majestade, Está longe daqui o fundo dos nossos sacos, um no Brasil, outro
na Índia, quando se esgotarem vamos sabê-lo com tão grande atraso que pode-
remos então dizer, afinal estávamos pobres e não sabíamos, Se vossa majestade
me perdoa o atrevimento, eu ousaria dizer que estamos pobres e sabemos,
Mas, graças sejam dadas a Deus, o dinheiro não tem faltado, Pois não, e a minha
experiência contabilística lembra-me todos os dias que o pior pobre é aquele a
quem o dinheiro não falta, isso se passa em Portugal, que é um saco sem fundo,
entra-lhe o dinheiro pela boca e sai-lhe pelo cu, com perdão de vossa majesta-
de, Ah, ah, ah, riu o rei, essa tem muita graça, sim senhor, queres tu dizer na
tua que a merda é dinheiro, Não, majestade, é o dinheiro que é merda, e eu
estou em muito boa posição para o saber, de cócoras, que é como sempre deve
estar quem faz as contas do dinheiro dos outros. Este diálogo é falso, apócrifo,
calunioso, e também profundamente imoral, não respeita o trono nem o altar,
põe um rei e um tesoureiro a falar como arrieiros em taberna, [...] porém, isto
que se leu é somente a tradução moderna do português de sempre, posto o
que disse o rei, A partir de hoje, passas a receber vencimento dobrado para que
te não custe tanto fazer força, Beijo as mãos de vossa majestade, respondeu o
guarda-livros (SARAMAGO, 1983, p. 281; 283-284).

Note-se, no fragmento, a afamada estranheza no uso da pontuação por Saramago,


que não marca convencionalmente o diálogo com travessões e abusa das vírgulas em
detrimento de quaisquer outros sinais de pausa ou de marcação expressiva da lingua-
gem, o que, segundo o próprio autor, ajuda-o a imprimir uma aparência de oralidade
ao texto – uma de suas mais caras proposições estilísticas (a aproximação do texto
escrito à expressão oral).
A ação do romance desenvolve-se, então, a partir de dois núcleos que, ao longo
da narrativa, irão se entrecruzar: de um lado, a corte, representada em especial pelo
Rei D. João V, a Rainha D. Maria Ana e os franciscanos beneficiados com a construção
do convento; de outro, o povo, representado emblematicamente por Baltasar Sete-
Sóis e Blimunda Sete-Luas, pelos operários que trabalham na construção do convento
(dentre os quais se encontra o próprio Baltasar) e pelo Padre Bartolomeu de Gusmão
(que, na verdade, transita entre a corte e o povo, mas que é aqui “alocado” por ser
o responsável pela invenção da “máquina de voar” que alegoricamente representa a
vontade dos homens, como veremos).
O que move a ação é o desejo; ou seja, nas duas esferas, existe um objeto de de-
sejo, algo que não existe, que “falta ser” e que, por isso, precisa ser buscado – neste

160
caso, construído: o convento e a passarola, máquina de voar idealizada pelo inventor A produção literária
contemporânea: José
e cientista de existência real – o Pe. Bartolomeu Lourenço de Gusmão – que será Saramago

construída por Baltasar com a ajuda de Blimunda. O fragmento transcrito abaixo dá


uma idéia do que seria essa passarola, além de, no seu final, colocar na boca do Padre
Bartolomeu uma fala bem pouco ortodoxa, em termos do dogma cristão2, que já mos-
tra a irreverência com que o tema vem tratado na maior parte das obras de Saramago:

