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Charleston Chaves

Claudia Moura da Rocha


Fábio André Cardoso Coelho
(orgs.)

MATERIAIS
DIDÁTICOS, EAD,
PIBID, ENSINO DE
LÍNGUA PORTUGUESA
E ENSINO SUPERIOR
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |1

Charleston Chaves
Claudia Moura da Rocha
Fábio André Cardoso Coelho
(orgs)

____________________________________________________________

MATERIAIS DIDÁTICOS, EAD, PIBID, ENSINO DE


LÍNGUA PORTUGUESA E ENSINO SUPERIOR
____________________________________________________________
2 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Pós-Graduação em Letras – UERJ

Reitor Mario Sergio Alves Carneiro

Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa – PR2 Luís Antônio Campinho Pereira da Mota

Coordenação Geral Viviane da Silva Vasconcelos

Vice–Coordenação Geral Tania Maria Nunes de Lima Camara

Coordenação da Área de Língua Alexandre do Amaral Ribeiro


Sandra Pereira Bernardo

Coordenação da Área de Literatura Nabil Araújo de Souza


Ieda Maria Magri

Conselho editorial e científico da obra

Alejandro Ballesteros (UNC – Argentina) Ana Malfacini (UERJ)


Ana Poltronieri (IFF) André Valente (UERJ)
Beatriz Feres (UFF) Castelar de Carvalho (Liceu Literário Português)
Charleston Chaves (UERJ) Cláudia Moura (UERJ)
Cláudio Cezar Henriques (UERJ) Désirée Motta-Roth (UFSM)
Elisa Almeida (SEEDUC-RJ) Fábio André Cardoso Coelho (UFF/UNIFESP)
Fabio Pesaresi (Liceo di Rimini/Itália) Felipe Lacerda (SME/Duque de Caxias)
Irandé Antunes (UECE) Ivo Rosário (UFF)
Janine M.aria R. da Silva (SEEDUC-RJ/UFF) Jefferson Evaristo (UERJ)
Leonor Werneck (UFRJ) Lúcia Deborah (CPII)
Magda Bahia Schlee (UERJ) Marcelo Beauclair (UERJ)
Márcia da Gama Silva Felipe (SEEDUC-RJ) Marcos Wiedemer (UERJ/FFP)
Nilza Barrozo (UFF) Patrícia Neves (UFF)
Rosane Monnerat (UFF) Tania Camara (UERJ)
Tânia Mikaela Garcia Roberto (UFRRJ) Vânia Casseb Galvão (UFG)
Vania Dutra (UERJ)
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Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Revisão


Portuguesa e Ensino Superior

Charleston Chaves Charleston Chaves


Claudia Moura da Rocha Claudia Moura da Rocha
Fábio André Cardoso Coelho Fábio André Cardoso Coelho
(orgs) Jefferson Evaristo

Capa/Diagramação Coordenação editorial

Igor laurentino Jefferson Evaristo


Jefferson Evaristo Editora CONELP

As ideias e opiniões expressas nos textos deste livro são de responsabilidade exclusiva de seus respectivos autores
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De 26 a 28 de setembro de 2018, na Universidade do Estado do Rio


de Janeiro, ocorreu o II CONELP – Congresso Internacional de
Ensino de Língua Portuguesa. O livro que você tem em mãos é
resultante dos trabalhos que foram apresentados durante o evento.
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Sumário

A LINGUÍSTICA TEXTUAL, A PRAGMÁTICA E A ANÁLISE DO DISCURSO NO 11


ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA – DA FORMAÇÃO À PRÁTICA DOCENTE

Charleston Chaves | Claudia Moura da Rocha | Fabio André Cardoso Coelho

CONSTRUINDO A IMAGINAÇÃO E O EMPODERAMENTO DISCENTE. 21


CONSIDERAÇÕES SOBRE ATIVIDADES MEDIADAS DE LEITURA EM AULAS DE
LÍNGUA PORTUGUESA

Aline Salucci Nunes

A PRODUÇÃO DE SENTIDOS POR MEIO DA LEITURA DE TIRINHAS NAS AULAS 35


DE LÍNGUA PORTUGUESA

Almerindo Cardoso Simões Junior | Thatiana Muylaert Siqueira Menezes

SINONÍMIA E EXPRESSIVIDADE EM TEXTOS MIDIÁTICOS 53

Ana Malfacini | Marcelo Beauclair

OS RECURSOS VERBAIS E NÃO VERBAIS NO JORNAL MEIA HORA: UMA 66


PROPOSTA DIDÁTICA COM AS MANCHETES DE CAPA

Andressa Cristina Oliveira | Stefanio Tomaz da Silva

PROJETO LYRICS: LETRAS DE MÚSICAS EM INGLÊS TRATADAS COMO TEXTO 86


POÉTICO NA VERSÃO PARA O PORTUGUÊS

Anna Carolina Legroski

O PROCESSO DE ESCRITA COTIDIANA DE ALUNOS DO ENSINO MÉDIO: 99


INSPIRAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DE AÇÕES DE ENSINO-
APRENDIZAGEM ANCORADAS EM PROJETOS DE LETRAMENTO

Arisberto Gomes de Souza | Maria do Socorro Oliveira | Fernando Leite Nunes da Costa

ANÁLISE DISCURSIVA DO LIVRO DIDÁTICO: O USO DE TIRINHAS E A 116


(RE)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA

Débora Lívia Cunha da Costa | Raimundo Isídio de Sousa

A ESCRITA E OS MECANISMOS DA REESCRITA NO ENSINO MÉDIO E NA 134


EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Elisa da Silva de Almeida | José Enildo Elias Bezerra


6 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

PROJETO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA: TENDÊNCIAS DA PRODUÇÃO 149


CIENTÍFICA BRASILEIRA SOBRE LETRAMENTO ACADÊMICO NA FORMAÇÃO
DE PROFESSORES

Elisa Bragança Curi Magalhães de Souza | Jéssica do Nascimento Rodrigues

ARTILHARIA NO JOGO DO DISCURSO: SABERES E ESTEREÓTIPOS EM 162


CHARGES SOBRE A COPA DO MUNDO DE 2018

Eveline Coelho Cardoso

O DIALOGISMO E A POLIFONIA NA PRODUÇÃO DE SENTIDOS EM CAPAS DE 181


REVISTAS

Gesseldo de Brito Freire

A ARGUMENTAÇÃO PARA ALÉM DO TIPO TEXTUAL DISSERTATIVO- 197


ARGUMENTATIVO

Gisele de Menezes Surcin

RETEXTUALIZAÇÃO DO GÊNERO CAUSO: UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA 209


O ENSINO-APRENDIZAGEM DE PRODUÇÃO DE TEXTO

Gleiciane Rosa Vinote Rocha

PERCURSO METODOLÓGICO DE UMA PESQUISA SOBRE POLÍTICAS 226


LINGUÍSTICAS E INTERNACIONALIZAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA

Jefferson Evaristo

ESTUDOS DE GRAMÁTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL: TRANSITIVIDADE E 240


CONTEXTO NO ENSINO DE GRAMÁTICA DE LÍNGUA PORTUGUESA

Jordana Lenhardt

SOCIOLINGUÍSTICA: VARIAÇÃO E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA, UMA 256


REFLEXÃO NECESSÁRIA

Juliete Maganha Silva | Iago Pereira dos Santos | Bárbara Viana Villaça | Eliana Crispim
França Luquetti

PRÁTICAS DE LETRAMENTO E PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO 269

Karine Oliveira Bastos

ANÁLISE TEXTUAL DA MÚSICA “APESAR DE VOCÊ”, DE CHICO BUARQUE: 285


INTERDISCIPLINARIDADE E LEITURA TUTORIAL

Letícia Lopes de Almeida | Tatiane Castro dos Santos


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CLAREZA TEXTUAL: CAMINHOS DO SENTIDO 304

Luiz Antônio Cavalcanti Monteiro

MEMES DE INTERNET COMO PRÁTICA COMUNICATIVA: UMA SEQUÊNCIA 320


DIDÁTICA PARA AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Maria Alice de Souza

PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO EM PRÁTICAS DISCURSIVAS A PARTIR DAS 336


HQS

Marlene Mendes Silva | Marlúcia Mendes da Rocha

RECURSOS DIDÁTICOS DO IMPRESSO ÀS NOVAS TECNOLOGIAS DA 351


INFORMAÇÃO NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: POSSIBILIDADES DE
TRABALHO

Mateus Esteves de Oliveira

JORNAL IFFOLHA: AUTORIAS NO ENSINO TÉCNICO FEDERAL 365

Melina Rezende Dias | Ana Beatriz Simões da Matta

USO DA MODALIDADE EM DEPOIMENTOS DE REFUGIADOS NO BRASIL: UM 385


ESTUDO REFLEXIVO

Michele Cristine Silva de Sousa

A ESCOLA EM CONTEXTO MULTILÍNGUE: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE 400


PROFESSORAS DA REDE PÚBLICA DE BOA VISTA – RR

Nilmara Milena da Silva Gomes

A INTERDISCIPLINARIDADE COMO UM DOS CAMINHOS PARA AS AULAS DE 417


PORTUGUÊS

Raquel Pontes Avila

VEREDAS DA ARGUMENTAÇÃO NO GÊNERO CARTUM: UMA PROPOSTA DE 426


ANÁLISE

Roberta Viegas Noronha

REFLEXÕES SOBRE ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA SURDOS – 443


SUGESTÕES DE ESTRATÉGIAS NA APLICAÇÃO DOS CONTEÚDOS

Roseni Maciel Couto | Osilene Cruz


8 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

MATERIAIS DIDÁTICOS PARA SURDOS: OS DESAFIOS DE SUA PRODUÇÃO E 460


ELABORAÇÃO

Vanessa dos Santos Galvão Noronha | Angela Correa Ferreira Baalbaki | Gabrielli
Afonso Serafim | Aline França dos Santos

DISCURSOS FALACIOSOS NO MEIO POLÍTICO 475

Vívian de Sousa Neves Pereira

A DIMENSÃO INTERCULTURAL NO CURRÍCULO DE FORMAÇÃO DE 490


PROFESSORES DE PORTUGUÊS

Viviane Silva dos Santos

APONTAMENTOS PARA UM HISTÓRICO DO LIVRO DIDÁTICO DE 504


PORTUGUÊS: O CONTROLE GOVERNAMENTAL E A PRODUÇÃO DOS
MANUAIS ESCOLARES

Wesley Luis Carvalhaes


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Nosso agradecimento especial a todos os que participaram do II CONELP e,


pacientemente, aguardaram a publicação desta obra.
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A LINGUÍSTICA TEXTUAL, A PRAGMÁTICA E A ANÁLISE DO DISCURSO


NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA – DA FORMAÇÃO À PRÁTICA
DOCENTE
Charleston Chaves (UERJ)
Claudia Moura da Rocha (UERJ)
Fabio André Cardoso Coelho (UFF/UNIFESP)

1. Introdução

É com muita satisfação que temos visto o crescente interesse de


profissionais da área de Letras pelo ensino de Língua Portuguesa tendo como
referência os textos. Entendemos que os estudos da linguagem precisam ser vistos
por uma perspectiva sociointeracionista. Isso quer dizer que não podemos pensar
os usos linguísticos desconectados do mundo em que as realizações sociais se
materializam.
É bem verdade que ainda há um longo percurso para que os estudos
linguísticos nas escolas levem em consideração um ensino mais produtivo de
língua portuguesa. Embora haja uma procura mais significativa que pretende
levar as pesquisas universitárias propondo um ensino mais contextualizado para
a sala de aula, ainda há uma resistência em certos ambientes estudantis, o que
acaba por limitar o ensino e nem sempre desenvolver uma função-leitora mais
abrangente por parte do aluno.
Entender que o texto revela a materialidade discursiva e que é por
intermédio dele que os usos linguísticos tomam forma, com todas as suas
funcionalidades sociocomunicativas, é uma tarefa que precisa ser exercitada todos
os dias nas escolas, porque a vida é constituída de textos. Justamente por isso,
percebemos a importância de produzir uma sociedade multiletrada, que possa
interagir nas mais diversas situações sociais, usando e sabendo reconhecer os
registros linguísticos mais adequados para cada situação, além de saber utilizar
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instrumentos para ler e produzir diversos gêneros discursivos, porque é a partir


deles que realizamos as nossas ações cotidianas.
A Linguística Textual, a Pragmática e a Análise do Discurso são algumas
das áreas de estudo linguístico que veem o texto como um lugar de interação entre
os sujeitos situados social, histórica e culturalmente. Oferecem, portanto, diversas
ferramentas de análise que podem ser apropriadas pelo analista e que podem
servir de ótimos recursos metodológicos em sala de aula.
Lembremo-nos do que Kleiman (2004, p.7) fala. Para a pesquisadora,
muitos não sabem como orientar seus alunos para um proveitoso trabalho com
textos:

No decorrer dos últimos anos, tive a oportunidade de oferecer


diversos cursos de leitura em língua materna para professores que,
embora preocupados por que seus alunos não gostam de ler, não
sabem como promover condições em sala de aula para o
desenvolvimento do leitor. Isso porque nunca tiveram uma aula
teórica sobre a natureza da leitura, o que ela é, que tipo de
engajamento intelectual é necessário, em quais pressupostos de
cunho social ela se assenta.

Justamente por isso, é importante que os professores mostrem que os


recursos gramaticais, por exemplo, são marcas que servem a um propósito de
produção de sentido, ou que o fato de saber as condições de uso e produção dos
textos demonstra os papéis dos interlocutores, ou ainda que todo gênero serve a
um propósito sociodiscursivo. Essas são algumas das abordagens que precisam ser
feitas, em sala de aula, para que a leitura tenha um propósito pedagógico.
O aluno precisa entender que a leitura é essencial à sua vida e, por esse
motivo, Kleiman (2004, p.7) afirma que não podemos fracassar na formação do
leitor: “O ensino de leitura é fundamental para dar solução a problemas
relacionados ao pouco aproveitamento escolar: ao fracasso na formação de leitores
podemos atribuir o fracasso geral do aluno...” Precisamos formar leitores que
tenham a capacidade de ler, compreender, interpretar, fazer analogias, perceber
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possíveis intertextualidades; enfim, que estejam habilitados a formarem-se


(reconstruírem-se) a partir de cada ato de ler.
São os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998, p.23) que mostram a
necessidade de um ensino de Língua Portuguesa pautado em leitura e escrita,
porque assim haverá a formação de um leitor crítico e com possibilidade de
desenvolver textos em diversos gêneros:

A importância e o valor dos usos da linguagem são determinados


historicamente segundo as demandas sociais de cada momento.
Atualmente, exigem-se níveis de leitura e de escrita diferentes dos
que satisfizeram as demandas sociais até há bem pouco tempo e
tudo indica que essa exigência tende a ser crescente. A necessidade
de atender a essa demanda, obriga à revisão substantiva dos
métodos de ensino e à constituição de práticas que possibilitem ao
aluno ampliar sua competência discursiva na interlocução. Nessa
perspectiva, não é possível tomar como unidades básicas do
processo de ensino as que decorrem de uma análise de estratos
letras/fonemas, sílabas, palavras, sintagmas, frases que,
descontextualizados, são normalmente tomados como exemplos de
estudo gramatical e pouco têm a ver com a competência discursiva.
Dentro desse marco, a unidade básica do ensino só pode ser o texto.

Tomemos o final desse trecho que diz “a unidade básica do ensino só


pode ser o texto”. Isso quer dizer que não podemos pensar um ensino de língua
portuguesa descontextualizado. Os estudos gramaticais precisam servir para
constituir a competência discursiva do leitor. É necessário, então, pautar-se em
metodologias que visem a um ensino mais produtivo.
Não temos dúvida de que há um número cada vez mais expressivo de
profissionais que estão aplicando técnicas de leitura e produção em sala de aula.
Por isso, quando percebemos que a participação em eventos acadêmicos (para
discutir o ensino de Língua Portuguesa) tem sido cada vez mais numerosa, tal fato
evidencia que é possível sim aplicar métodos que trarão benefícios para a
formação do cidadão de forma mais plena. Entretanto, precisamos discutir como
faremos disso uma prática em todo o ensino no Brasil? Quais métodos são
imprescindíveis na formação do leitor?
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2. A formação do leitor para o mundo e para a vida – algumas reflexões

Acreditamos que não há uma receita pronta sobre como deve ser um
ensino de língua materna bem-sucedido, que promova a formação de leitores
proficientes, mas há princípios que podem ser seguidos pelos professores,
norteando sua prática pedagógica. Esses princípios se fundamentam nos estudos
linguísticos implementados ao longo do século XX e início do século XXI.
Como vimos anteriormente, é inegável que o texto ocupa um lugar
central no ensino de língua materna, devendo ser o seu objeto de análise.
Concebê-lo dessa maneira é uma contribuição da Linguística Textual, que o
considera a unidade comunicativa fundamental, uma vez que não nos
comunicamos por frases isoladas, mas apenas por meio de textos. Portanto, não
mais palavras e frases soltas, descontextualizadas devem ser o objeto de ensino
nas aulas de língua portuguesa. Essa mudança de enfoque traz consigo a
necessidade de se considerar o texto em sua condição de gênero, um artefato
socioculturalmente construído, ao longo do tempo, que é empregado com um
propósito comunicativo, além de apresentar características formais próprias,
tanto em termos de formatação como de escolhas lexicais específicas daquele
gênero. Por essa razão, é fundamental que o aluno tenha contato com textos reais,
não só do seu cotidiano, mas também com os literários, a fim de conhecer a grande
variedade de gêneros existentes.
Nunca é demais lembrarmos que o conceito de texto não deve se limitar
ao de texto escrito, referindo-se a todas as formas de materialização do discurso
possíveis, em que se utilizam múltiplas linguagens. Uma fotografia assim como
um filme ou uma escultura são textos e podem ser lidos (FÁVERO; KOCH, 1994).
Com o avanço das novas tecnologias, novos gêneros foram surgindo e o leitor
aprendeu a lê-los e a utilizá-los, como é o caso do e-mail, das mensagens de texto,
dos memes. Alguns desses novos gêneros fazem uso de recursos das linguagens
não verbais, como imagens e sons. Como consequência disso, além de preparar o
aluno para variadas práticas de leitura e escrita (os múltiplos letramentos) que
deverá desempenhar na sociedade, de forma reflexiva e crítica, é imprescindível
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que a escola estimule os letramentos multissemióticos, principalmente porque os


textos com os quais o aluno lida atualmente não se limitam à linguagem verbal. É
o que propõe Rojo (2009, p. 107):

Um dos objetivos principais da escola é justamente possibilitar que


seus alunos possam participar das várias práticas sociais que se
utilizam da leitura e da escrita (letramentos) na vida da cidade, de
maneira ética, crítica e democrática. Para fazê-lo, é preciso que a
educação linguística leve em conta hoje, de maneira ética e
democrática:
 os multiletramentos ou letramentos múltiplos, deixando de
ignorar ou apagar os letramentos das culturas locais de seus
agentes (professores, alunos, comunidade escolar) e
colocando-os em contato com os letramentos valorizados,
universais e institucionais; como diria Souza-Santos
(2005), assumindo seu papel cosmopolita;
 os letramentos multissemióticos exigidos pelos textos
contemporâneos, ampliando a noção de letramentos para
o campo da imagem, da música, das outras semioses que
não somente a escrita. O conhecimento e as capacidades
relativas a outros meios semióticos estão ficando cada vez
mais necessários no uso da linguagem, tendo em vista os
avanços tecnológicos: as cores, as imagens, os sons, o
design etc., que estão disponíveis na tela do computador e
em muitos materiais impressos que têm transformado o
letramento tradicional (da letra/livro) em um tipo de
letramento insuficiente para dar conta dos letramentos
necessários para agir na vida contemporânea (Moita-Lopes
& Rojo, 2004);
 os letramentos críticos e protagonistas requeridos para o
trato ético dos discursos em uma sociedade saturada de
textos e que não pode lidar com eles de maneira
instantânea, amorfa e alienada (...). (grifos da autora)

O aluno precisa estar preparado para ler não só o texto impresso, mas
saber “ler” o mundo reflexivamente, tendo condições de atuar satisfatoriamente
nas diversas práticas de leitura e escrita do cotidiano em que está inserido,
principalmente as que envolvem as múltiplas semioses.
Outro princípio inquestionável é que os textos são lacunares, ou seja, não
apresentam explicitamente todas as informações necessárias para a sua
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compreensão. Em razão disso, precisamos ler não somente o que se encontra na


superfície textual (o cotexto), como também o que não está lá explicitamente. Em
outras palavras, ler é também identificar os implícitos de um texto. E por que os
textos apresentam lacunas, informações não expressas que precisam ser
recuperadas? Uma das razões é que nenhum texto conseguiria ser totalmente
explícito (o que o tornaria extremamente longo, redundante e enfadonho). Além
disso, o autor do texto conta com a cooperação do leitor para preencher essas
lacunas (acessando seu conhecimento de mundo). O produtor de um texto
imagina que ele e seu interlocutor compartilham uma série de informações que
não precisam ser explicitadas. Esse esforço do interlocutor em colaborar nos
remete ao princípio da cooperação proposto por Grice (1975).
Esse princípio nos leva a propor que ler é mais que decodificar letras,
sílabas ou palavras, mas é também inferir, relacionando as informações
encontradas na superfície textual aos conhecimentos de que dispomos. Os
implícitos interessam à Pragmática, outra área dos estudos linguísticos que se
ocupa em estudar os usos linguísticos, mais especificamente em explicar como
somos capazes de dizer mais do que efetivamente dizemos.
Um terceiro princípio é o de que, além de os textos dialogarem com
outros textos, é possível identificar neles a existência de outras vozes. Esse último
fenômeno, estudado pela Análise do Discurso, é denominado polifonia. Segundo
Barros (2003, p. 5-6),
Emprega-se o termo polifonia para caracterizar um certo tipo de
texto, aquele em que se deixam entrever muitas vozes, por oposição
aos textos monofônicos, que escondem os diálogos que os
constituem. Reserva-se o termo dialogismo para o princípio
constitutivo da linguagem e de todo discurso.
Em outras palavras, o diálogo é condição da linguagem e do
discurso, mas há textos polifônicos e monofônicos, segundo as
estratégias discursivas acionadas. No primeiro caso, o dos textos
polifônicos, as vozes se mostram; no segundo, o dos monofônicos,
elas se ocultam sob a aparência de uma única voz. Monofonia e
polifonia de um discurso são, dessa forma, efeitos de sentido
decorrentes de procedimentos discursivos que se utilizam em
textos, por definição, dialógicos. Os textos são dialógicos porque
resultam do embate de muitas vozes sociais; podem, no entanto,
produzir efeitos de polifonia, quando essas vozes ou algumas delas
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deixam-se escutar, ou de monofonia, quando o diálogo é mascarado


e uma voz, apenas, faz-se ouvir.
Um leitor proficiente é aquele capaz de identificar as vozes que um texto
veicula, fazendo uma leitura de forma reflexiva e crítica, não alienada,
participando das “práticas sociais que se utilizam da leitura e da escrita
(letramentos) na vida da cidade, de maneira ética, crítica e democrática”, como
propõe Rojo (2009, p. 107).
Vivemos em uma sociedade que demanda do indivíduo uma atuação
satisfatória em relação às diferentes práticas de leitura e de escrita que se impõem.
Nesse contexto, o que devemos esperar de um leitor proficiente? Como estamos
inseridos em uma sociedade que vive rodeada por variados signos e linguagens, o
leitor proficiente deve ser capaz de ler e produzir os diferentes tipos de textos que
a sociedade utiliza, como é o caso do anúncio publicitário (veiculado pela
televisão) transcrito a seguir. Ele o considerará coerente? Identificará o seu
propósito comunicativo?
O anúncio é constituído pelas orientações escritas, sobre um fundo
branco, com uma música incidental ao fundo.

Seja gentil com os vizinhos.


Não aperte as mãos deles.

Seja generoso com os amigos.


Não se reúna com eles.

Ame seus pais.


Não deixe eles se aproximarem dos netos.

Tenha responsabilidade.
Lave suas mãos para tudo.

Seja sociável.
Não saia de casa.

Continue sendo a pessoa legal que você é.


Mas de um jeito diferente.

Amil.
Voz em off: É hora de cuidarmos uns dos outros.
18 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aNZ1JstRro0. Acesso


em: 8/04/2020.
O anúncio, a princípio, parece dar conselhos contraditórios ao
telespectador, como ser gentil com os vizinhos, mas não lhes apertar as mãos; ser
generoso com os amigos, mas não se reunir com eles; amar os pais, mas não deixar
que eles se aproximem dos netos; ter responsabilidade, mas lavar as mãos
(expressão ambígua, pois remete a uma locução, “lavar as mãos”, que significa
eximir-se de uma responsabilidade); ser sociável, mas não sair de casa. Para
compreendê-lo, o telespectador necessita recorrer ao seu conhecimento de
mundo, inserindo o anúncio no contexto sociocultural contemporâneo (o de uma
pandemia de alcance mundial, em decorrência do COVID-19). Dessa forma, o
telespectador poderá preencher as lacunas existentes nesse texto, inferindo as
informações necessárias para considerá-lo coerente, atribuindo-lhe sentido. Seu
conhecimento sobre os cuidados necessários para evitar a contaminação pela
doença (não apertar as mãos, evitando contato físico; manter o isolamento social;
preservar os grupos de risco; lavar constantemente as mãos) é que tornarão o texto
coerente. O seu conhecimento sobre o gênero anúncio publicitário o autorizará a
concluir que, nesse caso, não é vendido um produto, mas uma ideia, a de que é
necessário seguir as medidas propostas pelos especialistas para evitar a propagação
da doença. Também o telespectador deverá ser capaz de reconhecer as vozes que
aparecem no texto: a do senso comum (que recomenta atitudes de civilidade e
sociabilidade, tantas vezes ouvidas de nossos pais e professores) e a dos
especialistas, da ciência (as medidas aparentemente contraditórias, mas que são as
recomendações para evitar a disseminação do vírus). O telespectador identificará
que o propósito comunicativo do anúncio, por meio do estranhamento causado
pelas recomendações contrárias a tudo o que geralmente aprendemos sobre boas
regras de convivência, é enfatizar os procedimentos que podem salvar sua vida.
Esse é o leitor proficiente que esperamos formar.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |19

3. Considerações finais

Ao pensarmos num ensino de Língua Portuguesa que busque o


desenvolvimento das potencialidades dos nossos alunos, precisamos refletir sobre
as abordagens teóricas utilizadas nas nossas práticas docentes. Tentamos aqui
apontar um caminho, uma proposta possível de integração de algumas áreas
linguísticas. A Língua, como objeto científico, precisa ser observada em
fragmentos para depois reunirmos o “todo” linguístico. Na verdade, é na
decomposição que a gente (re)compõe as possibilidades expressivas e formativas
do conjunto linguístico. No momento em que observamos as contribuições da
Linguística Textual, os princípios da Pragmática e os elementos da Análise do
Discurso, temos a chance de repensarmos que prática linguística desejamos em
nossas salas de aula.
Uma outra questão importante é considerarmos que tipo de materiais
didáticos escolhemos para o trabalho operacional, a chamada “mão na massa”. E
isso é, de fato, algo muito importante e que não tem obtido a atenção necessária
por parte dos professores. Somos responsáveis por selecionar textos, atividades,
tudo o que o aluno recebe em sala de aula. Parte do sucesso da aprendizagem
linguística está nessa tarefa. E o que precisamos fazer? Na verdade, é o professor
que conhece seu contexto e não é possível que isso não seja levado em
consideração. Cada situação requer uma construção pedagógica. E para que isso?
De uma forma bem objetiva, é para fazer com que o aluno consiga ler na escola,
ler da escola, ler para a escola e assim assuma seu papel como cidadão linguístico,
ou seja, aquele que assume seus direitos e cumpre seus deveres no processo de
comunicação.
20 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

REFERÊNCIAS

BARROS, Diana Luz Pessoa de. “Dialogismo, polifonia e enunciação”. In


BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz (orgs.). Dialogismo, polifonia,
intertextualidade: Em torno de Bakhtin. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2003.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Língua Portuguesa. Ensino.


Fundamental. Terceiro e quarto ciclos. Brasília: MEC/SEF, 1998.

FÁVERO, Leonor Lopes; KOCH, Ingedore G. Villaça. Linguística textual:


introdução. São Paulo: Cortez, 1994.

GRICE, H. P. “Logic and conversation”. In: COLE, P.; MORGAN, J. L. (org.).


Syntax and Semantics. Nova Iorque: Academic Press, 1975. v. 8, p. 41-58.

KLEIMAN, Ângela. Oficina de Leitura: Teoria e Prática. Pontes, 2004.

ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social . São Paulo:


Parábola Editorial, 2009.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |21

CONSTRUINDO A IMAGINAÇÃO E O EMPODERAMENTO DISCENTE.


CONSIDERAÇÕES SOBRE ATIVIDADES MEDIADAS DE LEITURA EM
AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Aline Salucci Nunes (UERJ)

1. Introdução

De acordo com Manuel Castells (2014), em entrevista ao projeto Fronteiras


do Pensamento1, 80% da informação produzida no mundo está disponível na rede
e o acesso a ela é cada vez mais facilitado. Entendemos, portanto, que um
planejamento baseado na transmissão de informação não traz desafios ao aluno,
pode lhe parecer menos interessante e não contribui para torná-lo um ser
autônomo, capaz de conduzir suas aprendizagens. Durante a entrevista, Castells
fala sobre dar “poder intelectual” aos aprendizes, o que, em nosso entendimento,
significa dotá-los de capacidade de combinar aquilo que é novidade com o que já
conhecem para que continuem construindo novos saberes, uma vez que apenas o
acesso à informação não garante a aprendizagem (COUTINHO; LISBÔA, 2011).
Desse modo, corroboramos as palavras de Rojo (2012) quando diz que as
pessoas devem ser capazes de “guiar suas próprias aprendizagens na direção do
possível, do necessário e do desejável, que tenham autonomia e saibam buscar
como e o que aprender, que tenham flexibilidade e consigam colaborar com
urbanidade” (ROJO, 2012, p. 27) e defendemos, assim como Freire (2006 [1996]),
que o processo para que se tornem autônomas – isto é, sujeitos que participam da
construção de seu conhecimento, artífices de sua formação – precisa ser mediado
pelo professor.
Infelizmente, percebemos que a leitura escolar ainda vem sendo tratada
como instrumento de transmissão de significados pré-validados pelo professor –
ou por instrumentos reguladores, como o livro didático, por exemplo – e de

1Projeto cultural, criado em 2016, que convida conferencistas internacionais para tratar de temas da
contemporaneidade em eventos promovidos no Brasil.
22 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

avaliação, reduzindo ou mesmo anulando a participação do aluno no processo de


coconstrução de sentidos (CASTRO; DIONÍSIO, 2003).
Nesse sentido, iniciamos um estudo sobre a mediação das atividades de
leitura, no intuito de investigar a relação entre o trabalho que estimula a
imaginação e o empoderamento discente, a fim de contribuir com o processo de
ensino de leitura em sala de aula, sobretudo, no ensino fundamental.
Para tanto, formulamos e desenvolvemos em uma turma do 4º ano do
ensino fundamental uma sequência de atividades situadas numa perspectiva de
multiletramentos, considerando, portanto, as variadas práticas letradas das quais
os alunos participam dentro e fora da escola. Parte desse trabalho intervencionista
na sala de aula deu-se com o trailer de um filme. O que se pôde constatar, no que
toca a essa parte, especialmente, conforme veremos adiante, foi a importância de
uma perspectiva linguística interacional na abordagem do gênero escolhido para
ampliar a capacidade de coconstrução de sentido das crianças, na medida em que
foi capaz de fomentar a imaginação dos meninos e meninas naquele cenário de
sala de aula.
Começamos, porém, mostrando os construtos teóricos fundadores do nosso
plano de intervenção.

2. A coconstrução de sentidos em práticas de leitura compartilhada

Ao afirmar que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, Freire


(1989 [1981], p. 9) admite que os processos de construção de sentido vão além da
decodificação. O autor defende ainda que respeitar a leitura de mundo com que
o aluno chega à escola “é a maneira mais correta que tem o educador de, com o
educando e não sobre ele, tentar a superação de uma maneira mais ingênua por
outra mais crítica de inteligir o mundo” (FREIRE, 2006 [1996], p. 122 – grifos do
autor). Nesse sentido, a concepção de letramentos como práticas sociais de leitura
e escrita, que dá sustentação a este trabalho, inspira-se no modelo ideológico de
letramento (STREET, 2014) que abrange questões culturais, de identidade de
relações sociais de poder entre os grupos envolvidos nessas práticas.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |23

Partimos do entendimento de que o significado é construído a partir da


aplicação do conhecimento que o leitor já possui às pistas que o texto lhe oferece.
Nas palavras de Koch e Elias (2014, p.11), “a leitura é, pois, uma atividade
altamente complexa de produção de sentidos”, que, apesar de acontecer com base
em elementos linguísticos utilizados pelo autor na composição do texto, exige o
acionamento de outros tipos de conhecimentos do leitor.
Os tipos de conhecimentos prévios que podem ser acionados pelo leitor
para que a construção de sentidos seja possível são elencados por Kleiman (2013
[1989]) como linguístico – que se refere ao uso da língua –; textual – que são as
noções e conceitos sobre o texto: tipo, estrutura, formas de discurso – e
enciclopédico ou de mundo – que abrange todo o conhecimento formal ou
informal adquirido durante a vida.
Ao assumirmos que tal conjunto de saberes precisam ser acionados durante
a atividade de leitura, acabamos por admitir que a forma não é absoluta no
processo de produção de sentidos (MARCUSCHI, 2003). Desse modo, tendo em
conta as capacidades analógicas que compõem o aparato cognitivo das crianças
(MARCUSCHI, 2003), apontamos para a importância de um trabalho que
fomente a imaginação.
A forma como os participantes desta pesquisa coconstruíram
conhecimento durante a prática de leitura foi analisada a partir da interação pela
fala, em ambiente natural de produção, e, inspirada na Análise da Conversa
Etnometodológica (ACE), guiou-se pelo contexto sequencial da fala-em-
interação.
A fala-em-interação, objeto de estudo da ACE, é organizada por um
sistema de tomada de turnos que tem na conversa cotidiana sua pedra angular
(SACKS, SCHEGLOFF e JEFFERSON, 2003 [1974]). Numa sala de aula, a
interação, que é institucional, ou seja, orientada para uma meta (GARCEZ, 2002)
se dá de modo que satisfaça ao objetivo delineado para a aula. A troca de turnos
nesse cenário é, geralmente, organizada pelo professor, responsável por definir os
objetivos da aula.
24 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

A partir desses fundamentos, pretendemos mostrar como o trabalho com


o trailer do filme Gagarin, o primeiro no espaço2 contribuiu para a coconstrução
de conhecimento durante a atividade de leitura do texto em cena.

3. A atividade de leitura do texto em cena

Para que se tenha clareza sobre como a atividade de leitura que será
analisada neste artigo aconteceu, explicamos que a escolha do trailer do filme em
questão se justifica em razão de abordar um fato cujo tema satisfazia ao interesse
demonstrado pela turma por assuntos relacionados ao espaço. Assim, em aulas
anteriores, o tema já havia sido explorado e amplamente discutido, a partir de
diferentes gêneros textuais.
A atividade com o trailer fez parte de uma sequência de atividades
planejada para acontecer em uma aula de 120 minutos3, que tinha como objetivo
a prática de leitura através de diferentes modalidades textuais. Desse modo,
optamos por manter os três momentos que faziam parte da rotina das aulas de
língua portuguesa denominados roda de conversa, roda de leitura e momento do
registro.
Assim sendo, antes da leitura do texto escrito, organizamos um trabalho
com um texto imagético, com o intuito de motivar a participação das crianças e
ativar conhecimentos prévios. Nesse sentido, a roda de conversa contou com a
projeção de uma imagem em que o planeta Terra aparecia encobrindo o Sol.
A roda de leitura se baseou em uma reportagem que noticiava um fato
socialmente relevante, o 50º aniversário da primeira viagem do homem ao espaço,
e o trailer do filme Gagarin, o primeiro no espaço – texto cinematográfico

2
O trailer do filme Gagarin, o primeiro no espaço, está disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=v6qxZPfX1NA.
3 Gravada e transcrita segundo o modelo de transcrição proposto por Jefferson, encontrado em:

JEFFERSON, Gail. Glossary of transcript symbols with an introduction. In: LERNER, Gene H.
Conversation Analysis: studies from the first generation. Amsterdan/Philadelphia: Jonh Benjamins
Publishing Company, 2004.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |25

utilizado na atividade analisada neste artigo – que se relacionava ao assunto


abordado na reportagem.
Nas atividades desenvolvidas nesse momento, realizamos com os alunos
uma tarefa de leitura compartilhada, que, de acordo com Solé (1998, p. 120), “tem
como objetivo ensinar as crianças a compreender e a controlar sua compreensão”.
Por entender que o sentido não é imanente ao texto, mas precisa ser construído,
propomos que à tal tarefa seja atribuído o objetivo de mediar o processo de
coconstrução de conhecimento.
No momento do registro, os alunos tiveram a oportunidade de apresentar
um resumo oral dos sentidos que haviam construído a partir dos textos.
Após os três momentos habituais, introduzimos um objeto de
aprendizagem em formato de jogo de computador e a aula foi encerrada após três
partidas acaloradas do jogo que tinha como objetivo encontrar astronautas
perdidos no espaço, refazendo seu percurso através das pistas fornecidas a cada
etapa.
Isto posto, a atividade iniciou-se com uma conversa sobre as caraterísticas
de um trailer de cinema, sua função, as possibilidades de produção: escolha das
cenas, trilha sonora, chamadas de voz ou escritas; seguindo para a exibição do
vídeo na parede da sala de aula.

