Você está na página 1de 371

Discursos,

linguagens e
representações:
exercícios dialógicos

Maria Inês Batista Campos Noel Ribeiro


Urbano Cavalcante Filho
(Organizadores)

FFLCH/USP
DISCURSOS, LINGUAGENS E
REPRESENTAÇÕES:
EXERCÍCIOS DIALÓGICOS
Maria Inês Batista Campos Noel Ribeiro
Urbano Cavalcante Filho
(Organizadores)

DISCURSOS, LINGUAGENS E
REPRESENTAÇÕES:
EXERCÍCIOS DIALÓGICOS
Marilia Amorim
Maria Inês Batista Campos Noel Ribeiro
Urbano Cavalcante Filho
Lucas Nascimento
Thiago Jorge Ferreira Santos
Frédéric François
Nathalia Akemi Sato Mitsunari
Viviane Mendes Leite
Jamille Santos Oliveira
Maria Elia dos Santos Teixeira de Carvalho
Maria das Graças Soares Rodrigues
Karla Stéphany de Brito Silva
Miriam Bauab Puzzo
Luciana Taraborelli
Laiza Luz Martins Sant’Ana
Simone de Jesus Padilha
Madson Bruno Soares Estevam
Larissa Vieira de Cerqueira
Letícia Thomé de Oliveira

São Paulo, 2024


DOI: 10.11606/9788575064825
Copyright © 2024 FFLCH/USP

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


Reitor: Prof. Dr. Carlos Gilberto Carlotti Junior
Vice-Reitora: Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E


CIÊNCIAS HUMANAS DA USP
Diretor: Prof. Dr. Paulo Martins
Vice-Diretora: Profa. Dra. Ana Paula Torres Megiani

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E


VERNÁCULAS
Chefe: Prof. Dr. Manoel Mourivaldo Santiago Almeida
Vice-Chefe: Profa. Dra. Cilaine Alves Cunha

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
FILOLOGIA E LÍNGUA PORTUGUESA
Coordenador: Prof. Dr. Waldemar Ferreira Netto
Vice-coordenadora: Profa. Dra. Sheila Vieira de Camargo Grillo
CONSELHO CIENTÍFICO

Agildo Santos Silva de Oliveira (UNEB, Brasil)


Alexandro Teixeira Gomes (UFRN, Brasil)
Ana Lúcia Tinoco Cabral (PUC-SP, Brasil)
André Luís Mitidieri Pereira (UESC, Brasil)
Andréa Gomes de Alencar (Instituto Singularidades, Brasil)
Arlete Machado Fernandes Higashi (SME-SP, Brasil)
Cláudio Primo Delanoy (PUC-RS, Brasil)
Flávia Machado (Université Paris Nanterre, França)
Gabriel Isola-Lanzoni (USP, Brasil)
Inti Anny Queiroz (Câmara Federal, Brasil)
Isaías Francisco de Carvalho (UESC, Brasil)
Juciane Cavalheiro (UFAC, Brasil)
Maria Bernadete Fernandes de Oliveira (UFRN, Brasil)
Maria Helena Cruz Pistori (PUC-SP, Brasil)
Marina Célia Mendonça (UNESP/Araraquara, Brasil)
Norma Seltzer Goldstein (USP, Brasil)
Paulo Roberto Gonçalves-Segundo (USP, Brasil)
Pedro Farias Francelino (UFPB, Brasil)
Regina Braz da Silva Santos Rocha (Editora Moderna, Brasil)
Rosalice Pinto (IFILNOVA, Portugal)
Sandra Mara Moraes Lima (UNIFESP, Brasil)
Sueli Pinheiro da Silva (UEPA, Brasil)
Thiago Jorge Ferreira Santos (UFSC, Brasil)
Vanessa Fonseca Barbosa (USP, Brasil)
Vânia Lúcia Menezes Torga (UESC, Brasil)
Yuri Andrei Batista Santos (Université Grenoble Alpes, França)
Copyright Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP. Autorizada a
sua reprodução total ou parcial para quaisquer fins acadêmico-científicos, desde que
citada a fonte. A Editora não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta
publicação. A responsabilidade pela utilização de imagens é inteiramente dos
autores presentes nesta publicação.
Os artigos publicados nesta obra são de inteira responsabilidade de seus autores.
Disponível em: http://www.livrosabertos.abcd.usp.br

Catalogação na Publicação (CIP)


Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Charles Pereira Campos – CRB-8/8057

D611 Discursos, linguagens e representações [recurso eletrônico] : exercícios


dialógicos / Organizadores: Maria Inês Batista Campos Noel Ribeiro.
Urbano Cavalcante Filho. -- São Paulo : FFLCH/USP, 2024.
14.400 Kb ; PDF.
Vários autores.

ISBN 978-85-7506-482-5
DOI 10.11606/9788575064825
1. Análise crítica do discurso. 2. Linguagem (estudo e ensino). 3.
Linguística. 4. Filosofia – Estética. 5. Mulher. 6. Educação. I. Ribeiro, Maria Inês
Batista Campos Noel, coord. II. Cavalcante Filho, Urbano, coord.
CDD 375.01

Revisão
Nathalia Akemi Sato Mitsunari
Maria Inês Batista Campos Noel Ribeiro
Urbano Cavalcante Filho

Projeto Gráfico de Capa


Gabriel Isola-Lanzoni
Foto de fundo: obra ‘Um por um’, de Slava PTRK (2016)

Projeto Gráfico de Diagramação


Gabriel Isola-Lanzoni

Esta obra é de acesso aberto. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que
citada a fonte e a autoria e respeitando a Licença Creative Commons indicada.
SOBRE OS ORGANIZADORES

Maria Inês Batista Campos Noel Ribeiro


Universidade de São Paulo

Professora, pesquisadora e orientadora de Mestrado e


Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Filologia e
Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo. Líder do
GP/CNPq/USP Linguagens, discurso e ensino. É membro da
Comissão Coordenadora de Pós-Graduação em Filologia e
Língua Portuguesa. É coordenadora do GT da ANPOLL Estudos
Bakhtinianos (2023-2025). Em 2023-2024, fez pós-doutorado
no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Paraná, Curitiba. Atua com os temas: teoria
bakhtiniana, gêneros do discurso, autoria, estilo, dissertação e
argumentação em manuais escolares de língua portuguesa,
argumentação em temas relativos à vulnerabilidade social.

E-mail: maricamp@usp.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9572384519070224
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0004-9923

Urbano Cavalcante Filho


Universidade Estadual de Santa Cruz
Instituto Federal da Bahia
Universidade de São Paulo

Doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela USP, com


realização de Estágios Doutorais de Pesquisa (Doutorado
Sanduíche) na França, na Université Paris Nanterre (2015 e
2016) e na UFRN (PROCAD/2012); possui pós-doutorados em
Análise Dialógica do Discurso (USP, 2020), em Análise
Comparativa de Discursos (Université Sorbonne Nouvelle,
2022) e em Análise Dialógica do Discurso Digital (USP, em
curso). Atualmente é professor, pesquisador e orientador de
Mestrado e Doutorado no Programa de Pós-Graduação em
Letras: Linguagens e Representações e do PROFLETRAS da
Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) e do Instituto
Federal da Bahia – Campus Ilhéus. É vice-coordenador do GT
Estudos Bakhtinianos da ANPOLL (Gestão 2023-2025),
fundador e líder do grupo de pesquisa LINDES: Linguagens,
Discurso e Sociedade (IFBA/CNPq), pesquisador dos grupos
Linguagens, discurso e ensino; Diálogo e Gedusp (USP/CNPq)
e membro associado à ABRALIN, à ALED, à ALAB e à APEB.

E-mail: urbano@ifba.edu.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6466770995969401
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1429-5300
SUMÁRIO 7

Sumário
Apresentação
10-16

Parte I: Fundamentos

Um Outro dança em mim. Bakhtin e


os filósofos da dança
Marilia Amorim (Universidade de Paris VIII, França) 18-39

Perspectivas teórico-metodológicas bakhtinianas:


um experimento de análise dialógica
Maria Inês Batista Campos Noel Ribeiro (USP, Brasil) 40-59
Urbano Cavalcante Filho (UESC/IFBA/USP, Brasil)

Desvirtude discursiva no discurso religioso evangélico:


análise dialógica da argumentação e ética
Lucas Nascimento (UEFS, Brasil) 60-77

Tornar-se pesquisador sob o olhar da perspectiva


sociológica da linguagem: dos diálogos formativos à
construção dos saberes
Thiago Jorge Ferreira Santos (UFSC, Brasil) 78-97

O “dialogismo”? Ou melhor, “algumas figuras do


diálogo, suas comunidades e suas diferenças,
um ponto de vista”
Frédéric François (Universidade Paris Descartes, França) 98-111
Tradução: Dóris de Arruda C. da Cunha (UFPE, Brasil)

Parte II: Educação


Leitura e cidadania no Novo Ensino Médio: fake news
em foco
Nathalia Akemi Sato Mitsunari (USP, Brasil) 113-132

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


A dimensão ideológica e as discursividades
8
cronotópicas em O cometa é um sol que não deu certo
Viviane Mendes Leite (USP, Brasil) 133-151
Sumário

A arquitetônica da divulgação científica na esfera


educacional: uma análise bakhtiniana
Jamille Santos Oliveira (UESC, Brasil) 152-180
Urbano Cavalcante Filho (UESC/IFBA/USP, Brasil)

O Círculo de Bakhtin e a Linguística Aplicada: notas


para uma educação antirracista em ensino de língua
espanhola
Maria Elia dos Santos Teixeira de Carvalho (IFBAIANO/UESC, Brasil) 181-204
Urbano Cavalcante Filho (UESC/IFBA/USP, Brasil)

Parte III: Mulheres


“Nunca encostei o dedo nela. Eu sou mãe.”: alteridade
e emoção construindo a orientação argumentativa na
entrevista para o Fantástico do casal Nardoni
Maria das Graças Soares Rodrigues (UFRN, Brasil) 206-228
Karla Stéphany de Brito Silva (UFRN, Brasil)

A voz da mulher na poesia: uma questão de estilo na


perspectiva bakhtiniana
Miriam Bauab Puzzo (UNITAU, Brasil) 229-245

Poesia feminina negra: Do velho ao jovem, de


Conceição Evaristo e Quem sou eu, de Cristiane Sobral,
em uma perspectiva dialógica
Luciana Taraborelli (USP, Brasil) 246-266

Cronotopo dialógico: as memórias das mulheres


"simininas"
Laiza Luz Martins Sant’Ana (UFMT, Brasil) 267-287
Simone de Jesus Padilha (UFMT, Brasil)

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


“Você pode perguntar para a sua empregada
doméstica, que ela viu que esse país melhorou” - 9
arquitetônica bakhtiniana no embate entre Lula e
Soraya Thronicke no debate presidencial Sumário
Karla Stéphany de Brito Silva (UFRN, Brasil) 288-308
Madson Bruno Soares Estevam (UFRN, Brasil)

Discursos presidenciais do Dia Internacional da Mulher


(2014 e 2022)
Larissa Vieira de Cerqueira (USP, Brasil) 309-332

O corpo feminino no espaço e no tempo: uma análise


comparativa de anúncios publicitários de cigarro da
década de 1970 no Brasil e na França
Letícia Thomé de Oliveira (USP, Brasil) 333-352

Resenha
Resenha: O autor e a personagem na atividade estética,
de Mikhail Bakhtin
Cláudio Primo Delanoy (PUC-RS, Brasil) 353-366

Sobre os autores
367-371

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


10

Apresentação

Ser significa ser para o outro e, através dele, para si. O homem
não tem um território interior soberano, está todo e sempre na
fronteira, olhando par dentro de si ele olha o outro nos olhos ou
com os olhos do outro.
M. BAKHTIN. Em torno da reescrita do
livro de Dostoiévski, 2008, p. 319.

O objetivo da obra Discursos, linguagens e representações:


exercícios dialógicos é apresentar artigos voltados à pesquisa no âmbito da
Análise Dialógica do Discurso (ADD) em diálogo com outras vertentes
teóricas, a exemplo da Linguística Textual, da Análise Textual dos Discursos
e da Linguística Aplicada, reunindo publicações em que o texto e o discurso
são explorados tanto nas dimensões estética, política, religiosa, científica,
epistemológica, quanto nas relações estabelecidas com a educação e com o
discurso da e sobre a mulher no campo da atividade artística, política e
social. Os pesquisadores dos estudos da linguagem propõem vários
enfoques, reivindicam diferentes conceitos de pressupostos teóricos variados
e analisam uma heterogeneidade de corpora, sempre discutindo sua
existência nas várias esferas da atividade humana.
O resultado das pesquisas desenvolvidas, em parceria, ou
individualmente, estabelece um diálogo “sempre em fronteira” com
diferentes contextos e em diferentes esferas, sejam artísticas, científicas,
religiosas, publicitárias. A motivação para organizar esta coletânea é com o
foco em abrir um espaço de discussão e de reflexão em torno da tensa
interlocução com o outro, como explica Bakhtin: “o homem não tem um
território interior soberano, está todo e sempre na fronteira”. A penetração

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


dos grupos de pesquisa revela esse movimento dialógico construído nas mais
variadas fronteiras, o que explica o título da coletânea: Discursos, 11
linguagens e representações: exercícios dialógicos. Os artigos centram-se
nas noções de discursos, linguagens, articulados à análise de enunciados
concretos, o que estabelece uma dupla dimensão que tem uma
fundamentação teórica linguístico-discursiva e um conjunto de textos
analisados, a exemplo da dança, do discurso político, do discurso religioso,
do discurso científico, etc.
Dessa maneira, o livro está organizado em três partes, mais
apresentação e resenha. No início, “Fundamentos” abre a parte I com seis
artigos que reúnem pesquisadores da Universidade de Paris VIII - Saint Denis
e da Universidade René Descartes - Paris V, na França; e pesquisadores
brasileiros da região nordeste (da UESC, do IFBA, e da UEFS, na Bahia, e
da UFPE, em Pernambuco), sudeste (da USP, em São Paulo) e sul (da UFSC,
em Santa Catarina). O primeiro texto “Um Outro dança em mim. Bakhtin e
os filósofos da dança”, de autoria de Marilia Amorim, trata de conceitos
bakhtinianos centrais, como gênero discursivo e cronotopo. Amorim constrói
um diálogo com textos filosóficos sobre a dança e a analisa na perspectiva
bakhtiniana.
Em seguida, o texto “Perspectivas teórico-metodológicas
bakhtinianas: um experimento de análise dialógica”, de Ribeiro e Cavalcante
Filho, traz reflexões teórico-metodológicas centrais na teoria da linguagem
de Bakhtin, Volóchinov e Medviédev. O artigo articula os pressupostos
teórico-metodológicos com a análise do discurso presidencial de Luís Inácio
Lula da Silva, proferido em Nova Déhli na abertura do G20 no dia 9 de
setembro de 2023, com o propósito de defender uma mobilização global
contra a mudança do clima.
O terceiro texto, ligado ao discurso religioso, é de Lucas Nascimento,
intitulado “Desvirtude discursiva no discurso religioso evangélico: análise
dialógica da argumentação e ética”. Nele, de maneira eloquente, o autor
busca aproximar a perspectiva da análise dialógica com a da argumentação.
Para essa articulação, adota como fundamento a filosofia do ato de Bakhtin
e seu dialogismo e retoma os fundamentos da nova retórica de Perelman e
Olbrechts-Tyteca e também os estudos sobre ética das virtudes discursivas
de Paveau. O trabalho apresenta uma análise dos argumentos do deputado
federal e pastor Marco Feliciano (PL) em torno da afirmação que “união

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


homossexual não é normal. O reto não foi feito para ser penetrado”, com
vistas a compreender como seu enunciado ultrapassa os limites éticos da 12
polêmica, tornando-se um discursivo desvirtuoso.
Thiago Jorge Ferreira Santos, na sequência, trata de como “Tornar-se
pesquisador sob o olhar da perspectiva sociológica da linguagem: dos
diálogos formativos à construção dos saberes”, com o objetivo de analisar o
processo de formação do pesquisador e como ele se torna membro de um
grupo da comunidade científica, a partir da aprendizagem de conceitos
científicos e também da mobilização dos conceitos pelos estudantes para a
interpretação dos dados de suas pesquisas e para a proposição de possíveis
novos saberes.
O próximo texto, encerrando essa primeira parte, traz Frédéric
François (1935-2020), professor emérito de Filosofia e de Linguística, um
dos primeiros linguistas a compreender o dialogismo bakhtiniano e a
estabelecer relações com o processo de aquisição da linguagem pela criança.
Trata-se do artigo “O ‘dialogismo’? Ou melhor, ‘algumas figuras do diálogo,
suas comunidades e suas diferenças, um ponto de vista’”, publicado na
revista francesa Éla. Études de linguistique appliquée, número especial de
2014, intitulado “Diálogo e dialogismo nos textos e nas aulas: abordagens
multidisciplinares”. A professora e pesquisadora Dóris de Arruda Carneiro
da Cunha gentilmente traduziu o texto de François, permitindo retomarmos
o tão discutido conceito de dialogismo. Nele, o professor francês faz um
balanço do conceito bakhtiniano de “dialogismo” depois de quarenta anos de
recepção na França. Partindo de alguns questionamentos em torno do
conceito, o autor se recusa a adotar o dialogismo como uma noção
exclusivamente verbal. Dois exemplos analisados são construídos nessa
direção, abordando de forma original o que nos faz concordar ou não com os
outros.
A parte II “Educação” empreende a análise de materialidades em
torno do ensino fundamental e médio, ao integrar quatro artigos,
congregando pesquisadores brasileiros da região nordeste (da UESC, do
IFBA e do IFBAIANO, na Bahia) e sudeste (da USP, em São Paulo). Eles
formam um importante núcleo, colocando em diálogo a teoria bakhtiniana e
a escola básica. Em “Leitura e cidadania no Novo Ensino Médio: fake news
em foco”, Nathalia Akemi Sato Mitsunari parte de um questionamento sobre
como a cidadania é estimulada na construção do conhecimento tanto no

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


mundo da cultura como do manual escolar. Para investigar a cidadania no
mundo da cultura, a autora traz as tensões em torno do ensino de leitura, a 13
partir da redemocratização no Brasil nos anos 1980. O estudo aborda os
conceitos de arquitetônica e de cronotopo e por fim analisa uma seção de
leitura do manual didático de Língua Portuguesa Interação: Português (Sette
et al., 2020). A pesquisa permite refletir a respeito dos valores associados à
coletânea de leitura indicada no manual, às explicações e às atividades na
seção, de modo a analisar como a atividade cidadã é proposta na leitura.
Viviane Mendes Leite, por sua vez, em “A dimensão ideológica e as
discursividades cronotópicas em O cometa é um sol que não deu certo”,
propõe uma excelente análise da narrativa juvenil que aborda o tema dos
refugiados na obra do autor pernambucano Tadeu Sarmento, ilustrado pelo
artista plástico Apo Fousek. Nesse exercício dialógico, a autora mobiliza
conceitos bakhtinianos para compreender os discursos que atravessam o
signo ideológico "refugiado" e as posições valorativas linguisticamente
marcadas.
Jamille Santos Oliveira e Urbano Cavalcante Filho tratam, de forma
crítica, da configuração que a arquitetônica da divulgação científica assume
no livro didático no capítulo “A arquitetônica da divulgação científica na
esfera educacional: uma análise bakhtiniana”. O foco é discutir como a
divulgação científica apropria-se do discurso do outro na elaboração do texto.
A partir da noção bakhtiniana de arquitetônica, os autores analisam as
atividades de leitura do manual escolar Tecendo Linguagens: Língua
Portuguesa (Araújo; Oliveira, IBEP, 2018) para o 8º ano do ensino
fundamental. A análise aprofunda as propostas de leitura do artigo de
divulgação científica e o deslocamento entre a esfera de publicação original
e a transferência para atividade escolar, tendo interlocutores diferentes da
fonte primária. Os autores passam a refletir sobre como a palavra do outro
sofreu coerção, sendo reformulada, ganhando nova entonação, de modo que
a valoração negativa/positiva de concordância/discordância e
aceitação/rejeição ao discurso do outro tornou-se evidente no todo
arquitetônico do enunciado.
O texto que finaliza essa segunda parte é de Maria Elia dos Santos
Teixeira de Carvalho e
Urbano Cavalcante Filho, intitulado “O Círculo de Bakhtin e a
Linguística Aplicada: notas para uma educação antirracista em ensino de

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


língua espanhola”. Nele, os autores refletem sobre o ensino de língua
espanhola antirracista e decolonial, sobretudo, com base em um viés 14
dialógico, alteritário e responsivo, a partir de articulação entre pressupostos
da ADD e da LA.
Para finalizar, a parte III empreende a análise de diferentes enunciados
em torno do tema “Mulheres”, sinalizando os confrontos sociais que se
multiplicam nas várias esferas sociais. Os próximos sete artigos foram
produzidos por pesquisadores brasileiros da região nordeste (da UFRN, no
Rio Grande do Norte), centro-oeste (da UFMT, no Mato Grosso), sudeste
(UNITAU, Taubaté, São Paulo). Maria das Graças Soares Rodrigues e Karla
Stéphany de Brito Silva, em “‘Nunca encostei o dedo nela. Eu sou mãe’:
alteridade e emoção construindo a orientação argumentativa na entrevista
para o Fantástico do casal Nardoni” apresentam a análise da entrevista do
casal com foco em compreender a construção da orientação argumentativa
nas respostas de Alexandre Nardoni e de Anna Carolina Jatobá (2008), em
relação à alteridade e à emoção. As autoras buscam compreender as emoções
de Nardoni e Isabela quanto à dor e à tristeza nas suas declarações, uma vez
se consideram julgados injustamente pela sociedade. Para as analistas do
discurso, as argumentações emocionais do casal foram usadas com o objetivo
de persuadir o auditório de que eram incapazes de cometer o assassinato. As
pesquisadoras refletem sobre o sentimento exposto dos entrevistados como
ponte para construir uma imagem de vitimismo.
Os próximos dois textos estabelecem um diálogo entre eles, trazendo
como foco a poesia feminina negra de Conceição Evaristo. Miriam Bauab
Puzzo, em “A voz da mulher na poesia: uma questão de estilo na perspectiva
bakhtiniana”, foca em dois poemas da coletânea Poemas de recordação e
outros movimentos (2021), cuja voz poética expõe os conflitos vivenciados
pelo sujeito lírico em relação ao seu contexto sócio-histórico. Luciana
Taraborelli em “Poesia feminina negra: Do velho ao jovem, de Conceição
Evaristo e Quem sou eu, de Cristiane Sobral, em uma perspectiva dialógica”
constrói um diálogo com as duas escritoras que assumem uma posição de
resistência frente a uma sociedade hierárquica e desigual. Nesse texto, o leitor
pode acompanhar a dor de Taraborelli frente à luta das mulheres negras
contra a injustiça social, contra o preconceito e o racismo.
No capítulo seguinte, “Cronotopo dialógico: as memórias das
mulheres ‘simininas’", Laiza Luz Martins Sant’Ana e Simone de Jesus

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Padilha analisam os textos biográficos de seis jovens da cidade de Cuiabá,
Mato Grosso, que participaram das atividades socioculturais do Programa 15
Siminina em comunidades carentes. O termo “siminina” refere-se ao
linguajar cuiabano e tem o sentido de “essa menina”. As autoras marcam a
relevância do valor biográfico depreendido nas respostas ao questionamento
feito em encontros dialógicos ocorridos no período de 2005 a 2011, em as
crianças e adolescentes participaram das oficinas com foco na troca de
memórias narradas por elas. Merece destaque o olhar agudo das autoras
frente ao Programa "Siminina", no município de Cuiabá, permitindo a
inclusão social de criança e adolescentes do sexo feminino em situação de
vulnerabilidade econômica-social, o que permitiu o desenvolvimento social,
emocional, cultural e físico das jovens.
Os dois próximos textos trazem um importante núcleo temático: a
análise do discurso político. Karla Stéphany de Brito Silva e Madson Bruno
Soares Estevam apresentam “‘Você pode perguntar para a sua empregada
doméstica, que ela viu que esse país melhorou’ - arquitetônica bakhtiniana
no embate entre Lula e Soraya Thronicke no debate presidencial”. Eles
analisam o debate entre os candidatos Lula (PT) e Soraya Thronicke (União
Brasil) nas eleições de 2022, exibido pela Rede de Televisão Bandeirantes.
O leitor poderá se atrair pela linguagem usada pelos candidatos, seus embates
e confrontos diretos. Em “Discursos presidenciais do Dia Internacional da
Mulher (2014 e 2022)”, Larissa Vieira de Cerqueira foca nos
pronunciamentos presidenciais de Dilma Rousseff (8/3/2014) e Jair
Bolsonaro (8/3/2022) na comemoração ao Dia Internacional da Mulher. O
objeto selecionado é bastante estimulante, porque a pesquisadora centra sua
análise nas diferentes formas de discurso do outro presentes nos enunciados
transcritos e visuais, considerando as marcas sócio-histórico-ideológicas, às
vezes antagônicas em torno do papel da mulher na sociedade.
O último texto “O corpo feminino no espaço e no tempo: uma análise
comparativa de anúncios publicitários de cigarro da década de 1970 no Brasil
e na França”, de Letícia Thomé de Oliveira, dedica-se a analisar as diferenças
existentes nas representações da figura feminina em propagandas brasileiras
e francesas, na década de 1970. Nesse estudo, a autora explica o papel que os
signos ideológicos verbais e visuais desempenham na construção de sentido
do gênero, principalmente quanto às ênfases valorativas em torno na figura
da mulher nas duas sociedades.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Como se pode notar, essa coletânea, a partir da centralidade na teoria
bakhtiniana da linguagem nos estudos propostos, e considerando o diálogo 16
com outras abordagens, como a Linguística Textual (LT), a Linguística
Aplicada (LA) e a Análise Textual do Discurso (ATD), oferece aos leitores
um leque de textos e análises em diferentes campos de atuação nas vozes de
diferentes sujeitos. E fechando o livro, a resenha do professor e pesquisador
Claudio Primo Delanoy (da PUC do Rio Grande Sul) trata da obra O autor e
a personagem na atividade estética, de Mikhail Bakhtin, publicada em 2023,
texto filosófico que aparece com uma parte inédita em português, traduzida
pelo professor Paulo Bezerra.
Agradecemos aos pesquisadores que trabalharam em seus artigos com
o propósito de partilhar suas investigações no campo das Ciências Humanas,
à incansável revisora Nathalia Akemi Sato Mitsunari, que auxiliou na
finalização da obra, e ao pesquisador Gabriel Isola-Lanzoni, que trabalhou
na diagramação e na arte final do livro.
Desejamos excelente leitura a todos e a todas!

Maria Inês Batista Campos Noel Ribeiro


Urbano Cavalcante Filho
São Paulo - SP, dezembro de 2023

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


17

Parte I

Fundamentos

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


18

Amorim

Um Outro dança em mim.


Bakhtin e os filósofos da dança
An Other dances through me. Bakhtin and
the philosophers of dance

Marilia Amorim Introdução


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Universidade de Paris VIII, França Este texto conclui a trilogia
de estudos sobre a dança que
empreendi sob o modo de
exercícios de análise de diferentes
corpi - do balé clássico à streetdance, passando pelo nascimento do balé
moderno. Para tanto, foram convocados conceitos bakhtinianos centrais,
como gênero discursivo1 e cronotopo2. Em ambos os estudos, a noção
filosófica de alteridade atuou como noção norteadora imprescindível, uma
vez que ela é um dos eixos do pensamento bakhtiniano. No terceiro estudo,
essa noção adquire centralidade, porque o que se quer é construir um diálogo
com textos filosóficos sobre a dança. A dança é um objeto filosófico
consagrado por vários autores, mas no presente trabalho, trataremos apenas
daqueles que parecem permitir a construção de um diálogo com a perspectiva
bakhtiniana.
Que se saiba até o momento, a dança não se constituiu como objeto de
estudo para Bakhtin ou para os autores do Círculo. Assim, os dois primeiros
estudos empreendidos somente se justificaram na medida em que a dança foi

1
Cf. Amorim (2020).
2
Cf. Amorim (2023).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


tomada como discurso, e a coreografia, como um conjunto coerente de
enunciados. Há, entretanto, na obra bakhtiniana, um trecho digno de nota em 19
que a dança é referida explicitamente a uma noção igualmente filosófica: a
Amorim
sofianidade. O trecho integra o ensaio O autor e a personagem na atividade
estética, na parte dedicada a “O todo temporal do herói”:

[...] na dança, tudo o que em mim é interior procura exteriorizar-se,


coincidir com a imagem externa; na dança eu me condenso mais na
existência, familiarizando-me com a existência dos outros; em mim
dança a minha presença (ratificada axiologicamente de fora), a minha
sofianidade, o outro dança em mim. Vive-se nitidamente na dança um
momento de possessão, de possessão pela existência. Daí o significado
cultual da dança nas religiões da existência (Bakhtin, 2022, p. 125).

1 O Outro terceiro
1.1 Deus
Possuído pelo outro: a questão da alteridade está posta como fundante.
Aqui, entretanto, aparece a especificidade de remeter a uma dimensão
religiosa. O termo sofianidade é um conceito da teologia, notadamente, do
catolicismo ortodoxo, e sabemos da ligação de Bakhtin com esse aspecto da
cultura russa. Nesse âmbito, sofianidade designa a sabedoria divina. Por
exemplo, no teólogo russo Sergei Bulgakov (1871-1944), contemporâneo um
pouco mais velho que Bakhtin, há um elemento estético na sofianidade: “a
manifestação da Sofia divina se nos dá como Beleza do Cosmos, a
sofianidade sensível do mundo” (Xavier; Silva, 2020, p. 413).
Mas é talvez no espelho sofiânico do teósofo alemão Jacob Boehme
(1575-1624) que melhor se encontram pistas para a relação com o
pensamento bakhtiniano e o uso que faz dessa noção ao falar da dança.
Segundo o filósofo Dufour (1999), a idéia de espelho é o elemento-chave da
sofianidade enquanto sabedoria divina:

Deus só pode com efeito conhecer-se a si mesmo opondo-se a Si


Mesmo. Deus se exprime assim no homem, criado à sua imagem, e isso
num movimento jamais acabado, infinito, de revelação a Si-mesmo. O
meio desse engendramento onde se passa do Um, indizível e invisível,
ao múltiplo visível do mundo, não é outro senão o espelho, este olho da
Sabedoria divina, que contém as imagens de todos os seres individuais
(Dufour, 1999, p. 37).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


O paralelo com o pensamento bakhtiniano parece claro quando se
toma o início da citação sobre a dança: 20

Uma vez que me familiarizo de modo justificado com o mundo da Amorim


alteridade, nele sou passivamente ativo. Uma imagem clara desse
ativismo passivo é a dança (pliaska)3. Na dança, minha imagem externa,
que só os outros vêem e só existe para eles, funde-se com o meu
ativismo interior orgânico que sente a si mesmo [...] (Bakhtin, 2022, p.
125).

Ainda em Boehme, segundo Alexandre Koyré: "O um só pode chegar


a se exprimir e a se manifestar no outro e pelo outro” (Koyré, 1929, p. 245
apud Dufour, 1999, p. 39). Importante sublinhar que o trecho de Bakhtin se
situa no interior de uma reflexão sobre a relação autor – personagem. Nela
irá elaborar o conceito de exotopia e a ideia segundo a qual somente o outro
me totaliza e me dá acabamento, ao me conferir um sentido valorado global.
Sublinha assim: “a fronteira entre autor e personagem, entre o portador do
conteúdo do sentido da vida e o portador de seu acabamento estético”.
(Bakhtin, 2022, p. 126). Na tensão entre ambiente e horizonte, o outro me vê
ali onde não me vejo, porque estou em permanente devir e inacabamento. A
exotopia traz o espelho enquanto dispositivo através do qual busco me situar
no ponto de vista do outro para apreender seu olhar sobre mim. Em “O corpo
como valor: o corpo interior”, item do capítulo intitulado “A forma espacial
da personagem”, Bakhtin diz:

Só na vida assim percebida, na categoria de outro, meu corpo pode


tornar-se esteticamente significativo, não porém, no contexto de minha
vida para mim mesmo, não no contexto de minha autoconsciência
(Bakhtin, 2022, p. 54).

O tradutor Paulo Bezerra nos indica que a palavra dança, usada por
Bakhtin no trecho de onde partimos, refere-se à dança popular e se distingue
daquela que seria normalmente usada para designar a dança no sentido
amplo, inclusive o clássico. Entretanto, do ponto de vista da problemática da
alteridade que está a ser tratada por Bakhtin, acredito que é possível conceber
uma acepção geral de dança, já que, se a idéia de sofianidade for válida para
a dança popular, será necessário incluir aí a dança religiosa e cultual. Além
disso, se tomamos a dança artística, balé clássico e outros gêneros, a
configuração alteritária que irá se colocar é a mesma. Aquele que dança

3
Nota do tradutor Paulo Bezerra: “Note-se que Bakhtin não emprega a palavra tánietz, que significa
dança no sentido amplo, inclusive o clássico, mas pliaska, que é dança no sentido mais popular,
mais restrito e também a música para a dança”.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


obedece ou é possuído por uma coreografia concebida e orientada por outro,
o coreógrafo, na qual o dançarino é passivamente ativo. Sua interpretação 21
criativa e singular funde uma “imagem externa, que só os outros vêem e só
Amorim
existe para eles” com um “ativismo interior orgânico que sente a si mesmo”
(Bakhtin, 2022, p. 125).
Acrescente-se que, no contexto da dança artística ou de espetáculo, a
dança é endereçada, e a suposição do olhar desse outro formado pelo público
integra a própria dança. Dupla alteridade, portanto, a dançar na dança. Não é
descabido lembrar que o grande espelho da sala de aula de dança ou de
ensaios constitui um dispositivo imprescindível para a construção dessa
“imagem que só os outros vêem” (Bakhtin, 2022, p. 125).
A ideia de sofianidade, porém, impõe uma dimensão de alteridade que
extrapola a relação dual do tipo eu-tu, entre o dançarino e seu público e
mesmo entre o dançarino e o coreógrafo. É uma alteridade terceira a qual
estão coagidos ambos os pólos da dualidade: trata-se de um ele. Para entender
o lugar dessa terceira pessoa, pode-se convocar uma distinção da língua
francesa que não tem equivalência em português: entre as palavras tiers e
troisième. O último corresponde à terceira posição numa série numérica onde
se é apenas mais um: primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto e assim por
diante. Na série, os lugares são intercaláveis e se equivalem – o primeiro pode
vir a ser segundo, o quarto pode vir a ser o quinto, etc. Já a palavra francesa
tiers não designa o mais um. O tiers é lugar de exceção, de outra ordem, sem
reciprocidade com os demais. Por exemplo, no âmbito jurídico, o juiz é um
tiers em relação às partes; mais do que isso, a lei que ele representa é um
tiers. À Lei, submetem-se todos, inclusive o próprio juiz enquanto indivíduo.
Já na perspectiva do espelho sofiânico, é Deus quem faz de mim e de cada
um, seu espelho.

1.2 A polis e a paixão por tornar-se outro


É na perspectiva de uma alteridade tierce que o título do presente
artigo toma a licença poética de alterar o texto bakhtiniano e grafar a
alteridade com maiúscula - Outro. Além disso, opta-se por trocar o artigo
definido pelo indefinido – um Outro. O uso do indefinido permite sair da

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


abordagem religiosa4 para conceber a possibilidade de vários outros
maiúsculos que venham a dançar em mim. 22

De que Outro então se trata? Para manter o estatuto maiúsculo de um Amorim


tiers, há que se evitar toda dispersão em torno de tus ou de eus. Para ser um
Ele sem ser Deus, a única possibilidade parece ser concebê-lo como uma
alteridade de natureza coletiva e cultural, tal como a Lei invocada
anteriormente.
O psicanalista lacaniano e filósofo do Direito Pierre Legendre
escreveu um livro chamado A paixão de ser um outro. Estudo sobre a dança.
Segundo ele, a dança coloca em cena o desejo de ser outro. Qual outro?
Aquele que se opõe à singularidade e instaura uma dimensão coletiva do ser
uno. Desejo de sermos um só e de nos fundirmos no estreitamento do laço
social. Legendre (2000) chama de dogma aquilo que está na base de toda
sociedade, aquilo que se instaura e que é dado como não questionável, sob
pena de desfazer o laço. Nas sociedades tradicionais, a dança é um ritual de
afirmação desse dogma, de submissão a este dogma: a lei do Outro.
Legendre não se afasta de Platão em sua visão social, política e
pedagógica da dança. Não por acaso, é no livro As Leis do filósofo grego que
aparece de modo mais explícito esse vínculo entre a dança e as leis da polis5.
A paidéia pela dança e pela música deve educar o jovem grego no senso do
ritmo e da harmonia, entendendo-se que é a própria harmonia da sociedade
como um todo que está em jogo. Assim, no consentimento em ser governado
pelas leis, o homem grego recebe dos deuses, notadamente Apolo, o dom de
sua presença:

[...] quase sem exceção, todos os indivíduos jovens são incapazes de


conservar seja o corpo seja a língua imóveis, estando tais jovens sempre
procurando incessantemente se moverem e gritarem, saltando, pulando
e se deliciando com danças e jogos, além de produzirem ruídos de todo
tipo. Ora, enquanto todos os outros animais carecem de qualquer senso
de ordem ou desordem nos seus movimentos que chamamos de ritmo e
harmonia, a nós os próprios deuses, que se prontificaram a ser nossos
companheiros na dança, concederam a agradável percepção do ritmo e
da harmonia, por meio do que nos fazem nos mover e conduzir nossos
coros, de modo que nos ligamos mutuamente mediante canções e

4
Essa saída parece se justificar no próprio texto de Bakhtin, uma vez que, mais adiante, ele usa a
dança como imagem para pensar o ritmo da ordenação temporal de um dado tipo de biografia: “A
vida biográfica do primeiro tipo é uma espécie de dança em ritmo lento (a dança em ritmo acelerado
é a lírica)” (Bakhtin, 2022, p. 147).
5
Note-se que a polis designa a cidade grega em sua dimensão não apenas geográfica, mas legal e
política. Daí estar na etimologia da palavra política.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


danças; e o nome coro provém do júbilo que dele extraímos (As Leis,
II, 653 e – 654 b, grifo nosso).
23
Vemos aí dois elementos chave do pensamento de Legendre: a dança
Amorim
como estreitamento do laço social e o desejo de fundir-se na unidade do coro,
o que em Platão traduz-se como júbilo. No dizer de Rancière, em Platão, a
forma coreográfica seria a boa forma6 da arte em que a comunidade dança
sua própria unidade. Em Legendre7,

A dança é um dos artifícios sociais para remediar a falta de corpo


daquilo que precisamente chama-se a sociedade. A dança serve à causa
do aglomerado unificado sob uma mesma versão da Lei, e esse trabalho
unitarista impulsiona cada sujeito a se reconhecer como o mesmo que
todos os outros tomados pela paixão do Outro. (Legendre, 2000, p. 169,
tradução nossa).

Para Legendre, a sociedade ocidental moderna envergonha-se de seu


dogma, de seu mito, e despreza os ritos. Mas cultiva outros modos de colocá-
lo em cena. Tanto o desfile militar como a dança configuram a metamorfose
de deixarmos de ser singular para integrarmos o Uno. Convocam uma
identificação que desidentifica o indivíduo para identificá-lo ao Todo do
coletivo. Evidentemente, seria importante levar em conta que o desfile e a
dança não afirmam os mesmos valores sócio-estéticos. Mas o que interessa
Legendre nessa comparação é sublinhar a dimensão política da dança
ancorada na problemática do desejo em sua relação com a Lei, o grande
Outro, a ordem simbólica. Esses são os fundamentos aos quais aderimos e
não podemos deixar de acreditar, sob pena de esfacelamento do coletivo e do
sujeito, daí o filósofo designar esses fundamentos de dogma. Como
psicanalista que também é, Legendre não concebe o dogma com caráter
essencial ou substancialista. Ele é uma ficção necessária, do mesmo modo
que os mitos de origem nas sociedades tradicionais.
Segundo ele, a dança revela uma época, uma cultura, mas também um
sistema político:

Nas sociedades ditas primitivas, se todas as atividades humanas mesmo


as mais triviais e ordinárias eram codificadas segundo o dogma e

6
Entenda-se aqui que boa forma remete à Psicologia da Gestalt, segundo a qual buscamos sempre
ver nas formas aquelas que formam um todo dotado de sentido. A essa forma se dá o nome de
Gestalt, que se traduz em português como boa forma.
7
No original: “La danse est l’un des artifices sociaux pour parer au manque de corps de ce qui
s’appelle précisément la société. La danse sert la cause de l’agglomérat unifié sous une même
version de la Loi, et ce travail unitariste pousse chaque sujet à se reconnaître le même que tous les
autres en proie à la passion de l’Autre” (Legendre, 2000, p. 169).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


investidas de um sentido dando à menor operação humana valor
cerimonial, a organização social produzia também, com a ajuda de
corpos humanos tão fantoches como hoje, explosões cerimoniais, 24
celebrações gigantes rememorando e recriando a ordem. Ora, a
sociedade industrial tem vergonha da sua ordem, ela a mascara e a Amorim
denega. (Legendre, 2000, p. 317, tradução nossa).8

O uso do verbo denegar faz ressoar aqui a perspectiva psicanalítica de


Legendre. A figura da denegação é analisada por Freud como uma dupla
negação, em que o resultado é uma afirmação. Tal como na matemática, o
negativo duplo resulta em valor positivo. Assim, nossas sociedades
ocidentais modernas negariam o dogma que as funda e o caráter ritual das
práticas sociais, mas ao fazê-lo, deslocam-no para outras formas igualmente
investidas do desejo de ser Outro.

Desse modo, a dança não é jamais independente de uma legalidade do


corpo “da qual somos assujeitados porque se trata de um trabalho de
identificação com o ideal”9 (Legendre, 2000, p. 166, tradução nossa).

Desse modo, a dança pode ser lida como cena em que esse Outro dança
e dá forma visível e palpável ao corpo social unificado. Em outra obra, ele diz:

É necessário palavras, imagens e um corpo. Para que se eleve a voz


humana. É necessário isso e mais uma quarta dimensão: é necessária
uma razão de viver. [...] A razão de viver nos vem da linguagem. Uma
máxima dos juristas diz: ‘ligam-se os bois pelos chifres e os homens
pelas palavras’” (Legendre, 2001, p. 26-27, tradução nossa).10

O autor sublinha que, por isso mesmo, a dança é também a cena em


que uma dada ordem pode ser subvertida e desfeita:

Pela dança, ousamos colocar em questão os procedimentos legais da


identificação ao corpo ideal, e é nisso principalmente que os

8
No original: “Dans les sociétés dites primitives, si toutes les activités humaines mêmes les plus
triviales et ordinaires étaient codifiées d’après le dogme et investies d’un sens donnant à la moindre
opération humaine valeur cérémonielle, l’organisation sociale produisait aussi, à l’aide de corps
humains tout aussi fantoches qu’aujourd’hui, des explosions cérémonielles, célébrations géantes
remémorant et recréant l’ordre. Or, la société industrielle a honte de son ordre, elle le masque et le
dénie” (Legendre, 2000, p. 317)
9
No original : “dont nous sommes les assujettis parce qu’il s’agit d’un travail d’identification avec
l’idéal” (Legendre, 2000, p. 166).
10
No original : “Il faut des mots, des images et un corps, pour que s’élève la voix humaine. Il faut
cela, plus une quatrième dimension : il faut la raison de vivre. […] La raison de vivre nous vient du
langage. Une maxime des juristes dit ceci : «On lie les bœufs par les cornes et les hommes par les
paroles. »” (Id., 2001, p. 26-27).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


controladores sociais têm as melhores razões para desconfiar de tal
produção (Legendre, 2000, p. 291, tradução nossa)11.
25

A dança pode vir a ser uma cena em que novos modos de organizar e Amorim
de unir o todo social sejam produzidos e corporificados. Nesse ponto,
podemos incluir a perspectiva bakhtiniana dos valores, posto que vemos aí
que a dança e sua coreografia podem afirmar ou contestar os valores de uma
dada ordem social. O próprio fato de haver uma cena permite um
distanciamento e um olhar em perspectiva para a comunidade encenada.
Como em Rancière (2009), as diferentes coreografias seriam maneiras pelas
quais se desenham figuras de comunidade.
Platão, Legendre e Rancière oferecem ao analista de um corpus de
dança a possibilidade de ler nela um pensamento sobre o coletivo e o político.
Esse grande Outro que nela dançaria, que nos transcende e ao qual estamos
todos sujeitos. Vejamos alguns exemplos onde acredito que seja possível vê-
lo dançar:

Fotos 1 e 2. Dança do povo Yanomami

11
No original : “Par la danse, nous osons remettre en cause les procédures légales de l’identification
au corps idéal, et c’est en cela notamment que les contrôleurs sociaux ont les meilleures raisons de
se méfier d’une telle production” (Legendre, 2000, p. 291).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


26

Amorim

Fonte: Canal Índios no Brasil12

O indivíduo se funde na totalidade. Em uma sociedade tradicional


como a dos índios Yanomami, podemos imaginar a indissociabilidade de que
fala Legendre, entre o cultural, o social e o rito. Do mesmo modo, parece se
aplicar aqui a ideia de sofianidade de que fala Bakhtin. No lugar do divino,
podemos pensar a dimensão do sagrado e o saber ancestral de natureza
político-religiosa, que atravessa momentos da vida comunitária.

12
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8H6syJInhqI. Acesso em: 09 mai. 2023.
Captura de imagem: Fair Use.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Foto 3. Balé “O lago dos Cisnes”

27

Amorim

Fonte: Canal Пермский театр оперы и балета13

As cenas de conjunto do Lago dos Cisnes14 são emblemáticas do


gênero do balé clássico. Uma foto do mesmo balé é usada por Legendre em
seu livro como exemplo típico da fusão entre o indivíduo e o Todo social.
O fascínio que ela desperta nos amantes desse gênero poderia então
ser pensado como o júbilo de que fala Platão ou como o desejo de que fala o
psicanalista. Observe-se aqui o alinhamento rigoroso dos corpos, o que
produz a imagem de uma totalidade orgânica, metáfora do corpo social.
Se compararmos as danças coletivas do Lago dos Cisnes com as do
balé A Sagração da Primavera15 na coreografia original de Nijinski16,
veremos outro modo de conceber o coletivo: ele é formado de distintos
grupos coreográficos e sonoros que dançam simultaneamente. O rigor e a
disciplina exigidos pela coreografia não estão ausentes, a imagem que resulta

13
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=htWM5ZtONU4. Acesso em: 09 mai. 2023.
Captura de imagem: Fair Use.
14
Criado no Teatro Bolchoï de Moscou, em 1877 por diferentes coreógrafos com música de Piotr
Tchaïkovski.
15
Criado no Teatro Mariinsky de São Petersbourgo em 1913 com música de Igor Straninski.
16
Vaslav Nijinski, bailarino e coreógrafo russo de origem ucraniana (1889-1950).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


é a de totalidades múltiplas que se sincronizam no ritmo da música, mas que
guardam suas especificidades. Em outra ocasião já mencionada17, pudemos 28
analisar a coreografia de Nijinski para esse balé e para o Entardecer do
Amorim
fauno18 como marcos que inauguram a modernidade no âmbito da dança.

Foto 4. Balé “A Sagração da Primavera”

Fonte: Canal 서율Seoyull19

A modernidade traz novos valores sócio-estéticos, o que inclui,


necessariamente, um novo modo de pensar o corpo terceiro do Coletivo.

2 O Terceiro e o Segundo
Se o terceiro e a sofianidade são da ordem do simbólico e do coletivo,
que agem em nós e nos constituem, podemos pensá-los também como
linguagem. Em relação ao pensamento bakhtiniano, encontramos em
Bubnova20 uma indicação preciosa a respeito:

[...] se na Filosofia do ato ético e outros textos afins (“O autor e a


personagem na atividade estética”), 1924, por exemplo) o diálogo

17
Cf. Amorim (2023).
18
Criado no Teatro Mariinsky de São Petersbourgo em 1912 com música de Claude Debussy.
19
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EvVKWapctX4&list=RDEvVKWapctX4
&index=1. Acesso em: 09 mai. 2023. Captura de imagem: Fair Use.
20
No original: “[...] si en la Filosofía del acto ético y otros textos afínes («Autor y héroe en la
actividad estética», 1924, por ejemplo) el diálogo ontològico entre el yo y el otro se desarrolla en
presencia de un tercero tendiente al infinito que puede ser Dios, a partir de un determinado momento
este tercero se transforma en el mismo lenguaje concebido pragmática y sociolingüísticamente”
(Bubnova, 1997, p. XVIII).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


ontológico entre o eu e o outro se desenvolve em presença de um
terceiro tendendo ao infinito que pode ser Deus, a partir de um
determinado momento esse terceiro se transforma na própria linguagem 29
concebida pragmática e sociolinguisticamente (Bubnova, 1997, p.
XVIII, tradução nossa). Amorim

Sabemos que na psicanálise lacaniana, a língua é o grande Outro da


ordem simbólica, que fala em cada um de nós. O estatuto atribuído à língua
é o que fundamenta o trabalho da clínica como modo de acesso ao
inconsciente pela via do significante. Porém, se tomarmos a dança como
discurso, em vez da língua, parece-me que postular o gênero discursivo como
a dimensão coletiva que, tal como a língua, permite e coage o dizer garantiria
a coerência com a filosofia da linguagem de Bakhtin. Foi com essa ideia que
empreendi o exercício de análise mencionado no início. Se o evoco nesse
ponto é para construir o segundo diálogo filosófico, desta vez, com Nietzsche
e sua filosofia estética.

2.1 Dançar nas correntes


Segundo Ponton, o filósofo alemão elaborou sua reflexão estética em
torno da questão da linguagem da arte, o que se desdobrou em duas fases bem
distintas. Na primeira fase de seu pensamento estético, Nietzsche celebra a
obra do compositor Richard Wagner, por romper com a linguagem
convencional. Essa linguagem seria aquela da cultura que é partilhada por
todos, e o artista deve romper com ela para fazer emergir o que seria a voz
da própria natureza. O filósofo se identifica aí com a estética romântica, em
que o artista é o gênio solitário capaz de produzir uma originalidade absoluta
(Ponton, 2020).
Na segunda fase, Nietzsche transforma suas próprias convicções e
passa a enfatizar a importância das convenções enquanto linguagem da arte:

Três quartos de Homero são convenção: e isso vale para todos os


artistas gregos para quem nenhum motivo impulsionava em direção a
esse furor moderno de originalidade. Eles não temiam em nada a
convenção posto que é por ela que estavam ligados a seu público. As
convenções são, com efeito, os procedimentos artísticos conquistados
para serem compreendidos pelo auditório, a língua penosamente
aprendida pela qual o artista pode verdadeiramente se comunicar.
(Nietzsche, 2008, §122, tradução nossa)21

21
Embora publicado no Brasil, não tive acesso ao texto brasileiro e parti do texto em francês, cujas
citações são por mim traduzidas. Em francês: “Les trois quarts d’Homère sont de la convention : et

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


O artista verdadeiro é aquele que integra as convenções necessárias à
comunicação com o público e faz delas sua segunda natureza. Ao preço de 30
muita disciplina e de muito trabalho, seu talento residirá na capacidade de
Amorim
jogar com as convenções e, não, de recusá-las. As coações e os
constrangimentos serão objeto de um trabalho do artista sobre si mesmo, em
que o rigor se opõe a qualquer espontaneísmo ou à vulgaridade22.
Tal como em Legendre, a disciplina, a coação e o rigor exigidos pela
dança evocam, em Nietzsche, a marcha do soldado. Porém, dirá que não há
nada mais convencional e, ao mesmo tempo, mais natural do que a dança.
(Nietzsche, 2008, §140) Assim, constitui-se, para Nietzsche, a verdadeira
cultura, aquela que supera a oposição entre o cultural e o natural. O artista,
ao fazer das convenções e de suas coações uma segunda natureza, retira-lhes
o caráter artificial.
A tradução francesa do texto alemão utiliza a expressão seconde
nature. Temos aqui, mais uma vez, a especificidade da língua francesa, ao
distinguir second de deuxième. Esse último, do mesmo modo que vimos no
caso de troisième, designa um lugar numa dada série, ou seja, ele é mais um.
Quanto ao termo second, ele designa um estatuto singular, uma vez que não
poderá haver outros depois dele. O uso desse termo no contexto do que diz
Nietzsche parece oportuno. Não se trata de pensar múltiplas naturezas, uma
após outra, mas de conceber uma natureza criada, o que, em princípio, seria
contraditório. O artista é aquele que supera a oposição entre natureza e
tradição, entre o artificial e o natural. A tradição e suas convenções deixam
de ser artificiais, na medida em que, ao incorporá-las, a ponto de poder jogar
com elas e dominá-las, criam uma natureza segunda.
Se postularmos a linguagem e as convenções de que fala Nietzsche
como grande Outro, como alteridade coletiva e terceira, ao dançarem no
corpo do artista, ao serem por ele incorporadas, engendram uma natureza
segunda, um corpo segundo.

il en va de même pour tous les artistes grecs, qu’aucun motif ne poussait à cette fureur moderne
d’originalité. Ils n’avaient pas la moindre crainte de la convention, puisque c’est par elle qu’ils
étaient unis à leur public. Les conventions sont en effet les procédés artistiques conquis pour être
compris des auditeurs, la langue commune péniblement apprise par laquelle l’artiste peut vraiment
se communiquer” (Nietzsche, 2008, §122).
22
Essa ideia vai ser retomada pelo filósofo contemporâneo Alain Badiou (1998), que define a arte
da dança como sendo o trabalho do corpo contra a vulgaridade.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Ainda segundo Nietzsche, as convenções herdadas e transmitidas
pelos artistas entre eles são a única linguagem pela qual podem 31
verdadeiramente comunicar; são a única garantia contra a facilidade, e sem
Amorim
elas, não haveria “consciência artesanal” e, portanto, grandeza artística. A
verdadeira liberdade artística não consiste em liberar-se da tradição, mas em
recriá-la.
Podemos até encontrar em Nietzsche um esboço de crítica avant la
lettre a certas concepções estéticas da pós-modernidade:

Sim, rejeitamos as correntes “absurdas” da arte grega e francesa, mas


insensivelmente nos habituamos a considerar absurdas todas as
correntes, todas as limitações; e assim a arte antecipa sua ruína [...]
(Nietzsche, 2008, §140, tradução nossa).23

Entretanto, a tradição e as convenções podem, facilmente, se degradar


em tradição sufocante e artificial, desprovidas de qualquer valor artístico. O
artista deve buscar o equilíbrio entre tradição e natureza, transformando-as
em natureza segunda. O aforismo 140 de O viajante e sua sombra24 chama-
se Dançar nas correntes e nos diz:

Pode-se perguntar, para cada artista, poeta ou escritor grego: que nova
coação é essa que ele se impõe e que ele torna atraente para seus
contemporâneos (ao ponto de ser imitada por alguns)? Porque isso que
se chama “invenção” (na métrica, por exemplo) é sempre um desses
elos que a gente se coloca em si mesmo. Dançar nas correntes,
dificultar a própria tarefa, em seguida derramar-lhes a ilusão de leveza,
tal é o talento que eles querem nos mostrar.

Já em Homero é possível identificar uma quantidade de fórmulas


herdadas e leis da narrativa épica no limite das quais ele devia dançar;
e ele próprio criou novas convenções para os que viriam depois dele.
Eis a escola em que se formaram os poetas gregos: primeiro se deixar
impor uma coação múltipla pelos poetas antigos; depois, não contente
com isso, inventar uma nova coação, dobrar-se a ela e dela triunfar com

23
No original: “Oui, on a rejeté les chaînes absurdes de l’art grec et français, mais on s’est
insensiblement habitué a trouver absurdes toutes les chaînes, toutes les limitations ; et l’art va ainsi
au-devant de sa ruine […]” (Nietzsche, 2008, §140).
24
No original: “On peut, pour chaque artiste, poète et écrivain grec, se demander : quelle est la
contrainte nouvelle qu’il s’impose et qu’il rend attrayante à ses contemporains (au point de trouver
des imitateurs) ? Car ce qu’on appelle « invention » (dans la métrique, par exemple) est toujours un
de ces liens [Fessel] que l’on se met soi-même. Danser dans les chaînes, se rendre la tâche difficile,
puis répandre par-dessus l’illusion de la légèreté, tel est le talent qu’ils veulent nous montrer. Chez
Homère déjà on peut déceler une quantité de formules héritées et de lois du récit épique dans les
limites desquelles il lui fallait danser ; et lui-même créa de nouvelles conventions pour ceux qui
viendraient après lui. Voilà l’école où se formèrent les poètes grecs: se laisser d’abord imposer une
contrainte multiple, par les poètes anciens ; puis, de ce non content, inventer une contrainte nouvelle,
s’y plier et en triompher avec grâce, tant et si bien que l’on remarquât et la contrainte et le triomphe”
(Nietzsche, 2008, §140).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


graça, tanto e tão bem que se poderão perceber a coação e o triunfo
(Nietzsche, 2008, §140, tradução nossa).
32
Vemos aqui indicações claras de que as convenções se referem a
Amorim
gêneros discursivos e artísticos ou literários, como no caso da narrativa épica.
Ao romper com a idéia do artista enquanto gênio solitário e ao inscrevê-lo no
registro de uma linguagem comum, a partir da qual ele cria, patrimônio
coletivo que é meio e condição para criar, Nietzsche não parece estar longe
da concepção bakhtiniana. Não há locutor adâmico, e isso vale também para
o artista. Não há lugar em Bakhtin para o puro gênio, origem primeira e
última de seus enunciados.
A dança será para Nietzsche a melhor expressão do que ele concebe
como liberdade de espírito: jogar com as convenções, dançar nas correntes e
delas extrair graça e leveza. Diz o filósofo: “[...] não conheço nada de que
um filósofo goste mais do que ser um bom dançarino” (Nietzsche, 1984, §
381).

2.2 O corpo alterado


Nosso último autor é Paul Valéry, poeta e pensador que não aceitaria
que o chamassem de filósofo, mas cujos textos são considerados como
filosóficos, pelas questões que traz e pelo tratamento que dá a elas. Ele
escreveu A Alma e a dança, texto duplamente dialógico. Primeiro, porque é
um diálogo entre diferentes personagens; segundo, porque é feito à maneira
dos diálogos de Platão, com personagens do Banquete de Platão: Sócrates,
Fedro e Erixímaco. Assim como o Banquete traz como tema o Amor, aqui,
temos um banquete que vai tomar como objeto do diálogo, a dança. Sócrates
pergunta: “‒ Ó meus amigos, o que é verdadeiramente a dança? [...] Mas o
que é então a dança, e que podem dizer os passos?” (Valéry, 1996, p. 42-43).
A dança constitui-se como objeto filosófico, e os passos, ou a coreografia,
são pensados como uma forma de linguagem.
Chegam então as dançarinas, e os interlocutores trocam comentários e
reflexões. Encontraremos, então, vários dos temas que tratamos antes. A
dança é metamorfose, forma radical de alteridade.25

25
A ideia da metamorfose como forma de alteridade radical foi desenvolvida em outra ocasião. Cf.
Amorim (2007).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Sócrates
‒ Ela [a dançarina] se transforma toda em dança, e se consagra ao movimento total! (Valéry,
1996, p. 39) 33
‒ Não sentis que ela é o ato puro das metamorfoses? (Valéry, 1996, p. 48).
Amorim

De um lado, podemos dizer que a metamorfose consiste na


transformação de um corpo primeiro em corpo segundo. O corpo primeiro é
aquele da vida cotidiana, atravessado pelos hábitos e pelas rotinas, dos quais
não temos consciência, uma vez que estão como que naturalizados. É o corpo
vulgar, no sentido de espontâneo e sem trabalho artístico sobre ele.
Do corpo segundo, tratam, por exemplo, estes trechos do diálogo de
Valéry, que descrevem um corpo extraordinário:
Sócrates
‒ Mas então, quem é o fino monstro tão flexível?
Erixímaco
‒ Rhodonia
Sócrates
‒ De Rhodonia, o ouvido é maravilhosamente ligado ao tornozelo (Valéry, 1996, p. 25).

O movimento mais banal torna-se precioso:


Sócrates
[...] Parece enumerar e contar em moedas de ouro puro aquilo que gastamos distraidamente
em vulgares níqueis de passos, quando vamos a algum lugar (Válery, 1996, p. 33).

A metamorfose transforma o próprio expectador e seu olhar:


Sócrates
‒ Um simples andar, e aqui está a deusa; e nós, quase deuses!
Erixímaco
‒ À luz de suas pernas, nossos movimentos imediatos nos parecem milagrosos (Valéry,
1996, p. 33).

A referência a Nietzsche é clara:


Erixímaco
‒ Olha! Olha! Ela começa, estás vendo? Com um andar quase divino: é um simples andar
quase em círculo... Começa com o supremo de sua arte; anda com naturalidade sobre o
cimo que atingiu. Essa segunda natureza é o que há de mais distante da primeira, mas é
preciso que se assemelhe a esta, e tanto, que nos confunda (Valéry, 1996, p. 32).

Assim como para Nietzsche, para Valéry, a segunda natureza não


apaga a primeira. O fascínio que a dança exerce sobre nós deriva do fato de
que assistimos sempre à metamorfose de um em outro e, não, a simples
supressão do corpo primeiro. Poderíamos pensar aqui em um enunciado

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


bivocal, cujo sentido se produz na tensão entre dois mundos de valores: os
do cotidiano e os do mundo ideal. 34

O corpo segundo é aquele que: “sai sem cessar de si” (Valéry, 1996, Amorim
p. 59), “destrói furiosamente, alegremente, o próprio lugar onde está”
(Valéry, 1996, p. 59), as “mãos falam e os pés escrevem” (Valéry, 1996, p.
24), “os artelhos inteligentes” (Valéry, 1996, p. 39), “o ouvido é
maravilhosamente ligado ao tornozelo” (Valéry, 1996, p. 24), “nessa menina
tão frágil e tão fina um tal monstro de força e prontidão” (Valéry, 1996, p.
41), “mulher bizarramente desenraizada que se arranca sem cessar da própria
forma” (Valéry, 1996, p. 44), “coisa sem corpo” (Valéry, 1996, p. 31).
Esse corpo cria e habita um universo segundo onde: “a certeza é um
jogo” (Valéry, 1996, p. 24), poucos se tornam mil, “miríades de perguntas e
respostas entre os membros” (Valéry, 1996, p. 41), “as imagens se fundem e
desaparecem” (Valéry, 1996, p. 28), “tudo é possível de uma outra maneira;
tudo pode recomeçar indefinidamente” (Valéry, 1996, p. 61-62), um sonho
de loucura ou de razão “fazendo brilhar diante de nossos olhos aquilo que há
de divino num mortal” (Valéry, 1996, p. 58).
Ao referir-se ao trabalho da ponta e do giro sobre ela, pode-se ler:
Fedro
‒ Seu artelho, que a sustenta inteiramente, raspa o chão como o polegar sobre o tambor.
Quanta atenção nesse dedo; que vontade a endurece, e a mantém nessa ponta!... Mas eis
que ela gira sobre si mesma...
Sócrates
‒ Ela gira sobre si mesma – eis que as coisas ligadas eternamente começam a se separar.
Ela gira, ela gira...
Erixímaco:
‒ É verdadeiramente penetrar em outro mundo... (Valéry, 1996, p. 62-63).

Ao mesmo tempo, o corpo como que se exotopiza e nos permite ver o


corpo familiar e rotineiro de modo não familiar e estranho.
Erixímaco
‒ Nossos passos nos são tão fáceis e familiares que nunca têm a honra de serem
considerados em si mesmos, e enquanto estranhos [...] (Valéry, 1996, p. 34).

Tornar estranho o familiar, ou “desfamiliarizar” o nosso olhar, parece


ser uma das propriedades da arte em geral. Desnaturalizar o que é habitual e
tido como natural são atributos que conferem à arte força de pensamento.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Sócrates
‒ Pelos deuses, as claras dançarinas! Que viva e graciosa introdução aos mais perfeitos
pensamentos! Suas mãos falam, e seus pés parecem que escrevem. Que precisão nesses 35
seres que se dedicam a usar tão bem de suas forças tenras! (Valéry, 1996, p. 23-24)
Amorim
Não se trata, porém, de um pensamento qualquer, porque ele se nutre
de imagem e de sensibilidade, de lucidez e de sonho. No dizer de Fedro:
‒ Olhai enquanto isso esses braços e pernas sem conta!... Umas poucas mulheres fazem mil
coisas. Mil labaredas, mil breves peristilos, pérgulas, colunas. As imagens se fundem,
desaparecem... [...] Existe algum sonho, ó Erixímaco, que signifique mais tormentos, e mais
alterações de nossos espíritos? (Valéry, 1996, p. 28)

Assim, uma nova tensão atravessa o corpo da dança, porque Sócrates


nele verá apenas o sonho da Razão:
‒ Mas isto é precisamente o contrário de um sonho, bom Fedro.
[...] Mas o contrário de um sonho, que é, Fedro, senão um outro sonho? Um sonho de
vigilância e de tensão que a própria Razão faria! E que sonharia a Razão? [...] esse mundo
de forças exatas e estudadas ilusões?
‒ Sonho, sonho, mas sonho inteiro penetrado de simetrias, só ordem, só ato e seqüência!...
(Valéry, 1996, p. 28-29).

A Razão opera pelos efeitos de abstração que a dança pode produzir.


Erixímaco
‒ Como o solo é aqui de algum modo absoluto, estando liberto cuidadosamente de todas as
causas de arritmia e de incerteza, esse andar monumental que tem como fim só a si mesmo,
e do qual desapareceram todas as impurezas varáveis, torna-se um modelo universal
(Valéry, 1996, p. 34).

Mas a Razão é também dialógica, ou não seria a personagem de


Sócrates:
‒ E como essa cabeça tão pequena, e comprimida como um pinhãozinho, pode engendrar
infalivelmente essas miríades de perguntas e respostas entre seus membros [...] (Valéry,
1996, p. 41).

Um corpo alterado, bivocal e tenso. Mas por qual força ele é alterado?
De que alteridade se trata? Parece que, mais uma vez, afirma-se a ideia de
um Outro terceiro e maiúsculo:
Sócrates
Quem sabe quais Leis augustas sonham aqui ter tomado claras faces, e concordado no
desígnio de manifestar aos mortais de que modo o real, o irreal e o inteligível se podem
fundir e combinar-se conforme o poder das Musas? (Valéry, 1996, p. 29).

Alteração que, como na citação de Bakhtin, torna íntima a relação


entre interioridade e exterioridade:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Sócrates
‒ Está inteira em seus olhos fechados, e sozinha com sua alma, no seio de alguma íntima
atenção... Ela se sente transformar em algum acontecimento (Valéry, 1996, p. 36). 36

Amorim
E a sofianidade de que fala Bakhtin:
Erixímaco
‒ Não és de opinião que o pensamento dos Imortais seja precisamente o que estamos vendo,
e que a infinidade dessas nobres semelhanças, as conversões, as inversões, as diversões
inesgotáveis que se respondem e se deduzem diante de nós nos transportam aos
conhecimentos divinos?
[...] O pensamento divino é agora essa fusão multicor de grupos de figuras sorridentes;
engendra a repetição dessas manobras deliciosas, esses voluptuosos turbilhões que se
formam de dois ou de três corpos que não podem mais ser rompidos... (Valéry, 1996, p. 29-
30)

Não seria o caso de trazer outro conceito bakhtiniano que designa essa
condição de terceiro? Penso ser pertinente observar aqui o conceito de
supradestinatário. Diz-nos Bakhtin:

Todo enunciado tem sempre um destinatário [...] cuja compreensão


responsiva o autor da obra de discurso procura e antecipa. Ele é o
segundo (mais uma vez não no sentido aritmético). Contudo, além desse
destinatário (segundo), o autor do enunciado propõe, com maior ou
menor consciência, um supradestinatário superior (o terceiro), cuja
compreensão responsiva absolutamente justa ele pressupõe quer na
distância metafísica, quer no distante tempo histórico. [...] Em
diferentes épocas e sob diferentes concepções de mundo, esse
supradestinatário e sua compreensão responsiva idealmente verdadeira
ganham diferentes expressões ideológicas concretas (Deus, a verdade
absoluta, o julgamento da consciência humana imparcial, o povo, o
julgamento da história, etc. (Bakhtin, 2016, p. 104).

Não seria uma consequência necessária da presença do Outro em mim,


dançando em mim, falando em mim, que meu enunciado se destine
igualmente a um terceiro? Ao dançar para um público, seja ele restrito a um
banquete ou ampliado à sala de teatro, o que está em jogo não é da ordem de
uma relação pessoal do tipo eu-tu. O próprio público é convidado e
convocado a habitar outro mundo e construir um olhar que não é aquele com
que se olham as pessoas no mundo ordinário. Quase se pode dizer que o
público empreende igualmente um trabalho artístico para poder ver o que se
passa em cena. Ele abstrai, tal como Sócrates e Erixímaco, do corpo de
alguém que dança, aquilo que seria de caráter pessoal.
O final do diálogo concebido por Valéry volta-se para a dançarina
principal, Athiktê. A cena traz a idéia de que a dança, ao habitar o
movimento, coloca em cena a passagem de um mundo a outro, do corpo

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


primeiro ao corpo segundo e a volta ao primeiro. Passagem radical, produtora
de vertigem. 37
Fedro
Amorim
‒ Ela gira, ela gira... Ela cai!
Sócrates
‒ Caiu!
Fedro
‒ Morreu...
Erixímaco
_ Deixemos agir o repouso que irá curá-la do movimento.
[...]
‒ Então, menina, vamos abrir os olhos. Como te sentes agora?
Athiktê
‒ Não sinto nada. Não estou morta. E contudo não estou viva!
Sócrates
‒ De onde voltas?
Athiktê
‒ Asilo, asilo, ó meu asilo, Turbilhão! ‒ Eu estava em ti, ó movimento, e fora de todas as
coisas... (Valéry, 1996, p. 64-68).

Vimos, neste texto, vários Outros maiúsculos que atravessam o corpo


e o constituem como segundo: Leis, Musas, Razão, Turbilhão... O corpo
segundo é desobediência ao corpo primeiro: seus hábitos, seu peso, sua
funcionalidade, mas também aos seus impulsos espontâneos e à vulgaridade,
como sublinha Nietzsche. Mas o segundo supõe o primeiro. Do mesmo
modo, tradição e ruptura se conjugam no corpo que dança. O corpo da dança
coloca em cena o embate de valores entre dois corpos, dois mundos e seus
respectivos valores. É um corpo que se nos oferece como forma tensa, como
diria Bakhtin.
Se tomarmos o corpo primeiro como aquele que está vinculado à
realidade, poderemos pensar que a dança, como toda obra de arte, estará
sempre prenhe dos dois centros de valores:

Deve-se dizer o mesmo do ato artístico: também ele não vive nem se
movimenta no vazio, mas na atmosfera valorizante, tensa daquilo que é
definido reciprocamente. (...) a obra, porém, é viva e literariamente
significativa numa determinação recíproca, tensa e ativa com a
realidade valorizada e identificada pelo ato. A obra é viva e significante
do ponto de vista cognitivo, social, político, econômico e religioso num
mundo também vivo e significante. (Bakhtin, 2002, p. 30)

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Conclusão
38
Tentamos aqui construir um diálogo entre passagens do pensamento
filosófico de Bakhtin sobre a arte em geral e a dança em particular com alguns Amorim
filósofos. Não se pretendeu, com isso, criar laços ou filiações entre eles no
que concerne às respectivas obras como um todo. Assim, fizemos um recorte
em torno da temática da dança e buscamos ampliar possibilidades de
expansão e de ressignificação dos curtos trechos selecionados em Bakhtin.
Buscamos também inscrever as ideias bakhtinianas no campo mais
amplo da temática da alteridade, tal como compartilhado por outros autores.
Ao se postular que a noção filosófica de alteridade é um dos eixos do
pensamento bakhtiniano e que ela pode ser pensada como noção norteadora
de análises de corpus, uma questão colocou-se como inevitável: de que outro
se trata? A busca de resposta foi, também aqui, empreendida como um
exercício, porém, desta feita, como exercício de leitura, colocando em
diálogo textos e autores que acreditamos se enriquecerem mutuamente.

Referências
AMORIM, Marilia. O corpo da dança como arena de valores e o cronotopo do teatro,
Bakhtiniana Revista de Estudos Discursivos, São Paulo, 18 (2): 39-66, abril/junho 2023.
DOI: https://doi.org/10.1590/2176-4573p59553.
AMORIM, Marilia. O discurso da dança e o conceito de gênero – alguns elementos de
leitura. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, v. 15, n. 2, p. 64-96, abr./jun. 2020.
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/2176-457342617.
AMORIM, Marilia. Raconter, démontrer, survivre... Formes de savoir et de discours dans
la culture contemporaine. Toulouse: Erès, 2007.
BADIOU, Alain. Petit manuel d’ineshétique. Paris: Seuil, 1998.
BAKHTIN, Mikhail. O problema do Conteúdo, do Material e da Forma na Criação
Literária. In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. Tradução de Aurora
Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, 2002, p. 13-70.
BAKHTIN, Mikhail. O texto na lingüística, na filologia e em outras ciências humanas: um
experimento de análise filosófica. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso.
Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 71-107.
BAKHTIN, Mikhail. O Autor e a personagem na atividade estética In: BAKHTIN, Mikhail.
Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2022,
p. 3-192.
BUBNOVA, Tatiana. Hacia una filosofia Del acto ético. De los borradores y otros
escritos. Tradução de Tatiana Bubnova. Prefácio de Mijail M. Bajtin. Barcelona:
Anthropos, 1997.
DUFOUR, Dany-Robert. Lacan e o espelho sofiânico de Boehme. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 1999.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


KOYRÉ, Alexandre. La philosophie de Jacob Boehme. Paris: Vrin, 1929.
LEGENDRE, Pierre. De la Société comme Texte. Linéaments d'une anthropologie 39
dogmatique. Paris: Fayard, 2001.
LEGENDRE, Pierre. La Passion d'être un autre. Étude sur la danse. Paris: Seuil, 1978, Amorim
coll. "Le champ freudien" – collection dirigée par Jacques Lacan. Deuxième édition - Points
Seuil n. 429, 2000.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Alfredo Margarido. Lisboa:
Guimarães  C.ª Editores, 1984.
NIETZSCHE, Friedrich. O viajante e sua sombra. São Paulo: Escala, Coleção “O essencial
de Nietzsche”, 2008.
PLATÃO. As leis, ou da legislação e Epinomis. Tradução de Edson Bini. Bauru, SP:
Edipro, 1999.
PONTON, Olivier. ‘Danser dans les chaînes’: la définition nietzschéenne de la création
comme jeu de la convention. Philosophique, n. 7, p. 5-27, 2004. DOI:
https://doi.org/10.4000/philosophique.86.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. Tradução de Mônica
Costa Netto. São Paulo: 34, 2009.
VALÉRY, Paul. A alma e a dança e outros diálogos. Tradução de Marcelo Coelho. Rio de
Janeiro: Ed. Imago, 1996.
XAVIER, Donizete José; SILVA, Maria Freire da. A Kénosis do Espírito Santo e a Criação
em Sergei Bulgakov. Perspectiva teológica, v. 52, n. 2, p. 393-415, mai./ago. 2020. DOI:
https://doi.org/10.20911/21768757v52n2p393/2020.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


40

Campos
Cavalcante Filho

Perspectivas teórico-
metodológicas bakhtinianas:
um experimento de análise
dialógica
Bakhtinian Theoretical-Methodological Perspectives: An
Experiment in Dialogical Analysis

Maria Inês Batista Campos Noel Ribeiro 1 Introdução


Universidade de São Paulo, Brasil
Este artigo se inscreve no
Urbano Cavalcante Filho eixo proposto deste livro
Instituto Federal da Bahia, Brasil
Universidade Estadual de Santa Cruz, Brasil Discursos, linguagens e
Universidade de São Paulo, Brasil representações: exercícios
dialógicos, procurando discutir
alguns princípios teórico-
metodológicos da perspectiva bakhtiniana de estudos da linguagem. Ao lado
dessa dimensão teórica, o texto apresenta um exercício de análise,
observando aspectos que configuram o funcionamento de um enunciado,
numa perspectiva dialógica.
Essa teoria, assinada por Mikhail Bakhtin, Valentin Volóchinov e
Pável Medviédev, constrói uma extensa discussão em torno das “relações
dialógicas” na obra Problemas da poética de Dostoiévski (1963) e o conceito
de diálogo em sentido amplo em Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem
(1929), procurando denominar a dinâmica dos signos ideológicos que se

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


realiza de modo parecido às réplicas de um diálogo cotidiano. Nesse
processo, a interação discursiva ganha uma realidade social e semiótica e o 41
enunciado não só responde a questões como também coloca questões, o que
Campos
formula uma compreensão responsiva. Cavalcante Filho
Este capítulo está organizado em três partes: na primeira, serão
apresentadas as noções fundamentais advindas do pensamento de Bakhtin e
o Círculo, na segunda, o arcabouço teórico-metodológico que fundamenta as
análises, e, por fim, na terceira, apresentamos um exercício de análise
dialógica e de interpretação do discurso presidencial de Luís Inácio Lula da
Silva, proferido da Cúpula do Grupo dos 20 (G20) em 9 de setembro de 2023,
defendendo uma mobilização global contra a mudança do clima.

2 Teoria bakhtiniana da linguagem: princípios e


procedimentos
- Notas teóricas
Dentre as diferentes linhas de estudos do discurso no âmbito das
teorias da linguagem, como as vertentes denominadas de “análises do
discurso”, a exemplo da de matriz francesa, a partir dos trabalhos de Michel
Pêcheux e Michel Foucault; a de matriz anglo-saxã, conhecida como análise
crítica do discurso, a partir, principalmente dos trabalhos de Norman
Fairclough; a análise de discurso comparativa/contrastiva, tal qual forjada no
âmbito do Cediscor (Centre de recherche sur les discours ordinaires et
spécialisés, atual Clesthia Axe et discours) da Université Sorbonne Nouvelle,
na França, a partir dos trabalhos pioneiros da linguista Sophie Moirand;
dentre outras abordagens, destacamos, neste texto, a perspectiva dialógica,
no Brasil nomeada de análise dialógica do discurso por Brait (2006), ao se
referir ao “conjunto das obras do Círculo [que] motivou o nascimento de uma
análise/teoria dialógica do discurso, perspectivas cujas influências e
consequências são visíveis nos estudos linguísticos e literários e, também,
nas Ciências Humanas de modo geral” (Brait, 2006, p. 9-10), cada uma delas
com seus comprometimentos epistemológicos e suas próprias ênfases
teórico-metodológico-analíticas.
Podemos dizer que todas essas vertentes, de alguma forma, não
apresentam suas teses de forma estanque, mas procuram, em maior ou menor
grau, dialogar e buscar contribuições de outras áreas do saber (como as

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Ciências Sociais, a Psicanálise, a História, a Filosofia, entre outras), a fim de
explicar o homem e suas práticas, enquanto sujeito produtor de linguagem. 42

A partir principalmente dos trabalhos de Mikhail Bakhtin, Valentin Campos


Volóchinov e Pável Medviédev, a chamada teoria bakhtiniana da linguagem Cavalcante Filho
tem em seu cerne uma orientação dialógica; orientação essa que

é, evidentemente, um fenômeno próprio de qualquer discurso. É a


diretriz natural de qualquer discurso vivo. Em todas as suas vias no
sentido do objeto, em todas as orientações, o discurso depara com a
palavra do outro e não pode deixar de entrar em interação viva e tensa
com ele (Bakhtin, [1934-1935] 2015. p. 51).

É esse princípio dialógico que orienta o pressuposto teórico-


metodológico dessa vertente, na observação, descrição análise e
interpretação dos fenômenos linguístico-discursivos. Podemos argumentar
que, já lá no início da produção do Círculo, principalmente com o ensaio Arte
e responsabilidade, escrito por Bakhtin em 1919, observamos uma primeira
base epistemológica dessa teoria, em relação à oposição que Bakhtin
apresenta entre uma perspectiva mecânica e uma perspectiva arquitetônica de
se encarar o todo. Afirma o filósofo russo:

Chama-se mecânico ao todo se algum de seus elementos estão


unificados apenas no espaço e no tempo por uma relação externa e não
os penetra a unidade interna do sentido. As partes desse todo, ainda que
estejam lado a lado e se toquem, em si mesmas são estranhas umas às
outras” (Bakhtin, [1919] 2011a, p. XXXIII).

Sua perspectiva, portanto, é preconizar que os elementos constituintes


de um todo sejam encarados numa perspectiva dialógica, fronteiriça,
interacional e de interferências recíprocas. Essa perspectiva está voltada para
o mundo da vida, da concretude, das relações, do mundo real:

O que pretendemos fornecer é uma refiguração, uma descrição da


arquitetônica real concreta do mundo dos valores realmente
vivenciados, não governado por um fundamento analítico, mas com um
centro de origem realmente concreto, seja espacial ou temporal, de
valorações reais, de afirmações, de ações, e cujos participantes sejam
objetos efetivamente reais, unidos por relações concretas de eventos no
evento singular do existir (aqui as relações lógicas não são mais que um
momento ao lado dos momentos espaciais, temporais e emotivo-
volitivos concretos) (Bakhtin, [1920-1924] 2010a, p.123-4).

Esse princípio dialógico, orgânico, vivo e vinculado à concretude do


real vai ao encontro de um segundo princípio: o de que a realidade
fundamental da língua é interação discursiva, cara à elaboração de

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Volóchinov propôs em Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem ([1929] 2017). 43

A interação discursiva como “realidade fundamental da língua” Campos


(Volóchinov, 2017, p. 219), constitui a base conceitual de linguagem do Cavalcante Filho
Círculo de Bakhtin, na medida em que oportuniza a interação entre os
sujeitos, no fato de um se dirigir ao outro, num processo de negociação de
significados, posições e valores entre esses sujeitos socio-historicamente
situados numa sociedade, numa cultura. Isso implica dizer, portanto, que essa
concepção de linguagem não pode ser desvinculada do contexto social,
histórico e cultural em que é usada, concretizada em forma de textos-
enunciados (tanto orais quanto escritos ou em diferentes materialidades
semióticas).
Enquanto verdadeira substância da língua, essa interação, a partir do
uso da palavra, exige a existência de, no mínimo, dois interlocutores, o
falante e o ouvinte:

Ela [a palavra] é determinada tanto por aquele de quem ela procede


quanto por aquele para quem ela se dirige. Enquanto palavra, ela é
justamente o produto das inter-relações do falante com o ouvinte. Toda
palavra serve de expressão ao “um” em relação ao “outro” [...] A
palavra é o território comum entre o falante e o interlocutor
(Volóchinov, [1929] 2017, p. 205, grifos do autor).

Esse processo de interação discursiva, das relações entre falante e


ouvinte, nos encaminha a pensar um terceiro princípio da teoria: o da
dimensão social do enunciado. Ao considerarmos a língua(gem) como um
sistema socialmente dado, como um produto da atividade coletiva humana, e
não como um sistema abstrato de signos, entendemos que seus elementos
acabam por refletir e refratar a organização sócio-histórica e político-cultural
da sociedade em que está inserida, seus índices sociais de valor.
Dessa forma, esse sistema carrega valores ideológicos e emotivo-
volitivos que estão na ordem do social e do histórico. Portanto, a natureza
social da linguagem, como o Círculo concebe, atribui especial valor à
dimensão extraverbal do enunciado. Afinal, só apreendemos o sentido dos
enunciados se levarmos em consideração às circunstâncias, o contexto, os
eventos em que ele é produzido por indivíduos socialmente organizados, já
que “obviamente, a palavra na vida não é autossuficiente” (Volóchinov,
[1926] 2019, p. 117). Esse é um elemento extremamente importante e
necessário à compreensão das trocas linguísticas entre os sujeitos, na

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


perspectiva bakhtiniana. Não conseguimos acessar o todo semântico de um
texto-enunciado sem levar em consideração a sua situação extraverbal: “a 44
palavra, quando abordada de modo isolado, como um fenômeno puramente
Campos
linguístico, não pode, é claro, ser nem verdadeira, nem falsa, nem ousada, Cavalcante Filho
nem tímida” (Volóchinov, [1926] 2019, p. 118).
Assim, os aspectos que devem ser considerados nessa dimensão
extraverbal do enunciado são: 1) o horizonte espacial comum dos falantes; 2)
o conhecimento e a compreensão da situação comum dos dois; e 3) a
avaliação comum dessa situação (Volóchinov, [1926] 2019). Esses três
elementos, portanto, caracterizam a natureza e o caráter social dos contextos
das interações. Estamos falando, pois, de uma dimensão que se faz
constitutiva do enunciado, possuidor de autoria, interlocutor e finalidade,
produzida numa dada situação sociocomunicativa entre sujeitos numa dada
esfera de atividade humana. Sem a consideração desses elementos, é
impossível a compreensão do sentido do enunciado.

Um enunciado isolado e concreto é sempre dado num contexto cultural


e semântico-axiológico (científico, artístico, político, etc.) ou no
contexto de uma situação isolada da vida privada; apenas nesses
contextos o enunciado isolado é vivo e compreensível: ele é verdadeiro
ou falso, belo ou disforme, sincero ou malicioso, franco, cínico,
autoritário e assim por diante (Bakhtin, [1924] 2010b, p. 46).

Como bem sintetiza Faraco (2009), o ponto de partida de Bakhtin é o


vínculo entre a utilização da linguagem e a atividade humana, afinal, todas
as esferas de atividade humana estão relacionadas com a utilização da
linguagem.
Com base nessas considerações é que o enunciado, na perspectiva dos
autores do Círculo, não pode ser confundido com os elementos do sistema
linguístico. Afinal, ele engloba vários outros elementos que estão na ordem
do social, histórico, do político, do ideológico e ligados por fios dialógicos
de outros sujeitos:

O enunciado vivo, que surgiu de modo consciente num determinado


momento histórico em um meio social determinado, não pode deixar de
trocar milhares de linhas dialógicas vivas envoltas pela consciência
socioideológica no entorno de um dado objeto da enunciação, não pode
deixar de ser participante ativo do diálogo social. É disto que ele surge,
desse diálogo, como sua continuidade, como uma réplica e não como
se ele se relacionasse à parte (Bakhtin, [1934-1935] 2015, p. 49).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


A partir dessas anotações sobre aspectos teóricos considerados
fundamentais da teoria bakhtiniana da linguagem, procedemos na seção 45
seguinte a discutir alguns pressupostos metodológicos que orientarão o
Campos
exercício de análise dialógica neste texto. Cavalcante Filho

3 Notas metodológicas
O conceito de texto, no âmbito da teoria bakhtinaina, desempenha
papel central no estudo das ciências humanas. Em seu manuscrito Por uma
metodologia das ciências humanas ([1979] 2017), encontramos a afirmação
de Bakhtin de que o objeto das ciências humanas é “o ser expressivo e falante.
Esse ser nunca coincide mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e
significado” (Bakhtin, [1979] 2017, p. 59, grifos do autor). Enquanto produto
da interação entre sujeitos, é por meio do texto (oral, escrito ou materializado
em outras semioses) que observamos o que um sujeito fala para o outro, do
outro e com o outro. Assim, para compreendermos o homem, que é social,
bem como as relações humanas que ele estabelece com outros seres humanos
por meio da linguagem (portanto, da interação verbal), o ponto de partida é
o texto produzido por esses sujeitos sócio-historicamente situados no mundo
real, da história, da cultura.
Metodologicamente, ao considerarmos a produção de textos por
sujeitos e estudarmos a língua por eles utilizada, não apenas como um sistema
abstrato de signos, mas como um sistema de signos imbuído de valor
ideológico, Volóchinov, em Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem ([1929] 2017),
nos apresenta uma ordem metodológica para sua compreensão e análise com
a seguinte elaboração:

Disso decorre que a ordem metodologicamente fundamentada para o


estudo da língua deve ser a seguinte: 1) formas e os tipos da interação
verbal na relação com suas condições concretas; 2) formas dos
enunciados ou discursos verbais singulares em relação estreita com a
interação da qual elas são uma parte, isto é, os gêneros dos discursos
verbais determinados pela interação discursiva na vida e na criação
ideológica; 3) partindo disso, a revisão das formas da língua em sua
concepção linguística habitual (Volóchinov, [1929] 2017, p. 220).

Observamos, portanto, como o fenômeno da interação é presente no


estatuto de análise dos fenômenos linguístico-discursivos, na perspectiva
dialógica de estudos da linguagem. Afinal, está em jogo uma proposta

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


metodológica de análise que toma como ponto de partida a consideração da
dimensão social para se chegar nas formas da língua, e não o contrário; afinal, 46
nessa perspectiva, não podemos estabelecer uma dissociação entre os signos
Campos
e suas condições concretas de produção na comunidade sociodiscursiva em Cavalcante Filho
que são produzidos.
Nesse sentido, estamos falando de uma perspectiva metodológica que
não se prende aos limites da materialidade linguístico-textual, mas leva em
conta as relações do texto-enunciado com o social, com o histórico e com
outros textos-enunciados. Nesse ponto, essa visão volochinoviana vai ao
encontro da proposição bakhtiniana da disciplina Metalinguística, presente
em Problemas da poética de Dostoiévski (Bakhtin, [1963] 2018).
Essa disciplina proposta pelo teórico russo encontra-se ancorada no
limiar entre a análise da língua e a análise do sentido, perspectiva diferente
da linguística saussureana. Afirma Bakhtin:

Estamos interessados primordialmente nas formas concretas dos textos


e nas condições concretas da vida e dos textos, na inter-relação e
interação.

As relações dialógicas entre os enunciados, que atravessam também


enunciados isolados, pertencem à metalinguística. Difere radicalmente
de todas as eventuais relações linguísticas dos elementos tanto no
sistema da língua quanto em um enunciado isolado (Bakhtin, [1952-
1953] 2016, p. 87-88).

Traduzida como Translinguística por Todorov para o francês (1981),


a Metalinguística é encarada como a disciplina cujo objeto de análise
pressupõe levar em consideração as dimensões linguística e extralinguística
do enunciado, ou seja, o método utilizado por essa ciência encara o enunciado
concreto não exclusivamente sob o prisma linguístico, com análise dos
fenômenos puramente da língua; mas considera, primordialmente, a relação
desses enunciados com os horizontes sociais nos quais eles se inscrevem.
Observemos o que diz o próprio estudioso francês:

Entre todas as perspectivas a partir das quais é possível encarar esse


objeto único, Bakhtin mantém duas: uma que é da linguística; a outra
refere-se a uma disciplina que, a princípio, não nomeia (a menos que
seja: a sociologia), mas ele vai chamar em seus últimos escritos
metalingvistika, um termo que, para evitar uma possível confusão, eu
vou traduzir por translinguística. O termo atualmente em uso que
corresponderia mais fielmente àquilo que viu Bakhtin provavelmente
seria pragmática; e pode-se dizer sem exagero que Bakhtin é o fundador
moderno desta disciplina. Linguísica e Translinguística representam,
então, duas visões diferentes sobre um mesmo objeto, a linguagem. No

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


início de seu pensamento, Bakhtin não vê as coisas como neutras, mas
ele afirma sobretudo, especialmente em Marxismo e filosofia da
linguagem (obra assinada por Volochinov) que a (futura) 47
translinguística deve suplantar a linguística, porque um dos objetos de
conhecimento é mais real ou mais importante ou mais legítimo, que o Campos
outro. Mas, em outros textos, alguns dos quais são contemporâneos do Cavalcante Filho
mesmo livro, ele insiste, em vez disso, sobre a legitimidade de cada uma
das duas perspectivas (Todorov, 1981, p. 42-43, tradução nossa, grifos
do autor)1.

A partir dessas considerações, o que observamos é que Bakhtin não


dispensa a Linguística, embora ele proponha um estudo que ultrapasse os
resultados obtidos por ela. É a partir dos resultados linguísticos que se
chegam às relações dialógicas, que são o objeto de estudo da Metalinguística:
“essas relações se situam no campo do discurso, pois este é por natureza
dialógico e, por isso, tais relações devem ser estudadas pela metalinguística,
que ultrapassa os limites da linguística e possui objeto autônomo e metas
próprias” (Bakhtin, [1963] 2018, p. 209).
As relações dialógicas, enquanto objeto da Metalinguística, são
entendidas como relações de sentido entre os enunciados, resultantes do
diálogo entre enunciado e realidade, sujeito e outros enunciados, isto é, o
discurso é concebido como “a língua em sua integridade concreta e viva e
não a língua como objeto específico da linguística” (Bakhtin, [1963] 2018, p.
207).
Dessa forma, o que observamos nessa perspectiva é que ela coaduna
com a proposição da ordem metodológica feita por Volóchinov em 1929,
como apresentado anteriormente, o que ratifica a identidade epistemológica
e a compreensão comum que os membros do grupo assumiam sobre o
conceito de linguagem.

1
No original em francês: "Parmi toutes les perspectives à partir desquelles il est possible d’envisager
cet objet unique, Bakhtine en retient deux : l’une qui est celle de la linguistique ; l’autre se rapporte
à une discipline à laquelle, au début, il ne porte pas de nom (à moins que ce ne soit : la sociologie)
mais qu'il appellera dans ses derniers écrits metalingvistika, terme que, pour éviter une confusion
possible, je traduirai par translinguistique. Le terme actuellement en usage qui correspondrait le plus
fidèlement à ce qu’a en vue Bakhtine serait probablement pragmatique ; et l’on peut dire sans
exagération que Bakhtine est le fondateur moderne de cette discipline. Linguistique et
translinguistique représentent, alors, deux points de vue différents sur un même objet, le langage.
Au début de sa réflexion, Bakhtine ne voit pas les choses de façon neutre, mais il a plutôt à dire, en
particulier dans Marxisme et philosophie du langage (ouvrage signé par Volochinov), que la (future)
translinguistique doit supplanter la linguistique, car l'un des objets de connaissance est plus réel ou
plus importante ou plus légitime, que l’autre. Mais, dans d’autres textes, dont certains sont
contemporains de ce même livre, il insiste, au contraire, sur la légitimité de chacune des deux
perspectives" (Todorov, 1981, p. 42-43, italique de l'auteur).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Na abordagem metalinguística bakhtiniana e do método sociológico
volóchinoviano, o contexto sócio-histórico configura-se como peça imanente 48
do discurso. No estudo dos enunciados, ela não isola nem desconsidera as
Campos
análises propriamente linguísticas; antes, leva-as em consideração Cavalcante Filho
juntamente com os elementos extralinguísticos, estes últimos, por sua vez,
são considerados imprescindíveis para a construção concreta de sentido.
Convém mencionar, ainda, que Medviédev, ao estudar a totalidade
artística do gênero em O método formal nos estudos literários: introdução
crítica a uma poética sociológica ([1928] 2012), leva em consideração duas
orientações que determinam a existência do gênero: os interlocutores e o
contexto (social mais amplo e imediato de produção dos enunciados).
Segundo o autor:

Em primeiro lugar, a obra se orienta para os ouvintes e os receptores, e


para determinadas condições de realização e de percepção. Em segundo
lugar, a obra está orientada na vida, como se diz, de dentro, por meio
de seu conteúdo temático. A seu modo, cada gênero está tematicamente
orientado para a vida, para seus acontecimentos, problemas, e assim por
diante (Medviédev, [1928] 2012, p. 195).

Conforme dissemos na abertura dessa seção de que o texto é o ponto


de partida na perspectiva metalinguística de que a consideração das questões
extraverbais da produção discursiva é condição sine qua non numa
perspectiva teórico-metodológica de análise bakhtiniana de um
texto/enunciado, que consideremos os elementos que lhe imprimem uma
singularidade tanto linguística (a partir da contribuição de diversas
disciplinas , como a fonética, fonologia, morfologia, sintaxe, etc.), quanto
discursiva (concernente aos aspectos extralinguísticos sinalizados a seguir).
Assim, a sistematização dos elementos que imprimem singularidade ao
texto/enunciado feita Brait nos é didática e convém apresentarmos:

(a) A carga de valores, a posição diante do mundo por ele


representada, tecida pelos discursos sociais, culturais que o
atravessam, que dele emanam e que o configuram como arena
discursiva;

(b) A autoria deve ser entendida como individual ou coletiva,


independentemente de a assinatura estar explícita ou não, pois
decorre da posição enunciativa e discursiva que dá voz ao texto e
nele se concretiza e se realiza;

(c) O destinatário, que participa ativamente da construção dos


sentidos, a cada encontro em que ocupa os espaços deixados pelo
texto para respostas e diálogos (polêmicos ou não...);

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


(d) As relações dialógicas, que não estão prontas e finalizadas em cada
texto, mas que são necessariamente recuperadas e/ou estabelecidas
a partir do encontro entre o texto/enunciado e seus interlocutores, 49
em diferentes situações, contextos históricos, culturais e
discursivos (Brait, 2016, p. 17). Campos
Cavalcante Filho
De acordo com essas anotações metodológicas, confirmamos a ideia
de que a perspectiva teórico-metodológica bakhtiniana nos provoca a encarar
e a analisar a linguagem sempre na relação entre sujeitos, na fronteira, na
negociação de sentidos, na disputa das palavras do outro e com o outro:

Nesse sentido, todas as palavras (enunciados, produções de discurso e


literárias), além das minhas próprias palavras, são palavras do outro. Eu
vivo em um mundo de palavras do outro. E toda minha vida é uma
orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro (uma reação
infinitamente diversificada), a começar pela assimilação delas (no
processo de domínio inicial do discurso e terminando na assimilação
das riquezas da cultura humana (expressas em palavras ou em outros
materiais semióticos) (Bakhtin, [1970-1971] 2011, p. 379).

Assim, a teoria dialógica da linguagem não importa somente em


descrever o que se diz, mas também como se diz o que se diz, para quem,
com qual intenção e quais cargas de valores sociais e histórico alimentam e
configuram os projetos de dizer de seus sujeitos.
Na seção seguinte, apresentamos um exercício de leitura do discurso
presidencial de Lula, proferido na abertura da primeira sessão da 18ª Cúpula
do Grupo dos Vinte (G20)2, realizada em Nova Délhi, Índia, em 9 de
setembro de 2023.

