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Lingua-miolo.

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UNIVERSIDADE FEDERAL UNIVERSIDADE
DE SANTA CATARINA DE BRASÍLIA
Reitor Reitora
Ubaldo Cesar Balthazar Márcia Abrahão Moura
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EDITORA DA UFSC Enrique Huelva
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Pascale Casanova

A língua mundial
Tra d u ç ã o e d o m i n a ç ã o

Marie-Hélène Catherine Torres


. TRA DUÇ ÃO .

2021

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© 2015 Editions du Seuil
Título original: La langue mondiale: traduction et domination
© 2021 Editora da UFSC e Editora UnB
Direitos reservados desta edição

Coordenação editorial:
Flavia Vicenzi
Capa:
Paulo Roberto da Silva
Editoração:
Cristiano Tarouco
Revisão:
Júlia Crochemore Restrepo
Revisão técnica:
Clarissa Prado Marini

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina

C335l
Casanova, Pascale, 1959-2018
A língua mundial : tradução e dominação / Pascale Casanova ;
Marie-Hélène C. Torres, tradução. – Florianópolis : Editora da
UFSC ; Brasília : Editora UnB, 2021.
142 p.
Tradução de: La langue mondiale : traduction et domination
ISBN 978-65-5805-005-6 (Editora da UFSC). – ISBN 978-65-
5846-034-3 (Editora UnB)
1. Tradução e interpretação – Aspectos políticos. 2. Língua uni-
versal. 3. Bilinguismo. I. Torres, Marie-Hélène Catherine. II. Título.
CDU 801=03

Ficha catalográfica elaborada por Fabrício Silva Assumpção – CRB-14/1673

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser


reproduzida, arquivada ou transmitida por qualquer meio ou forma sem
prévia permissão por escrito da Editora da UFSC e da Editora UnB.
Impresso no Brasil.

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Sumário

Nota da tradutora................................................................................. 11

Exordium........................................................................................... 17
Capítulo 1 O bilinguismo latim-francês..................................... 31
Capítulo 2 Quando o francês tinha que ser defendido........... 51
Capítulo 3 A tradução como conquista...................................... 73
Capítulo 4 As Belas Infiéis.............................................................. 89
Capítulo 5 Leopardi e o francês.................................................. 109
Exitus ou a retomada das Belas Infiéis.................................... 135

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Exordium

Em La République mondiale des lettres,1 quis estudar o funcio-


namento da literatura mundial, relembrar o destino dos dominados
literários que são muitas vezes esquecidos enquanto tais e mostrar que
as suas vidas são difíceis se forem também dependentes de uma língua
dominada. No entanto, parece-me que um aspecto desse funcionamento
mundial não foi suficientemente analisado: o da língua e, em particular,
o da língua mundial.
Naturalmente, todos nós valorizamos a multiplicidade de línguas
que caracteriza a república mundial das letras e que consideramos ser
uma das manifestações da diversidade do gênio humano. A pluralidade
das línguas é uma riqueza a ser preservada; a comunicação entre elas e,
portanto, as “operações de tradução”2 são uma boa coisa. Mas a ambição
deste livro é mostrar que essa visão generosa e irênica, que muitos
leitores terão espontaneamente em mente, esconde o fato fundamental
de que a comunicação entre línguas, por meio do bilinguismo (que é

1
CASANOVA, Pascale. La République mondiale des lettres. Paris: Seuil, 1999. (Col.
Points Essais, 2008). [N.T.: Referência bibliográfica da tradução brasileira: CASANOVA,
Pascale. A república mundial das letras. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo:
Estação Liberdade, 2002.]
2
CASANOVA, Pascale. Consécration et accumulation de capital littéraire: la traduc-
tion comme échange inégal. Actes de la recherche en sciences sociales, n. 144, septembre
2002.

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definido pelo uso alternado de duas línguas pelo mesmo falante, e que
A língua mundial

implica ser especificado segundo o grau de domínio3 dos dois siste-


mas), da diglossia (que desde Charles A. Ferguson, de quem falaremos,
é definida pela presença de duas línguas numa comunidade, que de-
sempenham funções comunicativas complementares) ou da tradução,4
reproduz (ou reforça) as desigualdades linguísticas muito mais do que
as corrige. Tradução e bilinguismo coletivo são fenômenos a serem
compreendidos não “contra”, mas “a partir” da dominação linguística e
dos seus efeitos: em vez de lhe escaparem, esses fenômenos reproduzem
as relações de poder entre as línguas. E para entender essa relação e
suas desigualdades, é necessário, apesar dos linguistas que explicam
justamente que todas as línguas são iguais, partir da observação de que
há línguas dominantes e línguas dominadas e que, entre essas línguas,
há uma que domina mundialmente. Como diz Pierre Bourdieu: “Os lin-
guistas estão certos ao dizer que todas as línguas são linguisticamente
iguais; estão errados em acreditar que são socialmente iguais”.5
Não pretendo, portanto, em um livro tão breve, abordar todos
os aspectos dessa dominação que parece tão difícil de entender, mas
apenas abordá-la do lado (norte!) do bilinguismo e da tradução, ou
seja, pelo fato da dominação linguística alcançada (da dominação em
ações, se assim se pode dizer), embora a tradução e o bilinguismo sejam
geralmente considerados como forma de escapar ao poder da língua
mundial. Estou, portanto, mais interessada aqui na língua dominante e
naqueles que a falam, numa tentativa de compreender o que é a domi-
nação linguística, do que nos dominados linguísticos propriamente ditos.
Prestige [prestígio] (segundo o dicionário Larousse) vem do latim
praestigium, que significa “impostura, ilusão” ou “ilusão produzida por
magia ou feitiço” e, também, “ascendente, sedução, atração, charme”.
É, portanto, uma espécie de “poder baseado na ilusão”. Pierre Bourdieu

3
A conotação sexual da “posse” aqui é a mesma da “fidelidade” e já foi amplamente
enfatizada.
4
O foco principal aqui é a tradução literária, já que traduções científicas ou religiosas
requerem outros desdobramentos.
5
BOURDIEU, Pierre. L’Économie des échanges linguistiques. Langue française, n. 34,
18 p. 23, 1977.

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acrescentou ainda a noção de “mercado linguístico”6 que implica, por um

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lado, que todas as línguas estão concorrendo pelo poder nesse mercado
(“a língua [diz Bourdieu] não é apenas um instrumento de comunicação
ou até de conhecimento, mas um instrumento de poder”);7 e, por outro
lado, que existe uma dependência entre as leis da dominação e as leis
de formação de preços (ou de valores relativos): “a desvalorização pro-
gressiva do francês em relação ao inglês no mercado internacional”8 é
um dos seus exemplos.
As línguas são socialmente hierarquizadas de acordo com a sua
proximidade com o poder e com a legitimidade ou (o que equivale à
mesma coisa) de acordo com os benefícios simbólicos que proporcionam.
Aqueles que podem demonstrar um bom domínio da língua mundial
(em outras palavras, aqueles que têm esse “capital”)9 também exercem
sua autoridade, já que apenas

a língua reconhecida domina os mercados controlados pelas


classes dominantes. A língua legítima não é um bem coletivo,
não está disponível para todos os falantes: só tem a capacidade
de falar e de ser ouvido aquele que se apropriou da linguagem
autorizada, ou seja, a linguagem da autoridade. Os outros
falantes são levados a praticar o bilinguismo ou a diglossia [...]
abandonando a parte essencial do seu repertório comunicativo,
ou seja, [...] uma dimensão da sua identidade.10

Parece que todas as línguas mundiais sempre foram marcadas por


uma diferença, devido ao surgimento dessa língua, que é mais “pres-
tigiosa” do que as outras aos olhos de todos. Essa língua mundial11

6
Grifo da autora.
7
Ver BOURDIEU, Pierre. L’Économie des échanges linguistiques, op. cit., p. 19.
8
Ibid., p. 22.
9
Ver ibid., p. 18, 22-24.
10
BOUKOUS, Ahmed. Bilinguisme, diglossie et domination symbolique. In: BENNA-
NI, Jalil et al. Du bilinguisme. Paris: Denoël, 1985, p. 48.
11
Abram de Swaan distingue na “constelação” hierarquizada das línguas: as línguas
periféricas, as línguas centrais, as línguas supercentrais e a língua hipercentral. Ver
Words of the World: The Global Language System. Cambridge: Polity Press, 2001,
p. 4-7. Ver também: SENGUPTA, Mahasweta. Translation, colonialism and poetics: 19

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usa (de maneira totalmente arbitrária, simplesmente por causa de seu
A língua mundial

“prestígio”) esse poder, sua dominação sobre outras línguas para se


difundir mais do que as outras.12 Essa língua é por vezes negligenciada,
mas aparece imediatamente outra que a substitui.
A relação entre o latim e o grego é um excelente exemplo disso
nos tempos antigos. Sabe-se que os romanos importaram massivamente
os textos gregos na forma de traduções para se apropriar das “riquezas”
e do prestígio helênicos, enquanto os gregos traduziram muito pouco
os romanos na época em que dominavam política, militar e economica-
mente; como disse Giacomo Leopardi (1798-1837) no Zibaldone (volta-
remos a isso neste livro, no capítulo 4):

Pode-se ver no Pro Archia do Sr. Tullius que a língua grega já


foi considerada universal [...] e que o uso e a compreensão do
latim foram reservados para poucas pessoas [...]. No entanto,
o Império Romano foi provavelmente o maior império que
já existiu, e os romanos da época de Cícero já eram mestres
dos mares e grandes comerciantes. Do mesmo modo, vemos
hoje que os ingleses são mestres dos mares e do comércio; no
entanto, a sua língua, embora mais difundida do que muitas
outras, é pouco conhecida e não é utilizada em todo o mundo
[...], e é superada pelo francês, que nunca beneficiou de um
comércio tão vasto.13

A filologia contemporânea tem estudado de perto o bilinguismo


latim-grego dos romanos cultos, que foi perpetuado durante um período
de quatro séculos.14 James Noel Adams mostra em particular que o grego

Rabindranath Tagore in two worlds. In: BASSNETT, Susan; LEFEVERE, André (ed.).
Translation, History and Culture. London-New York: Pinter Publishers, 1992, p. 57-61.
Ele escreve sobre as autotraduções de Tagore: “Podemos claramente notar que Tagore
mudou não só o estilo do original, mas também as imagens e o tom das palavras [...], o
registro de língua que é procurado corresponde à poesia da língua de origem, o inglês
edwardiano. Adapta-se à ideologia da cultura ou do sistema dominante”. Tradução em
francês da autora.
12
É para facilitar a exposição que fiz da língua o sujeito ativo da frase.
13
LEOPARDI, Giacomo. Zibaldone. Tradução do italiano para o francês, com apre-
sentação e notas de Bertrand Schefer. Paris: Allia, 2003, p. 179-180.
20 14
Ver principalmente ADAMS, James Noel. Bilingualism and the Latin Language.

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era “a língua da alta cultura aos olhos dos romanos”; e que era o que “fazia

Exordium
com que os romanos tivessem um sentimento de inferioridade cultural”.
Ele mostra também que a falta de interesse dos gregos pela língua latina
não era tão generalizada como gostaríamos de dizer e, por exemplo,
que o latim falado pelos gregos, que eram falantes nativos e, portanto,
com sotaque grego, era considerado como um sinal de prestígio. Ele
reitera também que, entre os romanos cuja língua materna era o latim,
a grecização da pronúncia de certas palavras poderia ser considerada
(por causa do que chamaríamos uma espécie de “esnobismo”) como uma
“nova” pronúncia mais “correta”.15 Todos são fatos que reforçam a nossa
hipótese de um prestígio ligado à língua grega.
Assim, a língua mundialmente dominante não é sempre, ou não
necessariamente, a língua do país economicamente dominante (como
a situação contemporânea sugeriria) nem a do país mais poderoso
militarmente no contexto mundial. É claro que o poder econômico
ajuda a difundir a língua, mas são fenômenos distintos e separados que
não devem ser confundidos. O inglês hoje em dia não é a “língua dos
negócios” mais do que qualquer outra língua. E não há especialização
como a “língua do amor” ou a “língua da filosofia”. Há, pelo contrário,
culturas que insistem mais ou menos em um ou outro aspecto das
práticas humanas. Mas todas as línguas são capazes de abordar todos os
assuntos. E o objetivo (no sentido de “conatus”,16 já que não há “vontade”
onde não há sujeito) da língua mundialmente dominante parece ser o
de se expandir. Parto da premissa, neste livro, como podemos ver, da
trans-historicidade do modelo das línguas mundiais.
A desigualdade entre as línguas tem efeitos tão poderosos que
a(s) língua(s) dominada(s) ou muito dominada(s) pode(m) impedir (ou
pelo menos dificultar) o reconhecimento ou a consagração dos escritores
que a(s) pratica(m). Os críticos brasileiros apontam que dois dos maiores
romancistas naturalistas de língua portuguesa – o português Eça de

Cambridge: Cambridge University Press, 2003; RENER, Frederick M. Interpretatio:


Language and Translation from Cicero to Tytler. Amsterdam-Atlanta: Rodopi, 1989,
p. 293-326.
15
ADAMS, James Noel. Bilingualism and the Latin Language, op. cit., p. 16-17, 109.
16
Ver LORDON, Frédéric. Capitalisme, désir et servitude: Marx et Spinoza. Paris: La
Fabrique, 2010, p. 17-18. 21

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Queiroz (1845-1900) e o brasileiro Machado de Assis (1839-1908) –
A língua mundial

permaneceram praticamente desconhecidos (ou pouco conhecidos)


internacionalmente: “À sua glória nacional quase hipertrofiada corres-
ponde uma escuridão internacional desanimadora”,17 afirma Antonio
Candido.
Além disso, uma das principais leis linguísticas que nos permitiu
descobrir nossa república mundial de letras é que o bilinguismo (ou o
plurilinguismo) coletivo é um sinal de dominação: em outras palavras, as
populações que usam mais de uma língua são dominadas. Por exemplo,
por causa da dominação exercida pelo grego na época de Cícero, o
bilinguismo dos latinos que deveriam aprender outra língua como
segunda língua,18 se quisessem “possuir” a língua de prestígio, tornava-os
dominados linguisticamente (embora fossem dominantes militares).
A língua mundial, sendo a única língua legítima em nível mundial
e social, tem mais valor – ou considera-se que ela tenha mais valor – do
que as outras. A prova é (ou seria) que é a única que dá valor à tradução
(refiro-me, evidentemente, à extradução).19 Isso é uma exceção, uma
vez que a tradução é geralmente considerada uma desvalorização20 em
relação ao valor não econômico do original. Esse ponto de vista poderia
permitir ir além da concepção da tradução como relação singular

CANDIDO, Antonio. L’Endroit et l’envers: essais de littérature et de sociologie. Paris:


17

Métailié-Unesco, 1995, p. 236.


18
Na Europa e no mundo francófono, a segunda língua é a língua mais importante
depois da língua materna: pode ser a língua administrativa ou veicular. No mundo
anglo-saxão, é a língua aprendida em segundo lugar, cronologicamente. Além disso,
nenhuma noção deste campo (língua materna, bilinguismo, dialeto) está firmemente
estabelecida.
19
Ver GANNE, Valérie; MINON, Marc. Géographie de la traduction. In: BARRET-
DUCROCQ, Françoise (ed.). Traduire l’Europe. Paris: Payot, 1992. p. 55-95. Distinguem
a “intradução”, ou seja, a importação de textos literários estrangeiros na língua nacional,
da “extradução”, ou seja, a exportação de textos literários nacionais.
20
Ver MESCHONNIC, Henri. Les Grandes Traductions européennes: leur rôle, leurs
limites. Problématique de la traduction. In: DIDIER Béatrice (ed.). Précis de littérature
européenne. Paris: Presses universitaires de France, 1998, p. 224; ver também, por
exemplo, LEFEVERE, André. Translation, Rewriting and the Manipulation of Literaty
Fame. London: Routledge, 1992, p. 7-8, 112-115; ou APTER, Emily. Translation Zone:
22 A New Comparative Literature. Princeton: Princeton University Press, 2006, p. 4-5.

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entre um texto, um tradutor e a sua transcrição, reescrevendo cada

Exordium
“transcrição” na rede objetiva de relações de dominação mundial da
qual é uma das formas.21 A desvalorização automática de cada tradução
tem sido frequentemente descrita, e procurou-se apagá-la em todas as
épocas: seja – desde a Idade Média até ao século XVI – reunindo várias
palavras sinônimas;22 seja “esquecendo” o original,23 seja respeitando,
mais do que de costume, a lei da “fidelidade”. Hoje (quando ainda
existe a questão do valor da tradução – a tradução do Alcorão, por
exemplo, sendo considerada menos sagrada que a versão original em
árabe e continuando a ser uma fonte de discórdia), considera-se que a
“fidelidade” à língua de partida pode, por si só, resolver a questão (se
a tradução for muito fiel, considera-se que ela tenha quase tanto valor
quanto o original).
Também se pode considerar que o fato de a língua mundial ser
a única de todas as línguas a dar (ao invés de tirar) valor à tradução
pode ser sua definição e que, por um raciocínio circular, é a “causa” (ou
consequência) da sua excepcionalidade.
Mas não há língua dominante a menos que falantes – incluindo
falantes nativos – acreditem numa hierarquia entre as línguas. A domi-
nação de que estou falando aqui é simbólica na medida em que não
depende dos fatos (o número de falantes, por exemplo, ou o fato de
todas as línguas serem objetivamente iguais), mas sim de uma crença,
coletivamente compartilhada. Uma crença compartilhada é fortale-
cida, precisamente por causa do “coletivo” e é, na maioria das vezes,
naturalizada (portanto, considerada por todos como um fato “natural”,
não sujeito a discussão). Giacomo Leopardi, por exemplo, considerava
abertamente a dominação do francês no seu tempo como um fato
natural da língua. Essa crença coletiva reforça a dominação linguística
na medida em que se apresenta aos falantes e fortalece o seu poder cada
vez que a língua é falada.

21
Ver HEILBRON, Johan; SAPIRO, Gisèle. La Traduction littéraire, un objet socio-
logique. Actes de la recherche en sciences sociales, n. 144, septembre 2002, p. 3.
22
Ver adiante, p. 81.
23
Ver adiante, p. 92-93. 23

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Só há uma maneira de combater eficazmente uma língua domi-
A língua mundial

nante: adotar uma posição “ateia” e, portanto, não acreditar no prestígio


dessa língua, ser convencido da total arbitrariedade de sua dominação e
autoridade (em outras palavras, mesmo que ela seja “selecionada” entre
as línguas centrais, não há “motivo” para seu prestígio).
Em teoria, quanto mais o plurilinguismo (ou o bilinguismo) apro-
xima as “línguas em contato” (outro nome para bilinguismo),24 maior a
dominação (ou seja, mais as línguas – ou hábitos linguísticos – se inter-
penetram) maior a dominação e, consequentemente, maior o risco de a
língua dominada desaparecer.
Joseph Vendryès escreveu em 1921, sobre o bretão e o francês:

Há apenas uma passagem constante de um número considerável


de elementos de uma língua para outra; são tantos trânsfugas
que entram no campo oposto: no final, não haverá mais soldados
nativos... Todos os dialetos bretões, sem exceção, são invadidos
pelo francês. A língua da civilização traz inúmeras palavras novas
representando objetos, ideias, costumes novos. A literatura e
a religião já encheram o bretão de palavras francesas [...]. Será
que, por ter sido tão penetrado pelo francês, o bretão vai chegar
ao ponto de parecer um dialeto retardado? [...] Vai chegar o
momento em que já não saberemos se ainda estamos falando
bretão completamente impregnado de francês, ou francês em
que alguns náufragos bretões teriam sobrevivido. O bretão teria
se misturado ao francês como um pedaço de açúcar na água.
Poderia provavelmente dizer: o bretão já não existe mais.25

Pelo contrário, quanto mais as línguas se separam (ou têm poucas


interpenetrações), menos dominação há e mais se sente a necessidade
de tradução. Em outras palavras, a tradução substitui a possível falta
de bilinguismo coletivo e permite medir o grau de dominação. Quanto
mais a tradução está presente, menos importante é a dominação; inver-
samente, quanto menos presente está a tradução, maior é a dominação

24
MOUNIN, Georges. Les Problèmes théoriques de la traduction. Paris: Gallimard,
1963, p. 3-9.
25
VENDRYES, Joseph. Le Langage: introduction linguistique à l’histoire. Paris: La
24 Renaissance du Livre, 1921, p. 335-341.

