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A Ciência Linguística:

conceitos básicos
Editora da Universidade Estadual de Maringá

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Paulo Bento da Silva
Solange Marly Oshima
Formação de Professores em letras - EAD

Cristiane Carneiro Capristano


(Organizadora)

A Ciência Linguística:
conceitos básicos

3
Maringá
2010
Coleção Formação de Professores em Letras - EAD

Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese


Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331
Revisão Gramatical: Manoel Messias Alves da Silva
Edição, Produção Editorial e Capa: Carlos Alexandre Venancio
Júnior Bianchi
Eliane Arruda

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

A ciência linguística: conceitos básicos / Cristiane Carneiro Capristano,


C569 organizadora. -- Maringá : Eduem, 2010.
118p. 21cm. (Formação de Professores em Letras – EAD; n. 3)

ISBN 978-85-7628-246-4

1. Linguística – Conceitos. 2. Ciência linguística - Estudo e ensino. I. Capristano,


Cristiane Carneiro, org.

CDD 21. ed. 410

Copyright © 2010 para o autor


Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo
mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos
reservados desta edição 2010 para Eduem.

Endereço para correspondência:

Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá


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87020-900 - Maringá - Paraná
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S umário

Sobre os autores > 5

Apresentação da coleção > 7


Apresentação do livro > 9

Capítulo 1
A ciência linguística: objeto, objetivos e métodos > 11
Cristiane Carneiro Capristano

Capítulo 2
Panorama dos estudos linguísticos > 33
Juliano Desiderato Antonio / Sonia Aparecida Lopes Benites

Capítulo 3
A visão saussuriana de linguagem > 61
Cristiane Carneiro Capristano / Dulce Elena Coelho Barros

Capítulo 4
As concepções de linguagem > 87
Sonia Aparecida Lopes Benites

Capítulo 5
Gramática e ensino > 99
Cristiane Carneiro Capristano / Dulce Elena Coelho Barros

3
S obre os autores
SONIA APARECIDA LOPES BENITES
Mestre em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina

(UFSC) -1978, Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista

Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Assis) e Pós-Doutora em Linguística

pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É professora de

graduação e pós-graduação na Universidade Estadual de Maringá (UEM),

desenvolvendo pesquisas em duas linhas: Ensino-aprendizagem de línguas

e Estudos do Texto e do Discurso. Integra três grupos de pesquisa inscritos

no CNPq: GEPOMI Grupo de Estudos Político-midiáticos (UEM), Leitura e

Literatura na Escola (Unesp Assis/UEL/UEM/PUCRS/UFG) e Questões de

teoria e análise em Análise do Discurso (Unicamp).

JULIANO DESIDERATO ANTONIO


Mestre em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual

Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Araraquara) e Doutor em

Linguística e Língua Portuguesa pela mesma universidade. É professor

de graduação e pós-graduação na Universidade Estadual de Maringá

(UEM). Sua linha de atuação é a de Descrição Linguística, com ênfase no

Funcionalismo. Participa do grupo de pesquisa do CNPq Gramática de usos

do português do Brasil e é líder do Grupo de Pesquisas Funcionalistas do

Norte/Noroeste do Paraná (CNPq/UEM).

DULCE ELENA COELHO BARROS


Mestre em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual

Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Araraquara) e Doutora em

Linguística pela Universidade de Brasília (UnB). É professora de graduação

na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Tem experiência na área de

Linguística, com ênfase em Análise do Discurso Crítica. Atua principalmente

nos seguintes temas: discurso parlamentar, argumentação, contexto social

e gramática. Integra o Grupo de Pesquisa Estudos de discurso, pobreza e

identidade – rede latino-americana de estudos do discurso

( REDLAD– UnB/CNPq)

5
A Ciência Linguística: CRISTIANE CARNEIRO CAPRISTANO
conceitos básicos
Mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Estadual Paulista

Júlio de Mesquita Filho (Unesp/São José do Rio Preto) e Doutora

em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas

(Unicamp). É professora de graduação na Universidade Estadual

de Maringá (UEM). Desenvolve pesquisas na área de Linguística,

atuando principalmente nos seguintes temas: letramento, escrita,

aquisição da escrita e relação fonologia/convenções ortográficas.

Integra o Grupo de Pesquisa Estudos sobre a linguagem (CNPq).

6
A presentação da Coleção
Os 54 títulos que compõem a coleção Formação de Professores em Letras fazem
parte do material didático utilizado pelos alunos matriculados no Curso de Licenciatu-
ra em Letras, habilitação dupla, Português-Inglês, na Modalidade a Distância, da Uni-
versidade Estadual de Maringá (UEM). O curso está vinculado à Universidade Aberta
do Brasil (UAB) que, por seu turno, faz parte das ações da Diretoria de Educação a
Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior
(Capes).
A UEM, na condição de Instituição de Ensino Superior (IES) proponente do curso,
assumiu a responsabilidade da produção dos 54 livros, dentre os quais 51 títulos fica-
ram a cargo do Departamento de Letras (DLE), 2 do Departamento de Teoria e Prática
da Educação (DTP) e 1 do Departamento de Fundamentos da Educação (DFE). O pro-
cesso de elaboração da coleção teve início no ano de 2009, e sua conclusão, seguindo
o cronograma de recursos e os trâmites gerais do Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação (FNDE), está prevista até 2013. É importante ressaltar que, visando a
atender às necessidades e à demanda dos alunos ingressantes no Curso de Graduação
em Letras-Português/Inglês a Distância, da UEM, no âmbito da UAB, nos diferentes
polos, serão impressos 338 exemplares de cada livro.
A coleção, não obstante a necessária organicidade que aproxima e estabelece a
comunicação entre diferentes áreas, busca contemplar especificidades que tornam o
curso de Letras uma interessante frente de estudos e profissional. Deste modo, as
três principais instâncias que compõem o curso de Letras na modalidade a distância
(Língua Portuguesa, Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa e
Língua Inglesa e Literaturas Correspondentes) são contempladas com livros que
são organizados tendo em vista a construção do saber de cada área. Semelhante cons-
trução não apenas trabalha conteúdos necessários de modo rigoroso tal como seria
de esperar de um curso universitário, como também atua decisivamente no sentido de
proporcionar ao aluno da Educação a Distância a autonomia e a posse do discurso de
modo a realizar uma caminhada plenamente satisfatória tanto em sua jornada acadê-
mica quanto em sua vida profissional posterior. Isso só é possível graças à competência
e comprometimento dos organizadores e autores dos livros dessa coleção, em sua
maior parte ligados aos departamentos da Universidade Estadual de Maringá envol-
vidos neste curso, além de convidados que enriqueceram a produção dos livros com
sua contribuição. A excelência e a destacada contribuição científica e acadêmica desses

7
A Ciência Linguística: autores e organizadores são outros elementos que garantem a seriedade do material
conceitos básicos
e reforça a oportunidade que se abre ao aluno da Educação a Distância. Além disso, o
material produzido poderá ser utilizado por outras instituições ligadas à Universidade
Aberta do Brasil, abrindo uma perspectiva nacional para os livros do curso de Letras
a Distância.
Além do trabalho desses profissionais, essa coleção não seria possível sem a con-
tribuição da Reitoria da UEM e de suas Pró-Reitorias, do Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes da UEM e seus respectivos representantes e departamentos, da Diretoria
de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do
Ensino Superior (Capes) e do Ministério da Educação (MEC). Todas essas esferas, de
acordo com suas atribuições, foram de suma importância em todas as etapas do traba-
lho. Diante disso, é imperativo expressar, aqui, nosso muito obrigada.
Por último, mas não menos importante, registramos nosso agradecimento especial
à equipe do NEAD-UEM: Pró-Reitoria de Ensino, Coordenação Pedagógica e equipe
técnica, pela dedicação e empenho, sem os quais essa empreitada teria sido muito
mais difícil, se não impossível.

Rosângela Aparecida Alves Basso,


Organizadora da coleção.

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A presentação do livro
Este livro, como o próprio título sugere, é uma obra introdutória que visa a permi-
tir ao aluno/leitor uma primeira aproximação com alguns dos principais conceitos que
atravessam e constituem a Linguística. Mas não só. Nele, o aluno/leitor verá também
delinearem-se discussões sobre fatos históricos que cercaram a construção da Linguís-
tica como ciência, ponderações sobre seus fundamentos teóricos e metodológicos,
bem como reflexões sobre o ponto de vista que essa ciência tem assumido diante desse
particular objeto de conhecimento que é a linguagem humana.
Neste livro, nosso objetivo é, ainda, o de possibilitar ao aluno/leitor a apreensão de
um conjunto de conhecimentos que possa favorecer o desenvolvimento de uma visão
científica, crítica e reflexiva sobre os fenômenos linguísticos. Desejamos, portanto,
que, a partir dos debates instaurados ao longo dos cinco capítulos que compõem essa
obra, o aluno/leitor seja capaz de assumir uma posição diferenciada frente à visão ex-
clusivamente prescritiva e normativa da linguagem que predomina no senso comum
– visão que, em última instância, fornece-nos uma concepção de linguagem falseada e
fundamentada em suposições muitas vezes equivocadas.
Embora os capítulos que formam este livro sejam independentes, o aluno/leitor
observará que eles dialogam entre si. Esse diálogo pode ser notado, por exemplo, no
fato de alguns tópicos serem explorados, embora com propósitos distintos, em mais
de um capítulo, tal como o tópico gramática. Essa recorrência temática emerge da
importância que atribuímos a certos tópicos para o entendimento do recorte singular
que a ciência Linguística tem feito em sua tarefa de compreender e explicar as múlti-
plas e diferentes faces da linguagem humana.
O livro está organizado da seguinte maneira: no primeiro capítulo, é examinado o
modo como alguns paradigmas teóricos da Linguística delimitaram seu objeto de es-
tudo, estabeleceram objetivos e defenderam certos dispositivos metodológicos, ações
que, juntas, permitiram o alçamento da Linguística como disciplina científica. Esse
olhar retrospectivo é acompanhado da reflexão sobre alguns caminhos que a Linguís-
tica contemporânea tem trilhado e do debate sobre o ponto de vista assumidamente
descritivo/explicativo que tem caracterizado essa ciência.
O segundo capítulo, por sua vez, apresenta um panorama de como os estudos lin-
guísticos se desenvolveram ao longo da história e coloca em cena diferentes propostas
teóricas que surgiram após o estabelecimento da Linguística como ciência, no início

9
A Ciência Linguística: do século XX. É intenção dos autores deste capítulo oferecer uma visão não cumula-
conceitos básicos
tiva da constituição histórica desta disciplina; uma visão, portanto, que contemple as
mudanças e as rupturas que caracterizaram os diferentes momentos que se sucederam
nos estudos sobre a linguagem.
O terceiro capítulo traz uma discussão sobre as contribuições de Saussure, consi-
derado por muitos como o “pai” da Linguística moderna. Nele, o propósito central é
dar ênfase para alguns conceitos que balizaram a construção do chamado projeto saus-
suriano, tais como os conceitos de valor linguístico, língua, fala e signo linguístico.
No quarto capítulo, são abordadas diferentes formas de conceber a linguagem, não
só aquelas propostas por linguistas, mas, também, concepções aventadas por outros
estudiosos, tais como filósofos, psicólogos, antropólogos e sociólogos. Neste capítulo,
intenciona-se permitir que o aluno/leitor confronte essas diferentes concepções com
aquelas que ele traz de sua experiência cotidiana – essas últimas atreladas, em geral,
ao senso comum e que, muitas vezes, carecem de rigor teórico e científico.
No quinto e último capítulo, esboça-se uma reflexão sobre a relação entre gra-
mática e ensino, com o fito de possibilitar ao aluno/leitor reavaliar sua(s) própria(s)
concepção(ções) de gramática e, correlativamente, reexaminar seu posicionamento
frente ao papel dos fatos gramaticais no ensino de Língua Portuguesa.
Em todos os capítulos, o aluno/leitor encontrará várias indicações de leitura com-
plementar e referências bibliográficas variadas que, certamente, permitirão o aprofun-
damento dos debates que serão mobilizados pela leitura do livro.
Esperamos que este livro possa vir a se constituir como ponto de partida – mas
não de chegada! – para a formação linguística de seus alunos/leitores e contribua de
maneira efetiva para que eles possam conhecer mais e melhor dessa inquietante capa-
cidade humana: a linguagem.

Cristiane Carneiro Capristano


Organizadora

10
1 A ciência linguística:
objeto, objetivos
e métodos

Cristiane Carneiro Capristano

Considerações iniciais
O propósito deste capítulo é o de introduzir o leitor no debate sobre algumas
possibilidades de abordagem científica da linguagem humana. Para tanto, nas linhas
que seguem, fazemos um esboço de alguns dos principais paradigmas teóricos da Lin-
guística, observando, em especial, como cada um deles definiu e delimitou seu objeto
de estudo, estabeleceu objetivos e elaborou e defendeu certos dispositivos metodoló-
gicos. Por inúmeras razões, tais como limites de espaço e complexidade do assunto,
o esboço será parcial e lacunoso. Com o intuito de permitir ao leitor preencher as
lacunas deste texto e, assim, ter uma visão mais abrangente dos fatos colocados em
foco, no transcurso do capítulo são indicadas algumas referências bibliográficas que
tratam das temáticas abordadas.
Neste capítulo, primeiramente, fazemos uma discussão sucinta a respeito de como
certo campo de estudos pode ser reconhecido como ciência, discussão essa que é
acompanhada da reflexão sobre a problemática que envolve a delimitação de um ob-
jeto de estudo. Em seguida, são feitas algumas considerações sobre estudos que serão
nomeados aqui como “pré-saussurianos”, em alusão a um texto de Faraco (2004). Nes-
se momento, procuramos mostrar que, embora seja consenso entre vários estudiosos
de que o estudo científico da linguagem humana teve início nos períodos iniciais do
século XX, a partir da publicação do livro Curso de Linguística Geral e de seus efeitos
sobre os pesquisadores da época, muito antes desse marco histórico a linguagem hu-
mana já era alvo de vários estudos. Posteriormente, são examinadas contribuições de
Saussure e Chomsky. Nesse momento, damos relevo ao modo como esses estudiosos
idealizaram um objeto de estudo, estabeleceram objetivos e métodos para a Linguísti-
ca. O capítulo é finalizado com duas reflexões: (a) considerando alguns caminhos que
a Linguística contemporânea tem trilhado, a partir, justamente, de algumas exclusões

11
A Ciência Linguística: feitas pelos chamados paradigmas formais (gerativista e estruturalista); (b) fazendo
conceitos básicos
uma reflexão sobre o que a Linguística não é, enfocando a diferença entre o ponto de
vista normativo/prescritivo e o ponto de vista assumidamente descritivo/explicativo
que tem caracterizado a ciência Linguística.

Sobre a problemática do objeto

[...] Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; cavaleiro de


diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence
além disso ao domínio individual e social; não se deixa classificar em nenhuma
categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade (SAUS-
SURE, 1971, p. 17).

Os estudiosos são unânimes em afirmar que uma das mais lembradas qualidades
da Linguística foi e, de certo modo, ainda é, a sua cientificidade. Dada essa sua caracte-
rística, convém indagar: quais fatores são responsáveis por tornar um campo de saber,
tal como os estudos sobre a linguagem, uma ciência? Parece consenso, também, que a
resposta a essa questão leva em conta, de alguma forma, a tríade objeto, objetivo e mé-
todo. Em outras palavras, o reconhecimento de uma ciência está fortemente atrelado
à delimitação de um objeto de estudo, à proposição de objetivos e ao estabelecimento
de uma metodologia “própria e adequada à delimitação dos traços fundamentais do
objeto selecionado” (BORBA, 1998, p. 301).
O problema reside no fato de não ser fácil delimitar um objeto de estudos para a
Linguística. Obviamente, poderíamos afirmar que a Linguística é o estudo científico da
linguagem humana, no entanto, com a assunção dessa proposição, nos deparamos ao
menos com um problema. Isso porque a linguagem humana é um fenômeno comple-
xo e multifacetado; nela se entrecruzam vários fatos que, em última instância, permi-
tem que a linguagem humana seja descrita e/ou considerada cientificamente a partir de
diferentes perspectivas: física, fisiológica, biológica, filosófica, psicológica, sociológica
etc. Foi exatamente a constatação desse fato que levou Saussure (1971) a afirmar que:

outras ciências trabalham com objetos dados previamente e que se pode con-
siderar, em seguida, de vários pontos de vista; em nosso campo nada de seme-
lhante ocorre. [...] Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista
[...] é o ponto de vista que cria o objeto (SAUSSURE, 1971, p. 15).

Assim, não haveria um objeto pronto e natural delimitado a priori que possa ser
apreendido pelo pesquisador. Será apenas a opção teórica assumida pelo estudioso
que permitirá recortar esse fenômeno complexo e, nesse gesto, criar um objeto de
estudo. Vejamos o que dizem Dascal e Borges Neto (1991, p. 45) a esse respeito:

12
[...] não há um ‘objeto natural’ delimitado anteriormente a qualquer opção ou A ciência linguística:
trabalho teórico ‘prontinho’ para ser investigado. Se assim fosse, o progresso objeto, objetivos
e métodos
das teorias a respeito da linguagem consistiria em nada mais do que uma suces-
são linear de aproximações, que nos levaria pouco a pouco, a uma descrição e a
uma compreensão cada vez mais perfeita desse objeto. [...] cada opção teórica
recorta o ‘mundo’ dos fenômenos de forma diferente e, desta maneira, consti-
tui – ‘cria’ – o seu objeto de estudos. Por isso, a sucessão de teorias não é uma
aproximação linear da verdade sobre um objeto previamente dado.

Convém destacar que a inexistência de um “objeto natural e pronto” não é prer-


rogativa dos estudos sobre a linguagem humana. A irredutibilidade dos fenômenos à
apreensão científica é também fato constatado em outras áreas do saber. Ocorre que os
fatos do chamado “mundo natural”, ao serem capturados pelo olhar do cientista, são
irremediavelmente afetados por ele. Ou seja, em ciência, em nome de um certo rigor,
ficamos, na maioria das vezes, impedidos de abrigar todas as facetas que constituem
os fenômenos com os quais nos deparamos no processo de investigação; o que nos
resta é um objeto de estudo que resulta de um corte sempre moldado pelo gesto do
“cortador”.
Para nossa reflexão, é necessário reter o seguinte: é justamente a determinação de
um ponto de vista que preceda a delimitação do objeto que permite identificar uma
abordagem propriamente linguística e diferenciá-la das demais disciplinas que, de
uma forma ou de outra, interessam-se (ou interessaram-se) pelo fenômeno linguístico.
Como veremos neste capítulo, cada momento histórico da Linguística correspondeu
a uma forma de delimitação de um objeto que, por sua vez, determinou o recalque
de certos aspectos do fenômeno linguístico e a escolha/exclusão de certos objetivos e
métodos.

“Estudos pré-saussurianos”
Conforme adiantamos, parece ser consensual entre os estudiosos a ideia de que o
estudo científico da linguagem humana teve início nos períodos iniciais do século XX,
quando foi publicado, em francês, o livro Curso de Linguística Geral (doravante CLG),
do professor suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913). O livro foi publicado três anos
após a morte de Saussure por Charles Bally e Albert Sechehayes que reuniram, nesse
livro, anotações de aulas ministradas por Saussure no período de 1907 a 1911.
Não seria sensato, no entanto, considerar que a Linguística, assim como qualquer
outra ciência, tenha sido iniciada com “data e hora marcada” e seja produto do tra-
balho exclusivo de um pesquisador. Ao contemplarmos a história de constituição dos
saberes a respeito da linguagem humana, descobrimos, como destaca Petter (2002,
p. 12), que o interesse pela linguagem é bastante antigo e pode ser examinado em

13
A Ciência Linguística: mitos, lendas, cantos, rituais ou em trabalhos eruditos que buscavam conhecer essa
conceitos básicos
capacidade humana. Esse interesse, sem dúvida, deixou suas marcas na forma como,
na atualidade, explicamos, interpretamos e descrevemos o funcionamento da lingua-
gem humana.
No entanto, grande parte dos estudos e reflexões sobre a linguagem feitos antes
da publicação do livro de Saussure, desde a Antiguidade Clássica até o início do sé-
culo XIX, foi assinalada por atributos que não permitiam caracterizar esses estudos
como científicos – pelo menos, não no sentindo que atribuímos a esse termo/concei-
to na atualidade – uma vez que eles não tinham como interesse primordial a lingua-
gem em si mesma e, em geral, estavam comprometidos com outras exigências, ligadas
aos campos de saber do qual emergiam: dos estudos filosóficos, lógicos, retóricos,
históricos etc. Se pensarmos apenas nas reflexões sobre a linguagem que parecem ser
fundadoras da chamada Linguística ocidental, será possível verificar que

Durante séculos, dos pré-socráticos aos estóicos e aos alexandrinos, e depois


no renascimento aristotélico que estende o pensamento grego até o fim da
idade média latina, a língua permaneceu como objeto de especulação e não de
observação (BENVENISTE, 1995, p. 20).

Benveniste (1995) afirma que os estudiosos, nesse longo período, não tinham
como preocupação central a descrição ou o estudo da língua(gem) por si mesma, nem
mesmo o interesse em verificar, por exemplo, se as categorias fundadas com base em
gramáticas gregas ou latinas poderiam ser as mesmas para outras línguas – e, analoga-
mente, para todas elas. O mesmo aconteceu, de seu ponto de vista, durante o século
XVIII – conferir mais informações a respeito dessa temática no capítulo Panorama dos
estudos linguísticos.
Foi apenas no final do século XVIII, com a descoberta do sânscrito – língua sagrada
da cultura indiana que, à época, estava preservada apenas em livros sagrados –, que
os estudos sobre a linguagem começaram a ganhar certa autonomia e, principalmen-
te por essa razão, muitos historiadores reconhecem esse período, chamado período
histórico-comparativista, como o primeiro paradigma real da Linguística – o que sig-
nifica dizer que os estudos históricos e comparativos teriam sido os primeiros estudos
verdadeiramente científicos sobre a linguagem humana.
Segundo Faraco (2004, p. 29), “a Lingüística comparativa e histórica desenvolveu
um método de manipulação de dados lingüísticos enquanto dados lingüísticos”, ou
seja, diferentemente dos estudos sobre a linguagem que antecederam esse período,
a linguagem humana passou a ser observada e avaliada “em si mesma e por si mes-
ma”, desvinculada de outros interesses. A novidade das pesquisas sobre linguagem

14
no século XIX, quando comparada a estudos anteriores, estava centrada no esta- A ciência linguística:
objeto, objetivos
belecimento do chamado método comparativo que, segundo Weedwood (2002, p. e métodos

103), consistia em uma série de princípios que permitiam que línguas particulares
fossem sistematicamente comparadas. Nessa comparação sopesava aspectos dos sis-
temas fonéticos dessas línguas, suas estruturas gramaticais e seus vocabulários e o
intuito era o de “demonstrar que eram [as línguas] ‘genealogicamente’ aparentadas”
( WEEDWOOD, 2002, p. 103). Supunha-se, nesse sentido, que línguas particulares
como o latim, o grego, o germânico e o persa poderiam ser comparadas e, dessa
comparação, chegaríamos à descoberta de uma língua mais antiga, da qual aquelas
teriam procedido.
Os estudos sobre a linguagem humana, nesse período, fixavam-se, pois, quase que
exclusivamente na face histórica das línguas: tinham a história como perspectiva funda-
mental e apostavam no entendimento da evolução das formas linguísticas, por meio
da reconstituição, feita por comparações e inferências, da origem de cada uma delas.
Faraco (2004) afirma que a Linguística comparativa e histórica foi inaugurada por
Bopp, em seus trabalhos sobre o sistema de conjugação da língua sânscrita em com-
paração com a língua grega, latina, persa e germânica, mas foi sistematizada, de fato,
pelos chamados neogramáticos – grupo de linguistas da Universidade de Leipzig (Ale-
manha) que, nos anos finais do século XIX, passaram a questionar os pressupostos
tradicionais da prática histórico-comparativa e estabeleceram orientações metodoló-
gicas e postulados teóricos diferentes para o estudo da mudança linguística. Para uma
reflexão mais detalhada sobre esse período, conferir capítulo Panorama dos estudos
linguísticos, neste volume.
O reconhecimento do período de pesquisas históricas e comparativas como o pri-
meiro paradigma real da Linguística está estreitamente ligado à constatação de que,
nesse período, era possível distinguir um objeto – as línguas historicamente constituí-
das –, um objetivo – a necessidade de estabelecer correlações sistemáticas que apon-
tassem para uma origem comum entre as línguas – e, por fim, um método – a com-
paração de dados linguísticos – que permitiam avaliar esses estudos como científicos.
Convém destacar que a apresentação que fizemos pode levar o leitor a concluir
que, durante o século XIX, havia certa homogeneidade entre os estudos sobre a lingua-
gem humana, ou seja, que os estudiosos seguiam basicamente, os mesmos princípios.
Essa conclusão, talvez autorizada pelo recorte que vimos realizando, está, entretanto,
bastante distante da realidade. Nesse período da história da Linguística, assim como
em outros momentos subsequentes, havia discordâncias entre os estudiosos sobre a
constituição de seu objeto de estudo – discordâncias que, evidentemente, tinham efei-
tos nos objetivos traçados e na metodologia empregada. Essas discordâncias, se não

15
A Ciência Linguística: implicaram a constituição de “objetos” radicalmente diferentes, deram a esse “objeto”
conceitos básicos
um caráter complexo1.

A delimitação de um objeto para a Linguística: as contribuições de


Saussure

[ ] Saussure é em primeiro lugar e sempre o homem dos fundamentos. Vai


por instinto aos caracteres primordiais, que governam a diversidade dos dados
empíricos. Naquilo que pertence à língua, pressente certas propriedades que
não se encontram em nenhum outro lugar a não ser aí. Com o que quer que a
comparemos a língua aparece sempre como diferente. Mas em que é diferente?
Considerando essa atividade, a linguagem, na qual tanto fatores estão associa-
dos [...] ele se pergunta: a qual deles pertence a língua? (BENVENISTE, 1995,
p. 35).

Embora reconhecendo que a Linguística, instituída como disciplina científica, teve


suas origens no decurso do século XIX, por meio dos estudos comparativos e históri-
cos, não podemos ignorar a radical alteridade da proposta de Saussure relativamente
aos estudos linguísticos feitos até a sua época – mesmo se considerarmos que ele
nada mais fez do que sintetizar e dar corpo a uma série de intuições já presentes nos
estudos sobre a linguagem feitos por seus pares e antecessores. O modo como con-
cebeu e idealizou o objeto de estudos da Linguística, definiu certos objetivos e, de
certa maneira, determinou formas de abordagem do fenômeno linguístico, contribuiu
para a construção de uma ciência sincrônica e imanente da linguagem ou, em outras
palavras, por meio de suas propostas “[...] não houve mais razões para não se construir
uma ciência autônoma a tratar exclusivamente da linguagem [...] e sob o pressuposto
da separação estrita entre a perspectiva histórica e não-histórica” (FARACO, 2004, p.
28). Quais foram, então, as contribuições de Saussure?
Já destacamos anteriormente que Saussure considerava que a linguagem huma-
na era multiforme e heteróclita; cavaleiro de diferentes domínios. Para além dessa
característica fundamental, do ponto de vista saussuriano ela seria, também, a facul-
dade, própria do ser humano, de produzir sentidos, de “comunicar-se”. Designaria,
então, todas as formas de comunicação (verbais e não verbais) e teria uma abrangência
universal, pois envolveria vários domínios: seria ao mesmo tempo física, fisiológica e

1 Existe uma farta bibliografia que apresenta e discute esse período da Linguística Histórico-
Comparativa. Recomendamos a leitura dos seguintes textos introdutórios: BORBA, F. S. Breve
história da Linguística. In: _____. Introdução aos estudos linguísticos. Campinas, SP: Pontes,
1998. p. 301-317; FARACO, C. A. Estudos pré-saussurianos. In: BENTES, A.; MUSSALIN,
F. (Org.) Introdução à Linguística: fundamentos epistemológicos. São Paulo: Cortez, 2004,
p. 27-52; WEEDWOOD, B. História concisa da Linguística. São Paulo: Parábola, 2002.

16
psíquica, pertencendo concomitantemente ao domínio individual e social. A ciência linguística:
objeto, objetivos
Por ser heteróclita e multifacetada, a linguagem, segundo Saussure, não poderia e métodos

ser transformada em objeto de estudos de uma ciência, nem mesmo ser apreendida
como uma unidade. Assim, para que se pudesse estudar a linguagem humana seria
preciso, segundo o autor, colocar-se no terreno da língua (langue), uma vez que ape-
nas a língua (langue) seria suscetível de uma definição autônoma justamente por cons-
tituir um objeto bem definido no conjunto heteróclito dos fatos da linguagem. Assim,
Saussure retira do todo da linguagem a língua (langue), definida em seus termos como
um sistema de signos, e a elege como o objeto precípuo da Linguística.
Para Saussure, a língua seria, então, um sistema de valores cujos elementos só
podem ser determinados em razão de suas relações com outros elementos do mesmo
sistema e por suas funções no interior desse sistema. Os conceitos de sistema, de
relação, de valor e de funcionalidade – como veremos, mais adiante, no Capítulo in-
titulado A visão saussuriana de linguagem – são fundamentais para compreendermos
seus postulados e sua particular forma de conceber o modo como a Linguística deveria
delimitar-se e definir-se a si própria (SAUSSURE, 1971, p. 13).
A partir do conceito de língua supramencionado, Saussure forja um ponto de vista
nitidamente sincrônico sobre o fenômeno linguístico, em oposição ao ponto de vista
histórico que prevalecia até então. Nessa abordagem sincrônica, um determinado es-
tado de uma língua é isolado de suas mudanças através do tempo e passa a ser exami-
nado como um sistema homogêneo, que possui uma ordem própria, completamente
independente daquilo que, nesta perspectiva, lhe é exterior.
É necessário notar que a língua saussuriana – esse conjunto de elementos que se
relacionam organizadamente dentro de um todo – é também concebida como a parte
social da linguagem, produto do trabalho coletivo do homem, instrumento psíquico cria-
do e fornecido pela coletividade, exterior aos indivíduos falantes – que, portanto, não
podem modificá-la. A língua, tal como delineada no projeto saussuriano, obedeceria a
leis de um contrato social estabelecido pelos membros da comunidade; seria, assim,

um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencen-


tes a mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em
cada cérebro ou, mais exatamente, nos cérebros dum conjunto de indivíduos,
pois a língua não está completa em nenhum, só em massa ela existe de modo
completo (SAUSSURE, 1971, p. 21).