4. Análise dos dados

A multiplicidade de linguagens que compõem os textos aos quais nossos


alunos têm acesso merece espaço na sala de aula não no sentido de entreter, mas
de oportunizar aos meninos e meninas práticas de coconstrução de sentidos mais
próximas do uso que eles fazem da linguagem em sua vida fora da escola.
A multimodalidade dos textos contemporâneos, ou seja, o fato de os textos
serem constituídos de muitas linguagens exige “capacidades e práticas de
compreensão e produção de cada uma delas (multiletramentos) para fazer
significar” (ROJO, 2012, p. 19).
26 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Foi pensando nisso e, também, em uma forma de ajudar a concretizar a


imagem que as crianças possivelmente teriam em sua imaginação a respeito do
texto lido, que acrescentamos ao planejamento o trailer do filme Gagarin, o
primeiro no espaço, que sintetiza a passagem do lançamento do foguete de Yuri
Gagarin.
O trabalho com o vídeo obedeceu à mesma dinâmica da atividade de
leitura do texto escrito, ou seja, após a exibição completa do trailer, para que os
alunos pudessem ter um primeiro contato com o material, assistimos novamente
à gravação, fazendo pequenas pausas para que juntos pudéssemos construir
conhecimento, conforme mostram os excertos de 1 a 3.

EXCERTO 1: “por que será que ele não enviaria o filho dele pro espaço?”
11 ((para a turma)) ele pergunta
12 Aline assim(0,5) pressuponha que seu filho vai pro espaço (1,0)
13 e você teria que enviar aí o rapaz fala assim (1,0) eu não
14 enviaria(0,5) por que será que ele não enviaria o filho
15 dele pro espaço?
16
17 Carlos [[porque lá ele ia ficar com medo dele] morrer:
18 Eduardo [[(porque ele tá com medo dele morrer)] é
19 Aline imagina se o menino não volta? (0,5) >né não?<
20 [por isso que ele tava preocupado]
21 João [hein tia ele disse ( )] a mesma coisa=
22 Aline =é::::
23 Carlos [[aquele cara ali de branco é o filho dele?[=
24 Crianças [[ ]
25 Aline =[nã::o ele não é o filho dele (1,0)
26 [mas ele acompanhou o processo então ele gosta do
rapaz]
27 Pedro [não ele morre de acidente de avião não: mor:re não
mor:re]
28 Aline como se fos:se filho dele [e o rapaz é no::vo]
29 Pedro [ele morre [no avião]]
30 Eduardo [tia tia]
31 Aline vamo lá:: o::i.
32 Eduardo depois que ele subiu e ele desceu se desce muito ºrápido
33 pega fogoº
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |27

34 Camila [[ti::a tia ali:ne ô ti::a]


35 Alex [[ele voltou tia? tia]
36 Aline então [não desce] muito rápido
37 Pedro [ti::a [ti:a]
38 Camila [tia:]
39 Aline pra pegar fogo [porque antes] de pegar fogo
40 Pedro [tia ali::ne]
41 Aline eles abrem um paraquedas que ai perde a
velocidade(o,2)oi?
42 Pedro o yuri gagarin morreu no avião:?
43 João ele morreu no avião não foi?

O objetivo do trabalho com a obra cinematográfica, mesmo que em versão


resumida, é ampliar as possibilidades de coconstrução de conhecimento e dar
espaço a outras formas de leitura. Assim, após passar um pequeno trecho do vídeo,
Aline busca construir com alunos os sentidos acerca da cena em questão. Nesse
momento os alunos são estimulados a apresentar suas ideias sobre o que leem. Sua
fala: “ele pergunta assim (0,5) pressuponha que seu filho vai pro espaço (1,0) e
você teria que enviar aí o rapaz fala assim (1,0) eu não enviaria (0,5) por que será
que ele não enviaria o filho dele pro espaço?” (linhas 13 a 16), sugere, através da
expressão “por que será”, que se trata de uma resposta da qual não tem certeza.
Interessante observar que Carlos e Eduardo tomam o turno ao mesmo tempo e
apresentam o mesmo olhar acerca da situação: “[[porque lá ele ia ficar com medo
dele] morrer:” (Carlos, linha 17) e “[[(porque ele tá com medo dele morrer)] é”
(Eduardo, linha 18).
Percebemos que, enquanto Aline responde à dúvida de Carlos: “aquele cara
ali de branco é o filho dele?=” (linha 23), nas linhas 25, 26 e 28: “=nã::o ele não e
o filho dele (1,0)[mas ele acompanhou o processo então ele gosta do rapaz] como
se fos:se filho dele [e o rapaz é no::vo]”, os alunos tecem conjecturas a respeito de
alguns fatos que lhes aguçam a curiosidade: “[[ ]” (Crianças,
linha 24); “[não ele morre de acidente de avião não: mor:re não mor:re]” (Pedro,
linha 27); “[ele morre [no avião]” (Pedro, linha 29). Quando se volta para os outros
alunos: “vamo lá:: o::i” (linha 31), no intuito de mediar a discussão na qual estão
engajados, Aline é surpreendida por Eduardo que levanta uma possível hipótese
28 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

para a morte da personagem, a partir de um conhecimento trazido por ele: “depois


que ele subiu e ele desceu se desce muito ºrápido pega fogoº” (linha 32).
Verificamos, através desse excerto, que, apesar de buscarem o apoio da
professora, os alunos aplicam na leitura do texto em cena seu conhecimento
prévio para dar-lhe significado. Quando Pedro e João perguntam mais adiante
sobre a morte de Yuri Gagarin – “o yuri gagarin morreu no avião:?” (Pedro, linha
42); “ele morreu no avião não foi?” (João, linha 43), não querem que Aline lhes
dê uma resposta, mas sim, que confirme a sua, como indica a expressão “não foi?”,
no final da fala de João.
O excerto 2 mostra como os alunos aplicam outros conhecimentos prévios
na leitura do texto em cena.

EXCERTO 2: “é igual baloeiro indo atrás de balão”


44 Carlos alá >nego comemorando< (1,0) >aí chega lá em cima<
45 (2,0) bum:::(0,5) explode
46 Aline olha só aquele pessoal ali (1,0) >por que eles tão tudo
47 gritando?<
48 João porque eles acham que deu certo
49 Carlos Comemorando
50 Aline >porque eles viram que deu certo< tão comemoran:do
51 (2,0) deve ter dado muito trabalho até chegar nessa
hora né?
52 João tia o que acontece? como eles sabem pra onde o yuri
53 gagarin vai?
54 Aline eu acredito que deva ter tipo um gp_ naquela época
55 não sei se chamava gps (0,5) dentro da máquina como
56 se fosse um radar (0,5) pra eles poderem achar a
57 localização e depois eles vão lá resgatar::
58 Alex é igual baloeiro indo atrás de balão

A sequência de falas acima evidencia que os alunos lançam mão do


conhecimento de mundo para coconstruir sentidos acerca da cena em questão.
Nas linhas 44 e 45: “alá >nego comemorando< (1,0) >aí chega lá em cima< (2,0)
bum:::(0,5) explode”, Carlos antecipa, em seu comentário, a situação que é
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |29

abordada por Aline posteriormente: “olha só aquele pessoal ali (1,0) >por que eles
tão tudo gritando?<” (linhas 46 e 47).
Interessante observar que a cena, em que as pessoas pulam, gritam e se
abraçam, só pode ser compreendida como uma comemoração através da ativação
de um conhecimento partilhado previamente concebido, pois não há no vídeo
qualquer indício verbal que confirme essa situação. Carlos baseia sua contribuição
na leitura da linguagem corporal das pessoas em tela associada a um repertório de
conhecimento mais amplo, adquirido na vida diária.
Outro exemplo relevante de utilização de conhecimento de mundo para
a construção do sentido acontece, nesse excerto, quando a explicação de Aline:
“eu acredito que deva ter tipo um gp_ naquela época não sei se chamava gps (0,5)
dentro da máquina como se fosse um radar (0,5) pra eles poderem achar a
localização e depois eles vão lá resgatar::” (linhas 54 a 57), em resposta à duvida
de João: “tia o que acontece? como eles sabem pra onde o yuri gagarin vai?” (linhas
52 e 53), é simplificada por Alex, que recorre a um fato que faz parte de sua cultura
e que exige um conhecimento técnico específico: “é igual baloeiro indo atrás de
balão” (linha 58).
Esse excerto reforça como o mundo vivido é importante para a
coconstrução de sentidos sobre o mundo narrado. Percebemos que, de sua
vivência, Aline apresenta um conhecimento sobre a tecnologia do GPS, já Alex
traz o conhecimento técnico sobre balões. Essa passagem mostra que, no jogo da
coconstrução de conhecimento sobre o texto, pode-se e deve-se ir muito além de
sua superfície para produzir um sentido que reforça e ao mesmo tempo amplia
nosso saber sobre o mundo.
O recurso de ativação de conhecimentos prévios possibilita o
estabelecimento de inferências que se fazem presentes na leitura do texto em cena
como continua sendo demonstrado no excerto a seguir, em que os alunos refletem
sobre um episódio do vídeo.
30 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

EXCERTO 3: “comemorar quando o cara subiu pô (1,0) era pra comemorar quando o cara
<descesse>”
15 Aline yuri gagarin ((pausa o filme)) olha só (1,0) tem um
16 pessoal comemoran::do (1,0)mas esse (.) esse pessoal aí
17 dentro tá::::: preocupado (.) por quê?
18 Carlos vai que algu_ [porque tá::: com] turbulência (0,5)
19 Eduardo [porque tá com turbu]lência
20 Carlos turbulência no negócio
21 Aline deu uma turbulência (1,0) e eles chamam o rapaz (.) o
22 yuri gagarin=e o yuri gagarin respon::de?
23 João não=
24 Carlos =não:::::
25 Aline >e aí como é que ele_< ficam sem saber::=
26 Camila =eles ficam sem saber se tem algum problema=
27 Aline =é:: >eles ficam sem saber notícias< (0,5) não sabem se
28 ele mor:re::u [>não sabem o que aconteceu<]
29 Eduardo [tia ele falou assim (.) tia] ele falou assim (0,5)
30 que é cedo para <comemorar>
31 Aline é:::: >é isso ai< é cedo pra comemorar (.) por quê?
32 porque não sabe se deu certo (1,0) né:? >imagina se
33 aconteceu alguma coisa com o menino lá em cima?<
34 Bruno comemorar quando o cara subiu pô (1,0) era pra
35 comemorar quando o cara <descesse>
36 Aline é::: >né não<?
37 Bruno quando o cara chegasse na ter::ra começava a
38 comemorar pô (1.0) mas não

A pergunta feita por Aline: “olha só (1,0) tem um pessoal comemoran::do


(1,0)mas esse (.) esse pessoal aí dentro tá::::: preocupado (.) por quê?” (linhas 15 a
17), tem como objetivo levar os alunos a inferirem sobre a imagem, uma vez que
a situação não é explicitada verbalmente no vídeo. Vemos que o termo
“turbulência”, geralmente utilizado para definir tremores no ar, é utilizado com
propriedade por Carlos: “vai que algu_ [porque tá::: com] turbulência (0,5)” (linha
18) e Eduardo: “[porque tá com turbu]lência” (linha 19), em mais um exemplo de
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |31

utilização de conhecimento prévio linguístico específico, que parece ser


despertado pelo próprio texto, aplicado na construção de sentidos.
Aline continua conduzindo a discussão, orientando a reflexão através de
perguntas que levem os alunos a refletirem sobre a situação: “deu uma turbulência
(1,0) e eles chamam o rapaz (.) o yuri gagarin=e o yuri gagarin respon::de?” (linhas
21 e 22), obtendo resposta direta: “não=” (João, linha 23) e “=não:::::” (Carlos,
linha 24), e através de insinuações em frases incompletas: “>e aí como é que ele_<
ficam sem saber::=” (linha 25), para que os alunos as concluam: “=eles ficam sem
saber se tem algum problema=” (Camila, linha 26). O jogo de linguagem se
transforma, no entanto, pois o processo de apontar um elemento da cena para que
os alunos reflitam sobre ela é invertido na sequência de falas seguinte, quando
Aline faz uma reflexão acerca da situação em questão: “=é:: >eles ficam sem saber
notícias< (0,5) não sabem se ele mor:re::u [>não sabem o que aconteceu<]” (linhas
27 e 28), e o aluno Eduardo aponta um momento do texto que corrobora seu
pensamento: “[tia ele falou assim (.) tia] ele falou assim (0,5) que é cedo para
<comemorar>” (linha 29), mostrando que ele está interagindo com o texto em
cena.
A indignação de Bruno, marcada pela expressão “pô”: “comemorar
quando o cara subiu pô (1,0) era pra comemorar quando o cara <descesse>” (linhas
34 e 35), após a fala de Aline: “é:::: >é isso ai< é cedo pra comemorar (.) por quê?
porque não sabe se deu certo (1,0) né:? >imagina se aconteceu alguma coisa com
o menino lá em cima?<” (linhas 31 a 33), e a ênfase dada por ele ao termo
“<descesse>”, dito de forma lenta e em tom de voz elevado, mostram como a
produção de sentidos acontece na interação. É como se ele tentasse ensinar aos
outros interagentes qual deveria ser o posicionamento correto para aquela
ocasião. Bruno interage com o texto em cena, reprovando a atitude das
personagens, posicionando-se como um leitor ativo.
O trabalho com a obra cinematográfica na aula analisada, que, nessa
proposta, visa a complementar a leitura do texto escrito, permite aos alunos
enveredarem pelo mundo da leitura a partir de diferentes perspectivas. A leitura
no papel tem o poder de fazê-los imaginar e criar imagens mentais que
32 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

representem aquela situação através da palavra. A interação com o texto em cena


aflora outras percepções que perpassam a linguagem verbal, a imagem, o som,
permitindo outros tipos de interação.

5. Considerações finais

O que se pretendeu oferecer com esta abordagem foi um mapa da


coconstrução de sentidos sobre um objeto textual multimodal, conforme visto na
análise dos dados.
Observamos que, além das pistas linguísticas, os alunos se basearam nas
pistas não verbais, linguagem corporal, trilha sonora, cortes de imagem e fizeram
uso de seu conhecimento prévio linguístico, técnico e de mundo para coconstruir
o sentido das cenas a que assistiam.
Na atividade de interação com o texto em cena, os alunos integraram
conhecimentos e se mostraram detentores de saberes específicos sobre os temas
apresentados, sem, no entanto, questionar o papel da professora, recorrendo a ela
quando precisavam ratificar suas contribuições.
A professora – enquanto mediadora – seguiu apontando para algumas
pistas oferecidas pelo vídeo porquanto sua tarefa era auxiliar os alunos a
coproduzirem significação, enquanto as crianças se revelavam leitores críticos,
indo muito além da superfície textual para produzir sentidos que reforçavam e ao
mesmo tempo ampliavam seu conhecimento sobre o mundo.
Indo muito além do que preconiza a abordagem formalista de que os
significados são representados pelas palavras, os conhecimentos que foram
coconstruídos durante essa atividade corroboram a ideia inicial de que não se trata
apenas de compreender ou interpretar as pistas textuais, uma vez que partimos da
premissa de que nenhum sentido é dado previamente, mas sim, coconstruído.
Os resultados mostraram que a atividade proposta conseguiu um
engajamento maior das crianças; não reduziu a prática de leitura a exercícios de
“copiar e colar”, e permitiu a coprodução de significados, orientando a imaginação
de modo a estimular o processo de ensino e aprendizagem.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |33

REFERÊNCIAS

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leitura escolar: dispositivos pedagógicos e estratégias discursivas no “trabalho
interpretativo”. In.: FELTES, Heloísa P. de M. (org.) Produção de sentido: estudos
transdisciplinares. São Paulo: Annablume; Porto Alegre: Nova Prova; Caxias do
Sul: Educs, 2003. p. 313-339.

COUTINHO, Clara; LISBÔA, Eliana. Sociedade da informação, do conhecimento


e da aprendizagem: desafios para a educação no século XXI. Revista de Educação.
Vol. XVIII, nº 1, 2011. p. 5-22.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam.


São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989 [1981].

________. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 33ª


ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006 [1996].

GARCEZ, Pedro M. Formas institucionais de fala-em-interação e conversa


cotidiana: elementos para a distinção a partir da atividade de argumentar. Palavra.
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KLEIMAN, Angela. Texto e Leitor: aspectos cognitivos da leitura. 15ª ed.


Campinas: Pontes Editores, 2013 [1989].

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção de sentidos . 10 ª ed.


São Paulo: Contexto, 2014 [1997].

Manuel Castells explica a obsolescência da educação contemporânea. 2014.


Disponível em: http://www.fronteiras.com/noticias/manuel-castells-explica-a-
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2017.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Atividades de referenciação, inferenciação e


categorização na produção de sentido. In.: FELTES, Heloísa P. de M. (org.)
Produção de sentido: estudos transdisciplinares. São Paulo: Annablume; Porto
Alegre: Nova Prova; Caxias do Sul: Educs, 2003. p. 239-261.

ROJO, Roxane. Pedagogia dos multiletramentos: diversidade cultural e de


linguagens na escola. In: ROJO, Roxane; MOURA, Eduardo. (Orgs.)
Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012, p. 11-31.

STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no


desenvolvimento, na etnografia e na educação. Trad. Marcos Bagno. 1ª ed. – São
Paulo: Parábola Editorial, 2014.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |35

A PRODUÇÃO DE SENTIDOS POR MEIO DA LEITURA DE TIRINHAS NAS


AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Almerindo Cardoso Simões Junior (UERJ)


Thatiana Muylaert Siqueira Menezes (UERJ)

1. Palavras iniciais

Vivemos na sociedade da imagem. Somos a todo o tempo alcançados por


novos gêneros textuais, oriundos de modelos tecnológicos que cada vez mais
associam o texto à imagem, ao áudio, e a novas configurações conforme a
tecnologia se mostra mais diversificada. A produção dos discursos hoje é
multimodal, ou seja, mobiliza ao mesmo tempo diversos canais
(MAINGUENEAU, 2008a).
Dessa forma, os conhecimentos prévios de todo indivíduo se fazem
necessários para a construção de significados na leitura. É a partir desses
conhecimentos que ele poderá relacionar e inferir questionamentos presentes no
texto. Eles são adquiridos por meio da vivência do indivíduo; o que ele é, viu, leu
e aprendeu ficam depositados na memória que é ativada inconscientemente
quando necessário. É por meio do conhecimento prévio que a leitura se torna
individual; pessoas possuem experiências diferenciadas e as vivenciam de formas
diversas. Os conhecimentos se entrelaçam e auxiliam os leitores a
compreenderem e interpretarem o explícito e implícito textual.
Dessa maneira, para Maingueneau (2015, p. 160), “(...) os enunciados
verbais se incrustam nas imagens ou as imagens acompanham os textos”, sendo
estas não imagens ou textos aleatórios, mas reflexos de escolhas feitas, que
refletem posicionamentos políticos-ideológicos-sociais-mercadológicos.
Ao se ler um livro, um texto visual ou verbo-visual, haverá sempre uma
relação estabelecida entre os participantes do ato comunicativo e, assim, o que
está sendo dito ou apresentado poderá sempre influenciar na perspectiva de vida
dos indivíduos participantes do processo de leitura. As representações sociais
36 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

estão sempre presentes no cotidiano de todo indivíduo e fazendo com que ele aja
de acordo com o que foi estabelecido socialmente.
Discussões sobre quais habilidades de leitura são exigidas aos leitores no
século XXI têm aparecido em numerosas publicações e são alvos de recentes
pesquisas. Dentre os requisitos para ser um leitor eficaz na atualidade, afirma-se
que ler não é apenas decodificar um texto impresso, mas ser capaz de consumir e
produzir uma variedade de textos em tecnologias tradicionais e novas, acessando,
em muitos momentos, ambientes digitais e móveis. O que precisa ser enfatizado
nessas discussões são os discursos oriundos a partir da associação dos aspectos
visuais e multimodais que os textos encontrarão.
Textos verbais, visuais e verbo-visuais são parte inextrincável de nossa
cultura, sobretudo em tempos de farta tecnologia cibernética. Os livros didáticos,
no Ensino Fundamental da educação básica, já por tradição, são repletos de apelos
visuais, sob forma de tirinhas, cartuns, fotos, reprodução de pinturas, além das
ilustrações que acompanham os textos verbais. São ferramentas importantes nas
salas de aula brasileira, tendo em vista que, em muitas cidades do país, são o único
material de apoio aos docentes. Por isso, há a necessidade da reflexão e análise
desses novos gêneros textuais veiculados nas mídias de grande circulação neste
novo século, bem como que relações de comunicação constituem entre si e com
seus leitores, e que sentidos são capazes de produzir.

2. A leitura como ferramenta de “movimentação”

O processamento do objeto começa pelos olhos, que permitem a


percepção do material escrito. Esse material passa então a uma
memória de trabalho que o organiza em unidades significativas. A
memória de trabalho seria ajudada nesse processo por uma
memória intermediária que tornaria acessíveis, como num estado
de alerta, aqueles conhecimentos relevantes para a compreensão do
texto em questão, dentre todo o conhecimento que estaria
organizado na nossa memória de longo prazo (também chamada de
memória semântica, ou memória profunda) (KLEIMAN, 1996, p.
32).
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |37

A citação expressa como ocorre o processamento de leitura no cérebro.


É através dos olhos que se materializa a percepção dos códigos comunicativos
recheados de sentido. O “objeto” mencionado seria tudo aquilo de que se dispõe
para leitura e construção de sentido. Segundo a autora, ler não é apenas
decodificar letra por letra, palavra por palavra. Ler é algo mais amplo, é a procura
da concretização das manifestações significativas de que dispõe todo texto. A
leitura está ligada ao todo do texto – seja ele apresentado de forma verbal, visual
seja verbo-visual.
Kleiman (1996) defende que ler é um ato individual; dificilmente, várias
pessoas compreenderão um mesmo texto exatamente da mesma forma, tendo em
vista que não se pode captar tudo da mesma maneira que o outro. Assim, não há
a mesma reação diante de diferentes leituras. Similar é apenas o mecanismo
utilizado para apreendê-lo.
Cada leitor precisa ser competente para construir seus próprios sentidos
através da inferência e do relacionamento de fatos externos ao texto para a
produção de sentido. Através do conhecimento prévio, questionamos
problemáticas presentes em diferentes textos, além de interagir diretamente com
eles.
A leitura é finalizada em função de uma gama variada de representações e
reconhecimentos dos códigos utilizados para produzir um texto e é um processo
de interação que ocorre no circuito leitor-texto-autor. O leitor interage com o
texto, projetando nesse processo toda bagagem cultural e social que possui. Essa
bagagem permitirá a produção de efeitos de sentido na leitura. Para Feres (2016),
o ato de ler deve ser visto em

[...] uma perspectiva interativa, que considera a participação do


sujeito-leitor na construção de sentido textual a partir de suas
experiências e seus conhecimentos, do reconhecimento do outro e
das circunstâncias em que se dão as trocas comunicativas
engendradas pela leitura, em conformidade com o material formal
que se apresenta (FERES, 2016, p. 31).
38 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Assim, a leitura pressupõe algo “a mais” do que está explícito. Ler está
inteiramente ligado à construção de sentido, aos saberes partilhados, além das
relações com o contexto. Definindo o ato de ler, Feres (2016) dirá que a leitura
pode ser definida como um processo de interação que projeta a “construção de
sentidos”, oriunda das expectativas e saberes partilhados pelos indivíduos durante
a troca comunicativa. “O sentido é construído nas relações entre texto e contexto,
entre produtor e leitor e, enfim, entre o que está explícito no texto e o que é
evocado” (FERES, 2016, p. 31).
Pode-se dizer que toda leitura é intertextual, já que, ao ler um texto, são
estabelecidas associações com outro texto. Essas associações são livres e diretas,
engendradas inconscientemente, independente da intenção do autor e/ou leitor
– algumas vezes, é de maneira consciente, pois o autor pode também ter alguma
intenção sobre sua produção.

3. Fundamentos da discursividade

Cada indivíduo e grupo social está inserido numa rede discursiva e dela
não pode escapar. Na materialidade constituída pela manifestação dos vários
discursos encontra-se o espaço em que o indivíduo se constitui sujeito, utilizando-
se dos elementos já recebidos e reelaborados por ele. Este, antes indivíduo, torna-
se sujeito gerador de novos discursos e por eles atravessado. Não mais apenas
paciente, mas agente de um sistema social polifônico, que passa pela leitura e
interpretação dos elementos verbais e visuais presentes em textos.
Corroborados, principalmente, aos postulados da Análise do Discurso
Francesa proposta por Maingueneau (2008a), a noção para trabalhar a
discursividade de um enunciado/texto apoia-se sobre o “Primado do
Interdiscurso”. Para o autor, não se deve “acreditar” na existência de um discurso
‘puro’, inicial; para ele, toda manifestação dialogal está instaurada no bojo de um
interdiscurso.
Nesse ínterim, Maingueneau (2008a) afirma que, para alguns linguistas, o
Outro que se expõe pode ocorrer por dois princípios básicos de heterogeneidade:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |39

a heterogeneidade “mostrada” e a heterogeneidade “constitutiva”. A primeira diz


respeito às formas de citação em que é de fácil percepção a presença do discurso
do outro; já a segunda, caracteriza-se pela “aparente” invisibilidade não mostrada
pelo próprio discurso.
Na perspectiva estudada, é a noção de interdiscurso a mais apropriada para
a afirmação da presença de outros discursos, de forma mostrada ou não, presente
nos enunciados, já que é na relação estabelecida entre as práticas discursivas que
há uma ‘rede semântica’ de significação. O interdiscurso (...)

[...] aparecia como um conjunto de relações entre diversos


“intradiscursos” compactos. Trata-se, desde então, de subverter essa
equivalência entre exterior do discurso e interdiscurso, para pensar
a presença do interdiscurso no próprio coração do intradiscurso, o
que J.- J. Courtine chama de “inconsistência de uma formação
discursiva, entendida como efeito do interdiscurso enquanto
exterior específico de uma formação discursiva. (MAINGUENEAU,
2008a, p. 36)

Além da interdiscursividade, a análise e produção de significação trazidas


pelas práticas discursivas ocorrem por meio de algumas categorias que apresentam
ao “dito” certa multiplicidade de sentidos. Desta forma, essa globalização dos
significados pressupostos ou subentendidos dos axiomas despontam sob algumas
categorias propostas por Dominique Maingueneau (2008a), são elas: a
intertextualidade, o vocabulário, os temas, o estatuto do enunciador e do
destinatário, a dêixis enunciativa, o modo de enunciação e o modo de coesão.
Assim, para Maingueneau, a intertextualidade é a presença de um texto
em outro texto e pode ser projetada em dois níveis: o primeiro chamado de
intertextualidade interna, que necessita de uma memória discursiva para que as
associações entre os textos sejam percebidas; e o segundo nível é responsável pelas
marcas de outros textos presentes na superficialidade do próprio texto, a
intertextualidade externa.
Já o vocabulário é responsável pela seleção do código linguageiro, ou seja,
não são as palavras por si só que darão unidade significativa aos discursos, mas
40 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

sim a sua definição utilizada em determinada situação de comunicação. Além do


mais, é pela escolha vocabular que a legitimidade discursiva será concretizada.
Em contrapartida, falar acerca do tema para Maigueneau (2008) pode ser
uma espécie de “campo minado”, tendo em vista que, em um discurso, o tema
pode ser estudado em sua ‘minuciosidade’ e abordar diferentes níveis, por isso, o
autor prefere trabalhar com “(...) aquilo que um discurso trata, em qualquer nível
que seja” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 81).
No intuito de legitimar sua fala, o estatuto do enunciador e do destinatário
pressupõem a subjetividade diversa da qual depende toda a competência
discursiva. “À (...) dimensão “institucional” se acrescenta certa relação do
enunciador e do destinatário com as diversas fontes do saber; o que nos leva à
dimensão intertextual” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 87). Nota-se que a noção de
língua como instrumento de poder é plenamente aceita, já que ela não é um
elemento neutro na discursividade.
Ademais, o espaço e o tempo determinado no discurso são categorizados
como dêixis enunciativa, ela pressupõe que a instância enunciadora é capaz de
restringir a cena e a época em que o discurso é construído. Não se trata, pois, de
delimitar o tempo e o lugar do “agora”, mas sim da ideia produzida no interior da
enunciação, uma lógica produzida na construção do mundo descrito.
O modo de enunciação está relacionado ao “como dizer” do enunciado. É
a presença do Ethos que, por meio de marcas discursivas, linguísticas e textuais,
exterioriza a centralidade de sua enunciação mascarada por posicionamentos
capazes de legitimar a enunciação através desta maneira de dizer. De acordo com
Maingueneau (2008b, p. 53-54), a encenação da enunciação acontece sob três
óticas:

[...] um investimento cenográfico do discurso faz deste último


movimento em que se elabora uma re-presentação de sua própria
situação de enunciação; um investimento em um código
linguageiro permite, jogando com a diversidade irredutível de
zonas de registros de língua, produzir um efeito prescritivo que
resulta de uma conivência entre o exercício da linguagem que o
texto implica e o universo de sentido que ele manifesta; um
investimento imaginário dá ao discurso uma voz atestada por um
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |41

corpo condizente com a cenografia e com o código linguageiro.


(MAINGUENEAU, 2008b, p. 53-54)

Já o modo de coesão é o elemento responsável pela tessitura discursiva,


aquilo que traz ao discurso a metáfora do “laço” coesivo, produzindo sentido
através das relações anafóricas e catafóricas que se estabelecem na
interdiscursividade, trazendo esse encadeamento progressivo à enunciação. Ou
seja, a motivação da escolha lexical dá-se no decorrer do próprio discurso, dando
preferência ao que tornará seu discurso mais coeso e coerente.
Por meio dessas categorias, o significado global dos discursos apresentados
oral, verbal ou visualmente podem dialogar através do Simulacro que se faz
perceber na junção de todos ou alguns elementos expostos anteriormente. Sendo
assim, a ideia de “simular” é justamente fazer com que as ideias reais e pretendidas
fiquem subtendidas discursivamente, precisando de um “esforço” mental para
desvendar, na cenografia apresentada, o real desejo do enunciado.

4. Os objetos discursivos visuais na construção e reconstrução do discurso

Lúcia Santaella (2012) irá dizer que não podemos mais chamar de leitor
apenas aqueles que leem letras e palavras, mas sim os capazes de ler semáforos,
placas de trânsito, desenhos e informações que são apresentadas de maneira
visual. Se o nível discursivo é estabelecido pelas instituições que determinado
enunciado suporta, por que considerar discursivo apenas os elementos verbais?
Os elementos visuais não são capazes de apresentar enunciados coerentes e coesos
por meio do que é visto?
Acredita-se que, em enunciados verbo-visuais, a parcela visual também
contribui para a discursividade do texto, tendo em vista que, por exemplo, em
HQs (Histórias em Quadrinhos) a interpretação e compreensão total do
enunciado dá-se apenas pela leitura sincronizada feita por meio de ambas as
parcelas. Nas pinturas, pode-se observar um encadeamento progressivo, assim
como nos textos verbais, de uma leitura feita de cima para baixo, da esquerda para
a direita. Deste modo, podemos dizer que, à medida em que o linguístico descreve
42 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

os elementos presentes num enunciado, as imagens mostram/ilustram o que os


sintagmas teriam mais dificuldade em traduzir. Santaella e Nöth (2012) afirmam
que enquanto as palavras ativam mais os efeitos cognitivo-conceituais, as imagens
agem de maneira afetivo-relacional.
Em Leitura de Imagens: Como Eu Ensino, Lúcia Santaella (2012)
apresenta quatro categorias semânticas para que se possa analisar textos que
surgem num mesmo suporte. Para a autora, essas categorias podem acontecer sob
os princípios da dominância, da redundância, da complementaridade ou da
discrepância (ou contradição). Sendo assim, a dominância transcorre por meio da
superioridade informativa do visual em detrimento do verbal, como acontece nas
pinturas. A relação de redundância ocorre quando há a presença de um texto
visual apenas para reforçar a temática presente em um enunciado verbal ou
representar situações presentes no enredo de uma narrativa, como podemos
observar em textos utilizados para atividades de leitura e interpretação em livros
didáticos de língua portuguesa, já que podemos encontrar o mesmo texto em
outros suportes sem a imagem/ilustração que foi alocada próximo a ele. A relação
de complementaridade é aquela em que há a necessidade de se efetuar a leitura
de ambas as parcelas de forma simultânea, ou seja, tanto o verbal quanto o visual
são efetivamente importantes para sua leitura, como no caso das HQs, tirinhas,
livros ilustrados. Por último, a relação de discrepância ou contradição, em que a
parcela verbal nada tem a ver com a parcela visual - parece que as informações
foram alocadas de forma equivocada.
Como relação exclusiva para o que pretende este estudo, especificaremos
a relação de complementaridade, tendo em vista que é a existente no corpus
apresentado. Assim, na leitura e interpretação de textos em que essa produção
aparece, pode-se dizer que há uma espécie de justaposição de informações
expostas verbo-visualmente que faz com que o leitor entenda que o enunciado
somente trará sua discursividade no decorrer da leitura do ‘todo’.

[...] quando ambas as fontes de informação, imagem e texto, são


importantes para se compreender o significado global de uma
mensagem, tem-se uma relação de complementaridade. O texto
pode apresentar lacunas que são preenchidas pela imagem e vice-
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |43

versa. [...] Frequentemente, a complementaridade entre texto e


imagem consiste no fato de que ambos se complementam a partir
de seu potencial específico: a imagem informa com recursos
diferentes do texto, na medida em que mostra aquilo que,
linguisticamente, é difícil de apresentar. (SANTAELLA, 2012, p.
115)

Desta forma, pode se afirmar que as imagens participam do “modo de


coesão” para a produção de discursos em textos verbo-visuais, já que a parcela
visual presente nas HQs, por exemplo, exerce grande papel referencial, podendo
até comprometer a discursividade do enunciado. Logo, o visual também introduz,
mantém ou desfocaliza os objetos discursivos por meio daquilo que se pode ler
visualmente.
O sentido na leitura está ligado a vários procedimentos e processos
interativos. Assim como dá-se sentido aos textos verbais, por meio de relações
semânticas, sintáticas e interações, dá-se também sentido aos textos visuais e
verbo-visuais.
Pensando nas relações semânticas propostas por Santaella (2012) e em uma
sintaxe para facilitar o estudo das relações verbo-visuais, acredita-se que, assim
como os textos puramente verbais, os textos verbo-visuais também estão
marcados por relações de coesão e coerência imbricadas em eixos de coordenação,
subordinação e correlação – inclusive quando relacionados a textos ou parcelas
verbais de textos.
É sabido que as orações podem estabelecer relações semânticas apenas por
uma justaposição dos sintagmas mesmo que não haja um conectivo. Essa relação
de coesão e coerência é inferida pelo leitor para que se compreenda e interprete
o enunciado da melhor maneira possível. Pode-se dizer que nas relações entre as
parcelas do texto verbo-visual ou entre um texto verbal e um visual colocados em
conjunto ocorre uma espécie de justaposição, já que não há a presença explícita
de conectivos que apontam a relação entre palavra e imagem.
Esta justaposição pode ocorrer em três eixos – da coordenação ou da
correlação, para relações menos encaixadas, e da subordinação, para relações mais
encaixadas, ou seja, de certa dependência semântica. Isto ocorre porque existe,
44 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

num nível mais abstrato, a inferência de conectivos que expressam determinados


vínculos para que um texto, com ambas as parcelas, possa ser devidamente
compreendido e interpretado.
Sendo assim, Azeredo (2014) afirma que a palavra subordinação implica
uma relação oracional de dependência, ou seja, uma oração depende
sintaticamente de outra para que possua seu sentido completo. “Subordinação –
ou hipotaxe – significa ‘dependência’ (...) e implica uma diferença hierárquica
entre as unidades relacionadas” (AZEREDO, 2014, p. 294). Já as orações
coordenadas (parataxe) são definidas pelo autor como orações independentes, já
que, num contexto de produção, não precisam estar sintaticamente ligadas para
produzirem sentido completo. “(...) elas se situam no mesmo nível de modo que a
presença de uma independe da presença da outra (...)” (AZEREDO, 2014, p. 294).
Vale apontar também que Castilho (2010) afirma que os conceitos das
coordenadas e subordinadas são precários. Tendo em vista isso, o autor agrega a
essa conceitualização o estatuto das correlatas, apresentadas por ele como um
terceiro tipo de relações intersentenciais. Para o autor,

O processo de desdobramento sintático está na base da


gramaticalização das conjunções correlatas. Esse processo consiste
na ocorrência de um segmento x a que corresponde
obrigatoriamente um segmento y. Os efeitos do redobramento
sintático estão por toda parte na gramática do português, porém
nem sempre nos damos conta de que estamos diante de um mesmo
fenômeno. [...] A criação das conjunções correlatas é, portanto,
mais uma consequência do processo sintático de redobramento
(CASTILHO, 2010, p. 387).