Baltasar entrou logo atrás do padre, curioso, olhou em redor sem compreender
o que via, talvez esperasse um balão, umas asas de pardal em maior, um saco de
penas, e não teve mão que não duvidasse, Então é isto, e o padre Bartolomeu
Lourenço respondeu, Há-de ser isto, e, abrindo uma arca, tirou um papel que
desenrolou, onde se via o desenho de uma ave, a passarola seria, isso era Balta-
sar capaz de reconhecer, e porque à vista era o desenho um pássaro, acreditou
que todos aqueles materiais, juntos e ordenados nos lugares competentes, se-
riam capazes de voar. Mais para si próprio do que para Sete-Sóis, que do dese-
nho não via mais que a semelhança da ave, e ela lhe bastava, o padre explicou,
em tom primeiramente sereno, depois animando-se, Isto que aqui vês são as
velas que servem para cortar o vento e que se movem segundo as necessida-
des, e aqui é o leme com que se dirigirá a barca, não ao acaso, mas por mão e
ciência do piloto, e este é o corpo do navio dos ares, à proa e à popa em forma
de concha marinha, onde se dispõem os tubos do fole para o caso de faltar o
vento, como tantas vezes sucede no mar, e estas são as asas, sem elas como se
haveria de equilibrar a barca voadora, e destas esferas não te falarei, que são
segredo meu, bastará que te diga que sem o que elas levarão dentro não voará
a barca, mas sobre este ponto ainda não estou seguro, e neste tecto de arames
penduraremos umas bolas de âmbar, porque o âmbar responde muito bem ao
calor dos raios do sol para o efeito que quero, e isto é a bússola, sem ela não se
vai a parte alguma, e isto são roldanas, servem para largar ou recolher as velas,
como nos navios do mar. Calou-se alguns momentos, e acrescentou, E quando
tudo estiver armado e concordante entre si, voarei. A Baltasar convencia-o o de-
senho, não precisava de explicações, pela razão simples de que não vendo nós
a ave por dentro, não sabemos o que a faz voar, e no entanto ela voa, porquê,
por ter a ave forma de ave, não há nada mais simples, Quando, limitou-se a
perguntar, Ainda não sei, respondeu o padre, falta-me quem me ajude, sozinho
não posso fazer tudo, e há trabalhos para que a minha força não é suficiente.
Calou-se outra vez, e depois, Queres tu vir ajudar-me, perguntou. Baltasar deu
um passo atrás, estupefacto, Eu não sei nada, sou um homem do campo, mais
do que isso só me ensinaram a matar, e assim como me acho, sem esta mão,
Com essa mão e esse gancho podes fazer tudo quanto quiseres, e há coisas que
um gancho faz melhor que a mão completa, um gancho não sente dores se tiver
de segurar um arame ou um ferro, nem se corta, nem se queima, e eu te digo
que maneta é Deus, e fez o universo.

2 Parece-nos que, de fato, a maneira pouco convencional, bastante crítica e abertamente paródi-
ca com que Saramago trata a religião em seus romances justifica-se basicamente pelo questiona-
mento que sua literatura visa propor em relação a qualquer sistema ideológico que crie relações
de poder. Além disso, a forte presença do catolicismo numa cultura como a portuguesa também
viria justificar esta atitude desafiadora em relação à religião, uma vez que ela se constitui como
uma das bases culturais que a literatura de Saramago deseja colocar em questão nesse processo
de revisão crítica do passado que sua ficção realiza.

161
LITERATURA Baltasar recuou assustado, persignou-se rapidamente, como para não dar tem-
PORTUGUESA po ao diabo de concluir as suas obras, Que está a dizer, padre Bartolomeu Lou-
renço, onde é que se escreveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não está
escrito, só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua direita,
à sua mão direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda
de Deus, nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à esquerda
de Deus não se senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência, portanto Deus é
maneta. Respirou fundo o padre, e concluiu, Da mão esquerda.
Sete-Sóis ouvira com atenção. Olhou o desenho e os materiais espalhados pelo
chão, a concha ainda informe, sorriu, e, levantando um pouco os braços, disse,
Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o
arame que hão-de voar3 (SARAMAGO, 1983, p. 67-68).