Esse conceito de língua opõe-se, por sua vez, a uma espécie de resíduo da pro-
posta saussuriana: ao conceito de fala (parole). Ao definir a língua tal como exposto
nas linhas anteriores, Saussure deixa em segundo plano as manifestações individuais
de nossa capacidade linguística, ou, ainda, abdica do ato individual de vontade e

17
A Ciência Linguística: inteligência, no qual os falantes colocariam em uso o sistema da língua com o pro-
conceitos básicos
pósito de exprimir seu pensamento pessoal, bem como de todo o mecanismo psico-
físico que permite aos falantes exteriorizarem as combinações permitidas pela língua
(SAUSSURE, 1971, p. 22).
Na proposta saussuriana, língua e fala, apesar de metodologicamente disjuntas,
estão estreitamente ligadas e se implicam mutuamente: “a língua é necessária para que
a fala seja inteligível e produza todos os seus efeitos; mas esta é [também] necessária
para que a língua se estabeleça” (SAUSSSURE, 1971, p. 27). Existe, pois, uma interde-
pendência entre língua e fala: é, por exemplo, “ouvindo o outro que aprendemos a lín-
gua materna; ela se deposita em nosso cérebro somente após inúmeras experiências”
(SAUSSURE, 1971, p. 27), embora, para efeitos de estudo, a fala esteja numa posição
muito diferente da língua: sua natureza acessória e acidental não permitiria alçá-la a
objeto de estudo da Linguística.
Assim, podemos dizer que, para Saussure, a tarefa do linguista deveria ser a de es-
tudar e descrever a realidade linguística em seus elementos formais próprios, a partir
de uma sincronia. O foco é, pois, a realidade intrínseca da língua, como ela funciona
ou, ainda, como seus elementos constitutivos, independentemente de qualquer fator
exterior, relacionam-se entre si – e apenas entre si.
Ao conceber as relações entre linguagem, língua e fala – e, consequentemente,
a própria caracterização do fenômeno linguístico – e ao estabelecer as tarefas fun-
damentais da Linguística da maneira como vimos expondo até aqui, Saussure fez,
portanto, escolhas e renúncias – como a escolha da língua e a renúncia da fala e da
linguagem como objeto de estudo; a escolha de um ponto de vista eminentemente
sincrônico e a renúncia de uma abordagem diacrônica (histórica) do fenômeno lin-
guístico, dentre outras escolhas e renúncias que serão abordadas posteriormente.
Veremos, em capítulos ulteriores, que muito do desenvolvimento contemporâneo da
ciência Linguística deve-se justamente à crítica às escolhas saussurianas e ao investi-
mento em suas renúncias.
Convém salientar que as ideias de Saussure encontraram terreno fértil entre mui-
tos estudiosos e, em certo sentido, foram responsáveis, direta ou indiretamente, pela
constituição de um campo bastante heterogêneo de pesquisas tradicionalmente cha-
mado de Estruturalismo. Neste campo heterogêneo de saber, conjugaram-se nume-
rosos estudos sobre a estrutura e funcionamento da linguagem humana. Em geral, a
literatura especializada reconhece a existência de duas grandes correntes: o chamado
Estruturalismo Europeu – que mais diretamente desenvolveu os pressupostos teóri-
co-metodológicos alinhavados no projeto saussuriano – e o chamado Estruturalis-
mo Americano – desenvolvido nos Estados Unidos, no período de 1920 a 1950, cuja

18
referência principal é Leonard Bloomfield. Para uma reflexão pormenorizada sobre as A ciência linguística:
objeto, objetivos
diferentes propostas estruturalistas, conferir o Capítulo Panorama dos estudos lin- e métodos

guísticos, neste volume2.


Podemos dizer que, de certa forma, o que uniu esse campo heterogêneo de pes-
quisa foi a proposta, diversamente levada a efeito, de estudar a estrutura e o fun-
cionamento da língua, entendida sempre como um sistema autônomo e homogêneo
– subjacente a e determinante das manifestações individuais –, cujas propriedades e
regularidades eram possíveis de ser apreendidas por meio de procedimentos descri-
tivos de descoberta. É possível afirmar, também, que os estruturalistas, cada um a sua
maneira, romperam de forma definitiva com o paradigma histórico e comparatista do
século XIX, principalmente porque projetaram um olhar exclusivamente descritivo e
sincrônico sobre a linguagem humana.
Em síntese: a Linguística, tal como idealizada por Saussure e, depois, desenvolvida,
embora de formas às vezes bastante diferentes, pelos chamados estruturalistas, tinha
como objeto a língua – entendida como um sistema formal e abstrato de signos lin-
guísticos; seu objetivo era a depreensão da estrutura das línguas ou, ainda, a descrição
da funcionalidade do sistema linguístico; e o método, por sua vez, era predominante-
mente descritivo.

As contribuições do paradigma gerativista


Podemos dizer que, de certa forma, foi como uma reação ao chamado estrutura-
lismo que surgiu, na década de 50, nos Estados Unidos, um movimento de estudos
da linguagem, encabeçado pelo linguista Noam Chomsky – professor de Linguística
do Massachusetts Institute of Technology –, que propunha outra forma de conceber
o objeto de estudos da Linguística e, correlativamente, passou a estabelecer outros
objetivos e métodos. Nesse sentido, a chamada Gramática Gerativa (doravante GG) é
entendida como outro paradigma científico no âmbito da ciência Linguística.
Em geral, costuma-se considerar que o marco histórico da GG é a publicação, em
1957, de Syntactic Struture, livro no qual Chomsky desenvolve o conceito de gramá-
tica gerativa, conceito marcadamente distante da ideia de língua que era desenvolvi-
da no âmbito do chamado estruturalismo americano. Segundo Borges Neto (2004),
em Syntactic Struture, a preocupação principal de Chomsky estava voltada para a

2 Para um aprofundamento da discussão sobre as contribuições de Saussure e dos estruturalistas,


recomendamos, também, a leitura de: SAUSSURE, F. Curso de Linguística geral. São Paulo:
Cultrix, 1971; ILARI, R. O estruturalismo linguístico: alguns caminhos. In: BENTES, A.;
MUSSALIN F. (Org.) Introdução à Linguística: fundamentos epistemológicos. São Paulo:
Cortez, 2004. p. 53-92.

19
A Ciência Linguística: necessidade de se supor a existência de algo anterior à língua tal como entendida pelos
conceitos básicos
estruturalistas: a capacidade que os falantes têm de produzir exatamente os enuncia-
dos que podem ser produzidos em uma língua. Ou ainda, da perspectiva chomskyana,
os falantes de uma língua possuem “um conhecimento partilhado sobre os enuncia-
dos que podem e não podem ser produzidos, e é justamente esse conhecimento que
precisa ser descrito e explicado pela teoria linguística” (BORGES NETO, 2004, p. 99).
O principal argumento para a defesa desse conhecimento partilhado está centrado
na noção de criatividade linguística. Para Chomsky, os falantes de uma língua detêm
a habilidade de produzir sentenças as quais nunca foram expostos, habilidade que de-
notaria que os falantes possuem um conhecimento que está muito além daquele que
é possível adquirir por meio do contato com dados da experiência. Assim, para ele,

A linguagem humana se baseia numa propriedade elementar que também


parece ser uma propriedade biologicamente isolada: a propriedade da infi-
nidade discreta, manifestada da forma mais pura pelos números naturais 1,
2, 3,... As crianças não aprendem essa propriedade do sistema numeral. A
menos que a mente já possua os princípios básicos, nenhuma quantidade de
evidências poderia fornecê-lo; [...] Do mesmo modo, nenhuma criança tem
de aprender que há sentenças de três palavras e sentenças de quatro palavras,
mas não sentenças de três palavras e meia, e que é sempre possível construir
uma mais complexa, com uma forma e significados definidos. Tal conheci-
mento tem que nos chegar pela ‘mão original da natureza’ (the original hand
of nature), segundo expressão de David Hume, como parte do nosso dote
biológico (CHOMSKY, 1998, p. 18).

É possível observar que o argumento de Chomsky – e, também, dos estudiosos que


assumiram a sua proposta de que haveria um conhecimento partilhado, de natureza
universal, biológica e, portanto, inata, que precederia a nossa capacidade de produzir
as sentenças de uma língua – fundamenta-se também na complexidade que envolve
a aquisição de língua. Para ele, no processo de aquisição de língua, as crianças têm
acesso a dados linguísticos parciais, limitados e pobres, uma vez que elas são expostas
normalmente a uma fala precária, fragmentada, cheia de frases truncadas, altamente
ambíguas ou incompletas. Entretanto, ainda assim, levam um tempo relativamente
curto para adquirir sua língua materna (mais ou menos de 18 a 24 meses) e o conheci-
mento que adquirem sobre ela é altamente complexo e sofisticado.
Tal paradoxo (o Dilema de Platão!) só poderia ser explicado, do ponto de vista
de Chomsky, se supormos que as crianças possuem, como parte de uma herança ge-
nética, um conhecimento linguístico que permita especificar a forma da gramática de
uma língua humana possível e que, ao mesmo tempo, possibilite às crianças supera-
rem a qualidade inferior dos dados linguísticos aos quais elas são expostas (DASCAL;
BORGES NETO, 1991, p. 39).

20
Na proposta chomskyana, o pressuposto é, então, o de que grande parte do co- A ciência linguística:
objeto, objetivos
nhecimento linguístico que os falantes demonstram possuir é interna à mente/cérebro e métodos

humanos. Chomsky conclui, a partir desse pressuposto, que um estudo apropriado


da linguagem humana precisa tratar de seu construto mental. Assume, então, a tarefa
de descrever esse conhecimento implícito dos falantes, ou ainda, as propriedades e os
princípios do estado inicial da faculdade de linguagem e, para tanto, busca construir
um aparato formal, a chamada gramática gerativa (ou gramática universal). Essa
gramática deveria ser capaz de gerar “regras de boa-formação de uma língua qualquer
L e de relacionar esse aparato formal a algum conjunto de princípios gerais (que deter-
minem o que pode valer como ‘gramática gerativa’ para as línguas em geral)” (BORGES
NETO, 2004, p. 100-101).
Nesse empreendimento, a Linguística, tal como idealizada por Chomsky, tem como
desafio mostrar que todas as línguas são variações de um mesmo tema e, ao mesmo
tempo, registrar as propriedades de cada uma das línguas particulares (CHOMSKY, 1998,
p. 24). Precisa, pois, dar uma explicação satisfatória para as propriedades da língua, le-
vando em consideração o que o falante da língua sabe. Analogamente, tem que mostrar
que cada língua particular é a manifestação específica do estado inicial uniforme.
Vê-se, nas linhas precedentes, que Chomsky adota uma visão inatista da linguagem
e a coloca num domínio cognitivo e biológico; passa a considerar que o linguista deve
se preocupar em descrever e, sobretudo, explicar esse componente inato que vai carac-
terizar a competência linguística dos indivíduos: sua gramática gerativa. A ação dos
indivíduos particulares – ou, ainda, o uso concreto que eles fazem da linguagem em
situações concretas – não é posta em causa. Para o quadro da teoria gerativa, as ações
individuais colocariam em jogo variáveis de natureza social e psicológica que seriam in-
dependentes do conhecimento gramatical da língua. Em outras palavras, as expressões
linguísticas (sua estrutura, sua organização e seu conteúdo) pronunciadas em condi-
ções naturais seriam “determinada [s] por uma combinação muitas vezes complexa de
fatores que têm apenas parcialmente a ver com a competência” (RAPOSO, 1992, p. 31).
Assim, de forma semelhante ao que ocorreu na proposta saussuriana, os atos indivi-
duais de linguagem (o desempenho ou a performance, na ótica da GG) se tornam um
resíduo da teoria. A teoria gerativa, em seu empenho em estudar a gramática gerativa
– e, consequentemente a competência linguística dos falantes – faz uma abstração
dos diversos fatores em jogo nos atos de fala concretos. Nesse sentido, impõe-se a
consideração de “um falante-ouvinte ideal, situado em uma comunidade linguística
completamente homogênea” (RAPOSO, 1992, p. 33).
A teoria gerativa, entretanto, diverge fundamentalmente da proposta saussuriana e
das propostas estruturalistas que a precederam. Tal divergência não se reduz à maneira

21
A Ciência Linguística: particular como, na GG, são definidos os objetivos e o objeto da Linguística. Também
conceitos básicos
em termos metodológicos, as duas propostas são diferentes. Enquanto as teorias es-
truturalistas eram, em geral, explicitamente descritivas, a GG se pretendia explicativa,
no sentido de que os fenômenos deviam ser deduzidos de um conjunto de princípios
gerais. Assim, a preocupação não é mais, como no estruturalismo, a de “descrever os
dados que se revelam à percepção dos linguistas, mas trata-se de encontrar princípios
gerais a partir dos quais as descrições dos dados observáveis possam ser logicamente
derivadas” (BORGES NETO, 2004, p. 100).
Convém destacar que, segundo Borges Neto (2004), o programa de investigação da
GG define que a tarefa fundamental do linguista é “a criação de sistemas computacio-
nais que sirvam de modelo para o conhecimento linguístico dos falantes/ouvintes de
uma língua” (p. 97). Borges Neto afirma também que a pretensão da GG é a de cons-
truir “um mecanismo computacional capaz de formar e transformar representações,
que ‘simule’ o conhecimento linguístico de um falante de uma língua natural, regis-
trado em sua mente/cérebro” (2004, p. 97). Para o autor, podemos assim sintetizar as
diferentes propostas gerativistas:

A história da GG conhece três grandes “estratégias” na delimitação do conhe-


cimento sobre a língua presente na mente/cérebro dos falantes. Num primeiro
momento (Teoria de SS [Syntactic Struture]), a gramática deveria gerar direta-
mente as sentenças da língua (em suas formas superficiais). [...]. No segundo
momento (Teoria-padrão), a gramática passa a gerar objetos abstratos que são
interpretados nas sentenças da língua (na sua forma fonética e no seu significa-
do), ou seja, o conjunto de objetos abstratos gerados pela gramática é projeta-
do na língua, descrevendo-a enquanto um conjunto de significantes possíveis
relacionados a um conjunto de significados possíveis [...]. Aqui, a noção de gra-
mática gerativa sofre uma pequena modificação com relação ao sentido anterior
[...]. Permanece, no entanto, o compromisso com a noção de língua, uma vez
que a gramática vai gerar tantos objetos abstratos quantas forem as sentenças
da língua e nenhum a mais. [...]. No terceiro momento (P&P [Princípios e Pa-
râmetros]), a gramática gera objetos abstratos que explicitam as propriedades
que os falantes levam em consideração no momento de emitir juízos de gra-
maticalidade sobre objetos lingüísticos. As sentenças de uma língua qualquer
constituem apenas um subconjunto desse conjunto de objetos lingüísticos e,
portanto, em nenhum momento, e sob nenhum critério, é possível dizer que
a gramática gera as sentenças da língua – no máximo, é possível dizer que a
gramática permite (licencia), entre outras coisas, as sentenças de uma língua
dada (BORGES NETO, 2004, p. 124-125).

Embora a configuração do sistema computacional tenha sido alterada ao longo do


desenvolvimento da teoria – como é razoável supor pela síntese feita por Borges Neto
–, seus axiomas fundadores, sobre os quais tratamos anteriormente, permaneceram (e

22
ainda permanecem!) constantes3. A ciência linguística:
objeto, objetivos
A título de síntese, podemos afirmar, então, que a Linguística, tal como idealizada e métodos

por Chomsky e desenvolvida por seus inúmeros seguidores, tinha (e tem) como objeto
a gramática gerativa – entendida como um sistema formal de regras, depositada na
mente/cérebro de um falante/ouvinte ideal, um objeto, nesse sentido, psicológico; seu
objetivo tem sido o de descrever e, principalmente, explicar a estrutura supostamente
sintática dessa gramática gerativa (ou universal); o método, por sua vez, é predomi-
nantemente indutivo explicativo – procura-se mostrar como o fenômeno linguístico
deriva de leis gerais, situadas a um nível mais profundo: a mente humana.

Alguns caminhos da linguística contemporânea


As perspectivas teóricas exemplificadas nas duas últimas seções pelos trabalhos
fundadores de Saussure e Chomsky, de cunho essencialmente formalista, optaram,
metodologicamente, pela descrição de um sistema de signos, no caso de Saussure,
e pela explicação de uma gramática gerativa, no caso de Chomsky. Ambas as pers-
pectivas, embora reconhecendo a heterogeneidade e a complexidade do fenômeno
linguístico, optaram por excluir, do âmbito da pesquisa Linguística o uso, o sujeito
falante, o contexto, a história. Fizeram isso, na crença de que o uso, o sujeito falante,
o contexto, a história seriam regulados por um sistema homogêneo (Saussure) ou por
uma gramática gerativa (Chomsky).
Atualmente, algumas pesquisas e pesquisadores estão justamente construindo seus
objetos de estudo e estabelecendo seus objetivos e métodos através da crítica às ex-
clusões e às renúncias da chamada Linguística Formal – aqui representada pelas con-
tribuições de Saussure e de Chomsky. Dentre elas, podemos citar, a título apenas de
exemplificação e correndo o risco de uma simplificação excessiva, as seguintes: (a) a
Pragmática, disciplina que considera o ato de fala como uma ação que se faz ao dizer,
e, assim, traz para a análise da língua os atos que se fazem com a linguagem, passando
a considerar que o sentido de um enunciado não está circunscrito às palavras, mas de-
pende das pessoas, das circunstâncias, das intenções dos falantes; (b) a Sociolinguís-
tica, campo do saber que estabelece para si a tarefa de lidar com a heterogeneidade
muitas vezes conflitante das línguas naturais, considerando-as como profundamente
afetadas pelo espaço, pelo tempo, pelos indivíduos e pelos grupos; (c) a chamada,
genericamente, Teoria da Enunciação, que traz para a análise dos enunciados as mar-
cas linguísticas do sujeito que enuncia e, nesse sentido, coloca em foco a existência

3 Para maiores informações sobre a proposta gerativista, cf. capítulo seguinte: Panorama dos
estudos linguísticos.

23
A Ciência Linguística: de certos fatos que impedem que consideremos a língua como um sistema imanente,
conceitos básicos
ou melhor, chama a atenção para pontos específicos – o sistema de pronomes, os
indicadores da dêixis, a forma de expressão da temporalidade nas línguas – em que é
possível detectar a presença inequívoca do homem na língua4.
Certamente, as disciplinas que nos serviram de exemplo no parágrafo anterior es-
tão longe de comporem espaços homogêneos de constituição do saber; na verdade,
seria mais correto falarmos em pragmáticas, sociolinguísticas e teorias da enuncia-
ção, dada a heterogeneidade que caracteriza e funda esses campos do saber. Bem
longe de objetos delimitados uniformemente, objetivos e métodos traçados de forma
unívoca, deparamo-nos com o conflito e embate de posições.
Tanto do ponto de vista da pluralidade de espaços de saber voltados para o estudo
da linguagem humana, quanto do ponto de vista da pluralidade que constitui esses
próprios campos, não podemos afirmar que, atualmente, a Linguística tenha um ob-
jeto de estudo consensual. Em outras palavras, não há concordância sobre qual seja
a Linguística Atual. A esse respeito, Maingueneau (2008, p. 160) afirma o seguinte:

Aqueles que estão situados fora do campo lingüístico evocam ‘a’ Lingüística
como uma disciplina que acreditam ser homogênea. Ao contrário, aqueles que
se definem como lingüistas experimentam a maior dificuldade em dominar a
unidade de seu próprio campo, tal disparidade que nele percebem.

Segundo Maingueneau (1989), muitos espaços de saber que, para alguns, cons-
tituiriam o campo legítimo de uma Linguística que teria alargado o domínio de seus
conhecimentos são tidos, por outros, como um espaço exterior à Linguística. Deste
ponto de vista, portanto, haveria um centro e/ou interior (a Linguística da língua ou
da competência) e uma periferia e/ou exterior que se ocuparia da fala saussuriana
ou do desempenho chomskyano. Maingueneau (1989) argumenta, entretanto, que as
discussões sobre a tentativa de oposição centro X periferia são estéreas, na medida em
que é justamente a oposição entre o que é interno/externo à chamada “língua” que é,
muitas vezes, colocado em xeque.
Para finalizar as discussões propostas para este Capítulo, consideramos necessário
fazer uma reflexão concisa a respeito daquilo que, certamente, a Linguística não é. Essa
é a temática que norteará as reflexões na seção subsequente.

4 O esboço feito aqui será retomado em capítulo posterior intitulado Panorama dos estudos
linguísticos.

24
Considerações finais: algumas palavras sobre aquilo que a Linguística A ciência linguística:
objeto, objetivos
não é e métodos

A matéria da Lingüística é constituída inicialmente por todas as manifestações


da linguagem humana, quer se trate de povos selvagens ou de nações civiliza-
das, de épocas arcaicas, clássicas ou de decadência, considerando-se em cada
período não só a linguagem correta e a ‘bela linguagem’, mas todas as formas
de expressão (SAUSSURE, 1971, p. 13).

Na grande maioria das vezes, é na escola de ensino fundamental e médio que entra-
mos em contato com o conhecimento teórico sobre a linguagem humana e, em especial,
sobre a nossa língua materna. Esse conhecimento chega até nós por meio dos estudos
que fazemos nas chamadas aulas de Língua Portuguesa ou, simplesmente, de Português.
Infelizmente, ainda hoje – e apesar do desenvolvimento de inúmeras pesquisas
sobre o funcionamento e a organização das línguas em geral e do português brasileiro
em particular –, as aulas de Língua Portuguesa são quase que exclusivamente guiadas
por uma visão normativa/prescritiva da língua(gem). Essa visão é difundida por meio
da chamada Gramática Tradicional (doravante GT)5, que constitui a base epistemoló-
gica sobre a qual, por exemplo, é elaborada a maioria dos livros e materiais didáticos
disponíveis no mercado brasileiro.
A GT tem como preocupação principal assegurar a conservação de certos usos das
línguas. Para Petter (2002, p. 19, grifos da autora), “A tarefa do gramático se desdobra
em dizer o que é a língua, descrevê-la e privilegiar alguns usos, dizer como deve ser a
língua.” Do ponto de vista de Petter (2002), a conjunção de uma perspectiva descritiva
e de uma perspectiva normativa, levada a cabo pela GT, reduz o objeto de análise (a
língua portuguesa, em nosso caso), inerentemente heterogêneo, a apenas uma de suas
manifestações: a do uso considerado correto da língua (PETTER, 2002, p. 19), deixan-
do de lado suas outras diversas – e muitas vezes divergentes! – formas de expressão.
Esse modo de conceber e de lidar com a língua(gem) acaba levando ao equívoco de
que existiriam apenas alguns usos da língua que poderiam ser tidos como corretos e
ao desconhecimento da variação intrínseca das línguas naturais. Ou seja, a percepção
que, em geral, desenvolvemos na escola sobre o funcionamento de nossa língua ma-
terna não engloba a ideia de diversidade linguística.
Existe um nítido desacordo entre o ponto de vista normativo/prescritivo que
norteia e norteou a construção de gramáticas das línguas – que, de forma concisa,

5 Para uma discussão mais detalhada a respeito da gramática tradicional, cf. os trabalhos de
Marcos Bagno, especialmente, Bagno (1999, 2001, 2003).

25
A Ciência Linguística: apresentamos acima – e o ponto de vista assumidamente descritivo/explicativo da Lin-
conceitos básicos
guística, na abordagem que essa última faz dos fatos da linguagem humana – ponto de
vista que pode ser observado, por exemplo, na citação em epígrafe.
Independentemente da linha teórica assumida pelo linguista, sua preocupação es-
tará voltada para todas as formas de manifestações linguísticas. O interesse é sempre
o de descrever e explicar os fatos linguísticos, sem, no entanto, atribuir-lhes juízo de
valor. Analisemos os exemplos abaixo, com o intuito de tornar as afirmações que vimos
fazendo mais precisas.

(01) Eu gosto de comida mexicana. (07) Nós gosta de comida mexicana.


(02) Tu gostas de comida mexicana. (08) Vós gostais de comida mexicana.
(03) Você gosta de comida mexicana. (09) Vocês gostam de comida mexicana.
(04) Ele gosta de comida mexicana. (10) Vocês gosta de comida mexicana.
(05) Nós gostamos de comida mexicana. (11) Eles gostam de comida mexicana.
(06) A gente gosta de comida mexicana. (12) Eles gosta de comida mexicana.

Certamente, uma avaliação baseada em preceitos da GT nos levaria a avaliar os


exemplos em 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9 e 11 como “corretos”. A percepção inversa ocorreria
com os exemplos 7, 10 e 12. Além disso, poderíamos, seguindo esses mesmos precei-
tos, ficar em dúvida com relação aos exemplos 3, 6 e 9: será que eles estariam mesmo
“corretos”? A avaliação, a percepção e a dúvida que anunciamos estão estreitamente
vinculadas ao que aprendemos na escola, durante anos, sobre o funcionamento do
paradigma verbal do português.
Por meio dos preceitos da GT, aprendemos que o paradigma verbal do português
brasileiro é constituído por seis formas, ligadas às pessoas gramaticais ou, de forma mais
ou menos correlativa, aprendemos que os verbos devem ser conjugados da seguinte ma-
neira: eu gosto, tu gostas, ele gosta, nós gostamos, vós gostais, eles gostam – trataremos,
aqui, apenas das formas do presente do indicativo. Entretanto, essa descrição não cor-
responde, de fato, com o que observamos em nossas atividades diárias com a linguagem.
Nelas, podemos observar que o paradigma verbal do português brasileiro falado é
bastante heterogêneo6. Sem entrar na instigante discussão sobre os fatores que desen-

6 Não tematizaremos, aqui, a importante discussão sobre as diferenças entre os modos de enun-
ciação falados e escritos da linguagem. Convém destacar, entretanto, que, como veremos mais
adiante, a GT baseia suas descrições e prescrições na idealização de formas linguísticas mais
diretamente ligadas a um padrão escrito. Essas descrições e prescrições, no entanto, pretendem-
se válidas para qualquer forma de manifestação linguística: falada ou escrita. Ao contrário, as
pesquisas em Linguística não deixam de reconhecer que algumas formas linguísticas são mais
comuns às nossas enunciações escritas do que às enunciações faladas e vice-versa.

26
cadeiam essa heterogeneidade, é possível afirmar que algumas manifestações do por- A ciência linguística:
objeto, objetivos
tuguês brasileiro envolvem a simplificação das conjugações verbais ocasionada, dentre e métodos

outros fatos, por mudanças no quadro dos chamados pronomes pessoais. Vejamos, o
mais sinteticamente possível, como isso ocorre7.
As formas tu gostas e vós gostais são hoje já bastante incomuns na grande maioria
das variedades linguísticas faladas no Brasil. Nessas variedades, o tu tem sido majo-
ritariamente substituído por você – antiga forma de tratamento que passou por pro-
cessos de gramaticalização, tornando-se um pronome –, substituição que promoveu
mudanças diretas na morfologia verbal, com o apagamento de desinência de segunda
pessoa e o consequente alinhamento da segunda e terceira pessoas do singular: tu
gostas/ele gosta passaram a tu ou você gosta/ele gosta. A forma vós gostais, por sua
vez, praticamente não é mais usada no português brasileiro, tendo sido substituída, na
maioria das variedades, pela forma vocês gostam. Novamente, observamos mudanças
na morfologia verbal, com o apagamento de desinência de segunda pessoa plural e o
consequente alinhamento da segunda e terceira pessoas do plural: vós gostais/eles
gostam passaram a vocês gostam/eles gostam. A constatação dessas mudanças nos
leva a afirma que, em geral, as gramáticas normativas – que se fundamentam nos
preceitos da GT – prescrevem certas formas linguísticas como “corretas” que já não são
mais usadas pela maioria da população brasileira.
Algo diametralmente oposto ocorre com os exemplos 7, 10 e 12. Essas formas lin-
guísticas são usadas por uma grande parcela da população brasileira, mas totalmente
ignoradas e condenadas pelas gramáticas normativas, livros didáticos, etc. Essas formas
sofrem o mesmo tipo de processo que apontamos para as formas de segunda e terceira
pessoas do singular e do plural: alinhamento de pessoas gramaticais e consequente
apagamento das desinências verbais. Nesse outro padrão de conjugação, em seu pro-
cesso mais radical, configura-se da seguinte forma: é mantida apenas a oposição entre
a primeira pessoa e as restantes.
Assim, um quadro mais “real” do funcionamento do paradigma verbal do português
brasileiro, feito sem apreciação valorativa – e, sobretudo, sem preconceito –, deveria
incorporar essas formas em conflito, tal como tentamos fazer no quadro seguinte:

7 Para uma discussão detalhada sobre a mudança no paradigma verbal do Português brasilei-
ro, bem como sobre os fatos que a determinam, cf. o texto de Dante Lucchesi Parâmetros
sociolinguísticos do português brasileiro (Disponível em: <http://www.abralin.org/revista/
RV5N1_2/RV5N1_2_art4.pdf>. Acesso em: 7 set. 2009).

27
A Ciência Linguística:
conceitos básicos Norma padrão Normas “reais”
eu gosto eu gosto
tu gostas tu ou você gosta
ele gosta ele gosta
nós gostamos nós gostamos/nós gostamo/nós gosta/a gente gosta
vós gostais vocês gostam/ vocês gosta
eles gostam. eles gostam/eles gosta.

O fato de essas formas em conflito serem ignoradas, por exemplo, pelas gramáti-
cas normativas e materiais didáticos e, consequentemente, não serem alvo de estudo
nas aulas de Português ocorre porque, quando pensamos em diversidade linguística,
entram em jogo fatos como a valoração social diferenciada que recai sobre as formas
linguísticas: “algumas têm muito prestígio social (e constituem aquilo que chamamos
de norma padrão), enquanto outras são menos prestigiadas e até ridicularizadas e cen-
suradas” (FARACO, 2006, p. 16). No caso que ora analisamos, formas como nós gosta
e eles gosta não são legitimadas, embora não contenham em si mesmas nada que as
tornem melhores ou piores que as formas nós gostamos/eles gostam.
Concordamos com Faraco quando afirma que essa valoração positiva ou negativa
intervém em nossas atitudes em relação às variedades linguísticas e seus falantes “li-
mitando, pela força dos pré-conceitos, nossa capacidade de julgar com a necessária
clareza os fatos da língua e a diversidade sociocultural” (FARACO, 2006, p. 16) e, nesse
sentido, limitando, também, nossas possibilidades de entendermos o real funciona-
mento da linguagem humana em geral e de nossa língua materna em particular.
Uma última observação: quando, no processo de divulgação científica, o ponto de
vista descritivo/explicativo que a Linguística adota é lembrado, geralmente provoca
efeitos não previstos pelos linguistas. Falamos aqui da redução e/ou da simplificação
da complexa tomada de posição dessa disciplina frente aos dados linguísticos, ou ain-
da, da imagem equivocada que circula no senso comum de que, em Linguística, “tudo
pode”. De acordo com essa imagem, para os linguistas e para a Linguística, não haveria
“certo” ou “errado” e todos os usos da linguagem seriam possíveis porque se presta-
riam a uma função primordial: a comunicação!
Afirmamos que essa imagem é equivocada e simplificadora porque a Linguística (e
os linguistas) não ignoram que o “erro” é uma realidade para os falantes. Ocorre que
a Linguística credita, em geral, a noção de erro à existência de complexas relações de
força e de poder que, por assim dizer, determinam os usos que fazemos da linguagem.
Assim, como vimos acima, para a Linguística, o julgamento de “certo” ou “errado” para
uma forma linguística qualquer não está atrelado a nada intrínseco a elas – que, sem os
julgamentos sociais, não são melhores nem piores umas que as outras, são meramente

28
equivalentes. Na verdade, o que determina o status de uma expressão linguística qual- A ciência linguística:
objeto, objetivos
quer está vinculado ao status do falante, do prestígio (ou não) da região em que ele e métodos

mora, etc. Em outras palavras, a valoração ou não de uma forma linguística qualquer
está associada a fatores de ordem cultural, política e social.
Voltaremos às discussões sobre as temáticas apenas anunciadas nesta seção em
capítulo subsequente em que trataremos das relações entre gramática e ensino.

Referências

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29
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conceitos básicos
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SAUSSURE, F. Curso de Linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1971.

WEEDWOOD, B. História concisa da Linguística. São Paulo: Parábola, 2002.

Proposta de Atividade

1) Elabore um texto argumentativo em que você refute a definição de língua apresentada


a seguir, bem como a noção de linguagem humana nela pressuposta. Na elaboração do
texto, considere as reflexões teóricas que fizemos no transcurso deste Capítulo:

“O QUE É UMA LÍNGUA?