4 Discurso na sessão “Um planeta terra”:


experimento de análise dialógica
Uma interessante proposta de análise dialógica é trabalhar o conceito
de texto/enunciado, analisando o discurso de Lula, proferido na reunião anual
dos representantes de 19 países dos cinco continentes e da União Europeia,
nações que representam em torno de 80% da economia global. A escolha
desse pronunciamento deve-se pela importância política, econômica e social
do evento, e por ser a primeira vez que o Brasil assume a presidência rotativa
do G20 a partir de 01 de dezembro de 2023 até novembro de 2024. Esse

2
Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-
pronunciamentos/2023/discurso-do-presidente-da-republica-luiz-inacio-lula-da-silva-durante-a-
abertura-da-cupula-do-g20. Acesso em: 26 nov. 2023.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


fórum, criado em 1999, tem como foco estabelecer um diálogo de cooperação
econômica internacional. 50

Tendo em vista que a situação social e o auditório direcionam a Campos


entonação valorativa do texto com foco no tema das mudanças climáticas. O Cavalcante Filho
primeiro passo metodológico é apresentar alguns dados do contexto amplo e
da situação concreta em que Lula discursou em Nova Déhli, o que nos
possibilita consolidar a análise bakhtiniana. É preciso reconhecer que havia
uma tensão na abertura desta sessão, presidida pro-tempore pelo primeiro-
ministro da Índia, Narendra Modi, devido à presença de Joe Biden, presidente
dos Estados Unidos e a ausência dos governantes da China e da Rússia.
Participaram 27 chefes de Estado ou de Governo, e entidades internacionais,
como a Organização das Nações Unidas (ONU), Fundo Monetário
Internacional (FMI), Banco Mundial, Organização Mundial da Saúde
(OMS), Organização Mundial do Comércio (OMC), Organização
Internacional do Trabalho (OIT), União Africana, Associação de Nações do
Sudeste Asiático (Asean).
Buss, médico e pesquisador da Fio Cruz (RJ), explica que o tema do
encontro “Uma Terra, uma Família, um Futuro” foi extraído do antigo texto
sânscrito Maha Upanishad3. A proposta indiana busca uma compreensão com
base nas tradições hinduístas sob um tríplice movimento: uma Terra, para
curar o planeta, uma Família que promova a harmonia dentro da família
humana, um Futuro, para incentivar conversas entre as nações. Neste
discurso inscrito no campo político, econômico e social, Lula faz uma
veemente crítica às nações desenvolvidas devido às responsabilidades pelo
aquecimento global, uma vez que foram responsáveis pela emissão de gases
de efeito estufa.
Passando para a análise do modo de funcionamento linguístico-
discursivo do enunciado concreto, pode-se fazer uma pergunta: Que
discursos alheios sinalizam o confronto de vozes apresentados por Lula, de
modo a marcar seu posicionamento valorativo em torno dos graves
problemas climáticos e sociais na contemporaneidade?
Nesta abordagem dialógica, todo o discurso é produto de um
acontecimento histórico, único, e o enunciado é marcado pelo contexto social
e pela situação concreta espaço-tempo, que envolve o autor e seus

3
Disponível em https://cee.fiocruz.br/?q=agenda-da-saude-global-e-diplomacia-da-saude-se-
intensificam-em-todas-as-frentes. Acesso em: 26 nov. 2023.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


interlocutores, a relação social entre eles, o propósito discursivo. Pode-se
afirmar que Lula, do seu lugar de presidente eleito do Brasil em outubro de 51
2022, capta os empasses socioeconômicos e políticos, e busca definir uma
Campos
pauta para que os participantes possam discutir e enfrentar as graves Cavalcante Filho
situações climáticas.
O conceito de discurso alheio na perspectiva da filosofia da linguagem
parte de “uma diretriz dialógica desse discurso entre enunciados alheios no
âmbito da mesma língua, entre outras ‘línguas sociais’ no âmbito da mesma
língua nacional e, por último, entre outras línguas nacionais no âmbito da
mesma cultura, do mesmo universo socioideológico” (Bakhtin, [1934-1935]
2015, p. 47). Bakhtin explica em nota de rodapé que “A linguística só
conhece as influências recíprocas e as mesclas de línguas que se refletem nos
elementos abstratos – fonéticos e morfológicos – da língua” (Bakhtin, [1934-
1935] 2015, p. 47).
A presença de vários discursos citados indica que não é possível
compreender o discurso presidencial somente como materialidade autônoma.
A análise dialógica exige, no mínimo, dois posicionamentos em confronto.
Em Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico na ciência da linguagem ([1929] 2017), Volóchinov apresenta
uma caracterização em torno do discurso alheio, e o considera um problema
específico da sintaxe, que precisa ser configurado no interior do embate
dialógico. O estudioso russo alerta para a tentação redutora que entende o
discurso alheio só como discurso citado no seu aspecto gramatical, limitando-
se a um estudo que responda às questões de “Como” e “De que falava
Fulano?” o que acaba se encerrando em uma análise superficial do discurso
do outro. Para responder à pergunta “O que dizia ele?”, é preciso considerar
que:

[...] entre a percepção ativa do discurso alheio e a sua transmissão num


contexto coerente existem diferenças essenciais, que não podem ser
ignoradas. [...] A transmissão é voltada para um terceiro, isto é, àquele
a quem são transmitidas as palavras alheias. Essa orientação para um
terceiro é especialmente importante, pois ela acentua a influência das
forças sociais organizadas sobre a percepção do discurso (Volóchinov,
[1929] 2017, p. 252).

O estudo do discurso do outro vai além de recortar discursos diretos e


indiretos presentes nos enunciados, uma vez que enfoca a língua como
interação discursiva, porque um estudo fecundo das formas sintáticas só é
possível no quadro da elaboração de uma teoria do enunciado. Um estudo das

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


formas usadas na citação do discurso reflete e refrata as tendências básicas e
constantes da recepção ativa do discurso alheio. Volóchinov antecipa-se em 52
explicar que as formas sintáticas de discurso direto e indireto não são formas
Campos
de apreensão ativa do enunciado do outro: para apreender o discurso do outro, Cavalcante Filho
exige-se dominar tanto a interorientação social do enunciador como as
formas que ele utiliza para apreender o significado da expressão do outro.
Na tradução brasileira de Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem
(2017), feita por Grillo e Américo, o termo “discurso citado” aparece
traduzido por “discurso alheio”. Encontramos diversos termos na linguística
que também marcam esse conceito sob diferentes abordagens linguísticas.
Cunha explica:

o discurso de outrem revela uma variedade de objetos, de


questionamentos e de abordagens teóricas dentro da literatura e da
linguística sob diversos nomes: discurso citado, heterogeneidade
mostrada e constitutiva, interdiscurso, polifonia, intertextualidade
manifesta e a intertextualidade constitutiva, dialogismo mostrado e
constitutivo” (Cunha, 2004, p. 242).

A primeira sinalização de discurso alheio no texto de Lula aparece no


início ao mencionar que “quando olhou por meio da escotilha de sua nave, e
viu pela primeira vez nosso planeta em toda a sua plenitude, o cosmonauta
Yuri Gagarin não conteve o encantamento, e disse: ‘A Terra é azul’”. O
presidente recupera a exclamação do discurso do astronauta russo Yuri
Alekseievitch Gagarin, o primeiro ser humano que olhou o planeta Terra do
espaço, a bordo da espaçonave Votstok 1, em 12 abril de 1961. A emoção do
piloto está marcada linguisticamente por meio das aspas, maneira de
intensificar o deslumbramento do homem admirando a natureza, gesto que
significou um avanço enorme da pesquisa para a ciência moderna. 62 anos
depois, no entanto, a Rússia deixa de ser bem-vinda à Conferência devido à
guerra na Ucrânia. Diante de um auditório tão heterogêneo, Lula mantém um
duplo endereçamento, referindo-se a dois campos: o científico e o político.
Mantendo-se nesse duplo campo discursivo, o presidente atualiza os
dados das viagens no espaço e se situa em 2023 (momento da fala), citando
a missão espacial da Índia, Chandrayaan-3, que pousou “sete décadas depois
[...] no polo sul da Lua”. Dessa feita tornou-se o primeiro país a realizar tal
conquista e passou a integrar o grupo de países que já estiveram na superfície
lunar: Estados Unidos, China e Rússia. A prova do discurso científico são as

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


fotografias enviadas pela sonda indiana, antes e depois da descida da nave
em solo lunar e Lula enfatiza: “vista do alto, a Terra continua azul e linda”. 53
Envolvendo o discurso de Gagarin que revela afetos e valores éticos,
Campos
estéticos, culturais e o texto fotográfico enviado pela sonda exploratória Cavalcante Filho
indiana, constrói-se uma integração entre discursos, com o emprego do verbo
“continuar” no sentido de que a terra permanece com a cor azul. Tanto o
discurso científico como o afetivo garantem uma resposta ao longo da
história espacial, o que mantém uma dupla dimensão do conhecimento.
A partir do discurso científico há dois procedimentos de discurso do
outro reivindicando uma posição no campo político. O primeiro critica o
descompromisso com o meio ambiente, reiterando que esse comportamento
leva a uma situação de "emergência climática sem precedentes" (Lula da
Silva, 2023). O segundo procedimento consiste em levantar alguns fatos
relativos às consequências do aquecimento do planeta. Cada acontecimento
é singular, como “as secas, enchentes, tempestades e queimadas [...] e minam
a segurança alimentar e energética” (Lula da Silva, 2023), de modo a
impactar profundamente a vida de cada ser humano. O presidente brasileiro
destaca que cada acontecimento climático constrange o outro, causa
sofrimento nos povos que habitam diferentes lugares, devido à grave situação
mundial do clima. Esse encaminhamento argumentativo tem como eixo
central a ideia de que não é possível ficarmos indiferentes a essa realidade,
uma vez que mobiliza valores sociais, éticos, humanos.
Em sua exploração de discursos alheios, Lula cita a tragédia ocorrida
no estado do Rio Grande do Sul, devastado por um ciclone tropical entre os
dias 4 e 5 de setembro de 2023, dias antes do início do fórum. Dessa maneira,
apresenta dados estatísticos quanto aos efeitos das mudanças climáticas e os
impactos causados em terras brasileiras: “Agora mesmo no Brasil, o estado
do Rio Grande do Sul foi atingido por um ciclone que deixou milhares de
desabrigados e dezenas de vítimas fatais” (Lula da Silva, 2023). Com esses
dois procedimentos apresentados, Lula passa a destacar as questões sociais
vividas pelas classes menos favorecidas, suscitando o debate quanto aos
“efeitos da mudança do clima [que] não são sentidos por todos da mesma
forma. São os mais pobres, mulheres, indígenas, idosos, crianças, jovens e
migrantes, os mais impactados" (Lula da Silva, 2023). Ao mesmo tempo, ele
ilustra as transformações terríveis que ocorrem em todo o planeta e que
poderiam ser evitadas se os países que mais contribuíram “historicamente”

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


para esse aquecimento atual arcassem com os custos de combatê-la,
assumindo um papel fundamental de não abandonar os mais pobres. 54

Há outros componentes de discurso do outro que passam a ser Campos


integrados, como o uso do discurso indireto, em que retoma o discurso já- Cavalcante Filho
dito na Conferência das Partes – COP 15 de Copenhague, procedimento
linguístico com vistas a intervir na esfera pública. Ao recuperar o acordo
estabelecido em 2009 na Dinamarca, Lula considera a longa negociação
climática como “promessa [que]nunca foi cumprida” e o faz com a marca da
preposição “desde”, que indica um movimento que não tem término previsto.
O presidente da República interpela “o mundo rico” que participará
das próximas COPs, transferindo responsabilidades ao Sul Global e inclui o
discurso do outro em seu plano argumentativo, com a enumeração de vários
dados. Esse procedimento linguístico-discursivo lhe permite dialogar com
vários interlocutores de maneira avaliativa tensa. Primeiro, critica o gasto de
“2,24 trilhões de dólares em armas” pelos países ricos e os cobra por não usar
esta “montanha de dinheiro” para impulsionar “o desenvolvimento
sustentável e a ação climática”. Em seguida, enumera as ações do Brasil no
que se refere à proteção do meio-ambiente, e cita a Amazônia, “a redução do
desmatamento em 48%” em relação a 2022, o uso de energias renováveis.
Lula inclui um discurso em outro discurso de modo que entabula um
forte diálogo entre vários países e as ações colaborativas que já foram
construídas, incluindo várias vozes que se entrecruzam como “os países
detentores de florestas tropicais da África e da Ásia”. Nesse discurso de
abertura, inscrito na defesa de um compromisso com as mudanças climáticas,
o presidente faz uma avaliação dos resultados obtidos pelas pesquisas
espaciais e instiga o G20 a impulsionar os resultados obtidos nas convenções
da Rio 92: “de clima, biodiversidade e desertificação”, em que explicita a
forte atuação desse fórum em relação à sociedade, à articulação entre
pesquisas científicas e política. Esses elementos formadores de um dado
momento da crise climática, vão ser apresentados a partir da enumeração de
acordos já firmados como a COP 21em Paris (2015) e na COP28 em Dubai,
2023 e de metas a serem estabelecidas para se chegar na COP 30, em Belém
do Pará, 2025.
A partir da enumeração dos acordos globais produzidos nas várias
Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, numa
sintaxe perfeitamente integrada à voz de quem não somente avalia as

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


consequências de um passado devastador, mas também interpela os países a
assegurar “a sustentabilidade do planeta e a dignidade das pessoas” com 55
financiamento. É interessante notar que Lula, no apelo inaugural da
Campos
conferência em Nova Déhli, não pretende ignorar as questões sociais, mas Cavalcante Filho
colocar todas as vozes, mesmo contraditórias, para serem ouvidas. Diante de
um público enorme (o discurso foi divulgado na imprensa televisa, na internet
etc.), usa o discurso do outro como estratégia para recuperar a memória do
que já fora prometido e pouco cumprido, fazendo com que as enumerações
sejam indicadores de bivocalidade.
No seu discurso científico, político, ético, estético expõe consciências
sociais e individuais, constituindo outros-sujeitos com o objetivo de convocar
todos os países a um compromisso social e se possa transformar “a beleza da
Terra não somente em uma fotografia vista do espaço” (Lula da Silva, 2023)
nos próximos dois anos. Esse procedimento de invocação de diferentes vozes
de maneira estratégica, tanto do ponto de vista linguístico como enunciativo-
discursivo, centrada no discurso do outro, é a tônica de um discurso que
convoca a todos a reconhecer a função social, política, científica e ética de
duas formas de se enfrentar a crise climática, tema de grande importância
social: o engajamento de todos que assinam acordos e a não exclusão dos
mais pobres. Na parte final, pede soluções já e se junta a essa reinvindicação
assumindo a presidência do G20 em 01 de dezembro de 2023.
Para que o ouvinte/telespectador/internauta possa apreender o jogo de
discurso do outro, permitindo que as vozes sejam ouvidas completamente e
as citações bem entendidas, Lula se compromete a participar dessa história
de resistência em favor da vida.

Considerações finais
No âmbito dos estudos da linguagem, em geral, e dos estudos
discursivos, em específico, a teoria dialógica da linguagem marca um lugar
epistemológico importante na sua perspectiva singular de analisar os
discursos produzidos por sujeitos sociohistoricamente situados, levando em
consideração sua relação com o social, o histórico, o político, o ético e o
cultural.
Com o objetivo de apresentar os principais princípios teórico-
metodológicos da chamada análise dialógica do discurso, o presente texto

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


buscou articular tais princípios a um gesto analítico e de interpretação de um
enunciado. Nessa empreitada, escolhemos o pronunciamento presidencial de 56
Luís Inácio Lula da Silva, proferido da Cúpula do Grupo dos 20 (G20) em 9
Campos
de setembro de 2023. Cavalcante Filho
Seguindo, pois, uma metodologia de análise dialógica, observamos a
imprescindibilidade de se levar em consideração o contexto social em que o
discurso é produzido, o endereçamento que justificativa a construção de seus
sentidos, bem como os discursos outros que constroem e sustentam aquele
projeto de dizer. Do seu lugar de autoria, refletindo e refratando valores que
permeiam a visão de mundo do presidente de uma nação, Lula faz de seu
discurso um evento ético, político, social e interacional, ao convocar, no fio
dialógico-discursivo do seu dizer, discursos alheios que dão forma e
conteúdo, além de valorar seu posicionamento em defesa de uma coletividade
que engloba o homem, o meio ambiente, a vida social.

Referências
Bakhtin, Mikhail. Arte e responsabilidade. In: Bakhtin, Mikhail. Estética da criação
verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, [1919] 2011a.
p. XXXIII-XXXIV.
Bakhtin, Mikhail. Apontamentos de 1970-1971. In: Bakhtin, Mikhail. Estética da criação
verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, [1970-1971]
2011b. p. 367-392.
Bakhtin, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de
Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, [1920-
1924] 2010a.
Bakhtin, Mikhail. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In:
Bakhtin, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Tradução de
Aurora Fornoni Bernadini et al. 6. ed. São Paulo: Hucitec, [1924] 2010b. p. 13-70.
Bakhtin, Mikhail. Teoria do romance I: a Estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário
de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, [1934-1935] 2015.
Bakhtin, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de
Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, [1952-1953] 2016.
Bakhtin, Mikhail. Por uma metodologia das ciências humanas. In: Bakhtin, Mikhail. Notas
sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de
Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, [1979] 2017. p. 57-79.
Bakhtin, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução, notas e prefácio de
Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, [1963] 2018.
Bakhtine, Mikhaïl. Problèmes de la poétique de Dostoievski. Lausane : L’Age d’homme,
[1963]1970.
Brait, Beth. Análise e teoria do discurso. In: Brait, Beth. Bakhtin: outros conceitos-chave.
São Paulo: Contexto, 2006. p. 9-31.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Brait, Beth. O texto nas reflexões de Bakhtin e do Círculo. In: BATISTA, R. de O. (Org.).
O texto e seus conceitos. São Paulo: Parábola, 2016. p. 13-30.
57
Buss, Paulo Marchiori. Agendas da Saúde Global e Diplomacia da Saúde se intensificam
em todas as frentes. Disponível em https://cee.fiocruz.br/?q=agenda-da-saude-global-e- Campos
diplomacia-da-saude-se-intensificam-em-todas-as-frentes. Acesso 26 nov. 2023. Cavalcante Filho
Cunha, Dóris de Arruda Carneiro da. O discurso de outrem nos estudos da linguagem pós
bakhtinianos. In: Conferência Internacional sobre Bakhtin, 11, 2003, Curitiba. Anais.
Curitiba: [s.n.], 2004. p. 239-243.
Faraco, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin.
São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
Lula da Silva, Luiz Inácio. Discurso do Presidente na Sessão I “Um Planeta Terra” durante
a 18ª Cúpula do G20, em Nova Delhi, na Índia, em 9 de setembro de 2023. Disponível em:
https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-
pronunciamentos/2023/discurso-do-presidente-da-republica-luiz-inacio-lula-da-silva-
durante-a-abertura-da-cupula-do-g20. Acesso em: 26 nov. 2023.
Medviédev, Pável. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma
poética sociológica. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo:
Contexto, [1928] 2012.
Todorov, Tzvetan. Mikhäil Bakhtine: le principe dialogique suivi de écrits du cercle de
Bakhtine. Paris : Édition du Seuil, 1981.
Volóchinov, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do
método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo
e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, [1929] 2017.
Volóchinov, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas
e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, [1926] 2019.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Anexo
58

Campos
Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Cavalcante Filho
Lula da Silva, durante a abertura da Cúpula do G20
Discurso lido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a Cúpula do G20, na Sessão
I: “Um planeta Terra”. Evento realizado em Nova Delhi, na Índia, em 9 de setembro de
2023
Publicado em 09/09/2023 02h41

Quando olhou através da escotilha de sua nave, e viu pela primeira vez nosso
planeta em toda a sua plenitude, o cosmonauta Yuri Gagarin não conteve o encantamento,
e disse: “A Terra é azul”.
Sete décadas depois, as fotografias enviadas pela Chandrayaan-3 que a Índia
pousou recentemente no polo sul da Lua não deixam dúvidas: vista do alto, a Terra continua
azul e linda.
No entanto, o descompromisso com o meio ambiente nos leva a uma emergência
climática sem precedentes.
O aquecimento global modifica o regime de chuvas e eleva o nível dos mares.
As secas, enchentes, tempestades e queimadas se tornam mais frequentes e minam
a segurança alimentar e energética.
Agora mesmo no Brasil, o estado do Rio Grande do Sul foi atingido por um ciclone
que deixou milhares de desabrigados e dezenas de vítimas fatais.
Se não agirmos com sentido de urgência, esses impactos serão irreversíveis.
Os efeitos da mudança do clima não são sentidos por todos da mesma forma.
São os mais pobres, mulheres, indígenas, idosos, crianças, jovens e migrantes, os
mais impactados.
Quem mais contribuiu historicamente para o aquecimento global deve arcar com
os maiores custos de combatê-la.
Esta é uma dívida acumulada ao longo de dois séculos.
Desde a COP de Copenhague, os países ricos deveriam prover 100 bilhões de
dólares por ano em financiamento climático novo e adicional aos países em
desenvolvimento.
Essa promessa nunca foi cumprida.
De nada adiantará o mundo rico chegar às COPs do futuro vangloriando-se das
suas reduções nas emissões de carbono se as responsabilidades continuarem sendo
transferidas para o Sul Global.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Recursos não faltam. Ano passado, o mundo gastou 2,24 trilhões de dólares em
armas. 59
Essa montanha de dinheiro poderia estar sendo canalizada para o desenvolvimento
sustentável e a ação climática. Campos
Cavalcante Filho
No Brasil, estamos fazendo nossa parte.
A proteção da floresta e o desenvolvimento sustentável da Amazônia estão entre
as prioridades do meu governo.
Nos primeiros 8 meses deste ano reduzimos o desmatamento em 48% em relação
ao mesmo período do ano passado.
Sediamos, há um mês, a Cúpula da Amazônia e lançamos nova agenda de
colaboração entre os países que fazem parte daquele bioma.
Também aprofundamos o diálogo com outros países detentores de florestas
tropicais da África e da Ásia, para articular posições comuns entre as bacias Amazônica,
do Congo e do Bornéu-Mekong.
Não basta olhar as fotos de satélite. Debaixo de cada árvore, há uma mulher, um
homem e uma criança.
As energias renováveis, os biocombustíveis, a socio-bio-economia, a indústria
verde e a agricultura de baixo carbono devem gerar empregos e renda, inclusive para as
comunidades locais e tradicionais.
O G20 deve impulsionar esse esforço, respeitando o conceito de responsabilidades
comuns, porém diferenciadas e valorizando todas as três convenções da Rio 92: de clima,
biodiversidade e desertificação.
A melhor forma de sermos ambiciosos é garantir o sucesso do Exercício de
Avaliação Global do Acordo de Paris, na COP28, e da negociação de novas metas
quantitativas.
Para complementar esse esforço, lançaremos, em nossa presidência do G20, uma
Força Tarefa para Mobilização Global contra a Mudança do Clima.
Queremos chegar na COP 30, em 2025, com uma agenda climática equilibrada
entre mitigação, adaptação, perdas e danos e financiamento, assegurando a sustentabilidade
do planeta e a dignidade das pessoas.
Esperamos contar com o engajamento de todos. Para que a beleza da Terra não seja
apenas uma fotografia vista do espaço.
Muito obrigado.

Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-


pronunciamentos/2023/discurso-do-presidente-da-republica-luiz-inacio-lula-da-silva-
durante-a-abertura-da-cupula-do-g20 Acesso em: 26 nov. 2023.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


60

Nascimento

Desvirtude discursiva no
discurso religioso evangélico:
análise dialógica da
argumentação e ética
Discursive disvirtue in evangelical religious discourse:
dialogical analysis of argumentation and ethics

Lucas Nascimento 1 Introdução


Universidade Estadual de Feira de Santana,
Brasil Existem certos enunciados
que extrapolam os limites daquilo
que é aceitável moralmente se dizer
no espaço público. Nos últimos
anos, vários enunciados de sujeitos religiosos cristãos têm cumprido esse
papel quando o assunto é a população LGBTI+.
Muitas são as polêmicas entre cristãos e a comunidade LGBTI+.
Podemos citar algumas delas: casamento homoafetivo, adoção de crianças
por homossexuais, criminalização da homofobia, reorientação sexual,
conhecida como “cura gay”, teorias de gênero, dentre outras. Nessas
polêmicas, por vezes, as palavras, os argumentos e a maneira como são
mobilizados acabam ferindo e contribuindo para a estigmatização dessa
comunidade.
No contexto da polêmica da “cura gay” em 2013, o deputado federal
e pastor Marco Feliciano deu uma entrevista à revista Veja e disse: “união

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


homossexual não é normal. O reto não foi feito para ser penetrado” 1. Essa
entrevista provocou um conjunto de reações e de comentários nas redes 61
sociais e nas mídias, o que Marie-Anne Paveau (2015) chama de
Nascimento
“acontecimento discursivo moral”.
Se tenho defendido que o ato de polemizar é ético (Nascimento, 2018,
2019), todavia tenho compreendido que nem todo ato polêmico é ético
(Nascimento, 2023ª, 2023b)2. Então para discutir melhor essa perspectiva,
pretendo mostrar o caminho que tenho desenvolvido para aproximar a
perspectiva teórico-metodológica da análise dialógica da argumentação
(Nascimento, 2018) ‒ a qual tem por fundamento um encontro entre a
filosofia do ato de Bakhtin e seu dialogismo com a nova retórica de Perelman
e Olbrechts-Tyteca (2005) ‒ e os trabalhos sobre ética das virtudes
discursivas de Paveau (2015). Ao proceder essa discussão, analiso os
argumentos do deputado e pastor Marco Feliciano, com vistas a compreender
como seu enunciado ultrapassa os limites éticos da polêmica, tornando-se um
discursivo desvirtuoso.

2 Da filosofia do ato à análise dialógica da


argumentação
Promovi um encontro epistemológico entre a perspectiva da filosofia
do ato responsável, fundamento do dialogismo de Bakhtin ([1986] 2010,
2011, 2013), e a nova retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), a fim
de compreender as condições de possibilidades discursivas e argumentativas
da polêmica entre LGBTI+ e cristãos em torno do projeto de lei anti-
homofobia (PLC122/2006). Desse encontro, propus a definição da polêmica
como um desacordo profundo motivado pelo que tenho chamado de antipatia
pelos valores do outro.
Nessa proposta de análise dialógica da argumentação, dá-se destaque
não apenas ao acordo, mas especialmente ao desacordo profundo, ou seja, à
polêmica. Assim, investigamos como os sentidos emergem à consciência dos

1
Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/a-uniao-homossexual-nao-e-normal-diz-
candidato-a-presidencia-da-comissao-de-direitos-humanos-da-camara/. Acesso em: 03 ago. 2020.
2
Pesquisa realizada no período de pós-doutorado na Universidade de São Paulo pelo Programa de
Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa, sob a supervisão da Professora Drª. Maria Inês
Batista Campos Noel Ribeiro entre os anos de 2021 a 2023.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


sujeitos argumentantes. Nessa perspectiva, o problema do sentido se centra
não apenas no consenso, mas também no dissenso entre os sujeitos. 62

A compreensão desse empreendimento envolve uma noção Nascimento


fundamental: o conceito de ato. Essa ideia surge da discussão ética do
pensamento realizada por Bakhtin ([1986] 2010) em sua obra filosófica de
juventude, Para uma filosofia do ato responsável. Na obra, o filósofo russo
se dedica a resolver a separação entre o mundo da vida e o mundo teórico (e
estético), buscando uma ética para o pensamento. Ele identifica a unidade
entre esses dois mundos no postupok (ato/feito-façanha), caracterizando o
sujeito como ser único, responsivo e responsável. Dessa forma, Bakhtin
explora a busca fenomenológica da unidade entre o intelectível e o sensível,
o universal e o particular e o conteúdo-sentido e o sentido concreto.
A unidade do ato, de acordo com Bakhtin ([1986] 2010), se estabelece
através de uma relação dialética entre o sensível (o mundo dado) e o
intelectível (o mundo postulado). Esses dois aspectos não podem ser tomados
separadamente como um todo, uma vez que são momentos distintos do ato.
Influenciada pelos postulados de Husserl, a abordagem utilizada para lidar
com o ato é a descrição fenomenológica, com ela, se busca um retorno às
coisas mesmas, ao Lebenswelt, ao mundo da vida. Bakhtin, no entanto,
prefere ir além da fenomenologia, focando no aspecto concreto, contextual e
situacional da descrição do ato, levando em consideração um sujeito situado
no aqui e agora.
O sujeito dialógico é constituído intersubjetivamente, sempre em
relação ao outro, de modo que seus atos também são moldados por essa
relação, o que fundamenta as relações dialógicas. Posteriormente, essa
fundamentação é mais elaborada nas obras de Bakhtin (2011; 2013) e de seu
Círculo, cujos atos concretos são chamados de enunciados, os quais sempre
respondem a outros enunciados.
O sentido, por sua vez, é atualizado por meio da apreciação valorativa
do sujeito, cujo ativismo no mundo dos valores (mundo axiológico) é
essencial. Esse sujeito se constitui na intersubjetividade e é sempre
responsivo ao outro, no qual busca complemento. Em Bakhtin, como mostra
Campos (2012, p. 253) há uma:

arquitetônica valorativa do viver no mundo não com uma


fundamentação analítica frente, mas com um centro verdadeiramente
concreto, espacial e temporal, do qual surgem valores, afirmações,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


ações reais, e onde os membros são pessoas reais, vinculadas entre si
por meio de relações de um acontecimento concreto. Aqui é conceito
de ética bakhtiniano (CAMPOS, 2012, p. 253). 63

Assim, a relação do sujeito com o outro é o motor responsável por Nascimento


atualizar seus enunciados ou argumentos no tempo e no espaço (cronotopo),
por meio de um gênero discursivo que remete a uma esfera específica de
atividade e/ou de campo discursivo.

2.1 Do dialogismo à nova retórica


Fundamentado na filosofia do ato Responsável, aproximei o
dialogismo de Bakhtin da nova retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca
(2005), destacando a relação argumentativa como profundamente dialógica.
Essa abordagem considera o sujeito argumentante como aquele que responde
ao outro, atualizando seus enunciados ou argumentos no espaço e no tempo.
Em relação à atualização de sentido, Bakhtin ([1986] 2010, 2011) e
Perelman e Olbrechts-Tyteca estão em certa sintonia. Estes últimos afirmam
que “as mesmas palavras produzem um efeito completamente diferente,
conforme quem as pronuncia” (Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2005, p. 363).
Isso acontece porque cada sujeito valoriza suas afirmações de maneira
específica, levando em conta o grupo que contribui para o sentido do
enunciado. Esse aspecto é relevante para compreender a argumentação, pois
a interpretação e o julgamento do ato ocorrem em função do agente,
fornecendo o contexto que possibilita uma melhor compreensão. A pessoa é,
portanto, o contexto mais valioso para a apreciação do sentido e do alcance
de uma afirmação.
Na comunicação discursiva, a verdadeira unidade não é a oração, mas
sim o enunciado, o qual representa a unidade da comunicação discursiva.
Nessa perspectiva, a linguagem é argumentativamente orientada, e quem
toma a palavra no ato comunicativo é sempre um respondente, pois cada
enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros
enunciados.
Desse modo, apresentei uma metodologia de análise que engloba o
evento polêmico, o ato polêmico e o microato polêmico. Além disso, propus
uma definição de polêmica, que surgiu a partir do diálogo entre o dialogismo
polêmico de Bakhtin (2013) e a filosofia de Max Scheler (1942, 2001, 2008).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Essa definição considera a polêmica como um desacordo profundo de valores
em um determinado espaço, motivado pela antipatia em relação aos valores 64
do outro, manifestando-se de forma argumentativa. Em outras palavras, a
Nascimento
polêmica é um conflito profundo de valores entre dois ou mais sujeitos em
relação a uma questão importante para uma determinada comunidade.
O evento polêmico é caracterizado pelo encontro de posicionamentos
polêmicos que formam dois campos discursivos antagônicos, responsáveis
por atualizar entidades de outras polêmicas. No caso da polêmica entre
LGBTQI+ e religiosos em torno do Projeto de Lei (PL) n. 122/2006, temos
o campo afetivossexual reformista e o campo cristão tradicionalista.
Nessa disputa, cada lado expõe seus valores e antivalores por meio de
diferentes argumentos. O campo afetivossexual reformista defende o PL 122,
utilizando a retórica da igualdade e da liberdade de expressão sexual,
enquanto o campo religioso tradicionalista se opõe ao PL, valendo-se da
retórica da igualdade e da liberdade de expressão religiosa, propondo um
outro PL contra a intolerância que abranja a proteção de todos contra a
discriminação.
Esses eventos polêmicos geram atos polêmicos, que incluem acordos,
argumentos, estratégias argumentativas e posicionamentos mobilizados no
processo argumentativo, imantados pelo evento polêmico. No caso do
microato polêmico, incluem também palavras ou expressões cujo sentido é
disputado. A análise desses atos permite observar como a polarização, a
dicotomização e a desqualificação do outro se manifestam, bem como a
forma e o conteúdo dos argumentos mobilizados.
O ato de polemizar é ético (Nascimento, 2018), mas alguns atos
polêmicos ultrapassam os limites éticos do que é conveniente se dizer em
certo momento e lugar (Nascimento, 2023a; 2023b). Em uma análise da
polêmica não é possível uma apreciação ética/moral teoricamente justificada,
apesar de ser possível que o pesquisador/analista deixe sua posição explícita
devido à perspectiva dialógica. Nesse sentido é que tenho aprofundado a
análise da argumentação polêmica em sua dimensão moral, identificando em
que sentido uma determinada argumentação ultrapassa seus limites éticos,
mesmo em uma situação polêmica.
Há quem tangencie a questão ética no que se refere à polêmica. Por
exemplo, a questão da violência verbal na polêmica é tratada por Amossy
(2014; 2017), que a coloca sob a responsabilidade das regras de cortesia e da

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


deontologia da discussão racional. A autora explora como essa atitude verbal
participa da polêmica, considerando a violência como funcional, ou seja, 65
fazendo parte do campo da argumentação. Amossy demonstra que a violência
Nascimento
verbal ocorre de maneira diferente e segue regras distintas, dependendo do
contexto em que acontece. Ela ressalta que a verdadeira ilegitimidade ética
consiste na transformação da violência funcional, que é uma questão
discursiva, em violência real.
Tenho defendido que a problemática dos limites éticos da
argumentação polêmica pode ser melhor compreendida não necessariamente
através de uma visão consequencialista, como sugere Amossy (2014; 2017),
ou de uma visão deontológica, como a ética da discussão de Habermas
(2004). Pode-se, ao invés disso, recorrer a uma ética dos valores, ou ética das
virtudes, estabelecendo um diálogo entre Bakhtin ([1986] 2010, 2011, 2013)
e Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), Perelman (1986, 1993, 2000, 2004,
2011), autores que abordam as questões discursivas dentro de uma
perspectiva axiológica, centrada nos valores.
Dessa perspectiva, a contribuição do filósofo Max Scheler (1942;
2001) se torna relevante, especialmente em seu personalismo ético, uma
figura comum tanto para Bakhtin quanto para Perelman. Scheler enfatiza que
o ser humano reage aos valores, preferindo e adiando-os, amando-os e
odiando-os. Esses valores se materializam em bens ou objetos, e cada
consciência os apreende de forma singular, percebendo-os como entidades
reais, não apenas como entidades psíquicas.
Assim, é possível resgatar uma tradição aristotélica não somente em
relação à questão retórico-argumentativa, mas também em relação às virtudes
como disposições de caráter, conforme proposto em "Ética a Nicômaco"
(Aristóteles, [1094] 1973). Essa abordagem remonta a uma tradição que foi
revitalizada pela epistemologia das virtudes, devidamente discutida por
Marie-Anne Paveau (2015) em Linguagem e moral: uma ética das virtudes
discursivas, na qual se buscou uma investigação da dimensão ética/moral da
linguagem através de uma perspectiva axiológica.

3 Da ética das virtudes discursivas à polêmica


Marie-Anne Paveau (2015) propõe uma análise do discurso moral,
essa busca questionar a dimensão moral da linguagem. A pesquisadora

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


francesa destaca a presença dessa dimensão nos fenômenos linguísticos
cotidianos, mas aponta que, até então, os estudiosos da linguagem não 66
haviam tratado o assunto de forma adequada.
Nascimento
Para se realizar um questionamento ético à linguagem, é necessário
considerar um conjunto de fenômenos. Paveau (2015, p. 129) elenca alguns,
como fenômenos moral, psicológico, filosófico, social, cognitivo, jurídico,
linguístico. Ela argumenta que “isso exige (pelo menos) uma filosofia (moral,
metamoral, cognitiva, do espírito), uma psicologia e uma linguística ou
mesmo uma cognição social”.
Essa dimensão ética do discurso é proposta por Paveau (2015) através
de uma abordagem que se inspira na tradição aristotélica e na noção de
“virtude”, conforme proposta por Aristóteles em Ética a Nicômaco. Nessa
perspectiva clássica, “a virtude diz respeito às paixões e ações em que o
excesso é uma forma de erro, assim como a carência, ao passo que o meio-
termo é uma forma de acerto digna de louvor; e acertar e ser louvada são
características da virtude” (Aristóteles, [1094] 1973, Livro II, 6).
Ao dialogar com a tradição aristotélica, Paveau (2015, p. 216) propõe
então a noção de “virtude discursiva”. Essa é “uma disposição do agente a
produzir discursos ajustados aos valores vigentes em seu ambiente, ou seja,
ajustados aos outros agentes, ao conjunto dos discursos produzidos à
realidade”. Quando um discurso não está em conformidade com tais valores,
pode desencadear um “acontecimento discursivo moral”, que consiste em
reações e comentários repletos de julgamentos morais em relação à fala em
questão, como já disse na introdução.
O elemento ético não é encontrado no linguístico em si, ele está na
maneira que o sujeito produz certo enunciado em determinado ambiente.
Nessa perspectiva, a cognição interna e a externa estão interligadas, de
maneira que “a produção dos enunciados se realiza tanto ‘na cabeça’ quanto
nos ambientes exteriores humanos e não humanos” (Paveau, 2015, p. 191).
O contexto, nesse sentido, não é apenas um simples “pano de fundo”,
mas, sim, um “ambiente cognitivo”. Esse atua em conjunto com diversos
elementos na produção verbal, os quais passam a ser coconstrutores dos
enunciados. Quais são esses elementos? Em primeiro plano, estão os agentes
humanos envolvidos na linguagem. Em segundo plano, os agentes não
humanos, os quais podem incluir tecnologias linguísticas, como gramáticas,
dicionários e listas, além de tecnologias discursivas, que englobam métodos
de produção, de difusão, de transmissão e de modificação de discursos.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Também são considerados os pré-discursos internos e externos, bem como o
conjunto de dados sociais, históricos, culturais, institucionais e morais 67
(Paveau, 2015).
Nascimento
Dessa forma, o contexto, agora concebido como ambiente, passa a
interagir de forma essencial com as ciências cognitivas, colaborando
ativamente na construção dos significados possíveis do discurso. Tenho
defendido que essa abordagem pode ser associada a uma perspectiva
dialógica, pois o sujeito dialógico compreende o mundo considerando
elementos que transcendem o verbal e abrangem a totalidade da vida. Nesse
sentido, influenciado pelas reflexões teóricas de Bakhtin (2011) sobre
literatura, o mundo se apresenta ao sujeito, especialmente, como um
ambiente que engloba todo o mundo material.
A abordagem de Paveau segue uma perspectiva semelhante à da
axiologia dialógica, pois prioriza mais os valores do que as normas. Dessa
forma, a ética das virtudes discursivas não se alinha com a deontologia (ética
baseada em normas, como a defendida por Habermas), mas se aproxima da
ética dos valores ou da epistemologia das virtudes, cuja proeminente
representante é a filósofa Gertrude E. M. Anscombe (2006), com seu artigo
"Modern Moral Philosophy", de 1958.
Chama atenção que em Paveau (2015), não encontramos uma lista de
virtudes, como as tradicionais virtudes cardinais e teologais da tradição
cristã. Isso acontece porque a manifestação da virtude está nas disposições
dos agentes para produzir discursos coconstruídos e adequados ao mundo e
ao ambiente. Dessa perspectiva, é possível conceber uma ética discursiva que
valorize a plasticidade axiológica, ou seja, um enunciado que pode ser
desajustado em um determinado contexto, mas que, em outro contexto, pode
ser reavaliado e se tornar adequado, dependendo das disposições dos agentes,
do mundo e do ambiente. Além disso, é viável promover o diálogo com os
efeitos de sentido implicados no ato de polemizar.
Essa perspectiva interdisciplinar entre linguística simétrica, teorias do
discurso, psicologia (cognição distribuída) e filosofia moral (epistemologia
das virtudes e ética aristotélica) proposta por Paveau (2015) contribui de
maneira significativa para o desenvolvimento de uma “ética das virtudes
discursivas”. Nesse ímpeto, ao analisar discursos polêmicos, nos quais há
enunciados que frequentemente atacam e demonizam o outro, surge a
indagação: quais os limites éticos dos atos polêmicos? Como compreendê-
los?.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


3.1 Ato polêmico e ética
68
Tenho defendido que a polêmica é inerente à natureza dialógica da
linguagem (Nascimento, 2018, 2019) e, como argumenta Amossy (2014), ela Nascimento
desempenha um papel importante na gestão do dissenso, sendo considerada
uma modalidade argumentativa crucial para a democracia. Portanto, o estudo
da polêmica, sob uma perspectiva discursiva e argumentativa, torna-se
relevante não apenas para compreender a construção dos sentidos
(Maingueneau, 2008), mas também para entender como ocorre a formação
das diferenças e das identidades entre os sujeitos e seus grupos no espaço
público.
Contudo, no campo da argumentação, a polêmica é normalmente
tratada de forma periférica, sendo frequentemente reduzida a um tipo de
debate repleto de paralogismos, vista como um erro argumentativo, motivado
pelas paixões indignas e associado apenas às artes, como a Erística e a
Sofística (Aristóteles, 2004; Angenot, 2008). Esse olhar é influenciado pelo
privilégio que o consenso como ideal possui em relação às questões
argumentativas. Essa preferência pelo consenso pode ser observada desde a
retórica de Aristóteles (2007) até a nova retórica de Chaïm Perelman,
conforme abordado por Plantin (2003) e Amossy (2014). Sendo assim, a
visão positiva da polêmica é recente e ainda minoritária no âmbito dos
estudos da argumentação.
É essencial não ignorar que o dissenso faz parte da natureza dialógica
e argumentativa das relações humanas. Em tempos de crise democrática, é
fundamental compreender a importância dessas problemáticas
sociocomunicativas. Nesse contexto, em consonância com Angenot (2015, p.
129), a retórica deve se tornar uma ciência dos desacordos persistentes e dos
mal-entendidos resultantes do intercâmbio das “boas razões”, observando o
mundo como funciona concretamente, buscando compreendê-lo.
Na perspectiva do dialogismo polêmico, defendo que o ato de
polemizar é uma atitude ética, assim como os atos do sujeito dialógico, que
é situado no tempo e no espaço, único, responsivo e responsável
(Nascimento, 2018; 2019). Esse posicionamento se fundamenta em uma
postura de defesa dos valores que o sujeito aprecia e, portanto, prefere,
enquanto repudia os valores que ameaçam os seus.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Entretanto, a questão que se coloca é: se polemizar é uma atitude ética,
isso implica que todo ato polêmico é ético? Caso não seja, quais são os limites 69
éticos dos atos polêmicos? Ao utilizar o termo “ética” como sinônimo de
Nascimento
moral, como Paveau e Bakhtin o fazem, essa indagação se torna relevante. O
estudo da linguagem já não pode ignorar a interrogação ética, conforme
demonstrado por Marie-Anne Paveau (2015) em Linguagem e moral, e o
estudo da polêmica deve fazer o mesmo, especialmente se fundamentando
em uma perspectiva teórico-filosófica que se dedica a questionamentos
éticos, como é o caso da perspectiva bakhtiniana, sobretudo, considerando as
discussões de Bakhtin ([1986] 2010) em Para uma filosofia do ato
responsável.
Dessa forma, a dimensão ética pode ser abordada a partir dos próprios
princípios filosóficos, teóricos e metodológicos da Análise Dialógica da
Argumentação. Essa abordagem se baseia em uma filosofia moral e
axiológica fundamentada em Bakhtin, em diálogo com a lógica do razoável
de Perelman (1986, 1993, 2000, 2004, 2011) e Perelman e Olbrechts-Tyteca
(2005) e suas tradições filosóficas. É importante ressaltar a complexidade de
traçar o caminho teórico para relacionar discurso e ética, e há ainda muito a
ser desenvolvido nesse sentido. No entanto, Paveau oferece um sólido
suporte para desenvolver uma perspectiva como a que temos desenvolvido.
Paveau (2015, p. 229) coloca em questão a problemática ética na
análise do discurso. Ela afirma: “Nenhuma das diversas tradições da análise
do discurso incorpora a dimensão moral na análise das palavras em discurso,
quer se trate do dialogismo bakhtiniano, apesar de amplamente baseado na
ideia de subjetividade, quer da chamada corrente ‘francesa’”.
Embora se reconheça que na teoria e na análise dialógica do discurso
há possibilidade de tomada de posição ética nas pesquisas, como mostra
Amorim (2004), não é comum estudos sobre a natureza moral dos
enunciados. Bakhtin um dos primeiros a lançar as bases de uma filosofia
dialógica do discurso, colocando em foco a questão ética. Ele enfatiza que o
sujeito dialógico é inerentemente ético, afirmando que “uma filosofia da vida
só pode ser uma filosofia moral” (Bakhtin, [1986] 2010, p. 117). Assim,
como dissemos, o ato ético é compreendido como aquele realizado por um
sujeito responsivo, responsável e situado.
Assim, ao refletirmos sobre a argumentação polêmica, defendo que
não podemos nos limitar à “apologia da polêmica”, como é feito por Amossy

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


(2014), mas é imprescindível avançarmos no debate para construir uma
abordagem analítica que abranja os aspectos éticos dos atos polêmicos. 70
Afinal, as inúmeras polêmicas que eclodem repetidamente no espaço público,
Nascimento
ao mesmo tempo que trazem à tona temáticas importantes, convidando a
todos a tomarem posição, também revelam formas agressivas de
argumentação, que acentuam ainda mais as divisões, dificultando a busca por
consensos e, lamentavelmente, humilhando indivíduos e grupos vulneráveis.
Assim, é fundamental considerar não somente o impacto social, mas também
a dimensão moral dos conflitos de valores para conceber uma ética adequada
à argumentação polêmica.
Ao promovermos a interface entre argumentação e ética, numa
perspectiva ancorada na tradição aristotélica, é possível buscarmos uma
sabedoria prática, a exemplo das virtudes, e aplicá-la ao discurso. A tarefa
não tem sido simples, mas diante de tantas falas indecentes, como a do pastor
e deputado Marco Feliciano, de tanta violência verbal e demonizações nas
redes sociais, faz-se urgente avançarmos nesses estudos.

4 Análise da desvirtude sobre a homossexualidade


No âmbito da polêmica da “cura gay”, dois dias antes de ser eleito
presidente da Comissão Parlamentar de Direitos Humanos e Minorias
(CDHM) da Câmara dos Deputados, em 5 de março de 2013, foi publicada a
entrevista do deputado e pastor Marco Feliciano à conhecida seção “páginas
amarelas” da revista Veja. Na entrevista, ao ser questionado pela jornalista
Laryssa Borges se ele falava em ter medo da causa gay, Feliciano responde:
“união homossexual não é normal. O reto não foi feito para ser penetrado.
Não haveria condição de dar sequência à nossa raça”3.
As reações à declaração de Feliciano se deram tanto de dentro da
comunidade LGBTI+ quanto por diversas outras pessoas no espaço público.
E elas, em junho daquele ano, se juntaram às reações que ocorreram contra o
desarquivamento feito sob a presidência do deputado ao CDHM o Projeto de
Decreto Legislativo 234/11, proposto em 2011 pelo Deputado João Campos
(PSDB-GO), o qual objetivava suspender os artigos 3º e 4º da resolução 01/

3
A entrevista também está disponível no site da Veja, em: https://veja.abril.com.br/politica/a-uniao-
homossexual-nao-e-normal-diz-candidato-a-presidencia-da-comissao-de-direitos-humanos-da-
camara/. Acesso em: 03 ago. 2020.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


do Conselho Federal de Psicologia, que proíbe o tratamento de reorientação
da homossexualidade4. 71

Essas reações chegaram às ruas aos famosos protestos de junho de Nascimento


2013. Como lembra Trevisam (2018, p. 497), em relação ao enunciado em
análise, “a comunidade LGBT lhe deu o troco em cartazes que diziam
‘Feliciano, meu cu é laico’ - como eu próprio vi numa concorrida
manifestação na praça Roosevelt, em São Paulo”.
Marco Feliciano é pastor pentecostal, tornou-se famoso entre os fiéis
desse ramo evangélico por suas pregações carismáticas e por falas polêmicas,
sobretudo contra LGBTI+ e contra o aborto. Foi eleito deputado pela
primeira vez pelo Partido Social Cristão de São Paulo em 2010, passando
pelo Podemos (PODE) e, desde 2021, está filiado ao Partido Liberal (PL).
O gênero discursivo entrevista jornalística é propício ao
compartilhamento de fortes posicionamentos pelo entrevistado, o qual
mescla, por vezes, uma linguagem formal com uma informal, dependendo do
estilo do sujeito. Esse gênero tem uma função social bastante importante,
porque possibilita o debate social a partir do que ali é compartilhado. No caso
das entrevistas das “páginas amarelas” da revista Veja5, semanalmente, uma
figura importante é convidada a emitir opinião sobre diferentes assuntos
(sociais, ideológicos, políticos, científicos, artísticos, entre outros).
Essa revista, posicionada ideologicamente à direita, tem, por assim
dizer, grande influência na formação da opinião pública, portanto, quem ali
enuncia é capaz de orientar as formas de ver e de agir no espaço público.
Como espaço público, considero um lugar de interação discursiva, no qual
podemos analisar a produção, a circulação e a recepção de discursos, espaço
onde os sujeitos procuram participar, de alguma maneira, da vida pública da
sociedade (Nascimento, 2018).
Na seção de entrevista das “páginas amarelas” da Veja, há certa
interação dialogal entre entrevistador e entrevistado, o que dá certa fluidez
ao diálogo. As entrevistas “acontecem oralmente e, ao serem transcritas e
editadas, elas perdem muitas marcas de oralidade, mas mantêm a formação

4
Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/408511-deputado-apresenta-novo-projeto-
sobre-tratamento-de-gays/. Acesso em: 20 jul. 2020.
5 A revista Veja tem publicação semanal no Brasil, distribuída pela Editora Abril, com edições
lançadas às quartas-feiras. Fundada em 1968 pelo jornalista Roberto Civita, a revista aborda uma
diversidade de temas de alcance nacional e global.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


interacional entrevistador/entrevistado, própria do gênero, e, no caso em
questão, entre ambos e o público-alvo da revista” (Borges, 2016, p. 67). 72

Nessa mesma entrevista, o deputado Feliciano afirma que os LGBTI+ Nascimento


“se escondem atrás de um rótulo de minoria, não para buscar direitos, mas
privilégios”. Ao responder outra pergunta, ele diz: “Não tenho problemas em
discutir assuntos ligados à homossexualidade. Eles é que não dão direito ao
contraditório. Não os xingo de nenhuma palavra. As palavras obscurantista,
fundamentalista e desgraçado foram usadas por eles contra mim”6. Antes da
afirmação indecente aqui analisada, a entrevistadora pergunta: “O senhor não
acha que os homossexuais sofrem perseguição?”. Ele responde: “Quando
homossexuais são feridos, mortos ou quando sofrem qualquer tipo de
preconceito, aí é uma questão de direitos humanos”. Em seguida, a pergunta
é: “Mas o senhor fala em medo da causa gay?”. Ele então responde o
enunciado que é objeto de análise aqui.
O posicionamento de Marco Feliciano se dá dentro do evento
polêmico da cura gay. Em 2011, surgiu essa polêmica que a mídia brasileira
logo chamou de “cura gay”. A questão dada era a possibilidade ou não de se
permitir a psicólogos tentarem a “reorientação” sexual de homossexuais. O
ápice da polêmica, no entanto, se deu em 2013, quando o Projeto foi
desarquivado por Feliciano na CDHM.
De um lado, estavam os tradicionalistas, especialmente os religiosos,
temerosos com o avanço das pautas e dos direitos LGBTI+. Esse grupo
representado por Feliciano, membro da Bancada Evangélica, atualiza um
campo discursiva antiLGBTI+, no qual seus enunciados produzem sentido.
Nesse campo, valores religiosos e noções sobre a homossexualidade sem
comprovações atualizadas da ciência sustentam o posicionamento de
reversão da homossexualidade, produzindo o sentido de que a
homossexualidade é uma anormalidade ou mesmo doença que precisa ser
reconvertida ou tratada. Como mostra Novaes (2021, p. 120), “Dentre os
parlamentares o fator religião é o que direciona o desejo em regulamentar a
prática de reversão da homossexualidade, apoiada por um viés
heteronormativo defendido por tais deputados”.

6
Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/a-uniao-homossexual-nao-e-normal-diz-
candidato-a-presidencia-da-comissao-de-direitos-humanos-da-camara. Acesso em 20 de dezembro
de 2022.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


O discurso da reversão homossexual é sustentando por alguns que
defendem uma “psicologia cristã”. Uma dessas psicólogas é a evangélica 73
Rozangela Justino, que ficou conhecida após ter dado entrevistas ao jornal
Nascimento
Folha de S. Paulo, à revista Veja e ao telejornal do SBT, argumentando em
favor de um discurso “psicológico” para sustentar a reversão da sexualidade.
Esse discurso provocou uma série de denúncias por militantes LGBTI+ ao
Conselho Federal de Psicologia (CFP), de modo que ela recebeu uma censura
pública do Conselho, o que culminou em um processo legal e no risco de
perder sua licença profissional. Essa situação foi usada para construção da
narrativa de censura aos psicólogos cristãos no campo religiosos
antiLGBTI+.
Outra psicóloga que ficou conhecida na ocasião foi a pastora Marisa
Lobo, a qual é uma veemente inimiga do que chama de “ideologia de
gênero”. Lobo, naquele contexto, entendia “a homossexualidade como uma
construção ideológica ou cultural errônea e antimoral” (Novaes, 2021, p.
122).
Do outro lado, o posicionamento do Conselho Federal de Psicologia,
juntamente com o movimento LGBTI+, produzia um discurso contrário ao
projeto e à pauta de reversão sexual. Como o foco é a análise do enunciado
de Feliciano, não entrarei em detalhes dos sentidos desse campo.
Em toda sociedade, “existe certo número de critérios que, em certa
época, lugar e sociedade, definem para os usuários do discurso a
aceitabilidade moral de um enunciado” (Paveau, 2015, p. 26). Esses critérios
advêm de vários ajustes admitidos: 1) ajuste dos discursos ao mundo,
traduzido pela ideia de verdade das palavras ou, poderíamos dizer, dos
argumentos; 2) ajuste dos discursos às memorias discursivas e (3) ajuste dos
discursos às normas de relação com os agentes, admitidas numa sociedade.
Ora, a afirmação do deputado pastor Marco Feliciano, quando
expressa publicamente nas páginas de uma das principais revistas do país, de
que “a união homossexual não é normal”, entra em completo desajuste com
os discursos público, acadêmico e científico acerca da homossexualidade. Tal
posicionamento destoa da noção de veracidade das palavras e dos
argumentos.
É inegável que, no final do século XIX e início do XX, a
homossexualidade tenha sido considerada um desvio da norma
heterossexual. Em 1952, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Mentais (DSM) a classificou como uma desordem. No entanto, há décadas
que tais pesquisas se mostraram desprovidas de fundamentos e absurdas, 74
resultando em uma compreensão diametralmente oposta na atualidade. A
Nascimento
Associação Americana de Psiquiatria, em 1973, retirou a homossexualidade
da lista de transtornos mentais do DSM-II. Em 1975, a Associação
Americana de Psicologia também excluiu a homossexualidade da lista de
transtornos psicológicos, e, desde 1990, a Organização Mundial de Saúde
(OMS) deixou de considerá-la como doença mental, orientação seguida pelo
CFP e pelo Conselho Federal de Medicina. Contudo, o discurso evangélico
tradicional ainda se reflete na fala de Feliciano, ao colocar a
homossexualidade como algo anormal.
Quando Feliciano diz que “o reto não foi feito para ser penetrado. Não
haveria condição de dar sequência à nossa raça”, ele está reduzindo a relação
entre pessoas do mesmo sexo à reprodução, o que é um desajuste com a
verdade das relações homoafetivas. Ademais, embora seu argumento se
revista de suposta perspectiva biológica e antropológica, o que motiva sua
visão sobre a homossexualidade é a interpretação de passagens da bíblia em
que relações entre pessoas do mesmo sexo naquele contexto é condenada.
Especialmente, remete-se ao texto de Paulo aos romanos (Romanos, 1. 26,
27).
Atualmente, há toda uma conjuntura social e histórica que cria uma
memória discursiva a respeito de tudo o que foi dito sobre a
homossexualidade, fazendo com que seja inapropriado, ao menos
publicamente, o discurso da homossexualidade como anormalidade ou
anomalia. Assim, o segundo desajuste confirma o porquê de o enunciado de
Feliciano ser desvirtuoso.
Quando um sujeito público, representante da democracia e
representante de uma entidade religiosa, se utiliza deliberadamente de
argumentos que desprezam e humilham a condição do outro, institui-se aí
uma relação de estigmatização e de rejeição aos homossexuais. Essa relação
com os LGBTI+, já não é mais admitida publicamente em nossa sociedade.
Nesse sentido, o enunciado de Feliciano fere o terceiro critério de ajuste,
ajuste aos discursos e às normas entre os sujeitos que são admitidas na
sociedade.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Conclusão
75
Em uma democracia, todo cidadão tem por direito polemizar, pois esse
ato está ligado à liberdade de expressão e à possibilidade de argumentar sobre Nascimento
assuntos considerados importantes a certo grupo social, mesmo que isso entre
em conflito com outros grupos, como é próprio das polêmicas. No entanto,
como tenho demonstrado (Nascimento, 2023a; 2023b), nem todo ato
polêmico é ético, o que significa que existem palavras e argumentos que
podem ser moralmente condenáveis, como é o caso do enunciado do
deputado e pastor Marco Feliciano.
O senso moral sobre o que pode ou não ser dito em determinados
lugares está relacionado a um conjunto de valores, memória discursiva e
normas compartilhadas pelos sujeitos que constituem aquele espaço
discursivo. No espaço público, nem tudo pode ser dito sem que haja
condenação moral por uma parte da sociedade. No que se refere à
comunidade LGBTI+, ela vem se estabelecendo como uma heteronomia,
contrapondo a hegemonia dos discursos religiosos e tradicionalistas a
respeito da sexualidade. Assim, sua perspectiva sobre a sexualidade tem
influenciado as formas de ver e de pensar a sexualidade no espaço público,
de modo que falas que colocam a homossexualidade como anormalidade ou
doença passam a ser moralmente repudiadas.
Analisar a polêmica sob a perspectiva de uma ética discursiva nos
ajuda a compreender como a paisagem moral do espaço público e do discurso
social vem sendo moldada. Assim, a abordagem da argumentação num
diálogo entre nova retórica, filosofia do ato e dialogismo bakhtiniano, aliada
a uma ética das virtudes discursivas, mostra-se um recurso teórico-
metodológico produtivo e necessário tanto para os estudos linguísticos
quanto para uma perspectiva de uma filosofia do discurso.

Referências
AMORIM, Marilia. O pesquisador e seu outro. Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo:
Musa Editora, 2004.
AMOSSY, R. Apologia da polêmica. Tradução de Mônica Magalhães Cavalcante. São
Paulo: Contexto, 2017.
AMOSSY, Ruth. Apologie de la polémique. Paris: Presses Universitaires de France, 2014.
ANGENOT, Marc. Dialogues de sourds: traité de rhétorique antilogique. Paris: Mille et
une nuits, 2008.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


ANGENOT, Marc. O discurso social e as retóricas da incompreensão: consensos e
conflitos na arte de (não) persuadir. São Carlos: EduFSCar, 2015.
76
ANSCOMBE, Gertrude Elizabeth. Filosofía Moral Moderna. In: PLATTS, M. Conceptos
éticos fundamentales. México: Universidad Nácional Autónoma de México, Instituto de Nascimento
Investigaciones Filosóficas, [1958] 2006, p. 28-53.
ARISTÓTELES. Elencos Sofísticos. (Organon, VI). Trad. Pinharanda Gomes. São Paulo:
Nova Cultura, 2004.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da
versão inglesa de W. D. Ross. Coleção os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, I, [1094]
1973.
ARISTÓTELES. Retórica. (Tradução: Marcelo Silvano Madeira). São Paulo: Riddel,
2007.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins
Fontes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. Valdemir Miotello e
Carlos A. Faraco. São Carlos: Pedro & João editores, [1986] 2010.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução Paulo Bezerra. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
CAMPOS, M. I. B. A questão da arquitetônica em Bakhtin: um olhar para materiais
didáticos de língua portuguesa. Revista de Filologia e Linguística Portuguesa, n. 14, v. 2,
pp. 247-263, 2012.
BRASIL, SENADO FEDERAL. Projeto de Lei da Câmara Nº 122, de 2006. Disponível:
ttps://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/79604. Consultado em 20 de
fevereiro de 2014.
HABERMAS, Jürgen. A Ética da Discussão e a Questão da Verdade. Trad. Marcelo
Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Trad. Sírio Possenti. São Paulo:
Parábola, 2008.
MOIRAND, Sophie. Responsabilité et énonciation dans la presse quotidienne :
questionnements sur les observables et les catégories d’analyse. Semen, n. 22, 2006.
Disponível em: http://journals.openedition.org/semen/2798. Acesso em: 26 fev. 2020.
NASCIMENTO, Lucas Silva. Análise dialógica da argumentação polêmica: uma hipótese
geral. Entrepalavras, Fortaleza, v. 9, n. 1, pp. 151-169, jan- abr/2019.
NASCIMENTO, Lucas Silva. Análise dialógica da argumentação: a polêmica entre
afetivossexuais reformistas e cristãos tradicionalistas no espaço político. (Tese de
Doutorado). Salvador: Instituto de Letras, Programa de Pós-Graduação em Língua e
Cultura, UFBA, 2018. 557f.
NASCIMENTO, Lucas Silva. Uma ética discursiva para a argumentação polêmica:
evangélicos versus LGBTQIA+. Conferência. I Jornada de Prática de Argumentação
Dialógica. São Paulo: Universidade de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em
Filologia e Língua Portuguesa, 2023a.
NASCIMENTO, Lucas Silva. Quando atos polêmicos desafiam os limites da ética
discursiva: os discursos religioso e LGBTQIA+ no espaço público digital. In: SEIXAS,
Rodrigo.; DAMASCENO, Rubens da. Análise do discurso digital: entre polêmica,
argumentação e discursos de ódio. No prelo, 2023b.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


NOVAES, Marcos Oliveira de. “Cura gay”: psicologia, política e religião, perspectivas em
torno da problemática. Periodicus - Revista de estudos indisciplinares em gêneros e
sexualidades, n. 16, v. 2, pp. 113-125, set./ dez. 2021. 77

PAVEAU, Marie-Anne. Linguagem e moral: uma ética das virtudes discursivas. Trad. Nascimento
Ivone Beneditti. Campinas: Editora Unicamp, 2015.
PERELMAN, Chaïm. A filosofia do pluralismo e a Nova Retórica. Trad. Renato José de
Oliveira. In: LEMGRUBER, Márcio Silveira; OLIVEIRA, Renato José de (Org.). Teoria
da argumentação e educação. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2011, pp. 13-22.
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Trad. Verginia K. Pupi. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
PERELMAN, Chaïm. Retóricas. 2a. ed. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
PERELMAN, Chaïm. Logique formelle et logique informelle. In: MEYER, Michel. De la
métaphysique à la rhétorique, essais à la mémoire de Chaïm Perelman avec un inédit sur
la logique. Bruxelles : Editions de l’Université de Bruxelles, 1986, p. 15-21.
PERELMAN, Chaïm. O Império Retórico. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira.
Porto: Edições Asa, 1993.
PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica.
Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
PLANTIN, C. Des polémistes aux polémiqueurs. In: GILLES, D.; MURAT, M; DANGEL,
J. La parole polémique. Paris: Éditions Champion, 2003, pp. 347-408.
SCHELER, M. Esencia y forma de la simpatia. Traducción José Gaos. Buenos Aires:
Editorial Losada, 1942.
SCHELER, M. Ética: nuevo ensaio de fundamentación de un personalismo ético.
Tradución de Hilario Rodríguez Sanz. Madrid: Caparrós Editores, 2001.
SCHELER, Max. Ordo amoris. Tradução Xavier Zubiri. Madrid: Caparros Editores, 2008.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da
colônia à atualidade. 4. ed, rev. atual. e amp. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


78

Santos

Tornar-se pesquisador sob o


olhar da perspectiva
sociológica da linguagem: dos
diálogos formativos à
construção dos saberes
Becoming a researcher from a sociological perspective of
language: from formative dialogues to the construction of
knowledge

Thiago Jorge Ferreira Santos 1 Introdução


Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Estimulado pela temática
proposta neste livro eletrônico, este
capítulo tem o objetivo geral de
discutir o desenvolvimento do
pesquisador no mestrado acadêmico por meio das análises das interações
discursivas que ocorrem nesse processo formativo. Nossos dados são
compostos por diálogos e comentários entre orientandos e orientadores nos
textos escritos (versões intermediárias e finais) na formação para a pesquisa
científica. A contribuição aqui apresentada advém dos resultados de uma
pesquisa de doutorado1.

1
A pesquisa foi concluída em 2020 e foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Nossa discussão não abarcará, evidentemente, todas as práticas
envolvidas nessa formação. Assim sendo, os objetivos específicos a serem 79
atingidos neste capítulo são:
Santos
a) Analisar o processo de formação do pesquisador, investigando, pela
linguagem, como ele se torna membro de um grupo da comunidade científica
a partir da aprendizagem de conceitos científicos;
b) Compreender como os conceitos científicos são mobilizados pelos
estudantes para a interpretação dos dados de suas pesquisas e para a
proposição de possíveis novos saberes.
Para isso, adotamos na pesquisa pressupostos da perspectiva
sociológica da linguagem desenvolvida no contexto russo das décadas de
1920 e 1930, especialmente pelo linguista Valentin Volóchinov (Círculo de
Bakhtin). Na seara dos estudos bakhtinianos, outros investigadores já se
debruçaram sobre as práticas sociais atribuídas aos pesquisadores. Em
Amorim (2004), por exemplo, discutiu-se a relação tensa entre o pesquisador
nas ciências humanas e os vários “outros” com os quais dialoga para a
construção do trabalho, tais como os participantes da pesquisa e os próprios
materiais analisados (questionários, entrevistas, documentos etc.). Outro
estudo foi realizado por Cavalcante Filho (2010), que investigou o gênero de
divulgação científica, analisando o papel desempenhado pelo divulgador, que
é assumido muitas vezes pelo pesquisador. O divulgador é a instância
enunciativa que fala do outro para o outro, construindo um uso dialógico da
linguagem entre duas enunciações – a do cientista e a do jornalista – que gera
uma nova enunciação: a enunciação da divulgação científica.
Em relação aos dois estudos acima citados, todavia, a nossa proposta
é compreender a formação do pesquisador, investigando a interação
discursiva entre orientadores (pesquisadores experientes) e mestrandos,
particularmente os comentários no âmbito dos textos escritos pelos
pesquisadores em formação.
No âmbito da pesquisa de doutorado, realizamos uma pesquisa
bibliográfica visando encontrar estudos que tiveram como preocupação a
formação do pesquisador no processo do mestrado acadêmico2. As pesquisas

2
Para isso, utilizamos a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), pois ela tem
por objetivo reunir as teses e dissertações defendidas em todo o país. Neste banco de dados digitais,
convergem as pesquisas encontradas em outras plataformas, como das Instituições de Ensino
Superior, sejam públicas ou privadas, e da CAPES.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


encontradas investigam a formação do mestrando a partir da análise de
questionários, a fim de discutir a qualidade de determinado programa de pós- 80
graduação, sejam por seus matriculados, sejam por seus egressos (Somensi,
Santos
2005; Silva, 2008). Não obstante, quando os textos produzidos pelos
mestrandos ao longo da formação são contemplados, não se alude à questão
do papel dos diálogos formativos entre orientadores e orientandos, tampouco
se elabora uma reflexão acerca da construção dos saberes pela linguagem.
Desse modo, nossa pesquisa objetivou contribuir com a reflexão sobre esses
dois aspectos.
Este capítulo está organizado da seguinte forma: primeiramente,
discorreremos acerca da perspectiva sociológica da linguagem desenvolvida,
em especial, por Valentin Volóchinov (1895-1936). Depois, descreveremos
nossos procedimentos metodológicos, para, enfim, discutirmos os resultados
das nossas análises, tendo em vista os dois objetivos específicos delimitados
para este capítulo.

2 Fundamentação teórica
As duas décadas posteriores à Revolução Russa, em solo soviético,
foram sui generis para os estudos linguísticos e literários. Tal peculiaridade
foi marcada pela proliferação de pesquisas que buscavam construir uma
ciência marxista em diversas áreas, como economia, psicologia e, com
atenção especial, estudos da linguagem (David-Fox, 1997, p. 1-3). Vinculada
ao Comissariado do Povo para a Educação, a RANION (Associação Russa
dos Institutos de Pesquisa Científica em Ciências Sociais), criada em 1921,
organizava as prioridades científicas para o desenvolvimento
socioeducacional e científico da nova Rússia, que estava em construção
(Brandist, 2012, p. 161).
Repensar os estudos da linguagem e literários era vital para a
perpetuação do espírito revolucionário, já que o retorno do regime imperial
melindrava os novos incumbentes. No Primeiro Congresso de toda a Rússia,
realizado em 1919, a fim de organizar o novo sistema educacional, Lênin
proferiu as seguintes palavras na abertura do evento:

O tsar falou que era pela liberdade e pela libertação do jugo, os


mencheviques falaram que era pela liberdade e pela libertação do jugo,
agora os bolcheviques falam o mesmo. Todos falam, como vamos
entender?! (Lênin, [1919] 2019, p. 31).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


No excerto acima, Lênin reproduziu uma fala comum que escutara de
diversos camponeses russos, que em sua grande maioria, eram analfabetos. 81
Os bolcheviques e os mencheviques, dois grupos políticos que disputavam o
Santos
poder, atribuíam significações diferentes à palavra “liberdade”, as quais não
eram compreendidas pela população incauta. Era necessária, assim, uma
verdadeira mudança social, que passava por uma “alfabetização política
elementar” para se compreender os discursos ideológicos das classes sociais.
A formação educacional, nesse sentido, deveria ser adstrita ao nível da
linguagem.
Nas pesquisas em estudos da linguagem, linguística e literatura, os
trabalhos desenvolvidos pelos pesquisadores do ILJaZV (Instituto de Estudos
Comparados das Literaturas e Línguas do Ocidente e do Oriente) 3, ligado a
RANION, tiveram importante contribuição em direção ao desiderato de
educar a população para a compreensão da relação entre as trocas verbais (o
diálogo, a linguagem) e a ideologia (Brandist, 2012, p. 161). É nesse contexto
que nomes de pesquisadores como Jakubinskij e Volóchinov adquirem
importância, pois estiveram diretamente envolvidos com essas reflexões
(Ivanova, 2003, p. 174-175)4. Segundo Ivanova (2003, p. 164), a obra de
Jakubinskij “Sobre a fala dialogal” (1923) inaugura na linguística russa e
mundial a formulação dos princípios da teoria do diálogo como fenômeno
complexo e heterogêneo, no qual se cruzam componentes linguageiros e
extralinguísticos. Nessa obra, Jakubinskij ([1923] 2015) desenvolve as
seguintes ideias: (1) o diálogo como interação; (2) o fenômeno da produção
de réplicas no discurso interior; (3) o caráter não-acabado de cada enunciado;
(4) a espontaneidade dos processos de percepção e preparação de um novo
enunciado; (5) a interação em um dado diálogo entre a experiência
precedente e a réplica de um interlocutor (Ivanova, 2003, p. 164).
Jakubinskij ([1923] 2015) era muito próximo aos formalistas russos,
para os quais o meio socioideológico não influenciava na composição e na
compreensão de uma obra artístico-literária. Muito embora tenha dado
importantes contribuições para a compreensão da dinâmica dialogal,
definindo-a como uma “inter-ação” entre os participantes (Jakubinskij,

3
Chamado a partir de 1930 de Instituto Estatal de Cultura Linguística (GIRK).
4
Além dos dois intelectuais mencionados, Brandist e Lähteenmäki (2010) defendem a tese de que
Bakhtin, especialmente com a obra “Teoria do Romance” (desenvolvida na década de 1930),
também investigou a língua do ponto de vista sociológico mesmo não sendo vinculado às tarefas do
ILJaZV.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


[1923] 2015, p. 76), o diálogo para Jakubinskij era mais “natural” que social,
pois as trocas dialogais são determinadas pelas particularidades biológicas e 82
pelos reflexos condicionados (Tylkowski, 2013, p. 174). Na obra “O
Santos
freudismo: um esboço crítico”5 (1927), Voloshinov ([1927] 1999, p. 220-
227) critica o psicólogo russo Aron Zalkind (1886-1936) por utilizar a teoria
da reflexologia em seus trabalhos, a qual admite a existência de fenômenos
psíquicos sob outra forma que não seja a do comportamento exterior ou
interior (funcionamento dos sistemas fisiológicos ou neuronais).
Partindo dessas discussões, Volóchinov investiga o lado social da
dinâmica dialogal. Para ele, o diálogo não é apenas a comunicação em voz
alta entre as pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação discursiva,
de qualquer tipo (Volóchinov, [1929] 2017). De acordo com Volóchinov, em
seu ensaio “Do outro lado do social: sobre o freudismo”:

Uma pessoa isolada, agindo em nome próprio, por sua conta e risco,
não pode de modo algum ter relação com a história. Somente como
parte do todo social, na sua classe e por meio da sua classe, a pessoa
torna-se historicamente real e ativa. Para entrar na história não é
suficiente o nascer físico – assim nasce um animal, mas ele não entra
para a história –, é preciso uma espécie de segundo nascimento social
(Volóchinov, [1925] 2019a, p. 60-61).

Segundo mostra Volóchinov no excerto acima, o diálogo não ocorre


entre consciências individuais, mas entre grupos sociais em disputa, em
conflito. Esse posicionamento é clarificado na seguinte afirmação do
pesquisador russo:

Não, a verdadeira realidade, na qual vive um homem de verdade, é a


história, o mar sempre agitado da luta de classes, que não conhece a
tranquilidade nem a paz. A palavra que reflete essa história não pode
deixar de refletir as suas contradições, o seu movimento dialético, a sua
“constituição” (Volóchinov, [1930] 2019b, p. 315, grifos do autor).

As trocas dialogais, nesse sentido, refletem e refratam as tensões


sociais. Logo, a linguagem é um espaço de disputa entre os grupos sociais, a
fim de fazer valer seus posicionamentos. Os signos linguísticos, assim,
adquirem uma significação e são percebidos e analisados como “signos
ideológicos”. O signo é a realidade material da ideologia. Os objetos que

5
Neste capítulo, utilizamos a versão em espanhol (Argentina) da obra. Conforme esclarece Grillo
(2017, p. 55), “Embora a tradução brasileira traga o nome de Mikhail Bakhtin, esse texto foi
publicado por Volóchinov e fez parte das atividades descritas nos relatórios apresentados ao
"Instituto da História Comparada das Literaturas e das Línguas do Ocidente e do Oriente" (ILIAZV),
lugar de atuação de Valentín Nikoláievitch Volóchinov entre 1925 e 1932”.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


chamam a atenção da sociedade entram no mundo da ideologia, se formam e
se fixam nele, tornando-se signos ideológicos ao adquirirem uma ênfase 83
social (Volóchinov, [1929] 2017, p. 113). Segundo Grillo e Américo (2017,
Santos
p. 357), “ênfase social” consiste em um elemento constitutivo da palavra, está
ligada aos diversos sentidos adquiridos por uma palavra em diferentes
contextos de uso e, também, a nosso ver, por diferentes grupos sociais.
Nessa direção, Faraco (2008, p. 47) afirma que o adjetivo “ideológico”
em Volóchinov equivale à “axiológico”, pois expressa uma dimensão
avaliativa, um posicionamento social valorativo. Assim, não existe
enunciado não-ideológico, neutro e isento de posição axiológica. Na verdade,
para Voloshinov ([1927] 1999, p. 73, grifos do autor), nem a ciência é neutra,
"la neutralidad científica es también imposible desde el punto de vista
sociológico [...] el poder de cualquier teoria, de cualquier pensamiento, reside
precisamente en los intereses de clase”6.
Para explicar o caráter social do signo ideológico, Volóchinov ([1926]
2019c, p. 120-121) se vale da noção de “entimema” (o subentendido),
recuperada da lógica aristotélica, a fim de mostrar que os membros de um
mesmo grupo social compartilham uma “senha” conhecida apenas por
aqueles que pertencem ao mesmo horizonte social. Assim, existe o
“subentendido” da família, de uma nação ou de uma época inteira. O
horizonte social é constituído pelo conjunto dos interesses e valores, em
processo de formação, de um grupo social, por exemplo, os grupos da
comunidade científica.
Sobre a relação entre os signos linguísticos e a realidade social,
Lähteenmäki (2012, p. 106) explica que a conexão entre o signo linguístico
e a realidade extradiscursiva é estabelecida no ato de seu uso e, portanto, um
signo refere-se e avalia essa realidade a partir do ponto de vista da classe
social a qual o indivíduo pertence. Como as diferentes classes sociais usam
signos linguísticos para conceituar e avaliar a mesma situação, expressando
seus interesses específicos de classes, os signos são multiacentuados. A
dimensão avaliativa que os signos ideológicos possuem permite a sua
“multiacentuação” (Volóchinov, [1929] 2017, p. 113).

6
Os teóricos marxistas soviéticos (1920-1950), de acordo com Tchougounnikov (2008), agregaram
ao conceito de ideologia de Marx o atributo de “ideologia de classe”, isto é, definiram a ideologia
como sistema de opiniões, de ideias e de conceitos acordados por uma classe social. Em uma
sociedade de classes, a ideologia é uma ideologia de classe. Ela expressa e defende os interesses de
uma ou outra classe em luta.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Desse modo, o sujeito não é solapado pelo subjetivismo idealista, pois
sua singularidade é aquela do grupo social ao qual pertence; nem pelo 84
objetivismo abstrato, já que a língua não é um sistema abstrato pelo qual os
Santos
grupos estabelecem uma relação de neutralidade e isenção. Segundo Sériot
(2010), em Volóchinov, o indivíduo não tem nenhuma existência fora de um
grupo social, esse sendo definido como homogêneo, podendo ser
heterogêneo senão quando em contato com outro grupo. Cada grupo social
cria para si um meio ideológico orgânico, uma vez que seus membros
partilham os mesmos valores e acentuações dos signos ideológicos (Sériot,
2010, p. 67).
Volóchinov ([1930] 2019d, p. 268, grifos do autor) propõe um
esquema para a análise das interações discursivas, após concluir que “a
essência real da língua é o acontecimento social da interação discursiva,
realizada em um ou muitos enunciados”. O “esquema” é composto pela
análise das seguintes categorias: 1. A organização econômica da sociedade.
2. A comunicação social. 3. A interação discursiva. 4. Os enunciados. 5. As
formas gramaticais da língua.
Com a finalidade de estudar as formas como os discursos alheios dos
interlocutores em uma interação discursiva se relacionam na organização
sintática da língua, Volóchinov ([1929] 2017, p. 257-258) faz a distinção
entre o estilo linear e o estilo pictórico: i) estilo linear ‒ representa o discurso
alheio como um todo compacto, imutável, impenetrável. Corresponde ao
discurso direto e à citação literal. O estilo linear de citação cria contornos
nítidos em torno do discurso citado; ii) estilo pictórico ‒ interfere na palavra
do outro e se deixa interferir por ela. Corresponde às formas do discurso
indireto. No estilo pictural, os contornos do discurso citado são
enfraquecidos, e a interferência no discurso alheio é mais acentuada.
Os dois estilos foram baseados na teorização do escritor e historiador
de arte Heinrich Wolfflin (1864-1945), que propõe, em sua obra “Conceitos
Fundamentais da História da Arte” (1915), a distinção entre “arte linear” e
“arte pictórica”. Segundo Wolfflin ([1915] 1984, p. 22), “a visão linear
distingue nitidamente uma forma de outra, enquanto a visão pictórica, ao
contrário, busca aquele movimento que ultrapassa o conjunto dos objetos. No
primeiro caso, linhas regulares, claras, delimitadoras; no segundo, contornos
não acentuados que favorecem a ligação”. Volóchinov retoma essas noções
do ponto de vista da sociologia da linguagem que ele buscava construir.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


3 Procedimentos metodológicos
85
Nosso contexto mais geral de pesquisa foi a Universidade de São
Paulo, mais especificamente, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Santos
Humanas (FFLCH). Para selecionarmos nossos sujeitos de pesquisa,
elaboramos um questionário para verificar: quais mestrandos consentiam em
participar do estudo; quais estavam num estágio da pesquisa que nos
permitiria ter os dados de que necessitávamos. O questionário foi dirigido
aos estudantes pelas Secretarias dos programas de pós-graduação da área de
Linguística e Literatura da FFLCH. Obtivemos dezesseis respondentes,
sendo que alguns não tinham as versões dos seus textos arquivadas; outros já
tinham cumprido a etapa do exame de qualificação, momento importante
para atingirmos nossos objetivos de pesquisa7. Após a aplicação do
questionário, três mestrandos se mostraram aptos a serem os participantes de
nosso estudo. Eles pertenciam a três programas de pós-graduação da FFLCH:
Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês; Filologia e
Língua Portuguesa; Língua e Literatura Italiana. O processo de seleção e de
coleta dos dados foi acompanhado pelos orientadores dos três estudantes.
Os três participantes estavam elaborando as suas pesquisas quando
aceitaram participar de nosso estudo, concedendo-nos seus textos e versões
dos projetos, relatórios de qualificação e, posteriormente, tivemos acesso às
dissertações de mestrado e versões comentadas.
O Estudante 1 é bacharel em letras (português/francês) e foi mestrando
no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Literários e
Tradutológicos em Francês. O objetivo da sua pesquisa foi estudar as
mediações formativas de correção linguageira por meio de ferramentas
digitais entre alunos brasileiros e canadenses de níveis diferentes de francês
e sua influência no desenvolvimento da produção escrita de gêneros textuais
dos alunos brasileiros. A noção de gênero textual adotada no estudo advém
do Interacionismo Sociodiscursivo.
O Estudante 2 possui bacharelado e licenciatura em letras
(português/francês) e foi mestrando no Programa de Pós-Graduação em
Filologia e Língua Portuguesa. O objetivo da pesquisa foi analisar e
descrever, através da Linguística Sistêmico-Funcional e da Semiolinguística,

7
Neste capítulo, nosso foco são as análises dos textos escritos coletados, porém, ressaltamos que no
âmbito da pesquisa, foram analisadas as transcrições orais de exames de qualificação e de defesas
de mestrado.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


as formas de representação do Movimento Estudantil ativo no Estado de São
Paulo, verificadas em notícias produzidas pela Folha de S. Paulo e pelo 86
Estado de S. Paulo, em três períodos distintos: 1968, 1977 e 2011.
Santos
Por fim, o Estudante 3 é licenciado em letras (italiano) e foi mestrando
no Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Italiana. O objetivo
da pesquisa foi investigar as contribuições de aspectos culturais para o ensino
de língua de herança, através do planejamento e da aplicação de um curso de
língua italiana em contexto de língua de herança, na comunidade do
município de Pedrinhas Paulista/SP, com ênfase em produção de materiais
didáticos.
Neste capítulo, como explicamos na introdução, focaremos em
excertos mais representativos das nossas análises dos textos escritos. Posto
que estávamos trabalhando com as versões dos textos produzidos pelos
estudantes, recebemos uma vultosa quantidade de dados escritos, os quais
tivemos que uniformizar metodologicamente. Em linha gerais, selecionamos
as versões com mais comentários dos orientadores e que guardavam,
também, comentários de versões anteriores.
Dentre esses comentários, interessavam-nos aqueles acerca dos
conceitos teóricos usados pelos estudantes, na seção de “Fundamentação
teórica”, e as sínteses interpretativas elaboradas por eles, na seção de
“Análises e resultados”.
Apontamos, na seção anterior, nossa adesão à perspectiva sociológica
da linguagem desenvolvida por Volóchinov, no plano teórico-metodológico.
Dentre as categorias de análise propostas no “esquema” de Volóchinov
([1930] 2019d, p. 268), propomos, neste capítulo, investigar o funcionamento
dos estilos linear e pictórico nas interações discursivas do mestrado
acadêmico. Nelas, podemos encontrar raciocínios teóricos e raciocínios
lógico-comparativos, que possibilitam uma reflexão sobre o
desenvolvimento dos mestrandos durante o processo formativo. Os
raciocínios lógico-comparativos, particularmente encontrados nas seções de
“Análises e resultados” das pesquisas, nos parecem relevantes, pois permitem
compreender tanto o processo de aprendizagem pelos estudantes de conceitos
teóricos partilhados por determinado grupo da esfera científica, quanto
discutir sobre os possíveis novos conhecimentos que as pesquisas aportam
para esses mesmos grupos.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Por isso, em primeiro lugar, analisaremos alguns excertos que
permitem compreender o processo da aprendizagem de novos conceitos por 87
meio da modificação e da reformulação das exposições teóricas dos
Santos
estudantes, após os comentários verbais de seus orientadores8. Esse
procedimento é relevante, pois estamos trabalhando com as versões dos
textos escritos que contêm diversos comentários dos orientadores. Logo, é
pertinente para nós discutir o aspecto formativo dessas intervenções,
contrastando com as mudanças apresentadas no raciocínio produzido nas
versões finais dos textos, após os diálogos.
Em seguida, buscaremos evidenciar como os raciocínios lógico-
comparativos encontrados nas seções de “Análises e resultados” apontam a
maneira pela qual os estudantes estão mobilizando os conceitos teóricos
aprendidos ao longo do mestrado, a fim de organizar processos mentais de
sínteses interpretativas.

4 Análise e discussão dos resultados


Os três exemplos que analisaremos a seguir (1, 2 e 3), semelhantes a
diversos outros identificados em nossos dados de pesquisa, são
representativamente importantes. Eles permitem observar que, ao longo do
processo do mestrado acadêmico, os estudantes começam paulatinamente a
partilhar os mesmos conceitos de um grupo da comunidade científica. Os
mestrandos passam a compreender que as significações dos conceitos –
verbalizados por palavras e expressões – adquirem um novo valor, conforme
acordado por determinado grupo da esfera científica. Como apontamos em
nossa Fundamentação Teórica, para Volóchinov ([1925] 2019a, p. 60-61), o
indivíduo torna-se pessoa historicamente real na sua classe e por meio da sua
classe. Nesse sentido, os dados podem apontar que os mestrandos adentram
determinado grupo com o qual partilham as mesmas significações e, assim,
passam a ter uma identidade dentro da comunidade científica. Como explica
Sériot (2010), na formulação teórica de Volóchinov, o indivíduo existe
clivado de um grupo social, esse definido como homogêneo, podendo ser
heterogêneo senão quando em contato com outro grupo.

8
Os comentários dos orientadores estão marcados entre colchetes negritados: [comentário do
orientador].

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Os dados apontam que esse processo não é mecânico, nem automático,
porém, como discutiremos nos excertos a seguir, ocorre através dos vários 88
diálogos formativos entre pesquisadores mais experientes (orientadores) e
Santos
pesquisadores em formação (mestrandos).
Ademais, mostraremos nos exemplos 4, 5 e 6 que os conceitos teóricos
aprendidos durante o mestrado acadêmico são mobilizados pelos mestrandos
para interpretar os seus dados e para elaborarem raciocínios lógico-
comparativos entre eles. Por fim, discutiremos um último exemplo (7), no
qual é possível levantar a hipótese de que os mestrandos, já identificados em
certo grupo da comunidade científica, propõem novas formulações
conceituais em suas pesquisas.
A seguir, analisaremos os três primeiros exemplos.
Exemplos 1, 2 e 3

Quadro 1 – Diálogos formativos para a aprendizagem dos conceitos


Excertos - Seção de “Fundamentação teórica”
Versão comentada Versão Final
“Os gêneros [cuidado pq Bakthin não usa
“Os gêneros do discurso são [...]
Estudante 1
(Projeto de

o termo gênero textual] são [...]


pesquisa)

enunciados relativamente estáveis


enunciados relativamente estáveis presentes
presentes em cada esfera da atividade
em cada esfera da atividade humana e sócio-
humana e sócio-historicamente
historicamente construídos (BAKHTIN,
construídos (BAKHTIN, 1953).”
1953).”
Outro componente constituinte das C de D Ademais, outro componente
(Relatório de qualificação)

é a Situação extralinguística, que se constrói constituinte das C de D é a Situação


por meio do ambiente material relativo à extralinguística, que se “figura como
codificação ou à decodificação da um ambiente material transformado
Estudante 2

mensagem. Tal ambiente é pertinente ao em palavra através dos filtros


fato de que os sujeitos da troca são construtores de sentido, utilizados
possuidores do mesmo saber a respeito do pelos atores da linguagem”
mundo que os envolve, e por conta disso, (CHARAUDEAU, 2014, p. 32).
esse ambiente pode ser “transformado em Assim, esses atores também criam
palavras”. [Não está clara a noção. Parece hipóteses segundo as quais um
que a situação extralinguística se refere determinado ambiente semiotizado
ao espaço físico. É só isso mesmo?]. está inserido em um saber partilhado.
Para a autora, um indivíduo não necessita de
Para a autora, um indivíduo não
(Dissertação de mestrado)

traços de ancestralidade para ter uma língua


necessita de traços de ancestralidade
como herança [herança, nem proficiência
para ter uma língua como herança, nem
nessa língua, se ele foi...], se ele foi exposto
Estudante 3

proficiência nessa língua, se ele foi


por muito tempo a essa língua e a essa
exposto por muito tempo a essa língua
cultura, pode haver aí uma apropriação de
e a essa cultura, pode haver aí uma
LM e LH do ambiente [convivência
convivência simultânea entre duas
simultânea entre duas línguas no
línguas no ambiente sociocultural em
ambiente...] sociocultural em que vive e
que vive e ocorrer, então, um
ocorrer, então, um sentimento de pertença
sentimento de pertença (p. 28-29)
(p. 28-29).

Fonte: Elaboração nossa

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Nos três exemplos acima, é possível perceber os diálogos entre
orientandos e orientadores em relação aos conceitos teóricos das pesquisas. 89
Os exemplos são representativos de diversos outros encontrados e analisados
Santos
por nós, identificáveis durante todo o percurso do mestrado (inicial,
intermediário e final), quer nas exposições teóricas dos projetos, quer nos
relatórios de qualificação e nas dissertações. Nos exemplos acima,
encontramos pistas de uma possível aproximação dos mestrandos das
significações conceituais de determinados grupos da comunidade científica,
que se valem de arcabouços teóricos.
Como mencionamos na seção de metodologia, o Estudante 1 adotava
em sua pesquisa a noção de gênero textual conforme propõe o Interacionismo
Sociodiscursivo. No Exemplo 1, verificamos que o trabalho do mestrando foi
baseado na perspectiva dos gêneros textuais. Contudo, ao definir esse
conceito, na “Fundamentação teórica”, o mestrando o faz por meio da
definição de outro conceito, o de gêneros do discurso. A partir do Exemplo
1, levantamos a hipótese de que o estudante tomou os dois conceitos como
semelhantes (gêneros textuais e gêneros do discurso), porém, conforme
vemos no comentário do orientador, essa semelhança não condiz com a
significação que certo grupo da comunidade científica atribui. Nesse sentido,
como explica Volóchinov ([1929] 2017, p. 113), diferentes grupos sociais
usam signos linguísticos para conceituar e avaliar a mesma realidade
extradiscursiva expressando seus interesses específicos de classes, por isso,
os signos são multiacentuados. Portanto, não é indiferente empregar um ou
outro conceito, pois eles carregam a acentuação a eles atribuída por um grupo
da comunidade científica.
Nas fases intermediárias e finais do mestrado, em inúmeros excertos
de nossas análises dos relatórios de qualificação e das dissertações,
encontramos uma elevada quantidade de conceitos em maturação. Isso pode
nos indicar que há vários conceitos cuja aprendizagem é mais complexa, e
geralmente, os estudantes apresentam dificuldades de deles se apropriar.
Todavia, suas explicações parecem críveis, quando se analisa de forma
superficial. Porém, são ajustadas pelos orientadores, que são membros mais
experientes de determinado grupo.
No excerto do Estudante 2, discorre-se sobre o conceito de “Situação
extralinguística” da teoria Semiolinguística, explicando quais atributos o
compõem. Diante disso, o orientador comenta a noção exposta, afirmando

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


que ela não está completamente formulada, como constatamos em “Não está
clara a noção”. Segundo ele, destacou-se somente um aspecto abarcado pelo 90
conceito, mas há outros que se inserem na ideia. Nota-se que o orientador
Santos
não afirmou que a conceituação estava errada, porém ele identificou uma
inconsistência, que não condiz com o acordado pelo grupo de pesquisadores
adeptos da teoria Semiolinguística. Verifica-se que, na versão final, o
estudante reformula a explicação por meio de uma citação direta, seguida das
indicações da referência. Em Volóchinov, como explica Lähteenmäki (2012,
p. 106), há uma conexão entre o signo linguístico e a realidade
extradiscursiva, que é estabelecida no ato de seu uso, e por isso, um signo
refere-se à realidade extradiscursiva e a avalia a partir do ponto de vista do
grupo social ao qual o indivíduo pertence. Em outras palavras, a significação
do conceito “Situação extralinguística” não pode ser atribuída pelo
mestrando individualmente, mas deve ser aquela acordada pelo grupo.
No excerto do Estudante 3, o mestrando discorre sobre o atributo
“ancestralidade” do conceito de “língua de herança”, afirmando que, segundo
o autor, para se ter língua de herança, não é preciso possuir “traços de
ancestralidade”. Após isso, encontramos o comentário do orientador, pelo
qual é possível pensar que o aluno somente compreendeu um aspecto no que
tange à possibilidade de se “ter língua de herança”, porém o atributo da
“proficiência” também faz parte dessa ideia. Portanto, podemos afirmar que
o conceito não foi captado totalmente pelo aluno, pois alguns dos seus
aspectos não foram contemplados na escrita, de acordo com o orientador.
Pensando pelo prisma da perspectiva sociológica da linguagem de
Volóchinov, a partir da ideia de “ênfase social”, conforme esclarecem Grillo
e Américo (2017, p. 357), o sentido atribuído pelo mestrando ao conceito de
“língua de herança” não é o apropriado no contexto da pesquisa, por isso o
orientador intervêm no raciocínio escrito do estudante, com a finalidade de
ajustá-lo conceitualmente conforme entende o grupo de pesquisadores que
defendem esse conceito. Vale ressaltar que o conceito de “língua de herança”
é axial na pesquisa do Estudante 3.
Como veremos nos próximos três exemplos, o aparato teórico
aprendido pode funcionar como parâmetro para a construção de sínteses
interpretativas, encontradas nas seções de “Análises e resultados” dos
relatórios de qualificação e das dissertações de mestrado. Isso pode ser
examinado pelos raciocínios lógico-comparativos construídos pelos
estudantes. Observemos os próximos três exemplos.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Exemplos 4, 5 e 6
91
Quadro 2 – Raciocínios lógico-comparativos elaborados a partir dos conceitos
aprendidos Santos
Excertos - Seção de “Análises e resultados”
Ideias síntese das análises Raciocínios lógico-comparativos
(Exemplo 4)
Estudante 1

Seu comentário “je suis contente


d’avoir la possibilité d’échange avec como um ato de polidez positiva
des étudiants Canadiens” configura- (KERBRAT-ORECCHIONI, 1996).
se [...]

Os exemplos (3) e (4) relevam uma


outra faceta: as expectativas sociais
acerca da atividade policial na
(Exemplo 5)
Estudante 2

manifestação, uma vez que o


como Processos Materiais típicos dos
marcador de polaridade não é o verbo
agentes do Estado [...] como um Ator
deixar, marcam aquilo que as vozes
ineficiente ou inerte, responsável.
institucionais projetavam [...]
Especialmente no Estado de São
Paulo, a Polícia é construída
reiteradamente [...]
(Exemplo 6)
Estudante 3

Já a Tradição Oral tornou-se a como um importante veículo de


espinha dorsal do material, tendo em transmissão das tradições e da cultura
vista que ela se configura [...] italiana para os alunos.