É de se notar, ainda em relação à construção dos objetos de desejo, que eles se


“configuram” antagonicamente: o convento é estático, fixo – ainda que queira “al-
cançar o céu” pela sua magnitude e opulência – enquanto que à passarola alia-se
naturalmente a ideia de movimento, de liberdade (em oposição também à coerção que
sofriam os operários convocados para trabalhar, sob condições subumanas, na constru-
ção do convento). A partir dessa primeira oposição, cremos ser possível esquematizar
várias outras, as quais determinam os antagonismos da ação: corte x povo, convento x
passarola, poder político (+ o poder da Igreja) x o poder da vontade do homem (ve-
rificado tanto na superação dos seus limites pelo esforço dispensado na construção do
convento como sob a forma de combustível da passarola, como veremos em seguida),
aparência x realidade (como verificamos no fragmento sobre a falta de dinheiro para a
construção do convento, “ignorada” pelo Rei em seu desejo de ostentação), apologia x
consciência da decadência (a oposição que representa o substrato crítico do romance)
e, por último, a falta x o excesso (oposição que sustenta vários níveis de significação
no romance, mas que é concretizada na ausência da mão de Baltasar e no excesso de
visão de Blimunda, que é capaz de ver as pessoas “por dentro” quando está em jejum).
Leiamos abaixo o fragmento em que o Padre Bartolomeu, sabendo desse poder de
Blimunda, pede a ela que olhe os homens por dentro na hora em que estiverem mor-
rendo e recolha deles a vontade, capaz de sustentar o voo da passarola. É importante
notarmos o alcance metafórico desta imagem, que sugere exatamente a capacidade do
homem de sustentar os seus sonhos, os seus desejos (de mudança, de liberdade, de
“novos voos”) pela força da vontade, que, nesse sentido, tudo pode. É esta “fé no ho-
mem” que justifica o que inicialmente dissemos de Saramago e do caráter humanista
de sua concepção de literatura:

3 Baltasar havia perdido a mão esquerda na guerra, já que era soldado, e no lugar dela tinha um
gancho encaixado.

162
Disse o padre, Dentro de nós existem vontade e alma, a alma retira-se com a A produção literária
morte, vai lá para onde as almas esperam o julgamento, ninguém sabe, mas a contemporânea: José
vontade, ou se separou do homem estando ele vivo, ou a separa dele a mor- Saramago
te, é ela o éter, é portanto a vontade dos homens que segura as estrelas, é a
vontade dos homens que Deus respira, E eu que faço, perguntou Blimunda,
mas adivinhava a resposta, Verás a vontade dentro das pessoas, Nunca a vi, tal
como nunca vi a alma, Não vês a alma porque a alma não se pode ver, não vias
a vontade porque não a procuravas, Como é a vontade, É uma nuvem fechada,
Que é uma nuvem fechada, Reconhecê-la-ás quando a vires, experimenta com
Baltasar, para isso viemos aqui, Não posso, jurei que nunca o veria por dentro,
Então comigo.
Blimunda levantou a cabeça, olhou o padre, viu o que sempre via, mais iguais
as pessoas por dentro do que por fora, só outras quando doentes, tornou a
olhar, disse, Não vejo nada. O padre sorriu, Talvez que eu já não tenha vontade,
procura melhor, Vejo, vejo uma nuvem fechada sobre a boca do estômago. O
padre persignou-se, Graças, meu Deus, agora voarei. Tirou do alforge um frasco
de vidro que tinha presa ao fundo, dentro, uma pastilha de âmbar amarelo, Este
âmbar, também chamado electro, atrai o éter, andarás sempre com ele por onde
andarem pessoas, em procissões, em autos-de-fé, aqui nas obras do convento,
e quando vires que a nuvem vai sair de dentro delas, está sempre a suceder,
aproximas o frasco aberto, e a vontade entrará nele, E quando estiver cheio,
Tem uma vontade dentro, já está cheio, mas esse é o indecifrável mistério das
vontades, onde couber uma, cabem milhões, o um é igual ao infinito, E que
faremos entretanto, perguntou Baltasar, Vou para Coimbra, de lá, a seu tempo,
mandarei recado, então irão os dois para Lisboa, tu construirás a máquina, tu
recolherás as vontades, encontrar-nos-emos os três quando chegar o dia de
voar, abraço-te Blimunda, não me olhes tão de perto, abraço-te Baltasar, até à
volta. Montou a mula e começou a descer a ladeira. O sol aparecera por cima
dos cabeços. Come o pão, disse Baltasar, e Blimunda respondeu, Ainda não,
primeiro vou ver a vontade daqueles homens (SARAMAGO, 1983, p. 124-125).