Como não se trata apenas de palavras, mas sim das relações estabelecidas
entre elas e as imagens que as acompanham, o foco, nesta pesquisa, são as relações
semânticas (SANTAELLA, 2012) propriamente ditas, pois, como já foi visto, as
relações entre palavra e imagem não denotam, explicitamente, a presença de uma
conjunção e/ou conectivo, mas estabelecem nexos que inferimos “virtualmente”.
Assim, propõe-se estabelecer um quadro que nos auxiliará a compreender
melhor estas relações semânticas que se encontram nos eixos da coordenação,
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |45

subordinação e correlação, ou seja, das relações mais encaixadas e menos


encaixadas na produção de sentido.

Quadro 1 - Relações semânticas nos eixos sintáticos da gramática


Relações Semânticas Conceitos da gramática Proposta de pesquisa
Santaella (2012)
Dominância Subordinada Alicerçada
+ encaixada
Redundância Coordenada Adição tautológica
- encaixada
Complementaridade Subordinada Sincronização
+ encaixada
Discrepância / contradição Correlata Correlação alternativa do
- encaixada conjunto de textos

Fonte: SIQUEIRA, Thatiana Muylaert, 2017, p. 53.

O quadro anterior nos apresenta como as relações semânticas formuladas


por Santaella (2012) encontram-se em eixos coordenados, subordinados ou
correlatos. Pode-se observar que, tanto as que apresentam uma relação de
dominância, quanto as que apresentam uma relação de complementaridade são
mais encaixadas, justamente, por estabelecerem uma relação direta da parcela
verbal com a parcela visual do texto. Já as redundantes e discrepantes são menos
encaixadas, ou seja, podem produzir o devido sentido na leitura sem a
interferência da outra parcela (verbal ou visual).
Palavras e imagens também podem ser dependentes sintaticamente, pois
quando se trata de textos verbo-visuais sua leitura e interpretação não podem ser
feitas sem se levar em conta o todo do texto. As relações de coordenação,
subordinação e correlação, assim como atribuídas às palavras, auxiliam na
organização textual e facilitam, de certa forma, a compor a tessitura do texto.
O relevante é compreender que o texto é mais encaixado ou menos
encaixado apenas tratando-se da relação sintática, pois quando se trata do sentido
46 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

produzido no próprio enunciado de textos verbais, visuais ou verbo-visuais é a


relação semântica que auxilia na produção de sentido de qualquer texto.

5. Construindo sentidos

Como visto, a relação entre verbal e visual é capaz de suscitar emoções e


leituras tanto quanto textos produzidos puramente de forma verbal. Assim, não
levar em conta o visual para a produção de sentido de enunciados é desconsiderar
parte de sua discursividade, ou seja, apenas pelo enlaçamento entre as parcelas do
texto que a significação total do enunciado será interpretada.
Numa produção verbal, o detalhamento por meio do linguístico faz com
que o leitor possa, na coesão textual, identificar os elementos lexicais que
norteiam indignações através da descrição e atribuição de adjetivos a depender
do posicionamento adotado no enunciado. Nos textos verbo-visuais, a coesão
ocorre através da relação referencial que se estabelece entre verbal e visual. À
medida que o linguístico descreve, o imagético possibilita a retomada através da
inferência que é possível pelos traços e cores apresentados.
A dêixis enunciativa proposta no texto verbal é definida pela
caracterização detalhada, atribuída ao enunciado pelas marcas linguísticas
escolhidas para sua produção. Assim, mesmo que o leitor não esteja a par de tal
assunto, é mais fácil identificar a temática produzida nesses gêneros textuais. Em
contrapartida, a leitura de enunciados verbo-visuais demanda do leitor um
conhecimento prévio para que se possa inferir, na relação de complementaridade,
a intenção comunicativa de determinado enunciado, ou seja, é por meio das pistas
deixadas na evidenciação dos objetos discursivos que a inferência é produzida.
Para Dell’Isola, a inferência nada mais é que

[…] um processo cognitivo que gera uma informação semântica


nova, a partir de uma informação semântica anterior, em um
determinado contexto. Inferência é, pois, uma operação mental em
que o leitor constrói novas proposições a partir de outras já dadas.
Não ocorre somente quando o leitor estabelece elos lexicais,
organiza redes conceituais no interior do texto, mas também
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |47

quando o leitor busca, extratexto, informações e conhecimentos


adquiridos pela experiência de vida, com os quais preenche “vazios”
textuais. O leitor traz para o texto um universo individual que
interfere na sua leitura, uma vez que extrai inferências
determinadas por contextos psicológico, social, cultural,
situacional, dentre outros (DELL’ISOLA, 2001, p. 44).

Deste modo, os questionamentos que se apresentam no dia a dia de muitos


brasileiros, em relação ao futuro político do país, são marcados em inúmeros
suportes textuais - a internet é um deles, principalmente nas redes sociais como
facebook e instagram, onde há, de forma explícita, o descontentamento da grande
massa com toda essa situação presente no atual cenário do país. Sendo assim, as
críticas ocorrem de forma ligeira e humorística, através da captação do internauta,
primeiramente, pela demonstração dos objetos discursivos e, depois, pelo
interesse do leitor em relação a determinados assuntos.
Nesse quesito, as tirinhas, na internet, podem funcionar como uma espécie
de charge, já que não só apresentam uma narrativa curta com tom humorístico,
mas, essencialmente, por promover uma reflexão acerca de determinado tema de
forma satirizada. Diferente de outros gêneros textuais, as tirinhas não vêm
acompanhadas de uma reportagem ou uma crônica que auxilie na explicação ou
sustentação daquilo que é mostrado, ela depende principalmente da interação
entre texto-leitor.
Tendo em vista isso, para análise, serão apresentadas tirinhas do
Armandinho (BECK, S/A), a fim de desvelar a discursividade existente nas
parcelas visual e verbal desse gênero de texto que, como uma espécie de laço
coesivo, traz significado ao enunciado verbo-visual por meio da
complementaridade presente.
Sendo assim, o corpus representativo estabelece uma abordagem
qualitativa que visa de modo indutivo e dedutivo (CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, 2014) ratificar as informações presentes no aporte teórico para
as análises propostas. É indutivo porque em um processo mental constatam-se,
por meio de inferências, algumas verdades observadas de forma empírica. É
dedutivo por acreditar na veracidade das afirmações constatadas por meio da
48 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

indução, ou seja, apresenta de forma lógica os antecedentes e consequentes da


argumentação apresentada verbo-visualmente. As tirinhas mostradas a seguir irão
elucidar as noções teóricas apresentadas até aqui.

Figura 1 4

Na figura 1, podemos observar uma tirinha que remete ao infeliz


acontecimento com o Museu Nacional do Rio de Janeiro, e isso é percebido,
primeiramente, pelo visual, capaz de captar o leitor pelas chamas que emanam a
tristeza do ocorrido, tanto no primeiro, como no segundo e terceiro quadrinho.
Na parcela verbal do texto, pode-se ler: “Não é só um prédio antigo que arde em
chamas... é nossa história, nosso patrimônio, nossa memória... cultura, educação,
pesquisa... o nosso passado... e o nosso futuro...”. Além das chamas, pode-se ler no
visual que a parcela verbal se trata do diálogo estabelecido por Armandinho e seu
pai, que sempre é desenhado da cintura para baixo, deixando o foco no
personagem principal da história.
A relação estabelecida entre as parcelas do texto é de complementaridade,
encontrada no eixo da subordinação, podendo ser classificada como uma relação
sincronizada, já que a leitura desse texto é feita pela sincronia de suas parcelas.
Além do mais, o simulacro das informações é dado pelas categorias encontradas
na semântica global apresentada por Maingueneau (2008). A seleção do código
linguageiro sobre as chamas ardentes do fogo remete a tudo que foi perdido, não

4Disponível em:
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1842320599187019&set=a.549129038506188&type=3&t
heater. Acesso: 14/09/2018.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |49

só as coisas materiais como as culturais, tratando-se principalmente da educação


e pesquisa que ficarão no esquecimento de toda sociedade.
Ademais, pode-se notar a quantidade de temas tratados no texto; além do
fato principal, a queima de tantos objetos inestimáveis, há, por trás, a
desvalorização de elementos indispensáveis para a nacionalização de uma
população, descritos pelos próprios vocábulos. A legitimidade e singularidade dos
temas é marcada pelo próprio enunciado, já que as tirinhas do Armandinho são
conhecidas por tratar de assuntos polêmicos que dizem respeito às preocupações
sócio-político-ambiental.
É por meio da metáfora do laço coesivo, entre elementos verbais e
elementos visuais, que o modo de enunciação é marcado, tendo em vista a
relevância de ambas as parcelas do texto para causar impacto no leitor,
evidenciando a importância dos elementos físicos e emocionais que se perderam.

Figura 25

A figura 2 também é caracterizada pela relação de complementaridade


que há entre as parcelas do texto, por isso, também se encontra no eixo da
subordinação e pode ser classificada como uma relação sintático-semântica de
sincronização. Na parcela visual, pode-se observar no primeiro quadrinho a
representação das mulheres/meninas brasileiras, e, no segundo e terceiro, um
diálogo entre Armandinho e seu amigo. No verbal, pode-se ler as seguintes

5Disponível em:
https://www.facebook.com/tirasarmandinho/photos/a.488361671209144/2132430223468939/?type=
3&theater. Acesso: 14/09/2018.
50 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

assertivas: “Não estou entendendo... O que será que elas podem fazer? – Unidas?
– Ahh... TUDO!”
O simulacro discursivo diz respeito à organização das mulheres em prol de
um único desejo: igualdade de direitos a todos. Mascarado a isso, estende-se a
necessidade que tem de se unir contra o machismo e o feminicídio arraigado em
nossa sociedade. O amigo de Armandinho parece assustado ao notar a união entre
diferentes mulheres, e, atrelado a isso, Armandinho o alerta para o grande
potencial das mulheres, que são capazes de fazer muitas coisas sozinhas, mas,
unidas, podem fazer tudo. A escolha vocabular – TUDO – abraça e enaltece a
temática principal do texto: o feminismo, não como uma bandeira que pregue a
desordem ou o desamor entre as pessoas de qualquer gênero, mas o contrário,
justamente a união e respeito a todos enquanto seres humanos.
Analisando brevemente as tirinhas apresentadas, pode-se perceber que o
simulacro decorre de muitos elementos verbais e visuais para que se atinja a
semântica global do discurso. Tratando-se de um gênero tão presente no cotidiano
de todos os indivíduos, trabalhar a discursividade dos textos verbo-visuais nas
aulas de língua portuguesa auxilia o alunado a buscar em seu imaginário
sociodiscursivo saberes partilhados capazes de construir a significação total de um
discurso.

6. Algumas considerações

Somos constituídos enquanto sujeitos através dos discursos. Na e pela


palavra nos posicionamos, reverberamos filiações, nos atrelamos a este ou àquele
movimento ideológico e também nos tornamos seres políticos. Estas primeiras
décadas do século XXI, porém, têm nos apresentado novos modelos de leituras e
posicionamentos diante do mundo e da sociedade na qual vivemos. Não que a
leitura da imagem e a percepção desta como elemento intrínseco ao escrito seja
inteiramente nova, mas novo deve ser o olhar daquelas∕es que pesquisam sobre
esse corpus.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |51

Inundados pela possibilidade de textos que o universo multimodal nos


oferece, vivendo dias de adormecimento político e social, as tirinhas, num âmbito
mais geral, e as de Armandinho, criadas por Beck, em particular, nos possibilitam
a reflexão sobre um universo imagético nem sempre possível de ser retratado ou
compreendido em sua totalidade de sentidos através do escrito, sendo a imagem
aquela que aparece em primeiro plano, como o grande elo comunicativo e
condutor da mensagem inicial do autor.
É na interação com o próprio texto que os leitores atribuem seus
conhecimentos de mundo, de crença, imaginários sociodiscursivos por meio
daquilo que inferem, dando ao enunciado outras atribuições, talvez, não previstas
pelo próprio autor. Sabe-se que os textos podem ter muitas interpretações, tendo
em vista que cada indivíduo é único e possui suas próprias experiências de vida,
mas também se sabe que dessas muitas interpretações, apenas algumas são
possíveis.
Importante ressaltar que, assim como as palavras, a relação entre texto
visual e texto verbal também são marcadas virtualmente por conectivos que
podem expressar vínculos coordenados, subordinados ou correlatos que mantém
nexos alicerçados, aditivos tautológicos, sincronizados ou alternativos para
concretizar a interpretação.

REFERÊNCIAS

AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo:
Publifolha, 2014.

CASTILHO, Ataliba T. de. Nova gramática do português brasileiro. 1. ed. 1ª


reimpressão. São Paulo: Contexto, 2010.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise


do Discurso. São Paulo: Contexto, 2014.
52 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

DELL’ISOLA, Regina Lúcia Péret. Leitura: inferências e contexto sociocultural.


Belo Horizonte: Formato Editorial, 2001.

FERES, Beatriz dos Santos. “O ato de ler numa perspectiva interativa: os níveis de
construção de sentidos dos textos”. In: Leitura e formação do leitor: Cinco estudos
e um relato de experiência. DIAS, André; FERES, Beatriz dos Santos; ROSÁRIO,
Ivo da Costa (orgs). 1. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016, p. 29-42.

KLEIMAN, Ângela. B. Oficina de Leitura e Prática. Campinas: Pontes, 1996.

MAINGUENEAU, Dominique. Gêneses dos Discursos. – São Paulo: Parábola


Editorial, 2008a.
_________. Cenas da Enunciação. – São Paulo, Parábola Editorial, 2008b.

_________. Discurso e análise do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

SANTAELLA, Lucia. Leitura de imagens – como eu ensino. São Paulo:


Melhoramentos, 2012.

SANTAELLA, Lucia e NÖTH, Winfried. Imagem, cognição, semiótica, mídia. São


Paulo: Iluminuras, 2012.

SIQUEIRA, Thatiana Muylaert. Palavra e imagem nas seções de abertura dos


livros didáticos de língua portuguesa: relações semânticas e sintático-discursivas.
Orientadora: Beatriz Feres. 2017. 160 f. Dissertação (Mestrado em Estudos de
Linguagem) – Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio
de Janeiro, 2017.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |53

SINONÍMIA E EXPRESSIVIDADE EM TEXTOS MIDIÁTICOS

Ana Malfacini (UERJ)


Marcelo Beauclair (UERJ)

1. Palavras iniciais

Este artigo é parte de nossa pesquisa acerca dos aspectos semântico-


pragmáticos que interagem na produção de sentido. Esse estudo resultou em um
livro – Relações lexicais: introdução à semântica – que inaugurou uma série
chamada Português na Universidade. Dessa forma, investigando os aspectos
semântico-pragmáticos da linguagem, considerando suas origens e suas
propriedades, bem como sua aplicabilidade no processo de comunicação,
objetivou-se um aprofundamento no estudo desta área da Linguística: a
Semântica, especificamente, aqui, a semântica sob a ótica discursiva.
Outro aspecto que se busca investigar é o processo de paráfrase que é
empregado em textos midiáticos. Como se sabe, escolha lexical alguma é aleatória
ou ingênua. Portanto, o uso de paráfrases pode concorrer sobremaneira para a
produção de sentido de modo mais refinado e restrito. Por isso, este artigo
debruça-se sobre tal processo semântico: a sinonímia.

2. Considerações teóricas

De modo geral, duas palavras ou expressões são consideradas sinônimas


se compartilham o mesmo sentido em quaisquer contextos em que estejam
inseridas, ou seja, apresentam uma identidade total sob determinadas condições.
Tais condições, segundo Lyons (1987), apresentam-se desta forma: 1) todos os
sentidos das expressões envolvidas teriam que ser idênticos; 2) as expressões
teriam que ser sinônimas em todos os contextos, e 3) teriam que ser
54 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

semanticamente equivalentes em todas as dimensões do sentido, descritivo6 ou


não (apud S. Vereza, 2000: 3).
Os termos que admitem tais condições são considerados sinônimos
perfeitos, processo que Lyons (1987) denomina como sinonímia absoluta. Diz o
autor ser possível a ocorrência de sinonímia absoluta apenas em raríssimos casos:
em vocabulários altamente especializados, por exemplo. Entretanto, como tais
termos podem coexistir entre especialistas desse vocabulário apenas por um
período curto de tempo, há uma tendência para a seleção de somente um termo,
o que torna essa ocorrência um procedimento raro. Como se vê, a difícil reunião
de todas aquelas condições confere à sinonímia tida como absoluta o status de um
fenômeno, de fato, praticamente irrealizável.
Concorre, ainda, para a negação da sinonímia absoluta, uma expectativa
intrínseca ao usuário da língua, assim descrita por Bloomfield (1933), em
“Language”: “cada forma linguística tem um significado constante e específico. Se
as formas são fonemicamente diferentes, supomos que seus significados são
também diferentes... Supomos, em resumo, que não há sinônimos reais” (apud
Ullmann, 1987: 291).
A conceituação de sinonímia, contudo, abrange pontos de vista
divergentes. Francisco da Silva Borba (2003: 237), por exemplo, rejeita a
necessidade imperiosa das condições listadas por Lyons em todos os contextos;
“bastam certos contextos (idênticos ou não), mesmo porque, por uma questão de
economia, a língua tenderia a eliminar os itens perfeitamente idênticos em todas
as situações de uso.”
Cançado (2012) corrobora essa ideia: “ ter somente a mesma referência
não é uma condição suficiente para que haja sinonímia. Além de terem a mesma
referencia, é necessário, também, que as expressões tenham o mesmo sentido .”

6
John Lyons (1987) analisa o significado como sendo descritivo, expressivo, ou social. O primeiro se
caracteriza pelas declarações que pretendem descrever uma situação qualquer. O segundo, tido como
não-descritivo, caracteriza-se como a emissão de opinião ou sentimento acerca de determinada
situação. O último, na verdade, interdependente do significado expressivo, relaciona -se ao uso da
língua para o estabelecimento dos papéis e das relações sociais, transformando-se em instrumento da
interação social.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |55

Diante da possibilidade bastante limitada da sinonímia absoluta, Lyons


contrapõe a esse tipo de sinonímia a chamada sinonímia completa, que se
caracteriza por uma equivalência parcial, sendo encontrada em alguns contextos,
não necessariamente em todos. Esses “quase-sinônimos” têm sentidos similares,
mas não idênticos. Os verbos “matar” e “assassinar” são comumente vistos como
sinônimos, mas não admitem uma substituição integral, na medida em que o
primeiro apresenta traços semânticos que legitimam seu uso em contextos onde
estão envolvidos seres humanos ou não, enquanto o último apresenta apenas um
traço [+humano]. Pode-se matar um homem ou um inseto, metaforicamente, até
um sonho, mas “assassinar” só caberia no primeiro caso. Pode-se perceber que
essa visão se aproxima daquela proposta por Borba.
No final de maio de 2022, o país viu pelo noticiário um ato de barbárie:
a execução de um homem pelas forças de segurança pública do estado de Sergipe.
A população de Umbaúba, no litoral ao sul daquele estado, assistiu à truculência
da polícia ao matar Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, asfixiado depois de ser
trancado no porta-malas da viatura com uma bomba de gás lacrimogênio, em um
ato de crueldade injustificável. O professor Ernani Terra, em seu Facebook,
registrou esta opinião:

(FIG. 1: ERNANI TERRA)

Disponível em: www.facebook.com


56 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Pode-se perceber que a escolha lexical feita pelo jornal, em outro


contexto, talvez abarcasse uma similaridade em um processo de assemelhação,
entretanto, aqui, a carga semântica prevista em “assassinar” não guarda vestígios
de sinonímia com o item “matar”, imagine-se “morrer”.
Vejamos estas outras manchetes, de 02 fev. 2017:

Militares matam assaltante na Avenida Brasil


[O Globo]
Bandido é morto por militares na Av. Brasil
[Meia Hora]

Numa leitura superficial, poderíamos tomar a manchete do jornal Meia


Hora como uma paráfrase daquela vista em O Globo. No entanto, cabe comentar
– e reside aqui o grande mote desse assunto – que a escolha lexical, além da opção
sintática que se toma na frase são fundamentais para a captação do sentido.
Em primeiro lugar, a escolha pela formação passiva vista na manchete do
Meia Hora expõe, sem dúvida, o foco que se pretende adotar: se em O Globo o
sujeito da ação é “militares”, na manchete do jornal Meia Hora é “bandidos”. Essa
estratégia revela o viés mais popular desse jornal: o centro da informação é o
bandido que foi morto. Não nos parece que ocorra aqui qualquer tipo de intenção
ideológica, uma defesa do marginal ou coisa parecida, mas o foco em si no
elemento que é mote diário das matérias desse jornal, voltado sabidamente para
as classes mais populares.
Chama a atenção, também, as escolhas feitas pelos jornais: enquanto O
Globo trata como “assaltante”, o Meia Hora trata como “bandido”. A seleção
lexical revela uma linguagem comprometida com o público-alvo do veículo
midiático. Nessa escolha, parece-nos que a seleção mais popular carrega uma
carga mais negativa, enquanto um veículo mais elitista tenta se manter em um
espectro de neutralidade. Assim, Cançado (2012) resume esse processo: “ não é
possível pensar em sinonímia de palavras fora do contexto em que estas estão
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |57

empregadas”. De certa forma tais exemplos corroboram a crítica feita por Ernani
Terra quanto à matéria da Folha.
Vejamos um exemplo retirado de Sandmann (2003: 63):

Vendem-se casas impopulares para construir casas populares


Veja, 18/04/90.

Segundo Sandmann (Id.Ib.), “ texto técnico preferiria com certeza (casas)


‘não-populares’, que nesse contexto seria o antônimo de (casas) ‘populares’, isto
é, ‘simples, baratas’ e não ‘famosas, conhecidas’, mas em texto de propaganda o
conotativo ‘impopulares’ vai muito bem”.
Pode-se perceber que os termos tidos como sinônimos “impopular” e
“não-popular”, na verdade, por seu uso no anúncio, ganham contornos similares,
mas não idênticos. Ainda que essas palavras apontem para a ideia de que a
população não será atendida, “não-popular”, termo mais técnico, está associada a
um poder de compra por parte da população, enquanto “impopular”, no emprego
conotativo do anúncio, tem valor de algo que não vai ter sucesso frente ao público
consumidor.
Essas considerações sobre a sinonímia entre palavras ou expressões,
também chamada de sinonímia lexical, mostram que não se pode pensar em tal
conceito sem analisar o contexto em que estão inseridos os termos avaliados como
sinônimos. É o contexto, como afirmou Cançado, que vai determinar a relação de
sentido, de modo a estabelecer uma relação sinonímica entre os itens lexicais na
frase. Isoladas, as palavras estão excluídas de seu aspecto pragmático e situacional,
condições fundamentais para construção de sentido.
É exatamente sob essa ideia que se funda a sinonímia textual, também
chamada de sinonímia estrutural. Aqui, como na lexical, a sinonímia textual
abarca pontos de vista bastante divergentes. Borba (2003: 238) apresenta os
seguintes exemplos:

(1) Carlos deixou de jogar, embora goste de esportes.


58 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

(2) Carlos não joga mais, apesar de seu gosto por esportes.

Segundo o autor, dada a equivalência de sentido, pode-se afirmar que se


trata de enunciados sinônimos, ou, em outros termos, trata-se de uma paráfrase.
Definida como um “modo diverso de expressar frase ou texto, sem que se altere o
significado da primeira versão” (Aurélio Século XXI, versão eletrônica), a
paráfrase poderia, segundo Borba, representar uma sinonímia textual na medida
em que estabelece uma relação entre termos com a mesma “denotação” no sistema
de signos, ou seja, a alteração sintática e lexical na construção da frase não
alteraria o sentido do texto. Como visto nas manchetes dadas como exemplo, a
alteração sintática na estruturação ativa ou passiva da frase poderia, sim, implicar
uma alteração de sentido.
Outro aspecto da sinonímia textual pode ser verificado, segundo Vereza
(2000), no que diz respeito ao conceito de “referência”. A autora propõe o seguinte
exemplo:

(3) O carro desapareceu na avenida. O veículo não foi mais visto desde
então.

Numa perspectiva puramente semântica, os termos “carro” e “veículo”


manteriam uma relação de hiponímia / hiperonímia. Contudo, no contexto frasal,
através da anáfora, assumem uma identidade de referência, o que implicaria uma
função de sinonímia. Dessa forma, afirma Vereza (2000: 7): “diferentes formas de
coesão lexical em um texto assumem caráter de sinonímia por envolverem o que
essa tem de essencial: a identidade de referência ”. O que os itens lexicais teriam
em comum são seria o significado, mas a referência, ambos denotariam o objeto
em questão. A manchete a seguir representa um exemplo:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |59

Israel pune soldado que rejeita retirada


Recruta passará 56 dias preso
Jornal do Brasil, 29/06/05.

Na manchete, que trata do fato de um soldado do exército israelense ter


se recusado a participar de uma operação para destruir prédios vazios ocupados
por radicais israelenses na Faixa de Gaza, as palavras “soldado” e “recruta”
apresentam sentidos similares, mas não idênticos – dadas as suas condições de uso
– , no entanto, apontam para a mesma identidade de referência (o homem),
podendo, segundo a visão de Vereza, ser consideradas sinônimos textuais.
A autora avança nessa conceituação e admite a ocorrência de sinonímia
textual até mesmo em paráfrases metafóricas como no exemplo a seguir, proposto
por ela:

(4) O carro desapareceu na avenida. A lata enferrujada nunca mais foi


vista.
Segundo Vereza, através da identidade de referência, o sintagma “lata
enferrujada” pode ser considerado, sob o ponto de vista funcional, sinônimo de
“carro”.
Ilari e Geraldi (1985) negam a relação entre sinonímia e paráfrase. Para
esses autores, não basta para a composição da sinonímia a ocorrência da mesma
referência. Para comprovar, lançam como exemplo esta construção: “mesmo que
as moças mais bonitas de um bairro fossem as filhas do gerente do Banco do
Brasil”, as duas expressões “as moças mais bonitas do bairro” e “filhas do gerente
do banco do Brasil” não seriam sinônimas. Segundo Ilari e Geraldi (1985: 43) “ para
que duas expressões sejam sinônimas, não basta que denotem o mesmo conjunto
de objetos (pessoas, animais, coisas)”.
Corroboram essa visão Charaudeau e Maingueneau (2004: 366): “ a
paráfrase é uma relação de equivalência entre dois enunciados, um deles podendo
ser ou não a reformulação do outro”. Apesar de admitirem a ocorrência da
paráfrase através da correferência, e até da anáfora, citando Catherine Fuchs, os
60 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

autores negam a relação entre sinonímia e paráfrase: “ a paráfrase não poderia


provir da sinonímia, na medida em que ela convida à deformabilidade do sentido
do discurso (Id.Ib.)”.
Concordando com Ilari e Geraldi (1985: 49), acreditamos que “ a escolha
entre duas frases sinônimas por razões estruturais nunca é completamente
inocente.” Dessa forma, estruturas contíguas como a relação entre ativa e passiva
ou um jogo entre modalizações, como em “é necessário que...” / “eu devo...”
sustentam a formação da paráfrase e não necessariamente da sinonímia.
Contudo, não pensamos ser excludente tal formação. Se tomarmos a
sinonímia de termos como a “ propriedade desses termos de poderem ser
substituídos um pelo outro sem prejuízo do que se pretende comunicar ” (Câmara
Jr., 2002: 222), não vemos por que não concordar com a visão de Vereza para
sinonímia textual: se em determinada situação linguística, a opção textual de uma
estrutura por outra não implica um prejuízo de sentido, como afirma Câmara Jr.,
ocorre, nesses casos, um processo sinonímico a partir da paráfrase empregada.
Um jogo textual, a partir da relação entre paráfrase e sinonímia, pode ser
visto nesta charge, que ironiza o escândalo do Mensalão, que previa compra de
votos de parlamentares no Congresso Nacional, entre 2005 e 2006:

(FIG. 2: SANTIAGO)
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |61

SANTIAGO. Jornal do Comércio (RS), 08/07/05.

Pode-se perceber que Santiago, ao aproximar as construções “um traidor


valia 30 dinheiros” e “compra-se um deputado por 30.000”, estabelece uma
relação de paráfrase. A sinonímia textual se sustenta sob uma mesma referência:
a traição. Pode-se inferir, a partir disso, que a traição nos tempos de Cristo e nos
dias atuais se equivalem, salvo a “inflação” do período – pura ironia do chargista.
O processo de sinonímia textual pode se dar, também, de forma, icônica,
como nesta charge a seguir:
(FIG. 3: LULA)

IQUE. JB, 14/05/04.

O jornalista Larry Rohter, repórter do New York Times, causou polêmica


quando noticiou no jornal norte-americano que o então presidente Luís Inácio
Lula da Silva tinha problemas com bebida. Tal fato resultou na negação do visto
para permanência do jornalista no Brasil e sua consequente extradição, gerando
revolta em diversos setores da mídia, que considerou autoritária a atitude do
governo. A charge de Ique para o Jornal do Brasil representa essa opinião ao
aproximar a figura de Lula à do líder nazista Adolf Hitler. Pela visão icônica da
62 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

charge, num processo sinonímico, compara-se a atitude de Lula à postura de


Hitler sob o cunho da arbitrariedade.
Dessa maneira, cremos que não haja sinônimos perfeitos, mas um
processo sinonímico. Não há, de forma alguma, como afirmar que Lula e Hitler
seriam sinônimos. Entretanto, com base nas atitudes comparadas pelo chargista,
existe uma intenção de aproximação entre tais atitudes, daí a visão de há um
processo sinonímico nessa linguagem não verbal.
Em meio à pandemia, a revista Isto É publicou esta capa:

(FIG. 4: BOLSONARO)

Disponível em: www.istoe.com.br


Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |63

Vemos que, ao aproximar a figura de Bolsonaro à de um palhaço (com


base no elemento gráfico representando um nariz, além dos cabelos
desgrenhados), a Isto É estabelece um processo de semelhança entre os
personagens – segundo a revista a sua postura debochada, considerada
inconsequente e irresponsável ao que se refere à gestão do país, autoriza tal
comparação. Claro está que não se supõe aqui que o personagem da alegria do
circo e Bolsonaro sejam sinônimos, mas que apontam para um processo
sinonímico, uma vez que há a intenção de assemelhação entre as posturas dos
sujeitos envolvidos.
Assim, importa frisar que, seja em uma estrutura midiática, seja no
discurso cotidiano, o traço situacional e pragmático deverá estar em uso. Muitas
vezes, a escolha de uma palavra em detrimento de outra, por exemplo, certamente
poderá traduzir uma expressividade que a relação de sentido no contexto
linguístico não deve desprezar.
Retomando a linguagem verbal, é fundamental aceitar a ideia de que a
possibilidade de escolher entre duas ou mais alternativas confere ao processo da
sinonímia um raro instrumento de comunicabilidade e até mesmo de estilo, na
medida em que o autor poderá eleger aquela palavra que melhor se adapte ao
contexto, dando a ênfase necessária ao que se quer dizer.
A escolha dos itens léxicos nas duas manchetes a seguir ilustram esse
procedimento estilístico:

Negros e pardos são mais atingidos por desemprego e recebem menosFolha de São
Paulo, 05/06/04.

A cor desigual do trabalho


IBGE mostra que desemprego é maior entre negros e pardos. Brancos ganham o
dobro
O Globo, 05/06/04.
64 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

As duas manchetes tratam do mesmo assunto – a desigualdade salarial


entre pessoas de etnias diferentes. Contudo, parece-nos que, pela escolha lexical,
na manchete do jornal paulista a mensagem é mais direta, mais clara; na manchete
de O Globo, a mensagem ganha um tom mais poético, pela construção sintática
da estrutura linguística e pela seleção dos itens lexicais. Aceitamos, aqui, o
complexo enunciativo das manchetes como uma unidade comunicativa. Por isso,
a similaridade dos dois enunciados constitui um processo de sinonímia, ainda que
se verifiquem as diferenças estilísticas das duas manchetes. Nesse sentido, fica
clara a atuação do processo sinonímico como fator de expressividade semântica
no contexto linguístico.

3. Considerações finais

Seja em uma estrutura literária, onde métrica e rima concorrem para a


harmonia do texto, seja no discurso cotidiano, o traço situacional e pragmático
deverá estar em uso. A escolha da palavra “vagabundo”, por exemplo, para uma
pessoa que não está trabalhando em detrimento da expressão “desempregado”,
aponta para uma reflexão que se ancora no processo enunciativo, além da carga
semântica que o item lexical possui.
Dessa forma, o processo de sinonímia é fundamental para a apreensão do
sentido pleno do texto. Conforme analisamos, a intenção comunicativa está
intimamente ligada ao traço contextual; residem no plano discursivo, assim como
no plano linguístico, os elementos que sustentam o processo comunicativo. E,
cada vez mais, o espaço midiático tem sido terreno fértil para o desenvolvimento
da expressividade da língua em sua vertente pragmático-semântica.

REFERÊNCIAS

BORBA, Francisco da Silva. Introdução aos estudos linguísticos. Campinas, SP:


Pontes, 2003.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |65

CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. Dicionário de linguística e gramática. Petrópolis,


RJ: Vozes, 2002.

CANÇADO, Márcia. Manual de Semântica. São Paulo: Contexto, 2012.

CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise


do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

HOLLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Aurélio século XXI. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, s/d, versão eletrônica.

ILARI, Rodolfo e GERALDI, João Wanderley. Semântica. São Paulo: Ática, 1985.

LYONS, John. Linguagem e linguística. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

MALFACINI, Ana; BEAUCLAIR, Marcelo. Relações lexicais: uma introdução à


semântica. Série Português na Universidade, v.1. Rio de Janeiro: Telha, 2021.

SANDMANN, Antônio. A linguagem na propaganda. São Paulo: Contexto, 2003.

ULLMANN, Stephen. Semântica: uma introdução à ciência do significado. Lisboa:


Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.

VEREZA, Solange Coelho. Contextualizando o léxico como objeto de estudo:


considerações sobre sinonímia e referência. DELTA, 2000, v.16, nº 1.
66 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

OS RECURSOS VERBAIS E NÃO VERBAIS NO JORNAL MEIA HORA: UMA


PROPOSTA DIDÁTICA COM AS MANCHETES DE CAPA

Andressa Cristina Oliveira (UFRRJ)


Stefanio Tomaz da Silva (UFRRJ)

1. Introdução

O texto midiático pode ser um artifício interessante para abordagem de


diferentes questões linguísticas e não linguísticas (imagens, caracteres, tamanho
da fonte do texto etc.) em sala de aula. Com base nisso, este trabalho tem como
ponto de vista demonstrar como o Jornal Meia Hora, através do humor, denuncia
e questiona acontecimentos de diferentes ordens (social, cultural, política e
econômica). Na seção de análise, avaliaremos a contribuição dos recursos verbais
e não verbais para o efeito de humor e, por sua vez, a construção ideológica por
trás das manchetes ou chamadas de capa. Finalmente, sugeriremos, a partir das
manchetes de capas ou chamadas de capa do jornal, um trabalho pedagógico que
venham desenvolver a reflexão linguística e crítico-social dos alunos.

2. O gênero chamada de capa no jornal Meia Hora

É fundamental a abordagem de diferentes gêneros textuais nas aulas de


Língua Portuguesa, uma vez que contemplamos a todo o momento uma
diversidade de textos em nosso dia a dia, principalmente após o advento da
internet. Entretanto, da mesma maneira que a internet amplia constantemente o
acesso a essa gama de textos com os quais temos contato cotidianamente, também
acaba nos afastando, por conta da sua rapidez e facilidade, da leitura de certos
suportes que outrora eram um dos maiores propagadores de diferentes gêneros
textuais, como é o caso do jornal. A fim de acompanhar o avanço tecnológico, a
maior parte dos jornais impressos também optou por versões online ou digitais.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |67

Para além de suas versões impressas ou digitais, os jornais continuam


sendo suporte de variados gêneros e investindo em métodos para atrair mais
leitores, ora de forma mais tradicional, ora de forma mais irreverente, original. O
Jornal Meia Hora, por exemplo, é um periódico carioca e de cunho popular que
aposta no humor, na criatividade e na irreverência em suas manchetes ou
chamadas de capa, sendo esse gênero seu maior carro-chefe para atrair o público
leitor.