Fonte: Elaboração nossa

Nos exemplos acima, podemos constatar, na coluna à esquerda, que


os estudantes estão interpretando as análises dos dados de suas pesquisas. O
Estudante 1 analisava interações corretivas de textos entre alunos de língua
francesa, brasileiros e canadenses; o Estudante 2 analisava textos
jornalísticos sobre atuações de movimentos estudantis; o Estudante 3
analisava histórias de vida relatadas por alunos de um curso de língua italiana
como língua de herança. À direita, as análises são retomadas por expressões
iniciadas pelo termo comparador “como”.
Ao passo que os diálogos nas seções de “Fundamentação teórica”
mostram que os orientadores buscam criar contornos (estilo linear), isto é,
ajustam a forma como os mestrandos retomam as explicações conceituais em
relação ao que é acordado por determinado grupo da comunidade científica,
as seções de “Análises e resultados” permitem compreender que os conceitos
aprendidos são mobilizados para interpretar os dados das pesquisas, de modo
que o estilo pictórico (Volóchinov, [1929] 2017, p. 258) é construído.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


O Exemplo 4 possibilita entrever que o Estudante 1 analisava
interações corretivas síncronas entre estudantes brasileiros e canadenses de 92
língua francesa. Dentre os comentários dessas interações, o mestrando
Santos
interpreta que um deles é diferente e, para marcar essa diferenciação, adota
como parâmetro o conceito de “Atos de Ameaça à Face”, proveniente dos
estudos em Análise da Conversação. O raciocínio lógico-comparativo
registrado em “como um ato de polidez positiva” (Kerbrat-Orecchioni, 1996)
concretiza essa síntese interpretativa. Assim sendo, o conceito é mobilizado
para a construção da análise interpretativa do estudante, caracterizando o
estilo pictórico.
No Exemplo 5, ao analisar um conjunto de dados, exemplificado pelos
excertos (3) e (4) de sua pesquisa, o mestrando se vale de um raciocínio
lógico-comparativo (“como Processos Materiais típicos dos agentes do
Estado [...] como um Ator ineficiente ou inerte, responsável”), a fim de
mostrar uma similaridade entre os excertos e sua funcionalidade. A nossa
hipótese é que os raciocínios comparativos construídos pelo estudante têm
como “parâmetro” os conceitos teóricos (“Processos Materiais” e “Ator”) da
Linguística Sistêmico-Funcional, aprendidos por ele nas interações
formativas com seu orientador. Relembremos dos diálogos expressos nos
Exemplos 1, 2 e 3. Ao solicitar a reformulação das exposições teórico-
conceituais, os orientadores propiciam aos mestrandos momentos de maior
aprendizagem dos conceitos e adesão a um certo grupo. Verifica-se que os
conceitos da Linguística Sistêmico-Funcional interferem no raciocínio
lógico-comparativo do mestrando, que os mobiliza. Isso caracteriza o estilo
pictórico de acordo com Volóchinov ([1929] 2017, p. 258). Esse estilo pode
indicar que os mestrandos já estão mais inseridos em um grupo da
comunidade científica, valendo-se dos conceitos para interpretar os seus
dados.
No Exemplo 6, o estudante discorria sobre os resultados das análises
das histórias de vida nos módulos do curso de língua de herança. Segundo
ele, de acordo com cada tema tratado – imigração italiana, imigração na Itália
atual, comida, dialetos –, pensava-se em qual imigrante poderia ser
convidado para trazer boas histórias sobre o tema. Os alunos-cursistas
participavam das entrevistas ativamente, fazendo perguntas conforme as
histórias contadas, despertavam curiosidades. No Exemplo 6, o conjunto de
histórias de vida durante as atividades do curso de italiano como língua de
herança foi reunido a partir do mesmo parâmetro, ou seja, “como elemento

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


fundamental para a reconstrução da identidade dos alunos". Esse parâmetro
advém do conceito teórico central da pesquisa do Estudante 3: língua de 93
herança (Cf. supra, Quadro 1). O estilo pictórico, assim, evidencia uma
Santos
análise interpretativa do estudante pela qual se constrói um raciocínio lógico-
comparativo, a partir dos conceitos aprendidos nos diálogos formativos com
o orientador.
Para finalizar nossas análises, examinaremos um último excerto,
encontrado na dissertação de mestrado do Estudante 1, especificamente, na
seção de “Análises e resultados”. A nosso ver, o Exemplo 7 pode apontar um
aspecto importante na formação do pesquisador: a proposição de novos
saberes. Vejamos, na coluna à esquerda, o raciocínio lógico-comparativo
elaborado pelo aluno e, à direita, nossa proposta de interpretação à luz do que
já discutimos nos exemplos anteriores.
Exemplo 7

Quadro 3 – Raciocínios lógico-comparativos e a construção dos saberes


Excerto - Seção de “Análises e resultados”
Raciocínio lógico comparativo Nossa interpretação
A correção assíncrona realizada por Camila no 1. O Estudante 1 se depara com uma situação-
GoogleDocs ao texto do gênero fait divers foi problema (incomum) que foi encontrada nas
diferente de todas as outras feitas pelos outros 5 análises dos seus dados de pesquisa.
alunos canadenses [...]
Se usarmos a nomenclatura proposta pelos 2. Após os conceitos terem sido aprendidos pelo
autores brasileiros Serafini (1989) e Ruiz (2010) Estudante 1, ele não encontra na literatura
que falam sobre correção e que apresentamos em especializada um conceito adequado para
nosso capítulo teórico, podemos chamar seu compreender a situação-problema.
modo de corrigir de “correção resolutiva”.
Entretanto, devemos ressaltar que o que foi feito
pela aluna canadense não coincide exatamente
com a definição desse conceito [...] Enquanto as
pesquisas realizadas até então tratam de
correções feitas no papel, não há um conceito
que corresponda ao que encontramos em nosso
corpus, cujos dados foram gerados a partir de
ferramentas digitais. O mesmo acontece com o
conceito de “emenda” desenvolvido por Tapia
(2016) [...]
Poderíamos ter algo parecido em um suporte 3. O Estudante 1 propõe um novo saber.
físico, se pensarmos em uma correção que usa a
mesma cor de caneta que o texto original e não
usa nenhum outro recurso semiótico para
mostrar ao autor daquele texto os contornos da
correção. Seu modo de corrigir se configura
como uma “correção camuflada”.
Fonte: Elaboração do autor

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Não havia, no excerto acima, nenhum comentário do orientador na
versão comentada. Parece-nos que a expressão “como uma correção 94
camuflada” proposta pelo aluno pode indicar a construção de um raciocínio
Santos
lógico-comparativo decorrente das análises dos dados da pesquisa e, também,
dos processos de aprendizagem conceitual acionados ao longo da formação
no mestrado, como vimos nos diálogos entre orientadores e orientandos.
Resgatando nossas análises dos três primeiros exemplos, podemos pensar
que o mestrando já partilha das mesmas significações conceituais que um
grupo da comunidade científica.
Pensando no aparato conceitual proposto por Volóchinov em sua
sociologia da linguagem, a noção de horizonte social pode ser pertinente para
compreender nossa interpretação do Exemplo 7. Para Volóchinov ([1926]
2019c, p. 120-121), o conceito de horizonte social se refere ao conjunto dos
interesses e valores, em processo de formação, de um grupo social. Nesse
sentido, é possível considerar que o Estudante 1, uma vez já identificado com
um grupo da comunidade científica, propõe um novo saber, isto é, uma nova
significação a esse mesmo grupo.
Não podemos validar, no âmbito de nossa pesquisa de doutorado, a
cientificidade do novo saber proposto, pois essa certificação precisa ser
realizada pelos membros do mesmo grupo, que partilham as significações
dos conceitos utilizados na pesquisa do Estudante 1. Os dados permitem
entrever a ocorrência da proposição de um novo saber, que emerge em um
raciocínio lógico-comparativo construído pela mobilização dos conceitos
aprendidos nos diversos diálogos formativos com os orientadores.

Conclusões
Os resultados das análises permitem verificar que o processo de
aprendizagem dos conceitos teóricos o qual os mestrandos são submetidos é
complexo, requer a participação ativa e formativa dos orientadores
(pesquisadores experientes). Dado que esses conceitos contêm um alto grau
de abstração, os comentários dos orientadores nas exposições teóricas dos
textos escritos são sine qua non para o desenvolvimento do raciocínio lógico
dos pesquisadores em formação. Evidência disso é o ajuste do estilo pictórico
para o estilo linear, isto é, o ajuste entre o modo como os mestrandos
compreendem os conceitos de um sistema conceitual e as significações

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


dessas noções tais como acordadas por um grupo da comunidade científica.
Os excertos que apresentamos no Exemplo 7 mostram que esse processo 95
interativo pode possibilitar a construção de raciocínios nos quais novas
Santos
formulações conceituais são propostas pelos estudantes, as quais podem,
eventualmente, fazer o sistema conceitual de referência progredir.
As análises e resultados abarcados pela pesquisa nos permitem discutir
alguns aspectos relativos ao desenvolvimento do pesquisador. Como
apontamos na Introdução, outras pesquisas já investigaram outras facetas
envolvidas na atividade de empreender uma pesquisa científica, de modo que
o nosso objetivo foi contribuir com essas reflexões à luz dos intelectuais
russos das décadas de 1920 e 1930. Aliás, a perspectiva sociológica da
linguagem da qual nos valemos para embasar a pesquisa foi construída em
um momento – o contexto russo pós-revolucionário – no qual as discussões
sobre educação, formação e desenvolvimento humano pela linguagem
estavam na “ordem do dia”. Logo, selecionamos um aparato conceitual
propício aos objetivos de nossa pesquisa.
Os dados que analisamos, diálogos e comentários entre orientadores e
orientandos nos textos escritos, podem ser ampliados a partir da coleta de
outras interações discursivas. Sabe-se que, durante o mestrado acadêmico, há
outros momentos que podem contribuir com o desenvolvimento do
pesquisador: reuniões com orientadores, participação em debates de eventos
científicos, discussões em grupos de pesquisa, cadernos laboratoriais, dentre
diversos outros possíveis.

Referências
AMORIM, Marilia. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. 1. ed. São
Paulo: Musa Editora, 2004.
BRANDIST, Craig. Linguística sociológica em Leningrado: O Instituto de Estudos
Comparados das Literaturas e Línguas do Ocidente e do Oriente (ILJaZV) 1921-1933. In:
BRANDIST, Craig. Repensando o Círculo de Bakhtin. Org. Maria Inês Campos e
Rosemary H. Schettini. São Paulo: Editora Contexto, 2012, p. 155-181.
BRANDIST, Craig; LÄHTEENMÄKI, Mika. Early Soviet Linguistics and Mikhail
Bakhtin’s Essays on the Novel of the 1930s. In: BRANDIST, Craig; CHOWN, Katya.
Politics and the Theory of Language in the USSR 1917-1938: The Birth of Sociological
Linguistics. London: Anthem Press, 2010, p. 69-88.
CAVALCANTE FILHO, Urbano. O papel do divulgador no gênero discursivo divulgação
científica: uma questão ética e estética. In: Rodas de Conversa Bakhtiniana. Cadernos de
Textos e Anotações. 1ªed. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010, v. 1, p. 323-326.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


DAVID-FOX, Michael. Revolution of the Mind: Higher Learning among the bolsheviks,
1918-1929. New York: Cornell University Press, 1997.
96
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & Diálogo: As ideias linguísticas do Círculo de
Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. Santos
GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Marxismo, psicanálise e método sociológico: o
diálogo de Volóchinov, marxistas soviéticos e europeus com Freud. Bakhtiniana - Revista
de Estudos do Discurso, v. 12, p. 54-75, 2017.
GRILLO, Sheila Vieira de Camargo; AMÉRICO, Ekaterina Vólkova. Ênfase social
(Glossário). In: VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e
Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017, p. 357.
IVANOVA, Irina. Le dialogue dans la linguistique soviétique des années 1920-1930.
Cahiers de l'Institut de Linguistique et des Sciences du Langage, n. 14, p. 157-182, [1923]
2003.
JAKUBINSKIJ, Lev. Sobre a fala dialogal. Tradução de Dóris de Arruda C. da Cunha e
Suzane Leite Cortes. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.
LÄHTEENMÄKI, Mika. Valentin Voloshinov: signos, ideologia e sentido. In:
ZANDWAIS, Ana. (Org.). História das ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história.
Passo Fundo: UPF, 2012, p. 92-119.
LÊNIN, Vladímir Ilitch. Como enganar o povo com as palavras de ordem da liberdade e
da igualdade. In: LÊNIN, Vladímir Ilitch. Democracia e luta de classes. Tradução: Edições
Avante! e Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, [1919] 2019, p. 25-61.
SÉRIOT, Patrick. Préface. Volóchinov, la philosophie de l'enthymème et la double nature
du signe. In: VOLÓCHINOV, Valentin. Marxisme et philosophie du langage. Les
problèmes fondamentaux de la méthode sociologique dans la science du langage. Nouvelle
édition bilingue. Tradução Patrick Sériot e Inna Tylkowski-Ageeva. Limoges: Éditions
Lambert-Lucas, 2010, p. 13-93.
SILVA, Maria Suely Fernandes da. O mestrado em educação da UEL: um estudo das
dissertações 1995-2006. 2008. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade
Estadual de Londrina, Londrina, 2008.
SOMENSI, Neura Fazolo. Variáveis que influenciam o desenvolvimento do conhecimento
no curso de mestrado, na percepção dos egressos. 2005. Dissertação (Mestrado em
Administração) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005.
TCHOUGOUNNIKOV, Serguei. O círculo de Bakhtin e o marxismo soviético: uma
“aliança ambivalente”. Revista Conexão Letras, v. 3, n. 3, 2008.
TYLKOWSKI, Inna. Les conceptions du dialogue et leurs sources chez Lev Jakubinskij et
Valentin Vološinov. Cahiers de l'Institut de Linguistique et des Sciences du Langage, n.
37, p. 171-185, 2013.
VOLOSHINOV, Valentin. Freudismo: Un bosquejo crítico. Tradução de Jorge
Piatigorsky. Buenos Aires: Editora Paidós SAICF, [1927] 1999.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais
do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, [1929] 2017.
VOLÓCHINOV, Valentin. Do outro lado do social: sobre o freudismo (1925). In:
VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos,
resenhas e poemas. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina e V. Américo. São Paulo: Editora
34, [1925] 2019a, p. 59-108.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


VOLÓCHINOV, Valentin. Estilística do discurso literário III: A palavra e sua função social
(1930). In: VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios,
artigos, resenhas e poemas. Tradução de Sheila Grillo; Ekaterina e V. Américo. São Paulo: 97
Editora 34, [1930] 2019b, p. 306-336.
Santos
VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia: por uma poética
sociológica (1926). In: VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia:
ensaios, artigos, resenhas e poemas. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina; V. Américo.
São Paulo: Editora 34, [1926] 2019c, p. 109-146.
VOLÓCHINOV, V. N. Estilística do discurso literário II: A construção do enunciado
(1930). In: A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas.
Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina; V. Américo. São Paulo: Editora 34, [1930] 2019d.
p.266-305.
WOLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da História da Arte. Tradução de João
Azenha Jr e Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes Editora, [1915] 1984.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


98

François
Cunha

O “dialogismo”? Ou melhor,
“algumas figuras do diálogo,
suas comunidades e suas
diferenças, um ponto de vista”
“Dialogism”? Or better, “some figures of the dialogue, their
communities and their differences, a point of view”

Frédéric François
Universidade Paris Descartes, França 173
janvier-mars 2014

Dóris de Arruda C. da Cunha


Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
Dialogue et dialogisme
Tradutora dans les textes et en classe :
approches pluridisciplinaires

coordonné par Catherine Boré

Artigo publicado originalmente na revista


Éla. Études de linguistique appliquée, n.
173, p. 17-26, 2014a. Disponível em:
https://doi.org/10.3917/ela.173.0017

études de
linguistique appliquée
revue de didactologie
des langues-cultures
et de lexiculturologie

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Esse título1, antes de mais nada, é para dizer que tenho algumas
preocupações sobre a palavra “dialogismo”2. Na verdade, lembro-me de uma 99
época em que a palavra de ordem “dialogismo” expressava o alívio de não
François
mais repetir estruturalismo, que, a partir da luz trazida pela invenção da Cunha
fonologia, tornou-se uma máquina para explicar tudo. Havia o entusiamo em
torno da palavra (e há ainda, para mim, com ou sem a palavra) em ver abrir-
se um novo campo, em torno da comunidade-diferença dos interlocutores, da
multiplicidade de vozes que se expressam pelas bocas deles, bem como da
proximidade-distância de si para si. Assim como era esclarecedora a oposição
da heterogeneidade das linguagens de Rabelais ou Dostoiévski aos discursos
“monológicos” de autoridade. Ou ainda a introdução no livro de Volóchinov3
de novas noções, como a da ideologia da vida cotidiana, ou o lugar dado ao
discurso reportado. E isso vale ainda, mesmo se a estátua do Bakhtin total
está desmoronando, se compreendermos melhor as diferenças entre
Volóchinov e Bakhtin ou se nos perguntamos com Sériot4 sobre o que há de
bastante apressado no “marxismo” de Volóchinov. Não quero voltar a esses
pontos, até porque não tenho competência para apresentar aqui uma análise
pessoal da história do pensamento na Rússia nos anos 1917-1930. Eu diria
apenas que levar em consideração as diferenças entre Volóchinov e Bakhtin
não nos incomoda, ao contrário, serve para iluminar um pelo outro nossos
próprios esforços para refletir sobre o diálogo. Destacando que o
“dialogismo”, como manifestação da recusa do estruturalismo naquilo que
ele pode ter de dogmático, também vale contra o atual culto da mensuração
e da avaliação em “ciências da linguagem”, como em todos os campos.
Para começar, volto ao problema terminológico. Parece-me bastante
legítimo distinguir o que chamaremos de dialogal (algo como o
encadeamento de discursos de um número indeterminado de interlocutores

1
Nota da tradutora: O sintagma “figures du dialogue” utilizado no título original do artigo também
é utilizado pelo autor em vários textos, como uma metáfora, como em figura geométrica.
2
Nota da tradutora: Cf. François (2012, 2014b).
3
Nota da tradutora: O autor se refere à obra Le marxisme et la philosophie du langage: essai
d’applicaion de la méthode sociologique en linguistique, publicado na França em 1977. Em
português temos 2 traduções de Marxismo em filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do
método sociológico na ciência da linguagem: a primeira de 1979, traduzida do francês (com cotejo
e consulta às edições russa e americana), publicada pela Editora Hucitec, com tradução de Michel
Lahud e Yara Frateschi Vieira; e outra versada diretamente do russo por Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo, em 2017, pela Editora 34.
4
Nota da tradutora: O autor refere-se ao prefácio de sua autoria de Le marxisme et la philosophie
du langage: essai d’applicaion de la méthode sociologique en linguistique, publicado em 2010. Um
versão desse prefácio em português é encontrada em “Vološinov e a filosofia da linguagem”,
traduzido por Marcos Bagno e publicado pela Editora Parábola em 2015.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


que respondem uns aos outros de alguma forma) e dialógico (algo mais difícil
de abordar como a heterogeneidade das vozes em um discurso, mesmo 100
pronunciado por uma única pessoa ou ainda pela comunidade-
François
heterogeneidade dos diferentes receptores de um mesmo discurso). Mas há, Cunha
talvez, um obstáculo à reflexão se criarmos uma entidade: “o dialogismo.” O
que vale além disso em geral para as “grandes palavras”5. E mesmo se
descartarmos as palavras em “ismo”, permanece o formidável artigo definido
universalizante: “o diálogo.” (Em francês; em outras línguas existem
equivalentes). Claro que as pequenas palavras também podem ser fontes de
erros, conflitos ou confusão, mas as grandes palavras ainda mais. O que me
permite dizer, quando vejo alguém agir, “muito bem”? Mas o risco não é
ainda maior, quando digo, fora de contexto, “O Bem é…”?
O que se aplicaria tanto a “Não sei por que ajo (ou penso) assim” em
relação a “o inconsciente é”. Ou inversamente quando digo “eu percebi
que...”, eu tenho a impressão de controlar um pouco melhor o sentido das
minhas palavras do que quando digo “a consciência é...”. Aqui parece-me,
mas posso estar enganado, que o adjetivo ou o advérbio fazem correr menos
risco do que o nome que designa uma entidade. Assim como pode ser
preferível seguir processos, por exemplo, na evolução de uma criança, em
vez de procurar origens. Esse começo, talvez longo demais, é para justificar
o título e propor falar de “algumas figuras de diálogo” e não do “dialogismo”
(e não do “diálogo”).
Mas podemos nos contentar com a seleção de tal figura, de tal aspecto?
Há aqui uma dificuldade que, a meu ver, não pode ser resolvida por uma “boa
teoria”. Falar do diálogo certamente negligencia este ou aquele diálogo do
qual “se” pode sempre achar que a especificidade é mais importante do que
seus traços comuns com outros. Por outro lado, limitar-se a alguns casos é
necessariamente aleatório. É verdade que essa “contradição” (ou apenas
“dificuldade”?) teórica pode ser acompanhada por soluções práticas, por
compromissos: dizer generalidades com um toque de humor, comentar
alguns exemplos com um toque de ceticismo. Um parêntese: também não há
solução teórica para a violência “dialógica” que é feita a um texto quando
uma citação é dele extraída, sendo necessariamente recontextualizada. Mas
podemos nos tranquilizar (talvez) dizendo que o contexto amplo que

5
Nota da tradutora: O autor se refere a noções bastante usadas em ciências da linguagem. Cf.
François (2002).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


condiciona o modo de perceber varia necessariamente com cada leitor e que
não faz sentido querer determinar os limites do “bom contexto” ou melhor, 101
do “campo” onde qualquer ato, gesto ou discurso adquire sentido, sem poder
François
ele mesmo ser representado estritamente. Gostaria de acrescentar outra Cunha
dificuldade. A impossibilidade para quem quer dizer algo sobre diálogo,
dialógico ou dialogismo de levar em conta tudo o que tem sido escrito em
torno desses temas (a propósito, também encontrei “dialogicidade” e
“dialogicalidade”).

Algumas generalidades contingentes


Essas generalidades são contingentes porque não tenho certeza se é
com elas que é necessário iniciar uma reflexão em torno “do diálogo”. Mas
também porque são considerações das quais nem o número nem a ordem se
impõem: não há aqui uma “teoria” estabelecida.
Dito isso, gostaria justamente de partir da dupla contingência forçada
daquele que tenta expressar um “ponto de vista” sobre um problema
qualquer. Há a contingência comum do mundo, da época na qual ele nasceu.
Não podemos pensar como há mil, cem ou apenas vinte anos. O que combina
com nossa contingência individual: não sabemos (ou sabemos muito pouco)
“como as ideias nos chegam”, por que tal pensamento nos revolta, de onde
vem nosso “pathos intelectual”. Claro, podemos adquirir saberes “objetivos”.
Assim, conhecer as catástrofes que se seguiram aos triunfos de Hitler ou
Stalin nos dá facilmente uma posição de superioridade intelectual em relação
aos contemporâneos deles. Mas isso não nos permite compreender o
entusiasmo que puderam suscitar. De modo mais geral, não se pode dizer
que, com relação a “coisas humanas”, não podemos passar por um salto
qualitativo “da opinião à ciência” no modelo hipotético-dedutivo ou
experimental? Não somos os cientistas que julgamos do alto da contingência
ideológica dos outros. Até porque sabemos ainda menos como nos orientar
em relação à contingência de nossas evidências coletivas ou individuais. E,
que nos considerarmos eventualmente membro de um “coletivo intelectual”
não muda nada, pois este não tem uma visão geral acima de todos em relação
ao curso da história.
Essa observação negativa feita, talvez a característica mais geral de
todo diálogo (obviamente há aqui uma forte dose de generalidade...) é de ser
um movimento. Quer se trate de um diálogo verbal entre duas pessoas, do

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


diálogo corporal, de uma troca de sorrisos, do diálogo consigo mesmo, onde
se reconsidera o que se acabou de dizer ou de se dizer, de fazer ou de sentir, 102
há um movimento, um deslocamento em relação ao que precede. A propósito,
François
observo que esse movimento pode ser quase instantâneo, por exemplo, no Cunha
surgimento da intuição, do insight que nos mostra que falta algo na sala ou
que algo está errado com o discurso que ouvimos. Sei que dizer isso vai
contra uma velha tradição que opõe pensamento “intuitivo” e “discursivo”.
Mas o pensamento intuitivo não é um estado estável, ele surge, é um evento.
Insisto nessa característica porque me parece que se fez muito rapidamente a
suposição de que a criança pequena passava necessariamente do diálogo
verbal externo com o outro a uma internalização desse diálogo. Claro que
existe isso. Mas há também a espontaneidade do movimento de diferenciação
em relação a si mesmo, por exemplo, mudar o objeto de interesse ou de ponto
de vista em relação a esse objeto. Deve-se dizer que tal movimento em
relação a si mesmo é “dialógico”? Parece-me que sim, mas deixo a questão
em aberto.
Em todo o caso, justifica-se aqui a distinção entre “dialógico” e
“dialogal”. Há uma forma dialogal, mas não “evento dialógico”, nos
questionamentos (interrogatórios?) onde o questionador sabe a resposta e
verifica o trabalho do outro. Ou quando for necessário responder a perguntas
do tipo “Nome? Data de nascimento? Endereço?”. Ou ainda, na minha visão,
na parte dos diálogos socráticos, que de algum modo aprisionam o infeliz do
interrogado para levá-lo onde o malicioso questionador deseja.
Uma terceira característica seria então que, negativamente, o sentido
dos movimentos do qual estamos tentando falar aqui não pode ser
caracterizado como um significado diferencial, correlativo de uma oposição
de significantes. Parece-me que a aparição de todo ato, de todo sentimento,
como de um desenho ou de um discurso, supõe um pano de fundo presente
ou ausente, um conjunto em relação ao qual essa aparência faz sentido.
E (quarta característica) não é esse fundo que faz com que haja ao
mesmo tempo algo partilhado entre nós, um mesmo mundo, um mesmo
campo (qualquer que seja a “palavra certa”) não exclusivo de diferenças de
“pontos de vista”, de modalizações desse campo mais ou menos partilhado?
Talvez pudéssemos dizer que, no “mundo atual”, é, sem dúvida, o comum
que prevalece como quando o dedo apontando indica “olha!”. Embora, claro,
o “mesmo” objeto não tenha, por exemplo, para o adulto e para a criança, a

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


mesma significação, a mesma carga histórica. E ainda, enquanto esse campo
comporta justamente uma relação com o ausente (experiência passada, 103
transmissão cultural, jogo associativo...) é, mais ou menos, a diferença que é
François
a regra. E no entanto, se tomarmos “diálogo” no sentido amplo (para o qual Cunha
pode ser usado “dialogismo”), podemos dizer que em cada um de nós estão
presentes traços múltiplos dos outros, sejam eles explícitos, sejam eles do
anonimato daquilo que podemos chamar, se quisermos, de nosso
"inconsciente cultural”. Assim como o que resta de Hegel em Marx ou as
marcas do cristianismo entre os pensadores ateus. A partir daí, poderíamos
girar em torno de nossa comunidade-diferença como objeto perpétuo de
reflexão. Para voltar ao tema desse texto, estamos obviamente (na medida em
que indivíduo pode dizer ou escrever “nós”) longe do entusiasmo marxista
de Volóchinov ou do regime de pensamento “existencial religioso”, para
dizer rapidamente, de Bakhtin.
Mas então, antes de tudo, qualquer que seja a variedade de contextos
culturais e/ou dos modos de reação individuais, podemos evocar um campo
humano comum ou um aspecto comum do campo atualmente partilhado?
Vamos voltar um pouco mais adiante, quando comentarmos alguns exemplos
de acordo ou desacordo. Mas já não podemos dizer antes de tudo que o
acordo não implica a identidade? Duas pessoas que riem da mesma piada não
necessariamente a sentem da mesma maneira, podem explicitar campos
associativos diferentes. E, inversamente, para que haja conflito entre nós, isso
não implica pelo menos algum acordo sobre o objeto do conflito (conflito
que um movimento posterior poderá nos revelar um “mal-entendido”)? Mas
duvido que possamos falar em geral sobre o que seria comum a nós. Em tal
momento, poderá ser a semelhança de nossos corpos, em outro, a nossa
contingência, ilustrada pela nossa fragilidade, em outro, a evidência negativa
mas partilhada de não saber realmente “o que passa pela cabeça do outro.” E
então, podemos dar um status definitivo a essa comunidade: “essência
fundamental” ou “denominador comum quase vazio”?
E agora, voltando a um ponto que acabamos de mencionar, podemos
nos perguntar: de que maneira está presente em nós de alguma forma o campo
do pensamento do outro? É uma pergunta infinita. Uma primeira observação.
Não se trata necessariamente de procurar um “interior”. Quando eu vejo uma
criança ter medo de cachorro, não me represento sua interioridade. Entendo
que ela tem “corpo e alma”, outra relação com o animal (mesmo que seja
apenas em função de seus respectivos tamanhos), diferente da de um adulto.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


(Deixo de lado, mesmo sendo legítima, a questão da “criança em nós,
adultos”). Se caracterizarmos o símbolo como aquilo em que a diferença 104
entre sua materialidade e o que ela manifesta se anula, então diremos que o
François
estilo, o ritmo da criança simbolizam seu “mundo vivido”. Mas Cunha
encontraremos uma relação do mesmo tipo em qualquer texto, que nunca é
uma pura soma de enunciados, mas também estilo, ritmo. Certamente estilos
e ritmos não são dados neles mesmos, mas correlatos de estilos de recepção.
E no entanto, esses estilos nos dão “modos de ser”, de se relacionar com o
mundo que não aparecem no que seria apenas o conteúdo traduzível de
“mensagens”. O que se vale para estilos corporais, estilos discursivos, de
imagens ou de casas, tudo o que, em particular, nos traz presentes modos de
existir que nunca serão os nossos. Abertura ao diferente, do qual se poderia
dizer que é o que constitui a cultura. Só que a abertura em questão pode
caracterizar tanto o curso ordinário de nossas relações com nossos outros
cotidianos quanto o que faz parte mais especificamente da “cultura”. A isso
podemos acrescentar que a cultura só se transmite modificando-se. Até
porque só podemos percebê-la através de nossa própria maneira de viver.
Não haverá aqui ainda uma característica “dialógica”: a articulação recíproca
de nossa relação com nossos outros reais, presentes ou ausentes, ao nós atual,
passado ou futuro e aos nossos “outros culturais”, personagens, por exemplo,
de romances ou de filmes, uns “corrigindo” de alguma forma os outros?
Depois de evocar essas características muito gerais do diálogo,
gostaria de retornar à especificidade do diálogo linguageiro. Não podemos
certamente considerar a linguagem como a condição sine qua non de nossa
relação ao ausente. A falta, o sentimento de perda, a expectativa do futuro, o
jogo de “como se” caracterizam tanto o pensamento dos infans, como o de
muitos animais (falta-me singularmente competência neste último ponto).
Mas então o que se pode dizer da relação, certamente variável, da linguagem
com o que não é diretamente linguageiro? Com certeza, não há nenhum
objeto, devir, atitude da qual não se possa “dizer algo”. Mas com que prejuízo
ou, pior, com que risco de “dizer mal”? Podemos falar de tudo. Daí o perigo
de “profissões linguageiras” e dos eventuais poderes que elas dão. Afinal, um
discurso, seja ele qual for, não pode ser equivalente ao menor objeto real, ao
menor sentimento, à menor ação. E, talvez mais complicado ainda, toda
relação vivida, prática ou qualquer outra para o mundo percebido e
modificado pelo acompanhamento linguageiro explícito ou implícito (por
exemplo, no reconhecimento de tal pessoa ou tal objeto).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Ademais, os diálogos linguageiros, ainda mais (provavelmente) do
que os diálogos corporais ou aqueles que passam por outras semióticas 105
(imagens, objetos espaciais, sons etc.), caracterizam-se pela diversidade de
François
seus gêneros, tipos ou como se queira chamá-los. Assim como pela Cunha
diversidade dos modos de percepção e – eventualmente – de respostas
explícitas. O que faz, mais uma vez, com que falar “do” diálogo ou “da”
linguagem não seja sério. Assim como falar da narrativa ou da argumentação
em sua generalidade.
Além disso, acabamos de propor que o dialogar pressupõe os dois
polos opostos do comum e do diferente. Mas não é necessário então supor
que em sua relação dialógica consigo mesmo, cada um de nós é, ao mesmo
tempo, relativamente unificado e relativamente diferente de si mesmo? Se os
momentos do tempo fossem completamente separados, não haveria
“sentido”. Não mais do que se fôssemos constantemente semelhantes a nós
mesmos. Assim como nossos sonhos são ao mesmo tempo nossos e não são
nossos. Pode-se imaginar alguém que não apresentaria nenhuma distância
entre o que ele sente, o que ele diz, o que ele faz, mesmo se desejamos, por
exemplo, que na promessa que nos é feita, haja “alguma relação” entre
palavras, convicções sentidas e atos. Observe-se que estamos falando tanto
de comunidade, de proximidade, quanto de diferença, mas sem que seja
absolutamente necessário postular “instâncias psíquicas” entre as quais essas
relações se estabeleceriam.
E então, novamente, essas generalidades só têm sentido se o autor ou,
na ausência, o leitor trouxer exemplos que ora se alinham “muito sabiamente”
sob essas noções, ora, ao contrário, resistem mais ou menos.

Alguns exemplos
Outra entrada seria que os participantes de um diálogo não podem se
encontrar em posições idênticas. E que voltar ao diálogo é voltar para a
diferença entre essas posições. Ou melhor, existem posições instituídas. E
aquelas que se desenham no próprio curso da troca. É nisso que um diálogo,
em oposição aos questionários acima citados, só existirá como um
acontecimento, ou melhor, como uma pequena cena em ruptura com o que
do campo do sentido funciona então como pano de fundo.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Eu já tinha usado6 o exemplo de um microdiálogo, mas não sei mais
qual é a fonte dele. Uma criança diz “eu me tinha enganado”7, a professora 106
recomeça “eu me enganei”, “ah! Você também?” disse a criança.
François
Poderíamos comentar longamente. Primeiro, a natureza do prazer que Cunha
nós (?) temos com isso. Correlativamente, voltando ao fato de que não é “a
linguagem” que está em causa aqui, mas um “jogo de linguagem” específico,
aquele que inverte a posição “normal” da professora corretora na aparição
fugaz da evocação de um erro comum. Com a questão das condições da
ingenuidade criadora, da espontaneidade da criança, que não muda a
“realidade”, mas introduz o inesperado em um quadro estável, aqui, o do
diálogo escolar, onde o adulto tem a autoridade legítima para corrigir a
criança. Em todo o caso, parece-me que esse exemplo ilustra uma figura
mínima do diálogo como movimento, segundo o modelo do duplo mundo de
referência que encontraremos no chiste.
A partir desse exemplo, recorro a dois outros do livro de Daniel Stern,
um da manifestação de uma evidência comum, um outro da erupção do
desacordo.
Um primeiro exemplo.
O da evidência partilhada:

Eu estava sentado nos degraus de um museu com vista para uma


calçada. Um mímico de ruas, cheio de talento, caminhou atrás de um
passante por dez ou vinte metros (vários segundos), imitando seu andar,
sua atitude, seu humor aparente, apreendendo rapidamente uma de suas
características. O passante geralmente não percebia que ele era seguido,
imitado e zombado. Ele simplesmente continuava seu caminho. Então
o mímico parava, dava meia volta e seguia passo a passo o próximo
passante, caminhando na direção oposta. Etc. A multidão sentada nos
degraus estava se divertindo muito. O mímico seguiu então uma
mulher. Mas ela rapidamente compreendeu o que estava acontecendo.
Ela parou bruscamente, virou-se em direção ao mímico e protestou. O
mímico então a imitou enfurecida. Ela então começou a imitar a
imitação que ele fazia dela. Eles acabaram morrendo de rir os dois.
Apertaram as mãos e cada um saiu para um lado... Naquele momento,
eu me levantei para sair, como um casal sentado à minha esquerda,
desconhecidos. Nós nos olhamos com um sorriso, levantamos as
sobrancelhas, inclinamos nossas cabeças, fizemos uma mímica

6
Cf. François (2003).
7
Nota da tradutora: Em francês, o passado composto que equivale ao nosso pretérito perfeito pode
ser conjugado com os auxiliares ser e ter. No exemplo, a criança usa o auxiliar ter em lugar do
auxiliar ser (“je m’ai trompé”) e a professora corrige usando o verbo ser (“je me suis trompé”) que
é a forma correta gramaticalmente. Como a criança não percebe a correção, ela pergunta: “você
também?”

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


indescritível e abrimos nossas mãos, palmas no ar - como se dissesse:
“Aprendemos todos os dias.” Eles partiram para um lado e eu para outro
(Stern, 2003, p. 37).8 107

E Stern (Ibid., p. 37) conclui: “Eu não estava sozinho na terra, eu fazia François
Cunha
parte de uma espécie de matriz humana intersubjetiva e psicológica. O efeito
não durou. Mas isso me fez muito bem naquele momento.”
O que acrescentar? Stern comenta sobretudo o momento de seu
encontro com o casal desconhecido. Mas ele observa que alguém poderia ter
comentado tanto o momento do encontro ainda mais fugaz e frágil entre a
dama imitada e o mímico. Nos dois casos, o acordo não é exclusivo da
diferença. Ele não implica “empatia”. E “concordância”, justamente,
significa algo diferente de “identidade”.
Um segundo exemplo, oposto.
Um adolescente seguindo uma terapia psicodinâmica:

Quando criança, ele tinha sofrido uma queimadura grave no peito e no


abdômen, o que havia deixado uma cicatriz descolorida impressionante.
Tinha dedicado muito tempo terapêutico para falar sobre isso,
especialmente sobre o fato de que a cicatriz enojava as meninas ou as
fazia fugir. Era verão e a praia estava no coração da vida social. Um
dia, durante uma sessão, sem prevenir, ele disse: “Depois de todas essas
falas, você precisa ver com que ela parece”. E ele começou a levantar a
camisa. (Um momento urgente). O terapeuta protestou: “Não, você não
precisa me mostrar, apenas me diga o que ela representa para você
agora”. O garoto interrompeu e expressou sua incompreensão diante da
recusa do terapeuta em ver sua cicatriz. Eles discutiram sobre esse
assunto durante a sessão, bem como durante a seguinte... Finalmente,
durante a sessão seguinte, o terapeuta disse: “Pensei no que aconteceu
e tive a sensação de decepção por não ter olhado a cicatriz.” O
adolescente respondeu: “Pouco importa que você esteja decepcionado.

8
No original em francês: “J’étais assis sur les marches d’un musée dominant un trottoir. Un mime
de rues, bourré de talent, marchait derrière un passant sur dix ou vingt mètres (plusieurs secondes),
en imitant sa démarche, son attitude, son humeur apparente, en saisissant rapidement une de ses
caractéristiques. Le passant ne se rendait généralement pas compte qu’il était suivi, imité et raillé. Il
poursuivait simplement sa route. Puis le mime s’arrêtait, virait sur lui-même et emboitait le pas au
passant suivant, qui, lui, marchait dans la direction opposée. Etc. La foule assise sur les marches
s’amusait beaucoup. Le mime a alors suivi une femme. Mais elle a très vite compris ce qui se passait.
Elle a pilé, s’est tournée vers le mime et a protesté. Le mime l’a alors imitée dans sa colère. Elle
s’est alors mise à imiter l’imitation qu’elle faisait d’elle. Ils ont fini par éclater de rire tous les deux.
Ils se sont serré la main et sont partis chacun de son côté… À ce moment-là, je me suis levé pour
partir, comme un couple assis à ma gauche, des inconnus. Nous nous sommes regardés en souriant,
nous avons haussé les sourcils, avons incliné la tête, fait une mimique indescriptible et avons ouvert
les mains, paumes en l’air – comme pour dire : « On en apprend tous les jours. » Ils sont partis de
leur côté, moi du mien” (Ibid., p. 37).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Você me decepcionou”. E eles discutiram novamente (Stern, 2003, p.
209) 9.
108
Stern acrescenta que a cicatriz nunca foi fechada. De qualquer forma,
François
a verdadeira cicatriz nunca foi mostrada. “Uma parte significativa do mundo Cunha
do paciente foi privada de um compartilhamento intersubjetivo mais
aprofundado. O universo terapêutico encolheu em vez de se expandir” (Ibid.,
p. 209).
Gosto muito dessa história. Imagino o pensamento do psicólogo, para
quem é evidente coletivamente, profissionalmente, condenar o que se tornou
normal chamar de “passagem ao ato”. Isso “não se faz”, mostrar uma parte
nua do corpo. Imagine se a cicatriz se encontrasse em um lugar mais íntimo...
Enquanto era sem dúvida evidente para o jovem “real”, em todo caso, para
aquele que eu reconstituo no meu imaginário, a ingenuidade, que era mais
“simples”, era mais “normal” mostrar uma cicatriz que, de certa forma, vai
“falar melhor do que as palavras poderiam fazer”.
Se voltarmos ao contraste entre esses dois exemplos, não
esqueceremos, primeiramente, o problema, já mencionado acima, da citação
como modo de retirar textos de seu contexto, o que é seguramente
“dialogicamente violento”, mas impossível de evitar. E então, evitaremos o
“teoricismo” simplista, que consistiria em reduzir aos dois polos da
comunidade e do conflito. O “resto” importa igualmente.

Algumas aberturas para o diálogo,


contingência e heterogeneidade
Podemos partir de tudo o que faz com que não pensemos sozinhos,
mas sempre com os outros, mesmo que esse pano de fundo de já dito, de já

9
No original em francês: “Enfant, il avait été gravement brûlé au torse et à l’abdomen, ce qui lui
avait laissé une cicatrice décolorée impressionnante. On avait consacré beaucoup de temps
thérapeutique à en parler, notamment du fait que la cicatrice dégoûtait les filles ou les faisait fuir.
C’était l’été et la plage était au cœur de la vie sociale. Un jour, pendant une séance, sans le prévoir,
il a dit : « Après tous ces palabres, il faut que vous voyez à quoi cela ressemble ». Et il a commencé
à relever sa chemise. (Un moment urgent). Le thérapeute s’est récrié : « Non, vous n’avez pas besoin
de me la montrer, contentez-vous de me dire ce qu’elle représente pour vous maintenant. » Le gamin
s’est interrompu et a exprimé son incompréhension devant le refus du thérapeute de voir sa cicatrice.
Ils se sont disputés à ce sujet pendant cette séance ainsi que pendant la suivante… Finalement lors
de la séance suivante, le thérapeute a déclaré : « J’ai réfléchi à ce qui s’est passé et j’ai eu le sentiment
de m’être déçu moi-même en ne regardant pas la cicatrice. » L’adolescent a répondu : « Peu
m’importe que vous vous soyez déçu. Vous m’avez déçu ». Et ils se sont de nouveau disputés” (Ibid.,
p. 209).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


manifestado não seja necessariamente atribuível. Há o que já estava lá, o
instituído para retomar a expressão de Merleau-Ponty10. E esse instituído 109
opõe-se à imagem de um pensamento que, de alguma forma, constituiria
François
“sozinho” seu objeto. É o que nos mostra “a entrada no mundo” de toda Cunha
criança, o que inclui também o momento individual da iluminação, da
descoberta.
Entrada no mundo que também mostra (ao contrário do que parece
dominar tanto o discurso de Bakhtin como o de Volóchinov) que o acesso à
linguagem é baseado no pano de fundo do que vincula nosso corpo aos
outros, ao mundo, à contingência de nossa situação. Sem que a psicologia ou
a sociologia objetivas deem conta da especificidade de nossa atitude, de
nosso discurso ou de nosso modo de compreensão. Podemos apenas ter um
pouco de consciência no instante n+1 da contingência do que nos parecia
óbvio no instante precedente. Ou formas de restrição que nos são impostas,
como o domínio atual do que Henri Lefebvre11 chamava, há muito tempo, a
“sociedade burocrática de consumo dirigido”.
No contexto deste número de revista, este artigo não abordou o que
pode ser específico no diálogo pedagógico. Muito rapidamente, talvez
pudéssemos distinguir três casos extremos.
➢ Aquele em que "o professor" transmite sobre a ortografia, os
contextos históricos ou ... "verdades", informações para aqueles
que não as têm ou que se supõe que não as tenham.
➢ Aquele em que o professor apresenta um “espaço de suspensão”,
onde suas próprias formas de perceber ou de dizer e as dos alunos
podem ser comparadas. Afinal, os relatos das crianças da escola
maternal não são apenas uma forma inferior de “contar” a partir
da qual devem progredir.
➢ E depois há as situações de conflito em que o adulto se encontra
confrontado com os mais jovens, imersos na evidência de uma
outra cultura, como aquela que manifesta uma outra relação entre
a fala, o discurso escrito e o que se pode transmitir através da
Internet, ou mesmo a inutilidade do trabalho escolar. Ou, para

10
Nota da tradutora: O autor se refere à obra L’Institution, la passivité. Notes de cours au Collège
de France (1954-1955), publicada em 2003.
11
Nota da tradutora: O autor se refere à obra La vie quotidienne dans le monde moderne. publicada
em 1968.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


pegar um tópico mais candente, o que pode fazer o professor, cujo
pensamento provavelmente se desenvolveu com mais frequência 110
no que se pode chamar cultura ocidental, em face da recusa oposta
François
em nome da verdade do Islã, que se enfatize o dogmatismo dessa Cunha
oposição ou que se perceba a legítima revolta dos “humilhados e
ofendidos” (essas duas ênfases não sendo necessariamente
incompatíveis)?
Há, em todo caso, uma situação dramática, que remete, na melhor das
hipóteses, tanto quanto posso julgar, a compromissos práticos mais do que a
uma solução teórica universal.
Dito isso, não creio que, em geral, seja necessário sonhar com uma
macroteoria psico-linguística-semiótica-social que daria conta seriamente de
“acontecimentos dialógicos”. Mais especificamente, não estamos, a meu ver,
em situação, entre outras em nome do sucesso das ciências naturais, de visar
a uma “ruptura epistemológica” (o que outrora foi o modelo da linha de
Bachelard-Canguilhem-Althusser e de seus sucessores) que, colocando os
textos em suas condições de emissão, diriam a verdade sobre eles.
Pode-se antes perguntar, o que seria o “dialogismo modesto”, como
somos capazes de receber, de compreender (pelo menos um pouco e de uma
forma ainda por determinar) textos que não poderíamos ter produzido. Assim
como textos produzidos em um mundo diferente do nosso. Acrescentando
que a diversidade de modos de recepção e de nossas relações de comunidade-
diferença com outros receptores constitui um fato que, por si só, não pode ser
“completamente esclarecido”. Assim, apesar da estranheza da pretensão de
um “pouco de verdade” daquele que conclui (provisoriamente), não haveria
uma justificativa para dizer “dialogismo mesmo assim” (inclusive se cada um
não der o mesmo sentido a essa palavra…)?

Referências
FRANÇOIS, Frédéric. Bakhtine tout nu, ou une lecture de Bakhtine en dialogue avec
Volochinov, Medvedev et Vygotski ou encore, Dialogisme, les malheurs d’un concept
quand il devient trop gros, mais dialogisme quand même. Limoges : Lambert-Lucas, 2012.
FRANÇOIS, Frédéric. Bakhtin completamente nu, ou uma leitura de Bakhtin em diálogo
com Volochinov, Medvedev et Vygotsky ou ainda, Dialogismo: as desventuras de um
conceito (?) quando ele se torna muito amplo, mas “dialogismos” assim mesmo.
Bakhtiniana. Revista de estudos do discurso, v. 9, n. especial, p. 47–172, 2014b. Disponível
em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/19739 Acesso 14 mai.
2023.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


FRANÇOIS, Frédéric. Interprétation et dialogue chez des enfants et quelques autres.
Lyon: E.N.S. Éditions, 2003.
111
FRANÇOIS, Frédéric. Sens, sujet, genre. Que faire des grands mots? Revista Investigações
– Linguística e Teoria Literária, v. 15, n. 2, p. 53-84, 2002. François
LEFEBVRE, Henri. La vie quotidienne dans le monde moderne. Paris: Gallimard, 1968. Cunha
MERLEAU-PONTY, Maurice. L’Institution, la passivité. Notes de cours au Collège de
France (1954-1955). Paris: Alpha, 2003.
SÉRIOT, Patrick. Vološinov, La philosophie de l'enthymème et la double nature du signe.
In: VOLOŠINOV, Valentin. Marxisme et philosophie du Langage. Les problèmes
fondamentaux de la méthode sociologique dans la science du langage. Limoges: Lambert‐
Lucas, 2010, p. 13-109.
SÉRIOT, Patrick. Vološinov e a filosofia da linguagem. São Paulo : Parábola Editorial,
2015.
STERN, Daniel. Le Moment présent en psychothérapie. Un monde dans un grain de sable.
Paris : Odile Jacob, 2003.
VOLOŠINOV, Valentin Nikolaevič. Marxisme et philosophie du langage. Les problèmes
fondamentaux de la méthode sociologique dans la science du langage. Nouvelle édition
bilingue traduite du russe par Patrick Sériot et Inna Tylkowski-Ageeva. Limoges: Lambert
Lucas, 2010.
VOLÓCHINOV, Valentin Nikolaevič. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário
Sheila Grillo e Ekaterina, Vólkova Américo. São Paulo, Editora 34, 2017.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


112

Parte II

Educação

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


113

Mitsunari

Leitura e cidadania no Novo


Ensino Médio: fake news
em foco
Reading and citizenship in the New High School: fake news in
focus

Nathalia Akemi Sato Mitsunari 1 Introdução


Universidade de São Paulo, Brasil
Em 2022, começou a ser
implantado o Novo Ensino Médio
no Brasil, estabelecido pela Lei nº.
13.415 (Brasil, 2017) e definido
pela Base Nacional Comum Curricular – BNCC (Brasil, 2018). A proposta
é de oferecer um ensino público de qualidade, ao mesmo tempo, voltado para
a cidadania e para o mercado de trabalho, para o empreendedorismo. Essas
finalidades, que podem ser divergentes – a formação cidadã “coloca a todos
em igualdades de condições para exigir o que [para o empreendedorismo] só
deveria ser outorgado àqueles que, graças ao mérito e ao esforço individual,
se consagram como consumidores e empreendedores” (Gentili, 1996) –,
desvelam tensões em torno dos princípios didáticos do Novo Ensino Médio.
O objetivo deste artigo, nesse sentido, é investigar a participação cidadã que
se promove em um manual escolar aprovado para a reforma curricular pelo
Programa Nacional do Livro e do Material Didático 2021: Interação:
Português (Sette et al., 2020).
Esse volume único – destinado ao 1º, 2º e 3º ano – foi organizado em
doze unidades temáticas, que se propõem a dialogar com o “estudante do

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


século XXI, nativo digital” (Sette et al., 2020, p. III). Na unidade 11, “Fake
news e pós-verdade”, a seção “Leitura”, foco deste artigo, apresenta um dos 114
temas prescritos na BNCC (Brasil, 2018) para o campo de atuação na vida
Mitsunari
pública: “a profusão de notícias falsas (fake news), de pós-verdades, do
cyberbullying e de discursos de ódio nas mais variadas instâncias da internet
e demais mídias” (Brasil, 2018, p. 488). A seção deve, assim, responder aos
objetivos estabelecidos pelo documento oficial: desenvolver “habilidades e
critérios de curadoria e de apreciação ética e estética” (Brasil, 2018, p. 488)
e promover “questões de interesse coletivo e público [...] como forma de
valorizar a democracia e uma atuação pautada pela ética da
responsabilidade” (Brasil, 2018, p. 512, grifo nosso).
A noção de cidadania, que perpassa o tema das fake news e o campo
de atuação na vida pública1, não é una. Na Grécia Antiga, era um status
conferido a um pequeno grupo de homens livres, que podiam participar das
decisões coletivas da polis (Costa; Ianni, 2018). Na Idade Média, estava
vinculado a uma ideia de contrato de fidelidade direta e pessoal ao suserano
(Dubet, 2011). Após a Revolução Francesa, ganhou a perspectiva de
liberdade para lutar contra o poder – em contraposição à liberdade de
participação no poder que se tinha na Grécia Antiga (Costa; Ianni, 2018). Nos
séculos XVII e XVIII, foi pensada por teorias naturalistas como um “critério
passivo de pertença a uma comunidade nacional de direitos e deveres”
(Costa; Ianni, 2018, p. 53, grifo nosso). Nessa perspectiva, o indivíduo era
concebido como um ser de direitos que antecedem uma organização social e
política, direitos naturais determinados por uma vontade extraterrena, que os
faz prevalecer sobre deveres.
Em contrapartida, a partir do fim do século XX, com o fortalecimento
dos movimentos sociais de natureza identitária, teorias individualistas
compreendem que uma comunidade política de direitos e de deveres não é
decorrente de uma vontade extraterrena. É delimitada pelo homem e, dessa
forma, é passível de contestação. Dessa percepção decorre a noção de
cidadania como prática social de indivíduos, como necessária conquista e
consolidação de direitos civis e políticos. Sendo ela ativa, o cidadão deve ser
capaz de julgar por si seus interesses e os de seu grupo para intervir. Essa
capacidade – como os critérios de curadoria e de apreciação ética estipulados

1
Na BNCC, nas descrições dos trabalhos que devem ser feitos em cada campo (Brasil, 2018, p. 505-
526), a palavra cidadania tem apenas uma entrada: no campo de atuação na vida pública.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


pela BNCC (Brasil, 2018) – foi e é construída temporalmente, espacialmente
e axiologicamente nos manuais escolares. 115

Como a cidadania é estimulada na construção do conhecimento no Mitsunari


mundo da cultura, mundo do manual escolar? Para responder a essa questão
e cumprir com o objetivo deste artigo, esse foi organizado em três seções. Na
primeira, debruça-se sobre tensões em torno do ensino de leitura e de seu
intuito, a partir do período de redemocratização de nosso país. Na segunda,
exploram-se contribuições da noção de arquitetônica (Bakhtin, 2011, 2017b,
2018) e do conceito de cronotopo (Bakhtin, 2018) para a análise da seção de
leitura de um manual escolar de Língua Portuguesa. Na terceira, à luz desses
fios teórico-metodológicos, são investigados tempos, espaços e valores
associados à coletânea de leitura, às explicações e às atividades na seção, de
modo a analisar como a atividade cidadã é apresentada aos estudantes em
Interação: Português (Sette et al., 2020).

1 Ensino da leitura e cidadania: conhecimento para


quê?
No período de redemocratização de nosso país, a Constituição Federal
de 1988 representou o fim de um longo período de autoritarismo e de
repressão militar. Ficou conhecida como “Constituição Cidadã” (Fernandes;
Santos, 2022), porque retomou o sistema presidencialista com voto direto,
obrigações trabalhistas e a liberdade de expressão, além de versar sobre o
racismo enquanto crime inafiançável, a demarcação de terras indígenas e os
serviços públicos de saúde. Para a educação, apresentou o mais longo
capítulo, dentre todas as constituições anteriores (Palma; Franco, 2018, p.
17).
Nesse contexto, defendia-se a escola como um espaço de
transformação social e voltou-se para a formação de alunos preparados para
a reivindicação e consolidação de direitos civis e políticos (Possenti, [1984]
2011; Soares, 1990; Lajolo, 1995), para a cidadania ativa. Opunha-se à
compreensão de que a escola deveria valorizar uma única tradição, a cultura
nacional, em prol da construção de um “futuro glorioso, capitalista e
ocidental” (Maia, 2013, p. 5), conforme documentos oficiais da Comissão
Nacional de Moral e Civismo, do Conselho Federal de Educação e do
Conselho Federal de Cultura. Contrapunha-se à concepção de cidadania

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


como sinônimo de consciência cívica, de dever defender e impulsionar
valores morais preestabelecidos, considerados superiores e absolutos, diante 116
de ameaças à estabilidade e à ordem, supostamente provocadas por
Mitsunari
“ideologias alienígenas presentes na sociedade” (Maia, 2013, p. 1).
Durante a ditadura militar, na aula de língua materna, “princípios
homogêneos e fora do mundo” (Dubet, 2011) projetavam a suposta
universalidade dos valores da ditadura, como se fossem de caráter sagrado e
inquestionável. No ensino da gramática, esses princípios eram categorias
preestabelecidas de uma língua2, tomada como sistema autossuficiente, único
e isolado. Seu domínio garantiria a formação do aluno como emissor e
receptor de mensagens, que utiliza e compreende a língua enquanto código,
conforme a Teoria da Comunicação de Roman Jakobson. Já o ensino de
leitura era concebido como práticas de observação e de memorização de
textos modelares, fontes de saberes essenciais para se escrever (Bunzen,
2006). Era necessário se apoderar das virtudes dos grandes autores, de
qualidades de estilo desejáveis, para se posicionar diante de determinado
tema, sob pretexto de impacto prospectivo na produção de texto.
Desse modo, o ensino da leitura seria capaz de desenvolver,
basicamente, cinco capacidades (Rojo, 2004, p. 4): 1. de compreender as
diferenças entre a escrita e outros sistemas de representação; 2. de conhecer
o alfabeto; 3. de dominar as relações entre grafemas e fonemas; 4. de dominar
convenções gráficas; 5. de ampliar o olhar das palavras para porções maiores
de texto, desenvolvendo rapidez de leitura.
Identificou-se, nas redações de jovens candidatos às universidades,
uma Crise na linguagem (Rocco, 1981): uma linguagem incoerente, ilógica
e contraditória. Se havia um consenso de que a qualidade dos textos estava
abaixo de níveis desejáveis, no entanto, o mesmo não acontecia em torno de
suas razões. Acreditava-se, de um lado, na existência de uma “privação
linguística patológica dos alunos” (Bunzen, 2006, p. 147). De outro lado,
defendia-se que o problema não estava no fracasso individual dos alunos,
mas em suas condições de ensino-aprendizagem. Sob essa perspectiva,
conforme Geraldi (2014, p. 216), a pretensa objetividade e inesgotabilidade
do objeto da língua nas práticas de leitura e de escrita acabava por obscurecer
objetivos (para que leio/escrevo?), temas (sobre o que leio/escrevo?) e razões

2
Que seguiam a Nomenclatura Gramatical Brasileira (Rio de Janeiro, 1958), elaborada por uma
comissão designada pela Portaria Ministerial nº. 152, em 1957.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


(por que leio/escrevo?), tornando-as distantes da realidade dos alunos.
Questionava-se, assim, a construção do conhecimento na escola, que parecia 117
servir apenas como
Mitsunari
[...] passaporte para prossecução de ano ou nível [...]. Os alunos passam
pelos conhecimentos que integram o currículo sem que muitas vezes
eles passem por eles, ou sequer os toquem ou atravessem,
incorporando-se na sua cultura. Predomina na cultura escolar, e
independentemente da qualidade, muitas vezes excelente, de programas
ou professores, uma concepção instalada de “saber escorregadio”, cuja
aquisição é percebida como marcada pela temporalidade de um exame
ou classificação, e que parece não se destinar a sobreviver-lhe. (Roldão,
2009, p. 596-597).

A partir da década de 1990, a insatisfação com esse mundo à parte de


conhecimentos escolares culminou na pedagogização de dois conceitos na
aula de língua portuguesa: gênero do discurso e competência. O primeiro
oscilou entre flexibilidade/ plurissemia, enfatizando a formação do jovem
como protagonista, leitor e produtor crítico; e modelos/ referências de
estrutura de texto, em uma abordagem prescritiva, de reprodução de pontos
de vista (Rojo, 2008). Já o segundo era definido ora como saber aplicado,
desenvolvido por treino específico, repetitivo e segmentado, numa interação
dinâmica entre saberes prévios e saberes formalizados em novas experiências
pelos indivíduos; ora como sistema complexo que agrega conhecimento,
dispositivos de operacionalização e capacidade crítica e mobilizadora em
situação, de modo a considerar que todos têm competências culturais e
interpessoais com as quais podem/ devem participar de uma sociedade mais
ampla, justa, humana e solidária (Roldão, 2009).
Essas diferentes conceituações valorativas são, conforme Figueiredo
(2005, p. 107) resultantes de distintas preocupações da sociedade, dividida
entre exigências técnicas mensuráveis do competitivo mercado de trabalho e
o exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, voltados para uma
ética da responsabilidade cidadã. Havia a influência crescente de órgãos
internacionais3 nas escolas do hemisfério sul, empenhados em formar
sujeitos capazes de resolver problemas, aplicando soluções a partir de sua

3
Figueiredo (2005) destaca, dentre as iniciativas promovidas por órgãos internacionais, a
“Conferência Mundial de Educação para Todos”, que ocorreu em Jomtien, na Tailândia, em 1990,
e que teve como um de seus patrocinadores o Banco Mundial. Dentre os países participantes dessa
Conferência estava o Brasil. Comprometida em erradicar o analfabetismo e a evasão escolar,
principais desafios apontados pelo evento em Jomtien, a Secretaria de Educação Fundamental do
Ministério da Educação iniciou, em 1995, a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


certeza interna – o cogito –, ampliada numa cadeia dedutiva de verdades
adquiridas previamente. O aluno era, nessa perspectiva, auto 118
responsabilizado pelo seu desenvolvimento pessoal e cognitivo, a ser
Mitsunari
verificado por exames padronizados, como os vestibulares. Em contrapartida,
havia um anseio em construir e garantir uma nova sociedade democrática,
mais justa, de uma identidade política plural, conduzindo os alunos na
produção – não passiva, nem mecânica – do conhecimento em sala de aula e
os aproximando de “bens culturais que [lhe] são sonegados e que são um
capital indispensável na luta [...] pela participação no poder” (Soares, 1990,
p. 39).
Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) do ensino médio
(Brasil, 2000), a tensão entre esses distintos interesses é evidenciada
lexicalmente. A expressão “mercado de trabalho” aparece seis vezes,
enquanto “mundo do trabalho” é citado dezesseis vezes. A palavra
“cidadania”, por sua vez, aparece 56 vezes, no sentido de “o conhecimento,
o uso e a produção histórica dos direitos e deveres do cidadão e o
desenvolvimento da consciência cívica e social, que implica a consideração
do outro em cada decisão e atitude de natureza pública ou particular” (Brasil,
2000, p. 21).
Frente a esse embate, “leitura”, mencionada sete vezes no documento,
por vezes, é uma prática de identificação “de um comando ou instrução clara,
precisa, objetiva” (Brasil, 2000, p. 17) para posterior ação sobre a realidade.
Pode, dessa maneira, ser mensurada. Outras vezes, “leitura” está ligada à
construção de um conhecimento socialmente comprometido, dado que

[...] não há conhecimento que possa ser aprendido e recriado se não se


parte das preocupações que as pessoas detêm. O distanciamento entre
os conteúdos programáticos e a experiência dos alunos certamente
responde pelo desinteresse e até mesmo pela deserção que constatamos
em nossas escolas. Conhecimentos selecionados a priori tendem a se
perpetuar nos rituais escolares, sem passar pela crítica e reflexão dos
docentes, tornando-se, desta forma, um acervo de conhecimentos quase
sempre esquecidos ou que não se consegue aplicar, por se desconhecer
suas relações com o real (Brasil, 2000, p. 22).

Nesse último sentido, a leitura não pode ser avaliada como uma
aplicação de uma forma normativa. Seu sentido não se encontra na identidade
de uma forma, mas no significado que adquire em um contexto singular.
Duas décadas mais tarde, na BNCC (Brasil, 2018), “cidadania” tem
46 entradas, enquanto “mercado de trabalho” e “mundo do trabalho” têm,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


respectivamente, quatro e 37. A tensão entre diferentes interesses no ensino
de língua materna se mantém. O modo como os autores do manual escolar 119
elaborado para o Novo Ensino Médio responde a ela, apresentando textos,
Mitsunari
explicações para esses textos e atividades de leitura, define não só o corpo de
saberes que consideram necessários na aula de leitura. Também determina a
natureza do conhecimento construído em sala de aula, em sua relação com o
além de seus muros. É promovida uma cidadania ativa, de engajamento do
aluno em questões de seu tempo-espaço concreto? Ou é privilegiada a
passividade na atividade cidadã, a reprodução de valores preestabelecidos,
em categorias de língua/linguagem superiores e absolutas? São confrontados,
assim, estes dois mundos, frequentemente, incomunicáveis e impenetráveis:
o da cultura e o da vida, “o mundo no qual se objetiva o ato da atividade de
cada um e o mundo em que tal ato realmente, irrepetivelmente, ocorre, tem
lugar” (Bakhtin, 2017b, p. 43).

2 Por uma análise dialógica de manuais escolares


do novo ensino médio: cronotopo de leitura
A noção de arquitetônica (Bakhtin, 2011, 2017b, 2018) fornece um
caminho metodológico para confrontar o mundo da cultura e o mundo da vida
pública representados na seção de leitura, na medida em que permite explorar
os sentidos construídos nas relações interativas entre as representações desses
dois mundos. Valoriza pontos de vistas projetados sobre temas, objetos de
ensino e o aluno nos textos apresentados, nas atividades e nas explicações
fornecidas pelo autor do manual escolar, ao passo que descreve um todo, o
projeto de ensino de leitura voltado à cidadania a que se deu acabamento, a
partir do centro concreto do autor.
Parte-se, desse modo, de um princípio epistemológico que traz a
cultura na perspectiva antropocêntrica. No lugar de conceitos, categorias de
análise e argumentos replicáveis, identificam-se comportamentos éticos e
acontecimentos estéticos inter-relacionados, organizados e desenvolvidos
pela unidade tensamente ativa construída pelo autor. A partir de seu lugar de
exterioridade em relação a seus objetos, o autor lhes dá objetividade estética.
Daí sua consciência ser “a consciência da consciência” (Bakhtin, 2011, p. 11)
de uma obra, isto é, no caso de um romance, em que o objeto é a personagem,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


[...] a consciência que abrange a consciência e o mundo da personagem
com elementos por princípios transgredientes a ela mesma [...]. A
consciência da personagem, seu sentimento e seu desejo de mundo – 120
diretriz volitivo-emocional concreta –, é abrangida de todos os lados,
como em um círculo, pela consciência concludente do autor a respeito Mitsunari
dele e do seu mundo; as afirmações do autor sobre a personagem
abrangem e penetram as afirmações da personagem sobre si mesma. O
interesse vital (ético-cognitivo) pelo acontecimento da personagem é
abarcado pelo interesse artístico do autor. (Bakhtin, 2011, p. 11, grifo
nosso).

No caso da seção de leitura, o interesse do autor do manual escolar


abarca atividades, definições de conceitos e o interesse dos autores dos textos
apresentados para estudo. Esses textos, a despeito de seu contexto de
produção, se incorporam às múltiplas funções que o manual escolar pode
assumir – por exemplo, referencial, de suporte privilegiado de
conhecimentos; instrumental, de aplicação de métodos de aprendizagem,
visando determinados objetivos; e ideológico-cultural, de construção de uma
identidade nacional (Choppin, 2004, p. 553). Passam a obedecer a um tempo-
espaço escolar quando são divididos e hierarquizados em subseções, em
boxes ou em fragmentos em enunciados de atividades. Na unidade didática,
desse modo, eles não se encontram lado a lado, como se não percebessem
uns aos outros. Articulam-se, confrontam-se, de tal modo que seria um
equívoco isolar o texto verbal em detrimento do visual no manual escolar,
tomando esse como uma mera ilustração, cujo objetivo é facilitar a leitura
daquele (cf. Campos, 2012).
O interesse do autor do manual escolar, ao mesmo tempo que organiza
e desenvolve a objetividade estética da seção de leitura, é uma orientação
ética, porque exige que ele compreenda seu dever em relação à formação
cidadã e aos objetos de língua materna – que há algo neles por ser
determinado pelo seu centro concreto único4. Reconhecer essa
responsabilidade pela sua singularidade é uma orientação imperativa da
consciência do sujeito, que transforma o conhecimento humano teórico em
ato realizado (Bakhtin, 2017b). Na arquitetônica, o autor dá sentido aos
significados teóricos dos mundos da cultura e da vida pública, que “ganham

4
Em Para uma filosofia do ato responsável, Bakhtin (2017b) apresenta um problema comum do
pensamento teórico da época moderna: a tentativa de fazer objetos de conhecimento teórico se
passarem como um mundo dado, objetivo – atemporal, a-espacial e a-valorativo –, que não precisa
ser responsavelmente reconhecido por uma unicidade participante. Para o filósofo russo, trata-se de
um equívoco, porque mesmo a lógica formal desenvolvida no terreno do kantismo se revela apenas
com a ação de reconhecimento da veracidade, a partir de um sujeito em defesa de leis internas a um
domínio teórico, que se transformam em meio de defesa racional.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


corpo, enchem-se de sangue” (Bakhtin, 2018, p. 226), à medida que se
tornam tematicamente visíveis em cronotopos. 121

Materialização de tempo-espaço em torno do qual gravitam “as Mitsunari


generalizações filosóficas e sociais, as ideias, as análises das causes e efeitos,
etc.” (Bakhtin, 2018, p. 227), o cronotopo é uma categoria de conteúdo-forma
de acabamento da arquitetônica. Nessa, o tempo se adensa e ganha
corporeidade, tornando-se visível no espaço, desvelando valores. O espaço,
por sua vez, se intensifica e se incorpora ao movimento do tempo de
diferentes modos, para que o conhecimento do homem histórico e real seja
assimilado. Dessa maneira, o cronotopo não corresponde a um léxico
pertencente a um campo semântico de tempo e/ou espaço específico, mas
encaminha-se para a compreensão de como o tempo se constitui no espaço
na construção da obra e como o espaço organiza temporalidades – como o
tempo-espaço se desenvolve e se transforma (Machado, 2010), marcando
posicionamentos axiológicos de um centro concreto e singular. O cronotopo,
assim, permite menos perseguir unidades internas replicáveis e previsíveis,
cujas correlações são lógicas, que descrever acontecimentos ético-estéticos,
organizados e desenvolvidos pela unidade tensamente ativa construída pelo
autor.
Em “As formas do tempo e do cronotopo no romance”, Bakhtin (2018)
descreve como, no âmbito de uma única obra e nos limites da criação de um
autor, podem ser observados vários cronotopos que se interrelacionam:

Os cronotopos podem incorporar-se uns aos outros, coexistir,


entrelaçar-se, permutar-se, confrontar-se, contrapor-se ou encontrar-se
em inter-relações mais complexas. [...] O caráter geral dessas inter-
relações é dialógico (na ampla acepção do termo). Mas esse diálogo não
pode integrar o universo representado numa obra nem em nenhum dos
seus cronotopos (representados): ele está fora do universo representado,
embora não esteja fora da obra como um todo. Ele (esse diálogo) integra
o universo do autor e do intérprete, e o dos ouvintes e leitores. E esses
universos também são cronotópicos (Bakhtin, 2018, p. 229, grifos do
autor).

O cronotopo como categoria de conteúdo-forma, dessa maneira,


desvela como a experiência humana do tempo-espaço ocorre menos de forma
linear e cronológica que em simultaneidades. O cronotopo como categoria de
conteúdo-forma da arquitetônica indica que, nessa experiência, o sujeito não
é passivo, mero espectador. Não reproduz um mundo dado de antemão. Tem,
antes, uma responsabilidade bidirecional (Bakhtin, 2017b): em relação ao

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


conteúdo – deve dar sentido ao conhecimento humano teórico, a partir do
lugar singular de exterioridade que ocupa em uma obra; e em relação ao seu 122
existir – já que não há meios técnicos que resolvam a questão do valor moral
Mitsunari
do dever ser responsável pela sua participação insubstituível em uma obra. A
responsabilidade especial, responsabilidade pelo conteúdo, assim, se faz um
momento da responsabilidade moral: só é possível se a singularidade do
sujeito é dada e, ao mesmo tempo, realmente atualizada por ele.
Como no romance, em que há dois acontecimentos que ocorrem em
tempos e em lugares diferentes – “aquele sobre o qual se narra na obra e o
acontecimento da própria narração” (Bakhtin, 2018, p. 232) –, no manual
escolar, também é possível diferenciar cronotopos do mundo representado
pelo autor dos cronotopos do autor e do leitor. O cronotopo do autor é o ponto
espaço temporal do qual o autor observa os acontecimentos por ele
representados, que não se limite a um presente composicional:

ele os observa a partir da sua contemporaneidade inacabada, com toda


a sua complexidade e plenitude, e além disso ele mesmo se encontra
como que numa tangente à realidade representada. Essa atualidade, de
onde observa o autor, inclui antes de tudo o campo da literatura, e não
só da contemporânea a ele, no sentido estrito da palavra, mas também
a literatura do passado, que continua a viver e a renovar-se na
atualidade. O campo da literatura e – de forma mais ampla – da cultura
(da qual não se pode separar a literatura), compõe o contexto necessário
da obra literária e da posição que o autor ocupa nela, fora do qual não
se pode compreender nem a obra, nem as intenções do autor nela
representadas (Bakhtin, 2018, p. 233).

O cronotopo do leitor, por sua vez, é uma complexa posição cujo papel
é renovador. Em uma das notas publicadas em “Fragmentos dos anos 1970-
1971”, Bakhtin (2017a) trata, ainda que de forma inacabada, da tendência de
se dissolver na consciência do autor a consciência do leitor, com o intuito de
compreender o texto tal qual o autor o compreenda. Esse momento de
coincidência entre as consciências, contudo, não pode existir, porque o leitor
tem, ele mesmo, a vantagem essencial da distância espaço-temporal do autor
– que não é um autor-criador, regido por leis individuais e psicológicas;
tampouco é uma definição acabada e encerrada no texto. É um sujeito ético-
estético, cujos sentidos devem ser (re)criados pelo centro singular concreto
do leitor.
Tanto o cronotopo do autor quanto o cronotopo do leitor nos são dados
na existência material externa da obra, em que o “material da obra não é
morto, mas falante, significante” (Bakhtin, 2018, p. 229). Assim, apesar da

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


impossibilidade de traçar fronteiras intransponíveis entre esses cronotopos e
o mundo representado – porque estão indissoluvelmente ligados um ao outro 123
e se encontram em troca permanente –, por ora, eles ultrapassam os limites
Mitsunari
de nossa investigação. Os cronotopos dos mundos representados pelos
autores de Interação: Português (Sette et al, 2020) na seção “Leitura” da
unidade “Fake news e pós-verdade”, por outro lado, podem ser identificados
no texto “Luiz Fujita: ‘Fake news pode matar’” (Fujita, 2019 apud Sette et
al., 2020, p. 275); em duas ilustrações de marionetes sem título, de autoria de
Hugo Araújo (s/d); em doze questões e em dois boxes. Esses cronotopos, à
medida que constroem representações do mundo da cultura e do mundo da
vida pública, indicam o posicionamento do autor acerca do tema das fake
news e do que deve ser o ensino da leitura. Em suas interrelações, no todo
arquitetônico, promovem determinado tipo de participação cidadã para o
Novo Ensino Médio.

3 Fake news e atuação na vida pública


A unidade 11, “Fake news e pós-verdade”, de Interação: Português
(Sette et al., 2020) visa fazer o aluno “refletir sobre os efeitos negativos das
fake news nas diferentes esferas da vida social e política” e “desenvolver
habilidades para identificar fake news e combater seu compartilhamento”
(Sette et al., 2020, p. 8, grifos nossos). Tenciona, conforme os verbos em
destaque, formar o estudante para uma cidadania ativa. Os cronotopos que
organizam os textos apresentados, as atividades e os boxes que conduzem
sua leitura, no entanto, trabalham entre a universalidade e a singularidade –
entre um mundo à parte de conhecimentos escolares e uma formação que só
pode ser recebida por aqueles que têm conhecimentos que o manual escolar
não fornece. A cidadania ativa, desse modo, concerne apenas a alguns alunos
– é excludente.
A seção “Leitura” dedica-se ao estudo de “Luiz Fujita: ‘Fake news
pode matar’”, publicado no site do Correio do Estado em 10 de janeiro de
2019. Na primeira página da seção, esse texto é reproduzido. Na fonte de
pesquisa, indicada abaixo do texto, os autores do manual escolar atribuem
sua autoria à Luiz Fujita, editor do Portal Drauzio Varella. Na seção “Artigos
e opinião” do site do Correio do Estado, no entanto, constata-se que o artigo

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


é de autoria de Bruna Aquino5, o que torna mais compreensível o discurso
direto atribuído ao jornalista no título do texto. O nome desse jornalista, desse 124
modo, funciona, no manual escolar, no título e como suposto autor, como
Mitsunari
uma formar de validar o ponto de vista expresso no texto apresentado.
Segundo Bruna Aquino, as fake news, que se tornaram um problema
flagrante nas eleições de 2018, com o uso desmedido do aplicativo
WhatsApp, são, na verdade, “um desafio antigo para quem trabalha com
saúde”. A medicina, há tempos, lida com a disseminação de “dietas
milagrosas”, feitas com “alguma fruta pouco conhecida no Brasil [que] opera
milagres”. Ela conclui:

Não foi na base do boca a boca que a medicina (e a ciência como um


todo) se desenvolveu enormemente, principalmente a partir do século
19. O modelo científico, que coloca cada descoberta à prova com regras
rígidas, é o que torna possível você tomar um comprimido com
segurança e se ver livre de uma dor de cabeça ou tomar uma vacina e
não pegar uma doença gravíssima, como a poliomielite (Fujita, 2019
apud Sette et al., 2020, p. 275, grifos nossos).

O texto apresentado, dessa forma, contrasta duas fontes de


conhecimento: a que é disseminada “boca a boca” – e que representa um
mundo acidental e irresponsável; e a que é colocada “à prova com regras
rígidas” do modelo científico, que representa “um mundo infinito inteiro na
sua totalidade, que pode ser conhecido somente objetivamente” (Bakhtin,
2017b, p. 109). Duas ilustrações de marionetes, sem título, de autoria de
Hugo Araújo (s/d), são apresentadas na seção de leitura ao lado direito do
artigo e endossam o posicionamento do texto jornalístico em relação ao
conhecimento disseminado “boca a boca” – é uma forma de manipulação
perigosa, cujas consequências são um problema de saúde pública:

5
O título “Luiz Fujita: ‘Fake news em saúde pode matar’”, a ausência de marcas de um discurso
direto ou de um discurso indireto de Fujita no corpo do artigo e o uso da primeira pessoa do plural
em “O caso mais notório que enfrentamos foi quando começou a circular um vídeo em que uma
mulher colocava na boca do dr. Drauzio Varella a ‘informação’ de que mamografias poderiam
prejudicar a tireoide” fazem com que no próprio site do Correio do Estado se tenha a impressão de
que a opinião expressa é do jornalista e, não, de Aquino. Fonte:
https://correiodoestado.com.br/cidades/artigos-e-opiniao/luiz-fujita-fake-news-em-saude-pode-
matar/344873/ Acesso em: 13 abr. 2023.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Figura 1 – Ilustração 1 de marionete

125

Mitsunari

Fonte: Sette et al., 2020, p. 275

Figura 2 – Ilustração 2 de marionete

Fonte: Sette et al., 2020, p. 276

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Em ambas as ilustrações, o boneco é controlado por mãos suspensas,
ou seja, não se sabe quem o controla – assim como não se sabe a procedência 126
do conhecimento transmitido “boca a boca”. Na primeira ilustração, a
Mitsunari
marionete tem toda a sua atenção voltada para um celular. Indica-se, dessa
forma, o contexto de recepção das fake news – “do conhecimento não
colocado à prova com regras rígidas” (Fujita, 2019 apud Sette et al., 2020, p.
275): a internet, à qual se tem acesso por meio de aparelhos eletrônicos, como
o que a marionete tem em sua mão. Já na segunda ilustração, o boneco
manipulado é levado a consumir pílulas e um comprimido, também presos às
mãos suspensas. Trata-se, assim, do consumo irrefletido de medicamentos,
sob influência do conhecimento “boca a boca” transmitido on-line,
indicando-se as consequências negativas dessa fonte de conhecimento para a
saúde pública.
Depois do artigo e das ilustrações, há uma sequência de doze questões.
Nas questões 1 a 8, o foco recai na identificação: do público-alvo do texto;
do gênero do texto – que não fora objeto de ensino do manual escolar até
então; da tese, do tópico frasal; da argumentação apresentada no sétimo
parágrafo; e da estratégia utilizada para concluir texto. No fim das questões
3 e 4, são apresentadas definições de tese e de refutação – respectivamente,
“ponto de vista sobre o tema a ser desenvolvido” e “elemento retórico em
que se contestam argumentos contrários” (Sette et al., 2020, p. 276).
Privilegia-se, dessa maneira, a classificação replicável em análise linguística,
o conhecimento teórico de um mundo atemporal e a-espacial, que não precisa
ser responsavelmente reconhecido por uma unicidade participante.
Nas questões 9 e 10, pede-se ao estudante para explicar a função de
duas questões retóricas retiradas do texto e ordenar os argumentos
apresentados por Fujita quanto à sua “força para persuadir pessoas”. Ainda
que se pressuponha que o aluno tenha conseguido definir o público-alvo do
artigo de opinião anteriormente, a generalidade de “pessoas”, nesse
exercício, estabelece um parâmetro universal – atemporal e a-espacial – de
interlocução e não considera que centros concretos únicos organizam
ativamente as situações, conectando sujeitos como coparticipantes, que
conhecem, compreendem e avaliam de maneiras diferentes essas situações.
As duas últimas questões, 11 e 12, referem-se à linguagem do artigo e
se diferenciam dos dez exercícios que as precedem: a questão 11 exige que o
estudante identifique traços da linguagem informal no texto e interprete o

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


efeito produzido por esses traços. Na questão 12, o aluno deve explicar a
concordância verbal empregada no título do artigo – “Luiz Fujita: ‘Fake news 127
em saúde pode matar’”. Ainda que não isolem aspectos semânticos e
Mitsunari
estilísticos da língua, essas questões se referem a um tempo-espaço singular
– do conhecimento humano teórico transformado em ato realizado pela
orientação imperativa do leitor. Esse cronotopo – o mundo da cultura – é
distanciado do aluno, na medida em que se exige dele uma reflexão para a
qual ele não foi preparado ao longo da seção de leitura.
No fim da seção, há dois boxes, apresentados lado a lado. No primeiro,
sem título, define-se o artigo de opinião como um gênero jornalístico
argumentativo, escrito por uma voz de autoridade, que apresenta seu ponto
de vista acerca de um tema da atualidade. Em seguida, são listados três
estratégias de convencimento empregadas no gênero: 1. argumento de
autoridade; 2. exemplificação; 3. causa e consequência. Seja por esse
conhecimento teórico de um mundo atemporal e a-espacial, que não precisa
ser responsavelmente reconhecido por uma unicidade participante, seja pelo
contexto de produção apresentado, o aluno é distanciado do gênero. Nos doze
exercícios de leitura ao longo da seção, ele foi auto responsabilizado pelo seu
desenvolvimento escolar. Caso tenha tido dificuldades, nesse boxe, lhe é dito
que o gênero argumentativo, que a defesa de um ponto de vista acerca de um
tema da atualidade não lhe concerne. Enquanto objeto de estudo, assim, o
artigo de opinião o distancia do mundo da cultura. Enquanto espaço da
argumentação, da defesa do ponto de vista, o gênero distancia o estudante do
mundo da vida pública, do exercício da cidadania.
No segundo boxe, intitulado “Pós-verdade”, é como se lhe fosse
demarcado seu lugar de distância em relação ao mundo da cultura e ao mundo
da vida pública. Há um trecho do artigo de opinião “O mundo da pós-
verdade”, de Luiz Claudio Latgé, publicado no site do jornal O Globo, em 26
de novembro de 2016. Nesse trecho, define-se a pós-verdade:

Pela definição do dicionário, pós-verdade quer dizer “algo que denota


circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência para
definir a opinião pública do que o apelo à emoção ou crenças pessoais”.
Em outros termos: a verdade perdeu o valor. Não nos guiamos mais
pelos fatos. Mas pelo que escolhemos ou queremos acreditar que é a
verdade (Sette et al., 2020, p. 277).

Ao se opor fatos objetivos e crenças pessoais, confrontam-se,


novamente, estes dois mundos: “um mundo infinito inteiro na sua totalidade,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


que pode ser conhecido somente objetivamente” e um mundo “singular
acidental” (Bakhtin, 2017b, p. 109). Ora, se até então, na seção, o estudante 128
não pôde identificar fatos objetivos, se até então lhe foi mostrado que não
Mitsunari
tem afinidade com um conhecimento teórico universal – à medida que os
autores do manual escolar o exigem dele, mas não lhe oferecem –, ele está
mais próximo das crenças pessoas, do mundo “singular acidental”.
Na seção “Leitura” da unidade “Fake news e pós-verdade” de
Interação: Português (Sette et al., 2020), dessa maneira, podem ser
identificados três cronotopos. O primeiro é um tempo-espaço pretensamente
atemporal, a-espacial e a-valorativo, relacionado à ciência, à voz do
especialista jornalista, ao conhecimento teórico universal exigido nos
exercícios, aos fatos objetivos, à verdade. O segundo é um tempo-espaço
singular – do conhecimento humano teórico transformado em ato realizado
pela orientação imperativa do leitor, do espaço de argumentação, da defesa
de ponto de vista. Já o terceiro é um tempo-espaço particularizante, relativo
ao conhecimento transmitido “boca a boca”, às fake news que circulam on-
line, às crenças pessoais, ao mundo singular acidental da pós-verdade.
O primeiro e o terceiro cronotopos, ao passo que se afastam da
realidade do aluno, desvelam que os textos apresentados, os exercícios e os
boxes que conduzem sua leitura foram organizados em torno de valores
específicos de empreendedorismo e de cidadania em tensão. O estudante
deve ser responsável pelo seu próprio desenvolvimento escolar, deve-se
empenhar para resolver os desafios propostos pelos exercícios da seção de
leitura, a partir de sua certeza interna – o cogito –, ampliada numa cadeia
dedutiva de verdades adquiridas previamente. Privilegia-se, desse modo, o
esforço e o mérito individual – valores do empreendedorismo – na construção
do conhecimento. A participação cidadã proposta para o Novo Ensino Médio
pelos autores do manual escolar, desse modo, ainda que seja ativa, é
excludente, não visa construir a escola como um espaço de transformação
social, colocando todos em igualdades de condições para reivindicar e
consolidar direitos civis e políticos, conforme se idealiza desde o período de
redemocratização do país (Possenti, [1984] 2011; Soares, 1990; Lajolo,
1995).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Considerações finais
129
A análise da seção “Leitura” da unidade “Fake news e pós-verdade”
de Interação: Português (Sette et al., 2020) a partir do conceito de cronotopo Mitsunari
permitiu identificar três formas de tempos-espaços:
1. Tempo-espaço pretensamente atemporal, a-espacial e a-
valorativo, relacionado à ciência, à voz do especialista jornalista,
à classificação replicável em análise linguística, aos fatos
objetivos, à verdade. Esse cronotopo dá uma conclusibilidade
semântico-objetal ao tema das fake news e permite que os autores
preestabeleçam categorias de leitura e de análise de texto
objetiváveis. No entanto, promove um leitor que não é
responsável em relação ao conteúdo do texto que lê – o
conhecimento é teórico e universal, portanto, não necessita ser
responsavelmente reconhecido pelo sujeito participante.
2. Tempo-espaço singular, do conhecimento humano teórico
transformado em ato realizado pela orientação imperativa do
leitor, do espaço de argumentação, da defesa de ponto de vista.
Uma vez que são o êxito nos exercícios e a identificação do
contexto de produção do artigo de opinião que o constroem, mas
esses dependem de uma experiência prévia ao manual escolar, o
aluno é, nesse cronotopo, afastado tanto do mundo da cultura
quanto do mundo da vida pública.
3. Tempo-espaço particularizante, relativo ao conhecimento
transmitido “boca a boca”, às fake news que circulam on-line, às
crenças pessoais, ao mundo singular acidental da pós-verdade.
A compreensão da seção de leitura como uma forma arquitetônica
possibilitou traçar relações entre esses cronotopos no todo arquitetônico, que
desvelaram que tipo de leitura e de participação cidadã se promovem para o
Novo Ensino Médio. O cronotopo particularizante em oposição ao cronotopo
pretensamente atemporal, a-espacial e a-valorativo localiza o estudante que
não pôde identificar fatos objetivos ou afinidade com um conhecimento
teórico universal no mundo das crenças pessoais, do mundo “singular
acidental”. Já o contraste entre o cronotopo pretensamente atemporal, a-
espacial e a-valorativo e o cronotopo singular revela que a participação
cidadã proposta pode ser ativa. Ela diz respeito, no entanto, somente àqueles

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


que são capazes de receber uma formação que só pode ser recebida por quem
têm a formação que a seção não fornece. Trata-se de uma concepção de 130
cidadania excludente, que não visa proporcionar condições para todos os
Mitsunari
estudantes defenderem seus pontos de vista, reivindicarem e consolidarem
seus direitos civis e políticos, conforme se idealiza desde o período de
redemocratização do país (Possenti, [1984] 2011; Soares, 1990; Lajolo,
1995).
Os conceitos de arquitetônica e de cronotopo, portanto, são úteis para
o trabalho do professor de Língua Portuguesa com o manual escolar, que é
mais profundo que a simples identificação de (in)adequações na didatização
de conceitos e na transposição de determinações de documentos oficiais.
Permitem que ele identifique no como esses conceitos e essas determinações
são apresentadas um acabamento ético, estético e epistemológico dos autores,
que se posicionam diante das perguntas: o que deve ser objeto de reflexão de
um ensino de leitura voltado à cidadania? Como deve ser conduzido esse
trabalho de leitura? A que perfil de aluno me dirijo no quê e no como
apresento na seção de leitura? Tanto na elaboração do manual escolar quanto
no trabalho com o manual escolar, não há teoria separada de prática.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, Mikhail.
Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2011, p. 3-194.
BAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas
sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo
Bezerra. São Paulo: 24, 2017a.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Organização Augusto Ponzio
e Grupo de Estudos do Gênero do Discurso – GEGE/UFScar. Tradução aos cuidados de
Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos, Pedro&João, 2017b.
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do Romance II. As formas do tempo e do cronotopo. Tradução,
posfácio e notas Paulo Bezerra. Organização da edição russa Serguei Botcharov e Vadim
Kójinov. São Paulo: 34, 2018, p. 11-236.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Base Nacional Comum
Curricular: Educação Infantil e Ensino Fundamental. Brasília: MEC/SEB, 2018.
BRASIL. Lei n. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis n º 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, e 11.494, de 20 de junho 2007; revoga a Lei n 11.161, de 5 de agosto
de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em
Tempo Integral. Brasília, 2017.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Ensino Médio. Brasília: MEC/SEF, 2000.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


BUNZEN, Clécio. Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto
no ensino médio. In: BUNZEN, Clécio; MENDONÇA, Márcia (Orgs.). Português no
ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola, 2006, p. 139-162. 131

CAMPOS, Maria Inês Batista. A questão da arquitetônica em Bakhtin: um olhar para Mitsunari
materiais didáticos de língua portuguesa. Filologia e linguística portuguesa, n. 14, v. 2, p.
247-263, 2012. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2176-9419.v14i2p247-263.
CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte.
Educação e pesquisa, v. 30, n. 3, p. 549-566, set./dez. 2004. DOI:
https://doi.org/10.1590/S1517-97022004000300012.
COSTA, Maria Izabel Sanches; IANNI, Aurea Maria Zöllner. O conceito de cidadania. In:
COSTA, Maria Izabel Sanches; IANNI, Aurea Maria Zöllner. Individualização, cidadania
e inclusão na sociedade contemporânea: uma análise teórica. São Paulo: Editora UFABC,
2018, p. 43-73.
DUBET, François. Mutações cruzadas: a cidadania e a escola. Tradução Ione Ribeiro Valle.
Revisão técnica Anne-Marie Milon Oliveira. Revista Brasileira de Educação, v. 16, n. 47,
p. 289-305, maio/ago. 2011. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-24782011000200002.
FERNANDES, Carolina; SANTOS, Matheus Rodrigues dos. O processo de significação
de cidadão/cidadania no contexto de redemocratização. Caderno de Letras, edição especial,
p. 111-135, 2022. DOI: https://doi.org/10.15210/cdl.v0i0.22626.
FIGUEIREDO, Laura Inês Breda de. Gêneros discursivos/textuais e cidadania: um estudo
comparativo entre os PCN de língua portuguesa e os Parâmetros em Ação. Dissertação
(Mestrado em Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas) – Programa de Pós-graduação
em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 2005.
GENTILI, Pablo Antonio Amadeo. Neoliberalismo e educação: manual do usuário. In:
GENTILI, Pablo Antonio Amadeo; SILVA, Tomaz Tadeu da. Escola S.A. Quem ganha e
quem perde no mercado educacional do neoliberalismo. Brasília: CNTE, 1996, p. 9-49.
GERALDI, João Wanderley. Por que práticas de produção de textos, de leitura e de análise
linguística? In: SILVA, Lilian Lopes Martin da; FERREIRA, Norma Sandra de Almeida;
MORTATTI, Maria do Rosário Longo (Orgs.). O texto na sala de aula: um clássico sobre
o ensino de língua portuguesa. Campinas: Autores Associados, 2014. p. 207-221.
LAJOLO, Marisa Philbert. Educação e cidadania. Jornal da Tarde, São Paulo, p. 4 - 4, 25
nov. 1995.
MACHADO, Irene. A questão espaço-temporal em Bakhtin: cronotopia e exotopia. In:
PAULA, Luciane de.; STAFFUZA, Grenissa. (Orgs.). Círculo de Bakhtin: teoria
inclassificável. São Paulo: Mercado de Letras, 2010, p. 1-19.
MAIA, Tatyana de Amaral. Civismo e cidadania num regime de exceção: o conhecimento
histórico ensinado e seus usos políticos na ditadura civil-militar (1969-1985). In: XXVII
Simpósio Nacional de História, 2013, Natal. Anais. São Paulo: ANPUH, 2013, v. 1, p. 1-
13. Disponível em: http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1363710953_
ARQUIVO_artigoANPUHTatyanaMaia.pdf. Acesso em: 24 jun. 2023.
PALMA, Dieli Vesaro; FRANCO, Maria Ignez Salgado de Mello. A década de 1980: suas
características principais. In: BASTOS, Neusa Maria; PALMA, Dieli Vesaro (Orgs.).
Língua Portuguesa na década de 1980: linguística, gramática, redação e educação. São
Paulo: Terracota, 2018, p. 9-28.
POSSENTI, Sírio. Gramática e política. In: GERALDI, João Wanderley (Org.). O texto na
sala de aula. São Paulo: Ática, [1984] 2011, p. 53-62.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


RIO DE JANEIRO. Ministério do Estado de Educação e Cultura. Nomenclatura
Gramatical Brasileira. Rio de Janeiro, 1958.
132
ROCCO, Maria Thereza. Crise na linguagem: a redação no vestibular. São Paulo: Mestre
Jou, 1981. Mitsunari
ROJO, Roxane Helena. Gêneros de discurso/texto como objeto de ensino de línguas: Um
retorno ao trivium? In: SIGNORINI, I. (Org.). [Re]Discutir texto, gênero e discurso. São
Paulo: Parábola, 2008, p. 73-108.
ROJO, Roxane Helena. Letramento e capacidades de leitura para a cidadania. São Paulo:
Rede do Saber/CENP_SEE-SP, 2004.
ROLDÃO, Maria do Céu. O lugar das competências no currículo – ou o currículo enquanto
lugar das competências? Educação Matemática Pesquisa, v. 11, n. 3, p. 585-596, 2009.
Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/emp/article/view/2833. Acesso em: 23
jun. 2023.
SETTE, Graça; RIBEIRO, Ivone; TRAVALHA, Márcia; BITAL, Nara. Interação:
Português. São Paulo: Editora do Brasil, 2020.
SOARES, Magda Becker. Universidade, Cidadania e Alfabetização. Caminhos, Belo
Horizonte, n.1, p. 37-41, 1990.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


133

Leite

A dimensão ideológica e as
discursividades cronotópicas
em O cometa é um sol que não
deu certo
The ideological dimension and the chronotopic discursivities in
O cometa é um sol que não deu certo

Viviane Mendes Leite 1 Introdução


Universidade de São Paulo, Brasil
Uma das faces mais cruéis
do capitalismo reacionário e do
liberalismo é revelada no século
XXI: os deslocamentos forçados.
Segundo dados fornecidos pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR)1, houve um aumento expressivo de refugiados em
2021 (89, 3 milhões) em relação a 2020 (82,4 milhões). Segundo o Fundo
das Nações Unidas para Crianças (UNICEF)2, o número de crianças
refugiadas, em 2022, é de 37 milhões, recorde desde a Segunda Guerra
Mundial. À medida que os números crescem, o tema ganha espaço no cenário
nacional e, paradoxalmente, há um apagamento velado, sobretudo no âmbito
educacional, como se fosse distante de nossa realidade.

1
Dados disponíveis em: https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/ Acesso em: 20
fev.2022.
2
Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/186958-unicef-aponta-recorde-de-37-milhoes-de-
criancas-deslocadas. Acesso em: 03 dez. 2022.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Diante desse cenário, elegemos a narrativa juvenil cujo tema aborda o
drama daqueles que estão em movimento, em busca de refúgio. Os dados por 134
si só direcionaram nosso interesse em compreender os discursos e os lugares
Leite
e não-lugares desse "outro-refugiado". Tendo em vista essa que é uma das
crises humanitárias que afeta milhares de pessoas, apresentamos um
exercício de análise com a obra do autor recifense Tadeu Sarmento, com
ilustrações do paulista Apo Fousek, O cometa é um sol que não deu certo3
(Sarmento, 2017). Nesse exercício, objetivamos mobilizar conceitos
bakhtinianos para compreender os discursos que atravessam o signo
ideológico "refugiado" e as posições valorativas linguisticamente marcadas.
À medida que examinamos a obra de Sarmento, estabelecemos uma
relação direta com o acontecimento social, por isso, fez-se necessário um
resgate da realidade, materializada na primeira página do jornal Folha de S.
Paulo. Dessa maneira, como Janus Bifronte (Bakhtin, 2020, p. 43),
apontando para duas direções, investigamos as aproximações e os
distanciamentos entre arte e vida. Três questões norteiam a análise
apresentada: 1) De que maneira os elementos enunciativos-linguísticos
constroem uma imagem desse "outro-refugiado"? 2) Como os discursos que
remetem ao signo "refugiado" estão marcados axiologicamente? 3) Como o
diálogo entre arte e vida é materializado no texto? Para respondê-las,
recorremos ao conceito de cronotopo (Bakhtin, 2018).
Na obra de Sarmento, o leitor conhece o drama do protagonista
Emanuel, menino sírio, que sobrevive com sua família em um campo de
refugiados na Jordânia. A escolha deve-se pelo número expressivo de
refugiados sírios no mundo: 5,5 milhões4 de pessoas, segundo o ACNUR. O
texto de Sarmento destaca-se pela perspectiva de um autor brasileiro que
encarna a dor do outro no espaço hostil que é o campo de refugiados,
assumindo um posicionamento ético, responsivo e responsável frente a essa
crise.
O tema ganha consistência também pela visibilidade midiática e
artística. No dia Mundial do refugiado (20 de junho), a agência da
Organização das Nações Unidas (ONU) elencou mais de oito filmes e séries
para entender a crise humanitária dos refugiados, a maioria disponível no
3
https://www.smeducacao.com.br/wp-content/uploads/2021/07/O-COMETA-EH-UM-SOL-QUE-
NAO-DEU-CERTO_degustacao.pdf
4
Dados disponíveis em: https://www.acnur.org/portugues/quem-ajudamos/refugiados/ Acesso em
10 dez. 2022.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


streaming Netflix. O tema também ganhou destaque na 17ª edição da Feira
Literária Internacional de Paraty (FLIP, 2019), com autores refugiados e 135
mesas de debates em torno de livros literários, inclusive, infantis e juvenis.
Leite
Além disso, na cidade de São Paulo, há o Museu da Imigração5, que abriga
exposições permanentes e temporárias com a temática da migração.
Apesar dessa forte presença, sobretudo nos campos artístico e
midiático, esse tema é pouco discutido na esfera educacional. A ideia do
exílio ainda é trabalhada de forma romantizada, conforme reflete Tihanov
(2013).
Diversos fatores colaboram com crise dos refugiados, guerras civis,
diferenças ideológicas e religiosas traçam fronteiras invisíveis, contribuindo
cada vez mais com o número de deslocamentos forçados. Segundo o
ACNUR, sob seu mandado, no segundo semestre de 2021, mais de 20,8
milhões de pessoas estavam em situação de refúgio, 172 mil pessoas a mais
que no ano anterior. Os números refletem a urgência do debate sobre os
deslocamentos forçados na sociedade.
Os dados estatísticos correspondem à triste realidade dessa crise
humanitária e contrastam com a ideia neoliberal de intervenção mínima do
Estado e do crescimento por meritocracia, criando uma realidade distópica
em que as pessoas são invisíveis e apagadas, ou, como nomeia Zygmunt
Bauman, "estranhos":

Refugiados da bestialidade das guerras, dos despotismos e da


brutalidade de uma existência vazia e sem perspectivas têm batido à
porta de outras pessoas desde o início dos tempos modernos. Para quem
está por trás dessas portas, eles sempre foram – como são agora –
estranhos. Estranhos tendem a causar ansiedade por serem diferentes –
e, assim, assustadoramente imprevisíveis, ao contrário das pessoas com
as quais interagimos todos os dias e das quais acreditamos saber o que
esperar (Bauman, 2017, p. 13).

Entre os números incontestáveis e as pessoas "desconhecidas", o


limiar de nossa humanidade. Existe a possibilidade de enxergar o outro em
sua singularidade, sem deixar que a ansiedade pelo desconhecido nos torne
indiferentes? Se há essa possibilidade, com certeza é na clareza de quem são
essas pessoas e no debate aberto na sociedade.

5
https://museudaimigracao.org.br/visite-o-museu. Acesso em: 04 ago. 2023.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Nesse olhar que aponta para duas esferas discursivas diferentes, o
sofrimento humano é o ponto em comum. Os resultados indicam a 136
pluralidade de vozes sociais na narrativa que articula vida e arte e materializa
Leite
essa articulação, dando protagonismo para aqueles cujas vozes são muitas
vezes silenciadas. Na outra direção, a notícia, que estampa a primeira página
do jornal, contribui para esse silenciamento, apassivando esse "outro-
refugiado".
Para cumprirmos nosso propósito, este artigo está organizado em três
seções que se complementam: na primeira seção, abordamos o conceito de
cronotopo, postulado por Bakhtin; na segunda seção, apresentamos a obra
selecionada e, na terceira seção, a análise de trechos selecionados da obra de
Sarmento. As considerações finais arrematam o artigo.