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(ou seja, a tradução torna-se inútil, uma vez que a versão original é

Exordium
suficiente).
Na prática, as coisas são muito mais complicadas porque aqueles
que não precisam de tradução ainda traduzem apesar de tudo. Isso sem
dúvida explica o número de traduções “falsas”: por exemplo, apesar do
bilinguismo significativo dos suecos ou dos holandeses, eles continuam
a fazer um importante trabalho de tradução,26 como se quisessem não
mostrar a sua dominação (real). A tradução pode ser concebida como
uma forma de resistência (ou de luta contra) à porosidade das línguas27 e
à dominação linguística. Do mesmo modo, o Reino Unido reivindica em
alto e bom som uma ortografia e pronúncia “diferentes” da americana,
permitindo que países como o Canadá (que tem uma fronteira com o
país mais poderoso do mundo) reivindiquem uma identidade distinta
daquela dos Estados Unidos.
Abram de Swaan, que estudou extensivamente esses fenômenos
em escala mundial,28 sustenta que o que ele chama de “sistema linguístico
mundial emergente”29 tem sua própria coerência de multilinguismo.
Para ele, a centralidade (eu diria: dominação) de uma língua é medida
pelo número de falantes plurilíngues (ou bilíngues) que a falam, num

26
PYM, Anthony; CHRUPALA, Grzegorz. The quantitative analysis of translations
flows in the age of an international language. In: BRANCHADELL, Albert; WEST,
Lovell Margaret (ed.). Less Translated Languages. Amsterdam: John Benjamin Publi-
shing Company, 2004, p. 28-31, escrevem neste sentido: “Se, por exemplo, todos os
suecos leem em inglês, eles não devem realmente precisar de traduções do inglês, e têm
potencialmente uma cultura muito aberta com uma porcentagem relativamente baixa
de traduções.[...] A nossa hipótese lógica está completamente errada. Quando países
publicam muitos livros em línguas estrangeiras, tendem também a traduzir muitos
livros do estrangeiro”. Tradução em francês da autora.
27
O volume Less Translated Languages levantou esse problema, especialmente BA-
CARDI, Monserrat. “Translation from Spanish to Catalan during the 20th century”,
p. 1781; ela cita (e traduz) um dos últimos tradutores de Dom Quixote em catalão,
Civera: “Os catalães cultos podem ler no texto as obras mais importantes de Cervantes.
Por que essa audácia de fazer o Dom Quixote falar na nossa língua materna? Porque
queríamos prestar homenagem a este grande escritor, e porque queríamos honrar esta
grande língua”. Tradução em francês da autora.
28
SWAAN, Words of the World, op. cit., p. 4.
29
Ibid. 25

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sistema em que todas as línguas periféricas estão ligadas ao centro pelos
A língua mundial

plurilíngues30 (ou bilíngues). Uma língua é mundialmente dominante


se for uma segunda língua utilizada por falantes bilíngues em todo
o mundo. Não é, portanto, o número de falantes que determina se é
ou não dominante (neste caso o chinês seria a língua dominante): é o
número de falantes plurilíngues que a “escolhem”.
Mas enquanto todos os bilíngues – coletivos – são dominados,
nem todos os dominados são bilíngues. Essa é também a razão pela qual
a língua dominante mundialmente é a língua privilegiada em todas as
traduções, tanto para operações de intradução como de extradução.31
No primeiro caso, a língua dominante é compreendida por falantes
plurilíngues de todas as línguas e, por conseguinte, tem um espectro
mais vasto do que as outras. E, no segundo caso, a língua exporta seus
produtos principalmente porque são escritos ou misturados na língua
dominante e considerados como os “melhores”. Eles são, em todo
caso, os mais “prestigiosos”: em razão de uma causalidade circular que
reforça a evidência da sua posição, a língua dominante é a que melhor
e mais circula pelo mundo porque é compreendida pelo maior número
de pessoas e porque seus produtos circulam sem demora. É, de certa
forma e em todos os sentidos, uma “licença de circulação”. Mas, com
as traduções, são exportados também pensamentos, categorias de
pensamentos, visões e divisões, objetos dignos ou indignos de serem
pensados, formas de abordar tal ou tal objeto de pensamento, etc. Isso
supõe que a exportação de uma língua implica muito mais do que a
própria língua; inclui também, segundo a chamada hipótese de Sapir-
Whorf, toda uma visão do mundo.
A propósito, não se trata aqui de contribuir para os estudos pós-
coloniais da tradução, cujos termos me parecem ser vãos e se contentarem
em opor a ingenuidade dos foreignists ao realismo dos domesticists.32
Reduzir a dominação à sua forma política pode naturalmente servir
para se excluir dela, mas não pode conduzir à sua compreensão em

30
SWAAN, Words of the World, op. cit., p. 4.
31
Ver nota 19.
Ver principalmente ROBINSON, Douglas. Translation and Empire: Postcolonial
32

26 Theories Explained. Manchester: St. Jerome, 1997, p. 1.

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todos os aspectos.33 Tampouco se trata de um capítulo acrescentado ao

Exordium
polissistema34 de Itamar Even-Zohar, embora o Relational Thinking35
esteja muito presente aqui, e o polissistema seja o modo de pensar
mais próximo do nosso, fortemente influenciado pelo pensamento de
Pierre Bourdieu.
No mundo linguístico, as operações de tradução são, portanto,
uma das principais armas na luta pela legitimidade. Para um escritor
dominado, ter acesso à tradução por meio da luta é combater pela sua
própria existência como membro legítimo do campo linguístico, para o
acesso aos centros, para ser lido por aqueles que decretam o valor (ou
não) do que leem, etc.
Salman Rushdie, romancista paquistanês de língua inglesa que
vive principalmente na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos e para
quem, portanto, o problema da tradução não deveria existir, refere-
se a escritores imigrantes como “homens traduzidos”:36 é uma forma
de expressar que a sua língua materna não pertence (ou não pertence
realmente) ao mundo linguístico, que é muito dominada para isso.
Significa também que a escrita dos dominados linguísticos, em geral,
é potencialmente “sempre já traduzida”, já que é escrita em uma língua
mal conhecida pelos que consagram. Em outras palavras, a tradução
é a única forma propriamente linguística de acessar a percepção, a
existência, nas regiões dominadas deste mundo. Não é uma simples
“naturalização” (no sentido de uma mudança de nacionalidade e de

33
Parece-me que, hoje em dia, os americanos tendem a negar ou ignorar a dominação
exercida pela língua inglesa e suas formas em países não anglófonos; é por isso que, se
for esse o caso, insistem tanto no pós-colonialismo, pelo qual não são coletivamente
responsáveis.
34
O polissistema é uma forma de pensamento, proveniente dos formalistas russos,
que se interessam pela cultura como “sistemas interdependentes”. Por meio do aluno de
Even-Zohar, Gideon Toury, ele tornou-se essencial nos “estudos da tradução”.
35
O Pensamento Relacional (Relational Thinking) é um pensamento em que a ênfase
está na relação entre dois elementos e não nos próprios elementos. Esta forma de pensar
é muito importante tanto para Bourdieu quanto para Even-Zohar. Ver EVEN-ZOHAR,
Itamar. Factors and dependencies in culture: a revised outline for polysystem culture
research. Canadian Review of Comparative Literature, v. 24, n. 1, 1997, p. 15.
36
RUSHDIE, Salman. Patries imaginaires: essais et critiques. Traduzido do inglês para
o francês por Aline Chatelin. Paris: Bourgois, 1993, p. 28. 27

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língua), é também a obtenção de um certificado de legitimidade: ser
A língua mundial

traduzido – ou tornar-se bilíngue e/ou escrever em várias línguas – para


uma das línguas centrais, ou melhor, para a língua mundial, é tornar-se
legítimo.37 As traduções funcionam então como uma espécie de direito
à existência internacional, permitindo que o escritor seja reconhecido
para além das fronteiras nacionais. Como resultado, os textos traduzidos
materializam os limites das áreas legítimas: designam e separam o que
é legítimo e o que não é. Sabemos que a tradução inglesa (em 1859)
do poeta persa Omar Khayyam (cerca de 1050-1123) o tornou um
“clássico” da língua inglesa; que foi a autotradução do poeta indiano
Rabindranath Tagore do bengali para o inglês, antes da guerra de 1914,
que lhe valeu o prêmio Nobel em 1913;38 que a tradução francesa do
romance do escritor iraniano Sadegh Hedayat, La Chouette aveugle
[A coruja cega],39 em 1953, deu-lhe uma existência tanto em Paris como
em Teerã; que a tradução francesa permitiu aos escritores do “boom”
latino-americano obter reconhecimento universal;40 que a autotradução
de Milan Kundera do tcheco para o francês nos anos 1970 o tornou um
dos escritores mais consagrados internacionalmente nos últimos anos;
que a tradução em francês dos romances do português Antônio Lobo
Antunes lhe permitiu ser reconhecido; que a tradução das peças de Gao
Xingjian para o sueco lhe valeu o prêmio Nobel em 2000, etc.
Por causa de um tropismo óbvio, vamos nos concentrar princi-
palmente (mas não apenas) nas transformações e mudanças que estão
afetando ou afetaram o francês. Portanto, é principalmente a partir do
ponto de vista francês que observaremos as diferentes teorias da(s) tra-
dução(ões). E graças aos comentários que foram feitos sobre o papel e a

37
Muitos escritores latino-americanos (e por conseguinte de língua espanhola) escre-
vem hoje em inglês.
38
Rabindranath Tagore obteve o prêmio Nobel em 1913. Ver nota 11.
HEDAYAT, Sadegh. La Chouette aveugle. Traduzido do persa para o francês por
39

Roger Lescot. Paris: José Corti, 1953.


40
Ver, por exemplo, STEENMEIJER, Maarten. De Spaanse en Spaans-Amerikaanse
literatuur in Nederland: 1946-1985. Muiderberg: Coutinho, 1989, que mostra (ver nota
16, p. 91) que a tradução francesa de autores latino-americanos em francês desempenhou
um papel predominante no seu reconhecimento na Alemanha, Itália, Estados Unidos e
28 Países Baixos (referência gentilmente cedida por Johan Heilbron).

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ação do francês quando este era dominante, será possível compreender o

Exordium
papel e a ação do inglês hoje, que é, sem dúvida, a língua mundialmente
dominante.
A posição da francesa, como ex-dominante, não me parece ser
a pior maneira de observar os fenômenos de dominação linguística:
nós franceses conhecemos esse tipo de dominação por tê-la exercido;
mas já não a exercemos. Os autores de Histoire des traductions en langue
française: XIXe siècle [História das traduções em língua francesa: século
XIX], por exemplo, afirmam que o francês gozava no século XIX de
um status privilegiado porque era uma língua diplomática e era falada e
escrita por muitos escritores:41

Os franceses podem de fato continuar acreditando que a sua


língua desempenha o papel de língua internacional, ou mesmo de
língua internacional, com exclusão de qualquer outra (especial-
mente porque o latim está perdendo cada vez mais esse papel).42

Hermann Ewerbeck escreveu em 1852 que os franceses professavam


“uma singular indiferença pelo estrangeiro, uma indiferença que se ma-
nifestava numa ignorância culpada de coisas e ideias não francesas”,43
o que não é nada mais que uma característica dos falantes da língua
mundial. Dizem também que o francês, na tradução, não era apenas
a língua de chegada, mas também a língua de partida (enquanto língua
“intermediadora”), como acontece frequentemente hoje em dia com
o inglês. Por exemplo, as traduções das peças de Shakespeare pelo
famoso tradutor francês Pierre Letourneur (1736-1788) foram tradu-
zidas em espanhol, italiano e português, sem recorrer ao original; foram
traduzidos o suíço de língua alemã Johann David Wyss ou os famo-
síssimos contos do cônego alemão Hermann Schmid (contos morais
para crianças) a partir da versão francesa, assim como para Lord
Byron e Walter Scott.44 Jean Delisle e Judith Woodsworth acrescentam:

41
CHEVREL, Yves; D’HULST, Lieven; LOMBEZ, Christine (ed.). Histoire des traduc-
tions en langue française: XIXe siècle. Lagrasse: Verdier, 2012, p. 1249.
42
Ibid., p. 37.
43
Citado em ibid.
44
Ibid. 29

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“Em nível internacional, as traduções francesas funcionavam como in-
A língua mundial

termediadoras”.45
Veremos nos vários capítulos deste livro que o significado das
traduções e sua prática mudaram ao longo do tempo; não porque os con-
ceitos tradutológicos tenham sido mudados, mas sim porque a posição
de cada língua mudou no espaço linguístico.
Numa tentativa de compreender o que é uma língua dominante
em nível mundial, os seus diferentes efeitos e a ligação que tem com as
traduções, pareceu-me que seria melhor fazer uma breve história des-
ses fenômenos na França (e também, mais rapidamente, na Inglaterra)
– uma história cujos pressupostos e conclusões serão, obviamente, muito
diferentes dos de Henri Van Hoof46 – e que terminará no século XIX.
Se Charles A. Ferguson estabeleceu (ou melhor, se estabelecemos
a partir dele, como veremos) que há relações de força entre as duas
línguas usadas por um bilíngue ou por um diglóssico, pode-se dizer
então que o latim foi a língua dominante até o século XVIII;47 o francês,
por sua vez, foi a língua dominante até o século XX, e o inglês a partir de
então. O “prestígio” continua a desempenhar o seu papel. E é estudando
as línguas dominantes, o que se diz sobre elas, suas transformações, as
formas de sua dominação, os nobres papéis que lhes foram atribuídos e
seu lugar central nas traduções, que poderemos talvez entender o lugar
do inglês hoje.

DELISLE, Jean; WOODSWORTH, Judith (ed.). Translators Through History. Amster-


45

dam: John Benjamins B.V., 2012, p. 71. Tradução em francês da autora.


HOOF, Henri van. Petite Histoire de la traduction en Occident. Louvain-la-Neuve:
46

Cabay, 1986. (Col. Bibliothèque des Cahiers de l’Institut de linguistique de Louvain).


47
Em conexão com o latim, o italiano era também uma língua de prestígio. Marc
Fumaroli escreve o seguinte: “Deve-se notar que, até 1640, o italiano era a língua mais
usada e lida, depois do neolatino, pelos letrados europeus. A querela italiana [...] foi uma
manifestação dessa autoridade literária internacional conquistada durante o Renas-
cimento pela Itália e pelo italiano”. FUMAROLI, Marc. La Querelle des Anciens et des
Modernes, précédé de Les Abeilles et les Araignées. Edição e notas de Anne-Marie Lecoq.
Paris: Gallimard, 2001. (Col. Folio classique), p. 24; e mais adiante (sobre o sucesso
de um livro italiano): estas inumeráveis edições “espalharam-se pela Europa, ates-
tando a posição eminente que o italiano literário ainda ocupava como segunda língua
30 da república das letras e como rival extremamente competitivo do francês”. Ibid., p. 31.

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Capítulo 1
O bilinguismo latim-francês

É sempre a história da língua francesa (no caso da França) que


é estudada, e não a história de uma relação, de uma luta entre duas
formas, duas possibilidades, duas concepções. Em outras palavras, é
sempre numa perspectiva nacional que as línguas são estudadas. São
consideradas como entidades dentro das fronteiras nacionais, como
parte de uma história nacional.
A pesquisa de Françoise Waquet inverteu maravilhosamente a
perspectiva, na verdade, com o seu estudo sobre o uso, a prática e o
lugar real do latim na Europa entre os séculos XVI e XX.48 Mas, longe
de escrever essa história de uma língua, transformada exclusivamente
em língua escrita, nas suas relações com as outras, limitou-se apenas
à perspectiva latina. Ora, como diz Serge Lusignan, “não podemos
compreender o lugar da língua francesa na sociedade medieval sem
especificar a sua relação com o latim”,49 e vice-versa. O “povo” não
falava latim; mas a nobreza e todos os “letrados”, os clérigos que haviam

48
WAQUET, Françoise. Le Latin ou l’Empire d’un signe: XVIe-XXe siècle. Paris: Albin
Michel, 1999. Ver também: LEONHARDT, Jürgen. La Grande Histoire du latin des ori-
gines à nos jours. Paris: CNRS Éditions, 2010.
LUSIGNAN, Serge. Langue française et société du XIIIe au XVe siècle”. In: CHAU-
49

RAND, Jacques (ed.). Nouvelle Histoire de la langue française. Paris: Seuil, 1999, p. 95.

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estudado ou estavam destinados ao sacerdócio50 falavam e sobretudo
A língua mundial

escreviam em latim. Era tanto a língua do conhecimento51 quanto a


língua da Igreja.
A partir dessas relações de dependência52 que definem o francês
e o latim a partir do século IX, pode-se afirmar que um não existe mais
sem o outro, e que sua evolução recíproca depende do estado de suas
relações de poder e do resultado das lutas entre clérigos – na forma de
manifestos (como La Deffence et illustration de la langue françoyse [Defesa
e ilustração da língua francesa] de Du Bellay, 1549), de posições mais ou
menos virulentas, de publicações de gramáticas ou dicionários, etc.
O bilinguismo é um dos indícios mais fortes da dependência
linguística. Dessa forma, a história da prática do latim, ou melhor, da
relação entre o latim, o francês e as outras línguas faladas no território do
“Reino da França”,53 mesmo esboçada de maneira rápida, poderia permitir
explicitar o que estava em jogo nas diferentes práticas de transição de uma
língua para outra, mudanças, repetições, autotraduções, etc.
O trabalho de Anthony Lodge54 – sem dúvida nenhuma porque
ele é, antes de mais nada, inglês, mas sobretudo sociolinguista – mostra
em primeiro lugar que a maioria das histórias da língua francesa
são escritas (de forma totalmente inconsciente) segundo uma visão
teleológica, isto é, como se a história fosse apenas a história do triunfo de
uma língua sobre as outras, como se estivesse indissoluvelmente ligada a
uma história nacional. Assim, do “protofrancês” ao “francês moderno”
(passando pelo francês antigo, francês médio, francês clássico, etc.),

50
LUSIGNAN, Serge. Parler vulgairement: les intellectuels et la langue française aux
XIIIe et XIVe siècles. 2. ed. Paris: Vrin; Montréal: Presses de l’université de Montréal,
1987, p. 89.
51
FUMAROLI, Marc. Le Génie de la langue française. In: NORA, Pierre (ed.). Les
Lieux de mémoire. t. III, 2. Paris: Gallimard, 1992, p. 914.
52
LUSIGNAN, Parler vulgairement, op. cit., p. 47. Ele escreve, por exemplo: “O latim se
opõe ao vernáculo e o domina como a classe dos clérigos se opõe e domina a dos leigos”.
53
Ver COUROUAU, Jean-François. Moun Lengatge Bèl: les choix linguistiques mino-
ritaires en France (1490-1660). Genève: Droz, 2010. (Col. Cahiers d’humanisme et
Renaissance, v. 86).
54
LODGE, R. Anthony. Le Français: histoire d’un dialecte devenu langue. Traduzido
32 do inglês para o francês por Cyril Veken. Paris: Fayard, 1997.

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espera-se que testemunhemos, através de uma série de etapas lineares, a

Capítulo 1 O bilinguismo latim-francês


imposição progressiva de uma língua.
Essa história etnocêntrica escrita a partir de uma crença nacional
linguística esquece não somente o que os sociolinguistas e linguistas
chamam de “variação” linguística (ou seja, a existência de diferentes
variedades de língua, ou o fato de que as línguas não são entidades
monolíticas, mas sim “amálgamas fluidas de variedades”),55 mas também
o papel crucial da diglossia: seja ela interna a uma mesma língua – isto é,
a capacidade dos falantes de mudar de um dialeto para outro pertencente
à mesma língua; seja externa – isto é, a capacidade dos falantes de mudar
de uma língua para outra, de acordo com as circunstâncias – e Ferguson
acrescentaria, de acordo com o contexto social.
Em outras palavras, em vez de contar a história de uma língua
que não existe enquanto tal – a não ser nas representações e mitologias
nacionais –, propomos mostrar que a emergência do francês padrão
ocorreu graças à emergência de dialetos coexistentes e concorrentes no
mesmo espaço geográfico e social, e de práticas linguísticas e sociais
reais, isto é, a existência comprovada de práticas bilíngues que não só
explicam as mudanças e evoluções da língua francesa “futura”, mas
também e principalmente as lutas, instabilidades, incertezas, diferenças,
hierarquias entre as línguas e de acordo com os contextos. “A língua
padrão”, escreve Lodge, “é apenas um dos muitos dialetos”.56 Assim,
é absurdo perguntar-se quando se deixou de lidar com o latim. As
pessoas sempre tiveram a impressão de falar a mesma língua que seus
pais e a transmitem para seus filhos; e são os linguistas, historiadores e
literatos que, nessa continuidade, construíram zonas prototípicas que
chamaram de latim ou francês (ou outros). O principal fator na fixação
do glossônimo foi a existência de um corpus literário.
Após o colapso do Império Romano no século V, houve uma
transição imperceptível de uma situação bilíngue para outra. Eu acres-
centaria, de uma dominação linguística para outra. As grandes migrações
estiveram na origem da dialetização em grande escala do latim falado (é
fora de propósito entrar aqui nos detalhes das análises para determinar
se foi a influência do gaulês ou das línguas do invasor germânico que

55
LODGE, Le Français, op. cit., p. 25.
56
Ibid., p. 29. 33

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causou essa dialetização – em outras palavras, essa diferenciação em
A língua mundial

vários dialetos do latim falado). O galo-românico se polarizou entre os


dialetos do Norte e do Sul, dando origem a duas línguas embrionárias
padrão, a língua d’oil e a língua d’oc. Havia também um terceiro
grupo dialetal (o franco-provençal), representado em Lyon desde o
século XIII. É impossível dizer quando o povo da Gália deixou de falar
latim e começou a falar francês. Os que levantaram a questão deram
a mesma resposta: nunca. Os falantes da época não se questionavam
necessariamente sobre o nome do que falavam (é uma característica
das pesquisas sociolinguísticas que os falantes de outras línguas além
da língua oficial sejam muitas vezes incapazes de nomear sua língua).
Existia a consciência da distância entre a sua própria maneira de falar e
o latim, mas para que isso acontecesse, era preciso pertencer à minoria
que estudava o latim.
Assim, diz Lodge:
A delimitação das línguas de uma mesma família a partir de
critérios puramente linguísticos é muitas vezes impossível: tal
como os dialetos se fundem uns nos outros no espaço geográfico
ao longo de um continuum que ignora as fronteiras políticas
(até que uma língua padrão se estabeleça), também as fases
diacrônicas de uma língua formam um continuum ininterrupto
ao longo do tempo. [...] Devemos, portanto, admitir que, aqui
como em qualquer outro lugar, a mudança linguística ocorreu
em graus imperceptíveis ao longo dos anos.57