Fig. 1: Primeira edição impressa do Jornal Meia Hora

Segundo Caldeira (2014, p. 44), a chamada de capa ou chamada de


primeira página é “um gênero que pode circular em outros suportes/hipergêneros
e não somente no jornal”, sendo utilizado também em revistas e websites.
Ademais, é a parte mais importante do jornal e estabelece, inclusive, juntamente
com o cabeçalho e o editorial, o jornal como suporte (BONINI, 2004), uma vez
que nela reside o objetivo de atrair o leitor e preservar sua credibilidade.
No que concerne a composição da chamada de capa, é necessário o
equilíbrio temático (reunindo os principais e diversos assuntos como destaque na
capa) e o equilíbrio estético (organização das imagens e das manchetes, tamanho
e cor das fontes nas manchetes, etc.). Sendo assim, quanto ao seu equilíbrio
estético, ainda de acordo com Caldeira (2014), as chamadas de capa podem ser
68 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

divididas em dois tipos: as ordenadas, em que há uma paridade na organização


dos elementos verbais e dos elementos não verbais; e as orgânicas, em que um
único elemento pode ter mais destaque, inclusive a ponto de ocupar toda a
primeira página. Ambos os formatos de capa costumam ser utilizados pelo jornal
Meia Hora, como observamos abaixo:

Fig. 2 e 3: capas, respectivamente, das datas 26/07/18 e 09/07/14


Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |69

na primeira imagem, temos um exemplo de capa ordenada, no sentido que os


elementos são distribuídos simetricamente ao longo da página, de forma que as
manchetes e as imagens tenham quase o mesmo destaque; já na segunda imagem,
o destaque refere-se apenas a um assunto que diz respeito ao ocorrido na Copa de
2014, em que a seleção brasileira foi derrotada por 7 gols contra 1.
Ainda no que tange aos aspectos estruturais que compõem uma chamada
de capa, é importante ressaltar seu papel como um gênero composto por espécies
de hiperlinks ou, mais precisamente, igualando-se a um sumário, de forma que,
ao indicar o caderno e o número das páginas internas apresentadas ao lado das
manchetes e das fotos, orienta o leitor para o avanço da leitura. Além disso,
direciona-o aos demais gêneros midiáticos que compõem o jornal.
Outro elemento importante a se destacar na chamada de capa é a forma
como são classificados os títulos das manchetes, bem como o efeito de sentido que
o jornal pretende transmitir através deles. De acordo com Melo (1994), há
algumas manchetes da chamada de capa cujos títulos apresentam claramente um
ponto de vista do jornal acerca do fato que será noticiado. Há também aqueles
que - a fim de evitar um maior comprometimento do jornal com o que é noticiado
- é ocultado, de forma explícita ou não, seu conteúdo ideológico. É na chamada
de capa que geralmente percebemos o objetivo tendencioso de certas manchetes,
ou seja, a falta de transparência, de imparcialidade e de objetividade diante de
certos fatos.
No Meia Hora, também percebemos, em suas chamadas de capa, a
opinião do jornal diante de algum fato, como na imagem abaixo, em que é visível
o descontentamento do jornalista ou editor do jornal com a violência na cidade
do Rio de Janeiro:
70 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Fig.4: meiahora.com.br. Acesso em 31 ago. 2018.

Por fim, a chamada de capa é um gênero jornalístico tão importante


quanto os demais, considerando que é a porta de entrada do jornal, ou seja, ela
que irá despertar o interesse do leitor em ler ou não determinado periódico.
Ademais, ainda é uma forma de orientá-lo para leitura de outros gêneros mais
comuns ao leitor, como a notícia e a reportagem, por isso, também, a relevância
de sua abordagem nas aulas de Língua portuguesa.
Quanto à escolha das chamadas de capa do jornal Meia Hora para esse
trabalho em sala de aula, foi pensada por toda sua irreverência, humor e fácil
acesso em relação a custo, o que despertaria nos educandos uma maior vontade
em ler periódicos impressos. Outro ganho com esse estudo, está relacionado à
riqueza linguística e estilística que é possível extrair das manchetes das chamadas
de capa do jornal Meia Hora.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |71

3. Recursos verbais e não verbais na construção do humor e da crítica no Meia Hora

Não há como falar sobre gêneros do discurso sem levar em conta os


propósitos comunicativos da interação num processo dialógico da linguagem.
Segundo Cavalcante (2014, p.44), “toda interação se dá por algum gênero
discursivo que se realiza por algum texto”, em que cada gênero discursivo tem um
objetivo específico em relação ao interlocutor. Uma notícia, por exemplo, tem o
objetivo de informar um acontecimento recente, bem como a reportagem tem
como propósito detalhar e trazer mais informações acerca desse fato. Já o gênero
chamado de capa tem como função atrair o leitor para a leitura de determinado
jornal/revista/página de internet e para que isso ocorra de forma eficaz, é
necessário estratégias diferenciadas. O jornal Meia Hora, como já enfatizado
anteriormente, aposta principalmente no humor como artifício para atrair seu
público alvo.
O humor, de acordo com Travaglia (1989),

tem sido visto como uma atividade ou faculdade humana universal


cuja função vai muito além do simples fazer rir. Ele seria uma
espécie de arma de denúncia e desmitificação, de instrumento de
manutenção do equilíbrio social e psicológico; uma forma de
revelar verdades e de flagrar outras possibilidades de visão do
mundo e das realidades naturais ou culturais que nos cercam e,
assim, de desmontar falsos equilíbrios. (TRAVAGLIA, 1989, p. 670)

Para Possenti (2014), os textos com teor humorístico podem estar


atrelados a acontecimentos, que exigem um saber relativo sobre eles, sendo
necessário que em muitos casos o leitor consiga perceber um jogo de linguagem,
como, por exemplo, ambiguidades, deslocamento de sentidos, etc. No jornal Meia
Hora, esse jogo com a linguagem verbal e com a linguagem não verbal, de forma
a criar certa ambiguidade, é bastante recorrente, como vemos na chamada de capa
abaixo: há um duplo sentido com a palavra Peru e com o nome do técnico da
seleção brasileira de futebol, naquela época, Dunga (que também remete a uma
personagem do conto de fadas Branca de Neve). Nesse último exemplo, também
72 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

é visível a relação intertextual entre a imagem e o que está escrito dentro do balão
de fala:

Fig.5: meiahora.com.br. Acesso em 20 jan. 2019.

O humor nas chamadas de capa do jornal Meia Hora está não somente
relacionado ao código linguístico, mas também aos elementos não verbais
(imagens que acompanham as manchetes, tamanho e cor de fonte, disposição
tipográfica, localização da fotografia/imagem) que as compõem. Travaglia (1989,
p. 673) fala em categorias do humor. Uma dessas categorias, segundo o autor, está
relacionada ao código, tanto verbal quanto não verbal:

A quinta categoria é do humor quanto ao código. Neste caso, ele


pode ser verbal ou linguístico e não verbal (situação, gestos,
movimentos e atitudes corporais, caracterização, expressão
fisionômica, ruídos vocais não linguísticos, objetos, voz). O código
linguístico é usado praticamente em 100% dos casos, o que
evidencia a importância da Linguística no estudo do humor.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |73

Logo, é necessário que o leitor esteja atento aos fatores não linguísticos
aliados aos elementos verbais a fim de que compreenda o humor e a ironia
presentes nas manchetes da chamada, tendo que fazer, muitas vezes, um resgate
a seu próprio conhecimento de mundo. Esse leitor precisa estar consciente que “o
efeito de humor deriva da sacada, da construção surpreendente de tais
correspondências [e de sua descoberta pelo leitor/ouvinte]” (POSSENTI, 2014, p.
74). Com isso, podemos advogar um tal efeito de humor decorrente das escolhas
linguísticas e das seleções de imagens, planos e enquadramentos feitos pelo jornal.
Ao analisar, por exemplo, os provérbios de Millôr Fernandes e outros
textos de humor, Perini (2014, p. 74) comenta também sobre esse efeito de
humor. Segundo ele, esse efeito “deriva da sacada, da construção surpreendente
de tais correspondências (e de sua descoberta pelo leitor/ouvinte)”. Assim, no caso
das manchetes ou das chamadas, a compreensão do humor só se concretiza
quando cognitivamente o leitor aciona e inter-relaciona seus conhecimentos de
mundo e seus conhecimentos linguísticos. Ou seja, “saca” ou “descobre” o que há
por de trás dos recursos ou dos jogos linguísticos e da seleção/enquadramento de
uma imagem ou foto. Com esse comentário, sistematizamos na tabela abaixo o
que consideramos recursos verbais e recursos não verbais a serem observados na
análise das capas:
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RECURSOS VERBAIS RECURSOS NÃO VERBAIS


Centrados nos planos e níveis da língua Centrados em signos como as formas, a cor, os
(TRAVAGLIA, 2013, p. 48 [baseado]) gestos, os sons musicais (FIORIN, 1997, p. 371
TRAVAGLIA, 1988, p. 673; [baseado]);

• Fonético-fonológico (sons e • Tamanho, fonte, negrito e itálico;


fonemas da língua); • Disposição tipográfica;
• Morfológico (morfemas, ou seja, as • Coloração ou seleção de cor;
flexões, prefixos, sufixos, radicais e • Seleção de imagem/fotografia;
raízes); • Focalização da imagem (zoom,
• Sintático (marcação de flexão aproximação, afastamento);
entre palavras; organização das • Expressão fisionômica.
construções: ordem direta,
inversa, topicalização);
• Semântico (significado dos itens
lexicais, gramaticais e construções;
sinônimos, antônimos,
hiperônimos etc.);
• Pragmático (expressão de
intenções comunicativas/ atos de
fala – jurar, prometer, perguntar,
ameaçar, afirmar etc.);
• Textual (anafóricos, dêixis e
catafóricos; conectivos,
marcadores de pressuposição).

Tabela: Recursos verbais e recursos não verbais

4. Análise das chamadas de capa do jornal Meia Hora

Pautado nas sistematizações propostas na seção anterior e,


especificamente, nos aspectos descritos, sugeriremos a análise de três capas de
diferentes datas. Após a análise, sugeriremos também algumas abordagens para o
trabalho didático com as capas do Meia Hora, em aulas de Língua Portuguesa.
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CAPA – 15/06/2016

Fig.6: meiahora.com.br. Acesso em 20 jan. 2019.

Na capa de 15/06/2016, o fato central apresentado pelo jornal é a


demissão do ex-técnico da seleção Dunga. Nessa chamada, a edição explora
claramente a intertextualidade, tanto verbal, quanto não verbal. Essa estratégia
textual funciona como efeito de humor para criticar a inabilidade de Dunga à
frente da seleção brasileira. Isso fica explicitamente marcado pelo figurino da
personagem Dunga vestido no técnico e pela imagem da personagem Branca de
Neve.
Há ainda a citação do famoso refrão de uma música cantada pelos
personagens do filme “eu vou, eu vou pra casa agora eu vou” aludindo tanto à
derrota da seleção, quanto à saída de Dunga. Na imagem da capa, esse refrão ganha
proeminência, uma vez que é, através de um balão, colocado como fala de dunga,
além de receber também outra fonte tipográfica.
É válido mencionar a homonímia entre o nome da personagem e do
técnico. Esse fato permite ademais uma leitura comparativa, remetendo a ideia de
76 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

que o técnico da seleção partilha das mesmas características da personagem do


desenho animado – atrapalhado e enrolado.
Por fim, nessa capa, a chamada “Nada de tititi! Chupa essa manga, Tite!”
é também sugestiva. Nela, além dos ditos populares “nada de tititi” e “chupa essa
manga”, o jornal faz uso da paranomásia, recurso expressivo ou figura de
linguagem que permite a aproximação de “palavras diferentes, mas muito
próximas do ponto de vista do plano sonoro, para intensificar o sentido expresso
por elas”. (FIORIN, 2014, p. 133). É o que ocorre com as palavras “tite” e “Tite”.
Esse trocadilho é associado ao plano não verbal, que, na capa, é a expressão
fisionômica de Tite cabisbaixo.

CAPA – 02/08/2018

Fig.7: meiahora.com.br. Acesso em 20 jan. 2019.

Na capa de 02/08/2018, a manchete principal é a vitória do Flamengo


sobre o grêmio. Nessa manchete, o casamento entre o verbal e o não verbal chama
a atenção. No plano linguístico, o enunciado “Foi na raça” é de duplo sentido, ou
seja, permite duas interpretações. No primeiro plano de leitura, é possível inferir
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |77

que a palavra “raça” se refere ao que comumente chamamos de raça rubro-negra,


o apelido do time. No segundo plano, pode-se interpretar a palavra “raça”, no
enunciado, como uma vitória que se deu na garra, portanto, não sendo fácil.
No aspecto não verbal, a focalização da imagem faz um jogo antitético.
Há, em relevo e com uma focalização destacada, jogador flamenguista Lincoln,
considerado o herói ou o salvador; no segundo, caído e com uma “desfocalização”,
um jogador do Grêmio, o derrotado. Esse jogo de foco revela a intencionalidade
de reforçar a ideia da raça e da garra, tipicamente marcas associadas ao time da
Gávea.
Ainda, no plano não verbal, fica nítida que a escolha da foto quer destacar
a imponência e o deboche de quem conseguiu um bom resultado. Com isso,
institui-se o sarcasmo aos times adversários que torcem contra o rubro-negro.
Desse fato, advém o efeito de humor que o jornal constrói também através da
linguagem não verbal.
Assim como a anterior, essa capa também faz uso do trocadilho. A
chamada “Abundância de pilantras” oferece esse jogo, aproximando os termos
“bunda” e “abundância” que, no contexto da notícia, estão relacionados ao fato de
mulheres estarem morrendo em cirurgias de aumento dos glúteos nas mãos de
profissionais não capacitados. Por isso, a seleção lexical “abundâncias” para
remeter a ideia de intensificação, já que, por semanas, eram constantemente
noticiadas mortes de mulheres nesse tipo de cirurgia. Essa notícia demonstra uma
vertente fora do escopo da piada, revela uma perspectiva mais crítica por parte do
jornal.
Seguindo essa vertente crítica, a capa de 26/08/2018 traz à tona a reflexão
e a denúncia sobre a violência no Rio de Janeiro.
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CAPA 26/06/2018

Fig.8: meiahora.com.br. Acesso em 20 jan. 2019.

Essa edição começa de um modo curiosamente metalinguístico, uma vez


que o jornal explica sua própria linha editorial:

Que graça tem a copa se o jogo da vida a gente tá perdendo?


Então, a gente queria fazer até uma capa zoando a Argentina,
sacaneando o mole do Peru e torcendo pra que o Neymar se
preocupe mais com a bola do que os cabelos, hoje. Mas num dia em
que acontece uma coisa dessas no Rio, simplesmente...
NÃO DÁ

Nessa chamada, eles explicitam que o humor e a irreverência fazem parte


da marca do jornal. Aliás, numa publicação especial, nomeada As capas mais
bombadas do Meia hora (2016), o jornal já havia ressaltado essa linha: “Passada a
primeira página, a irreverência do Meia Hora está presente também no ‘miolo’,
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |79

com títulos criativos, reportagens inusitadas e abordagem incomum para os fatos


do noticiário”.
No que diz respeito especificamente à chamada de capa, ela tem tanto
um texto maior, quanto uma imagem diferenciada do que comumente o Meia
Hora publica. Inicialmente, é importante contextualizar que, na ocasião,
estávamos no período da Copa do Mundo. E, concomitantemente a esse fato, no
Rio de Janeiro, os casos noticiados de violência estavam assustando a população
carioca. É nesse sentido que essa edição se desloca do humorismo crítico para
trazer a seriedade da questão da violência no Rio. Daí as escolhas de uma
fotografia centralizada, fontes em negrito e em caixa alta e de um texto longo em
vez das chamadas mais concisas e objetivas.
Destacando o aspecto verbal, a chamada inicial “Que graça tem a copa se
o jogo da vida a gente está perdendo?” traz a estratégia da pergunta retórica. Esse
questionamento, no contexto da capa, é um ato de fala que chama a atenção do
leitor para a seriedade do fato a ser noticiado.
Já, no desenvolvimento da chamada propriamente dita, o texto enumera
acontecimentos que seriam de interesse do jornal tratar (“zoando a Argentina”,
“sacaneando o mole do Peru”, “torcendo para que o Neymar se preocupe mais
com a bola”), entretanto, com o fato da morte do estudante Bruno Silva, o
noticiário não poderia destacar tais acontecimentos.
Linguisticamente, alguns recursos materializam essas explicitações.
Primeiro, é interessante destacarmos o uso do advérbio “hoje” que serve como um
marcador de pressuposição. No contexto, ele indica aquilo que o jornal seguirá
uma outra diretriz, em vez de comentar assuntos comumente relacionados ao
interesse do jornal. Nesse jogo discursivo, o conectivo de contraposição “mas”
também reforça essa ideia. Finalmente, retomemos à atenção para o uso das
reticências e o papel da caixa alta (“NÃO DÁ”). O sinal marca a transição entre o
silêncio pós-discurso e o “grito” enfático de basta com as letras em caixa alta.
Com as análises apresentadas até aqui, podemos levantar algumas
reflexões iniciais sobre o humor presente nas chamadas de capa ou manchetes de
Meia hora. Em tese, os recursos linguístico-textuais e não verbais possuem papel
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essencial na construção desse humor. A possibilidade, por exemplo, de uma


palavra ou estrutura significar além de seu valor significativo básico permite a
quebra de expectativa, uma das fórmulas do humor. No caso do não verbal, essa
quebra de expectativa ocorre a partir do caricaturesco e do entrecruzamento com
o linguístico, como na capa de 15/06/2016. Por fim, há ainda que pensar sobre o
papel do humor como marcar posicionamento quanto a fatos sociais.

5. Aplicação didática com as chamadas de capa do jornal Meia Hora

Neste segundo momento, orientados pela análise das capas, sugeriremos


abordagens para o trabalho didático com elas, nas aulas de Língua Portuguesa.
Nesse trabalho, para conceber uma proposta, em primeiro lugar, é interessante
rever acima a sistematização que propusemos na seção anterior, tendo em vista os
conteúdos. Além disso, pautar-se em alguns objetivos para a concepção das
questões, tais como:

• Despertar o interesse do discente pela leitura de textos midiáticos;


• Exercitar a leitura reflexiva de textos verbais aliados a textos não
verbais, além da percepção dos efeitos linguísticos e discursivos
envolvidos;
• Relacionar o humor a uma determinada crítica/ponto de vista do
jornal, através da manchete de capa ou da chamada de capa.

Com tudo isso, vejamos algumas sugestões de modelo de atividades para


as capas analisadas.

5.1. Atividades de reflexão linguística sobre os efeitos expressivos e as marcas de


opinião na construção do humor nas manchetes de capa do Jornal Meia Hora

Leia atentamente as capas 1, 2 e 3 e, a seguir, responda às questões


propostas.
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Capa 1
1. O título da chamada principal “Eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou!” é
trilha de um famoso conto de fadas.

a) Que conto de fadas é esse? Qual é a relação desse desenho com o fato
noticiado pelo jornal?
b) Que elementos não verbais remetem a esse conto?

2. Explique como o humor se constrói a partir do verbal e do não verbal


presentes na chamada principal.

3. A chamada “Nada de tititi! Chupa essa manga, Tite!” aproxima duas


palavras próximas sonoramente, gerando um efeito de humor.

a) Que palavras são essas?


b) Qual possível relação entre essa chamada e a imagem do técnico
cabisbaixo?

Capa 2
1. A frase “Foi na raça!” possui duas interpretações no contexto em que está
inserida.

a) Identifique essas interpretações.


b) Relacione-as com a chamada de capa.

2. Os dois jogadores em destaque na capa estão enquadrados em posições


opostas. O jogador flamenguista está em pé, enquanto o gremista deitado.
Considerando o contexto apresentado pela capa, o que essa diferença
pode sugerir?

Capa 3
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1. A edição de 26/06/18 apresentou uma capa diferente do que comumente


o jornal publica, em vez de tom totalmente piadístico, trouxeram uma
reflexão em forma protesto.

a) Que reflexão é essa?


b) Que fatos publicados pelo jornal podem ser considerados piadísticos?

2. Considerando o contexto apresentado pela capa, indique o papel do


conectivo “mas”, tendo em vista aquilo que é publicado comumente pelo
jornal e o fato principal noticiado no dia.

3. A expressão “uma coisa dessas”, além de fazer referência à imagem,


enfatiza uma crítica do jornal. Explique, com suas palavras, essa crítica.

4. O uso das letras em caixa alta em “Não dá”, se comparados as em caixa


baixa, no contexto inserido, sugere uma intencionalidade do jornal. Que
tipo de intenção fica sugerida com a caixa alta?

5.2. Produção de manchetes de capa criativas e que explorem variados efeitos de


sentido, nos moldes do Jornal Meia Hora, utilizando recursos verbais e não verbais.

1. Além de servir de sedução ao leitor, as chamadas de capa ou manchetes


devem ser objetivas com frases curtas e diretas. Seu trabalho agora será
elaborar manchetes ou chamadas a partir de imagens ou memes que
circulam na internet. Para isso, considere a sedução ao leitor, a
objetividade e a concisão como marcas.

6. Considerações Finais
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Neste artigo, o foco foi gênero discursivo chamada de capa que ainda não
é tão trabalhado em sala de aula, mas tem uma importância fundamental no
despertar da leitura de suportes como jornais, revistas e até algumas páginas da
internet, já que, por estar na primeira página, é responsável por atrair leitores para
a leitura desses suportes. Também discutimos a importância do humor na
construção do discurso jornalístico e como pode funcionar como uma visão crítica
do jornal acerca de um fato, além de como a relação da linguagem verbal e não
verbal contribuem para esse efeito humorístico e, ao mesmo tempo, crítico.
Para a apresentação do gênero chama de capa optamos pela escolha do
jornal Meia Hora, periódico popular, de linguagem simples e que tem como
principal característica suas chamadas de capas irreverentes e com pegadas
inteligentes de humor e ironia. Esse efeito das chamadas de capa do jornal Meia
Hora ocorre, por haver uma exploração tanto de elementos da linguagem verbal,
como da linguagem não verbal (tamanho da fonte, imagem, disposição
tipográfica, ambiguidade, intertextualidade).
Houve comentários também acerca da definição de humor e sua
contribuição para a construção do discurso, além de sua importância nos estudos
linguísticos. Para fins de noção prática, os elementos verbais e não verbais foram
analisados em algumas capas selecionadas, a fim de que pudéssemos perceber
como essa harmonização entre eles criam essa atmosfera humorística/irônica
como um objetivo crítico do jornal.
Por fim, sugerimos diversas aplicações didáticas, a fim de que o professor
possa abordar em sala de aula, de forma que o educando não tenha apenas acesso
a textos midiáticos diferenciados, como também possa entender o papel do humor
e da ironia como uma forma de posicionamento crítico do jornal diante de algum
fato. Ademais, esse tipo de abordagem possibilita ao professor um trabalho em
que estimule ao aluno a reflexão e o exercício do senso crítico. Dessa forma, foram
produzidas atividades de interpretação das chamadas de capa e, no final, uma que
estimulasse a produção de uma chamada, de forma que fique a cargo do educando
a escolha dos recursos verbais e não verbais de sua produção textual.
84 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Portanto, é fundamental que os educandos sejam estimulados a terem


acesso a variados tipos de textos nas aulas de Língua Portuguesa, não somente por
estarem embutidos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e nos
documentos curriculares das redes escolares, mas também pelo fato de estarem a
todo momento circundados de textos diversos, principalmente após o advento da
internet. Dentre esses textos, é necessário dar uma atenção maior ao trabalho com
gêneros midiáticos, uma vez que auxiliam na formação de opinião e senso crítico
da sociedade. Por isso, a fim de que pudéssemos despertar o estímulo pela leitura
de textos jornalísticos com maior facilidade, optamos pelo Jornal Meia Hora, por
toda sua irreverência e riqueza estilística, além de ser um periódico popular, com
uma linguagem comum e por apostar no humor nas suas chamadas de capa,
tornando-se, assim, uma leitura mais atraente para os jovens.

REFERÊNCIAS

BONINI, Adair. "Os gêneros do jornal: um exemplo de aplicação da metodologia


sócio-retórica". In: Cristóvão, V. L. L.; NASCIMENTO, E. L. (Orgs.). Gêneros
textuais: teoria e prática. Londrina: Moriá, 2004.

CALDEIRA, Adriano Baptista. "A chamada de capa". In: BONINI, Aldair et. al.
Os gêneros do jornal. Florianópolis: Insular, 2014.

CAVALCANTE, Mônica M. Os sentidos do texto. 1 ed., 2ª reimpressão. São Paulo:


Contexto, 2014.

JORNAL MEIA HORA. Disponível em: <https://meiahora.ig.com.br/> Acesso em


20. Jan. 2019

MARTINS, Nilce. Introdução à estilística. São Paulo: EdUsp, 2008.


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MELO. J.M. de. A opinião do jornalismo brasileiro. 2. ed. rev. Petrópolis: Vozes,
1994.

PLATÃO, Francisco; FIORIN, José Luiz. Para entender o texto: leitura e redação.
São Paulo: Ática, 1997.

POSSENTI, Sírio. Cinco ensaios sobre humor e análise do discurso . São Paulo:
Parábola, 2018.

POSSENTI, Sírio. Humor, língua e discurso. São Paulo: Contexto, 2014.


TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Na trilha da gramática: conhecimento linguístico na
alfabetização e letramento. São Paulo: Cortez, 2013.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Recursos linguísticos e discursivos do humor. Humor


e classe social na televisão. In:
www.gel.org.br/arquivo/anais/1309096162_79.travaglia_luiz.pdf. Acesso em 25.
Set. 2018.
86 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

PROJETO LYRICS: LETRAS DE MÚSICAS EM INGLÊS TRATADAS COMO


TEXTO POÉTICO NA VERSÃO PARA O PORTUGUÊS

Anna Carolina Legroski (Colégio Nossa Senhora Medianeira/UFPR)

1. Introdução

A conexão entre disciplinas de áreas semelhantes ou não do conhecimento


é um assunto que parece começar a ocupar cada vez mais práticas escolares,
partindo do princípio de que os saberes construídos ao longo da história da
humanidade são interdependentes e, ao se entrelaçarem, podem ajudar a uma
visão mais ampla de mundo. Como prática integrante de disciplinas, propusemos
o Projeto Lyrics, desenvolvido nas disciplinas de Literatura, atrelada à Língua
Portuguesa, e Língua Inglesa (subdivida em dois níveis: básico e avançado), no
Colégio Medianeira (Curitiba-PR), com turmas de 2º ano do Ensino Médio. Sua
primeira versão ocorreu em 2017, em colaboração com as professoras de Língua
Inglesa Michele Maria Nasser Cavalheiro e Vivian Mazzer.
Em 2018, a segunda edição do projeto trabalhou com 187 estudantes
divididos em cinco turmas diferentes, e contou com o trabalho conjunto da autora
e das professoras de língua inglesa Michele Cavalheiro e Tallysa Izabella Machado
Sirino Rezen. Cada turma teve um total de oito aulas de aplicação do projeto,
divididas em quatro de Literatura e quatro de Língua Inglesa, de acordo com a
etapa do trabalho. O projeto foi finalista do concurso Diário de Inovações 2018,
do instituto Porvir7, instituição voltada à inovação dentro do ensino.
O presente artigo apresenta e discute as partes do percurso pedagógico
construído nessa prática, pensando-o, principalmente, sob o viés da tradução, a
partir de uma abordagem interdisciplinar, calcada na construção e adaptação de
saberes dos estudantes.

7 O e-book compilando as práticas finalistas pode ser consultado no link: http://porvir.org/baixe-


ebook-gratuito-desafio-diario-de-inovacoes-2018/.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |87

2. O projeto

Para um pesquisador da área de Letras, pode parecer óbvio o parentesco


entre as disciplinas de Literatura em Língua Portuguesa e de Língua Inglesa,
porém nem sempre o estudante do ensino básico consegue perceber sozinho a
proximidade e quase espelhamento de certos temas de ambas disciplinas, uma vez
que sua interdependência nem sempre é discutida abertamente com os
estudantes. Dessa forma, propostas de trabalho que agreguem disciplinas
independentes no currículo escolar surge como uma oportunidade de demonstrar
a globalidade dos saberes, pontuando práticas, momentos e vivências em que o
pensamento global atua e interfere na vida cotidiana.
É, então, apropriado e, mais que isso, premente que a instituição escolar
utilize o máximo de espaços possível em prol da construção de um olhar capaz de
aproximar e correlacionar, unificando as disciplinas dentro de um saber global. O
Ensino Médio surge, nesse contexto, como um ambiente rico de oportunidades
para que haja o trabalho conjunto das disciplinas, uma vez que, por ter caráter
generalista (enquanto o Ensino Básico aparece como introdutório e o Superior
como especialista), há como conectar de formas várias uma série de saberes que,
apesar de serem abordados nas diferentes áreas do conhecimento, conectam-se de
acordo com tema e abordagem.
Pensando nisso, surgiu a proposta de unir Literatura e Língua Inglesa em
um projeto uno. É importante elucidar que, dentro do Colégio Medianeira, as
duas matérias são independentes entre si, pois Literatura está atrelada ao
componente de Língua Portuguesa, em termos de entrada no boletim e foco de
abordagem. Todavia, o trabalho realizando nessa disciplina nos dois primeiros
anos do Ensino Médio foca-se mais no letramento literário e teoria da literatura
(como uma forma de instrumentalizar os estudantes para leituras futuras,
analíticas ou não, dentro e fora do espaço escolar), considerando a interação
autor-leitor-texto em adição ao contexto de escrita. Esse projeto pedagógico
permite uma maior plasticidade da disciplina em relação a projetos, ao mesmo
88 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

tempo em que oportuniza maior aprofundamento do funcionamento dos gêneros


literários.
Já Língua Inglesa, no Colégio Medianeira, é subdivida em dois níveis, 1
e 2, sendo o primeiro considerado básico, no qual o inglês é trabalhado de forma
introdutória e instrumental, para estudantes que tiveram pouco contato com a
língua e não possuem habilidades comunicativas desenvolvidas nessa língua;
enquanto o segundo seria mais avançado. Os estudantes que o frequentam têm ou
tiveram contato prolongado e qualificado com a língua, e que, por isso, pressupõe-
se que tenham mais desenvoltura para trabalhar outros aspectos da língua,
inclusive literatura. Dada a disparidade entre estudantes dos dois níveis, para
trabalhar a versão de textos poéticos em língua inglesa para a portuguesa, optamos
por grupos compostos heterogeneamente, como forma de oportunizar trocas
entre os estudantes – por exemplo, aquele com maior competência linguística
ajudaria o com menor, fomentando relações para além da esfera cognitiva.
Nesse contexto, a ideia de um projeto de tradução de letra de música
entrou como uma força unificadora das duas disciplinas, pois, ao utilizar
naturalmente linguagem poética em seus versos, a letra trabalha aspectos da
linguagem literária que são trabalhados em sala (desde figuras de linguagem, até
não-ditos), e cotejar as duas línguas fomenta a consciência linguística dos alunos,
pois há o desafio de fazer algo que é compreensível em língua inglesa para um
certo grupo de pessoas igualmente compreensível em uma outra língua e por
outro público.
Nesse ponto, é importante clarificar que o trabalho proposto não foi
gerenciado de forma simplista ou redutora da proposta pedagógica de Língua
Inglesa, retornando à época em que se acreditava que o aprendizado de uma
Língua Estrangeira Moderna deveria passar pela tradução de palavras isoladas de
seu contexto semântico ou sintático. A atividade teve caráter aglutinar de
conhecimentos, em um ponto de encontro entre saberes e práticas escolares e
formais, e entre os atos comunicativos intuitivos e cotidianos dos estudantes.
Isso porque, como explica George Steiner (2005, p.76):
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |89

a tradução está formal e pragmaticamente implícita em cada ato de


comunicação, na emissão e na recepção de cada um e de todos os
modos de significar, sejam elas compreendidas no mais amplo
sentido semiótico ou em trocas mais especificamente verbais.
Compreender é decifrar. Alcançar a significação é traduzir.

Partindo de que a comunicação em si, verbal ou não verbal, configura-se


como um exercício cotidiano de tradução, uma vez que sua condição de sucesso
é a compreensão do interlocutor, a consciência sobre esse processo baseia-se sobre
uso consciente, proposital e planejado da língua, habilidades tão esperadas de um
estudante ao final do ensino básico, que fazem parte das avaliações para ingresso
no ensino superior.
Sob esse aspecto, o ato da leitura literária, em si, é uma espécie de
tradução dentro da própria língua. Isso porque, lembrando as categorias de
tradução apontadas por Walter Benjamin (2008) no ensaio “A tarefa do
tradutor”, ler e compreender um texto cuja linguagem é cifrada por natureza
aproxima-se do trabalho tradutório intersemiótico, uma vez que a linguagem
literária tem seu funcionamento próprio que pode aproximar-se, diferir ou
deformar a linguagem não literária – aquela que é clara, objetiva, transparente ao
falante. Dessa forma, o trabalho tradutório proposto pelo projeto era praticamente
duplo: acessar o significado do texto original e vertê-lo para outra língua.
Somando-se a isso, para além de sua presença na escola, a língua inglesa
tem presença natural no cotidiano de adolescentes do século XXI, de forma que
seu uso e sua adaptação, para muitos estudantes, já faz parte dos processos
inconscientes. Assim, nas palavras de Paulo Henriques Britto (2012, p. 11), “a
tradução é uma atividade indispensável em toda e qualquer cultura que esteja em
contato com alguma outra cultura que fale um idioma diferente (...)”, o que já se
tornou absolutamente cotidiano para uma grande maioria de estudantes de
grandes centros urbanos. Assim, a escolha pela tradução de letras de música
compostas em língua inglesa para a língua portuguesa encaixa-se nesse projeto.
Isso porque, tratando-se de um gênero textual que utiliza em grande medida a
90 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

linguagem poética, o primeiro esforço a ser feito para alcançar o objetivo final é
o de acessar os usos e sentidos daquilo que é expresso na letra original em sua
língua primeira. É apenas a partir desse reconhecimento que o trabalho de
tradução e versão pode ser concretizado de fato.
Dessa maneira, a primeira atividade prática relacionada ao projeto foi a
de escolha, triagem e ordenação de acordo com a relevância da música para o
grupo. Como o colégio trabalha a partir de uma perspectiva de aprendizagem
integral, as etapas de trabalho que extrapolam a dimensão cognitiva também têm
destaque e cuidado em sua estruturação, pois temos o cuidado com o
desenvolvimento humano também nas esferas sociais e emocionais. Nessa fase do
trabalho, propusemos aos estudantes que escolhessem três músicas com as quais
eles gostariam de trabalhar, considerando a conexão afetiva entre eles e a canção,
suas habilidades e limitações relativas à execução das partes do trabalho, seja sob
o ponto de vista do domínio das línguas trabalhadas– lembramos aqui que, nessa
ocasião, estávamos trabalhando com grupos heterogêneos em compreensão e
expressão em língua inglesa –, seja sob o prisma da dificuldade técnica que cada
gênero musical pode impor durante a gravação da versão cantada – consideramos
que gêneros mais rápidos e com cadência mais marcada, como o rap,
representariam um desafio muito maior para ser cantados do que, por exemplo,
um ritmo lento.
Orientamos os estudantes também sobre a adequação da letra a um
ambiente escolar, sendo que estaria fora de negociação qualquer texto de teor
preconceituoso ou vexatório. Consideramos, nesse caso, que palavras de baixo
calão, desde que possuíssem relevância dentro da letra original e significado não
literal poderiam ser adaptadas em língua portuguesa, mantendo a
intencionalidade de uso e não necessariamente o termo em si. Para a escolha final
da canção, propusemos uma negociação entre os grupos e uma das professoras, na
qual seria feita uma leitura global dos textos propostos, levando em consideração
a. relevância da peça musical para o grupo; b. repetição de música dentro da série
(julgamos adequado não haver músicas repetidas, principalmente para que as
professoras, ao orientarem os trabalhos, não sofressem interferência entre os
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |91

grupos); c. adequação às orientações passadas; d. relevância da letra para o


trabalho tradutório. Esse último quesito fez-se necessário para a certificação de
que a letra escolhida apresenta complexidade o suficiente para se encaixar no
percurso reflexivo proposto. A música, que se adaptasse aos critérios, seria aquela
com que o grupo passaria a trabalhar.
Paralelamente a esse movimento, também houve a proposta de uma
atividade de sensibilização e de comparação entre letra de música original em
inglês e vertida para o português, fazendo uso da música Itsy Bitsy Teenie Weenie
Yellow Polka Dot Bikini (1960), de Brian Hyland, e cotejando-a com a versão de
Ronnie Cord, Biquíni de Bolinha Amarelinha Tão Pequenininho (1964), de
Hervé Cordovil. Embora trate-se de uma peça bastante antiga e mesmo
desconhecida de vários estudantes, a comparação da letra oferece uma
possibilidade de ver como a mudança sutil de pequenos detalhes, em prol da
manutenção de sonoridade, pode representar grandes diferenças semânticas. Por
exemplo, na música original, não há menção ao nome da garota, chamada de Ana
Maria na versão em português, o que não representa grandes perdas ou ganhos
em sentido. Porém para além desse detalhe, em português, a letra apresenta
insinuações a respeito do corpo da garota e das intenções do eu poético. Esse dado
não é encontrado na letra original, que aparenta ser muito mais inocente do que
sua versão, bem como mostra um detalhe não mostrado por sua irmã brasileira: a
moça da letra original se exila dentro do mar e permanece lá, até que a água esfrie,
o que pressupõe que, tão envergonhada que estava, ela aguardou a noite cair para,
apenas então, sair da água.
Como essas mudanças são sutis, uma comparação preliminar entre os dois
textos pode apenas perceber semelhanças, mas é através da mediação e de um
roteiro de questões específicos que essas diferenças são mostradas e explicadas: na
versão brasileira, houve a escolha pela manutenção do formato e da sonoridade,
uma vez que é uma canção e que, por isso mesmo, tem como parte imprescindível
a harmonia entre suas partes. O nome da garota em português, inclusive, é usado
de forma consciente para a formação de rimas em /ia/.
92 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Ainda como forma de sensibilização e de reforçar aos estudantes a


natureza do trabalho e das escolhas que eles precisariam fazer, organizamos uma
palestra com Diego Zerwes, tradutor de Leonard Cohen e músico, que apresentou
trechos de seu trabalho, mostrando de forma bastante honesta as dificuldades
enfrentadas para chegar a uma versão final de qualidade.
Após a escolha das letras a serem trabalhadas e da sensibilização,
passamos à segunda parte do projeto, a tradução e a versão da letra. Nesse
momento, sob a orientação das professoras de língua inglesa, os estudantes
passaram à tradução de fato. Esse foi um momento mais do que oportuno para
demonstrar a falibilidade da tradução literal, pois recorrer a esse método para
lidar com linguagem literária – uma simples metáfora que seja – significa, via de
regra, obter um bloco de palavras que não possuem correlação semântica na
língua de chegada.
É verdade que desde São Jerônimo, ao expressar o seu popular “ non
verbum de verbo, sed sensum exprimere de sensu ”, há a noção de que é mais
necessária à tradução a manutenção do sentido do que as palavras isoladas, porém,
em sala de aula, verifica-se ainda uma necessidade primordial do estudante em
entender todas as palavras, isoladamente, para só então juntá-las em uma
expressão que, na sua versão de uma língua para outra, pode perder
completamente o sentido original, quando não o sentido pura e simplesmente.
Nas palavras de Danica Saleskovitch e Marianne Lederer (apud OUSTINOFF,
2011, p. 96) ,

Não omitir nenhuma das palavras do original parece ser a garantia


absoluta da fidelidade (...). O iniciante fica ‘colado’ às palavras; a
vontade de conservar uma igualdade quantitativa entre o original e
a interpretação parece decorrer de um instinto profundo.