É um conjunto de sons e ruídos, combinados, com os quais um ser humano, o falan-
te, transmite a outros seres humanos, o ouvinte ou os ouvintes, o que está na sua men-
te, emoções, sentimentos, vontades, ordens, apelos, ideias, raciocínios, argumentos e

30
combinações de tudo isso” (Trecho recolhido e adaptado de: <http://agronomia.catoli- A ciência linguística:
objeto, objetivos
ca-to.edu.br/documentos/02020094/2009_Aula%20sobre%20a%20%20l%EDngua.doc>) e métodos
Acesso em: 29 set. 2009.

Anotações

31
A Ciência Linguística:
conceitos básicos

Anotações

32
2 Panorama dos
estudos linguísticos

Juliano Desiderato Antonio / Sonia Aparecida Lopes Benites

Considerações iniciais
Neste capítulo, procuramos apresentar um panorama de como os estudos linguís-
ticos se desenvolveram ao longo da história e de diferentes propostas teóricas que
surgiram após o estabelecimento da Linguística enquanto ciência, no início do século
xx. Assim, este capítulo estabelece diálogos diretos com o primeiro e com o terceiro
capítulos deste livro, que tratam, respectivamente, do estabelecimento da ciência lin-
guística e dos postulados de Saussure, considerado o “pai” da Linguística moderna.
Muitos dos trabalhos que versam sobre a história da Linguística apontam para uma
visão contínua, cumulativa ou evolutiva dos estudos linguísticos (CAMPBELL, 2002).
No entanto, neste capítulo, salientaremos também as mudanças e rupturas entre di-
ferentes estágios que se sucederam nos estudos da linguagem. Essa visão nos parece
mais coerente e é corroborada pela abordagem do físico Thomas S. Kuhn, que, em seu
livro The structure of scientific revolutions (1962), afirma que toda ciência caminha
segundo dois períodos distintos: períodos de concordância unânime ou quase, sobre
valores acumulados, e períodos de crise, quando esses valores são refutados em fun-
ção de novas descobertas e hipóteses.

A pré-linguística, a paralinguística e a linguística


Em uma sociedade estruturada em classes, é comum que a linguagem e o com-
portamento da classe superior sejam considerados mais corretos e superiores que os
das outras classes. Como afirma Gnerre (1987, p. 4), “Uma variedade lingüística ‘vale’
o que ‘valem’ na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da
autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais”.
Daí resulta o interesse em preservar os traços característicos que opõem essa mo-
dalidade às demais, tidas como inferiores. O estudo sistemático desses traços caracte-
rísticos ou dessa gramática é o que Câmara Júnior (1975) denomina Estudo do Certo
e Errado. Conforme o autor (p. 13), esse estudo “nada mais é que uma prática do
comportamento lingüístico”, sem nenhuma cientificidade. Também não é ciência o
33
A Ciência Linguística: estudo da língua estrangeira, voltado basicamente para a compreensão linguística,
conceitos básicos
e efetuado segundo uma abordagem experimental, resultante de contatos amistosos
ou hostis, entre sociedades que falam línguas distintas. Para Câmara Jr., o caráter de
cientificidade é decorrente da aplicação de um método científico, na focalização do
material linguístico.
Enquanto o estudo do certo e errado e o estudo da língua estrangeira voltam-se
para a comparação de modalidades contemporâneas de língua, o estudo filológico,
situado no campo literário e igualmente acientífico, busca a compreensão de “traços
lingüísticos obsoletos a fim de captar a mensagem artística” (Câmara Júnior, 1975,
p. 11). Esses três estudos constituem o que o autor denomina pré-linguística.
O autor classifica como paralinguísticos os estudos filosófico (ou lógico) e biológi-
co, uma vez que eles não se voltam para o domínio da linguagem propriamente dita,
mas permanecem em seus limites. O primeiro entrelaça os estudos de linguagem e
filosofia, buscando “tornar a linguagem um instrumento eficiente para o pensamento
filosófico e [...] disciplinar o pensamento através do disciplinamento da linguagem”
(Câmara Júnior, 1975, p. 11). O segundo consiste no estudo das características bio-
lógicas que permitem ao homem usar a linguagem.
Como Saussure, o autor considera propriamente linguísticos os estudos histórico
(diacrônico) e descritivo (sincrônico) da linguagem, uma vez que ambos tomam a
linguagem como um traço cultural da sociedade e tentam “chegar à sua natureza, ou
explicando sua origem e desenvolvimento através do tempo ou o seu papel e meio de
funcionamento real na sociedade” (Câmara Júnior, 1975, p. 12).
Afirmar que a Linguística é uma ciência é dizer que ela possui objeto e métodos
próprios e, de acordo com Robins (1981, p. 7), é guiada pelos princípios científicos da
exaustividade, consistência e economia. Em outras palavras, é entender que ela trata
adequadamente todo o material importante, não apresenta contradição, e, “quando
certas coisas são iguais”, prefere uma “afirmação ou análise menor” a “uma mais longa
ou mais complexa”.
Câmara Júnior (1975) enfatiza a importância dos estudos realizados pela pré e a
paralinguística para o surgimento da Linguística, e acrescenta que a pré-linguística e a
paralinguística não desapareceram com o advento da Linguística. “Ambas continuaram a
seguir o seu caminho, ora ganhando novos aspectos do ponto de vista da linguística, ora
contribuindo para esta com seu próprio background” (Câmara Júnior, 1975, p. 14).

Os estudos da linguagem na Antiguidade


Há relatos de estudos linguísticos entre vários povos da antiguidade motivados por
questões religiosas ou por necessidade de continuar a compreender textos escritos

34
após mudanças linguísticas. Dentre esses estudos, apresentaremos aqui, a título de Panorama dos
estudos linguísticos
exemplo, o caso das línguas suméria e acádia, na Babilônia, e o caso dos Vedas, escri-
tos em sânscrito, na Índia.
Na antiga Mesopotâmia, por volta do ano 2000 a.C., a língua acádia havia substi-
tuído a língua suméria como língua falada naquela região (ENCYCLOPAEDIA, 1993a).
O sumério permanecia como a língua escrita dos textos legais e dos textos religiosos.
Para que esses textos pudessem continuar a ser lidos, paradigmas com listas de pala-
vras e verbos com as correspondências em ambas as línguas tiveram que ser elabora-
das (CAMPBELL, 2002). Deve-se observar que o sumério foi a primeira língua escrita
conhecida. Tratava-se da escrita cuneiforme, a qual era feita com auxílio de objetos em
forma de cunha. A escrita acádia também era cuneiforme e teve origem no sumério.
Por volta de 1700 a.C., o código de Hamurabi, um dos mais antigos e conhecidos con-
juntos de leis, foi escrito em acádio.
Na figura 1 a seguir, observam-se alguns exemplos da escrita cuneiforme (ENCYCLO-
PAEDIA, 1993b, p. 1035).

pássaro

Peixe

sol, dia

ficar em pé, ir

Figura 1 – Exemplo de escrita cuneiforme.

Na Índia, por volta do século V a.C., o gramático Pãnini, motivado por questões re-
ligiosas, fez uma detalhada descrição do sânscrito (Câmara Júnior, 1975). A tradição
religiosa exigia que os Vedas, textos sagrados da religião hindu, fossem declamados
exatamente como quando foram criados, por volta de 1200 a.C. Como o sânscrito
havia naturalmente passado por mudanças nesse período, havia necessidade de se ga-
rantir que as orações continuassem a ser ouvidas. A descrição de Pãnini serviu, então,

35
A Ciência Linguística: para que formas e regras arcaicas do sânscrito pudessem ser compreendidas e realiza-
conceitos básicos
das durante os cultos religiosos.
Em ambos os casos, os motivos que levaram ao estudo da língua nada têm a ver
com o interesse pela reflexão sobre a linguagem, de forma que os estudos do sumério
e do acádio, bem como do sânscrito, por Pãnini, podem ser considerados estudos
paralinguísticos. A descrição do sânscrito por Pãnini, no entanto, também tem cará-
ter normativo, uma vez que apresenta regras a serem seguidas para que as orações
sejam compreendidas, de forma que esse estudo pode ser considerado pré-linguístico
(Câmara Júnior, 1975).

Os estudos da linguagem na Antiguidade Clássica


É incomensurável a contribuição da Antiguidade Clássica para os estudos da lin-
guagem. A gramática tradicional que hoje conhecemos talvez seja o maior exemplo
da herança que recebemos dos clássicos nos estudos linguísticos, mas há ainda outras
contribuições, como as discussões a respeito da natureza convencional ou natural das
palavras, da relação entre linguagem e pensamento e a delimitação das classes de
palavras.
Para Mattos e Silva (1989), a gramática tradicional origina-se em Platão e em Aristó-
teles. Em seu diálogo Crátilo, Platão trata da oposição entre a natureza e a convenção
(NEVES, 1987). Para os gregos, o que era natural era imutável, pois não havia sido es-
tabelecido pelo homem, ao passo que o que era convencional era resultado de algum
contrato entre os membros de uma comunidade e, por isso, esse contrato podia ser
“quebrado” (LYONS, 1979). Os naturalistas postulavam que havia alguma relação entre
a palavra e a sua forma. Isso ficava claro em palavras que “imitam” algum som, por
exemplo, as onomatopeias (tique-taque, piar, cuco). Como há poucas onomatopeias,
os naturalistas demonstravam que muitas palavras refletiam o que representavam
porque os sons que as constituíam tinham qualidades que remetiam a características
físicas1. Ainda assim, isso não ficava evidente em todas as palavras, o que motivou o
estudo da etimologia, ou seja, do “verdadeiro significado” das palavras para revelar
alguma verdade da natureza (LYONS, 1979).
Alguns dos principais fundamentos da gramática grega foram lançados por Platão,
expandidos por Aristóteles e continuados pelos estoicos. É o caso da divisão das par-
tes do discurso (ou classes de palavras) (Câmara Júnior, 1975). Platão inicialmente
fez a distinção entre substantivos e verbos (ainda que sua distinção não corresponda

1 É como se hoje, por exemplo, alguém quisesse explicar que a palavra “ovo” tem essa forma
pelo fato de ter duas letras “o”, cujo formato se assemelha ao de um ovo.

36
exatamente ao que se entende hoje por substantivo e por verbo). Aristóteles acrescen- Panorama dos
estudos linguísticos
tou a essa divisão as conjunções. Os estoicos, por sua vez, acrescentaram a classe do
artigo e separaram os substantivos comuns dos substantivos próprios, além de distin-
guirem a noção de aspecto perfectivo ou imperfectivo das formas verbais, a voz ativa e
a voz passiva e os verbos transitivos e intransitivos (LYONS, 1979).
Posteriormente, os gramáticos alexandrinos deram continuidade a essas distinções
e acrescentaram outras classes de palavras, como o advérbio, o pronome e a preposi-
ção, além de investigarem as categorias de gênero, número, caso, tempo e modo. Um
nome de destaque desse período é o gramático Dionísio da Trácia – ou Dionísio, o
Trácio (Câmara Junior, 1975; lyons, 1979).
Lyons (1979) aponta, no entanto, que os gramáticos alexandrinos cometeram o
que ele chama de “erro clássico”. Esses gramáticos consideravam a língua escrita su-
perior à língua falada e supunham que a língua mais “correta” e mais “pura” era a do
período de auge de Atenas, representada pelos escritos de Platão e Aristóteles. Con-
sequentemente, nessa visão, a língua falada por pessoas de pouca cultura era consi-
derada “errada” e corrompida em relação a essa língua eleita por eles como “padrão”.
Encontra-se aí a origem do pensamento preconceituoso que se perpetua até os dias de
hoje e que estigmatiza formas de falar diferentes daquelas valorizadas pela sociedade.
E talvez a escola seja a maior difusora desse “erro clássico”, ao adotar sem questionar
essa postura herdada dos gramáticos alexandrinos.
Ainda na Antiguidade Clássica, é importante ressaltar a participação dos romanos
no processo de difusão da gramática tradicional. Segundo Lyons (1979), a cultura la-
tina foi grandemente influenciada pela cultura grega em todas as áreas, inclusive na
gramática. De acordo com Câmara Júnior (1975), os gramáticos romanos aplicaram ao
latim as categorias e classes definidas pelos gregos. É consenso entre os estudiosos que
Varrão, que viveu no século II a.C. e escreveu uma gramática de 24 livros chamada De
Lingua Latina, é o gramático de maior destaque entre os romanos. Outros gramáticos
latinos de destaque são Donato, que viveu no século IV d.C., e Prisciano, que viveu no
século V d.C.
A grande preocupação dos gramáticos romanos, no entanto, dizia respeito à manu-
tenção da “pureza” do latim clássico em relação ao chamado “latim vulgar”. Assim, as
gramáticas da língua latina tinham como objetivo estabelecer uma norma que deveria
ser considerada a “correta” e promover a unidade linguística no Império Romano.

Os estudos da linguagem na Idade Média e no Renascimento


Na Idade Média, podem ser observados dois acontecimentos interessantes no que
diz respeito ao estudo da linguagem: o ensino “normativo” do latim e o advento de

37
A Ciência Linguística: uma gramática filosófica, que tem como uma de suas consequências o surgimento da
conceitos básicos
crença em uma gramática universal.
De acordo com Lyons (1979), o latim ocupava papel importantíssimo na sociedade
medieval por ser a língua da religião, da cultura, da diplomacia. Saber latim era con-
dição essencial para se alcançar algum sucesso. Assim, foram elaborados, nessa época,
vários manuais para o ensino de latim como língua estrangeira na escola. A grande
maioria desses manuais tomava como base as gramáticas latinas de Prisciano e de Do-
nato. Ademais, segundo Câmara Júnior (1975), o surgimento das línguas vernáculas
nos países que formavam o império romano também ocasionou uma preocupação
com a manutenção da “pureza” do latim frente a essas novas línguas, o que levou ao
ensino “normativo” do latim.
No século XII, a descoberta de obras de filósofos gregos como aristóteles influen-
ciou o surgimento da chamada gramática especulativa2. Segundo Campbell (2002),
os filósofos escolásticos dessa época estavam preocupados em explicar como a gramá-
tica era um produto da razão humana e como a língua poderia refletir a estrutura do
pensamento. Davam, assim, muita importância ao estudo do significado, com o nome
de Modis Significandi (modos do significado), motivo que levou os gramáticos dessa
época a serem chamados também de modistas.
A adoção do princípio aristotélico de que o conhecimento é universal foi respon-
sável pelo surgimento da crença em uma gramática universal (CAMPBELL, 2002). Os
modistas acreditavam que todas as línguas tinham uma mesma gramática e que o fato
de os falantes de uma língua não entenderam outra língua era causado apenas por
diferenças nas formações das palavras (lyons, 1979).
No Renascimento, houve uma ruptura com a tradição escolástica e as atenções
dos estudiosos se voltaram para os textos clássicos. Embora as línguas vernáculas dos
países da Europa começassem a ser estudadas, eram os textos “clássicos” e os textos
escritos nos moldes dos clássicos que gozavam de prestígio nas escolas e nas universi-
dades (LYONS, 1979).
Somente no século XVII os princípios dos escolásticos voltaram à tona com a Gram-
maire génerale et raisonnée de Port-Royal, de Arnauld e Lancelot (campbell, 2002).
Essa gramática combinava a prática pedagógica medieval de explicar as flexões latinas
com base em exemplos das línguas vernáculas (CAMPBELL, 2002) e tinha o objetivo
de “demonstrar que a estrutura da língua é um produto da razão” (LYONS, 1979, p.
17). Embora não tenha trazido grande contribuição teórica, uma vez que se baseava

2 Para Borba (1991), o termo “especulativa” vem do latim speculum (espelho), porque, nessa
visão, a gramática deveria ser um espelho que reflete a realidade.

38
na tradição clássica, a gramática de Port Royal exerceu grande influência não apenas Panorama dos
estudos linguísticos
na França, onde surgiu, mas também em outros países da Europa durante o Renasci-
mento. Segundo Orlandi (1990, p. 12), Essas gramáticas gerais, como a de Port-Royal,
exigiam “dos falantes clareza e precisão no uso da linguagem”, pois consideravam que
“idéias claras e distintas” deviam ser expressas “de forma precisa e transparente”.
As grandes navegações permitiram que os europeus tivessem contato com um gran-
de número de línguas e culturas de várias partes do mundo e isso levou à próxima
grande etapa na história dos estudos linguísticos, isto é, o surgimento do método
comparativista, abordado a seguir.

Os comparativistas e os neogramáticos
Como vimos, no Renascimento, os estudiosos, motivados pelos ideais do Clas-
sicismo, buscavam uma gramática universal com base na tradição greco-latina. No
século XIX, no entanto, os estudos linguísticos tomaram uma direção contrária. To-
mando como base os ideais românticos, passaram a refutar a idealização da perfeição
dos clássicos e partiram em busca das origens das línguas vernáculas (lyons, 1979;
orlandi, 1990).
A descoberta creditada ao inglês Sir William Jones, no final do século XVII, das se-
melhanças do sânscrito com o latim e com o grego e também com a maioria das línguas
europeias foi fator decisivo para o surgimento da chamada gramática comparada. Os
estudiosos comparavam formas gramaticais das línguas europeias, do latim, do grego
e do sânscrito em busca de uma língua que teria dado origem a todas elas, o indo-
europeu. Embora não haja documentos que comprovem a existência dessa língua mãe,
os comparativistas reconstruíram teoricamente formas dessa língua e até chegaram
a escrever textos nessa língua. Orlandi (1990) apresenta um exemplo de uma dessas
reconstruções hipotéticas: a comparação do latim “centum”, do grego “εχατον”, do
antigo irlandês “cët”, do gótico “hund”, do antigo hindu “satam” e do lituano “simtas”
levou à reconstrução da forma “*kmto-m”, cujo significado, em português, seria “cem”.
Alguns nomes do comparativismo merecem destaque. O alemão friedrich von sch-
legel foi o primeiro a chamar esses estudos de gramática comparada e foi um dos pri-
meiros a apontar as semelhanças do sânscrito com latim, grego, alemão etc. Schlegel
também foi responsável por propor uma classificação das línguas que ficaria muito
conhecida. Para esse estudioso alemão, as línguas se comportavam como um ser vivo
e, por isso, classificou-as em famílias, como em uma árvore genealógica, a partir de
semelhanças em sua estrutura gramatical (câmara júnior, 1975; campbell, 2002).
Outro alemão, Franz Bopp, foi responsável pelo estabelecimento do método
de pesquisa dos comparativistas. Sua proposta ficou muito clara em seu trabalho

39
A Ciência Linguística: comparativo a respeito das formas verbais do sânscrito, do latim, do grego, do persa e
conceitos básicos
das línguas germânicas (CÂMARA JÚNIOR, 1975; ORLANDI, 1990).
Mais um alemão que se destacou nessa época foi Jakob Grimm (um dos irmãos
Grimm das conhecidas histórias infantis). Em sua Gramática do Alemão de 1822, for-
mulou de maneira mais sistemática as correspondências entre sons nas línguas indo-
europeias inicialmente propostas pelo dinamarquês Rasmus Rask. Essa reformulação
ficou conhecida como Lei de Grimm (CÂMARA JÚNIOR, 1975; CAMPBELL, 2002).
Lyons (1979) apresenta alguns exemplos da Lei de Grimm. As línguas germânicas,
como o inglês e o alemão, costumavam apresentar o fonema /f/ em contextos nos quais
uma língua indo-europeia como o francês e o português teriam o fonema /p/. É o caso
da palavra “pé”:

português Pé
francês Pied
inglês Foot

Como os comparativistas não explicavam por que certas palavras não passavam
pelas mudanças, na segunda metade do século XIX, um grupo de jovens acadêmicos
alemães dedicou-se a explicar essas exceções por meio de leis. Para eles, não havia
exceções, as mudanças sofridas pelos sons ao longo do tempo e na passagem de uma
língua para outra faziam parte de um processo mecânico, regido por leis. Esses jo-
vens acadêmicos passaram a ser chamados pejorativamente por seus oponentes de
“jovens gramáticos”. Mais tarde, passaram a ser chamados de neogramáticos (CÂMARA
JÚNIOR, 1975; CAMPBELL, 2002).
Os que se opunham aos neogramáticos, os dialetologistas, não aceitavam as cha-
madas “leis fonéticas” porque, para eles, cada palavra tem sua própria história. Os
dialetologistas propuseram a teoria das ondas, uma metáfora referente às ondas que
se formam quando se joga uma pedra na água. Essas ondas podem ter zonas de in-
tersecção com outras ondas com centros de dispersão diferentes. Analogamente, na
língua, a história de uma palavra pode sofrer influência de várias direções. Segundo
Campbell (2002), atualmente, as teorias da árvore genealógica das línguas e das ondas
são vistas como complementares e ambas são consideradas necessárias para o estudo
da mudança linguística.

Whitney e Humboldt: precursores de ideias da Linguística Contemporânea


Os grandes nomes da Linguística Contemporânea não criaram suas teorias a partir
do nada. Basearam-se em ideias e pressupostos encontrados em autores do século

40
XIX, dentre os quais destacamos, aqui, o norte-americano William Dwight Whitney e o Panorama dos
estudos linguísticos
alemão Whilhelm von Humboldt.
Whitney contrariou muitos dos grandes estudiosos do século XIX que tratavam a
linguagem como fenômeno natural. Para esse estudioso americano, a língua é uma
atividade social e “um tipo de código de sinais cujo escopo é a comunicação entre os
homens” (CÂMARA JÚNIOR, 1975, p. 59). Esse pensamento influenciou o estrutura-
lismo de Saussure que, em seu Curso de Linguística Geral (SAUSSURE, 1989, p. 90),
Afirma que “Whitney insistiu, com razão, no caráter arbitrário dos signos; com isso,
colocou a linguística em seu verdadeiro eixo”.
Para Câmara Júnior (1975), Humboldt lançou, no século XIX, as bases para a Lin-
guística descritiva contemporânea. Embora sua concepção de língua enquanto ‘forma’
esteja presente na visão estruturalista de linguagem (CÂMARA JÚNIOR, 2004), é o
gerativismo que sofre a maior influência do pensamento de Humboldt (apud borba,
1991). Para o alemão, a linguagem é uma atividade, uma criação incessante da mente,
conceito representado pela palavra grega “energeia”. Fica clara a relação entre as ideias
de Humboldt e o conceito de competência da gramática gerativa, que prevê que o
falante, a partir de um número finito de regras gramaticais, pode produzir e compre-
ender um número infinito de frases (BORBA, 1977).
Na ordem cronológica que seguimos neste capítulo, seria este o momento de intro-
duzirmos as contribuições daquele que é considerado o “pai” da linguística moderna,
Ferdinand de Saussure. No entanto, esse assunto já é abordado nos capítulos 1 e 3
deste livro, motivo pelo qual não trataremos desse assunto.

Desdobramentos do Estruturalismo
Inicialmente, consideramos relevante esclarecer que as expressões “Linguística Es-
trutural” ou “Estruturalismo” não possuem um sentido único. De acordo com Lepschy
(1975, p. 20-21), embora sejam mais comumente utilizadas para referir-se às pesquisas
linguísticas desenvolvidas a partir dos princípios saussureanos, são empregadas em
outros dois sentidos: (1) para se referir, amplamente, a todos os estudos que enfatiza-
ram, explicitamente ou não, o caráter sistemático e abstrato da língua (o que incluiria
o gerativismo, a despeito de toda sua originalidade, devido a sua insistência no caráter
explícito, rigoroso e formalizado das proposições); (2) para designar, estritamente,
a linguística distribucional americana, de tendência bloomfieldiana. Este uso se en-
contra, frequentemente, na obra dos linguistas gerativistas, que desejam diferenciar-
se da linguística inspirada em Bloomfield, por eles caracterizada como descritiva e
classificatória.
Dentro do primeiro sentido atribuído ao estruturalismo, situam-se as vertentes

41
A Ciência Linguística: formalistas, voltadas para o funcionamento interno do sistema linguístico, e as ver-
conceitos básicos
tentes funcionalistas (estruturalismo funcional), que privilegiam as constantes trans-
formações das formas da linguagem na sociedade. Essa é a compreensão de Paveau e
Sarfati (2006, p. 115), para quem o funcionalismo situa-se no conjunto do movimento
estruturalista. Os autores acrescentam que “mais do que uma teoria ou um conjunto
de teorias, o funcionalismo é um modo de pensamento, um olhar sobre a linguagem
e suas relações com o mundo”. Do estruturalismo funcional, destacamos, nesta visão
panorâmica, o Círculo Linguístico de Praga (CLP), e, dentre as escolas formalistas, se-
lecionamos o Mentalismo e o Mecanicismo, desenvolvidos nos Estados Unidos.

Um Estruturalismo Funcional3: o Círculo Linguístico de Praga


O Círculo Linguístico de Praga (CLP) foi fundado em 1926, por um grupo de lin-
guistas tchecos e russos, e, posteriormente, recebeu a contribuição de franceses como
Vendryès e Martinet. Baseia-se na abordagem estrutural de Saussure de que nenhum
fenômeno em uma estrutura linguística pode ser devidamente avaliado se for isolado
dessa estrutura. Esta visão é complementada por uma abordagem funcional da lin-
guagem, segundo a qual existe relação entre a estrutura das línguas e suas funções
características. Dessa forma, em lugar de preocupar-se apenas com o sistema/estrutu-
ra, os linguistas do círculo procuram descobrir que funções e tarefas uma estrutura
desempenha.
De acordo com Mathesius, um dos membros do grupo (apud paveau; sarfati,
2006, p. 117), o CLP assenta-se na sincronia e na relação entre as pesquisas linguísticas
e o campo social da arte e da criação. Para o autor, é necessário que os linguistas sejam
capazes de estabelecer um laço entre língua e literatura: “aqueles que não são dotados
de uma sensibilidade particular para os valores da linguagem não podem tornar-se
lingüistas da nova maneira”. Esse laço é assumido, de maneira decisiva, por Roman
Jakobson.
As funções propostas por Jakobson provêm da relação entre estrutura e função,
operacionalizada nos pares conceituais estabelecidos pelo círculo: a afirmação da im-
portância da estrutura da língua; a função social da linguagem; a oposição entre a
função de comunicação (dirigida para o significado) e a função poética (dirigida para o
próprio signo); o modo de manifestação escrito e oral e as características da linguagem
literária (paveau; sarfati, 2006, p. 121-122).
O princípio estrutural-funcionalista aliado à dicotomia “língua e fala”, proposta

3 A expressão ‘estruturalismo funcional’ não se aplica às teorias funcionalistas atuais, abordadas


no item ‘O Funcionalismo e o estudo da língua em uso’, mais adiante neste capítulo.

42
por Saussure, resulta na sistematização e na proposição da Fonologia, pelo Círculo Panorama dos
estudos linguísticos
Linguístico de Praga, no congresso realizado em Haia, em 1928. A instauração dessa
nova disciplina, que focaliza de maneira diferente o estudo dos sons da linguagem,
parte da conclusão de que o desenvolvimento da Fonética, propiciado pela utilização
de aparelhos e o estudo em laboratórios, afastara progressivamente essa disciplina dos
princípios da Linguística.
Dessa forma, enquanto a Fonética é tomada como a ciência da face material dos
sons da linguagem humana, a Fonologia só considera em matéria de som aquilo que
preenche uma determinada função na língua. Com base na afirmação de Saussure de
que na língua só há diferenças, os fonologistas recorrem ao critério das oposições
funcionais (distintivas ou pertinentes) e, dentro de um sistema linguístico, só se inte-
ressam por um som na medida em que este tenha um papel funcional em tal sistema.
Interessa-lhes, portanto, a distinção entre um /d/ e um /g/, na medida em que a troca de
um pelo outro provoca mudança de significado (“dia” e “guia” são palavras distintas,
em português). Contudo, a concretização de /d/ pode ser feita como [d] ou como [d3],
dependendo da região ou da preferência do falante. Essa diferença não é distintiva de
significado, ou seja, não é pertinente dentro da língua.
O linguista contemporâneo André Martinet (1908-1999) é um funcionalista, ge-
neralista, que se inspira em Saussure e nas teses do CLP. O princípio da pertinência
baseia-se em sua afirmação de que toda a descrição supõe uma seleção: “a descrição
é necessariamente finita, o que significa que só poderão apresentar-se alguns traços
do objeto a descrever” (Martinet, 1978, p. 30). O linguista distingue, no quadro da
dupla articulação4, dois tipos de pertinência: a distintiva, referente aos fonemas, como
a acima exemplificada, e a significativa (dos monemas).

Estruturalismos formalistas: mentalismo e mecanicismo


Os norte-americanos, no início do século XX, interessaram-se pelo estudo da lin-
guagem, devido à necessidade de descrever as línguas indígenas americanas, privadas
de tradição escrita. Nesse período, destacaram-se nos Estados Unidos duas correntes
estruturalistas, o Mentalismo e o Mecanicismo, que se diferenciam pelo método que
empregam. Enquanto a primeira relaciona o fato linguístico com os estados mentais
respectivos ou com as concepções mentais coletivas, a segunda faz abstração do con-
teúdo mental, tal como se concretiza nos fatos linguísticos, e apenas estuda a forma

4 De acordo com esse conceito, todo enunciado linguístico pode ser dividido (articulado) duas
vezes: em unidades mínimas significativas, os monemas (primeira articulação), e em unidades
mínimas distintivas de significado, os fonemas (segunda articulação).

43
A Ciência Linguística: do sistema linguístico.
conceitos básicos
Os expoentes dessas duas escolas americanas foram o mentalista Edward Sapir
(1884-1939) e o mecanicista Leonard Bloomfield (1887-1949), ambos formalistas. De
acordo com Câmara Júnior (1975, p. 169), Sapir considerava a análise da forma lin-
guística, em busca de seus padrões intrínsecos, a verdadeira tarefa do linguista. Essa
preocupação aproxima-o de Saussure, para quem a língua é forma, não substância.
Contudo, Sapir deixa de lado o caráter coletivo da língua, como dado não essencial
para sua definição, e concentra sua teoria nos padrões da língua.
Para Sapir, a língua interfere na atividade mental de uma comunidade linguística e
dirige a visão coletiva da vida e do universo dentro daquela comunidade. O fato de a
mesma realidade ser denominada em diferentes línguas segundo diferentes critérios
demonstraria, segundo Sapir, que a língua interfere na forma como uma comunidade
vê o mundo. É o caso da denominação dada em português, francês e inglês para o
mesmo pássaro. Os usuários da primeira língua ressaltam a atividade (“beija-flor”), os
da segunda ressaltam o tamanho (“oiseau-mouche”, isto é, “pássaro mosca”), e os da
terceira, o ruído (“humming bird”, ou seja, “pássaro que zumbe”).
O Mecanicismo, também conhecido como Behaviorismo Linguístico, tem sua maior
autoridade em Leonard Bloomfield, que considera a linguagem, a exemplo de outras
atividades humanas, uma consequência natural de ações e reações dos diferentes ele-
mentos que constituem o corpo humano. Da mesma forma que os behavioristas faziam
com as ações humanas, Bloomfield buscou colocar a linguagem em um nível de obser-
vação puramente objetivo das formas linguísticas.
Bloomfield desenvolveu, para a morfologia, o conceito de “forma mínima” (morfe-
ma, segundo seus seguidores), como a unidade estrutural básica do discurso. Dividiu-
a em formas livres e formas presas e chegou a uma doutrina do vocábulo bastante fun-
cional, de acordo com Câmara Júnior (1975, p. 175). Conforme o autor, formas livres
são aquelas que constituem uma sequência que pode ocorrer isoladamente e consti-
tuem comunicação suficiente, ou seja, não se ligam obrigatoriamente a outras formas.
A forma livre pode ser simples, se for indivisível em unidades mórficas menores, como
“mar”, por exemplo, ou compostas, se for divisível. Assim, “cantar” é uma forma livre
composta de cant, -a, -r. Estas três formas denominam-se presas, pois constituem parte
integrante do vocábulo. Elas não ocorrem sozinhas, mas funcionam ligadas a outras.
Para atingir o objetivo de descrever a língua falada por uma comunidade, o mecani-
cismo empregava uma metodologia que consistia na gravação de um corpus, seguida
de sua segmentação, do inventário, distribuição e classificação das formas significa-
tivas e distintivas de significado nessa língua. Essa metodologia de análise aliava os
conceitos de sintagma e paradigma, de Saussure, e fornecia uma cadeia de “posições”

44
que, somada à teoria do condicionamento, da psicologia behaviorista, deu origem aos Panorama dos
estudos linguísticos
métodos audiovisuais, utilizados no ensino de línguas estrangeiras.