Quaisquer que sejam as teorias em discussão, os historiadores


concordam que, desde o início do século IX, uma nova situação de
diglossia finalmente prevaleceu, dividindo, nas práticas e usos sociais,
o “baixo-latim”, que cumpria as funções mais elevadas (escrita, religião,
educação, discurso público, assuntos governamentais), e o “protorro-
mânico” destinado às tarefas subordinadas.58 As duas línguas teriam se
tornado cada vez mais distantes. No início do século IX, “formou-se na
sociedade a ideia de que o românico deveria ser considerado como algo

57
LODGE, Le Français, op. cit., p. 123.
34 58
Ibid., p. 125.

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diferente do latim”.59 Dessa forma, os concílios de 813 decidiram que

Capítulo 1 O bilinguismo latim-francês


as homilias poderiam ser feitas nas línguas vernáculas, e não mais em
latim. Foi no início do século IX que uma língua românica vernácula
foi reconhecida. Os Juramentos de Estrasburgo (842) podem ser consi-
derados como a certidão de nascimento do francês. Testemunham que
“o discurso político” (juramentos pronunciados numa circunstância
decisiva por personagens tão importantes quanto os descendentes de
Carlos Magno)60 em protofrancês existiu de verdade.
Charles A. Ferguson revolucionou a sociolinguística ameri-
cana primeiro, mundial depois, em 1959, com um artigo. Ele pegou
emprestada a palavra “diglossie” do francês e simplesmente intitulou
seu artigo de “Diglossia” (que foi republicado em muitos volumes em sua
homenagem).61
Ele mostrou – ao focar apenas em variedades da mesma língua
que ele chamou de “diglossia”62 – que o uso de cada um dos dialetos ou
línguas diferentes era socialmente diferenciado, ou que era classificado
de acordo com a importância social dada à ação da enunciação.63
Nem ele nem seus sucessores jamais mencionaram ou pronunciaram
a palavra “dominação” linguística, mas é disso que se trata. Ferguson
interessou-se pelo uso do árabe clássico e dialetal no Egito; do suíço-
alemão e do alemão na Suíça, do crioulo haitiano e do francês no Haiti
e pelos usos diferenciados que existiam na Grécia entre a catarévussa
e a demótica (onde apenas a língua demótica é usada atualmente). Ele
chamou High (H-alta) a variedade que servia para todas as situações
socialmente nobres e prestigiosas e Low (L-baixa) a variedade que servia
em todas as situações privadas e orais. Ele fez a seguinte tabela:64

59
LODGE, Le Français, op. cit., p. 129.
60
Ibid., p. 32.
61
Por exemplo, FERGUSON, Charles A. Diglossia. In: WEI, Li (ed.). The Bilingualism
Reader. London-New York: Routledge, 2000, p. 65-80.
62
Em 1967, um dos alunos de Ferguson, Joshua Fishman, mostrou que pode haver
diglossia entre mais de dois códigos sem a necessidade de uma relação genética comum,
ver “Bilingualism with and without diglossia; diglossia with and without bilingualism”.
In: ibid., p. 81-88.
63
Contexto que inclui os usos escritos (epistolar, literário, científico, etc.) e a maneira
como podem ser valorizados.
35
64
FERGUSON, Diglossia. In: WEI, op. cit., p. 68.

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A língua mundial

Situação social / variedade de língua H L


Pregação na igreja ou na mesquita x
Instruções aos empregados domésticos, serviçais, operários, etc. x
Carta pessoal x
Discurso perante o Parlamento x
Conferência universitária x
Conversação em família, entre amigos, etc. x
Informações pelo rádio x
Novela radiofônica x
Editorial de jornal, legenda de foto x
Legenda de desenho de imprensa x
Poesia x
Literatura popular x

A variedade que Ferguson chama de “alta” é, portanto, utilizada


por falantes bilíngues em situações religiosas, no ensino, na adminis-
tração e na literatura “alta”; o prestígio (que permanece muito difícil
de definir) caracteriza, portanto, essa mesma variedade, assim como
o patrimônio literário e a padronização; em oposição, a variedade
“baixa” é utilizada em conversas com pessoas próximas, na literatura
popular; é instável e não padronizada, ausente do ensino, sem tradição
ou patrimônio literário.
Os falantes estudados por Ferguson eram todos dominados
pela variedade H, à qual atribuíam virtudes que eram apenas efeitos
de sua crença (cultural, política, histórica, social, etc.). Os falantes de
ambas as variedades (em todas as línguas) estavam convencidos de que
a variedade H era superior à variedade L; apenas a variedade H seria
dotada de beleza, lógica e nobreza. O apego a H era tão forte que, às
vezes, a variedade L era percebida como inexistente. Tão poderosa foi
a sua desvalorização que alguns falantes afirmavam não a falar. Além
disso, a variedade H era considerada melhor até mesmo para formular
pensamentos importantes, mesmo quando os falantes falavam mal.
O fato crucial da diglossia ou do bilinguismo, como descrito por
Ferguson, é a dissimetria, a desigualdade e a hierarquia social que real-
36

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mente ocorre entre as duas línguas. A escola perpetua essa diglossia (ou

Capítulo 1 O bilinguismo latim-francês


essa dominação), e a “decisão” de manter a diglossia depende do “coletivo”.
O que Ferguson descreveu para as variedades de línguas “mo-
dernas” funciona muito bem para o bilinguismo francês-latim; o que ele
propôs estudar no final de seu artigo:

Pode-se mencionar o latim e as línguas românicas emergentes


durante um período de vários séculos em diferentes partes da
Europa. O vernáculo era usado em conversas ordinárias, mas o
latim era usado para a escrita e para certos tipos de discursos
formais. O latim era a língua da Igreja e da sua literatura. O latim
tinha o prestígio; havia diferenças gramaticais surpreendentes
entre as diferentes variedades de línguas em cada território.65

O “prestígio” é uma palavra muito importante aqui porque


representa uma forma de poder. Se o latim era “prestigioso”, deve-
se concluir que tinha uma autoridade, que exercia um poder que era
ainda mais misterioso por não se basear em nada tangível ou material.
Esse poder e essa prodigiosa autoridade (se é verdade que, para o
latim, ela era totalmente indiscutível até a primeira metade do século
XVI e exercida na prática até o século XVII) tinham base na crença,
ou seja, numa espécie de “magia” social. Podemos deduzir que uma
língua é prestigiosa se os falantes (e os escritores, no caso do latim a
partir do século IX) lhe atribuíam maiores poderes do que a função de
comunicação à qual a outra língua – o vernáculo – era destinada.
A seguir, as categorias de Ferguson aplicadas ao estudo da divisão
entre as duas línguas e o bilinguismo francês-latim entre os séculos IX
e XVII:
» Função: o latim tinha o monopólio da escrita66 e era a língua
reservada para todas as áreas importantes da vida social: reli-
gião, direito, gestão dos assuntos da cidade. Era a língua comum
da elite letrada da Europa durante toda a Idade Média e até
muito tarde.

65
FERGUSON, Diglossia. In: WEI, op. cit., p. 76-77. Grifo e tradução em francês da
autora.
66
LUSIGNAN, Parler vulgairement, op. cit., p. 90. 37

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» Prestígio: o latim era a única língua da Europa Ocidental com
A língua mundial

algum prestígio, sendo os vernáculos orais considerados como


simples idiomas.
» Patrimônio literário: sendo a única língua escrita, o latim era
também a única língua com tradição literária.
» Aquisição: o latim era ensinado nas escolas67 enquanto os falares
vernáculos, aprendidos no colo das mães, eram chamados de
línguas maternas.68
» Padronização: apenas o latim tinha uma gramática altamente
codificada e era percebido como fora da variação, distinguindo-
se assim dos vernáculos que (pareciam) estar em constante
mudança.
» Léxico: parte importante do vocabulário do latim era composta
por expressões eruditas sem equivalente galo-românico nem,
posteriormente, protofrancês. Pode-se, portanto, concluir que
os léxicos galo-românico e francês tiveram que incluir expres-
sões populares e nomes de objetos muito cotidianos ou de
circulação extremamente localizada, para os quais o latim não
possuía equivalente.
A dominação do latim aparece muito claramente através desse
cenário. A história linguística da França entre os séculos IX e XVII con-
siste em, portanto, seguir o caminho da diluição gradual da situação de
diglossia e observar a transição para as funções H da língua dedicada até
então às funções L, ou seja, a transição do latim para o francês.
O latim conservou muitos monopólios: era a língua da Igreja
e, portanto, da administração eclesiástica, do direito canônico e da
liturgia; era também a língua do conhecimento: o ensino ocorria ex-
clusivamente em latim. A escola transmitia e permitia o domínio do
latim como língua escrita viva. Sua preeminência era baseada na crença
na superioridade das três línguas sagradas: o grego, o latim e o hebraico.
Os pensadores medievais desenvolveram outros argumentos a favor
do prestígio intrínseco do latim, em particular o fato de que as línguas

67
Ver BASSNETT-MCGUIRE, Susan. Translation Studies. Londres-New York: Methuen
Editions, 1980, p. 52-53.
38 68
LUSIGNAN, Parler vulgairement, op. cit., p. 42.

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vernáculas eram aprendidas pelas crianças através da simples imitação

Capítulo 1 O bilinguismo latim-francês


da mãe, enquanto o latim era adquirido na escola e pelo estudo da gra-
mática.69 Esse argumento, central na crença na superioridade do latim,
foi perpetuado por muito tempo.
O latim passou assim por uma poderosa transformação, prova
de que a relação entre as duas línguas era uma verdadeira competição,
uma luta em que ambos os adversários, embora desiguais, contribuíram
para as suas modificações mútuas e para a inversão gradual das suas
posições. Erich Auerbach mostrou assim que o latim, apesar de sua
relativa codificação e fixidade devidas a seu caráter exclusivamente
escrito, evoluiu enormemente da concorrência com os vernáculos:

O latim era considerado em todos os países ocidentais como


um superestrato, introduzido na sua forma mais popular, em
constante luta com as línguas nativas e sob a influência de seu
vocabulário e hábitos de articulação dos fonemas.70

Em Mimesis, analisando um texto de Histoire des Francs [História dos


Francos], de São Gregório de Tours, “Sichaire et Chramnesinde”, do
século VI, portanto em latim, explicava que

a língua vernácula falada indubitavelmente faz sentir a sua pre-


sença em toda a obra. Embora o tempo em que será escrita ainda
esteja longe, é ela que ressoa na consciência de Gregório.71

Isso explica em parte que se tenha falado da “decadência” do latim


de São Gregório de Tours... O latim literário de Gregório não era apenas
– gramatical e sintaticamente – um latim decadente, também era usado
para um propósito para o qual, originalmente ou pelo menos no seu
auge, “parecia inadequado: a imitação da realidade concreta”, observa

69
Serge Lusignan salienta que o latim era às vezes chamado de gramática. Ibid., p. 43.
70
AUERBACH, Erich. Le Haut Langage: langage littéraire et public dans l’Antiquité
latine tardive et au Moyen Âge. Traduzido do alemão para o francês por Robert Kahn.
Paris: Belin, 2004, p. 229.
71
AUERBACH, Erich. Mimesis: la représentation de la réalité dans la littérature
occidentale. Traduzido do alemão para o francês por Cornélius Heim. Paris: Gallimard,
1977. (Col. Tel), p. 99. 39

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Auerbach. É por isso que, segundo o grande romanista alemão, no
A língua mundial

século VI, Gregório de Tours escreveu

[...] numa língua falada da qual não estamos em condições de


formar uma ideia completamente clara, mas que constitui clara-
mente a matéria-prima da sua narrativa e que ainda ressoa nos
seus ouvidos enquanto tenta traduzi-la para o seu latim semi-
literário.72

Muito mais tarde, a partir do século XI, o latim começou, segundo


ele, a “rejuvenescer”. Hinos, poesias em latim apareceram, poesias de
estudantes cujo conteúdo era frequentemente satírico ou erótico, e cuja
construção era muitas vezes próxima das línguas vulgares.73 É por isso
que o latim não pode ser descrito como uma “língua morta”. Como
afirma Auerbach:

O latim medieval é muito diverso desde o início, criando desde


o século XI inúmeras formas novas e vivas. Nada nele é estável
(ou pelo menos relativamente estável) exceto a ortografia e
a morfologia. O vocabulário, a sintaxe, os níveis de estilo e a
versificação são tão ricos em variações que podemos falar de
toda uma série de mundos diferentes no latim medieval.74

A partir do século XII e ao longo do século XIII, houve movi-


mentos opostos e estruturados, exclusivamente em latim: em particular,
o latim didático-científico dos escolásticos se desenvolveu contra o
humanismo retórico. Para Auerbach, a escolástica era linguisticamente
revolucionária porque ela trabalhava, em latim, para desenvolver uma
nova linguagem especializada e rigorosa da lógica e da filosofia. Em
outras palavras, ela fazia do latim um instrumento novo e inédito.

72
AUERBACH, Mimesis, op. cit., p. 101.
73
Ibid., p. 248-249.
74
Ibid. Erich Auerbach é alemão e é provavelmente por isso que ele se livrou das
categorias “nacionais” da reflexão sobre a história da língua. Longe de se interessar, como
os francófonos, pela emergência progressiva do francês, ele estuda a evolução, os usos
e o “gênio” de uma das “outras” línguas, geralmente consideradas pelos historiadores
da língua (que têm uma visão teleológica) como um simples contraponto destinado a
40 desaparecer (ou se transformar) e de pouco interesse em si mesmo: o latim.

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Criava, a partir de neologismos, conceitos e uma forma de usá-los, até

Capítulo 1 O bilinguismo latim-francês


então desconhecidos.75 Esse latim escolástico foi constituído contra a
tradição retórica e humanista que queria permanecer com o modelo
exclusivo da elegância retórica do latim “clássico”.

Considerando todo o latim do período em questão, em particular


o do século XII, surpreendemo-nos ao ver quão mais rico, mais
original foi o pensamento que lhe foi dado, quão mais vivas e
imediatas foram as sensações vividas do que nos primeiros
períodos da Idade Média.76

A partir do século XIII, o status do francês mudou. A diferenciação


entre as duas línguas foi eficaz. Mas o latim e o francês, desiguais,
desempenharam papéis sociais distintos. O francês permanecia a língua
dos intercâmbios orais e permitiu a elaboração de uma expressão poética.
Nos séculos XIV e XV, o estudo dos atos notariais bilíngues mostra que,
enquanto as duas línguas se aproximavam em termos de vocabulário
(em outras palavras, o francês anexava facilmente as palavras técnicas
do vocabulário erudito do latim), por outro lado, a estrutura das frases
latinas foi fortemente influenciada pela língua vernácula. Um manual
em latim escrito por volta de 1336 recomendava, por exemplo, que
os membros da Câmara de Inquérito do Parlamento escrevessem
os seus relatórios em “latim simples e comum, familiar aos leigos e
com o vocabulário próximo do francês”.77 Assim, o latim foi, indis-
cutivelmente, a língua do conhecimento, ou seja, a única língua em
que o conhecimento e todas as discussões ou criações de caráter inte-
lectual poderiam ser plenamente expressos. Gilles de Roma (Aegidius
Romanus), em seu Traité d’éducation des princes [Tratado sobre a edu-
cação dos príncipes], escrito por volta de 1279, defendeu a necessidade
de ensinar o latim aos filhos dos reis:

75
AUERBACH, Le Haut Langage, op. cit., p. 250.
76
Ibid., p. 251.
77
LUSIGNAN, Langue française et société du XIIIe au XVe siècle. In: CHAURAND,
op. cit., p. 120-121. 41

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Os filósofos, percebendo que não havia uma língua vulgar
A língua mundial

completa e perfeita pela qual pudessem expressar a natureza


das coisas, os costumes dos homens, o curso dos astros e tudo
o que queriam discutir, inventaram uma língua que, para todos
os efeitos práticos, lhes era própria e que se chama de latim ou
língua literária. Constituíram-na rica e aberta para que pudessem
expressar adequadamente todos os seus conceitos.78

Mas foi sem dúvida o grande pensador inglês Roger Bacon (por
volta de 1220-1292) que, no seu Opus tertium (1270), melhor expressou
a forma como o problema surgiu:

É certo que o lógico não poderia expressar sua lógica se tentasse


dizê-lo com as palavras de sua língua materna; teria que inventar
novas palavras e, portanto, não seria compreendido por ninguém
além de si mesmo.79

Assim, Auerbach afirma:

O latim tinha uma tradição muito antiga, ancestral e cristã, e


as suas formas e topoi lhe conferiam uma clara vantagem em
termos de influência. [...] Simetricamente, antes do século XIII,
em tudo que é conceptual, a literatura em línguas vulgares era
muito atrasada; seria incapaz de expressar qualquer coisa; só
começaria no século XIII, de uma forma muito progressiva e
imperfeita.80

Foi precisamente na importação-exportação de palavras, expres-


sões, formas sintáticas, ou seja, ao mesmo tempo e indissoluvelmente
de conceitos, ideias, encadeamentos lógicos, categorias de pensamento
– na realidade, toda a bagagem intelectual – que a dependência do latim
pôde ser medida, enquanto que a princípio, de forma lenta inicialmente,
houve uma inversão progressiva da relação de poder entre as duas
línguas. A invenção, mas sobretudo a importação (ou seja, a apropriação

78
Citado por LUSIGNAN, Parler vulgairement, op. cit., p. 43.
79
Citado em ibid., p. 73.
42 80
AUERBACH, Le Haut Langage, op. cit., p. 251-252. Grifo da autora.

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do capital específico do latim em benefício do francês, que foi a principal

Capítulo 1 O bilinguismo latim-francês


estratégia, praticada durante séculos por funcionários reais, cientistas,
filósofos, escritores e tradutores), por meio da “tradução”, de palavras
de linguagem erudita ou expressões abstratas, ausentes da conversa
cotidiana e das transações mais concretas da vida, foram os principais
meios do que se costumava chamar de “enriquecimento” do francês.81
A partir do século XIII, foi feita a transição do antigo francês
para o francês médio, ou seja, para uma língua ao mesmo tempo
independente do latim clássico, mais analítica e mais adaptada à
argumentação.82 Os séculos XIII e XIV foram momentos de intensa
criação-importação de vocabulário. Pode-se listar hoje a criação de
novas palavras por adjunção de um novo significado a certas palavras; o
vocabulário francês foi também enriquecido pelos processos comuns de
sufixação (chevaucherie, deablerie) [cavalgaria, diabrura], de prefixação
(promener, produire) [passear, produzir] ou de justaposição (saige
femme, bonjour) [parteira, bom dia]. Houve muitas trocas com o italiano
(ambassade, brigand) [embaixada, bandido] e o occitano (badin, cabane)
[brincalhão, cabana], e algumas raras com línguas germânicas. Mas,
de longe, o enriquecimento lexical mais importante foi a importação
de termos latinos, adaptados ou “calcados”, conforme o caso, no latim.
É nessa época, observa Charles Vossler, que se pode observar uma
“importação sistemática de neologismos latinos”.83 Os verbos latinos
em -are se tornaram franceses pela substituição da terminação -er; as
palavras em -as, -atis ou em -or deram em francês palavras em -é ou
-eur, etc. Anthony Lodge observa que “metade dos neologismos cuja
primeira aparição se situa entre os séculos XIV e XV são empréstimos
do latim ou do grego, conhecidos como palavras eruditas”. Havia práticas
de “relatinizações” (feeil na palavra francesa “fidèle” [fiel] a partir do
latim fidelis). As transposições do latim foram atestadas na Séquence de
sainte Eulalie [Cantilena de Santa Eulália] (por volta de 882).84 Sabe-se
também que o mesmo étimo poderia ter dois desfechos: um chamado

81
Ver LUSIGNAN, Parler vulgairement, op. cit., p. 141, 148, 164-165.
82
Ibid., p. 106 e LODGE, Le Français, op. cit., p. 188-189.
83
VOSSLER, Charles. Langue et Culture de la France. Paris: Payot, 1953, p. 120.
84
LODGE, Le Français, op. cit., p. 77. 43

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“popular”, reconhecível pelo fato de ter sido mudado de acordo com
A língua mundial

as regras da evolução, e o outro chamado “erudito”, apenas adaptado


para ser assimilado lexicalmente (assim, hospitalem origina “hôtel”
[hotel] e “hôpital” [hospital]; fragilem origina “frêle” [fraco] e “fragile”
[frágil]; fabricam, “forge” [forja] e “fabrique” [fábrica], etc).85 Vossler
registra, principalmente a partir do século XIII: “accusation, altercation,
assignation, authentique, cautèle, copuler, dilation, exécuteur” [acusação,
altercação, intimação, autêntico, cautela, copular, dilação, executor], etc.86
Lodge observa que um dos sintomas visíveis da dominação do modelo
latino foi a latinização da grafia (“doigt” [dedo] de digitum; “faict” [fato]
de factum; “doubter” [duvidar] de dubitare, etc.), “grafia que conferia
obviamente parte da dignidade de seus étimos latinos”87 e que ainda era
uma forma de “enriquecer” o vernáculo e de importar capital.
Os “esforços conscientes” evocados por Vossler para proteger,
desenvolver e enobrecer o francês88 eram, em parte, o produto do
mecenato real. A partir do final do século XIII e ao longo do século XIV,
multiplicaram-se as traduções de obras. “[Os tradutores] não tentavam
traduzir em francês elegante, mas queriam traduzir com precisão e
fidelidade”.89 Carlos V encomendou a tradução de mais de cinquenta
obras.90 Michel Ballard fala até de uma “escola de Carlos V”, uma vez
que o monarca lançou um verdadeiro “programa de tradução” com reco-
mendações específicas sobre a legibilidade do texto de chegada.91
Algumas dessas traduções vinham acompanhadas de prólogos
em que o tradutor dava suas ideias sobre a relação entre o francês e o
latim. Todos denunciavam as deficiências do primeiro para expressar
o conhecimento. As insuficiências do francês eram ao mesmo tempo
de ordem simbólica e prática: a transição para o francês era uma

85
LODGE, Le Français, op. cit., p. 187.
86
VOSSLER, Langue et Culture de la France, op. cit., p. 119.
87
LODGE, Le Français, op. cit., p. 191.
88
AUERBACH, Le Haut Langage, op. cit., p. 250.
89
VOSSLER, Langue et Culture de la France, op. cit., 120.
90
Para um retrato desse monarca, ver LUSIGNAN, Parler vulgairement, op. cit., p. 93.
91
BALLARD, Michel. De Cicéron à Benjamin: traducteurs, traductions, réflexions.
44 Lille: Presses universitaires de Lille, 1992, p. 84.