Nos casos em que esse “instinto”, ou até mesmo “ansiedade”, manifestou-


se entre os estudantes, procuramos utilizá-lo de forma proveitosa, mostrando a
disparidade ou incoerência entre os sentidos da letra original e o produto dessa
forma rasa de traduzir. Justamente por isso, pensamos ser mais eficaz primeiro
acessar os sentidos das letras de música, em alguns casos partindo de uma tradução
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |93

literal e simplista, para só então voltar ao trabalho formal de adequação. Ao isolar


as duas partes, procuramos focar a atenção dos estudantes na etapa da
tradução/versão em funcionamento no momento, para só então passar à próxima,
cujo desafio seria outro e mais complexo.
Consideramos que, nessa etapa, também há quem decida utilizar uma
tradução disponibilizada em repositórios de letras de música online. Nesses casos,
o trabalho de mediação com os grupos busca a análise desse grupo a respeito da
qualidade da tradução obtida, se os estudantes concordam com as escolhas feitas
por aquele tradutor, se eles possuem soluções melhores para as traduções. Por ser
um trabalho complexo, precisamos também considerar e agregar as diversas
formas de resolução de problemas apresentadas pelas equipes, o que se torna
muito mais produtivo e interessante ao trabalho do que descartar essas soluções,
uma vez que é aberta uma nova oportunidade de reflexão sobre o projeto.
Nessa etapa, os estudantes têm a possibilidade de também experimentar
a linguagem enquanto sistema falho, incapaz de apreender o todo necessário para
uma comunicação sem ruídos, sem problemas, e a frustração diante de algo
indizível ou, até mesmo, intraduzível. Nesse contexto, o pensamento criativo é
estimulado, para que seja possível apresentar a mensagem, mesmo que não de
forma completamente equivalente – outra característica do trabalho tradutório
que é evidenciada através da prática.
Podemos afirmar que o trabalho de tradução e versão, objetivou também
lançar a luz à figura do tradutor como uma espécie de guia que transita entre as
barreiras das línguas e linguagens, necessário apesar da existência de aplicativos,
softwares e todo aparato tecnológico que é inventado e reinventado no intuito de
quebrar essas barreiras. Todavia, citando Brito (2012, p.12)

As pessoas tendem a pensar (i) que traduzir é, na verdade, uma


tarefa relativamente fácil; (ii) que o principal problema do tradutor
consiste em saber que nomes têm as coisas num idioma estrangeiro;
(iii) que este problema se resolve com a consulta de dicionários
bilíngues; e (iv) que, com os avanços da informática e o advento da
internet, em pouco tempo a tradução será uma atividade
inteiramente automatizada, feita sem a intervenção humana.
94 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

É, então, o crivo humano, de trato e da adaptação da linguagem, o único


capaz, até o momento, é verdade, capaz de acessar significados poéticos e vertê-
los para outra língua. Todavia, vale lembrar que se há o intermediário humano,
há também o filtro representado pela sua competência leitora na recepção da
mensagem original e o filtro de sua habilidade escritora, na mensagem vertida.
Dessa forma, o impacto do tradutor é perceptível no texto traduzido, nem que
seja por comparação. A esse impacto, dentro da proposta pedagógica em foco aqui,
chamaremos autoria, uma vez que, nas palavras de Mário Laranjeira (1993, p.31),
“a tradução é uma reescritura, noutra língua, de uma leitura do texto. É
imprescindível que o sujeito da leitura seja o mesmo da reescritura”, ou seja, “toda
tradução é, por definição, uma operação radical de reescrita, em que todas as
palavras de um texto são substituídas por outras” (BRITO, 2012, p. 67).
Além disso, o desafio do nosso projeto de tradução é ampliado ainda mais
por tratar-se de um texto literário, cujos ditos, não-ditos e formas de se dizer
também fazem parte de suas linhas. Assim, não bastava apenas acessar e verter a
significados, mas os estudantes também precisaram considerar o formato com que
a mensagem havia sido passada. Nas palavras de Brito (2012, p. 23), “o tradutor
literário não pode se limitar a traduzir o sentido geral do texto, porém precisa
reproduzir também as características do estilo do autor.”, assim, na terceira parte
do projeto, entram em cena a forma do texto poético, em especial o tamanho dos
versos, as rimas e o ritmo, conteúdo das aulas de Literatura.
Dada a complexidade da tradução do gênero lírico e suas diferentes
especificidades formais em diferentes línguas, enfatizamos que ao trabalharmos
com a contagem de sílabas poéticas, sempre tivemos em mente as diferenças de
metodologia entre as duas línguas. Assim, o acompanhamento musical foi uma
ferramenta importante de validação dos tempos e sílabas, ou seja, nem sempre um
verso que, em inglês, possuía 10 sílabas poéticas, tornou-se um decassílabo em
português. A avaliação nesse quesito foi adaptável e mais flexível a cada texto,
considerando também o ritmo da música original.
Levando em consideração que, conforme Michaël Oustinoff (2011, p.
66), “a forma não vem se sobrepor ao sentido: os dois são indissociáveis.”, o grau
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |95

de complexidade do trabalho aumentou ainda mais nesse momento do projeto e,


por isso, houve mediação constante, e foram feitos diversos combinados entre as
professoras e os grupos, pois o objetivo-fim do trabalho não era apenas o produto
pronto, a música traduzida, mas a ampliação da consciência linguística e literária
dos estudantes, ao se depararem com os percalços e impossibilidades.
Todo esse trabalho e mediação tinham como foco a construção da
percepção de que a fidelidade total em uma tradução é simplesmente impossível,
isso porque perdas sempre acontecerão quando se precisa optar pelo significado
ou pelo formato, ou ainda, por um equilíbrio entre os dois, encontrado a partir do
olhar do tradutor. Isso porque, segundo Arrojo (2000, p. 44)

nossa tradução de qualquer texto, poético ou não, será fiel não ao


texto ‘original’, mas àquilo que consideramos ser o texto original,
àquilo que consideramos constituí-lo, ou seja, à nossa interpretação
do texto de partida, que será, como já sugerimos, sempre produto
daquilo que somos, sentimos e pensamos.

Nesse caso, o trabalho em grupo é interessante, uma vez que os diferentes


sujeitos envolvidos no processo pedagógico têm direito à voz e o cotejamento de
ideias colabora também na percepção da tradução.
Novamente, trabalhamos aqui a noção de autoria: em uma situação com
várias possibilidades de abordagem ou de resolução de problemas, qual escolher?
Qual é a saída mais indicada? A partir do momento em que esse questionamento
surge, surge também a consciência de que uma escolha linguística deve ser feita,
e de que uma opção é mais adequada do que a outra. Não pretendemos, nessa
atividade, que o estudante fosse plenamente capaz de exteriorizar e defender suas
escolhas, pois, nesse momento, julgamos mais importante a sensibilização para
essa questão.
A etapa final do projeto era constituída pela a gravação da versão em
português brasileiro da música original. Como não faz sentido que a avaliação
incida sobre habilidades musicais dos estudantes, a gama possível de soluções para
esse último desafio era imensa. O estudante poderia utilizar um acompanhamento
instrumental obtido na internet e gravar sua voz sobre ele, inclusive, usando a
96 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

técnica de sponken words. O objetivo dessa última parte, além de possibilitar uma
plataforma para a expressão artística do grupo que quisesse fazê-lo, funciona
também como uma verificação da coerência entre a letra vertida e a composição
musical, que pode ser revista, revisada e adaptada para encaixar-se perfeitamente.
Os critérios avaliativos levaram em consideração todas as partes do
projeto, valorizando mais os aspectos da letra (60% da nota total), a saber: a. A
versão respeita o sentido apresentado pelo texto-fonte (letra escolhida); b. A
versão criada adequa-se à proposta musical do texto-fonte (rima, métrica,
aliteração, etc.); c. A versão adequa-se à comunidade de chegada (contexto
brasileiro – gírias, expressões idiomáticas, etc.). Paralelamente, a produção do
vídeo com a música em português representou 40% da nota, considerando: a. A
produção visual conversa com a versão (escolha de elementos estéticos, edição);
b. Houve cuidado e comprometimento com a produção do vídeo (qualidade da
imagem, caracterização do trabalho, escolha de ferramentas de vídeo adequadas,
legendas, etc.); c. Qualidade de áudio (a canção/narração é audível, clara, etc.).
Com essa parcela da nota procuramos incentivar a feitura dos vídeos, valorizando
a qualidade técnica e não habilidades artísticas, por considerarmos que não são
todos os estudantes que têm ou tiveram acesso à formação musical ou
cinematográfica.

3. Considerações finais

O trabalho realizado nos anos de 2017 e 2018 apontou caminhos a serem


considerados em futuras edições. Embora o projeto tenha engajado em ampla
medida os estudantes em seu início, percebemos que, aos poucos, alguns
estudantes sentiram-se desgastados pela prática. Consideramos que a manutenção
do interesse e engajamento dos estudantes precisem ser melhor planejados, uma
vez que a vida escolar de um estudante de Ensino Médio é complexa e repleta de
obrigações das mais diversas. Há então que se reestruturar o gerenciamento do
tempo em sala e a demanda por tempo gerada pelo trabalho fora dela.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |97

Outra oportunidade que se abre é a possibilidade de fazer o caminho


inverso ao já feito antes: partir de letras em português para a versão em inglês,
como forma de, quem sabe, ampliar a ludicidade do projeto e cativar ainda mais
os estudantes. Como a dinâmica que envolve a sala de aula demanda constante
redesenho e adaptação, pensamos em utilizar essa necessidade a favor de uma
prática que desafie mais, mas que também oportunize momentos de diversão,
descontração e integração entre os estudantes.
Olhando em retrocesso, a disciplina de Literatura encaixou-se
perfeitamente na prática, uma vez que ela fornece subsídio para a adaptação
semântica (conotação, figuras de linguagem, linguagem poética) e
formal/estrutural (versificação, ritmo, rimas, repetições propositais). Dentro do
componente curricular, a possibilidade de utilizar as ferramentas técnicas
adquiridas ao longo da formação escolar e que, normalmente são reservadas para
leitura e compreensão, como instrumento de criação é uma oportunidade de
conectar os estudantes aos conceitos e práticas de maneira ativa e, quem sabe,
pró-ativa quando há o engajamento.
Além disso, é importante notar que, para além do projeto final, a prática
é efetivamente vitoriosa quando o grupo ou estudante chega à conclusão de que
não é possível garantir a permanência de um texto, ainda mais literário, tal qual
ele é e significa quando traduzido para outra língua, pois a literalidade é um fator
móvel. Nas palavras de Sophie Rabau (2002, apud OUSTINOFF, 2012, p. 40),

a ideia absoluta e literal não faz verdadeiramente sentido em


literatura [...] Nesse sentido, podemos dizer que a tradução de uma
língua para outra é justamente uma forma de hipertextualidade
porque ela é, por definição, uma imitação, a mais fiel possível, mas
que evidentemente supõe alguma transformação.

Essa conclusão, que chega como insight natural da prática, irá reaparecer
em outros momentos da vida do estudante, quando ele se deparar com textos em
línguas estrangeiras ou traduzidos para o português. Assim como o estudo da
Literatura necessita da dúvida, da desconfiança, uma vez que, por mais que seja
frustrante para um estudante em começo de formação, não há respostas unívocas
98 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

nessa área, o manejo de linguagens de forma competente não pode se furtar de


um olhar capaz de relativizar as relações de sentido, compreendendo que elas são
móveis, contextualizadas e, por isso, também podem ser frustrantes dentro de sua
instabilidade.

REFERÊNCIAS

ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução. São Paulo: Editora Ática, 2000.

BRITTO, Paulo Henriques. A tradução Literária. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2012.

LARANJEIRA, Mário. Poética da tradução. São Paulo: Edusp,1993.

OUSTINOFF, Michaël. Tradução: história, teorias e métodos. Tradução: Marcos


Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2011.

STEINER, George. Depois de Babel. Tradução: Carlos Alberto Faraco. Curitiba:


Editora UFPR, 2005.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |99

O PROCESSO DE ESCRITA COTIDIANA DE ALUNOS DO ENSINO MÉDIO:


INSPIRAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DE AÇÕES DE ENSINO-
APRENDIZAGEM ANCORADAS EM PROJETOS DE LETRAMENTO

Arisberto Gomes de Souza (UFRN)


Maria do Socorro Oliveira (UFRN)
Fernando Leite Nunes da Costa (UNESA)

1. Introdução

Este artigo é fruto da necessidade de argumentar acerca de uma


importante característica dos projetos de letramento: a sua preocupação em
proporcionar à escola vivências de ensino-aprendizagem ancoradas nas práticas
sociais cotidianas. Pensando nisso, objetivamos empreender um debate com o
intuito de refletir sobre como a dinâmica de usos sociais da escrita cotidiana de
alunos do Ensino Médio pode inspirar o desenvolvimento de ações de ensino-
aprendizagem pautadas por projetos de letramento, especificamente no que tange
à extrapolação de tempos, espaços e recursos específicos da escola.
Para embasarmos nossas discussões, explicitamos as noções de
letramento (BARTON & HAMILTON, 2000; KLEIMAN, 1995; OLIVEIRA,
2010a), gênero (BAZERMAN, 2011), eventos e práticas de letramento (BARTON
& HAMILTON, 2000; HEATH, 1982), bem como projetos de letramento
(KLEIMAN, 2000; OLIVEIRA, 2008, 2010b).
Metodologicamente, optamos pelo paradigma qualitativo de pesquisa
(ANDRÉ, 1983) e pela abordagem baseada no estudo de caso (ANDRÉ, 2005). A
entrevista foi o instrumento de pesquisa mais pertinente para a geração dos dados.
Os sujeitos entrevistados foram alunos das três séries do Ensino Médio que
responderam a um questionário prévio, com perguntas que versavam sobre suas
práticas de escrita.
100 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Como resultado, as reflexões desencadeadas mostram que ações baseadas


em projetos de letramento são significativas, porque podem estar alinhadas com
as reais dinâmicas da vida social. Dessa forma, buscamos contribuir com o
entendimento de que as práticas de escrita dos alunos, que ocorrem fora do espaço
escolar, podem ser uma importante fonte de inspiração para os direcionamentos
e redirecionamentos das práticas didático-pedagógicas preocupadas com o ensino
da escrita, principalmente aquelas que consideram fundamental o agir no mundo
orientado por questões relacionadas com o meio social.
Não se trata, contudo, de uma idealização de projeto de letramento, que
sirva como modelo, já que a dinâmica desse dispositivo didático entende o aspecto
contextual como decisivo para o planejamento e a execução das ações de ensino-
aprendizagem a serem desenvolvidas. É uma reflexão que remete a sugestões,
posturas e encaminhamentos que levam em consideração os achados de pesquisa
e os preceitos teórico-metodológicos dos projetos de letramento.

2. Para entender os projetos de letramento

Para Kleiman (1995, p. 11), o letramento é o “conjunto de práticas


sociais, cujos modos específicos de funcionamento têm implicações importantes
para as formas pelas quais os sujeitos envolvidos nessas práticas constroem
relações de identidade e de poder”. Dessa forma, o letramento é entendido de
maneira ampla, “como uma prática social plural e motivada por princípios de
natureza ideológica” (OLIVEIRA, 2010a, p. 339).
O letramento é interdependente da realidade social, vai além de
dicotomias e generalizações, leva em consideração todos os circuitos sociais
existentes e não apenas os consagrados. O letramento é inseparável dos contextos
sócio-históricos e ideológicos nos quais a leitura e a escrita são utilizadas. Esses
contextos abrangem, inclusive, a história de vida dos sujeitos, que são encarados
como atores ativos e imprescindíveis. Por isso, suas experiências de vida
representam um dos fatores que contribuem para a compreensão de uma dada
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |101

interação. As pessoas usam o letramento para fazer mudanças em suas vidas. O


letramento, por conseguinte, muda as pessoas.
Nessa perspectiva, Oliveira (2010a, p. 329, grifos da autora) ressalta que

Enxergar o letramento como algo ‘singular’ é esquecer que a vida


social é permeada por linguagem de múltiplas formas e destinada a
diferentes usos. Nela, são veiculados gêneros diversos que são
praticados por diferentes pessoas nas mais diversas atividades
sociais, orientadas a partir de propósitos, funções, interesses e
necessidades comunicativas específicas, não obstante a
compreensão de que alguns textos são considerados canônicos e,
por isso, mais legitimados que outros, socialmente [...]

Desse modo, a concepção de gênero por nós adotada é a que evoca ação
social, conforme proposta por Bazerman (2011, p. 23), quando afirma que os “[...]
gêneros não são apenas formas. Gêneros são formas de vida, modos de ser, são
frames para a ação social”. Bazerman (2011, p. 10) acrescenta ainda,

[...] gênero dá forma a nossas ações e intenções. É um meio de


agência e não pode ser ensinado divorciado da ação e das situações
dentro das quais aquelas ações são significativas e motivadoras.
Assim como as ações, intenções e situações humanas, uma teoria de
gênero precisa ser dinâmica e estar sempre mudando.

Outras considerações importantes acerca do letramento são as que


englobam as noções de evento e prática de letramento. “Um evento de letramento
é qualquer ocasião em que uma peça de escrita é parte integrante da natureza das
interações dos participantes e seus processos interpretativos 8” (HEATH, 1982, p.
93). Qualquer prática cotidiana em que seja demandado o texto escrito é um
evento de letramento, assim como postulam Barton e Hamilton (2000, p. 8)
quando escrevem: "os eventos são episódios observáveis que surgem de práticas e
são moldados por elas. A noção de eventos enfatiza a natureza situada do
letramento, que sempre existe em um contexto social”.

8 Estão traduzidos para o português os trechos de edições em língua estrangeira citados neste texto.
102 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Já as práticas de letramento têm sentido mais amplo que os eventos de


letramento, englobando-os. Barton e Hamilton (2000, p.8) descrevem as práticas
de letramento como "as formas culturais gerais de utilizar a linguagem escrita que
as pessoas aproveitam em suas vidas. No sentido mais simples, as práticas de
letramento são o que as pessoas fazem com o letramento”. As práticas de
letramento envolvem valores, atitudes, sentimentos, elas advêm das relações que
ocorrem no meio social. Essas práticas mantêm estreita relação com as formas
como as pessoas em uma cultura particular lidam com a escrita, como elas a
utilizam e extraem os seus sentidos.
O conceito de projeto de letramento, por sua vez, está imbricado às
noções de gênero, eventos e práticas de letramento, já que, no trabalho com esse
dispositivo didático, existe a preocupação com a vivência efetiva de gêneros em
eventos respaldados por práticas de letramentos que ocorrem no meio social. Para
Kleiman (2000, p. 238, grifos da autora), um projeto de letramento é

um conjunto de atividades que se origina de um interesse real na


vida dos alunos e cuja realização envolve a escrita, isto é, a leitura
de textos que, de fato, circulam na sociedade e a produção de textos
que serão realmente lidos, em um trabalho coletivo de alunos e
professor, cada um segundo sua capacidade. O projeto de
letramento é uma prática social em que a escrita é utilizada para
atingir algum outro fim, que vai além da mera aprendizagem da
escrita.

Os projetos de letramento são vistos como uma maneira de aprender


diferenciada, que leva em conta formas de aprendizagem do dia a dia, em que o
foco são as práticas sociais cotidianas. Dessa forma, Oliveira (2010b) afirma que
não há a necessidade de se trabalhar com conteúdos programáticos predefinidos,
pois o ponto de partida para o planejamento dos projetos deve ser a prática social,
a demanda de situações específicas. Optar por trabalhar com os projetos de
letramento é atentar para as necessidades e interesses dos alunos, em especial para
o contexto em que estão inseridos. Nesse sentido, é preciso haver sensibilidade à
seleção dos conhecimentos e das práticas a serem abordados, primando pela
significatividade.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |103

Nessa perspectiva, os projetos de letramento têm “como ponto de partida


a prática social [...] visam atender a necessidades sociais e demandas
comunicativas específicas de um determinado grupo, a partir de ações coletivas”
(OLIVEIRA, 2010a, p. 340). Eles são “um modo de representação do mundo, mas
como uma forma mediante a qual as pessoas exercem controle sobre a vida e
atribuem sentidos não só ao que fazem, mas a si mesmas (OLIVEIRA, 2008, p.
104).
Nos projetos de letramento, os modelos e programas de ensino prontos
dão lugar à análise da totalidade dos fenômenos sociais, para que, diante desse
conhecimento, os indivíduos possam entendê-los e posicionar-se quanto às
questões que pautam o mundo, em vez de somente reproduzi-las. É, portanto,
uma alternativa pedagógica que se baseia em uma educação social, democrática e
coletivista, que desacredita o individualismo e os relacionamentos sociais
alienantes.

3. Procedimentos metodológicos

Aqui, a nossa opção metodológica foi por adotar o paradigma qualitativo


de pesquisa (ANDRÉ, 1983) e a abordagem baseada no estudo de caso (ANDRÉ,
2005). Optar por essa orientação, condiz com a geração de dados mais detalhados
que promovem interpretações mais ricas acerca da ação, dos comportamentos e
das experiências dos colaboradores envolvidos na pesquisa. Além disso, elegemos
o estudo de caso porque consiste em um meio de pesquisa moldado à luz das
necessidades do pesquisador e não uma abordagem de regras rígidas e
padronizadas.
A geração dos dados ocorreu, principalmente, mediante a execução de
entrevistas direcionadas aos alunos-sujeitos. As entrevistas foram realizadas com
alunos das três séries do Ensino Médio de uma escola da rede pública estadual na
cidade do Recife. Para a efetivação das entrevistas, elaboramos um questionário
prévio com um conjunto de perguntas. Para cada uma das séries, selecionamos
quatro alunos, dois do sexo masculino e dois do feminino.
104 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

A entrevista possibilitou-nos, ainda, indagarmos os estudantes acerca de


documentos, artefatos, como fotografias e imagens que evidenciassem as respostas
dadas. Essa foi, portanto, a segunda parte da nossa geração de dados, a busca por
evidências materiais das práticas de escrita dos estudantes.

4. As práticas de escrita fora da escola

Os desdobramentos apontados pelos achados de pesquisa sinalizam a


ideia de que nos espaços sociais externos à escola os aspectos referentes ao tempo,
espaço e materiais atrelados aos usos da escrita são múltiplos. Revelam as muitas
possibilidades de tempo, de espaço e dos recursos que permeiam as ações dos
sujeitos perante suas trajetórias cotidianas atravessadas pela escrita.
Para começar, refletiremos sobre um dos questionamentos destinados aos
alunos-sujeitos. As informações mensuradas na pergunta, Quanto tempo você
leva para desenvolver essa prática de escrita?, nos fazem atentar para aspectos
referentes à dinâmica temporal dos eventos de letramento dos quais participam
os alunos-sujeitos nos ambientes de interação fora da escola. Vejamos o gráfico
abaixo:

Gráfico 1- Usos da escrita em eventos de letramento

Figura 1
Fonte: Dados da pesquisa.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |105

Para desenvolver o gráfico abaixo, levamos em consideração apenas a


participação dos colaboradores Maria e Manoel em eventos de letramento que
possibilitam a produção textual em uma determinada semana. Aqui, vemos que
as categorias de eventos são diferentes e a distribuição temporal que eles
demandam para cada um dos usos da escrita também varia. Essa oscilação decorre
porque cada um dos diferentes usos da escrita está conectado a aspectos de
variadas naturezas: motivações, recursos, disponibilidade, estratégias,
interlocutores etc. São fatores fundamentais e influenciam na configuração de
cada um dos eventos de letramento, inclusive no tange ao aspecto temporal.
Os alunos-sujeitos demandam grande parte do tempo que têm utilizando
a escrita em práticas sociais. Uma das características desses usos fora da escola é a
grande atratividade que eles exercem em relação aos sujeitos, já que muitos dos
nossos colaboradores afirmaram que ficam curiosos para saber algo, obter uma
resposta, instigar outros sujeitos a falar etc. São razões que os fazem passar muito
ou pouco tempo nessas práticas. As práticas são atrativas para os alunos porque
nesses momentos de interação eles encontram os assuntos e sujeitos com os quais
têm afinidades.
Os alunos-sujeitos que afirmaram demandar mais de uma hora média
diária batendo papo de maneira síncrona, por exemplo, fazem isso porque se
sentem atraídos outros motivos que os levam também a escrever. Nesse sentido,
temos o relato do entrevistado Augusto que afirmou fazer uso da escrita para
interagir com outros sujeitos por meio de bate papo síncrono. Nesse caso
específico, o nosso colaborador relata utilizar três diferentes interfaces digitais
(SILVA, 2005) para interagir (facebook, whatssap e snapchat) a depender de quem
são as pessoas com as quais interage. Todos os dias, ele faz uso da escrita nesses
moldes, chegando a passar mais de oito horas em dias livres, finais de semana e o
uso da escrita está atrelado à prática social, porque ele utiliza o bate papo para
interagir com sujeitos que, segundo ele, são amigos.
Cabe ressaltar, porém, que o fato de os alunos-sujeitos estarem passando
longos períodos de tempo participando de eventos de letramento que englobam
106 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

o uso da escrita não significa que esses usos sejam organizados e sistematizados.
Essa enxurrada de informações trocadas ocorre em momentos segmentados,
conforme determinados motivos como interagir com namorado(a), amigo(a) ou
familiar, conhecer pessoas etc. Nesses casos, o acesso ocorre de maneira exagerada
e, assim, muitas vezes, eles deixam de vivenciar outras práticas sociais que fariam
com que vivenciassem diversas práticas de letramento.
De qualquer forma, também não podemos deixar de perceber que os
alunos-sujeitos desenvolvem a escrita em curtas periodicidades no dia a dia,
repetindo-a muitas vezes, revelando que são instigados a desenvolvê-la. Essa
informação nos mostra, portanto, que as práticas sociais as quais os nossos alunos
estão imersos requerem a utilização da escrita e são importantes porque revelam
como são as práticas de letramento cotidianas. É um fenômeno de letramento que
extrapola o mundo da escrita, tal qual é concebido pelas instituições que se
encarregam de introduzir formalmente os sujeitos em práticas letradas
(KLEIMAN, 1995, p. 20).
As práticas sociais cotidianas solicitam diversificados usos da escrita que,
por sua vez, revelam uma série de características particulares e uma dessas
características diz respeito ao fato de os alunos-sujeitos utilizarem a escrita para
interagirem em vários momentos em um mesmo dia. Diferentemente do que
ocorre na escola, os horários em que essa prática de escrita acontece são flexíveis,
já que podem ocorrer a qualquer momento, em pequenos intervalos, como
enquanto se caminha ou se descansa por um momento.
Na vida fora da escola, os alunos-sujeitos praticam a escrita sem
determinações prontas, é uma escrita ancorada em práticas de letramento
carregadas de características da modernidade, que representam uma das muitas
facetas dos letramentos (BARTON & HAMILON, 2000) concebidos e
institucionalizados nas rotinas do cotidiano, revelando os variados modos de ler
e escrever e os significados sociais dessas práticas.
Essas dinâmicas das práticas de letramento dos alunos sujeitos nos
mostram que os processos de produção de texto podem ser muito diferentes
daquilo que costumeiramente eles fazem na escola. Barton & Hamilton (2000) já
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |107

destacavam que as práticas sociais e eventos de letramento os quais os sujeitos


estão inseridos no meio social contrastam com o aporte tradicional que entende
o letramento como uma habilidade para fins específicos.
A diversidade de práticas de letramento dos nossos alunos, realizadas em
seu cotidiano fora da escola, revelam em certa medida como são as práticas sociais
as quais eles estão imersos. São práticas sociais que requerem o domínio de
ferramentas de ordem tecnológica que podem ser acionadas instantaneamente e
que podem derivar formas de linguagem diversas, sendo úteis a interação e
inserção nas mais variadas situações sociais.
Outras duas perguntas dirigidas aos alunos-sujeitos, Em que local você
desenvolveu essa prática de escrita? e Quais recursos utilizou para desenvolver
essa prática de escrita?, nos proporcionaram entender mais uma das facetas dos
eventos de letramento de que participam: os locais em que os usos da escrita se dá
e o apoio material necessário para concretizá-las. As informações referentes às
respostas desses questionamentos encontram-se apresentadas no quadro abaixo:

Quadro 1 - Locais e materiais das práticas de escrita dos entrevistados


Locais em que ocorrem os usos da escrita Recursos materiais necessários à escrita fora da escola 9

Própria residência Internet

Casa de amigos Celular próprio

Rua Computador da residência (Computador de mesa)

Escola (pátio, corredores e refeitório) Computador da residência (Computador portátil)

Instituições (empresas, igreja) Celular da mãe

Lan house Papel e caneta ou lápis

Lápis coloridos

Fotografia

Cola

Fonte: Acervo da esquisa.

9 Os resultados foram posicionados de acordo com o quantitativo de citações, do mais até o menos
citado.
108 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

A grande maioria dos entrevistados afirmou que utiliza a escrita em casa.