O formalismo chomskyano: Gramática Gerativa Transformacional


Como vimos na seção anterior, o Estruturalismo é, por vezes, identificado estrita-
mente com o mecanicismo, de Bloomfield e seus seguidores. Como forma de reação
a esse “estruturalismo extremista”, Noam Chomsky propõe a gramática gerativa trans-
formacional5 que, segundo Ducrot (1968, p. 137), baseia-se em três teses. A primeira
delas refere-se ao objetivo da descrição linguística, que seria representar a competên-
cia do falante nativo. Para tanto, revela-se indispensável a consideração da intuição do
falante, vista pelo mecanicismo como fonte de preconceitos e de erros.
A intuição do falante nativo, que o leva a emitir juízos sobre sua língua, é con-
siderada pelo gerativismo como um dado observável, isto é, empírico. Certamente,
conforme assevera Bach (1981, p. 20-27), é possível observar que o falante é capaz
de julgar: se dois enunciados são repetições da mesma frase, sintagma ou palavra; se
certas sequências de sons são pronunciáveis em sua língua; se um enunciado é bem
formado ou não; se uma frase é aceitável em sua língua ou não; se duas frases têm a
mesma estrutura; se duas ou mais frases são relacionadas entre si; se duas frases são
sinônimas; se uma frase é ambígua; se um enunciado é verdadeiro; se um enunciado
é adequado ou inadequado à situação.
A segunda tese opõe-se ao caráter descritivo e classificatório da linguística meca-
nicista, operacionalizada em duas etapas, a sintagmática e a paradigmática. A tarefa
da linguística, segundo Chomsky, deveria ir além da mera descrição, envolvendo a
explicação dos fatos linguísticos.
A terceira tese diz respeito ao reconhecimento da distinção entre estrutura de su-
perfície e estrutura profunda. Enquanto a estrutura profunda se manifesta na maneira
por que os interlocutores interpretam e julgam os enunciados, a estrutura de super-
fície diz respeito à forma como os fonemas e morfemas se combinam nos enuncia-
dos. Frases ambíguas e frases sinônimas podem ser explicadas pela utilização desses
conceitos.
A aceitação dos conceitos de estrutura profunda/estrutura de superfície leva ao
reaparecimento de duas ideias que haviam sido esquecidas pelo estruturalismo: os
universais linguísticos e o inatismo. Ducrot (1968, p. 143) esclarece que, conforme a
primeira, embora as estruturas superficiais dos enunciados difiram de modo sensível

5 Ver Capítulo 1, para maiores detalhes sobre essa teoria.

45
A Ciência Linguística: segundo as línguas, “não é impossível que, no tocante à estrutura profunda, todas as
conceitos básicos
línguas recorram ao mesmo tipo de construção”. Já o inatismo compreende a concep-
ção de que a faculdade da linguagem é inata à criança e lhe permite a aquisição da
língua materna. Isso explicaria o fato de a criança ser capaz de reconstituir a estrutura
profunda, a partir de estruturas superficiais limitadas pelos fatores que caracterizam
o desempenho.
Apesar de não ter tido como objetivo fornecer os fundamentos de uma nova me-
todologia do ensino de línguas, Chomsky, na visão de Roulet (1978), acabou contri-
buindo para isso, assim como para o desenvolvimento das pesquisas psicolinguísticas
nesse campo. Isso porque deslocou o foco do ensino para a aprendizagem: sua teoria
está voltada para as estratégias de aprendizagem, centrada no aluno.
O mesmo autor considera que Chomsky contribuiu, igualmente, para reabilitar
diversas técnicas pedagógicas que estavam em desuso: a utilidade de deixar o aluno
cometer erros, a utilidade de exemplos agramaticais (para o estudante testar os limites
de aplicação de uma regra), a utilidade das explicações, a prioridade à expressão livre
e criadora.
Contudo, o gerativismo não conseguiu superar uma das maiores críticas feitas ao
estruturalismo - sua concepção do sistema linguístico como abstrato e homogêneo (cf.
Saussure), externo aos indivíduos que a empregam. Essa limitação não foi superada
pela gramática gerativo-transformacional, uma vez que ela trata da competência (e não
do desempenho) de um falante-ouvinte que não é real, mas ideal.

A ruptura com o formalismo


No Capítulo 1 deste livro, foram apresentadas algumas características das principais
teorias linguísticas que pertencem ao paradigma formal, a saber, o estruturalismo e o
gerativismo. Esses modelos teóricos optaram por estudar a parte homogênea, abstrata,
na dicotomia que se faz entre o sistema (ou o conhecimento tácito dele) e o uso desse
sistema ou das regras que o compõem.
Devemos observar, no entanto, que há outros paradigmas, nos quais as teorias se
preocupam em estudar a língua tal como é utilizada por falantes reais, em um contexto
real de produção. Segundo Koch (1998), os níveis de análise linguística cresciam em
complexidade conforme a Linguística foi se desenvolvendo. Com os estruturalistas,
desenvolveram-se os estudos no nível dos sons e, posteriormente, no nível morfoló-
gico. Com a teoria gerativa de Chomsky, a sintaxe passou a ser o foco de estudo. O
nível do significado foi, em uma etapa posterior, incorporado também aos estudos de
semântica formal. Até então, a Linguística estudava os enunciados isoladamente e seu
nível máximo de análise era a frase. Partindo de subsídios da antropologia cultural, da

46
etnografia, da etnometodologia, da sociologia da comunicação, da psicologia da cog- Panorama dos
estudos linguísticos
nição, da filosofia da linguagem e de outras ciências humanas, a Linguística deu o que
Koch (1988) chama de “salto qualitativo”. Nessa nova visão, que teve início nas teorias
funcionais, na teoria dos atos de fala e na teoria da enunciação, o nível de análise é o
texto/discurso e as condições de produção dos enunciados são levadas em conta pelo
linguista.
Nos itens a seguir, serão abordadas algumas das contribuições que permitiram que
a Linguística desse o “salto qualitativo”.

Dell Hymes e o conceito de competência comunicativa


Desde a década de 60, o etnolinguista norte-americano Dell Hymes tem sido um
crítico dos pressupostos das teorias formalistas. Segundo Hymes (2009), um dos prin-
cipais problemas da teoria chomskiana reside no fato de essa teoria omitir praticamen-
te tudo de relevância sociocultural, uma vez que considera um falante ideal, em uma
comunidade linguística homogênea. Ora, sabemos que uma mesma língua tem dife-
rentes variedades, que devem ser utilizadas em diferentes situações comunicativas. Um
aluno do Ensino Médio, por exemplo, tem plena consciência de que não deve utilizar,
em uma prova de redação de vestibular, a mesma variedade linguística que utiliza para
conversar com seus amigos em um programa de comunicação instantânea da internet,
como o MSN, por exemplo. Assim, para Hymes (2009, p. 60), “há regras de uso sem
as quais as regras de gramática seriam inúteis”. Por isso, o etnolinguista americano
sempre defendeu a ideia de que a teoria linguística deve ser integrada com as teorias
da comunicação e cultura e deve ser planejada sem se deixar de lado a conduta comu-
nicativa e a vida social. Devido à ligação que há entre língua e educação, essa teoria
deveria ser capaz de lidar com uma comunidade linguística heterogênea, levando em
conta problemas como diferenças socioeconômicas, bilinguismo etc. (Hymes, 2009).
Um argumento utilizado por Hymes para demonstrar que a competência Linguísti-
ca, objeto de estudo dos gerativistas, é apenas uma das capacidades de um falante, é o
fato de que uma criança, no processo de aprendizagem da língua materna, não apren-
de somente a criar e a entender frases, mas também “quando usá-las e quando não
usá-las, sobre o que falar, com quem, onde, de que maneira” (HYMES, 2009, p. 60).
O conceito de competência comunicativa, portanto, engloba vários aspectos, dos
quais a competência gramatical é apenas um. O Dictionnaire de didactique des lan-
gues (galisson; coste, 1976 apud coste, 1988, p. 11-12) diz que, por ‘competên-
cia comunicativa’, Hymes (2009) designava o “conhecimento (prático e não neces-
sariamente explicitado) das regras psicológicas, culturais e sociais que comandam a
utilização da fala num quadro social”. A competência comunicativa “supõe o domínio

47
A Ciência Linguística: de códigos e de variantes sociolinguísticas, e de critérios de passagem de um código
conceitos básicos
ou uma variante para outros; implica também num saber pragmático quanto às con-
venções enunciativas que estão em uso na comunidade considerada”.
O conceito de competência comunicativa e as pesquisas de Labov, que serão abor-
dadas a seguir, foram de grande importância para que a Linguística não ficasse presa
apenas ao estudo dos aspectos formais da língua e pudesse avançar na investigação dos
usos da linguagem por falantes reais, em uma comunidade linguística heterogênea.

A Teoria da Enunciação de Benveniste


Um dos precursores na percepção da impossibilidade de dissociar a língua da ativi-
dade do falante é Emile Benveniste (1902-1976), com a abordagem que faz da língua,
a partir da década de 40. Embora concorde com os princípios estruturalistas, o autor
discorda do tratamento dado por essa escola à significação, considerada por ele como
o que há de mais essencial na linguagem. Ele demonstra que a significação não se
limita ao signo, pois os signos dêiticos não remetem a conceitos ou a indivíduos, mas
implicam a situação de fala, o contexto, o extralinguístico. A abordagem da dêixis6 leva
o autor a abrir seus estudos para a enunciação, o discurso.
O autor se volta, então, para o estudo da subjetividade. Sua teoria, produzida ao
longo de mais de 20 anos, encontra-se reunida nos dois volumes do livro Problemas
de Linguística Geral, publicados originalmente em 1966 e 1974, respectivamente. O
sujeito, completamente ignorado pela linguística imanente, é colocado no centro da
teoria da enunciação, e visto como um indivíduo autônomo, que coloca em palavras
suas intenções, que dirige o conteúdo de suas falas e se apropria das formas da língua.
A partir da evocação da oposição efetuada pelos árabes entre “aquele que fala”,
“aquele a quem nos dirigimos”, e “aquele que está ausente”, Benveniste propõe a cor-
relação de pessoalidade, que separa as pessoas (eu/tu) da não pessoa (ele). As primei-
ras são efetivamente pessoas e estão presentes na situação de comunicação, enquanto
a última não é necessariamente um ser humano e se encontra sempre ausente da
situação de fala. Mas, a pessoa eu se opõe a tu, segundo a correlação de subjetividade
já que, para o autor, eu é a pessoa-sujeito e tu, a pessoa-não sujeito. Sua noção de
subjetividade consiste no traço linguístico que opõe aquele que fala (eu) a aquele a
quem o falante se dirige (tu). Conforme afirma o autor no texto Da Subjetividade na
Linguagem, “é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito
[...]. É ego quem diz ego” (p. 286).

6 “Faculdade que tem a linguagem de designar mostrando, em vez de conceituar” (Câmara


JÚNIOR., 1978, p. 90).

48
Para Benveniste, a subjetividade permite compreender a língua em exercício, na Panorama dos
estudos linguísticos
instância do discurso. Esse conceito ancora-se também na distinção entre nomes e
pronomes. Enquanto nomes, “árvore” e “menino” possuem significações constantes e
objetivas, os pronomes só têm sentido em uma situação de fala. Dessa forma, além dos
pronomes “eu” e “tu”, os advérbios “aqui”, “aí”, “agora”, “ontem”, os demonstrativos
dêiticos, as categorias de tempo (com eixo no presente) são responsáveis por transfor-
mar a língua em discurso.
Benveniste afirma que o locutor apropria-se da língua e enuncia-se enquanto tal
por índices próprios, ao mesmo tempo em que institui um alocutário. A substituição
dos termos emissor e receptor por locutor e alocutário, respectivamente, deve-se à
noção de envolvimento dos dois elementos no discurso. Alocutário é diferente de
receptor, pois não é passivo, já que também atua.

A teoria dos atos de fala


John Austin (1911-1960), filósofo da linguagem britânico, deu origem, em 1962, à
concepção de linguagem como forma de ação, graças à distinção que fez entre enun-
ciações constatativas e as enunciações performativas. Enquanto as primeiras relatam
ou descrevem algum fato, as últimas, independentemente de seu valor de verdade,
fazem alguma coisa, sem contentar-se apenas em dizê-la. É o caso de atos de fala como
proclamo-o eleito; nomeio-o diretor; dispenso-o do exame; exonero-o do cargo.
O autor classifica os atos de fala em: locucional (o dizer, a parte material do ato),
ilocucional (o que se faz ao dizer) e perlocucional (o que se faz por dizer, o efeito pro-
vocado). Dessa forma, se alguém pergunta ao telefone: “a dona da casa está?” executa
um ato locucional, constituído de uma sequência verbal pronunciada com a entonação
de uma interrogação. Contudo, o que faz ao dizer (ato ilocucional) essa frase interro-
gativa é um pedido para falar com a dona da casa. Esse ato será bem-sucedido, isto é,
alcançará o efeito pretendido (ato perlocucional) se a dona da casa for chamada a falar
ao telefone. Uma criança pequena pode, entretanto, não entender o ato ilocucional e
responder a solicitação apenas com um “sim” ou “não”.
Dessa forma, Austin (1990) desloca a tradição da semântica de que o que interessa
no significado das sentenças é seu valor de verdade, passando a tratar de condições de
sucesso para os atos de fala praticados pelos interlocutores.
Particularmente importante para a teoria é o ato ilocucional, cujo sucesso pode
depender do atendimento a condições como: ser proferido pelo falante apropriado,
frente à audiência correta e na circunstância correta. É o caso do ato de “batizar”, em
“Eu te batizo, em nome do Pai [...]”, Que só terá validade se for pronunciado nesse
tempo, modo e pessoa verbal, pela autoridade religiosa competente e envolvendo o

49
A Ciência Linguística: ritual adequado.
conceitos básicos
Tratando dos traços do contexto de fala que contribuem para o sucesso de um ato
de fala, Stalnaker (1982) ressalta os seguintes aspectos: a situação concreta em que
é emitido ou proferido; o ambiente físico; o tempo; enunciados anteriores; o tópico
da conversação; a identidade do falante e de sua audiência; suas intenções, crenças,
expectativas e interesses; os efeitos da enunciação; o valor de verdade da proposição
expressa; as relações semânticas entre a proposição expressa e outras a ela relaciona-
das de algum modo, ou seja, tudo o que é preciso saber para entender e avaliar o que
é dito.

Algumas correntes atuais da Linguística: William Labov e o estudo do


‘caos’ da fala pela Sociolinguística
Embora seja ingênuo acreditar que uma língua é falada da mesma forma por todos
os membros de uma comunidade linguística, sem sofrer influência de fatores externos
como a idade, o sexo e o grau de escolaridade dos falantes, por exemplo, a linguística
formal fez sua opção metodológica determinando como seu objeto de estudo apenas
a parte homogênea da linguagem – a langue de Saussure ou a competência de um
falante ideal em uma comunidade linguística homogênea, nos termos de chomsky.
Segundo Alkmin (2001), na década de 60, momento em que o gerativismo está no
auge de sua repercussão, um grupo de linguistas, dentre eles William Labov, seguindo
a tradição da antropologia linguística iniciada por Sapir e Whorf, se propõe a

Investigar como a estrutura social influencia a maneira como as pessoas falam e


como variedades lingüísticas e padrões de uso se correlacionam com atributos
sociais, como classe social, sexo, idade, etnia (COULMAS, 2002, p. 427, tradu-
ção nossa).

Por meio da investigação da frequência de ocorrência de uma determinada expres-


são ou construção em uma determinada comunidade, a sociolinguística procura de-
monstrar que há regras de uso seguidas pelos falantes de qualquer variedade linguís-
tica. Assim, a Sociolinguística procura colocar ordem no “caos” que as teorias linguís-
ticas em voga até então diziam que era a fala (tarallo, 1986). Um exemplo disso é o
estudo que Labov publicou, em 1966, do inglês falado em Nova Iorque. Nesse estudo,
o linguista norte-americano demonstrou que o fator classe social era determinante
da pronúncia da consoante inicial de palavras como “that” (aquele) e “there” (lá). A
variante prestigiada socialmente – o som [δ] – era produzida pelos falantes de classe
média, ao passo que a variante estigmatizada socialmente – o som [d] –, era produzida
por falantes da classe operária.

50
Um outro exemplo é apresentado por Cezario e Votre (2008): a variação entre Panorama dos
estudos linguísticos
as formas pronominais que indicam primeira pessoa do plural: nós e a gente. Para
explicar esse fenômeno de variação, um sociolinguista investigaria os seguintes itens:
o contexto social em que um mesmo falante utilizaria cada uma dessas formas ou se
há um contexto específico para cada uma das formas; como pessoas de faixas etárias,
graus de escolaridade, nível socioeconômico distintos utilizam essas formas; se verbos
mais formais favorecem o emprego de “nós”, ao passo que verbos menos formais favo-
recem o emprego de “a gente”.
A partir das investigações sociolinguísticas, pode-se depreender que qualquer va-
riedade linguística é governada por regras, não havendo, assim, variedades superiores
nem variedades inferiores (CAMACHO, 2001).

A linguística textual e a noção de textualidade


Segundo Marcuschi (1983), a Linguística Textual surgiu na década de 60 porque
a gramática da frase não dava conta do texto, considerado “uma unidade lingüística
superior à frase” (p. 1). Naquela época, de acordo com Koch (2002), a maioria dos
estudos tratava de análises transfrásticas ou de tentativas de construção de gramáticas
textuais.
Para Rios de Oliveira (2008), a coesão e a coerência são as propriedades mais rele-
vantes no estabelecimento da textualidade, entendida como “conjunto de proprieda-
des que lhe conferem [ao texto] a condição de ser compreendido pela comunidade
lingüística como um texto” (p. 194). Segundo a autora, coesão e coerência “dizem
respeito, respectivamente, às articulações de forma e de sentido construtoras da malha
textual, articulações que, em geral, se sobrepõem, se interseccionam, numa verdadeira
confluência funcional” (2008, p. 194).
Para Koch (2002), a coerência não é propriedade do texto em si, mas é construída
na situação comunicativa, na relação entre o texto e os seus usuários. Os fatores que
atuam no estabelecimento da coerência são a informatividade, a situacionalidade, a in-
tertextualidade, a intencionalidade, a aceitabilidade, a contextualização, a focalização,
a consistência e a relevância. Algumas contribuições da Linguística Textual serão vistas
em livros posteriores da disciplina Linguística.

O Funcionalismo e o estudo da língua em uso


o início do pensamento funcionalista pode ser atribuído aos estudiosos da Escola
Linguística de Praga, na década de 30, que não consideravam suficiente uma descri-
ção que ficasse apenas na indicação das funções sintáticas dos elementos linguísticos
(neves, 1997).

51
A Ciência Linguística: Atualmente, várias teorias compõem o chamado paradigma funcionalista e têm em
conceitos básicos
comum o fato de considerarem que a língua tem função primordialmente comunica-
tiva ( VAN VALIN, 2002). Deve-se ressaltar que, para o funcionalismo, o conceito de
comunicação não se restringe à codificação e à transmissão de informação, mas com-
preende todos os fatores envolvidos no evento de fala. Por isso, o objeto de estudo do
funcionalista é a língua em uso e o correlato psicológico de uma teoria funcionalista
é a competência comunicativa do falante (DIK, 1989). Assim sendo, segundo Neves
(1997), na visão funcionalista, “a pragmática é o quadro dentro do qual a semântica e
a sintaxe devem ser estudadas; as prioridades vão da pragmática à sintaxe, via semân-
tica” (p. 47).
Um exemplo de análise funcionalista é a função que certas construções têm de in-
troduzir informações novas em um texto. No quadro a seguir, à esquerda, encontram-
se algumas dessas construções investigadas por Dik (1989) e, à direita, exemplos de
ocorrências com essas construções7:

Emprego de expressões metalinguísticas


então .. gente olha ah:: o nosso trabalho
que explicitamente indicam a introdução
vai ser a respeito de variação dialetal1.
de informação nova
.. chega a uma cidade pequena,
Inversão da ordem canônica da oração
.. onde todos se conheciam,
quando a informação nova exerce função
.. um cara muito estranho.
sintática de sujeito.

... mas .. aparece,


Emprego de construções existenciais-
.. depois disso,
apresentativas para a introdução de
.. ali na frente deles,
informação nova.
... o pai da moça,

Como pode ser observado nos exemplos, uma análise funcionalista releva a função
comunicativa dos elementos linguísticos, ou seja, a função dos elementos nos exem-
plos é introduzir informação nova. Assim, a prioridade é da pragmática sobre a sintaxe.

A Análise do Discurso de linha francesa8


De acordo com Charaudeau e Maingueneu (2008, p. 43), não é fácil delimitar o iní-
cio da Análise do Discurso (AD), uma vez que ela é resultado de fusões e de evoluções

7 Os exemplos foram retirados do corpus oral do grupo de pesquisas funcionalistas do norte/


noroeste do Paraná (funcpar).
8 Embora reconheçamos, com Maingueneu (2008), que existem “tendências francesas” em AD,
empregamos aqui a expressão “linha francesa” em sentido estrito, referindo-nos, especificamen-
te, à teoria de Pêcheux.

52
ocorridas em contextos específicos, entre diferentes teorias: Panorama dos
estudos linguísticos

É difícil retraçar a história da análise do discurso, pois não se pode fazê-la de-
pender de um ato fundador, já que ela resulta, ao mesmo tempo, da convergên-
cia de correntes recentes e da renovação de práticas de estudos muito antigos
de textos (retóricos, filológicos ou hermenêuticos).

Entretanto, embora resulte de tais convergências e renovações, duas publicações


são reconhecidamente importantes para a instituição da teoria: a obra de Michel
Pêcheux (1938-1983), Análise Automática do Discurso, e o volume 13 da revista Lan-
gages, ambas em 1969.
Também não existe consenso a respeito do estatuto da Análise do Discurso. Nem
todos concordam que ela seja uma disciplina vinculada à Linguística. Para Charaudeau
e Maingueneau (2008), por exemplo, a AD é um campo autônomo, com características
próximas da filosofia: “espaço crítico, lugar de interrogação e de experimentação em
que se podem formular, deslocando-os, os problemas que as disciplinas constituídas
encontram” (p. 46).
Para os fins da visão panorâmica aqui proposta, conceituamos a Análise do Dis-
curso como um campo de estudos interdisciplinar que, diferentemente da linguística
estrutural e gerativa, focaliza a língua em uso, materialidades linguísticas efetivamente
produzidas e os processos inconscientes que as permeiam. Em outras palavras, a AD
é uma teoria da leitura, da interpretação. Ela concebe o texto como um modo de
estruturação específico, que deve ser estudado em relação às condições nas quais é
produzido. O texto somado às suas condições de produção constitui o discurso.
Assim, a AD trabalha com o sentido produzido pelo discurso e não com o conteúdo
do texto. Para tanto, explora a relação entre ideologia, história e linguagem. Entende
ideologia como o posicionamento do sujeito ao se filiar a um discurso; história como o
contexto histórico e social, e linguagem como a materialidade verbal. Podemos exem-
plificar esse funcionamento com a frase de São Francisco de Assis, “É dando que se
recebe”, em que a mesma materialidade linguística pode assumir diferentes efeitos
de sentido, conforme se filie a condições sócio-históricas e ideológicas relacionadas à
religião ou à política.
Em sua configuração interdisciplinar, a AD adota, do Estruturalismo, o primado do
“funcionamento linguístico”, embora discorde da exclusão do estudo de elementos
exteriores ao “sistema”. Também entende que o significado não se encontra apenas
nas palavras, como postulava saussure.
A AD possui um caráter não subjetivista, pois não considera que o sujeito tem
controle sobre tudo o que diz. Ao contrário, ele sofre o efeito do inconsciente e do
pré-consciente, o que pode ser mostrado pelos atos falhos em que “deixa escapar”

53
A Ciência Linguística: uma palavra diferente da que pretendia. É o caso do locutor radiofônico que, inadver-
conceitos básicos
tidamente, durante uma inauguração, referiu-se a Dilma Rousseff, chefe da Casa Civil
do governo Lula e indicada por ele para disputar sua sucessão, como “candidata”, em
um momento em que o mais adequado seria ela ocupar seu lugar de “ministra”.
De acordo com essa teoria, os indivíduos só se transformam em sujeitos dentro
das formações discursivas que determinam “o que pode e deve ser dito”. Dessa forma,
para a AD, o sujeito não é centrado, consciente e intencional, como o considerava
Benveniste.
Esse conceito da AD reforça a tese de que não há um sentido a priori, mas, ao
contrário, o sentido das palavras pode ser modificado de acordo com a forma-sujeito
a partir da qual são pronunciadas. Se o sentido não depende apenas do significado
isolado das palavras ditas ou escritas, é porque a língua não é um código transparente
ou neutro.
Outra importante noção da AD é a de interdiscurso (memória discursiva), elemen-
to que se refere ao chamado “já dito”, estabelecendo a relação do discurso com ou-
tros, ditos em outro lugar, independentemente, e que retornam ao fio intradiscursivo.
Pêcheux (1999, p. 52) refere-se a ele como aquilo que, ante um texto, “vem restabe-
lecer os ‘implícitos’ de que sua leitura necessita”. Por exemplo, o slogan de uma pre-
feitura paulista “primeiro os que mais precisam” relaciona-se com o discurso religioso
presente em orações (“levai as almas todas para o céu, e atendei, principalmente,
aquelas que mais precisarem”). Remete também ao versículo bíblico “É mais fácil um
camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus” e
à “opção preferencial pelos pobres”, tomada pela Igreja Católica, em Puebla, México.
A evocação desses e de outros eventos discursivos entra em jogo na leitura do slogan.
Assim, de acordo com Pêcheux (1990), os sentidos não brotam da língua, não es-
tão nas palavras, mas se estabelecem no relacionamento, na superposição, no diálogo
entre palavras, expressões, proposições.
A especialidade da AD, segundo Possenti (2004), é o campo do sentido. As regras
fonológicas, morfológicas e sintáticas, próprias da língua (e objeto da Linguística), são
postas em funcionamento, de diferentes formas, conforme o processo discursivo em
questão. É preciso levar em conta a materialidade total com que os ouvintes operam, e
não apenas os elementos distintivos ou pertinentes. De acordo com o autor,

A AD fala da língua somente na medida em que as concepções da lingüística


afetam o campo do sentido [...] Assim, não é verdade que a ad seja anti-lin-
guística. Pelo contrário: não há ad sem lingüística. Ela apenas coloca a língua
em seu lugar, ou seja, reconhece sua especificidade, mas lhe limita o domínio
(POSSENTI, 2004, p. 360-361).

54
Maingueneau (1990), ao discutir os fundamentos da escola francesa de Análise do Panorama dos
estudos linguísticos
Discurso, afirma que a AD não pode continuar agindo, “como se nada tivesse mudado
nas ciências humanas”, desde o final da década de 60. O autor considera que a teoria se
encontra em uma encruzilhada na qual pode tomar três caminhos: não se questionar e
continuar trabalhando como se nada houvesse mudado; manter sua inscrição na con-
juntura teórica de aliança entre marxismo e psicanálise; repensar seus fundamentos.
O autor considera a primeira atitude suicida, pois poderia levar a AD a se tornar
“um simples método de investigação empírica”, perdendo “toda sua razão de ser”.
A segunda atitude é considerada irrealista, porque significaria ignorar as mudanças
ocorridas nas ciências humanas, após 1969, ano de seu registro de nascimento. A ter-
ceira atitude é vista como mais pertinente, por definir tarefas a cumprir.
Entretanto, o autor discorda da mera modernização das referências teóricas da Lin-
guística, do marxismo e da psicanálise, pois isso significaria pressupor que o “núcleo
primitivo da análise do discurso permaneça válido e que é somente sua ‘vestimenta’
que envelheceu” (p. 73). E complementa:

O próprio fato de que a análise do discurso tenha sobrevivido ao apagamento


da conjuntura que a tornou possível, o fato de que ela tenha podido tocar
públicos estranhos ao marxismo e à psicanálise parece indicar que isso que por
longo tempo tomamos como uma ortodoxia talvez não o seja (MAINGUENEAU,
1990, p. 73).

Essa posição é confirmada continuamente na obra do autor, que vem contribuindo


para dar à teoria nuances diversas das estabelecidas por Pêcheux.
Ao encerrar este panorama dos estudos linguísticos, desejamos enfatizar, com Ma-
chado (1996, p. XI), no prefácio à obra de Foucault, que toda teoria é “provisória,
acidental, dependente de um estado de desenvolvimento da pesquisa, que aceita seus
limites, seu inacabado, sua parcialidade”. Os conceitos formulados, em um primeiro
momento, iluminam os dados, organizando-os e estabelecendo relações entre eles.
Contudo, em seguida, esses conceitos são revistos, alterados ou substituídos, a partir
de uma nova focalização, uma vez que, conforme Saussure (1989, p. 15), “É o ponto
de vista que cria o objeto”.

55
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conceitos básicos
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Proposta de Atividade

1) Dê um exemplo de uma teoria ou de um conceito que, após algum tempo no ‘esquecimen-


to’, voltou à tona como fundamento/embasamento para outra teoria.
2) Dê um exemplo de uma teoria ou conceito que surgiu como forma de oposição a outra
teoria vigente.
3) Dê um exemplo de uma teoria ou conceito que teve início muito tempo atrás, mas que
continua vigente até os dias atuais.

59
A Ciência Linguística:
conceitos básicos

Anotações

60
3 A visão saussuriana
de linguagem

Cristiane Carneiro Capristano / Dulce Elena Coelho Barros

Considerações iniciais
Neste capítulo, faremos uma discussão mais pormenorizada das contribuições de
Saussure (1971). Nosso propósito é o de dar destaque para alguns dos principais con-
ceitos delineados por esse estudioso. Para tanto, inicialmente, retomaremos de forma
concisa as distinções entre linguagem, língua e fala – já tematizadas em capítulo an-
terior. Proporemos, em seguida, uma discussão a respeito da ideia de valor linguístico
– cerne do arcabouço teórico desenvolvido por Saussure. Em seguida, verificaremos o
modo como, no projeto saussuriano, são definidos os chamados signos linguísticos e
arquitetadas as relações entre eles – relações nomeadas, nesse quadro teórico, como
associativas e sintagmáticas. Examinaremos, também, em momento subsequente, a
oposição diacronia/sincronia e, por fim, serão apresentadas algumas reflexões sobre
os efeitos das escolhas e das exclusões feitas por Saussure para a teoria linguística
contemporânea.