2 Tempo e espaço na perspectiva bakhtiniana


Um dos eixos norteadores da teoria bakhtiniana é a ruptura com a
imanência abstrata da língua. Os conceitos mobilizados pelos membros do
Círculo de Bakhtin engendram a ética, a estética e o epistemológico em
direção à linguagem humana. Esses conceitos são atravessados pela
alteridade e pela dimensão ideológica que estruturam o pensamento
bakhtiniano, numa arquitetônica discursiva que, muitas vezes, rompe os
limites da linguística e das Ciências Humanas.
Um desses conceitos centrais é recuperado a partir da teoria da
relatividade de Albert Einstein, publicada em 1905, cujo princípio confronta
a teoria de Newton, apresentando a indissolubilidade entre tempo e espaço.
Partindo dessa teoria, Bakhtin passa a analisar o romance, neste caso
especificamente, o grego, sob a perspectiva do cronotopo, ou seja, da relação
espaço-temporal.
O filósofo russo atravessa a fronteira das Ciências Humanas para
arquitetar a relação indissolúvel entre tempo e espaço. Esse movimento
interdisciplinar parte da teoria einsteiniana para compreender os discursos
produzidos, ou seja, não se trata de tempo e espaços vazios, mas que possuem
vozes sociais e históricas que compõem discursividades. Nas palavras de
Morson e Emerson (2008, p. 384): "[...] um cronotopo é uma maneira de
compreender a experiência; é uma ideologia modeladora de forma específica
para a compreensão da natureza dos eventos e ações". Essas vozes são

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


axiologicamente marcadas, ou seja, reverberam um posicionamento que
remete a uma dimensão ideológica (científica, religiosa, jurídica). Cabe 137
salientar que a ideologia, na perspectiva bakhtiniana, está no embate, nos
Leite
diferentes pontos de vista que se materializam no enunciado, conforme
destaca Amorim:

Na maioria de seus escritos, este termo designa simplesmente um ponto


de vista, uma visão de mundo. Visão que não é individual, mas cuja
natureza social não se define necessariamente por uma relação de
classes. Ela é própria a cada grupo social e sua especificidade pode ser
de classe, mas também de profissão ou geração. Uma voz é sempre
ideológica porque ela traz um ponto de vista constituído num
determinado lugar e não em outro. Mas esse lugar pode muitas vezes
designar um tempo e não uma classe (Amorim, 2004, p. 143).

De maneira esclarecedora, Amorim distingue o conceito de ideologia


na percepção de Bakhtin, destacando a valoração por meio do ponto de vista
e do apelo ao social, posto que o filósofo se opõe ao individualismo abstrato,
articulando a vida vivida ao campo teórico.
Bakhtin parte dos textos da Antiguidade para analisar o conceito de
cronotopo. Destaca que a questão temporal nesses textos é tão enraizada que,
mesmo nos dias atuais, não há praticamente acréscimos feitos a ele. Bakhtin
esclarece que esses romances apresentam os mesmos elementos, chamados
de motivo, que pode ser esquematizado: casal de jovens, cuja origem é
desconhecida, dotados de beleza rara e castos, se encontram subitamente, em
festa solene, acontece uma paixão repentina e instantânea mútua, como um
fado, mas algum obstáculo os separam, um procura ao outro e, finalmente,
eles se reencontram e se casam. O autor destaca que esse esquema sofre
algumas alterações na quantidade ou peso desses elementos, mas seguem
esse motivo, sendo o “[...] esquema dos momentos basilares do enredo”
(Bakhtin, 2018, p. 17).
O autor salienta que a ação se desenrola num amplo e variado espaço
geográfico, há inclusão de uma reflexão política, religiosa, filosófica,
científica, animais exóticos, curiosidades raras. Bakhtin aponta para a
importância do discurso das personagens (construídos sob a retórica tardia)
que tende a um enciclopedismo, característico ao gênero. Segundo ele, essas
características apresentavam-se em outros gêneros da literatura, como a
epopeia antiga ou gêneros retóricos. Nas palavras do autor, o romance grego
"[...] empregou e refundiu em sua estrutura quase todos os gêneros da
literatura antiga" (Bakhtin, 2018, p. 18).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


É com base no romance grego que Bakhtin articula os elementos
espaço-temporais, apontando as vozes ressoadas no texto, a ideologia 138
circundante e, com isso, as discursividades produzidas, axiologicamente
Leite
marcadas.

O cronotopo determina a unidade artística de uma obra literária em sua


relação com a autêntica realidade. Por isso, numa obra, o cronotopo
sempre inclui o elemento axiológico, que só numa análise abstrata pode
ser destacado do conjunto do cronotopo artístico (Bakhtin, 2018, p. 217,
grifo meu).

Nas palavras do filósofo russo, a marca axiológica constitui a unidade


cronotópica da obra, que não pode ser desconsiderada. "A arte e a literatura
estão impregnadas de valores cronotópicos de diferentes graus e dimensões.
Cada motivo, cada elemento da obra ficcional a ser destacado é um valor"
(Bakhtin, 2018, p. 217).
Cabe ressaltar que, além do elemento axiológico, o caráter dialógico é
constitutivo, posto que há interação entre cronotopos no texto. Ao tratar do
cronotopo do autor e do leitor, Bakhtin destaca essas relações como
integrantes do autor/intérprete e do ouvinte/leitor. A mobilização
heterodiscursiva, os valores, a presença do outro e as relações dialógicas
arquitetam a construção cronotópica da obra. Esse caráter dialógico também
integra autor e leitor/ouvinte, e esse universo também é cronotópico. A
concepção de Bakhtin sobre a relação tempo-espaço não é uma relação
abstrata, mas engendrada por discursos sociais que, por sua vez, revelam um
posicionamento, axiologicamente marcado. Nessa abordagem, as esferas
ideológicas são reveladas e materializadas por meio dos elementos
linguísticos.
Nesse cronotopo, além do tempo e do espaço localizado no tempo, há
o conhecimento que flui dele. O texto não é morto, pois ressoa as vozes
humanas, de forma que, em qualquer parte de sua criação (do manuscrito ao
livro), já temos a fronteira entre a natureza morta e a cultura. No tempo
situado do texto, temos também o tempo e o espaço daquele que o criou.
Esses homens reais – criadores da obra de arte – situam-se em determinado
tempo e espaço e encontram-se – criador e ouvinte-leitor – em diferentes
cronotopos. Eles recriam, renovam e participam desse mundo representado
(a obra).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Bakhtin alerta para não confundirmos o mundo real com o
representado, o autor-criador com o autor-pessoa. No entanto, esses estão 139
indissoluvelmente ligados e estão em interação.
Leite
A obra e o mundo nela representado entram no mundo real e o
enriquecem, e o mundo real entra na obra e no mundo representado
tanto no processo de sua criação como no processo de sua vida
subsequente, uma renovação permanente pela recepção criado dos
ouvintes-leitores (Bakhtin, 2018, p. 231).

O cronotopo do mundo representado é considerado como o cronotopo


dos leitores e dos criadores da obra: é a interação entre o universo
representado e o universo que representa. Dessa forma, o autor ressalta que
estamos diante de dois cronotopos diferentes que estão dialogicamente
ligados. O campo da cultura compõe o contexto para a posição que o autor
ocupa fora dele. Essa relação do autor com a cultura é dialógica e pressupõe
o outro, leitor.
Nessa abordagem alteritária que atravessa toda a teoria dialógica,
Bakhtin sinaliza dois mundos: mundo da cultura e da vida, e diante desses
dois mundos, o ato da atividade olha como Janus bifronte, ou seja, um olhar
em duas direções, que tem como fundamento a articulação entre a teoria, com
sua abstração e generalidades, e a vida concreta, constituída de
singularidades. Nesse sentido, revela-se também a articulação entre o
conhecimento universal e válido para o ser. Nessa abordagem, a teorização
não pode apagar o singular. O vínculo entre sujeito concreto e seu agir, do
saber teórico e do estético, dos valores e da verdade é construído em um
determinado tempo e espaço.
A teoria bakhtiniana nos impulsiona a repensar a narrativa juvenil para
além da fruição. Na tessitura narrativa, há sempre a responsabilidade do ser
único que assume seu lugar no mundo e, essa unicidade, implica em sua
assinatura, seu agir no mundo. Teórico e estético integram o todo de um ato
responsável que seu autor assume, integrando o conhecimento, a arte e a vida.
A partir desse constructo teórico-metodológico, analisamos partes da
obra de Sarmento e a primeira página do jornal, assinalando vozes
materializadas no texto que encarnam a dor e o sofrimento alheio. O tempo e
o espaço dão vazão às esferas ideológicas e ao heterodiscurso na narrativa
juvenil, revelando as camadas discursivas que remetem a diferentes
ideologias, impregnadas na materialidade linguística.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


3 Por dentro da obra O cometa é um sol que não
deu certo 140

Em O cometa é um sol que não deu certo, vencedor do 13º Prêmio Leite
Barco a Vapor6 em 2017, Sarmento dá vida e voz ao protagonista Emanuel,
um garoto sírio bondoso que “guarda o sol nos olhos como um disco
luminoso flutuando na escuridão” (Sarmento, 2017, p. 9). Como outras
crianças sírias, ele vive com sua família (seu pai, Youssef, sua mãe, Hosana,
sua irmã grávida cujo marido foi morto em um bombardeio) no campo para
refugiados na Jordânia. Apesar das dificuldades nesse ambiente hostil,
Emanuel traz consigo a esperança de dias melhores. No campo, vivencia
experiências infantis com seus amigos – Kalil, Nabir e a inquieta Amal, por
quem nutre um sentimento especial.
Na capa do livro, o texto verbo-visual apresenta o cometa com cores
quentes, fazendo alusão às cores do sol, complementando o sentido do título.
O fundo com tom azul escuro remete ao céu, e na parte inferior, no canto
direito, silhuetas humanas, quase imperceptíveis, estão no topo, como se
observassem o cometa. O mesmo traçado de linhas utilizado para o cometa é
utilizado para a montanha, como se céu e terra se espelhassem,
simetricamente.

Figura 1 – Capa

Fonte: Sarmento, 2017

6
Lançada em agosto de 2004, a Barco a Vapor é a versão brasileira de uma das mais importantes
coleções de literatura infantil e juvenil em língua espanhola, criada há mais de trinta anos. O
concurso teve origem em 1978 na Espanha e tem a finalidade de revelar novos escritores. Disponível
em: https://barcoavapor.smeducacao.com.br/. Acesso em: 12 jan. 2023.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Por meio da voz do narrador, Sarmento apresenta ao leitor a dureza e
a hostilidade do campo de refugiados. Com linguagem poética e fluida, revela 141
de maneira desromantizada a condição daqueles cuja pátria lhes fora tirada,
Leite
mas o ponto de vista do "bom Emanuel" (Sarmento, 2017, p. 26) é de
esperança por dias melhores.
O livro conta com 113 páginas, divididas em nove capítulos, e cinco
ilustrações, que sintetizam partes da história, do artista plástico paulista Apo
Fousek. Os desenhos de Fousek assemelham-se à xilogravura e colaboram
com o texto verbal, completando seu sentido estético, conforme a ilustração
a seguir.

Figura 2 - Ilustração

Fonte: Sarmento, 2017, p. 23

Na ilustração acima, é possível notar a vastidão do campo na parte


inferior sob a menina. As barracas do acampamento são numerosas e se
opõem à fila de pessoas que habitam o campo. A brincadeira infantil com a
pipa é tensionada pelo espaço do acampamento. Brincadeira e sofrimento
ocupam o mesmo espaço. A silhueta da menina destaca-se diante das barracas
do acampamento. Com a perspectiva utilizada no desenho, a fila de pessoas
parece não ter fim. Em busca de suprimentos básicos, as pessoas enfileiradas
formam uma espécie de bloco, contrastando com a figura do garoto sozinho
com sua pipa.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


O espaço da narrativa é o espaço da fome e do medo, que se contrapõe
à esperança infantil de Emanuel. Em seu depoimento para a editora, na 142
ocasião da premiação (disponível na plataforma do YouTube7), Sarmento
Leite
comenta o processo de produção da obra e ressalta que sua escrita fora
motivada pela fotografia da morte de Aylan Kurdi que circulou na mídia em
2015. O autor revela que escrever o livro foi uma forma de lidar com os
sentimentos suscitados pela morte do menino sírio. A partir disso, Sarmento
pesquisou fatos, notícias e informações sobre a situação dos refugiados, que
subsidiaram seu processo de criação.
Por meio da voz do narrador, Sarmento apresenta ao leitor a dureza e
a hostilidade do campo de refugiados situado na Jordânia. Três categorias
norteiam esta análise: i) a dimensão ideológica na representação do
refugiado; ii) a percepção do outro na desromantização do espaço; iii) as
relações dialógicas entre a ficção e o acontecimento social. A seguir,
apresentamos a análise dos trechos selecionados a partir das categorias
levantadas.

4 Dimensão ideológia e o espaço da dor na


narrativa juvenil
A linguagem sob a perspectiva bakhtinina não é abordada na
imanência da língua, ou seja, de forma abstrata. O tratamento dispensado à
linguagem pressupõe a relação eu-outro e seu entorno social. Dessa
abordagem dialógica e alteritária, a dimensão ideológica perpassa toda a
teoria, posto que a linguagem se materializa em enunciados concretos e, na
cadeia discursiva em que se encontram, respondem e retomam outros
enunciados, constituídos de vozes sociais. Essas vozes não são neutras, mas
estão impregnadas de ideologia (religiosa, cotidiana, científica). Dessa
maneira, considerar o outro e compreender a ideologia à qual os sujeitos,
historicamente situados, respondem e/ou retomam, nos ajudam a desvelar as
camadas discursivas e as valorações que estão materializadas no enunciado.
A partir desse constructo teórico-metodológico, cotejamos trechos da
narrativa juvenil O cometa é um sol que não deu certo para analisar e verificar
as ideologias, as discursividades, as valorações e as tensões que são
colocadas na tessitura narrativa.

7
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2_hx6NO8h98. Acesso em: 16 jan. 2023.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


a) Construção da imagem do refugiado na narrativa juvenil
143
O protagonista Emanuel, garoto sírio, embora viva no ambiente hostil
– campo de refugiados -, busca maneiras de aliviar seu sofrimento e de outras Leite
crianças com as quais convive no campo. A figura de Emanuel vai,
gradativamente, assumindo uma forma de altruísmo e se aproximando do
cristianismo, à medida que seu nome, ações e sofrimento remetem à ideologia
religiosa, conforme consta na Bíblia Cristã: "Eis que a virgem conceberá e
dará à luz a um filho, e chamá-lo-ão pelo nome de Emanuel, que traduzido é:
Deus conosco" (Bíblia, 2015, Mateus, 1, 23). No livro juvenil, além da
referência direta com o nome do protagonista, as ações do menino sírio
também estabelecem um diálogo com a figura de Cristo: "Então se agacha e
começa a desenhar na areia, com o dedo indicador, o que parece ser um
peixe" (Sarmento, 2017, p. 11).
O diálogo com a ideologia religiosa Cristã é evidente na figura do
protagonista. Note-se que o posicionamento valorativo em torno da figura do
refugiado ganha um "status" elevado, na medida em que se aproxima da
figura divina. Na passagem bíblica, Jesus "[...] escrevia com o dedo na areia"
(Bíblia, 2015, João, 8, 6). Enquanto o menino dá forma a seu desenho – um
peixe, também símbolo da ideologia religiosa Cristã – Jesus "escreve". Mais
adiante, essa aproximação fica ainda mais evidente quando Emanuel ganha
um telescópio de Omar (professor de astronomia que também está no campo)
e carrega o pesado objeto. Ao ver o sacrifício do menino, um dos guardas do
campo, com tom sarcástico e irônico, diz: "– Lá vai o bom Emanuel
carregando sua cruz!" (Sarmento, 2017, p. 94).
A cruz de Emanuel é o telescópio, colocando em tensão o discurso
científico e o discurso religioso. Esse embate ideológico e discursivo é
também manifestado por meio dos diferentes pontos de vista das
personagens. A fala do guarda revela um tom valorativo, mostrando o
escárnio e a zombaria, por se sentir superior àquelas pessoas, podendo
subjugá-las. Do ponto de vista das crianças, há o reconhecimento do esforço
de Emanuel, considerando-o uma espécie de "salvador".
O telescópico que aponta para o céu toma o lugar da cruz, marcando a
tensão entre ciência e religião e, ao mesmo tempo, revela a condição dos
refugiados, que possuem sonhos, vidas, profissões, ou seja, não são apenas
números, mas possuem sua singularidade. Duas visões, dois mundos são
apresentados. O texto nos aponta para duas direções: da unidade objetiva e

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


da singularidade irrepetível. No final da história, o narrador reafirma a
resistência e resiliência de Emanuel: "Ainda bem que os dias são grandes o 144
suficiente para que neles também aconteçam coisas boas que ajudam as
Leite
pessoas a suportar as ruins. Essa é a mensagem que Emanuel passou enquanto
esteve no campo [...]" (Sarmento, 2017, p. 103). Com suas ações, Emanuel
deixa "uma mensagem" que o singulariza e o humaniza. Suas ações mostram
a condição de estar refugiado, mas de ser único, que assume responsável e
responsivamente seus atos. Não se trata da romantização da condição do
refugiado, pois o narrador recorre ao verbo "suportar" e ao adjetivo "ruins"
para marcar a dureza e o sofrimento de se estar em um campo de refugiados.
Nesse ambiente hostil, Emanuel, sua família e seus amigos vivenciam o
drama de milhões de pessoas que sobrevivem no campo.
A construção estética da imagem do protagonista, representando
milhares de crianças em situação de refúgio, nos coloca frente à questão ética
de repensar a condição do outro. Nesse sentido, a narrativa nos fornece
indícios para nos aproximarmos desse "outro-refugiado", por encontrar nele
a humanidade e o divino; o movimento e a estaticidade nos levam a
reconhecê-lo como alguém que sofre e resiste.
b) Discursividades no campo da Jordânia
A relação tempo e espaço na perspectiva do filósofo da linguagem,
conforme abordamos, é marcada pela presença de vozes sociais e não ocorre
no vazio nem é desvinculada do momento histórico. Essa relação nos fornece
indícios para compreender as ideologias, as valorações e as tensões que
ocorrem num determinado tempo e espaço, historicamente situados e
habitados por sujeitos e, portanto, produzem discursividades, ou seja, as
marcas de humanidade assinaladas linguisticamente. Percorremos a narrativa
de Sarmento para verificar as formas discursivas que são produzidas no
campo para refugiados, sobretudo, sírios, localizado na Jordânia.
Já no início da narrativa, a voz do narrador revela a dor do outro pelo
espaço onde está, espaço que deveria ser transitório, mas para muitos acaba
se tornando o mais próximo de um lar. "E como faz calor! A vida por lá é
muito difícil; ou as pessoas estão tristes, ou com fome, ou com medo (ou as
três coisas juntas). Por isso é bom rir de vez em quando. É o que pensa
Emanuel" (Sarmento, 2017, p. 9).
O adjetivo "triste" e as locuções adjetivas "com fome e com medo"
materializam a condição dos refugiados no campo e o ponto de vista do

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


narrador que, de forma exotópica, encarna a dor do outro, assume sua
responsabilidade de apontar a dureza do campo, voltando-se para sua 145
posição. Essa condição e o ponto de vista são tensionados com a ação “rir”
Leite
do garoto, que sugere a resistência nessas condições.

- Bom, vou indo, então. Até mais – diz Amal.


- Até – responde Emanuel.
Mas ela fica. Amal sempre fica.
Os dois vivem em um campo de refugiados. É um lugar difícil para eles,
para as outras crianças e também para os adultos, mas ninguém ali teve
escolha” (Sarmento, 2017, p. 11).

No trecho com discurso direto, as personagens Amal e Emanuel se


despedem. A marca de Amal é da não transitoriedade. Enquanto todos ali
pensam em sair do campo, "Amal fica". O uso da forma verbal "fica" marca
linguisticamente a condição de permanência de refugiados que não têm para
onde ir e, por isso, "ficam" nos campos criados, muitas vezes, como medida
provisória, mas que se tornam permanentes. O narrador retoma a condição
dos dois amigos e marca, novamente, a indigência do local, com adjetivo
"difícil". A conjunção "mas" introduz o discurso do outro: "ninguém ali teve
escolha".
A marca temporal é destacada pela manifestação popular de 2010
chamada de "Primavera Árabe". Povos de vários países, inclusive a Síria,
manifestavam contra governos autoritários, reivindicando melhores
qualidades de vida e liberdade de expressão.

Na cabeça de Emanuel passam muitas coisas, algumas delas bem ruins.


É que ele, Amal e Nabir são sírios, como muitos refugiados do campo.
Eles fugiram da Síria depois de o ditador do país atacar as pessoas que
se manifestavam contra seu governo.
As tropas do exército atiraram em quem pedia liberdade e melhores
condições de vida. Isso aumentou a revolta popular contra ele. [...] Na
tevê, os repórteres chamam essa manifestação de "Primavera Árabe".
Emanuel achou esse nome bonito” (Sarmento, 2017, p. 15).

A narrativa retoma esse tempo histórico de 2010. Por meio da reação


do protagonista, que “achou esse nome bonito”, há a posição valorativa do
narrador em apoio ao movimento. Bakhtin ressalta que a importância do
tempo no cronotopo (histórico, da vida) é o ponto para o desencadeamento
das cenas no romance. "Dessa forma, o cronotopo como materialização
predominante do tempo no espaço é o centro da concretização figurativa, da
encarnação para o romance" (Bakhtin, 2018, p. 227).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Além do posicionamento valorativo do protagonista, o trecho aponta
para a tensão construída pela manifestação popular "Primavera árabe" e pelo 146
governo autoritário que, em tese, deveria defender seu povo e não o oprimir.
Leite
"As tropas do exército atiram em quem pedia liberdade". Note-se que a
tensão é mantida, pois o exército deveria "lutar" pela liberdade de seu povo,
mas a narrativa nos mostra que é justamente o oposto, a liberdade do povo é
cerceada por aqueles que deveriam defendê-la.
As incertezas e a vulnerabilidade acompanham os refugiados na
narrativa. Ao chegar ao campo de refugiados, lugar e não-lugar, pois é o
único local para ir e, ao mesmo tempo, não é um lugar para permanecer, o
clima de insegurança persiste.

Dentro do campo, as pessoas também esperam. Aguardam ansiosas as


portas do mundo se abrirem para recebê-las. Além do calor e da fome,
da constante falta de energia elétrica e do racionamento de água, todos
têm medo, vivem nervosos, estão cansados. Mesmo estando lá, temem
que um ataque, um bombardeio. No fundo, ninguém se sente seguro
(Sarmento, 2017, p. 20).

Nesse trecho, a descrição do campo marca a falta de recursos básicos,


como comida e água para sobrevivência. A tensão se faz presente na
hostilidade do local que deveria acolher; o campo é o local da insegurança e
não do acolhimento. As pessoas ficam, na esperança de sair, ou seja, são
como cometas que se movimentam e não como Sol que possui seu lugar fixo.
As escolhas lexicais contribuem com a desromantização do espaço,
sinalizando para o leitor as dificuldades de se sobreviver nesse local. Os
substantivos fome, medo, ataque e bombardeio revelam o sofrimento de
forma gradativa, culminando em "todos têm medo".
O espaço – campo de refugiados – é apresentado ao leitor com toda
sua dificuldade e precariedade. As pessoas que ali chegam esperam seu
momento de partida. A perspectiva desse "outro-refugiado" é materializada
na narrativa, que apresenta as dificuldades em sobreviver no campo sem
comida suficiente, sem água, sem segurança. Nesse espaço, essas vozes
contribuem para a construção enunciativa, encarnando o sofrimento de quem
sobrevive no campo.
c) Relações dialógicas entre ficção e o acontecimento social
Conforme abordamos, na perspectiva bakhtiniana, a linguagem é
materializada por meio de enunciados e endereçada a alguém. Esses
enunciados respondem e retomam a outros enunciados, posto que as palavras

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


não são produtos do psiquismo ou de um acontecimento estritamente
biológico, mas são um produto de natureza social e, portanto, inserem-se 147
numa cadeia discursiva. Para Bakhtin (2017, p. 11), "[...] a ciência da
Leite
literatura deve estabelecer o vínculo mais estreito com a história da cultura".
Nessa perspectiva teórico-metodológica, conduzimos esta análise, ao
entrelaçar a narrativa à vida vivida, situada e concreta, buscando as relações
entre a narrativa e o acontecimento social materializado na primeira página
do jornal Folha de S. Paulo. A leitura da narrativa convocou de imediato essa
relação, como veremos a seguir.
Ao sair do campo, Emanuel e sua família vivenciam o trajeto de
milhares de refugiados que, precariamente, cruzam a fronteira em botes:

Da janela do abrigo, ele pensa com tristeza nas crianças que, como
aquele menino do bote, não sobreviveram às diversas formas de
intolerância. Dali, olhando para o céu (sempre o céu) e vendo a noite
passar, ele também espera pelos amigos do campo enquanto sonha com
um mundo melhor que este. Um mundo onde as crianças não precisem
se preocupar com nada além dos estudos e em crescer para se tornar
adultos melhores que seus pais. (Sarmento, 2017, p. 113, grifos meus).

O trecho evoca nossa memória discursiva em torno de milhares de


notícias cujos personagens são pessoas reais que se encontram em
deslocamento forçado. Nessa passagem, Emanuel é expulso do campo com
sua família, e devido à precariedade em que se encontram, a única saída é
aventurar-se em alto mar num bote. Ficção e realidade atravessam o texto. O
menino do bote a que o narrador se refere, cuja morte perpassa o olhar e a
memória do protagonista, nos remete ao acontecimento social, veiculado na
primeira página do jornal Folha de S. Paulo em 3 de setembro de 2015:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Figura 3 – Primeira página jornal

148

Leite

Fonte: Folha de S. Paulo, 2015

No acontecimento social, materializado na primeira página do jornal,


Aylan Kurdi é marcado linguisticamente na legenda como "menino sírio" que
estava no barco com "23 refugiados". Na ficção, Emanuel sente a dor do
outro, pois "pensa com tristeza" (Sarmento, 2017, p. 113). A comoção de
Emanuel é tensionada pela sua esperança por dias melhores. No enunciado
verbo-visual do jornal, essa comoção é materializada na fotografia. Nela, o
policial está com o corpo curvado e, em seus braços, segura o corpo sem vida
de Aylan. Associamos a fotografia à escultura Pietà, de Michelangelo. Na
escultura, a mãe curvada segura o filho morto em seus braços, acolhendo-o.
Na fotografia, a humanidade é central, não se trata de seres divinos, mas de
humanos que se situam historicamente no espaço e tempo da dor e do
desespero.
Na ficção, o acontecimento social ganha nuances discursivas com a
aproximação do fato às personagens, e o ponto de vista do narrador atesta a
"intolerância" como fator principal para a morte de inocentes. As vozes
sociais são colocadas na narrativa de forma valorativa.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Enquanto Emanuel é o protagonista na narração, no jornal, Aylan é
marcado pela sua nacionalidade: "menino sírio". A pretensa objetividade 149
linguística do jornal, que traz essa tragédia sem a marca de identidade do
Leite
garoto – o nome próprio –, é incorporada à narrativa com a subjetividade do
narrador e do protagonista, que possuem nome, se posicionam, com sua voz
marcada no texto. A posição da notícia – na parte inferior do jornal – revela
também um posicionamento, pois as notícias que a antecedem tratam de
política e de economia. Uma escolha que revela os valores que nossa
sociedade capitalista prioriza: o capital em detrimento da vida humana.

Considerações finais
A obra juvenil O cometa é um sol que não deu certo perpassa
diferentes campos ideológicos (político, religioso, científico). Essa arena
ideológica e discursiva contribui para a construção da imagem de crianças
refugiadas – materializada na figura do protagonista Emanuel. Nesse sentido,
a leitura coloca o leitor diante do outro, sendo levado a um movimento
exotópico de reconhecer-se no olhar do outro, de buscar compreender o outro
de seu lugar, a partir de sua singularidade, como faz Emanuel.
A imagem do refugiado no menino Emanuel estabelece um diálogo
direto com a cultura cristã. Sua resiliência e empatia contrastam com os
guardas do campo. A ficção adere à vida na medida em que a dor e o espaço
são apresentados de maneira desromantizada. O campo de refugiados é o
espaço do medo, da fome e das diferenças que se encontram na dor humana.
Nesse sentido, a mobilização do conceito de cronotopo iluminou o percurso
teórico-metodológico, apontando para as valorações produzidas no tempo e
espaço, historicamente marcados na apresentação e na descrição do campo
de refugiados. O posicionamento do autor assume um caráter ético frente aos
refugiados que sobrevivem à hostilidade do campo, sem romantizar essa
condição. Os elementos enunciativos-linguísticos compõem um todo que
atrela a ética à estética, ou seja, vida e arte na obra juvenil.
Nessa arena discursiva, a relação do tempo e espaço produz a
discursividade das diferenças, da dor e do sofrimento das pessoas que vivem
no campo de refugiados, com destaque para as crianças. Essa discursividade
produzida pelo tempo e espaço, historicamente marcados, situa o leitor e
estabelece a interação texto-leitor-autor. A narrativa para jovens leitores

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


aponta para o que é do "outro-refugiado", mostrando as formas de
intolerância e os meios de sobrevivência aos quais milhares de refugiados são 150
expostos constantemente. O campo na Jordânia é o espaço do não-lugar, onde
Leite
as pessoas chegam já pensando em partir. O texto de Sarmento nos revela
essa dureza pelo olhar atento do protagonista Emanuel.
As palavras escolhidas, inclusive o nome do protagonista, mostram a
pluralidade de vozes sociais na narrativa. Conforme ressalta Volóchinov
(2017), diferentemente do signo abstrato, o signo ideológico é inseparável da
ideologia e do posicionamento valorativo. Buscar as relações estabelecidas
com o acontecimento social redimensiona a compreensão do texto ficcional
no sentido de extrapolar a mera fruição para sensibilizar o leitor para o além
do texto. Atravessar a fronteira é um movimento que nos leva ao encontro
com o outro e aponta para a vida concreta, situada e irrepetível, privilegiando
a voz daqueles que são, socialmente, silenciados.
A crise dos refugiados nos coloca frente a um problema humanitário
que não pode ser negligenciado. As discussões em torno dessas questões nos
levam ao enfrentamento dessa crise humanitária. Nesse sentido, a narrativa
apresenta a dor do outro, sob o ponto de vista de quem ocupa o campo e
daqueles que estão fora dele. A subjetividade da narrativa é posta em diálogo
com a pretensa objetividade jornalística. Enquanto a narrativa marca a
singularidade, a identidade e o posicionamento dos refugiados, o
acontecimento social apaga a singularidade, informando a nacionalidade no
lugar do nome próprio. O texto verbo-visual do jornal que recupera a trágica
morte de Aylan Kurdi é apresentado na parte inferior do jornal, sem destaque,
sem humanidade, sem vida.
As vozes sociais materializadas na narrativa proporcionam ao jovem
leitor uma reflexão para repensar a condição daqueles que buscam um lar.
Diferentemente da pretensa objetividade da notícia, a narrativa humaniza e
singulariza o refugiado, conferindo-lhe o protagonismo para ter sua voz
situada e axiologicamente marcada.

Referências
AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo:
Musa Editora, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. A Ciência da Literatura hoje (Resposta a uma pergunta da revista
Novi Mir). In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei
Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017, p. 9-19.
151
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução Valdemir Miotello
e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro &João Editores, 2020. Leite
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance II. As formas do tempo e do cronotopo. Tradução,
prefácio, notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2018.
BAUMAN, Zygmunt. Estranhos à nossa porta. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de
Janeiro: Zahar, 2017.
BÍBLIA. Bíblia Sagrada: Antigo e novo testamentos. Tradução João Ferreira de Almeida.
Barueri: Sociedade bíblica do Brasil, 2015.
FOLHA de S. Paulo. São Paulo, ano 2015, 3 set. 2015. Primeira Página. Disponível em:
https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=20336&keyword=Aylan%2CKurdi&ancho
r=6000662&origem=busca&originURL=&pd=637735f57eef44b812bee6f8f297384b.
Acesso em: 11 out. 2022.
MORSON, Gary; EMERSON, Caryl. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística.
Tradução Antonio Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2008.
SARMENTO, Tadeu. O cometa é um sol que não deu certo. Ilustrações Apo Fousek. São
Paulo: Edições SM, 2017.
TIHANOV, Galin. Narrativas do exílio: cosmopolitismo além da imaginação liberal. Série
Diálogos dirigida por Maria Isabel de Moura. Trad. Camila Caracelli Scherma; Marina
Haber de Figueiredo; Mateus Yuri Passos; Michele Viana Trevisan; Nanci Moreira Branco;
Rômulo Augusto Orlandini; Tatiana Aparecida Moreira. São Carlos: Pedro e João Editores,
2013.
VOLÓCHINOV, Volóchinov. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas
e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


153

Oliveira
Cavalcante Filho

A arquitetônica da divulgação
científica na esfera educacional:
uma análise bakhtiniana
The architectonic of scientific dissemination in the educational
sphere: a bakhtinian analysis

Jamille Santos Oliveira 1 Introdução


Universidade Estadual de Santa Cruz, Brasil
Vivemos numa sociedade
Urbano Cavalcante Filho em que a tecnologia e a informação
Instituto Federal da Bahia, Brasil
Universidade Estadual de Santa Cruz, Brasil estão se modificando de forma
Universidade de São Paulo, Brasil veloz e que, em contrapartida, a
desinformação, a propagação de
notícias falsas, das fake news, a
negação da ciência têm ganhado espaço. Divulgar a ciência é um meio de
combater e alterar essa situação. Diante desse cenário, sabendo da
importância da ciência para a vida cotidiana, a formação de sujeitos mais
críticos que tenham o conhecimento científico como um meio de
transformação social, que se interessem pelo desenvolvimento científico e
tecnológico, visando uma participação política que reflita na melhoria da
qualidade de vida de sua comunidade, é fundamental.
O contexto escolar, como um dos espaços de formação dos sujeitos,
pode contribuir para a construção de uma sociedade que utilize as tecnologias
e as informações científicas e que as acesse de forma consciente, responsável
e responsiva. Pensando nisso, e sabendo que o livro didático é um recurso
pedagógico marcado pela relação dialógica que estabelece com outras esferas

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


da comunicação, tornou-se muito importante discutir como a Divulgação
Científica (doravante DC) apropria-se do discurso de outrem na elaboração 154
de suas propostas de atividades.
Oliveira
Percebendo a relevância de discutir a presença dos gêneros da DC num Cavalcante Filho

livro didático de Língua Portuguesa, objetivamos analisar, a partir dos


pressupostos da teoria bakhtiniana da linguagem, a arquitetônica da
divulgação científica materializada nas atividades de leitura do livro didático
de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental – Anos Finais.
Considerando a diversidade de manifestações discursivas da DC,
podemos e devemos perceber a importância de refletir sobre as matrizes
ideológicas e os centros valorativos que influenciam a realização da forma
arquitetônica desse fenômeno nos livros didáticos de Língua Portuguesa.
Para tal abordagem, a teoria bakhtiniana apresenta importante aparato
teórico-metodológico, que permite o estudo da linguagem numa perspectiva
sociológica e dialógica considerando os sujeitos situados sócio
historicamente no mundo, com seus valores éticos, estéticos, sociais,
políticos, ideológicos e culturais.
No Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) de
2020 (Brasil, 2020) – o mais recente –, foram aprovadas seis coleções para
integrarem o Guia Nacional do Livro Didático. Elas foram disponibilizadas
aos professores das escolas públicas para análise e escolha. Dentre essas,
escolhemos para constituir nossa investigação a coleção Tecendo
Linguagens: Língua Portuguesa, de autoria de Tânia Amaral Oliveira e Lucy
Aparecida Melo Araújo, da editora IBEP, destinada aos estudantes do Ensino
Fundamental - Anos Finais. A coleção está em sua quinta edição1, estando
presente em várias escolas públicas do país.
Reconhecendo a DC como importante para a vida em sociedade,
selecionamos como corpora cinco atividades elaboradas em torno da leitura
e do estudo de um artigo de divulgação científica, presentes no livro do 8º
ano. A escolha dessa obra foi orientada pelos seguintes critérios: I) ter sido
aprovado no PNLD 2020 – que está em vigor-; II) apresentar propostas de
exercícios produzidos a partir de um gênero da DC – artigo de DC.

1
A publicação da quinta edição da coleção data de 2018. Após passarem por avaliação e seleção,
então, integraram o Programa Nacional do Livro e do Material Didático de 2020 (Brasil, 2020),
fazendo parte do Guia Nacional do Livro Didático.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Para concretização do nosso estudo, estruturamos o texto em quatro
seções: a primeira objetiva apresentar a concepção de divulgação científica 155
assumida neste estudo, bem como discutir sua relevância para sociedade; a
Oliveira
segunda seção trata do conceito de arquitetônica e das reflexões teóricas que Cavalcante Filho
sustentam nossas reflexões; a terceira tem como proposta delinear as análises
feitas de cinco atividades elaboradas em torno da leitura e do estudo de um
artigo de DC; e a quarta destina-se às conclusões obtidas no estudo, seguida
das referências citadas.

2 Divulgação científica e sociedade


A definição de divulgação científica não é única, e como
consequência, encontramos abordagens e definições diferenciadas. Por
vezes, ela é identificada como um gênero específico presente em esferas
variadas ou até mesmo como uma esfera da comunicação humana. As
concepções acerca do seu conceito são “[...] ora divergentes, ora
convergentes e/ou complementares” (Cavalcante Filho, 2017, p. 79). Com o
fito de explicitar o posicionamento assumido nesta pesquisa, utilizamos a
definição de DC proposta por Grillo (2013), de que a divulgação científica,
por estar presente em diversas esferas do conhecimento e por materializar-se
em gêneros variados para possibilitar o acesso ao conhecimento científico, é
“uma modalidade particular de relação dialógica [...] entre a esfera científica
e outras esferas da atividade humana” (Grillo, 2013, p. 88). Assim, numa
relação dialógica com a esfera científica, outras esferas da comunicação
tomam uma posição valorativa na materialização do discurso da DC, que
“pode servir de ferramenta de conscientização da sociedade sobre o papel e
importância da ciência na atualidade” (Oliveira, 2020, p. 22).
O discurso da DC, ao dialogar com discursos de diferentes esferas,
permite que a sociedade tenha acesso à informação científica, seja lendo, seja
assistindo ou ouvindo reportagens, notícias, artigos e comentários, por
exemplo, tanto na esfera educacional, na midiática, na jornalística, na cultural
ou em outras. Esses campos dialogam com o objetivo de realizar a divulgação
da ciência em seus variados suportes (jornais, revistas, livros e outros) e
contribuem para o compartilhamento de informações de grande relevância
social.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


O acesso à DC auxilia na percepção de como as pesquisas científicas
e os avanços teóricos e tecnológicos refletem no dia a dia. Ir a uma farmácia 156
e comprar um remédio para dor de cabeça, por exemplo, é algo tão simples,
Oliveira
porém nem todos lembram do longo processo que, às vezes, envolve um Cavalcante Filho
estudo científico para que possamos nos beneficiar de uma medicação. Isso
contribui para que os avanços e os benefícios da ciência não tenham a
evidência de que necessitam e possibilita a crescente propagação de fake
news, de indivíduos que em suas redes sociais tentam anular e/ou desmerecer
os resultados de pesquisas muito importantes, que podem salvar vidas.
As esferas da comunicação, por meio dos gêneros da divulgação
científica e de seus suportes de veiculação, ajudam a publicizar o
conhecimento científico e, além disso, atuam na valorização da ciência, no
combate à desinformação que tanto maltratam a visão de ciência na
atualidade. Cada esfera ideológica, a exemplo da educacional, apropria-se
das formas linguísticas que estão à sua disposição, elabora e divulga os
gêneros da DC de acordo com seus objetivos, já que

[...] nunca pronunciamos ou ouvimos palavras, mas ouvimos uma


verdade ou mentira, algo bom ou mau, relevante ou irrelevante,
agradável ou desagradável e assim por diante. A palavra está sempre
repleta de conteúdo e de significação ideológica ou cotidiana. É apenas
essa palavra que compreendemos e respondemos, que nos atingi por
meio da ideologia ou do cotidiano (Volóchinov, 2018, p. 181, grifo do
autor).

Assim, as práticas sociais de linguagem não se desvinculam dos


sujeitos e sofrem coerções da esfera ideológica, e isso influencia diretamente
na divulgação da ciência para a sociedade. Nesse sentido, as escolhas feitas
pelo falante/ escritor

[...] refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido


campo não só por conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou
seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da
língua, mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos
esses três elementos – conteúdo temático, o estilo, a construção
composicional – estão indissoluvelmente ligados no conjunto do
enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um
campo da comunicação (Bakhtin, 2016, p. 11, grifo do autor).

No contexto escolar, os gêneros da DC, como as reportagens, os


verbetes de enciclopédias, os debates, os seminários, as aulas e outros,
adequam-se e buscam estratégias discursivas que possibilitam aos
destinatários presumidos, professores e alunos, terem acesso às informações

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


científicas, sem perder de vista os objetivos pedagógicos que influenciam no
trabalho e no estudo desses gêneros. 157

A escola é um lugar privilegiado no que diz respeito à construção Oliveira


consciente de saberes e de conhecimentos que podem contribuir para uma Cavalcante Filho

sociedade mais crítica e informada em relação aos assuntos que envolvem


ciência. Além disso, é o local no qual o sujeito passa boa parte da vida, entra
em contato com diversas formas de comunicação humana, inclusive, as que
se dão com os gêneros da DC.

3 A arquitetônica bakhtiniana e a constituição dos


enunciados
Uma noção central nesta investigação é o conceito de arquitetônica.
Campos (2012), em seu estudo sobre materiais didáticos de Língua
Portuguesa, ao tomar o conceito bakhtiniano de arquitetônica para analisar
atividades de leitura de textos verbo-visuais em Livro Didático de Língua
Portuguesa (doravante, LDLP) para ensino médio, afirma: “[...] o conceito
de arquitetônica, assim, torna-se uma alternativa para pensar o mundo dos
sentidos, da diversidade, da cultura, sem precisar eliminar as análises
formais, mas entendendo o movimento das relações dialógicas” (Campos,
2012, p. 253). Esse importante conceito não pode ser depreendido sem a
realização de um estudo conjunto de algumas obras de Bakhtin e do Círculo,
já que não há uma obra específica cuja conceituação apareça de forma
evidente. Cavalcante Filho (2017), em sua tese de doutoramento, defende que
a compreensão dessa noção resulta do estudo articulado dos quatro primeiros
trabalhos de Bakhtin, considerando-os imprescindíveis para se depreender tal
conceito. São eles: Arte e responsabilidade ([1919] 2011a), Para uma
filosofia do ato ([1920-4] 2010a), O autor e a personagem na atividade
estética ([1920-3] 2011b) e O problema do conteúdo, do material e da forma
na criação literária ([1924] 2010b). Essas obras serão fundamentais em
nossos estudos, mas consideraremos também outras obras do Círculo nas
quais o conceito é retomado, mesmo que implicitamente.
Arte e responsabilidade, escrito em 1919, é um artigo de duas páginas
no qual Bakhtin apresenta dois aspectos importantes à arquitetônica: as
noções de mecânica e de totalidade (responsabilidade). Na mecânica, os
elementos que constituem o todo, apesar de unificados no tempo e no espaço,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


tomam as coisas isoladamente, desconsideram o interacional, não penetram
na unidade do sentido. Em contrapartida ao que Bakhtin chama de 158
“mecânico”, estão os elementos constituintes de um todo dialógico,
Oliveira
arquitetônico, a totalidade que evoca os campos da ciência, da arte e da vida, Cavalcante Filho
que adquirem unidade no indivíduo, no mundo da vida e das relações, na
unidade da responsabilidade. Nas palavras de Bakhtin ([1919] 2011a):

O indivíduo deve tornar-se inteiramente responsável: todos os seus


momentos devem não só estar lado a lado na série temporal de sua vida
mas também penetrar uns aos outros na unidade da culpa e da
responsabilidade. E nada de citar a “inspiração” para justificar a
irresponsabilidade. A inspiração que ignora a vida e é ela mesma
ignorada pela vida não é inspiração mas obsessão (Bakhtin, [1919]
2011a, p. XXXIV).

Nesse curto e denso texto, Bakhtin já começa a mostrar a importância


do mundo da vida e aprofunda o assunto no ensaio inacabado Para uma
filosofia do ato – texto que produziu posteriormente, entre 1920 e 1924, e
que é mais extenso que o anterior. Essa obra é basilar para o que vem a ser a
teoria bakhtiniana e é de suma importância para a constituição do conceito
de ato responsável, que é tão importante para a compreensão da noção de
arquitetônica.
Em Para uma filosofia do ato, Bakhtin ([1920-4] 2010a) quer
empreender uma filosofia moral e, ao tratar do seu objeto, está falando do
mundo em que o ato se orienta sobre o alicerce de sua participação no ser. O
termo arquitetônica é utilizado pelo filósofo ao esclarecer o que institui essa
filosofia. Nessa obra, também, o filósofo russo coloca em destaque a ética do
pensamento teórico e as condições necessárias para isso. Para ele, o ato de
pensar uma teoria não é abstrato e parcial, não pode ser comparado à ação,
que é um comportamento mecânico, ele é um posicionamento responsável,
único, assinado, no qual o sujeito assume e revela seu pensamento frente ao
outro.
Esse gesto ético que convoca o sujeito a pensar e a responsabilizar-se
inteiramente é o que permeia a reflexão de Bakhtin em Para uma filosofia do
ato (Bakhtin, [1920-4] 2010a). O ato é regido pela responsabilidade do
sujeito, que é convocado a pensar do lugar que ocupa no mundo, pois “O ato
de pensar não é fortuito; o sujeito não pensa isto assim como pode pensar
aquilo. Não é uma mera opinião. Do lugar de onde pensa, do lugar de onde
vê, ele somente pode pensar aquele pensamento” (Amorim, 2018, p. 23).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


O sujeito sócio-histórico, como um ser real e único, do seu lugar no
mundo, vê e pensa de acordo com a sua opinião, não há álibi para sua 159
existência – eis sua responsabilidade. O pensamento adquire entonação e
Oliveira
valor, mas não deve ser confundido com uma simples opinião, já que do lugar Cavalcante Filho
que ocupamos e de onde vemos o outro podemos pensar somente um
determinado pensamento e não outro. Esse pensamento ganha sentido
quando o sujeito assume e imprime valor, reconhece e assina, validando-o
com o que só ele possui, pois só ele pode ver e dizer a partir do lugar único
que ocupa.
Em O problema do conteúdo, do material e da forma na criação
literária (Bakhtin, [1924] 2010b), o objetivismo abstrato formalista é
problematizado, mostrando que seu projeto metodológico se limita à análise
do objeto estético e dos aspectos linguísticos formais sem situá-los sócio-
historicamente, sem considerar a relação valorativa entre o estético e o
cultural, sem observar os posicionamentos axiológicos existentes. Nesse
texto, Bakhtin apresenta os conceitos de forma arquitetônica e de forma
composicional:

As formas arquitetônicas são as formas dos valores morais e físicos do


homem estético, as formas da natureza enquanto seu ambiente, as
formas do acontecimento no seu aspecto da vida particular, social,
histórica, etc.; todas elas são aquisições, realizações, não servem a nada,
mas se auto-satisfazem tranquilamente, são as formas de existência
estética na sua singularidade.

As formas composicionais que organizam o material têm um caráter


teleológico, utilitário, como que inquieto, estão sujeitas a uma avaliação
puramente técnica, para determinar quão adequadamente elas realizam
a tarefa arquitetônica. A forma arquitetônica determina a escolha da
forma composicional: assim, a forma da tragédia (a forma do
acontecimento, em parte, do personagem - o caráter trágico) escolhe a
forma composicional adequada - a dramática (Bakhtin, [1924] 2010b,
p. 25).

Para entendermos melhor o que diferencia as duas formas, mas o que


também as aproxima, o autor russo apresenta alguns exemplos, como as
formas composicionais do romance, do drama, do poema, do conto, da novela
e as formas arquitetônicas do trágico, do cômico, do humor, da heroificação,
do tipo e do caráter. Essas últimas articulam valores morais e aspectos da
vida particular, o social e o histórico, que são axiologicamente voltados para
o conteúdo, sendo determinantes na escolha da forma composicional do
material.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Assim, objetivamos ultrapassar os limites de uma análise meramente
estética, transcrevendo “o acontecimento ético no seu aspecto social, já 160
vivido e avaliado [...], mas também sai dos limites do objeto e introduz o
Oliveira
acontecimento em ligações sociais e históricas mais amplas” (Bakhtin, Cavalcante Filho
[1920-4] 2010a, p. 43). A noção de arquitetônica privilegia esse enfoque ao
atribuir um sentido concreto ao enunciado, que

[...] isolado e concreto sempre é dado num contexto cultural e


semântico-axiológico (científico, artístico, político, etc.) ou no contexto
de uma situação isolada da vida privada; apenas nesses contextos o
enunciado isolado é vivo e compreensível: ele é verdadeiro ou falso,
belo ou disforme, sincero ou malicioso, franco, cínico, autoritário e
assim por diante. Não há enunciados neutros, nem pode haver; [...]
(Bakhtin, [1924] 2010b, p. 46).

Os enunciados são “um conjunto verbal, compreendido linguística e


composicionalmente, no todo arquitetônico de um evento esteticamente
acabado” (Bakhtin, [1920-4] 2010a, p. 51) que se constroem a partir de um
conjunto de relações axiológicas. Desse modo, todo enunciado traz em si uma
valoração, um ponto de vista, que, junto com uma rede axiológica, dialoga
com o já dito e com a resposta subsequente. A significação vem da interação,
da reciprocidade ativa com outros pontos de vista na relação dialógica entre
os sujeitos do discurso, autor-criador e destinatário presumido (Volóchinov,
2018). Volóchinov nos diz que toda palavra “é um ato bilateral”, pois

[...] é determinada tanto por aquele de quem ela procede quanto por
aquele para quem se dirige. Enquanto palavra, ela é justamente o
produto das inter-relações do falante com o ouvinte. Toda palavra serve
de expressão ao “um” em relação ao “outro”. Na palavra, eu dou forma
a mim mesmo do ponto de vista do outro e, por fim, da perspectiva da
minha coletividade. A palavra é uma ponte que liga o eu ao outro
(Volóchinov, 2018, p. 205).

Para que entendamos esse ato, precisamos partir de uma análise que
identifique as matrizes ideológicas (avaliações sociais, posicionamento e
direção axiológicos) e os centros valorativos (os sujeitos do discurso e seus
valores éticos, morais, sociais, ideológicos, históricos e culturais) que
influenciam na materialização linguístico-discursiva da DC, na realização da
forma arquitetônica e composicional no livro didático a ser analisado.
Precisamos compreender os elementos importantes ao conceito de
arquitetônica como ato responsável, exotopia, excedente de visão, atmosfera
axiológica e autoria.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Em Para uma filosofia do ato, Bakhtin ([1920-4] 2010a) apresenta o
“ato” como uma ação concreta e intencional que propõe unir 161
responsabilidade e resposta, estabelecendo uma relação
Oliveira
responsável/responsiva no agir do sujeito. Todo ato faz parte de uma rede de Cavalcante Filho
relações axiológicas de inter-relações discursivas antecedentes e
subsequentes que formam o todo arquitetônico disposto em torno do ser. Para
Bakhtin, os aspectos sociais, culturais, históricos, políticos e ideológicos
articulam-se dialogicamente possibilitando a materialização de um ato único,
irrepetível. Ele acrescenta:

Para minha consciência ativa e participante, esse mundo, como um todo


arquitetônico, é disposto em torno de mim como único centro de
realização do meu ato; [...] Em correlação com o meu lugar particular
que é o lugar do qual parte a minha atividade no mundo, todas as
relações espaciais-temporais pensáveis adquirem um centro de valores
em volta do qual compõem num determinado conjunto arquitetônico
concreto estável e a unidade possível se torna singularidade real. [...]
Este centro não é imanente [...] No interior do sistema, cada
componente desta unidade é logicamente necessário mas o sistema em
si no seu todo é apenas algo relativamente possível; é somente em
correlação comigo, enquanto penso ativamente, somente em correlação
com o ato do meu pensamento responsável que tal sistema se incorpora
na real arquitetônica do mundo vivido, como seu momento, se enraíza
na sua real singularidade, significativa como valor (Bakhtin, [1920-4]
2010a, p. 118-120).

Numa análise exotópica do enunciado, é preciso considerar os centros


valorativos, e isso requer um excedente de visão dos seres concretos que
estão em confronto, o eu-para-mim, o outro-para-mim e o eu-para-o-outro. O
autor-criador (centro de valoração), aquele que materializa a forma
arquitetônica, enuncia em direção ao outro e proporciona a completude do
ato, pois o distanciamento permite ver no outro o que ele não consegue ver
em si mesmo, e isso orienta o agir responsivo/ ativo do eu. O autor-criador

[...] ocupa uma posição essencial fora do acontecimento enquanto


assistente desinteressado, mas que compreende o sentido axiológico
daquilo que se realiza; não se submete ao acontecimento, mas participa
do seu suceder: pois, sem ter uma participação axiológica em certo grau,
não se pode contemplar o acontecimento enquanto acontecimento
(Bakhtin, [1920-4] 2010a, p. 36).

O autor-criador não é só aquele que fala/escreve, é aquele que ocupa


um lugar enunciativo que traz consigo uma consciência ativa e participante,
que vê o mundo como o centro de realização de seu ato. Francelino (2019),
ao estudar estilo e autoria em sermões religiosos, acrescenta que

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


O autor é uma consciência que está sempre em tensa relação com
outra(s) consciência(s), de modo que seu dizer configura sempre uma
tomada de posição valorativa, de coloração emotivo-volitiva polêmica, 162
plena de combatividade no contexto de um diálogo sempre não-
concluído, inacabado. Em outras palavras, vive em tensão na fronteira Oliveira
com as ideias de outros, com a consciência de outros (Francelino, 2019, Cavalcante Filho
p. 246).

De acordo com a entonação valorativa, o autor-criador enuncia na


direção do outro a partir do seu centro de valor e seleciona os gêneros dentre
as infinitas possibilidades de produção e de circulação.
Em O método formal nos estudos literários, Medviédev ([1928]
2019), ao abordar o conceito de avaliação social, retoma princípios basilares
da arquitetônica, o que estabelece uma relação muito próxima entre os dois
conceitos. Segundo o autor, a avaliação social “está presente em cada palavra
viva, [...] determina a escolha do objeto, da palavra, da forma e a sua
combinação [...], a escolha do conteúdo e da forma, bem como a ligação entre
eles” (Medviédev, ([1928] 2019, p. 183-184). Assim como a forma
arquitetônica pode utilizar a palavra como material, a avaliação social faz uso
dela para se expressar nas formas materiais dos gêneros que aparecem como
fundamentais na criação do enunciado, segundo Medviédev ([1928] 2019).
O gênero é a realidade social ideológica, é a forma típica de todo enunciado,
que como toda obra

[...] entra na vida e está em contato com os diferentes aspectos da


realidade circundante mediante o processo de sua realização efetiva
como executada, ouvida, lida em determinado tempo, lugar e
circunstâncias. Ela ocupa certo lugar, que é concebido pela vida,
enquanto corpo sonoro real. Esse corpo está disposto entre as pessoas
que estão organizadas de determinada forma (Medviédev, [1928] 2019,
p. 195).

Diante do exposto, uma análise dialógica dos enunciados dos livros


didáticos, de suas significações e a relação com os aspectos extralinguísticos
que influenciam no trabalho com a DC é fundamental para depreendermos a
sua arquitetônica no contexto escolar, na observação de suas peculiaridades.
A partir dessa discussão teórica, daremos início à nossa análise para
compreender a forma arquitetônica da DC nas atividades propostas pelos
livros didáticos de Língua Portuguesa, a escolha dos gêneros que as
compõem, a forma que os conteúdos adquirem, suas estruturas
composicionais e os confrontos ideológicos entre os discursos constituídos
ao longo dos anos.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


4 A arquitetônica de propostas de leitura e estudo
do gênero artigo de divulgação científica 163

A coleção Tecendo Linguagens: Língua Portuguesa (Araújo; Oliveira, Oliveira


Cavalcante Filho
2018) possui quatro volumes, um para cada ano da segunda etapa do Ensino
Fundamental. Os livros da coleção possuem quatro unidades temáticas, com
dois capítulos cada uma. Analisando todos eles, identificamos a presença de
gêneros da DC que refletem e refratam de diferentes formas a DC, no entanto,
não há um capítulo específico para o estudo desses gêneros. Mesmo assim,
constatamos duas atividades da seção “Prática de leitura” que visam o estudo
de um artigo de divulgação científica no livro do 8º ano, na unidade temática
3, intitulada “Educação é o caminho”, e no capítulo 6, “Educação na era
digital”. Além dessas duas propostas, analisamos mais três atividades
elaboradas em torno da leitura e do estudo do artigo.
Todo o capítulo trata da revolução na tecnologia da informação e da
comunicação, o uso que é feito dela por crianças e adolescentes e suas
consequências para a educação e a saúde desses jovens. Vamos observar a
figura abaixo.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Figura 1 – Introdução do capítulo e contextualização da temática

164

Oliveira
Cavalcante Filho

Fonte: Araújo; Oliveira, 2018, p. 179.

Observa-se na introdução do capítulo, na seção “Para começo de


conversa”, questões de reflexão, contextualização do tema e leitura de uma
charge do cartunista Flamir Ambrósio, publicada originalmente em seu blog,
na seção Geração Z. No texto, há uma criança que está chorando, pois a
senha do wi-fi lhe foi negada na escola.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


A charge que vimos acima serve como abertura à temática estudada
no capítulo, fazendo uma crítica à necessidade que muitas crianças possuem 165
de estarem conectadas à internet a todo momento. Assim, o enunciado
Oliveira
materializado na charge dialoga com o horizonte sócio-histórico-ideológico Cavalcante Filho
mais imediato dos seus interlocutores, uma vez que essas leituras iniciais e
as questões elaboradas a partir delas contextualizam o tema, problematizam
o uso da tecnologia da informação e da comunicação, a dependência de
conectividade por crianças e adolescentes e levam o estudante a refletir sobre
esses aspectos. Isso fica evidente em questões como: “Em sua opinião, a
escola tem acompanhado as transformações tecnológicas?”; “Como
professores e alunos utilizam a tecnologia em sua escola?” Como você usa a
tecnologia? Comente.” “Qual é a crítica social apresentada na charge? Qual
a sua opinião sobre ela?”; “Você já presenciou cenas parecidas com essa?”
(Araújo; Oliveira, 2018, p. 179).
Na sequência, apresenta-se o gênero discursivo infográfico com o
título O uso das tecnologias móveis em sala (figura 1), de Regiany Silva,
publicado no site Porvir.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Figura 2 – Introdução do capítulo e contextualização da temática

166

Oliveira
Cavalcante Filho

Fonte: Araújo; Oliveira, 2018, p. 180.

O texto verbo-visual apresenta motivos e recomendações para o uso


das tecnologias móveis em sala de aula, elaborado com base num guia de
utilização de dispositivos móveis em sala de aula da Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), publicado em 2013.
As questões formuladas para o estudo desse gênero tanto se direcionam para
o entendimento do texto, para sua estrutura composicional, para relação entre

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


o material visual e verbal quanto evocam o estudante a pensar sobre o assunto
e posicionar-se em relação a ele. 167

Analisando o tom emotivo-volitivo das questões elaboradas e a Oliveira


escolha dos gêneros – charge e infográfico – feita pelo autor-criador, Cavalcante Filho

percebemos seu posicionamento axiológico diante do tema, visto que o


conjunto desses elementos constituintes do enunciado do livro didático e as
valorações axiológicas – de aceitação em alguns aspectos e de rejeição em
outros – vão moldando a arquitetônica da DC nessa sequência de atividades.
O enunciado do infográfico atribui significado ao uso das tecnologias
móveis em sala de aula expressando uma visão de aceitação ao afirmar, por
exemplo, que “Amplia o alcance e a equidade da educação”, “Permite que se
aprenda em qualquer hora e lugar” e “Melhora a aprendizagem contínua”
(Araújo; Oliveira, 2018, p. 180). Além disso, faz recomendações que podem
ser observadas pelo uso dessas tecnologias nas escolas. Essas sugestões e as
questões formuladas para a atividade situam-se num contexto sócio-histórico
educacional que visa à criação de políticas públicas, à conscientização, à
expansão, à equalização, à otimização, à capacitação de profissionais, à
melhoria da comunicação e da gestão educacional.
O enunciado proposto nas questões também conduz o sujeito à tomada
de uma atitude responsiva ativa em relação ao que é abordado ao levar à
seguinte reflexão: “Qual é o argumento da representante da Unesco para
defender o uso de tecnologia móvel na escola? Você concorda com esse
argumento? Por quê?”, “Você concorda que o uso de tecnologias móveis
pode “melhorar a aprendizagem contínua”?” e “Em sua opinião, que medidas
um governo pode tomar para essa garantia na escola?” (Araújo; Oliveira,
2018, p. 180).
Dando continuidade à análise do capítulo, chegamos à seção “Prática
de leitura”, onde se encontra o primeiro fragmento do artigo de divulgação
científica Saúde de crianças e adolescentes na era digital, publicado
originalmente num manual de orientação disponível no site da Sociedade
Brasileira de Pediatria. As questões que antecipam a leitura do primeiro
trecho do texto estabelecem uma interação entre o livro didático e o estudante
de forma similar às perguntas que iniciaram o capítulo. Veja:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Figura 3 - Seção “Prática de leitura” e primeiro fragmento do artigo de DC Saúde de
crianças e adolescentes na era digital
168

Oliveira
Cavalcante Filho

Fonte: Araújo; Oliveira, 2018, p. 181.

As questões que antecedem a leitura do artigo de DC, presentes na


figura acima, levam o estudante a pensar sobre sua rotina de uso da internet,
de acesso a jogos e redes sociais e direciona-os para uma reflexão sobre como
a exposição excessiva a aparelhos digitais pode afetar a saúde de adolescentes
e crianças. Nessa atividade, o autor-criador, ao enunciar na direção do outro,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


o estudante, conduz esse sujeito à formação de uma opinião e a posicionar-
se como quem tem algo a dizer a partir do seu próprio ponto de vista, de sua 169
visão de mundo.
Oliveira
Essa relação entre o autor-criador e o destinatário presumido Cavalcante Filho

influenciou a formulação das questões que antecedem a leitura do artigo,


assim como a escolha da temática, do gênero e da própria fragmentação do
texto para ser estudado em duas partes. Tal abordagem possibilita-nos
entender que a relação do livro didático com a palavra alheia passa por uma
complexa cadeia de discursos na qual manifestações axiológicas diversas
materializam-se no enunciado do seu autor-criador.
Na primeira proposta de leitura do fragmento de artigo de DC (figura
2), podemos ver que a parte selecionada destaca os malefícios que vêm
associados ao uso das tecnologias digitais por crianças e adolescentes. Se
originalmente o texto foi publicado num site especializado, tendo como
destinatário presumido pessoas adultas especialistas, no livro didático, o
mesmo texto passa a ter outro público-alvo – professores e estudantes – e um
objetivo didático – ensino de Língua Portuguesa. Quando o discurso de
outrem é incluído em outro contexto, mesmo que pouco ou nada seja alterado
em sua transmissão, o uso feito da palavra alheia sempre acarretará mudanças
semânticas, conforme argumenta Bakhtin (2015):

É necessário observar o seguinte: incluídos no contexto, o discurso do


outro sempre sofre certas mudanças semânticas por mais precisa que
seja a sua transmissão. O contexto que moldura o discurso do outro cria
um fundo dialogante cuja influência pode ser muito grande. Através dos
meios correspondentes de molduragem podem-se conseguir
transformações muito substanciais de um enunciado alheio citado com
precisão. Um polemista de má-fé e finório sabe perfeitamente que fundo
dialógico supor às palavras de seu adversário citadas com precisão para
deturpar o seu sentido. [...] Inserida no contexto do discurso, a palavra
do outro não entra em contato mecânico com o discurso que a moldura,
mas numa unificação química (no plano semântico e expressivo); [...]
Tanto a informação quanto a molduragem do discurso do outro (o
contexto pode começar a preparar de muito longe a inserção do discurso
do outro) traduzem o ato único de relação dialógica com tal discurso,
relação essa que determina todo o caráter de sua transmissão e todas as
mudanças semânticas e acentuais que nele ocorrem durante essa
transmissão (Bakhtin, 2015, p. 133-134).

Assim, as escolhas feitas pelo autor-criador do LDLP mostram um


posicionamento axiológico contra o uso excessivo da tecnologia digital por
crianças e adolescentes, e isso determinou a decisão de estudar essa parte do
texto e não outra.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Na subseção seguinte, “Por dentro do texto”, as questões focam na
compreensão e, também, na interpretação do texto, já que os questionamentos 170
vão além do que está escrito, buscando se relacionar com a vida e com a
Oliveira
opinião do estudante. Isto fica evidente na utilização de expressões como Cavalcante Filho
“Em sua opinião”, “Comente”, “Em sua visão”, “Você”, “E seus familiares
e responsáveis”. Já na subseção “Linguagem do texto”, a atividade proposta
enfatiza as características do gênero artigo de divulgação científica, algumas
escolhas lexicais e sua relação com o sentido, a tipologia textual
predominante e o uso das aspas nas citações diretas. Nessa seção, é
apresentada uma definição para artigo de divulgação científica. Observemos:

2. Leia as informações do quadro a seguir, sobre o gênero textual artigo


de divulgação científica.
O artigo de divulgação científica permite o acesso do público leitor às
pesquisas e seus resultados. É produzido por pesquisadores ou por
instituições que se baseiam na ciência em diferentes áreas para realizar
a leitura da realidade.
A linguagem em textos desse gênero é marcada pela objetividade,
impessoalidade, uso da linguagem formal e da norma-padrão da língua.
O artigo de divulgação científica apresenta sequências expositivas e
argumentativas, pois o cientista, para delimitar uma situação-problema,
parte da sua interpretação da realidade.
Esse gênero organiza-se em parágrafos, mas pode trazer tabelas,
imagens, gráficos e infográficos para ampliar a explicação e tornar a
informação mais acessível ao leitor.
Costuma conter contextualização, problematização e argumentos
(princípio, causa consequência, exemplificação ou autoridade) (Araújo;
Oliveira, 2018, p. 183, grifo das autoras).

A escolha por definir artigo de divulgação científica com esses


elementos também influenciou a elaboração do enunciado do exercício
proposto pelo LDLP, determinando o gênero em estudo, o estilo, dando o
tom emotivo-volitivo, a entonação expressiva e a forma composicional. Os
elementos apontados na citação acima, como a impessoalidade e a
objetividade da linguagem, o autor, o público-alvo, a finalidade e os
argumentos utilizados, por exemplo, são estudados no exercício proposto.
Considerando o contexto da esfera a partir da qual o autor-criador enuncia, a
esfera educacional, no componente curricular em questão, Língua
Portuguesa, é possível notar um posicionamento que evidencia uma
preocupação com a composição do gênero estudado, a linguagem utilizada,
os elementos que garantem a textualidade, a estrutura e a relevância do tema

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


para a sociedade atual. No entanto, nada é dito sobre a importância da DC
para a temática em questão e para a sociedade em diferentes assuntos. 171

O LDLP em análise define o artigo de DC como um gênero que Oliveira


“permite o acesso do público leitor às pesquisas e seus resultados” e que “É Cavalcante Filho

produzido por pesquisadores ou por instituições que se baseiam na ciência


em diferentes áreas para realizar a leitura da realidade” (Araújo; Oliveira,
2018, p. 183). Essa definição, no entanto, não reflete a função social, nem o
diálogo estabelecido entre as esferas da comunicação na realização da DC. O
acesso às informações científicas, a depender da esfera comunicativa, da
intencionalidade discursiva, “pode servir de ferramenta de conscientização
da sociedade sobre o papel e importância da ciência na atualidade” (Oliveira,
2020 p. 22), porém isso não é colocado em pauta nem na proposta de
atividade, nem na definição de artigo de DC apresentada.
O segundo fragmento do artigo, estudado ainda no mesmo capítulo,
também é antecedido na seção “Conversa entre textos” por uma charge, dessa
vez, com o tema Dia das Crianças, publicada originalmente no blog do
cartunista Bruno Galvão.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Figura 4 – Seção “Conversa entre textos”

172

Oliveira
Cavalcante Filho

Fonte: Araújo; Oliveira, 2018, p. 184.

Essa charge faz uma crítica ao fato de muitas crianças estarem


abandonando os brinquedos para ficarem em aparelhos celulares
smartphones e, novamente, traz questões que antecedem a leitura e
estabelecem o diálogo entre o leitor e o livro didático. O enunciado da charge
carrega um conjunto de valores axiológicos que só podem ser percebidos com
o reconhecimento dos elementos visuais que compõem a imagem – crianças
e celulares em tons de cinza e brinquedos coloridos – e a percepção dos
movimentos dos dedos tocando nas telas dos aparelhos, ratificados pelo uso
da onomatopeia “click”. Ao escolher essa charge, o autor-criador assume um
posicionamento valorativo de que os aparelhos celulares são prejudiciais às
crianças e estão afastando-as de brincadeiras saudáveis.
A leitura da charge e de outros gêneros sobre a mesma temática leva
o estudante a relacionar informações diversas sobre um mesmo assunto e a
notar como pode ser abordado em vários aspectos, além disso, permite sua

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


ampliação e aprofundamento. A relação dialógica estabelecida entre os textos
é sugerida numa questão da seção “Conversa entre textos”, ao se solicitar que 173
o estudante “Estabeleça relação entre a crítica apresentada nessa charge e o
Oliveira
artigo de divulgação científica “Saúde de crianças e adolescentes na era Cavalcante Filho
digital” (Araújo; Oliveira, 2018, p. 184). Essa proposta didática considera o
discurso vivo, repleto de significação e vê o estudante como um sujeito sócio-
histórico que produz o seu discurso num elo comunicativo com outros
discursos, numa relação dialógica com discursos anteriores (Volóchinov,
2018).
Na imagem seguinte, podemos ver a segunda parte do artigo de DC e
as questões que antecedem sua leitura:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Figura 5 – Seção “Prática de leitura” com o segundo excerto do artigo de DC Saúde
de crianças e adolescentes na era digital
174

Oliveira
Cavalcante Filho

Fonte: Araújo; Oliveira, 2018, p. 184-185.

A divisão do artigo Saúde de crianças e adolescentes na era digital


em duas partes proporcionou uma análise de diferentes aspectos em

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


momentos distintos. Nessa segunda seção de “Prática de leitura” do capítulo,
o texto em estudo apresenta dados da utilização das tecnologias digitais e das 175
redes sociais de acordo com cada classe social, com os usos e suas
Oliveira
consequências negativas, como discriminação, exposição a discursos de ódio, Cavalcante Filho
a informações sobre formas de usar drogas e de como cometer suicídio, entre
outros. Além disso, faz recomendações aos médicos pediatras e aos pais e
responsáveis em relação ao uso das novas tecnologias, das redes sociais e
indica medidas de prevenção que podem ser tomadas para evitar situações
perigosas e males à saúde.
A subseção “Por dentro do texto”, dessa vez, apresenta questões de
compreensão textual, com foco na construção da argumentação, na forma
como os dados são explicitados no texto, seu entendimento e das
recomendações sugeridas. Como o artigo trata do uso das tecnologias
digitais, a atividade possui uma questão que aborda o significado de hiperlink
e sua função no gênero da DC estudado e outra que procura fazer o estudante
entender o que é um hipertexto e analisar se o texto lido pode ser um.
Vejamos:

6. Releia o trecho atentando-se à expressão destacada e relacionando-a


com a imagem reproduzida do site.
[...]
Responda:
a) A expressão destacada trata-se de um hiperlink. O que é um
hiperlink? O que pode indicar que se trata de um?
b) O que ocorrerá se você clicar na expressão destacada, se estiver lendo
esse texto no computador ou em dispositivos móveis?
[...]
d) Por que os autores de textos de divulgação científica fazem uso de
hiperlink?
e) Pesquise o significado de hipertexto. De acordo com sua pesquisa, é
possível afirmar que o artigo de divulgação científica que você leu é um
hipertexto? Por quê? (Araújo; Oliveira, 2018, p. 188).

A atividade ainda faz uma relação dialógica de intertextualidade com


o cartaz da campanha “Conecte-se ao que importa”, da Associação dos
Amigos do Hospital das Clínicas do Paraná, que faz uma crítica aos pais que
estão nas redes, entretidos em seus smartphones e não dão a atenção
necessária aos filhos. Essa relação é feita com as recomendações e as medidas
de prevenção sugeridas no artigo. Observemos na imagem abaixo:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Figura 6 – Cartaz da campanha “Conecte-se ao que importa”, da Associação dos
Amigos do Hospital das Clínicas do Paraná
176

Oliveira
Cavalcante Filho

Fonte: Araújo; Oliveira, 2018, p. 189.

Os textos verbo-visuais, charges e infográfico, estabelecem uma


relação dialógica entre si e com o artigo de divulgação científica estudado,
no entanto, apesar de serem um todo de sentido utilizado para articular visões
de mundo sobre uma mesma temática, acabam sendo inseridos na atividade
com o objetivo de ampliar a discussão presente em outro texto, tendo um
papel secundário.
Na subseção “Linguagem do texto”, as questões analisam a fonte dos
dados, como essas informações são apresentadas no corpo do texto, sua
importância num texto de DC, as formas de citação, a análise das escolhas
lexicais e sua relação com o sentido do texto. Logo na sequência, termina o
estudo do artigo na seção “Trocando Ideias”, na qual os estudantes são
orientados a conversar com os colegas sobre as recomendações feitas pela
Sociedade Brasileira de Pediatria. Para que a conversa não aconteça de

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


maneira aleatória, o enunciado do livro didático propõem 8 (oito) questões
que induzem o estudante a conversar sobres seus hábitos em relação aos usos 177
das tecnologias, principalmente, das telas digitais, bem como a dar sua
Oliveira
opinião sobre o assunto. Cavalcante Filho

Figura 7 - Seção “Trocando Ideias”

Fonte: Araújo; Oliveira, 2018, p. 190

Nas questões acima, o autor-criador leva os estudantes a refletirem


sobre suas posturas em relação ao acesso às telas digitais e à internet e como
tudo isso afeta na rotina e na convivência com outras pessoas. Além disso,
induz a pensar sobre suas práticas, estabelecendo uma relação dialógica com
as importantes orientações dadas pela Sociedade Brasileira de Pediatria para
cuidados com a saúde física, social e emocional de crianças e jovens.
De fato, a arquitetônica da sequência de atividades propiciou leituras
de diferentes gêneros que circulam em outras esferas, que utilizam o material
verbal e verbo-visual e que são essenciais para que o estudante estabeleça
relações e apreenda o sentido de acordo com seu centro de valor, seu ponto
de vista, enfim, construindo sua própria opinião, fazendo seu julgamento
sobre o assunto.
Assim, notamos que o autor-criador reflete e refrata uma posição
axiológica e leva o destinatário a se posicionar, a ter uma atitude responsiva,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


a construir um ponto de vista, constituindo-se como autor de enunciados,
veiculando sua visão de mundo na sua interação, em uma esfera da 178
comunicação, a esfera educacional básica.
Oliveira
Cavalcante Filho

Conclusões
O autor-criador constrói a arquitetônica da DC nas propostas de leitura
considerando o interacional, convidando o sujeito a pensar do seu lugar no
mundo e a responsabilizar-se. A forma como se apropriam da palavra alheia,
como enunciam na direção do outro e as formas que esse enunciado toma no
contexto da obra revelam como é assimilado pelo autor-criador e,
consequentemente, mostra seu posicionamento axiológico. As autoras, a
partir dos seus centros de valor, construíram seus pontos de vista e
expressaram suas visões de mundo. Ao escolherem um artigo de DC que se
posiciona contra o uso excessivo e descuidado das tecnologias digitais, elas
confrontam os discursos a favor dessas práticas.
O artigo de divulgação científica estudado sofreu deslocamento
espaço temporal, já que ele foi publicado em um momento anterior e,
posteriormente, foi selecionado para fazer parte do projeto enunciativo-
discursivo do autor-criador do livro didático. Com isso, a palavra do outro
sofreu coerção, foi reformulada, adquiriu a entonação, de modo que a
valoração negativa/positiva de concordância/discordância e
aceitação/rejeição ao discurso de outrem tornou-se evidente no todo
arquitetônico do enunciado.
A própria estruturação do capítulo nas seções “Para começo de
conversa”, “Prática de leitura”, “Conversa entre textos”, “Trocando ideias”,
“Reflexão sobre o uso da língua”, “De olho na escrita”, “Na trilha da
oralidade” e “Produção de texto” reflete a segmentação tradicional do ensino
de Língua Portuguesa em leitura, estudo gramatical e produção de texto
(Bunzen, 2006) e – a mais atual – oralidade. O livro didático representa um
grupo social marcado pela história do ensino de língua portuguesa, pelas
políticas educacionais, bem como por aspectos ideológicos, sociais, culturais,
e a junção de todos esses elementos materializa o discurso da tradição do
ensino de língua materna.
Em relação à função social da DC, notamos que os gêneros discursivos
e o livro didático analisado ajudam a publicizar o conhecimento científico, a

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


combater a desinformação, no entanto, a valorização da ciência e da própria
DC não aparece como algo a ser discutido nas questões de compreensão e 179
interpretação e nas perguntas que orientam a troca de ideias entre os
Oliveira
estudantes. Cavalcante Filho

Nossa análise mostra que o posicionamento axiológico assumido pelo


autor-criador na construção do enunciado, na escolha dos gêneros, do
material verbal e verbo-visual, do conteúdo temático, bem como da estrutura
composicional determina a forma arquitetônica das propostas de atividades
elaboras em torno de um gênero da DC.

Referências
AMORIM, Marilia. Para uma filosofia do ato: “válido e inserido no contexto”. In: BRAIT,
Beth (Org). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2018. p. 17-43.
ARAÚJO, Lucy Aparecida Melo; OLIVEIRA, Tânia Amaral. Tecendo Linguagens:
Língua Portuguesa: 8º ano. 5 ed. Barueri, SP: IBEP, 2018. Disponível em:
https://pnld2020.ftd.com.br/colecao/tecendo-linguagens/. Acesso em: 07 maio 2023.
BAKHTIN, Mikhail. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária.
Questões de Literatura e de Estética (A Teoria do Romance). Tradução Aurora Fornoni
Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Spryndis Nazário e Homero
Freitas de Andrade. Hucitec Editora: São Paulo, [1924] 2010b. p. 13-70.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Editora
34, 2016.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução Valdemir de
Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, [1920-4] 2010a.
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance: a estilística. Tradução Paulo Bezerra;
organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora
34, 2015.
BAKHTIN, Mikhail. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação
Verbal. Tradução Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, [1919] 2011a. p.
XXXIII-XXXIV
BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, Mikhail.
Estética da Criação Verbal. Tradução Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, [1920-3] 2011b. p. 3-192.
BRASIL. Ministério da Educação. Guia Digital - PNLD 2020: Língua Portuguesa. 2020.
Disponível em: https://pnld.nees.ufal.br/assets-pnld/guias/Guia_pnld_2020_pnld2020-
lingua-portuguesa.pdf. Acesso em: 07 maio. 2022.
BUNZEN, Clécio. Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto
no ensino médio. In: BUNZEN, Clécio; MENDONÇA, Márcia. Português no ensino médio
e formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, p. 139-161.
CAMPOS, Maria Inês Batista. A questão da arquitetônica em Bakhtin: um olhar para
materiais didáticos de língua portuguesa. Filologia E Linguística Portuguesa, v. 14, n. 2,
p. 247-263, 2012. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2176-9419.v14i2p247-263.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


CAVALCANTE FILHO, Urbano. A arquitetônica da divulgação científica nos enunciados
das Conferências Populares da Glória (Séc. XIX). 540 f. Tese (Doutorado em Letras) -
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 180
2017. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8142/tde-19062017-
114242/publico/2017_UrbanoCavalcanteDaSilvaFilho_VCorr.pdf. Acesso em: 20 maio Oliveira
2022. Cavalcante Filho

FRANCELINO, Pedro Farias. Estilo e autoria em sermões religiosos: uma análise


dialógica. In: BRAIT, Beth; PISTORI, Maria Helena Cruz; FRANCELINO, Pedro Farias
(Orgs.). Linguagem e conhecimento (Bakhtin, Volóchinov, Medviédev). Campinas, SP:
Pontes Editores, 2019, p. 233-259.
GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Divulgação científica: linguagens, esferas e gêneros.
333 f. Tese (Livre-Docência) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Disponível em:
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/livredocencia/8/tde-04112015-
181038/publico//2013_SheilaVieiraDeCamargoGrillo.pdf. Acesso em: 20 maio 2021.
MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievich. O método formal nos estudos literários: introdução
crítica a uma poética sociológica. 2 ed. Tradução Sheila Vieira de Camargo Grillo e
Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, [1928] 2019.
OLIVEIRA, Jamille Santos. A divulgação científica e o ensino de língua portuguesa: uma
análise bakhtiniana dos gêneros discursivos no livro didático. 2020. Dissertação (mestrado)
–Universidade Estadual de Santa Cruz. Programa de Mestrado Profissional em Letras
(PROFLETRAS). Ilhéus, BA: UESC, 2020. Disponível em:
http://www.biblioteca.uesc.br/biblioteca/bdtd/201810237D.pdf. Acesso em: 07 maio 2023.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais
do método sociológico na ciência da linguagem. 2 ed. Tradução Sheila Vieira de Camargo
Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2018.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


181

Carvalho
Cavalcante Filho

O Círculo de Bakhtin e a
Linguística Aplicada: notas para
uma Educação antirracista em
ensino de língua espanhola
The Bakhtin Circle and Applied Linguistics: notes for an anti-
racist education in Spanish language teaching

Maria Elia dos Santos Teixeira de Carvalho 1 Introdução


Instituto Federal Baiano, Brasil
Universidade Estadual de Santa Cruz, Brasil No dia 27 de março de
2023, na Escola Estadual
Urbano Cavalcante Filho
Instituto Federal da Bahia, Brasil Thomazia Montoro, localizada na
Universidade Estadual de Santa Cruz, Brasil Vila Sônia, em São Paulo, um
Universidade de São Paulo, Brasil
estudante de 13 anos esfaqueou
quatro professoras e um aluno,
resultando na morte de uma das docentes. Não fosse a tristeza e a violência
desse fato, reportagens televisivas trouxeram desdobramentos importantes:
discentes da unidade escolar informaram que, na semana anterior, o agressor
havia brigado com outro aluno da escola, sendo racista ao ofender o garoto,
chamando-o de macaco. No dia do ataque, porém, o menino ofendido não foi
à aula, mas a professora que faleceu foi justamente quem interveio na briga
entre os estudantes, assim como o aluno que foi ferido no ataque, durante a

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


briga da semana anterior, havia defendido o colega vítima de racismo.1
Chama a atenção, nesse sentido, que os alvos do ataque tenham sido, 182
inicialmente, pessoas que tiveram posturas antirracistas.
Carvalho
Esse acontecimento está relacionado a um episódio flagrante de Cavalcante Filho

racismo na escola, que resultou em uma tragédia. O episódio, assim como


outros casos de atentados terroristas nas escolas, os quais estão ligados ao
nazismo e ao racismo2, evidencia tanto a fragilidade na qual a instituição
escolar está imersa como, sobretudo, que a escola não é um espaço à parte da
sociedade. Ao contrário, é nela que formamos e somos formados para o
convívio social, e, assim sendo, apresenta latentes problemas sociais que
precisam ser enfrentados, a exemplo do racismo e de suas variadas formas de
apresentação.
Ainda vislumbrando o atentado terrorista na Escola Estadual
Thomazia Montoro, chamamos a atenção para o fato de que, nesse caso, o
racismo se concretizou quando o agressor ofendeu o outro, chamando-o de
macaco. E essa ofensa se deu, nesse episódio, por meio da linguagem. Foi
justamente a expressão de uma palavra, dita com teor preconceituoso, que
materializou verbalmente o racismo e, para além da violência verbal e
psicológica, incorreu, ao mesmo tempo, em desumanização e animalização
da pessoa negra.
Decerto, a situação evidencia para toda a sociedade uma necessidade
premente: de implementação de uma educação antirracista. Não se trata, por
óbvio, da abordagem pretendida em uma ou outra disciplina, mas sim de um
compromisso educacional conjunto, que deve ser assumido por todos os
espaços de educação formal e não formal. Em nosso caso, por sermos do
campo das linguagens, buscamos contribuir, neste texto, com proposições
relacionadas à articulação da Linguística Aplicada (LA) com a teoria
dialógica da linguagem na promoção de uma educação linguística
antirracista. Para tanto, tomamos como ponto de partida possíveis

1
Mais informações sobre esse caso podem ser conferidas em: https://mundonegro.inf.br/preso-por-
atentado-a-escola-em-sp-o-agressor-ja-havia-sido-acusado-de-racismo-e-brigou-com-uma-das-vitimas/.
Acesso em: 29 mar. 20023.
2
Em reportagem veiculada pelo Portal UOL, os jornalistas Herculano Barreto Filho e Ana Paula
Bimbati evidenciam que, de 2019 a 2023, tem crescido o número de atentados terroristas nas escolas
ligados ao nazismo, sobretudo, após a pandemia de covid-19. Os repórteres destacam que, de 15
atentados ocorridos nesse período, ao menos cinco estão expressamente ligados à ideologia nazista,
que é também racista, e outros sete episódios se correlacionam ao tema, ainda que de modo não tão
explícito quanto os outros. Sobre essa análise, mais informações podem ser consultadas em:
https://abre.ai/f3ek. Acesso em: 15 mar. 2023.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


articulações entre a LA, os estudos de Mikhail Bakhtin e do Círculo de
Bakhtin (CB) e uma educação linguística antirracista, em viés decolonial, 183
tendo por diretriz o ensino de língua espanhola como língua adicional.
Carvalho
Objetivamos, desse modo, discutir as contribuições da LA e do CB Cavalcante Filho

para pensarmos um ensino de língua espanhola antirracista e decolonial,


sobretudo, com base em um viés dialógico, alteritário e responsivo.
Elucidamos que, afora casos como o aqui inicialmente relatado justificarem
a temática abordada neste estudo, tematizar uma educação linguística
antirracista também contribui para discutirmos sobre a pluralidade e a
identidade linguística-cultural que envolve essa língua, desde a sua influência
negra à indígena, especialmente, ao geolocalizarmos politicamente esse
ensino na América Latina.
Nossa proposta é realizar um exercício teórico-reflexivo, pautado, de
forma metodológica, em uma revisão bibliográfica dos estudos do ciclo
bakhtiniano em diálogo com a LA em viés decolonial, a partir de uma
metodologia de discussão teórico-reflexiva direcionada à educação (Ghedin;
Franco, 2008). Assim, não tratamos de um objeto de análise específico, mas
sim do exercício de refletir sobre o contexto educacional referido, dada a
necessidade requerida pela temática do racismo na escola. É preciso, desse
modo, que possamos pensar e discutir a educação antirracista que almejamos
para, posteriormente, buscarmos práticas que traduzam nossas reflexões.
Para tanto, este texto está estruturado em cinco seções, considerando
a presente introdução e as considerações finais. Ademais dessas seções,
buscamos apresentar um breve panorama sobre o ensino de espanhol na
atualidade brasileira; em seguida, abordamos as possíveis articulações entre
a LA e o CB, como base para um ensino dialógico, alteritário e responsivo,
que conduza a uma educação antirracista; por fim, discutimos as
contribuições de uma educação linguística antirracista, em viés decolonial,
no ensino de espanhol, como contributo a uma educação antirracista.

2 O ensino de língua espanhola na educação


básica: breve panorama
No Brasil, durante muito tempo, no ensino básico, a língua inglesa
manteve sua hegemonia no currículo – cenário este que passou a se modificar
a partir do fortalecimento econômico do país e das relações desenvolvidas de

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


forma mais consolidadas com a América do Sul e com a Espanha. Frente a
esse contexto, tivemos, em 2005, a promulgação da Lei 11.611, a qual 184
dispunha como obrigatória a oferta do ensino de língua espanhola nas
Carvalho
escolas, sendo facultativa aos discentes a matrícula. Contudo, em 2016, a Cavalcante Filho
Medida Provisória – MP nº 746 –revogou a Lei 11.611, e em 2017, a Lei
13.415 colocou a oferta do ensino de espanhol não mais como obrigatória.
Com a aprovação da MP 746 (Brasil, 2016) e da Lei 13.415 (Brasil, 2017),
aumentaram ainda mais os desafios para os professores de espanhol e para
aqueles que se encontram em formação docente, visto que há desde uma
escassez no campo de trabalho a, novamente, uma política linguística de
desvalorização do espanhol.
Nesta seção, buscamos apresentar um panorama relacionado ao ensino
de espanhol na atualidade, considerando que esse ensino se dá a partir de
políticas linguísticas e políticas educacionais. Consideramos, igualmente, a
necessidade de reformulação do currículo, dado que, conforme indicaremos,
a variante linguística privilegiada ainda é a europeia, com todo o seu teor
colonialista, racista e brancocêntrico, sendo desconsideradas as variantes de
língua espanhola faladas na América do Sul. Destacamos, nesse sentido, a
compreensão de Kanavillil Rajagopalan sobre políticas linguísticas no
cenário contemporâneo:

Hoje em dia, internacionalmente há pessoas que cada vez mais pensam


que a política linguística implica qualquer pensar sobre ensino de
línguas no país, quer seja da língua materna, quer seja da língua
estrangeira, tem que ser colocado, antes de mais nada, no contexto da
macropolítica que o país tem (Rajagopalan, 2012, p. 78).

Rajagopalan (2012) nos fornece, desse modo, um importante ponto


para pensarmos o ensino de línguas no país, que é a necessidade de
considerarmos que as orientações educacionais são construídas no contexto
macropolítico da realidade brasileira. Não há, assim, como desconsiderar o
viés político delas, visto que são direcionadas por epistemologias e
entendimentos políticos sobre o papel da educação, consequentemente, de
cada componente curricular ministrado. Concordamos, nesse sentido, com
esse autor, quando analisa que a linguística “engloba uma vasta gama de
atividades que vão desde as políticas locais ou pontuais que envolvem o uso
da língua às políticas mais complexas e organizadas pelas autoridades
governamentais” (Rajagopalan, 2011, p. 126-127).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Por essa perspectiva, tratar do ensino de línguas relacionado às
políticas linguísticas é pensar em como o currículo se organiza – desde às 185
orientações gerais a como os professores organizam sua disciplina,
Carvalho
considerando, para tanto, o contexto macropolítico do país. Envolve, ainda, Cavalcante Filho
a oferta da disciplina, sua ementa, ações de incentivo e o modo como são
consideradas três perguntas fundamentais: O que se ensina? Para que se
ensina? A quem interessa politicamente a ausência de espanhol do currículo?
Conforme a análise de Rajagopalan,

A gente tem que pensar o ensino/aprendizagem de línguas no contexto


maior, ou seja, é uma sociedade. Ensino de língua não é brincadeira.
Nesse contexto que nós estamos vivendo, o contexto de globalização,
países estão investindo pesadamente nesta questão. Então, a gente tem
que perguntar para que a sociedade brasileira precisa que seus cidadãos
tenham acesso às línguas? Isso é uma questão de geopolítica. Se o
Brasil precisa de línguas, então a gente tem que pensar nesta questão.
Uma vez estabelecida a prioridade, a gente tem que perguntar: qual a
maneira melhor, quais os métodos a serem usados? (Rajagopalan, 2012,
p. 79).

Discutir políticas linguísticas pelo viés da geopolítica, considerando o


contexto macropolítico do país ao pensar o ensino, permite-nos compreender
que as políticas linguísticas envolvem diretrizes, leis ou regulamentos que
estabelecem o uso de línguas em um determinado contexto. Elas podem ser
usadas para promover o uso de línguas oficiais, para incentivar o uso de
línguas minorizadas ou, ainda, para estabelecer regras para o ensino de
línguas adicionais. Assim, ao tratarmos do espanhol, não podemos
desconsiderar as políticas linguísticas vigentes, bem como as políticas
educacionais.
Desse modo, ao discutirmos, aqui, políticas linguísticas relacionadas
ao ensino do espanhol, o fazemos pensando no contexto da macropolítica
brasileira. Destacamos que, antes de 2005, havia dois Projetos de Leis (PL)
que tematizavam o espanhol na educação básica: o PL n° 4.004 (Brasil,
1993), proposto pelo então presidente Itamar Franco, e o PL n° 3.987 (Brasil,
2000), de autoria do então deputado Átila Lira. Esses dois PL foram
utilizados também como base para a promulgação da Lei n° 11.161 (Brasil,
2005), conhecida como Lei do Espanhol, a partir da qual foi oficializado no
currículo brasileiro o ensino de espanhol, no governo do Presidente Luís
Inácio Lula da Silva. A referida Lei dispunha que as escolas brasileiras do
Ensino Médio deveriam ofertar a Língua Espanhola no currículo, sendo
facultativa aos discentes a escolha pelo idioma. Quanto ao ensino

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


fundamental, as escolas também poderiam oferecê-lo a partir do 6º ano.
Efetivamente, ficou estabelecida a implementação da Lei do Espanhol dentro 186
de cinco anos, e coube aos Conselhos Estaduais de Educação o
Carvalho
acompanhamento para a vigência dessa Lei. Cavalcante Filho

Vale destacar que os projetos de leis que antecederam a aprovação da


Lei do Espanhol sofreram influência do acordo socioeconômico do
MERCOSUL3, visto o Espanhol ser uma de suas línguas oficiais. Esse fato
aqui no Brasil consolidou o espanhol como a língua do comércio, do turismo,
dos negócios, trazendo uma representatividade muito significativa para a
adesão do idioma ao currículo. A Lei do Espanhol foi um marco importante
para a retomada do Espanhol no currículo, mesmo sendo de caráter optativo.
Percebemos, à época, uma vasta oportunidade de trabalho, dado que, a partir
dos anos 2000, vimos uma grande leva de concursos públicos que se
acentuaram de forma mais expressiva com a promulgação, em 2005, da Lei
11.161 (Brasil, 2005).
Outra ação importante para o fortalecimento desse novo componente
curricular foi a inserção do Espanhol, em 2011, no Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD). Essas orientações trouxeram ganhos imensuráveis
para a educação brasileira, especialmente, para a pública, pois possibilitou,
sobretudo, a ampliação formativa curricular, contribuindo, assim, para a
assunção identitária coletiva no intento de que o corpo discente se reconheça
latino-americano.
Mais recentemente na história política e educacional brasileira, a luta
pela presença do espanhol no currículo teve novos desdobramentos. Em
2016, foi publicada uma Medida Provisória que propunha uma reforma no
ensino e que culminou no sancionamento da Lei n° 13.415 (Brasil, 2017), na
gestão do então presidente Michel Temer. Nessa reforma, conforme
antecipamos na introdução desta seção, a Lei 13.415 (Brasil, 2017) colocou
a oferta do espanhol não mais como obrigatória. Essa reforma, inclusive, foi

3
“O MERCOSUL é um processo de integração econômica entre Argentina, Brasil, Paraguai e
Uruguai, iniciado com a assinatura do Tratado de Assunção, que tem como objetivo a conformação
de um mercado comum [...]. Em dezembro de 2005, o Mercosul aceitou o pedido da Venezuela de
adesão ao bloco, tendo sido firmado um Acordo Macro e criado um Grupo Ad Hoc para tratar das
questões relacionadas. Para aderir plenamente, a Venezuela terá que cumprir o disposto na Decisão
CMC 28/05 e, entre outras normativas, adotar a Tarifa Externa Comum do Mercosul, deixando de
integrar economicamente a Comunidade Andina das Nações. Enquanto está em processo de adesão,
a Venezuela está com o direito de participar de todas as reuniões do Mercosul, com direito a voz”.
Disponível em: http://mdic.gov.br/index.php/comercio-exterior/negociacoes-internacionais/799-
mercosul-mercado-comum-do-sul. Acesso em: 20 out. 2022.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


maturada em meio ao contexto de turbulências que afetaram a democracia
brasileira, culminando no impedimento da então presidenta Dilma Rousseff 187
em terminar o seu mandato presidencial.
Carvalho
A revogação da Lei do Espanhol, por meio da Lei 13.415 (Brasil, Cavalcante Filho

2017), trouxe várias implicações não apenas no apagamento desse campo do


conhecimento no currículo, como também na demissão de professores e, “na
melhor das possibilidades”, na migração desses docentes para outras
disciplinas, afetando, assim, sua identidade profissional. Pensamos que
devido a esse cenário desmotivador, o número da demanda de acadêmicos
para a licenciatura em Espanhol também diminuiu, uma vez que as
possibilidades laborais ficaram mais restritas. O que temos atualmente em
relação aos documentos oficiais são possibilidades de oferta do espanhol
conforme orienta a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), que traz a
seguinte afirmação quanto às línguas adicionais no currículo:

Os currículos do ensino médio incluirão, obrigatoriamente, o estudo da


língua inglesa e poderão ofertar outras línguas estrangeiras, em caráter
optativo, preferencialmente o espanhol, de acordo com a
disponibilidade de oferta, locais e horários definidos pelos sistemas de
ensino (Brasil, 2018, p. 476).