Perguntados sobre o porquê de preferirem praticar a escrita em casa e não em
outros locais, eles explicam que, por a internet ser um recurso indispensável para
a produção escrita, faz uso dessas práticas em casa, já que nesse local eles possuem
a disponibilidade desse recurso.
Os eventos de letramento nos quais nossos alunos participam no dia a
dia estão atravessados pelo uso de recursos materiais indispensáveis ao exercício
das práticas sociais cotidianas. São recursos que proporcionam a produção textual
e vão além do uso exclusivo dos clássicos papel e caneta/lápis, muito enfatizados
no trabalho em sala de aula. No meio social externo à escola, vemos que a
utilização de materiais como celulares (smartphones), internet e computadores
portáteis e de mesa ganham cada vez mais relevância.
Os achados da pesquisa mostram que os nossos alunos estão cada vez mais
habituados ao letramento digital, eles estão desenvolvendo outras habilidades
para escrever, usam os dedos tocando em uma tela touch screen ou em teclados.
Fica difícil dimensionar quais são os impactos de tantas mudanças, mas é
interessante atentar para as “facilidades” que esses novos usos da escrita podem
proporcionar: as autocorreções, as abreviações, os compartilhamentos, o uso do
não verbal etc. As práticas sociais nas quais os sujeitos estão imersos demandam o
uso dessas ferramentas.
Os usos sociais da escrita cotidiana fora da escola ocorrem mediante a
utilização de recursos materiais que não parecem ser inacessíveis nessa realidade
conjuntural da pesquisa. Muitas vezes, essas práticas, que são extremamente
eficientes do ponto de vista comunicativo, são realizadas por meio de suportes
materiais, como um celular ou um computador com acesso à internet.
Os alunos-sujeitos entrevistados desenvolvem a escrita e,
necessariamente, não possuem recursos materiais sofisticados. Eles usam seus
celulares para escrever, na falta deles, usam os celulares das mães, o computador
da residência, das lan houses e fazem muita coisa com esses recursos.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |109

5. Reflexões sobre esses achados de pesquisa

Os achados da pesquisa mostram que, ao falarem sobre a regularidade


com que praticam a escrita em ambientes externos à escola, nossos colaboradores
sugerem que os eventos de letramento dos quais participam demandam longos
períodos de tempo, mas também podem ocorrer em curtas periodicidades, sempre
ao passo das necessidades e oportunidades. Assim, eles mostram vontade e
necessidade em escrever, fazendo isso durante horas a fio ou em vários momentos
num mesmo dia, em horários flexíveis, a qualquer instante, em pequenos
intervalos.
As práticas de letramento com as quais nossos alunos estão acostumados
são, assim, dinâmicas. Diferentemente do que ocorre na escola, nesses momentos
de interação, não há muita necessidade de seguir modelos prontos, rituais
clássicos. O tempo gasto pelos alunos-sujeitos participando de eventos de
letramento fora da escola é muito relevante porque revela trajetórias
contemporâneas de usos da escrita.
Nesse sentido, recomendar que desenvolvam atividades na escola que
prescindam dessa dinâmica pode ser produtivo, porque eles estariam acostumados
a agir dessa forma no mundo. A literatura que trata dos projetos de letramento
mostra preocupação em entender que as ações de ensino e aprendizagem podem
driblar o viés mais tradicional dos usos da escrita tipicamente escolares caso
contemplem estratégias que levem em consideração outras possibilidades de
ensino-aprendizagem que proporcionem, por exemplo, atividades que não se
encerrem nas possibilidades do tempo da sala de aula.
Nessa perspectiva, o desenvolvimento de projetos de letramento pode ser
uma alternativa de ressignificação do fazer docente e discente, “podem nos
aproximar mais do tempo, do espaço e das práticas sociais da vida real e isso pode
trazer como consequência um novo olhar da comunidade escolar e do entorno
acerca da importância da escola e do que nela se faz” (OLIVEIRA, TINOCO &
SANTOS, 2014, p. 21).
110 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Em projetos de letramento, as características das práticas de escrita


cotidianas podem ser assumidas, pois esse dispositivo didático oportuniza aos
alunos vivências diferentes e possibilidades temporais de desenvolver a escrita em
instantes singulares e diversos dos que são ofertados em sala de aula. Para Oliveira
(2008), os projetos de letramento nos abrem para os imprevistos, ampliam os
tempos e espaços de aprendizagem, bem como se apoiam na diversidade de
agentes e de formas de participação em função de eventos específicos e
necessidades locais.
Além de tempo necessário, as vivências das práticas sociais cotidianas são
diferentes das que a escola oferta, os achados de pesquisa sugerem que os recursos
materiais e suportes textuais que intermedeiam o desenvolvimento dessas mesmas
práticas e, por conseguinte, dos usos da escrita, também representam uma nova
realidade social. Tais recursos e suportes descendem muitas vezes das novas
tecnologias da informação e comunicação, que vêm revolucionando os processos
de escrita.
Nesse sentido, precisamos estar a par da importância desse aspecto, pois
no seu convívio social, nossos alunos já participam de ações em que os usos da
escrita estão associados às novas tecnologias. Os alunos-sujeitos parecem dominar
e utilizar os recursos materiais oriundos das novas tecnologias com propriedade,
ou seja, são muito mais que meros suportes, apoios, eles fazem parte da vida dos
sujeitos.
Nesse sentido, a escola pode se tornar obsoleta ao não se conectar
também às reais vivências sociais que ocorrem fora da escola. Ainda que a escola
não seja um referencial em termos de disponibilidade de uso de recursos
materiais, é necessário que ela, ao menos, reconfigure suas possibilidades
materiais para aproximar suas ações de aprendizagem a partir das vivências sociais
que ocorrem fora da escola.
Essas considerações nos fazem atentar para o fato de que é importante
atrelamos as nossas atividades de ensino da escrita também aos usos de novos
suportes, muitas vezes digitais e, caso a escola não possua os meios materiais
necessários às atividades dessa natureza, que sejamos firmes em solicitar ou cobrar
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |111

dos diferentes gestores ações nesse sentido. “O processo de apropriação de uma


tecnologia ou de algum outro recurso midiático — o acesso — depende das
estratégias forjadas pelos próprios sujeitos para fazer uso do material” (KLEIMAN,
2014, p.76).
Além disso, a nossa pauta de reivindicações pode passar também pela
necessidade de estar apto à exploração das “novidades”, tendo em vista ser essa
uma forte demanda. É imperioso que os responsáveis por mediar as ações de
ensino e aprendizagem aprendam a gerenciar os recursos materiais, integrando-
os às práticas já existentes, fomentando a construção contínua do conhecimento.
Nesse sentido, o uso de recursos materiais inovadores pode ser requerido,
pois as práticas sociais do momento proporcionam o emprego diversificado da
escrita que, por sua vez, demandam que os tais recursos sejam acionados. Assim,
o ensino centra-se no “funcionamento da língua escrita, levando em conta a
situação sócio-histórica e cultural do aluno, sua época, suas necessidades, as
exigências da sociedade, os papéis que se espera desempenhar, os novos
instrumentos e tecnologias” (KLEIMAN, 2010, p. 382).
Nos projetos de letramento é importante que os recursos materiais
solicitados a partir do uso atual da escrita façam parte das ações de aprendizagem.
Nessa perspectiva, esses dispositivos didáticos podem representar uma proposta
para o ensino de multiletramentos e de inclusão bem-sucedida dos alunos na
cultura da escrita da contemporaneidade, já que assumem uma concepção de
ensino da leitura e da escrita diferenciada e inovadora, capaz de diminuir o fosso
entre aquilo que os alunos fazem na escola e na vida cotidiana.
Precisamos perceber que é necessário reinventar, reutilizar, reciclar. Na
ação de aprendizagem mencionada acima, a professora fez uso de recursos
materiais da contemporaneidade e foi além, pois explorou um espaço social
externo à escola no sentido de beneficiar a construção da aprendizagem dos
alunos. Por vezes, não notamos que é possível desenvolver muitas atividades a
partir das possibilidades existentes na comunidade da qual a escola faz parte.
Nesse sentido, precisamos nos preocupar em organizar as ações levando também
em consideração o arsenal de possibilidades que temos em mãos, pensando em
112 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

como ele pode contribuir para a efetivação de nossos objetivos. Os achados de


pesquisa nos mostram que nossos alunos, por exemplo, interagem na rua, na casa
dos vizinhos, na lan house, na igreja etc. Com isso, eles fazem uso da escrita em
diferentes espaços sociais e não apenas na escola.
Tendo em vista esse princípio, é de suma importância fazermos com que a
gerência de atividades realizadas fora dos muros da escola se torne um hábito.
Sendo assim, Kleiman, Ceniceiros & Tinoco (2013) afirmam que é importante
considerar os arredores de uma comunidade escolar, sejam físicos ou sociais, no
sentido de extrair de cada um deles elementos que contribuam para a construção
de experiências educativas. Visitas orientadas, usos de acervos e ambientes
públicos, idas até instituições privadas, aulas de campo, estudos do meio, visitas
externas, excursões e passeios, tudo isso pode fazer parte da rotina escolar. É
necessário flexibilizar a permanência em sala de aula, explorando outros espaços.
A escola pode se apropriar do bairro, da comunidade e da cidade da qual
faz parte. Nada nos impede de sair juntos da escola, pois as diferentes áreas do
conhecimento e os conteúdos a serem debatidos podem nos guiar na criação de
itinerários pedagógicos que mesclem circuitos culturais e ambientes sociais, ações
implementadas com o intuito de discutir, pensar e repensar os conhecimentos.

6. Considerações finais

As considerações desencadeadas por essa pesquisa apresentam reflexões


acerca de como podemos pensar em ações de ensino-aprendizagem aportadas em
projetos de letramento. O conjunto de reflexões empreendidas aqui contribui
para o entendimento de que as práticas de escrita que os alunos desenvolvem em
espaços externos à escola podem ser uma importante fonte de inspiração para os
direcionamentos e redirecionamentos das ações didático-pedagógicas apoiadas
por projetos de letramento.
Nos espaços sociais externos à escola, os aspectos referentes ao tempo,
espaço e recursos atrelados aos usos efetivos da escrita são múltiplos. Desse modo,
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |113

é importante desenvolver ações de ensino-aprendizagem que agreguem às ações


escolares maneiras de conceber a escrita baseadas nas demandas sociais atuais.
Dessa forma, é relevante que levemos em consideração as características
reveladas pelo convívio dos estudantes com a escrita nos ambientes sociais
externos à escola, pois as práticas de escrita desenvolvidas podem inspirar
atividades didático-pedagógicas preocupadas com o ensino da escrita orientado
pelo agir no mundo.

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116 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

ANÁLISE DISCURSIVA DO LIVRO DIDÁTICO: O USO DE TIRINHAS E A


(RE)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA

Débora Lívia Cunha da Costa (UESPI)


Raimundo Isídio de Sousa (UESPI)

Todas as fomes são iguais. Todos os amores, iguais iguais


iguais. Iguais todos os rompimentos. A morte é igualíssima.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem,
bicho ou coisa. Não é igual a nada. Todo ser humano é um
estranho ímpar (DRUMMOND,2007).

1. Introdução

O mundo está em constante devir. Um ciclo, naturalmente, vicioso, mas


necessário. O complexo do Igual-Desigual, bastante evidente na voz do eu-lírico
referido na epígrafe acima, porém, nos respalda na busca por uma identidade dos
sujeitos constituintes do mundo. Ocorre que, neste processo de aceitação-não
aceitação daquilo que já está posto, neste entrecruzamento de similitudes, o
sujeito busca efeitos de identidade. Assim, todo ser humano, sujeito do discurso,
é um estranho ímpar uma vez que, mesmo quando inscrito em uma mesma
formação discursiva e ideológica, tende a resgatar memórias diferentes no intuito
de construir e validar seus dizeres. Não existe inocência na linguagem, bem como
não existe sujeito sem linguagem, ou fora dela.
Na escola, desde as séries iniciais, aprendemos sobre o mundo e o
funcionamento da linguagem. As coisas ganham nomes, ou melhor, nós
ganhamos os nomes das coisas, visto que eles já existiam antes de nós.
Uma noção cara para a Análise de Discurso– AD- é o assujeitameto, ou
seja, produto de efeitos ideológicos de identificação-interpelação, de distribuição
de sentidos. Tornamo-nos, portanto, sujeitos da linguagem, sendo,
consequentemente, regulados pela língua, pela história e pela ideologia. Nesse
processo, o livro didático é um forte aliado, pois trabalha com os sentidos, ao
apresentar-nos as mais diversas temáticas, fontes e várias condições de organizar
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |117

seu modo de dizer. O livro didático diz - evoca discussões, pontua determinados
temas, evidencia movimentos e comportamentos, sugere, apresenta, provoca,
questiona, responde.
Sobre a mulher, com o passar dos anos, elas intensificaram lutas por vagas
nas escolas, nas universidades, no mercado de trabalho e na política, tudo isso
abalou o corpo-nação. Atualmente, mulheres já assumem cargos bastante
elevados e de grande importância. Mundialmente, segundo o site country meters
– dados em tempo real da população mundial, as mulheres já representam 49,6%
da população e, além disso, vivem mais e melhor do que os homens.
Ao abordar e explorar temas como mulher, violência contra a mulher,
mulheres no mercado de trabalho, mulheres em casa, mulheres nas escolas,
entendemos, respaldados na AD, que o livro didático não apenas descreve
processos, mas põe em funcionamento um campo de forças constitutivas desses
processos, por meio das materialidades discursivas.
Evidenciamos, ao longo das unidades do livro Interpretação de textos de
Willam Cereja, ano 2016, modos de dizer por meio de metáforas, antíteses, jogos
de palavras que constituem os processos ideológicos e efeitos de sentidos que
pairam nas entrelinhas da construção das tirinhas.

2. Discursos imagéticos: a tirinha no livro didático

Tomado como instrumento de crítica social, a charge faz uso do humor


para evidenciar instituições, pessoas, ou mesmo situações da vida social e política.
Geralmente tendenciosa ao exagero, ela exalta feições ou características
específicas. A charge ou caricatura foi, em torno de 1830, vinculada,
definitivamente, ao jornalismo, por meio do francês Charles Philipon, fundador
do jornal La Caricature (O SÉCULO XX, 2009).
No Brasil, de acordo com matéria da revista Isto é publicada em 27 de
julho de 2007, as charges ganharam grande prestígio na imprensa nacional desde
julho de 1822. A propagação das imagens se dava no intuito de alcançar e
persuadir a população dos atos e ações do governo, uma vez que, naquela época,
118 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

o índice de analfabetismo era alarmante. A charge integra um grupo textual


bastante peculiar, a saber: caricatura, charge, cartum e tirinha. É um processo
evolutivo. A caricatura evolui para charge; a charge supera o exagero e parte para
um ataque, uma crítica mais salientada; a tirinha, por sua vez, aparece em dois ou
mais quadrinhos, apresentando introdução, desenvolvimento e conclusão. É, pois,
uma expansão do discurso chargístico.
Conforme Aumont (1993), ao analisar a imagem e seu espectador, o autor
aponta que a relação que se estabelece entre o que é representado e o olhar que a
observa não é, em hipótese alguma, apenas compreensível, ou inteiramente
compreensível, e isto porque o sujeito observador, ao olhar uma imagem, além de
sua capacidade perceptiva, também põe em funcionamento os saberes, afeições e
crenças. Segundo esse autor,

A produção de imagens jamais é gratuita, e, desde sempre, as


imagens foram fabricadas para determinados usos, individuais ou
coletivos. [...] o valor simbólico de uma imagem é, mais do que
qualquer outro, definido pragmaticamente pela aceitabilidade
social dos símbolos representados. (AUMONT, 1993, p. 78)

Ora, essa relação entre sujeito e história é alvo das postulações


pecheuxtianas. Outrossim, a noção de materialidade discursiva diz respeito a uma
existência sócio-histórica e fomenta estruturas verbais, alicerçada em uma
conjuntura histórica dada (PÊCHEUX, 2011). Ainda segundo o autor, o sujeito-
observador-discursivo é, constantemente, interpelado por conjunturas dadas,
estas que, por sua vez, salientam seu assujeitamento. O efeito-sujeito-observador-
discursivo, portanto, emana como produto do assujeitamento discursivo.
Sobre o processo de reconhecimento, algo indispensável, especialmente,
para o entendimento do texto charge, Aumont (1993) aponta que esse movimento
aciona propriedades, elementares e cognitivas, do órgão visão proporcionando ao
sujeito sensação de prazer, mas não só, ele também funciona como uma via de
mão dupla. Como um efeito dominó, a arte imagética representa a natureza e a
natureza é por ela influenciada, mais ainda, o reconhecimento encontra as
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |119

expectativas do sujeito, transformando-as ou elevando outros anseios. Logo, o


processo de reconhecimento está diretamente relacionado à rememoração.
Em relação à retomada de acontecimentos outros para validação,
legitimação, reconhecimento, aceitação, ou mesmo negação dos acontecimentos,
Pêcheux (1995) afirma haver relação entre o pensamento e o objeto do
pensamento. Assim sendo, embasado na identificação do sujeito consigo mesmo,
o objeto do pensamento sempre preexiste em forma de conceito. Nesse formato,
os acontecimentos são identificados e reconhecidos através do retorno do saber
ao pensamento, ali, sua pré-existência articula as declarações por meio do
processo de sustentação, ou seja, dos pré-construídos.
Nas tirinhas, vários discursos se encontram e se confrontam, dialogam-
se. O elemento visual é indispensável. Para além de textos visuais, as tirinhas são
discursos de efeito cômico, de ironia. Ao lê-las, o sujeito discursivo,
necessariamente, enfrenta o dilema do igual-desigual em um processo de
identificação-desidentificação com o tu, a natureza, o mundo. O sujeito, bem
como seu olhar, é sempre amparado, ou mesmo regulado pela história, pela língua
e pela ideologia.

3. A construção do sujeito da ideologia: formações discursivas e ideológicas em


confronto

De acordo com Pêcheux (1995), a discursividade não se dá na fala, mas,


sim, na própria ideologia. Dito de outra forma, a língua só funciona, se regulada
por leis internas oriundas dos processos discursivos. Assim, compreendemos que
é na e pela ideologia que o sujeito é assujeitado, ao tempo em que é subjetivado.
Entendemos que a ideologia é inerente à linguagem e aponta não apenas o olhar,
mas também as interpretações que fazemos do mundo. Não se trata de uma
simples definição, ideologia é, conforme Orlandi (2002), uma prática bastante
significativa e norteadora, pois é por meio dela que identificamos as formações
discursivas e ideológicas em funcionamento nos discursos.
120 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

As noções de Formação Discursiva (FD) e Formação Ideológica (FI) são


indispensáveis à prática das análises discursivas. A primeira diz respeito à
regionalização do interdiscurso, ou seja, é uma posição dada, determinada
historicamente, responsável por definir o que pode e deve ser dito. E é nisto que
se justifica sua vinculação à FI, pelo fato de os textos inscritos em uma FD
remeterem a uma mesma FI (PÊCHEUX, 1995, p. 202).
Ainda a esse respeito, todo o processo só pode ser devidamente
compreendido, quando consideramos o sujeito, em sua prática, inserido em
condições históricas de formulação de sentidos. Em todo caso, não existe prática
discursiva sem sujeito. Segundo Pêcheux (1995),

[...] os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos falantes (em sujeitos


do seu discurso) por formações discursivas que representam ‘na
linguagem’ as formações ideológicas que lhe são correspondentes.
[...] Ressaltemos que esse desdobramento corresponde, a rigor, à
relação, igualmente explicitada mais acima, entre pré-construído (o
‘sempre-já-aí’ da interpelação ideológica que fornece-impõe a
‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma de universalidade – o ‘mundo
das coisas’) e articulação ou efeito-transverso (que, como dissemos,
constitui o sujeito e sua relação com o sentido, isto é, representa no
interdiscurso aquilo que determina a dominação da forma-sujeito)
(PÊCHEUX, 1995, p. 198) (grifos do autor).

Há ainda o antagonismo. Os conceitos não possuem um único sentido


compreensível no funcionamento de uma FD. Com efeito, é possível que a
ideologia, como instância de interpelação dos indivíduos em sujeitos, funcione
sobre e contra si mesma, por meio do desarranjo-arranjo do intricamento das
formações ideológicas e discursivas (PÊCHEUX, 1995).
Historicamente dominadas, as mulheres foram submetidas ao trabalho,
exclusivamente, doméstico. Enquanto os homens descobriam novos territórios,
caçavam e pescavam, as forças femininas, geralmente, permaneciam concentradas
no lar. Por bastante tempo, procriação e cozinha resumiam a atuação feminina.
Não obstante, dizeres como lugar de mulher é na cozinha foram sendo
reafirmados e reiterados nas práticas discursivas, criando, assim, uma barreira ao
desenvolvimento da mulher enquanto sujeito social.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |121

Regida por aparelhos de dominação, a sociedade segue orientada por uma


ideologia dominante, responsável por ditar o que é bom ou não bom fazer ou ser
ou mesmo ter. Foucault (1997) aponta que, em cada espaço temporal histórico, a
dominação é impregnada na forma de ritual, deixando marcas e memórias nas
coisas e até mesmo nos corpos. Em compensação, as próprias forças determinadas
como verdade, lutam contra si mesmas, num movimento de reação-
revigoramento-enfraquecimento.
Neste ínterim, encontramos a escola e, nela, o livro didático que, em
conformidade como o PNLD, deve evocar questões reais e do cotidiano dos
alunos. Assim sendo, é comum encontrarmos textos dos mais diversos gêneros
abordando indiretamente a temática da formação identidade-identificação
feminina. Com o crescimento dos índices de violência contra este público, o
afloramento do tema nas páginas do LD é cada vez mais frequente e enfático.
Outro fator motriz é também a presença de mulheres defensoras da teoria
feminista nos ambientes políticos e escolares, o que incita a discussão sobre o
tema.
Tendo em vista o caráter incisivo e irônico do gênero tirinha para a
denúncia de comportamentos sociais, analisaremos, a seguir, cinco que
distribuídas ao longo das unidades do LD Interpretação de textos de William
Cereja.

4. (Re)construção discursiva: a queda do sexo frágil

Aqui, faremos um recorte. O livro didático Interpretação de textos de


William Cereja – ano 2016 - é bastante instigante àqueles que se interessam pela
pesquisa sobre a identidade feminina, por trazer uma proposta clara e concisa
sobre o tema de forma organizada e progressiva ao longo das unidades e nos mais
diversos gêneros textuais.
O autor apresenta obra de forma sugestiva. Ela é composta de 257
páginas. Em todas elas, é possível observar várias imagens de momentos de leitura,
das quais em apenas uma um menino aparece lendo. A figura da mulher negra
122 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

está na abertura da obra e em outras cinco páginas, em atividades de leitura, de


dança e na prática de esportes. Em cada abertura de unidade, são dispostos balões
com trechos de textos, geralmente, quatro, na segunda página de cada unidade,
dos quais dois são de autores do sexo feminino e dois de autores do sexo
masculino, quase sempre a divisão é mesmo assim: igualitária.
O gênero tirinha representa 7,5% dos gêneros presentes no livro. O uso
do diminutivo nos usos coloquiais diz respeito a sua estrutura que, embora
detentora de introdução, desenvolvimento e conclusão, se apresenta em um
número reduzido de quadrinhos, geralmente, três (3). Em todo o livro, temos a
presença de trinta e uma (31) tirinhas dispostas, sendo onze (11) voltadas para a
questão do reconhecimento-apresentação-reconstrução da figura feminina
socialmente, conforme demonstrado abaixo (QUADRO 1):

Quadro 1 – Contexto de construção das tirinhas


PÁGINA AUTORIA AMBIENTE TEMÁTICA
19 Browne Doméstico Sair de casa
21 Quino Espaço Público (rua) Questões políticas
29 Quino Doméstico Sair de casa
37 Nik Espaço Público Relacionamento amoroso
52 Angeli Doméstico Relacionamento amoroso
91 Bill Waterson Doméstico Relacionamento com filhos
102 Clara Gomes Ambiente Virtual Redes Sociais
Alexandre
110 Ambiente Virtual Redes Sociais
Afonso
197 Angeli Espaço Público (rua) Interação social
230 Laerte Doméstico Relacionamento com filhos
280 Quino Escolar Interação social
Fonte: Elaborada pelos autores, com base em Cereja

No tópico a seguir, serão analisadas as tirinhas intituladas: “O blogueiro


profissional”, “Romeu e Dalila”, “Gaturro e Ágatha”, “Bichinhos de Jardim” e
“Calvin e Hobbes”, por nelas conterem materialidades discursivas marcantes da
representação da mulher.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |123

4.1 O blogueiro profissional

Figura 1
Fonte: CEREJA (2016, p. 110)

A tirinha causa efeitos de ambiguidade. Observamos um homem vestido


de forma padronizada, provavelmente, fardado, de expressão impaciente (mãos
espalmadas, semblante caído) e falas curtas. Um profissional do meio virtual. Por
outro lado, vemos uma mulher pondo em questão a relação profissão-vida, real-
virtual e chegando à conclusão de que as redes provocam uma organização dos
sujeitos, de maneira tal que, embora ocupando o mesmo espaço físico, estão
ausentes nas relações proximais do cotidiano.
O homem está alheio ao mundo real. As marcações na construção da
tirinha enfatizam isso. As palavras Orkut, MSN, MISPACE, FACEBOOK,
TWITTER, bem como lugares e mundo real, aparecem igualmente marcadas (em
negrito), mas estabelecendo uma relação de oposição.
Sobre a dimensão histórica da construção imagética, Aumont (1993)
postula que o dispositivo é responsável por regular as relações entre espectador e
imagem em um contexto simbólico determinado. É nesse ponto que interagem,
124 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

para o autor, ideologia e história, tendo em vista que não há dispositivo fora da
história (p. 192) e que não há história que não contemple, em sua construção e
abordagem, noções de inconsciente e ideologia.
A partir de uma concepção discursiva, compreendemos o
desenvolvimento de uma reflexão crítica sobre a produção de conhecimentos e
os relacionamentos sociais. Conforme Pêcheux (1995), as palavras comunicam
sentidos. Nesse contexto, a figura feminina é colocada em local de superioridade,
uma vez que, além de, aparentemente, consciente do processo de convivência em
sociedade, exerce sobre o homem um papel determinante: coloca-o em estado de
reflexão.
Não há inocência na linguagem (ORLANDI, 2002). Desse modo, a maior
reflexão não está no dito, mas, sim, no não-dito, no silêncio, naquilo que está além
da materialidade do texto. Orlandi (2007), ao postular sobre o processo de
formulação dos sentidos, afirma que “o silêncio não é, pois, imediatamente
interpretável”, porque “é a historicidade inscrita no tecido textual que pode
devolvê-lo” (ORLANDI, 2007, p. 58). Ora, nessa trama discursiva, dominação e
resistência se encontram compreendidas em um processo marcado pela
formulação de sentidos e construção de uma identidade que coloca o sujeito-
homem no silêncio, provocando efeito de emancipação à voz feminina.

4.2 Romeu e Dalila

FIG_2
Fonte: CEREJA (2016, p. 52)
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |125

Na tira, dois personagens: Romeu e Dalila. O sentido de ruptura da ótica


romântica de mundo já é rompido aqui mesmo, na gênese da construção. Ao
lermos o título da charge, resgatamos na memória o clássico de Shakespeare
Romeu e Julieta e constatamos a ausência da Julieta de Romeu . O processo de
deriva operado no título, de Julieta para Dalila, emite uma mensagem: o
rompimento com o romance romântico, a evolução para uma visão realista de
mundo e, consequentemente, dos relacionamentos.
Dalila é uma personagem marcante no discurso religioso, isso porque, por
meio dela, o grande e poderoso Sansão, juiz do povo de Israel (nação escolhida
por Deus), é preso, tem os olhos vazados, é posto como escravo e, logo mais,
amarrado às colunas do templo de seus inimigos como motivo de zombaria. Dalila
é uma mulher inteligente, esperta e que não se deixa domar pelo sentimento (A
BÍBLIA, 2008).
Analisemos, pois, a partir desse resgate, a função do interdiscurso para o
funcionamento exitoso do processo discursivo. Conforme Orlandi (2002), o
interdiscurso é o responsável por disponibilizar dizeres, isso porque está
diretamente relacionado à memória discursiva, o que afeta diretamente no modo
como os sujeitos significam. Não podemos deixar de ressaltar que a ativação de
conhecimentos prévios do sujeito leitor o conduz a uma percepção das
características discursivas do gênero, sua intenção comunicativa, sua temática e
especificidades no assunto abordado no texto.
Por outro lado, a ironia é mais uma vez salientada quando colocamos em
confronto o nome dado ao sexo masculino e sua atitude. Romeu, aqui, revela outra
face. Completamente oposto ao personagem de Shakespeare, carregado de
romantismo e sensibilidade, de tal forma que vê em Julieta o caminho para a
felicidade; agora, nesta construção, se revela frio, insensível, indiferente à
situação de desespero e agonia de Dalila. “Sorte! Pensei que fosse conjuntivite”,
aponta ainda para um ele que desconhece aquilo que ultrapassa o físico, a
dimensão social e psicológica do ser.
Uma vez mais o silêncio significa. O semblante de Dalila mediante a
última afirmação é reconstruído, de forma cíclica, conforme está no primeiro
126 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

quadrinho. Tal representação promove nos sujeitos leitores um efeito de sentido


de estagnação no tempo e no espaço. Dito de outro modo, o homem é aquele que
não evolui positivamente em sua postura e não é afetado por aquilo que lê, sendo,
desse modo, incapaz de perceber o mundo em sua totalidade.

4.3 Gaturro e Ágatha

FIG_3
Fonte: CEREJA (2016, p.37)

Considerando que as palavras recebem sentidos das formações


discursivas em seus movimentos, em suas relações, constatamos na personagem
Ágatha a personificação do mau sujeito da ideologia, ou seja, aquele que vai de
encontro à ideologia dominante, apontando-a como retrógrada e inaceitável. De
acordo com Pêcheux (1995), em discursos assim, ocorre que o sujeito-enunciador
contraria o Sujeito universal da ideologia, num processo denominado contra-
identificação. Dito de outra maneira, o sujeito-feminino da tira resiste ao processo
de inculcação social e, como consequência dessa resistência ideológica, há, nela,
uma reversão e rejeição frente ao que já está posto.
Aqui, existem ainda dois domínios corroborando os efeitos de sentido
provocados pela tira. Num primeiro momento, há referência ao relacionamento
amoroso e às redes sociais, com o uso das palavras on e off que, atualmente, têm
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |127

caráter e força universais, substituindo, respectivamente sim/não,


presente/ausente.
Ora, de tantos animais disponíveis na natureza, fica em nós a indagação
do motivo pelo qual são representados dois felinos: a gata e o gato. No domínio
cultural brasileiro e também em alguns países, convencionou-se uma metáfora
para moça/rapaz bonita/bonito e atraente: uma gata/um gato. Gato, felino é
considerado bonito e domesticável. Analisemos que, nessa perspectiva, o gato
insiste na domesticação da gata. Afinal, não seria esta a ideia defendida há muito
pela sociedade machista?
Ágatha resiste; barra o processo; vira, literalmente, a página. Seu sorriso,
esboço de satisfação e contentamento, somente aparece após a ação de
contrariedade. Concebendo poder como força reprodutiva, Foucault (1997)
aponta que ele é bem mais que uma força de negação, mas que de fato ele permeia,
produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso (p. 8), ou seja, atua
e atravessa todo o corpo social. Ágatha luta e vence um poder dominante, fazendo
surgir um novo regime de verdade a ser estabelecido socialmente.
O sorriso da personagem e sua satisfação, de certo modo, implícita, ou
seja, a parte subentendida da construção é de responsabilidade do sujeito leitor.
O não dito é (re)construído pelo sujeito a partir de sua memória e de acordo com
sua alocação dentro das formações discursiva e ideológica.

4.4 Bichinhos de jardim

FIG_4
Fonte: CEREJA (2016, p. 102)
128 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Atualmente, é impossível tratarmos de sociedade/relações sociais sem


que incluamos, nessas discussões, a temática das redes sociais. É, pois, bastante
forte o vínculo entre real e virtual, de tal modo que não nos é possível definir
quem age em função de quem. Com o advento das redes virtuais sociais, em
detrimento do bônus por elas proporcionados, há também o ônus, como, por
exemplo, o uso inadequado, conforme postula a construção acima.
Incomodada com atitudes invasivas, incoerentes e, até mesmo, opiniões
sem noção, a personagem, Joana, opta por um afastamento. Sua proposta é uma
rede antissocial, a primeira do mundo, onde ela não será incomodada. Partindo
das materialidades discursivas, constatamos o dilema presença-ausência,
interação-afastamento. Contudo, a revolta da personagem, explícita em suas falas
e também em sua fisionomia, não é contra a rede em si, mas contra sua má
utilização por parte de muitos. Joana, em algum momento, condena a existência
ou aplicabilidade das Novas Tecnologias da Comunicação, mas demonstra repúdio
por ações antissociais num ambiente de socialização, buscando o afastamento de
abusos decorrentes desse meio.
Além da realocação do sujeito feminino, fazendo-o partícipe da era atual,
de inovações tecnológicas, a tira apresenta-o como dotado de um pensamento
crítico diante dos fatos sociais. Logo, sua identidade é formulada na e pela história,
contrariando, rompendo, sempre refutando o aqui e agora. Foucault (1997) já
afirma que a verdade, espécie de erro que tem a seu favor o fato de não poder ser
refutada, só viria a ser rejeitada por meio das lutas entre forças, no caso acima, a
voz feminina ganha maior ênfase.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |129

4.5 Calvin e Hobbes

FIG_5
Fonte: CEREJA (2016, p. 91)

Na tira acima, há um diálogo entre mãe e filho. A mãe, por sua vez, é
posta em um lugar de autoridade, tanto pelo fato de ser mãe, como também por
sua postura na construção: deitada em um sofá e lendo um jornal. O filho, Calvin,
apresenta uma necessidade (“Tô com fome”) e, em seguida, faz sua petição (“Posso
fazer um lanche”).
Em outros momentos da história, não poderíamos conceber o que está
descrito acima: uma mulher em casa, mas em estado de descanso, até mesmo
porque, em conformidade com o enunciado lugar de mulher é na cozinha,
trabalhando no lar para a alimentação do marido – sujeito implícito à construção
– e dos filhos, zelando pelos utensílios e ambiente doméstico.
Na tira, Calvin representa o sujeito homem e é surpreendido por um
direcionamento sobre o que deve comer. A mãe orienta/ordena/solicita ao filho
que este “sirva-se”, mas o ato de fala gira em torno, apenas, da comida fruta, mais
precisamente maçã ou laranja, as que estão na geladeira. Calvin, porém, ao obter
a resposta da mãe, segurava um pote de biscoitos. Ou seja, sua vontade era outra
e foi negada. O efeito-revolta o leva à seguinte conclusão: “Embora usemos o
mesmo idioma, não falamos a mesma língua”.
Podemos facilmente relacionar o pensamento de Calvin ao modelo
formal/ estruturalista de concepção da língua. Ferdinand Saussure (2006), em seu
130 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Curso de Linguística Geral, define língua como algo heterogêneo e sistemático, o


que, para Calvin, seria o “idioma”, o que, tecnicamente, em sua concepção,
deveria ser comum a todos. Contudo, em sua construção, língua recebe outra
dimensão, diferente da concebida estruturalmente, mas também ulterior à noção
de fala na perspectiva saussuriana. Língua, para ele, é definida como lugares
opostos de pensamento, ideias, posições. Nesse caso, a ênfase pode e deve ser
atribuída ao discurso. De acordo com Orlandi (2002),

[...] no jogo da língua que vai-se historicizando aqui e ali,


indiferentemente, mas marcada pela ideologia e pelas posições
relativas ao poder – traz em sua materialidade os efeitos que
atingem esses sujeitos apesar de suas vontades. O dizer não é
propriedade particular. As palavras não são só nossas. Elas
significam pela história e pela língua. (ORLANDI, 2002, p. 32)
(grifos nossos)

A constituição determina a formulação, e esta formulação é determinada


pelas relações estabelecidas entre sujeito e interdiscurso, aí, sim, dizemos, ou seja,
chegamos à circulação dos discursos, mas de forma que aquilo que é sabido pelo
sujeito não é suficiente para a compreensão dos efeitos de sentidos possíveis
naquilo que está dito (ORLANDI, 2002).
Pêcheux (1995) entende que, na prática discursiva social, mais
precisamente na prática de política de tipo novo, uma modalidade discursiva é
salientada: a capaz de construir limites em relação aos efeitos discursivos e
ideológicos, desconstruindo certas evidências. Falamos, então de uma prática
política, também presentificada na tira acima. A postura e o discurso da mãe
retiram-nos da antiga e retrógrada noção de delimitação de espaços, ao colocá-la
em lugar de destaque e autoridade, resgatando, inclusive, ares de divindade: a
geradora da vida, aconchegada em seu divã e decidindo o destino dos mortais.
Uma Vênus moderna.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |131

5. Considerações finalizantes

Considerando o uso da tira como um recurso cada vez mais frequente no


livro didático, especialmente os voltados para a preparação do aluno para o
vestibular, observamos uma abordagem direcionada à identidade feminina em
(re)construção.
Embora já detentora de certo prestígio social, ainda hoje é evidente o
preconceito social para com a mulher, bem como cresce, a cada dia, o índice de
mulheres vítimas de violência. Ao abordar essa temática, o livro insere-se nos
preceitos estabelecidos pelo Plano Nacional do Livro Didático, pois possibilita
discussões voltadas ao desenvolvimento do pensar crítico do corpo discente,
fazendo com este perceba a língua em suas relações reais de vinculação ao
contexto histórico, social, ideológico e político.
Nesse caso, a linguagem está para além do dito, pois não podemos
delimitar sua dimensão. Nos usos reais da língua, tudo significa infinita e
indefinidamente, a depender de quem constrói o discurso e a que regime de
verdade o discurso está vinculado. No que concerne ao ensino, a aplicação das
postulações pecheuxtianas em análises de textos no livro didático eleva o ensino
de língua materna, pois suscita a compreensão do funcionamento do discurso nas
práticas quotidianas, desde o processo de constituição, atravessando o
entendimento/compreensão de sua formulação, até chegar à circulação e aos
efeitos de sentidos.
O gênero selecionado para análise e a forma que vem assumindo em suas
construções são prenúncios do avanço de que tanto carecemos. Mas, por meio dos
não ditos e do que do que está dito, as construções evocam efeitos de mudança e
uma (re)construção/(re)configuração da identidade feminina, que não está
diretamente relacionada à noção de sexo frágil, ou outros termos pejorativos
validados historicamente, aparecendo como sujeito forte, bem posicionado
hierarquicamente, detentora de direitos, conhecedora das práticas sociais atuais,
leitora.
132 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

O LD salienta o resgate do passado através da memória, causando novos


efeitos de sentidos, ressignificando práticas discursivas, por meio do frequente
processo de deriva e dos usos metafóricos da linguagem. Discursivamente, pode
ser considerado um lugar de fala, em que os sujeitos fazem circular discursos,
produzindo novos efeitos de sentidos e também resgatam a memória discursiva.
A mulher é, pois, apresentada como sujeito ideológico de saber e de fazer.
Ensejando a mudança no ensino, é pertinente que o trabalho continue.
Não há conclusão, pois, só nos é permitido apontar um caminho de possibilidades.
Muitos outros gêneros podem e devem ser explorados. Fato é que este gênero aqui
abordado está longe de ser esgotado, pois, como afirma Orlandi (2002), o que é
dito em outro ambiente também confere sentido às palavras consideradas nossas.

REFERÊNCIAS

AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 1993

A BÍBLIA. Sansão e Dalila. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro:


King Cross Publicações, 2008. 1110 p. Velho Testamento e Novo Testamento

CEREJA, William Roberto (Org.). Interpretação de textos: desenvolvendo a


competência leitora. 3. e. São Paulo: Saraiva, 2016

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979

ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio. Campinas, SP: Editora da


Unicamp, 2007

________.Análise de discurso: princípios e procedimentos. São Paulo: Pontes


Editora,2002
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |133

O século XX. Disponível em:


http://oseculoxx.blogspot.com/2009/10/charge.html//> . Acesso em 27.jul.2018,
às 18h12

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.