A langue como o objeto de estudos da Linguística


Em capítulo anterior, destacamos que Saussure, em seu desejo de dar aos estudos
sobre a linguagem humana um caráter científico, deparou-se com a irredutibilidade
do fenômeno linguístico à apreensão científica. Em outras palavras, de seu ponto de
observação, a heterogeneidade que caracteriza a linguagem humana impedia que ela
fosse tomada em sua totalidade como objeto de estudo de uma ciência. A alternativa
que restava era a de retirar da linguagem aquilo que seria passível de uma definição au-
tônoma ou, ainda, aquilo que poderia constituir-se como um objeto bem definido no
conjunto heteróclito dos fatos da linguagem. É principalmente por essa razão que, no
projeto saussuriano, a língua (langue) é alçada a objeto de estudo da Linguística. Ele-
ger a língua como objeto de estudo teve como consequência, como vimos, a exclusão
de certos fatos que dão à linguagem humana seu caráter complexo e multifacetado,
como a fala, por exemplo.

61
A Ciência Linguística: No capítulo precedente, procuramos destacar também que a langue, do ponto de
conceitos básicos
vista saussuriano, constitui um sistema de valores cujos elementos só podem ser de-
terminados em razão de suas relações com outros elementos do mesmo sistema. Essa
característica atribuída à língua foi fundamental, como vimos, para o estabelecimento
definitivo da Linguística como ciência. O que significa dizer, entretanto, que a língua
constitui um sistema de valores? Essa é a temática que norteia as reflexões na seção
que segue.

A noção de valor linguístico


A noção de valor é apresentada por Ferdinand de Saussure a partir da considera-
ção da existência de uma relação estreita entre língua e pensamento. Para ele, “não
existem idéias preestabelecidas, e nada é distinto antes do aparecimento da língua”
(SAUSSURE, 1971, p. 130). Além disso, na sua proposta, o papel da língua frente ao
pensamento “não é criar um meio fônico material para expressão da idéia, mas servir
de intermediário entre o pensamento e o som” (SAUSSURE, 1971, p. 131). Nesse sen-
tido, a língua (langue), vínculo de ligação entre produção sonora e sua contraparte
significativa, estaria a serviço da organização do pensamento.
No entanto, parece ser ilusório pensar, tal como afirma Saussure, que um conjunto
de unidades sonoras, ou fônicas, possa ser definido como a união simples e direta de
certo som a certo conceito. A língua, para ele, não se reduz a uma lista de termos que
corresponde a outras tantas coisas que se nos apresentam no mundo da vida. Isso o
leva a crer que, para haver língua, e, por conseguinte, comunicação linguística, não
basta dispor de um conglomerado de sons produzidos – ou articulados pelo aparelho
fonador humano – e de uma massa de pensamentos, ideias, desejos, emoções e/ou
sentimentos que deveriam ser externados por meio de formas linguísticas. Seguindo
os passos do mestre genebrino, é preciso considerar o fato de que esse material de
natureza fônica deve atualizar-se de modo a revestir-se de um valor semântico. A sig-
nificação é obtida, portanto, pelo trabalho formal de organização das unidades que se
articulam no plano de expressão (substância sonora) da língua.
A expressão, por sua vez, não se constrói diretamente pela ligação do pensamento
aos sons da fala, mas é mediada pela língua, ou, ainda, pelo sistema de signos. Isso
equivale a dizer que as unidades fônicas, bem como a massa amorfa de nossos pensa-
mentos, tomam “forma” no interior do sistema em que se atualizam. Nesse contexto,
as formas linguísticas, devidamente estruturadas ou organizadas em um sistema, pas-
sam a ser as grandes responsáveis pela consolidação do valor linguístico.
Para Saussure, a língua (langue) é forma e não substância. Nesse sentido, o valor
resulta sempre de oposições funcionais (relações associativas e relações sintagmáticas).

62
Sendo assim, considerando a variabilidade da língua, não importa se um falante da A visão saussuriana de
linguagem
língua portuguesa pronuncie a palavra “cofre”, por exemplo, fazendo uso, respecti-
vamente, de uma vogal média, anterior /e/ ou de uma vogal alta, anterior /i/, tal como
em [‘kɔfɾe] ou [‘kɔfɾi]. Nessas palavras (signos linguísticos), a oposição /e/ versus /i/
perde o seu valor distintivo, ou seja, sua pertinência linguística, e passa a caracterizar
tão somente diferentes falares regionais, diferentemente da sua ocorrência em “ele lê”
e “eu li”. Neste último exemplo, como se pode ver, as formas linguísticas distintas /e/
e /i/ são capazes de fornecer ao conjunto das unidades fônicas, dispostas no plano de
expressão (significantes), conceitos ou ideias distintas, ou seja, elas afetam também o
plano de conteúdo do sistema linguístico (significado).
Quando Saussure traz à baila, portanto, a questão do valor na língua, e assegura
que a língua é forma e não substância, ele está nos querendo dizer que as diferentes
substâncias fônicas de que dispomos para nos referirmos a um único conceito não
afetam a comunicação pelo fato da língua (langue) ser essência e não aparência.
Valor é, na verdade, o sentido adquirido pelas formas da língua relativamente às
posições das unidades no interior do sistema linguístico. Dessa forma, as unidades
da língua, ou formas linguísticas, se definem pela posição que ocupam na rede de
relações que constitui o sistema total da língua e, não propriamente, na substância ou
materialidade acústico-articulatória. Isso significa dizer que

as operações necessárias para determinar uma unidade pressupõem que ela se


relaciona com outras e possa ser substituída no interior do conjunto. Isso sig-
nifica que os elementos não têm existência por si mesmos, independentemente
de suas relações com o todo (BORBA, 1998, p. 31).

Subjaz, portanto, ao postulado de que os signos linguísticos estão em relação entre


si no sistema da língua, a proposta de que essa relação é diferencial e negativa, pois um
signo só tem valor na medida em que não é outro signo qualquer.

Em todos esses casos, pois, surpreendemos, em lugar de idéias dadas de an-


temão, valores que emanam do sistema. Quando se diz que os valores corres-
pondem a conceitos, subentende-se que são puramente diferenciais, definidos
não positivamente por seu conteúdo, mas negativamente por suas relações com
outros termos do sistema. Sua característica mais exata é ser o que os outros
não são (SAUSSURE, 1971, p. 136, grifos do autor).

Ao proclamar que é nas relações que se estabelecem no sistema que os signos


adquirem valor, Saussure aproveita a metáfora do jogo de xadrez, dizendo que cada
peça se define, adquire valor, na relação que tem com outras peças do jogo, não im-
portando o material com o qual sejam construídas, a saber, madeira, osso ou pedra.

63
A Ciência Linguística: Assim como as peças do jogo de xadrez, que adquirem valor umas frente às outras, o
conceitos básicos
signo linguístico também se define negativamente, pela oposição com outros signos.
Vê-se, portanto, que a noção de valor não se constrói alheia à noção de sistema –
também enunciada pelo mestre da ciência linguística moderna, e, como sabemos, tão
fecunda à visão estruturalista da linguagem. Além disso, a noção de valor, bem como
outras noções a ela relacionadas, tais como a oposição entre forma e substância, da
qual tratamos acima, as relações associativas e sintagmáticas, a distinção significado
e significante, além da própria noção de arbitrariedade do significante com relação
ao significado, foram importantes, como veremos nas seções seguintes, para a conso-
lidação dos estudos da linguagem como ciência. Comecemos com a noção de signo
linguístico e a distinção significante/significado.

A natureza do signo linguístico


O universo biossocial humano é permeado por um conjunto de elementos de natu-
reza simbólica. Esses elementos costumam povoar de significados a vida dos homens.
Estamos falando aqui dos diferentes tipos de signos, naturais ou não, que estão na
base dos processos significativos que permeiam as práticas sociais humanas.
Podemos dizer que a significação natural decorre das relações causais em curso
na natureza. Assim, quando vemos nuvens negras no céu, compreendemos que pode
chover. Podemos, ainda, estar caminhando ao longo de uma avenida movimentada
e depararmo-nos com uma motocicleta tombada e uma pessoa estendida no chão,
concluímos, então, que houve um acidente de trânsito. É possível perceber que tais
acontecimentos se convertem em significados por causa da nossa experiência. A re-
gularidade dos fatos vivenciados permite-nos que os interpretemos como se fossem
comunicação.
Contrariamente à significação natural, a chamada significação não natural sustenta-
se no princípio da intencionalidade comunicativa e do acordo tácito entre indivíduos.
São esses princípios que nos levam a compreender, por exemplo, que um grupo de
jovens da raça branca, que passa a raspar a cabeça e autointitular-se “skin heads”, está
unido em torno do revivamento da ideologia nazista. A cabeça pelada dos integrantes
do grupo funciona explicitamente como meio de comunicação, pois se trata de algo
criado para esse fim.
Sendo assim, é possível assegurar que a base da significação, natural ou não, encon-

64
tra sustentação nos sistemas de signos destinados a transmitir mensagens1. Em geral, A visão saussuriana de
linguagem
costuma-se classificar os signos em três tipos: índice, ícone e símbolo.
O índice é o signo que mantém com o referente uma relação direta, existencial,
causal e real. Há, portanto, aí uma relação de contiguidade com a realidade exterior,
tal como na indicação da direção do vento por um catavento ou da fumaça que atesta
presença de fogo. O índice, como se vê, permite um raciocínio por inferência.
O ícone é o signo que mantém com o referente uma relação de semelhança. As
imagens que costumamos retratar por meio de fotografias, bem como a maquete de
um edifício em construção, servem de exemplos desse tipo de signo.
Diferentemente do índice e do ícone, o símbolo é aquele signo que designa seu
objeto independentemente das relações causais ou de semelhança com a realidade
denotada. É um signo arbitrário resultante de uma convenção social. Isso quer dizer
que o laço que se estabelece entre o referente e a coisa ou realidade referenciada é
imotivado. A título de exemplo, podemos citar a balança, a cruz e a toga que, em
nossa cultura ocidental, são interpretadas respectivamente como símbolos da justiça,
do cristianismo e da magistratura.
Seguindo esse raciocínio, podemos afirmar, então, que o signo linguístico, tal
como delineado por Saussure, constitui um tipo específico de símbolo, dado o caráter
convencional e arbitrário que o signo linguístico ganha no projeto saussuriano. Veja-
mos, agora, um pouco sobre como Saussure delineia essa entidade linguística.
Para tratar da natureza do signo linguístico, no Curso de Linguística Geral (do-
ravante CLG), Saussure faz, primeiramente, uma crítica à concepção segundo a qual
a língua seria uma nomenclatura – concepção que já era questionada, por exemplo,
em debates clássicos sobre a linguagem, tal como aquele que aparece nas reflexões de
Platão (em O Crátilo) sobre a natureza do vínculo entre palavras e coisas: se natural,
portanto, uma representação exata dos objetos do mundo e, nesse sentido, uma no-
menclatura; ou convencional, fruto do acordo coletivo2.

1 Os diferentes tipos de signos e a estruturação dos sistemas de signos costumam ser estudados
pela Semiótica. A Semiótica, também chamada de Semiologia, é entendida como uma ciência
mais geral dos signos, que se debruça sobre os sistemas de signos, quaisquer que eles sejam e
quaisquer que sejam as suas esferas de utilização. Essa ciência busca desenvolver uma teoria geral
dos modos de significar. O termo semiótica, na sua acepção moderna, foi primeiramente utilizado
por Charles Sanders Peirce. A Semiótica que ele visualizou desponta como uma verdadeira dou-
trina dos signos e se desenvolve à luz do projeto da Semiologia provinda de Ferdinand de Saussu-
re – que, por sua vez, teve como propósito estudar o funcionamento dos signos no seio da vida social.
2 Para uma apresentação e discussão sobre as idéias de Platão a respeito da convencionalidade
ou naturalidade da relação entre as palavras e as coisas, cf. o artigo de Mary Julia Martins Diet-
zsch Crátilo e a origem dos nomes, disponível em http://www.hottopos.com/rih12/maryj.pdf,
acesso em 24/9/2009.

65
A Ciência Linguística: A concepção de língua como nomenclatura, do ponto de vista saussuriano, seria
conceitos básicos
criticável, dentre outros fatos, porque suporia ideias preexistentes às palavras ou, ain-
da, às unidades da língua (SAUSSURE, 1971, p. 79). Segundo Ilari (2004), na concep-
ção tradicional de que a língua constituiria uma nomenclatura, ainda hoje bastante
difundida, as palavras nomeariam seres cuja existência precederia a própria língua
e cujas propriedades seriam determinadas independentemente dela: “é a concepção
que está presente no mito bíblico segundo o qual Adão teria dado nomes às coisas”
(ILARI, 2004, p. 62-63).
Para Saussure, contrariamente, o signo linguístico “une não uma coisa a uma pa-
lavra, mas um conceito a uma imagem acústica” (SAUSSURE, 1971, p. 80), respectiva-
mente, para usar a terminologia saussuriana, une um significado a um significante, tal
como demonstra o esquema abaixo, adaptado de Saussure (1971, p. 80):

conceito
(significado)

Signo Linguístico =
imagem acústica
(significante)

Esse esquema deve ser compreendido considerando que:


a) a imagem acústica (significante) não se refere ao som material, fato essencial-
mente físico, mas “a impressão [...] psíquica desse som, a representação que
dele nos dá o testemunho de nossos sentidos” (SAUSSURE, 1971, p. 80, grifos
nosso);
b) não devemos supor que o significado dependa da livre escolha do falante, uma
vez que “[...] não está ao alcance do indivíduo trocar coisa alguma num signo,
uma vez esteja ele estabelecido num grupo lingüístico” (SAUSSURE, 1971, p. 80).
c) os elementos ou partes que compõem o signo linguístico são ambos psíquicos
e estariam unidos, no nosso cérebro, por um vínculo de associação (SAUSSURE,
1971, p. 79-80);

66
Além dessas características, Saussure atribui outras como fundamentais ao signos- A visão saussuriana de
linguagem
linguístico: (a) sua arbitrariedade; (b) sua linearidade; (c) sua organização sistêmica.
Tratemos, de início, da primeira, justamente por seu entrelaçamento com a crítica
que vimos apresentando quanto à ideia da língua como uma nomenclatura. Saussure
(1971) afirma que o laço que une o significante ao significado é arbitrário e, por
extensão, o próprio signo linguístico seria arbitrário. A palavra arbitrário é usada para
enfatizar que “o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significa-
do, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade” (SAUSSURE, 1971, p. 83,
grifos nosso). Vale, nesse momento, lembrar o exemplo que ele dá para sustentar essa
afirmação:

Assim, a idéia de ‘mar’ não está ligada por relação alguma interior à sequência
de sons m-a-r que lhe serve de significante: poderia ser representada igualmente
bem por outra sequência, não importa qual; como prova, temos as diferenças
entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes (SAUSSURE, 1971,
p. 81).

Segundo Ilari (2004), essa arbitrariedade radical do signo linguístico, tal como
proposta por Saussure, resulta da concepção do signo linguístico como uma unidade
de natureza intrinsecamente opositiva: não existiria, para Saussure, nada que pudesse
impedir duas línguas de segmentar uma/a realidade de modos diferentes, aplicando
conjuntos diferentes de signos a uma mesma realidade objetiva. Vejamos os dois exem-
plos abaixo, apresentados por Ilari (2004, p. 66), que ilustram melhor essa afirmação
– ou seja, indicam a possibilidade de uma “mesma” realidade ser “recortada” de forma
diferente:

Exemplo 1

“carne que vimos na seção de resfriados no supermercado”


Português Inglês
Beef
Carne de boi
Notar que, em inglês (por um acidente
(ou carne de vaca dependendo da região) histórico que remonta à conquista da In-
glaterra pelos normandos), o nome dos
Notar que, em português, o nome da carne animais, ox (boi), cow (vaca) diferem de
(bovina, de boi) é o mesmo que o de ani- beef que não se aplica para os animais,
mal. mas serve para indicar de que animal a
carne procede.

67
A Ciência Linguística: Exemplo 2
conceitos básicos

“curso de água natural, mais ou menos torrencial, que corre de uma parte mais
elevada para uma mais baixa e que deságua em outro rio, no mar ou num lago”
Português Francês
Fleuve (rio que deságua no mar)
Rio
rivière (rio que deságua em outro rio)

Pensemos, também, nas diferenças de categorização das cores entre os diferentes


idiomas historicamente constituídos (francês, inglês, português etc.). Segundo Perini
(2001), as diferenças entre as cores não são nítidas e os limites entre elas são sempre
relativamente arbitrários. Muitas línguas não distinguem, por exemplo, azul de verde,
como o latim, língua na qual essas cores podem ser designadas com o termo caeru-
leus. Também em russo, há duas palavras que se traduzem, ambas, como azul em
português: goluboy (azul bem claro, como o do céu) e sinniy (azul mais escuro). Essa
disparidade entre o português e o russo, por exemplo, não significa que os falantes
do português não percebem que existem “duas cores” e/ou “dois matizes de cores”.
Obviamente, somos capazes de perceber esses dois matizes de cores (ou essas duas
cores). Ocorre, entretanto, que cada um dos idiomas (russo e português), que consti-
tuem sistemas linguísticos particulares, faz seu recorte particular do mundo.
Os exemplos recolhidos de Ilari (2004) e Perini (2001) podem ser interpretados
como evidências para sustentar a ideia de arbitrariedade radical dos signos linguísti-
cos. O leitor ainda não convencido dessa arbitrariedade poderia usar a existência de
onomatopeias nas línguas como contraevidência, já que, nas onomatopeias, parece
intervir algum grau de motivação na escolha dos significantes linguísticos.
Contudo, já no CLG aparecem afirmações quanto a essa possível objeção. Para
Saussure, as onomatopeias – assim como as exclamações como ai! – não constituem
argumentos suficientes para pensar que os signos linguísticos nem sempre seriam ar-
bitrários. Saussure destaca que elas não passariam de imitações aproximativas e, sobre-
tudo, convencionadas dos elementos do mundo a serem referenciados. Novamente,
não seria admissível supor um vínculo entre o signo linguístico (a onomatopeia) e a
“realidade” recortada por ele, uma vez que a sonoridade das onomatopeias seria ape-
nas sugestiva do significado. O argumento é o de que, caso a escolha do signo fosse
motivada, as onomatopeias deveriam ser as mesmas em todas as línguas, já que fariam
referência a uma mesma realidade: o som a ser representado. Esse pressuposto não re-
siste ao confronto com exemplos de onomatopeias em algumas línguas, uma vez que

68
existem relevantes diferenças nos significantes que representam as unidades sonoras3. A visão saussuriana de
linguagem
Convém destacar que Saussure prevê, ainda, a existência de uma distinção entre
uma arbitrariedade absoluta e uma arbitrariedade relativa. Nesse raciocínio, tería-
mos signos totalmente arbitrários e outros em que atuaria um fenômeno que permiti-
ria reconhecer graus de arbitrariedade, sem suprimi-la totalmente. Alguns numerais e
palavras derivadas e compostas servem de exemplo para essa “arbitrariedade relativa”.
Observe a diferença existente entre as palavras roupa e guarda-roupa. A primeira é
totalmente imotivada e arbitrária; a segunda, por sua vez, não é imotivada e arbitrária
no mesmo grau. O signo linguístico guarda-roupa parece evocar os termos dos quais
o significante se compõe (guardar + roupa), assim, quando reconhecemos os signifi-
cados das partes que constituem esse signo, podemos compreender sua significação
como um todo. O mesmo fato pode ser observado em outras palavras compostas tais
como beija-flor, em palavras derivadas e em numerais (cf. a oposição entre dezessete/
dez e vaca/vaqueiro).
Consideramos ser possível observar, por meio dos exemplos apresentados e das
reflexões esboçadas nos parágrafos anteriores, que o significante e o significado, na
visão saussuriana, não estão comprometidos com nenhum fator externo à língua, mas,
apenas, “ao fato de que estão em oposição a todos os demais significados e significan-
tes previstos pela língua” (ILARI, 2004, p. 63). Ou seja, para compreendermos a função
e o funcionamento dos signos linguísticos que compõem a língua, é preciso opô-los e
relacioná-los a todos os demais signos dessa mesma língua.
Com essa afirmação, podemos retornar às características fundamentais dos signos
linguísticos que vimos elencando. Tratemos, então, da linearidade. Afirma Saussure
que os significantes, por terem natureza essencialmente auditiva, desenvolvem-se uni-
camente no tempo e, nesse sentido, detém características que emprestam do tempo:
representam, então, uma extensão que apenas pode ser mensurada em uma direção.
Assim, “os significantes acústicos dispõem apenas da linha do tempo; seus elementos
se apresentam um após outro; formam uma cadeia” (SAUSSURE, 1971, p. 84). Como
vimos, o valor de um significante é, também, aferido sempre pela sua relação de opo-
sição com outro significante – retornaremos a essa proposição mais adiante.
Disso decorre a última característica que, a nosso ver, assinala a natureza do signo
linguístico para Saussure: a organização sistêmica a que eles estão sujeitos. Dada a
importância dessa característica, a abordaremos, com maior ênfase, na seção seguinte.

3 Cf. exemplos no site http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_onomatop%C3%A9ias_em_


diversas_l%C3%ADnguas, acesso em 22/9/2009.

69
A Ciência Linguística: A língua como sistema de relações entre signos linguísticos
conceitos básicos
Como já observamos, para Saussure, as relações entre significante e significado
se dão no interior de um sistema: a língua. De seu ponto de vista, seria “uma grande
ilusão considerar um termo simplesmente como a união de certo som com um certo
conceito” (SAUSSURE, 1971, p. 132, grifos nosso). Se o definíssemos assim, estaríamos
isolando o signo linguístico do sistema do qual ele emerge e que o constitui. Seria,
no projeto saussuriano, o mesmo que supor ser plausível “começar pelos termos e
construir o sistema fazendo a soma deles, quando, pelo contrário, cumpre partir da
totalidade solidária para obter, por análise, os elementos que encerra” (SAUSSURE,
1971, p. 132).
Assim, para Saussure, quer consideremos o significado, quer consideremos o signi-
ficante, a língua não comporta nem ideias nem sons preexistentes ao sistema linguís-
tico, mas apenas diferenças que resultam de uma organização sistêmica. Essas diferen-
ças emergem de dois tipos de relações entre os signos linguísticos, chamadas por ele
de relações associativas e relações sintagmáticas – relações que, esquematicamente,
são apresentadas abaixo:

O menino caminhou pela Calçada


Este guri contornou A Trilha
Relações Aquele piá andou em direção à estrada
associativas

Relações sintagmáticas

No âmbito das relações associativas, a seleção de um signo linguístico é feita den-


tre aqueles signos linguísticos que guardam alguma característica em comum, ou, de
forma mais específica, que possam ser associados por algum vínculo (de significante,
de significado ou de ambos). No esquema acima, intuitivamente sabemos que os sig-
nos o, este e aquele possuem um vínculo que não existe entre esses signos e outros
como calçada, trilha e estrada. O mesmo acontece com os signos menino, guri e piá
quando pensados em oposição a signos como pela, a e em direção à.
No relacionamento associativo, está, pois, em jogo a decisão sobre a escolha de um
signo linguístico ao invés de outros disponíveis (na memória), que podem ocupar um
mesmo lugar na cadeia sintagmática – fato que pode ser observado pela concorrência,
por exemplo, entre os signos o, este, aquele. O relacionamento associativo é, também,
um relacionamento in absentia, uma vez que os elementos não estão numa relação

70
justaposta, mas numa relação mnemônica virtual. A visão saussuriana de
linguagem
Ademais, para Saussure, os elementos de uma família associativa “não se apresen-
tam nem em um número definido, nem numa ordem determinada” (SAUSSURE, 1971,
p. 146). Um dos exemplos que usa para ilustrar essa afirmação é a associação entre
desej-oso, calor-oso, medr-oso, etc. Nesse exemplo, é impossível precisar o número
e a ordem de elementos que poderão compor a rede de associações. Nesse sentido,
um elemento linguístico qualquer funciona como o centro de uma constelação – para
usar as palavras de Saussure; é, assim, o ponto para o qual convergirão outros elemen-
tos e cuja soma é, em geral, indefinível. Dizemos “em geral” justamente porque Saus-
sure considera a possibilidade de que o número de elementos de uma rede associativa
possa ser previamente determinado. É o caso, por exemplo, das possibilidades que se
abrem se associarmos as diferentes formas de conjugação de um verbo como cantar
(canto, canta, cantamos, cantaremos, cantei, cantarei, etc.): elas são várias, mas não
infinitas.
Diferentemente, no âmbito das relações sintagmáticas, as relações se dão por
combinação. Assim, no esquema anteriormente apresentado, intuitivamente sabemos
que os signos o, este e aquele podem ser combinados com menino, guri e piá, mas,
certamente, não com caminhou, contornou e andou. Além disso, é justamente a exis-
tência de relações sintagmáticas que impede que tenhamos uma cadeia organizada
como * estrada piá aquele andou direção à em.
No relacionamento sintagmático, está, pois, em jogo a posição ocupada por um sig-
no linguístico no interior de uma cadeia: nesse caso, o valor de um signo é dado pela
sua relação com signos precedentes e subsequentes. Para Saussure, o relacionamento
sintagmático está fundado no fato de os elementos linguísticos estabelecerem entre
si relações baseadas no caráter linear da língua, o que exclui a possibilidade de se
pronunciar dois elementos ao mesmo tempo. Dessa forma, as relações sintagmáticas
são relações in praesentia “repousa[m] em dois ou mais termos de uma série efetiva”
(SAUSSURE, 1971, p. 143). Nesse tipo de relação, os signos linguísticos estão apoiados
em uma extensão (ou sintagma) que, por sua vez, é constituída por duas ou mais
unidades sucessivas.
A frase é, para Saussure, o tipo por excelência de sintagma. Entretanto, também
são possíveis outras formas de relação baseadas na extensão, como a relação entre
segmentos fônicos, por exemplo, no âmbito da sílaba ([‘k/a.z/ə] = casa), ou entre
morfemas, no âmbito da palavra (in-feliz).
Saussure adverte que, no relacionamento sintagmático, em especial quando pen-
samos na dimensão da frase, é muito difícil estabelecer um limite categórico “entre o
fato de língua, testemunho do uso coletivo, e o fato de fala que depende da liberdade

71
A Ciência Linguística: individual” (SAUSSURE, 1971, p. 145). Para ele, num número significativo de casos “é
conceitos básicos
difícil classificar uma combinação de unidades, porque ambos os fatores concorreram
para produzi-la e em proporções impossíveis de determinar” (SAUSSURE, 1971, p.
145).
Mesmo com essa dificuldade de estabelecer limites precisos entre o que seria da
fala – portanto, da alçada do indivíduo, que poderia livremente escolher as combi-
nações – e o que seria propriamente da língua, Saussure considera que tanto as re-
lações associativas quanto as relações sintagmáticas estão no domínio da língua; são,
portanto, os modos pelos quais os signos linguísticos se relacionam. Na concepção
saussuriana, a fala seria apenas a atualização desse sistema de signos e, portanto,
desses modos de relação.
Nessa perspectiva, as relações associativas e sintagmáticas podem, então, ser obser-
vadas em enunciados concretos produzidos pelos diferentes indivíduos nos momen-
tos em que colocam a língua em uso. Com o fito de tornar mais clara a distinção entre
relações associativas e sintagmáticas e observar o funcionamento dos signos linguísti-
cos – sua natureza, portanto – no sistema da língua, vejamos alguns exemplos de cada
um desses tipos de relação, agora a partir de enunciados concretos falados e escritos.
Comecemos pelas relações associativas.

Relações associativas
Conforme adiantamos, os signos linguísticos estão unidos por um vínculo de as-
sociação. Para Saussure (1971), os signos linguísticos associam-se, na memória, por
similaridades tanto de seus significantes quanto de seus significados (além de similari-
dades baseadas em ambos os aspectos do signo linguístico). Assim, fatos de natureza
semântica, sintática, fonológica, dentre outras, ou, ainda, uma reunião desses fatos
podem justificar/determinar as escolhas dos falantes/escreventes. O exemplo a seguir
permitir entender melhor essa organização. Ele foi recolhido de Nascimento (2005, p.
145). Nele, um sujeito hesita na escolha de um signo linguístico, especificamente, a
escolha de um item lexical para designar uma localização – na transcrição abaixo, L e J
são dois interlocutores diferentes, os sinais (+ e ++) e (::) indicam, respectivamen-
te, pausas e alongamentos:

Exemplo 3

L. a T. é mineira e o senhor?
J. sou de Colina
L. Colina?

72
J. São Paulo A visão saussuriana de
linguagem
L. fica perto da onde?
J. m::ais perto de:: Barretos ++ Bebedouro
L Ah:: a terra da laranja
J a terra + da CUTRALE

Notar que, nesse exemplo, na sexta linha, o falante hesita na escolha de um signo
linguístico dentro de uma rede associativa: cidades do interior de São Paulo que ficam
perto de Colina – dentre as quais poderíamos citar, não exaustivamente, as cidades de
Paraíso, Cajobi, Jaborandi, Olímpia, Monte Azul Paulista, Morro Agudo, Pitangueiras,
Viradouro, Barretos e Bebedouro. O falante seleciona, dessa rede (não completa) as ci-
dades que aparentemente são mais conhecidas: Barretos e Bebedouro. Além disso, sua
escolha parece ser guiada também pela proximidade entre os significantes linguísticos:
o nome de ambas as cidades tem o mesmo som inicial, representado, graficamente,
pela letra B.
Vejamos outro exemplo: a transcrição de uma atividade enunciativa entre uma te-
rapeuta/investigadora (identificada, na transcrição abaixo, como Iec) e um sujeito/pa-
ciente (identificado, na transcrição, como SR). O sujeito/paciente, segundo afirmação
de Oliveira (2009), apresenta um comprometimento importante no funcionamento da
linguagem que deriva da retirada de um tumor na região cerebral.
Conforme informações de Oliveira (2009), a transcrição dos dados de fala desse
sujeito foi feita segundo as normas do Banco de Dados em Neurolinguística (BDN)4.
Tanto a transcrição quanto a análise que seguem foram recolhidas e adaptadas do tra-
balho de Oliveira (2009).

Exemplo 4
Essa atividade enunciativa foi extraída de uma sessão individual realizada em
agosto de 2003. SR conta que, na sessão em grupo ocorrida no dia anterior, prometeu
que numa próxima reunião iria tocar violão para o grupo.

4 Banco organizado no interior do Projeto Integrado em Neurolinguística da Unicamp, coordena-


do pela Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry.

73
A Ciência Linguística:
conceitos básicos Observações sobre as condições de
Sigla do produção do enunciado
Nº Transcrição
Locutor
Verbal não-verbal

INÍCIO DO RECORTE

1 SR você não sabe o que aconteceu comigo

2 Iec o que?

eu fui mentir / tanta coisa falei ó pode gestos de tocar um


3 SR
deixar que eu jogo jogo jogo tan:: violão

imita o gesto que SR


4 Iec joga? o que que é isso aqui? tom interrogativo
fez de tocar o violão

e é tudo mentira / quer dizer eu joguei


5 SR
durante trinta anos da minha vida

6 Iec jogou? jogou o que futebol?

é futebol / não / futebol / jogamos não gestos de tocar


7 SR
não / quando você tá jogando violão

8 Iec não você to:: entoação suspensiva

Gesto de tocar
9 SR o meu amor sozinho cantando
violão

10 Iec óh é jogar ou tocar?

11 SR Tocar

12 Iec tocar / você tocava o que?

gestos com os
gostava de mil / mortes / quer dizer
13 SR dedos indicando
quantidade quantidades
quantidade/ muito

14 Iec Muitas músicas

FIM DO RECORTE

Dois fatos serão destacados desse diálogo, fatos que indicam exemplarmente o
funcionamento das relações associativas: (a) a troca entre mortes/quantidade; (b) a
“troca” entre jogar/tocar.
No fato em (a), observamos que SR seleciona um signo linguístico não previsto
para a cadeia sintagmática que constrói: mortes. Essa seleção equivocada parece de-
rivar da semelhança entre o significante pretendido e o significante produzido: mon-
tes X mortes. Ela coloca, pois, em evidência o quanto características do significante
linguístico estão em ação nos processos de associação. Oliveira (2009) destaca que,
nessa seleção não prevista, é possível notar que as duas palavras (a) têm o mesmo
número de sílabas; (b) tem acento no mesmo lugar – localizado na penúltima sílaba,
característico do padrão paroxítono; (c) são constituídas praticamente pelos mesmos
elementos sonoros – exceção seja feita ao elemento final da primeira sílaba de cada
uma das palavras [mortes] X [montes].