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desvalorização intrínseca devido à diferença de valor (ou seja, de pres-

Capítulo 1 O bilinguismo latim-francês


tígio) entre as duas línguas. Um dos tradutores de Carlos V, Jean Daudin,
escreveu o seguinte:

Embora em muitos pontos a língua francesa seja bem diferente


do latim, há, todavia, uma grande abundância de palavras latinas
que pouco ou nem se falam em francês sob pena de perder a
eloquência e o ornamento do latim.92

Mas as lacunas de vocabulário também podiam ser de ordem


prática, ou seja, não havia correspondência semântica entre as palavras
das duas línguas. Nesse caso, o tradutor optava frequentemente por
uma solução estranha, também de ordem simbólica: justapunha
duas ou três palavras de significado semelhante responsáveis por
produzir o significado do latim como se, devido à pobreza intrínseca
do francês, a equivalência só pudesse ser alcançada aumentando o
número de palavras na língua considerada a mais desfavorecida; ou, e o
procedimento era quase o mesmo, o tradutor utilizava perífrases. Além
da busca por equivalentes, havia duas formas principais de compensar as
insuficiências do francês: empréstimos ou paráfrases “que se tornaram
necessários pelo fato de que os equivalentes de certas palavras latinas só
podiam ser reproduzidos por circunlóquios e explicações”.93 Assim, às
vezes, o tradutor criava novos vocábulos. Nesse caso, ele disponibilizava
um léxico aos seus leitores. A grande maioria dessas criações, acrescenta
Serge Lusignan, eram decalques de palavras latinas.94 Nicolas Oresme
(por volta de 1322-1382),95 segundo Lusignan, foi sem dúvida na época o
tradutor francês mais consciente do trabalho de criação de um “registro
erudito do francês” por meio da tradução. Apoiando-se – como todos
os dominados linguísticos e literários farão depois dele, como veremos
de Du Bellay a Leopardi – em Cícero, que, nas Academica posteriora
(I, 4-11), lamentava que os romanos tivessem que estudar em grego

92
Citado por LUSIGNAN, Parler vulgairement, op. cit., p.133.
93
DELISLE; WOODSWORTH, Translators Through History, op. cit., p. 36. Tradução em
francês da autora.
94
LUSIGNAN, Parler vulgairement, op. cit., p. 133.
95
Ibid., p. 36. 45

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e que não tivessem acesso ao conhecimento em latim,96 Nicolas de
A língua mundial

Oresme procurou enobrecer o francês. Utilizou a homologia da posição


das línguas (latina e francesa) para defender o seu ponto de vista e tentar
mostrar, na lógica de Cícero, a legitimidade da sua luta e posição.
No século XVI, o mesmo processo continuou, embora a relação
de poder entre as duas línguas tenha mudado significativamente.
Tornando-se, com o famoso decreto de Villers-Cotterêts (1539), língua
da justiça e, ao mesmo tempo, a “língua do rei”, o francês97 tornou-se
objeto de uma luta cada vez mais explícita. Defender, ilustrar, enri-
quecer, colocar regras tornaram-se palavras de ordem em todos os
tratados, prefácios, epístolas, artes poéticas, etc. A argumentação e
a reflexividade linguísticas tornaram-se obrigatórias em debates ou
polêmicas entre os letrados. Um dos sinais essenciais de que o francês
estava se emancipando em relação ao latim era que o processo de
acumulação inicial de capital, inseparavelmente literário e linguístico,
conseguia se instalar. Significativamente, como já mostrei em outros
textos,98 essa capitalização inicial estava diretamente relacionada com a
formação de uma “nação” e de uma crença nacional.
Foi assim que apareceu a mitologia genealógica francesa. Mas a
dominação cultural era tão forte e tão firmemente enraizada nas mentes
das pessoas que a contestação hierárquica e a reescrita enobrecedora
da história ainda eram feitas nos próprios termos do dominante, ou
seja, a partir de um material emprestado da mitologia grega. Assim,
a origem dos francos, da França – e depois da sua língua – seria um
filho de Heitor de Troia, Francion. Constituída então a categoria de
antiguidade, por meio da superioridade aceita dos que são justamente
chamados “os antigos”, difundiu-se a ideia de que os gauleses seriam os
antepassados dos troianos, e não o contrário. Essas lendas genealógicas,
que se encontram em quase tudo, sobretudo nas obras de Ronsard e de
Du Bellay, tinham também a vantagem considerável de fornecer uma

96
Ver BASSNETT-MCGUIRE, Translation Studies, op. cit., p. 43-45.
97
Por maior conveniência e por uma espécie de anacronismo controlado, o singular é
usado aqui apesar da diversidade e variedade de dialetos falados no “reino da França”, o
que fica de alguma forma subentendido.
98
CASANOVA, La République mondiale des lettres, op. cit., p. 62-64. [N.T.: Para a tra-
46 dução brasileira, A república mundial das letras, op. cit.]

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arma contra o italiano, que teria sido assim descendente do gaulês por

Capítulo 1 O bilinguismo latim-francês


meio dos gregos e do latim...99
Na mesma linha, Claude Fauchet (1530-1602) tentou apoiar essas
hipóteses com argumentos filológicos. Ele se comprometeu a estabelecer
um corpus de autores destinados a reconstituir os primeiros marcos
de uma tradição literária própria do vernáculo e procedeu assim à
primeira acumulação propriamente literária. Portanto, dois importantes
instrumentos de “libertação” do francês por diferenciação apareceram
e permaneceriam até Mallarmé, as características constituintes da
“tradição nacional”: a rima e o verso alexandrino, dois instrumentos
poéticos totalmente ignorados pela tradição latina (e até então muito
desprezados pelos próprios franceses).
Mas a luta entre o francês e o latim intensificou-se entre a primeira
e a segunda metade deste século XVI. As mudanças podem ser medidas
pela diferença de discurso subjacente ao texto de Jean Lemaire de Belges
(por volta de 1473-1524). La Concorde des deux langages [A concórdia
das duas linguagens], publicado em 1513, que concluiu a querela entre
francês, toscano e latim com uma conciliação, e La Deffence et illustration
de la langue françoyse [Defesa e ilustração da língua francesa] de Du
Bellay, que chamava para uma luta em francês, para a “pilhagem” do
latim em favor do primeiro.
O mundo letrado sempre foi bilíngue (e, por causa da variedade
de dialetos e línguas, muitas vezes trilíngue); o ensino, apesar de muito
criticado, sempre se deu em latim, mesmo que, no ensino fundamental,
o vernáculo desempenhasse um papel cada vez mais importante.100
Mas a impregnação e dominação do latim eram tais que as categorias
gramaticais específicas do francês surgiram com grande dificuldade, já
que os gramáticos não podiam pensar fora das categorias da gramática
latina.101 No entanto, a grande novidade foi a vontade de colocar regras,
de inventariar, de fazer uma reflexão linguística e gramatical. Por
exemplo, a questão de saber se o francês, tal como o latim, tinha casos

99
Ver CLERICO, Le français au XVIe siècle. In: CHAURAND, Nouvelle Histoire de la
langue française, op. cit., p. 156.
100
Ibid., p. 175. Ver também LUSIGNAN, Parler vulgairement, op. cit., p. 134.
101
CLERICO, Le français au XVIe siècle. In: CHAURAND, op. cit., p. 171. 47

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era um enorme obstáculo à independência de fato do vernáculo; desde
A língua mundial

o século XIII e durante muito tempo, os gramáticos desenvolveram a


ideia de que o artigo era um marcador da flexão do francês. Mesmo que,
de fato, a perda desse traço linguístico fosse efetiva em francês a partir
do século XIV, essa teoria persistiria até o século XVII: a Gramática de
Port-Royal foi a primeira a rejeitá-la definitivamente em 1660.102
A ortografia ainda não era oficialmente codificada. A língua
escrita parecia fortemente marcada por referências etimológicas, a
ponto de se dizer que se lia em latim por meio do francês. Tratava-se de
certa forma de uma ortografia legível, à primeira vista, pelos latinizantes
e que se referia, não a uma pronúncia, mas a outra língua escrita. Dessa
forma, não foi favorecida nenhuma realização oral, o que constituía
uma vantagem num país onde as diferenças regionais de pronúncia
eram muito acentuadas.103 As discussões, numerosas, centraram-se na
necessidade ou não de preservar as desordens e os “abusos” das letras
proliferantes; essas discussões eram mais uma forma de luta entre as duas
línguas: os adeptos da etimologia queriam marcar a sua dependência
da língua antiga, sublinhando assim a sua nobreza; os outros – entre
os quais Thomas Sébillet (por volta de 1512-1589) na sua Art poétique
Françoys [Arte poética francesa] (1548) – queriam fazer desaparecer
(ou pelo menos atenuar) as formas mais explícitas da dependência.104
“Para converter os mais firmes [defensores da manutenção da ortografia
etimológica], escreveu Jacques Peletier (1517-1583), seria necessário o
desaparecimento dessa crença louca que temos de que a Antiguidade
não poderia ter errado”.105 Essa “crença louca” representa de forma
magnífica a dominação linguística: essa persuasão (i.e., essa crença), em
parte irracional, era precisamente a forma assumida pela dominação
linguística e cultural dos homens do século XVI, essa autoridade despro-
porcionada concedida, embora ao mesmo tempo altamente contestada,
à língua e à cultura latinas.

102
LUSIGNAN, Parler vulgairement, op. cit., p. 130-131.
103
CLERICO, Le français au XVIe siècle. In: CHAURAND, op. cit., p. 157.
104
LUSIGNAN, Parler vulgairement, op. cit., p. 202.
PELETIER, Dialogues, op. cit., p. 135, citado por CLERICO, Le français au XVIe
105

48 siècle, In: CHAURAND, op. cit., p. 202.

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As inovações lexicais, concebidas como argumentação, conti-

Capítulo 1 O bilinguismo latim-francês


nuaram e tornaram-se tão conscientes que os teóricos, tradutores e
poetas multiplicaram as advertências, para que pudessem ser usadas
com sabedoria e menos frequência. Ronsard, por exemplo, defendeu o
desaparecimento do “y” etimológico de “cygne” [cisne] e de “lyre” [lira].
Anthony Lodge insiste no fato de que a língua se adaptou aos
novos empregos e que, por conseguinte, teve que adquirir novos
recursos para ampliar a sua gama e os seus meios.106 Da minha parte,
parece que se deve obviamente considerar a invisibilidade econômica
simbólica das relações linguísticas. Longe de ser um conjunto de
ações “gratuitas”, era pelo contrário o produto da dominação e da luta
linguística que estruturava o espaço cultural medieval. Luta coletiva, ao
mesmo tempo consciente e inconsciente, que não era de modo algum
contraditória, muito pelo contrário, com a expansão e a adaptação a
novos usos sociais da língua vernácula. No prefácio à sua tradução dos
tratados de Aristóteles (publicados em 1370), Oresme afirmava assim
a impossibilidade pela qual o tradutor passava – e nesse caso do grego
para o latim e do latim para o francês:

De todas as linguagens do mundo, o latim é a mais hábil para


expressar melhor sua intenção. No entanto, foi impossível tra-
duzir tudo de Aristóteles, porque há várias palavras gregas que
não têm palavras correspondentes em latim. E, como o latim é
agora mais perfeita e abundante linguagem do que o francês, é
mais uma razão para não transplantar todo latim em francês.107

Muito mais tarde, esse pequeno livreto de Du Bellay108 tam-


bém testemunhou isso, tomando uma posição para o francês nessa
querela e desenhando o campo que lhe era contemporâneo. Vejamo-
lo de perto, porque o francês tornou-se a língua mundial, depois do
declínio do latim.

106
LODGE, Le Français, op. cit., p. 190-191.
107
Citado por BALLARD, De Cicéron à Benjamin, op. cit., p. 86.
108
Georges Mounin, que, como sabemos, comentou extensivamente sobre La Deffence
et illustration de la langue françoyse, escreve “que permanece, ainda hoje, a antologia
de todos os argumentos contra a tradução”. MOUNIN, Georges. Les Belles Infidèles.
Marseille: Éditions des Cahiers du Sud, 1955, p. 8. 49

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Capítulo 3
A tradução como conquista

Na Inglaterra do período elisabetano (segunda metade do século


XVI e início do século XVII) assim como na França do século XVI,
a prática da tradução era muito importante. O tomo IV do CHEAL
(Cambridge History of English and American Literature), inteiramente
sobre o período elisabetano,167 dedica dois longos capítulos a essa ques-
tão.168 Esse período de tradução massiva pode ser considerado como
um momento determinante na história da literatura em língua inglesa.
Os diferentes textos traduzidos (sobretudo os clássicos latinos
e gregos e textos franceses e italianos contemporâneos), bem como
os discursos ex post dos tradutores (por exemplo, nos prefácios de
apresentação no momento da publicação do livro) sobre as razões que
os levaram a tal empreendimento e sobre a sua prática, indicavam que a
tradução estava se tornando um gênero literário.
Na França, durante o período renascentista, havia também
um enorme programa de traduções de textos antigos. Primeiro, os
historiadores gregos: Heródoto, Tucídides, Diodoro, Apiano, Justino.
Ainda Xenofonte, Plutarco, Sêneca, Homero, Esopo e Platão; Apuleio,

167
Ver BASSNETT-MCGUIRE, Translation Studies, op. cit., p. 42.
THE CAMBRIDGE History of English and American Literature: Encyclopedia in
168

Eighteen Volumes (CHEAL). Cambridge: Cambridge University Press, 1907-1921.

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Virgílio, Ovídio, Juvenal, Cícero foram todos traduzidos durante o sé-
A língua mundial

culo XVI. Jacques Amyot ficou famoso quando traduziu para o francês
(em 1559) Les Vies parallèles [Vidas Paralelas] de Plutarco.
A tradução (palavra que Étienne Dolet foi o primeiro a usar, tam-
bém sendo o primeiro a formular as suas regras) não tinha na época o
significado que lhe é dado hoje;169 não se pretendia, como seria mais tarde,
dar acesso aos textos clássicos para as populações que não conheciam
essas línguas (especialmente o grego e o latim). De toda forma, as popu-
lações eram – exceto algumas pequenas camadas de letrados, aristocratas
e clérigos – analfabetas.
Tratava-se, de fato, de apropriar-se dos textos de uma língua tida
como universal, os chamados textos “clássicos”, constituídos em valores,
e de proceder, por meio dos tradutores (razão pela qual eram então
inseparáveis do poder político), a um acúmulo inicial de capital.
Para entender melhor a operação em que os tradutores estavam
envolvidos na época, é essencial saber, antes de mais nada, o que é um
“clássico”.
Etimologicamente, a palavra é emprestada do latim classicus, que
se refere às cinco categorias da sociedade romana. A primeira compre-
ende os classici cives, que podem pagar impostos porque são ricos, e a
última inclui os proletarii cives, ou seja, aqueles que, demasiado pobres,
não podem pagar impostos. O primeiro a ter aplicado a expressão a
escritores foi o gramático Aulo Gélio (século II) que fala de classici
scriptores (escritores de primeira categoria, de primeiro valor). A pala-
vra é introduzida por Thomas Sébillet na sua Art poétique Françoys
[Arte poética francesa]. É classicus aquele que tem fortuna e, portanto,
é rico. Desde o início, a palavra tem uma conotação econômica óbvia;
irá mantê-la, mas de uma forma eufemística. Um “clássico” é antes de
tudo, portanto, um valor inestimável, um valor que, como sabemos,
diminui na e por meio da tradução, mas o capital do latim (e do grego
e do hebraico) e seu prestígio são tão grandes que a tradução para a

Ver ELLIS, The Medieval Translator, op. cit., p. 42, 46, 48-50. Os tradutores do século
169

XV “não estavam preocupados com o texto, mas com a história e sua conexão com o
público futuro. [....] Parece ter havido pouca preocupação em restituir fielmente o texto
original. [....] Não havia necessidade de uma tradução que seguisse o original”. Tradução
74 em francês da autora.

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língua vernácula ainda proporciona muita riqueza. Esse valor é mágico:

Capítulo 3 A tradução como conquista


estabelece uma ruptura radical entre os que pertencem (os “clássicos”) e
os que não pertencem.
O clássico é nobre, ou melhor, é para o mundo literário o que o
nobre é para o mundo social. Ele é o que os outros não são; distingue-se
dos outros pelo seu reconhecimento que estabelece seu valor; esse valor
estabelece a sua autoridade, isto é, o seu poder, desde o início legítimo.
É sagrado e, portanto, objeto de uma crença; os outros textos são profa-
nos. É, portanto, suposto pertencer a um grupo de prestígio, “à parte”.170
Ele está supostamente acima dos outros porque pertence à nobreza
literária. O seu valor, baseado apenas no valor do seu nome e no seu reco-
nhecimento por todos, está correlacionado à sua antiguidade: quanto
mais velho for, mais legítimo e nobre é. Reciprocamente, sua antiguidade
e continuidade fundamentam a base de sua nobreza e prestígio.
Ele também é “eterno” (escapando assim ao desgaste do tempo)
porque não participa nem da competição nem da “moda” que forma a
identidade de todos os outros. Sainte-Beuve (1804-1869) tentou defini-
lo em outubro de 1850 em suas Causeries du lundi [Prosas da segunda-
feira], investigando o que seria um clássico “moderno”. Ele escreve:

Um clássico, segundo a definição comum, é um autor antigo,


já consagrado na admiração, e com certa autoridade. [...] Um
verdadeiro clássico [...] é um autor que enriqueceu o espírito
humano, que realmente aumentou o seu tesouro, que o fez dar um
passo a mais, que descobriu alguma verdade moral inequívoca,
ou ressuscitou alguma paixão eterna naquele coração em que
tudo parecia conhecido e explorado; que fez o seu pensamento,
a sua observação ou invenção em qualquer forma, mas larga e
grande, fina e sensata, saudável e bela em si mesma; que falou
com todos em seu próprio estilo e que é também o de todo mundo
num novo estilo sem neologismo, novo e antigo, facilmente
contemporâneo de todas as épocas.171

170
Ver SAINT-MARTIN, Monique de. Une grande famille. Actes de la recherche en
sciences sociales, n. 31, p. 6, 1980.
171
SAINTE-BEUVE, Charles-Augustin. Causeries du lundi, 21 out. 1850. Grifo da autora. 75

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Vemos que Sainte-Beuve retoma a definição econômica eufe-
A língua mundial

mizada (“enriquecer”, “tesouro”), acrescentando-lhe a eternidade, como


Baudelaire quando definiu a “modernidade” em 1863: “A modernidade
é o transitório, fugaz, contingente, metade da arte cuja outra metade
é eterna e imutável”.172 O clássico é “novo e antigo”, a referência ao
antigo como “eterno” não está perdida, mas já não está mais só. Sendo
valorizado, ele produz valor; é, portanto, autoridade (como diz Sainte-
Beuve) na ausência de uma autoridade que pudesse decretar ou produzir
valor. É por isso que um clássico é um poder, uma autoridade específica.
De acordo com a definição de T. S. Eliot em What Is a Classic ? [O que é
um clássico?],173 o clássico também serve como unidade de medida para
os outros textos que serão baseados nele.
Os homens da Idade Média e até o século XVII o chamavam de
auctoritas.174 Ela se constituiu em poder tão absoluto que era impossível
expressar-se sem primeiro dar-lhe a palavra (dentro e de acordo com
uma visão cíclica do tempo). Os antigos eram autoridades em todas as
áreas. Dessa forma, foram compiladas coletâneas de auctoritates que
podiam ser utilizadas em todas as circunstâncias.175 A ligação entre
auctor e auctoritas provavelmente nunca foi tão forte quanto naquele
tempo em que a autoridade era detida por um conjunto de autores
mortos, sagrados e consagrados, formando assim um corpus fechado,

172
BAUDELAIRE, Charles.  Le peintre de la vie moderne. In: BAUDELAIRE, Charles.
Œuvres complètes. Prefácio, apresentação e notas de Marcel A. Ruff. Paris: Seuil, 1968,
p. 553.
ELIOT, T. S. What Is a Classic?: An Address Delivered Before the Virgil Society on
173

the 16th of October 1944. London: Faber & Faber, 1945.