Tradução de Eni Orlandi. Campinas: UNICAMP Editora, 1995

________.O Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, SP: Pontes, 2002.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2006.
134 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

A ESCRITA E OS MECANISMOS DA REESCRITA NO ENSINO MÉDIO E NA


EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Elisa da Silva de Almeida (UERJ/SEEDUC-RJ)


José Enildo Elias Bezerra (IFCE)

1. Introdução

Os aspectos de leitura, de produção textual e de reescrita produzidos


durante as oficinas realizadas entre 2011 a 2013 em uma escola do Ensino Médio,
buscavam dimensionar o contexto de produção e, consequentemente, refletir
acerca das condições em que se inseriam os alunos matriculados na instituição.
A dimensão contextual em que se encontram os sujeitos leitores e
produtores de textos ajuda o professor a compreender textos iniciais. Os textos
escritos, em certas situações, refletem a realidade de uma comunidade que
prioriza a comunicação pela oralidade. As informações concebidas, em muitos
casos, trazem conhecimentos, experiências, crenças, ideologias e contextos da
cultura em que se inserem.
Nas primeiras situações de leitura e de produção textual foram necessárias
intervenções, tendo sido compartilhadas informações adquiridas pelos próprios
alunos durante relatos orais, histórias do cotidiano que influenciavam
diretamente os textos. A confirmação, na primeira escrita do aluno, não se
modificava na reescrita pela pouca informação sobre os temas discutidos nas
semanas anteriores.
A argumentação apresentada durante as reuniões com professores das
oficinas, realizadas duas vezes por semana, era que o contexto propicia a
oportunidade de construir uma ética plural e democrática, discutir atitudes
preconceituosas, desfazer estereótipos e reforçar a construção de uma identidade
positiva dos adolescentes e alunos da Educação de Jovens e Adultos - EJA. O
contexto social da família, muitas vezes, falha em informação.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |135

As produções escritas não obedeciam ao que Bortone e Martins (2008,


p.76) apontam como equívocos praticados nas aulas de Língua Portuguesa, ao
solicitar que o aluno escreva sem um destinatário real, para completar o tempo da
aula, para atribuir uma nota e produzir como o professor deseja. As autoras ainda
destacam três situações de um texto mal escrito: a tradição, o desejo de
impressionar e o não saber pensar.
As atividades que envolviam a escrita e a reescrita se traduziam em
conscientização do que se deveria escrever, para quem e por que escrever tanto
na escola.
Reescrever um texto, produzido pelo próprio autor, ajuda a retornar as
informações, quando necessárias. Os alunos reorganizavam as informações,
sintetizando-as e, com o passar do tempo, redefiniam o gênero com que mais se
identificavam, iniciando uma construção coesa e coerente.
Pode-se apontar a reescrita como um ato coletivo realizado com a
preocupação de salientar a importância de trabalhá-la, sempre que possível, com
uma função social real, que estimule o aluno a percebê-la.

2. A reescrita como um processo

Valorizar a reescrita como instrumento de construção de um bom texto,


segundo Bortone e Martins, é mostrar a função coesiva e argumentativa
alcançadas, construindo efeitos de sentido que os elementos gramaticais
sustentam. As pesquisadoras (2008, p.10) apontam que: “o estudo da gramática
sempre contextualizada, reflexiva e funcional, procura evidenciar como o texto
se organiza”.
As oficinas tiveram início com atividades de leitura de múltiplos gêneros,
acreditando que dificilmente alguém consegue escrever “bem” sem antes lidar
com textos diversos.
Para Garcez (2001, p.50): “ o bom leitor evidencia em seu texto suas
leituras prévias, desvelando autoria e criatividade” , Importa salientar que, ao
criarem condições de leitura de textos diversos, os discentes espontaneamente se
136 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

elevam a um nível consciente de interpretação que os ajuda a imaginar novas


possibilidades na elaboração.
Bortone e Martins (2008) estabelecem relações entre leitura e textos,
destacando que, quanto maior a habilidade de leitura, maior a produção textual,
a organização de suas ideias, o desenvolvimento do texto, a revisão e a reescrita.
As referidas autoras (2008, p.32) enfatizam que: “o ato de ler só começa a
fazer sentido ou ser coerente quando conseguimos perceber as intenções do autor,
seu ponto de vista e até “adivinhar” as possibilidades de desfecho cada texto”,
portanto, se fizeram necessárias, no início das oficinas, certas intervenções de
leitura que levassem os alunos não só a entenderem as palavras, mas o contexto e
o gênero, com suas formas específicas, intenções e informações implícitas.
Bortone e Martins (2008, p.41) compartilham a ideia de que é salutar
entender quais os aspectos desenvolvidos em uma aula de leitura, bem como
trabalhar estratégias que ensinem a ler com mais proficiência e escrever com mais
consciência.
As elaborações de textos produzidos, essencialmente, respeitavam o ponto
de vista do alunado e se percebia um potencial criativo. Havia casos em que
desenhos expressavam o que estes alunos sentiam.
Embora os propósitos das oficinas não fossem absorver concepções e
interpretar figuras e desenhos, respeitava-se a vontade do aluno, acreditando-se
que se criavam desenhos, estes se associavam aos seus propósitos.
Para Bortone e Martins (2008), é importante que se leve em conta os textos
associados aos aspectos sociocomunicativos e mesmos os elementos gráficos
representavam uma forma de expressão simbólica da comunicação.
O planejamento da elaboração de uma reescrita depende muito da
identificação do processo de leitura, de planejamento, de organização, de
produção, de revisão e de reescrita de textos.
Bortone e Martins (2008, p.85) concluem:
É possível romper com “mitos” e “crenças” a respeito da prática de
escrita. Escrever não é um dom ou uma inspiração divina,
diferentemente disso, a escrita requer trabalho, empenho,
raciocínio e organização mental de quem escreve e,
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |137

principalmente, humildade para voltar ao texto quantas vezes


forem necessárias para revisar e aperfeiçoar a própria escrita.

As experiências realizadas com a reescrita são tarefas a se completarem no


Ensino Médio e EJA, mas se constituem em um processo longo, iniciado,
provocado, sustentado e desenvolvido ao longo das experiências escolares.
Atividades que envolvem a reescrita como finalização de uma produção
textual poderão ser bem-sucedidas, à medida que as interações aconteçam,
destacando-se a postura do professor como mediador da relação entre leitura,
escrita e reescrita.
O sentido maior da produção de texto passou a garantia de aprendizagem
da escrita como bem cultural. A reescrita foi apenas um processo de ampliação de
compreensão, não só do texto que os alunos escreviam, mas de nova forma deles
se colocarem no mundo ao reescreverem o texto já transcrito e modificado
algumas vezes.
Oportunizar ao aluno a condição de ler e de reescrever o seu próprio texto
implicou permitir que este assumisse os seus discursos e os colocasse no embate
com outros circundantes. Para Val e Rocha (2008, p.67):

Nem sempre se sabe se aquele que ensina está disponível para essa
abertura. Como é que nos formamos leitores e produtores de texto?
É na comunidade (comum-unidade), na relação com o outro. Não
é no rigor do olhar, nem na benevolência, nem nos atos de
indiferença que se encontra a saída. Ela está, fundamentalmente,
no quanto àquele que ensina e aquele que aprende se abrem, cada
vez, para compreensão ativa.

As atividades desenvolvidas nas produções textuais, tanto nas oficinas


como nas aulas, sempre foram orientadas, em um primeiro momento, para a
realização da leitura de um texto. Após essa etapa, em que se construíam os
conhecimentos dos aprendizes sobre o tema se realizava a escrita de um texto
curto que, em muitos casos, se desenvolvia após a reescrita.
138 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

A condição apontada para uma escrita coesa e coerente se concentrava no


pensamento de Val e Rocha (2008, p. 71) acerca de que: “o autor deve escrever
tendo em vista o seu interlocutor”.
As atividades estabeleciam a premissa de que, quando explicitadas às
condições de produção, a revisão textual realizada, tanto pelo professor como pelo
aluno, contribui para que o estudante desde muito cedo reelabore concepções
acerca da estrutura textual, considerando aspectos relativos ao nível de
informatividade do texto, à ortografia, à caligrafia, à concordância, entre outros.
O processo de reflexão acerca de aspectos ligados à reescrita também
envolve a compreensão de que se escreve para um interlocutor e que a
compreensão demanda que não faltem informações, apresentem uma letra
legível, sem problemas na formalização de escrita, pois estas comprometem a
construção da interlocução.
As modalidades de organização dos trabalhos, tanto em sala de aula como
nas oficinas, procuravam ser uniformes. Os assuntos abordados eram
diferenciados, mas os gêneros, os mesmos, pois muitos frequentavam atividades
extraclasses para minimizarem as dificuldades, não só em Língua Portuguesa, mas
em outras áreas.
A preocupação era que o aluno compreendesse a importância de se
elaborar um texto claro, objetivo para que se valorizasse na própria comunidade
escolar e fora desta. Após a realização de um trabalho de conscientização, importa
saber qual a função do texto no contexto. Orientavam-se os trabalhos para que as
aprendizagens da escrita se relacionassem às restantes áreas.
A promoção da escrita e dos mecanismos de reescrita ocorreu por estímulo
à leitura de obras da literatura clássica, integrais, em alternativa à oferta de
manuais, da diversificação tipológica de textos e da revalorização do ensino da
Língua Portuguesa.
Amor (2004, p.84) analisa que a escrita deve: “situar-se no seu percurso de
aprendizagem no pensar e agir em rede de relações e interações”. Para a autora, a
Língua precisa de um modo construtivo, mobilizando-a para a resolução de
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |139

problemas e a elaboração de produtos portadores de uma intenção, de um sentido


e da construção de uma consciência linguística mais alargada e sistemática.
A intenção em desenvolver uma atividade com leitura e com escrita, em
comunidade isolada, também levou os autores a acreditarem que, embora a língua
oral seja o instrumento mais presente no dia a dia, é imprescindível que a escola
ensine a língua escrita não só para comunicação formalista, mas como algo
presente na vida dos estudantes e que merece refletir como um instrumento a
mais de comunicação definitiva, pois o que se escreve nem sempre se modifica.
Em relação às concepções de aprendizagem de língua, Amor (2008, p. 09) registra
que:

A língua, para além de ser intrinsecamente um importante valor


cultural – assume-se como registro identitário de uma comunidade
– é um meio essencial para a descoberta a valorização de muitos
outros elementos culturais. Desde logo, a consciência que cada um
tem de si, a sua própria existência, é projetada na linguagem.

Produzir um texto e oferecer a possibilidade de revisão e de reescrituras é


escolher entre as inúmeras disponibilidades de sentido no sistema linguístico.
Refazer as próprias produções permite com que o aluno perceba a existência de
outras para elaboração de uma mais coerente.

3. As oficinas

O princípio de toda prática das oficinas se baseava na leitura de um gênero


trabalhado nas aulas de Língua Portuguesa. Para Albalat (2015, p.15): “qualquer
pessoa que tenha mediana aptidão e leitura poderá escrever, se quiser, se souber
aplicar-se, se a arte interessá-la, se tiver o desejo de emitir o que vê e de descrever
o que sente”. A leitura não é uma ciência inatingível.
Tal conceito se revelou na prática das oficinas, pois muitos dos discentes
não haviam lido um livro completo, as poucas oportunidades tinham sido de
leituras fragmentadas de obras cedidas pelos professores. Assim, teve início, a
partir do primeiro ano, a leitura de obras literárias completas.
140 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

O dom da escrita, isto é, a facilidade de exprimir o que se sente, é uma


faculdade tão natural ao homem como o dom da fala. O aluno tem a capacidade
de se comunicar com sua comunidade por meio da linguagem. Certamente, a
escrita exporá ideias e registrará o dito.
Para Albalat (2015, p. 15):

Ora, se toda gente pode contar o que viu, por que não poderá
escrevê-lo? A escrita não é senão a transcrição da palavra falada, e
é por isso que se diz que o estilo é o homem. O estilo mais bem
descrito é, as mais das vezes, o estilo que se poderia falar melhor.

Todos os alunos apreciavam com desembaraço as narrativas escritas, nos


primeiros momentos, a maioria utilizava a linguagem oral, muito comum entre
turmas da EJA. É natural que as pessoas de determinada comunidade, ao
expressarem assuntos e fatos, criem imagens no texto escrito que só professores e
colegas de turma decifram.
Apostou-se em longo trabalho com a finalização de um texto claro e
objetivo utilizando a reescrita, pois há qualidades adquiridas e para adquirir
durante o processo. Segundo Albalat (2015, p.21): “sem dúvida, uma parte da arte
de escrever não se aprende, mas outra parte aprende-se. É por falta de trabalho
que tanta gente escreve mal.”.
As oficinas ajudaram a inspiração, frutificaram e progrediram, mas há um
trabalho de perseverança. Não se trata de oferecer fórmulas para uma boa escrita
ao final de um curso, mas de decompor a forma, de analisar expressões e
contextos, de fornecer oportunidades de revelação da importância da escrita no
meio social e da criação do próprio estilo.
Não se queria obrigar os alunos a criarem um texto com o estilo do autor.
Em muitas ocasiões, existiam cópias e tais situações se refletiam pela insegurança
do aluno em escrever texto para a análise do professor. O que se defendeu nestas
ocasiões, foi que os alunos assimilassem todos os estilos para depois formarem o
próprio.
A proposta de reescrever um texto é de escrever o mais próximo de sua
realidade, depois iniciar uma leitura mais apurada para que, ao final, se criem
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |141

possibilidades de elaborar um texto de qualidade. Leva-se em consideração que


um trabalho desse porte demora meses ou anos para ser concluído.
Sem querer mudar o aluno, notava-se que a cada produção textual nas
oficinas, após a reescrita, quebravam-se os moldes da formalidade estilística dos
autores lidos e se criava uma escrita própria. É preciso, em atividades que utilizam
a reescrita como finalização de produção textual, saber que se deve atingir a
aprendizagem da língua. Para Albalat (2015, p. 43): “o estilo é a maneira privada
que cada um tem, de exprimir o seu pensamento pela escrita ou pela palavra. O
estilo é cunho pessoal do talento”.
Ao praticar a reescrita, o aluno aperfeiçoa um talento, visto que a
originalidade será o estilo. As produções textuais, nos últimos anos das oficinas,
traziam a expressão, a forma que tornava os textos mais claros e concisos. Os
indivíduos saíam de uma escrita sem sentido para florescerem em linhas, que
fossem lidas e interpretadas por outrem.
As obras da literatura clássica brasileira ajudaram a demonstrar o estilo de
época dos autores, uma vez que estas expõem as análises teóricas e as imaginações
de um contexto distante, mas refletido na atualidade. Observa-se a
contextualização da estrutura gramatical, as palavras e figuras e há vigor e
delicadeza em metáforas, alegorias, elipses, metonímias, prosopopeias, etc.
Os livros paradidáticos lidos no Ensino Médio e na EJA podem servir de
ponte para uma escrita de gêneros que auxilie a aluno a compreender aspectos da
Língua Portuguesa, com elementos de estilo e características da escrita do autor,
particularidades como a clareza, a correção, a elegância, a naturalidade, a nobreza
e a riqueza nos detalhes.
Tais percepções, após a escrita de um gênero, literário ou não, levam depois
da prática da reescrita, os alunos a desenvolverem um estilo próprio. Albalat
(2015, p. 58) ratifica que: “ não há estilo florido, como não há estilo temperado.
São invenções gramaticais, de que se deveria, de uma vez por todas, desembaraçar
o ensino”.
As probabilidades de uma reescrita com alunos do Ensino Médio - técnicos
trouxeram para o ensino de Língua Portuguesa condições de leitura, não só de
142 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

textos produzidos por autores reconhecidos, mas de se reconhecerem como


autores e responsáveis pelo que publicavam.
Os discentes passaram a observar o que produziam, criando um leitor que
elabora e testa hipóteses sobre o texto. Ao construir tais concepções de leitura,
eles iniciavam estratégias para dizer o texto com aquilo que já sabiam dos textos
e do mundo. Por isso, a escrita depende mais do que o leitor lê e no que está
interessado. Essas condições levaram os estudantes a produzirem mais textos e a
reescrevê-los, quando necessário.
Deve-se buscar, a princípio, o gosto pela leitura silenciosa e interpretativa.
Para Cosson (2009, p.41):

Interpretar é dialogar com o texto tendo como limite o contexto.


Esse contexto é de mão dupla: tanto é aquele dado pelo texto quanto
é dado pelo leitor; um e outro precisam convergir para que a leitura
adquira sentido. Essa convergência dá-se pelas referências à cultura
na qual se localizam o autor e o leitor.

É comum iniciar atividades de leitura e de escrita com alguma resistência


dos alunos, pois em muitas escolas, a primeira versão da produção textual é a
definitiva, desconsiderando, assim, a existência de novas possibilidades
melhoradas, buscando novos sentidos.
Nos primeiros contatos com a prática da reescrita, os alunos resistiram por
não encontrarem objetivos claros no processo, não realizaram as atividades que
buscavam “higienizar” o texto. Para quem está no processo de aprendizagem da
escrita é “perder tempo”. Fez-se necessário nas oficinas demonstrar que, além da
oportunidade de ler o próprio texto e de realizar uma nova escrita, que o
estudante podia se centrar, após a finalização do texto, nas “impurezas”
linguísticas, especialmente, no que se referia aos problemas de ortografia, de
concordância e de pontuação.
Nas primeiras oportunidades realizadas com atividades de troca de textos,
definidas como colaborativas, os discentes centravam seus esforços na correção
de elementos da superfície. Assim, a reescrita, ao invés de ser uma atividade
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |143

proveitosa, propiciando um exercício de reflexão sobre a linguagem, um trabalho


de reconstrução do discurso, passou a ser vista como punição.
Depois se priorizavam situações da coerência do discurso. No processo de
aprendizagem da escrita e da reescrita se necessita de uma conscientização do
propósito de escrever um texto: uma comunicação. Em geral, pedia-se que os
alunos escrevessem o que valesse a pena, acostumando-os com a ideia de que o
primeiro texto é um rascunho a melhorar.
Os primeiros textos produzidos pelos alunos eram arquivados para
avaliação posterior pelos colegas e professores, comparando-os e observando o
processo de escrita em momentos diferentes, entre gêneros e estilos. Cada
arquivamento e análise final das produções textuais mostrava, de forma concreta,
o progresso do aluno. Para Soares (2009, p.22): “este comportamento nos leva a
crer que é como se os alunos tentassem nos dizer que o tempo gasto com uma
correção tão criteriosa e detalhista é inútil, pois mesmo que peçamos a reescrita
do texto, neste caso, esta se torna apenas um exercício mecânico de cópia.”
A pesquisadora reforça que, desde a Educação Básica os alunos percebem
a atividade de escrita como algo penoso, devido às dificuldades na elaboração de
textos e na falta de um trabalho, em sala de aula, que promova a autoconfiança.
Além disso, o desprazer relacionado ao ato de escrever é transferido para a Língua
Portuguesa, pois em várias situações os alunos encontravam barreiras linguísticas
entre a língua escrita anterior no período do Ensino Fundamental e a exigida nos
cursos de Nível Médio e da EJA.
A reescrita em que realizavam os trabalhos trazia ponderações acerca da
escrita. Para Soares (2009), a abordagem processual é concebida em três
momentos. O primeiro é chamado de pré-escrita e engloba atividades que
auxiliem o autor a descobrir formas de abordar a tarefa, a coletar informações e a
gerar ideias. Neste estágio, o professor promove a escrita livre, utilizando as ideias
vindas dos alunos, um texto oral, por exemplo.
Na produção de um texto livre, é importante ressaltar que as ideias geradas
se organizam em um plano, ou esquema, que auxiliará o aluno a determinar a
ordem mais apropriada para apresentar a primeira versão. Isso demonstra uma
144 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

preocupação com a figura do leitor e com o contexto para o qual o texto é


endereçado. Aponta-se a preocupação maior da escrita em comunicar ideias.
O segundo estágio trata do planejamento. Corresponde à fase de escrita do
texto, encerrando apenas quando o texto está pronto para reavaliação na revisão.
Nas oficinas, este processo ocorria após a primeira escrita.
As atividades de revisão ou pós-escrita incluíam um período de leitura e
de avaliação do próprio aluno-escritor. É interessante que, após a primeira versão,
o texto seja lido por um professor ou colega de classe para posterior reescrita.
Acreditou-se na possibilidade de que, depois de reescrita a primeira versão,
o texto seria o melhor possível, portanto, dentro de uma abordagem processual, a
transformação por meio de rascunhos múltiplos é fator crucial para melhorar a
qualidade do produto final.
Com relação à reescrita, Soares (2009, p. 24) lembra:

Precisamos avaliar nossos conhecimentos para determinar o que


partilhamos como o leitor e o que é exclusivamente nosso.
Precisamos, também, decidir como organizar a informação para
alcançar o nosso propósito com a escrita, além de julgar se a língua
que escolhemos passa a mensagem na sua totalidade.

Conclui a mesma autora (2009, p. 24): “que a linha expressivista entende


como um ato de descoberta da mensagem”. Para a pesquisadora, a maioria dos
alunos tem apenas um pensamento parcial do que dizer ao iniciar a escrita,
entretanto, as ideias tomam forma à medida que as palavras vão para o papel,
durante o processo da escrita.
A finalidade de elaborar uma reescrita de textos, nas oficinas e aulas de
Língua Portuguesa, nos três primeiros no Ensino Médio encorajou o alunado a
escrever, de forma despreocupada, acerca dos assuntos discutidos e os temas
propostos pelos professores. Ao deixar as ideias fluírem naturalmente, notava-se
que a pressão psicológica de que deviam preencher uma página em branco com
um texto considerado de boa qualidade, diminuía.
Os professores evitaram, nos primeiros momentos, questionar aspectos
gramaticais. Soares (2009, p. 31) avalia que:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |145

a preocupação do aluno com tais aspectos pode fazer com que ele
risque várias vezes o que escreveu e não consiga ir adiante sem ter
uma frase bem elaborada antes de iniciar a próxima, o que é um
desperdício de tempo e energia, já que há como dizer se estas ideias
iniciais serão realmente aproveitadas no texto final.

A reescrita é uma atividade preliminar no processo de aprendizagem da


escrita, sendo um processo no qual o aluno seleciona quais as partes de seu texto
inicial podem ser expandidos ou desenvolvidos, quais exemplificadas, ou cortadas.
E é neste momento que o autor também leva em conta a sequência para
apresentação dos assuntos, bem como a forma de encadear e a transição dos
conteúdos.
No início da conscientização com alunos e professores, a necessidade de
realizar o trabalho não foi bem aceita, sendo fato de que apenas após o primeiro
ano de persistência na técnica desenvolvida, que esta recebeu acolhimento.
A troca de textos entre colegas em sala de aula propicia o incentivo durante
a produção de texto, reformulando o próprio discurso do aluno, que ao escrever
o primeiro rascunho começa a idealizar novas construções a partir da primeira
escrita. Dos comentários dos colegas o aprendiz, envolvido também na leitura dos
textos dos outros, reagia de forma positiva à interação entre os colegas, buscava
realizar uma reescrita mais consciente, de forma que a comunicação fosse cada
vez mais clara e objetiva.
Notou-se um crescimento não só do estudante para realizar novas
atividades de escrita, mas um crescimento coletivo, porque foram criados espaços
para que os indivíduos partilhassem e buscassem a independência do professor
que, na situação, passou de leitor para um dos possíveis leitores.
Soares (2009, p.53) avalia o papel disponível para o professor:

De leitor (audiência), quando ele reage às ideias e percepções que o


aluno-escritor tentou transmitir em seu texto. Esta reação é
expressa em comentários que indicam se o leitor gostou ou não do
texto e de seu conteúdo. Neste papel, os comentários servem de
reposta, basicamente do tipo “o texto é interessante?”, “o texto é
146 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

fácil de entender?”, “o texto revela algo sobre o escritor e sua forma


de ver o mundo?”.

Não só o professor como o colega de turma pode ser percebido como leitor,
trazendo assim uma nova atividade preliminar para quem escreve, pois passam a
selecionar quais partes de seu texto inicial podem ser expandidas, desenvolvidas
ou cortadas. O autor também leva em conta a sequência para apresentação dos
assuntos, bem como a forma de fazer o encadeamento e a transição dos conteúdos.
Ao relacionar a necessidade de uma produção escrita mais consciente,
Soares (2009, p.111) enfatiza que: “ cada aluno deve ser capaz de avaliar o quanto
da informação que ele deseja passar e partilhar com o leitor ”. Destaca ainda que
para alcançar o propósito de um texto claro e objetivo, é necessário julgar se a
linguagem empregada está de acordo com o que se quer.
Para Soares (2009, p.112):

Nas salas de aula de redação no contexto escolar brasileiro, não se


fala em reescrita, pois esta não é vista, nem mesmo pelos
professores, como parte do processo de produção textual. Em
consequência disso, o que se pratica no ensino da produção textual
é que a primeira versão é considerada a versão definitiva.

A autora (2009, p.112) destaca ainda que falar em reescrita na escola é


considerado como perda de tempo, já que não há noção da atividade como
oportunidade de melhoria do discurso, mas como: “um castigo, um desrespeito a
quem, após muito esforço produz algumas sofridas linhas”.

4. Palavras finais

As oficinas de texto se voltaram para uma reescrita que, ao invés de


representar apenas uma limpeza textual, buscando apenas a correção centrada nas
incorreções linguísticas, especialmente, no que se refere aos problemas de
ortografia, de concordância e de pontuação, resultaram em orientação, mesmo
durante as atividades colaborativas entre colegas e professores, de centrar esforços
na correção de elementos não só superficiais do texto, mas como um exercício de
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |147

reflexão sobre a linguagem, um trabalho de criação de novas ideias e de


reconstrução do discurso do aluno.
A reescrita no Ensino Médio e na EJA ajuda a redimensionar os textos,
embora o professor enfrente obstáculos para direcionar um trabalho como a
reelaboração. Destaca-se que, com o passar do tempo, o aprendiz reconhece as
situações fundamentais que envolvem a escrita e compreende o processo de
produção textual quando se escreve se lê e se refaz, a fim de (re)construir uma
comunicação clara e objetiva.
Realizar oficinas de leitura, produção textual, reescrituras de textos em
diversas situações produz uma escrita que reflete o fundamento do ensino da
língua: a possibilidade de entrar em comunicação com os outros, participando dos
objetivos prioritários, o saber escrever, em todas as suas dimensões.
Concluímos que a produção escrita e a reescrita exigem a automatização
da recuperação e do reconhecimento, não só das palavras, mas do sentido no
corpo do próprio texto. Para a materialização do trabalho em discussão, necessita-
se de tempo e de continuidade ao longo da vida. É essencial que propostas de
ensino de leitura e de escrita se realizem permanentemente e não apenas em
situações de avaliação

REFERÊNCIAS

ALBALAT, Antonie. A arte de escrever em 20 lições. Campinas: Vide Editorial,


2015. 300 p.

AMOR, Emília. Littera, escrita, reescrita, avaliação: um projecto integrado de


ensino e aprendizagem do português para a construção de uma alternativa viável.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

BORTONE, Marcia Elizabeth; MARTINS, Cátia Regina. A construção da Leitura


e da escrita: 6º ao 9º do Ensino Fundamental. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
148 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto,
2009. 144 p.

GARCEZ, Lucília. A escrita e o outro. Brasília: UNB, 1998. 173 p.

SOARES, Doris de Almeida. Produção e revisão textual: um guia para professores


de Português e de Línguas estrangeiras. Petrópolis: Vozes, 2009.

VAL, Maria das Graças Costa; ROCHA, Gladys. Reflexões sobre práticas escolares
de texto: o sujeito-autor. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |149

PROJETO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA: TENDÊNCIAS DA PRODUÇÃO


CIENTÍFICA BRASILEIRA SOBRE LETRAMENTO ACADÊMICO NA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Elisa Bragança Curi Magalhães de Souza (UFF)


Jéssica do Nascimento Rodrigues (UFF)

1. Questões iniciais

A entrada na universidade proporciona diversas transformações à vida


dos estudantes que, formados no Ensino Médio, costumam perceber de forma
clara o contraste entre essas duas amplas esferas: a educação básica e o ensino
superior. Dentre as mudanças por eles vivenciadas, está o comportamento diante
dos eventos de letramentos acadêmicos, a cobrança de uma postura adequada a
essa esfera discursiva, a exigência de uma escrita mais monitorada e especializada
e a produção oral e escrita de gêneros específicos da academia. Além disso, uma
outra problemática é a de que, ao se formarem e chegarem às salas de aula como
docentes, muitos desses licenciados acabam por reproduzir práticas de ensino,
muito mais que as produzir, o que assevera o questionamento acerca do tipo de
formação desses professores para o ler-escrever crítico, produtivo e autônomo,
de modo que os faça refletir sobre o desenvolvimento de seu próprio trabalho no
letramento dos estudantes da educação básica.
Com base nesses apontamentos, considera-se relevante a construção de
uma inter-relação entre letramentos acadêmicos e letramento docente,
destacando as principais questões levantadas nas pesquisas dos últimos cinco anos
e reconhecendo que as práticas de ler-escrever textos do domínio universitário
não devem se restringir ao espaço-tempo da academia.
Diante disso, alguns questionamentos norteiam este trabalho:
- Quais as principais tendências da produção científica brasileira sobre
letramento acadêmico na formação de professores, publicadas no banco de teses
da CAPES, nos últimos cinco anos (2013 a 2017)?
150 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

- Quais as principais questões levantadas sobre a relação entre letramento


acadêmico e letramento docente?
- Quais os desafios e as contribuições desse debate acerca do letramento
acadêmico para a formação do professor?
Buscando-se refletir sobre a importância de uma formação docente sólida,
no âmbito da academia, que se estenda às práticas situadas nas salas de aula da
educação básica, vale compreender que o letramento acadêmico (práticas de ler-
escrever na universidade) e o docente (práticas de ler-escrever na escola)
mostram-se imprescindíveis e complementares. Nesse sentido, a metodologia
adotada neste estudo é a pesquisa bibliográfica do tipo estado da arte que
considera as palavras-chave, os resumos e os textos completos de dissertações e
teses publicadas na plataforma CAPES e desenvolvidas sobre o contexto
brasileiro no período de 2013 a 2017. No entanto, neste artigo, serão apresentados
apenas resultados parciais, já que a pesquisa ainda está em andamento, tendo sido
iniciada no segundo semestre de 2018.
Logo, o objetivo desta pesquisa é o de mapear os desafios e as contribuições
do debate acerca do letramento acadêmico para a formação docente, refletindo
sobre a importância e a necessidade de ampliação dos estudos sobre o tema e da
implicação dos professores universitários na orientação dos licenciandos para o
trabalho acadêmico e docente.

2. Letramentos acadêmicos e letramento docente

A linguagem, sendo uma produção sócio-histórica e dialógica, ancorada


na Teoria da Enunciação de Mikhail Bakhtin, é uma atividade humana presente
em todos os diferentes campos, realizando-se das formas mais variadas possíveis.
Os Estudos do Letramento, de modo complementar, entendem que os
letramentos são práticas sociais vivenciadas em diferentes esferas discursivas,
pois estão situadas no tempo e no espaço e são dependentes do auditório e de seus
papéis sociais. Assim, no que tange ao âmbito discursivo acadêmico, o
desconhecimento de gêneros escritos específicos da universidade por parte dos
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |151

estudantes advém do tipo de interlocução entre o ensino básico e o ensino


superior, visto que, durante os anos escolares, os alunos experienciam, isto é,
escrevem e leem gêneros textuais próprios desse ambiente e presentes em seu
currículo, não necessariamente os textos que circulam na universidade.
Apesar disso, quando os estudantes ingressam no ensino superior,
especificamente nos cursos de licenciatura, outros gêneros são exigidos, como
resenhas, resumos acadêmicos, ensaios e artigos. Entretanto, por não haver um
conhecimento prévio desses alunos e, muitas vezes, uma orientação sistemática
dos professores universitários, os alunos acabam por apresentar dificuldades na
produção desses textos. Isso se reflete, como consequência, de forma profunda,
nas lacunas de ler-escrever textos acadêmicos no cotidiano da universidade.
Cabe enfatizar que as práticas escriturais acadêmicas são imprescindíveis
à formação docente, visto que consideram a necessidade de aproximação entre as
práticas acadêmicas e as desenvolvidas nas escolas, local de trabalho dos
professores, estabelecendo-lhes a “articulação entre os saberes acadêmicos e os
exigidos para o exercício da docência” (VALSECHI; PEREIRA, 2016, p. 416).
Todavia, reforçam os autores que, ao se afastarem do trabalho docente nas
escolas, as práticas que privilegiam questões mais acadêmicas acabam por
desfavorecer “o processo de apropriação de saberes e práticas relevantes para o
letramento do professor”.
Vianna et al (2016) conceituam o letramento do professor como as práticas
de leitura e escrita necessárias e cabíveis ao local de trabalho desse profissional,
ou seja, a escola, sendo, assim, “práticas sociais de uso da escrita que os
professores precisam conhecer para que possam se configurar em agentes de
letramento” (KLEIMAN, 2006, p. 49). Os autores ainda consideram que a
familiarização com os alunos contribui para que se tenha ciência de seus
conhecimentos prévios, a fim de poder transformar os conteúdos em algo
acessível e significativo em suas práticas cotidianas.
Dessa forma, tendo em vista essa necessária inter-relação, torna-se
importante tratar dessa temática de modo mais aprofundado, objetivando
152 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

problematizar e refletir sobre as questões que permeiam este estudo, e revisitar


alguns conceitos importantes para esse debate.
Assim, numa perspectiva mais abrangente, é preciso reconhecer que,
cotidianamente, os usuários de uma determinada língua fazem uso dela no
mundo, para o mundo, com o mundo e com os outros. Bakhtin (2011),
especificamente, defende que todos os campos da atividade humana estão
relacionados ao uso da linguagem e que as formas como ocorre são multiformes,
visto que o emprego da língua se presentifica por meio de enunciados concretos
e únicos. Com isso, esses enunciados mostram as condições e os objetivos de cada
campo da atividade humana, elaborando seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, como denomina o autor, os gêneros discursivos.
No mesmo caminho, o debate sobre letramentos se faz importante e
necessário a qualquer situação de interação em uma sociedade grafocêntrica.
Sendo assim, esse conceito está intimamente relacionado às práticas de uso da
escrita, considerando, sobretudo, que essas são “práticas sociais plurais e
heterogêneas, vinculadas às estruturas de poder das sociedades” (VIANNA et al.,
2016, p. 29). Indo ao encontro dessa proposta, os letramentos acadêmicos
ocorrem por meio de práticas que orientam a vida na universidade, incluindo “a
produção ou a recepção de gêneros acadêmicos de prestígio que variam de acordo
com os campos disciplinares” (BEZERRA, 2015, p. 62). Os Estudos do
Letramento, nesse sentido, compreendem os letramentos acadêmicos como
conjunto de habilidades de leitura e escrita adquiridas a partir de um contexto
de formação profissional superior. Além disso, vincula-os aos diversos valores
atribuídos às práticas de leitura e escrita pelos sujeitos envolvidos.
Com base no conceito de letramentos acadêmicos, entende-se “que há
usos específicos da escrita no contexto acadêmico, usos que diferem de outros
contextos, inclusive de outros contextos de ensino” (FIAD, 2011, p. 362). Isso
acaba por gerar certo conflito que surge quando estudantes, com diferentes
formações escolares, culturais e sociais, convivem no ensino superior e são
solicitados a produzir diferentes gêneros, bem distantes dos que lhes foram
ensinados na educação básica.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |153

Fischer e Dionísio (2011) definem gêneros científicos como aqueles


referentes aos gêneros da esfera acadêmica, os quais os estudantes necessitam ler
e produzir por estarem também nela, tais como artigos, resumos, resenhas,
ensaios e monografias. Esses são ainda classificados como de prestígio, isto é, mais
elaborados, o que Bakhtin (2011) entende como gênero secundário do discurso,
em situação de comunicação culturalmente mais complexa e evoluída, como o
teatro, o romance, o discurso ideológico e o discurso científico.
Ao pensar na dimensão formadora dos letramentos acadêmicos voltados
para o letramento docente, torna-se relevante refletir sobre as áreas de Educação
e Letras, no caso específico deste estudo. Valsechi e Pereira (2016, p. 437), quanto
à implicação dos saberes acadêmicos na formação docente, avaliam que:

Para que a universidade esteja voltada à função a ela atribuída de


formação do profissional docente, a nosso ver, é preciso romper
com a tradicional postura que toma os saberes acadêmicos como
ponto de partida ou chegada [...], e buscar formas de proporcionar
a (re)construção de conhecimentos docentes a partir das suas
demandas profissionais, na articulação entre saberes e práticas de
ambas as esferas (acadêmica e profissional). (VALSECHI;
PEREIRA, 2016, p. 437, grifo nosso)

Para os autores, as instituições de ensino superior têm papel fundamental


nessa apropriação de saberes e, por isso, devem vislumbrar uma posição mais
ativa no que tange à construção de conhecimentos diversos, partindo das
necessidades profissionais, numa articulação entre teoria e prática. Contudo, o
que se vem observando é um distanciamento desses espaços, tidos como práticas
dissociadas, seja no âmbito acadêmico, seja no escolar.
Lea e Street (1998, 2014) e Russel (2009) comentam que essas dificuldades
são encontradas e vivenciadas pelos discentes, porque as convenções que regem
o contexto acadêmico são distintas daquelas que orientam o Ensino Médio, ou
seja, maneiras de agir e interagir, entre outros aspectos, são específicos de cada
meio. Além disso, de acordo com os autores, os graduandos se deparam com
inúmeras práticas letradas distintas daquelas que faziam parte de outros níveis de
154 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

escolarização, bem como de outros espaços pelos quais circularam antes de


ingressar na academia.
No que tange especificamente aos cursos de licenciaturas, tal
problemática se torna ainda mais preocupante, pois a prática do ensino e da
pesquisa é parte constitutiva do cenário docente. Nesse sentido, Souza e Bassetto
(2014) enfatizam que o conhecimento dos gêneros textuais acadêmicos, quanto
às suas características estruturais, discursivas, pragmáticas e retóricas, é um dos
meios que instrumentalizam os aprendizes para a prática da pesquisa, reflexão
crítica e formação como um professor/pesquisador.