74
Já a correção realizada por SR no trecho quer dizer quantidade, quantidades pare- A visão saussuriana de
linguagem
ce mobilizar justamente a equivalência semântica, portanto, no plano do significado,
entre montes – palavra pretendida, substituída, no enunciado, por outra de significan-
te similar – e quantidades (plural), que, por sua vez, altera quantidade (singular) “já
que esta última, no singular, pode não ter parecido, para SR, como a mais adequada
para corrigir uma palavra emitida no plural (‘mortes’)” (OLIVEIRA, 2009, p. 18).
Algo semelhante ocorre com a troca entre jogar/tocar. Segundo Oliveira (2009),
a palavra jogo, selecionada por SR, está vinculada ao gesto de tocar violão. A autora
afirma que, nesse caso, há uma espécie de descompasso entre o que SR seleciona em
seu enunciado verbal e a seleção que realiza no plano gestual. Esse “descompasso”
parece ser percebido por Iec (linha 4), quando pergunta para SR joga? o que que é isso
aqui? e imita o gesto que SR fez de tocar o violão, possivelmente, na tentativa de que
ele refizesse a seleção da palavra jogo pela palavra toco. No entanto, mesmo quando
Iec chama a atenção de SR (linha 4), ele continua fazendo seleções no eixo associativo
que se relacionam com o verbo jogar: por exemplo, joguei (linha 5) e jogamos/jogan-
do (linha 7)5.
Convém notar que o funcionamento das relações associativas tal como explicitado
nos enunciados falados que elegemos para análise é semelhante ao que ocorre nos
inúmeros usos que fazemos da língua(gem) em nosso cotidiano. Essa afirmação é ver-
dadeira, também, para a relação entre signos linguísticos no eixo sintagmático, da qual
trataremos na seção seguinte.

Relações sintagmáticas
Conforme afirmamos anteriormente, para Saussure, os signos estabelecem entre si
relações baseadas também no caráter linear do significante: as chamadas relações sin-
tagmáticas. Para compreendermos melhor o funcionamento desse modo de relação,
vejamos o exemplo abaixo, um enunciado escrito produzido por uma criança no início
do chamado processo de aquisição da escrita6:

5 Segundo Oliveira (2009), outra hipótese deve ser considerada para explicar a seleção feita por
SR em seu enunciado verbal da palavra jogar para representar o gesto de tocar violão: o fato de
ele ter sido um falante fluente da língua inglesa. Ou seja, é possível que a escolha de SR tenha
sido mobilizada pela palavra play, que, em inglês, significa tanto jogar quanto tocar instrumen-
tos musicais.
6 Essa produção textual faz parte de um Banco de Dados de escrita infantil organizado pelo
Grupo de Pesquisa Estudos sobre a linguagem (CNPq), coordenado pelo Prof. Dr. Lourenço
Chacon Jurado Filho.

75
A Ciência Linguística: Exemplo 57
conceitos básicos

No enunciado acima, foram destacados algumas ocorrências em divergência com


a ortografia oficial. São elas: vredadera (verdadeira), setora (estória), so (os), depozi
(depois) – grafado quatro vezes –, sepiro (espirro), pahla (palha) e d pozi (depois).
Para entendermos a relação desses erros ortográficos com o que afirmamos ante-
riormente a respeito das relações sintagmáticas, convém lembrarmos que, em portu-
guês, temos diferentes possibilidades de organização dos segmentos fônicos em uma
estrutura silábica e, dentre elas, as seguintes: CVC, CVVC e VC – em que C correspon-
de a um segmento consonantal e V a um segmento vocálico. Essas estruturas podem

7 Leitura (ou tradução) possível para esse enunciado (as barras indicam a mudança de linha): Dia
27 de julho de 2001/Nome/Diário do Lobo a verdadeira/historia dos três porquinhos/era uma vez os
porquinhos e o lobo/o lobo estava fazendo bolo/estava faltando (fazendo) açúcar para fazer o bolo/para
sua (tua) vó/foi na casa do primeiro porquinho/depois na casa do segundo/depois foi no terceiro/e depois
deu um espirro e a casa de palha/despencou e o porquinho estava morto/depois foi na casa de madeira/
espirrou e a casa despencou e o porquinho/morreu e depois foi na casa de tijolo/espirrou e a casa não
caiu. Notar que, na leitura, suprimimos os erros de ortografia e fizemos suposições sobre alguns
trechos, com o intuito de indicar um arranjo possível para sequência textual.

76
ser exemplificadas respectivamente pelas sequências em destaque das palavras carta, A visão saussuriana de
linguagem
depois e escola.
Nos exemplos acima isolados, a dificuldade da criança reside justamente na orga-
nização de certos signos linguísticos (letras que, na escrita, representam segmentos
fônicos da fala) em uma cadeia significante (a sílaba, falada e/ou escrita). Ou seja, os
erros ortográficos que destacamos derivam de uma dificuldade da criança em orga-
nizar sintagmaticamente os signos linguísticos que compõem essas sílabas. Vejamos
novamente os exemplos, desta feita, com os trechos analisados negritados e distribu-
ídos em função da organização silábica prevista pela língua:

CVC VC CVVC
setora (estória)
depozi (depois) 4xs
Vredadera (verdadeira) so (os)
d pozi (depois)
sepiro (espirro)

Deixamos propositalmente de fora desse quadro a ocorrência pahla (palha), visto


que, embora essa ocorrência divergente também derive de um problema relacionado
ao eixo sintagmático, o que a mobiliza não é propriamente um fator ligado à relação
entre a sílaba “falada” e sua organização gráfica, mas, sim, exclusivamente, um pro-
blema relativo à organização gráfica da sílaba. Em palha, a sequência LH constitui um
dígrafo que representa um único segmento fônico: uma consoante lateral palatal [ʎ]
ou, num grande número de variedades do português brasileiro, uma lateral alveolar
palatalizada [lʲ] (SILVA, 2002, p. 40). Esse segmento fônico, em ambas as realizações,
de fato ocupa o lugar em que as letras que o representam foram alocadas, ou seja,
o lugar do dígrafo na organização gráfica da sílaba está de acordo como o previsto,
o problema reside na organização sequencial do dígrafo: ao invés de LH a criança
escreve HL.
Devemos observar que, nos exemplos apresentados, na maioria das vezes, a crian-
ça seleciona (no eixo associativo) adequadamente os signos linguísticos que com-
põem as sílabas, mas, no momento de distribuir sintagmaticamente a seleção que fez,
ela erra. É, pois, a ordenação dos signos no eixo sintagmático que está em questão.
Vejamos outro exemplo. Os diálogos abaixo se referem a dois trechos de uma con-
versa entre uma terapeuta (T) e uma paciente ( J), com diagnóstico fonoaudiológico
de distúrbio de linguagem. O exemplo 7 foi recolhido de Coelho (2009) e o exemplo
6 foi gentilmente cedido pela mesma autora:

77
A Ciência Linguística: Exemplo 6
conceitos básicos

T: olha ... presta atenção na tia ... é assim ... oh


J: quebrou
T: ele tá com frio Janaína ...oh
J: a de igreja quebrou a cadeira
T: quem quebrou a cadeira?

Exemplo 7

T: tem que por assim devagarinho ó ... vamos colocar ele devagarinho aqui pra
dormi ...canta uma música agora pra ele dormi
J: cê quer (cochão) ... deitar?
T: não ((risos da T.))
J: (( risos de J.))
T: vai colocar o colchão aí?

Nos trechos negritados, nota-se que a organização sintagmática está comprometi-


da. Tanto em a de igreja quebrou a cadeira quanto em cê quer (cochão) ... deitar? os
termos constituintes dessa cadeia sintagmática estão em uma ordem não prevista pelo
sistema da língua: a cadeira da igreja quebrou e cê quer deitar no colchão? É neces-
sário registrar, novamente, o fato de que, embora a organização sintagmática esteja
comprometida, o mesmo não ocorre com a seleção no eixo associativo.
Para finalizarmos nossas reflexões, resta destacar que a proposta de que os signos
linguísticos estão sujeitos a duas formas de relação (associativas e sintagmáticas), tal
como formulada em Saussure, foi, posteriormente, reorganizada e especificada por
outros teóricos – como Jakobson (1995), em artigos importantes nos quais tematiza
as chamadas relações metafóricas e metonímicas, nitidamente inspiradas na proposta
saussuriana.

A oposição diacronia x sincronia


Nos parágrafos antecedentes, vimos delineando vários conceitos importantes que
caracterizam o projeto saussuriano. Muito provavelmente, o leitor deve ter notado
que, nesse projeto, impera um raciocínio dicotômico. Em outras palavras, nele os con-
ceitos são construídos, em sua maioria, a partir de uma visão bipartida e opositiva: as-
sim, o conceito de língua emerge de sua diferença relativamente ao conceito de fala;
a noção de valor surge das discussões a respeito de forma e conteúdo; na proposição

78
da natureza do signo linguístico, o significante ganha suas características ao ser contra- A visão saussuriana de
linguagem
posto ao significado; e, na determinação dos modos de relacionamento dos signos no
sistema da língua, as relações associativas são definidas em contraste com as relações
sintagmáticas. Outra dicotomia importante que caracteriza e dá sustentação ao pro-
jeto saussuriano é a oposição entre sincronia e diacronia, da qual passamos a tratar.
De acordo com Saussure, a Linguística, para estabelecer-se como ciência, tinha
diante de si dois caminhos possíveis – ignorados, a seu ver, pelos pesquisadores da
sua época: (a) o estudo da língua abstraído de qualquer referência ao fator tempo,
estudo que ficaria, então, circunscrito ao sistema e suas relações internas; ou (b) o
estudo da língua em seu processo de transformação, observando-se suas mudanças
através do tempo.
Já havíamos mencionado, no Capítulo 1, que o modo como Saussure concebeu
e idealizou um objeto de estudos para a Linguística colaborou para a construção de
uma ciência sincrônica e imanente da linguagem ou, para repetir as palavras de Fa-
raco (2004, p. 28), a partir de sua proposta “[...] não houve mais razões para não se
construir uma ciência autônoma a tratar exclusivamente da linguagem [...] e sob o
pressuposto da separação estrita entre a perspectiva histórica e não-histórica”. Vimos,
também, que, em oposição ao ponto de vista histórico que prevalecia até então, Saus-
sure estabelece que um determinado estado da língua deveria ser isolado de suas mu-
danças através do tempo e examinado exclusivamente como um sistema homogêneo,
possuidor de uma ordem própria, completamente independente de sua exterioridade.
Assim, vê-se assinalado, no projeto saussuriano, o nítido privilégio dado à língua em
sua face relativamente estável – numa sincronia, portanto –, em detrimento a sua face
histórica ou diacrônica. Vejamos, sumariamente, os motivos pelos quais Saussure ele-
geu a perspectiva sincrônica para o estudo dos fatos relativos à língua.
Saussure considerava que existia uma relação antagônica entre o fato estático –
alvo de estudos sincrônicos – e o fato evolutivo – alvo de estudos diacrônicos – quan-
do pensados a partir da dinâmica da língua. No primeiro, teríamos uma relação entre
elementos simultâneos, coexistentes e que, juntos, formariam um sistema; no segun-
do, a relação seria de substituição: um elemento ocuparia o lugar de outro e, portanto,
não poderiam juntos constituir um sistema, seriam, na verdade, eventos históricos que
se sucederiam.
Em decorrência desse pressuposto, Saussure acreditava que, quando o linguista se
colocava na perspectiva diacrônica, estudando fatos da evolução da língua, seu objeto
de estudo não era propriamente a língua, mas, sim, a sequência de acontecimentos
que a modificam (SAUSSURE, 1971, p. 106). Vejamos um exemplo.
Como observamos no Capítulo 1, no sistema linguístico do português brasileiro,

79
A Ciência Linguística: o pronome de segunda pessoa singular tu tem sido majoritariamente substituído por
conceitos básicos
você. A forma você, por sua vez, tem sua origem numa outra, Vossa mercê, que, em
momentos anteriores da língua, era uma forma de tratamento que significava a vosso
favor e que era utilizada para diferenciar falantes em uma interlocução, a exemplo do
que ocorre atualmente com formas como vossa excelência. Com a difusão desta forma
de tratamento, Vossa Mercê se tornou bastante comum, deixando de ser usada para
diferenciar falantes e passando a designar apenas respeito à pessoa a qual o falante se
dirige. Hoje, podemos dizer que a forma linguística você está esvaziada de seu valor
lexical (como forma de tratamento) e adquiriu outro valor no sistema linguístico: de
pronome de tratamento passou a pronome de segunda pessoa. Ademais, convém no-
tar que essa forma sofreu, ao longo do tempo, diferentes transformações no plano do
significante (vossa mercê → vosmecê → vossuncê → suncê → você).
Do ponto de vista saussuriano, as transformações ocorridas na forma vossa mercê
que levaram ao nosso atual você – tanto as transformações no plano do significante,
quanto as transformações no plano do significado – não constituiriam uma realidade
para os falantes da língua. Em suas palavras, “a primeira coisa que surpreende quando
se estudam os fatos da língua é que, para o falante, a sucessão deles no tempo não exis-
te: ele se acha diante de um estado” (SAUSSURE, 1971, p. 97). Assim, para Saussure,
o linguista só poderá entrar na consciência dos falantes e apreender, compreender
e descrever o sistema que regula suas enunciações (a língua!) suprimindo o passado
(SAUSSURE, 1971, p. 97) uma vez que “a fala só opera sobre um estado da língua, e as
mudanças que ocorrem entre os estados não têm neste nenhum lugar” (SAUSSURE,
1971, p. 97). No nosso exemplo, o interesse recairia, então, no papel desempenhado
pela forma você no sistema linguístico atual do português e não no processo (históri-
co) que levou a sua constituição.
Os fatos diacrônicos seriam, então, exteriores ao sistema linguístico – seriam, também,
heterogêneos, particulares e isolados. Embora reconheça que a sincronia é condicionada
pela diacronia, ou seja, que os fatos do sistema derivam dos fatos históricos e que as
mudanças têm repercussão no sistema da língua, Saussure defende que o estudo da lin-
guagem humana deveria voltar-se para a face estática da língua, negligenciada pelos estu-
diosos da época, cujas investigações voltavam-se exclusivamente para a dimensão histórica
das línguas, ou, mais propriamente, para as mudanças que nelas podem ser observadas.
Para Saussure, os fatos diacrônicos são eminentemente condicionados pelos usos
que o falante faz da língua. É, pois, “na fala que se acha o germe de todas as modi-
ficações: cada uma delas é lançada, a princípio, por um certo número de indivíduos
antes de entrar em uso” (SAUSSURE, 1971, p. 115). Entretanto, nem todas as mudan-
ças observadas na fala têm o mesmo papel, uma vez que, “enquanto permanecem

80
individuais, não há porque levá-las em conta, pois o que estudamos é a língua; elas só A visão saussuriana de
linguagem
entram em nosso campo de observação no momento em que a coletividade as acolhe”
(SAUSSURE, 1971, p. 115), ou seja, no momento em que deixam de ser acidentes e
escolhas momentâneas de alguns falantes e passam a constituir fatos aceitos pela co-
munidade de falantes e se transformam em fatos da língua8.
Para finalizar, cumpre assinalar que, para Saussure, os estudos linguísticos deveriam
assumir o seguinte posicionamento – esquema adaptado de Saussure (1971, p. 115):

LINGUAGEM

LÍNGUA FALA

SINCRONIA DIACRONIA

É possível observar que a proposta de Saussure é marcada por escolhas e renún-


cias – e não apenas essas que estão postas nesse esquema. Essas escolhas e renúncias
afetaram de forma permanente toda a dinâmica dos estudos sobre a linguagem que
sucederam a divulgação de seus postulados, seja a partir das possibilidades de estudo
abertas pelas suas contribuições, seja pela crítica a suas escolhas e renúncias.
No Capítulo 1, fizemos alguns comentários a respeito da crítica às escolhas e às
renúncias de Saussure, destacando, por exemplo, que muito do desenvolvimento da
Linguística contemporânea deve-se ao reexame de sua proposta que, como vimos,
abdica do sujeito, da fala e da história. Por essa razão, para finalizar as reflexões deste
capítulo, focalizaremos os desdobramentos que emergiram da aceitação e do desen-
volvimento de suas ideias.

Considerações finais: implicações da visão saussuriana de linguagem


para a ciência Linguística
A importância das ideias de Saussure para a consolidação, o desenvolvimento e
o refinamento da ciência Linguística pode ser evidenciada numa breve passagem de
olhos pelos estudos linguísticos na antiguidade.

8 Para um aprofundamento da discussão sobre a distinção entre sincronia e diacronia, cf. Co-
seriu (1979).

81
A Ciência Linguística: Tanto na Grécia quanto na Índia antigas, os estudos da linguagem, como vimos,
conceitos básicos
foram balizados por uma teoria do “certo” e do “errado”, ao lado de especulações de
natureza filosófica. Com Saussure, como procuramos mostrar durante este capítulo,
o que passa a valer no interior de uma teoria linguística não é a normativização da
língua, construída na base de um uso adequado aos preceitos de uma elite, mas sim, a
ordem própria da língua que independe de juízos de valor.
Além disso, a partir desse estudioso, a prescrição de normas de correção para o
uso da linguagem é repensada a favor de uma concepção de língua como um sistema
de regras imanentes ao funcionamento interno das formas que o compõem. É com
ele, portanto, que se rompe com a tradição, amplamente contestada nas reflexões
linguísticas da atualidade, de pensar a língua como um mecanismo comportamental
guiado por uma assembleia de sábios, cerceada, portanto, por um conjunto de regras
prescritivas do bem falar ou do bem escrever.
Ao colocar os estudos da linguagem nos trilhos da ciência Linguística, dada a vali-
dade do seu objeto e apuro do seu método de investigação, Saussure deixa para seus
herdeiros, seguidores ou não, um leque de possibilidades de adentrar nesse território
intrigante, vasto e inesgotável de descobertas que não cessam de se descortinar nas
mais diversas tendências inauguradas pela Linguística na modernidade tardia.
Como já se discutiu aqui e em outros capítulos deste livro, quando elege como
objeto de estudo a langue, Saussure privilegia a organização interna da língua, a dispo-
sição das formas linguísticas responsáveis pelo seu funcionamento e a relação que as
mesmas contraem entre si no conjunto das unidades que entram em jogo no processo
comunicativo. Vemos, portanto, aqui, a possibilidade de nos debruçarmos sobre todas
as unidades que se articulam no todo sistemático de que participam – unidades fôni-
cas, morfológicas, lexicais, sintagmáticas, oracionais.
Demonstrando que a língua é uma construção em que cada uma das unidades
que a constituem estão inter-relacionadas, Saussure consagra à Linguística posição de
ciência-piloto dentre as ciências humanas, diga-se de passagem, numa época em que
se media o valor científico de uma área de conhecimento humano pela capacidade de
tratá-la à luz da possibilidade ou não da mesma ser estudada de forma objetiva, indo
ao encontro da concepção sustentada pelo positivismo cartesiano.
A noção de sistema herdada de Saussure permitiu o desenvolvimento de várias
correntes e escolas linguísticas bastante diferentes entre si. Eis aí o princípio da com-
provação da riqueza do legado de Saussure. A essa organização interna da língua, que
Saussure preferiu chamar de sistema, seus seguidores chamarão de estrutura. Surgem
daí as várias correntes de reflexão linguística que optam por investigar o funcionamen-
to interno do sistema das línguas.

82
A visão saussuriana de
linguagem

Referências

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83
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conceitos básicos
cirúrgica de tumor infiltrativo. Revista Distúrbios da Comunicação, 2009.@
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2001.

SAUSSURE, F. Curso de Linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1971 .

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exercícios. São Paulo: Contexto, 2002.

Proposta de Atividade

1) (Inspirada em questão do Provão 2001, disponível em http://www.inep.gov.br/superior/


provao/gab_prov_pad_res/letras.htm, Acesso em 22/9/2009). Para responder a questão
formulada abaixo, considere os dois textos apresentados a seguir: (a) o trecho de redação
de um vestibulando; e (b) os quadrinhos.

A nossa língua é mesmo difícil.


Eu que nasci nela até hoje não consigo falar como se escreve muitas palavras. Mas as erra-
das eu tento acertá-las. E procuro a cada dia falar melhor. Ao contrário de muitas pessoas
que estudam línguas e línguas diferentes. Procuro eu mesmo buscar o melhor para nossa
língua. Que na minha opinião é a mais completa, mais correta, mais imitada e, no meu
ponto de vista é a que mais combina com tudo, Porque quando eu olho um lápis por
exemplo eu acho que tem cara de lápis, olhando eu não acho que é um pencil. Pencil para
mim fica meio fora do que é realmente. Como o lápis eu vejo que tudo combina com que
escrevemos ou falamos.

84
A visão saussuriana de
linguagem

Questão: O tema da natureza do signo linguístico é um dos problemas clássicos da Linguís-


tica, discutido por Saussure no Curso de Linguística Geral. Elabore um texto dissertativo-
argumentativo, relacionando os quadrinhos, a redação do vestibulando e as proposições
saussurianas.

Anotações

85
A Ciência Linguística:
conceitos básicos

Anotações

86
4 As concepções de
linguagem

Sonia Aparecida Lopes Benites

Considerações iniciais
Ao longo da história da Linguística, a linguagem, seu objeto de estudo, tem sido
concebida de diferentes maneiras, não só por linguistas, mas por estudiosos das mais
diversas áreas, tais como filósofos, psicólogos, antropólogos e sociólogos. Do fato de
ser vista ora do interior ora de fora da ciência linguística, decorre ser concebida, por
exemplo, como fato social, forma de ação, instrumento de comunicação, processo de
representação ou mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social.
Sinteticamente, podemos afirmar que concepções de linguagem variam conforme en-
fatizemos: o cognitivismo, a expressividade, o acontecimento enunciativo, ou a relação
do linguístico com a exterioridade.
Para os fins de nossos estudos, importa que reconheçamos, inicialmente, a nature-
za simbólica da linguagem, o que, como enfatiza Corrêa (2003), nem sempre é fácil,
particularmente quando se trata de modalidades não verbais. Mesmo reconhecendo
linguagem em uma capa de revista, em um traçado arquitetônico, na diagramação de
um jornal ou em uma obra de arte, dificilmente percebemos que o sentido desses pro-
dutos culturais se dá pela leitura de uma construção simbólica que extrapola palavras
e imagens, envolvendo usuários e circunstâncias de utilização.
Dessa forma, no presente capítulo, enumeramos algumas concepções de lingua-
gem que, embora muitas vezes apresentem alguma relação entre si, constituem-se em
opções teóricas distintas, que podem ancorar e direcionar diferentes abordagens de
leitura, escrita, gramática e oralidade, práticas desenvolvidas em sala de aula. Conside-
ramos indispensável que se faça um confronto entre tais concepções e aquelas que os
alunos trazem de sua experiência cotidiana, pois entendemos a relevância da reflexão
sobre o papel da linguagem no dia a dia, vinculada à prática pedagógica, para a forma-
ção do professor objetivada pelo curso de Letras.

87
A Ciência Linguística: Linguagem: designação e expressão
conceitos básicos
As concepções de linguagem como instrumento exterior ao homem ou como algo
que lhe é inerente, constitutivo de sua condição humana, ancoram-se na dicotomia
filosófica designação e expressão. De acordo com Medina (2007), a primeira concep-
ção situa-se na tradição designativa da filosofia da linguagem e a segunda, na tradição
expressiva.
Conforme o autor (2007, p. 49-51), a tradição designativa, baseada na “designa-
ção” e na “denotação”, focaliza as relações entre a palavra e o objeto a que se refere.
Dentro dessa tradição, a linguagem é concebida como um instrumento utilizado para
representação do mundo. Já a tradição expressiva entende que a linguagem é uma
expressão da subjetividade humana. Longe de ser um mero instrumento, ela teria
um valor constitutivo, sendo parte de “quem nós somos”, “como pensamos” e “como
vivemos”.
Medina (2007, p. 52) esclarece que a concepção designativa ou referencial funda-se
no objetivismo, orientação epistemológica que trata a realidade como um objeto a ser
descrito e analisado para fins de aquisição do conhecimento. Por sua vez, a concep-
ção expressiva ancora-se no subjetivismo, que entende ser o significado de um termo
decorrente de intenções e de outros aspectos subjetivos da linguagem. A tradição ex-
pressiva não vê a mente como o “espelho da natureza”; ao contrário, o mundo aparece
ao homem da maneira como é retratado na linguagem, como um reflexo da atividade
criativa da mente humana.
De acordo com Medina (2007, p. 53), graças à tradição expressiva, a linguagem
passou a ser vista como “a chave para [...] resolver quebra-cabeças filosóficos a respeito
de nossa humanidade, por seu poder de constituir emoções e relações sociais especi-
ficamente humanas”. Assim, afirma o autor que ideais como igualdade, justiça, e toda
uma gama de emoções não existiriam sem a linguagem.
Particularmente importante é a contribuição de Humboldt para a tradição expressi-
va. Como lembra Medina (2007, p. 53), para Humboldt, a linguagem é uma “atividade
expressiva que estrutura”:

Humboldt afirmou que a linguagem é uma teia de itens interligados, e que


a malha desses elementos interligados é produzida por nossas ações lingüís-
ticas ou atos de fala. De acordo com Humboldt, é essencial a uma compre-
ensão adequada da linguagem que reconheçamos que a teia da linguagem
está sendo perpetuamente recriada na fala, isto é, continuamente expandida,
alterada e reconfigurada em nossas atuações e práticas lingüísticas (Medina,
2007, p. 53-54).

Também seria a tradição expressiva a responsável pela constituição de uma

88
perspectiva dialógica que salienta a dimensão social da linguagem e o impacto de prá- As concepções de
linguagem
ticas discursivas na constituição de comunidades humanas, perspectiva que deu mui-
tos frutos na filosofia da linguagem contemporânea, em trabalhos de filósofos como
Bakhtin, Foucault e Habermas.
Chomsky (1998), em um viés específico, relaciona a linguagem diretamente à ques-
tão do pensamento e a enxerga como instrumento de sua expressão. Conforme o
autor, a linguagem é uma capacidade inata, uma vez que é biológica. Para Guimarães
(2001), “como o que é humano é biologicamente universal, a linguagem é parte desta
caracterização naturalista e universal do homem”. Também ligado à tradição expressio-
nista, podemos mencionar o pensamento de Sapir (cf. Capítulo 2) que, numa perspec-
tiva aliada à antropologia, considera a relação linguagem e cultura.

Linguagem como instituição


Na visão de Guimarães (2001), Saussure não coloca em questão nem a referência
nem a expressão do pensamento, mas busca um domínio autônomo da filosofia, ligan-
do a estrutura ao pensamento, cognitivamente.
O linguista efetivamente oscila entre uma concepção de linguagem como “faculda-
de, própria do ser humano, de produzir sentido, por meio de formas de comunicação
verbais ou não verbais”, e como “uma instituição atual e um produto do passado”
(SAUSSURE, 1971, p. 16). No entanto, o desenvolvimento da teoria demonstra que
Saussure se situa, predominantemente, na tradição filosófica designativa.
Franchi (1992) discorda particularmente da acepção de linguagem como institui-
ção, argumentando que tal noção contribui para restringir o conjunto das formas so-
bre o qual o sujeito efetua suas opções linguísticas expressivas. Em sua visão, essa
concepção conduz a um esvaziamento da linguagem e a um privilégio da noção de
língua. Conforme pondera o autor, a ênfase dada por Saussure à língua levou a posi-
ções estruturalistas extremas como a de Bloomfield, que considera a linguagem como
“uma entidade teórica desnecessária”. Para Bloomfield, o que existe são os discursos
efetivamente produzidos nas diferentes línguas, reduzidos a inventários de dados para
análise.
Tratando do suposto “menosprezo” da linguagem por parte de Saussure, Corrêa
(2003, p. 22) afirma que, embora contemple a língua, ao delimitar o objeto da Linguís-
tica, o teórico não abandona o estudo da linguagem, pois não particulariza seu estudo
a um idioma histórico, abrindo seu objeto a “investigações de alcance universal, tais
como: a da natureza psíquica do signo linguístico, a do caráter coletivo das mudanças
linguísticas e a do funcionamento das línguas, entre outras”.

89
A Ciência Linguística: Linguagem e comunicação
conceitos básicos
Franchi (1992) critica a concepção designativa de linguagem como “instrumento
de comunicação”, em uma abordagem exclusivamente informacional, que acaba por
reduzi-la a um “código”, passível de ser analisado somente como uma lista de funções
significativas. Restrita dessa maneira, essa visão reduz o papel dos participantes à co-
dificação e decodificação das informações na mensagem, em que tudo é inteiramente
explicitado.
Também Citelli (1991, p. 14), situando-se na tradição filosófica expressiva, afirma
que conceber a linguagem como instrumento é aceitar a hipótese de que os conceitos
são formalizados antes ou fora do processo que os constitui.
Contudo, existe uma outra acepção, adotada por correntes da Linguística funcio-
nalista e da filosofia da linguagem ordinária, que considera a linguagem e as línguas
a partir de noções correlacionadas com a função de comunicação, sem o caráter ins-
trumental. Conforme essa visão, “os princípios universais da linguagem somente se
isolam e compreendem satisfatoriamente em referência à noção de comunicação bá-
sica na definição de diferentes funções da linguagem” (FRANCHI, 1992, p. 11). Dessa
maneira, a linguagem se situa em relação ao uso que dela se faz, aberta aos fatores que
a condicionam e determinam na interação dos interlocutores, em suas relações com o
mundo e a cultura.
Essa concepção mais abrangente, que pode ser situada na tradição expressiva, vê
um processo de comunicação em cada uma das funções da linguagem (de Bühler ou
Jakobson)1: podemos comunicar uma informação sobre o mundo (função referencial
ou representativa); uma informação sobre o estado de espírito do falante (função ex-
pressiva ou emotiva); uma informação sobre o que se deseja do interlocutor (função
apelativa ou conativa); uma informação sobre o código (função metalinguística); uma
informação sobre o funcionamento do canal (função fática) ou uma informação sobre
os aspectos materiais e estéticos da comunicação (função poética).
Entretanto, não se deve esquecer, como enfatiza Corrêa (2003, p. 36), que os ele-
mentos da comunicação estão “sempre sujeitos ao deslizamento de um a outro, inde-
finidamente”. Assim, por exemplo, mesmo que o efeito desejado seja o referencial,
pode ocorrer de outros fatores assumirem o lugar do referente, o que levará uma
mensagem que se pretenda predominantemente referencial a deslizar para as impres-
sões do enunciador em relação ao fato, num predomínio da função emotiva. Medina

1 Funções propostas por Bühler: expressiva, apelativa e representativa; funções apontadas por
Jakobson: emotiva, conativa, referencial, fática, metalinguística e poética.