Ver LUSIGNAN, Parler vulgairement, op. cit., p. 132-134. Ver ainda ELLIS, The Medie-
174

val Translator, op. cit., p. 15; Rita Copland discursa, nessa publicação, sobre classical
authorities.
175
Charles Sanders Peirce comenta: “A característica mais marcante do raciocínio
medieval em geral é recorrer continuamente à autoridade. [...] A autoridade é derradeira.
[...] Seria impossível encontrar uma passagem na qual a autoridade de Aristóteles fosse
diretamente desafiada em termos de lógica. [...] A ideia de dispensar a autoridade, ou
subordinar a autoridade à razão, não lhe [Jean de Salisbury] vem à mente”. PEIRCE,
Charles Sanders. Questions concernant certaines facultés. Textes anticartésiens. Apre-
sentação e tradução do inglês por Joseph Chenu. Paris: Aubier-Montaigne, 1984, p. 175-
76 176, nota a. Grifo da autora.

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apontados como aqueles que “deveriam ser imitados”, ou seja, aqueles

Capítulo 3 A tradução como conquista


que detinham a autoridade por excelência, aqueles cujo poder nunca
poderia ser alcançado. A sua incontestável autoridade era um lembrete
constante da sua posição elevada.
A “diferença” da nobreza (e do clássico) em relação aos outros
parece residir no seu “prestígio”, isto é, neste caso, na “fé” dos outros no
seu poder, no seu capital simbólico e num certo “luxo” ou “lustre” (isto
é, no que tem um brilho particular).
O significado de “clássico” no que se refere ao que “deve ser
imitado” é o que resta do significado de original, da doutrina da imi-
tação tal qual circulava durante o Renascimento,176 assim como o signi-
ficado que a instituição escolar assumiu muito cedo, como se fosse
uma simples restrição. O significado “luís-catorziano”, como diz Alain
Viala (“os clássicos”), é simplesmente derivado do primeiro significado
e refere-se àqueles que permanecem sujeitos à autoridade dos antigos
na querela entre os antigos e os modernos; e, por extensão, àqueles que
escreveram naquela época e que supostamente representam o melhor
da narrativa francesa, provavelmente porque a língua francesa era
dominante na época.
A “classicização” é muitas vezes um processo bastante longo, no
final do qual uma obra (ou um autor – neste caso estão misturados) é
reconhecida pelas mais legítimas instâncias de consagração como um
valor absoluto, um monumento (um momento) indiscutível. Um clássico
é considerado como uma autoridade específica, uma obra incontestável.
Por definição, ele é afastado das indecisões e arbitrariedades dos valores
literários. De certa forma, o clássico só existe no universo literário na
categoria “hors concours”, uma categoria muito rara e muito procurada.
Nesse sentido, ele é usado e traduzido aqui, antes de tudo, como um
valor e um poder legítimos. Um valor importante (isto é, um valor de
que ninguém duvida) e que permitia tornar-se rico especificamente.
Na Inglaterra, as importações literárias ocorriam, como na
França, majoritariamente a partir do latim e do grego, mas também do
francês. Todas funcionavam como portadoras de valor(es) que devia(m)
ser introduzido(s) na Inglaterra: tratava-se de importar textos clássicos
para aumentar (num projeto coletivo) o volume de capital existente. Se

176
Ver p. 62, sobre a doutrina da imitação. 77

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o clássico é um valor e, portanto, uma autoridade, como apropriar-se
A língua mundial

desses valores senão por meio da tradução?177


Charles Whibley178 mostra que os ingleses letrados tinham um
conhecimento e uma prática melhores do francês179 do que das línguas
antigas180 e que poucos tradutores ingleses desse tempo poderiam orgu-
lhar-se de uma grande erudição na matéria. Esse bom conhecimento
do francês é obviamente um sinal do início da dominação que o francês
exerceria um pouco mais tarde em toda a Europa. O bilinguismo inglês
no século XVII (como o bilinguismo italiano no início do século XIX,
ao qual voltaremos mais tarde) era um sinal objetivo de dependência
(por exemplo, a recíproca não era verdadeira). Tudo isso demonstra
que, ao ampliar o proposto a toda a Europa:
1) todos os países europeus eram dominados pelo latim;
2) todos procuravam aumentar o volume do seu capital nacional;
portanto, a tradução era um fim e um meio de luta simbólicos;
3) ninguém pensava em pôr fim à dominação declinante do latim;
4) a importância dada aos textos italianos (Maquiavel, por exem-
plo) era também um sinal claro de que, devido à sua antiguidade,
ao grande número de textos (poesia, narrativas) escritos em
toscano, o italiano era portanto a outra língua do prestígio e
da nobreza literários (o toscano era uma língua dominante).181
O fato de os ingleses terem procurado importar os clássicos da
antiguidade grega e latina para o território da língua inglesa por meio
de traduções francesas (Thomas Nicholls traduziu Tucídides a partir da
versão francesa de Claude de Seyssel – que por sua vez havia traduzido o
grego a partir da versão latina de Lorenzo Valla; Thomas North traduziu
Les Vies parallèles des hommes ilustres ou Vies parallèles [Vidas paralelas]
de Plutarco a partir da famosa tradução francesa de Jacques Amyot, sob
o título: Lives of the Noble Grecians and Romans [Vidas dos nobres gregos

177
CHEAL, op. cit., p. 1-2.
Historiador literário britânico que comenta e explica essas traduções nesses capítulos
178

do CHEAL.
179
Ver TOHLTE, op. cit., p. 22.
180
Ver ELLIS, The Medieval Translator, op. cit., p. 41.
78 181
Ver Exordium, nota 47.

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e romanos] (1579), um livro que exerceria uma profunda influência)

Capítulo 3 A tradução como conquista


tende a mostrar que, sem dúvida, por um lado, o meio de transporte, o
veículo não importava. O francês, escreve Whibley, era apenas
a avenida através da qual muitos clássicos passaram para a nossa
língua e literatura. Seu uso familiar fez com que os tradutores se
sentissem tentados a compartilhar na Inglaterra o conhecimento
e a filosofia da França. Os livros franceses disponíveis em inglês
eram muitos e variados. O primeiro em importância foi o
Montaigne de Florio (1603), logo depois foi Le Prince [O Prín-
cipe] de Philippe de Commynes traduzido por Dannett.182

Pouco lhes importava em que língua o clássico estava acessível; o


que as metáforas da época chamavam de “plumagem” ou “roupagem”183
expressava que, para eles, um simples casaco tinha sido colocado sobre
uma “essência” latina, portanto muito valorizada, e demonstrava bem
sua indiferença.184 Fica assim provado que Shakespeare – que bem
provavelmente tinha pouco conhecimento do latim e do grego – não só
se inspirou como também “tomou emprestadas” citações (“as próprias
palavras”)185 e até mesmo esquemas narrativos do Plutarco de North.186
“Seu estilo, segundo Whibley, sobre a tradução de North, tinha uma
qualidade dramática que sugeria ao leitor um movimento constante
cujo valor era ingenuamente reconhecido por Shakespeare.”187 Sabemos
também que o mesmo Shakespeare tomou emprestado de William
Painter e do seu Palace of Pleasure [O palácio do prazer] (1566-1567)188
– coletânea de histórias e contos traduzidos do latim, do grego e do
italiano189 que foi um enorme sucesso na época – nada menos que o
enredo de Romeu e Julieta.

182
CHEAL, op. cit., p. 9. Tradução em francês da autora.
183
Ver HERMANS, Translations in Systems, op. cit., p. 115.
Ibid., p. 120; ver também ELLIS, The Medieval Translator, op. cit., p. 53. O Doutor
184

Johnson (1709-1784) dizia da linguagem que ela era “a vestimenta do pensamento”.


185
Ver CHEAL, op. cit., p. 7.
186
Ver TOHLTE, op. cit., p. 14.
187
CHEAL, op. cit., p. 12.
188
Ver TOHLTE, op. cit., p. 14.
189
Ver CHEAL, op. cit., p. 7. 79

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Uma “boa” tradução não era uma tradução fiel (se a “fidelidade”
A língua mundial

for concebida como a translação mais próxima possível do original)190


ou o mais fiel possível. Pelo contrário, ela foi descrita pelos próprios
tradutores como uma “conquista”, uma captura, um desvio de riqueza
e de poder: o que explica por que eles escolheram principalmente
textos latinos. Philemon Holland, um dos maiores tradutores ingleses
da época, descreveu seu empreendimento de tradução como uma
conquista, e até mesmo como uma forma de vingança quase militar.
George Chapman, um tradutor muito famoso da Ilíada e da Odisseia
(publicou uma tradução para o inglês de sete volumes da Ilíada em
1598), escreveu num dos seus prefácios: “Se meu país fosse um credor,
me agradeceria”.191 Essas duas formas de transpor uma operação inte-
lectual e linguística para os campos concretos da conquista militar192
e do enriquecimento “nacional” não eram metáforas. Pelo contrário,
eram formas de explicitar a realidade e a função objetiva das traduções
então concebidas como armas numa luta entre as línguas, as literaturas
e as “nações” europeias, como a importação bem-sucedida de grandes
valores. Whibley compara esses tradutores com aventureiros, pionei-
ros, conquistadores; são para ele “como os primeiros viajantes que
se apoderavam fortemente do tesouro dos outros e aproveitavam as
descobertas dos espanhóis e portugueses”193 (reconhecemos en passant
o vocabulário econômico sempre negado: “tesouro”, “vantagem”, etc.).
Em outras palavras, tratava-se de conquistar novos territórios e, ao fazê-
lo, de enriquecer com esses “tesouros” o que ainda não era a “nação”
inglesa. Tornar a sua “nação” mais rica e mais poderosa implicava que
o “sucesso” da tradução não fosse de modo algum medido pela “fide-
lidade” ou pela proximidade ou conformidade com o original, mas sim
pela proeza do conquistador que conseguiu transcrever, fazer passar,
transmitir, transplantar um texto de uma língua muito prestigiosa

190
Ver TOHLTE, op. cit., p. 23.
191
CHEAL, op. cit., p. 9. Tradução em francês da autora.
Nesse sentido, Douglas Robinson também fala da Grécia e de Roma: “O projeto
192

pós-colonial [...] era o de apropriar-se da cultura grega, da literatura, da filosofia, da


justiça, etc., para Roma”. ROBINSON, Translation and Empire, op. cit., p. 52. Tradução
em francês da autora.
80 193
CHEAL, op. cit., p. 12. Tradução em francês da autora.

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para uma língua com muito menos prestígio e assim contribuir para

Capítulo 3 A tradução como conquista


o seu enriquecimento objetivo. Em outras palavras, a tradução foi tão
bem concebida como uma transferência de valor e uma contribuição
ao capital nacional (contribuição de prestígio, de poder, de potência e
de volume) que ela era quase explicitamente descrita como tal. É nesse
sentido que Whibley pode afirmar que Thomas North estava “tão longe
de Amyot quanto Amyot estava do original” e que os tradutores “não
faziam nenhum esforço para restituir as belezas do original em sua
própria língua”.194
Outro grande sinal de que essa era uma estratégia de conquista e
apropriação quase explícita foi o fato de que muitos tradutores da época
tinham como princípio evidente decorar, ornamentar, transformar
o texto traduzido fazendo acréscimos (de frases inteiras, adjetivos,
expressões, formas, etc.), pois se tratava não apenas de “decorar”,
“embelezar”, mas principalmente de “aumentar” a tradução. Philemon
Holland era um desses que gostava de adornar.195 Segundo Whibley:

Ele amava o ornamento com todo o ardor de uma época orna-


mental e ornava seus autores com todos os recursos do inglês
elisabetano. A concisão e a brevidade dos antigos não eram nada
para ele. Sua ambição era sempre vesti-los como eles poderiam
ter sido se tivessem sido, não apenas ingleses comuns, mas seres
extraordinários para o seu tempo.196

Antoine Berman atribuiu essa tendência, que pode ser encontrada


em toda a Europa renascentista, ao que ele chamou de “princípio de
abundância”. Esse “princípio” não encontra qualquer explicação lógica
sem a hipótese de um projeto coletivo e comum a todos os clérigos
europeus, projeto de apropriação “nacional” dos clássicos mais dotados
e, portanto, os que mais dotam. Mas, mais do que isso, essa tendência
aumentadora estava ligada a uma concepção da tradução como
“compensação”. Era uma forma de tentar superar a “desvalorização”
do texto, uma vez transposto para uma língua menos valorizada que

194
CHEAL, op. cit., p. 12 e 11. Tradução em francês da autora.
195
Ver HERMANS. Translations in Systems, op. cit., p. 110.
196
CHEAL, op. cit., p. 13. Tradução em francês da autora. 81

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a língua-fonte, por uma ornamentação, que devia transmitir o “valor”.
A língua mundial

A arte da ornamentação e da decoração seria, de certa forma, uma


tentativa de substituir uma perda por um aumento do vocabulário. Essa
prática, que parece, portanto, opor-se radicalmente à nossa própria
representação da tradução, na medida em que propõe nada menos
do que transformar o texto-fonte (ou permitir-se liberdades que hoje
são totalmente proibidas), é, na realidade, outra forma de continuar
exatamente com o mesmo objetivo que hoje: encontrar estratégias para
que a transferência de valor ocorra com a menor perda possível; tratava-
se, de alguma forma, de igualar a taxa de câmbio entre as línguas. Era
como se o acréscimo compensasse a perda intrínseca de uma tradução
desse tipo por meio do “embelezamento” do texto-alvo concebido como
“aumento” dos elementos, que supostamente lhe dariam beleza.
O exemplo, ou melhor, o precedente latino, era muitas vezes
invocado como uma espécie de justificativa ou legitimação da sua
abordagem por todos aqueles que se lançaram em empreendimentos
do mesmo tipo. Por exemplo, a Plêiade francesa, na França do século
XVI, fez do tema do enriquecimento da língua francesa uma verdadeira
palavra de ordem e nunca deixou de se referir ao que considerava ser
uma espécie de precedente enobrecedor e legitimador.
A questão da fidelidade197 não foi nem tematizada como tal nem
sequer debatida: não estava no centro do problema, nem era a questão da
tradução que estava sendo definida naquele momento. A prática corrente
do que hoje chamamos de “plágio”, por um anacronismo total, é prova
disso: a retomada palavra por palavra de um texto traduzido de outra
língua e apropriado pelo poeta estava inteiramente de acordo com esse
objetivo de apropriação. Sidney Lee mostrou, no seu livro sobre sonetos
elisabetanos,198 que os poetas ingleses tinham retomado grande parte
da poesia francesa que os precedeu imediatamente. Ele demonstrou,
comparando justamente os textos, que os sonetos de Thomas Lodge, de
Samuel Daniel, de Thomas Wyatt eram baseados em Ronsard, Philippe
Desportes ou Petrarca. Não se tratava nem de “roubos” nem de cópias
dissimuladas e moralmente “condenáveis”. A lógica não era, de forma
alguma, essa. A simples translação (ou tradução) para uma nova língua

197
Ver TOHLTE, op. cit., p. 34.
82 198
LEE, Sidney [1904]. Elizabethan Sonnets. Charleston, NC: Bibliobazaar, 2008. v. 1 e 2.

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tornava esses poemas obras com as quais eles se identificavam como

Capítulo 3 A tradução como conquista


autores e pelas quais pretendiam enriquecer a língua e a literatura
inglesas. Whibley escreve sobre Holland:
Ele cometeu seus roubos tão abertamente que se percebe que
não tinha medo de infringir a lei. Ele invadiu os outros como
um monarca e o que poderia ter sido um roubo para outros
poetas foi apenas uma vitória para ele. [...] Wyatt, Daniel, Lodge,
Spenser e os outros se referiam aos sonetos de francês e italiano
como seus próprios porque eles mesmos os tinham traduzido.199

Nietzsche, em A gaia ciência (1882), expressou-o abruptamente,


mostrando que ainda na Alemanha do final do século XIX a certeza
dessa representação da tradução era muito comum e que a apropriação
romana permanecia uma espécie de evidência:
O significado histórico de uma época pode ser julgado pela
forma como ela traduz, como procura assimilar-se aos velhos
séculos e velhos livros. [...] Quanto à Antiguidade latina..., com
que violência, e que violência ingênua! não tomou posse de tudo
o que era grande e belo na Grécia antiga naquela época. [...]
Ignoraram as volúpias do sentido histórico; todo exotismo, todo
passado os ofendia, e despertava neles o conquistador romano.
Na verdade, conquistavam ao traduzir... não só ao negligenciar
a história, mas, melhor ainda, [...] ao riscar, para começar, o
nome do autor para colocar o seu no seu lugar... não com a ideia
de o roubar; não, com a melhor consciência do mundo, a do
imperium romanum.200

Há de salientar agora que esta função de apropriação e conquista


da tradução não era uma representação absurda, uma fantasia sem
fundamento ou uma forma de pensamento cuja lógica, hoje, seria
impossível (por ser tão arcaica, por exemplo) de restaurar. Pelo contrário:
como o demonstrou Erich Auerbach, a emergência na Europa, entre
os séculos XII e XIV, daquilo a que ele chamou “línguas literárias”, isto
é, línguas escritas dentro das línguas vernáculas, e que permitiram a

199
CHEAL, op. cit., p. 28. Tradução em francês da autora.
NIETZSCHE, Friedrich. Le Gai Savoir. Traduzido do alemão para o francês por
200

Alexandre Vialatte. Paris: Gallimard, 1985. (Col. Folio), livre II, 83, p. 116. Grifo da autora. 83

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elaboração de textos escritos capazes de refletir a expressão cada vez
A língua mundial

mais refinada e sofisticada da realidade emocional ou social, era o


resultado de uma acumulação muito lenta, muito progressiva de riqueza
de expressões, de saberes estilísticos, de conhecimentos retóricos, em
suma, de capital específico. Essa acumulação ocorreu na forma de
invenções, mas também na forma de transposições, imitações, criações,
a partir do latim, de processos e técnicas narrativas ou poéticas.
Pode-se, portanto, supor que, muito mais tarde, a partir do século
XVI, a tradução pode ter sido uma das outras formas de acumulação
do mesmo capital, ou seja, a continuação, numa outra forma e numa
nova situação linguística (uma vez que o bilinguismo latim-língua
vernácula já tendia a declinar), do processo de acumulação, de coleta,
de concentração da “riqueza” das línguas e literaturas europeias (e/ou
“línguas literárias”). No momento em que as línguas vernáculas se
“libertavam” da dominação do latim – que durante muito tempo foi a
única língua escrita disponível aos clérigos e que, pela sua ancianidade,
pelo seu imenso prestígio e por todas as tradições literárias de que era
o único guardião, beneficiava-se do que o próprio Auerbach chama de
um “avanço” considerável em relação ao “atraso” das línguas vulgares –,
a tradução era uma possibilidade real de importação específica, de
aumento pela importação nas línguas usadas diariamente, de compe-
tências e técnicas retóricas e literárias.
Por meio dessas traduções de textos de prestígio, tratava-se,
portanto, de apreender modelos que tinham se tornado inacessíveis
devido ao declínio da prática do latim. Tratava-se tanto de importação
de capital de prestígio (poder ler a Ilíada e a Odisseia em inglês enobrecia
o território dessa língua com um dos textos mais prestigiosos da história
da humanidade) como de importação de capital de conhecimento.
Além disso, escritores de áreas literárias nacionais dominadas
tiveram que trabalhar para importar capital e ganhar antiguidade e
nobreza “nacionalizando” (ou seja, traduzindo justamente para a língua
nacional) os principais textos universais reconhecidos como capital
universal, se quisessem entrar na competição literária mundial. É por
isso que as traduções de textos escritos numa língua mundial para uma
língua literária dominada podem (e devem) ser analisadas em termos
de “desvio de capital”.
84

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Um exemplo é o “programa de tradução”201 dos românticos

Capítulo 3 A tradução como conquista


alemães, um programa dedicado em particular e mais uma vez à Anti-
guidade grega e romana, que tratava, devido à formação nacional
tardia da Alemanha em comparação com outras nações europeias e
num momento em que o alemão era uma língua bastante dominada na
Europa, de importar para o território de língua alemã. A partir do final
do século XVIII e ao longo da primeira metade do século XIX, além da
“invenção” de uma literatura nacional e popular, os alemães puseram em
prática uma estratégia coletiva de anexação e apropriação dos “recursos”
da Antiguidade. Essa “nacionalização” de um patrimônio estrangeiro e
nobre entre todos permitiu aos alemães “recuperar o atraso”, resgatar,
através da acumulação inicial desse capital autorizado pela tradução,
a antiguidade perdida e, sobretudo, reivindicar a superioridade do
latim e do grego para melhor negar a superioridade contemporânea
do francês como língua mundial. Johann Gottfried von Herder (1744-
1803), para lutar contra o etnocentrismo das “belas infiéis”,202 inventou203
a “fidelidade”204 (Treue). “A palavra [fidelidade] tem grande peso na
cultura alemã da época, e pode ser considerada uma virtude cardinal,
tanto no domínio afetivo quanto nos domínios da tradução ou da
cultura nacional”,205 como o observou Antoine Berman.
Ao mesmo tempo, a “fidelidade” espalhou-se por toda parte (inclu-
sive na França) e tornou-se a nova norma internacional em matéria
de tradução, de modo que a língua dominante manteve as mesmas

201
BERMAN, Antoine. L’Épreuve de l’étranger: culture et traduction dans l’Allemagne
romantique. Paris: Gallimard, 1984, p. 29. [N.T.: Referência bibliográfica da tradução
brasileira: BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha
romântica. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002, p. 31.]
202
Ver Capítulo 4.
Eu uso a palavra “inventar” aqui no sentido pleno de conformidade do texto-alvo
203

com o texto-fonte.
Citado por BERMAN, L’Épreuve de l’étranger, op. cit., p. 61. Douglas Robinson
204

completa a citação: “Homero deve entrar na França como um cativo, vestido à francesa,
de medo de ofender os olhos deles, deve deixá-los raspar sua venerável barba e despir-se
de sua roupa simples; deve aprender os costumes franceses e, quando sua dignidade de
camponês ainda brilhar, ser ridicularizado como um bárbaro”. ROBINSON, Translation
and Empire, op. cit., p. 56. Tradução em francês da autora.
205
BERMAN, L’Épreuve de l’étranger, op. cit., p. 61. 85

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características, sujeitando-se, aparentemente, às novas normas da
A língua mundial

tradução, concebidas para proteger o texto e o autor-fonte. “Se a tradução


devia permitir que a língua e o espírito da nação se apropriassem do
que não possuem [...], o primeiro requisito é uma fidelidade pura e
simples”, disse Wilhelm von Humboldt.206 Contra a “francização” dos
textos, isto é, a sua redução a categorias estéticas que se pretendiam
universais, mas que eram apenas francesas e, portanto, dominantes, os
alemães defendiam a “fidelidade”, isto é, a verdade objetiva, a referência
confiável ao original. Mais especificamente, poderíamos falar de
traduções francesas ou de “estilo francês”, de esteticocentrismo, como
falamos de etnocentrismo. Digamos que houve uma espécie de revolta
contra a dominação do francês, e os alemães garantiram, ao contrário
dos franceses, a plena conformidade do texto de chegada com o texto
de partida.
O investimento de capital foi complementado pelo trabalho
dos linguistas e dos filólogos que usaram seus instrumentos para lutar
contra a dominação do francês. A gramática comparada das línguas
indo-europeias tornou possível elevar as línguas germânicas ao mesmo
nível de antiguidade e nobreza que o latim e o grego – no sistema de
legitimidade definido pela antiguidade linguístico-literária – declarando
a superioridade das línguas indo-europeias sobre as outras. Ao mesmo
tempo, a linguística elevou a língua alemã a uma extraordinária anti-
guidade e, portanto, a uma nova “literaturidade” que a elevou ao nível
do latim.
Nessa lógica, compreende-se melhor o surgimento das teorias da
tradução, e por que também foi necessário declarar obsoletas as tradu-
ções em francês desses mesmos textos latinos e gregos. Em oposição às
práticas francesas dominantes, era necessário poder afirmar o que deve-
ria ser uma “verdadeira” tradução. A teoria alemã e a prática resultante
baseavam-se, portanto, numa oposição à tradição francesa. Esta última,
na mesma época, se baseava na casualidade e na “infidelidade”. Traduzia-
se sem a menor preocupação com a fidelidade: a posição dominante
da literatura e da língua francesas encorajava os tradutores a anexar os

206
HUMBOLDT, Wilhelm von. Sur la traduction: partie centrale de L’Introduction à
l’Agamemnon d’Eschyle. Traduzido do alemão para o francês por Denis Thouard. Paris:
86 Seuil, 2000. (Col. Points), p. 39. Grifo da autora.