O retorno da hegemonia do Inglês no currículo, possivelmente, já


aponta para o modelo de educação por trás de políticas que restringem o
acesso a saberes tão necessários à educação linguística brasileira. Na medida
em que a BNCC (Brasil, 2018) diz que o aluno poderá ter outra língua
adicional e que, caso opte, que seja “preferencialmente o espanhol”, esse
dispositivo de poder já aponta para a obrigatoriedade apenas do inglês,
deixando evidente o apagamento do Espanhol no currículo. Essa medida
contribui, nesse sentido, para o afastamento da população educacional aos
saberes relacionados ao ensino de Espanhol, incorrendo, de outro modo, em
aproximação hegemônica à língua e cultura inglesas. Entendemos, nesse
viés, que tirar o Espanhol do currículo, ou reduzi-lo, na formação dos
discentes, a uma carga-horária muito baixa, é mais uma maneira de legitimar
a exclusão de saberes à classe trabalhadora.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


3 O círculo de Bakhtin e a linguística aplicada:
articulações 188

Talvez soe estranho criticarmos a hegemonia do ensino de língua Carvalho


Cavalcante Filho
inglesa e, na seção seguinte, nos voltarmos à teoria linguística russa, também
estrangeira, euroasiática, afinal, ambos – língua inglesa e estudos do Círculo
de Bakhtin – representam certa tradição científica e, consequentemente,
hegemonia epistemológica em países que foram colonizados.
Reconhecemos, inequivocamente, que, muitas vezes, a tradição pode solapar
e promover o apagamento de culturas e de saberes não hegemônicos, com
um fazer legitimado por epistemologias racistas e homogeneizantes.
Todavia, entendemos que, ainda que o racismo não tenha sido tematizado
pelos estudos do CB, essa vertente teórica, que, à época, rompeu com muitos
paradigmas tradicionais do campo da linguagem, tem importantes
contributos que podem nos auxiliar a compor uma educação antirracista e,
sobretudo, uma educação linguística antirracista, a partir de elementos como
o dialogismo, a alteridade e a responsividade.
Interessa-nos, assim, buscar possíveis articulações entre o CB e a LA
na atualidade, observando como essas articulações possibilitam, a partir do
ensino, discutir uma educação linguística antirracista. Embora nosso objetivo
não seja apresentar uma língua, acreditamos ser importante iniciarmos esta
seção com a compreensão de língua(gem), considerando que somos
professoras/es desse campo de ensino, pesquisadoras/es e, antes disso,
sujeitas/os da linguagem. Considerando as reflexões do CB, entendemos que
a língua(gem) é um evento concreto, plurilinguístico, vivo, de natureza
dialógica, ético-política e inacabada. Nessa perspectiva, lidamos com a
língua(gem) cotidianamente, ela ocupa um lugar de centralidade nas nossas
vidas a partir de construções sociais, que vão se desenvolvendo tendo em
vista os espaços ocupados e/ou impostos que nos são colocados socialmente,
e isso vai construindo as formas e representações de estar no mundo.
É nessa materialização de estar no mundo que encontramos na LA um
campo do conhecimento que vem buscando entender como as pessoas usam
os seus discursos em um sistema/mundo ainda baseado em hierarquias
epistemológicas. A LA tem buscado acolher, ouvir a voz, representar corpos
que insurgem frente a uma sociedade que ainda se mostra racista, machista,
feminicida, classista e, sobretudo, epistemicida. Neste sentido, a LA busca
atentar-se a sujeitas e sujeitos diversos, que usam uma língua plural e que,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


acima de tudo, vivem em contexto também de pluralidades. Essa diversidade
latente confronta padrões hegemônicos, inclusive linguísticos, e dá margens 189
às necessárias resistências e re-existências, como a luta antirracista, que
Carvalho
busca aporte na insurgência da LA para, justamente, insurgir-se contra o Cavalcante Filho
racismo em suas variadas formas e, neste caso, com especial atenção para o
racismo linguístico e para a materialização do racismo na linguagem – a
exemplo da materialidade que vislumbramos no caso do atentado ocorrido na
escola estadual paulista.
Embora a LA seja uma área investigativa nova, surgida por volta de
1940, em seu ciclo de existência, já caminhou com os passos orientados por
aquela que é intitulada “sua mãe”, a Linguística. A partir da década de 1970,
começou a se desenvolver como campo autônomo, foi amadurecendo, se
autoquestionando, indisciplinando, subvertendo, transgredindo, construindo
pensamentos que não se encaixavam em determinadas padronizações,
justamente, por ater-se à diversidade social. Isso, consequentemente, a levou
a percorrer caminhos outros. Tais caminhos levaram esse jovem campo de
investigação a se ancorar nas teorias sociais, e podemos dizer que essa LA
atualmente é uma adulta jovem, trans/indis/interdisciplinar, arrojada,
subversiva, transgressiva, dentre outros qualificadores. É, sobremaneira, um
campo atento às ins(urgências) sociais e, conforme destaca Silva, “marcado
pela ousadia dos que se identificam como linguistas aplicados” (Silva, 2021,
p. 17).
Assim, esse campo do conhecimento resiste aos muros separatistas e
avança nas travessias fronteiriças de outros campos do conhecimento,
trazendo pautas (ins)urgentes e rediscutindo o sujeito e suas
línguas/linguagens. Esse desenho da LA na contemporaneidade converge
para o que Pennycook (2006) chama de LA Trangressiva, enquanto Fabricío
(2006) aponta para uma LA da Desaprendizagem. Para Moita Lopes (2009),
a LA seria indisciplinar; já Silva (2021) chama de LA Arrojada.
Pennycook (2006) apresenta uma Linguística Aplicada para além da
crítica, a transgressiva. Essa LA convoca à transgressão do pensamento
tradicional para uma outra lógica, na qual a linguagem é vista como “um ato
de identidade que possibilita a existência da língua” (Pennycook, 2006, p.
23). Ainda de acordo com esse autor, o enunciado transgressivo evoca várias
acepções, e o ser transgressivo remete à ideia de “ter instrumentos políticos
e epistemológicos que permitam transgredir os limites do pensamento e da

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


política tradicionais” (Pennycook, 2006, p. 74). Nesse sentido, o movimento
de transgredir significa resistir e romper com o projeto capital vigente; dada 190
a complexidade dessa empreitada, é necessário o agenciamento político e
Carvalho
epistêmico para concretizar essa ideia. Cavalcante Filho

Ao considerar que a constituição do sujeito vai incidir na sua produção


do conhecimento, conforme Pennycook (2006) destaca, é preciso confrontar
a academia ocidental, que lança dúvidas sobre a representação desses
sujeitos. A LA transgressiva defende que a lógica social não é apenas a
linguagem, conforme o idealismo logocêntrico defende. É necessário
entender que esses sujeitos, além do discurso, estão situados territorialmente,
possuem corpos, compreendem o tempo por uma outra lógica, além de serem
marcados por diferenças raciais, sexuais, socioeconômicas, dentre outras.
Fabrício (2006), por sua vez, nos traz a desaprendizagem como
possibilidades de construir novos conhecimentos, sobretudo, a partir da lente
da Linguística Aplicada. A autora, a partir de teorias foucaultianas,
nietzschianas e wittgensteinianas, apresenta procedimentos metodológicos
que conduzem à afiliação a uma LA que é constituída a partir de uma prática
que se encontra em constante questionamento e, como tal, é
problematizadora. Essa LA que propõe a desaprendizagem como
possiblidade de conhecimento, antes, está atenta ao fato de a linguagem ser
um movimento extremamente político e, como tal, não está destituída de
determinada matriz epistêmica, tampouco de neutralidade em relação ao
conhecimento produzido, o qual, por vezes, fomenta o apagamento de
produções socioculturais e intelectuais de grupos marginalizados, a exemplo
do povo negro, como indica Gomes (2017).
Fabrício (2006) destaca que a LA, na perspectiva apresentada, aponta
descaminhos no processo do conhecer. Entendemos também que pensar a LA
na perspectiva do desaprender implica questionar as estruturas já
consolidadas, sobretudo, aquelas que se originam do racismo e da
colonialidade do saber e do poder, na expressão de Quijano (1997).
Igualmente, endossar e considerar as perguntas não respondidas daqueles/as
que se encontram às margens possibilita contestar às benesses da elite
dominante, que se sustenta no universalismo estruturante.
Ao sugerir que os estudos linguísticos necessitam “responder mais
fecundamente” às demandas da contemporaneidade, Fabrício (2006, p. 61)
faz uma alusão cara ao convocar, no dizer bakhtiniano, à responsividade

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


como ponto de largada às insurgências contemporâneas postas a partir das
transformações sociais e linguareiras. Nesse sentido, Bakhtin destaca a 191
importância da responsividade como um ato potente e dialógico:
Carvalho
Cavalcante Filho
Porque ao enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual
concordo, ao qual faço objeção, o qual executo, levo em conta, etc.) já
está presente a sua resposta (ou compreensão responsiva) ainda está por
vir. Ao construir o meu enunciado, procuro defini-lo de maneira ativa;
por outro lado, procuro antecipá-lo, e essa resposta antecipável exerce,
por sua vez, uma ativa influência sobre o meu enunciado (dou resposta
pronta às objeções que prevejo, apelo para toda sorte de subterfúgios).
Ao falar, sempre levo em conta o fundo aperceptível da percepção do
meu discurso pelo destinatário: até que ponto ele está a par da situação,
dispõe de conhecimentos especiais de um dado campo cultural da
comunicação; levo em conta as suas concepções e convicções, os seus
preconceitos (do meu ponto de vista), as suas simpatias e antipatias –
tudo isso irá determinar a ativa compreensão responsiva do meu
enunciado. (Bakhtin, 2011, p. 302).

Bakhtin (2011), ao tratar sobre a responsividade ou, ainda, falar sobre


compreensão responsiva, nos dá uma dimensão fundamental da
dialogicidade: a interação com o outro, a comunicação que se efetiva a partir
desse outro com quem dialogamos. O dialogismo é a espinha dorsal das
reflexões do CB, visto que todos os demais postulados estão ligados ao
dialogismo. E por ser um tema tão caro, Faraco (2009) observa que “há uma
grande identificação do pensamento do Círculo de Bakhtin com a metáfora
do diálogo. E isso a tal ponto que já se tornou habitual e generalizado
designar esse pensamento pelo termo de dialogismo” (Faraco, 2009, p. 60).
Para o CB, o diálogo assume fundamental importância diante da necessidade
de atenção ao que ocorre no interior desse diálogo, ou seja, as significações
ali contidas.
Partindo da compreensão de que nas relações dialógicas a linguagem
vai constituindo o sujeito, ao tempo também que essa é constituída pelo
sujeito, o caráter social da língua possibilita um território de encontro desse
sujeito com o outro, consigo mesmo e com diversas formas de materialidade
discursiva. Neste momento, entra em cena, de acordo com Volóchinov
([1970] 2018), o dialogismo, ou seja, o diálogo enquanto interação discursiva
tanto pode ser eu com o outro quanto pode ser eu comigo mesmo, destacando
que esse outro pode ser qualquer enunciado, a exemplo de um livro ou
qualquer materialidade discursiva ou representação enunciativa. Portanto,
para Volóchinov ([1970] 2018), o movimento dialógico se dá em diferentes
esferas sociais, as quais ocorrem sob as diversas orientações ativas do sujeito:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Obviamente, o diálogo, no sentido estrito da palavra, é somente uma
das formas de interação discursiva, apesar de ser a mais importante. No
entanto, o diálogo pode ser compreendido de modo mais amplo não 192
apenas como a comunicação direta em voz alta entre pessoas face a
face, mas como qualquer comunicação discursiva, independentemente Carvalho
do tipo. Um livro, ou seja, um discurso verbal impresso também é um Cavalcante Filho
elemento de comunicação discursiva. Esse discurso é debatido em um
diálogo direto e vivo, e, além disso, é orientado para uma percepção
ativa: uma análise minuciosa e uma réplica interior, bem como uma
reação organizada, também impressa, sob diversas formas elaboradas
em dada esfera da comunicação discursiva. (Volóchinov, [1970] 2018,
p. 219).

Nessa vertente, partimos da compreensão de que a dialogia está


presente em todas as experiências sociais do sujeito e se caracteriza como um
traço decisivo da linguagem, visto que essa linguagem é atravessada tanto
pelas vivências dos sujeitos, quanto pelas vivências do outro. Cada palavra
carrega um pouco do eu e do outro, e desse encontro, surgem os consensos,
as concordâncias, discordâncias, objeções, contradições, contrapontos,
dentre outras reações. Esse processo gera uma tensão típica de interação
social, afinal, a despeito das diferenças, divergências, ideologias, é o que
produzirá sentido para o outro e diante do outro.
Entendemos ainda que Bakhtin e o CB trouxeram contribuições caras
que possibilitam compreender a necessidade, através do conceito de
dialogismo, de visibilizarmos alteridades outras que, no decurso da História,
foram reiteradamente apagadas, a exemplo da mulher negra. Dessa forma, a
dialogicidade pode ser vista como um elo entre uma LA pautada na
desaprendizagem, como propõe Fabrício (2006), e uma LA indisciplinar,
como defende Moita Lopes (2009). Na primeira, ver o outro ou se perceber
como esse outro é importante para que possamos questionar aquilo que está
dado, que está posto à mesa de saberes, culturas e conhecimentos. Nesse
sentido, possibilita questionarmos: onde estão os saberes outros? A partir daí
se inicia o processo de desaprendizagem para novas aprendizagens, para
conhecimentos outros. Já na segunda, é fundamental para a constituição de
uma LA indisciplinar o reconhecimento da diversidade e da pluralidade
social. Isso, obrigatoriamente, inclui a percepção dos sujeitos intitulados
como “os outros”, os quais, a rigor, compõem minorias sociais que são
populacionalmente maiores, mas que foram sequestradas pelo domínio
colonialista e apresentadas sob a condição da outridade (Carneiro, 2005) e/ou
da subalternidade, conduzidas à invisibilidade social.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Frente a esse contexto social, Moita Lopes (2009) nos convida a
pensar uma LA indisciplinar, como uma área nômade e mestiça de saberes, 193
demarcada, especialmente, pela ousadia de pensar diferente, extrapolando os
Carvalho
cânones já instituídos. Essa LA se transforma continuamente à medida que Cavalcante Filho
atravessa as fronteiras disciplinares, sempre atenta aos sujeitos sociais, às
questões que os atravessam, com maior atenção às produções discursivas
desses indivíduos. Para o autor, o fato de a LA estar constantemente se
repensando é resultado de uma sociedade também reflexiva, cabendo aos
pesquisadores traçar os seus caminhos, tendo em vista as demandas
cotidianas que nos são postas – e, nesse sentido, destacamos que este estudo
se origina da demanda de uma educação antirracista e, mais especificamente,
de uma educação linguística antirrracista a partir do ensino do espanhol.
Para Moita Lopes (2009), é necessário reteorizar o sujeito da LA, o
que significa compreender que esse sujeito tem gênero, raça e sexualidade.
Isso implica uma atenção às práticas discursivas, visto que as condições de
conhecimento e de poder estão subjacentes a tais práticas, inter-relacionando
as questões linguísticas à política. Nessa conjuntura, a LA indisciplinar
assume como desafio a compreensão do outro em via fronteiriça. O pensar e
o agir fronteiriço exigem, igualmente, uma postura dialógica e alteritária,
filiando-se à perspectiva do dialogismo bakhtiniano no reconhecimento
indisciplinar desse outro, que se apresenta nas fronteiras geoespaciais da
sociedade.
Em paralelo, ao pensar uma LA arrojada, Silva (2021) destaca que a/o
linguista aplicada/o precisa agir a partir dos problemas reais, observando as
manifestações linguistas, atendo-se às aflições que atingem os sujeitos
sociais, especialmente, as pessoas que são reiteradamente invisibilizadas na
sociedade – e isso, em nosso entendimento, requer uma postura baseada na
alteridade, como propõem os estudos do CB. Pensar uma LA arrojada é
legitimar as “práticas representativas” das comunidades subalternizadas,
dando visibilidade às suas produções, possibilitando a participação desses
corpos nos diversos espaços sociais e de poder. Desse modo, Silva (2021)
defende a LA arrojada, sobretudo, pela possiblidade de ousar outros modos
de fazer pesquisa, com o atrevimento de que o/a pesquisador/a pode se inserir
textualmente em sua própria pesquisa.
O modus operandi proposto por Silva encontra acolhimento no
pensamento intelectual negro, visto que, como indicam Barbosa e Oliveira

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


(2020) e Nascimento e Santos (2018), a produção da intelectualidade negra é
entremeada pela abordagem de problemáticas sociais entrecruzadas pelo viés 194
da racialidade. Essa perspectiva nos conduz, por sua vez, à necessidade de
Carvalho
um olhar alteritário, como proposto nos estudos bakhtinianos, em relação a Cavalcante Filho
perceber a produção desses conhecimentos outros, de sujeitos outros.
Entendemos ser essa a base epistemológica uma Linguística aplicada da
(ins)urgências, a qual se propõe a ser um espaço plural para vozes
historicamente silenciadas, a fim de que epistemologias que não possuem
seus saberes catalogados pela academia possam ser (re)conhecidas
socialmente.
Pensar o outro tem sido um debate constante e necessário, sobretudo,
no intuito de reparar as atrocidades sofridas por pessoas que foram
subalternizadas no decurso da história. Essa revisitação permite, por
exemplo, a nós, mulheres negras e homens negros, a deslocação de objetos a
sujeitos da nossa própria história. Entretanto, na contemporaneidade, o corpo
negro ainda é um território de luta. O CB entende que o sujeito não deveria
ser pensado como um objeto de estudo, mas como um corpo que, a despeito
de sua individualidade, vivencia relações alteritárias. A esse respeito,
Bakhtin (2017) tece as seguintes considerações:

Eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é uma


orientação nesse mundo; é a reação às palavras do outro (uma reação
infinitamente diversificada), a começar pela assimilação delas (no
processo de domínio inicial do discurso) e terminada na assimilação das
riquezas da cultura humana (expressas em palavras ou em outros
materiais semióticos). A palavra do outro coloca diante do indivíduo a
tarefa especial de compreendê-la (essa tarefa não existe em relação à
minha própria palavra ou existe em seu sentido outro). (Bakhtin, 2017,
p. 38).

Para Bakhtin (2017), a alteridade diz respeito ao processo de encontro


e de confronto com o outro pela linguagem, incluindo esse outro que nos
constitui. É, portanto, uma via dialógica e social que se constitui na interação,
por intermédio das palavras e da enunciação. Desse modo, o dialogismo,
orientado à alteridade, apresenta-se similar a um jogo, em movimentos de
tensão, de transformação e de subversão de sentidos. Essa disputa envolve,
ainda, a representatividade e relações de poder, concernentes a quem narra e
a quem é narrado, a palavra do outro responde, dialogicamente, a resposta a
uma nova palavra nossa. Assim, as relações sociais correspondem a práticas
de linguagem baseadas em relações de poder, possibilitando representações

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


que estão envoltas de pluralidades significativas. Lutar por uma educação
antirracista, sobretudo no campo da linguagem, é possibilitar que mais 195
representações antirracistas sejam socialmente validadas.
Carvalho
Sabemos que não basta compreender que a língua é um território de Cavalcante Filho

poder que determina os acessos pelos sujeitos; antes, é necessário também


combater o projeto de língua a serviço do capitalismo, que diz quais
conhecimentos são válidos, quem pode produzir tais conhecimentos, onde
tais/quais conhecimentos podem ser publicados. Talvez uma das maiores
atrocidades desse sistema-mundo é provocar a dissenção entre os pares, os
iguais; brigamos entre nós, conosco, muitas vezes, não enxergando o
verdadeiro inimigo. É preciso, portanto, resistir a essas forças centrípetas que
nos empurram uns contra os outros, como nos diz Bakhtin: “O desamor e a
indiferença nunca geram forças suficientes para nos deter” (Bakhtin, [1920]
2010, p. 129).
Nesse sentido, o constituir-se a partir dos sujeitos e com os sujeitos,
ou ainda, o “eu-para-mim”, o “eu-para-o-outro” e o “outro-para-mim”
envolve uma trama política demarcada por espaços de luta e,
consequentemente, de poder. Nessa luta, é fundamental que busquemos, a
partir da linguagem, de forma dialógica, responsiva e alteritária, construir
enfrentamos à lógica racista e colonial, inclusive (e, talvez, sobretudo), no
âmbito das linguagens e dos discursos.

4 Por uma educação linguística antirracista: um


exercício de reflexão crítica em direção a uma
prática transformadora
O episódio de violência racista na escola, apresentado na introdução
deste artigo, explicita, de modo incontornável, a necessidade de, cada vez
mais, amplificarmos o debate sobre o racismo nas instituições escolares,
como uma temática urgente a ser incorporada por um viés intercultural.
Indicamos, a partir de Walsh (2019), que a interculturalidade “representa
uma lógica, não simplesmente um discurso, construída a partir da
particularidade da diferença” (Walsh, 2019, p. 15). Como apontado por
Nascimento (2019), a linguagem funciona como materialização do domínio
pretendido pelo racismo, daí ser a linguagem material propulsora das
violências que envolvem o racismo e, acrescentamos, daí ser também a

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


linguagem e a cultura elementos que possibilitam práticas educativas
antirracistas. 196

Nesse sentido, ao considerarmos o ensino de língua espanhola sob a Carvalho


égide da Lei 10.639 (Brasil, 2003) e da Lei 11.645 (Brasil, 2008), Cavalcante Filho

entendemos que o ensino dessa língua, desenvolvido no campo da linguagem


e na área da linguística, pode (e deve) contemplar uma abordagem
intercultural, ancorada em uma linguística antirracista. Entendemos que falar
em linguística antirracista implica uma abordagem que vai desde a discussão
sobre políticas linguísticas e o ensino de língua espanhola a, efetivamente, o
delineamento de um conteúdo de língua espanhola pautado em viés
intercultural antirracista. Compreendemos, desse modo, que a proposição de
uma linguística antirracista passa pelo caminho de políticas linguísticas para
o ensino de língua espanhola e, igualmente, por uma educação linguística
crítica até chegarmos à linguística antirracista.
Dadas as questões aqui levantadas, podemos dizer que enfrentamento
é a palavra de ordem quando falamos sobre as políticas que envolvem a
educação linguística em Língua Espanhola. Os desafios iniciais apresentam-
se, desse modo, em enfrentar as atuais políticas linguísticas, bem como nos
resultados advindos desse dispositivo de poder, quer seja no apagamento do
Espanhol no currículo, quer seja na permanência ou no ingresso no mundo
do trabalho, especialmente, quando nos referimos às implicações
profissionais na carreira docente, o que, consequentemente, leva à
precarização do nosso oficio.
Entretanto, acreditamos na educação linguística crítica e, sobretudo,
na linguística antirracista, pois nos move a acreditar na emancipação, na
pluralidade linguística, na crítica, na desconstrução, no rompimento, no
pensar desde e com o outro, considerando, nesse processo, as implicações do
debate racial. Também nos move no nosso fazer pedagógico cotidiano, a fim
de que possamos nos permitir o desafio constante de desenvolver a pedagogia
do pensamento crítico contra o epistemicídio (Carneiro, 2005), a favor da
pedagogia das mulheres pretas, a favor de uma educação que promova o
acesso à cidadania e, sobretudo, o respeito às identidades sociais, sejam elas
de raça, sejam de gênero, sejam de classe social, dentre outras. A partir desse
cenário, Gomes (2017) nos traz alguns questionamentos:

A educação, entendida como processo de humanização, tem sido


sempre uma experiência edificante? É possível educar para a

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


diversidade em uma sociedade marcada pelo colonialismo, pelo
capitalismo, pelo machismo e pelo racismo? Se os movimentos sociais
reeducam a sociedade e a escola, que saberes eles têm trazido para o 197
campo educacional? Qual tem sido o lugar ocupado por esses saberes
no cotidiano da escola, dos currículos e das políticas educacionais no Carvalho
século XXI? Afinal, que caminho poderia ser trilhado para se construir Cavalcante Filho
uma nova teoria crítica da educação que se debruce com seriedade sobre
as questões aqui colocadas? (Gomes, 2017, p. 43).

Diante da provocação trazida por Gomes e entendendo também a


educação como um processo de humanização, acreditamos que existem
caminhos teórico-metodológicos que se dispõem a pensar os sujeitos e as
sujeitas a partir do seu entorno, das suas pautas, das suas epistemologias, das
suas dores e amores – e isso também é humanizar a educação. Há, nesse viés,
a possibilidade de pensarmos a educação de modo entrecruzado às questões
raciais, trazendo à escola uma temática que, pelo controle social, tende a não
ser abordada nas aulas, ainda que seja urgente discutirmos esse tema.
Decerto, apresentar essas percepções é ver a humanidade naqueles e naquelas
que estão aprendendo e ensinando.
Voltamos, então, à pergunta de Gomes (2017), sobre qual seria o
caminho teórico que daria o devido trato a uma educação crítica. Entendemos
que um dos caminhos para a aprendizagem da língua espanhola seria pensar,
inicialmente, em uma Educação Linguística em perspectiva crítica, o que vai
dialogar com a Linguística Aplicada (LA) na contemporaneidade, tendo por
base os estudos do CB, que nos conduz a uma linguística antirracista. Esse
diálogo se dá por meio da proposição do pensamento crítico, visto que esses
constructos teóricos têm se mostrado atentos às insurgências das demandas
sociais, a exemplo da decolonização da língua e, em se tratando da
abordagem antirracista, especialmente, dos desdobramentos do racismo na
linguagem.
Acreditamos que, a par da dialogia, essas discussões vão se
movimentar responsiva e responsavelmente, na perspectiva bakhtiniana, no
sentido de entender as alteridades envolvidas no processo educacional e de
potencializar, sobretudo, a construção de um currículo que dialogue com
epistemologias outras, especialmente, nesse caso, com epistemologias
antirracistas e decoloniais. Alocar nosso olhar para o papel do professor na
educação linguística crítica e, conforme defendemos aqui, em uma educação
linguística antirracista, nos mobiliza a pensar sobre a importância da
responsabilidade no ato de ensinar, nos faz também refletir sobre a

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


potencialidade que as aulas de Espanhol podem agregar ao currículo escolar,
incluindo, necessariamente no bojo do conteúdo das aulas, discussões que 198
encaminhem a uma formação antirracista. Esse viés educacional também nos
Carvalho
possibilita uma compreensão macro sobre a importância desse campo do Cavalcante Filho
conhecimento na formação de sujeitos aprendizes de uma segunda língua.
Isso porque entendemos que as aulas de espanhol podem contribuir
significativamente para promoção da cidadania, bem como do respeito aos
saberes dos estudantes, do diálogo com as alteridades, da reconexão com as
comunidades tradicionais e ancestrais e, sobretudo, da assunção do
protagonismo discente.
Todos os pontos aqui elencados, vale destacar, são possibilidades reais
de acontecer na nossa práxis pedagógica, especialmente na rede pública,
onde, geralmente, nossa liberdade não é cerceada (ou, ao menos, não deveria
ser; ao contrário, abordagens antirracistas deveriam ser celebradas e
incluídas, não ceifadas ou condenadas). Pela nossa experiência docente e
considerando o nosso compromisso ético, podemos afirmar que é possível
acreditar e praticar uma educação linguística crítica e, sobretudo, uma
educação linguística antirracista em Língua Espanhola.
A par das abordagens aqui citadas, outra questão importante na
educação linguística é problematizar o lugar das epistemologias nas
discussões presentes na sala de aula. Não podemos desconsiderar o fato de
que a escola sempre validou/valida a dominação epistemológica hegemônica,
a qual se ancora na concepção de conhecimento europeu, negando as demais
formas de saberes, o que configura um totalitarismo epistêmico. Lembramos,
nesse sentido, que a escola surgiu para atender ao projeto colonial burguês,
vale destacar que, na perspectiva da educação crítica, a escola é um espaço
de tensão onde professores e alunos constantemente estão expostos às tensões
sociais. Desse modo, ao trazermos a proposta de uma educação linguística
antirracista, reiteramos o espaço de que, em meio a essas tensões sociais, há
um destaque para as tensões raciais, considerando as racialidades e o
antirracismo como pontos fulcrais para a construção de uma formação
educacional emancipadora e antirracista.
Esse lugar de desconstrução é muito desafiador, sobretudo, para nós
docentes, que viemos de uma formação colonial, unilateral, brancocêntrica.
Ferreira (2018) nos chama a atenção para a importância de pensar a prática

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


da educação crítica trazendo sempre o recorte social e racial, especialmente,
para a construção do empoderamento dos(as) discentes: 199

Entendo que a educação linguística crítica é uma prática exercida Carvalho


cotidianamente, seja através da literatura adotada para as minhas Cavalcante Filho
práticas docentes em sala de aula, como também na minha postura com
quem interajo. A educação linguística crítica pode colocar em xeque o
status quo, desconstrói discursos racistas, homofóbicos, xenofóbicos,
misóginos e classistas. E, através das reflexões que ocorrem a partir da
observação das práticas sociais e do nosso cotidiano, podemos construir
e reconstruir práticas de empoderamento e críticas através da
linguagem. (Ferreira, 2018, p. 42).

Vale destacar também que pensar o ensino sob a perspectiva crítica


antirracista traz ganhos para além do social, tanto para os nossos alunos e
alunas, quanto para nós docentes. Nascimento (2019), ao discutir língua, raça
e racismo, analisa:

A língua tem cor? Em si, [...] nenhuma língua tem cor porque nenhuma
língua existe em si. Entretanto, ao serem politizadas, as línguas têm cor,
gênero, etnia, orientação sexual e classe porque elas funcionam como
lugares de desenhar projetos de poder, dentre os quais o próprio
colonialismo fundado a partir de 1492 e a colonialidade que ainda
continua entre nós como continuidade dele (Nascimento, 2019, p. 21).

É no espaço de confirmação que as línguas vão adquirindo, a partir de


projetos de poder coloniais, cor, gênero, etnia, orientação sexual e classe e
que vamos encontrar desafios e brechas para a resistência. Desse modo, uma
linguística antirracista busca confrontar os contornos dados às línguas e,
justamente, a partir da linguagem, subverter, questionar e tensionar esses
projetos de poder hegemônicos, engendrados pela branquitude.
Hooks (2017), também ao discutir sobre linguagem e colonização em
relação aos contextos afro-ingleses, analisa, em relação aos africanos
escravizados:

eu os imagino ouvindo inglês falado como a língua do opressor, no


entanto eu os imagino também se dando conta de que essa língua
precisaria ser possuída, tomada, reivindicada como um espaço de
resistência. [...] Possuindo a língua compartilhada, povos negros
poderiam encontrar de novo uma maneira de fazer comunidade, e um
sentido para criar a solidariedade política necessária para resistir.
(Hooks, 2017, p. 859).

Defendemos, nesse sentido, que construir uma educação linguística


antirracista diz respeito a, a partir de uma língua, construir estratégias de
resistência e de enfrentamento ao racismo e às suas variadas formas de

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


manifestação. Há, por um lado, a criticidade em perceber a realidade
sociorracial na qual o sujeito se insere e, por outro, a criação de uma 200
consciência e da necessidade de enfrentamento ao racismo. É, sem dúvida,
Carvalho
um desafio. Todavia, possível de ser vencido e modificado. Cavalcante Filho

Para Souza Neto (2021), é preciso observar que, ao longo do tempo,


“muitas práticas da educação linguística foram e continuam sendo racistas,
pois, ou invisibilizaram outras pesquisas e pesquisadores, ou, de alguma
maneira, ajudaram na negação da subjetividade e da construção de
identidades” (Souza Neto, 2021, p. 180), sobretudo, através da língua. Desse
modo, quando falamos em uma linguística antirracista, evocamos os estudos
de Nascimento (2019), de Ferreira (2018), de Souza Neto (2021), de Gomes
(2017), dentre outros, os quais trazem contribuições que nos permitem pensar
e reafirmar a necessidade de, nas escolas e nas aulas de língua espanhola, nos
pautarmos por uma linguística antirracista. Coadunamos, nesse sentido, com
as proposições de Souza Neto:

defino educação linguística antirracista como um modo de vida, uma


abordagem sócio-político-pedagógica interdisciplinar, uma força de
múltiplas ações combativas que busca agir contra todas as formas de
racismo manifestado na língua(gem) através de práticas de
entrincheiramento do racismo como força organizacional e estrutural da
sociedade, de evidenciação e enfrentamento da branquitude [...], bem
como de proposições de intervenção didática e política no que tange o
uso da língua(gem). (Souza Neto, 2021, p. 182).

Acreditamos, ainda, que, nesse sentido, a educação linguística


antirracista atende às demandas sociorraciais contemporâneas, sendo um
importante instrumento de aporte para aulas de línguas adicionais mais
críticas e atinentes à realidade social vigente. Isso porque essas tensões
impulsionadas pela educação linguística antirracista nos conduzem à
necessária discussão sobre currículo e racismo, entendendo que o
enegrecimento do currículo de língua espanhola pode fissurar epistemologias
hegemônicas e apresentar narrativas outras que compartilham memórias,
culturas, vivências e resistências daqueles que foram outrora subjugados e
agora podem, também, narrar suas próprias memórias.

Considerações finais
Diante das discussões aqui levantadas, ao falarmos em como a LA
auxilia na percepção do mundo e das mudanças num contexto em que a

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


linguagem assume protagonismo, e disso deriva a responsividade às práticas
sociais, podemos perceber os possíveis diálogos e articulações entre os 201
pressupostos bakhtinianos e a LA contemporânea para a constituição de uma
Carvalho
educação linguística antirracista. Nesse caso, a LA das (ins)urgências nos Cavalcante Filho
remete tanto à dialogicidade quanto à alteridade, à responsabilidade, à
responsividade, à ética e à política – noções fundamentais para os estudos do
CB. Destacamos, assim, como tanto a LA quanto o CB, mais
especificamente, a partir dos estudos de Bakhtin, questionam a narrativa
universalista de conceber o ser e seus saberes. Desse modo, não se propõem
apenas em pensar o campo linguístico, mas se atêm, sobretudo, ao diálogo
entre o social, o cultural, o político, pensando em como essa
interseccionalidade atravessa os sujeitos do discurso.
A interseccionalidade de classe, gênero e raça que também atravessa
a aprendizagem de uma língua é de grande importância e ganho no processo
da educação linguística. Possibilita, assim, ampliar o olhar para as
aproximações entre as identidades, tanto da língua materna quanto da língua
adicional. É válido pontuar também que podemos falar em ganho do currículo
ao pensarmos sobre o ensino do espanhol a partir da perspectiva de uma
educação linguística antirracista em Língua Espanhola, ao tempo em que nos
convida a pensar um ensino na perspectiva decolonial. O engajamento
propiciado pela presença do Espanhol no currículo pode oportunizar uma
educação linguística antirracista, sobretudo, na rede pública, na qual os
sujeitos e sujeitas aprendizes têm a oportunidade de ampliar o seu
conhecimento, de questionar narrativas que, ao longo da história, ocultaram
fatos imprescindíveis para a sua compreensão de classe, raça e gênero.
Ademais, há ainda o direito à pluralidade linguística, a partir de políticas
linguísticas e educacionais que possibilitam o contato com línguas tão
próximas ao nosso povo, à nossa cultura, à nossa identidade, a exemplo do
Espanhol.
Uma LA (ins)surgente se pensa também enegrecida, daí a importância
dos estudos raciais para desbranquear a Linguística, ao tempo que essa
reconfiguração possibilita uma preocupação da ciência com os corpos não
brancos. Desse modo, quando propomos uma educação linguística
antirracista, visamos a contribuir com a publicização de conhecimentos e
saberes também produzidos por mulheres negras que possam ensejar, no
campo educacional, resistências a um currículo racista, incluindo discussões
no âmbito da Linguística Aplicada, sobretudo, visando à educação linguística

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


antirracista. Acreditamos, desse modo, que isso auxilia que assumamos uma
postura decolonial, alteritária, antirracista, que nos permita perceber “os 202
outros” que compõem a sociedade – incluindo, assim, as mulheres negras,
Carvalho
colocadas nessa categoria de subalternidade. Desse modo, entendemos que Cavalcante Filho
urge uma reapropriação da linguagem, das relações entre língua(gens) e raça,
visando à constituição de uma educação linguística antirracista.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas
sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo
Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017, p. 21-56.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir
Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, [1920] 2010.
BARBOSA, Lia Pinheiro; OLIVEIRA, Franciane da Silva Santos. Epistemologias
marginalizadas: a questão racial no debate sociológico latino-americano. Afro-Ásia, [s. l.],
n. 62, p. 338-390, 2020. Disponível em:
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77068103009. Acesso em: 10 jul. 2022.
BRASIL. Lei nº 11.161, de 5 de agosto de 2005. Presidência da República. Casa Civil.
Brasília, DF, 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
2006/2005/Lei/L11161.htm. Acesso em: 18 abr. 2023.
BRASIL. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Reforma do Ensino Médio. Brasília,
DF, 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2017/lei/l13415.htm. Acesso em: 05 de out de 2022.
BRASIL. Secretaria Especial da Presidência da República. Medida Provisória nº 746, de
22 de setembro de 2016. Presidência da República. Casa Civil. Brasília, DF, 2016.
Disponível em:
https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=MPV&numero=746&ano=2016&ato=762
ITUE1EeZpWT31a. Acesso em: 10 ago. 2023.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018. Disponível
em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf.
Acesso em: 12 ago. 2023.
BRASIL. Ministério da Educação. Lei nº 10.639/2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir
no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura
Afro-Brasileira, e dá outras providências. Ministério da Educação. Brasília, DF, 2003.
Disponível em: https://abre.ai/g4t6. Acesso em: 12 ago. 2023.
BRASIL. Ministério da Educação. Lei nº 11.645/2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece
as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino
a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. BRASIL.
Ministério da Educação. Brasília, DF, 2008. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em:
12 ago. 2023.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


BRASIL. Projeto de lei n. 4.004/1993. Torna obrigatória a inclusão do ensino de língua
espanhola nos currículos plenos dos estabelecimentos de ensino de 1º e 2º graus. Comissões
de educação, cultura e desportos. Brasília, DF, 1993. Disponível em: 203
https://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD10SET1993.pdf. Acesso em: 10 ago.
2023. Carvalho
Cavalcante Filho
BRASIL. Projeto de lei n. 3.0987/2000. Dispões sobre a obrigatoriedade da inclusão do
ensino de língua espanhola no ensino fundamental e médio. Câmara dos Deputados.
Brasília, DF, 2000. Disponível em:
https://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD10MAR2001.pdf. Acesso em: 10 ago.
2023.
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do Outro como Não-ser como fundamento do
Ser. 2005. 339 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Educação,
Doutorado em Educação, Universidade de São Paulo – USP. São Paulo, 2005.
FABRÍCIO, Branca. Linguística aplicada como espaço de "desaprendizagem":
redescrições em curso. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo (org.). Por uma linguística aplicada
indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006, p. 45-66.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de
Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009.
FERREIRA, Aparecida de Jesus. Educação linguística crítica e identidades sociais de raça.
In: PESSOA, Rosane Rocha; SILVESTRE, Viviane Pires Viana; MÓR, Walkíria Monte
(org.). Perspectivas críticas de educação linguística no Brasil: trajetórias e práticas de
professoras(es) universitárias(os) de inglês. São Paulo: Pá de Palavra, 2018, p. 39-46.
GHEDIN, Evandro; FRANCO Maria Amélia Santoro. Questões de método na construção
da pesquisa em Educação. São Paulo: Cortez, 2008.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por
emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução
de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, [1994] 2017.
MOITA LOPES, Luiz Paulo. Da aplicação de linguística à linguística aplicada
indisciplinar. In: PEREIRA, Pilar (org.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes
acessos. São Paulo: Contexto, 2009, p. 11-24.
NASCIMENTO, Gabriel. Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo.
Belo Horizonte: Letramento, 2019.
NASCIMENTO, Larissa; SANTOS, Michelle. A linguagem da mulher negra: Vozes que
transcendem o silenciamento. Revista Água Viva, [s. l.], v. 3, n. 3, p. 1-21, 2018. DOI:
10.26512/aguaviva.v3i3.12029.
PENNYCOOK, Alastair. Uma linguística aplicada transgressiva. In: LOPES, Luiz Paulo
da Moita (org.). Por uma linguística indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 67-84.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en América Latina.
Anuário Mariateguiano. Lima, v. 9, n. 9, p. 113-121, 1997. Disponível em:
https://repositorio.flacsoandes.edu.ec/bitstream/10469/6042/1/RFLACSO-ED44-17-
Quijano.pdf. Acesso em: 25 nov. 2022.
RAJAGOPALAN, Kanavilil. A norma linguística do ponto de vista da política linguística.
In: LAGARES, Xoán Carlos; BAGNO, Marcos (org.). Políticas da norma e conflitos
linguísticos. São Paulo: Parábola Editorial, 2011, p. 121-128.
RAJAGOPALAN, Kanavilil. Entrevista com Kanavillil Rajagopalan: Ponderações sobre
linguística aplicada, política linguística e ensino-aprendizagem. [Entrevista concedida a]
SILVA, Kléber Aparecido da; SANTOS, Leandra Inês Seganfredo; JUSTINA, Olandina

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Della. Revista De Letras Norte@mentos, [s. l.], v. 4, n. 8, 2012. Disponível em:
https://periodicos.unemat.br/index.php/norteamentos/article/view/6778. Acesso em: 25
nov. 2022. 204

SILVA, Wagner Rodrigues. Por uma linguística aplicada arrojada. In: SILVA, Wagner Carvalho
Rodrigues (org.). Contribuições sociais da linguística aplicada: uma homenagem a Inês Cavalcante Filho
Signorini. Campinas, SP: Pontes Editores, 2021, p. 17-30.
SOUZA NETO, Maurício José de. Por que pensar hoje em uma educação linguística
antirracista? Limites, tensões e possibilidades. Paraguaçu. [S. l.], v. 1, n. 1, p. 168-191,
2021. Disponível em:
https://www3.ufrb.edu.br/seer/index.php/revistaparaguacu/article/view/2042. Acesso em:
15 abr. 2023.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais
do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila
Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora
34, [1970] 2018.
WALSH, Catherine. Interculturalidade e decolonialidade do poder: um pensamento e
posicionamento "outro" a partir da diferença colonial. Revista Eletrônica da Faculdade de
Direito de Pelotas, Pelotas – RS, v. 05, n. 1, p. 6-38, 2019. Disponível em:
https://periodicos.ufpel.edu.br/index.php/revistadireito/article/view/15002. Acesso em: 15
abr. 2023.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


205

Parte III

Mulheres

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


206

Rodrigues
Silva

“Nunca encostei o dedo nela. Eu


sou mãe.”: alteridade e emoção
construindo a orientação
argumentativa na entrevista para
o Fantástico do casal Nardoni
“I never laid a finger on her. I am a mother.”: otherness and
emotion building the argumentative orientation in the Nardoni
couple’s interview for Fantástico

Maria das Graças Soares Rodrigues 1 Introdução


Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Brasil Na noite do dia 29 de março
de 2008, no edifício London, em
Karla Stéphany de Brito Silva
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, São Paulo, a criança de 5 anos,
Brasil Isabella Nardoni, foi arremessada
pela janela do sexto andar. Esse
assassinato brutal marcaria todo o
Brasil e mudaria para sempre a vida do casal Alexandre Nardoni e Anna
Carolina Jatobá, pai e madrasta da criança.
Alegando, inicialmente, que um ladrão teria entrado no apartamento e
jogado a sua filha pela janela, o pai e a madrasta de Isabella foram
considerados culpados em um júri popular, após a investigação constatar,
com uma série de provas, que eles foram os verdadeiros responsáveis pelo
ato. Ainda durante as investigações, o casal Nardoni concedeu a primeira
entrevista para darem as suas versões à mídia. A entrevista foi exibida no

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Fantástico, da rede Globo, no domingo do dia 20 de abril de 2008, e foi feita
pelo jornalista Valmir Salaro. Nessa ocasião, os entrevistados negaram todas 207
as acusações. Mais tarde, essa entrevista seria disponibilizada na Globoplay,
Rodrigues
o que possibilitou a transcrição e a normatização dela para a composição do Silva
material analisado neste artigo.
Diante do contexto exposto, este trabalho tem como objetivo analisar
a entrevista do casal concedida ao Fantástico, a fim de investigar como se
constrói a orientação argumentativa nas respostas de Alexandre Nardoni e de
Anna Carolina Jatobá, em relação à alteridade e à emoção.
Com o intuito de alcançarmos esse objetivo, partimos da seguinte
questão geral de pesquisa: de que forma os movimentos de emoção e de
alteridade presentes no discurso dos entrevistados contribuem para a
construção da orientação argumentativa estabelecida a partir dos
pensamentos, das opiniões, das crenças dos sujeitos em questão, participantes
dessas relações dialógicas?
Para respondermos a isso, a pesquisa fundamenta-se na análise
dialógica do Círculo de Bakhtin (Bakhtin, 2003, 2010) com o conceito de
alteridade, em diálogo com a teoria da emoção de Plantin (2011), no que
concerne ao tratamento dos dispositivos enunciativos, quais sejam, a análise
dialógica valorativa da alteridade, abordando os pares eu para mim, eu para
o outro e o outro para mim, correlacionando-os e analisando-os do ponto de
vista argumentativo; e, da emoção, abordando os termos de emoção e a sua
construção na argumentação emocional. O corpus é composto pela entrevista
de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, a respeito do caso Isabella
Nardoni, disponível no site Globoplay1.
Vale ressaltar que este trabalho se justifica por uma relevância social,
uma vez que o caso Isabela Nardoni ficou muito conhecido no Brasil, por ser
um assassinato de uma criança cometido pelo próprio pai. Trazer a temática
novamente em pauta é importante para despertar a luta contra a violência
infantil, tão comum no país. Outra relevância é para os estudos linguísticos,
pois este artigo apresenta a junção de duas teorias, a alteridade bakhtiniana e
a emoção plantiniana na sua análise, auxiliando outros pesquisadores que
desejem estudar mais sobre qualquer uma delas.

1
Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/818164 Acesso em: 29 mar. 2023

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Por fim, este artigo está organizado em quatro partes, além da
introdução e das referências: (a) aporte teórico, descrevendo a alteridade e a 208
emoção; (b) metodologia, apresentando os principais métodos necessários
Rodrigues
para a realização do trabalho; c) análise, descrevendo, analisando e Silva
interpretando as marcas linguísticas que evocam a presença de termos
emotivo-volitivos, da alteridade e da emoção; e (d) considerações finais,
retomando os resultados apresentados e discutidos nas análises, destacando
os seus principais pontos.

2 Aporte teórico
Nesta seção, são apresentadas as abordagens teóricas da alteridade
bakhtiniana e da emoção plantiniana, as quais ancoram a análise do corpus e
orientam a constituição da visada argumentativa que pretendemos
demonstrar, em cumprimento do objetivo anunciado na introdução.

2.1 Alteridade
Bakhtin aborda a relação do sujeito com o outro em toda a sua obra,
sempre destacando como a relação de alteridade se constitui. Em seus
estudos, o autor leva em conta três momentos fundamentais:

eu-para-mim, o outro-para-mim e eu-para-o-outro; todos os valores da


vida real e da cultura se dispõem ao redor destes pontos arquitetônicos
fundamentais do mundo real do ato: valores científicos, estéticos,
políticos (incluídos também os éticos e sociais) e, finalmente,
religiosos. Todos os valores e as relações espaço-temporais e de
conteúdo-sentido tendem a estes momentos emotivo-volitivo centrais:
eu, o outro, e eu-para-o-outro (Bakhtin, 2010, p. 114-115).

Dessa maneira, Bakhtin apresenta como toda a relação entre os


sujeitos é afetada pelos momentos emotivo-volitivos existentes no mundo e
a sua relação com o outro. Quando um age, o outro se altera e vice-versa. O
processo de construção identitária do sujeito se dá pelas relações de troca,
como é explicado pelo Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso (GEGe,
2009):

o processo de construção da identidade do sujeito, cujos pensamentos,


opiniões, visões de mundo, consciência etc. se constituem e se elaboram
a partir de relações dialógicas e valorativas com outros sujeitos,
opiniões, dizeres. A Alteridade é fundamento da identidade. Relação é

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


a palavra-chave na proposta de Bakhtin. Eu apenas existo a partir do
outro (GEGe, 2009, p. 13-14, grifos nossos).
209
As relações na vida, portanto, são pensadas na relação que o indivíduo
Rodrigues
tem com o outro. Sendo assim, esses dois centros de valores estão envolvidos Silva
e arranjados. Como explica Bakhtin (2010):

O mais alto princípio arquitetônico do mundo real do ato realizado ou


ação é a contraposição concreta arquitetonicamente válida ou operativa
entre eu e o outro. A vida conhece dois centros de valor que são
fundamental e essencialmente diferentes, embora correlacionados um
com o outro: eu e o outro; e é em torno desses centros que todos os
momentos concretos do Ser se distribuem e se arranjam (Bakhtin, 2010,
p. 91).

Essa complexa relação do eu com outro é construída desde o momento


do nascimento, o filósofo explica que tudo o que é dito, pensado vem de um
outro.

Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em
minha consciência, vem-me do mundo exterior, da boca dos outros (da
mãe, etc.), e me é dado com a entonação, com o tom emotivo dos
valores deles. Tomo consciência de mim, originalmente, através dos
outros: deles recebo a palavra, a forma e o tom que servirão para a
formação original da representação que terei de mim mesmo (Bakhtin,
2003, p. 378).

Faraco (2009) explica que o mesmo mundo recebe valorações


distintas, pois são constituídas dos nossos próprios atos, com nossas
características emotivo-volitivas, de um sujeito único.

O eu e o outro são, cada um, um universo de valores. O mesmo mundo,


quando correlacionado comigo ou com o outro, recebe valorações
diferentes, é determinado por diferentes quadros axiológicos. E essas
diferenças são arquitetonicamente ativas, no sentido de que são
constitutivas dos nossos atos (inclusive de nossos enunciados): é na
contraposição de valores que os atos concretos se realizam; é no plano
dessa contraposição axiológica (é no plano da alteridade, portanto) que
cada um orienta seus atos (Faraco, 2009, p. 21-22).

Nessa direção, evocamos Amorim (2001), que explica a manifestação


da alteridade de duas maneiras: (1) nas relações entre as pessoas do discurso
(eu / tu / ele), perspectiva benvenistiana; e (2) nos textos polifônicos ou
dialógicos, abordagem bakhtiniana, em que há a presença de um discurso no
interior do discurso.
No que diz respeito às relações entre as pessoas do discurso, a autora
esclarece a relevância das posições enunciativas, ou seja, a noção subjacente

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


aos termos de “pessoa”, aquele(a) que está em posição de falar (o eu e o tu),
e a “não-pessoa”, aquele(a) que não está em posição de falar (ele). Ademais, 210
ela chama a atenção para não se confundir essas noções “com a ideia de
Rodrigues
indivíduo, pessoa psicológica, pessoa física/jurídica e outras do senso Silva
comum.” (Amorim, 2001, p. 99).
No que concerne à segunda forma de alteridade (polifonia e
dialogismo), encontramos em Volóchinov (2021, p. 253) uma observação
relativa às “formas sintáticas, por exemplo, do discurso indireto ou do
discurso direto, isto é, na percepção avaliativa ativa do discurso alheio”. O
autor explica que está longe de afirmar que essas formas sintáticas
“expressam de modo imediato as tendências e as formas da percepção
avaliativa ativa do enunciado alheio [...] elas são apenas padrões de
transmissão”. Mais adiante, Volóchinov (2021) postula que

tudo que há de essencial na percepção avaliativa ativa do discurso


alheio, tudo que pode ter alguma significação ideológica se expressa no
material do discurso interior [...] é no contexto desse discurso interior
que ocorre a percepção do enunciado alheio, a sua compreensão e
avaliação, isto é, a orientação ativa do falante (Volóchinov, 2021, p.
254).

O interlocutor que assume o papel de locutor enuncia a réplica que


decorre de uma percepção ativa intradiscursiva, a qual reflete, segundo
Volóchinov (2021, p. 254), “o contexto real e comentador” e a “réplica
interior”.
Essas ferramentas teóricas, assim como a reflexão desenvolvida na
seção a seguir permitem-nos desenvolver a análise.

2.2 Emoção
A palavra emoção vem do latim emotionem, que significa mover de
dentro para fora, e está relacionada a um “estado” mental e fisiológico que
provoca muitas reações motoras e glandulares. As emoções eram
extremamente úteis no início dos tempos, quando por meio delas o ser
humano foi capaz de preservar a vida, pois por sentirem medo e raiva, os
primeiros seres humanos lutavam a fim de guardar as suas vidas dos animais
selvagens.
As emoções sempre despertaram curiosidade e foram alvo de diversos
estudos no decorrer dos tempos. Desde a era greco-romana já eram estudadas,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


e a título de ilustração, evocamos as considerações do filósofo Aristóteles
(2000), que estabeleceu em seus escritos quatorze paixões (pathos): cólera, 211
calma, amor, ódio, confiança, temor, vergonha, impudência, favor,
Rodrigues
compaixão, indignação, inveja, emulação e desprezo. Silva
Para Emediato (2007), a emoção está relacionada a alguma agitação
da mente ou do espírito e possui uma situação que a induz, que pode ser física
ou psicológica, podendo ser causada por:

dor, ciúme, alegria, amor, angústia, ansiedade, arrependimento,


decepção, esperança, euforia, indignação, inveja, medo, orgulho,
paixão, paz, preocupação, pânico, raiva, remorso, resignação, riso,
saudade, culpa, surpresa, susto, tristeza, tédio, vergonha, ódio etc
(Emediato, 2007, p. 290).

De acordo com Rodrigues et al. (2017, p. 34-5), a emoção é muito


recorrente na vida do ser humano e “está presente na linguagem de todos, nas
mais variadas situações enunciativas, na expressão subjetiva de sentimentos
e atitudes os mais variados, como o amor, o ódio, o desespero, a alegria, a
felicitação, os pêsames, a acusação etc.”
Nessa esteira, Plantin (2010), que também se dedica aos estudos da
emoção, explica que o enunciado emocional é “uma forma que liga um termo
emocional (verbo ou substantivo), um lugar psicológico (às vezes, chamado
de experienciador) e uma fonte de emoção”2 (Plantin, 2010, p. 145, tradução
nossa). O termo que desperta emoção nem sempre está explícito; o
experienciador, que sente a emoção, é, necessariamente, um ser animado, e a
fonte de emoção desperta a emoção em alguém.

3 Metodologia
Este artigo tem sua origem em uma pesquisa qualitativa, de cunho
interpretativista. Nessa direção, primeiramente, compreendemos os
fenômenos, para, em seguida, realizarmos uma interpretação sobre eles.
Em relação ao método, utilizamos o método indutivo, com o
procedimento técnico de estudo bibliográfico, documental e descritivo,
sempre buscando descrever as propriedades importantes para interpretar os

2
No original : une forme liant un terme d’émotion (verbe or substantif), um lieu psychologique (dit
parfois expérienceur), et une source de l’émotion” (Plantin, 2010, p. 145).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


fenômenos linguísticos. Em razão disso, apoiamo-nos em livros, periódicos
e outros materiais como fonte de estudo. 212

Quanto ao corpus, esse consiste na entrevista com Anna Carolina Rodrigues


Jatobá e Alexandre Nardoni, a qual foi exibida e produzida pela rede Globo, Silva
exibida à época dos fatos no programa Fantástico, mas atualmente é
disponibilizada gratuitamente no site oficial da Globoplay3. A entrevista foi
exibida no dia 20 de abril de 2008 e foi a primeira entrevista exibida em rede
nacional acerca do caso. O vídeo da entrevista disponível no Globoplay tem
a duração de 35 minutos e 58 segundos e tem por título “Pai e madrasta de
Isabella dão entrevista exclusiva”. A escolha da entrevista se deu pela grande
repercussão midiática do caso em questão.
Como o corpus é um texto oral, ele foi transcrito e normatizado em
consonância com as normas do Projeto de Estudo da Norma Urbana Culta
(NURC), a fim de ser padronizado e de se manterem questões relevantes da
oralidade. Ademais, é importante relatar que, na transcrição, foram
acrescidos sinais que não estavam dispostos no NURC, são eles: o sinal ↗
para entonação ascendente e ↘ para entonação descendente e o uso da letra
Courier New, para facilitar a visualização.
Toda a análise foi dividida em excertos e cada um deles possui uma
ou mais perguntas que se completam, realizadas pelo entrevistador Valmir
Salaro, e as respectivas respostas a esses questionamentos pelos
entrevistados, o casal Nardoni. A numeração dos excertos segue a ordem
linear que se seguiu na entrevista. Os termos destacados em vermelho
representam os termos de emoção, enquanto os destacados em negrito são
termos que auxiliam a análise da alteridade. Toda a análise é realizada
seguindo a ordem em que os fenômenos linguísticos aparecem nas respostas
dos entrevistados. Para a análise de emoção, utilizamos quadros que
destacam o “termo de emoção”, “experienciador”, “fonte da emoção” e
“orientação argumentativa”, seguindo a proposta de Plantin (2011), a fim de
didatizar a explicação; para a análise da alteridade, a discussão foi dividida
nos pares eu para mim, eu para o outro e o outro para mim, a fim de auxiliar
na compreensão do estudo proposto.

3
Disponível em : https://globoplay.globo.com/v/818164/?s=0s Acesso em : 29 mar. 2023

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


4 Análise
213
Para melhor organização, a entrevista analisada foi separada em
excertos, mantendo a ordem linear em que foi realizada. Rodrigues
Silva
Excerto 1

Valmir Salaro: então... como é que vocês estão se sentindo depois da morte da Isabela... uma
morte tão trá::gica↗
Anna Carolina Jatobá: sofrendo muito↗ ... contu::do... com o que a população fa::la ao nosso
respeito... pelo pré julgamento... e pela própria população já ter condenado a gen::te ((responde
com voz de choro))sendo que nós somos↗ .... totalmente inocen::tes...
Alexandre Nardoni: é... nós somos uma família assim... eu e minha espo::sa Ana Caroli::na...
como podemos dizer↗ uma família como qualquer uma outra↗ entendeu↗ somos muitos
apegados... à família... somos/a nossa família somos todos unidos... né↗ e:: as nossas crianças↗
é:: nossos filhos↗ tanto a Isabela... quanto o Pietro e o Cauã... é:: tudo na nossa vi::da... minha e
da minha esposa... entendeu↗
Anna Carolina Jatobá: Com certeza...
Alexandre Nardoni: e:: sempre foi feito TUDO ... para as nossas crianças... para os nossos
filhos... e::
Anna Carolina Jatobá: o que faz pra ela sempre foi feito pra todos... nunca teve diferença...
entre nenhum dos três... sempre... sempre... tudo foi sempre igual↗ pros três... sempre...

O jornalista inicia a entrevista questionando a madrasta e o pai da


Isabella Nardoni sobre como eles estão se sentindo depois da morte trágica
da menina. A própria pergunta realizada pelo entrevistador já é uma pergunta
de teor emocional, da qual subjaz uma expectativa de resposta também
emocional.
Na resposta de Anna Carolina, percebemos o uso do termo emocional
“sofrendo”, que no primeiro momento, parece ser em relação à perda da
criança, mas ao analisarmos com mais cautela, percebemos que é em relação
ao julgamento que a mídia faz do casal. Isso se faz evidente quando ela diz
que estão sofrendo com “o que a população fa::la ao nosso respeito... pelo
pré julgamento... e pela própria população já ter condenado a gen::te”. Dessa
maneira, notamos que a emoção de dor, tristeza, é causada não pela perda da
enteada, mas pela representação, ou seja, pelo julgamento que a população
faz deles, em decorrência do crime por eles cometido. Assim, para Plantin
(2011), temos:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Quadro 1- Análise emocional do discurso da Anna Carolina Jatobá excerto (1), em
conformidade com os postulados de Plantin (2011)
214
Termo de emoção Experienciador Fonte de emoção Orientação
argumentativa Rodrigues
Silva
Sofrendo Anna Carolina a população Mostrar a sua dor,
tristeza em estar
sendo acusada e
pré-julgada
injustamente pela
sociedade.

Fonte: elaboração própria

O termo de emoção “sofrendo”, dito pela Anna Carolina, passa a


emoção de dor e de tristeza. Essa emoção é oriunda da fonte de emoção
“população”, pois são as pessoas que estão a julgando. A entrevistada usa
dessa emoção no seu discurso, provavelmente, para despertar uma pena nos
espectadores, que conhecerão a dor e a tristeza da entrevistada.
Em relação à alteridade, essa é evidenciada nos pares: “eu para mim”,
“o outro para mim” e “o eu para o outro”. Constatamos que no par “eu para
mim”, tanto a Anna Carolina como o Alexandre se consideram como uma
família unida que faz tudo para os filhos. Isso fica evidenciado pelo uso da
primeira pessoa do plural na fala dos dois e pela repetição do lexema
“família”. No par “o outro para mim”, o sujeito Anna Carolina vê o outro
“sociedade” como responsável por um pré-julgamento dela e do seu marido,
já os condenando pela morte da enteada. Devido a essa visão, o par “eu para
o outro” é preenchido tanto pela Anna Carolina como pelo Alexandre, como
uma resposta tentando demonstrar a inocência do casal por meio do
argumento de união familiar deles.
Ao vermos a alteridade dos entrevistados, notamos que apesar do
jornalista ter questionado como eles se sentem ao perder o “outro”, Isabella
Nardoni, eles respondem se desviando do foco da questão, ou seja, eles se
vitimizam, ao expressarem o próprio ponto de vista acerca do sentimento
decorrente do julgamento pelo “outro”: a sociedade. Desse modo, os sujeitos
tiram o foco da morte da criança, que é a verdadeira vítima da história, e se
colocam como vítimas da sociedade.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Excerto 2
215
Valmir Salaro: vocês estão sendo acusados de um crime grave... como é que é... suportar essa
acusação↗
Rodrigues
Alexandre Nardoni: olha↗ tá muito difícil... é:: ... isso... porque... saben::do... é:: como nós Silva
somos com nossos filhos... e a nossa família também... nossos amigos... sabendo como nós
somos... é:: a gente sempre fomos ... sempre unidos... sempre teve ... é:: sempre se reunimos
todos os finais de semana para estar almoçando juntos...
Anna Carolina Jatobá: sempre fomos muito família...
Alexandre Nardoni: sempre fomos família... sempre almoçamos juntos... jantamos juntos...
todos unidos... entendeu↗ então... é:: essa/as pessoas estão falando algumas coisas... que... eles
não conhecem↗ como nós somos... entendeu↗ é::
Anna Carolina Jatobá: eles sabem ao nosso respeito através da mídia↗ que tudo tem tudo...
tudo que falam ao nosso respeito... a maioria das coisas... são tudo inventadas mesmo porque
não... ninguém conhece a gente... a nossa família a fundo... entendeu↗

Nesse excerto, o jornalista Salaro segue perguntando uma questão de


cunho emocional, a respeito de como é que eles estão suportando a acusação
de ter matado a filha do Alexandre Nardoni. Na resposta, o sujeito Alexandre
responde com teor emocional, recorrendo ao termo “difícil”, contudo, mais
uma vez, fica evidente que a dificuldade, a dor, a tristeza não está relacionada
diretamente à morte da filha de cinco anos, mas, sim, à forma como a mídia
não os conhece, logo, não sabe que eles são muito unidos.

Quadro 2- Análise emocional do discurso da Alexandre Nardoni excerto (2), em


conformidade com os postulados de Plantin (2011)

Termo de emoção Experienciador Fonte de emoção Orientação


argumentativa

Difícil Alexandre Nardoni as pessoas Mostrar a sua dor,


(sociedade) tristeza em estar
sendo acusado por
pessoas que não os
conhecem de
verdade.

Fonte: elaboração própria

O uso do termo de emoção “difícil” mostra que o experienciador está


sentindo uma emoção de dor, tristeza por estar sendo acusado pela sociedade
por algo que ele relata que não aconteceu. Assim, ao dizer que “tá muito
difícil...”, o experienciador deseja, possivelmente, despertar uma emoção de
pena por estar sendo acusado sem o conhecerem verdadeiramente.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


A alteridade é preenchida no par “eu para mim” e “eu para o outro”,
pois eles veiculam uma autorrepresentação de que são “pessoas família”, 216
muito unidas. Essa pseudoverdade em que eles acreditam, tentam fazer os
Rodrigues
outros filhos, a família e os amigos também considerá-la crível. A repetição Silva
dos verbos e dos pronomes em primeira pessoa do plural e dos lexemas
“família”, “unidos” e “juntos” (em negrito no excerto) mostra a tentativa do
casal em construir uma imagem positiva para a sociedade. Essa reação
também é uma resposta ao par “outro para mim”, pois o casal acredita que os
outros, “as pessoas” e “a mídia”, estão a julgá-los como os verdadeiros
culpados pela morte da criança, instaurando, dessa forma, um embate entre
dois centros de valores opostos presentes no “eu para o outro” e “o outro para
mim”.
Desse modo, enquanto a sociedade clamava por justiça e queria um
julgamento justo acerca do assassinato da criança, Isabella Nardoni, o pai e a
madrasta se preocupavam não em demonstrar seus sentimentos de luto pela
filha morta, mas em construir uma imagem de inocentes perante o outro: a
sociedade brasileira.
Excerto 3

Valmir Salaro: a responsabilidade mais é da imprensa pra vocês↗


Alexandre Nardoni: é:: não digo responsabilidade de ninguém↗ entendeu↗ eu acho assim é:: ...
eu não posso falar que a responsabilidade é tanto da mídia... quanto a responsabilidade é da
polí::cia... a gente não pode estar falando isso... porque... é:: a gente ia tá... fazendo um julgamento
também↗ entendeu↗ e mais... é assim... e tão↗ mostrando... é:: eu e minha esposa... de uma tal
maneira... explorando assim a nossa imagem de uma tal maneira... na televisão... que eles não
conhecem a gente pra estar falando o que falam... entendeu↗ então... eu acho assim... eles tinham
que conhecer ao menos... um pouquin::ho... pra eles estarem fazendo esse julgamento↗ se ele
soubessem como... como era a nossa vida... a gente vive sempre em harmonia... sempre
brincando... todos brincando é:: no apartamento...
Anna Carolina Jatobá: eu sempre ficava cantando... com os três... com o Pietro... Cauã...
pulando ...
Alexandre Nardoni: sempre foi feito tudo pra as crianças entendeu↗ tudo... tudo... “ah vamos
brincar pai↗ vamos... ah... vamos brincar... tia Carol↗” porque a Isabela sempre chamava minha
esposa...
Anna Carolina Jatobá: É... pra Isa... eu não sou do jeito que as pessoas estão falando... sempre
fui a tia Carol... sempre... pra sempre...

No excerto 3, a fim de convencer o outro de que eles não são ruins


como a mídia está afirmando, o casal começa a descrever situações positivas
que passaram com a criança. Dessa maneira, Alexandre Nardoni afirma que
eles sempre viveram em harmonia, sempre brincando, cantando, pulando,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


ações que compõem um campo semântico positivo, a fim de afastá-los da
imagem de assassinos. Aliado a isso, temos também o uso do discurso 217
reportado da Isabella Nardoni e o uso do referente “tia Carol”, a fim de
Rodrigues
aproximar o discurso deles com o da criança morta, como uma forma de Silva
resgatar a imagem dela e induzir a sociedade a acreditar que Isabella
concordaria com eles. Em todo tempo, até mesmo quando recorrem ao outro
“Isabella Nardoni”, é para buscar o convencimento do outro “a sociedade”.
Seguindo, o casal continua com a resposta emocional de que ficaram
tristes pelo tratamento das pessoas com eles. A fala da Anna Carolina no
trecho “eu não sou do jeito que as pessoas estão falando” demonstra a
emoção de preocupação, angústia em querer preservar a sua face positiva,
que está manchada perante a sociedade brasileira. Segundo Plantin (2011),
temos:

Quadro 3- Análise emocional do discurso da Anna Carolina Jatobá, excerto (3), em


conformidade com os postulados de Plantin (2011)

Termo de emoção Experienciador Fonte de emoção Orientação


argumentativa

--------- Anna Carolina as pessoas Mostrar a


Jatobá (sociedade) preocupação, a
angústia, querendo
provar para a
sociedade que ela
não é capaz de
matar, como está
sendo acusada.

Fonte: elaboração própria

Nesse excerto, não há um termo de emoção exato que marque a


emoção do experienciador, mas toda a fala da Jatobá. Percebemos que em
toda a sua resposta “É... pra Isa... eu não sou do jeito que as pessoas estão
falando... sempre fui a tia Carol... sempre... pra sempre...”, o experienciador
demonstra uma emoção de angústia para se vitimizar para a sociedade, a fim
de mostrar que ela não é a culpada da morte de sua enteada, como estão a
acusando.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Excerto 4
218
Valmir Salaro: então como é que vocês veem essa acusação tão violenta da polícia... dizendo
que vocês mataram a Isabela↗
Rodrigues
Anna Carolina Jatobá: isso dói... isso dói...
Silva
Alexandre Nardoni: acaba com a gente... porque a nossa vida... já acabou né↗ acabaram com a
nossa vida...
Anna Carolina Jatobá: destruíram a nossa vida em segundos... em segundos destruíram...
Alexandre Nardoni: e essas acusações... assim... meu... não nem tem como explicar↗
destruíram nossa vida... praticamente...
Anna Carolina Jatobá: destruíram a nossa família…
[...]
Valmir Salaro: e vocês afirmam e reafirmam que uma terceira pessoa entrou e matou a Isabela↗
Alexandre Nardoni: isso...
Anna Carolina Jatobá: com certeza...
Valmir Salaro: por que alguém agiria com tanta brutalidade↗
Anna Carolina Jatobá: é o que a gente se pergunta também... todas as noites... todos os dias...
Alexandre Nardoni: é:: a gente fica analisando assim... parando para pensar... como alguém
poderia fazer isso com uma criança↗ principalmente com a Isabela... que é uma criança...
dó::cil... é uma criança...

Esse excerto é composto por três perguntas do jornalista Valmir


Salaro. À primeira, que questiona como eles veem essa acusação de terem
matado a Isabella, Anna Carolina responde com um teor emocional de dor e
tristeza. É interessante percebemos que, mais uma vez, a dor é em relação às
acusações e, não, em terem perdido a criança. Isso fica claro quando
Alexandre diz “e essas acusações... assim... meu... não nem tem como
explicar↗ destruíram nossa vida... praticamente…”. Ou seja, eles carregam
um sentimento de tristeza, de vida destruída devido às acusações realizadas
pela polícia, mídia e sociedade. Temos, portanto, de acordo com Plantin
(2011):

Quadro 4- Análise emocional do discurso da Anna Carolina Jatobá e Alexandre


Nardoni, excerto (4), em conformidade com os postulados de Plantin (2011)

Termo de emoção Experienciador Fonte de emoção Orientação


argumentativa

Dói Anna Carolina Polícia, mídia, Demonstrar a dor e


Destruíram Jatobá e Alexandre sociedade a tristeza que estão
Nardoni sentindo devido às
acusações, a fim de
se colocarem como
vítima.

Fonte: elaboração própria

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Os termos de emoção “dói” e “destruíram”, usados pelo casal,
demonstram a tristeza que eles estão sofrendo em estarem sendo acusados 219
pela polícia, mídia e sociedade. Essas emoções continuam por toda a
Rodrigues
entrevista, em uma forma do casal de se vitimizar.
Silva
Quanto à alteridade, percebemos que na relação o “outro para mim”,
o casal coloca a culpa pela destruição da vida deles no outro, a polícia, a
sociedade, a mídia, ficando implícito no trecho “destruíram a nossa vida em
segundos... em segundos destruíram…”. Além disso, em outra relação “outro
para mim”, os entrevistados colocam a culpa pelo assassinato da criança em
uma terceira pessoa, quando questionados na segunda pergunta do jornalista.
Na relação, “eu para o outro”, o casal se mostra destruído com as acusações
e indignado com o fato de uma pessoa ter sido capaz de matar a criança tão
brutalmente.
Quando questionados sobre o porquê alguém agiria tão brutalmente
com a Isabella, eles dizem que também não compreendem como isso foi
acontecer. No trecho “como alguém poderia fazer isso com uma
criança↗”, o pai da menina se mostra indignado com a pessoa que fez isso
com a sua filha, ainda mais sendo a criança tão dócil. Vejamos o quadro a
seguir:

Quadro 5- Análise emocional do discurso de Alexandre Nardoni, excerto (4), em


conformidade com os postulados de Plantin (2011)

Termo de emoção Experienciador Fonte de emoção Orientação


argumentativa

---------- Alexandre Nardoni o assassino da Demonstrar raiva e


Isabella indignação por
alguém ter matado
sua filha de forma
tão cruel, mesmo
ela sendo tão dócil
e assim, afastar a
sua própria imagem
da do assassino.

Fonte: elaboração própria

O termo de emoção na parte final do excerto não é composto por


apenas um termo, mas por toda resposta do Nardoni: “é:: a gente fica
analisando assim... parando para pensar... como alguém poderia fazer isso
com uma criança↗ principalmente com a Isabela... que é uma criança...
dó::cil... é uma criança...”. Assim, o experienciador está demonstrando a

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


emoção de raiva e indignação por ter tido a sua filha morta por um
desconhecido que entrou no seu apartamento. Ao evocar esse sentimento, 220
Nardoni se afasta, consequentemente, da imagem de assassino da criança.
Rodrigues
Excerto 5 Silva

Valmir Salaro: como vocês estão suportando essa carga de acusação... que é uma
acusação grave... e você... ter asfixiado a Isabella... ((apontou para a Anna)) e você
((apontou para o Alexandre)) ter jogado da janela... a criança...
Anna Carolina Jatobá: uma coisa terrível né↗ é horrível...
Alexandre Nardoni: isso não exis::te...
Anna Carolina Jatobá: nunca encostei um dedo nela... eu sou MÃE... você acha que o
que eu não quero pros outros... eu vou querer pros meus filhos... isso não tem cabimento
que tão falando... não existe... nunca existiu...
Alexandre Nardoni: eu nunca... é::
Anna Carolina Jatobá: nunca encostei um dedo ne::la... tanto Alexandre...

No excerto 5, Salaro questiona sobre como o casal está suportando a


carga de acusação e deixa explícito para o público qual é a acusação de cada
um: a de Jatobá é de ter asfixiado a criança e a do Nardoni é de ter jogado a
criança da janela.
Para argumentar que não foi a responsável pela asfixia da menina,
Jatobá usa o discurso emocional da maternidade. Por esse motivo, quando ela
evoca o lexema “MÃE”, ela traz a ideia do significado de mãe na sociedade
ocidental, de que a mãe é a pessoa que mais protege e se importa com o seu
filho, incapaz de fazer o mal. Além do mais, é interessante ressaltarmos que,
na própria transcrição, esse lexema está em maiúsculo para enfatizar a fala
de Jatobá, intensificando a sua argumentação.
Ilustramos com o seguinte quadro, inspirado em Plantin (2011):

Quadro 6- Análise emocional do discurso de Anna Carolina Jatobá, excerto (5), em


conformidade com os postulados de Plantin (2011)

Termo de emoção Experienciador Fonte de emoção Orientação


argumentativa

Mãe filhos e enteada Anna Carolina Afastar a acusação


Jatobá dela, com a evocação
do sentimento
maternal, pois uma
mãe não faria mal aos
seus filhos (incluindo
a Isabella, que ela
considera filha).

Fonte: elaboração própria

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


O uso do termo de emoção “mãe” é experienciada pelos filhos e
enteada da fonte de emoção, Jatobá. Ao usar esse termo, a fonte da emoção 221
desperta um sentimento de confiança nas crianças, de que elas não
Rodrigues
precisavam temer a própria mãe/madrasta. Quando Anna Jatobá afirma que Silva
“eu sou MÃE”, ela está argumentando para Valmir Salaro e também para a
sociedade, espectadores da entrevista, que ela não seria capaz de um ato
desses, que não vai de encontro com o papel de uma mãe.
Excerto 6

Valmir Salaro: O sonho dela era morar com você↗


Anna Carolina Jatobá: o sonho dela era morar com a gente...
Alexandre Nardoni: na quarta-feira... mesmo que ela esteve... com a gente... ela pediu... “papai...
eu quero tanto morar com vocês...”
[...]
Anna Carolina Jatobá: tudo o que ela queria... ela sempre teve... da maneira que ela quis o
quarto a gente decorou tudo do jeitinho que ela quis...
Alexandre Nardoni: não só em material... mas em amor também assim... né↗ meu amor... por
ela assim é:: meu... é uma coisa inexplicável... entendeu↗ pelos meus filhos... é... meu meus filhos
pra mim... é TUDO na minha vida... eu... como eu posso dizer↗ é:: meus filhos... é:: se eu pudesse
não trabalhar para ficar com eles... o tempo inteiro... eu faria isso entendeu↗
Anna Carolina Jatobá: o amor que eu sinto pela Isa vai ser eterno... vou amar ela pelo resto da
minha vida... do mesmo jeito que eu amo meus filhos...
Alexandre Nardoni: é:: nossos filhos são tudo... nossa vida... tudo...
Anna Carolina Jatobá: eu falo brincando que com ela... que ela era minha filha postiça... porque
duas vezes... assim ela eu senti que ela tinha vergonha de nós duas vezes... mas duas vezes a gente
pegou ela me chamando de mamãe ... aí até eu falei assim... eu e a gente tá brincando a gente tava
brincando de um corre atrás do apartamento... aí ela pegou assim “ai papai... não bate na mamãe”
aí eu fiquei espantada olhando assim pra ela e falei “mamãe↗” aí ela falou “não tia Carol... é que
você é como se fosse a minha segunda mãe” ((começa a chorar))

Nesse excerto, o casal começa a sua narração de como a Isabella era


bem tratada, tinha ganho um quarto na casa deles do jeito que ela queria. Em
seguida, os entrevistados mencionam o amor pela Isabella e pelos outros
filhos, a fim de convencer o público (uma vez que a entrevista passou em
rede nacional) de que eles não seriam capazes de matar a criança. Seguindo
os estudos de emoção, temos:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Quadro 7- Análise emocional do discurso de Alexandre Nardoni e Anna Carolina,
excerto (6), em conformidade com os postulados de Plantin (2011)
222
Termo de Experienciador Fonte de Orientação argumentativa
emoção emoção Rodrigues
Silva
amor Alexandre Isabella e seus Mudar a representação que é
Nardoni e Anna outros filhos feita acerca deles (o casal), isto
Carolina é, de assassinos, tentando
construir uma imagem de pai
amoroso, incapaz de matar e de
madrasta que considerava a
enteada como filha.

Fonte: elaboração própria

O termo de emoção “amor”, usado pelos experienciadores “Alexandre


e Anna Carolina”, evoca a emoção do sentimento amor e carinho que o casal
sentia ao olhar para a fonte de emoção “Isabella e seus outros filhos”. Ao
falar desse sentimento, os entrevistados intencionam construir a imagem de
pais amorosos e afastar a imagem negativa que lhes foi construída.
Percebemos no discurso de Anna Carolina Jatobá a intenção de
construir uma imagem de madrasta boa, incapaz de matar a enteada. Para
isso, ela descreve, no par “eu para mim”, uma pessoa boa que via a enteada
como uma filha, ou como ela a chama, “filha postiça”. Já no par “eu para o
outro”, a madrasta se descreve como alguém muito de família, unida aos
filhos, enquanto no par “o outro para mim”, o outro discutido é a Isabella. A
imagem dela é posta pela Jatobá, a fim de mostrar que a menina também
considerava a madrasta como uma mãe. Para passar veracidade para a sua
fala, a madrasta usa o discurso reportado para convencer de que a criança a
amava e se sentia segura com a madrasta.
Ao descrever a imagem de uma família acolhedora, que se importava
com os detalhes pedidos pela filha e até como a criança se sentia em relação
à madrasta, o casal está aproximando as suas próprias imagens com as de
vítima da sociedade, por ter perdido a filha e por estar sendo acusado
injustamente e, consequentemente, afastando, tentando apagar a imagem de
assassinos.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Excerto 7
223
Valmir Salaro: como foi essa semana na cadeia... pra vocês que nunca tiveram contato
com esse mundo↗ Rodrigues
Alexandre Nardoni: é uma coisa que não tem como explicar isso... é uma coisa assim Silva
que nós estamos passando.... não só assim nós temos ficado preso... mas muitas outras
coisas assim que estão julgando a gente por uma coisa que nós não fizemos....
Anna Carolina Jatobá: para mim foi momentos horríveis...
Alexandre Nardoni: não tem nem como explicar isso... as pessoas que conhecem a
nossa família que estão próximos da gen::te... é por isso que nós estamos tentando
explicar para o Brasil... mais ou menos como nós somos... como nossa família é... porque
as pessoas não conhecem as pessoas que estão próximas da gente sabe como nós somos...
sabe que isso... meu... NÃO EXISTE

Salaro, nesse excerto, pergunta como foi a semana na prisão para eles,
que nunca tiveram contato com esse mundo. Anna Carolina responde com o
termo de emoção “horríveis”, a fim de demonstrar a sua dor e, até mesmo,
despertar pena no auditório. Alexandre responde, mais uma vez, com a
indignação de estarem sendo julgados por pessoas que não os conhecem
verdadeiramente.

Quadro 10- Análise emocional do discurso de Anna Carolina, excerto (7), em


conformidade com os postulados de Plantin (2011)

Termo de emoção Experienciador Fonte de emoção Orientação


argumentativa

horríveis Anna Carolina prisão Mostrar a sua dor


em estar sofrendo
na prisão, a fim de
despertar pena no
auditório.

Fonte: elaboração própria

O termo de emoção “horríveis” caracterizando os “momentos


horríveis...”, ditos pelo experienciador Anna Carolina, mostra como ela
ficou ao estar na fonte de emoção “prisão”. Ao fazer essa escolha lexical, a
entrevistada está demonstrando o quanto sofreu e está sofrendo, a fim de
despertar algum sentimento de empatia, solidariedade no entrevistador e nos
espectadores.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Excerto 8
224
Alexandre Nardoni: olha nós não vivemos mais↘
Anna Carolina Jatobá: não tem como... nem dormir a gente não consegue dormir... Rodrigues
comer a gente não consegue se alimentar mais direito... Silva
Alexandre Nardoni: nós não dormimos... nós não nos alimentamos... é:: nós
praticamente não vivemos mais nossa vida praticamente...
Anna Carolina Jatobá: nossa vida praticamente acabou...
Alexandre Nardoni: acabou... no dia que... teve o velório da minha filha que nós
chegamos lá depois de ter saído da delegacia... eu fiz uma promessa pra ela... em cima
do caixãozinho dela... que:: eu não ia... ficar sossegado enquanto não encontrar o
assassino que fez isso com ela... que fez essa brutalidade com ela.... e falei para ela
que enquanto isso não acontecesse... eu ia tá::... indo atrás pra tá/ que:: essa promessa eu
falei para ela “filha ... é:: quan::do... o papai vai prometer uma coisa pra você... o papai
não vai ficar não vai se sossegar enquanto é:: ... não encontrar o assassino que fez isso
com você... essa brutalidade” ... e quando ela foi enterrada também assim ... que eu queria
ter... entrar junto com ela ... dentro de onde ela foi enterrada... assim... que pra mim ali...
é:: para mim ali... tá junto com ela…
[...]
Alexandre Nardoni: e eu queria dizer pra vocês que a nossa fé em Deus assim é
inabalavelmente... inabalável... Deus... Deus é a nossa testemun::ha...
Anna Carolina Jatobá: nossa maior testemunha...
Alexandre Nardoni: nossa maior testemunha ... e ele vai mostrar... pras pessoas... quem
é:: ... eu quero que ele mostre pras pessoas essa pessoa... que fez essa crueldade com a
minha filha... entendeu↗ é o que eu mais espero...

Esse excerto apresenta o final da entrevista, quando Alexandre


Nardoni e Anna Carolina Jatobá já estão muito emocionados. Com a intenção
de fazer com que o público sinta pena, o casal descreve sua situação, que não
consegue mais fazer o básico do ser humano diante de tanta tristeza, como
dormir ou se alimentar.
Movido por esse sentimento de pena que o público sentirá, Alexandre
também realiza a descrição da cena emotiva que ele faz ao ver a sua filha no
caixão. Ele promete, como um pai repleto pelo sentimento de sede de justiça
e vingança, que só irá sossegar quando encontrar o verdadeiro assassino,
responsável pela morte da pequena Isabella. Ao descrever essa cena e ao
narrar que também queria ser enterrado junto à filha, Alexandre está
construindo uma imagem contrária a que está sendo acusado, conivente com
a representação de um pai na sociedade ocidental, daquele que morre para
proteger os seus filhos e sofre muito com a perda de algum deles. Vejamos,
a seguir, um quadro que mostra os detalhes da evocação do sentimento de
vingança realizado pelo entrevistado.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Quadro 11- Análise emocional do discurso de Alexandre Nardoni, excerto (8), em
conformidade com os postulados de Plantin (2011)
225
Termo de emoção Experienciador Fonte de emoção Orientação
argumentativa Rodrigues
Silva
---------- Alexandre Nardoni o assassino da Mostrar o seu
criança sentimento de sede
de justiça e
vingança em ver a
sua filha de 5 anos
morta em um
caixão por alguém
que ainda está
solto.

Fonte: elaboração própria

Para esse sentimento de sede de justiça evocado por Alexandre


Nardoni, despertado pela raiva que ele sente pelo assassino de sua filha, não
há apenas um termo de emoção e, sim, toda a descrição da cena do velório
de Isabella.
No fim da entrevista, Alexandre Nardoni recorre à imagem de Deus
como figura de testemunha. Ao fazer isso, Nardoni está despertando a
imagem de alguém de confiança, pois usa o nome de Deus e descreve a sua
fé e o seu pedido para que Ele possa revelar quem é o verdadeiro culpado.
Usar esse argumento emocional de evocar uma entidade maior, cristã, em um
país majoritariamente cristão, tem um grande impacto, já que se espera que
não se use o nome de Deus em vão.
Quanto aos pares da evocação do outro no discurso, notamos que, no
par eu para mim, é descrito um pai que não consegue mais dormir ou se
alimentar devido à grande tristeza em ter perdido a filha e, por esse motivo,
só vai descansar quando ver a justiça sendo feita. O outro par principal desse
excerto é o par eu para o outro, que mostra o pai da criança realizando uma
promessa para o “outro” filha morta no caixão e o “outro” Deus. Tanto à
relação da filha morta quanto à imagem de Deus, o entrevistado recorre para
demonstrar e clamar por uma sede de justiça em condenar o verdadeiro
culpado pela morte da menina e, consequentemente, comprovar a inocência
dele e da sua esposa.
Por fim, observemos, a seguir, o esquema dos principais “outros”
evocados no discurso do casal durante toda a entrevista.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Figura 1- Principais “outros” evocados no discurso do casal entrevistado

226

Rodrigues
Silva

Fonte: elaboração própria

Desse modo, notamos que as representações dos filhos do casal, da


família, dos amigos, da própria Isabella e de Deus são resgatadas e colocadas
por eles como preservação de face positiva, pois são as pessoas que os
conhecem, sabem como eles são realmente. Enquanto as representações da
população brasileira, da mídia e da terceira pessoa são colocadas em um lado
negativo, pois tanto a população como a mídia são os que os julgam sem os
conhecer, a terceira pessoa é o indivíduo que verdadeiramente matou a
criança deles.

Considerações finais
Neste artigo, analisamos a primeira entrevista do casal Nardoni,
concedida ao Fantástico. Nosso olhar foi direcionado à alteridade e à emoção
com o propósito de compreender como se construiu a orientação
argumentativa.
Com o intuito de alcançarmos esse objetivo, partimos da seguinte
questão geral de pesquisa: de que forma o movimento de emoção e de
alteridade presentes no discurso dos entrevistados contribuem para a
construção da orientação argumentativa estabelecida a partir dos
pensamentos, das opiniões, das crenças dos sujeitos em questão, participantes
dessas relações dialógicas e valorativas?

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


No que diz respeito às emoções evocadas por Alexandre Nardoni,
essas foram de dor e tristeza por estarem sendo julgados injustamente pela 227
sociedade, acusados por pessoas que não os conhecem de verdade. Outra
Rodrigues
emoção que se repete nas respostas dadas pelo casal é o sentimento de amor, Silva
para isso, eles descrevem como amam os seus filhos e como seriam incapazes
de cometer qualquer maldade que os fizessem mal. Também há o sentimento
compartilhado de despertamento de pena, evocando sentimentos maternos e
uma possível emoção de dor que Isabella Nardoni estaria sentindo em um
outro plano por eles estarem sendo acusados pela polícia, para, assim, se
afastar da imagem de assassinos. Desse modo, percebemos que todas as
argumentações emocionais usadas por eles foram com a intenção de
persuadir o auditório de que eles são pessoas incapazes de cometer o
assassinato, e que por isso, a acusação da sociedade é injusta. Em nenhum
momento é demonstrado um discurso emotivo voltado para a dor ou tristeza
de ter perdido a criança, sem que o sentimento fosse usado como ponte para
construir uma imagem de vitimismo dos entrevistados.
No que tange à alteridade, o casal, em relação ao “eu para mim”, se
considera uma família unida, que faz de tudo pelos filhos. A madrasta se
considera bondosa, via a enteada como uma verdadeira filha. Já no par “outro
para mim”, o casal descreve o outro “a sociedade e a mídia” como instâncias
que os veem como assassinos, que realizam pré-julgamento, responsável pela
destruição da vida do casal. O outro recorrido Isabella Nardoni, por sua vez,
é descrito como alguém que amava a família paterna, ao ponto de já ter
chamado a madrasta de “mãe” e de ter intenções de morar com eles. Além
disso, há o uso do recurso discurso reportado “Tia Carol” da Isabella, lexema
que remete à família, ao qual subjaz a noção de aproximação parental,
servindo de argumento para sustentar a representação de que a menina era
bem cuidada e amada pelos acusados de assassinato. Quando os entrevistados
recorrem ao outro “assassino de Isabella”, eles apenas querem depositar a
culpa nele e se considerarem inocentes. Por fim, no par “eu para o outro”, o
casal realiza uma resposta às acusações da sociedade, demonstrando por meio
da descrição de lembranças felizes familiares e da repetição dos termos
“família”, “unidos” e “juntos” que são muito “família” e que possuem valores
que conflitam com a noção de assassinos. Ademais, se mostram destruídos
pelas falsas acusações e indignados pelo fato de alguém ser capaz de matar
tão brutalmente uma criança tão meiga como Isabella, além de evocar a
imagem de Deus, solicitando que Deus os ajude a revelar a verdade sobre o

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


assassino do caso. Esse par “eu para o outro” é o par mais recorrente na
entrevista, pois a todo tempo, o casal busca se vitimizar, tentando se afastar 228
da imagem posta pelos veículos midiáticos. Até mesmo quando recorre aos
Rodrigues
“outros”, parece-nos que eles tentam persuadir e convencer o auditório de Silva
que são inocentes.

Referências
AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo:
Musa, 2001.
ARISTÓTELES. Retórica das paixões. Prefácio Michel Meyer. Tradução do grego Isis
Borges B. da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de
Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2010.
EMEDIATO, Wander. As emoções da notícia. In: MACHADO, Ida Lúcia; MENEZES,
William; MENDES, Emília (Orgs.). As emoções no discurso. Rio de Janeiro: Lucerna,
2007, p. 290-309.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e Diálogo. As ideias linguísticas do círculo de
Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
GLOBOPLAY. Pai e madrasta de Isabella dão entrevista exclusiva. São Paulo:
Fantástico, 2008. Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/818164/?s=0s. Acesso
em: 29 mar. 2023.
GRUPO DE ESTUDOS DOS GÊNEROS DO DISCURSO- GEGe. Palavras e contra
palavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bahktin. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2009.
PLANTIN, Christian. As razões das emoções. Tradução Emília Mendes. In: MENDES,
Emília; MACHADO, Ida Lúcia. (Orgs.). As emoções no discurso. V.II. Campinas:
Mercado de Letras, 2010, p. 57-80.
PLANTIN, Christian. Les bonnes raisons des émotions. Principes et méthode pour l’étude
du discours émotionné. Bern: Peter Lang, 2011.
RODRIGUES, Maria das Graças Soares; SILVA NETO, João Gomes; COSTA, Alessandra
Castilho da; FABIANO-CAMPOS, Sulemi. Ateliê de escrita: a emoção como fonte
motivadora. In: MARQUESI, Sueli; PAULIUKONIS, Aparecida Lino; ELIAS, Vanda
Maria. Linguística textual e ensino. São Paulo: Contexto, 2017, p. 33- 47.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais
do método sociológico na ciência da linguagem. 3.ed. Tradução, notas e glossário Sheila
Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2021.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


229

Puzzo

A voz da mulher na poesia: uma


questão de estilo na
perspectiva bakhtiniana
The woman’s voice in poetry: a matter of style in bakhtinian
perspective

Miriam Bauab Puzzo 1 Introdução


Universidade de Taubaté, Brasil
Atualmente, as mulheres
têm se tornado protagonistas em
várias áreas no contexto social. Seu
papel tem se revelado ativo em
campos anteriormente reservados aos homens, principalmente, as
afrodescendentes, que se projetam no campo literário.
Tendo em vista essa questão, o objetivo deste artigo é discutir a
presença de vozes líricas que se projetam nos dias de hoje, como recurso para
traduzir os conflitos existenciais decorrentes dos embates enfrentados no
contexto social. A teoria que fundamenta este artigo, na perspectiva da
análise dialógica de Bakhtin e do Círculo, ilumina aspectos discutidos na
concepção da linguagem poética atual, entre eles, o estilo. Na vertente
dialógica bakhtiniana, a concepção de estilo opõe-se àquela da estilística
subjetiva e idealista que predominou até recentemente na análise da poesia
ou à visão formalista, que privilegiava a forma em detrimento do conteúdo e
das relações sociais, como discutem Bakhtin ([1953] 2016) e Volóchinov
([1926] 2019). Nessa concepção discursiva, toda forma enunciativa,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


inclusive a poética, decorre das relações dialógicas constituídas pelo contexto
social na própria linguagem, como postulam os membros do Círculo. 230

Nessa perspectiva, as transformações sociais decorrentes da Puzzo


industrialização, da tecnologia e da economia são responsáveis pelas novas
formas de atividades e pelos novos modos de atuação do ser humano em seu
ambiente. Como consequência, a língua/linguagem sofre também
transformações em função das necessidades imediatas, exigidas pelo
contexto social, afetando as novas formas de produção comunicativa.
Desse modo, os valores se alteram, modificando a atuação do homem
e sua forma de relacionamento em sociedade, como pontua Bauman (2007)
em suas reflexões sobre essa questão em A vida líquida. A rapidez do
desenvolvimento social propiciada pela ciência e pela tecnologia de modo a
facilitar o trabalho, diminuindo o tempo para sua execução, afeta de modo
crucial a produção cultural, conforme discute Benjamin em A obra de arte
na era de sua reprodutibilidade técnica (2018). De forma semelhante, a
cultura literária, antes restrita a uma classe social privilegiada, expandiu sua
difusão, permitindo a inclusão de uma parcela da sociedade, antes restrita ao
trabalho doméstico, como a das mulheres e a dos trabalhadores braçais das
periferias. O desenvolvimento de novos meios de comunicação, entre eles os
celulares e os computadores, ampliou as possibilidades de interação pelas
redes sociais.
Assim, considerando essas transformações e entendendo o estilo na
perspectiva discursiva relacional, observa-se que a poesia contemporânea
expressa os conflitos existenciais imediatos, expondo de modo contundente
uma visão de mundo particular, mobilizada pelas condições sociais.
Além disso, as vozes de mulheres antes silenciadas se fazem presente
na produção poética de modo mais atuante. Se, ainda no século XX, poucas
mulheres circunscritas ao ambiente doméstico, como Cora Coralina e Adélia
Prado, ousaram se dedicar à produção poética, no século XXI, Conceição
Evaristo torna-se representante da mulher negra, cuja voz ficou silenciada
durante séculos na literatura brasileira.
Portanto, para investigar as peculiaridades estilísticas dessa produção
mais recente das mulheres, foram selecionados, como objetos de análise,
alguns poemas de Conceição Evaristo da coletânea Poemas de recordação e
outros movimentos (2021), cuja voz poética expõe os conflitos vivenciados
pelo sujeito lírico em relação ao seu contexto sócio-histórico. Os poemas

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


“Vozes-mulheres” e “Da calma e do silêncio” são exemplares desse embate
registrado pela voz lírica da poeta 231

Distanciando-se da poesia que trata de questões mais abstratas e Puzzo


filosóficas, a autora mergulha nas questões cruciais que estão voltadas para
os conflitos sociais imediatos, refletindo e refratando os problemas da
escravidão, do preconceito social e das relações sociais que afetam o sujeito
lírico.
Opondo-se a uma literatura circunscrita ao sentimento subjetivo, num
mundo concebido pela imaginação criativa, os poemas contemporâneos de
Evaristo expressam de modo concreto as relações dialógicas que se instituem
entre o eu-poético e os conflitos decorrentes dos embates enfrentados pelas
diferenças de gênero, culturais e ideológicas.
Se mesmo a poesia simbolista, como expressão de um mundo
subjetivo distante do contexto imediato, decorre das relações entre o autor e
o contexto social, como concebe Adorno (2003) ao tratar da lírica no
conhecido ensaio “Palestra sobre lírica e sociedade”, a poesia moderna e
contemporânea expressa na voz das mulheres poetas sua vivência lírica, no
ambiente mais prosaico, como os poemas de Cora Coralina e de Adélia Prado
comprovam. A partir do conceito que fundamenta a teoria bakhtiniana, ou
seja, a duplicidade intrínseca da linguagem, a poesia se insere no contexto
social por meio dos conflitos sociais expressos pelo sujeito lírico. O conceito
de arquitetônica discutido por Bakhtin (2010) em seu ensaio de 1920 Para
uma filosofia do ato responsável ilumina questões relativas à construção
autoral, numa perspectiva triádica, ou seja, o autor responsável por sua
criação estabelece um processo complexo de construção em que o sujeito
responde às suas angústias existenciais, responde ao outro e ao contexto
social imediato.
Desse modo, a teoria dialógica da linguagem fundamenta a discussão
a respeito do conceito de gênero discursivo na poesia, e suas características,
entre elas o estilo, a responsabilidade e a responsividade valorativa autoral
que se manifestam no tema, nas imagens e no ritmo desse discurso lírico.
Assim, este artigo apresenta a princípio a teoria que o fundamenta,
discutindo os conceitos teóricos que são retomados na análise. A seguir, uma
breve notícia da autora e de sua peculiaridade estilística, analisando na
sequência os poemas selecionados para, finalmente, concluir.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


2 A poesia como gênero discursivo
232
A questão da lírica e da poesia tem sido tratada sob várias perspectivas
teóricas, e cada uma delas destaca questões distintas, seja ela a inspiração Puzzo
divina, considerando o poeta um ser privilegiado pelos deuses, em sua
genialidade subjetiva, como entende o romantismo, seja ela a manifestação
subjetiva de natureza psíquica, como propõe a estilística alemã. Numa
perspectiva materialista marxista, a origem da poesia resulta do trabalho
coletivo dos primeiros agrupamentos humanos em sua atividade agrícola.
Sob essa ótica, a produção poética concretizada pelo ritmo das canções
seriam formas de motivar o movimento do trabalho na plantação e na
colheita.
Se as origens do canto surgiram da manifestação dolorosa do trabalho
humano, na luta pela sobrevivência, os gritos expressivos decorrentes desse
esforço originaram as primeiras emissões vocais responsáveis tanto pela
estruturação da língua quanto pela criação da palavra cantada. É essa a base
de toda a criação popular espontânea que constitui a manifestação popular de
arte, pois o ritmo associado aos sons vocais acaba compondo a base da
canção.
Todas essas formas de concepção estão vinculadas às origens da
linguagem oral, como postula Volóchinov em seu ensaio “A palavra na vida
e a palavra na poesia” ([1926] 2019). De acordo com o autor, a necessidade
de comunicação que está na raiz da linguagem humana surgiu da necessidade
de troca de informações e de partilha das emoções experimentadas no
cotidiano do homem primitivo em seus primeiros agrupamentos coletivos.
Também está relacionada ao trabalho, à economia primitiva dos primeiros
agrupamentos humanos. Dessa forma, como a linguagem se constitui na
duplicidade eu/outro, o contexto social está inexoravelmente presente na
expressão humana, seja ela na comunicação imediata ou artística. Assim, o
discurso poético, como expressão da emoção, do sentimento de um sujeito
ficcional, também apresenta os conflitos sociais do sujeito lírico, que se
refletem e se refratam na linguagem. Portanto, a questão do estilo é uma
questão fundamental da teoria dialógica, seja ele relativo ao gênero
discursivo seja ele referente à produção poética. O conceito de arquitetônica
como fundamento da concepção dialógica bakhtiniana, discutido nos
primeiros textos de Bakhtin, como Para uma filosofia do ato responsável

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


([1920] 2010), estrutura a concepção dialógica de estilo como um ato
responsivo e responsável do autor criador. 233

Na literatura contemporânea, essa questão se torna mais evidente pelas Puzzo


transformações sociais, premidas pela tecnologia, pelos meios de
comunicação e pelo sistema econômico, como discute Bauman (2007).
Apesar das inovações, aquele sentimento doloroso motivador da canção
inaugural ainda permanece ao longo do tempo, embora não mais vinculado
ao esforço humano no desempenho do trabalho braçal, visto que a máquina
o substituiu na modernidade. O sentimento que acompanhou o homem em
sua manifestação artística, ao longo do tempo, não resulta mais da dor
imediata de um esforço corporal, mas expressa o drama ficcional resultante
de conflitos, de embates sociais recriados pelo autor na arte. É o que justifica
a criação ficcional, seja ela prosaica ou lírica, como expressão do sujeito
situado em um contexto social, no qual se sente premido pelas circunstâncias
de um mundo em que sua voz procura entrar em sintonia com a coletividade
da qual se encontra isolado ou da qual procura ser porta-voz.
Em várias obras de autores atuais, são expostas questões vivenciadas
por uma coletividade cuja voz não se faz ouvir, como ocorre nos romances
de Itamar Vieira Junior, nos poemas de Elisa Lucinda, Mel Duarte ou
Conceição Evaristo. Sob esse aspecto, a questão do estilo torna-se
fundamental e suscita pesquisas que consigam evidenciar um novo modo de
expressão que se concretiza em princípios inovadores nos temas e no estilo.