90
(2007, p. 19) adota as funções de Jakobson, mais abrangentes que as de Bühler, para As concepções de
linguagem
agrupar o “vasto conjunto de posições teóricas, abordagens e perspectivas na filosofia
da linguagem, na semiótica e na teoria da comunicação”, na articulação dos conceitos-
chave em filosofia, abordados em sua obra.
O problema das teorias que concebem a linguagem a partir das noções de comu-
nicação e intenção, segundo Franchi (1992), reside no fato de elas fundirem noções
como comunicação, intenção e função social, o que leva a significação a ser vista como
intencional e motivada. O condicionamento da estrutura linguística a ser empregada
aos fatores e funções da comunicação que se deseja ressaltar acarreta a “exigência da
vinculação da linguagem ao contexto e à situação” (FRANCHI, 1992, p. 12).

Linguagem e performatividade
Medina (2007, p. 20) estabelece uma estreita conexão entre comunicação (em sen-
tido amplo) e o conceito de performatividade, de Austin, afirmando que, mais que
estar simplesmente relacionada à ação, “a fala é ação”, uma vez que comunicamos por
meio de atos. Dessa maneira, as funções de comunicação da linguagem só podem ser
conduzidas e preenchidas de modo performativo.
A performatividade, isto é, o caráter de ação, é, portanto, um traço da linguagem
que não poderia ser explicado nem pela perspectiva estruturalista (baseada em Saus-
sure) nem pela perspectiva enunciativa (baseada em Benveniste). Saussure não trata
dessa característica, enquanto Benveniste a confina a um grupo de verbos, cuja enun-
ciação impõe um compromisso entre o falante e os participantes do ritual linguageiro
em que ocorre o ato de fala.
Nesse contexto, a perspectiva pragmática adotada por Austin (1990) acabou com
a dicotomia entre verbos que descrevem e verbos de ação, passando a ver na lingua-
gem uma performatividade generalizada. A partir de Austin, passou-se a compreender,
numa visão situada na tradição expressiva, que “o sentido está ao mesmo tempo nas
palavras, nas pessoas que as utilizam e nas circunstâncias em que são utilizadas” (COR-
RÊA, 2003, p. 42).
Medina (2007) concorda que Austin revolucionou a filosofia da linguagem analí-
tica, fazendo frente à perspectiva “descritivista” ou “assertivista” que concebia frases
interrogativas e imperativas como derivadas de declarações. Dessa forma, “Que horas
são?” ou “Passe-me o saleiro” seriam abreviações de frases declarativas como “Desejo
saber que horas são” ou “Quero que você me passe o saleiro”.
Austin questionou o pressuposto de que o papel de uma declaração seria “tão so-
mente o de ‘descrever’ um estado de coisas ou declarar um fato, de modo verdadeiro

91
A Ciência Linguística: ou falso”. E fez isso chamando a atenção para um tipo de elocução, a performativa2,
conceitos básicos
que, embora se enquadre perfeitamente no paradigma declarativo, não retrata nenhu-
ma verdade sobre o mundo.

Linguagem e intersubjetividade
Como vimos no Capítulo 2, Benveniste situa o sujeito no centro da teoria da enun-
ciação, vendo-o como um indivíduo autônomo, que põe suas intenções em palavras,
dirige o conteúdo de suas falas e se apropria das formas da língua. O autor vincula a
linguagem à intersubjetividade, uma vez que, “como uma faculdade de simbolizar, ela
é condição de existência do homem e como tal é sempre referida ao outro”. Conforme
o autor, “não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber
a existência do outro. É um homem falando que encontramos no mundo, um homem
falando com outro homem. E a linguagem ensina a própria definição do homem”
(1994, p. 285). Portanto, dentro de uma visão expressiva, podemos dizer, com Ben-
veniste, que o homem é homem porque tem linguagem. Opor o homem à linguagem
seria opô-lo a sua própria natureza.
Contudo, a superioridade do sujeito em relação ao objeto linguagem, proposta por
Benveniste, ao afirmar que o usuário atribui-se o papel de sujeito em relação à lingua-
gem, que lhe serviria de instrumento, não se sustenta. Isso porque o usuário se sub-
mete ao discurso das instituições a que pertence, como a escola, a igreja, a “tribo”. O
sujeito não é senhor do mais corriqueiro discurso cotidiano, ligado às suas atividades
práticas. Para comprovar esse fato, basta observarmos o discurso do dia a dia de um
advogado, um vendedor, ou um recepcionista. Dessa maneira, podemos questionar,
com Corrêa (2003): “na relação sujeito/objeto, quem está a cavaleiro de quem?”

Linguagem como fato social


Para o sociólogo Émile Durkheim, a linguagem é um fato social, ao lado das regras
jurídicas, morais, dogmas religiosos, sistemas financeiros, maneiras de agir e costumes
que caracterizam uma sociedade. Fatos sociais são maneiras de ser, fazer, pensar, agir
e sentir, partilhadas coletivamente.
Apresentados como uma “coação exterior” exercida sobre o indivíduo, os fatos so-
ciais variam de cultura para cultura e têm como base um conjunto de regras que deter-
mina o que é certo ou errado, permitido ou proibido. Como fato social, a linguagem é
determinada socialmente e nos é imposta, independentemente de nossa vontade, pela

2 É o caso de frases como Aceito esta mulher como minha legítima esposa ou Batizo este navio com
o nome de Queen Elisabeth, “dizeres” que são, ao mesmo tempo, “fazeres”.

92
socialização e pela educação. Essa concepção correlaciona uma estratificação social à As concepções de
linguagem
variabilidade das estruturas linguísticas e está na base da sociolinguística variacionista.

Linguagem como força criadora e constitutiva


As concepções de linguagem das teorias linguísticas contemporâneas não são ne-
cessariamente incompatíveis, na visão de Franchi (1992, p. 10). Para ele, é necessário
conjugar critérios para explicar a complexidade da linguagem, que não é simples-
mente: instrumento de comunicação, sistema de ação exterior ao homem ou sistema
formal. “Linguagem é processo de representação somado à prática imaginária que não
se dá em um universo fechado e estrito; um processo de forma persistente, mas de
escopo e modalidade indeterminados” (p. 32).
Franchi (1992) vê com simpatia as teorias que explicam a linguagem pela descrição
do processo formal que a constrói como sistema simbólico. Tais teorias pressupõem
que a linguagem, “além de envolver a realização de funções sociais exteriores, informa
também um ‘pensar’ e ‘significar’ (p. 27). Inspirando-se na tradição expressiva ado-
tada por Humboldt, Franchi afirma que “a função da linguagem não é, propriamente,
transmitir aos outros nossas experiências, mas constituí-las” (p. 36).
De acordo com essa acepção, a linguagem exerce insistentemente sua função cria-
dora, numa perspectiva dinâmica, que alia seu processo de constituição histórica de
coleta de material à reorientação de novas direções. Esse processo, além de cumprir
a função representativa da linguagem, “é eminentemente ativo, constitutivo, uma ati-
vidade criativa e independente, em um livre jogo do entendimento e da imaginação”.
Assim, para Franchi (1992, p. 31),

não há nada imanente na linguagem, salvo sua força criadora e constitutiva.


Não há nada universal, salvo o processo, a forma, a estrutura dessa atividade. A
linguagem não é um dado ou resultado, mas um trabalho que dá forma ao con-
teúdo variável de nossas experiências, trabalho de construção, de retificação do
vivido, que ao mesmo tempo constitui o sistema simbólico mediante o qual se
opera sobre a realidade e constitui a realidade como um sistema de referências
em que aquele se torna significativo. Um trabalho coletivo em que cada um se
identifica com os outros e a eles se contrapõe, seja assumindo a história e a
presença, seja exercendo suas opções solitárias.

Em uma perspectiva semelhante, Osakabe (1991, p. 7) vê na linguagem “uma in-


terlocução e, como tal, de um lado, como processo, e de outro, como constitutiva e
constituída por sujeitos”. Ela é um processo porque se faz na linha do tempo e só se
torna real “na singularidade do momento em que se enuncia”.
De acordo com Citelli (1991, p. 14), podemos afirmar que as palavras possuem
uma série de faces, entre outras a de fazer e refazer os processos comunicativos, a de

93
A Ciência Linguística: autorreferir-se, a de viver no interior do teatro histórico e ideológico que anima os atos
conceitos básicos
de linguagem. Assim, a palavra constrói a relação entre o socialmente dado e a criação
individual.
Para Geraldi (1996), além de corresponder à capacidade humana de construir sis-
temas simbólicos, a linguagem é uma atividade constitutiva, que se realiza na relação
entre interlocutores e na relação que eles constroem com a língua, que lhes possibilita
se compreenderem mutuamente. Essa compreensão que se expressa simbolicamente
não é fruto da experiência individual, mas herança de muitos outros usuários.
Por isso, o autor relembra a ênfase dada por Bakhtin à aquisição da linguagem
como processo de internalização não apenas da palavra alheia (da mãe, principalmen-
te), mas também “de uma compreensão de mundo”. Paulatinamente, as palavras dos
outros vão se internalizando e sendo utilizadas na construção da compreensão de
palavras novas. É nesse sentido que a linguagem é uma atividade constitutiva: cons-
truímo-nos como os sujeitos que somos pelo processo de internalização do que nos
era exterior, e, com nossos usos de língua, participamos do processo de construção da
própria língua. A linguagem é trabalho e produto do trabalho.
Como enfatiza Geraldi (1996, p. 50), os conceitos introduzidos pelo estruturalis-
mo, baseados em uma concepção de linguagem como capacidade humana de cons-
trução de sistemas semiológicos, revelam-se inadequados em um momento em que
se reconhecem os fenômenos da dêixis, das modalidades, da performatividade, da
polissemia da polifonia e da heterogeneidade. “Esses fenômenos deslocam a noção
de representação para a noção de trabalho lingüístico, o que exige a incorporação
do processo de produção de discursos como essencial”. Em todos eles, “o externo se
internaliza”, definindo objetos distintos da língua, centro dos estudos estruturalistas.

Concepção de linguagem e ensino de língua


O reconhecimento de toda a complexidade que caracteriza a linguagem propicia a
articulação de reflexões teóricas e a proposta de direcionamentos para o ensino de lín-
gua, tanto no que se refere a sua diversidade de usos quanto à reflexão sobre ela. Só a
partir da concepção da natureza e função da linguagem adotada, é possível estabelecer
objetivos, definir metodologias a partir da teoria linguística assumida.
Uma concepção de linguagem que considere a relação com a exterioridade, aborde
a linguagem em funcionamento, considerando a relação entre os usuários e a situação
de comunicação, coloca o aprendiz em situações concretas de comunicação, possibili-
tando-lhe produzir textos naturalmente adequados.
Essa relação é causa e consequência da consideração do aluno como sujeito do dis-
curso, como alguém que tem o que falar e tem também uma forma para se expressar.

94
Tanto a visão do mundo quanto a forma para expressá-la podem não coincidir com
a do professor, mas devem ser respeitadas com a marca de humanidade que trazem. As concepções de
linguagem
Embora professor e aluno sejam papéis institucionalmente marcados por uma assi-
metria inerente e impossível de ser anulada, cabe à escola propor um relacionamento
dialógico, característico da linguagem.
É importante lembrar que se aprende a usar a língua usando-a, de forma que a
precedência de informações gramaticais sobre as atividades de leitura e de escrita é
um equívoco. Só em situações concretas de interação é que a abordagem gramatical se
revela necessária, como adjuvante na formação de leitores e de “escritores” mais com-
petentes. Criticar a transformação das aulas de português em aulas de “gramatiquês”
não significa, porém, negar a necessidade de reflexão sobre os fatos linguísticos, mas,
tão somente, propor uma inversão de valores.
É necessário, segundo Franchi (1987, p. 23) “recuperar no estudo gramatical a di-
mensão do uso da linguagem [... e] as estratégias utilizadas no ‘ensino’ da gramática”
em que objetivos de uma prática da linguagem ocorram em um “contexto vital”, atra-
vés de um trabalho efetivo da língua “e não em exemplos descolados da vida”.

Referências

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1998.

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M. H. (Org.). Questões de linguagem. São Paulo: Contexto, 1991. p. 11-17.

CORRÊA, M. L. G. Linguagem & comunicação social: visões da linguística moderna.


São Paulo: Parábola, 2003.

DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. In: ______. Comte e Durkheim.


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95
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GERALDI, J. W. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação.


Campinas, SP: Mercado de Letras, 1996.

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linguagem. São Paulo: Contexto, 1991. p. 5-6.

SAUSSURE, F. Curso de Linguística geral. 15. ed. São Paulo: Cultrix, 1971.

Proposta de Atividades

1) Qual das concepções e funções da linguagem apresentadas mais se aproxima da concepção


que você próprio possuía?
2) Que procedimentos e atitudes devem ser privilegiados nas aulas de língua que objetivam
favorecer a constituição de sujeitos, sabendo-se que eles têm histórias distintas, são ori-
ginários de contextos distintos, e possuem necessidades e interesses distintos? Aponte
algumas estratégias mais urgentes que estão disponíveis em qualquer escola.
3) A consideração de linguagem como fato social pode ter que tipo de consequência sobre
alunos portadores de uma cultura desprestigiada?

96
As concepções de
linguagem

Anotações

97
A Ciência Linguística:
conceitos básicos

Anotações

98
5 Gramática
e ensino

Cristiane Carneiro Capristano / Dulce Elena Coelho Barros

Considerações iniciais
A reflexão que será esboçada neste capítulo terá como ponto de partida e de chegada
a relação entre gramática e ensino. Nosso principal objetivo é o de fazer alguns apon-
tamentos que possam permitir ao leitor reavaliar sua(s) própria(s) concepção(ções) de
gramática e, consequentemente, reexaminar seu posicionamento frente ao papel dos
fatos gramaticais no ensino de Língua Portuguesa.
Norteados por esse objetivo, primeiramente, fazemos referências a alguns fatos
históricos que levaram à constituição do corpo de conhecimentos que hoje está reu-
nido sob a denominação de gramática tradicional. Aliada a essa reflexão, tratamos,
também, da disparidade de noções que podem ser nomeadas pelo termo gramática,
focalizando diferenças entre as chamadas gramática normativa, gramática descritiva
e gramática internalizada. Destacamos, além disso, as implicações, para o ensino de
Língua Portuguesa, de assumirmos ou não a heterogeneidade conflituosa que carac-
teriza as manifestações linguísticas do português falado e escrito no Brasil. Para fina-
lizar nossas reflexões, tecemos alguns comentários a respeito da seguinte questão: É
preciso ensinar gramática na escola? Inspirados em Faraco (2006), Bagno (2002) e em
propostas contidas nos Parâmetros Curriculares Nacionais, indicamos a necessidade
de uma renovação do ensino gramatical que possibilite a subordinação dos tópicos
gramaticais ao trabalho com as práticas de fala e de escrita.

Origem e propósitos da gramática tradicional: dos gregos e romanos à


atualidade
Em capítulo anterior, procuramos chamar a atenção para o fato de que é na esco-
la, em especial nas aulas de Língua Portuguesa ou simplesmente de Português, que
entramos em contato com o conhecimento teórico sobre a nossa língua materna. Sa-
lientamos, também, que, apesar do desenvolvimento de inúmeras pesquisas sobre o
funcionamento e a organização das línguas em geral e do português brasileiro em

99
A Ciência Linguística: particular, as aulas de Língua Portuguesa têm se mantido ancoradas quase que exclu-
conceitos básicos
sivamente em uma visão normativa/prescritiva da língua(gem), herdada da chamada
gramática tradicional (doravante GT)1, que constitui a base epistemológica sobre a
qual, por exemplo, é produzida a maioria dos livros e de outros materiais didáticos
disponíveis no mercado editorial brasileiro. Dado o prestígio que a GT teve e ainda
tem para o ensino de Língua Portuguesa nas escolas, convém compreendermos um
pouco de sua natureza e de sua constituição.
O corpo de conhecimentos que hoje reunimos sob a denominação gramática tradi-
cional, como vimos no capítulo Panorama dos estudos linguísticos, tem sua origem na
Antiguidade Clássica, entre os gregos e os romanos. Os povos gregos e os romanos tive-
ram grande interesse a respeito dos fenômenos que caracterizam a linguagem humana.
Segundo Faraco (2006), as reflexões de gregos e romanos sobre a linguagem humana
emergiram de diferentes fontes e, por esta razão, “não é fácil resumir toda a grandeza de
seu pensamento, até porque as diferentes tradições foram se interpenetrando à medida
que os estudos foram se ampliando e se refinando” (FARACO, 2006, p. 16).
Mesmo diante dessa dificuldade, o autor reconhece duas grandes linhas em que
podemos encontrar os fundamentos do pensamento desses povos sobre a linguagem
humana: os estudos de retórica clássica, concentrados especialmente nas questões
que poderíamos chamar de estilísticas da língua(gem), e as reflexões filosóficas que
tiveram início como os filósofos gregos Platão e Aristóteles.
Assim, por um lado, os povos gregos e romanos “conheceram, principalmente ao
tempo da democracia ateniense e da república romana, momentos de grande eferves-
cência política e jurídica, marcados por debates públicos acirrados” (FARACO, 2006,
p. 16). As práticas jurídicas e políticas, consolidadas em debates de natureza retórico-
argumentativa, permitiram o florescimento de uma forma de conceber a língua(gem)
como a “arte de bem falar em público”, com propósitos de convencer e persuadir um
auditório particular. Nesse quadro, o que estava em jogo no estudo da língua(gem)
eram os dotes oratórios, as habilidades verbais do orador e o bom uso da palavra.
Por outro lado, paralela a essa forma de pensar a língua(gem), permeavam as ideias
linguísticas dos gregos, em especial, questões de natureza filosófica, como a de se

1 Neste capítulo, adotaremos a seguinte distinção, proposta por Bagno (2000, p. 15, grifos do
autor) “[...] a GT é a ‘alma’ de um ‘corpo’ chamado gramática normativa [ou prescritiva]. A GT
é o ‘espírito’, a ‘mentalidade’, a ‘doutrina’ (a ideologia) que dá alento, vigor e ex-sistentia ao ‘ser’,
ao ‘objeto’, à coisa material que podemos adquirir, manusear e submeter aos nossos sentidos,
chamada gramática normativa”. Para ele, “A GT, por consubstanciar uma ideologia, não tem
autor, ao contrário das gramáticas normativas, às quais podemos nos referir como ‘a gramática
do Celso Cunha’, ‘a gramática de Rocha Lima’, ‘a gramática de Cegalla’, etc.” (BAGNO, 2000,
p. 16, grifos do autor).

100
perguntarem: O que é a linguagem? Como ela funciona em termos da relação entre as Gramática e ensino

palavras e as coisas? Os signos linguísticos são motivados ou arbitrários?


Além dessas reflexões filosóficas, questões sobre a natureza lógica da linguagem
constituíam também foco de interesse dos filósofos gregos. Principalmente Aristóteles
e os estoicos (seguidores da doutrina segundo a qual o universo é corpóreo e gover-
nado por um logos – razão universal – que ordena todas as coisas) se ocuparam da
filosofia da linguagem, do ponto de vista da lógica, e suas reflexões impulsionaram os
estudos sobre as categorias gramaticais e a estrutura sintática das sentenças. Conforme
se lê em Faraco (2006, p. 16):

Pelo fato de a lógica incluir necessariamente uma discussão dos juízos, também
chamados de proposições (isto é, das unidades que entrarão nos processos
racionais de obter conclusões válidas); e como, para os lógicos gregos, as pro-
posições eram expressas por meio de sentenças da língua, eles tiveram que
elaborar uma análise da estrutura sintática das sentenças (a partir das duas
grandes funções proposicionais: sujeito e predicado) e das classes de palavras
que poderiam ocupar essas funções (em especial os substantivos e os verbos,
mas envolvendo também os adjetivos e pronomes), bem como dos diferentes
elementos lexicais com função de conectivos.

Nesse momento da histórica, desenvolve-se, também, duas perspectivas de enqua-


dramento dos fatos da língua(gem): a tendência anomalista e a tendência analogista.
A anomalia era defendida em geral por filósofos estoicos. Para esses, o princípio que
rege a língua(gem) é o da irregularidade, uma vez que a linguagem seria uma criação
perfeita e superior, que não poderia ser submetida a regras que pretendam dirigir sua
práxis ( VALENZA, 2007). Tais afirmações eram feitas com base, por exemplo, na falta
de congruência observada pelos estoicos entre a palavra e o pensamento (ou aquilo
que ela designa), fenômeno claramente observado por eles em palavras como córax
(corvo) que, gramaticalmente, é masculina, mas que serve de referente tanto para os
machos quanto para as fêmeas da espécie referida.
Um movimento de contraposição a essa forma de conceber a língua(gem) se desen-
volveu também no século III a.C., na cidade de Alexandria. Alguns estudiosos, os filó-
sofos alexandrinos, dedicaram-se a estudar a produção literária de seus autores consa-
grados. Esses estudos eram feitos a partir da restauração e comparação de manuscritos
antigos “com o objetivo de dar aos textos uma forma canônica” e pela análise e comen-
tário de textos valorizados pela cultura grega (FARACO, 2006, p. 16). Os filósofos alexan-
drinos opunham-se à forma como os filósofos estoicos compreendiam a língua(gem).
Para eles, a língua(gem) seria uma criação convencional, lógica e sistemática, cujo prin-
cípio condutor era a analogia: as regularidades a que a língua(gem) estava submetida,
regularidades que permitiam, por exemplo, a existência de paradigmas flexionais.

101
A Ciência Linguística: As reflexões dos analogistas se faziam, sobretudo, com base no conceito de correto
conceitos básicos
e incorreto, medidos pela forma de expressão encontrada nas obras literárias. A ten-
dência niveladora da língua tem seu início nessa forma de abordagem da linguagem.
Segundo Faraco (2006, p. 17), os gregos alexandrinos percebiam em seus estudos que
“o grego clássico (que eles encontravam nos textos dos autores consagrados) era dife-
rente do grego que eles falavam (em boa parte porque havia entre os dois uma grande
distância no tempo)”. Ou seja, percebiam a existência da variação linguística e é justa-
mente por isso que eles “concentraram seus esforços na direção do estabelecimento
e do cultivo de um ideal de língua, isto é, de um determinado conjunto de fatos de
linguagem tidos como corretos” (FARACO, 2006, p. 17). Nesse processo, os filósofos
alexandrinos criaram a gramática como uma disciplina intelectual autônoma que se
concentrava no estudo da língua, com o objetivo principal de estabelecer padrões de
correção. Muito apropriadamente, Borba (1991, p. 15) nos traz o conceito de gramáti-
ca defendido pelo analogista Aristarco, a saber, como “conhecimento experimental do
que mais constantemente se acha nos poetas e prosadores”.
Entre os romanos, os estudos gramaticais se fizeram com base no modelo grego
e se estenderam aos preceitos alexandrinos de estudo da língua(gem). Isso se deu
primeiramente por fatores históricos, já que os romanos incorporaram a Grécia a seus
domínios territoriais (século II a.C.). A partir daí, a cultura grega passou a ser valoriza-
da e absorvida pelos romanos, que se dedicaram a aprender a língua grega, bem como
a estudar suas obras literárias. Mais tarde, ao incorporarem também Alexandria aos
seus domínios político-territoriais (século I a.C.), os romanos passam a contemplar
em suas reflexões linguísticas uma concepção normativa de linguagem, claramente
evidenciada na primeira gramática latina criada por Varrão, que segue os preceitos de
seu mestre Alexadrino Crates de Malos, definindo gramática como “a arte de escrever/
falar corretamente e entender os poetas”
A marca identitária dos romanos cultos da época era a de falar e escrever de acordo
com os padrões seguidos pelos grandes escritores e registrados nos dogmas gramati-
cais. Não podemos esquecer que, naquela época, “ser culto” estava diretamente rela-
cionado ao poder aquisitivo. Há, portanto, aí, uma relação direta entre conhecimento
do padrão culto da linguagem e a elite socioeconômica de que dela lança mão nas
suas práticas discursivas concretas. Conforme destaca Faraco (2006), “a gramática era
assunto para as elites masculinas, de quem se esperava o manejo versátil da língua e o
uso das formas tidas com corretas” (p. 18). É por razões práticas que nascem as cha-
madas gramáticas pedagógicas que tinham como objetivo auxiliar esse manejo versátil
da língua.
Esse processo histórico de fundamentação da gramática tradicional se estende à

102
Idade Média. Nessa época, os estudos gramaticais se faziam relacionados ao papel Gramática e ensino

que a língua latina desempenhava na religião, nas artes, nas ciências, na filosofia e na
educação. Ao consolidar-se como língua de prestígio, sendo, inclusive, adotada pelo
Cristianismo, irradiou-se pela Europa, veiculada nas obras dos primeiros humanistas e
em meio às primeiras universidades que se criavam. No entanto, quando o Latim passa
a ser reconfigurado rumo às línguas românicas, mantém-se como tradição, na moda-
lidade da língua escrita, a permanência da sua forma clássica de expressão, ou seja,
o latim clássico. Sendo assim, pode-se dizer que o idioma dos romanos se estiliza,
transformando-se num instrumento literário.
Nesse contexto, passam a conviver duas formas de expressão da língua latina, a
saber, a literária (sermo urbanus) e a popular (sermo vulgaris). O eruditismo medie-
val encarava o latim clássico como forma logicamente normal da linguagem humana,
desconsiderando o fato de que a mesma não refletia a vida trepidante experimentada
pelo povo da época e as transformações pelas quais passava. É justamente essa doutri-
na, sustentada na rigidez e na artificialidade do latim clássico, que servirá de base para
a composição das chamadas gramáticas gerais que surgiram a partir do século XVII.
Dentre as gramáticas gerais, também chamadas racionais, a Grammaire Générale
et Raisonnée de Port Royal (1660) costuma ser a mais citada na literatura linguística
corrente. Essa gramática, elaborada pelos franceses Lancelot e Arnaud, propunha pen-
sar a língua em sua generalidade. Ela postula a existência de um conjunto de princí-
pios, ou axiomas, relativos a todas as línguas.
Essa forma de refletir sobre a linguagem, que se desenvolve durante os séculos XVII
e XVIII, advém de Aristóteles e considera a linguagem humana enquanto fenômeno
decorrente das “leis do pensamento”. Marcada, portanto, por princípios racionais e
lógicos, que funcionam de acordo com esquemas lógicos universais, e erigindo à luz
de uma concepção de linguagem como forma de representação do pensamento huma-
no, exige dos escritores/falantes clareza e precisão no uso da linguagem. Regida pela
lógica, esse tipo de gramática prevê a separação do que é válido daquilo que não o é,
ou seja, do que é certo ou errado em termos da expressão linguística do pensamento.
Apenas no final do século XV e no início do século XVI que começaram a sur-
gir gramáticas das chamadas línguas vernáculas – português, francês, castelhano, etc.
Segundo Faraco (2006, p. 19), essas gramáticas surgem da necessidade “[...] de se
sistematizar uma descrição dessas línguas e de registrar uma referência normativa que
atendesse aos objetivos de unificação linguística trazidos pela criação dos novos Esta-
dos unificados”.
As primeiras gramáticas do português foram elaboradas a partir de 1536. Entre es-
sas gramáticas, a mais famosa é a de João de Barros (publicada em 1540) – cf. Faraco,

103
A Ciência Linguística: (2006, p. 19) A proposta, tanto das gramáticas do português quanto das gramáticas de
conceitos básicos
outras línguas conhecidas como “vulgares”, era a de contribuir para fixar um padrão de
língua. Esse padrão foi estabelecido tendo em vista as descrições e as prescrições das
antigas gramáticas latinas e gregas, ou seja, “[...] essas obras tentaram encontrar, nas
línguas vivas da época, as mesmas categorias gramaticais descritas pelos respeitados
gramáticos da Grécia e de Roma” (BAGNO, 2002, p. 18).
Como salienta Bagno (2002), os gramáticos das línguas vernaculares abdicaram
do exame e da descrição cuidadosa dessas línguas para tentar apenas enquadrá-las
num modelo gramatical já pronto, insistindo em encontrar nelas “as mesmas classes
de palavras, os mesmos tempos verbais, as mesmas funções sintáticas que existiam no
latim clássico” (p. 19). Obviamente, um dos problemas dessa tarefa reside no fato de
nem sempre ser possível estabelecer uma correlação entre a organização gramatical
do latim clássico e a organização das chamadas línguas vulgares – em Bagno (2002),
o leitor poderá encontrar vários exemplos da contradição entre a descrição gramatical
tradicional e o que de fato ocorre com certos fenômenos da Língua Portuguesa.
Dos apontamentos feitos até aqui, supomos que tenha sido possível observar que a
constituição do saber gramatical tradicional esteve fortemente ligada a uma concepção
normativista de língua(gem). Ao longo de sua história, o saber gramatical tradicional
permaneceu sempre a serviço do bem falar e do bem escrever, elegeu como parâmetro
fundamental a distinção entre o certo e o errado e excluiu de seu escopo fatos que dão
à língua(gem) seu caráter multifacetado – como os fatos de variação linguística dos
quais já tratamos sucintamente em outros momentos deste livro.

As gramáticas normativas
O termo gramática costuma ser entendido, muitas vezes, apenas como um con-
junto de regras expressas em uma obra a que se denomina normativa, que tem sua
fundamentação no saber gramatical tradicional cuja constituição histórica – que se fez
em mais de vinte e três séculos de tradição – tentamos indicar na seção anterior. Esse
tipo de gramática, como veremos, não é a única a se propor a explicar mecanismos de
uso da língua. Essas gramáticas expõem noções e regras com base na ideia de que as
mesmas devem ser utilizadas seguindo-se os preceitos daquilo que é entendido como
sendo o bem escrever dos autores consagrados como bons escritores. À luz dessa
concepção, passa-se também a exigir das manifestações linguísticas de natureza oral
a mesma correção e formalidade pertinentes, na grande maioria das vezes, apenas às
manifestações linguísticas de natureza escrita.
Esse tipo de gramática é dita normativa justamente por tornar oficial algumas regras
e leis que devem ser seguidas sob pena de se incorrer a supostos desvios, sinuosidades,

104
irregularidades ou alterações da língua. Nesse passo, a modalidade de linguagem que Gramática e ensino

passa a ter status consagrado no uso é a modalidade chamada padrão ou culta.