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textos, adaptando-os à sua própria estética ou categorias de pensamento.

Capítulo 3 A tradução como conquista


“Quem dirá que as línguas antigas e germânicas nunca foram traduzidas
para o francês?”,207 disse Friedrich Schleiermacher. “Para sentimentos,
pensamentos e até mesmo objetos, diz Goethe, o francês procede como
para as palavras estrangeiras que ele adapta ao seu discurso: para cada
fruto estrangeiro, é necessário um substituto que tenha crescido no seu
próprio solo.”208 Essas críticas visavam, assim, tornar o alemão a única
língua de referência, ou seja, depois do francês do século XVIII, o novo
“latim dos modernos”.
Foi assim que a ideia de uma acumulação real e objetiva de
capital linguístico se desenvolveu entre os intelectuais alemães. Goethe
escreveu ainda: “Independentemente de nossas próprias produções,
já alcançamos, graças à apropriação plena do que é estranho para nós,
um grau muito alto de cultura.”209 O próprio Walter Benjamin escreveu
a posteriori em Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik
[O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão], como se fosse
óbvio: “A obra romântica duradoura dos Românticos consiste em ter
anexado formas artísticas romanas à literatura alemã. O seu esforço foi
dirigido em plena consciência, para a apropriação, o desenvolvimento
e a purificação dessas formas.”210 Ainda hoje (e é o passado que nos
permite compreender o presente e atua ex post como uma espécie de
verificação), restou da tradução concebida como apropriação aquilo
que chamei de “tradução-acumulação”:211 o que acontece em países com
uma língua altamente dominada.
A essa operação de simples acumulação de capital em períodos de
fundação nacional e política pode-se ainda acrescentar uma “aceleração
temporal” de muitos espaços dominados que, constituídos há mais

207
SCHLEIERMACHER, Friedrich. Des différentes méthodes de traduire. Traduzido do
alemão para o francês por Antoine Berman. Paris: Seuil, 1999, p. 91.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Übersetzungen. In: GOETHE, Johann Wolfgang
208

von. Noten und Abhandlungen zu besserem Verstandnis des West-östlichzen Divans.


Goethe Werke, Hamburger Ausgabe, t. II, p. 255-256.
209
Citado por BERMAN, L’Épreuve de l’étranger, op. cit., p. 26. Grifo da autora.
210
BENJAMIN, Walter, Werke, I, 1. Francfort: Suhrkamp, 1974, p. 76. Grifo da autora.
Ver CASANOVA, Consécration et accumulation de capital littéraire: la traduction
211

comme échange inégal. Actes de la recherche en sciences sociales, op. cit., p. 9. 87

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tempo, são, como resultado, bipolarizados. Nesses espaços, as traduções
A língua mundial

mundiais são os instrumentos privilegiados de luta dos escritores mais


autônomos e permitem a importação de normas centrais ou mesmo
mundiais, ou seja, aquelas que decretam e certificam a modernidade.
Os próprios tradutores são, na maioria das vezes, plurilíngues212 e podem,
portanto, ser localizados, segundo a grande dicotomia que estrutura os
campos nacionais, entre os internacionais: querendo romper com as
normas de seu espaço, procuram introduzir as obras da modernidade
definidas nos centros.
Esses mediadores desempenham, de certa forma, um papel
inverso ao dos internacionais das grandes capitais: não introduzem a
periferia no centro para consagrá-la, importam a modernidade decre-
tada no “meridiano de Greenwich livresco”,213 e a tornam conhecida
no seu campo nacional. É por isso que eles desempenham um papel
essencial no processo de unificação do campo mundial do livro. Assim,
poderia ser imaginado um mapa-múndi dos livros que seria desenhado
a partir das datas de tradução dos grandes textos heréticos, isto é, os
textos fundadores da modernidade. Essa geografia literária permitiria
também medir a distância estética objetiva dos diferentes espaços em
relação ao centro legislador.

212
No campo alemão do final do século XVIII, August Wilhelm Schlegel era fluente nas
principais línguas europeias modernas, grego, latim, francês medieval, alemão antigo, as
línguas “d’oc” e sânscrito. Traduziu Shakespeare, Dante, Petrarca, Boccaccio, Calderón,
Ariosto e muitos outros poetas italianos, espanhóis e portugueses menos conhecidos.
213
Ver CASANOVA, Pascale. The literary Greenwich Meridian: Thoughts on the Tem-
88 poral Forms of Literary Belief. Field Day Review, n. 4, 2008, p. 7.

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Capítulo 4
As Belas Infiéis

No início do século XVII, o francês e o latim estavam quase – se


não fosse o perpetuado prestígio do latim, o que explica que a maioria
das traduções foram feitas a partir desta língua – numa posição de
equilíbrio. Parece que a reflexão sobre a língua foi mais profunda do
que em qualquer outro lugar nesse “reino da França” e que a “política”
da imitação defendida por Du Bellay em La Deffence et illustration de la
langue française foi eficaz: o francês foi “enriquecido” pela contribuição
do vocabulário grego e latino, o que poderia explicar por que a língua
estava se tornando, naquele momento, mundialmente dominante.
Assim, Marc Fumaroli escreve:

Essa hegemonia do francês era inimaginável no século XVI. Du


Bellay e seus amigos considera[ra]m uma ambição heroica trazer
a poesia francesa ao nível da poesia italiana. [...] O que aconteceu
ao francês sob o ministério de Richelieu é um fenômeno
extraordinário que reverte a favor do francês a hierarquia dos
estilos e das línguas na Europa, onde as principais línguas
vernáculas não tinham a pretensão de ir mais longe e mais alto
do que escoltar o latim a uma distância respeitosa.214

214
FUMAROLI, Les Abeilles et les Araignées, op. cit., p. 14-15.

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O latim era ainda sem dúvida a língua da Igreja, mas, para os
A língua mundial

assuntos relacionados ao conhecimento, os franceses hesitavam; eles


tergiversavam, ainda escreviam poesia e prosa em latim, mas o francês
era também doravante uma língua literária (isto é, uma língua escrita);
era uma língua dominante entre os vernáculos europeus. “Já em 1635
[escreve Fumaroli] Richelieu, ao criar a Academia francesa, expressou
seu desejo de não deixar o francês como substituto do neolatim, mas de
assegurar que o substituísse como língua universal.”215
Havia um interesse no estilo e nos processos de estilo; as traduções
eram, na sua maioria, apenas uma pesquisa desse tipo.216 Assim, um dos
seus amigos, evocando o iminente Tácito de Nicolas Perrot d’Ablancourt
(1606-1664),217 que é para nós o protótipo do “tradutor infiel”,218 disse
que ele [d’Ablancourt] nos mostraria “esse Autor com a força do seu
estilo, e todas as graças que pode receber na nossa língua”.219 “[A] língua
francesa começava a superar o espanhol, o italiano e até o latim como
língua da diplomacia: ganhava pontos como língua do comércio das
ideias”,220 explica Fumaroli. O vocabulário das línguas antigas continuou
a ser importado para o francês, mas o “enriquecimento” do francês
deixou de ser uma prioridade.221 As cartas antigas eram traduzidas,
não mais para “enriquecer” a língua, mas para que esta “se igualasse”
ao latim.222 Depois do reino todo-poderoso e da autoridade infalível do
latim, houve uma querela, na França, como em muitos outros países
europeus, entre os antigos e os modernos, ou seja, uma luta entre os
partidários da imbatível supremacia dos antigos sobre os modernos e

215
Ibid., p. 13.
Ver ZUBER, Roger. Les “Belles Infidèles” et la formation du goût classique: Perrot
216

d’Ablancourt et Guez de Balzac [1968]. Paris: Albin Michel, 1995. (Col. Bibliothèque de
l’Évolution de l’humanité), p. 19.
217
Ver também TOHLTE, op. cit., p. 56-57.
218
Dizia-se também: libertine translators. HERMANS, Translations in Systems, op. cit.,
p. 124.
219
Citado por FUMAROLI, Les Abeilles et les Araignées, op. cit., p. 13.
220
Ibid.
SEGUIN, Jean-Pierre. L’Institution langue française: prestige et autorité. In: CHAU-
221

RAND, Nouvelle Histoire de la langue française, op. cit., p. 231-275.


90 222
ZUBER, Les “Belles Infidèles” et la formation du goût classique, op. cit., p. 17-18.

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os defensores de um abandono da crença na superioridade eterna dos

Capítulo 4 As Belas Infiéis


antigos e da preeminência dos modernos.
A tradução tornou-se um gênero literário e obteve um grande
sucesso entre as mulheres e os devotos que não tinham acesso às línguas
antigas. O bilinguismo dos clérigos e dos nobres (mesmo que fosse, em
parte, apenas uma lenda)223 já não era uma evidência. Era necessário,
portanto, traduzir os textos para um público cada vez mais numeroso e que
não tinha remorso em expressar sua ignorância do latim.224 O “público”
era uma ideia nova no século XVII: “Sob o nome abstrato de ‘público’
é colocado um grupo que não constitui um todo homogêneo”.225 Por um
lado, os salões literários atraíam mulheres e nobres para a literatura e
para as traduções – em particular as mulheres, que não tinham acesso
nem à escolarização nem, consequentemente, às línguas antigas: “[A]s
senhoras da boa sociedade encontraram ali uma atividade cultural que
exigia a arte nos modos (que a sua educação lhes ensinava), mas não um
conhecimento avançado (que a sua educação lhes negava)”.226 Por outro
lado, a exclusividade do latim em assuntos escolares

[...] proibia efetivamente qualquer presença das belas-letras


francesas na sala de aula. Mas a expansão da vida literária exigia
um público sempre crescente que, sem uma formação inicial
adequada, procurava substitutos em obras capazes de lhe dar o
conhecimento correspondente aos seus gostos e práticas.227

As coletâneas foram, para os escritores, uma oportunidade de


“ganhos rápidos” em termos de reputação.228 A sua publicação assegurou
a extensão do alcance dos leitores e contribuiu para tornar perceptível

223
Ver COUROUAU, Moun Lengatge Bèl, op. cit., p. 37. Ver também, do mesmo autor,
Premiers Combats pour la langue occitane: manifestes linguistiques occitans XVIe-XVIIe
siècles. Biarritz: Atlantica, 2001, p. 37-38.
224
COUROUAU, Moun Lengatge Bèl, op. cit.
225
VIALA, Naissance de l’écrivain, op. cit., p. 123.
226
Ibid., p. 135; ver também TOHLTE, op. cit., p. 128.
227
VIALA, Naissance de l’écrivain, op. cit., p. 138.
228
Ibid., p. 126. 91

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o debate estético.229 “A ‘sociedade parisiense’ dava uma reputação tão
A língua mundial

valiosa quanto a aprovação das autoridades políticas e religiosas. [...] Mas


a autonomia baseada no sucesso junto ao público em geral permanecia
parcial.”230
[...] esse público de leitores [...] tem [tinha] o peso dos números
e do prestígio social, mas [...] odeia [odiava] o pedantismo (o
latim). [...] assim, em meados do século XVII, assistiu-se a uma
dupla inversão: foi o público leitor, parisiense, que se tornou
o tribunal internacional dos livros [...]; e, além disso [...] esse
público parisiense tinha apenas relações distantes e indiretas
com fontes latinas e gregas.231

Assim, foi em nome da “clareza” para o leitor, ou seja, da legibi-


lidade para um público não latinista, que foram feitas mudanças nos
textos antigos.
Foi também naquela época que a “tradução livre”232 foi “inventada”
na França e na Inglaterra,233 tradução que era mais uma “imitação”234 ou
uma adaptação do que uma “tradução” propriamente dita e que envol-
via “acréscimos, supressões e modificações”.235 Por causa da distância
do original, as traduções foram chamadas de “belas infiéis”, segundo a
expressão de Gilles Ménage (1613-1692).236 Elas indicavam que a língua
francesa, que de certa forma tinha se tornado adulta, estava se eman-

229
VIALA, Naissance de l’écrivain, op. cit., p. 129.
230
Ibid., p. 150-151.
231
FUMAROLI, Les Abeilles et les Araignées, op. cit., p. 16.
Ver BERMAN, Antoine. La Traduction et la Lettre ou L’Auberge du lointain. Paris:
232

Seuil, 1999, p. 178. [N.T.: BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do lon-
gínquo. Tradução de Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini.
Revisão de tradução: Luana Ferreira de Freitas, Orlando Luiz de Araújo (texto em
grego). 2. ed. Tubarão: Copiart; Florianópolis: PGET/UFSC, 2013.]
233
Os autores do TOHLTE insistem na porosidade franco-inglesa (“A cultura francesa à
qual deviam tanto”, tradução em francês da autora), ver TOHLTE, op. cit., p. 67, 135 et seq.
234
Ibid., p. 25.
235
FUMAROLI, Les Abeilles et les Araignées, op. cit., p. 78; ver também TOHLTE, op. cit.,
p. 56-57.
92 236
ZUBER, Les “Belles Infidèles” et la formation du goût classique, op. cit., p. 195.

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cipando (ou tinha começado a emancipar-se) do latim e dos seus

Capítulo 4 As Belas Infiéis


modelos. A querela (que era também uma querela sobre a tradução
dos antigos) mostrava que a onipotência dos antigos era, a partir desse
momento, discutível ou, de qualquer modo, que era possível questioná-
la. Daí esse tipo de “casualidade” na tradução: era possível mostrar
superioridade aos antigos autores em termos de “gosto”, conveniência e
elegância.237 Devia-se então “prestar um serviço”238 aos autores antigos,
tornando-os conhecidos em francês. Em outras palavras, não se sentia
mais dependência deles, mesmo que permanecessem como modelos
literários incontestáveis.
Era, portanto, apropriado “não ser servil”239 ao texto original.
O “palavra por palavra” era considerado “escravidão”.240 As traduções
dos antigos, feitas dessa forma nos séculos XVII, XVIII e até tarde
no século XIX, estão repletas de “flores” (acréscimos ornamentados e
“ornamentos” que obedeciam ao refinamento e aos costumes da época).
As “traduções infiéis” destinavam-se, portanto, segundo Roger Zuber, a
forjar o “estilo” da literatura francesa.

Nicolas Perrot d’Ablancourt recomendava três qualidades essen-


ciais: clareza, concisão e elegância. Acrescentou explicações para
esclarecer alguns pontos, como o repetiu em várias notas sobre
suas traduções [...]; para reforçar seu estilo, procurou escrever
de forma concisa: para isso, não usou nada pesado ou inútil.
Ele construía cuidadosamente as suas frases para que fossem
elegantes (dizia-se embelezadas na época); criou fórmulas que se
tornaram proverbiais graças à sua simetria e sistema de oposição
e prestou muita atenção ao ritmo e à harmonia.241

237
“Perrot d’Ablancourt fala de forma ideológica quando afirma: ‘De fato, há muitas
passagens em que traduzi palavra por palavra, pelo menos na medida em que é possível
numa tradução elegante’.” LEFEVERE, André. Anne Dacier: from the introduction to
her translation of the Iliad. In: LEFEVERE, André (ed.). Translation History Culture: A
Sourcebook. London-New York: Routledge, 2001. Grifo e tradução em francês da autora.
238
HERMANS, Translations in Systems, op. cit., p. 125.
239
FUMAROLI, Les Abeilles et les Araignées, op. cit., p. 22.
240
Ibid., p. 29.
DELISLE; WOODSWORTH, Translators Through History, op. cit., p. 40-41. Tradução
241

em francês da autora. 93

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Os tradutores procuravam “agradar” ao público, fornecendo-lhe
A língua mundial

uma tradução de acordo com os seus gostos e, de fato, privilegiou-se


a tradução heterônoma e etnocêntrica. Não se tratava mais de tra-
duzir, mas de “elevar” (ou, segundo Schleiermacher, o tradutor tinha
que se certificar de que “o leitor fosse ao encontro do escritor” e deixar
o escritor “o mais quieto possível”).242 “Não era incomum que o nome
do autor do texto-fonte desaparecesse completamente do título da
obra francesa à qual tinha dado origem”243 (de acordo com o processo
de anexação dos dominantes acima descrito); e que, para essa imi-
tação etnocêntrica, fossem introduzidos comentários explicativos,244
em doses discretas ou apoiadas; que se fizessem cortes nas passagens
consideradas demasiado longas; que se desenvolvesse o que parecia,
pelo contrário, interessante; que se multiplicassem figuras – imagens e
metáforas245 – ou que, pelo contrário, “as metáforas fossem suavizadas”
(por acréscimos ao texto que poderiam ser longos)246 se elas pareces-
sem ridículas às pessoas daquele tempo.247 Georges de Scudéry dizia
assim, para justificar as diferenças do texto “traduzido” com o original:
“O que é galante em Roma é por vezes ridículo em Paris.”248 Ao fazê-
lo, ele não só expressava o relativismo geográfico que parecia estampar,
mas também o fato de que a elegância parisiense desempenhava o papel
de árbitro na Europa.
Se a querela atravessou a questão das belas infiéis é porque os
tradutores eram “modernizadores” que não hesitaram em dar lições
de “conveniência” e “gosto”, de elegância e “delicadeza” aos antigos.249
Podia-se dessa forma mudar as maneiras de falar do herói (nota-se uma

242
SCHLEIERMACHER, Des différentes méthodes de traduire, op. cit.
CHEVREL; D’HULST; LOMBEZ, Bilan. In: Histoire des traductions en langue fran-
243

çaise, op. cit., p. 1259.


244
ZUBER, Les “Belles Infidèles” et la formation du goût classique, op. cit., p. 30.
245
Ibid.
246
Ibid., p. 293.
247
Ibid., p. 51.
248
Citado em ibid., p. 79.
94 249
Ver TOHLTE, op. cit., p. 58-59.