3 A teoria discursiva e a concepção de gênero


Na discussão a respeito de enunciado e gênero discursivo, os membros
do Círculo ampliam a concepção da língua em seu uso, a partir da
comunicação oral como recurso de interação entre os seres humanos.
Contrapondo-se a modelos instituídos pelas teorias vigentes no final do
século XIX e início do XX, tais pesquisadores repensam a linguagem em sua
relação com as necessidades de produção coletiva e de troca de informações.
Para eles, a linguagem não se isola de suas condições sociais, o ser humano,
como um ser que vive e sobrevive em comunidades, necessita da linguagem
como veículo de comunicação, reagindo ao meio e respondendo a ele. É dessa
relação tensa com o ambiente social que a linguagem se constitui em suas
diversas formas de produção, circulação e recepção. Considerando essa

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


noção primária e imediata de comunicação é que os membros do Círculo
pensam o gênero discursivo e o enunciado concreto, resultantes da relação 234
do homem com seu contexto social.
Puzzo
Assim, ao tratar do gênero, em especial, na expressão artística,
Medviédev, em O método formal nos estudos literários: introdução crítica a
uma poética sociológica, pontua:

A totalidade de qualquer tipo, isto é, de qualquer gênero orienta-se na


realidade de forma dupla, e as particularidades dessa dupla orientação
determina o tipo dessa totalidade, isto é seu gênero.

Em primeiro lugar, a obra se orienta para os ouvintes e os receptores, e


para determinadas condições de realização e de percepção. Em segundo
lugar, a obra está orientada na vida, como se diz de dentro, por meio de
seu conteúdo temático (Medviédev, [1928] 2012, p. 195).

Essa relação intrínseca do gênero com o contexto social, com o outro


a que se destina, seu possível leitor, é condição essencial para sua
concretização. De forma semelhante, Volóchinov, ao tratar da linguagem na
vida e na lírica, observa a importância do contexto, do ambiente externo, do
possível destinatário na produção do enunciado, seja na vida cotidiana, seja
na poesia. Em A palavra na vida e a palavra na poesia ([1926] 2019), o autor
conceitua o enunciado em função dessa dupla orientação, que torna cada
enunciado irrepetível, ainda que as palavras sejam as mesmas. O ambiente
de produção, o destinatário e o tema imediato que se expressa no enunciado
decorrem desse momento vital único, desse processo continuamente
transformador e dinâmico.
Para Volóchinov,

Na poesia, a palavra também é o “roteiro” do acontecimento, pois a


percepção artística o interpreta, ao adivinhar com precisão nas palavras
e formas da sua organização as inter-relações vivas e específicas do
autor com o mundo representado por ele, e ao entrar nessas inter-
relações como o terceiro participante, o ouvinte (Volóchinov, [1926]
2019, p. 134, ênfase do autor)

Sistematizando esse conceito, Bakhtin retoma a questão do gênero


discursivo em suas peculiaridades, caracterizando-o de modo mais explícito.
Amplia suas características, além dos elementos essenciais que o compõem.
No ensaio O gênero do discurso ([1952-1953] 2016), o autor acrescenta
características essenciais ao gênero, entre elas, o posicionamento axiológico
do enunciador, sua responsabilidade e sua responsividade diante do que
expressa, o estilo em sua dupla constituição genérica e individual, em função

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


da proposta comunicativa. A questão da responsabilidade do sujeito, que
responde ao outro e ao contexto, já havia sido discutida em seus primeiros 235
textos – Para uma filosofia do ato responsável (Bakhtin, [1920] 2010) e
Puzzo
também em O autor e a personagem na atividade estética (Bakhtin, [1975]
2003).
Ao analisar o poema “Separação” (1830), de Pushkin, para
exemplificar o conceito de arquitetônica, o autor demonstra o processo
triádico (três centros de valor) que constitui a produção artística. Nessa
concepção, em torno do processo de criação, o autor, a princípio identificado
com seu objeto de forma empática, distancia-se dele para poder representá-
lo esteticamente. Nesse movimento, o autor, com sua proposta, desloca-se da
visão subjetiva para observar contemplativamente seu objeto e representá-lo,
considerando o destinatário de sua produção. Portanto, o movimento descrito
por Bakhtin decorre de três etapas vivenciadas pelo autor: eu-para-mim, eu-
para-o-outro e o outro-para-mim, que resultam na arquitetônica de sua
produção. Nesse processo, o autor desempenha um papel de responsabilidade
ética, respondendo ao contexto social. Dessa forma, o sujeito está
compromissado com suas respostas, que se concretizam em sua obra, diante
dos desafios que enfrenta em seu contexto social. O que Bakhtin postula é a
não indiferença no processo criativo, e é esse posicionamento axiológico que
o autor expressa em seus enunciados, representado no tom valorativo, que os
constitui. Se a princípio, Bakhtin escolhe um poema para ilustrar sua teoria,
quando trata dos gêneros do discurso, essa questão se amplia para todas as
formas de comunicação, quando identifica o tom valorativo presente nos
enunciados concretos.
A partir dessa perspectiva genérica, na análise dos poemas de
Conceição Evaristo, observa-se essa produção poética como resposta do
sujeito lírico ao sofrimento imposto a uma coletividade étnica transportada
da África para o Brasil, subjugada pelo poder de senhores, em cujas mãos se
tornavam objetos de comando e de desejo. É a esse processo dramático que
o eu-lírico se refere como parte intrínseca de sua constituição como sujeito
social. Algumas informações sobre a autora explicitam seu papel de porta
voz de seus antepassados, cujo percurso se encontra entranhado e marcado
no trajeto vital da autora.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


4 Conceição Evaristo e seus poemas
236
Nascida na década de 1940, a mineira Conceição Evaristo teve uma
aprofundada formação acadêmica, com doutorado em Literatura Comparada. Puzzo
É escritora de muitos contos, de poemas publicados em coletâneas e de dois
romances, Ponciá Vicêncio (2017), traduzido para o inglês e o francês, e
Becos da memória (2017). Os poemas, escritos numa linguagem
aparentemente simples, dialogam com a literatura instituída, refletindo e
refratando as formas expressivas na produção de sentido. Reproduzem
imagens consagradas, que se inserem em outro contexto poético com temas
inusitados, expressos por um sujeito lírico sofrido, cuja força reproduz
imagens de resistência e de superação: “sou eternamente náufraga/ mas os
fundos oceanos não me amedrontam/e nem me imobilizam” (Evaristo, 2021,
p. 11).
A autora afrodescendente faz emergir no ritmo e no tom a voz por
tanto tempo sufocada de uma mulher cujo sofrimento expressa a dor coletiva
de uma comunidade silenciada. Como afirma Wagner Amaro, editor da Malê,
na orelha do livro Poemas da recordação e outros movimentos (2021):
“Conceição poetiza com(sic) muitas, mas o faz a partir de uma experiência,
ainda e infelizmente, pouco comum para os que iniciam a vida nas classes
sociais menos favorecidas: a mobilidade para condições de vida mais justas”.
Nessa única obra de poemas, Evaristo trata de questões relativas à sua origem
africana, cujas ancestrais, subjugadas pelo sistema escravocrata do Brasil
colonial, ainda repercutem na sua geração e refletem na identidade lírica. Sob
esse ângulo, os poemas selecionados para análise expressam essa voz, que
ecoa em uníssono com a coletividade das mulheres sem voz, sufocadas pelas
condições de submissão e de silenciamento a que foram ou à qual ainda se
encontram condenadas. Dentre os poemas selecionados, alguns tratam dessa
condição de silenciamento da mulher que ainda procura encontrar uma forma
de consolidar sua identidade vital de mulher liberta. Do conjunto de poemas
escolhidos como objeto de análise, destacam-se: “Vozes mulheres”, “Da
calma e do silêncio””, A roda dos não ausentes”, “Amigas”, “Eu-mulher”,
“Fêmea-fênix” e “Certidão de óbitos”.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


5 A voz que ecoa na lírica
237
O primeiro poema selecionado apresenta um título que, de certo modo,
tematiza e expressa a proposta poética da autora. “Vozes-mulheres” Puzzo
metaforiza um modo de sentir e de vivenciar esteticamente uma visão
coletiva familiar. Na voz do sujeito lírico, há a recuperação de um passado
que ficou silenciado pelo sofrimento e pela impossibilidade de expressão. Ao
recriar imageticamente a infância de sua bisavó, vinda nos porões do navio
que a trazia da África, remete a sua origem ancestral e ao sofrimento a que
foi submetida desde seus primeiros anos. A privação da liberdade e da
possibilidade de experienciar o florescimento da vida se concretiza em
versos: “nos porões do navio. / ecoou lamentos /de uma infância perdida” (p.
24).
Seguindo a sequência evolutiva de sua geração, o eu-lírico retoma a
voz da avó, subjugada pelo senhor ao qual devia obediência total, registrada
nas imagens de repercussão sonora do sofrimento, como evidencia o trecho:
“ecoou obediência/aos brancos-donos de tudo” (p. 24).
A seguir, a voz da mãe, uma escrava liberta cuja vida se arrasta no
trabalho, em condições de vida precárias, ressoa no registro do sujeito lírico:
“ecoou baixinho revolta/ no fundo das cozinhas alheias/ debaixo das trouxas/
roupagens sujas dos brancos/ pelo caminho empoeirado/ rumo à favela” (p.
24).
Na enumeração de ações quase prosaicas, o lirismo emerge pelo ritmo
e pelas imagens estigmatizadas do trabalho dedicado ao bem-estar alheio.
Na voz do eu-lírico, ainda se encontram os resquícios do sofrimento
herdado: "ecoa versos perplexos/ com rimas de sangue/ e fome” (p. 24-25).
Em imagens contundentes, o processo criativo dos versos e das rimas estão
enredados no sofrimento e na dor física, resultantes do sangue e da fome de
seus antepassados.
Atualizado pela nova geração, o comportamento do sofrimento antigo
se renova em novas formas de reação, ao mesmo tempo em que expressa a
dor ancestral nas vozes que ressoam em uníssono, congregando tempo e
espaço, passado, presente e futuro, mas com a vivência em um espaço livre:
“A voz de minha filha/ recolhe todas as nossas vozes/ recolhe em si/ as vozes
mudas caladas/ engasgadas nas gargantas.... Na voz de minha filha/ se fará
ouvir a ressonância/ o eco da vida-liberdade” (Evaristo, 2021, p. 24).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Portanto, o sujeito lírico, ao recompor um trajeto situado no passado,
cujos ecos ressoam no presente, procura resgatar sua identidade, constituída 238
pelos fatos dolorosos que ainda se fazem sentir. Dessa forma, responde de
Puzzo
modo ativo, ao expor um sofrimento desconhecido e silenciado, motivador
de novas possibilidades de respostas antes desconhecidas, que se concretizam
no presente anunciando um futuro promissor de “vida-liberdade”.
No poema “Da calma e do silêncio”, o lirismo concebido como um ato
antropofágico é concretizado em imagens físicas relativas ao ato de consumir
os alimentos: “morder”, “mascar”, “rasgar” (p. 121), não o alimento, mas o
verbo. A palavra poética expressa em imagens contundentes um processo de
conhecimento profundo para atingir “o âmago das coisas” (p. 121). O tom se
modifica pela cadência, pela lentidão em que se evidencia a descoberta da
poesia que está sendo explorada, vivenciada intensamente pelo instante de
recolhimento e de prazer estético.
Nesse espaço silencioso, o sujeito lírico está em busca da descoberta
de um mundo inexplorado, só possível de ser alcançado no recolhimento, na
quietude do silêncio: “Caminhar para quê?/ Deixem-me quedar,/ deixem-me
quieta,/ na aparente inércia./ Nem todo viandante anda estradas,/ há mundos
submersos,/ que só o silêncio/ da poesia penetra.” (Evaristo, 2021, p. 121)
Na percepção do sujeito lírico, a atividade poética ganha estatuto de
autoconhecimento, de revelação, constantemente reproduzido nas metáforas
poéticas ao longo do tempo. Entretanto, esse processo difere das imagens
abstratas em que a metafísica é processada. Neste poema, a materialidade
física, a corporalidade das imagens remete à interioridade identitária. O
conhecimento das coisas em sua concretude está associado a uma visão
identitária da existência, só apreendida a partir dos objetos, visualizados e
introjetados no silêncio e na lentidão do ritmo. Assim, o poema expressa nas
imagens um processo estético de autoconhecimento e do estar-no-mundo.
Em “A roda dos não ausentes” (Evaristo, 2021. p. 12), o sujeito lírico
expressa o desejo de se encontrar, de se identificar nos fragmentos das
lembranças revividas: “Há tempos treino / o equilíbrio sobre/ esse alquebrado
corpo, / e, se inteira fui, / cada pedaço que guardo de mim / tem na memória
o anelar / de outros pedaços.”
Em seus versos finais, as imagens sugerem a recomposição de uma
identidade pela reconstrução dos fragmentos “Traço então a nossa roda gira-

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


gira/ em que os de ontem, os de hoje, / e os de amanhã se reconhecem / nos
pedaços uns dos outros. / Inteiros” (Evaristo, 2001, p. 12). 239

O poema de Evaristo concretiza o que Bakhtin ([1975] 2003b, p. 348) Puzzo


concebe como característica da vida dialógica, expressa nas palavras: “O
homem participa todo e com toda sua vida: com os olhos, os lábios, as mãos,
a alma, o espírito, com o corpo todo, com os atos. Ele se põe todo na palavra”.
Assim, as imagens relativas à corporalidade física do sujeito lírico
predominam na maioria dos poemas de Evaristo, cujos pés se encontram
fincados no solo onde caminham.
Dessa forma, a dor física está associada ao sofrimento ancestral, que
constitui sua identidade e sua memória como se em seu corpo pudesse
encontrar as marcas de seus ancestrais que a constituem, num processo
autofágico, de morder, mascar e rasgar elementos substanciais do corpo, onde
procura encontrar as respostas para sua angústia existencial.
Essa mesma característica pode ser identificada no poema “Amigas”
(Evaristo, 2021, p. 31), cuja estrofe inicial reproduz imagens do sofrimento
corporal exposto ao trabalho árduo na busca de sua identidade: “Trago na
palma das mãos/ não somente a alma,/ mas um rubro calo,/ viva cicatriz, do
árduo/ refazer de mim.” A estrofe final expressa esse esforço de resgatar
pelas partes encontradas uma unidade consistente: “Tenho a calma de uma
mulher/ recolhendo seus restantes pedaços. / E com o cuspo grosso de sua
saliva,/ uma mistura agridoce,/ a deusa artesã cola, recola,/ lima e nina o seu
corpo mil partido./ E se refaz inteira por entre a áspera/ Intempérie dos dias”
A predominância de imagens referentes ao próprio corpo revela a
proximidade lírica com sua natureza concreta. No poema “Eu-mulher”, as
imagens são compostas de partes do corpo e de seu funcionamento para
desvendar sua capacidade gerativa de novos seres:
Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.

Vagos desejos insinuam esperanças.


Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
Violento os tímpanos do mundo.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo 240

Antes – agora – o que há de vir. Puzzo


Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo (Evaristo, 2021, p. 23).

Esse poema ilustra de modo exemplar o estilo poético de Evaristo,


demonstrando uma voz poética possante, cujo ritmo é constituído de versos
breves em sequência, compostos por períodos verbais curtos: “Antevejo./
Antecipo./ Antes-vivo”. Esses versos se completam na estrofe seguinte ou
por frases nominais numa sequência que simula um ritmo fragmentado,
sugerindo os impactos e os golpes da vida: “Eu-fêmea-matriz/ Eu força-
motriz,/ Eu-mulher”. A esses fragmentos seguem versos mais longos que
centralizam uma conclusão semântica e rítmica, em uma espécie de solução.
No poema “Fêmea-fenix”, como a metáfora do título indica, a figura
da mulher que vence o medo, contra os percalços íngremes e ameaçadores,
demonstra uma força resistente que se revigora a cada perigo iminente. O
ritmo recorrente pelos versos que se alternam ora com frases completas, ora
com frases truncadas que se completam nos versos seguintes, expõe, pela
estruturação sintática, o movimento oscilatório e instável das crises vitais a
que o sujeito lírico sobrevive. O poema reproduzido evidencia esse processo
que é recorrente:
Navego-me eu-mulher e não temo,
Sei da falsa maciez das águas
E quando o receio
Me busca, não temo o medo,
Sei que posso me deslizar
Nas pedras e me sair ilesa,
com o corpo marcado pelo odor
da lama.

Abraso-me eu mulher e não temo,


sei do inebriante calor da queima
e, quando o temor
me visita, não temo o receio,
sei que posso me lançar ao fogo
e da fogueira me sair inunda, (sic)
com o corpo ameigado pelo odor
da chama.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Deserto-me eu-mulher e não temo,
Sei do cativante vazio da miragem,
E quando o pavor 241
Em mim aloja, não temo o medo,
Sei que posso me fundir ao só, Puzzo
E em solo ressurgir inteira
Com o corpo banhado pelo suor
Da faina.

Vivifico-me eu-mulher e teimo,


Na vital carícia de meu cio,
Na cálida coragem de meu corpo,
No infindo laço da vida,
Que jaz em mim
E renasce flor fecunda.
Vivifico-me eu-mulher.
Fêmea. Fênix. Eu fecundo (Evaristo, 2021, p. 28).

Nesse poema, o sujeito lírico enfrenta as ameaças e, em aparentes


quedas, renasce dos escombros resultantes de cada uma delas: da lama, da
chama, do suor, da faina. Igualando-se à mítica fênix, renasce e reproduz a
vida, como a última estrofe e o último verso afirmam.
Nesse ritmo instável em que o poema se equilibra, o sujeito lírico
reproduz o processo regenerativo de uma coletividade que é constantemente
referida e que mimetiza em sua própria experiência lírica, pela qual se torna
uma personagem de si, mas cujo papel poético é o de representante de uma
comunidade que resistiu ao tempo e ao sofrimento que lhe foi imposto, como
as vozes que emergem no poema “Vozes mulheres” expressam.
Ao resgatar o passado, os poemas recuperam o presente em que o
passado ainda persiste, como o poema “Certidão de óbito” exemplifica:
Os ossos de nossos antepassados
Colhem as nossas perenes lágrimas
Pelos mortos de hoje

Os olhos de nossos antepassados,


Negras estrelas tingidas de sangue,
Elevam-se das profundezas do tempo
Cuidando de nossa dolorida memória.

A terra coberta de valas


E a qualquer descuido da vida
A morte é certa
A bala não erra o alvo, no escuro
Um corpo negro bambeia e dança.
A certidão de óbito, os antigos sabem,
Veio lavrada desde os negreiros (Evaristo, 2021, p. 17).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


O estilo se caracteriza, portanto, nesse processo dialógico, em que o
sujeito lírico, ao compor os poemas, responde ao contexto sócio-histórico 242
problemático, marcado pela descendência de uma população escravizada,
Puzzo
submetida ao sofrimento físico e moral, cujo resultado ainda se faz presente
na memória e no contexto social, como o título desta coletânea, “Poemas da
recordação”, sugere.
Ao nos debruçarmos sobre a lírica dessa coletânea de Conceição
Evaristo, é possível recompor em seu estilo uma imagem corporal pujante do
sujeito lírico, cujas raízes são constantemente referidas em metáforas
compostas por elementos concretos da corporalidade feminina, reveladores
de um processo de destruição e de recomposição do corpo físico,
imageticamente representante do sofrimento psíquico e moral. O ritmo
entrecortado por versos curtos, cujo sentido se completa nos versos
posteriores, mimetiza o processo de fragmentação física do sujeito lírico em
busca de sua unidade identitária. A origem dessa fragmentação é marcada
pela ancestralidade do sofrimento escravo a que seus antepassados estiveram
submetidos. Nos poemas, o peso desse passado é resgatado e ressignificado,
numa tentativa de superação e de resistência.
É possível, portanto, recompor uma imagem do sujeito lírico nos
poemas analisados pelo sofrimento partilhado. Seus laços de pertencimento
a uma ancestralidade subjugada de modo violento são tematizados
poeticamente e traduzidos por imagens físicas, de uma corporalidade
concreta, marcada pela dor coletiva silenciada. Ao resgatar esse passado
trágico, o ritmo fragmentado expõe a dor de um sujeito dilacerado que
procura encontrar seus laços identitários dispersos no silenciamento de seus
antepassados. A voz que emerge nos poemas evidencia o desejo de expor o
drama existencial com a força de seu corpo, que resiste às constantes ameaças
concretizadas em imagens devastadoras, como o poema “Fênix” ilustra.

Palavras finais
A teoria dialógica da linguagem ilumina concretamente não apenas o
estilo de Evaristo, mas também seu processo de construção poética. Como
afirma Bakhtin, o enunciado concreto, neste caso, o poema, realiza-se na
materialidade linguística, cujos recursos convergem para o tema de cada
poema, como procuramos demonstrar. Complementarmente, o processo de

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


composição dos poemas e a recorrência de recursos expressivos, como o
ritmo e a expressividade da linguagem, compõem uma imagem autoral 243
poética, que pode ser delineada a partir do conjunto dos poemas selecionados
Puzzo
para análise
Nos exemplares selecionados, a voz lírica da mulher descendente de
uma população subjugada pela escravidão torna-se uma marca de sua
identidade. Em sua voz, expressa as vozes silenciadas de uma coletividade
que não conseguiu fazer-se ouvir. O sofrimento e a dor silenciada ecoam na
voz lírica de Conceição Evaristo. A análise dos poemas permite observar os
reflexos desse sofrimento reprimido ao longo do tempo, refratados no ritmo
impactante e fragmentado dos versos e das imagens contundentes do
sofrimento corporal que sobrevive e ressurge mais forte.
Na perspectiva de Bakhtin, o conceito de arquitetônica é fundamental
na concepção do ato autoral e de sua responsabilidade ética como sujeito.
Assim, na concepção discursiva de estilo, concebido em sua duplicidade
constitutiva, observa-se a relação entre o sujeito lírico e o outro que o
constitui, a partir do contexto social em que se encontra. O diálogo que os
poemas desta coletânea estabelecem com o mundo exterior é uma resposta
de resistência, ao demonstrar a força de sua voz, que apesar de reproduzir a
dor e o sofrimento passado revivido, procura extrair desse processo uma
transformação regeneradora.
Apesar de cada poema expressar um tema particular, há certa
recorrência no tom da autora, como poeta que expressa um posicionamento
valorativo diante do contexto social em que se encontra. A linguagem poética
reflete a dor antiga transformada e refratada nos poemas em imagens
consistentes, que sugerem a energia vital que se modifica ao longo do tempo,
num processo de constante renovação. A autora responde ao contexto social
imediato, o expõe em imagens o passado, mas reage a ele de modo
contundente, afirmando-se positivamente como uma resposta ao contexto
atual ainda ameaçador.
De acordo com a perspectiva dialógica, o estilo do autor, como um
sujeito comprometido com o contexto social, expressa seu posicionamento
valorativo em relação ao mundo representado em sua produção estética. O
sujeito criador não é um ser indiferente ao mundo, ele se manifesta com seus
valores, seu modo de pensar e de sentir em relação ao outro. Portanto, o autor
criador, no processo de composição poética, distancia-se de sua realidade

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


concreta para recompor seu objeto estético e, nesse movimento, expressa seu
posicionamento axiológico em relação ao objeto reproduzido. 244

Ao retomar o conceito de arquitetônica na perspectiva de Bakhtin, Puzzo


observa-se na composição dos poemas de Evaristo sua responsabilidade ética
e estética, como sujeito compromissado com o outro, seu semelhante. Em sua
proposta, resgata a memória de um passado que se presentifica no contexto
social em ações que demonstram, ainda, a permanência de concepções
discriminatórias em relação aos afrodescendentes. Dessa forma, a autora
responde ao contexto social do passado no momento presente, aguardando
respostas futuras de seus leitores.
Portanto, concebe o estilo como resultado da relação do sujeito com o
outro. Os poemas representam uma resposta a esse contexto, demonstrando
o papel ético e estético do sujeito artístico cuja recordação expõe o desejo de
evidenciar um passado conhecido pelo sofrimento e pela dor, cujas
consequências ainda persistem em atos de violência na sociedade atual.

Referências
ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade. In: ADORNO, Theodor. Notas de
literatura I. Tradução e apresentação Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34,
2003.
BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, Mikhail.
Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, [1975]
2003a, p. 5-20.
BAKHTIN, Mikhail. Reformulação do livro sobre Dostoiévski. In BAKHTIN, Mikhail.
Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, [1975]
2003b, p. 348.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Editora
34, [1952-1953] 2016.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de
Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, [1920]
2010.
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros, Rio de Janeiro:
Zahar Editora, 2007.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Tradução
Gabriel Valadão Silva, São Paulo: L&PM, 2018.
EVARISTO, Conceição. Poemas de recordação e outros movimentos. 8ª edição. Rio de
Janeiro: Malê, 2021.
EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio, Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2017.
EVARISTO, Conceição. Becos da memória, Rio de janeiro: Pallas Editora, 2017.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


MEDVIÉDEV, Pavel. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma
poética sociológica. Tradução Ekaterina V. Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo:
Editora Contexto, [1928] 2012. 245

VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética Puzzo
sociológica. In: VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia.
Organização, tradução, introdução e notas Sheila Grillo e Ekaterina V. Américo. São Paulo:
Ed. 34, [1926] 2019a p. 109-146.
VOLÓCHINOV, Valentin. O que é a linguagem/língua? In: VOLÓCHINOV, Valentin. A
palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, introdução e notas Sheila
Grillo e Ekaterina V. Américo. São Paulo: Ed. 34, [1930] 2019b, p. 234-265.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


246

Taraborelli

Poesia feminina negra: Do velho


ao jovem, de Conceição Evaristo e
Quem sou eu, de Cristiane Sobral,
em uma perspectiva dialógica
Black female poetry: Do velho ao jovem, by Conceição
Evaristo and Quem sou eu, by Cristiane Sobral, in a dialogic
perspective

Luciana Taraborelli 1 Introdução


Universidade de São Paulo, Brasil
Tendo em vista o avanço de
pesquisas que abordam temas como
relações étnico-raciais, literatura
afro-brasileira, questões ligadas ao
gênero nas mais diversas áreas do conhecimento e políticas públicas que
trazem à pauta a participação dos negros e das minorias na vida cultural
brasileira, somando-se aos avanços nas leis – como a promulgação da lei
11.645/2008, que alterou a lei 10645/2003 e estabeleceu o ensino de história
e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas –, faz-se necessário voltarmos
nosso olhar para o lugar que ocupa a escrita feminina negra na literatura
brasileira contemporânea e para o que a voz dessas mulheres que viveram e
ainda vivem a discriminação tem a nos dizer.
Essa mudança de paradigma, uma vez que se trata de uma escrita não
hegemônica, é muito significativa para repensarmos a forma como as
mulheres negras sempre foram representadas em nossa literatura. Escritoras
negras foram ignoradas como uma forma de silenciamento de suas vozes e,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


ainda hoje, não encontram ou encontram pouco espaço no circuito editorial
hegemônico, consequentemente, têm pouco espaço na esfera educacional. 247
Portanto, voltar o olhar para a poesia de autoria negra feminina é dar voz às
Taraborelli
vozes caladas ao longo da tradição historiográfica da literatura brasileira por
um cânone hegemônico.
Como vozes negras, representativas da literatura brasileira
contemporânea, elegemos duas grandes escritoras brasileiras vivas,
Conceição Evaristo (1946) e Cristiane Sobral (1976), para estudarmos seus
poemas e compreendermos de que forma elas apresentam, na materialidade
linguístico-discursiva, a valorização de homens e mulheres negros. Desse
modo, este artigo tem por objetivo analisar as relações de alteridade
manifestadas no poema Do velho ao jovem, de Conceição Evaristo ([2017]
2021), retirado da obra Poemas da recordação e outros movimentos, e no
poema Quem sou eu, de Cristiane Sobral (2017), retirado da obra Terra
Negra. Memória e a ancestralidade são as categorias que direcionam nossa
análise.
A escolha das escritoras justifica-se, pois elas refletem em seus
escritos a resistência a uma sociedade hierárquica e desigual, a insubmissão
e a luta de tantas outras vozes de mulheres negras contra a injustiça social,
contra o preconceito e o racismo há muito tempo estruturado na sociedade
brasileira e, ainda, por buscarem nas raízes africanas a força para reafirmar o
lugar do sujeito por meio de uma voz de resistência.
A escrita de Evaristo e de Sobral colabora para desconstruir
estereótipos naturalizados na sociedade brasileira, que costuma atribuir à
mulher negra competências em outras áreas que não a da produção
intelectual. É comum atribuir a elas competências no âmbito da culinária, da
música, da dança ou subjugá-las a atividades subalternas, geralmente,
serviços braçais, ou à exploração dos corpos, herança infeliz da escravização
do povo negro no Brasil. É preciso – e urgente – afirmar a competência
escritora da mulher negra e dar voz às vozes marginalizadas, que sempre
tiveram o acesso ao mundo das letras negado. Soma-se a isso a necessidade
de promover a reflexão sobre os conteúdos e os usos sociais dos textos
poéticos, uma vez que, por meio da literatura, os sujeitos antes silenciados
têm espaço para despertar uma consciência crítica em relação à superação
das desigualdades, considerando dois eixos norteadores da teoria de Bakhtin
e o Círculo: as relações dialógicas e a alteridade.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Duas são as perguntas que nos direcionam: Como ocorre a construção
do sujeito negro no texto poético de Evaristo e Sobral, considerando a relação 248
eu-outro? Como o outro, que participa do processo de construção dessa
Taraborelli
identidade, é representado na materialidade linguístico-discursiva do texto?
Partimos de uma pesquisa bibliográfico-documental, cuja orientação
teórico-metodológica concerne à Análise Dialógica do Discurso, na
perspectiva de Bakhtin e do Círculo. A análise foi embasada por dois eixos
norteadores da teoria bakhtiniana: relações dialógicas e alteridade,
postulados por Bakhtin (2016, 2017, 2018, 2020) e Volóchinov (2017).
Este artigo está organizado em três seções que se complementam: na
primeira seção, situamos a literatura de Evaristo e de Sobral no âmbito da
literatura afro-brasileira como um espaço de fala; na segunda seção,
apresentamos os eixos norteadores da teoria bakhtiniana: relações dialógicas
e alteridade; e, na terceira seção, apresentamos um exercício de análise do
poema Do velho ao jovem, de Conceição Evaristo e do poema Quem sou eu,
de Cristiane Sobral. Finalizamos com as considerações finais.

2 Literatura negra feminina: espaço de fala para


vozes historicamente silenciadas
Conceição Evaristo e Cristiane Sobral são escritoras brasileiras vivas
e atuantes na literatura afro-brasileira, comprometidas com o ser mulher
negra e com suas vivências na sociedade. Suas escritas reconstroem o lugar
da mulher negra, devolvendo seu lugar de sujeito e superando os estigmas
negativos que historicamente lhe foram atribuídos. Por isso, situaremos, de
forma breve, o lugar que ocupa essa escrita na esfera literária.
O uso do termo “afro-brasileira” para designar a produção das autoras
mostra que essa literatura difere da literatura canônica, uma vez que está
voltada para a produção de autores negros e para a condição do negro na
sociedade brasileira.
Os conceitos de literatura negra e de literatura afro-brasileira ainda
geram polêmica entre os críticos literários e, embora não sejam o foco deste
trabalho, é necessário compreendê-los para situar os poemas selecionados.
Segundo Lobo, em Crítica sem juízo:

Poderíamos definir literatura afro-brasileira como a produção literária


de afrodescendentes que se assumem ideologicamente como tal,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


utilizando um sujeito de enunciação próprio. Portanto, ele se
distinguiria, de imediato, da produção literária de autores brancos a
respeito do negro, seja enquanto objeto, seja enquanto tema ou 249
personagem estereotipado (folclore, exotismo, regionalismo) (Lobo,
2007, p. 315). Taraborelli

Duarte (2011) defende uma literatura afro-brasileira mais flexível, na


qual mais importante que a cor da pele do autor é o lugar do qual ele fala e
expõe sua visão de mundo, pois não basta somente olhar para cor da pele e
para o lugar de fala do sujeito, há de se considerar vários fatores que
constituem o que podemos chamar de literatura afro-brasileira, como:
temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público.
A temática, na concepção do autor, engloba todo um universo
afrodescendente, a saber, a problemática da escravização dos povos
africanos, questões sociais vividas na contemporaneidade relacionadas à
exclusão, ao racismo, à miséria, mas também à cultura (danças, lendas, mitos
e toda tradição oral), à religião e ao reconhecimento de heróis, como Zumbi
dos Palmares e Dandara.
A questão da autoria, embora complexa, uma vez que a temática afro-
brasileira pode ser adotada por autores não negros, da mesma forma que
autores negros não necessariamente precisam se enquadrar como escritores
de uma literatura afro-brasileira, procura considerar a interação entre escrita
e experiência. Escrita que representa uma coletividade e que se inscreve
como voz que representa o povo negro, suas tradições e resgata a
ancestralidade africana, dando-lhe continuidade. Soma-se a isso a
experiência vivida do próprio escritor que alia experiências autobiográficas
à ficção. Segundo Duarte (2011), essa experiência que compõe o fator autoria
tem em Conceição Evaristo sua melhor representação, uma vez que a autora
cunhou o termo “escrevivência” em 1994, em sua dissertação de mestrado.
O autor defende, ainda, que a autoria está inteiramente interligada à
questão do ponto de vista, ou seja, do posicionamento axiológico do escritor
e dos valores que sua obra propaga em relação às questões afrodescendentes.
Evaristo (2009) compartilha da importância do ponto de vista como um dos
elementos que constituem a literatura afro-brasileira, mas acrescenta um
elemento a mais: a condição da subjetividade própria do “corpo-mulher-
negra em vivência'':

Tenho concordado com os pesquisadores que afirmam que o “ponto de


vista” do texto é o aspecto preponderante na conformação da escrita

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


afro-brasileira. Estou de pleno acordo, mas insisto na constatação óbvia
de que o texto, com o seu ponto de vista, não é fruto de uma geração
espontânea. Ele tem uma autoria, um sujeito, homem ou mulher, que 250
com uma “subjetividade” própria vai construindo a sua escrita, vai
“inventando, criando” o ponto de vista do texto. Em síntese, quando Taraborelli
escrevo, quando invento, quando crio a minha ficção, não me
desvencilho de um “corpo-mulher-negra em vivência” e que por ser
esse “o meu corpo, e não outro”, vivi e vivo experiências que um corpo
não negro, não mulher, jamais experimenta (Evaristo, 2009, p. 18).

Assim como Evaristo, que traz sua subjetividade de mulher negra em


uma sociedade racista para sua obra, Sobral reforça essa subjetividade em
seus poemas, marcando o lugar de sua escrita na literatura. No poema “Poesia
preta feminina”, por exemplo, a autora afirma que o texto representa a
diversidade e pretende escrever uma história que não aquela representada
historicamente, como a que subjuga o povo negro. Em seus versos, lemos:
“Representa nossa subjetividade/tem a atitude da nossa gente/ A rezar nos
passos da diáspora/ Reinventando o compasso da história” (Sobral, 2017, p.
92).
Em relação ao fator linguagem, Duarte (2011) destaca uma
discursividade baseada no ritmo, entonação, escolhas lexicais e uma
semântica que são marcadas pelas origens e heranças africanas. O último
fator levantado pelo autor refere-se ao público que é formado por negros e
afrodescendentes que anseiam por uma representação e afirmação identitária.
Para Duarte (2014, p. 399): “[...] da interação dinâmica desses cinco grandes
fatores - temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público-, pode-se
constatar a existência da literatura afro-brasileira em sua plenitude”.
Para Zilá Bernd (1988), ao pensar em uma literatura escrita por negros,
importa mais que a cor da pele, o sujeito assumir-se como pessoa negra:
“Assumir a condição negra e enunciar um discurso em primeira pessoa
parece ser o aporte maior trazido por essa literatura, constituindo-se em um
dos seus marcadores estilísticos mais expressivos” (Bernd, 1988, p. 22).
Destacamos que há, na literatura afro-brasileira, uma mudança de
paradigma em relação a como o negro sempre foi representado nos cânones.
A consciência e o reconhecer-se negro muda o foco do negro que sempre foi
tema e objeto, ou seja, personagem das narrativas, para uma escrita a partir
dele, para a literatura do negro. Segundo Bernd:

Esse eu lírico em busca de uma identidade negra instaura um novo


discurso – uma semântica do protesto – ao inverter um esquema onde
ele era o Outro: aquele de quem se condoíam ou a quem criticavam.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Passando do outro a eu, o negro assume na poesia sua própria fala e
conta a história do seu ponto de vista. Em outras palavras: esse eu
representa a tentativa de dar voz ao marginal, de contrapor-se aos 251
estereótipos (negativos e positivos) de uma literatura brasileira
legitimada pelas instâncias de consagração (Bernd, 1988, p. 50). Taraborelli

Cuti1, em seu livro Literatura negro-brasileira (2010), defende o uso


do termo “literatura negro brasileira”, por considerar que o termo “afro-
brasileira” é muito abrangente, pois engloba indivíduos que, devido à cor da
pele, não sofrem preconceito. Segundo o autor: “Afro-brasileiro, expressão
cunhada para a reflexão dos estudos relativos aos traços culturais de origem
africana, independeria da presença do indivíduo de pele escura, e, portanto,
daquele que sofre diretamente as consequências da discriminação” (Cuti,
2010, p. 39). O autor defende que usar a nomenclatura “literatura negra”
fortalece a simbologia de luta e de combate que o termo “negro” representa:

[...] A palavra “negro” nos remete à reivindicação diante da existência


do racismo, ao passo que a expressão” afro-brasileiro” lança-nos, em
sua semântica, ao continente africano, com suas mais de 54 nações,
dentre as quais nem todas são de maioria de pele escura, nem tampouco
estão ligadas à ascendência negro-brasileira. Remete-nos, porém ao
continente pela via das manifestações culturais. Como literatura é
cultura, então a palavra estaria mais apropriada a servir como selo”
(Cuti, 2010, p. 40).

Como pudemos ver brevemente, não há um consenso sobre a


nomenclatura que se deve atribuir à literatura produzida por autores negros.
O importante é compreender o potencial que ela carrega para mudar um
padrão já estabelecido na literatura canônica e reescrevermos a história,
portanto, corroborarmos o ponto de vista de Cerqueira:

Mais importante que a denominação mais adequada para a literatura


produzida por negros, negras e afrodescendentes é mostrar que essa
literatura caminha na contramão do padrão ainda vigente no circuito
literário que trata o negro apenas como tema da literatura. Tendo como
intuito, então, conceber a prática da escrita literária como um espaço
propício à enunciação das vivências, dos valores e das lutas dos homens
e mulheres negros e afrodescendentes (Cerqueira, 2022, p. 26).

Não se trata de atribuir um adjetivo à escrita de Conceição Evaristo e


de Cristiane Sobral para isolá-las em um nicho literário, uma vez que sua
produção está inserida na especificidade da literatura afro-brasileira. Situar a
escrita das autoras como pertencente à literatura afro-brasileira é reconhecer
o fato de que recuperam a ancestralidade, pela descendência de povos

1
Cuti: pseudônimo do escritor Luiz silva.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


africanos e pela condição diaspórica desses povos que trouxeram consigo as
tradições africanas, resgatam a cultura negra, a forte influência da tradição 252
oral e uma sabedoria que não é a da cultura do texto escrito e direcionam seus
Taraborelli
textos para um novo olhar que não o do cânone estabelecido, valorizando as
lutas e as vivências de homens e de mulheres afrodescendentes.
O termo literatura afro-brasileira marca, portanto, um
posicionamento ideológico-axiológico de resistência e de afirmação, que não
se pode deixar de considerar. Ainda hoje, embora tenha havido muitos
avanços, a mulher negra precisa reivindicar seu lugar e sua representação
humana, uma vez que, desde o processo de escravização, foi vista apenas
como um corpo-objeto, e a literatura configura-se como um dos espaços por
meio do qual essa reivindicação é feita.
Diante da constatação de a literatura ser um espaço de fala para vozes
historicamente excluídas, há de se perguntar: onde estão as escritoras
femininas negras nessa história? Ao visitarmos a História Concisa da
Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi (1996), que faz um recorte temporal
desde o período do Brasil colonial até o que o autor chamou de Tendências
contemporâneas, que compreendem a prosa ficcional entre os anos 70 e 90 e
a poesia até os anos de 1970, notamos a predominância de autores masculinos
brancos. São citadas escritoras femininas, mas nem todas mereceram o
mesmo espaço. Enquanto umas receberam espaço com análises, outras são
apenas citadas como pertencente a uma determinada escola literária, caso de
Auta de Sousa, no século XIX. Outras sequer são mencionadas, como Maria
Firmina do Reis, autora do romance Úrsula, de 1839, considerada a primeira
romancista e mulher a escrever um romance abolicionista no Brasil. Evaristo
e Sobral também não estão incluídas no levantamento de Bosi (1996).
A partir da década de 1980, a literatura escrita por mulheres negras
ganha mais espaço na produção literária, pois escritores afrodescendentes
lutam para adquirirem visibilidade, espaço e reconhecimento da produção
literária. Na trajetória de escritores ligados à etnicidade afro-brasileira, a
organização Quilombhoje2 tem importante papel, pois reúne o trabalho de
poetas e de prosadores negros e incentiva estudos e pesquisas na área da

2
O Quilombhoje Literatura foi fundado em 1980, por escritores negros, com o objetivo de discutir
e incentivar a experiência afro-brasileira na literatura e é o responsável pela organização dos
Cadernos Negros. Disponível em: https://www.quilombhoje.com.br/site/quilombhoje. Acesso em
09 jul. 2023.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


literatura e cultura negra. Além disso, a série Cadernos Negros3 configura,
desde 1978, um espaço para a literatura afro-brasileira e para a divulgação do 253
trabalho de muitos escritores negros. A série é de grande importância, pois,
Taraborelli
por meio da literatura, procura desconstruir estereótipos estabelecidos em
relação aos negros. Evaristo publica pela primeira vez no Cadernos Negros
número13 em 1990 e Cristiane Sobral, no Cadernos Negros número 23, no
ano 2000.

3 O poema à luz das relações dialógicas e da


alteridade
O texto poético, inserido em um contexto de produção no qual se
busca a afirmação da escrita de autoria feminina negra, configura-se como
enunciado concreto, único, irrepetível e atravessado pelo mundo da cultura,
com o qual mantém relações dialógicas.
Para Bakhtin, a linguagem é essencialmente dialógica, ela está nos
eventos da vida vivida, portanto, não é abstrata. É atividade humana e, como
atividade, enuncia uma posição semântico-axiológica que se concretiza em
atos singulares, em atos únicos, que não significam atos isolados. Sendo
assim, os poemas como atividade humana única e singular marcam a posição
do falante em relação ao outro. Nas relações dialógicas, dá-se o encontro das
posições axiológicas, a contraposição de centos de valores.
Em Para uma filosofia do ato responsável ([1920-1924] 2020),
Bakhtin ([1920-1924] 2020, p. 143) afirma sua posição pautada no singular,
no evento único, no irrepetível: “o dever concreto é um dever arquitetônico:
o dever de realizar o próprio lugar único no evento único do existir; e ele é
determinado antes de tudo como oposição valorativa entre o eu e o outro”.
Dessa forma, segundo o filósofo russo, todo ato é responsável, e o
enunciado como ato responsável não pode ser neutro, não pode deixar de
enunciar posições valorativas: "[...] a vida conhece dois centros da valores,
diferentes por princípios, mas correlatos entre si: o eu e o outro, e em torno

3
A série Cadernos Negros foi criada em 1978 por oito participantes: seis homens e duas mulheres,
a saber, Cuti, Oswaldo de Camargo, Henrique Cunha Jr., Eduardo de Oliveira, Angela Galvão, Jamu
Minka, Hugo Ferreira e Célia Pereira, com intuito de publicar a produção literária afro-brasileira.
Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/poesia/1038-cadernos-negros-40.
Acesso em 15 dez. 2022.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


destes centros se distribuem e se dispõem os momentos concretos do existir”
(Bakhtin, [1920-1924] 2020, p. 142). 254

É na relação entre o eu e ou outro que se constroem as relações Taraborelli


dialógicas. Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin ([1963] 2018,
p. 209) postula que “[...] toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo,
de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística etc.) está
impregnada de relações dialógicas”. No rascunho Reformulação do livro
sobre Dostoiévski, Bakhtin afirma que a palavra é dialógica, uma vez que faz
parte da vida e essa é dialógica por natureza. Dessa forma, não podemos
analisar a palavra como signo isolado nem dissociá-la da vida:

A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo:


interrogar, ouvir responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem
participa inteiro e com toda a sua vida: com os olhos, os lábios, as mãos,
a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na
palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no
simpósio universal (Bakhtin, 2011, p. 348).

E aqui cabe ratificar que as relações dialógicas que pretendemos


considerar para o estudo do poema não estão no âmbito do sistema abstrato
da língua, que exclui as situações de produção, ficando apenas na imanência
da língua, no âmbito do verbal. A respeito das relações dialógicas no que
concerne aos elementos do sistema da língua, Bakhtin nos adverte:

Na linguagem, como objeto da linguística, não há nem pode haver


quaisquer relações dialógicas: estas são impossíveis entre os elementos
no sistema da língua (por exemplo, entre as palavras no dicionário, entre
os morfemas, etc.) ou entre os elementos do “texto” num enfoque
rigorosamente linguístico deste. Elas tampouco podem existir entre as
unidades de um nível nem entre as unidades de diversos níveis. Não
podem existir, evidentemente, entre as unidades sintáticas, por
exemplo, entre as orações vistas de uma perspectiva rigorosamente
linguística (Bakhtin, [1963] 2018, p. 208-209).

As relações dialógicas postas por Bakhtin são relações de sentido entre


os mais diversos enunciados que ocorrem na comunicação discursiva.
Portanto, considerando o gênero em estudo, não pretendemos buscar
significações e construções de sentido que funcionem apenas no âmbito
linguístico de cada verso, mas que se constituam como relações dialógicas
considerando o social e o extralinguístico, no sentido exposto por Bakhtin:

Assim, as relações dialógicas são extralinguísticas. Ao mesmo tempo,


porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da
língua enquanto fenômeno integral concreto. A linguagem só vive na
comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da
linguagem (Bakhtin, [1963] 2018, p. 209).
255
Essa relação eu-outro, posta nas relações dialógicas, é retomada por
Taraborelli
Volóchinov em Marxismo e filosofia da linguagem ([1929] 2017) no aspecto
de que a palavra é orientada pelo outro. Sem o outro, não há sentido para a
minha palavra (para o eu no mundo), para o autor: “Toda palavra serve de
expressão ao “um” em relação ao “outro”. Na palavra, eu dou forma a mim
mesmo do ponto de vista do outro e, por fim, da perspectiva da minha
coletividade. A palavra é a ponte que liga o eu ao outro" (Volóchinov, [1929]
2017, p. 205).
Nosso olhar sobre o texto poético se manterá atento ao que se constrói
nas relações dialógicas, porque é na relação com a palavra do outro que
significamos os nossos enunciados, não partimos do zero, estamos sempre
respondendo a outros enunciados.

Desde o início, porém, o enunciado se constrói levando em conta as


atitudes responsivas, em prol das quais ele, em essência, é criado. […]
Desde o início o falante aguarda a resposta deles, espera uma ativa
compreensão responsiva (Bakhtin, [1979] 2016, p. 62).

E, ao responder, nos posicionamos. Bakhtin deixa clara essa ligação


entre os enunciados: “[...] o enunciado é um elo na cadeia discursiva e não
pode ser separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora
quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias
dialógicas" (Bakhtin, [1979] 2016, p. 62). Ele nos chama a atenção para o
fato de que o elo não se constitui somente com enunciados anteriores ao
nosso, mas também com os subsequentes.
Também Volóchinov ([1929] 2017) trata das atitudes responsivas
presentes nos enunciados, que surgem na relação entre dois interlocutores. A
palavra é sempre direcionada a alguém, portanto, há de se considerar o outro
naquilo que vamos dizer, mesmo que ele não esteja fisicamente presente
como num diálogo face a face. Na ausência do interlocutor real, Volóchinov
considera que o enunciado seja dirigido e responda ao interlocutor médio de
determinado grupo social com o qual dialogamos.

A palavra é orientada para o interlocutor, ou seja, é orientada para


quem é esse interlocutor: se ele é integrante ou não do mesmo grupo
social, se ele se encontra em uma posição superior ou inferior em
relação ao interlocutor (em termos hierárquicos), se ele tem ou não
laços sociais mais estreitos com o falante (pai, irmão, marido etc.). Não
pode haver um interlocutor abstrato, por assim dizer, isolado; pois sem

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


ele não teríamos uma língua comum nem no sentido literal, tampouco
figurado (Volóchinov, [1929] 2017, p. 204-205, grifos do autor).
256
Portanto, não seria diferente com o texto poético. Como enunciado na
Taraborelli
cadeia de enunciados, o poema também considera seu interlocutor, próximo
ou historicamente distante, responde, reflete e refrata uma posição
axiológica. Muitas vezes, essa posição axiológica em resposta assumida pelo
sujeito, dada a especificidade do gênero, pode se manifestar na articulação
entre conteúdo, material e forma, por exemplo, na articulação de sons, forma
gráfica distribuída na folha em branco, no enunciado verbo-visual, levando
em consideração enunciados extraverbais, conforme ocorre no trecho a
seguir, extraído do poema Do velho ao Jovem, de Conceição Evaristo (2021,
p. 88):
Infinitas são as personagens:
Vovó Kalinda, Tia Mambene,
Primo Sendó, Ya Tapuli,
Menina Meká, Menino Kambi,
Neide do Brás, Cíntia da Lapa,
Piter do Estácio, Cris de Acari,
Mabel do Pelô, Sil de Manaíra,
E também de Santana e de Belô
e mais e mais, outras e outros...

Isso também ocorre no trecho do poema Quem sou eu, de Cristiane


Sobral (2017, p. 62):
Sou negra
Sou mulher
Aqualtune, Nzinga, Dandara
Empoderada ainda por muitas outras
Com orgulho!

Assim como as relações dialógicas, a problemática da alteridade é


fundamental no pensamento bakhtiniano. Bakhtin a retoma, anos antes de sua
morte, nos escritos denominados Fragmentos dos anos 1970-1971. Para ele,
a relação de alteridade é tão forte que já está posta desde o nosso nascimento,
desde o momento em que recebemos uma das nossas marcas de
singularidade, nosso nome:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, chega do mundo
exterior à minha consciência pela boca dos outros (da minha, mãe, etc.)
com sua tonalidade valorativo-emocional. A princípio eu tomo 257
consciência de mim através dos outros: deles eu recebo as palavras, as
formas e a tonicidade para a formação da noção de mim mesmo Taraborelli
(Bakhtin, [1979] 2017, p. 29-30).

Por meio da alteridade, nos constituímos como sujeitos únicos. Dessa


forma, também o outro existe para mim, tal como ele é a partir do lugar que
ocupo no mundo, do meu centro de valor.

O simples fato de que eu, a partir de meu lugar único no existir, veja,
conheça um outro, pense nele, não o esqueça, o fato de que também
para mim ele existe - tudo isso é alguma coisa que somente eu, único,
em todo o existir em um dado momento, posso fazer por ele: um ato do
vivido real em mim que completa a sua existência, absolutamente,
profícuo e novo, e que encontra em mim somente a sua possibilidade
(Bakhtin, [1920-1924] 2020, p. 98).

Lembramos ainda que esse outro, seja real, seja abstrato, é


imprescindível para se ter uma estética. A estética tem sempre uma relação
de alteridade, pois o eu consigo mesmo não produz uma estética. Segundo
Amorim (2004), não há como não considerar a relação de alteridade (eu-
outro), uma vez que ela é um traço fundamental da linguagem:

A alteridade sob a forma de diálogo e da citação é, pois, o traço


fundamental da linguagem. Não há linguagem sem que haja um outro a
quem eu falo e que é ele próprio falante respondente, também não há
linguagem sem a possibilidade de falar do que um outro disse (Amorim,
2004, p. 97).

Além de considerarmos as relações dialógicas e a alteridade como


eixos norteadores que lançam luzes sobre nossa análise, é importante
compreendermos que os poemas se situam no campo da cultura, mais
especificamente, da Literatura, o que reforça a articulação vida-arte. Não
podemos pensar o texto poético de forma isolada da sua esfera ideológica (a
Literatura), da sua temporalidade e da vida que a alimenta, porque “O poeta
escolhe as palavras não do dicionário, mas do contexto da vida, onde elas se
segmentam e se impregnam de avaliações” (Volóchinov, 2019, p. 131).
Portanto, a análise que propomos não toma o texto poético isolado, mas
considera-o dentro da cultura de uma época, da época em que autoras negras
buscam construir uma outra história: aquela que as representa.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


4 Exercício de análise dos poemas4 "Do velho ao
jovem”, de Conceição Evaristo e “Quem sou eu”, 258
de Cristiane Sobral
Taraborelli
O poema Do velho ao Jovem (Evaristo, [2017] 2021) é composto por
sete estrofes, irregulares em relação ao número de versos, arquitetonicamente
organizadas em torno de dois sujeitos: o velho e o jovem. Essa organização,
que em princípio, poderia gerar uma tensão entre os sujeitos, uma vez que
estão inseridos em uma sociedade capitalista que visa àquilo que o sujeito
pode produzir, desprezando aquele cuja força de trabalho não é mais
produtiva, está pensada de modo a valorizar a cultura dos povos de matrizes
africanas, colocando em evidência a figura do ancestral e a sua história por
meio da memória. Desta forma, reverte uma cultura de menosprezo ao velho,
colocando-o como peça fundamental na construção da identidade das novas
gerações.
O velho é descrito como história viva. A história se personifica na
pessoa do velho. É ele mesmo passado e presente, pois carrega a sua história
e a do povo negro no seu próprio ser. Não há livros que retratem a sua
trajetória e a de tantos outros negros; a história está encarnada, está nas rugas
da pele, “Na face do velho/as rugas são letras/ Palavras escritas na carne”
(2021, p. 88). Cada ruga, formada com passar do tempo, representa uma
vivência pessoal e única, mas também histórica, pois o negro, ainda hoje, no
Brasil, sofre a subjugação e as consequências de um passado de escravização.
Não há letras, livros ou história oficial suficientes que possam expressar toda
a vivência vincada, como se tatuada na sua própria pele: “O que os livros
escondem, as palavras ditas libertam” (2021, p. 88).
O velho é a história que está viva e carrega toda memória de seu povo
enquanto vive, mas sua história não morre com ele, pois seu legado é
transmitido ao jovem num movimento que nomeia o poema “Do velho ao
jovem”. Muito mais que mera transmissão de cultura e ensinamentos, é
perceber que esse jovem também se constitui como sujeito a partir do outro
– o velho, e de toda a história de seu povo num processo de alteridade.
Na sequência, é apresentado o outro – o jovem. Essa outra face é
fresca, ainda não possui o vinco das vivências como no velho; ainda não
possui as marcas que ficam na pele e, mais profundamente, na alma.

4
Os poemas constam dos anexos.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Enquanto o velho traz consigo as marcas da vivência, o jovem traz os olhos
que brilham, vislumbrando todo um devir. Junto com o que há pela frente, há 259
as dúvidas, próprias da juventude, fruto da pouca experiência, daquilo que
Taraborelli
ainda está fresco, não consolidado, não maturado, não formado, não
constituído por completo. O jovem vivencia o processo de constituição da
sua identidade, das rugas que também marcarão a sua face, tendo como
referente os seus ancestrais.
Velho e jovem são apresentados separadamente, mas na terceira
estrofe, há uma fusão representada no verso “O velho tempo se funde-se ao
novo” (2021, p. 88), que vai culminar na constituição do jovem e mostrar o
quanto ele carrega consigo da herança de uma cultura. Essa fusão é expressa,
na materialidade linguística, pelo verso “Nas mãos entrelaçadas” (2021, p.
88). Note-se que o adjetivo empregado não é “juntas” nem “unidas”, mas,
sim, “entrelaçadas”, como numa trama que compõe o todo de um tecido a
ponto de não podermos separá-las.
Como ocorre em todo enunciado concreto, forma e conteúdo estão
organizados não de modo isolado, mas formando um todo valorativo cujo
ponto forte está na quinta estrofe, pois contém um número maior de versos e
apresenta a convocação dos ancestrais, mostrando, de forma mais detalhada
e enfática, como o processo de construção desse sujeito ocorre por meio da
alteridade, representada pelos ancestrais. O outro, nesse processo, é
representado, na materialidade linguística do texto, pelos nomes dos
familiares e de pessoas que povoam a memória do sujeito.
Destaca-se também a importância da família, pois são apresentados os
muitos personagens da história que não tem fim. Esses ancestrais são
nomeados e estão ordenados de forma hierárquica, em sinal de respeito,
começando pelo mais velho até que não seja possível nomeá-los, pois são
muitos e deixam sua marca, como no verso: “Nos olhos do jovem/também o
brilho de muitas histórias” (2021, p. 89). Essas vozes ancestrais, guardiãs da
memória, são importantes para a formação da identidade do jovem e para a
perpetuação da cultura africana, constitutiva da sociedade brasileira.
Dialogam claramente contra um apagamento social da figura do velho.
Ao fazer referência ao RAP (Rhythm and poetry), ritmo que surgiu na
Jamaica nos anos 1960 do século XX e chegou aos Estados Unidos na década
de 70 pela bagagem de imigrantes jamaicanos, carregando em sua origem
uma música de luta e de resistência, o poema dialoga com a cultura negra,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


resgata a luta e a história do seu povo por meio da arte (música e poesia). Os
ensinamentos do velho estão agora atualizados nas palavras do jovem, na 260
letra do rap. Assim como na segunda estrofe “não há quem ponha ponto final
Taraborelli
na história”, não há “quem ponha um ponto final no rap” (2021, p. 89).
Por fim, há um alerta: “é preciso eternizar as palavras/da liberdade
ainda e agora” (2021, p.89) para que a liberdade do povo negro seja
preservada, para que o passado de escravidão e de subjugação não se repita.
O uso dos adjuntos adverbiais de tempo “ainda e agora” marca essa
necessidade e urgência. “Ainda”, pois o negro ainda sofre as consequências
da escravidão, e “agora”, pois não se pode deixar para amanhã, a luta pela
liberdade não pode esperar. É com essa memória que o pedido para eternizar
as palavras de liberdade dialoga. É também dessa história que se constitui o
jovem.
As palavras da liberdade são eternizadas na transmissão do velho ao
jovem. O jovem, nesse processo identitário, ressignifica e transmite sua
tradição por meio da cultura, da música e da poesia, representadas no poema
pelo rap, ao mesmo tempo que valoriza seus ancestrais.
O poema a seguir, Quem sou eu (2017), de Cristiane Sobral, é de
grande importância para nossos estudos, pois ressignifica a imagem na
mulher negra forjada e estereotipada desde a colonização do Brasil. Passemos
à sua análise.
Nesse poema, forma e conteúdo estão organizados de modo a nos
apresentar dois olhares valorativos que se tensionam: o olhar do eu que já
anuncia quem é desde o título e o olhar do outro representado pela sociedade,
posto logo de início na primeira estrofe. Ou seja, a primeira estrofe traz o
posicionamento valorativo da sociedade, e esse vem em primeiro, mostrando
a força histórica de valorização do olhar do branco em detrimento da
subjetividade da mulher negra.
A forma como a mulher negra é vista socialmente materializa-se no
texto por meio dos adjetivos: exótica, morena e mulata. Entretanto, esses
adjetivos, por meio dos quais costumam-se referir às mulheres negras, não
correspondem com a visão que o eu poético tem de si, a ponto de ele ignorar
esses predicados, sob a forma metafórica da surdez no verso "meu aparelho
que nem uso está com defeito"(2017, p. 62). Ao mesmo tempo em que não
se reconhece neles, negando-os, reverte a seu favor a invisibilidade do negro
presente na sociedade. O eu poético faz questão de desaparecer quando visto

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


sob as formas exótica, morena e mulata, pois se não se reconhece nelas,
assim, consequentemente, não existe e prefere não existir sob esse olhar. Não 261
é esse eu que ele assume. Essa postura indica uma assinatura, um
Taraborelli
posicionamento, que só é possível diante de uma posição em relação ao olhar
do outro, em uma relação alteritária.
Na segunda estrofe, o eu poético reafirma que não é morena, negando
o atributo dado pelo olhar do outro para, na sequência, apresentar-se como se
reconhece: linda, rainha e bela. O sujeito sócio- histórico portador de valores
éticos mostra quem é. Agora, seus ouvidos estão abertos, pois os chamados
estão em consonância com a visão que o sujeito tem de si. Soma-se aos
predicados anteriores o termo "bela", como todas as mulheres que se querem
belas, são elas que se reconhecem assim. Ao final da estrofe, reforça-se a
subjetividade como assinatura, o seu amor-próprio: "Amo ser quem sou"
(2017, p. 62).
Assim, a mulher negra é vista sob dois centros de valores, o
historicamente construído (exótica, morena e mulata) e o que se afirma a
partir da negação (linda, rainha e bela). A relação de alteridade reforça a
afirmação do sujeito (Quem sou eu) mostra como o sujeito se reconhece:
negra. Na terceira estrofe, o sujeito existe, ao contrário do que ocorre na
primeira estrofe, na qual desaparece, mostrando na estrutura composicional
do poema os dois pontos valorativos e, além de existir, ele se faz presente
com "toda a negritude do meu ser" (2017, p. 62) e se mostra ao outro
"desfilando com alegria minha negritude” (2017, p. 62), exibindo com
orgulho a cor da sua pele e toda a cultura que ela representa.
A afirmação se intensifica quando, antes da sua condição de mulher,
está o seu ser negro. "Sou negra/ sou mulher". A mulher que se afirma ser
não é a constituída pelo olhar que subjuga, exclui, maltrata, apaga, ainda
muito presente na sociedade contemporânea, é a mulher rainha, poderosa,
constituída por ancestrais fortes, como Aqualtune, congolesa escravizada no
Brasil e líder quilombola; Nzinga, rainha africana, símbolo de resistência ao
colonialismo português; Dandara, guerreira negra , símbolo de resistência
contra o regime escravocrata no Brasil e figura fundamental na formação do
Quilombo dos Palmares. E não só por elas, pois afirma que é empoderada por
muitas outras que lutaram para garantir sua identidade e seu espaço, a fim de
exigir uma sociedade mais igualitária. No último verso, o termo "Com
orgulho" (2017, p. 63) afasta todo tipo de vergonha que lhe possa ser imposta

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


devido à sua origem e afirma seu lugar sócio-histórico, seu posicionamento
axiológico. 262

Note-se que a voz do outro, ao chamar o eu poético de morena e Taraborelli


mulata, incide sobre ele o olhar da sociedade, e é a partir desse olhar do outro
que o sujeito se posiciona, negando e afastando-se de uma construção
historicamente perpetuada. Essa relação de alteridade tem papel importante
na construção do sujeito. Os centros de valores são diferentes, o que causa
uma tensão ao longo do poema, quando o sujeito afirma quem ele é e quais
são suas referências ancestrais, negando vozes contrárias a isso. Rainhas e
mulheres negras têm sua história resgatada e valorizada quando citadas no
poema, e ao mesmo tempo, são outros que constituem o sujeito, pois
reforçam o poder, a força e a beleza da mulher negra.

Considerações finais
A constituição do sujeito, nos dois poemas, é perpassada fortemente
pela alteridade, que se manifesta por meio da memória e da ancestralidade.
Da memória, porque historicamente, a figura do negro foi subjugada pelo
homem branco, e portanto, se faz necessário lembrar o passado para
reescrevê-lo. Da ancestralidade, pelo fato de a figura do antecessor contribuir
com a quebra do paradigma imposto, no qual brancos são superiores aos
negros, ao afirmar a valorização dos povos de matrizes africanas que
contribuíram com sua cultura na constituição do povo brasileiro. Portanto,
ambos os poemas enaltecem a cultura e a memória ancestral.
Enquanto no poema de Evaristo (2021) a ancestralidade está presente
desde o título, na figura do velho, e, depois, nas pessoas da família ou que
estabelecem com o sujeito uma relação de afetividade – e que, ao serem
nomeadas e identificadas, representam a história viva e reforçam
positivamente o valor do povo negro, fato que contribui diretamente na
constituição do sujeito –, no poema de Sobral (2017), a ancestralidade está
marcada por um passado histórico. Quando o eu poético, ao afirmar seu lugar
social, se mostra empoderado pelas ancestrais Aqualtune, Nzinga e Dandara,
personalidades importantes para história do povo negro escravizado, a
trajetória dos “eus” vai sendo escrita, seja pela voz do jovem, seja pela voz
da mulher que nega a imagem que fazem dela.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Pela voz do jovem, na qual “palavras silenciadas explodem” (2021, p.
88), uma nova história se escreve, tanto uma história pessoal e única, quanto 263
a história do povo negro que não quer ver o passado repetido. “Não há como
Taraborelli
pôr um final na história” (2021, p. 88-89), pois o jovem vai, como numa
cadeia de histórias, acrescentar a sua, e os seus sucessores, as deles, sempre
a partir dos muitos outros que os antecederam, como elo numa cadeia
discursiva interminável. A história não termina quando o sujeito morre
Podemos afirmar, guardadas as particularidades da escrita de cada
escritora, que, juntas, Evaristo e Sobral representam um centro de valor que
postula a valorização do lugar do sujeito negro em relação ao outro, a saber:
o branco e sua cultura, principalmente, quando representada pela grande
tradição literária, na qual o espaço do negro sempre foi o de objeto. Portanto,
é pela voz negra, a partir da relação de alteridade, que o sujeito se constrói e
afirma seu valor, negando, corajosamente, a história que lhe foi imposta e
dizendo “com orgulho” (2017, p.63) quem ele é, pela sua história, pela
história de suas ancestrais e pela riqueza da cultura do povo negro.

Referências
AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo:
Musa Editora, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas
sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de
Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017.
p. 21-56.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de
Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Botcharov. São Paulo: Editora 34, [1979] 2016.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir
Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João editores, [1920-1924] 2020.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas
e prefácio de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, [1963] 2018.
BAKHTIN. Mikhail. Reformulação do livro sobre Dostoiévski. In: BAKHTIN, Mikhail.
Estética da criação verbal. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. Introdução e
tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, p. 337-
357.
BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 34. ed. São Paulo: Cultrix, 1996.
CERQUEIRA, Janice Souza. Da literatura afro-brasileira à poesia afro-feminina de
Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Malê, 2022.
CADERNOS NEGROS 13. Org. Quilombhoje. São Paulo: Ed. dos Autores, 1990.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


CADERNOS NEGROS 23. Organização de Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa. São
Paulo: Quilombhoje, 2000.
264
CUTI, Luiz Silva. Literatura negro-brasileira. Coleção Consciência em debate. São Paulo:
Selo Negro, 2010. Taraborelli
DUARTE, Eduardo de Assis. Por um conceito de literatura afro-brasileira. In: DUARTE,
Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Orgs.). Literatura e
Afrodescendência no Brasil. Antologia crítica, v. 4. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2011.p. 375-400.
EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade.
Scripta., v. 13, n. 25, p. 17-31. Belo Horizonte 2009. Disponível em:
http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/4365.
EVARISTO, Conceição. Poemas da Recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro:
Malê, [2017] 2021.
LOBO, Luiza. Crítica sem juízo. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
SOBRAL, Cristiane. Terra Negra. Rio de Janeiro: Malê, 2017.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais
do método sociológico na ciência da linguagem. Trad., notas e glossário Sheila Grillo e
Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.
VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética
sociológica. In: A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e
poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e
EkaterinaVólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Anexos
265
Do Velho ao Jovem
Na face do velho Taraborelli
as rugas são letras,
palavras escritas na carne,
abecedário do viver.

Na face do jovem
o frescor da pele,
e o brilho dos olhos
são dúvidas.

Nas mãos entrelaçadas


de ambos,o velho tempo
funde-se ao novo,
e as falas silenciadas
explodem.

O que os livros escondem,


as palavras ditas libertam.
E não há quem ponha
um ponto final na história

Infinitas são as personagens:


Vovó Kalinda, Tia Mambene,
Primo Sendó, Ya Tapuli,
Menina Meká, Menino Kambi,
Neide do Brás, Cíntia da Lapa,
Piter do Estácio, Cris de Acari,
Mabel do Pelô, Sil de Manaíra,
E também de Santana e de Belô
e mais e mais, outras e outros…

Nos olhos do jovem


também o brilho de muitas histórias.
E não há quem ponha
um ponto final no rap

é preciso eternizar as palavras


da liberdade ainda e agora.

(EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro. Malê, 2021,
p. 88)

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Quem sou eu
Se me chamam exótica 266
não respondo
aos apelos de: Hei mulata! Taraborelli
Meu aparelho de surdez
que eu nem uso
está com defeito
Se me chamam morena
uso a meu favor a invisibilidade do sistema
e desapareço

Morena? Sei que não sou


Ouvi linda? Rainha?
Sim
Essa sou eu
Bela como todas as mulheres
que se querem belas
Amo ser quem sou

Se me chamam negra
estou aqui!
Com toda a negritude do meu ser
desfilo com alegria o meu pretume
exibindo pra quem quiser ver
na delícia de ser o que sou

Sou negra
Sou mulher
Aqualtune, Nzinga, Dandara
Empoderada ainda por muitas outras
Com orgulho!

(SOBRAL, Cristiane. Terra Negra. Rio de Janeiro: Malê, 2017, p. 62-63).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


267

Sant’Ana
Padilha

Cronotopo dialógico: as
memórias das mulheres
“simininas”
Dialogical chronotope: the memories of “simininas” women

Laiza Luz Martins Sant’Ana 1 Introdução


Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
Este artigo constitui parte do
Simone de Jesus Padilha conjunto de dados gerados e
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
analisados em pesquisa de
mestrado, defendida em agosto de
2022 no Programa de Pós-
Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato
Grosso - PPGEL/UFMT. O projeto objetivava compreender como as ações
voltadas à leitura como prática cultural oportunizada às crianças e aos
adolescentes assistidos por um programa social denominado Programa
Siminina, realizado na cidade de Cuiabá-MT, no período de 2005 a 2011,
impactaram na sua formação cultural e como ressignificaram a vida dos
participantes.
Buscando desvelar as relações permeadas pelo tempo e espaço que
compreendem desde a infância até a vida adulta de seis jovens cuiabanas de
comunidades carentes da cidade de Cuiabá – MT, o recorte aqui apresentado
corresponde à parte do estudo que teve como objetivo responder à seguinte
pergunta de pesquisa: em que medida as ações desenvolvidas pelo Siminina

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


contribuíram para que as mulheres que participaram do programa quando
crianças/adolescentes pudessem ressignificar a sua própria história? 268

Para tanto, analisaremos as memórias biográficas de suas infâncias e Sant’Ana


adolescências e sua relação com as leituras culturais às quais tiveram acesso. Padilha
De acordo com Sant’Ana (2021, p. 128):

O Programa Siminina teve início em 1997 por uma iniciativa da


Prefeitura de Cuiabá com empresas privadas, sendo administrado pela
então Secretaria Municipal de Assistência Social e Desenvolvimento
Humano de Cuiabá –SMASDH. Suas atividades eram desenvolvidas
em centros comunitários de 16 bairros periféricos da cidade, no
contraturno escolar, atendendo as meninas entre 07 e 14 anos. Com a
capacidade para 1500 vagas, eram oferecidas atividades como reforço
escolar, aulas de dança, teatro, coral e artesanato para as crianças e
adolescentes, visando o combate a violações dos direitos da criança e
do adolescente: abuso e exploração sexual infantil, o trabalho infantil e
a evasão escolar e a gravidez na adolescência [...] o Programa Siminina
ressignificou a vida de muitas mulheres cuiabanas, de modo a contribuir
com a valorização da autoestima, com o desenvolvimento de potenciais
artísticos, culturais e com a formação leitora dessas mulheres.
Atualmente, o referido Programa se encontra em pleno funcionamento
atendendo a meninas de 06 a 15 anos (Sant’Ana, 2021, p. 128).

O corpus de análise considerado neste artigo é composto por dados


advindos de um questionário contendo perguntas objetivas e subjetivas a
respeito das vivências das mulheres pesquisadas sobre o período em que
participaram do programa. Sob essa vertente, a ênfase aqui destacada
consiste nos discursos proferidos pelas mulheres pesquisadas, de modo a
valorar o seu protagonismo feminino, suas memórias em um determinado
tempo e espaço que foi importante para o desenvolvimento cultural de cada
uma. Desse modo, o diálogo delas não acaba, ele segue, continua vivo e
tenso, por isso, suas vozes merecem ser ouvidas, e suas memórias,
conhecidas.
Os caminhos engendrados por esta pesquisa iniciaram porque havia a
vontade de lançar luz sobre duas temáticas pouco difundidas, ao menos,
conjuntamente na esfera científica: a de programas sociais que trabalham
com leitura literária e a das memórias das mulheres que participaram quando
crianças do Programa Siminina.
A partir dos estudos feitos em teoria da linguagem a partir dos estudos
de Mikhail Bakhtin e do Círculo, percebemos que, mesmo na condição de
ex-funcionária do programa em questão, seria possível, a partir do princípio
da alteridade, realizar uma pesquisa baseada nas relações de interação a

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


serem estabelecidas com as mulheres a respeito da sua participação no
Programa Siminina. 269

Para Bakhtin (2017, p. 395), “o objeto das ciências humanas é o ser Sant’Ana
expressivo e falante. Esse ser nunca coincide consigo mesmo e por isso é Padilha
inesgotável em seu sentido e significado”. Assim, 10 anos depois, pesquisar
o discurso das mulheres que participaram do Programa Siminina
configurava-se em uma fonte inesgotável de conhecimento e de relevância.
Conforme Amorim (2004, p. 26), “para que alguma coisa possa se
tornar objeto de pesquisa, é preciso torná-la estranha de início para poder
retraduzí-la no final: do familiar ao estranho e vice-versa, sucessivamente”.
Desse modo, a percepção voltada à estranheza diz respeito à relação
estabelecida entre a pesquisadora e as participantes da pesquisa, com o foco
voltado ao objeto de análise, que, nesse caso, seriam as memórias biográficas
das mulheres entrevistadas em relação às ações oportunizadas a elas pelo
Siminina.
Para isso, coube à pesquisadora, no ato do reencontro, manter um
efetivo olhar exotópico, visto que, apesar do tempo trabalhado e de todo o
contato tido entre pesquisadora e pesquisadas durante a infância de cada uma,
nesse tempo e espaço, o que se constituía era uma relação de alteridade, pois,
ainda em Amorim (2016), entendemos que é no tempo que percebemos o
campo de sentido em que ocorrem todas as transformações e acontecimentos.
Por isso, é importante observarmos na pesquisa que, ao mesmo tempo que as
memórias eram comungadas, existia também um distanciamento relevante, e
o mais importante, o reconhecimento do olhar das entrevistadas, das vozes
sociais que elas representam e de todas as possibilidades obtidas devido aos
encontros dialógicos e seu devido excedente de visão.
Em cada encontro, uma memória biográfica era apresentada, e assim,
uma nova informação era acrescentada à pesquisa, tanto pelas contribuições
das mulheres pesquisadas, quanto pelas observações estabelecidas pela
pesquisadora, propriamente pelo excedente de visão. Desse modo, fazia-se
imperativo observar o preconizado por Amorim (2016, p. 100), para quem “o
fundamental é que a pesquisa não realize nenhum tipo de fusão dos dois
pontos de vista, mas que mantenha o caráter de diálogo, revelando sempre as
diferenças e a tensão entre elas”.
Neste sentido, partimos da premissa de que se fazia necessário dar
visibilidade às memórias biográficas dialógicas das mulheres que

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


participaram do Siminina, de modo que pudéssemos: a) realizar uma busca
ativa das mulheres que participaram do programa e que ainda viviam nos 270
bairros onde atualmente existem as unidades do programa; b) propor um
Sant’Ana
encontro dialógico onde fosse possível relembrar memórias a respeito do Padilha
programa; c) analisar os dados sobre as percepções das mulheres
pesquisadas, que participaram do Siminina, em relação às vivências que
foram oportunizadas a elas, por meio da participação nas atividades do
programa.
Durante todos os encontros dialógicos oportunizados para a realização
da pesquisa, optamos por coletar informações e relatos de cada mulher
pesquisada por meio de um questionário.
O aporte teórico em que ancoramos nossos estudos abrange as
contribuições de Bakhtin (2011, 2014, 2017, 2018), de Volóchinov (2017),
de Bemong & Borghart (2015), de Amorim (2016, 2020) e de Fiorin (2017),
dentre outros autores relacionados aos estudos de Bakhtin e do Círculo que
dialogam com os conceitos de dialogismo, memória, valor biográfico,
interação e cronotopo.
Na primeira parte do artigo, abordamos alguns dos conceitos
bakhtinianos que elencamos como basilares para o aporte teórico da pesquisa.
Em seguida, buscamos perceber como o conceito de cronotopo dialógico nos
auxilia a compreender as memórias das mulheres investigadas. Esperamos
que com este estudo possamos compreender mais sobre a relevância das
ações do Programa Siminina esboçada pelas memórias de suas ex-
participantes e que reflitamos acerca dos traços e das influências do
cronotopo dialógico em suas vozes.

2 A construção de sentidos em uma concepção


dialógica
Para que possamos adentrar na concepção de dialogismo desenvolvida
por Bakhtin e pelo Círculo e refratar as suas discussões por meio dos estudos
bakhtinianos que estão postos no contexto brasileiro de pesquisa, elegemos,
como ponto de partida, a preocupação de Fiorin (2017, p. 20) com a base da
teoria bakhtiniana, que nos apresenta que “há três eixos básicos do
pensamento bakhtiniano: unicidade do ser e do evento; relação eu/outro;
dimensão axiológica”. Sob esse mote, entendemos que a concepção dialógica

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


da linguagem perpassa um amplo arcabouço teórico, como nos elucida
Fiorin: 271

O dialogismo se faz presente de três maneiras distintas: (1) como Sant’Ana


princípio geral do agir e mesmo do ser: só se age/se é em relação de Padilha
contraste com respeito a outros atos de outros sujeitos/a outros sujeitos.
Logo, o vir-a-ser do indivíduo e do sentido está fundado na diferença,
no confronto eu-tu; (2) como princípio de produção de
enunciados/discursos, que advém de “diálogos” retrospectivos e
prospectivos com outros enunciados/discursos e (3) como forma
específica de composição de enunciado/discurso, opondo-se nesse caso
à forma de composição monólogo (Fiorin, 2017, p. 67-68).

O dialogismo, nesta pesquisa, constitui um princípio maior, que


remete às relações de interação entre a pesquisadora e as mulheres
pesquisadas; as mulheres pesquisadas e o Programa Siminina; e, ainda, entre
as mulheres pesquisadas e as leituras às quais tiveram acesso, que, agora,
nesse tempo e espaço, manifestam-se em suas narrativas biográficas. Nesse
sentido e de modo sucinto, trazemos à voga alguns conceitos que
abordaremos aqui, com base nas pesquisas de Brait e Nunes (2018), que
discorrerem sobre a essência do campo de pesquisa bakhtiniano e os
estudiosos que fizeram parte do Círculo:

Os atualmente mais conhecidos são os de Bakhtin, Volochínov e


Medviédev, os quais se interligam, dialogam entre si e desenham uma
concepção dialógica de linguagem, assim como as possibilidades de seu
enfrentamento a partir da busca de um método sociológico/dialógico
singular e/ou de uma poética da prosa, construindo conhecimento
linguístico, literário, filosófico, sinalizando as fronteiras que permeiam
existência e cultura, ideologia do cotidiano e ideologia sistematizada,
vivência e ciência, vida e arte, elegendo o diálogo (ideias e pontos de
vista entre ao menos duas consciências em tensão) como sustentáculo
dessa perspectiva (Brait; Nunes, 2018, p. 146).

Pensar no conceito de dialogismo enquanto concepção da linguagem,


como tão bem nos apresenta Brait e Nunes (2018), leva em consideração todo
o legado que a obra de Bakhtin e do Círculo nos oferece. As reflexões
apresentadas nos levam a perceber, questionar e entender os complexos
fenômenos que envolvem a linguagem humana, de modo que, como nos
afirma Bakhtin (2011, p. 132): “a réplica do diálogo está vinculada a outras
obras – enunciados: com aqueles às quais ela responde, e com aquelas que
lhe respondem”. É necessário destacar que, na perspectiva dialógica, o
processo de compreensão tem como foco as relações humanas que são
oportunizadas e permeadas pela linguagem e que se organizam

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


discursivamente em enunciados que ocorrem por meio da interação
dialógica. 272

Nesse sentido, os sujeitos envolvidos durante uma interação dialógica Sant’Ana


possuem centros de valores diferentes, dispostos em um tempo e em um Padilha
espaço histórico e social que os constituem. Durante a interação, os sujeitos
utilizam a linguagem de variadas maneiras para expressar seus
posicionamentos axiológicos, bem como sua resposta ao processo
interacional.
Assim, a linguagem expressa no processo comunicacional é disposta
por meio de enunciados que são organizados conforme os gêneros
discursivos pertinentes à interação discursiva. Concordando, ainda, com
Fiorin (2017, p. 21), percebemos que “todos os enunciados do processo de
comunicação, independentemente de sua dimensão, são dialógicos”, ou seja,
os enunciados se constituem a partir de outros enunciados construídos
anteriormente, que suscitam vozes sociais e discursos, revisitados durante o
ato de fala conforme as interações são postas.
Dada a necessidade de interação comunicacional entre um locutor e
um interlocutor, compreendemos que o movimento se faz constitutivo no
evento enunciativo, mesmo que os interlocutores não coabitem um tempo e
um espaço específicos. Assim, em um discurso, “cada enunciado é pleno de
ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela
identidade da esfera da comunicação discursiva” (Bakhtin, 2011, p. 297).
Tais ressonâncias e ecos que emergem a partir das vozes sociais expressas no
discurso não se prendem ao tempo presente ou ao passado especificamente,
podendo ainda se conectarem intensamente com diálogos futuros.
Conforme nos aponta Wertsch (2010, p. 127), “as vozes de múltiplos
falantes entram em contato num nível de diálogo coletivo generalizado”. Tal
estudo contribui para o entendimento de que “a noção de diálogo coletivo
generalizado tem a ver com modos como as enunciações podem refletir a voz
de outros, incluindo grupos inteiros, que não estão fisicamente presentes na
situação imediata de fala” (Wertsch, 2010, p. 127). Entendemos que, nesse
processo, o diálogo se torna profundo, inacabado, constituindo a noção de
infinito. Assim, percebemos que o dialogismo e a vida se fundem. Como nos
aponta Bakhtin (2014) em uma de suas mais conhecidas abordagens:

A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo:


interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


participa inteiro e com toda a vida: com olhos, os lábios, as mãos, a
alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra,
e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana (Bakhtin, 2014, 273
p. 348).
Sant’Ana
Ampliando nossa compreensão, remetemos a Volóchinov (2017, p. Padilha
196): “o sentido da palavra é inteiramente determinado pelo seu contexto. Na
verdade, existem tantas significações para uma palavra quanto contextos de
seu uso”. Sobre esse processo real e efetivo de diálogo humano, entendemos
que ele somente é possível de forma dialógica, pois para Bakhtin (2011b, p.
327), “a relação com o sentido é sempre dialógica” e se dá quando o sujeito
reconhece as vozes sociais presentes no enunciado e atribui um sentido a elas.
Salientamos a importante consideração trazida por Volóchinov a
respeito do conceito de diálogo:

Obviamente, o diálogo, no sentido estrito da palavra é somente uma das


formas da interação discursiva, apesar de ser a mais importante. No
entanto, o diálogo pode ser compreendido de modo mais amplo não
apenas como comunicação direta de em voz alta entre pessoas face a
face, mas como comunicação discursiva independente do tipo
(Volóchinov, 2017, p. 200).

Esse diálogo só é possível dadas as vozes sociais que ecoam através


da obra desses escritores. Essas vozes sociais compõem a consciência de seus
leitores, e com isso, novas interações são construídas, como bem nos explica
Bakhtin (2014, p. 89): “assim todo diálogo é vivo” e se materializa por meio
da palavra, enquanto fenômeno ideológico.
Desse modo, Bakhtin (2018) propõe o conceito de dialogismo, que,
para ele, permeia todo o processo de comunicação humana. É no diálogo que
se dá o ato da interação humana, e nele, percebemos que toda a interação
expressa em um enunciado é pautada por uma profunda construção de
saberes, traços culturais e signos ideológicos. Tudo isso vem arraigado de
posicionamentos ideológicos, que contribuem para que o sujeito atribua
sentidos e respostas ao processo de comunicação.
Desse modo, torna-se basilar para a fundamentação dos estudos em
relação ao enunciado o entendimento de que o “direcionamento, o
endereçamento do enunciado, é sua peculiaridade constitutiva sem a qual não
se pode haver enunciado” (Bakhtin, 2011b, p. 305). Tal entendimento é um
importante aspecto que remonta à ideia de que todo enunciado carece de um
destinatário. É justamente essa premissa que o torna dialógico e faz com que

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


sua materialidade seja real, pois não há como se conceber um enunciado sem
um interlocutor. 274

Para Bakhtin, quando o sujeito escolhe qualquer espécie de recurso Sant’Ana


linguístico que integra o enunciado, já atua sob direta influência do Padilha
destinatário, pois o interlocutor, mesmo que inconscientemente, organiza seu
enunciado e seleciona um gênero discursivo que melhor o auxiliará no
processo de comunicação e na produção de seu enunciado. Ainda a respeito
dessa questão, Fiorin (2017) argumenta que:

As relações dialógicas tanto podem ser contratuais ou polêmicas, de


divergência ou de convergência, de aceitação ou de recusa, de acordo
ou de desacordo [...] a adesão a ele, a aceitação ao seu conteúdo faz-se
no ponto de tensão dessa voz com as outras vozes sociais (Fiorin, 2017,
p. 28).

Com tal afirmação, Fiorin orienta para um importante aspecto das


relações dialógicas, pois elas se fazem presentes em todos os processos de
entendimento, nos quais se torna necessário unir as vozes existentes, seus
ecos, ruminares e efeitos de sentido ao projeto enunciativo elaborado pelo
sujeito falante. Nesse sentido, propomos uma interpretação para o termo
“encontros dialógicos”, que foi aplicado durante a pesquisa realizada, visto
que para o próprio Bakhtin:

Pode-se dizer que o interpretador é parte do enunciado a ser


interpretado, do texto (ou melhor, dos enunciados do diálogo entre
estes), entra nele como um novo participante. O encontro dialógico de
duas consciências nas ciências humanas. A molduragem do outro pelo
contexto dialógico (Bakhtin, 2011b, p. 329, grifo nosso).

Denominamos como encontros dialógicos a experiência de


reencontrar as mulheres que participaram quando crianças do Programa
Siminina, hoje adultas, para relembrar suas memórias constituídas junto à
experiência vivida no programa. Tivemos a oportunidade de escutar
ativamente sobre as suas vivências durante e após o programa, e algumas das
ações que foram importantes para as vidas das pesquisadas nesses últimos
dez anos. Esses encontros foram totalmente permeados pelo conceito
bakhtiniano de dialogismo, pois o discurso ressignificado frente a tantos anos
sem contato trouxe um reverberar de vozes sociais impactante.
Outro ponto relevante dos encontros dialógicos foi o foco na vida atual
de cada pesquisada. Concordamos com Miotello (2018, p. 25) quando
salienta que “estar à escuta é a atitude mais fundamental do ser humano”. A

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


partir dessa escuta, que ocorre como um ato responsivo, passamos a registrar
as memórias mais simples que se desencadeavam pelas narrativas e a anotar 275
as curiosidades mais corriqueiras.
Sant’Ana
Como a intenção da pesquisadora era, justamente, o oposto a uma Padilha
entrevista controlada, colocamo-nos à margem no processo investigativo,
para que pudéssemos perceber as nuanças contidas no ato do reencontro e,
nesse caso, de um novo encontro dialógico. A essa busca, especificamente,
pairavam as incertezas, as memórias e a expectativa sobre o que seria
descoberto com a investigação.
O tempo havia passado, e as meninas que participaram do programa
haviam crescido, tornando-se mulheres. Assim, essa alteridade no processo
deu um novo aspecto ao reencontro, pois, neste lugar, não eram mais a
funcionária do programa e as Simininas e, sim, a pesquisadora e as mulheres
pesquisadas.
A seguir, veremos como o conceito de cronotopo balizou todo o
processo de interação e de construção da pesquisa.

1.1 O tempo e o espaço desvelados pela teoria


bakhtiniana como cronotopo: pressupostos de
estudo
Para compreendermos a relevância do tempo e do espaço aplicados na
realização dessa pesquisa e a refração das influências sociais e culturais neste
processo, houve a necessidade de nos debruçarmos no importante estudo
bakhtiniano de cronotopo. Assim, pensar no conceito de cronotopo para
observarmos os efeitos evidenciados pelas memórias biográficas das
mulheres pesquisadas é reaver o agir de um tempo e de um espaço únicos,
que merecem ser conhecidos.
A obra bakhtiniana tem uma especial preocupação em caracterizar o
tempo e o espaço em que ocorrem as construções discursivas, dispondo-as
em uma importante contribuição teórica que se pauta, sobretudo, na análise
dos efeitos de sentido que ocorrem durante o ato discursivo. Assim, Bakhtin
(2018, p. 11) inicia seus estudos sobre a temática definindo o que
“chamaremos de cronotopo (que significa “tempo–espaço”) a interligação
essencial das relações de espaço e tempo como foram artisticamente

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


assimiladas na literatura”. Com isso, Bakhtin desvenda um vasto campo de
estudo, como nos apresentam Clark e Holquist: 276

O cronotopo desempenha um papel central nos ensaios escritos por Sant’Ana


Bakhtin nesse período, porém em nenhum deles mais do que em “As Padilha
Formas do Tempo e o Cronotopo no Romance”. Embora faça às vezes
de uma forma antes casual quando se trata de apontar os liames precisos
na cadeia dialógica de suas ideias, neste texto em particular duas notas
de pé de página indicam a dupla fonte de sua inspiração. Uma é Kant,
a quem Bakhtin louva por ter lhe mostrado a importância do espaço e
tempo como categorias primárias da percepção, ainda que divirja dele
no tocante ao modo de conceber as referidas categorias, considerando-
as “não como transcendentais, porém como formas da mais imediata
realidade. Outra fonte é do fisiólogo Ukhtômski, a quem Bakhtin deve
a insistência no caráter imediato do espaço e tempo na experiência
humana (Clark; Holquist, 2008, p. 296-297).

Desse modo, entendemos que, com o estudo do cronotopo, podemos


compreender os fatores relativos ao espaço e ao tempo que influenciam todo
o discurso. Logo, concordamos com Amorim (2016, p. 103) quando nos
apresenta que toda “concepção de tempo traz consigo uma concepção de
homem e, assim, a cada nova temporalidade, corresponde um novo homem”,
que diante de um específico espaço-tempo, reconhece “o ponto em que se
articula com o espaço e forma com ele uma unidade”. Clark e Holquist
acrescentam que:

Tempo e espaço estão sempre entrelaçados, mas alguns dos modos de


eles se combinarem são mais significativos do que outros como meios
de revelar as multidivisões específicas das quais brotam. Isso é verdade
em especial na literatura (Clark; Holquist, 2008, p. 297-298).

Para Bakhtin, é o estudo relativo às multidivisões específicas,


expressas por um determinado tempo e espaço, que ganha uma grande
importância. Ainda sobre esse estudo, percebemos que a própria obra
bakhtiniana se encarrega por caracterizar vários tipos diferentes de
cronotopo. Nesse sentido, ao percebermos o fenômeno do cronotopo, onde
cada tempo e espaço são capazes de influenciar os discursos dispostos e
apresentados nos mais variados enunciados, que compreendemos “que na
literatura o princípio condutor do cronotopo é o tempo” (Bakhtin, 2018, p.
12).
Por acreditarmos que, nas obras literárias, a linguagem se materializa
de modo a exprimir as sensações, sentimentos, percepções e, ainda, as
valorações de seus interlocutores em uma determinada realidade vivida, é que
vislumbramos a estreita relação de cumplicidade entre a vida e a arte

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


expressadas por Bakhtin, quando nos remete ao fato de que “é dos cronotopos
reais desse mundo que representa que se originam os cronotopos refletidos e 277
criados do mundo representado na obra (no texto)” (Bakhtin, 2018, p. 230).
Sant’Ana
Seguindo essa perspectiva, comungamos com os estudos de Amorim Padilha
(2016), ao apontar que “o conceito de cronotopo trata de uma produção da
história. Designa um lugar coletivo, espécie de matriz espaço-temporal onde
as várias histórias se contam ou se escrevem” (Amorim, 2016, p. 105). Por
isso que, a partir dessa concepção de cronotopo, aliada aos estudos das
narrativas biográficas, nesta pesquisa, partimos da relevância do cronotopo
do encontro como sendo parte dos “cronotopos motívicos” (Bemong;
Borghart, 2015), como descreve Bakhtin:

O motivo do encontro é um dos mais universais não só na literatura (é


difícil encontrar uma obra em que esse motivo não exista), mas em
outros campos da cultura, assim como em diferentes esferas da vida e
dos costumes da sociedade [...] por fim, todos sabem da importância
dos encontros (que às vezes definem diretamente todo o destino de um
homem) na vida e no cotidiano de todo indivíduo (Bakhtin, 2018, p.
30).

Entendemos que, no ato do encontro, o cronotopo que se constitui


colabora para desvelar memórias, narrativas e diálogos entre os sujeitos
participantes. Nele, é possível perceber que “o acontecimento não se torna
uma imagem, o próprio cronotopo fornece um terreno importante para a
exibição – representação dos acontecimentos” (Bakhtin, 2018, p. 227). Para
além disso, destacamos as possibilidades de construção de sentidos que são
oportunizadas dentro do cronotopo do encontro.
Outro cronotopo importante para a compreensão desta pesquisa é o
cronotopo dialógico, também conhecido como cronotopo que atua
diretamente na literatura, como nos descrevem Bemong e Borghart (2015):

Em cronotopos dialógicos, por outro lado, a narrativa não se direciona


para um momento final, para um “telos”, mas constitui em uma rede de
situações conflitantes e entrecruzadas que se comunicam umas com as
outras – daí o termo “dialógicos”. Aqui, os cronotopos de conflito são
predominantemente de natureza psicológica, e o que importa não é o
telos para o qual as narrativas mais tradicionais estão dirigidas, mas o
“Kairos”: os críticos e decisivos momentos característicos do romance
moderno desde o século XIX (Bemong; Borghart, 2015, p. 23).

Desse modo, percebemos que, diferentemente dos cronotopos


motívicos, que se pautam no encontro e nos sentidos despertados pelo
espaço-tempo, ou dos cronotopos apresentados pelo “telos”, que se

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


manifestam no final do encontro e, ainda, na despedida, nos cronotopos
dialógicos, a referência grega atribuída é a palavra “kairós”, ou seja, 278
momento oportuno. Com isso, a consciência do todo que referencia o
Sant’Ana
momento vivido se faz preponderante para a análise dos enunciados. Padilha
Adiante, observaremos, por meio dos cronotopos dialógicos, o agir
das memórias acerca da importância que o Programa Siminina teve na vida
de todas as mulheres pesquisadas.

2 Cronotopo dialógico: as ex-simininas e suas


memórias
O estudo das narrativas dialógicas biográficas contadas pelas
Simininas se torna extremamente relevante para que possamos observar o
centro de valor expresso pelas narrativas construídas, pois Bakhtin (2011, p.
349) acredita que “o homem entra em um diálogo com voz integral, e dele
participa com seu destino, pensamentos e individualidade”. Essa
integralidade discursiva é refratada por meio da interação dialógica entre as
Simininas, suas memórias e a relação com as memórias da pesquisadora, pois
mesmo trabalhando na coordenação municipal do programa, semanalmente,
visitávamos todas as unidades do programa, tanto para levarmos alimentos a
serem servidos no lanche, materiais didáticos e de limpeza, quanto para
acompanharmos “in loco” o desenvolvimento das atividades do programa e
o atendimento às crianças, adolescentes e à comunidade em geral, havendo,
nesse sentido, um contato constante.
Observamos a relevância do valor biográfico depreendido nas
respostas ao questionamento feito nos encontros dialógicos, visto que, para
Bakhtin (2011, p. 139), “o valor biográfico pode organizar não só a narração
sobre a vida do outro, mas também o vivenciamento da própria vida”. Diante
disso, os encontros oportunizados foram verdadeiros momentos de
integração e de troca de memórias narradas pelas mulheres que participaram
do projeto quando crianças e adolescentes.
Voltando a Bakhtin (2011, p. 140), “os valores biográficos são valores
comuns na vida e na arte, isto é, podem determinar os atos práticos como
objetivos das duas; são as formas de valores da estética da vida”. Desse
modo, as narrativas a serem apresentadas pelas memórias obtidas com as
Simininas são de grande relevância para a sociedade cuiabana, uma vez que

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


tais narrativas biográficas dialógicas representam uma parte da história de
vida de muitas cidadãs que hoje vivem sua vida adulta e que precisam ser 279
contadas respeitando a sensibilidade de seus valores biográficos. Conforme
Sant’Ana
Bakhtin, Padilha

Não se pode mudar o aspecto efetivamente material do passado, no


entanto o aspecto de sentido, o aspecto expressivo, falante pode ser
modificado, porquanto é inacabável e não coincide consigo mesmo (ou
é livre). O papel da memória nessa eterna transfiguração do passado.
Conhecimento – compreensão do passado em sua índole inacabável.
(Bakhtin, 2017, p. 60).