A prescrição do conjunto de regras que formam as chamadas gramáticas norma-
tivas ou prescritivas nasce de fatores não propriamente linguísticos, como já foi dito
anteriormente, partem, pois, de princípios relativos à linguagem escrita e costumam
desprezar características próprias da linguagem oral. Sendo assim, eliminam formas
e usos que não se coadunam com seu papel prescritivo ou normativo. Para Travaglia
(1996, p. 226), essa concepção de gramática, ao ignorar fatores constitutivos da lin-
guagem oral, tomando por base fatores não estritamente linguísticos, acaba por criar
preconceitos de toda espécie, por basear-se em parâmetros, segundo ele, muitas ve-
zes, equivocados. O estudioso destaca alguns deles, a saber, purismo e vernaculidade,
classe social de prestígio (econômico, cultural, político), autoridade (gramáticos, bons
escritores), lógica e história.
Note-se que paira sobre essa concepção de gramática a falsa ideia de que a natureza
dialógica da linguagem pode ser desprezada, posto que o papel constitutivo das for-
mas de interação, estabelecidas entre aqueles que se manifestam em situações concre-
tas de uso da língua, é visto como um elemento que não interfere no uso do código.
Vemos, portanto, aqui, que essa concepção de gramática não se faz alheia à concepção
de linguagem como um mero instrumento de comunicação, da qual tratamos em
capítulo precedente. É o caráter instrumental do código que está em jogo nesse modo
de visualizar a gramática de uma língua.
Essa forma, portanto, de conceber a gramática e, consequentemente, a concep-
ção de linguagem que dela decorre, faz crer ser suficiente para que a comunicação
se efetive no conhecimento do código/da língua tal como ele/ela vem apresentado/a
nos manuais didáticos de que dispomos: conjunto de regras que devem ser seguidas.
Compreende-se daí que a competência linguística do falante/escritor se constrói com
base na sua capacidade de adquirir domínio desse conjunto de regras capazes de pro-
duzirem efeitos sobre o emprego da variedade padrão (escrita e/ou oral) da língua.
No entanto, parece ser consenso que o domínio dessas regras de prescrição pelo
falante/escritor, ou seja, que a aquisição desse tipo de competência linguística nem
sempre é garantia de promoção de uma competência comunicativa ou discursiva, pos-
to que o falar/escrever extrapola os limites do código. As necessidades comunicativas
dos falantes, quando consideradas sob o ponto de vista dos seus intentos argumen-
tativos ou persuasivos, não raro os obrigam a desconsiderar fatos relativos à normati-
vização linguística tal como prevista pelas gramáticas normativas e recorrer a formas
linguísticas mais adequadas ao agir comunicativo, ao contexto de uso, às imagens que
os falantes constroem de si e dos seus interlocutores nas práticas discursivas em que se

105
A Ciência Linguística: encontram mutuamente inseridos. Todos esses fatores, não raro, os obrigam a lançar
conceitos básicos
mão de variantes não padrão da língua em foco, as quais, como nos é sabido, costumam
ser vistas com certo estigma pelos ferrenhos defensores das gramáticas normativas.
Além disso, o ensino de Língua Portuguesa que se fundamenta nessa forma de
conceber a gramática de uma língua acaba por cobrar dos sujeitos conhecimentos
sobre isso que não apresentam relevância ou grande valia no desenvolvimento de uma
melhor competência no uso da linguagem: o aluno tem que saber, por exemplo, fazer
análise sintática e decorar longas listas usadas na classificação das classes de palavras e
de categorias gramaticais. Esses conhecimentos não são suficientes para levar alguém
a se tornar necessariamente um escritor/falante melhor, haja vista que uma coisa é
saber falar sobre a língua, outra coisa é saber usá-la de forma eficaz. O uso eficiente da
língua envolve, entre outras coisas, nossa capacidade de lançar mão de um conjunto
de regras que acionamos ao nos manifestarmos frente às diferentes circunstâncias da
comunicação humana.
O advento da Linguística como disciplina científica, com as características que, nos
capítulos anteriores, procuramos elencar, trouxe à cena outras formas de conceber a
gramática de uma língua. Na seção seguinte, nos deteremos na explicitação de duas
dessas formas: as chamadas gramáticas descritiva e internalizada.

Concepções de gramática: descritiva e internalizada


Contrapondo-se à visão de gramática que demos destaque na seção anterior, os
linguistas procuram desenvolver uma teoria gramatical cuja preocupação é descrever
e/ou explicar as línguas tais como elas são faladas e escritas. Interessa-os, portanto,
o conjunto de regras efetivamente utilizadas pelos falantes e escreventes. Esse tipo
de gramática é denominado gramática descritiva porque se ocupa em fazer uma des-
crição da estrutura e do funcionamento da língua, levando em conta forma e função
na linguagem. A gramática descritiva, que tem por objetivo fazer o levantamento dos
fenômenos linguísticos, tal como eles se manifestam no momento da descrição, não
prescreve normas ou define padrões em termos de julgamentos de correto ou incor-
reto, também não busca atender aos usos e seleções esperados de uma pessoa culta.
Interessa-lhe, pois, documentar uma língua de modo a nos levar a adquirir conhe-
cimento sobre o seu funcionamento, a sua estrutura ou configuração formal que a
caracteriza num dado momento. Por isso a gramática descritiva é também chamada de
sincrônica.
Cabe aqui ressaltar o fato de que o estudo descritivo das línguas já fazia parte da
agenda das investigações do alemão Anton Marty, no princípio do século XX (1908).
Esse estudioso assegurava haver, ao lado das leis históricas, as leis descritivas. No

106
entanto, é com Ferdinand de Saussure, que dividiu a Linguística em diacrônica e sin- Gramática e ensino

crônica, conforme já comentamos neste livro, que se lança luz, de modo mais efetivo,
sobre esse modo de pensar a língua. Por linguística sincrônica, Saussure entende a
gramática descritiva, cientificamente conduzida, isto é, de maneira sistemática, objeti-
va e coerente.
A Linguística, tal como foi proposta por Saussure, se sustenta e se desenvolve,
em um primeiro momento, em torno da busca em determinar os princípios e as ca-
racterísticas que regulam a estrutura das línguas. Cabe à Linguística sincrônica geral,
conforme assegura Saussure, estabelecer os princípios fundamentais de todo sistema
idiossincrônico de uma língua. O termo idiossincrônico, que é considerado sinônimo
de gramática descritiva por Hjelmslev, deve ser entendido como aquilo que interessa
à descrição dos sistemas linguísticos, dado um estado de língua, considerando-se a
natureza das relações que se estabelecem entre as formas que os constituem. Nessa
perspectiva, cabe às gramáticas descritivas fazer o levantamento dos elementos consti-
tutivos da estrutura linguística e mostrar o seu funcionamento operacional.
Contrariamente à primeira concepção de gramática aqui apresentada, que parte do
princípio de que a língua constitui, conforme preconiza Possenti (1999, p. 64-65), um
conjunto de regras que devem ser seguidas, sob pena de incorrer-se no “erro”, a se-
gunda concepção de gramática vê a língua como conjunto de regras que são seguidas.
Nesta última perspectiva, que é adotada principalmente pelos linguistas partidários
das teorias estruturalistas, estudar a língua equivale a debruçar-se sobre um conjunto
de regras efetivamente utilizadas pelos falantes nas suas práticas enunciativas concre-
tas. Sendo assim, compreende-se daí a possibilidade de se incluir nessa concepção de
gramática o fato de que as línguas mudam, afetando, assim, as suas regras de funciona-
mento, enquanto as gramáticas normativas insistem em retratar regras que os falantes
deixaram de aplicar ou muito pouco lançam mão. No dizer de Franchi (1991 apud
TRAVAGLIA, 1996 p. 27), uma gramática descritiva nos revela

[...] um sistema de noções mediante as quais se descrevem os fatos de uma


língua, permitindo associar a cada expressão dessa língua uma descrição estru-
tural e estabelecer suas regras de uso, de modo a separar o que é gramatical do
que não é gramatical.

Os critérios de análise seguidos são de natureza linguística, formal e objetiva. Para


Travaglia (1996, p. 27), saber gramática, nessa perspectiva, significa “ser capaz de dis-
tinguir, nas expressões de uma língua, as categorias, as funções e as relações que en-
tram em sua construção, descrevendo como é sua estrutura interna e avaliando sua
gramaticalidade”.

107
A Ciência Linguística: Assim, nesse tipo de gramática, não entra em jogo juízo de valor, mas, sim, de gra-
conceitos básicos
maticalidade. Vejamos alguns exemplos que possam ilustrar essa afirmação:

1. Os ladrões compraram passagens aéreas com desconto pela internet.


2. * Os compraram aéreas passagens com pela ladrões desconto internet.
3. Os ladrão compró passage aérea com desconto pela internet.
4. *Os passage compró aérea ladrão com pela internet desconto.

Qualquer falante do português brasileiro atual saberá indicar que apenas os enun-
ciados em 1 e 3 são expressões possíveis em português. Usando a terminologia lin-
guística, os enunciados 2 e 4 são agramaticais, ou seja, não correspondem a nenhum
sistema de regras previsto pelas variedades linguísticas que constituem o português
brasileiro. A diferença entre os enunciados 1 e 2 reside no sistema de regras (a gra-
mática, portanto!) que os determina2. A título de exemplificação, a gramática que
orienta a construção do enunciado 1 supõe uma marcação de plural redundante (Os
ladrões compraram passagens aéreas com desconto pela internet.), ao passo que a
gramática que orienta a construção do enunciado 2 supõe uma marcação de plural
não redundante, marcação essa que deve ser feita no primeiro elemento do enunciado
(Os ladrão[ø] compró[ø] passage[ø] aérea[ø] com desconto pela internet). Notar que,
no enunciado 2, há, sem dúvida, regras que determinam a marcação de plural eviden-
ciadas pelo fato de não podermos fazer outro tipo de marcação que não seja aquela
que descrevemos anteriormente.
Seguindo os passos de Possenti (1999, p. 69), encontramos uma outra forma de
conceber a gramática, que leva em conta o conjunto de regras que o falante domina.
Ela não se opõe à gramática descritiva; é, antes, seu objeto precípuo. Podemos afirmar
que, quando pensamos na gramática internalizada, passamos a considerar, sobretudo,
o conhecimento efetivo de língua pelo falante, que lhe permite, por exemplo, criar
um número infinito de frases e julgar sua gramaticalidade no sentido da gramática
descritiva. Importa, portanto, aqui, a capacidade que um falante tem de identificar
sequências linguísticas como pertencentes a sua língua, produzi-las sistematicamente
e interpretá-las à luz de um contexto de fala específico.
Esse modo de pensar a gramática, por conceber a língua como um conjunto de

2 Obviamente, não podemos deixar de reconhecer, também, que os enunciados em 1 e 2, embo-


ra sejam realizações possíveis do português brasileiro, tem status diferentes: apenas o enunciado
em 1 tem prestígio e é aceito pelas gramáticas normativas. O enunciado em 4 constitui o que
poderíamos chamar de uma variante estigmatizada, considerada, pelo senso comum e pelas
gramáticas normativas, como errada e falha.

108
variedades, considera os fatos de linguagem como adequados ou não à situação de Gramática e ensino

interação comunicativa de que o falante/escritor participa. Sendo assim, nessa concep-


ção de gramática, também não há erro linguístico, tal como se vê nas gramáticas de
cunho normativo. Além disso, é importante destacar que

[...] o usuário da língua precisa saber (e sabe) muito mais do que apenas as
regras de construção de frases para ter uma competência comunicativa e que
faz parte da gramática da [sua] língua [...] Importa, pois, registrar, reafirmar e
destacar aqui que a gramática internalizada é a que constitui não só a compe-
tência gramatical do usuário, mas também a competência textual e sua compe-
tência discursiva e, portanto, a que possibilita sua competência comunicativa
(TRAVAGLIA, 1996, p. 30).

Ou seja, do ponto de vista assumido por Travaglia, a gramática internalizada pelos


falantes ao longo da sua exposição aos fatos de língua, além de afetar a sua competência
gramatical ou linguística, incide também sobre as outras competências implicadas nas
práticas discursivas de que participam, a saber, as competências textual e discursiva.

Ensino de gramática e variação linguística

[...] Outras vozes falam e escrevem hoje no Brasil. E não há como não ouvi-las.
(MATTOS e SILVA, 2006, p. 65).

Nos capítulos anteriores, procuramos colocar em evidência, dentre outros fatos,


que o desenvolvimento da pesquisa linguística, ao longo do século XX e nestes anos
iniciais do século XXI, tem permitido a análise, a descrição e a interpretação do fe-
nômeno linguístico sob variados pontos de vista ou, ainda, à luz de diferentes con-
tribuições das áreas do saber em que a Linguística atual se desdobra, tais como a Psi-
colinguística, a Análise da Conversação, a Pragmática, a Sociolinguística, a Semântica,
a Sintaxe, a Fonética, a Fonologia etc. Como vimos, o ponto de vista exclusivamente
descritivo que norteou principalmente as primeiras reflexões da ciência Linguística no
início do século XX hoje cedeu espaço para outras formas de conceber o fenômeno
linguístico que passaram a considerar não só o sistema linguístico e sua natureza for-
mal e objetiva, mas, também, por exemplo, o sujeito e as condições que determinam
suas manifestações linguísticas orais e escritas.
Convém destacar, entretanto, que as contribuições dessas diferentes áreas do saber
para a compreensão do fenômeno linguístico têm, muitas vezes, passado ao largo dos
muros escolares. Segundo Bagno,

[...] quando se sai da esfera acadêmico-científica e se entra na sala de aula da


grande maioria das escolas brasileiras, o que ainda se encontra é uma prática

109
A Ciência Linguística: pedagógica de ensino de língua que revela pouca ou nenhuma influência de
conceitos básicos todas as novas perspectivas de abordagem do fenômeno da linguagem – apesar
de estarem presentes, já faz algum tempo, até mesmo em diretrizes oficiais de
educação, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (BAGNO, 2002, p. 14).

Em outras palavras, é inegável que os professores têm tido acesso a princípios


teóricos desenvolvidos no âmbito das pesquisas em Linguística, principalmente pela
difusão das diretrizes oficiais para o ensino de Língua Portuguesa – que já incorporam
alguns desses princípios. Entretanto, as mudanças que deveriam ser provocadas pelo
acesso aos conhecimentos científicos a respeito do fenômeno linguístico têm atingido
muito timidamente a dinâmica das aulas de Língua Portuguesa no que concerne espe-
cialmente ao ensino e à aprendizagem de tópicos gramaticais3.
Mencionamos acima e em capítulos anteriores que, nas escolas brasileiras, as aulas
de Língua Portuguesa, com raras exceções, são guiadas pelos preceitos difundidos
pela GT, cuja preocupação principal, como também já vimos, é exclusivamente a de
estabelecer como deve ser a língua. Nesse sentido, de modo geral, a escola tem feito
“[...] tábula rasa do saber linguístico diferenciado que os indivíduos possuem, em
nome de levá-los a dominar o padrão culto idealizado” (MATTOS e SILVA, 2004, p. 29),
padrão que, em geral, só é alcançado por “alguns daqueles que já vêm das camadas
socioculturais em que esse padrão é a base da comunicação cotidiana [...]”(MATTOS
e SILVA, 2004, p. 29). Essa afirmação faz eco com o desabafo da personagem abaixo:

Entrei numa lida muito dificultosa. Martírio sem fim o não entender nadinha
do que vinha nos livros e do que o mestre Frederico falava. Estranheza colosso
me cegava e me punha tonto. Acho bem que foi desse tempo o mal que me
acompanha até hoje de ser recanteado e meio mocorongo. Com os meus, em
casa, conversava por trinta, tinha ladineza e entendimento. Na rua e na escola –
nada; era completamente afrásico. As pessoas eram bichos do outro mundo que
temperavam um palavreado grego de tudo (BERNADES, 1969, p. 18-20 apud
BORTONI-RICARDO, 2006a, p. 13-14).

3 Não podemos ignorar que algumas mudanças decorrentes da divulgação dos PCNs – e, so-
bretudo, dos debates que seguiram essa divulgação – já se fazem presentes em muitas escolas
brasileiras. A título de exemplificação, a proposição dos PCNs de que o texto seja eleito como
unidade de ensino tem transformado muitas aulas de Língua Portuguesa. Várias escolas e vários
professores têm se esforçado para oferecer oportunidades para que seus alunos se tornem ca-
pazes de “interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como
cidadão[s], de produzir textos eficazes nas mais variadas situações” PCNs (BRASIL, 1998, p.
21). Convém destacar, entretanto, que essa transformação, positiva em muitos aspectos, tem,
pelo menos, um inconveniente: o privilégio ao texto tem, muitas vezes, sido acompanhado pelo
abandono do ensino dos tópicos gramaticais, atitude que está na contramão do que é sugerido,
por exemplo, pelos PCNs.

110
Muitos sujeitos que hoje frequentam as escolas de ensino fundamental e médio Gramática e ensino

que se espalham ao longo do território nacional têm certamente a mesma dificuldade


descrita pela personagem do relato acima. Isso decorre do fato de a escola, infeliz-
mente, ainda assumir como sua principal tarefa impor uma única norma linguística,
fundada exclusivamente em preceitos da GT, como se ela constituísse a norma comum
a todos os brasileiros, que, de norte a sul do país, falariam uma mesma e única língua,
dissociada de fatores como idade, origem geográfica, situação socioeconômica, grau
de escolaridade, etc. Essa postura, entretanto, está diametralmente em oposição às
contribuições advindas, por exemplo, da Sociolinguística.
Como vimos em capítulo anterior, a Linguística viu florescer, a partir da década de
60, um volume grande de pesquisas no âmbito dos chamados estudos sociolinguísti-
cos. As pesquisas sociolinguísticas feitas sobre as variedades brasileiras do português
têm permitido, dentre outros fatos, questionar fortemente o mito da homogeneida-
de do português falado no Brasil. Elas têm colocado em evidência que o português
brasileiro apresenta um alto grau de diversidade e de variabilidade, que deriva tanto
da extensão territorial do Brasil – responsável pela presença de diferenças regionais,
bastante conhecidas e observadas, por exemplo, no reconhecimento de um “falar”
pernambucano em oposição a um “falar” paulista –, quanto das diferenças socioeco-
nômicas que emergem do fato de nosso país estar entre aqueles com pior distribuição
de renda em todo o mundo.
Essas pesquisas também têm salientado que a diversidade e a variabilidade não
são nefastas, mas inerentes às línguas e à língua portuguesa. Longe de evidenciarem,
portanto, um problema para a constituição de nossa língua, são antes fatos que condi-
cionam e permitem sua existência.
Além do reconhecimento e o estudo das diferenças diatópicas (referentes aos modos
diversos que a língua portuguesa assume em decorrência de mudanças no espaço) e dias-
tráticas (referentes aos modos diversos que a língua portuguesa assume em decorrência
do status do falante e de suas condições socioeconômicas), as pesquisas sociolinguísticas
têm apontado, também, a existência de uma enorme distância entre a norma idealizada
pela tradição gramatical e as normas que poderíamos chamar de reais: normas linguísti-
cas que caracterizam o português falado no Brasil e que são utilizadas quotidianamente
pelos seus mais de 190 milhões de falantes. Nas palavras de Mattos e Silva,

Parece já haver um razoável consenso, sobretudo nas gerações mais jovens,


em torno do fato de a norma codificada na tradição gramatical de origem por-
tuguesa, e fundada, sobretudo, na literatura de épocas passadas, não ser mais
do que algo idealizado, ultrapassado já, e que nada, ou quase nada tem a ver
com a norma ou as normas lingüísticas em realização, que se entrecruzam na
comunicação quotidiana com a dialetação diatópica e diastrática de milhões de
brasileiros (MATTOS e SILVA, 1988, p. 28)

111
A Ciência Linguística: Ou seja, nenhuma das normas linguísticas que, atualmente, estão na base das inúme-
conceitos básicos
ras práticas de linguagem dos falantes do português brasileiro corresponde, em sua tota-
lidade, ao ideal proposto pela GT e cristalizado, como vimos, nas chamadas gramáticas
normativas. Em capítulo anterior, apresentamos evidências dessa discrepância quando
comentamos o desacordo existente entre a descrição do paradigma verbal feito com base
no ideário da GT e o que chamamos de paradigma “mais real”, aquele que corresponde-
ria, mais de perto, às possibilidades de conjugação verbal que guiam as práticas linguís-
ticas dos falantes brasileiros. Vejamos, a seguir, mais um exemplo desse desacordo, para
que possamos tornar ainda mais precisas as afirmações que vimos fazendo – o exemplo
e a análise que seguem foram recolhidas de Mattos e Silva (2004, p. 145):

a) Eu conheço a Maria há muitos anos.


b) Eu conheço ela há muitos anos.
c) Eu conheço [ø] há muitos anos.
d) Eu a conheço há muitos anos.

Nesses exemplos, estão em jogo as formas de expressão do objeto direto anafórico


de terceira pessoa. Dos exemplos apresentados, a estrutura em (d) – em que o objeto
direto anafórico é expresso pelo uso do chamado clítico acusativo – é a única, em
geral, prevista pelas gramáticas normativas. Assim, as estruturas em (a), (b) e (c), res-
pectivamente expressas por um sintagma nominal, por um pronome (“ele acusativo”)
e por um objeto nulo, não são geralmente exploradas por essas mesmas gramáticas,
nem mesmo nas aulas de Português. Notar que a estrutura em (b) é, também, “vee-
mentemente condenada por todos os gramáticos como ‘erro’ dos mais cabeludos”
(BAGNO, 2002, p. 49), uma vez que, para gramáticos e gramáticas, esse pronome so-
mente poderia ser usado ocupando a posição de sujeito do enunciado.
Entretanto, segundo Mattos e Silva (2004), pesquisas – tanto aquelas guiadas pela
perspectiva gerativista quanto aquelas guiadas pelo arcabouço teórico desenvolvido
pela Sociolinguística – têm mostrado que todas as estruturas acima aparecem, embo-
ra de formas diferenciadas, nas manifestações linguísticas dos falantes e escreventes
brasileiros de níveis socioeconômicos e de graus de escolaridade variados. Além disso,
a autora afirma que os dados obtidos pelas pesquisas gerativistas e sociolinguísticas
apontam para “a perda do clítico acusativo e o desprestígio social de ele acusativo”.
Esses fatos, por sua vez, têm aberto caminho para a disseminação do uso do chamado
objeto nulo e do sintagma nominal pleno (MATTOS e SILVA, 2004, p. 145). Recupe-
rando dados de pesquisas de Duarte e Tarallo (1988 apud MATTOS e SILVA, 2004, p.
145) e de Corrêa (1991 apud MATTOS e SILVA, 2004, p. 145) sobre os fatores que

112
determinam a preferência ou desprestígio das formas acima, a autora se permite supor, Gramática e ensino

“com certa margem de segurança”, que:

[...] nos extremos do continuum dialetal brasileiro, a partir dos dados urbanos
de informantes de escolaridade mais baixa e mais alta acima relatados, a situa-
ção se direcionará para a ausência dos clíticos de 3ª pessoa nos dialetos rurais
de não escolarizados, já que os clíticos são adquiridos na escola, em taxa baixa,
como vimos, e se direcionam para um frequência mais alta, nos indivíduos de
escolaridade máxima (MATTOS e SILVA, 2004, p. 147).

Devemos notar que as taxas “mais altas” as quais a autora faz referência são 10,7%
na fala de universitários e 85,7% na escrita desses mesmos sujeitos – dados obtidos
por meio da pesquisa de Corrêa (1991 apud MATTOS e SILVA, 2004, p. 145). Assim, a
estrutura privilegiada pelas gramáticas normativas é a menos usada pelos falantes do
português (escolarizados ou não, residentes em zonas rurais ou urbanas) e seu uso
está em coocorrência e concorrência com outras estruturas. Ademais, essa estrutura
fica quase que exclusivamente limitada aos usos mais formais da escrita4.
A prerrogativa dada à norma ideal veiculada pelas gramáticas normativas e, muitas
vezes, transposta acriticamente nos manuais didáticos – norma que, em vários de seus
aspectos constitutivos, não encontra paralelo nos usos reais que são feitos da língua
–, tem consequências para o ensino de Português. Quando elegemos o ensino dessa
norma ideal como objetivo precípuo das aulas de Língua Portuguesa, deixamos, dentre
outros fatos, de reconhecer o potencial expressivo dos antecedentes linguísticos de
nossos alunos e não ofertamos possibilidades sólidas de acesso a e de incorporação
da norma culta real.
A alteração dessa realidade pressupõe a aceitação das diferenças nos modos de
inserção dos sujeitos nas práticas linguísticas, suas diferentes e, muitas vezes, diver-
gentes “formas de dizer”. Pressupõe, também, a necessidade de reconhecer que essas
formas divergentes de dizer servem a propósitos distintos e, obviamente, são recebidas
de maneira diferenciada pela sociedade:

[...] algumas conferem prestígio ao falante, aumentando-lhe a credibilidade


e o poder de persuasão; outras contribuem para formar-lhe uma imagem ne-
gativa, diminuindo-lhe as oportunidades. Há que se ter em conta ainda que
essas reações dependem das circunstâncias que cercam a interação (BORTONI-
RICARDO, 2006b, p. 15).

4 O leitor interessado no aprofundamento da discussão acima esboçada pode consultar o traba-


lho de Mattos e Silva (2004) e, também, a discussão feita por Bagno (2002, p. 99-121).

113
A Ciência Linguística: Em síntese, podemos afirmar que a escola e seus professores não podem ignorar
conceitos básicos
que outras vozes falam e escrevem hoje no Brasil. Vozes que, juntas, constituem “um
conjunto múltiplo e entrecruzado de variedades geográficas, sociais, estilísticas, de
registros e de gêneros textuais e discursivos” (FARACO, 2006, p. 26). Acolher essa
pluralidade de vozes e fazer dela o objeto da aula de Português talvez seja a saída para
que, de fato, possamos atender ao objetivo de garantir aos sujeitos do ensino “acesso
aos saberes linguísticos, necessários para o exercício da cidadania, direito inalienável
de todos” (BRASIL, 1998, p. 21).

Considerações finais: é preciso ensinar gramática na escola?


As considerações feitas até aqui podem ter levado o leitor a questionar a necessida-
de de se ensinar gramática na escola. Uma vez que salientamos que as gramáticas nor-
mativas – que, em geral, sustentam o estudo dos tópicos gramaticais nas aulas de Lín-
gua Portuguesa – fundamentam-se numa visão unicamente prescritiva da língua(gem)
e inspiram-se em normas muitas vezes em desuso e arcaicas, seria, ainda, necessário
ensinar gramática na escola?
O leitor convencido pelas reflexões que vimos fazendo poderá posicionar-se assu-
mindo a necessidade de substituição das gramáticas normativas pelas contribuições
advindas do corpo de conhecimentos elaborado nas últimas décadas pela Linguística.
Entretanto, esse posicionamento é, também, complicado, uma vez que

[...] Qual das muitas escolas teóricas da Lingüística vamos escolher para guiar
nosso trabalho em sala de aula? O estruturalismo saussuriano, a glossemática
de Hjelmlev, a tagmêmica de Pike, o gerativismo de Chomsky, o funcionalismo
do círculo lingüístico de Praga, a teoria das valências de Tesnière (para citar
apenas algumas das escolas mais conhecidas? (BAGNO, 2002, p. 65).

Para Bagno (2002), o problema em assumir uma dessas tendências reside no fato
de que, como toda ciência, a Linguística e suas diferentes áreas de conhecimento estão
em constante movimento: as teorias linguísticas são reformuladas ou abandonadas em
favor de outras formas de conceber, descrever e interpretar o fenômeno linguístico.
Deparamo-nos, então, com um impasse “[...] não ensinar Gramática Tradicional (por-
que não científica) nem ensinar as teorias mais recentes (porque sempre inconclusas
e provisórias)” (BAGNO, 2002, p. 65). Para a dissolução desse impasse, o autor propõe
que escolas e professores deveriam

[...] desenvolver a prática da leitura e da escrita, da releitura e da reescrita, da


re-releitura e da re-reescrita, sem a necessidade de decorar nomenclaturas (se-
jam elas as tradicionais ou as de alguma teoria moderna) nem de empreender
exercícios mal formulados e incongruentes de análise e descrição mecânica dos

114
fatos gramaticais, exercícios baseados em definições imprecisas e em métodos Gramática e ensino
mais do que questionáveis [...] (BAGNO, 2002, p. 65).

Essa proposta coaduna-se com aquela que vemos delineada nos PCNs. Neles, há
também uma crítica à forma descontextualizada por meio da qual os tópicos grama-
ticais têm sido ensinados nas aulas de Língua Portuguesa. Essa crítica incide tanto no
fato de os tópicos gramaticais serem, com raras exceções, abordados por meio de uma
metalinguagem às vezes inacessível ao aluno, quanto na constatação da forte presença
de exercícios de reconhecimento e de memorização de nomenclaturas que pouco ou
nada contribuem para a formação de produtores eficientes de textos falados e escritos
e para a constituição de ouvintes e leitores mais preparados para as demandas dos
processos de leitura e de escuta.
Para os PCNs, é no interior das situações de produção e de interpretação de tex-
tos falados e escritos que os conhecimentos sobre os aspectos gramaticais deveriam
fazer sentido. Ou seja, seriam, por um lado, nos momentos em que o falante ou o
escrevente monitora sua produção oral ou escrita (para garantir a sua adequação, sua
coerência, sua coesão e sua correção) e, por outro lado, nos momentos em que o leitor
ou o ouvinte esforça-se para atribuir sentidos para o texto que lê ou escuta, que os
conhecimentos sobre os aspectos gramaticais ganhariam utilidade.
Assume-se, portanto, que o conhecimento dos fatos atinentes à organização foné-
tica, fonológica, morfológica, sintática e semântica da língua (sua gramática, portanto)
devem ser ofertados à medida que se tornarem necessários para que os alunos façam
reflexões sobre o funcionamento dos textos que produzem, que escutam e que leem.
A adoção dessa postura implica uma alteração nos conteúdos gramaticais a serem en-
sinados, já que não há mais possibilidade deles se limitarem “[...] às imposições de
organização clássica de conteúdos na gramática escolar”(PCNs) (BRASIL, 1998, p. 29).
Quando subordinados às práticas de fala e de escrita, os tópicos gramaticais não mais
corresponderão aos fatos gramaticais tal como descritos nas gramáticas normativas.
Nesse sentido, alunos e professores terão que recorrer a outras fontes, inclusive ao seu
conhecimento intuitivo da gramática da (sua) língua.
É possível afirmar, então, que a questão que formulamos anteriormente, consti-
tui, na verdade, uma falsa questão – como já observado nos próprios PCNs. Antu-
nes (2003), Possenti (2001) e Faraco (2006), chamam a atenção para o fato de que
o problema central do ensino de Português não é saber se devemos ou não ensinar
gramática (FARACO, 2006, p. 21), mas, sim, o de atentarmos para o fato de que é
preciso oferecer aos nossos alunos condições para eles se familiarizarem com aquelas
práticas sociais de linguagem, orais e/ou escritas, relevantes para sua efetiva inserção

115
A Ciência Linguística: sociocultural. Nesse sentido, é, pois, tarefa fundamental a reflexão sobre a língua, seu
conceitos básicos
funcionamento em termos linguísticos e sociais e, obviamente, como vimos defenden-
do até aqui, reflexão a partir de uma perspectiva não normativista, que não reduza o
fenômeno linguístico a uma única e idealizada forma de manifestação.

Referências

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TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática


no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996.

VALENZA, G. M. O embate analogia x anomalia no De Lingua Latina de Varrão.


Revista X (Online), v. 1, p. 93-108, 2007. Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/
ojs2/index.php/revistax/issue/current>. Acesso em: 13 out. 2009.

Proposta de Atividades

1) (Adaptada de questão do ENC/2003, disponível em http://www.inep.gov.br/download/


enc/2003/provas/Prova-Let-Tipo1.pdf, acesso em 10/10/2009) Considere os textos abaixo,
que tratam de questões relativas aos pronomes pessoais:

Texto I
No Português Brasileiro, usa-se geralmente o pronome oblíquo antes do verbo
(próclise). O Português Europeu, por sua vez, apresenta-se como uma variante
mais enclítica, sendo uma exceção habitual as frases na negativa. Já a mesóclise,
possível nos tempos simples do futuro no Português Europeu, é pouco utilizada
no Português Brasileiro, com exceção de contextos litúrgicos nos quais o padrão
bíblico, que privilegia essa colocação pronominal, é adotado.

Texto II
Colocação dos pronomes átonos com formas verbais finitas
1. A posição normal dos pronomes átonos é depois do verbo (ênclise). Entre-
tanto, motivos particulares de eufonia ou de ênfase podem concorrer para a
deslocação do pronome.
2. É obrigatória a próclise:
(a) nas orações negativas;

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A Ciência Linguística: (b) nas orações exclamativas, começadas por palavras exclamativas, bem
conceitos básicos
como nas orações optativas;
(c) nas orações subordinadas.

As observações sobre pronomes pessoais contidas nos textos acima evidenciam duas dife-
rentes concepções de gramática. Identifique e caracterize cada uma delas.

Anotações

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