Ainda que a estrutura opositiva do romance possa ser tão facilmente esquematiza-
da, a sua complexidade adensa-se por força da ironia, que, ao longo da narrativa, irá
subverter os polos das oposições, especialmente aquela que se pode designar como o
alto x o baixo, já que enquanto a Igreja “negocia” o Céu com a Corte, as pessoas que
vivem um sonho é que serão elevadas ao plano do sublime. Daí que as personagens
realmente nobres deste romance, aquelas que se identificam com o que de melhor se
pode esperar da humanidade, são Baltasar e Blimunda, os quais, ainda, protagonizam
uma história de amor das mais comoventes de toda a obra de Saramago. Inversamente,
a figura do Rei é ridicularizada, rebaixada, de modo que assim se desestabiliza tudo
aquilo que ele representa – inclusive a própria Nação.
Esta breve análise de alguns dos componentes significativos do romance Memorial
do Convento parece-nos ser, contudo, suficiente para assegurar que, na ficção de Sa-
ramago, o mundo inventado pela linguagem criadora assume função crítica na medida
em que põe em causa a História que foi (e que é) ao justapor – e ao contrapor – a
ela a “história que poderia ter sido”. Esta tem sido uma das principais linhas de força
da literatura portuguesa contemporânea, representada tão bem pelo autor visto, mas

163
LITERATURA também por nomes de peso como Antonio Lobo Antunes, Lídia Jorge, Mário Cláudio,
PORTUGUESA
Mário de Carvalho, Almeida Faria, Agustina Bessa-Luís, Helder Macedo, Teolinda Ger-
são, todos eles merecedores de uma leitura atenta, já que registram, cada um a seu
modo, o vigor da ficção em Portugal nas últimas décadas.

Referências

COELHO, Nelly Novaes. Linguagem e ambiguidade na ficção portuguesa


contemporânea. Colóquio Letras, Lisboa, n. 12, mar. 1973.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 16. ed. São Paulo: Cultrix, 1980.

SARAMAGO, José. Memorial do convento. São Paulo: Difel, 1983.

SEIXO, Maria Alzira. A palavra do romance. Lisboa, Livros Horizonte, 1986.

Proposta de Atividades

1) Num artigo publicado no Jornal de Letras, Artes e Idéias, de Lisboa (nº. 400, p. 17-
20, 6-12 mar. 1990), intitulado “História e Ficção” Saramago afirma o seguinte:

“Duas serão as atitudes possíveis do romancista que escolheu, para a sua ficção, os caminhos
da História: uma discreta e respeitosa, consistirá em reproduzir ponto por ponto os fatos
conhecidos, sendo a ficção mera servidora duma fidelidade que se quer inatacável; a outra,
ousada, levá-lo-á a entretecer dados históricos não mais que suficientes num tecido ficcional
que se manterá predominante. Porém, estes dois vastos mundos, o mundo das verdades
históricas e o mundo das verdades ficcionais, à primeira vista inconciliáveis, podem vir a ser
harmonizados na instância narradora.”

2) Tomando este fragmento do texto como motivação, e levando em conta a análise apre-
sentada do romance Memorial do Convento, redija um texto dissertativo que registre
sua reflexão sobre o modo como se estabelecem, na literatura de José Saramago, as
relações entre a ficção e a história e sobre a importância que esta modalidade narrativa
(que chamamos de “romance histórico inventado”) adquire no processo de revisão
crítica da história e da cultura de Portugal.

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