É em atenção a esse processo de compreensão do passado que a


pesquisa buscou evidenciar as memórias de quando participaram do
programa, bem como os relatos sobre esse importante período vivido. Assim,
perguntamos: hoje, enquanto mulher, você acredita que foi importante para
o seu desenvolvimento participar das atividades do Programa Siminina?
As mulheres que participaram do Programa Siminina contribuíram
com a pesquisa com suas respostas que estão dispostas1 no Quadro 1:

Quadro 1 – Compreensão do passado

Pesquisada Resposta
Foi de extrema importância, desenvolver meu "eu" social por conta do
programa, todas as palestras, incentivos e conversas abertas me
Siminina A
proporcionou espaço para crescer e me tornar a mulher independente que
sou hoje.
Com certeza, é um programa que te ajuda a criar uma direção na vida. Digo
Siminina C isso por que aprendi muitas coisas ali, muitas orientações, muita ajuda no
que iria exercer no futuro.
Siminina L Sim! Foi muito importante para o meu crescimento profissional.
Sim, com toda a certeza! A partir do Siminina tive a oportunidade de fazer
aula de dança em uma academia, visto que foi onde tive o meu primeiro
Siminina M
contato com a dança. Hoje conheço diversos países levando a dança, a arte
e divulgando a nossa cultura.
Muito, me ensinou valores, disciplina, esforço e tudo o que a gente faz com
esforço a gente vê resultado, me incentivou a trabalhar com crianças. Eu
Siminina S
sempre fui muito ouvinte das meninas que participavam e eu sempre queria
ajudar de alguma forma.
Sim, pois com os ensinamentos que tive muita coisa pode ser somada para
Siminina W
nossa vida hoje.
Fonte: Base de dados/ instrumento de coleta de dados para a realização da pesquisa (2020).

1
A metodologia de geração de dados ocorreu na época da pandemia da Covid 19, por meio de
documentos relacionados ao programa, questionários e anotações “in loco” que denominamos por
encontros dialógicos.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Conforme relatos das narrativas das mulheres que participaram do
Programa Siminina, percebemos que, quando se trata da compreensão de 280
passado, da relevância em se ter participado das atividades do programa, por
Sant’Ana
unanimidade, todas detalham, no Quadro 1, que sua participação no Padilha
programa foi importante para as suas vidas, enfatizando em seus enunciados
o uso de advérbios de intensidade e locuções adverbiais de afirmação:
extremamente importante, com toda a certeza, muito importante, com
certeza.
Com isso, entendemos que a compreensão de passado expressa pelas
mulheres alude ao referenciamento das ações do programa, indo ao encontro
do que nos diz Bakhtin (2011, p. 215) quando nos explica que “graças ao
vínculo traçado com o tempo histórico, com a época, viabiliza-se uma
representação realista mais profunda da realidade”. Por isso, percebemos que
a compreensão de passado destacada pelas pesquisadas é de todo um ato
responsivo, pois dialoga com suas memórias e as impulsiona a refletir sobre
seu lugar social no tempo presente.
Conforme nos descreve a Siminina A, no Quadro 01, ter participado
do programa foi de “extrema importância, desenvolver meu "eu" social por
conta do programa, todas as palestras, incentivos e conversas abertas me
proporcionou espaço para crescer e me tornar a mulher independente que sou
hoje”. Aqui, a narrativa salienta o lugar social que a mulher pesquisada se
encontra e que, conforme destacado, é um lugar de empoderamento feminino,
construído por ela com auxílio das palestras das quais teve oportunidade de
participar.
Nesse sentido, destacamos que, para Volóchinov (2017, p. 211), “a
personalidade do falante, tomada por assim dizer de dentro, é inteiramente
um produto das inter-relações sociais. Seu território social não é apenas a
expressão exterior, mas também a vivência interior”. Entendemos que, no
território social, as relações e vivências são oportunizadas dialogicamente e,
com isso, percebemos que, de acordo com o que é expresso pela Siminina A,
as relações oportunizadas no território social do Siminina contribuíram por
meio de suas relações para que a Siminina A se tornasse a pessoa que é hoje.
Há que se destacar também as contribuições da Siminina M, quando
detalha que sua história com a dança teve início no Programa Siminina da
unidade situada no Jardim Presidente II, região sul de Cuiabá. Como ela frisa,
“hoje conheço diversos países levando a dança, a arte e divulgando a nossa

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


cultura”, chegando a ser reconhecida com certificação internacional de
bailarina e premiada em concursos internacionais de dança popular. A 281
Siminina S descobriu, a partir do programa, a vocação para o trabalho com
Sant’Ana
crianças: “me ensinou valores, disciplina, esforço e tudo o que a gente faz Padilha
com esforço a gente vê resultado, me incentivou a trabalhar com crianças. Eu
sempre fui muito ouvinte das meninas”. Atualmente, como empresária do
ramo de festas infantis, ela reconhece que o programa a auxiliou na escolha
de sua carreira profissional.
Entendemos que, mesmo que os enunciados se aproximassem no
sentido de concordarem com a relevância da metodologia desenvolvida pelo
programa e de sua eficácia no atendimento ao público infanto-juvenil do sexo
feminino em Cuiabá, “cada narrativa de vida tem sua forma, sua iluminação
própria” (Lejeune, 2008, p. 160), discorridas à luz de suas percepções e de
sua compreensão acerca de um passado vivido na memória de cada
participante da pesquisa. Por isso, percebemos a pesquisa de modo dialógico,
de forma que as vozes das mulheres que participaram do Siminina se
complementam, sem deixar de serem únicas, pois concordando com Prado
(2017, p. 80), “a minha palavra, aquilo que quero dizer no meu trabalho de
pesquisa, é um alargamento da minha consciência no contatar a consciência
do outro pelo encontro de palavras, pelo cotejamento de textos”. Assim, cada
contribuição demonstra de modo singelo toda a compreensão responsiva das
mulheres frente às suas histórias de vida.
Em “As formas do tempo e do cronotopo no romance”, obra tão
relevante para o estudo e para a compreensão dos gêneros biográfico e
autobiográfico, Bakhtin (2018, p. 83, grifo do autor) nos apresenta a
importância de tais gêneros, tendo em vista que “são essas aquelas formas
autobiográficas antigas que podem ser chamadas de formas da
autoconsciência pública do homem”. Tal perspectiva nos remete aos
princípios aristotélicos, referentes à percepção que o sujeito faz em relação à
sua existência, frente a si mesmo e ao momento sócio-histórico em que se
encontra inserido. Para o teórico russo:

O tempo biográfico não é reversível em relação aos próprios


acontecimentos da vida, que são inseparáveis dos acontecimentos
históricos. Mas em relação ao caráter esse tempo é reversível: esse ou
aquele indício do caráter poderia por si só manifestar-se antes ou
depois. Os próprios indícios do caráter são cronológicos, suas
manifestações são deslocáveis no tempo. O próprio caráter não nasce e
nem muda, apenas se completa: no início ele não é pleno, não foi

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


revelado, é fragmentário, mas se torna pleno e harmonizado no fim
(Bakhtin, 2018, p. 85).
282
Bakhtin nos revela a evolução do caráter das personagens contidas em
Sant’Ana
uma prosa romanesca e sua relação de desvelamento à medida que há um Padilha
avanço no tempo histórico. Em uma narrativa, é possível perceber que, aos
poucos, detalhes e características dos personagens são postos de forma sutil,
promovendo um reconhecimento do EU da personagem.
Desse modo, compreendemos que, ao longo da pesquisa, o tempo
cronológico em que as mulheres pesquisadas participaram do programa,
tempo esse que, inclusive, sucedeu-se após o período de participação de cada
mulher no programa, ou seja, depois de seus 15 anos até hoje, em sua vida
adulta, não se revela por meio de dados biográficos.
O tempo cronológico aqui discutido se relaciona diretamente com o
cronotopo dialógico, pois sua constituição prima por “incorporar-se uns aos
outros, coexistir, entrelaçar-se, permutar-se, confrontar-se, contrapor-se ou
encontram-se em inter-relações mais complexas” (Bakhtin, 2018, p. 229), de
modo que um enunciado é responsivo em relação a outros enunciados de
maneira dialógica e não podendo fazer parte de um “universo representado,
embora não esteja fora da obra como um todo. Ele (esse diálogo) integra o
universo do autor e do intérprete, e dos ouvintes e leitores. E esses universos
também são cronotópicos” (Bakhtin, 2018, p. 229). Para tanto, coadunamos
com Gallardo e Landeros (2021) quando elucidam que:

Es la manifestación de la creación de un nuevo cronotopo dialógico,


conjunto indivisible de entendimiento mutuo entre los hablantes de lo
propio y lo ajeno mediante el diálogo. Es cuando acontece profunda
conexión en las relaciones discursivas entre conciencias discursivas que
se convierten en dialógicas. La enunciación genera obligación
identitaria del hablante con el enunciado y de alteridad con el
interlocutor para generar réplica; cuando se evade se pierde la
personalización2 (Gallardo e Landeros, 2021, p. 37-38).

Compreendemos, a partir daí, que a valoração biográfica está contida


em três momentos: a) nas memórias compartilhadas pelas mulheres
pesquisadas; b) nas narrativas de suas experiências enquanto leitoras

2
É a manifestação da criação de um novo cronotopo dialógico, um conjunto indivisível de
compreensão mútua entre os falantes do que é seu e do que é estrangeiro através do diálogo. É
quando a conexão profunda ocorre nas relações discursivas entre as consciências discursivas que
elas se tornam dialógicas. A enunciação gera uma obrigação identitária do falante com o enunciado
e de alteridade com o interlocutor para gerar uma resposta; quando evadido, a personalização é
perdida (Gallardo; Landeros, 2021, p. 37-38, tradução nossa).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


culturais; c) em uma tessitura dialógica que enlaça a infância e a vida adulta
das mulheres pesquisadas, expressa por meio de seus enunciados. 283

De acordo com os dados gerados pelos questionários, observamos os Sant’Ana


traços de valor biográfico apontados pelas narrativas das pesquisadas, visto Padilha
que, em um outro momento do encontro dialógico, solicitamos que elas
justificassem novamente suas respostas acerca da importância de terem
participado do Programa Siminina. As contribuições estão dispostas no
abaixo Quadro 2:

Quadro 2 - Valor biográfico

Pesquisada Resposta
Foi importante na fase em que minha vida encontrava-se. Estávamos
Siminina A sozinhos em uma nova cidade. O programa proporcionou-me um lar quando
eu ainda não tinha construído um para mim mesma.
Muito, além de ser um programa que ajuda muito as mães que as vezes não
tem como ficar com seus filhos pelo trabalho. Lá aprendi a me soltar mais,
Siminina C
sempre fui muito tímida e o programa me ajudou muito a perder essa timidez,
fiz apresentações de dança. Sinto orgulho de ter participado.
Sim! Tudo o que vivi no Siminina me serviu de experiência de vida e muitos
Siminina L
conhecimentos.
Foi muito importante participar do programa Siminina, acredito que se não
fosse o Siminina eu não teria as oportunidades que tenho hoje. Foi um
Siminina M
programa de suma importância na minha vida, no qual contribuiu de forma
muito positiva.
Nossa, muito! Me agregou muito como pessoa, me proporcionou muitas
oportunidades eu não teria, inclusive a primeira vez que eu andei de avião
Siminina S para representar Mato grosso e o Centro Oeste em Campo Grande e Brasília,
onde eu levei uma carta aos governadores e ao presidente da república sobre
um projeto de erradicação do trabalho infantil.
Sim, pois é um programa muito importante aonde podemos ficar seguras
Siminina W
para que nossos pais pudessem trabalhar.
Fonte: Base de dados/ instrumento de coleta de dados para a realização da pesquisa (2020).

De acordo com as narrativas dispostas no Quadro 2, percebemos que,


com o decorrer da pesquisa, as mulheres que participaram do Siminina nos
apresentaram detalhes autobiográficos que cooperaram significativamente
para o entendimento em relação ao valor biográfico atribuído a cada
contribuição descrita na pesquisa. Concordamos que “o valor biográfico pode
organizar não só a narração sobre a vida do outro, mas também o
vivenciamento da própria vida” (Bakhtin, 2011, p. 139), sobretudo, após o
tempo em que participaram do programa Siminina.
Conforme narrativas da Siminina A, participar quando criança do
Programa contribuiu com o seu processo de migração para uma nova cidade,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


conforme suas palavras: “estávamos sozinhos em uma nova cidade. O
programa proporcionou-me um lar quando eu ainda não tinha construído um 284
para mim mesma”. Essa sensação de pertencimento é muito importante para
Sant’Ana
o desenvolvimento de todo ser humano, ainda mais quando se é criança e Padilha
nova em uma cidade.
Concordamos com Lejeune (2008, p. 154) quando descreve que “uma
narrativa de vida não é apenas uma soma de informações (que poderiam ser
obtidas por outros meios): é, antes de tudo, uma estrutura (a reconstrução de
uma experiência vivida em discurso) e um ato de comunicação”. Com essa
sensibilidade expressa pelo teórico francês, percebemos o quão significativa
fora a contribuição da Siminina C, quando nos descreve que o programa a
auxiliou a vencer barreiras tão profundas em uma pessoa, como é o caso da
timidez: “lá aprendi a me soltar mais, sempre fui muito tímida e o programa
me ajudou muito a perder essa timidez, fiz apresentações de dança. Sinto
orgulho de ter participado”.
Para a Siminina S, “o programa agregou muito como pessoa”, visto
que, conforme relatos, ela morava em uma chácara às margens do rio Cuiabá,
e sua família tinha muitas dificuldades financeiras. Por isso, participar do
programa realizou o seu sonho de viajar, como ela aponta: “foi a primeira vez
que eu andei de avião para representar Mato Grosso e o Centro Oeste em
Campo Grande e Brasília”. Na oportunidade descrita, a Siminina S fez uma
carta premiada sobre a relevância do combate ao trabalho infantil e a entregou
para o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essa foi a primeira vez que
a voz de uma criança do Siminina pôde ser ouvida nacionalmente em favor
dos direitos das crianças e dos adolescentes.
Outro traço tão importante que se baliza no cronotopo dialógico é o
franco registro do tempo histórico e político ao qual a Siminina S se refere,
tempo esse que é marcado pelas políticas públicas de superação da pobreza,
combate à fome e ao trabalho infantil. Sua memória nos apresenta
nitidamente a sensação de valorização e de empoderamento que essa mulher
teve. Há que se destacar, ainda, que esse tempo histórico ficou em um
passado significativo tanto na narrativa da Siminina S, quanto na de milhões
de brasileiras e de brasileiros.
Ao vislumbrarmos os enunciados das mulheres pesquisadas,
reconhecemos que as suas memórias estão amalgamadas a um valor
biográfico que representa um marco temporal extremamente relevante em

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


suas vidas, por isso, percebemos a personalidade de cada participante da
pesquisa frente às interações que tiveram no programa quando crianças e 285
adolescentes, que buscaram reproduzir em suas narrativas biográficas de
Sant’Ana
modo dialógico. Padilha
Ao caminhar para o fim desta pesquisa, apontaremos alguns resultados
alcançados, bem como lacunas ainda existentes.

Considerações nunca finais


Reencontrar as mulheres que participaram do Programa Siminina e
vislumbrar que elas descrevem, por meio de suas narrativas biográficas, as
suas memórias, as experiências vividas apontam o valor que o programa teve
em suas vidas. Percebemos que as atividades desenvolvidas pelo programa
fazem parte da memória afetiva das mulheres em relação à infância e à
adolescência de cada pesquisada, sendo evidenciado em vários momentos da
pesquisa o quão positivo para elas foi o desenvolvimento das atividades
culturais.
O nosso artigo objetivou desvelar as relações permeadas pelo tempo e
pelo espaço que compreendem desde a infância até a vida adulta de seis
jovens cuiabanas que participaram de atividades socioculturais do Programa
Siminina, no período de 2005 a 2011, em comunidades carentes da cidade de
Cuiabá – MT.
Outro ponto pertinente a ser rememorado é em relação ao estudo da
teoria bakhtiniana, de como conceitos que outrora ancoravam de modo mais
específico questões voltadas à literatura se aplicam de forma majestosa para
compreendermos as vozes das mulheres pesquisadas e seus ecos, como é o
caso do estudo do cronotopo.
O tempo e o espaço vivenciados pelas pesquisadas durante a infância
e a adolescência constituíram um importante marco na memória de cada uma.
Por meio dos encontros dialógicos, foi possível vislumbrar detalhes que
marcaram o percurso de cada ex-participante no programa. Constatamos,
ainda, que suas vivências e memórias ainda as influenciam em suas narrativas
e em suas memórias.
O estudo dos cronotopos, mais especificamente do cronotopo
dialógico, permitiu-nos entender as nuanças e as valorações contidas em seus

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


discursos, de modo que, a todo momento, os diálogos versavam entre o tempo
em que cada mulher pesquisada participou do programa, o tempo atual da 286
época de coleta de dados, o reencontro com a ex-funcionária do programa na
Sant’Ana
condição atual de pesquisadora responsável pela pesquisa e todas as Padilha
memórias suscitadas pelo encontro dialógico. Tudo isso contido em um
tempo específico, que só foi possível ser concebido, é claro, pela
compreensão que nos é contida no cronotopo dialógico.

Referências
AMORIM, Marilia. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros
conceitos-chave. 2ª ed. São Paulo: Contexto. 2016.
AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo:
Musa editora. 2004.
BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização,
tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São
Paulo: Editora 34, 2017.
BAKHTIN, Mikhail. O discurso na poesia e o discurso no romance. In: MIKHAIL,
Bakhtin. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução Aurora
Fornoni Bernardini et al. 7ª ed. São Paulo: Hucitec, 2014, p. 89 - 348.
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do Romance II: As formas do tempo e o cronotopo. Tradução,
posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov e Vadim Kójinov.
São Paulo-Editora 34, 2018.
BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, Mikhail.
Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências
humanas. In: MIKHAIL, Bakhtin. Estética da Criação Verbal. Tradução Paulo Bezerra.
São Paulo: Martins Fontes, 2011b.
BEMONG, Nele; BORGHART, Pieter. A teoria bakhtiniana do cronotopo literário:
reflexões, aplicações, perspectivas. In: BEMONG, Nele; BORGHART, Pieter;
BOBBELEER, Michel de; DEMOEN, Kristoffel; TEMMERMAN, Koen de; KEUNEN,
Bart (Orgs.). Bakhtin e o cronotopo: reflexões, aplicações, perspectivas. Tradução Ozíris
Borges Filho et al. São Paulo: Parábola, 2015, p. 16 – 33.
BRAIT, Beth; NUNES, Jozanes Assunção. Documentos oficiais em diálogo. Eutomia, v.
21, n. 1, p. 144-168, jul. 2018.
CLARK, Caterina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. Tradução. J. Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva. 2008.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. 2ª ed. São Paulo: Contexto,
2017.
GALLARDO, Emilio Carranza; LANDEROS, Rosío Molina. La identidad heteroglósica
como herramienta verbal-ideológica de análisis del discurso dialógico. Dialogía, v. 15, p.
33-80, 2021. Disponível em: https://journals.uio.no/Dialogia/article/view/9275. Acesso em
20 mai. 2022.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2008.
287
MIOTELLO, Valdemir. Por uma escuta responsiva: a alteridade como ponto de partida.
São Carlos: Pedro e João Editores, 2018. Sant’Ana
PRADO, Vanessa Alves. Ações do programa paulista Ler e Escrever sob os sentidos Padilha
bakhtinianos de forças centrípetas e centrífugas. Tese (Doutorado em Educação) –
Programa Pós-graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Marília, 2017. Disponível em
http://hdl.handle.net/11449/151401. Acesso em 10 out. 2021.
SANT’ANA, Laiza Luz Martins. Uma análise dialógica da proposta pedagógica do
Programa Siminina. In: CAMPOS, Maria Inês Batista; SANTOS, Thiago Jorge Ferreira
(Orgs.). Discurso e ensino na linguística aplicada: propostas e interseções. São Paulo:
FFLCH/USP, 2021, p. 128-147. Disponível em:
http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/717/637/2370.
Acesso em 29 abr. 2023.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas fundamentais
do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Scheilla Grillo
e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.
WERTSCH, James. Texto e dialogismo no estudo da memória coletiva. Educação e
Pesquisa, v. 36, n. especial, p. 123-132, 2010. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ep/a/WQJMgvpCCcyPbWJPnbdPs7w/?lang=pt. Acesso em 10
nov. 2021.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


288

Silva
Estevam

“Você pode perguntar para a sua


empregada doméstica, que ela viu
que esse país melhorou” -
arquitetônica bakhtiniana no
embate entre Lula e Soraya
Thronicke no debate presidencial
“You can ask your housekeeper, she saw that this country has
improved” - bakhtinian architectural in the clash between Lula
and Soraya Thronicke in the presidential debate

Karla Stéphany de Brito Silva 1 Introdução


Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Brasil As eleições presidenciais de
2022 foram as mais acirradas no
Madson Bruno Soares Estevam
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, período pós-democratização no
Brasil Brasil. Tendo como os principais
nomes os de Luiz Inácio Lula da
Silva, ex-presidente do país por dois mandatos, e o de Jair Messias
Bolsonaro, presidente à época do pleito, uma polarização radical tomou conta
das vidas e das redes sociais dos brasileiros.
A eleição ocorreu em dois turnos. No primeiro, ocorrido em dois de
outubro de 2022, onze candidatos concorreram à presidência, indo para o
segundo turno Lula, primeiro colocado com 48,43% dos votos válidos,
seguido por Bolsonaro, com 43,2% dos votos, sendo, desse modo, uma
disputa diferente, uma vez que, como os brasileiros já conheciam os

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


principais candidatos, não houve espaço para crescimento de chapas
adversárias, como, por exemplo, a “terceira via”, movimento encabeçado por 289
aqueles que não se sentiam representados nem por Lula, tampouco por
Silva
Bolsonaro. Estevam
O segundo turno, que aconteceu em 30 de outubro de 2022, culminou
com uma vitória apertada do candidato Lula, o qual teve um pouco mais de
60 milhões de votos, tendo, assim, uma porcentagem de 50,9% dos votos
válidos. Bolsonaro teve mais de 58 milhões de votos, chegando a um
percentual de 49,1%, tornando-se, com isso, o primeiro presidente a não se
reeleger, desde que esse mecanismo foi implementado nas leis brasileiras.
Imersos nesse processo de escolha, os debates presidenciais
televisionados tiveram papel central, porquanto, por intermédio deles, os
eleitores podiam ver as propostas dos candidatos, além de analisar o modo
como eles se comportavam frente a questões polêmicas e com ideologias
diferentes das que eles defendiam. Dessa forma, a tensão dialógica se fazia
presente, uma vez que era necessário contrapor ideias e defender pontos de
vista, os quais, geralmente, eram destoantes dos demais candidatos.
Fora dos embates entre Lula e Bolsonaro, os quais eram os mais
aguardados pelo grande público, alguns candidatos começaram a ganhar
visibilidade a partir desses encontros. Simone Tebet, ex-senadora da
república e atual ministra do governo Lula, foi uma dessas e ficou
reconhecida como alguém de boa eloquência. Soraya Thronicke, atual
senadora da república, foi outra personagem que passou a ser reconhecida
durante o processo eleitoral, principalmente pelos embates com Bolsonaro,
Lula e com o candidato Padre Kelmon.
Nessa direção, dentro desse contexto de análise da eleição de 2022, é
que o nosso trabalho se encontra. Nele, propomos, como questão norteadora,
a seguinte: como ocorre a arquitetônica bakhtiniana no embate entre Lula e
Soraya Thronicke no debate presidencial da TV Bandeirantes no primeiro
turno das eleições? Para isso, propomos, como objetivo, analisar a
arquitetônica bakhtiniana presente em um trecho do embate entre Lula e
Soraya Thronicke no debate presidencial exibido pela da TV Bandeirantes,
tendo a participação do UOL, Folha de S.Paulo e TV Cultura, além do apoio
do Google e do YouTube.
Os fundamentos teóricos do trabalho estão ancorados na Análise
Dialógica do Discurso, proposta por Bakhtin e seu Círculo, os quais

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


percebem a linguagem enquanto fenômeno da interação sociodiscursiva, fato
que leva, dessa forma, a perceber a presença do outro como mecanismo 290
inerente à produção de enunciado, que se manifesta dentro de um
Silva
determinado contexto de produção, dotado de tempo, espaço e ideologias. Estevam
Como corpus, escolhemos um fragmento do debate exibido pela Rede
de Televisão Bandeirantes em que há a interação sociodiscursiva entre Lula
e Soraya, quando os dois comentam se durante os períodos de governo de
presidentes do Partido dos Trabalhadores - PT (Governos Lula e Dilma
Rousseff) houve ou não melhorias à população brasileira.
Por fim, em relação à estrutura deste estudo, temos, em primeiro
plano, essa introdução, em que situamos o leitor/ouvinte sobre a temática
debatida; depois, em segundo plano, apresentamos a fundamentação teórica,
ancorada nos postulados de Bakhtin e do Círculo; a metodologia utilizada,
com o passo a passo da pesquisa; as análises dos dados, espaço em que
analisamos a arquitetônica na tensão dialógica; as considerações finais da
investigação e, por fim, as referências e o apêndice, em que demonstramos,
na íntegra, o embate entre Lula e Soraya.

2 Arquitetônica bakhtiniana
Nos estudos bakhtinianos e do Círculo, uma temática que permeia
diferentes obras é a da arquitetônica. Tal conceito revela a forma como esses
autores concebem o enunciado, enxergando-o como um ato singular, único,
ligado indissociavelmente à realidade externa e em que, na sua produção e
recepção, é atravessado por diferentes posições axiológicas, em determinadas
condições de tempo e de espaço.
Em “Por uma filosofia do ato responsável”, Bakhtin (2010) demonstra
a forma de realizar uma análise da arquitetônica em uma obra de Pushkin, a
qual foi escrita em 1830.
O autor, assim, afirma:

O modo melhor para esclarecer [...] a disposição arquitetônica do


mundo da visão estética em torno de um centro de valores – um ser
humano mortal – é fornecer uma análise (conteudístico‐formal) da
arquitetônica concreta de uma obra qualquer (Bakhtin, 2010, p. 130).

Notamos, com o fragmento, que, para o autor, perceber a arquitetônica


é analisar a disposição de como se comportam, no enunciado concreto, as

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


relações estabelecidas entre o eu e o outro, em que os centros de valores,
imersos em um processo dialógico, apontam, por meio desse enunciado e 291
com a utilização de signos, os diferentes aspectos constitutivos da obra.
Silva
Para realizar essa análise, Bakhtin (2010) apresenta a arquitetônica de Estevam
“Razluka” (Separação), um poema que apresenta dois centros de valores, um
herói e uma heroína, em que ela está partindo para um país distante, no caso
a Itália, e, por isso, causa sofrimento ao herói. Logo, há um mesmo
acontecimento que pode ser visualizado de maneiras diferentes: enquanto
para ela, a ida à Itália pode ser vista como um retorno, para ele, trata-se de
uma partida, ou seja, há uma tensão dialógica entre esses dois centros de
valores.
No livro, após apresentar ao leitor a obra, o autor apresenta os dois
personagens presentes e as categorias escolhidas para analisar a
arquitetônica, sendo elas: o contexto, o tema-assunto-conteúdo, as diferentes
valorações representadas pelo tom “emotivo-volitivo”, bem como outras,
como a situação de tempo e espaço que está envolvida na produção do
enunciado. Nessa perspectiva, há um modelo de análise já fornecido pelo
autor a fim de realizar averiguação de textos/discursos.
Em “Estética da criação verbal", Bakhtin (2011, p. 127) afirma: "A
arquitetônica do mundo da visão artística não ordena só os elementos
espaciais e temporais, mas também do sentido; a forma não é só espacial e
temporal, mas também do sentido”. Com o fragmento, notamos que a
arquitetônica é a reveladora da criação de sentidos, uma vez que a forma
composicional de um enunciado é utilizada de acordo com o sentido a ser
empregado pelo produtor, que está em dialogismo. Assim, a forma estrutural
não seria a arquitetônica em si, mas sim uma parte dela, pois esse conceito
deve ser visto a partir da totalidade da situação presente no enunciado (sua
temática, as relações que estabelece, as ideologias a que se faz uso, entre
outros tantos fatores).
Sobre essa temática, Rojo e Melo (2017) apontam:

A arquitetônica está relacionada à totalidade da situação, à construção


e só pode ser dimensionada a partir do objeto interno (da materialidade)
orientado para sua relação com o externo: para o autor-criador que se
posiciona a partir de um lugar social, ideológico e axiológico, no
processo de interação; para o lugar que o texto/enunciado ocupa no todo
acabado como elo da cadeia de textos/enunciados; perpassado pelo
contexto maior e pela situação imediata, concreta, de produção; que se
corporifica em determinado gênero de discurso (com sua forma de

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


composição), para abrigar as avaliações e assim por diante (Rojo; Melo,
2017, p. 1280).
292
Com os dizeres das autoras, notamos que na arquitetônica de um
Silva
enunciado se fazem presentes diferentes conjecturas, quer sejam ligados à Estevam
forma, como ao conteúdo, além das relações que esse enunciado estabelece
com as condições de produção, com os demais já produzidos anteriormente
e, por causa da interação entre os sujeitos, com os enunciados que ainda
serão, no futuro, produzidos.
Rojo apresenta uma figura que ilustra todas essas nuances que se
fazem envolvidas ao tratarmos de arquitetônica. Vejamos.

Figura 01 - Arquitetônica bakhtiniana

Fonte: Melo e Rojo (2016, p. 254)

Com a figura, podemos perceber que vários são os conceitos


bakhtinianos que encontramos ao averiguar a arquitetônica de um enunciado.
Melo e Rojo (2016) ainda informam que essa definição de arquitetônica no
círculo de Bakhtin pode ser visualizada de uma maneira dupla: na primeira,
como um conjunto do pensamento dos autores; na segunda, como a
organicidade da obra. Para as autoras, os componentes que formam essa
noção tão basilar são interligados, tendo como princípio norteador a
dialogicidade.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


3 Metodologia
293
Este artigo segue a abordagem qualitativa, que segundo Minayo
(2014), trata-se de uma pesquisa que se preocupa com o nível de realidade, o Silva
que não pode ser quantificado. Essa abordagem trabalha com os significados, Estevam

as motivações, as crenças, os valores etc., usando sempre descrições,


comparações e interpretações dos dados.
Além de qualitativa, a pesquisa apresenta cunho interpretativista. Para
isso, o pesquisador, primeiro, compreende os fenômenos, para só depois
fazer uma interpretação sobre eles. Segundo Moita Lopes (1994), nessa
perspectiva, a realidade é construída pelo indivíduo, sendo ele importante
para a construção do conhecimento e o responsável por interpretar os
fenômenos, atribuindo-lhes significado.
O método utilizado foi o indutivo, pois o estudo foi realizado com base
em observações, ideias e conceitos encontrados nos dados, ao invés de coletar
dados para comprovar teorias, modelos ou hipóteses.
A respeito do procedimento técnico, esta produção é documental,
bibliográfica e de caráter descritivo. Documental, pois trabalhamos com
fontes primárias, uma vez que o debate presidencial não tinha passado por
um tratamento analítico e foi construído com um outro propósito.
Bibliográfico, pois se apoia em periódicos, livros e outros materiais
disponíveis como fonte de estudo; e, descritivo, já que busca descrever as
características dos fenômenos linguísticos.
Quanto ao corpus, é composto por um trecho1 de pergunta-resposta-
réplica-tréplica que ocorreu entre o até então candidato Luiz Inácio Lula da
Silva e a candidata Soraya Vieira Thronicke no terceiro bloco do debate
presidencial, no dia 28 de agosto de 2022, transmitido pelo canal de TV
aberta Grupo Bandeirantes. O debate completo teve duração de 2 horas, 46
minutos e 10 segundos, enquanto o trecho analisado possui 6 minutos e 2
segundos. Todo o debate está disponível no canal “Band Jornalismo” no
Youtube2.
Por ser um texto oral e com o intuito de padronizar a transcrição do
corpus, o texto foi normatizado de acordo com as normas do Projeto de
Norma Urbana Oral Culta (NURC). É importante destacarmos que, além dos

1
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CJ3pFcix1YU Acesso em: 13 out. 2023.
2
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WwdgWl_nmKI Acesso em: 13 out. 2023.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


sinais presentes no NURC, foram utilizados também o sinal “↗” para marcar
ascendência na fala e “↘” para descendência na fala. Dessa forma, quando a 294
entonação corresponde a um enunciado interrogativo, também se utiliza o
Silva
sinal de ascendência. Para auxiliar a leitura, utilizamos a letra Courier New Estevam
em toda transcrição.
Por fim, é válido salientar que, a fim de proceder às análises,
realizamos a metodologia adotada pela Análise Dialógica do Discurso. Para
isso, averiguamos o corpus em sua especificidade, analisando os fatores
discursivos imersos na cena enunciativa, bem como as noções presentes na
arquitetônica bakhtiniana, como os sujeitos enunciadores, o cronotopo, a
valoração e a avaliação social.

4 Estabelecimento do gênero discursivo debate


regrado na situação comunicativa da eleição
presidencial de 2022
Os gêneros discursivos são construtos sociais que expressam as
intenções de um sujeito em narrar, informar, entreter, argumentar, etc. Desse
modo, os gêneros estão ligados às necessidades comunicativas humanas e
não podem ser enumerados e quantificados em sua totalidade, uma vez que
se adequam às situações comunicativas, pois, segundo Bakhtin (2016, p. 12),
“a riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são
inesgotáveis as possibilidades da multifacetada atividade humana”.
O debate regrado é um gênero do discurso argumentativo oral que
apresenta uma natureza persuasiva. Possui o propósito de convencer os
interlocutores a aderirem à sua opinião defendida. No debate, precisa-se ter
pelo menos dois debatedores e um mediador. Assim, os debatedores precisam
dominar os mecanismos das trocas discursivas (turnos de fala), além de se
apropriar das informações sobre o assunto para selecionar o tipo de
argumento mais apropriado ao percurso argumentativo trilhado.
O debate regrado utilizado neste artigo possuía seis debatedores, que
eram os candidatos à presidência do Brasil Felipe D'Ávila (Novo), Soraya
Thronicke (União Brasil), Simone Tebet (MDB), Jair Bolsonaro (PL), Lula
(PT) e Ciro Gomes (PDT). Os mediadores eram vários jornalistas
pertencentes ao pool formado entre o Grupo Bandeirantes de Comunicação,
a TV Cultura, o jornal Folha de S. Paulo e o portal Uol, que se alternavam

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


em cada pergunta. Contudo, para a análise deste estudo, realizamos o recorte
do debate entre os debatedores Lula (PT) e Soraya Thronicke (União Brasil). 295

Seguindo os estudos bakhtinianos de gênero, os elementos Silva


fundamentais para a formação de um gênero são: o conteúdo temático, o Estevam
estilo e a estrutura composicional. No nosso recorte escolhido, o conteúdo
temático se refere à Soraya realizando uma crítica ao PT, chamando os
políticos desse partido de ultrapassados e promovendo suas ideias do imposto
único, baseado nos estudos do professor Marcos Cintra. Lula contra-
argumenta a oponente, desacreditando nas ideais do imposto único e
argumentando que, no seu Governo, as classes trabalhadoras viram a situação
mudar. Em seguida, interdiscursivamente, traz a escravidão de outrora,
promovendo-se ao argumentar que, se ganhar, não haverá mais essa
escravidão moderna.
A respeito do estilo, a candidata Soraya Thronicke faz uso de
linguagem formal, para construir um ethos de sapiência, intensificando o seu
lugar de fala, enquanto advogada e senadora do estado de MS. Já o candidato
Lula faz uso de uma coloquialidade na oralidade, a fim de provocar a
identificação com o seu público eleitor (supradestinatário).
Quanto à estrutura composicional desse debate, ele foi separado em
três blocos. Vejamos a seguir:
● Primeiro bloco: cada candidato, por ordem de sorteio, teve um
minuto e meio para responder a uma pergunta sobre planos de
governo. Eram três perguntas diferentes, cada uma direcionada a
dois dos candidatos. Na sequência, em ordem definida por sorteio,
houve a primeira rodada de confronto direto, com todos
perguntando e todos respondendo. O próprio candidato escolhia
quem iria responder a sua pergunta e tinha um minuto para a
pergunta e um minuto para a réplica. O tempo de resposta e de
tréplica, por sua vez, era de quatro minutos no total.
● Segundo bloco: os jornalistas das empresas integrantes do pool
(Folha, UOL, TV Bandeirantes e TV Cultura) faziam perguntas
aos candidatos. Eles escolhiam quem iria responder e quem iria
comentar. O tempo era de quatro minutos para a resposta, e a
réplica e o comentário tinham um minuto. Todos os candidatos
deveriam responder e comentar.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


● Terceiro bloco: foi mediado pelos jornalistas Leão Serva (TV
Cultura) e Fabíola Cidral (UOL) e começou com mais uma rodada 296
de confronto direto, em que todos perguntavam e respondiam,
Silva
seguindo as mesmas regras do primeiro bloco. Na sequência, os Estevam
candidatos responderam perguntas programáticas, sendo três
perguntas diferentes, cada uma direcionada a dois dos candidatos.
Após isso, os candidatos tiveram dois minutos cada para as suas
considerações finais.
Dessa forma, o debate iniciou com o exórdio dos mediadores, seguido
pela explicação das regras e pelos três blocos do desenvolvimento do debate
ditos anteriormente, finalizado com a despedida de uma das jornalistas
presentes no debate.

5 Análise dos dados


Neste momento, passamos a realizar a análise da arquitetônica
bakhtiniana no diálogo entre Lula e Soraya Thronicke.
Notamos que as esferas envolvidas no debate abarcam três discursos:
o jornalístico, o político e o midiático. O discurso jornalístico é construído na
cena enunciativa com a presença de jornalistas tanto para mediarem quanto
para questionarem os candidatos no debate. O discurso político está presente
na dimensão valorativa de organização da prática social, consiste em
estabelecer um debate para candidatos ao cargo de presidente de um país em
época de eleição presidencial. Por fim, o discurso midiático está presente em
toda cena enunciativa, associando a mídia televisiva com a internet. Ao
abranger a grande mídia, o debate analisado teve repercussão em várias redes
sociais, estando disponíveis para um público muito maior de pessoas e por
muito mais tempo. Vejamos a imagem a seguir, que apresenta as três esferas
envolvidas:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Figura 02 - Esferas envolvidas na cena enunciativa

297

Silva
Estevam

Fonte: os autores

O momento do recorte do debate analisado está presente no terceiro


bloco. Como já apontamos, nesse segmento, cada candidato perguntava sobre
o tema que quisesse ao candidato que quisesse, sendo necessário que todos
participassem. Soraya, ao formular a questão, informou que a alta carga
tributária federal fazia com que no país fossem gerados menos empregos e
perguntou a Lula qual seria a proposta dele para essa adversidade, uma vez
que sua volta ao cenário político era “sem propostas”. Lula, ao responder, faz
uma volta ao período em que era o gestor do Executivo do país e falou de
suas realizações enquanto presidente da república.
Vejamos, a seguir, um esquema das réplicas dos candidatos,
analisadas de acordo com os conceitos teóricos.

Figura 03 - Aspectos da arquitetônica bakhtiniana no debate presidencial

Fonte: os autores

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Notamos que o contexto maior da produção do enunciado se refere às
eleições presidenciais de 2022. Tanto Lula quanto Soraya tentavam 298
apresentar suas propostas para que com isso obtivessem a maior quantidade
Silva
de votos e, assim, fossem eleitos. O espaço em que esse momento de Estevam
interação ocorreu foi em São Paulo, nos estúdios da rede de televisão
Bandeirantes, datado em 28 de agosto de 2022, sendo veiculado na mídia a
partir das 21 horas.
Todavia, o contexto maior de interação não se limitava aos candidatos.
As perguntas e respostas eram direcionadas, mais que para aqueles que
estavam ali, aos demais eleitores, os quais eram basilares para que se
chegasse ao êxito na campanha e acompanhavam o evento por diferentes
meios de comunicação. Com isso, temos, nessa cena enunciativa, mais que
uma conversa entre Lula e Soraya; na verdade, há uma interação entre eles e,
principalmente, deles com o público-alvo.
Em relação aos sujeitos produtores desses enunciados, temos a
presença de Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente do país por duas vezes,
sendo o representante máximo do Executivo entre 2003 a 2010, que havia
sido condenado e preso por participação em esquemas de corrupção, pela
Operação Lava-Jato, sendo, após um período recluso, inocentado; e Soraya
Vieira Thronicke, senadora eleita pelo Mato Grosso do Sul, com viés
conservador, sendo eleita sobre a influência de Bolsonaro durante a
campanha de 2018.
Com o fito de perceber o tom emotivo-volitivo evidenciado pelos
candidatos, vejamos e analisemos alguns fragmentos.
Excerto 1

Soraya Thronicke: seu partido um corrupto confe::sso... e esse mundo lin::do que o senhor fala
só existe na propaganda eleitoral do senhor↗ ... o Brasil precisa mudar e mudar pra valer ... precisa
do mundo digital... nós já estamos caminhando... e os seus economistas são todos MO-FA-DOS
... nós temos uma solução pra o Brasil que a solução do imposto único federal... nós vamos excluir
retirar onze tributos federais e vamos trocar por um SÓ

Em relação à valoração, notamos que Soraya desqualifica o partido do


então candidato Lula, chamando esse de “corrupto confesso”. Por meio de
signos ideológicos com teor axiológico e do artigo “um”, percebemos que a
candidata articula o partido e o próprio candidato como entidade e pessoa que

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


usurparam o dinheiro nacional, sendo, com isso, sem propriedade para
comandar novamente o país. 299

Em um movimento contra-argumentativo, fato que demonstra a tensão Silva


dialógica entre esses dois centros de valores, a senadora aponta que o cenário Estevam
de desenvolvimento social e econômico citado por Lula ao responder a
indagação somente existe em suas propagandas. Para ela, o desenvolvimento
somente se concretizará quando o mundo digital for colocado como uma
opção pelo governo. Por fim, utilizando um signo com a finalidade de
desqualificar a equipe econômica de Lula, Soraya afirma que eles seriam
“MO-FA-DOS”, falando pausadamente e com uma entonação que
demonstrava que as ideias defendidas já seriam ultrapassadas.
Excerto 2

Soraya Thronicke: nós vamos excluir retirar onze tributos federais e vamos trocar por um SÓ
((candidata gesticula o um com a mão direita)) uma alíquota de UM ponto vinte e seis por cento
que vai:: aumentar o poder de compra↗ do brasilei::ro e diminuir a inflação... além DIsso.. isentar
de imposto de ren::da e de INSS... quem ganha... até cin::co salários mínimos... tudo aquilo que
é descontado do teu salário vai sobrar no seu bolso... COMO nós vamos fazer isso↗ não é
milagre... tem contas... são TRIN::TA anos de estudo do professor Marcos Cintra e eu/e eu é::
desafio ((candidata levanta o dedo indicador)) qualquer economista a discutir comigo imposto
único federal...

Neste segundo fragmento do discurso de Soraya, notamos que, após


desqualificar, com uso de signos de cunho axiológico, as propostas de Lula,
ela passa a defender qual seria o mecanismo que traria melhores resultados à
tributação brasileira. Para a senadora, essa proposta seria a junção de
diferentes impostos em um só. Em relação aos mecanismos valorativos para
sustentar essa proposta, ela diz que esse imposto único iria aumentar o poder
de compra do brasileiro e diminuir a inflação, fazer com que o imposto de
renda fosse isento para um público maior do que o atual, fato que levaria ao
aumento de dinheiro nas mãos dos brasileiros. Segundo ela, isso não seria
mágica, mas, sim, uma pesquisa fundamentada.
Dessa maneira, notamos que a orientação discursiva empreendida é,
em primeiro plano, atacar Lula e seus economistas e, em segundo plano,
defender sua proposta de imposto único, utilizando para isso diferentes
argumentos, como as melhorias que esse novo sistema traria, a
fundamentação teórica embasada no economista Marcos Cintra e ainda a sua
disponibilidade para discutir essa temática com qualquer economista, ou seja,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


é demonstrada uma construção valorativa de que a ideia é tão boa que poderia
ser defendida em qualquer circunstância e para qualquer opositor. 300

Acerca dos outros presentes no discurso da candidata Soraya Silva


Thronicke, percebemos que ela estabelece relações dialógicas com os Estevam
seguintes sujeitos explicitados na imagem a seguir:

Figura 04- relações dialógicas estabelecidas no discurso de Thronicke

Fonte: os autores

A candidata à presidência Soraya Thronicke se refere em primeiro


plano ao candidato Lula, com quem está debatendo, mas também está
interagindo com os mediadores do debate e com os eleitores em geral. Esses
últimos ficam evidenciados quando a debatedora usa do pronome de segunda
pessoa “teu”, no enunciado “tudo aquilo que é descontado do teu salário vai
sobrar no seu bolso”, por exemplo.
Thronicke também dialoga com os estudos do professor Marcos
Cintra, com o fito de trazer um argumento de autoridade para sustentar o seu
dizer e ainda usa do tempo “trinta anos” para ajudar na credibilidade dos seus
argumentos. Ao direcionar os seus argumentos com as pesquisas de Cintra
sobre o imposto único, a candidata também estabelece uma interação com a
população que sofre com carga tributária, uma vez que ela irá se identificar
com o seu discurso.
Além disso, como a candidata ataca diretamente as propostas e o
partido do seu oponente, ela também dialoga com os que concordam com ela
sobre as propostas do candidato Lula serem ultrapassadas e sobre o partido

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


dele, o PT, ter promovido corrupção. Ao mesmo tempo, também dialoga com
os que discordam dela, tanto em relação às propostas do Lula, como em 301
relação às ofensas ao partido dele, já que estabeleceram uma discordância
Silva
com dois centros de valores contrários. Estevam
Vistos os mecanismos valorativos empregados pela candidata Soraya,
passemos a perceber os aspectos utilizados pelo candidato Lula.
Excerto 3

Lula: a candidata Soraya... ((fala em tom de riso irônico)) se ela tivesse acompanhado a política
desse país↗ ela perceberia que o seu vice já fez essa proposta há trin::ta anos atrás... e não foi...
se quer levado em conta pelos eleitores desse país↗ e desse esta::do...

Lula, de forma irônica, tenta desconstruir a orientação discursiva


empreendida por Soraya, uma vez que, segundo ele, a proposta que a
senadora apresenta como sua grande contribuição ao debate econômico é
antiga: há mais de trinta anos já existe e mesmo assim nunca foi bem recebida
junto aos eleitores. Com a utilização do tom irônico, além de signos como
“se ela tivesse acompanhado a política desse país” e “não foi... se quer levado
em conta pelos eleitores desse país”, o atual presidente da república fomenta
uma imagem negativa da candidata, de que não conhece a história do país,
bem como se juntou a um economista que nunca conseguiu convencer a
sociedade acerca da validade de suas propostas.
Excerto 4

Lula: a segunda coisa↗ que eu queria dizer... para candidata Soraya é de que... nesse país↗ se
consegue falar muita coisa... e a senhora disse que não viu esse país que eu falei acontecer↗ ...
((fala apontando diretamente para Soraya))o SEU motorista viu↗... o SEU jardineiro viu↗ ... a
sua empregada doméstica VIU... você pode perguntar para a sua empregada domés::tica que ela
viu↗ que esse país melhorou... ela viu↗ que ela podia almoçar e jantar↗ todo santo dia... que ela
podia tomar café↗ ela viu que o filho dela poderia entrar em uma universidade... o seu jardineiro
VIU... ora... porque os POBRES efetivamente cresceram nesse país e conquistaram cidadani::a...
talvez↗ a senhora não tenha visto... não sei se a senhora votou favorável à legalização de emprego
de empregada domés::tica... MAS... ela VIU que melhorou a vida dela... ela viu que ela foi
RESPEITADA ... e é ASSIM que vai voltar a ser↗ ... o PO::BRE desse país vai voltar a ser
respeita::do ((fala olhando diretamente para a câmera))...

O presidente Lula consolida seu ponto de vista divergindo dos ideais


da sua opositora em um movimento de contra-argumentação, trazendo à cena
enunciativa características marcantes do seu governo passado, as quais
evidenciam a ascensão da classe trabalhadora antes estagnada. Para isso, o

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


candidato aponta representações de sujeitos reais vinculados por intermédio
de acontecimentos concretos. A forma de entonação, o ato de olhar 302
diretamente para sua opositora e signos ideológicos como "melhorou" e
Silva
"efetivamente" demonstram a construção valorativa e ideológica de defesa Estevam
de um segmento específico.
Com esse movimento enunciativo, Lula consegue desqualificar sua
opositora, uma vez que a imagem dela passa a ser a de alguém que é distante
dos movimentos a favor da classe trabalhadora, ao mesmo tempo em que
reforça seu posicionamento e abre possibilidades para ampliar uma relação
com o seu público mais fiel, porquanto, segundo dados evidenciados durante
a campanha eleitoral, o candidato à época detinha maior quociente eleitoral
entre as populações com menor renda.
É interessante ainda perceber quais os movimentos valorativos
utilizados por Lula para contribuir com a construção do seu ponto de vista:
no seu governo, os empregados tinham direito à alimentação ‒ no período da
eleição, ainda vivenciando resquícios da pandemia da COVID-19,
infelizmente, foram recorrentes as informações acerca da volta da fome ao
país; no seu governo, o jovem teve acesso à universidade ‒ os índices de
participação de jovens em processos seletivos de acesso à universidade
caíram durante a pandemia; no seu governo, o pobre teve acesso à cidadania
‒ no período da eleição, devido à pandemia e às ações desenvolvidas pelo
governo da época, os índices de crescimento do Brasil foram baixos.
Nesse sentido, notamos que o candidato constrói um caminho
argumentativo que, ao mesmo tempo em que desconstrói a argumentação de
Soraya, interage com um público com o qual tem familiaridade, além de fazer
críticas à condução do país pelo presidente da época, seu grande opositor na
eleição presidencial.
Excerto 5

Lula: ele não vai ter emprego verde-amarelo... ele vai ter emprego EFETIVAMENTE... sabe↗
conquistando o (terminal) remunerado... com direito a férias... porque esse país acabou a
escravidão em mil oitocentos e oitenta e oi::to... não é POSSÍ::VEL... que o trabalhador hoje...
fique trabalhando como se fosse um entregador de comida↗ sentindo o cheiro da comi::da... sem
poder comprar o que comer↗ ... é preciso que a gente LEGALI::ZE a vida desse cidadão↗
transforma-lo num pequeno empreendedor↗ é dar cidadania pra ele... é fazer com que ele tenha
direito quando a sua moto QUE::bra quando seu carro QUE::bra ... quando a sua bicicleta
QUE::bra... e é ISSO que nós vamos fazer ... porque é ISSO que nós sabemo fazer... e é ISSO que
nós fizemos a vida intei::ra... NADA de escravidão↗ ... no século vinte e um... é preciso voltar↗
ao tempo da liberdADE... que eu aprendi desde o momento sindical...

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Com o excerto, podemos perceber que o então candidato Lula
continua fazendo uma articulação de contra-argumentação em relação ao 303
discurso de Soraya, ao mesmo tempo em que atinge também o governo
Silva
Bolsonaro. O candidato informa que os brasileiros terão emprego pleno e não Estevam
o emprego “verde-amarelo”, referência a um discurso defendido por
segmentos do governo de Bolsonaro, no qual as pessoas teriam acesso a um
tipo de emprego com menos direitos trabalhistas. A fim de valorar ainda mais
a necessidade de conciliação entre trabalho e direitos, Lula faz um
interdiscurso e relembra o ano de abolição da escravidão no Brasil, ou seja,
para ele, emprego e garantia de direitos devem estar sempre juntos.
Lula ainda traz à cena enunciativa novos personagens. Trata-se das
pessoas que trabalham por intermédio de aplicativos e não possuem nenhum
tipo de garantia trabalhista. Para o atual presidente, seria necessário legalizar
a profissão, com o fito de que esses trabalhadores tenham acesso à cidadania.
Notamos, nesse fragmento, que Lula afasta os discursos liberais que
defendem que essas pessoas continuem com essas formas de trabalho mesmo
que não exista regulação e fomenta a interação com esse público, fazendo
com que ele se torne uma opção de voto, que conhece essa realidade e tentará,
se eleito, transformá-la.
Ao final do seu dizer, Lula utiliza termos valorativos para enaltecer o
trabalho que realizou nos governos passados e até mesmo antes disso em
relação à luta por direitos: “e é ISSO que nós vamos fazer ... porque é ISSO
que nós sabemo fazer... e é ISSO que nós fizemos a vida intei::ra... NADA
de escravidão↗ ... no século vinte e um... é preciso voltar↗ ao tempo da
liberdADE... que eu aprendi desde o momento sindical”. Diante disso,
percebemos que, por meio de uma gradação que possui orientação
argumentativa, o então candidato afirma que irá se fazer cumprir os direitos
trabalhistas porque é isso que sempre fez e é isso que sabe fazer, articulando
tais noções desde o período em que foi líder sindical.
Com isso, notamos que, em relação aos movimentos valorativos,
primeiro, Lula desconstrói o argumento de Soraya em relação à inovação no
campo dos impostos, depois, apela ao seu público, mostrando os feitos de seu
trabalho anterior, e por fim, trata de outras temáticas atuais e conflituosas
ligadas ao mundo do trabalho, fazendo, com isso, um contraponto ao
comportamento do seu principal rival na disputa.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Figura 05- relações dialógicas estabelecidas no discurso de Lula

304

Silva
Estevam

Fonte: os autores

O candidato à presidência Lula se refere em primeiro plano à


candidata Soraya Thronicke, com quem está debatendo, mas também está
interagindo com os mediadores do debate e com os eleitores em geral.
Além disso, Lula dialoga com os eleitores de 30 anos atrás, evocando
também as ideias de Cintra para dizer que as propostas dele já fracassaram e,
assim, contra-argumentar Thronicke.
O candidato também evoca a classe trabalhadora citada em seu
discurso para estabelecer uma aproximação de ideais por meio da lembrança
das ações benéficas realizadas para essas classes no seu governo passado. Ao
fazer isso, Lula também pretende causar uma identificação e obter votos para
a eleição que aconteceria no mês de outubro de 2022.
Lula evoca, ainda, as políticas de fomento ao emprego promovidas
pelo atual presidente, como já relatado.
Por fim, o candidato realiza uma comparação da atual situação de
alguns trabalhadores com a época da escravidão, evocando, portanto, o
diálogo com a escravidão antiga e atual, para tratar do trabalho do seu partido,
por meio do pronome em primeira pessoal “nós”, como nos trechos “ISSO
que nós vamos fazer ... porque é ISSO que nós sabemo fazer... e é ISSO que
nós fizemos a vida intei::ra”. Dessa maneira, constrói o discurso de que eles
são capazes de mudar a atual realidade brasileira.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Considerações finais
305
O nosso trabalho partiu da seguinte questão norteadora: como ocorre
a arquitetônica bakhtiniana no embate entre Lula e Soraya Thronicke no Silva
debate presidencial da TV Bandeirantes no primeiro turno das eleições? Para Estevam

isso, colocamos como objetivo analisar a arquitetônica bakhtiniana presente


em um trecho do embate entre Lula e Soraya Thronicke no debate, sabendo
que o conceito bakhtiniano é responsável por organizar o texto em torno de
um posicionamento ideológico e axiológico do autor-criador situado no
tempo e espaço e que ele envolve os conceitos de gênero do discurso, esfera
discursiva, sujeitos enunciadores, cronotopo, avaliação social e valoração,
além de outros.
Diante disso, por uma questão didática, abordaremos cada um desses
conceitos a seguir:
a) gênero do discurso - o conteúdo temático se resume aos
candidatos se criticarem e se promoverem no debate. Soraya acusa
o PT e Lula de serem ultrapassados e se promove com a ideia do
mundo digital e imposto único, enquanto Lula acusa Soraya de
não ser informada sobre a história política brasileira, por propor
algo ultrapassado, e se promove afirmando que seu governo
ajudou a classe trabalhadora e continuará ajudando-a, afastando-a
da escravidão moderna. Sobre o estilo, Thronicke faz uso de
linguagem formal, para construir um ethos de sapiência, e Lula
faz uso de uma coloquialidade na oralidade, para construir um
ethos de trabalhador. Por fim, sobre a estrutura composicional,
vimos que ela obedece a seguinte ordem: exórdio dos
mediadores→ explicação do debate→ desenvolvimento do
debate→ perguntas e respostas acerca dos planos de governo→
confronto direto→ questões dos jornalistas → confronto direto→
perguntas programáticas → considerações finais.
b) esferas discursivas - o debate em questão envolve o discurso
jornalístico, o discurso político e o discurso midiático.
c) sujeitos enunciadores - os sujeitos participantes são: Soraya Vieira
Thronicke, senadora eleita pelo Mato Grosso do Sul, com viés
conservador, e Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente do país
por duas vezes, sendo o representante máximo do Executivo entre

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


2003 a 2010 e inocentado de acusações em esquema de corrupção
pela operação Lava-Jato. 306

d) Cronotopo - o espaço em que esse momento de interação ocorreu Silva


foi em São Paulo, nos estúdios da rede de televisão Bandeirantes Estevam
e também no espaço virtual pelas redes sociais, e o tempo datado
é 28 de agosto de 2022, sendo veiculado na mídia a partir das 21
horas, mas, devido a estar na internet, pode ser acessado em
qualquer momento.
e) avaliação social - Soraya segue a avaliação de que o modelo
defendido por Lula e por seus economistas são ultrapassados, e
Lula segue a avaliação de que a agenda implementada pelo seu
partido é reconhecida pelos grupos socialmente vulneráveis.
f) valoração - em relação à candidata Soraya: ao acusar o PT de
corrupto, faz um valoração de que o PT usurpou o dinheiro
nacional; ao acusar Lula de que o bom cenário social e econômico
só está nas suas propagandas políticas, faz uma valoração de que
ele é um mentiroso; ao exaltar o mundo digital e declarar que está
disposta a usá-lo, faz uma valoração de que a opção do candidato
oposto é arcaica; ao se promover com a proposta do imposto
único, faz uma valoração de que a proposta dela é forte e é bem
fundamentada em anos de estudo do economista Marcos Cintra.
Em relação ao candidato Lula: ao acusar a proposta do imposto único
de ultrapassada, faz uma valoração de que a oponente é desconhecedora da
história política do Brasil e não sabe que a proposta é ultrapassada; ao
ressaltar a ascensão da classe trabalhadora no seu governo, faz uma valoração
de que a seu modo de governar é eficaz e que se for eleito continuará sendo;
ao promover a ideia de “emprego pleno”, ao invés de “verde amarelo”, faz
uma valoração de desqualificação da proposta do candidato Bolsonaro,
também presente no debate; ao se promover como gerador de empregos para
a classe trabalhadora e ao aproximar a imagem de escravidão do governo
atual, faz uma valoração de que, no seu governo, essa classe terá mais
empregos e desqualifica o governo atual, que promove o sofrimento dessa
classe como a de um escravo.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Referências
307
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 2016. Silva
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução Valdemir Miotello Estevam
e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
MELO, Rosineide de; ROJO, Roxane. A arquitetônica bakhtiniana e os multiletramentos.
In: NASCIMENTO, Elvira Lopes; ROJO, Roxane. (Orgs.) Gêneros de texto/discurso e os
desafios da contemporaneidade. Campinas/SP: Pontes Editores, 2. edição, 2016. p. 249-
271.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. (Org.). O desafio do conhecimento: pesquisa
qualitativa em saúde. 14ª ed. Rio de Janeiro: Hucitec, 2014.
MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Pesquisa interpretativista em linguística aplicada: a
linguagem como condição e solução. DELTA, v. 10, n. 2, p. 329-338, 1994. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/index.php/delta/article/view/45412 Acesso em: 13 out. 2023.
ROJO, Roxane; MELO, Rosineide de. Letramentos contemporâneos e a arquitetônica
Bakhtiniana. DELTA, v. 33. n. 4, p. 1271-1289, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-
445057781725543649

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Apêndice
308

Silva
Estevam

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


309

Cerqueira

Discursos presidenciais do
Dia Internacional da Mulher
(2014 e 2022)
International Women's Day presidential discourses
(2014 and 2022)

Larissa Vieira de Cerqueira 1 Introdução


Universidade de São Paulo, Brasil
No Brasil, as mulheres são
51,1% da população, segundo o
Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE, 2022, p. 4) e
ainda sofrem com a falta de direitos básicos, como por exemplo, as restrições
à sua participação política e cultural, a negação e o ataque de setores
conservadores ao direito de aborto, a desigualdade salarial, a violência física
e psicológica e o feminicídio, isto é, a morte pelo simples fato de serem
mulheres. Nesse espaço social, cabe à presidência da República garantir os
direitos da mulher já estabelecidos e aprimorá-los.
A motivação pela pesquisa dos pronunciamentos presidenciais em
comemoração ao Dia Internacional da Mulher é enraizada em dois
encantamentos e em dois incômodos. Os encantamentos são: i) a
comemoração de 8 de março simboliza a luta histórica em prol dos direitos
feministas em muitos países do Ocidente e do Oriente; ii) as falas e ações dos
presidentes em pronunciamentos políticos geram impacto (positivo ou
negativo) na vida pública em nível nacional. Os incômodos são: i) o
sofrimento das mulheres mapeado pelas estatísticas: 1.319 feminicídios e

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


56.098 estupros foram registrados no Brasil em 2021 (Bueno, 2022, p. 3-8),
sem contar as ocorrências não registradas; ii) os posicionamentos 310
presidenciais sexistas – que atribuem padrões de aparência e de
Cerqueira
comportamento a serem seguidos pelas mulheres – ou machistas – que
representam a mulher como submissa/inferior ao homem – exercem
influência direta sobre os discursos populares acerca da mulher, que
reproduzem os valores presidenciais em micro ou macroviolências
cotidianas.
O corpus selecionado é composto pela saudação e pela apresentação
do tema de dois pronunciamentos em vídeo: i) da Presidenta da República
Dilma Rousseff (8/3/2014) 1 e ii) do Presidente da República Jair Bolsonaro
(8/3/2022) 2, ambos disponíveis no canal do Youtube TV BrasilGov e
transcritos pela autora a partir das indicações do projeto da Norma Urbana
Culta (NURC) (Preti, 1999, p. 19-20). O objetivo é analisar os momentos de
saudação e de apresentação do tema dos pronunciamentos oficiais dos
presidentes Rousseff e Bolsonaro por ocasião do 8 de março, com foco nas
diferentes formas de discurso do outro presentes na singularidade dos
enunciados transcritos e visuais, considerando as marcas sócio-histórico-
ideológicas, muitas vezes, antagônicas em torno do papel da mulher na
sociedade.
Os critérios de escolha do objeto são os três seguintes: i) registro dos
pronunciamentos em vídeo no canal oficial do governo no Youtube; ii)
posicionamentos sócio-políticos em oposição direta, dada a polarização
brasileira, em que as intenções de votos são movidas pelos polos petismo -
relativo ao Partido dos Trabalhadores (PT) - e antipetismo ou bolsonarismo;
iii) períodos de tensões em torno dos anos de 2014 e de 2022, uma vez que
ambos foram momentos de eleições, isto é, de fim de mandato de Rousseff e
de Bolsonaro respectivamente. Além disso, 2014 marcou o início de uma
crise econômica e foi o ano seguinte à onda de manifestações conhecida
como Jornadas de Junho. 2022 foi o ano em que o público feminino rejeitava
Bolsonaro, como mostravam pesquisas eleitorais.
Três perguntas norteiam a análise: i) que posicionamentos são
mobilizados pelos presidentes a partir das palavras alheias que recuperam em

1
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8RUPjbvitSU. Acesso em: 21 jun. 2022.
2
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uRZ5JDgh1hw&t=1:10:17. Acesso em: 21
jun. 2022.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


seus enunciados? ii) Que materialidades linguístico-semiótico-discursivas –
verbais (léxico, entonação etc.) e visuais (cenário, vestimenta, expressão 311
facial) – constroem a representação da mulher na esfera pública? iii) Que
Cerqueira
consequências e tensões esses discursos presidenciais causam quanto à luta
feminista? Buscando responder a tais perguntas, mobilizamos, a seguir, os
pressupostos teórico-metodológicos que fundamentarão a análise.

2 Ideologia, Heterodiscurso e Verbo-Visualidade:


uma trama teórico-metodológica
Nesta seção, são apresentados os conceitos de ideologia,
heterodiscurso e verbo-visualidade. O objetivo é tecer uma trama teórico-
metodológica entre as diferentes noções, mostrando que o posicionamento
ideológico pode se materializar, entre outras formas, na mobilização da voz
do outro e no signo. Ambas as materializações ideológicas ocorrem no
âmbito verbo-visual, de forma que a verbo-visualidade é constitutiva tanto
do heterodiscurso, quanto do signo ideológico.

2.1 Ideologia: a valoração nas lentes bakhtinianas


Todo enunciado, na concepção do Círculo de Bakhtin, é ideológico
em dois sentidos: i) se dá nas esferas/campos ideológicos, como o político, o
religioso, o artístico, o filosófico, o ético, etc.; ii) é valorativo, nunca neutro
(Faraco, 2009, p. 46-47). Portanto, as ações políticas e sua influência social
são de natureza ideológica.
A palavra ideologia, segundo Faraco (loc. cit.), não tem conotação
negativa nos estudos bakhtinianos, diferentemente do que ocorre em algumas
teorias marxistas, que abordam o sentido do termo como o mascaramento do
real. O autor, ainda, aponta que, na obra do Círculo de Bakhtin, “algumas
vezes, o adjetivo ideológico aparece como equivalente a axiológico” (Faraco,
loc. cit., grifo do autor). A axiologia se refere à posição valorativa inerente a
todo enunciado, que traz em si valores ideológicos do tempo-espaço e da
cultura que o contextualizam.
As bases dos campos ideológicos estão na linguagem, isto é,
materializam-se no signo, é o que Faraco (loc. cit.) ressalta a partir de
Volóchinov ([1929] 2017). O teórico da literatura russa Medviédev vai na
mesma direção ao afirmar que:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Cada produto ideológico e todo seu “significado real” não estão nem no
mundo interior e nem no mundo isolado das ideias e dos sentidos puros,
mas no material ideológico disponível e objetivo, na palavra, no som, 312
no gesto, na combinação das massas, das linhas, das cores, dos corpos
vivos, e assim por diante. (Medviédev, [1928] 2019, p. 50). Cerqueira

A partir do excerto de Medviédev, fica claro que a materialização da


ideologia do signo não ocorre apenas no signo verbal, mas no verbo-visual e
no sonoro, porque está nos gestos das pessoas, nas cores, no som, etc.
O estudo em torno da materialidade linguística no discurso em
Volóchinov (op. cit.) se dá sob dois eixos: i) signo ideológico, desenvolvido
na parte I da obra Marxismo e filosofia da linguagem e ii) alteridade
constitutiva do discurso, desenvolvido nas partes II e III. Ambos os eixos
estão ligados às formas de transmissão do discurso alheio (Clark; Holquist,
[1994] 1998, p. 233).
Os conceitos de Volóchinov representam um rompimento com a
noção de língua como um sistema abstrato e imanente. A criação do conceito
de signo ideológico, segundo Grillo (2017, p. 52-59), parte de uma síntese
dialética (em sua etimologia, como arte da disputa fixada na prática política)
entre o idealismo kantiano e a sociologia marxista. A pesquisadora explica
que Volóchinov defende uma aproximação entre o individual e o social, uma
vez que a consciência do sujeito é formada a partir dos signos ideológicos,
socialmente construídos.
Baseado no materialismo histórico marxista, Volóchinov ([1929]
2017, p. 91; 103-104) busca refutar o que denomina de objetivismo abstrato
do estruturalismo, da corrente linguística saussureana, mostrando que a
língua/linguagem é social e ideológica. O idealismo kantiano é tomado por
Volóchinov, juntamente do psicologismo, para se opor a um subjetivismo
idealista, que situaria a ideologia na consciência individual, sem situá-la
socialmente. O autor defende, por outro lado, o discurso interior, de forma
que a consciência individual é fruto do social e, por isso, é ideológica, porque
a consciência é constituída por signos interindividuais, isto é, é preciso de,
pelo menos, dois indivíduos socialmente organizados para que se tenha
língua e consciência (Ibid., p. 94-97). A língua é o instrumento ideológico
das tensões entre o eu e o outro, por isso, é dialógica.
Dessa forma, podemos identificar a ideologia no enunciado ao situar
sua esfera/campo, ao mapear o signo ideológico materializado nas escolhas
lexicais, na verbo-visualidade e na entonação e ao investigar as formas de
transmissão do discurso do outro.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


2.2 Heterodiscurso: a materialização da ideologia
313
Tal como discutido na seção anterior, Volóchinov ([1929] 2017)
defende que as formas de transmissão do discurso alheio são materializações Cerqueira
da ideologia. Do mesmo modo, Bakhtin ([1930-1936] 2015, p. 135) afirma:
“o processo de formação ideológica do homem é um processo de assimilação
seletiva de palavras dos outros”. Considerando que a expressão
ideológica/axiológica do sujeito ocorre por meio da mobilização do
heterodiscurso, é necessário estudar esse fenômeno e suas formas de se
materializar linguisticamente.
O heterodiscurso é entremeado pelas relações dialógicas. De acordo
com Bakhtin, são

manifestações específicas do discurso que são determinadas por uma


diretriz dialógica desse discurso entre enunciados alheios no âmbito da
mesma língua, entre outras “línguas sociais” no âmbito da mesma
língua nacional e, por último, entre outras línguas nacionais no âmbito
da mesma cultura, do mesmo universo socioideológico. (Ibid., p. 47).

A partir do excerto acima, entende-se que um enunciado pode


incorporar a palavra do outro advinda da mesma língua, de variações
linguísticas diversas a do autor, de diferentes línguas de uma mesma nação
ou de línguas de nações diferentes. Bakhtin (Ibid., p. 66) defende que “em
cada dado momento de sua existência histórica a língua é inteiramente
heterodiscursiva” na coexistência entre diferentes posições socioideológicas,
diferentes grupos, idades diversas, etc.
Ao estudar o romance humorístico inglês, o filósofo da linguagem
russo identifica a inserção do heterodiscurso no discurso do autor sob quatro
formas. São elas: i) discurso do outro em forma dissimulada; ii) construção
híbrida; iii) motivação pseudo-objetiva; iv) gêneros intercalados (Bakhtin,
[1930-1936] 2015, p. 79-109).
No discurso do outro em forma dissimulada, não há marcas
delimitando a palavra do autor e a palavra do outro, tal como ocorre no
discurso indireto ou direto. A voz do outro é identificada em nuances,
principalmente, lexicais, que distinguem o modo de falar do autor e do outro,
seja pelas diferenças de classes sociais, pelas diferenças de profissão, de
idade, etc.
Na construção híbrida, o discurso é de um só falante, mas se mesclam
duas maneiras discursivas, dois estilos, duas linguagens, duas perspectivas

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


semânticas e axiológicas. Um exemplo é a ironia, em que um só falante
assume uma posição bivocal de oposição que, muitas vezes, gera o humor. 314

A motivação pseudo-objetiva introduz o discurso alheio por meio de Cerqueira


conjunções subordinativas (Ibid., p. 85), principalmente, adverbiais, como as
causais “porque”, “por causa de”; concessivas “embora”, “apesar de”;
conformativas “conforme”, “segundo”.
Por último, outra forma de introdução do heterodiscurso no romance
são os gêneros intercalados. Trata-se de gêneros discursivos mobilizados
dentro de um enunciado também materializado em outro gênero. Por
exemplo, uma carta dentro de um romance; um artigo de opinião dentro de
um livro didático; etc. Bakhtin (Ibid., p. 109) defende que “todos esses
gêneros que integram o romance inserem nele as suas linguagens, e por isso,
estratificam a sua unidade linguística e, a seu modo, aprofundam a sua
natureza heterodiscursiva”.
Para entender o heterodiscurso no romance, segundo o filósofo da
linguagem, é necessário compreender o conceito de bivocalidade:

o heterodiscurso introduzido no romance (quaisquer que sejam as


formas de sua introdução) é discurso do outro na linguagem do outro,
que serve à expressão refratada das intenções do autor. A palavra de
semelhante discurso é uma palavra bivocal especial. Ela serve ao
mesmo tempo a dois falantes e traduz simultaneamente duas diferentes
intenções: a intenção direta da personagem falante e a intenção
refratada do autor (Ibid., p. 113).

A bivocalidade, dessa forma, expressa a voz de dois falantes, com


duas visões de mundo diferentes. Quando o autor mobiliza o discurso do
outro, esse refrata seu horizonte axiológico.
Depois de abordar o heterodiscurso no romance, o autor discorre
acerca do falante no romance. Ele afirma: “o peso do dia a dia no tema do
falante no romance é imenso [...] o que mais se fala no dia a dia é sobre o que
dizem os outros” (Id., [1930-1936] 2015, p. 131). Ao discorrer sobre o
cotidiano, o autor traz o exemplo do aluno que transmite a assimilação do
discurso do outro, seja a assimilação de um texto, de uma regra ou de um
modelo. Diferentemente dessa diretriz pedagógica, Bakhtin explica que

ganha um significado ainda mais profundo e substancial a diretriz


voltada para a assimilação do discurso do outro no processo de
formação ideológica do homem, na própria acepção do termo. Aqui, o
discurso do outro já não atua como informação, instrução, regras,
modelos, etc.; ele procura determinar os próprios fundamentos da nossa

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


relação ideológica com o mundo e do nosso comportamento, atua aqui
como um discurso autoritário e como discurso interiormente
persuasivo. (Bakhtin, [1930-1936] 2015, p. 135-136) 315

Dessa forma, o discurso autoritário não se trata da assimilação Cerqueira


pedagógica do discurso do outro, mas da assimilação ideológica, que forma
o posicionamento, a axiologia de dado enunciado. Ele exemplifica que o
discurso autoritário é o “religioso, político, moral, o discurso do pai, dos
adultos, dos mestres, etc.” e explica que é um tipo de discurso que “exige de
nós reconhecimento e assimilação, impõe-se a nós independentemente do
grau que, para nós, tem sua persuabilidade interior: já se pré-encontra por
natureza autoritária” (Ibid., p. 136). É, portanto, um discurso que,
inerentemente, obriga sua assimilação.
Além de tratar acerca do heterodiscurso no romance e do falante no
romance, Bakhtin discorre sobre o objeto de um discurso, estabelecendo uma
relação dialógica entre esse e o discurso do outro, uma vez que “conceber seu
objeto pelo discurso é um ato complexo: por um lado, todo objeto
‘precondicionado’ e ‘contestado’ é elucidado; por outro, é obscurecido pela
opinião social heterodiscursiva, pelo discurso do outro sobre ele”. (Ibid., p.
49). Nesse trecho, o autor afirma que todo objeto já foi anteriormente
desenvolvido por algum discurso. Dessa forma, é impossível não estabelecer
diálogos com heterodiscursos. “Só o Adão mítico, que chegou com sua
palavra primeira ao mundo virginal ainda não precondicionado, o Adão
solitário conseguiu evitar efetivamente até o fim essa orientação dialógica
mútua com a palavra do outro no objeto” (Ibid., p. 51). Os enunciados
concretos são situados histórica e socialmente, de forma que não conseguem
evitar o diálogo social com a consciência socioideológica existente no
entorno de um objeto.

O discurso voltado para seu objeto entra nesse meio dialogicamente


agitado e tenso de discursos, avaliações e acentos alheios, entrelaça-se
em suas complexas relações mútuas, funde-se com uns, afasta-se de
outros, cruza-se com terceiros; e tudo isso pode formar com fundamento
o discurso, ajustar-se em todas as suas camadas semânticas, tornar
complexa sua expressão, influenciar toda a sua feição estilística.
(Bakhtin, [1930-1936] 2015, p. 48).

Portanto, todos os enunciados são heterodiscursivos. As marcas


ideológicas de um enunciado, em suas tensões com outros enunciados, são
materializadas por meio de recursos semânticos e estilísticos.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


A partir das considerações em torno dos conceitos de ideologia e de
heterodiscurso, este trabalho se propõe a analisar os enunciados verbo- 316
visuais de Dilma Rousseff e de Jair Bolsonaro, considerando quais formas de
Cerqueira
discursos do outro são mobilizadas no momento em que o Dia da Mulher é o
objeto de cada um dos enunciados. Esses dados linguístico-discursivos das
vozes alheias permitem mapear o horizonte axiológico dos presidentes sobre
a mulher, as tensões entre as vozes sociais e as consequências, isto é, de que
forma o discurso presidencial influencia a luta feminista e os discursos
populares acerca do papel da mulher.
Para que essa análise se faça completa, sem deixar de lado nenhum
dos elementos que constitui, materialmente, a ideologia dos enunciados a
serem analisados, é necessário compreender o conceito de verbo-visualidade,
a ser desenvolvido a seguir.

2.3 Verbo-visualidade: a totalidade do enunciado


concreto
Cada um dos pronunciamentos presidenciais será analisado considerando a
verbo-visualidade do vídeo, uma vez que tratá-lo somente em sua materialização
verbal seria excludente. Brait explica:

[...] a verbo-visualidade se apresenta como constitutiva,


impossibilitando o tratamento excludente do verbal ou do visual e,
especialmente, das formas de articulação assumidas por essas
dimensões para produzir sentido, construir imagens de enunciadores e
enunciatários, circunscrever destinatários, etc.

Assim sendo, a linguagem verbo-visual será aqui considerada uma


enunciação, um enunciado concreto articulado por um projeto
discursivo do qual participam, com a mesma força e importância, a
linguagem verbal e a linguagem visual. Essa unidade significativa, essa
enunciação, esse enunciado concreto, por sua vez, estará constituído a
partir de determinada esfera ideológica, a qual possibilita e dinamiza a
existência, interferindo diretamente em suas formas de produção,
circulação e recepção. (Brait, 2010, p. 194).

O pronunciamento presidencial como acontecimento da vida da


linguagem inserido na esfera ideológica política, sendo constitutivamente
verbo-visual materializa sua ideologia/axiologia sobre o objeto Dia
Internacional da Mulher na linguagem verbal e na linguagem visual. A
concepção de texto assumida a partir desse raciocínio de Brait (2010, p. 195)
é a “semiótico-ideológica”:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Assim concebido, o texto deve ser analisado, interpretado, reconhecido
a partir dos mecanismos que o constituem, dos embates e das tensões
que lhe são inerentes, das particularidades da natureza de seus planos 317
de expressão, das esferas em que circula e do fato que ostenta,
necessariamente, a assinatura de um sujeito. (Ibid., p. 195). Cerqueira

O sujeito presidente, a esfera/campo ideológico político e as tensões


são pilares da análise verbo-visual do discurso presidencial.

[...] o enunciado/texto verbo-visual caracteriza-se como dimensão


enunciativo-discursiva reveladora de autoria (individual ou coletiva),
de diferentes tipos de interlocuções, de discursos, evidenciando
relações mais ou menos tensas, entretecidas pelo face a face promovido
entre verbal e visual, os quais se apresentam como alteridades que, ao
se defrontarem, convocam memórias de sujeitos e de objetos,
promovendo novas identidades (Id., 2013, p. 62).

A partir desse excerto, entendemos que o verbo-visual revela o


horizonte axiológico do autor do enunciado e seus embates. Além disso, o
verbal e o visual, embora indissociáveis para a interpretação de dado
enunciado, podem expressar sentidos complementares ou dissonantes entre
si. Ambos os movimentos, de complementação e de negação entre o verbal e
o visual, são imprescindíveis para a interpretação do horizonte axiológico de
um enunciado.
Conclui-se que a ideologia de um enunciado se constrói em sua verbo-
visualidade, materializada tanto no signo ideológico em suas multissemioses,
quanto no heterodiscurso, conforme já discutido. Por isso, as categorias de
análise mobilizadas para mapear o posicionamento dos presidentes diante do
papel social da mulher são as seguintes: i) formas de transmissão do
heterodiscurso (discurso do outro sob forma dissimulada, construção híbrida,
motivação pseudo-objetiva e gêneros intercalados); ii) signo ideológico em
sua acepção verbo-visual, incluindo gestos, entonação da palavra oralizada,
cores, sons, etc.

3 Pronunciamentos presidenciais do 8 de março:


da mulher da periferia aos militares
O corpus selecionado para análise é composto pela saudação e pela
apresentação do tema de dois pronunciamentos em vídeo: i) da Presidenta da
República Dilma Rousseff (8/3/2014) e ii) do Presidente da República Jair
Bolsonaro (8/3/2022).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Inicia-se, por ordem cronológica, a análise do pronunciamento de
Dilma Rousseff. A primeira mulher a se tornar presidenta da república do 318
Brasil, pelo Partido dos Trabalhadores (PT), foi eleita em 31 de outubro de
Cerqueira
2010 com 56,05% dos votos e tomou posse em 1 de janeiro de 2011. Durante
seu terceiro ano de mandato, em 2013, a popularidade do governo caiu após
a onda de manifestações por mais de 500 cidades do Brasil, conhecida como
Jornadas de Junho. Entre outras questões, a população protestava contra o
preço da passagem de transporte público e contra os gastos empenhados para
que o Brasil sediasse a copa do mundo.
O ano do pronunciamento a ser analisado, 2014, foi marcado pelo final
do primeiro mandato de Rousseff em ano de eleições. A queda da
popularidade de seu governo, embora significativa, não afetou a disputa pela
presidência. A presidenta foi reeleita com 51,64% dos votos, contra 48,36%
de Aécio Neves. Além disso, foi no ano de 2014 que uma crise econômica
começava a assolar o país. Entre os pesquisadores da área de economia –
Oreiro (2017), Balassiano (2018), Rovere (2018), Paula (2019) –, é consenso
de que a crise em questão seja referida como a grande recessão brasileira.
Seu início ocorreu no segundo trimestre de 2014, e seu final, no quarto
trimestre de 2016.
O pronunciamento a ser analisado circula nos campos político e
midiático. Foi pré-gravado no Salão Nobre do Palácio da Alvorada, a
residência presidencial, o que configura um espaço que, ao mesmo tempo que
é federal, é também privado, aproximando Rousseff de seu público. Rousseff
fala de sua casa para a casa de milhões de mulheres.
Provavelmente, antes da gravação do vídeo, ocorreu um planejamento
escrito do texto. Durante a filmagem, a presidenta teve à disposição um
teleprompter, equipamento acoplado à câmera, exibindo o texto a ser lido. O
vídeo foi editado, isto é, há cortes perceptíveis no âmbito verbo-visual. A
transmissão ocorreu em todas as emissoras de rádio e de televisão nacionais
e, posteriormente, o vídeo foi postado no Youtube da TV BrasilGov, veículo
gerido pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC), pública, federal.
A transcrição da saudação e da apresentação do tema do
pronunciamento pode ser conferida a seguir:
10”
MEUS queridos brasileiros… e MUIto especialmente… MInhas queridas brasiLEIras…
hoje… Dia Internacional da mulher… podemos dizer… que o Brasil… tem MUIto a
comemorar… e MUIto a fazer… as mulheres… são a MAIOR FORça emerGENte no

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


mundo… e o Brasil está contribuindo… de forma DEciSIva… para que essa força se amplie
e se torne cada vez MAIS presente… das VINte maiores economias mundiais… somos…
proporcionalmente… a que tem MAIS mulheres empreendedoras… muLHEres que Abrem 319
seus PRÓprios neGÓcios… e enfrentam… com coRAgem e competência… as dificuldades
para crescer e prosperar… nos ÚLtimos onze anos… das TRINta e seis miLHÕES de Cerqueira
pessoas que saíram da exTREma pobreza… mais da metade são mulheres… igualMENTE
são mulheres… MAIS da metade das quarenta e duas miLHÕES de pessoas que alcançaram
a classe média… o Brasil… criou nos últimos TRÊS anos… quatro milhões e quinhentos
MIL empregos… mais da metade desses empregos… com carteira assinada… foram
conquisTAdos pelas mulheres… por ESTE e OUtros motivos… podemos dizer… que a
mulher é a nova FORça que MOve o Brasil

Dilma Rousseff inicia o pronunciamento saudando todos os brasileiros


e colocando as mulheres em instância especial quando diz “MUIto
especialmente… MInhas queridas brasiLEIras…”. As ênfases na entonação
e as escolhas lexicais em “minhas queridas” reiteram a valoração da mulher.
Por último, é interessante notar que ao saudar as mulheres, a presidenta sorri,
tal como mostra a captura do momento do vídeo a seguir:

Figura 1 – Captura de vídeo em que a presidenta sorri enquanto diz “minhas


queridas brasileiras” – 14 segundos

Fonte: canal TV BrasilGov no Youtube, 2014.

Na captura do vídeo, ainda é relevante mencionar que ao fundo, o


Salão Nobre do Palácio da Alvorada encontra-se borrado, de forma que o
foco se mantenha na figura da presidenta. Ainda assim, é possível ver a
bandeira e o brasão da república à esquerda. A presidenta está sentada à mesa
diante da câmera. Ela está vestida com um terno azul. De acordo com Silveira
(2015, p. 123), o azul é a “cor do infinito, do longínquo, do sonho; cor da

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


fidelidade, do amor, da fé; cor do frio, da frescura, da água; cor real e
aristocrática”. Além disso, causa sensações em quem vê essa cor: 320

sensação de paz e tranquilidade do céu; sensação de infinito espacial, Cerqueira


expandindo planos e superfícies; sensação de estar num mundo de
sonho, criado de acordo com os nossos desejos, perfeito; sensação de
segurança e conforto da família; sensação de frio, inverno; sensação de
pureza, transparência, sensação de luxo, requinte, sofisticação, realeza.
(Ibid., p. 123-124).

Os brincos de pérola e a maquiagem com tons nudes são marcas de


elegância e de discrição. O delineado ao redor dos olhos, por outro lado, traz
um elemento de força, ao evocar a origem egípcia desse tipo de maquiagem,
que recorda, principalmente, a rainha Cleópatra.
Além disso, assim como grande parte das mulheres, Rousseff não
figura um padrão de beleza feminino como é imposto socialmente: magra,
alta, de cabelo comprido e usando roupas impostas ao universo feminino.
Dessa forma, ela oferece representatividade para as diversas mulheres que
não se encaixam nesse padrão de beleza imposto. Em discursos
extremamente conservadores, o uso do terno e do cabelo curto são apontados
como estereótipos da masculinidade.
Esses aspectos visuais somam-se à dimensão verbal do
pronunciamento, no qual, após a saudação, a presidenta diz “hoje… Dia
Internacional da Mulher… podemos dizer… que o Brasil… tem MUIto a
comemorar… e MUIto a fazer…”. Nesse ponto, Rousseff faz uma espécie de
síntese daquilo que o Dia Internacional da Mulher representa para ela: a luta
pela causa e pelos direitos feministas, defendendo que há conquistas a serem
comemoradas e há trabalho a ser feito. Há dois elementos que permitem
interpretar que as conquistas às quais a presidenta se refere aqui são ações
alcançadas pelo seu próprio governo: i) o sujeito da oração que ela profere é
“o Brasil”, o que remete ao governo federal sob presidência dela; ii) nas
partes seguintes do pronunciamento, que não serão aqui analisadas por uma
questão de recorte, Rousseff cita um conjunto de políticas públicas adotadas
pelo seu governo em defesa da causa da mulher. A entonação enfática no
advérbio “MUIto” mostra a importância que Rousseff atribui a essas ações
que, segundo ela, precisam ser comemoradas. Além disso, as pausas em sua
fala parecem indicar ênfase, segmentando elementos em foco como “Dia
Internacional da Mulher”, “Brasil”, “MUIto a comemorar” e “MUIto a
fazer”.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Ao mesmo tempo em que há autodefesa de seu governo, o tom não se
finda em um autoelogio puro. A presidenta quer mostrar sua preocupação 321
com a causa feminista, trazendo um tom realista de que ainda há medidas que
Cerqueira
precisam ser tomadas para o bem-estar da mulher. O advérbio de intensidade
“MUIto” reforça o quanto ainda é preciso fazer pela mulher. A escolha do
sujeito “o Brasil” em “o Brasil… tem MUIto a comemorar… e MUIto a
fazer…” parece ser ambígua. Diante de “tem MUIto a comemorar”, “o
Brasil” não representa somente um sujeito coletivo, os brasileiros, mas o
governo Rousseff, cujas conquistas são exaltadas. Porém, o sujeito “o Brasil”
diante de “[tem] MUIto a fazer” pode ser interpretado de forma que a
presidenta, de certa maneira, se isenta, pelo menos parcialmente, da
responsabilidade que tem sobre esse fazer pela mulher.
Ainda durante a apresentação do tema, no pronunciamento, mescla-
se, à voz da presidenta, em construção híbrida, a voz de uma especialista em
economia. De acordo com Bakhtin ([1930-1936] 2015, p. 80-84), na
construção híbrida, o discurso é de um só falante, mas se mesclam duas
maneiras discursivas, dois estilos, duas linguagens, duas perspectivas
semânticas e axiológicas. Podemos observar esse movimento na série de
dados estatísticos apresentados. O primeiro deles ocorre aos 38 segundos de
vídeo: “das VINte maiores economias mundiais... somos...
proporcionalmente... a que tem MAIS mulheres empreendedoras...”. Nos
trechos anteriores já analisados, Rousseff se referia às mulheres em uma
linguagem popular. Ao inserir os dados estatísticos e levá-los a uma
compreensão acessível, temos o caráter híbrido, bivocal. Esse tom de
economista adicionado à voz da presidenta parece ter sido escolhido pelo fato
de que uma mulher em um cargo de alto poder em uma sociedade de
patriarcado estrutural, como ocorre com Rousseff, tem sua capacidade posta
em cheque a todo o momento. Os dados estatísticos seriam uma forma da
presidenta provar sua capacidade.
Decerto que o desempenho do cargo de Presidência da República
exige conhecimento econômico. A presidenta é graduada em Economia e
desempenhou cargos executivos de função econômica, como presidir a
Fundação de Economia e Estatística (FEE). Ao proferir um pronunciamento
do Dia Internacional da Mulher, no entanto, não é esperado que sejam
tratadas questões econômicas. A questão da mulher é um tema cujas
possibilidades de subtópicos são infinitamente extensas. Porém, dado o
contexto de seu pronunciamento, em que Rousseff enfrenta o início de uma

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


grande crise financeira, seria natural esperar que a presidenta desse
acabamento ao conteúdo temático do enunciado assumindo o discurso de 322
uma especialista em economia. Percebemos que o tópico discursivo principal
Cerqueira
não é o Dia Internacional da Mulher, mas as conquistas econômicas de seu
governo relacionadas à mulher. Dessa forma, a mulher parece entrar como
um subtópico discursivo em seu pronunciamento.
Os dados estatísticos relacionados às conquistas econômicas das
mulheres no governo Rousseff são utilizados como recursos argumentativos
para sustentar a tese que diz que “o Brasil… tem MUIto a comemorar… e
MUIto a fazer…”. Trata-se de uma constante no discurso político o
convencimento do interlocutor acerca das conquistas alcançadas pelo
governo.
Além disso, a entonação enfática recai sobre o número “VINte” e
sobre “MAIS”, o que mostra o destaque dirigido aos números da voz
especialista. As pausas dão foco às palavras “somos” e “proporcionalmente”,
que são centrais na oscilação entre a proximidade afetiva e o distanciamento
profissional de um especialista, ambos os discursos convocados na
bivocalidade da presidenta. A escolha lexical do advérbio
“proporcionalmente” mostra o cuidado estatístico ao comparar dados de
diferentes países, o que reforça o discurso de um especialista sendo
convocado no discurso da presidenta. Por outro lado, o nós inclusivo na
conjugação do verbo “somos” aproxima a presidenta de seu interlocutor,
oscilando entre a distância profissional de um especialista e o acolhimento
da presidenta para as mulheres.
O trecho imediatamente em seguida ao analisado no parágrafo anterior
contém uma reformulação. Aos 46 segundos de vídeo, a presidenta reformula
“mulheres empreendedoras...” por “muLHEres que Abrem seus PRÓprios
neGÓcios...”. Essa reformulação por paráfrase introduz, em construção
híbrida, não mais a voz da especialista em economia, mas a voz popular, uma
tradução popular da palavra “empreendedoras”. Nesse trecho, quase todas as
palavras têm a sílaba tônica com uma entonação enfática, o que confere
destaque especial a esse trecho, que explica o que são mulheres
empreendedoras, o que pode mostrar que a presidenta dá importância à
aproximação que faz com a população.
A oscilação entre a voz da presidenta, a voz da especialista em
economia e a voz popular mostra que Rousseff está se dirigindo às mulheres

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


das classes sociais menos favorecidas para mostrar a elas que há
possibilidade econômica de ascensão social. Por um lado, ela empodera as 323
mulheres e, por outro lado, promove a situação econômica de seu governo,
Cerqueira
como quando afirma: “das TRINta e seis miLHÕES de pessoas que saíram
da exTREma pobreza... mais da metade são mulheres...”.
Retomando a esfera de circulação do vídeo, não é praxe que a fala
presidencial em torno do Dia Internacional da Mulher seja materializada no
gênero do discurso pronunciamento em cadeia nacional de rádio e de
televisão. Nos dois governos anteriores ao de Dilma Rousseff, Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), as
falas do Dia da Mulher materializaram-se no gênero discurso em cerimônia.
Essas cerimônias, em grande parte, ocorriam no Palácio do Planalto, em
Brasília, sede do trabalho do governo federal, e contavam com um auditório
e com os registros da imprensa. Diferentemente desses governos, Rousseff
escolhe que sua fala seja materializada em um pronunciamento em cadeia
nacional de rádio e de televisão gravado no Palácio da Alvorada, a residência
presidencial. O pronunciamento interrompe a programação habitual dos
veículos televisivos e de rádio em certo horário para ser assistido ou ouvido
na íntegra. Dessa forma, a escolha da presidenta por esse gênero do discurso
mostra uma aproximação das camadas mais populares, já que o
pronunciamento é amplamente divulgado em cadeia nacional e é gravado na
residência presidencial. Essa escolha, desse modo, reitera a interlocução de
Dilma com as mulheres das camadas menos favorecidas economicamente.
Isso porque, se o gênero escolhido fosse o discurso em cerimônia no Palácio
do Planalto, como fizeram os dois governos anteriores ao da presidenta, a
Empresa Brasil de Comunicação (EBC), pública, federal teria registrado e
veiculado a fala em seu canal televisivo e no Youtube intitulado TV
BrasilGov, o que não teria o mesmo alcance, devido ao nicho restrito de
espectadores desse veículo televisivo em específico e dada à precariedade de
acesso à internet ainda mais acentuada há quase 10 anos, em 2014.
Outro aspecto que traz chave de interpretação à interlocução de Dilma
com as mulheres brasileiras é a cor de sua vestimenta. Como já dissemos, o
azul representa tranquilidade, serenidade, calma, harmonia. Esse parece ser
o tom de Rousseff diante da crise: defende a situação econômica de seu
governo, buscando passar tranquilidade para o povo brasileiro,
principalmente, para a mulher, ao dizer que elas que conseguem ter ascensão
econômica, que conseguem sair da extrema pobreza. Além disso, como

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


vimos anteriormente, o azul passa sensação de sofisticação, realeza, o que
adiciona um elemento de empoderamento à presidenta e às mulheres que a 324
assistem e enxergam representatividade nela.
Cerqueira
Ao concluir a apresentação do tema, a presidenta defende “por ESTE
e Outros motivos... podemos dizer... que a mulher é a nova FORça que MOve
o Brasil...”. A ênfase de entonação nas palavras “força” e “move” reitera
aquilo que está sendo valorado: de um lado, a mulher empoderada, de outro
lado, o âmbito econômico. Retomando o elemento visual do corte de cabelo
curto e do terno que a então presidenta usa na ocasião, pode-se concluir que
também são elementos do empoderamento feminino. Isso porque rompem
com os padrões de beleza impostos sobre as mulheres: ser magra, alta, ter
cabelo comprido e usar roupas que ressaltem a feminilidade. Além de
empoderar a presidenta, oferece representatividade para as diversas mulheres
que não se encaixam nesse padrão de beleza imposto socialmente. Em uma
visão estritamente conservadora, o terno e o cabelo curto são elementos
atribuídos ao masculino. Partindo também de uma visão estereotipada,
quando uma mulher se vale desses elementos, ela estabelece um nível estético
de igualdade com o homem, o que a empodera aos olhos excludentes de uma
parcela conservadora do mercado de trabalho. Trata-se de uma visão que vem
sendo extremamente combatida pelos movimentos feministas. Uma mulher
não precisa assumir características masculinas para demonstrar poder, ainda
que isso seja uma estratégia adotada por muitas para fazer valer o seu lugar.
Partindo para a análise do pronunciamento de Bolsonaro, é necessário
situar as tensões em torno do enunciado proferido. O presidente foi eleito no
dia 28 de outubro de 2018 com 55,13% dos votos e tomou posse no dia 1 de
janeiro de 2019, quando estava filiado ao Partido Social Liberal (PSL). À
época do pronunciamento em questão, Bolsonaro havia se afiliado ao Partido
Liberal (PL). 2022 era seu último ano de mandato, ano de eleições. A última
pesquisa eleitoral que investigou as intenções de voto femininas antes do
pronunciamento de Bolsonaro foi a do PoderData, realizada de 31 de janeiro
a 1º de fevereiro de 2022. Essa pesquisa mostrou que somente 22% das
mulheres entrevistadas votariam em Bolsonaro, enquanto 44% votariam em
Lula. No caso dos homens, 38% votariam em Bolsonaro e 39% em Lula, o
que levaria a um empate técnico (Poder Data, 2022). Nesse contexto, a tensão
é construída neste nó: ter que encarar o público que o rejeita, ao mesmo
tempo em que o pronunciamento seria uma chance de atrair mais eleitoras.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


É importante situar as condições de produção e de circulação do
pronunciamento de Jair Bolsonaro. A fala do presidente ocupa os campos 325
político e midiático. O discurso circulou ao vivo, com plateia imediata e com
Cerqueira
transmissão no canal do Youtube e de televisão da TV BrasilGov. O
pronunciamento de Bolsonaro foi o último da cerimônia pelo Dia
Internacional da Mulher, que teve duração de uma hora e dezoito minutos.
Situado no local mais importante do Palácio do Planalto, o Salão Nobre,
espaço público, lugar de trabalho do chefe do poder executivo, o presidente
lê seu pronunciamento a partir de um papel. Presentes na cerimônia, no palco,
estão as seguintes mulheres: a primeira-dama, Michelle Bolsonaro; a então
Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves; a
Ministra Chefe da Secretaria de Governo Flávia Arruda; a Ministra da
Agricultura Tereza Cristina; a Secretária Especial de Produtividade e
Competitividade do Ministério da Economia Daniella Marques; e a indígena
Kamiru Kamaiurá. Na plateia, estão o Ministro da Economia Paulo Guedes,
o presidente da Caixa Econômica Federal Pedro Guimarães, militares,
embaixadores, membros da polícia federal, etc.,
O trecho em foco, a saudação e a apresentação do tema do
pronunciamento do presidente Jair Messias Bolsonaro (8/3/2022), pode ser
conferido a seguir:
1º10’28”
Senhore/ primeiro… senhores militares… se depe/ se dependêssemos das mulheres NÃO
teRÍamos GUErras no mundo… ((aplausos e gritos)) Bom dia a todos… primeiro obrigado
a Deus pela::… minha segunda vida… e pela missão… e também pelas pessoas
maravilhosas… que o colocou ao meu lado… para nós conduZIRmos o desTIno da NOssa
nação… temos problemas… ma::s::… os LUcros… são MUIto… mas MUIto grandes… e
isso nos anima… a continuar… e obviaMENTE… em GRANde parte… esse lucro VEM…
do trabalho das mulheres que esTÃO… ao nosso lado… Tem uma passagem bíblica…
Coríntios… que RESUme… basicamente… esse nosso dia… "porque assim como a mulher
foi FEI-ta… do HOmem… assim também o HOmem NASce da mulher… e TU-do VEM
de DEUS" ((aplausos))

Na saudação de seu pronunciamento, Jair Bolsonaro, antes de


direcionar “Bom dia a todos…”, usa o numeral “primeiro”, para mostrar que
valora como o mais primordial dirigir-se aos militares presentes na plateia.
O truncamento assinalado na transcrição mostra a relevância de usar a
palavra “primeiro” para o presidente, a ponto de corrigir sua fala. Em um
discurso oficial nacional em comemoração do Dia Internacional da Mulher,
espera-se que as interlocutoras sejam as mulheres brasileiras, mas o
presidente não as interpela. As mulheres são colocadas como objeto do
discurso, sobre quem se fala, e não como destinatárias.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Na continuação do pronunciamento, ao dizer para os militares “se
dependêssemos das mulheres NÃO teRÍamos GUErras no mundo…”, 326
podemos depreender, na fala do presidente, uma construção híbrida. Isso
Cerqueira
porque são duas vozes por trás da mesma construção verbal: a voz do capitão
aposentado do exército Jair Messias Bolsonaro e a voz do presidente da
república Jair Messias Bolsonaro. É importante ressaltar, ainda, que ao
terminar de proferir essa fala inicial, o presidente sorri a ponto de quase dar
risada, tal como notamos na captura do vídeo:

Figura 2 – Captura de vídeo em que o presidente sorri depois de dizer “se


dependêssemos das mulheres, não teríamos guerras no mundo” – 1 hora 10 minutos
38 segundos

Fonte: canal TV BrasilGov no Youtube, 2022.