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certa preocupação de os heróis falarem a língua da moda),250 o francês

Capítulo 4 As Belas Infiéis


usado era “mais casto”251 que o latim, modificou-se também o quadro
social ou o senso moral do herói, etc.; “a técnica militar, as instituições,
o protocolo [foram] também modificados”.252
Portanto, as coortes pretorianas tornaram-se Guardas, e seus tri-
bunos, Oficiais. Os sestércios serão negociados em libras ou escudos. Os
ediles curules serão abreviados em edis; um decreto contra um assassino
substitui a “lex Cornelia”, demasiado longa para transpor e demasiado
bizarra nas suas disposições.253
Constatou-se ainda que se podia encontrar a tradução de uma
única palavra francesa para cinco palavras latinas,254 sem esquecer o
alongamento sistemático do texto pelo “comprimento das frases”.255
“O francês da época gostava de evocar uma moral pura, ‘delicada’ e po-
lida”.256 Minimizavam-se a embriaguez de alguns, a sodomia de outros.257
Nota-se um enobrecimento, ou uma “amplificação”258 do tom, mais sério,
mais pomposo, mais conforme aos costumes da época; o insulto era
fonte de constantes dificuldades; passava-se muitas vezes de um verbo
passivo a um verbo ativo para insistir sobre o ato e, principalmente,
sobre a vontade de um líder que, como obriga o absolutismo, nunca
se submetia ao acaso. A ordem hierárquica era estritamente respeitada,
aquele com grau superior era também o mais valente;259 os personagens
secundários eram eliminados para deixar toda a “glória” da ação para
o papel principal;260 as realidades demasiado sombrias da guerra
eram eliminadas. A preocupação de criar tanto quanto de imitar não

250
ZUBER, Les “Belles Infidèles” et la formation du goût classique, op. cit., p. 290.
251
Ibid., p. 293.
252
Ibid.
253
Ibid., p. 291.
254
Ibid.
255
Ibid., p. 312.
256
Ibid., p. 293. Aspas da autora.
257
Ibid.
258
Ibid., p. 306.
259
Ibid., p. 300.
260
Ibid., p. 301. 95

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abandonava os “tradutores”, que eram antes de tudo estilistas e para os
A língua mundial

quais uma boa tradução era uma tradução bem escrita.261


A “infidelidade” aos textos era “perfeitamente consciente”, escreve
Roger Zuber, habilmente controlada e dosada. [...] As mudanças sofridas
pelo texto antigo respondiam a intenções artísticas.262 “Não basta culpar
essas infidelidades por ignorância ou preguiça.”263
O problema surgiu tanto para as traduções dos antigos quanto
para outras línguas europeias, ao longo de sua emancipação. No século
XVIII, o abade Prévost, por exemplo, traduziu os romances do inglês
Samuel Richardson (1689-1761), obras de imenso sucesso na Inglaterra.
Ele prefaciou Pamela em 1760, prefácio em que escreveu, entre outras
coisas:

Eu não mudei uma palavra em relação à intenção do autor nem


mudei muito a forma como ele colocou sua intenção em palavras.
No entanto, dei um novo rosto ao seu trabalho, expulsando as
digressões demasiadamente longas, as descrições excessivas, as
conversas desnecessárias e os devaneios deslocados.264

Assim, Henri Roddier, seu principal crítico francês, escreveu em


1956 sobre o abade Prévost e Clarissa Harlowe:

[Ele] não se contenta apenas em omitir certos detalhes tipica-


mente ingleses ou longas citações de poemas ou salmos, nem
atenua os ataques contra a religião católica ou os costumes de
maridos excessivamente complacentes. [...] Ele ignora comple-
tamente [...] a expressão do sofrimento psicológico de Clarissa
quando Lovelace finalmente abusou dela. Desfoca as descrições
demasiado concretas e apaga [...] a narrativa demasiado realista
da morte da infame Sra. Sinclair. [...] Ele tem as reações típicas
de um homem de qualidade, escritor de bom tom diante das
obras originais de uma gráfica inglesa, que se tornou o primeiro

261
Ver TOHLTE, op. cit., p. 59, 61-62.
262
Ibid., p. 190.
263
Ibid., p. 195.
VENUTI, Lawrence. Translation, History, Narrative. Meta L, n. 3, p. 802, 2005.
264

96 Tradução em francês da autora.

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grande romancista burguês. Inimigo do exagero, tanto na

Capítulo 4 As Belas Infiéis


linguagem como nos costumes, o bom tom requer que se fale
com sobriedade e, preferindo a meia-luz a uma luz demasiado
brilhante, leva a usar eufemismos e lítotes. [...] Prévost remove as
fórmulas epistolares, as tagarelices que dão a ilusão do real mas
não contribuem em nada para a trama, e, finalmente, a maioria
dos sermões. [...] Se por vezes ele faz acréscimos ao texto, ainda é
por uma questão de estilo. [...] Não se procura assimilar o gênio
da língua inglesa [...] mas sim familiarizar o público (francês)
com os costumes e características do outro lado do Mar da
Mancha, adaptando as obras à nossa maneira de escrever e falar.265

No prefácio à Histoire du chevalier Grandisson [A história do cava-


leiro Grandisson] (1755), Prévost justifica a sua estratégia de tradutor
escrevendo:

[...] dei um novo rosto ao seu trabalho, cortando excursões


lânguidas, pinturas sobrecarregadas, conversas inúteis e reflexões
inadequadas. A principal desaprovação feita pela crítica ao Sr.
Richardson é que às vezes ele perde de vista a medida de seu
assunto, e divaga nos detalhes. [...] Eu removi ou reduzi às
práticas comuns da Europa o que as da Inglaterra podem ter
de chocante para outras nações. [...] Finalmente, para dar uma
ideia exata do meu trabalho, basta notar que os sete volumes,
dos quais a edição inglesa é composta [...], foram aqui reduzidos
a quatro.266

Para compreender melhor as implicações dessas traduções


“infiéis”, citamos um texto de Charles Perrault, que participou da
querela dos antigos e modernos e foi rapidamente considerado o líder
dos modernos. São trechos de “Siècle de Louis le Grand” [Século de
Luís o Grande], poema de 1687, lido na sessão da Academia Francesa

265
RODDIER, Henri. L’abbé Prévost et le problème de la traduction au XVIIIe siècle.
Cahiers de l’association internationale des traducteurs, n. 8, p. 173-174, 1956. Grifo da
autora.
266
D’HULST, Lieven. L’Évolution de la Poésie en France (1780-1830). Louvain: Leuven
University Press, 1987, p. 109-110. 97

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e publicado imediatamente depois.267 Ele expressa claramente que
A língua mundial

a querela tanto quanto as belas infiéis tinham, em muitos aspectos,


ligações com a política: tratava-se de saber se Augusto continuaria a ser
honrado ou se “o século de Luís XIV”268 o superaria ou se igualaria a ele:

A bela Antiguidade foi sempre venerável,


Mas nunca acreditei que ela fosse adorável.
Vejo os Antigos sem dobrar os joelhos,
São grandes, é verdade, mas homens como nós;
E podemos comparar, sem medo de sermos injustos
O século de Luís com o belo século de Augusto.269

Regressava-se à precedência científica e artística dos antigos, bem


como ao pessimismo temporal, ou melhor, cronológico, que vigorou
na época medieval e que nunca tinha sido oficialmente contestado. De
acordo com essa doutrina temporal, o universo, no tempo dos antigos,
já estava no momento do seu nascimento e produzia o que havia de mais
belo, enquanto os contemporâneos testemunhavam o declínio e o fim do
mundo, o tempo fluindo na direção oposta às nossas próprias concepções.
Assim Perrault – que se opunha a essa representação – escreveu:

Para formar os Espíritos como para formar os corpos,


A Natureza em todas as eras faz os mesmos esforços,
Seu Ser é imutável, essa força incontida
Com a qual tudo ela produz nunca é exaurida;
Jamais o Astro do dia que avistamos correntemente,
Teve coroada a face de raio mais esplendente,
Jamais, na Primavera, as rosas empurpurecidas,
De um encarnado mais vivo foram coloridas [...]
Desta mesma mão as forças incontidas
Produzem em todas as eras genialidades parecidas.270

267
Ver FUMAROLI, Les Abeilles et les Araignées, op. cit., p. 256 et seq.
268
Título de um livro de Voltaire de 1751.
Citado em FUMAROLI, Les Abeilles et les Araignées, op. cit., p. 257. [N.T.: Usamos,
269

para as citações do poema de Perrault em todo o capítulo, a tradução em português de


Sertório de Amorim e Silva Neto e Enoque M. Portes publicada na revista eletrônica
Viso: cadernos de estética aplicada, n. 18, jan./jun. 2016.]
98 270
Citado em ibid., p. 271.

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A respeito da ciência, considerada como pertencente aos antigos,

Capítulo 4 As Belas Infiéis


Perrault opôs-se fortemente a esse dogma – e ao que havia se tornado
um simples automatismo de pensamento – e escreveu – contradizendo
assim os partidários dos antigos, convencidos da superioridade científica
definitiva destes:
Não, não, de milagres em número tão diverso,
Com os quais o soberano Mestre encheu o universo,
A douta Antiguidade, em toda sua duração,
Não fez como em nossos dias igual iluminação.271

E sobre a tradução:
Platão, que foi divino no tempo dos nossos antepassados,
Começa a se tornar por vezes um enfado:
Em vão seu Tradutor, ao Antigo leal,
Conserva nele a graça e todo ático sal;
Pelo leitor mais ávido e mais empedernido
Jamais um diálogo inteiro seria lido.272

Em 1641, foi publicado L’Erreur combattue, discours académique


où il est prouvé curieusement que le monde ne va pas de mal en pis [O erro
combatido, discurso acadêmico em que se prova curiosamente que o
mundo não vai de mal a pior], um texto assinado por um certo Sieur
Rampalle (sobre o qual pouco se sabe),273 que provou que os partidários
da Antiguidade acreditavam logicamente em superstições medievais
pessimistas e que as concepções temporais estavam mudando pouco a
pouco. Essas crenças medievais, como já foi dito, consistiam na certeza
da superioridade da Antiguidade (incluindo o “tamanho” dos homens
da época e o declínio do mundo e dos homens de hoje) e a concepção
pessimista do mundo. Ora, diz Marc Fumaroli, esse pessimismo de origem
astrológica ofendia a Providência274 e contradizia o pensamento emergente
de “progresso”. Rampalle (que retomou, destacando-o, o pensamento de
um italiano) estabeleceu que essa forma de pensar era falsa:

271
Citado em FUMAROLI, Les Abeilles et les Araignées, op. cit., p, 259.
272
Citado em ibid., p. 258.
273
Ibid., p. 92.
274
Ibid., p. 94. 99

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[...] nossos pensamentos nos induzem deliberadamente a acre-
A língua mundial

ditar que ficamos apenas com a sombra da felicidade e da equi-


dade dos séculos passados [...], a [autoestima] só compara com
desprezo o tempo em que vivemos com o dos nossos antecessores:
ou porque esse rebaixamento das coisas presentes vem do instinto
natural de todos os homens, que têm uma opinião maior e mais
favorável de tudo o que nunca viram, ou porque a emulação e
a inveja nos tornam visíveis as menores imperfeições de tudo
o que nos aparece – e porque, pelo contrário, a Antiguidade é
duplamente venerável para nós pelo que não vemos como suas
falhas, e porque não consideramos seus louvores ampliados pela
pluma dos escritores – ou finalmente porque nossas próprias
mentes avisadas nos fazem essa injustiça.275

Para Rampalle, toda a tradição poética era corrompida por essa


projeção no passado de uma sociedade humana superior: “falacioso
pretexto para fazer parecer que tudo correu mal desde então”.276 Ele se
indignava com a crença de que a vida na Antiguidade era mais longa
e o próprio tamanho dos homens, maior.277 Admitia a presença, rara,
de gigantes; e assim argumentaram todos os modernos depois dele: a
natureza era imutável e suas leis eram constantes. De fato, o tamanho
médio de um homem “não mudou muito e é um erro acreditar que a
espécie está em declínio, mensurável no tamanho”.278
Os comentários de Perrault serão complementados pelos de
Antoine Houdar de La Motte, que, por meio do prefácio à sua tradução
da Ilíada, publicada em 1714 (tinha descoberto Homero com a tradu-
ção de Mme Dacier publicada em 1711), gabou-se de ter “modernizado”
Homero e traduzido a Ilíada em doze cantos versificados (enquanto
o original tem vinte e quatro).279 Ele participou da chamada “Querela
de Homero” (ou “Segunda querela dos antigos e dos modernos”, que

275
Citado em FUMAROLI, Les Abeilles et les Araignées, op. cit., p. 18-19.
276
Ibid., p. 101.
277
Ibid., p. 102.
278
Ibid.
Ver LEFEVERE, Translation History Culture, op. cit., p. 8: “Ele só adaptou a epopeia
279

às exigências do gênero dominante no seu tempo: a tragédia”. Tradução em francês da


100 autora.

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ocorreu em 1714-1715), que foi muito mais curta e menos intensa que

Capítulo 4 As Belas Infiéis


a primeira, mas que se aplica perfeitamente à tradução dos antigos e à
questão de sua suposta perfeição. Houdar afirmou assim no prefácio à
sua Ilíada “modernizada”:

Coloquei em versos a Ilíada, mesmo julgando-a imperfeita;280 e


parece-me, antes de mais nada, que eu mereço uma crítica oposta
à que geralmente temem os tradutores que se comprometem a
copiar os originais que eles consideram perfeitos e inimitáveis.
[...] Da Ilíada segui o que me pareceu que deveria ser preservado
e tomei a liberdade de mudar o que achei desagradável. Sou
tradutor em muitos lugares e original em muitos outros.[...] Há
dois tipos de traduções: umas literais [...]; o tradutor abandona
o caráter e o gênio de sua língua para seguir de forma servil a do
seu original; [...] O outro tipo de tradução é mais ambicioso: não
é suficiente que seja útil, deve agradar. [...] Em que base podemos
fundamentar essa desvantagem da nossa língua? É por causa da
carestia de palavras que ela peca? O que há, então, que ela não
possa expressar? [...] Quanto à aprovação, a diferença entre o
século de Homero e o nosso obrigou-me a ter muita cautela, para
não alterar demasiado o meu original e não chocar os leitores
imbuídos de costumes diferentes e dispostos a achar ruim tudo o
que não se parece com eles.281

Vemos aqui tudo aquilo que implica uma tradução heterônoma,


inteiramente orientada para o seu público, feita numa língua que come-
çava a dominar: mudanças no vocabulário, na sintaxe e no contexto;
mudanças em quase todo o texto, nas ideias e ideologia, nos costumes e
etnologia. Em suma, tratava-se de ignorar a história particular do texto,
da qual toda a sua escrita depende, e fixá-lo numa essência que ele não
representava.

Quis tornar minha tradução agradável, [continua Houdar], e a


partir dali foi necessário substituir ideias que agradavam na época
de Homero por outras ideias que agradam hoje: por exemplo, foi

280
Ver TOHLTE, op. cit., p. 31.
Citado em FUMAROLI, Les Abeilles et les Araignées, op. cit., p. 451-453. Grifo da
281

autora. 101

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necessário suavizar a preferência solene que Agamenon f[e]z por
A língua mundial

seu escravo à sua esposa.282

Mme Dacier (1654-1720), defensora da autoridade de Homero


num sentido quase etnológico, respondeu no mesmo ano em Des causes
de la corruption du goût [Das causas da corrupção do gosto], entre
outras coisas:

Mas atrevo-me a dizer que o Monsieur de la M. [sic] tem maus


fiadores para o que ele está dizendo. Desafio-o a mostrar essa
tradição na santa Antiguidade; é uma deturpação infundada.
E tanto é falso que toda a seita dos epicurianos tenha enxergado
os poemas de Homero como tolices, que ele nunca foi mais
conhecido ou mais elogiado do que por Horácio, que era
epicuriano. [...] O Monsieur de la M. está geralmente satisfeito
com a primeira avaliação dos objetos que examina, e é por isso
que ele está tão frequentemente enganado.283

Mas ela “adaptava” e mudava as “metáforas homéricas” para


respeitar os usos do seu tempo. Ela não pôde aceitar, por exemplo,
que heróis como Agamenon ou Ulisses pudessem estar envolvidos em
tarefas “servis”. Ela não se atreveu a traduzir as comparações, “fazendo
perífrases para evitá-las”.284 Ela escreveu ainda:

Quanto mais perfeito um original estiver no grande e no sublime,


mais ele perde nas cópias.285 Não há, portanto, nenhum poeta
que perca tanto quanto Homero numa tradução. [...] Vemos [no
texto de Homero] príncipes roubando eles mesmos os animais
e os assando. [...] Mas, diz-se, quem pode aceitar [...] que os
filhos dos maiores reis guardem os seus rebanhos, trabalhem
por conta própria e que Aquiles desempenhe as funções mais
servis da sua casa?286

282
FUMAROLI, Les Abeilles et les Araignées, op. cit., p. 452. Grifo da autora.
283
Citado por ibid., p. 504, 507.
284
OSEKI-DEPRE, Théories et Pratiques de la traduction littéraire, op. cit., p. 35, 37.
285
Este foi o nome dado às traduções.
102 286
Citado por MOUNIN, Les Belles Infidèles, op. cit., p. 18-19.

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Monsieur de La Valterie, que publicou trinta anos antes, em

Capítulo 4 As Belas Infiéis


1681, a primeira tradução completa das duas epopeias homéricas em
prosa, escreveu nesse sentido: “Não me atrevi a deixar aparecer Aquiles,
Pátroclo, Ulisses e Ajax na cozinha [...]. Usei termos gerais aos quais
nossa língua sempre se adapta melhor que a qualquer um desses deta-
lhes, particularmente no que diz respeito às pequenas coisas.”287

Em Amyot, os canteiros de folhagem sobre os quais se come


deitado em Daphnis et Chloé [Dáfnis e Cloé] tornam-se assentos;
e as jarras, anacrônicos barris; [...] Mme Dacier, para a refeição da
Ilíada, introduz mesas que não existiam. [...] Em Bitaubé (1732-
1808) os insultos homéricos de – “Pesado de vinho, olho de cão,
coração de veado” – tornam-se com uma fidelidade substancial:
“Ó tu cuja embriaguez confunde a razão, que tem o olho
imprudente do dogue, mas o coração da corça tímida”; enquanto
“mosca de cachorro” se transforma numa elegante apóstrofe:
“Ó tu cuja audácia é incomparável!” [...] Os epítetos mais recentes
aos nossos olhos franceses permanecem em Bitaubé como os
clichês mais fielmente insípidos [...] O texto não é apenas tra-
duzido, mas filtrado.288

No século XVIII, de modo geral, o tradutor tornou-se assim prisio-


neiro dos gostos do seu público (produzindo uma tradução heterônoma),
e a tradução perdeu o seu prestígio; o próprio Montesquieu diz: “As
traduções são como aquelas moedas de cobre que têm o mesmo valor
que uma moeda de ouro e até têm um uso maior para o povo; mas
são sempre fracas e de qualidade duvidosa”,289 confirmando assim que
a questão era realmente a do “valor” das traduções. Georges Mounin
acrescenta, a respeito de Montesquieu:
É a patada, em 1721, de um moderno convencido, alguns anos
depois das querelas entre Houdar de La Motte e Mme Dacier
(1714), dizer que os antigos não disseram tudo, que resta a fazer,
a criar, a progredir mais do que a traduzir. É a patada de um

287
Citado por MOUNIN, Les Belles Infidèles, op. cit., p. 89.
288
Ibid., p. 136-139. Victor Hugo falava do “que resta de Homero através de Bitaubé”.
289
MONTESQUIEU, Les Lettres persanes, lettre CXXVIII. 103

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racionalista do século das Luzes, recusando-se a permitir que o
A língua mundial

espírito humano se feche na Antiguidade, traduzida ou não.290

Rivarol (1753-1801), um pouco mais tarde, falou até de “imagem


nojenta” a respeito de Dante, que ele traduzia e em cuja tradução, dita
“decorosa” ou elegante, se permitiu mudanças. Escreveu o seguinte:
Ele [Dante] empilha as mais nojentas comparações, alusões, termos
escolares e expressões mais baixas: nada lhe parece desprezível, e
a língua francesa, casta e temerosa, se espanta com cada frase. [...]
Confesso que sempre que a tradução palavra por palavra oferecia
apenas tolices ou uma imagem nojenta, optei por dissimular; [...]
às vezes apenas reproduzi a intenção do poeta e deixei de lado a
sua expressão; às vezes generalizei a palavra e às vezes restringi o
seu significado.291

Até os textos dos antigos haviam de ser conforme o “bom gosto”


da época. O problema era exatamente o mesmo do século anterior:
os dominantes impunham o seu gosto sob o pretexto da tradução.
E paráfrases substituíam adjetivos considerados chocantes; compa-
rações, consideradas repetitivas, não eram traduzidas; perífrases foram
introduzidas, etc.292 No final do século, Charles Batteux (1713-1780),
um defensor da imitação no lugar da tradução palavra por palavra,
pediu que as coordenações, os advérbios, a simetria de expressões, as
metáforas, as prolepses, as interrogações, os provérbios, do latim ao
francês fossem preservados.

Há também [escreveu ele] certas coisas ligadas ao gosto, aos


costumes dos povos, que não podem ser transportadas; por
exemplo, os latinos eram muito mais livres do que nós na sua
língua. Tinham palavras que para eles eram de bom tom e que
para nós parecem baixas: “Um vaqueiro”, “uma vaca”. Bastaria
uma dessas palavras para enfear um trabalho de gosto...293

290
MOUNIN, Les Belles Infidèles, op. cit., p.12.
291
Citado em ibid., p. 21-22 et seq.
292
OSEKI-DEPRE, Théories et Pratiques de la traduction littéraire, op. cit., p. 37.
D’HULST, Lieven. Cent Ans de théorie française de la traduction: de Batteux à Littré
293

104 (1748-1847). Lille: Presses universitaires de Lille, 1990, p. 31.

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O grande tradutor francês Pierre Letourneur – que traduziu a

Capítulo 4 As Belas Infiéis


obra integral de Shakespeare entre 1776 e 1783,294 e cuja tradução em
vinte volumes, após algumas reestruturações, permaneceu uma versão
de referência até ao início do século XIX295 – entregou, em 1769, as suas
Nuits [Noites] de Edward Young, e explicitou ainda no seu prefácio:

Devo agora informar o leitor das liberdades que tomei nesta


tradução. Foram os defeitos que pensei ter notado no livro que
me permitiram fazê-lo. O mais geral e o que me pareceu mais
passível de inspirar o desgosto foi uma abundância estéril, uma
reprodução dos mesmos pensamentos sob mil formas quase
semelhantes [...]. Aparei todas essas coisas supérfluas, e as reuni
no final de cada Nuit [Noite] sob o título de “Notes” [Notas],
que não são minhas observações, mas o amontoado desses
fragmentos que descartei, e de tudo que me pareceu estranho,
trivial, ruim, repetido [...] minha intenção foi a de tirar do Young
inglês um Young francês que pudesse agradar a minha nação,
e que se pudesse ler com interesse sem pensar se é original ou
cópia. [...] Outro defeito que eu decidi não fazer desaparecer...
mas ao menos reduzir, foi a falta de ordem na montagem dos
diferentes trechos. [...] O que poderia ter sido usado para formar
uma única Nuit [Noite] é fragmentado e espalhado por farrapos...
sem que cada porção pertença a uma Nuit [Noite] mais do que
a outra... o sentimento desagradável que a visão dessa desordem
e dessa eterna uniformidade causava não desaparecia da minha
alma. [...] das nove Nuits [Noites] do original, eu formei vinte
e quatro... O que me pareceu necessário foi algum tipo de
arranjo, e tal ou tal arranjo torna-se indiferente num trabalho
em que todas as partes, não tendo nenhuma ligação particular
e necessária entre si, unem-se apenas pelas relações comuns e

294
MESCHONNIC, Henri. Poétique du traduire. Lagrasse: Verdier, 1999, p. 45. [N.T.:
Referência bibliográfica da tradução brasileira: MESCHONNIC, Henri. Poética do
traduzir. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Perspectiva, 2010.]
295
“Sua tradução foi bastante anotada e procurou ‘educar’ em vez de ‘agradar’ ao
leitor. Reconhecendo o caráter estrangeiro do texto-fonte, pelo menos até certo ponto,
Letourneur também chamou a atenção para a relatividade dos gostos. [...] Ele inaugurou
uma tradição crítica [...]. Letourneur garantiu o apoio da corte ao dedicar sua obra ao
Rei Luís XVI [...] A sua tradução foi um enorme sucesso.” DELISLE; WOODSWORTH,
Translators Through History, op. cit., p. 76. Tradução em francês da autora. 105

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gerais que elas têm com as duas ou três verdades fundamentais
A língua mundial

que contêm o princípio e o germe de todos os pensamentos deste


poema... Quando me ocorreu [...] algum epíteto que completava
uma imagem, a tornava mais luminosa ou dava mais harmonia
ao estilo, pensei que era do meu direito usá-lo. [...] Se for verdade
que às vezes eu embelezei o original, seria uma boa fortuna pela
qual lhe daria todo o crédito.296

Em outras palavras, “acredita-se” no francês mais do que em


qualquer outra língua da época. Georges Mounin cita Tourgueniev
(1818-1883), para dar um exemplo da mesma perversão no século XIX:

Afirmo, exclama Tourgueniev, que não há em Les Mémoires d’un


Chasseur [Memórias de um caçador] [contos publicados em
1847] quatro linhas seguidas que fossem fielmente traduzidas.
Na página 280, Charrière introduz um novo personagem que ele
descreve com complacência [...] ele poda, corta, muda, abomina
a palavra limpa, ele coloca uma cauda truncada no final de cada
frase; ele improvisa todo tipo de reflexões, imagens, descrições e
comparações.297

E Mounin continua com Edmond Cary:

Tolstói foi depurado por tradutores zelosos que fizeram os


habitantes das montanhas do Cáucaso tocar castanholas, em vez
de pandeiros, e que metamorfosearam os limpadores de latrina
de uma prisão em encanadores ocupados em arrumar canos.298

Como vimos, tanto os italianos como os alemães consideravam


uma tradução “à francesa” como sendo negligente e/ou etnocêntrica.
Antoine Berman, que hoje equipara as traduções elegantes (e enobre-
cedoras) a reescritas retóricas299 contrárias ao imperativo de fidelidade
que ele estabelece como sua meta, cita Collardeau, que, no final do século

296
D’HULST, Cent Ans de théorie française de la traduction, op. cit., p. 114-117.
297
MOUNIN, Les Belles Infidèles, op. cit., p. 10.
Ibid. Mounin dá a referência precisa do texto: CARY, Edmond. Défense et illustration
298

de l’art de traduire. La Nouvelle Critique, juin 1949, p. 88.


106 299
BERMAN, La Traduction et la Lettre ou L’Auberge du lointain, op. cit., p. 41.

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XVIII, escreveu, resumindo assim a ideologia das belas infiéis: “Se há

Capítulo 4 As Belas Infiéis


algum mérito em traduzir, só pode ser o de aperfeiçoar, se possível, o
seu original, embelezando-o, apropriando-se dele, dando-lhe um ar
nacional e naturalizando, de certa forma, essa planta estrangeira”.300
Entendemos que esse etnocentrismo era, de certa forma, estru-
tural: como entre o século XVIII e a primeira metade do século XX,
o francês havia se transformado no “latim dos modernos”, ou seja, a
língua mundial, a tradução – em grande parte em francês – tornou-se
de vez “infiel” e etnocêntrica. Com essa dominação linguística, todas as
traduções se tornaram negligentes e, sobretudo, anexionistas, tendendo
a transformar tudo em textos “franceses”, escritos segundo as normas
francesas.

300
Citado em OSEKI-DEPRE, Théories et Pratiques de la traduction littéraire, op. cit.,
p. 62, note 2. 107

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Exitus
ou a retomada das Belas Infiéis

Hoje em dia, ao contrário do que pensava Leopardi, o francês


já não é a língua dominante, e o inglês o substituiu nesse papel. Gisèle
Sapiro358 mostrou a esmagadora e crescente dominação do inglês nos
intercâmbios internacionais:359 está atualmente presente em mais de
50% das traduções em nível mundial360 e é majoritário na França; essas
traduções representam por ora dois terços das traduções para o francês
– e essa dominação está aumentando, passando de 45% nos anos 1980
para 59% nos anos 1990, e para 60% em 1995, segundo o Index Trans-
lationum da UNESCO.361 Assim, escreve Sapiro:

A evolução das traduções do inglês segue a mesma curva da


evolução global das traduções, o que comprova o peso dessa
língua na intensificação dos intercâmbios culturais internacionais
[...] a diversificação dos intercâmbios acompanha a crescente
dominação do inglês que [...] surge, cada vez mais, como um
reinado absoluto.362

SAPIRO, Gisèle. Translatio: le marché de la traduction en France à l’heure de la


358

mondialisation. Paris: CNRS éditions, 2008. (Col. Culture et société), p. 385.


359
Ibid., p. 397.
360
Ibid., p. 29.
361
Ibid., p. 69.
362
Ibid., p. 69, 73.

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Dessa forma, os problemas já não são exatamente os mesmos;
A língua mundial

não está mais em questão a descendência do latim em linha direta ou


não; não está mais em questão o empréstimo do grego, etc. O poder
econômico e militar é frequentemente associado ao poder linguístico,
mas eles são claramente distintos, um servindo apenas para fortalecer
o outro.
Mas tudo (ou quase tudo) que Leopardi descreveu para o
francês no início do século XIX poderia ser aplicado ao inglês hoje.
O problema do valor, por exemplo, não mudou: o inglês, ao invés de
fazer perder valor, faz ganhar valor. Da mesma forma, é porque o inglês
é hoje dominante que os seus tradutores podem se dar ao luxo de estar
mais atentos às exigências do seu público do que aos requisitos do
texto. Os editores permitem e até promovem traduções etnocêntricas
e não só, mas também análises, estudos, pontos de vista, advertências,
explicações, textos, explicitações, etc.
Lawrence Venuti, tradutor norte-americano do italiano e do
francês, que também é alvo de muitas críticas,363 mostrou como, no
seu país, o tradutor devia ser “invisível”364 e trabalhar no sentido da “trans-
parência” para poder ser aceito pelas editoras. Edwin Gentzler escreve
que “a contribuição de Venuti é notável porque o que ele conseguiu foi
uma inversão do debate.”365
Hoje, embora a situação tenha mudado um pouco desde que
descreveu publicamente as traduções, Lawrence Venuti assinalou, entre
outras coisas, que nos Estados Unidos os jornalistas-críticos muitas
vezes “omitiam” o nome do tradutor ou mesmo que se tratava de uma
tradução. Mas até então, era uma espécie de inconsciente coletivo no
sentido de Durkheim. Venuti forçou o mundo de língua inglesa, por
meio da sua intervenção, a “tomar consciência” do seu etnocentrismo.
Ele escreve, por exemplo:

363
Especialmente de Douglas Robinson e de Anthony Pym.
VENUTI, Lawrence. The Translator’s Invisibility: a History of Translation. New York:
364

Routledge, 1995. Ver também BERMAN, Antoine. L’Âge de la traduction, op. cit., p. 36-37.
365
GENTZLER, Edwin. Contemporary Translation Theories. Londres-New York: Routledge,
136 1993, p. 42. Tradução em francês da autora.

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Muitos jornais, como o Los Angeles Times, nem sequer mencio-

Exitus ou a retomada das Belas Infiéis


nam os tradutores numa tradução (ao mesmo tempo em que
citam o texto como se estivesse escrito em inglês), e os editores
na sua quase maioria excluem os tradutores das capas e propa-
gandas. [...] O fato de o texto criticado ser uma tradução pode
ser silenciado.366

Isso é o que permite aos leitores norte-americanos acreditar (de


boa-fé) que são textos norte-americanos e, portanto, anexá-los à litera-
tura nacional. O fato de o texto ser citado “como se estivesse escrito em
inglês” prova que as traduções têm má reputação367 e que a literatura
do mundo não anglófono (quase) desapareceu no que Venuti chama
de cultura anglo-americana contemporânea. Assim como se pede ao
tradutor que permaneça “invisível”, também uma tradução é considerada
“boa” se for esquecida enquanto tradução. Isso dá uma falsa visão da
literatura estrangeira e uma má avaliação das traduções: a “ilusão da
transparência”, seja prosa ou poesia, ficção ou não, é o critério mais
importante para editores, jornalistas ou leitores:368

Um texto traduzido [...] só é considerado aceitável [...] se for lido


sem “obstruções” e facilmente, se a ausência de particularidade
linguística ou estilística o faz parecer transparente [...] dando a
impressão, em outras palavras, de que a tradução não é uma
tradução, mas o original.369

O tradutor está o mais próximo possível do uso (do inglês); ele


garante que a sintaxe e a legibilidade (clareza) sejam respeitadas, escon-
dendo suas intervenções no texto traduzido. Quanto mais o tradutor
passa despercebido, mais a suposta mensagem do escritor é supostamente

366
VENUTI, Lawrence. The Translator’s Invisibility, op. cit., p. 8. Grifo e tradução em
francês da autora.
Sabemos que a mesma coisa acontece no cinema, já que o público americano supos-
367

tamente não gosta das versões de filmes legendados ou mesmo de filmes de origem
estrangeira, que precisam ser refeitos em inglês.
368
VENUTI, Lawrence. The Translator’s Invisibility, op. cit., p. 12.
369
Ibid., p. 5. Tradução em francês da autora. 137

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visível.370 Quando o leitor norte-americano tem a consciência de que se
A língua mundial

trata de uma tradução, há cinquenta anos o mesmo critério de facilidade


de leitura é que serve de critério de avaliação:

Uma tradução de fácil leitura é imediatamente reconhecível e


inteligível, familiar, feita para ser lida aqui, familiar de forma
desconcertante, capaz de dar ao leitor “livre” acesso […] aos
grandes pensamentos presentes no original.371

A imperceptibilidade do tradutor esconde uma ilusão: o texto


traduzido parece “natural”, ou seja, não traduzido. É um novo artifício
do dominante: respeitando na aparência o que se tornou a regra (tácita)
da “fidelidade” na tradução, ele encontra muitas razões para contornar
a norma e pretextos para impor sua própria lei. Como novo “árbitro
da elegância”, impõe suas próprias concepções de legibilidade e, assim,
anexa os textos que traduz à sua própria literatura.
Piotr Kuhiwczak descreve o que aconteceu com a tradução anglo-
americana de A brincadeira, de Milan Kundera, em 1969,372 da seguinte
forma:

Assim, o que Kundera nos diz, tanto no seu romance quanto


nos seus comentários citados na tradução de A brincadeira,
não desmistifica o estado dos assuntos políticos em Moscou ou
em Londres, mas simplesmente nos diz que há pessoas nessas
capitais que, por causa de uma confusão entre imaginação e
realidade, tomam A brincadeira pelo que nunca foi.373

Venuti se pergunta de onde vem essa dominação da transparência,


que se tornou um discurso autoritário sobre tradução; pergunta-se de
onde vem essa preponderância do “estilo simples” na cultura anglo-
americana de hoje. Por um lado a atribui à dominação da ciência, mas

370
VENUTI, The Translator’s Invisibility, op. cit. p. 2.
371
Ibid. p. 5.
KUHIWCZAK, Piotr. Translation as appropriation: the case of Milan Kundera’s “The
372

Joke”. In: BASSNETT; LEFEVERE, Translation, History and Culture, op. cit., p. 124-126.
Tradução em francês da autora.
138 373
Ibid.

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também à concepção individual do autor (que supostamente expressa

Exitus ou a retomada das Belas Infiéis


os seus pensamentos e sentimentos). O tradutor deve supostamente
“jogar” como um ator (como se o autor tivesse transcrito a sua própria
vida e que o tradutor “mimetizasse” essa transposição); e a sua tradução
deve supostamente “apagar” o seu status de segunda classe para criar a
ilusão da presença do autor no texto traduzido, de modo que ele seja
apreendido como sendo o original.374 “É claro que é uma ilusão, de fato
uma ilusão de discurso transparente, comparável a uma ‘acrobacia’”,375
escreve Venuti, mas é assim que se concebe a tradução, o que reforça seu
status marginal na cultura anglo-americana contemporânea. “Mesmo os
jornalistas, (porque também são escritores) dos quais se poderia esperar
um senso da escrita, estão raramente inclinados a discutir uma tradução
como uma escrita”.376 Além disso, ele afirma que:

a produção de livros ingleses e americanos quadruplicou desde os


anos 1950, mas o número de traduções manteve-se praticamente
o mesmo (entre 2 e 4% da produção total, exceto no início dos
anos 1960). Em 1990, as editoras britânicas produziram quase
64.000 livros, dos quais 1.625 eram traduções (ou seja 2,4%);
enquanto as editoras americanas produziam quase 47.000 livros,
dos quais apenas 1.380 eram traduções (ou seja 2,96%).

As práticas de publicação nos outros países têm sido geralmente


na direção oposta: as publicações da Europa Ocidental também
aumentaram significativamente nas últimas décadas, mas as traduções
atingiram uma percentagem significativa da produção total de livros,
e essa percentagem tem sido dominada pelas traduções do inglês.
O percentual de traduções na França variou entre 8 e 12% da produção
total. Em 1985, as editoras francesas publicaram mais de 29.000 livros, dos
quais 2.867 eram traduções (ou seja 9,9%), 2.051 do inglês. O percentual
de tradução na Itália foi mais elevado. Em 1989, as editoras italianas
publicaram cerca de 34.000 livros, dos quais 8.602 eram traduções (ou
seja 25,4%), mais da metade, do inglês. A indústria editorial alemã é

374
VENUTI, The Translator’s Invisibility, op. cit., p. 7.
375
Ibid.
376
Ibid., p. 8. 139

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um pouco maior do que a dos seus homólogos ingleses e americanos,
A língua mundial

porém, mais uma vez, o percentual de tradução é consideravelmente


mais elevado. Em 1990, os editores alemães lançaram mais de 61.000
títulos, dos quais 8.716 eram traduções (ou seja 14,4%), 5.650 a partir do
inglês. Desde a Segunda Guerra Mundial, o inglês tem sido a língua mais
traduzida do mundo, mas por sua vez não traduz muito, considerando o
número de livros traduzidos do inglês publicados anualmente.377
Assim, se a questão é a mesma para as belas infiéis nos séculos
XVII, XVIII e XIX e para as traduções do inglês de hoje (seja americano,
inglês, australiano, canadense, etc.), é porque a questão não concerne
às “tradições” de uma determinada língua, mas sim ao lugar destas
no espaço linguístico. No século XVIII, o francês dominava. Ele era
todo-poderoso e inigualável. Portanto, não se traduzia com exatidão,
mas de acordo com os costumes específicos, com os códigos sociais e
os hábitos de linguagem do francês. A exatidão não era importante e
não havia necessidade de importar grandes valores estrangeiros. Em
outras palavras, essa língua era principalmente exportadora (como o
inglês hoje) e estava tentando se livrar do modelo pesado dos antigos
para impor o seu próprio modelo. Edward Fitzgerald (citado por André
Lefevere) escreve, sem mencionar a dominação (claramente implícita
no seu discurso):

É uma distração para mim tomar a liberdade que quero com


aqueles persas que (pelo menos é nisso que acredito) não são
suficientemente poetas para assustar um tradutor como eu com
suas digressões e que requerem pouco conhecimento para as
moldar.378

377
Ibid., p.12-14. Tradução em francês da autora. Anthony Pym e Grzegorz Chrupala
falam de 41% de todas as traduções cuja língua-fonte é o inglês nos anos 1980 (PYM;
CHRUPALA, The quantitative analysis of translations flows in the age of an international
language. In: BRANCHADELL; WEST, Less Translated Languages, op. cit., p. 31). Da
mesma forma, Douglas Robinson escreve: “Venuti está especificamente interessado na
desproporção dos volumes de tradução de e para o inglês, considerando o papel hege-
mônico que o inglês assumiu como língua internacional”. ROBINSON, Translation and
Empire, op. cit., p. 33 et seq. Tradução em francês da autora.
378
Citado em LEFEVERE, Translation, Rewriting and the Manipulation of Literary
140 Fame, op. cit., p. 1. Tradução em francês da autora.

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Falantes (e escritores) ingleses, como todos os dominantes

Exitus ou a retomada das Belas Infiéis


(embora Venuti o lamente), exportam mais do que importam. As
traduções do inglês são etnocêntricas (sem que esse projeto seja
explicitado), com exatamente os mesmos defeitos que as belas infiéis:
por sua dominação, o inglês pode impor as normas e categorias da sua
cultura; como a tradução é de alguma forma um “serviço” prestado para
um autor não anglófono, é traduzido de acordo com os gostos e hábitos
do público do texto-alvo e, se for bom (ou seja, se o público gostar), é
“anexado”, com a remoção ou redução do nome do tradutor na capa
do livro. Dessa forma, faz-se “esquecer” que se trata de uma “tradução”.
Estas são de fato “fiéis”, como o recomenda Herder, mas permanecem
etnocêntricas, dentro dessa suposta fidelidade. Esse “atrevimento” é
específico das línguas dominantes, e pouco se pode fazer para mudar
esse estado das coisas (senão conhecê-lo).
Apesar do que dizem os linguistas, nem todas as línguas são,
infelizmente, iguais; todas são equivalentes em termos linguísticos, mas
não em termos de igualdade social. A hierarquia social entre as línguas
existe, apesar de tudo. Com efeito, em todas as épocas há sempre uma
língua mais “prestigiosa” que outras e que se torna arbitrariamente a
língua universal.
O bilinguismo, como um caso prático de contato entre línguas, e
as “operações de tradução”, como reveladores da posição das línguas no
campo linguístico, pareceram-me bons indicadores para compreender
como funciona a língua mundial. Assim, por exemplo, aqueles que
usam coletivamente duas línguas são dominados. Essa dissimetria, que
é também uma crença nos respectivos valores das línguas, gera uma
desigualdade de lucros (por falar e dominar esta ou aquela língua), ou
seja, lutas, competição e estratégias, e explica por que podemos falar
de mercados, de recursos e também por que podemos reescrever,
pelo menos parcialmente, a história das traduções desse ponto de
vista. A origem econômica da palavra “empréstimo”, tal como a da
palavra “clássico”, foi amplamente esquecida nesse contexto e prova
a importância dessa economia simbólica negada na caminhada das
línguas. De forma circular, quanto mais prestigiosa é uma língua, mais
recursos ela tem, mais seu uso gera lucros no mercado linguístico, mais
ela é usada nas traduções, mais ela se aproxima do poder. É, portanto,
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impossível saber onde começa sua suposta superioridade: tudo contribui
A língua mundial

para seu privilégio e prestígio, que, de fato, permanecem inexplicados


ou “explicados” por razões errôneas (como, por exemplo, o fato de que
hoje o inglês seria “a língua dos negócios”).
Se existe uma guerra das línguas entre elas por causa de sua desi-
gualdade, então cada uma luta com suas armas linguísticas ou literárias
para conquistar recursos, prestígio e poder. Mas a mais poderosa entre
elas procura fazer desaparecer, “dissolver”, diz Vendryès, as outras,
pelo seu amplo uso e prestígio. Não se pode acreditar que se trate de
um simples veículo de comunicação ao alcance de todos. É também a
língua do poder que “penetra”, como diz Leopardi, em todas as outras,
coloniza-as e ameaça-as de extinção. A especificidade da língua mundial
é difundir-se mais rapidamente do que outras (em particular através
de “operações de tradução”) e impor as categorias de pensamento que
estão ligadas a ela (conforme a hipótese de Sapir-Whorf) àqueles que
a dominam; assim, não é apenas a língua universal que se difunde,
mas toda uma civilização que consegue exportar-se e impor-se, por
meio do poder da língua universal. É por isso que, para preservar a
diversidade das línguas e das culturas, e não por razões nacionalistas,
temos que lutar, por todos os meios possíveis, embora isso seja muito
difícil, sobretudo tendo uma posição ateia frente a essa crença, contra a
dominação linguística. Os falantes têm então, mas nem sempre o sabem,
um grande papel a desempenhar.

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