O limiar entre o sorriso e a risada de Bolsonaro parece revelar que há


dois tons compondo esse trecho de fala. O primeiro seria o tom sério, que
evoca um estereótipo das mulheres como apaziguadoras, como aquelas que
evitam conflitos, estereótipo esse que abre margem para que muitas mulheres
sofram violência e relacionamentos abusivos, ao sentirem que devem se calar
para evitar conflitos. Trata-se, ainda, de um estereótipo que apaga todas as
mulheres que pegaram ou pegam em armas, que participam de guerras como
integrantes de Exércitos ou como guerrilheiras.
O segundo tom que parece ser evocado é irônico, o que recupera o
contrário do que o presidente disse: de que as mulheres seriam raivosas,
descontroladas, estereótipo que também caminha entre os discursos sociais.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Esse posicionamento híbrido é aderido pela plateia imediata, que dirige
aplausos e gritos à fala do presidente. 327

Além do limiar entre o sorriso e a risada, a captura do vídeo mostra Cerqueira


que o presidente veste uma gravata rosa, cor que também está no fundo da
imagem compondo o cenário e na camisa vestida pela intérprete de Libras.
Consultando a íntegra do vídeo do discurso4, ainda é possível verificar que a
maioria das mulheres que estão no palco, assim como algumas mulheres do
auditório vestem cor-de-rosa. Esses aspectos constroem um heterodiscurso
visual. Isso porque essa cor recupera o discurso alheio em duas falas
anteriores a de Bolsonaro na mesma cerimônia: i) a fala da Ministra Damares
Alves, “somos um governo cor-de-rosa”; ii) a fala da Primeira-Dama Michele
Bolsonaro, “em nome do presidente mais cor-de-rosa do mundo”, ambas as
falas defendendo que o governo Bolsonaro conta com grande número de
parlamentares mulheres e com políticas públicas de apoio à mulher. O
discurso alheio recuperado pela cor rosa também está em um vídeo viralizado
em que a então Ministra Damares Alves, nos primeiros dias de governo
Bolsonaro, em janeiro de 2019, diz: “É uma nova era no Brasil! Menino veste
azul e menina veste rosa!"3. A frase insere-se em um contexto em que
defendia o combate à chamada "ideologia de gênero", termo criado pelo
governo Bolsonaro para se opor à ideia de que gênero é uma construção
social, ou seja, não está restrito ao sexo biológico de uma pessoa. A partir da
recuperação da voz do outro, pode-se dizer que o cenário e as vestimentas
cor-de-rosa em conjunto com a escolha pessoal do presidente por usar uma
gravata dessa cor são aspectos que representam os valores de defesa de um
ideal de mulher cisgênero, heterossexual, mãe e esposa. Trata-se de um ponto
de vista, ao mesmo tempo, machista e sexista. Esse tipo de posicionamento,
quando absorvido pela população que apoia o presidente e migrado à esfera
cotidiana, culmina em violência contra a mulher, desde a violência
psicológica até o feminicídio.
A seguir, na apresentação do tema do pronunciamento, há o seguinte
trecho: “primeiro obrigado a Deus pela::... minha segunda vida... e pela
missão... e também pelas pessoas maravilhosas... que o colocou ao meu
lado... para nós conduZIRmos o destino... da nossa nação...”. O numeral
“primeiro” vem, novamente, colocar algo como mais relevante, como

3
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uRZ5JDgh1hw&t=1:10:17. Acesso em: 21
jun. 2022.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


anterior em relação ao que vai ser dito em seguida sobre a mulher. Trata-se
de questões pessoais do presidente, desenvolvidas em quatro focos: i) sua 328
crença pessoal em Deus; ii) a sobrevivência ao atentado ocorrido em 2018,
Cerqueira
em Juiz de Fora, na ocasião em que Adélio Bispo de Oliveira esfaqueou o
presidente, à época candidato; iii) a missão de ser presidente, que, segundo
ele, lhe foi concedida por Deus, o que atribui a si um estatuto quase
messiânico; iv) as pessoas que Deus colocou ao lado do presidente para
ajudá-lo a governar o país. O final desse trecho, marcado por uma ênfase na
entonação, reforça o estatuto de importância que Bolsonaro dá a esse
momento de sua fala.
Outro ponto a ser destacado na apresentação do tema do
pronunciamento do presidente da república é o seguinte: “temos problemas…
ma::s::… os LUcros… são MUIto… mas MUIto grandes… e isso nos
anima… a continuar… e obviaMENTE… em GRANde parte… esse lucro
VEM… do trabalho das mulheres que esTÃO… ao nosso lado…”. Nesse
momento, Bolsonaro se refere às mulheres, novamente, como objeto do
discurso e, não, como interlocutoras. Porém, agora, não são consideradas
todas as mulheres e, sim, apenas aquelas que estão ao lado do presidente, isto
é, as que apoiam seu governo.
A voz do outro é inserida, nessa passagem, pela conjunção adversativa
“mas”, em motivação pseudo-objetiva. A voz do outro está em “temos
problemas”. É como se Bolsonaro reconhecesse as questões que a luta
feminista defende, mas esse não é seu foco, não é um grupo com o qual se
identifica. Ele retorna para sua voz ao introduzir a conjunção “mas” e defende
o que é axiologicamente primordial em sua perspectiva: os lucros alcançados.
Ainda nesse trecho, podemos notar uma diferença em relação ao
pronunciamento de Rousseff: Bolsonaro não usa dados estatísticos para
abordar os ganhos econômicos. Ao invés de dados, há a escolha lexical do
advérbio de intensidade “muito”, pronunciado com ênfase na entonação, o
que marca a valoração do lucro econômico, de forma a colocá-lo acima dos
problemas da nação. Problemas esses que podem ser, inclusive, os da luta da
mulher, como por exemplo a violência de gênero, e estão sendo considerados
de menor importância quando comparados aos lucros. Além disso, o uso do
advérbio de intensidade “muito” e da entonação enfática favorecem a
argumentação pela emoção, em que o enfoque está unicamente no efeito
persuasivo, o que é típico de discursos sensacionalistas. Já os dados concretos

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


dão consistência à fala de Dilma, constituindo argumento que funda o real,
ganhando estatuto de fato, isto é, os dados comprovam e não podem ser 329
negados.
Cerqueira
A segunda diferença que esse trecho aponta em relação ao
pronunciamento da presidenta é que, aqui, o foco não é a ascensão social das
mulheres. Para Bolsonaro, as mulheres estão do lado dos homens, o
referencial é masculino, a mulher é tida como secundária, contribuindo para
os lucros brasileiros e não sendo empoderadas pelo lucro que geram.
Ao concluir a apresentação do tema de seu pronunciamento, Jair
Bolsonaro cita a passagem bíblica Coríntios: "porque assim como a mulher
foi FEI-ta… do HOmem… assim também o HOmem NASce da mulher… e
TU-do VEM de DEUS". Ao trazer a passagem bíblica, o presidente assume
o discurso do outro, o discurso religioso, como um discurso autoritário para
abordar o papel da mulher. De acordo com Bakhtin (2015 [1930-1936], p.
136, grifo nosso), o discurso autoritário “procura determinar os próprios
fundamentos da nossa relação ideológica com o mundo e do nosso
comportamento”. A Bíblia como um discurso autoritário constitui um
discurso religioso que determina a relação da mulher com o mundo e seu
comportamento. Esse trecho bíblico em questão situa a mulher como
constituída a partir do homem, o que constrói um posicionamento ideológico
machista de que a mulher seja submissa e secundária em relação ao homem.
Bolsonaro assume esse posicionamento ao trazer o discurso do outro, o
discurso bíblico, para seu pronunciamento. Esse ponto de vista é reforçado
pela entonação, que é mais alta na palavra “homem” por duas vezes e, na
palavra “Deus”, por uma vez, mas que não tem ênfase na palavra “mulher”.

Considerações finais
O objetivo deste artigo foi analisar a saudação e a apresentação do
tema dos pronunciamentos oficiais dos presidentes Rousseff (2014) e
Bolsonaro (2022) em comemoração ao 8 de março, a fim de entender como
as diferentes representações ideológicas que os presidentes constroem em
torno do papel da mulher são materializadas nos elementos verbo-visuais: as
formas de discurso do outro, os signos ideológicos, as cores, etc.
Na construção ideológica dos pronunciamentos por meio desses
elementos, três resultados se destacam:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


i) A interlocução estabelecida pelos presidentes frente ao público é
distinta: Dilma Rousseff se dirige “especialmente” às mulheres, enquanto 330
Jair Bolsonaro marca os “senhores militares” como seus interlocutores. A
Cerqueira
escolha do destinatário indica valores ideológicos: Rousseff estabelece uma
posição de proximidade com as mulheres em busca de lhe conceder poder, já
Bolsonaro não se dirige à mulher, mas se refere a ela como submissa. Ao se
dirigir aos militares, estabelece um diálogo com os pares e apoiadores de seu
governo;
ii) Ao retomar o discurso do outro, os discursos presidenciais
assumem valores diferentes frente à mulher: Rousseff recupera dados
estatísticos do campo econômico para conceder autoridade à mulher de
periferia, valorizar a luta diária pela igualdade de gênero juntamente da
ascensão social; já Bolsonaro se vale do heterodiscurso bíblico para defender
um ideal de mulher submissa ao homem, adota um discurso intolerante, que
contribui para a violência. Esse aspecto discursivo se alia ao visual cor-de-
rosa, retomando o posicionamento contrário à “ideologia de gênero” e a favor
de uma única face possível para o ser mulher: cisgênero, heterossexual, mãe,
esposa. Dessa forma, o conjunto verbo-visual aponta para um pensamento
que visa legitimar a desigualdade entre homens e mulheres. No caso da
presidenta, a cor azul representa tranquilidade, serenidade, calma, harmonia,
traduzindo o tom de Rousseff diante da crise, que é o de passar tranquilidade
para a mulher brasileira, encorajando sua ascensão social. Ao mesmo tempo,
o azul passa sensação de sofisticação, realeza, o que adiciona um elemento
de empoderamento à presidenta e às mulheres que a assistem e enxergam
representatividade nela. O conjunto verbo-visual do pronunciamento da
presidenta aponta para o empoderamento da mulher, para a sua ascensão e
para a luta feminista. Quando um sujeito representante de um país adota um
discurso que representa a mulher como submissa ao homem, isto é, um
discurso machista, acaba por influenciar grande parte da população e por
legitimar a manutenção de problemas diários de desigualdade entre homens
e mulheres nas empresas, nos lares, no espaço público, contribuindo para
situações de violência de gênero e para as mortes de tantas mulheres que
morrem pelo simples fato de serem mulheres. Por outro lado, empoderar a
mulher é uma forma de motivar as mesmas na luta diária pela igualdade de
gênero e contra as formas de violência, além de ser uma maneira de
conscientização masculina para participação nessa luta.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


iii) A esfera de circulação das falas presidenciais, que inclui o contexto
sócio-histórico, aponta para momentos de eleições, isto é, de fim de mandato 331
de Rousseff e de Bolsonaro. Além disso, 2014 marcou o início de uma crise
Cerqueira
econômica e foi o ano seguinte à onda de manifestações conhecida como
Jornadas de Junho. 2022 foi o ano em que o público feminino rejeitava
Bolsonaro, como mostravam pesquisas eleitorais. Dessa forma, cada
presidente busca preservar sua própria face e validar suas estratégias de
governo, bem como suas ideologias. Rousseff o faz utilizando dados
estatísticos de ascensão econômica das mulheres. Já Bolsonaro se vale da
ênfase na entonação do advérbio de intensidade “muito”, que marca a
valoração do lucro financeiro, cuja grande parte afirma vir do trabalho das
mulheres durante seu governo. Porém, chama a atenção que o lucro é
valorado acima dos demais problemas da nação. Ainda que com
posicionamentos muito diferentes, ambos os presidentes usam a
comemoração de 8 de março como pretexto para a autopromoção de seus
governos, o que mostra que a causa da mulher não é um foco, trata-se de um
tópico aproveitado para alcançar a visibilidade presidencial. Dessa forma,
podemos concluir que a mulher continua à margem, isto é, a urgência dos
problemas que vive é estabelecida de forma secundária aos interesses
políticos e econômicos.

Referências
#AOVIVO: Comemoração do Dia Internacional da Mulher. Brasília: TV BrasilGov, 2022.
Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uRZ5JDgh1hw&t=1:10:17.
Acesso em: 21 jun. 2022.
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e
glossário de: Paulo Bezerra. São Paulo: 34, [1930-1936] 2015.
BALASSIANO, Marcel Grillo. Recessão Brasileira (2014-2016): Uma análise por meio do
método do Controle Sintético do PIB, PIB per capita, Taxa de Investimento e Taxa de
Desemprego. Encontro Nacional da Anpec. 2018. Disponível em:
https://www.anpec.org.br/encontro/2018/submissao/files_I/i4-e40f41cc1badaf4207dc9dc
7f5823cc8.pdf. Acesso em: 01 abr. 2023.
BRAIT, Beth. Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto, 2010.
BRAIT, Beth. Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana, São
Paulo, v. 8, n. 2, p. 43-66, jul./dez. 2013. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/16568/12909. Acesso em: 15
dez. 2022.
BUENO, Samira (Coord.). Violência contra mulheres em 2021. São Paulo: Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-
content/uploads/2022/03/violencia-contra-mulher-2021v5.pdf. Acesso em 24 nov. 2022.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. Tradução de Jacob Guinsburg.
São Paulo: Perspectiva, [1994] 1998.
332
DILMA Rousseff parabeniza brasileiras no Dia Internacional da Mulher. Brasília: TV
BrasilGov, 2014. Youtube. Disponível em: Cerqueira
https://www.youtube.com/watch?v=8RUPjbvitSU. Acesso em: 21 jun. 2022.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as idéias linguísticas do círculo de
Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009.
GRILLO, Sheila. Ensaio introdutório. In: VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin).
Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na
ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova
Américo. São Paulo: 34, 2017. p. 7-79.
IBGE. Características gerais dos moradores 2020-2021. Brasil: Pesquisa Nacional Por
Amostra de Domicílios Contínua, 2022. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101957_informativo.pdf. Acesso em
24 nov. 2022.
MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievich. Método formal nos estudos literários: introdução
crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Grillo.
São Paulo: Editora Contexto, [1928] 2019 [1928].
OREIRO, José Luis. A grande recessão brasileira: diagnóstico e uma agenda de política
econômica. Estudos Avançados, v. 31, n. 89, p. 75-88, abr. 2017. DOI:
http://dx.doi.org/10.1590/s0103-40142017.31890009.
PAULA, Flávio Alves de. As causas da grande recessão brasileira (2014 – 2016). 2019. 58
f.
TCC (Graduação) - Curso de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia, 2019. Disponível em:
https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/26518/3/CausasGrandeRecess%c3%a3o.p
df. Acesso em: 02 abr. 2023.
PODER 360. BEHNKE, Emilly. “Segundo pesquisa, mulheres não votam em mim”, diz
Bolsonaro. 2022. Disponível em: https://www.poder360.com.br/governo/segundo-
pesquisa-mulheres-nao-votam-em-mim-diz-bolsonaro/ Acesso em: 05 abr. 2023.
PRETI, Dino (Org.). O discurso oral culto. 2. ed. São Paulo: Humanitas, 1999.
ROVERE, Matheus. A grande recessão da economia brasileira e o profit-squeeze. 2018. 66
f. TCC (Graduação) - Curso de Ciências Econômicas, Universidade de Brasília, Brasília,
2018. Disponível em: https://bdm.unb.br/bitstream/10483/24753/1/2018_MatheusRovere
_tcc.pdf. Acesso em: 02 abr. 2023
SILVEIRA, Luciana Martha. Introdução à teoria da cor. 2. ed. Curitiba: Ed. UTFPR, 2015.
VOLÓCHINOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas
e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: 34, [1929] 2017.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


333

Oliveira

O corpo feminino no espaço e no


tempo: uma análise comparativa
de anúncios publicitários de
cigarro da década de 1970 no
Brasil e na França
The female body in space and time: A comparative analysis of
cigarette advertising from the 1970's in Brazil and France

Letícia Thomé de Oliveira 1 Introdução


Universidade de São Paulo, Brasil
O público leitor de um
anúncio publicitário, como parte de
um contexto social, varia de acordo
com o tempo e espaço: “A atitude
humana é um texto em potencial e pode ser compreendida (como atitude
humana e não ação física) unicamente no contexto dialógico da própria época
(como réplica, como posição semântica, como sistema de motivos)”
(Bakhtin, [1952-53] 2016, p. 78). Assim, a publicidade acompanha essas
mudanças para que o seu resultado com as vendas seja efetivo, e com esse
propósito, o emissor direciona a composição verbo-visual dos anúncios
publicitários.
Considerando isso, o objetivo deste estudo é descrever e interpretar as
diferenças nas representações da figura feminina em enunciados do gênero
propaganda por meio de uma análise comparativa de enunciados brasileiros
e franceses desse gênero, produzidos na década de 1970 no Brasil e na

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


França. Buscamos compreender o papel dos signos ideológicos verbais e
visuais na construção de ênfases valorativas sobre a mulher nas sociedades 334
brasileira e francesa.
Oliveira
É importante conceituar o gênero publicitário com que se irá trabalhar.
Para isso, será utilizada a definição dada por Gomes (2001), que se
preocupou, justamente, com a definição de termos da área da comunicação,
que, muitas vezes, são usados sem rigor científico. Ela propõe uma definição
do gênero propaganda como sendo “um processo de disseminação de ideias,
através de múltiplos canais, com a finalidade de promover no grupo ao qual
se dirige os objetivos do emissor […] o que implica, pois, um processo de
informação e um processo de persuasão” (Gomes, 2001, p. 117). Assim, será
utilizado, neste estudo, o conceito do gênero anúncio publicitário como sendo
a manifestação da propaganda, gerenciamento do fluxo de informações com
objetivo de manipular a opinião pública e a conduta social.
A escolha pela comparação entre Brasil e a França se deu por conta da
relação entre esses países, que vem sendo alvo da atenção de diversos
estudiosos e teóricos nos âmbitos de Humanidades e de Linguagens, como
elaborado por Figueredo e Glenadel:

Antônio Candido lembra, no prólogo do livro Diálogos entre o Brasil e


a França (2005), a importância da cultura francesa para sua geração,
observando que os jovens de hoje, penetrados pela influência norte-
americana, não conseguem talvez avaliar o que isto significou. Segundo
ele, desde o início do século XIX a França exerceu no Brasil o papel
formador que as culturas clássicas da Grécia e de Roma exerceram na
Europa. (Figueredo; Glenadel, 2009, p. 57).

A escolha da década de 1970 como recorte temporal da análise se deve


ao fato de esse ser um período que, como será mostrado mais adiante, marcou
diferentes regimes sociopolíticos nos países estudados. Buscamos analisar se
essas diferenças impactaram na construção dos enunciados analisados no que
diz respeito à imagem da mulher.
Para atingir esse objetivo, serão analisados dois enunciados do gênero
anúncio publicitário, sendo um deles brasileiros, e o outro, francês, ambos da
década de 1970, veiculados em revistas impressas de notícias, informação e
atualidades. Em todos os enunciados, há a presença de imagens femininas, e
será no corpo delas, bem como naquilo que representam na composição de
toda a propaganda, que será concentrada a análise.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


2 Análise de discursos comparativa: metodologia
de construção do corpus e de análise 335

O princípio orientador deste estudo é a comparação. A análise Oliveira


comparativa do discurso foi escolhida, pois a pesquisa tem teor linguístico e
cultural e se busca cotejar as línguas/culturas de duas diferentes sociedades,
de forma que esse tipo de análise se mostra adequado. A comparação é,
conforme elaborado por Grillo, Machado e Campos (2018), uma necessidade
humana de entender a linguagem e a humanidade, ou seja, para que o ser
humano atinja a compreensão da pluralidade de culturas expressas pelas
diferentes línguas, ele as compara.
Para evidenciar as semelhanças e as diferenças entre os enunciados
que compõem o corpus, foi utilizado o conceito de Tertium Comparationis.
Esse conceito foi definido pelo grupo de pesquisadores CLESTHIA – aux
sens et discours – a saber: Cislaru, Pugnière- Saavedra, Tréguer-Felten e Von
Münchow1 – e foi amplamente utilizado nos estudos comparativos do grupo
Diálogo (USP/ CNPq)2. Tertium Comparationis consiste na invariável da
comparação, ou seja, o elemento de dois enunciados que não irá variar, a fim
de que eles possam ser cotejados. É a partir desse elemento que se compõe
uma análise comparativa entre discursos de diferentes línguas/ culturas.
Muito comumente, um dos elementos escolhidos como Tertium
Comparationis é o gênero discursivo. Assim, os dois discursos comparados
na análise pertencem ao mesmo gênero, tomando a noção bakhtiniana desse
conceito.
No caso deste corpus, tomamos por Tertium Comparationis o gênero
do discurso anúncio publicitário e a década de 1970. Assim, procurou-se a
máxima aproximação entre os anúncios, para que se evidenciasse as
eventuais semelhanças e diferenças entre eles. Essa aproximação se deu pelos
seguintes critérios:

1
A título de exemplificação, pode-se citar o estudo de Von Münchow Les jounaux télévisés en
France et en Allemagne : Plaisir de voir ou devoir de s´informer (2005) como um dos trabalhos que
aborda o conceito de Tertium Comparationis na comunidade francesa.
2
Também a título de exemplificação, citamos, novamente, o artigo de Grillo, Machado e Campos
Análise comparativa do discurso: quais são seus precursores? (2018).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


2.1 Veículo de publicação
336
O veículo de publicação dos anúncios selecionados foi o mesmo:
revistas de notícias impressas e de grande circulação no país de origem. A Oliveira
escolha por esse veículo se deu pela sua ampla circulação na época em
questão. Para a propaganda brasileira, foi selecionada a revista Veja, que, na
época, levava o nome de Veja e Leia, e para a francesa, foi selecionada a
revista L´Express.
A revista Veja foi fundada em 1968 e tem como foco questões
nacionais e internacionais, atualidades, economia e política. Ao longo da
década de 1970, a revista sofreu uma série de censuras em suas publicações
por parte do governo da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985). Essa
repressão aconteceu tanto por meio de cortes de trechos de reportagens
quanto através de apreensão de exemplares inteiros já publicados.
A primeira edição da revista L´Express foi publicada em 1953, com
forte teor de denúncia política. Por conta de seu posicionamento político
reformista, sofreu censura por parte da Quarta República Francesa (1946-
1958), mas isso ocorreu até 1958, ou seja, antes do período de nossa análise.
Desde então, a revista adotou o modelo de publicação semanal de
informações.

2.2 Produto ou serviço anunciado


Na seleção dos anúncios, buscamos que o produto ou serviço
anunciado fosse o mesmo, para que se pudesse evitar ruídos na comparação,
ou seja, para que se pudesse verificar diferenças e semelhanças na
composição dos anúncios sem que se precisasse considerar uma alteração de
produto ou de serviço. Foram selecionados, assim, anúncios que vendem
cigarro.
A escolha desse produto em específico se deve ao seu valor ideológico
nas duas culturas em questão. Carneiro (2002) e Rangel e Castro e Moraes
(2017) discutem, justamente, o vínculo desse produto com o gênero
masculino, dado que, desde o século XIX, na Guerra da Criméia, ele foi
incorporado à ração do exército e, ao longo do século XX, foi tido como
artigo de consumo essencial do cotidiano. A construção sociocultural da
sexualidade masculina também foi sendo associada ao consumo do cigarro,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


bem como o de bebida alcoólica, no sentido de que a virilidade masculina
estaria ligada à despreocupação com a saúde. 337

Oliveira

2.3 Ano de publicação da revista


Para respeitar o recorte temporal do estudo, todas as revistas que
compõem o corpus foram publicadas entre 1970 e 1979. Porém, para evitar,
na comparação, ruídos advindos de acontecimentos específicos do começo
da década, que poderiam não ser mais válidos no final dela, procurou-se
aproximar ao máximo o ano de publicação das revistas nas quais os anúncios
selecionados foram veiculados. As datas de publicação deveriam ser o mais
próximas o possível, desde que os anúncios estivessem, também, vendendo
o mesmo produto. Assim sendo, os textos selecionados foram publicados
entre 1970 e 1973.
Os componentes dos anúncios publicitários, bem como o anúncio em
si, serão analisados enquanto enunciados compostos por signos ideológicos,
ou seja, fragmentos da realidade material que refletem e refratam a realidade
social em movimento (Volóchinov, [1929] 2017). Desse modo, a análise da
figura da mulher nesses anúncios, juntamente com toda a construção
composicional deles, poderão revelar aspectos das ênfases sociais – uma
atenção social dada a um conjunto específico de objetos que obterá uma
forma sígnica – das línguas/culturas brasileira e francesa da década de 1970.
A seguir, relacionamos os anúncios que compõem o recorte do corpus
deste estudo:

Quadro 1. Relação de cada anúncio analisado


País Marca Produto Revista Data
Brasil Robt. Burns Cigarro L´Express n° 17 de
Cigarillos 1158 setembro de
1973
França Mister Cigarro Veja e Leia n° 28 de março
Superkings 238 de 1973
Fonte: elaborado pela autora

A metodologia utilizada para a análise seguirá os momentos propostos


por Valentin Volóchinov em Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem ([1929] 2017)
para o estudo da língua. São propostas três etapas de análise, e cada uma delas

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


será realizada de forma comparativa, dado que a análise comparativa é o eixo
que norteia este estudo. Segue-se, então, da seguinte forma: 338

1-Formas e tipos de interação discursiva em sua relação com as Oliveira


condições concretas;

2-Formas dos enunciados ou discursos verbais singulares em relação


estreita com a interação da qual são parte, isto é, os gêneros dos
discursos verbais determinados pela interação discursiva na vida e na
criação ideológica;

3- Partindo disso, revisão das formas da língua em sua concepção


linguística habitual (Volóchinov, [1929] 2017, p. 220)

Para o embasamento das condições concretas dos enunciados, ou seja,


para a recuperação do contexto social e histórico, foram utilizados, além dos
trabalhos de Bakhtin e do Círculo, que permeiam toda a análise, trabalhos de
pesquisadores da área de filosofia e de história, a saber: Ana Maria Colling
(UNIJUÍ/ UERGS), Celuy Roberta Hundzinski (ENSTA Paris / Paris X),
Ivan Domingues (UFMG), Karina Woitowicz (UEPG) e Joana Maria Pedro
(UFSC). A descrição das formas da língua, em sua concepção linguística
habitual, recorreu à Gramática do português brasileiro (2010), de Ataliba
Teixeira de Castilho, gramática formulada a partir de teorias linguísticas
contemporâneas; Problemas de linguística geral I ([1966] 1991), de Émile
Benveniste, obra que abarca uma série de artigos a respeito da problemática
do homem na língua; e o capítulo “A forma espacial do herói”, da coletânea
Estética da criação verbal ([1920-30] 1997), de Mikhail Bakhtin, para
abordar especificamente a questão do corpo feminino na análise das imagens.

3 Primeira etapa de análise: formas e tipos de


interação discursiva em sua relação com as
condições concretas
O público leitor de um anúncio publicitário vive em um contexto
social e está sujeito à ideologia do cotidiano, ou seja, “todo conjunto de
vivências da vida e expressões externas ligadas diretamente a elas”
(Volóchinov, [1929] 2017, p. 213) em uma determinada época e lugar.
Considerando a situação social concreta em que ocorre o enunciado, em um
primeiro momento, cabe analisar aspectos dos contextos históricos do Brasil
e da França na década de 1970, visto que são parte integrante dos enunciados
publicitários enquanto seus elementos extraverbais.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Nessa época, o Brasil vivia uma Ditadura Militar, iniciada com o golpe
militar em 31 de março de 1964 e terminada com a eleição de Tancredo 339
Neves em 1985. O regime foi marcado pelo conservadorismo político e
Oliveira
social, com a implementação de atos institucionais e complementares que
estabeleciam, entre outros aspectos, a censura e a suspensão da liberdade de
imprensa. No quesito liderança política, todos os presidentes e a maioria
absoluta dos representantes políticos, ao longo desse período, eram homens.
Nesse contexto, Colling discorre sobre uma anulação prática do poder de fala
da mulher:

Na história do regime militar brasileiro, como em todos os projetos


políticos autoritários, a construção de sujeitos ocorre de forma unitária
e não diversificada. A sociedade é dividida em dois blocos antagônicos:
situação e oposição, igualando-se os sujeitos. A esquerda tradicional
repete a mesma fórmula: ou se é sujeito burguês ou proletário. As
diversidades são entendidas como divisionistas da luta principal. Estes
dois discursos anulam as diferenças e constroem sujeitos políticos
únicos, desconsiderando a presença feminina e enquadrando-a em
categorias que a desqualificam. Nesta medida, institui-se a
invisibilidade da mulher como sujeito político. (Colling, 2004, p. 6).

Woitowicz e Pedro (2009) também abordam essa questão do espaço


da mulher durante o período da Ditadura, bem como o papel do ascendente
movimento feminista no Brasil dentro da militância da época. Elas elaboram
que, na década de 1970, alguns jornais pequenos começaram a se dirigir para
as mulheres com o conteúdo de figuras femininas que haviam sido exiladas
do país. Isso foi de grande importância para a divulgação e para a organização
iniciais do movimento feminista no país. Por outro lado, nesse mesmo
momento, movimentos que discutiam sexualidade e igualdade de gênero não
encontravam espaço para exercer a sua militância, mesmo na esquerda do
país:

[...] a prática dos grupos de reflexão era vista com hostilidade por
determinados setores de esquerda, que apostavam em outras frentes de
luta e consideravam inúteis tais discussões, devido ao seu viés
“pequeno-burguês”; neste sentido, as lutas envolvendo sexualidade e
autonomia do corpo “eram consideradas “ideias específicas”, e portanto
divisionistas da luta geral que consideravam ter prioridade: pela
democratização, pela anistia, pelo socialismo” (Woitowicz; Pedro,
2009, p. 45).

Dessa forma, a década de 1970, embora tenha sido de grande


importância para o nascimento e para a ascensão do movimento feminista no
Brasil, também foi uma época de pouco espaço para a voz da mulher, tanto

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


no governo militar, quanto na oposição de esquerda. O discurso autoritário e
conservador do regime, que ocupava o centro hegemônico, concebia uma 340
representação feminina baseada no que Buosi (1998) define como Mulher
Oliveira
Protegida e Mulher Ativa. A Mulher Protegida é aquela romântica, insegura,
fortemente ligada às instituições matrimoniais e à maternidade, temente em
relação às mudanças nos papeis sociais as quais vêm acontecendo no mundo.
Já a Mulher Ativa está envolvida com o trabalho, como uma fuga da solidão,
e tem uma relação conflituosa com o casamento e com os filhos, além de ser
extrovertida e cética em relação às lutas feministas, ao sexo e ao casamento.
Assim, observa-se que a mulher nesse momento é vista ou como subordinada
ao sistema patriarcal ou como cética em relação ao movimento feminista
emergente.
Já na França, nessa mesma época, vivenciavam-se os reflexos de um
importante período revolucionário, conhecido como Maio de 1968. Esse
movimento foi caracterizado pela união dos estudantes ao proletariado em
reivindicações pela ampliação dos direitos civis e pelo fim de costumes e
posturas tidos como conversadores e arcaicos. Pode-se citar os exemplos
trazidos por Hundzinski:

Naquela época, os estudantes manifestavam por terem que assistir aulas


em locais estreitos, inacabados e repletos, onde, muitas vezes, deviam
ficar em pé. Além disso, estando relativamente distantes de Paris, não
podiam ter uma vida social e cultural adequada (bares, cinemas, teatros,
...). Isso afetava, sobretudo, as moças que, apesar de maiores, não
tinham o direito de permanecer fora do alojamento depois das 23 horas.
Outras universidades, em diferentes cidades francesas, começaram a
protestar contra a proibição da frequentação dos alojamentos pelo sexo
oposto e outras razões sexistas (Hundzinski, 2018, p. 3).

Domingues (2021) também discute sobre o caráter anti-tradicionalista


da revolta de 1968. Os estudantes, aliados aos trabalhadores que buscavam
reformas políticas e trabalhistas, se revoltaram contra os diversos padrões
socioculturais presentes na época, como a restrição sexual manifestada pela
separação dos gêneros nas universidades e a ideia tradicional de família.

Na França, tendo por ícone o mês famoso, os affiches [cartazes]


desabusados e as barricadas do Quartier Latin, com seu componente
anárquico e descentralizado, contra tudo e contra todos, em suas quatro
vertentes: contra o capitalismo, contra o consumismo ou a sociedade de
consumo, contra a família e as instituições tradicionais, e contra o
imperialismo americano – tudo tendo começado na Universidade de
Nanterre, na região parisiense, quando os estudantes se insurgiram
contra o interdito de homens e mulheres compartilharem dormitórios,
ou melhor dizendo, a proibição de os rapazes irem aos dormitórios das

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


moças, como registrou Ricoeur, e tudo terminando com Paris
incendiada e as forças da ordem só habilitadas a retomar o controle da
situação, finda a greve geral, ao desocuparem Nanterre e a Sorbonne, 341
dois meses depois. (Domingues, 2021, p. 187-188).
Oliveira
Essas reivindicações mostram a preocupação da juventude francesa
com a libertação sexual e com uma maior igualdade entre os gêneros. Embora
esse movimento tenha ocorrido no final da década de 1960, os seus efeitos
perduraram também ao longo da década de 1970, pois, como afirma
Hundzinski, esse movimento “mudou profundamente a mentalidade
francesa” (Hundzinski, 2018, p. 1). A França passava por um momento de
transformação e de emancipação da mulher. A desigualdade entre os gêneros
e a militância jovem existiam em ambos os países, porém o Brasil passava
por um momento político em que não havia tanto espaço para esse tipo de
discussão, de modo que nos quesitos de liberdade sexual e igualdade de
gênero o Brasil vivia uma situação bem distinta da França.
Dado que os anúncios publicitários, como enunciados concretos, são
uma resposta a elementos verbais (outros enunciados) e a elementos
extraverbais, eles possuem orientação responsiva, ou seja, são produzidos em
relação ao que já foi dito, e prenunciam outros dizeres. Assim, no caso dos
enunciados publicitários, para que haja efetividade na comunicação, é preciso
que haja uma orientação responsiva em relação ao público para o qual ele é
endereçado. Para isso, o anúncio deve ser composto considerando o
pensamento de uma certa sociedade, dessa forma, a resposta orientada pelo
enunciado será mais possivelmente a esperada pelo enunciador.

4 Segunda etapa de análise: formas dos


enunciados em relação estreita com a interação da
qual são parte
Nessa segunda parte da análise, será observada a construção
composicional dos anúncios, considerando os aspectos verbais e não verbais
de cada um deles. Para a organização dessa parte da análise, construiu-se uma
hipótese de trabalho que considera um possível percurso do olhar do leitor
para os anúncios, levando em consideração o destaque visual de cada
componente: consideramos que o leitor observa, primeiramente, aspectos não
verbais do enunciado e, na sequência, aspectos verbais – primeiro os títulos
e, por último, o texto. Como esse não era o objetivo principal desta pesquisa,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


não foi feito um estudo aprofundado a seu respeito, mas essa será a ordem
que se seguirá para essa etapa de análise. 342

Para embasar a análise das imagens dos anúncios brasileiros e Oliveira


franceses com foco no corpo da mulher, será utilizado o capítulo “A forma
espacial do herói”, da coletânea Estética da criação verbal ([1920-30] 1997),
de Bakhtin. Ele propõe que uma imagem – como o caso das fotografias – não
poderia de fato captar um ser, pois ela só atinge a parte exterior do corpo e,
não, o interior, onde o eu de fato se expressa: “o herói – a personagem do
devaneador –, tomado em seu desejo e em seu amor, vive a si mesmo por
dentro, sem a menor expressividade externa” (Bakhtin, [1920-30] 1997, p.
49). Uma fotografia é, portanto, não uma representação do eu fotografado,
mas da forma como ele é visto como outro. No caso dos anúncios em questão,
os corpos das mulheres ali presentes têm pouca relação com o verdadeiro eu
delas, mas são uma representação da forma como os enunciadores desejam
que elas sejam vistas pelo leitor, visando gerar uma identificação e uma
idealização.
Esses dois aspectos, identificação e idealização, são de importância
essencial para o bom funcionamento de um anúncio publicitário, ou seja, no
que diz respeito à utilização da imagem do corpo: primeiramente, deve haver
a criação de uma identificação entre a imagem de um corpo no anúncio e o
leitor, sem a qual o anúncio não atrairá a atenção dele, perdendo, então, a sua
eficiência. Em seguida, deve haver a elaboração de uma idealização daquela
imagem, ou seja, deve-se fazer com que o leitor identifique quais são os
elementos que estão nela, que lhe faltam e que ele deseja possuir, o que
poderá ser feito por meio da aquisição do produto anunciado:

[...] pode-se ainda acrescentar aquela [expressão] que desejaríamos ver


em nosso rosto, não para nós mesmos, naturalmente, mas para os
outros: na frente do espelho, quase sempre posamos, adotando esta ou
aquela expressão que nos parece essencial e desejável. (Bakhtin, [1920-
30] 1997, p. 54)

Um objeto não representa apenas a si mesmo, mas uma vivência: “O


visível apenas completa o que é vivido no interior e não tem, muito
provavelmente, senão uma importância secundária para a realização do ato”
(Bakhtin, [1920-30] 1997, p. 63). Assim, tomando-se por objeto a imagem
de um corpo em um enunciado publicitário, as vivências associadas a esse
corpo na composição verbal e visual do anúncio, como felicidade, satisfação

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


e sucesso, têm papel principal, enquanto o corpo, isoladamente, assume papel
secundário. 343

O corpo, na composição dos anúncios, é de grande importância, por Oliveira


se tratar de um signo ideológico, ou seja, “essa imagem artístico-simbólica
de um objeto físico já é um produto ideológico. O objeto físico é
transformado em um signo. Sem deixar de ser uma parte da realidade
material, esse objeto, em certa medida, passa a refratar e refletir outra
realidade.” (Volóchinov, [1929] 2017, p. 92). Assim, os elementos utilizados
na composição dos anúncios, como a imagem do corpo da mulher, do homem
e até a imagem do próprio produto, são representações imagéticas de seres
que pertencem à realidade concreta. Essa visão a respeito dos elementos que
compõem os anúncios é muito produtiva para pensarmos em como eles se
relacionam com a realidade, ou seja, os valores sociais e o papel da mulher
em cada sociedade.
Após a análise das duas imagens abaixo, identificamos o seguinte
padrão comum: ambas as mulheres são brancas, jovens, aparentemente de
classe média ou alta e aparentam contentamento. O corpo da mulher,
portanto, é um signo que representa pessoas felizes e que possuem boas
condições socioeconômicas, atreladas também à imagem do corpo do
homem, presente em cada anúncio, conforme se vê nas imagens a seguir:
Imagem 1- Robt. Burns - França Imagem 2- Minister - Brasil

Fonte: Revista L’Express, n. 1158 Fonte: Revista Veja e Leia, n. 238

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Em ambas as propagandas, apenas o homem está fumando, ou seja,
consumindo o produto anunciado. Dessa forma, pode-se inferir que ele seja 344
um possível leitor presumido das marcas anunciantes. Ambas as mulheres
Oliveira
têm olhar sonhador, mas, no caso do anúncio francês, a mulher está em uma
posição de submissão em relação ao homem e está sentada enquanto ele está
em pé, o que indica maior passividade dela em comparação a ele. Ela está
vestindo uma camisola, o que pode demonstrar que se trata de um momento
íntimo. No anúncio brasileiro, a submissão da mulher é mais discreta, mas
também está presente. Não se pode tirar conclusões a respeito das
vestimentas da mulher, ao contrário do anúncio francês, pois apenas o rosto
dela é enquadrado. Apesar de ambas as pessoas estarem na mesma posição,
aparentemente em pé, o homem está um pouco à frente, um plano mais
próximo do leitor, e a moça está com a cabeça reclinada no ombro dele.
Por fim, a mulher da propaganda francesa olha fixamente para o
parceiro, enquanto a da brasileira, embora esteja fisicamente encostada no
homem, olha de forma calma para a paisagem, representada na propaganda
pelos barcos no pôr do Sol. Nota-se que a mulher da propaganda de Robt.
Burns obtém um tipo de prazer de cunho mais sexual, e ela se entrega
ativamente ao homem, como se pode observar pela posição dos seus braços,
tronco e rosto. Nesse sentido, a mulher da propaganda francesa difere da de
Minister, pois, nesse caso, ela está encostada no ombro do companheiro,
abaixo dele, sem indícios visuais de atividade.
As mulheres, em ambos os casos, desempenham o papel de
coadjuvantes dos homens, que são os verdadeiros destinatários presumidos,
ou consumidores dos anúncios. Além disso, ambas as mulheres estão em
posição de maior passividade, mas com uma ênfase valorativa maior no
anúncio brasileiro.
Passemos ao segundo componente do anúncio: o título. Pela sua
posição e tamanho, ele é o elemento verbal de maior destaque dos anúncios,
portanto, é para onde o olhar do leitor se dirige simultaneamente à apreensão
da imagem. Das duas propagandas, apenas a brasileira possui um título mais
extenso e chamativo em comparação com o corpo do texto do anúncio. No
título do anúncio dos cigarros Minster, tem-se uma comunicação clara com
o homem, leitor presumido do anúncio:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Imagem 3- título anúncio brasileiro de cigarro

345

Oliveira
Fonte: Revista Veja e Leia, n. 238

O título do anúncio coincide com o slogan da marca: “para quem sabe


o que quer”3. Como, nesse anúncio, o homem é quem está consumindo o
produto anunciado, entende-se que o título “o sabor para quem sabe o que
quer” comunica-se diretamente com ele. Assim, o homem que fuma cigarros
Minister sabe o que quer, o que inclui uma bela moça, representada pela
mulher ao lado dele na imagem, e a vivência em uma bela paisagem, também
presente na imagem. Nesse caso, então, o título agrega valor ao cigarro, na
medida em que enfatiza a qualidade do homem que o consome, e a mulher,
implicitamente, faz parte da conquista dele.
De modo isolado, os signos ideológicos que compõem os títulos não
expressam desigualdade de gênero, porém têm a função de estabelecer uma
comunicação mais direta com o sujeito para o qual o anúncio é endereçado,
o que, nesse caso, é o homem. Assim, mesmo o produto sendo, em teoria,
destinado para ambos os gêneros, o título contribui para a demarcação de um
endereçamento mais claro para os homens. Desse modo, há a pressuposição
de que seria ele o detentor de poder aquisitivo para consumo do produto. É
importante ressaltar que a colaboração do título para essa conclusão ocorre
de maneira indireta, já que que o protagonista para essa conclusão é a parte
não verbal do anúncio.
Passemos para o texto das propagandas. A propaganda francesa de
Robt. Burns apresenta um texto bastante sucinto, com apenas uma frase:

Imagem 4- texto anúncio francês


de cigarro Tradução para o
português Tradução para o português
“É preciso saber sacrificar uma
queima.”

Fonte: Revista L’Express, n. 1158

3
Disponível em: https://www.publicitarioscriativos.com/50-slogans-mais-lembrados/. Acesso em:
23 abr. 2023.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Essa sentença valoriza o produto, colocando-o como uma raridade que
não pode ser desperdiçada, ou seja, só se deve deixar de fumar por uma boa 346
causa, e, como na imagem quem está fumando é o homem, entende-se que
Oliveira
ele deve saber reconhecer o momento de apagar o cigarro. Esse momento
seria o de estar com a mulher que se entrega a ele. Novamente, vê-se o
homem como público consumidor do produto, e a mulher, como a conquista
vinda desse consumo. Ao homem, cabe o poder de escolha entre fumar ou
estar com a mulher, e a figura da mulher é valorizada em relação ao próprio
produto, pois seu companheiro deve preferir estar com ela a fumar. Essa
valorização, no entanto, objetifica a imagem dela, ao aproximá-la à de um
cigarro.
Essa ideia da figura masculina relacionada ao poder de escolha se
mantém no anúncio de cigarros Minister:

Imagem 5- Texto anúncio brasileiro de cigarro

Fonte: Revista Veja e Leia, n. 238

As frases valorizam o cigarro anunciado e colocam o poder de escolha


como uma qualidade do leitor presumido, que, de novo, é o homem que fuma
na imagem. A mulher aparece como uma acompanhante relacionada ao fato
de o homem ter sabido escolher, ou seja, ele, ao bem escolher o cigarro, terá
a mulher. A oração que fecha o anúncio, “Pode escolher”, pode ser
relacionada também à mulher, assim, o homem que “sabe o que quer”, que
fuma os cigarros anunciados, poderá escolher a mulher que terá ao seu lado.
Dessa forma, tem-se mais uma contribuição para a colocação da mulher em
uma posição de inferioridade.
Feitas as análises de imagem, texto e título dos anúncios, pôde-se
observar, tanto nas propagandas francesas como nas brasileiras, que a mulher
não foi colocada como leitor presumido, para o qual os enunciados são
endereçados. Ela está em um lugar de acompanhante ou de conquista

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


vinculada ao uso ou aquisição, pelo homem, do produto anunciado. Tanto a
parte verbal quanto a não verbal das duas propagandas apresentam, portanto, 347
a mulher e seu corpo em uma posição de subordinação ao homem.
Oliveira

5 Terceira etapa de análise: revisão das formas da


língua em sua concepção linguística habitual
Para análise da parte linguística dos anúncios brasileiros, foi utilizada
a Nova Gramática do Português Brasileiro (2010), de Ataliba Teixeira de
Castilho. A escolha dessa obra se deu pelo seu teor científico e descritivo, em
contraste com gramáticas mais normativas, além de ser específica do
português brasileiro, o que faz dela a mais adequada para este estudo. Para a
parte da análise dos anúncios franceses, nos baseamos na obra Problemas de
linguística geral I (1966), de Émile Benveniste, pois, embora proponha uma
abordagem enunciativa, também trata de formas da língua francesa em sua
acepção habitual, assim como propõe Volóchinov na terceira etapa
metodológica. Para eventuais pesquisas de léxico, foi utilizado, para a língua
francesa, o dicionário Le Nouveau Petit Robert de la langue française ([1963]
2009), por Paul Robert, e para o português, o dicionário Houaiss da língua
portuguesa (2004), por Antônio Houaiss, Mauro de Salles Villar e Francisco
Manoel de Mello Franco. Ambos os dicionários são renomados nas
respectivas línguas.
O interesse não é na parte gramatical apenas, mas em como as escolhas
gramaticais impactam na estilística dos anúncios. A esse respeito, Mikhail
Bakhtin aborda em Questões de estilística no ensino da língua (2013):

Toda forma gramatical, ao mesmo tempo, um meio de representação.


Por isso, todas as formas podem e devem ser analisadas do ponto de
vista das suas possibilidades de representação e de expressão, isto é,
esclarecidas e avaliadas de uma perspectiva estilística. No estudo de
alguns aspectos da sintaxe, aliás muito importantes, essa abordagem
estilística é extremamente necessária. Isso ocorre, sobretudo, no estudo
das formas sintáticas paralelas e comunicativas, isto é, quando o falante
ou escritor tem a possibilidade de escolher entre duas ou mais formas
sintáticas igualmente corretas do ponto de vista gramatical. (Bakhtin,
2013, p. 24-25).

Na propaganda francesa de Robt. Burns, observa-se a marca


linguística “il faut”, que pode ser traduzido como “é preciso” ou “é
necessário”, juntamente com o verbo “savoir”, que significa “saber”, na frase
“il faut savoir sacrifier un Burns” (é preciso saber sacrificar uma chama).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Burns se trata de um empréstimo linguístico de língua inglesa que coincide
com o nome da marca, o que acrescenta um jogo de palavras ao texto do 348
anúncio.
Oliveira
Quando ligada a um verbo no infinitivo, a expressão il faut pode trazer
a ideia de conveniência, de adequação, conforme verbete do dicionário Le
Nouveau Petit Robert de la langue française (Robert, [1963] 2009). Nesse
caso, tem-se a ideia não de urgência ou de necessidade eminente, mas de uma
convenção social, uma noção de como se deve agir. Isso, ligado ao verbo
“saber”, dá à oração conotação de racionalidade, ligada à escolha de um
sacrifício, ou seja, convém saber fazer o sacrifício do cigarro.
Não há, no anúncio, qualquer interlocução com o leitor, haja vista que
o sujeito da frase foi marcado pela utilização de uma oração subordinada
subjetiva, de forma que não há um pronome ou uma terminação verbal em
que se possa inferir a comunicação com homens, mulheres ou ambos. Porém,
isso não significa que o produto seja endereçado a ambos os gêneros de modo
igual, pois a análise da parte visual do anúncio mostrou que apenas o homem
está fumando e que ele tem uma postura mais racional e controlada em
comparação com a mulher, ou seja, quem tem a atitude racional de “saber
sacrificar uma chama” é o homem que fuma, enquanto a moça, mais
emocional e entregue, é o motivo do sacrifício do cigarro.
As escolhas verbais desse anúncio, portanto, colaboram para a ideia
de que o homem é o sujeito racional, pensante, aquele que escolhe e sacrifica,
e esse é o seu dever social, já a mulher é aquela que se entrega a ele, mais
emocional. É para ele que a propaganda é endereçada, e é dele a capacidade
de saber sacrificar o cigarro pela moça.
Por fim, no anúncio brasileiro de cigarros Minister, a comunicação
com o leitor ocorre de duas formas. A primeira delas é pelo pronome “quem”,
cujo referente é preenchido pelo sujeito, que, como foi visto pela análise da
parte visual do anúncio, é o homem, pois é o único que está fumando na
imagem. Esse é o sujeito da oração “quem sabe o que quer”, e nesse caso,
vale ressaltar que o verbo saber é definido pelo dicionário Houaiss como
“prudência e sensatez ao agir, experiência” (Houaiss; Villar; Franco, 2004,
p. 2489), ou seja, o homem é associado a ênfases valorativas de sabedoria,
experiência e racionalidade.
A segunda forma se dá pela conjugação do verbo “poder” na terceira
pessoa do singular, seguido de verbo no infinitivo em “pode escolher”. Aqui,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


o sujeito da frase também é preenchido pelo leitor do anúncio, representado
pelo homem da imagem. O verbo escolher, também pela definição do 349
dicionário Houaiss, significa “manifestar preferência por alguém ou algo [...]
Oliveira
selecionar, separar o bom do ruim; aproveitar (aquilo) que apresenta maior
qualidade” (Houaiss; Villar; Franco, 2004, p. 1206). Assim, percebe-se que
o homem tem poder de decisão sobre o consumo do melhor cigarro e da
mulher que o acompanha, que devem ser os melhores para estarem à sua
altura. Essas escolhas verbais parecem originar-se da ideologia de cotidiano
da época, ou seja, do imaginário de postura masculina como aquela ativa e
racional, que escolhe e sabe o que quer, que tem opções e não pende para a
indecisão.

Considerações finais
A partir das análises, pôde-se depreender que, na década de 1970, a
França passava por um momento histórico e político mais favorável às
conquistas feministas do que o Brasil, mas isso não se refletiu nos respectivos
comportamentos sociais da época. Isso é observado na composição dos
anúncios publicitários dessa época em ambos os países. Tanto os anúncios
brasileiros como os franceses apresentam o corpo e a imagem da mulher
numa relação passiva em relação ao homem.
Na análise das imagens, observamos que tanto na propaganda
brasileira como na francesa, apenas o homem aparece fumando, e a mulher é
apresentada como uma coadjuvante que o acompanha e como uma conquista
atribuída ao consumo de produto. Ambas as imagens femininas possuem
postura mais sonhadora, passiva em relação às masculinas.
O anúncio brasileiro possui um título que foi analisado. Ele estabelece
uma comunicação mais direta com o sujeito para o qual o anúncio é
endereçado, o que no caso de Minister, é claramente o homem. Assim,
mesmo o produto sendo, teoricamente, destinado para ambos os gêneros, o
título demarca um endereçamento mais claro para os homens, havendo a
pressuposição de que seria ele o detentor de poder aquisitivo para consumo
do produto.
A parte textual dos anúncios revela muito sobre a visão da mulher dos
respectivos enunciadores e, portanto, das respectivas sociedades. Tanto o
anúncio brasileiro como o francês utilizam a parte verbal para atribuir à figura

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


masculina poder de escolha, decisão e racionalidade, e a mulher e seu corpo
aparecem nesses anúncios como um atributo que acompanha os valores 350
positivos do produto, que acompanhará o homem que o consumir.
Oliveira
Na última parte da análise, constatamos que as duas propagandas
trazem a escolha de verbos que remetem à sensatez, à sabedoria, à
racionalidade e ao poder de escolha, e os sujeitos desses verbos são
preenchidos, semanticamente, pelo sujeito masculino consumidor do
produto, ou seja, aquele que se pressupõe ter o poder aquisitivo para adquiri-
lo, portanto, para quem o anúncio é endereçado. Por contraste, as mulheres
das imagens não são tidas como público leitor desses anúncios.
Após as três etapas de análise, percebemos semelhanças significativas
nos anúncios brasileiros e franceses no que diz respeito aos signos
ideológicos – verbais e visuais – que refletiram e refrataram a mulher e seu
corpo. É importante, porém, marcar que os padrões que identificamos ao
longo da análise tem forma apenas no recorte apresentado, ou seja, apenas
nos dois anúncios em foco. Esse corpus pode se mostrar insuficiente para que
a partir dele se possa tirar conclusões a respeito de toda uma sociedade,
portanto, enfatizamos que essas considerações têm caráter exploratório e têm
validade restrita ao corpus analisado.
Considerando isso, observou-se que tanto o anúncio brasileiro quanto
o francês colocam a mulher em uma posição desigual em relação ao homem,
apesar do contexto social e político mais progressista na França e mais
conservador no Brasil. Esse contexto brasileiro mais conservador se justifica,
porém, na medida em que não ocorre um apelo carnal e ligeiramente mais
ativo, o que há na propaganda francesa. Dado que o objetivo a ser alcançado
por um anúncio publicitário é atingir o público usuário do produto ou serviço
para uma melhor eficiência nas suas vendas. Ele vai ao encontro da ideologia
do cotidiano (Volóchinov, [1929] 2017) e a reforça, ou seja, reafirma os
valores circulantes e socialmente aceitos, portanto, as análises desses
anúncios revelam os valores correntes nas línguas e nas culturas brasileira e
francesa da década de 1970.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A forma espacial do herói. In: Estética da criação verbal. Tradução
Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martin Fontes, [1920-30] 1997. p. 43-107.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Editora
34, [1952-53] 2016.
351
BAKHTIN, Mikhail. Questões de estilística no ensino da língua. Tradução Sheila Grilo e
Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2013. Oliveira
BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Tradução Maria da Gloria Novak
e Maria Luiza Neri. Campinas: Editora Pontes [1966] 1991.
BUOSI, Damiana de Andrade. Retratos de Mulher: Um estudo sobre a representação
feminina na publicidade. Dissertação (Mestrado em ciências da comunicação) – Programa
de pós graduação em ciências da comunicação, Escola de Comunicação e Artes,
Universidade de São Paulo. São Paulo, 1998.
CARNEIRO, Henrique. As necessidades humanas e o proibicionismo das drogas no século
XX. Revista Outubro, v. 6. p. 115-128, 2002. Disponível em:
http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Revista-Outubro-
Edic%CC%A7a%CC%83o-6-Artigo-10.pdf. Acesso em: 04 set. 2023.
CASTILHO, Ataliba Teixeira de. Gramática do Português Brasileiro. São Paulo:
Contexto, 2010.
COLLING, Ana Maria. As mulheres e a ditadura militar no Brasil. Revista História em
Revista, n. 10, p. 1-10, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.15210/hr.v10i10.11605
Acesso em: 04 set. 2023.
DOMINGUES, Ivan. 1688: França, Maio e nós: cinquenta anos depois. Revista Kriterion,
edição especial, p. 179-206, jan. 2021. Disponível em:
https://periodicos.ufmg.br/index.php/kriterion/article/view/29111. Acesso em: 04 set.
2023.
FIGUEIREDO, Eurídice; GLENADEL, Paula. França-Brasil: Elementos para uma
relação. Revista Letras, n. 39. p. 47–69, 2009. Disponível em:
https://doi.org/10.5902/2176148512010. Acesso em: 04 set. 2023.
GOMES, Neusa Demartini. Publicidade ou propaganda? É isso aí! Revista FAMECOS, n.
16, p. 111-121, 2001. Disponível em: https://doi.org/10.15448/1980-3729.2001.16.3142.
Acesso em: 04 set. 2023.
GRILLO, Sheila Vieira de Camargo; MACHADO, Flávia Sílvia; CAMPOS, Maria Inês
Batista Campos. Análise comparativa do discurso: quais são seus precursores? Revista
Linha d´Água, v. 31, n. 3, p. 1-17, 2018.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello.
Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
HUNDZINSKI, Celuy Roberta. Maio de 68: estudantes, operários e o silêncio feminino.
Revista Espaço Acadêmico, v. 18, n. 204, p.1-11, 2018. Disponível em:
https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/42656 . Acesso
em: 04 set. 2023.
RANGEL, Etuany Martins; CASTRO, Bianca Gomes da Silva Muylaert Monteiro;
MORAES, Luciana Pereira. “Porque eu sou é home!”: Uma análise dos impactos da
construção social da masculinidade no cuidado com a saúde. Revista Interfaces científicas,
v.6, n. 2, p. 243-252, 2017. Disponível em : https://doi.org/10.17564/2316-
3801.2017v6n2p243-252 Acesso em: 04 set. 2023.
ROBERT, Paul. Le Nouveau Petit Robert de la langue française. Direção Josette Rey-
Debove e Alain Rey. Paris: Le Robert, [1963] 2009.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais
do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Sheila Grilo e Ekaterina
Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, [1929] 2017.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


VON MÜNCHOW, Patricia. Les jounaux télévisés en France et en Allemagne : Plaisir de
voir ou devoir de s’informer. Sartrouville: Presses Sorbonne Nouvelle, 2005.
352
WOITOWICZ, Karina; PEDRO, Joana Maria. O Movimento Feminista durante a ditadura
militar no Brasil e no Chile: conjugando as lutas pela democracia política com o direito ao Oliveira
corpo. Revista Espaço Plural, v. X, n. 21, p. 43-55, 2009. Disponível em: https://e-
revista.unioeste.br/index.php/espacoplural/article/view/3574 . Acesso em: 04 set. 2023.
REVISTA SEMANAL L´EXPRESS. Paris: Groupe express. Roularta. n° 1158, 1973.
REVISTA SEMANAL VEJA E LEIA São Paulo: Abril. n° 238, 1973.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


353

Delanoy

RESENHA
O autor e a personagem na
atividade estética, de Mikhail
Bakhtin

Cláudio Primo Delanoy


Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, Brasil

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


O texto O autor e a personagem na atividade estética, do pensador
russo Mikhail Bakhtin, tem uma nova versão pela Editora 34. Lançado em 354
2023, é uma tradução de Paulo Bezerra, responsável também pelas notas e
Delanoy
pelo posfácio. O tradutor tem o referido texto já publicado em Estética da
criação verbal (Bakhtin, 2003), pela Martins Fontes, uma coletânea baseada
na publicação de 1979 pela editora Iskusstvo, conforme Bezerra (2023). A
versão aqui em apreço é diferenciada. Inclui uma introdução de Bakhtin,
ausente em Estética da criação verbal, e notas de rodapé explicativas mais
esclarecedoras tanto de passagens do texto como de detalhes da tradução. O
autor e a personagem na atividade estética é composto por uma Nota à
edição russa, por Serguei Botcharov, uma “Introdução” e 5 capítulos,
seguidos por um Posfácio, por Paulo Bezerra, e dois textos finais, “Sobre o
autor” e “Sobre o tradutor”.
A nota de abertura do texto, por Serguei Botcharov, propicia ao leitor
a visão geral do que irá encontrar nas páginas seguintes: uma reflexão sobre
a estética, particularmente, na obra de ficção. Segundo Botcharov, em Nota
à edição russa, “[...] nesse trabalho inicial de Bakhtin a estética da criação
literária se abre rumo a uma filosofia da estética” (Botcharov, 2023, p. 8), a
tese essencial do texto, pois o acontecimento estético que envolve tanto o
autor quanto a personagem estaria relacionado a uma filosofia geral da
estética. No âmbito de elaboração dessa estética geral, Bakhtin apresenta-nos
dois conceitos fundamentais e interdependentes – o excedente de visão e a
extralocalização. São tais conceitos os responsáveis pelo que permite o
acontecimento estético - o distanciamento do autor em relação à personagem.
Botcharov, conforme aludimos acima, introduz o leitor às reflexões
bakhtinianas sobre a estética. Cumpre um papel relevante de servir como uma
antecipação distanciada, mas não por isso imprecisa, sobre a tese de uma
estética geral que irá permear todo o volume. Por exemplo, já contextualiza
o pensamento de Bakhtin em diálogo tenso e contrário aos fundamentos da
estética formalista, para a qual a estética advinha de uma atividade técnica,
imanente à própria linguagem, ou seja, uma estética do material, amplamente
discutida em Medviédev (2012). Já para Bakhtin, a noção de acontecimento
é central para a formulação de uma estética geral. O acontecimento está na
base da interação real entre os seres humanos, que tem no diálogo sua
expressão, inspirando o conceito de relações dialógicas, o centro de toda a
reflexão bakhtiniana. Para Botcharov,

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


A categoria de acontecimento – uma das categorias centrais na estética
de Bakhtin – ganha seu estofo original, bakhtiniano, no contexto da
interpretação ampla, pode-se dizer universal, que o autor faz do diálogo 355
como acontecimento decisivo da comunicação humana (Botcharov,
2023, p. 8). Delanoy

Diálogo que transparece em toda atividade estética, não resumido à


interação face a face, mas ampliado em termos de resposta, pois pela
concepção bakhtiniana, a totalidade de uma obra constitui-se como uma
resposta à interação entre pelo menos duas consciências, a do autor e a do
outro, com quem dialoga.
Botcharov também aborda a condição base para o acontecimento
estético, que é a extralocalização do autor em relação ao herói, fundamental
para o excedente de visão ‒ a atividade de aproximar-se do outro, de buscar
compreendê-lo e de voltar a si dando a essa compreensão um acabamento
estético. Nessa esteira, Botcharov alude ao romance polifônico de
Dostoiévski ao escrever:

Entretanto, podemos observar que, na concepção bakhtiniana, a relação


do autor com a personagem no romance polifônico de Dostoiévski é
caracterizada por uma espécie de de contradição com as condições
gerais da atividade estética descritas no presente trabalho (Botcharov,
2023, p. 9).

Pelas palavras do apresentador, Dostoiévski cria um “novo modelo


artístico de mundo”, pois nele o autor abriria mão de seu excedente
conclusivo da personagem, caracterizando o romance polifônico como “[...]
acontecimento da interação entre consciências isônomas [...]” (Botcharov,
2023, p. 8, grifo do autor).
Botcharov também nos recorda da ampliação da noção de
distanciamento em Bakhtin. Enquanto aqui o distanciamento é centralizado
na relação autor-personagem como condição para o acontecimento estético,
em “A ciência da literatura hoje: resposta a uma pergunta da revista Novi
Mir” (Bakhtin, 2017), configura-se como fonte do sentido: “A grande causa
para a interpretação é a distância do intérprete - no tempo, no espaço, na
cultura – em relação àquilo que ele pretende interpretar de forma criadora”
(Bakhtin, 2017, p. 18). E ainda: “No campo da cultura, a distância é a
alavanca mais poderosa da interpretação” (Bakhtin, 2017, p. 18). Tal
concepção vai originar o conceito de grande tempo, desenvolvido em “A
ciência da literatura hoje [...]”, mas que reverbera ao longo dos tratados
bakhtinianos.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Para fechar sua nota de abertura à edição russa, Botcharov alerta para
as possíveis dificuldades na leitura do livro devido ao seu autor não a ter 356
preparado para publicação, e assim, essa contaria com algumas
Delanoy
incompletudes. No posfácio, Paulo Bezerra faz alusão a esse comentário de
Botcharov e acrescenta que o contato com a obra original completa permitiu
esclarecimento das imprecisões da versão primeira.
Nas primeiras linhas do capítulo introdutório, Bakhtin estabelece seu
ponto de partida: “O autor e a personagem são questões determinadas pelo
tempo de vida do pesquisador, bem como pelo estado meramente casual dos
materiais, e esse momento, que traz certa estabilidade arquitetônica, é de
natureza puramente estética” (Bakhtin, 2023, p. 13). Em nota de rodapé, é
explicado que esse momento se refere tanto ao processo como à ação, um
acontecimento que se realiza como um conjunto (numa alusão a Hegel). Tal
acontecimento concretiza-se por meio da arquitetônica, uma estrutura de
conjunto, cujo centro se encontra no homem (Bakhtin, 2023, p. 13). É a
arquitetônica que vai nortear a criação do enunciado, envolvendo todos os
elementos que o constituem, incluindo o falante, o ouvinte, o gênero do
discurso, os aspectos extraverbais (históricos, políticos, econômicos etc.).
Todos esses elementos são organizados em função do momento da interação
e recebem um acabamento estético e um peso axiológico do autor, ou seja,
há estetização. Lemos, em nota de rodapé: “No conjunto de sua obra, Bakhtin
mostra o caráter estético de todas as categorias humanas, quer das categorias
da vida real, quer das categorias científicas” (Bakhtin, 2023, p. 14).
É o processo de estetização que relaciona o autor e a personagem. É
de responsabilidade do autor de uma obra proporcionar um acabamento à sua
criação, pois somente assim estabelece-se o ato estético. Tal concepção de
estética permeia a análise de Bakhtin de uma peça lírica de Púchkin intitulada
Separação, de 1830, ao longo da qual é desenvolvido o conceito de
extralocalização: “[...] condição necessária para juntar num contexto
estético-formal e axiológico único os diferentes contextos que se formam em
torno de várias personagens” (Bakhtin, 2023, p. 20). A análise torna a leitura
ainda mais inspiradora, pois nosso mestre russo aplica seus conceitos na
exploração dos sentidos do poema. Dentre tais conceitos, vemos menções aos
de arquitetônica, cronotopo, tema, entonação e ritmo, todos interdependentes
no momento da obra:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


É preciso de uma vez por todas ter em vista que uma resposta ao objeto,
sua avaliação e o próprio objeto dessa avaliação não são dados como
diferentes momentos da obra e do discurso, nós é que os distinguimos 357
por via abstrata; na realidade, a avaliação penetra o objeto, e ademais a
avaliação cria a imagem do objeto, é justamente a resposta estético- Delanoy
formal que condensa o conceito na imagem do objeto (Bakhtin, 2023,
p. 28).

Fica claro, nessa passagem, que uma obra em sua totalidade constitui
uma resposta estética organizada pelo seu autor, que por meio de um
acabamento formal e axiológico, cria um mundo. Nesse sentido, o herói só é
possível porque recebe um acabamento estético do autor.
Ao longo da “Introdução”, Bakhtin apoia-se na sua perspectiva
estética da criação salientando que qualquer visão estética tem no homem
(ser humano) o seu centro. Nesse sentido, a avaliação do valor de uma obra
ocorre em dois contextos axiológicos: o do herói (contexto ético-cognitivo,
vital) e o do autor (contexto concludente, ético-cognitivo e estético-formal),
mas “[...] o contexto do autor se empenha em envolver a fechar o contexto
do herói” (Bakhtin, 2023, p. 43). É assim que concebe a obra como uma
resposta estética a outras respostas.
O capítulo I intitula-se “A relação entre o autor e a personagem”. Sem
subtítulos, explora as diferentes naturezas do autor (pessoa e criador) e da
personagem. Ressalta:

[...] cada elemento de uma obra nos é dado na resposta que o autor lhe
dá, a qual engloba tanto o objeto quanto a resposta que a personagem
lhe dá (uma resposta à resposta); neste sentido, o autor acentua cada
particularidade e cada traço da sua personagem, cada acontecimento e
cada ato de sua vida, os seus pensamentos e sentimentos, da mesma
forma como na vida respondemos axiologicamente a cada manifestação
daqueles que nos rodeiam (Bakhtin, 2023, p. 45).

Tal resposta é estética na medida em que se configura como um


acabamento em um todo concreto-conceitual singular e único (Bakhtin, 2023,
p. 46), sob responsabilidade do autor. Bakhtin alerta sobre a diferenciação
entre dois tipos de autor: o autor-criador, que nasce na obra; e o autor-pessoa,
elemento do acontecimento social da vida (Bakhtin, 2023, p. 52). Tal
confusão precisa ser evitada, principalmente, nas análises de obras
autobiográficas, em que o autor-criador, responsável pelo acabamento
estético, não é idêntico ao autor-pessoa, que, como ser ético e social, é sempre
inacabado. É o excedente de visão do autor-criador que permite a atividade
estética da obra, como se comprova no trecho:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


O autor não só enxerga e conhece tudo o que cada personagem em
particular e todas as personagens juntas enxergam e conhecem, como
enxerga e conhece mais que elas, e ademais enxerga e conhece algo que 358
por princípio é inacessível a elas, e esse excedente de visão e
conhecimento do autor, sempre determinado e estável em relação a cada Delanoy
personagem, é que se encontram todos os elementos do acabamento do
todo, quer das personagens, quer do acontecimento conjunto de suas
vidas, isto é, do todo da obra (Bakhtin, 2023, p. 54).

À página 56, encontramos explicitamente a condição fundamental da


relação entre autor-personagem: a extralocalização. Nas palavras do mestre,
a tensa extralocalização do autor em relação à personagem é a fórmula geral
basilar esteticamente produtiva, “[...] uma extralocalização no espaço, no
tempo, nos valores e nos sentidos, que permite abranger integralmente a
personagem [...]” (Bakhtin, 2023, p. 56, grifo do autor).
Na continuação, Bakhtin faz considerações sobre a particularidade da
obra autobiográfica e coloca uma problemática: o autor deve colocar-se à
margem de si. Somente assim ele pode dar acabamento estético à sua vida,
posicionar-se axiologicamente quanto à suas atividades e aos objetos do
mundo. Cita três casos em que o autor teria perdido sua posição
extralocalizada em relação à personagem: quando a personagem assume o
domínio sobre o autor; quando o autor se apossa da personagem; e quando a
personagem é autora de si mesma. Cada um desses casos é discutido de
maneira completa, sendo possíveis outros desdobramentos além desses três.
Na finalização do capítulo, Bakhtin esclarece que, para haver
acontecimento estético, deve haver a presença de dois participantes, “duas
consciências que não coincidem” (Bakhtin, 2023, p. 65). Se houver
coincidência, não haverá ato estético, mas um ato ético, concretizado sob um
enunciado da vida (panfleto, manifesto etc.), de um acontecimento cognitivo
(artigo, conferência etc.) ou mesmo religioso (oração, ritual etc.). Sem o
distanciamento extralocalizado, é impossível a obra estética.
O capítulo II, intitulado “A forma espacial da personagem” abarca sete
partes: (1) O excedente da visão estética; (2) A imagem externa; (3) O
vivenciamento das fronteiras externas do homem; (4) A imagem externa da
ação; (5) O corpo como valor: o corpo interior; (6) O corpo exterior; e (7) O
todo espacial da personagem e do seu mundo. Nesse capítulo, Bakhtin
desenvolve a ideia de que eu e outro estão em relação de interdependência,
na qual cada um tem uma visão do outro que o complementa, já que é

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


impossível termos uma visão completa de nós mesmos. Tal possibilidade se
dá pela posição exotópica (extralocalizada) do outro: 359

Esse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha posse Delanoy


– excedente sempre presente em face de qualquer outro indivíduo – é
condicionado pela singularidade do meu lugar no mundo: porque nesse
momento e nesse lugar, em que sou o único a estar situado em dado
conjunto de circunstâncias, todos os outros estão fora de mim (Bakhtin,
2023, p. 67, grifos do autor).

Nesse ponto, já podemos estabelecer conexão com a obra Para uma


filosofia do ato responsável (Bakhtin, 2010), na qual é desenvolvida a noção
da singularidade do ser e de sua responsabilidade na vida. Desse modo, a
contemplação, a partir da visão do eu, permite dar um acabamento axiológico
e estético ao outro. Também nessa parte é discutida a noção de empatia,
quando vemos o mundo do outro tal qual como ele o vê e, ao retornar a mim
mesmo, dar-lhe uma forma concludente (Bakhtin, 2023, p. 69).
A imagem externa, então, é examinada como ‘conjunto de todos os
elementos expressivos e falantes do corpo humano” (Bakhtin, 2023, p. 72) e
busca responder às perguntas “Como vivenciamos a nossa própria imagem
externa e a imagem externa no outro?” e “Em que plano do vivenciamento
está o seu valor estético?” (Bakhtin, 2023, p. 72). A questão é que são
percepções distintas. A minha imagem externa não deixa de ser uma vivência
interna, pois é experienciada de dentro de mim, como uma autossensação
interior; já a imagem externa do outro é contemplada de fora e avaliada
axiologicamente por mim. Nessa parte, Bakhtin discorre sobre a percepção
no espelho, no qual nunca nos olhamos sozinhos, mas também pelos olhos
do outro, e faz uma instigante elaboração sobre o autorretrato, a fotografia e
a pintura de si pelo outro, como modos distintos de acabamentos do objeto
estético.
O mestre também aborda as vivências fronteiriças externas do eu e do
outro. Escreve: “Vivencia-se essa fronteira externa na autoconsciência, isto
é, em relação a si mesmo, de modo essencialmente diverso do que se vivencia
em relação a outro indivíduo” (Bakhtin, 2023, p. 84). A razão está na
impossibilidade de o eu ver-se de fora, condição diversa da visão do outro,
que é dada ao eu como acabada e delimitada entre os objetos do mundo: “[...]
para mim, o outro está reunido e contido por inteiro em sua imagem externa”
(Bakhtin, 2023, p. 88).

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


A própria percepção da ação externa e do corpo dá-se em modos
distintos, nos moldes de que já falamos. A autoconsciência impede uma visão 360
afastada do eu em relação a si mesmo, o que podemos fazer em relação ao
Delanoy
outro pela nossa posição extralocalizada, assim como o outro pode fazer
comigo: “Meu corpo, em seu fundamento, é um corpo interior; o corpo do
outro, em seu fundamento, é um corpo exterior” (Bakhtin, 2023, p. 97). Neste
capítulo, “O corpo exterior”, encontramos Bakhtin discorrendo sobre a
interpretação teatral (Bakhtin, 2023, p. 136), em que discute questões da
encarnação da personagem pelo ator. No processo, a personagem é vista de
fora, como objeto estético, sendo impossível a fusão ator-personagem.
O capítulo 3, sob o título “O todo temporal da personagem: a questão
do homem interior – da alma”, consta com quatro partes: (1) A personagem
e sua integridade na obra de arte; (2) A relação volitivo-emocional com a
clareza interior do homem: o problema da morte (da morte por dentro e da
morte por fora); (3) O Ritmo; e (4) A alma. Aqui, Bakhtin defende que a
integridade da personagem não pode ser dada por ela própria, mas somente
pelo outro, por outra consciência que lhe é transgrediente. A assimilação
estética da personagem pertence ao autor-contemplador. Explica-nos:

Os princípios de enformação da alma são princípios de enformação da


vida interior de fora, de outra consciência; também aqui o trabalho do
artista se desenvolve nas fronteiras da vida interior, onde a alma está
interiormente voltada para fora de si (Bakhtin, 2023, p. 163, grifos do
autor).

Denomina de compreensão simpática o movimento de aproximação


do eu visando ao mundo interior do outro (Bakhtin, 2023, p. 164), processo
que nunca resultará em fusão de consciências, pois são mundos distintos, que
partem de visões distintas: somente a extralocalização do eu em relação ao
outro, e vice-versa, permite a compreensão do objeto externo, dando-lhe
acabamento estético. Bakhtin exemplifica com:

Os acontecimentos do meu nascimento, da minha permanência


axiológica no mundo e, por último, da minha morte não se realizam em
mim nem para mim. O peso emocional da minha vida em seu conjunto
não existe para mim mesmo (Bakhtin, 2023, p. 167, grifo do autor).

Partindo dessa perspectiva, por exemplo, não posso compreender a


minha morte, mas somente a morte do outro, momento em que atribuo a ele
uma personalidade estetizada, com acabamento estético significativo e

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


valores axiológicos, justamente, porque estou de fora. “Só no mundo dos
outros torna-se possível o movimento estético [...]” (Bakhtin, 2023, p. 174). 361

A extralocalização também se manifesta em termos de ritmo, nas Delanoy


diferenças entre o meu tempo e o tempo do outro (Bakhtin, 2023, p. 184),
pois de minha parte não tenho capacidade de vivenciar meu tempo de dentro,
mas posso conceber o tempo do outro, porque posso dar acabamento estético
a ele. “Não sou o herói de minha vida”, afirma-nos Bakhtin (2023, p. 175),
quer dizer, não me é possível abarcar-me como um todo. A minha alma,
portanto, somente pode ser concebida pelo outro. Com tais ponderações, o
texto reitera as diferenças entre autor e personagem, ou entre “[...] o portador
do conteúdo do sentido da vida e o portador do seu acabamento estético”
(Bakhtin, 2023, p. 203).
O capítulo 4, “O todo semântico da personagem”, tem seis partes, a
saber: (1) O ato e o autoinforme-confissão; (2) A autobiografia e a biografia;
(3) A persona lírica e o autor; (4) O caráter como interação personagem-
autor; (5) O tipo como forma de interação personagem-autor; e (6) A
hagiografia. O enunciado de abertura do capítulo dá-nos a base do que será
desenvolvido:

A arquitetônica do mundo da visão artística não ordena só os elementos


espaciais e temporais, mas também os de sentido; a forma não é só
espacial e temporal, mas também do sentido (Bakhtin, 2023, p. 205).

Isso significa que elementos do sentido no acontecimento indicam


determinadas escolhas de acabamento formal, no todo semântico da
personagem, sob a atuação do autor.
Na continuidade, uma passagem bastante relevante para a abordagem
do ato o difere do acontecimento estético. O ato representa a ação do
indivíduo, concretizada pelas palavras, sentimentos, pensamentos. No
entanto, como já sabemos, pelo próprio ato o indivíduo não completa a si
mesmo, mas somente o outro. A individualidade acabada lhe é inalcançável
pelo ato, sempre singular em si mesmo, mas possibilitada se for objetivada
pelo outro, a partir de sua visão exotópica. “O ato de criação artística também
só opera com significações dos objetos para as quais se volta a atividade
artística”, afirma-nos Bakhtin (2023, p. 207), reforçando, assim, as naturezas
distintas entre autor e personagem.
A questão do autoinforme-confissão é intrigante: seria uma auto-
objetivação do eu, em que a relação do eu consigo mesmo seria o organizador

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


do enunciado (Bakhtin, 2023, p. 209). Notamos, porém, adiante, o
esclarecimento de Bakhtin sobre a possibilidade de os pesos axiológicos do 362
outro poderem turvar a minha relação comigo mesmo, quando, então, eu já
Delanoy
deixaria de estar só na minha confissão. Portanto, o autoinforme “puro e
solitário” é impossível (Bakhtin, 2023, p. 211). De qualquer maneira, há uma
estetização no processo, pois não é o ato em si que configura o acontecimento
estético. O ato somente vive, nas palavras de Bakhtin, no acontecimento
singular e único da existência, sempre aberto, inconcluso. Dessa forma, o ato
não tem como dar acabamento à própria vida (Bakhtin, 2023, p. 210).
No sentido do que estamos desenvolvendo, a biografia e a
autobiografia aproximam-se do autoinforme-confissão, pois exigem o
acabamento estético vindo da posição extralocalizada: “Nem na biografia,
nem na autobiografia o eu-para-mim (a relação consigo mesmo) é elemento
organizador constitutivo da forma” (Bakhtin, 2023, p. 219). Na
autobiografia, faz-se necessária uma objetivação artística de mim mesmo e
da minha vida, envolvendo elementos transgredientes a mim. Seria como
tornar-me um outro para mim mesmo, um outro capaz de atribuir tons
axiológicos ao que recordo de minha existência, de minhas vivências, e
assim, dar uma forma artística às minhas memórias. Esclarece-nos:

O autor de biografia é aquele outro possível, pelo qual somos mais


facilmente possuídos na vida, que está conosco quando nos olhamos no
espelho, quando sonhamos com a fama, fazemos planos externos para
a vida; é o outro possível que se infiltrou na nossa consciência e
frequentemente dirige os nossos atos, nossas apreciações e nossa visão
de nós mesmos ao lado do nosso eu-para-mim [...] (Bakhtin, 2023, p.
221, grifo do autor).

Bakhtin prossegue ao retratar a objetivação lírica do homem interior


como uma forma de auto-objetivação, caso em que a personagem e o autor
estão mais próximos. No entanto, a forma lírica vem sempre de fora, a partir
da relação axiológica do outro com ela. Nesse caso, a personagem tem sua
autonomia abafada, pois é dominada mais ostensivamente pelo autor
(Bakhtin, 2023, p. 238).
Outra forma de interação entre autor e personagem é o tipo, que
“traduz a diretriz do homem para os valores já concretizados e delimitados
pela época e pelo meio [...], isto é, para o sentido que já se fez ser” (Bakhtin,
2023, p. 255). O tipo, como elemento de generalização, é acentuadamente
transgrediente, sendo comumente presente nas sátiras (Bakhtin, 2023, p.
257). Na conclusão do capítulo, Bakhtin explora a hagiografia, a biografia

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


dos santos ou seu estudo, como outra forma da interação autor-personagem.
Nesse gênero, o autor como que renuncia a si mesmo para assumir sua atitude 363
reverencial em direção à personagem: “A hagiografia se realiza diretamente
Delanoy
no mundo do divino” (Bakhtin, 2023, p. 258). No caso, a extralocalização do
autor frente à personagem é diminuída em seus efeitos. A conclusão do
capítulo é, de fato, esclarecedora:

Nesse sentido, podemos dizer que a interação entre autor e personagem


dentro de uma obra concreta apresenta constantemente vários atos: o
autor e a personagem lutam entre si, ora se aproximando, ora se
separando bruscamente; mas a plenitude do acabamento da obra
pressupõe uma discrepância aguda e a vitória do autor (Bakhtin, 2023,
p. 260).

Vitória que lhe cabe porque só o autor tem a possibilidade de enformar


esteticamente a personagem em qualquer circunstância.
O capítulo 5 e último, “O problema do autor”, conta com quatro partes:
(1) O problema da personagem; (2) O conteúdo, a forma, o material; (3) A
substituição do contexto axiológico do autor pelo contexto literário do
material; e (4) A tradição e o estilo. Basicamente, é um capítulo no qual
Bakhtin condensa as reflexões até então desenvolvidas. Podemos sintetizá-lo
no trecho “Em todas as formas estéticas, a força organizadora é a categoria
axiológica de outro, é a relação com o outro enriquecida pelo excedente
axiológico da visão para o acabamento transgrediente” (Bakhtin, 2023, p.
263). É a tese base de toda esta obra.
Encontramos, nas linhas seguintes, algumas considerações sobre o
artista e a arte. O artista, pertencente ao mundo da vida, sabe abarcar
momentos singulares do acontecimento do existir e transformá-los em
objetos artísticos. A arte tem a capacidade de representar uma visão acabada,
estetizada, do mundo, ou melhor, uma imagem dele, segundo um ponto de
vista extralocalizado do artista. É nesse âmbito que podemos retornar ao
conceito do dialogismo enquanto natureza da linguagem humana, que se
externaliza em enunciados concretos verbais e/ou não verbais como respostas
a outros enunciados. A obra de um artista é, portanto, uma resposta estética
ao mundo.
No processo de estetização, o autor “visa ao conteúdo (tensão vital, ou
seja, ético-cognitiva da personagem), enforma-o e o conclui usando para isso
um determinado material, no nosso caso verbalizado, subordinando esse
material ao seu desígnio artístico” (Bakhtin, 2023, p. 266). Chega o momento

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


em que Bakhtin discorre sobre os três elementos presentes na obra de arte: o
conteúdo, o material e a forma. Salienta que a forma não acontece separada 364
dos outros dois elementos, pois é condicionada a um conteúdo e,
Delanoy
simultaneamente, a determinadas características do material e dos meios de
elaboração da obra (Bakhtin, 2023, p. 266). Ao lidar com o material verbal,
o artista supera a língua enquanto sistema de signos e torna-a meio de
expressão artística:

Seria ingênuo imaginar que o artista necessita apenas de uma língua e


do conhecimento dos procedimentos de tratamento dessa língua; mas
ele a recebe precisamente e apenas como língua, isto é, recebe-a do
linguista (porque só o linguista opera com a língua enquanto língua);
essa língua é o que inspira o artista, e nela ele realiza toda a sorte de
desígnios sem ir além dos seus limites como língua apenas, de certo
modo; desígnio semasiológico, fonético, sintático, etc. (Bakhtin, 2023,
p. 267, grifo do autor).

O artista, então, supera o material língua para uma determinação


artística, assim como o escultor supera o mármore para a exprimir uma forma
plástica, mesmo ainda sendo mármore. Em termos verbais, o autor lida com
as palavras lhe dadas pela língua e, a partir delas, de sua morfologia, de sua
sintaxe, semântica etc. cria uma visão particular de mundo. Como nos diz o
mestre, a palavra deixa de ser sentida como mera palavra (Bakhtin, 2023, p.
267) ao passar por procedimentos de enformação e de acabamento.
No fechamento do capítulo, nosso pensador russo resume a
configuração do autor de uma obra. Deve ser concebido como pertencente ao
acontecimento estético, “como participante dela, como orientador autorizado
do leitor” (Bakhtin, 2023, p. 284). O autor enquanto homem da vida real é
objeto do historiador; já no interior do objeto artístico, encarna “a unidade
dos elementos transgredientes da visão, que podem ser ativamente
vinculados à personagem e ao seu mundo” (Bakhtin, 2023, p. 284).
Por fim, se as notas de Botcharov, na abertura do livro, preparam o
terreno para a leitura do que virá, o posfácio de Paulo Bezerra, intitulado “O
autor e a personagem na atividade estética: uma obra seminal” (Bezerra,
2023, p. 286), soa como a camada final de embelezamento, um fechamento
articulado com o todo das reflexões de Bakhtin, permeado de considerações
sobre a tradução de termos, os bastidores da aquisição dos originais russos,
as relações com as obras vindouras de Bakhtin, as retomadas de conceitos e,
ainda, algumas aproximações analíticas com nomes da literatura nacional,
como Machado de Assis e Graciliano Ramos.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Logo de início, nos situa quanto à atualização do texto: é uma tradução
da versão integral do original russo, incluindo o capítulo “Introdução”, que 365
não consta em Estética da criação verbal, e notas de rodapé mais
Delanoy
esclarecedoras. Bezerra discorre sobre a relação de “O autor e a personagem
[...]” com outras duas produções de Bakhtin, Por uma filosofia do ato,
publicado no Brasil como Para uma filosofia do ato responsável (Bakhtin,
2010) e O problema do conteúdo, do material e da forma na criação artística
verbal, publicado como “O problema do conteúdo, do material e da forma na
criação literária” em Questões de literatura e estética (Bakhtin, 1988). Para
o tradutor, “O autor e a personagem [...]” é uma obra “fronteiriça” com as
outras duas em termos de reflexões filosóficas e filológicas, ao esmiuçar o
conceito de arquitetônica, mesmo em entrelinhas, e esclarecer que tudo na
vida do ser humano, sua arte e sua cultura, passa por valores axiológicos.
Bezerra ainda auxilia o leitor a fazer relações nem sempre tão
evidentes àquele que inicia sua jornada bakhtiniana. Por exemplo, define o
que seria a metalinguística para o pensador russo, uma “[...] ciência-síntese
da filosofia e da filologia que teria como espaço as fronteiras da linguística,
da antropologia filosófica e da investigação literária ou ciência da literatura
[...]” (Bezerra, 2023, p. 290), conceito apresentado em Marxismo e filosofia
da linguagem (Volóchinov, 2017) em oposição às duas grandes correntes de
investigação da linguagem, o objetivismo abstrato e o subjetivismo
individualista; e mesmo evidencia a aproximação entre a arquitetônica e a
construção da personagem, no trecho:

[...] a arquitetônica é a do mundo, vivenciável, isto é, o mundo concreto


do ato e da visão estética, que tem como centro o homem em
vivenciamento e é determinado a partir deste. Em suma, a arquitetônica,
como uma disposição lógica intuitivo-conceptiva das partes e dos
elementos de um conjunto, só é possível em torno de um homem
definido: o herói (ou personagem) (Bezerra, 2023, p. 291, grifos do
autor).

A leitura do posfácio consolida de modo inequívoco as ponderações


bakhtinianas não só de “O autor e a personagem [...]”, mas também de outros
escritos do filósofo russo ao discutir os conceitos fundamentais da
epistemologia de Bakhtin, como, por exemplo, arquitetônica (já citada),
dialogismo, cronotopo, extralocalização, excedente de visão, dentre outros.
Um texto obrigatório para a sistematização da leitura, que pode ser resumida
em:

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Assim, O autor e a personagem na atividade estética é uma obra
seminal, na qual predomina uma poética teórica filosoficamente
sedimentada. Ela levanta, desde o início, temas que posteriormente irão 366
reverberar em outras obras do mestre, dando uma visão sistêmica de
suas reflexões teóricas e empíricas desde o seu nascedouro (Bezerra, Delanoy
2023, p. 294, grifos do autor).

Concluindo, temos em mãos uma obra indispensável àqueles que se


debruçam sobre a linguagem, seja cotidiana (da vida) ou artística, sob
perspectiva teórica ou empírica, para explicar a construção de sentidos na
relação autor-texto-leitor. O pesquisador encontra embasamento solidamente
estabelecido para suas análises a partir de uma concepção da linguagem real,
construída por meio de fundamentos filosóficos, linguísticos e artísticos.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4.ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Trad. Paulo
Bezerra. São Paulo: 34, 2017.
BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Trad. Paulo Bezerra.
São Paulo: 34, 2023.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. Valdemir Miotello e
Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João, 2010.
BEZERRA, Paulo. O autor e a personagem na atividade estética: uma obra seminal. In:
BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Trad. Paulo Bezerra.
São Paulo: 34, 2023, p. 286-305.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (A teoria do romance). Trad.
Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, 1988.
BOTCHAROV, Serguei. Nota à edição russa. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a
personagem na atividade estética. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: 34, 2023, p. 7-10.
MEDVIÉDEV, Pável. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma
poética sociológica. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo:
Contexto, 2012.
VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila
Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


SOBRE OS AUTORES 367

Sobre os
Marilia Amorim autores
Professora aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de
Psicologia, Departamento de Psicologia Social, Campus Praia Vermelha, Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil e da Universidade de Paris VIII, UFR de Sciences
de L’Éducation, Psychanalyse et Français, Campus Saint-Denis, Saint-Denis,
França.
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/4558062970398358
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8004-1424
E-mail: marilia66amorim@gmail.com

Maria Inês Batista Campos Noel Ribeiro


Professora do Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (FFLCH-USP), São Paulo, Brasil; líder do grupo de pesquisa Linguagens,
Discurso e Ensino (USP/CNPq); coordenadora do GT Estudos Bakhtinianos da
ANPOLL (Gestão 2023-2025).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9572384519070224
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0004-9923
E-mail: maricamp@usp.br

Urbano Cavalcante Filho


Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagens e
Representações e do Profletras da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC)
e do Instituto Federal da Bahia (IFBA), Ilhéus, Bahia, Brasil; líder do grupo de
pesquisa Lindes: Linguagens, Discurso e Sociedade (IFBA/CNPq) e pesquisador
dos grupos Linguagens, Discurso e Ensino, do Diálogo, do GEDUSP (USP/CNPq)
e vice-coordenador do GT Estudos Bakhtinianos da ANPOLL (Gestão 2023-
2025).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6466770995969401
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1429-5300
E-mail: urbano@ifba.edu.br

Lucas Nascimento
Professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Bahia, Brasil; coordenador
do Grupo de Estudos Dialógicos em Discurso e Argumentação (UEFS/CNPq).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/4295437582484487
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-8642-4397
E-mail: lnsilva2@uefs.br

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Thiago Jorge Ferreira Santos
Professor do Departamento de Metodologia de Ensino do Centro de Ciências 368
da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Santa Catarina,
Brasil. Sobre os
autores
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/8145138073966874
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8857-1486
E-mail: thiagojorgefs@gmail.com

Frédéric François
Professor honorário, Universidade Paris Descartes.
E-mail: j.frederic.francois@wanadoo.fr

Nathalia Akemi Sato Mitsunari


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Filologia em Língua
Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil; integrante
do grupo de pesquisa Linguagens, Discurso e Ensino (USP/CNPq).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3304249052164313
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1389-9337
E-mail: nathalia.mitsunari@usp.br

Viviane Mendes Leite


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Filologia em Língua
Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil; integrante
do grupo de pesquisa Linguagens, Discurso e Ensino (USP/CNPq).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6858320997853849
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5073-6743
E-mail: mendesviviane82@usp.br

Jamille Santos Oliveira


Doutoranda em Letras: Linguagens e Representações da Universidade Estadual
de Santa Cruz (UESC), Bahia, Brasil; integrante do grupo de pesquisa LINDES:
Linguagens, Discurso e Sociedade (CNPq/IFBA).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/7511612781288531
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6265-235X;
E-mail: jamelleca@gmail.com

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Maria Elia dos Santos Teixeira de Carvalho
Doutoranda em Letras: Linguagens e Representações na Universidade Estadual 369
de Santa Cruz (UESC), Bahia, Brasil; integrante do grupo de pesquisa LINDES:
Linguagens, Discurso e Sociedade (IFBA/CNPq). Sobre os
autores
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3727612368148044
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3101-6588
E-mail: mariaelia.carvalho@yahoo.com.br

Maria das Graças Soares Rodrigues


Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Rio Grande
do Norte, Brasil; pesquisadora do grupo de pesquisa em Análise Textual dos
Discursos (ATD) (UFRN/CNPq).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/1239053356970371
ORCID: 0000-0002-8295-358X
E-mail: maria.rodrigues@ufrn.br

Karla Stéphany de Brito Silva


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Rio Grande do Norte,
Brasil; integrante do grupo de pesquisa em Análise Textual dos Discursos (ATD)
(UFRN/CNPq).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3077972879865963
ORCID: 0000-0002-0625-9254
E-mail: karla.silva.108@ufrn.edu.br

Miriam Bauab Puzzo


Professora aposentada pela Universidade Taubaté (UNITAU), São Paulo, Brasil,
membro do GT Estudos Bakhtinianos da ANPOLL, integrante dos grupos de
pesquisa Linguagens, Discurso e Ensino (USP/CNPq), Fundamentos e
desdobramentos da perspectiva dialógica para a análise de discursos verbais e
verbo visuais (PUC-SP) e Linguística Aplicada e Comunicação Social: estudos
interdisciplinares (UNITAU).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6898954739357029
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0046-7159
E-mail: puzzo@uol.com.br

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Luciana Taraborelli
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Filologia em Língua 370
Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil; integrante
do grupo de pesquisa Linguagens, Discurso e Ensino (USP/CNPq). Sobre os
autores
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/1247551192848919
E-mail ltaraborelli@usp.br.
ORCID https://orcid.org/0000-0002-0688-2740

Laiza Luz Martins Sant’Ana


Doutoranda do Programa de Pós–Graduação em Estudos da Linguagem da
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Mato Grosso, Brasil; integrante
dos grupos de pesquisa REBAK - Relendo Bakhtin (UFMT/CNPq) e DLBAL –
Diálogos Literários Brasil e África Lusófona.
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/5918306902532515
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5004-5360
E-mail: laizaluzsantana@gmail.com

Simone de Jesus Padilha


Professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Mato Grosso, Brasil; líder do
grupo de pesquisa REBAK - Relendo Bakhtin (UFMT/CNPq).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3020979926140822
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4540-0070
Email: simonejp1@gmail.com

Madson Bruno Soares Estevam


Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Rio Grande do Norte,
Brasil; integrante do grupo de pesquisa em Análise Textual dos Discursos (ATD)
(UFRN/CNPq).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/4026030396326916
ORCID: http://orcid.org/0009-0006-1988-9905
E-mail: bruno.madson2011@gmail.com

Larissa Vieira de Cerqueira


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Filologia em Língua Portuguesa
da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil; integrante do grupo de
pesquisa Linguagens, Discurso e Ensino (USP/CNPq).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3859083902850545
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0474-2602
E-mail: larissa.cerqueira@usp.br

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos


Letícia Thomé de Oliveira
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Filologia em Língua Portuguesa 371
da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil; integrante do grupo de
pesquisa Linguagens, Discurso e Ensino (USP/CNPq). Sobre os
autores
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/8052928214328781
ORCID: https://orcid.org/0009-0001-2984-8705
E-mail: leticia.thome.oliveira@usp.br

SOBRE A TRADUTORA

Dóris de Arruda C. da Cunha


Professora titular aposentada da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
Pernambuco, Brasil.
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/0061348175883853
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5349-2887
E-mail: doris@ufpe.br

SOBRE O RESENHISTA

Cláudio Primo Delanoy


Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Rio Grande do Sul, Brasil; líder do
grupo de pesquisa Discursos em Diálogo (PUC-RS/CNPq).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/0339415537777452
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8015-5349
E-mail: claudio.delanoy@pucrs.br

Discursos, linguagens e representações: exercícios dialógicos

Você também pode gostar