3. Metodologia

Entendendo que o letramento acadêmico e o docente precisam estar


interligados e em intercâmbio, se faz imprescindível a reflexão acerca da
importância de uma formação docente de qualidade, no que se refere ao ensino
superior, e que tenha como consequência a excelência na prática em sala de aula
da educação básica. É importante enfatizar que os letramentos acadêmicos
ocorrem por meio das práticas de ler-escrever na universidade, enquanto o
letramento docente vincula-se às práticas situadas na escola, as quais precisam
colocar-se em comunicação, de modo que ambas caminhem no sentido das
práticas de produção/ transformação/ reconstrução do conhecimento, colocando
o professor das escolas públicas brasileiras no lugar de professores que pesquisam,
que leem criticamente, que escrevem, práticas essas essenciais à sua formação e
às suas variadas formas de engajamento social.
Apesar disso, Fiad (2017, p. 88) conclui que “a pesquisa sobre a escrita
acadêmica e sobre o seu ensino é bem recente no Brasil e não conheço nenhum
levantamento sobre as tendências nessas pesquisas”. Por isso, esse trabalho
pretende iniciar essa proposta de investigação. Visando, então, a um
levantamento das principais tendências da produção científica brasileira sobre
letramento acadêmico na formação de professores, essa pesquisa considerou
como metodologia a análise bibliográfica do tipo estado da arte, cujo desafio é o
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |155

de mapear e discutir a produção acadêmica em diferentes áreas do conhecimento.


Para isso, elencaram-se os alguns procedimentos, tendo como base o banco de
teses da CAPES, no contexto brasileiro do período de 2013 a 2017, na área de
Educação e Letras.
Nesse primeiro momento da pesquisa, levantaram-se, com base na
palavra-chave ‘letramento acadêmico’, os trabalhos atinentes ao tema na
plataforma supracitada, com posterior leitura e análise dos resumos, com vistas a
mapear as teses e dissertações que versem sobre letramento acadêmico na
formação de professores. Num segundo momento, houve a leitura das
introduções, para que fossem possíveis a tabulação dos dados em quadros e a
quantificação dos trabalhos identificados por área. A partir desse levantamento
inicial, pôde-se ainda reconhecer as instituições de ensino superior em que os
trabalhos foram desenvolvidos, bem como os orientadores.
Posteriormente, objetiva-se a leitura e a análise dos trabalhos selecionados
de modo integral, salientando as tendências dessas produções no que tange ao
tema do letramento acadêmico na formação docente, para tabular esses dados em
novos gráficos e quadros, buscando uma análise e reflexão acerca da necessária
continuidade e aprofundamento da temática. Cabe informar que esses futuros
levantamentos serão realizados e publicados ulteriormente.

4. Discussão dos resultados

Tendo em vista as dissertações e teses selecionadas para análise desse


estudo no período de 2013 a 2017, no banco de teses da CAPES, observou-se que
apenas 12 trabalhos versam sobre a temática do letramento acadêmico na
formação docente, sendo, desse total, 8 publicados na área de Educação e 4, na
área de Letras. Tais dados podem ser observados no Quadro 1.
156 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Quadro 1: Levantamento quantitativo de trabalhos:


Curso/ Ano 2013 2014 2015 2016 2017 TOTAL:
Total/ T R T R T R T R T R
Relacionados

Educação 24 1 241 0 238 1 159 2 163 4 8


6
Letras 13 1 142 0 139 2 144 1 0 0 4
5
Numa investigação mais específica, percebe-se que, no total, foram
publicadas 2 teses e 6 dissertações na área de Educação. Já em Letras, foram
publicadas 1 tese e 3 dissertações.
Por um lado, no ano de 2013, ano do início do levantamento dessa
pesquisa, foram publicados 2 trabalhos, enquanto no ano de 2014, houve uma
lacuna, visto que não foram encontrados trabalhos nesse período. Por outro lado,
foi visível o aumento do número de estudos sobre a temática no ano de 2017, na
área de Educação, com 4 dissertações.
Nesse levantamento, também se observou uma disseminação desses
trabalhos pelas universidades do Brasil, havendo estudos nas regiões Norte,
Nordeste, Sudeste e Sul, com predominância na Universidade Regional de
Blumenau e na Universidade Federal de Santa Maria, sendo 3 dissertações
publicadas em 2017 na primeira instituição e outras 2 dissertações publicadas em
2015 na segunda.
Numa dimensão mais aprofundada sobre o tema em análise, os trabalhos
selecionados demonstram, como preocupação geral, a baixa interface entre os
letramentos acadêmicos e a formação docente, tendo em vista que é um tema
recente e pouco explorado pelo próprio meio acadêmico. Kleiman (2008) enfatiza
que os fatores que contribuem para essa instabilidade na interlocução entre a
universidade e a escola são as “complexas relações entre o professor e os órgãos
que formam e regulam a carreira docente, entre as quais a relação quase
simbiótica que existe entre escola e academia, e que se manifesta de maneiras
potencialmente empobrecedoras para o professor” (KLEIMAN, 2008, p. 489).
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |157

Também vale considerar a percepção dos pesquisadores dos estudos


selecionados de que o ensino dessa escrita é defasado, considerando que o ensino
superior exige uma postura desconhecida pelos ingressantes universitários.
Marinho (2010) esclarece que há bastantes pesquisas sobre o ensino-aprendizado
da leitura e da escrita no ensino fundamental e médio, no Brasil. Entretanto, a
escrita acadêmica não tem recebido a atenção na universidade, tanto do ponto
de vista do ensino, como do objeto de pesquisa. Da mesma forma, Street (2014),
desde os anos 1990, tem se debruçado sobre essa questão e enfatiza que o
letramento é um conceito multifacetado, mas que se alterou ao longo do tempo
de modo a se tornar mais adequado às demandas sociais estabelecidas nas relações
dialógicas das práticas humana.
Além disso, dentre os gêneros textuais presentes nesse contexto, são
elencados as resenhas, os relatórios de estágio, os resumos acadêmicos, os projetos
de pesquisa e os relatos de experiência como os mais recorrentes e comuns à
graduação em licenciatura. Dorsa (2013) explica que os gêneros acadêmicos são
complexos e plurais, pois “o texto científico materializa-se por meio de gêneros
diferentes, tais como: 1- gêneros didáticos: resumos, resenhas, relatórios,
projetos, apresentação de trabalhos orais e escritos e outros; 2- gêneros de
divulgação: artigos, resenhas, ensaios; 3- gêneros de conclusão e/ou aquisição de
grau: monografia, ensaio, dissertação, tese, memorial” (DORSA, 2013,
p.104/105).
A questão da escrita tem se apresentado como uma atividade distanciada
da realidade dos discentes, que demonstram dificuldades ao produzir seus
trabalhos, porque não sabem o modo pelo qual devem fazer uso da língua. Silva
(2014) considera que a escrita acadêmica “desempenha inúmeras funções na
universidade, assim como a não acadêmica também exerce suas funções nos
diversos domínios sociais” (SILVA, 2014, p. 17). Portanto, a escrita no meio
acadêmico constrói papéis discursivos capazes de potencializar as práticas de
letramento do aluno.
158 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

5. Considerações finais

Tendo em vista a discussão em debate, mostra-se relevante a reflexão


sobre a importância do letramento acadêmico na formação de professores, como
parte fundamental do desenvolvimento profissional. Com isso, pesquisar os
principais temas e questionamentos relativos à caminhada acadêmica acerca
dessa discussão é necessário para a ampliação do conhecimento nessa área.
Assim, as principais tendências da produção científica brasileira sobre
letramento acadêmico na formação de professores, publicadas no banco de teses
da CAPES, nos últimos cinco anos, tem sido identificar os principais gêneros
acadêmicos com os quais os alunos lidam, já que estão inseridos no sistema de
atividades da universidade, bem como a tomada de consciência sobre o
desenvolvimento da escrita acadêmica, buscando identificar o envolvimento
desses discentes em práticas de ler-escrever que constituem a trajetória de
letramento.
Além disso, as principais questões levantadas sobre a relação entre
letramento acadêmico e letramento docente estão voltadas para a compreensão
das relações entre práticas de letramento com a formação de identidades
docentes. Assim, as disciplinas cursadas na universidade mostram sua relevância
ao possibilitar a contribuição de construção dos saberes docentes adquiridos por
meio das práticas de letramento que se apresentam de forma diversificada. Tal
tese apoia-se, então, na perspectiva de que a formação inicial possibilita aos
professores a vivência de múltiplos letramentos, no sentido de formá-los como
sujeitos letradores.
No entanto, o maior desafio lançado a esse debate tem sido o conflito
vivenciado pelos alunos no ensino propriamente dito da escrita acadêmica,
principalmente aos jovens recém- chegados à universidade. É de ciência que
esses ainda necessitam adaptar suas escritas no intuito de cumprir as exigências
institucionais, devido ao desconhecimento de normas, expectativas e
funcionamento de gêneros do contexto acadêmico.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |159

Os desafios e as contribuições desse debate acerca do letramento


acadêmico para a formação do professor têm como traço norteador a proposta de
impacto significativo nas concepções dos licenciandos enquanto futuros
professores, contribuindo para o intercâmbio de suas experiências com a vivência
universitária. Dessa forma, a prática docente e a troca de conhecimentos
proporcionam a reflexão sobre os problemas e as possibilidades de melhoria para
a educação.
Por fim, ao pensar sobre a dimensão da inter-relação entre letramentos
acadêmicos e formação docente, é preciso compreender que ainda existem
questões a serem aprofundadas e refletidas. Sob esse aspecto, Kleiman (2006, p.
89) finaliza enfatizando a necessidade de “sinalizar, para as universidades, as
transformações necessárias para formar professores que façam a diferença, se o
que exige dela é que forme alunos que façam a diferença no mundo dominado
pela escrita”.

REFERÊNCIAS

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KLEIMAN, A. B. Os estudos de letramento e a formação do professor de língua


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Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |161

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162 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

ARTILHARIA NO JOGO DO DISCURSO: SABERES E ESTEREÓTIPOS EM


CHARGES SOBRE A COPA DO MUNDO DE 2018

Eveline Coelho Cardoso (UERJ)

1. Aquecimento

Entre os meses de junho e julho de 2018, a Rússia sediou a vigésima


primeira edição da Copa do Mundo da Federação Internacional de Futebol (Fifa),
recebendo mais de três milhões de torcedores em seus estádios10. Sabemos que
essa competição agita as nações de todo o globo, participantes ou não diretas da
disputa, que aclamam os craques que as representam ou com quem se identificam,
ansiosas por vê-los erguerem vitoriosos o prêmio máximo do futebol.
Sob a perspectiva da análise do discurso semiolinguística
(CHARAUDEAU, 2005; 2008a), o presente trabalho tem o objetivo de refletir um
pouco sobre o universo da Copa do Mundo Fifa 2018 como propósito
comunicativo do discurso midiático, no qual as diversas instâncias de produção
buscam, basicamente, informar esse evento, tornando-o visível sob uma lógica
simbólica permeada de representações sociais. O objeto de estudo que nos
permitirá essa reflexão é o gênero charge, que está sujeito ao contrato
comunicativo próprio das mídias, fornecendo ao leitor uma abordagem pessoal e
crítica de determinados fatos sociais (CHARAUDEAU, 2010). Dessa forma, para
além do interesse midiático básico de informar, o chargista tem liberdade para
explorar mecanismos favoráveis à visada de captação de seu público.
Do francês charger, a palavra charge significa “carregar, atacar
violentamente”, o que já dá o tom dessas crônicas verbo-visuais nascidas no
universo jornalístico ilustrado dos séculos XVIII e XIX. Contemporaneamente,
com os avanços das tecnologias digitais de informação, tal gênero extrapolou seu
contexto original impresso e vem ganhando outros suportes, sendo cada vez mais

10 Dados do site R7. https://esportes.r7.com/prisma/copa -2018/futebol-em-numeros/media-de-


publico-da-copa-2018-e-menor-que-a-do-brasil-em-2014-16072018 (Data: 23/1/2019).
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |163

replicado em inúmeras páginas e redes sociais onde atinge um público


incalculável.
A conquista de espaços que permitem à charge se perpetuar para além do
circunstancial que lhe é inerente deve-se à facilidade com que promove a
identificação do leitor, convidando-o a compartilhar suas fantasias transgressoras
(TEIXEIRA, 2005). O foco da análise aqui desenvolvida é justamente o
compartilhamento dessa carga ideológica explorada pelas charges em sua
essência, que, nas peças que nos servem como corpus, diz respeito a
representações estereotípicas de algumas nações participantes do mundial de
futebol masculino. Interessa-nos, pois, descrever esses estereótipos como uma
importante peça de artilharia no projeto de comunicação do chargista,
observando sua materialização na estrutura multimodal de que se constrói esse
gênero.

2. Entrando no campo do discurso

A Teoria Semiolinguística de análise do discurso foi concebida por Patrick


Charaudeau (2005, 2008a) a fim de responder a um duplo enjeu : colocar em
destaque as funções dos diferentes sujeitos nos atos de linguagem e, ao mesmo
tempo, manter uma base linguística que apoie suas interpretações. Propõe-se uma
abordagem do texto que desvende os sentidos pretendidos por seu enunciador,
com a premissa de que a linguagem é mobilizada por sujeitos concretos e
historicamente situados, que protagonizam atos comunicativos manifestos em
textos por meio dos quais semiotizam o mundo.
Charaudeau (2005, p.13) defende que, no estudo da linguagem em uso, é
preciso reconhecer aspectos mais externos, ligados à ação e à influência, e também
aspectos mais internos, associados à construção do sentido e do texto.
Diferentemente de outras vertentes de análise do discurso, a semiolinguística
confere aos sujeitos um papel central na teoria, atribuindo-lhes uma
intencionalidade que os impele a se colocarem na chamada mise-en-scène
discursiva.
164 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Nessa perspectiva, cria-se um sujeito que empreende conscientemente


uma aposta em direção ao outro, lançando mão dos diferentes recursos
disponíveis na língua em prol de estratégias elaboradas para alcançar seus
objetivos na troca. O sujeito aqui se torna autor e responsável pelo seu dizer, não
se desprezando, contudo, as influências que possa sofrer do meio social e cultural.
A aposta comunicativa na qual se envolve o chargista gira em torno da
elaboração de um retrato de fatos e situações do domínio cultural, esportivo,
político etc., contemporâneos de um determinado público situado, por sua vez,
em determinado contexto sócio-histórico. Não há aqui o comprometimento com
a realidade e credibilidade que, geralmente, caracterizam o texto midiático
jornalístico, mas busca-se construir uma representação dos fatos bastante
particular, pelo viés do humor e da ironia.
Como já pontuamos, enquanto gêneros textuais, as charges integram o
projeto de fala de um enunciador midiático, que representa a chamada instância
de produção, a qual, por sua vez, se dirige a uma instância de recepção . O
enunciador midiático é movido por duas visadas enunciativas interdependentes:
a visada de informação, presente em todo texto de natureza midiática; e também
a visada predominante de captação, ligada ao interesse em despertar o
interlocutor/leitor para aquilo que é dito.
Segundo Charaudeau, o jornalista se equilibra entre os papéis de
pesquisador-fornecedor da informação e o de descritor-comentador na
construção de seu discurso. Embora esteja também envolvido com a questão das
fontes, do rigor e da coerência jornalísticos, o chargista empreende uma
relativização desses papéis, uma vez que emite um ponto de vista sobre o fato
relatado nas charges. Esse enunciador interpreta a realidade que quer retratar,
ressaltando os aspectos que acha mais relevantes e extrapolando, muitas vezes,
suas proporções reais, como é comum nas caricaturas de que muitos lançam mão
na produção de seu discurso imagético.
A finalidade do contrato midiático é, portanto, relatar o que ocorre no
espaço público, articulando as visadas destinadas a informar – ou fazer-saber – e
captar – ou fazer-sentir. É na visada informativa que se originam os confrontos
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |165

da instância midiática com seu dever de credibilidade, pelo qual se compromete


com mostrar a “verdade” dos fatos. Já a visada de captação prende a instância
midiática à necessidade de emocionar o público, expressar afetividade para
interessar o receptor.
Nesse sentido, Charaudeau alerta para uma contradição durante a
produção do discurso das mídias, uma vez que os efeitos de paixão e racionalidade
se entrecruzam num processo de tensão. Para o autor, “as mídias não ignoram
isso, e seu jogo consiste em navegar entre esses dois polos [credibilidade e
captação] ao sabor de sua ideologia e da natureza dos acontecimentos.” (2010,
p.93)
Em sua aposta mais atrativa do que informativa, o chargista constrói uma
relação com um objeto de mundo por meio de um processo de transformação e
transação, em que um “mundo a comentar” passa por um trabalho de construção
de sentido que o constitui em “mundo comentado”, dirigido a um destinatário
cuja identidade se postula. Dessa forma, o acontecimento, no mundo a comentar,
recebe o olhar de um sujeito que o integra num sistema de pensamento e o torna
inteligível, baseado em seus saberes de crença e de conhecimento do mundo
(Charaudeau, 2008b).
Constrói-se, assim, uma relação de parceria entre as instâncias produtora e
receptora, na qual ocorre um efeito de “espelho”: os parceiros sintonizam-se pelo
viés das representações supostamente partilhadas entre si, as quais circulam
livremente sendo levadas pelos discursos. É esse o ambiente favorável à chamada
opinião pública, que, segundo Charaudeau (2008b), é atravessada por uma
dramatização na qual se percebem projeções de imagens cristalizadas de sujeitos
e acontecimentos capazes de despertar efeitos discursivos patêmicos ou
humorísticos, por exemplo, naquele que se informa.

(...) persuadir um auditório consiste em produzir nele sentimentos


que o predispõem a partilhar o ponto de vista do orador. O
sentimento não deve ser confundido com sua expressão (mesmo se
esta puder desempenhar um papel determinado), será considerado
como um efeito possível que poderá suscitar uma determinada
166 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

ativação do discurso junto a um determinado público, em uma


determinada circunstância (Charaudeau, 2007, p.242).

Os efeitos de sentido pretendidos pelo enunciador de textos como as


charges podem, assim, ser mapeados na materialidade textual através das escolhas
verbais e não verbais empreendidas por ele. Tais escolhas sustentam-se, pois, em
representações sociais que também se deixam ver na maneira como são
construídos os diversos fatos e tipos sociais que figuram no texto chargístico.

3. Um esquema tático: representações, imaginários e estereótipos

A partir da ideia de representação como uma ação que implica nossas


faculdades mentais e também mobiliza elementos contextuais e coletivos, a
Psicologia Social cunhou o termo representação social, integrando aos aspectos
cognitivos fatores de natureza sociológica. Na versão cunhada por Serge
Moscovici (2013), as representações sociais são fenômenos de caráter plástico que
se relacionam a um modo particular de compreender e se comunicar que cria
tanto a realidade quanto o senso comum. Trata-se de uma “rede” de ideias,
metáforas e imagens mais ou menos interligadas livremente, que orientam nossa
produção de respostas diante de tudo o que é visível. Segundo o autor, mais do
que ‘uma generalidade vazia’, uma representação social, sendo uma representação
do mundo, torna-se o próprio mundo para aqueles que a compartilham
(MOSCOVICI, 2013, p.185).
Para Jodelet (2001, p.22), as representações sociais são “uma forma de
conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e
que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social”.
São sistemas de representação que ligam os sujeitos aos objetos, regendo sua
relação com o mundo e com os outros e organizando suas condutas. Mas são
também fenômenos cognitivos, à medida que envolvem a identificação e pertença
dos indivíduos em relação a domínios afetivos, normativos, empíricos, práticos e
comportamentais, socialmente inculcados e transmitidos pela comunicação.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |167

Para além da manipulação do pensamento e da estrutura da realidade, a


verdadeira finalidade das representações, segundo Moscovici, é tornar familiar
algo não familiar. Ou seja, criamos representações com o intuito mais primitivo
de tornar comum e real algo que nos é dito ou feito e soa incomum e estranho,
escapando dos nossos modelos e categorias internalizados. Buscamos, por meio
das representações, ter a impressão segura e reconfortante do já dito ou já
conhecido (MOSCOVICI, 2013, p.58).
Charaudeau (2007) apropria-se do conceito de representações sociais pela
via do que chama de imaginário. Com o foco na problemática da análise do
discurso, o autor parte do conceito elaborado por Moscovici para propor-lhe um
novo tratamento:

De minha parte, eu retomarei, portanto, esta noção, definindo-a,


não como um conceito, mas como um mecanismo de construção de
sentido que modela, formata a realidade em real significante,
engendrando formas de conhecimento da ‘realidade social’. Nessa
perspectiva, as representações sociais não são um subconjunto dos
imaginários ou das ideologias, como outros o propõem, mas um
mecanismo de engendramento de saberes e de imaginários (...)
(CHARAUDEAU, 2007, p.3).

Na proposta do idealizador da teoria semiolinguística, o imaginário é


concebido como um modo de apreensão do mundo nascido no seio das
representações sociais. Sendo engendrados pelos discursos, os imaginários
resultam da atividade afetivo-racional de simbolização do mundo mediada pela
intersubjetividade e depositada na memória coletiva, e têm uma dupla função de
criação de valores e de justificação da ação.
Segundo Charaudeau, o imaginário pode ser qualificado como social,
conforme se produza em um domínio de prática social, ou pessoal, conforme se
refira à história e às representações de cada um. Em um ou outro caso, é sempre
variável, de acordo com a maior ou menor extensão de um grupo, com o jogo de
comparação possível entre os grupos ou com a memória coletiva de cada grupo,
permeada por sua história.
168 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Com efeito, nessa perspectiva, o imaginário é qualificado como


sociodiscursivo, pondo em evidência que resulta da atividade de representação
que constrói os universos de pensamento e os lugares de instituição de verdades
por meio da sedimentação dos discursos explicativos sobre os fenômenos do
mundo e sobre os comportamentos humanos. O imaginário manifesta-se, pois,
discursivamente, alimentando-se de um universo de saberes diversos de crença e
conhecimento, que entram em jogo a fim de marcar as identidades dos sujeitos e
dos grupos envolvidos nas trocas comunicativas.
O conceito de imaginário é preferível, para Charaudeau, ao de estereótipo,
que o analista francês considera mais difícil de conceituar dada a concorrência
com muitos outros termos do mesmo campo semântico, como clichê, lugar-
comum, ideia pré-concebida, preconceito etc., os quais não se sabe bem como
diferenciar. Todos esses termos recobrem algo que é dito de forma repetitiva e
que, por conseguinte, torna-se um conteúdo fixo e simplista, que desempenha
uma função social identitária, mas, ao mesmo tempo, está sujeito à desconfiança
quanto à verdade do que diz.
Por exemplo, dizer que os intelectuais não gostam do contato dos corpos é
um estereótipo próprio dos esportistas, mas isso não significa que o que é dito seja
completamente falso. Nesse sentido, diz Charaudeau: “Deve ser dada ao
estereótipo a possibilidade de dizer qualquer coisa de falso e verdadeiro, ao
mesmo tempo” (CHARAUDEAU, 2007, p.1).
Sendo, então, um julgamento de um ou vários sujeitos sobre o(s) outro(s),
o estereótipo é marcado por duas propriedades: a refração, porque dá a conhecer
uma característica desviante da alteridade, voltando-se para o exterior do sujeito;
e a reflexão, que revela qualquer coisa de verdadeiro sobre o sujeito, retornando
para ele próprio. Diante dessa ambiguidade, só se pode considerar o estereótipo
uma noção central na análise dos discursos sociais se a tomarmos por essa
possibilidade de revelar tais e quais sujeitos, dentro de tais e quais contextos
situacionais.
Amossy e Pierrot (2004), na obra que dedicaram ao estudo dos estereótipos
e dos clichês, defendem que esse é um objeto transdisciplinar que, além de
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |169

favorecer o estudo das interações sociais, da relação dos discursos com o


imaginário e, em um nível mais amplo, da linguagem com a sociedade, convida à
investigação sobre a imagem, razão pela qual é imprescindível abordá-lo ao tratar
de charges.
Sendo uma representação social, o estereótipo é um esquema coletivo
cristalizado que corresponde a um modelo cultural dado e desempenha duas
funções construtivas importantes: primeiramente, promove a coesão e unidade
de um grupo, protegendo-o contra “a ameaça de mudança” (AMOSSY E
PIERROT, 2004, p.47); em segundo lugar, é fruto de procedimentos de
categorização e esquematização da realidade indispensáveis à cognição, sendo
visto como um fenômeno normal, razoável e benéfico (p.69).

4. O estereótipo como estratégia de craque

Segundo Ferrés (1998, p.136), os estereótipos são representações sociais


institucionalizadas, reiteradas e reducionistas, cujo objetivo é parecerem formas
de realidade e não formas de discurso. Jogam com a percepção seletiva,
determinando uma visão metonímica de um objeto, pessoa ou grupo, tomado
somente a partir dos traços negativos pelos quais se convencionou percebê-lo.
Nesse sentido, diz o autor, “são uma das manifestações mais claras da ideologia de
um discurso”, estando a serviço da racionalização do comportamento de um grupo
em relação a outro.
Uma vez que se baseiam em aspectos extraídos efetivamente da realidade,
os estereótipos são, ao mesmo tempo, verdadeiros e falsos, mas traem o real com
sua simplificação generalizante, que nega sua complexidade e contraditoriedade
constitutivas (FERRÉS, 1998, p.136). Sendo assim, intentam promover uma
simplificação, facilitar uma interpretação cômoda e reconfortante de uma
realidade ameaçadora, causar impacto emocional e satisfazer as expectativas dos
interlocutores:

O estereótipo pressupõe [...] a vitória do primário sobre o


secundário, do inconsciente sobre o consciente, do emocional sobre
170 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

o racional. É o triunfo da mentira sobre a verdade porque a verdade


é complexa. É o triunfo da comodidade sobre o esforço porque a
verdade exige um esforço para o equilíbrio, para o contraste, para a
precisão (FERRÉS, 1998, p.138).

Lysardo-Dias (2007a; 2007b) reforça que o estereótipo representa a força


do coletivo, que se manifesta estabelecendo sentidos e convicções sobrepostos à
subjetividade do discurso. Assim, corresponde à dimensão cultural da atividade
discursiva e participa da doxa11, de modo que seu emprego provoca um efeito
polifônico, uma interdiscursividade na construção do discurso verbal ou visual.
Portanto, “falar em estereótipos é considerar a premência de um dizer anterior
inevitável na construção de novos dizeres” (LYSARDO-DIAS, 2007b, p.27).
O traço interdiscursivo do estereótipo revela seu papel como condição de
leitura, já apontado por Amossy e Pierrot, para quem não há estereótipo sem
atividade leitora, tampouco há atividade de leitura possível sem estereótipos
(AMOSSY e PIERROT, 2004, p.79). É por meio do reconhecimento e da ativação
dessas representações cristalizadas que se podem construir sentidos para as
lacunas, rupturas e implícitos de um texto, para os quais não basta a competência
linguística específica:

Para poder decifrar a obra, é necessário que o leitor domine um


dicionário de base (o léxico da língua utilizada), mas também que
possua uma competência enciclopédica que abarque esquemas pré-
fabricados. Precisamente neste ponto intervém o estereótipo
(AMOSSY e PIERROT, 2004, p.80).

Tomado a partir de uma ambiguidade mais positiva, o estereótipo pode ser


concebido como expressão e imagem de uso comum, retomada incessantemente
e dinamizada pelo processo comunicativo e criativo de modo geral.
Conforme Lysardo-Dias (2007b), orientada por um princípio
dialógico/polifônico, a mídia incorpora sequências textuais e também material

11Palavra de origem grega associada à opinião. Corresponde a um sentido comum, um conjunto de


representações socialmente predominantes, cuja verdade é incerta, tomadas, mais frequentemente, na
sua formulação linguística corrente (CHARAUDEAU E MAINGUENEAU, 2006, p.76).
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |171

visual de outros domínios do conhecimento na intenção de captar o leitor. Os


estereótipos participam dessa estratégia, sabendo que quanto mais conhecida for
a referência a eles, menor será o esforço cognitivo e maior será a garantia de
reconhecimento e incorporação do discurso citado.
No dizer de Ferrés (1998, p.144), a publicidade, por exemplo, promove seus
efeitos socializadores apoiada nos estereótipos e no mecanismo da sedução, que
induzem à crença e à ação a partir da emoção mais do que da argumentação.
Assim, o estereótipo entra no jogo midiático de captação como elemento
polifuncional: favorece a percepção do conhecimento, apresenta uma “leitura” já
assimilada do real, e aproxima os sujeitos interlocutores, familiarizados por já
partilharem, de antemão, uma visão de mundo ou valores comuns (LYSARDO-
DIAS, 2007b, p.29).
Como gênero midiático jornalístico, a charge também se apoia nos
estereótipos a fim de sustentar seus propósitos de informação e captação. Os
modelos estruturantes de seu tecido verbo-visual evidenciam conhecimentos de
crença e de opinião do chargista, que resultam de uma avaliação e de um
posicionamento em relação aos fatos do mundo. Construindo a realidade a partir
das lentes de seus imaginários estereotipados, o enunciador da charge transmite
uma realidade configurada de maneira a sustentar seu ponto de vista e seduzir o
leitor a compartilhá-lo.
Vejamos, a seguir, de que maneira dois cartunistas brasileiros exploram
representações estereotipadas de equipes participantes da Copa do Mundo de
2018 e qual a contribuição desses modelos cristalizados para o êxito no jogo
comunicativo.

I - O sabor da vitória

No dia 13 de novembro de 2017, uma das seleções favoritas ao título da


Copa do Mundo de 2018 – Itália – era eliminada na partida de repescagem
europeia que decidia as últimas vagas do mundial. O duelo entre a tetracampeã,
172 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

que há 60 anos não ficava fora da competição, e a Suécia, cuja última participação
no evento foi em 2006, foi assim representado pelo cartunista J. Bosco:

Charge 1 – João Bosco (Ludopédio)


Figura 1
Fonte: <https://www.ludopedio.com.br/museu-galeria/suecia-elimina-italia-da-copa/> Acesso: 27 de
jan. de 2019

Considerando os dados situacionais, mais externos ao ato de linguagem,


além da autoria do jornalista, cartunista e ilustrador João Bosco Jacó de Azevedo,
58, natural de Belém do Pará; é preciso levar em conta que essa charge foi
publicada no site Ludopédio, um portal acadêmico vinculado à Universidade de
São Paulo, que reúne informações e trabalhos diversos sobre o futebol do Brasil.
A peça em análise está disponível na aba Memória, na categoria Museu, e conta
com a seguinte legenda do site: “Suécia elimina Itália da Copa. Com uma vitória
por 1 a 0 em casa e um empate por 0 a 0 fora de casa, a Suécia passou pela Itália e
garantiu a vaga para a Copa do Mundo FIFA 2018. Os italianos ficaram de fora do
Mundial pela primeira vez desde 1958.”
É possível que o texto tenha sido publicado em outros veículos (como
algum jornal impresso ou páginas pessoais do cartunista) o que, naturalmente,
modificaria alguns aspectos da análise. Por ora, tendo em vista a situação no
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |173

momento, levaremos em conta um público destinatário bastante heterogêneo –


como é típico dos ambientes virtuais –, mas interessado na temática do futebol.
Além disso, trata-se de um suporte que permite o acesso ao texto em qualquer
tempo, certa interação com o enunciador (comentários dos internautas, por
exemplo) e o compartilhamento em redes sociais.
O propósito temático, como sabemos, é o resultado de uma das partidas da
repescagem europeia da Copa 2018, tomado, aqui, como um acontecimento social
“saliente”, fruto de um desequilíbrio no estado do mundo fenomenal. Tal
desequilíbrio é a derrota da Itália, que, a julgar por seu histórico nos mundiais de
futebol, esperava-se que saísse vitoriosa. O enunciador midiático, tendo
percebido essa modificação na ordem das coisas esperadas, constrói e compartilha
esse acontecimento potencialmente atual, social e imprevisível, agregando-lhe
pregnância e inscrevendo-o numa problematização (CHARAUDEAU, 2010).
Focalizando a dimensão discursiva do texto, segundo Charaudeau (2010,
p.177), o fazer saber jornalístico implica, necessariamente, uma descrição do
acontecimento para explicá-lo. Quanto aos modos de organização do discurso,
notamos, na Charge 1, que a parcela verbal do texto – a legenda “Suécia elimina
Itália na Copa” – coloca-se de maneira descritiva em relação à imagem,
procurando nomear, localizar e situar os personagens em uma posição espaço-
temporal. A parcela visual, por sua vez, serve ao componente qualificar da
encenação descritiva, expressando a subjetividade do chargista ao retratar, icônica
e plasticamente, a partida entre Itália e Suécia por meio da cena de uma refeição.
Nota-se, ainda, uma narrativa implícita nesse jogo entre imagem e palavra,
a partir da qual inferimos tensões e aplicamos uma lógica axiologizante ao
universo descrito. O jogador sueco é o actante oponente do jogador italiano, o
qual sofre a ação, sendo afetado negativamente. A construção visual mostra que a
Suécia está, literalmente, preparando-se para ingerir a Itália, representada, não
por acaso, por uma porção de macarrão.
Na dimensão discursiva da Charge 1, o acontecimento comentado é, pois,
encenado a partir de um fazer simples, que se concretiza por meio de uma
comparação, cujo objetivo é “iluminar” a explicação (CHARAUDEAU, 2010,
174 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

p.181). Tal procedimento constrói o cenário da disputa entre Suécia e Itália a


partir de saberes de crença baseados numa opinião coletiva a respeito das nações
em jogo, evidenciando o estereótipo: os italianos são famosos pela culinária de
massas e vinhos, e os suecos, sendo um povo nórdico, apresentam um tipo físico
de homens geralmente loiros, altos e fortes.
Analisando a dimensão mais superficial do texto, que diz respeito aos
arranjos concretos dos signos, notemos que a legenda funciona como uma
intervenção direta do enunciador dentro da cena, que direciona o olhar e a
interpretação do leitor para o que a imagem mostra, ancorando seus sentidos
dentro do universo polissêmico visual. A legenda – semelhante a uma manchete
de jornal – complementa a imagem, orientando a produção de uma metáfora
visual (FORCEVILLE, 2008) em torno do verbo “eliminar”, traduzido,
visualmente, com o sentido de “comer”, “papar” o adversário.
A cena é enquadrada em um plano aproximado, que ressalta, na parte
central, o jogador sueco da cintura para cima, favorecendo sua identificação
icônica. Os signos plásticos reforçam, ainda, o contraste entre a nação vitoriosa e
a derrotada pelas dimensões dos personagens, sua expressão facial e as cores das
respectivas bandeiras: a Itália é evocada no verde da toalha, no branco do prato
de macarrão e no vermelho das estrelas que sinalizam a angústia do jogador
prestes a ser devorado; o pendão em azul e amarelo da Suécia está estampado na
camisa do outro jogador.
Fica clara, na representação de J. Bosco, a natureza metonímica do
estereótipo (FERRÉS, 1998), que consiste do pinçamento de determinados traços
de uma realidade a fim de representá-la de maneira mais fácil de ser assimilada.
Ademais, notemos que é bastante interessante a um chargista brasileiro
racionalizar, de forma diminuta e caricata, uma adversária de peso, tetracampeã,
com quem seu time não terá que se preocupar no mundial de 2018 graças à
atuação da forte e “gulosa” seleção sueca.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |175

II - O brinde do canarinho

A charge a seguir, de autoria do cartunista Mário Alberto, retrata a


eliminação da seleção alemã pela Coreia ainda na fase de grupos da Copa 2018,
ocorrida no dia 27 de julho. Vejamos a representação dada pelo chargista natural
do Rio de Janeiro a esse fato:

Charge 2 – Mário Alberto (Globo Esporte)


FIG_2
Fonte: <https://globoesporte.globo.com/futebol/copa-do-mundo/noticia/a-copa-do-mundo-em-18-
charges.ghtml>. Acesso: 27 de jan. de 2019

A peça em análise foi publicada no portal Globo Esporte, no dia


15/07/2018, juntamente com outras charges diversas sobre a competição. O
público esperado, nesse espaço, é diversificado e interessado em esportes de modo
geral.
A charge é acompanhada da seguinte legenda no site: “Com gostinho de
vingança da Copa passada, canarinho brasileiro celebra eliminação alemã”, o que
já revela por que o acontecimento mencionado é digno de nota e prenhe de
176 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

atualidade, socialidade e imprevisibilidade sob a perspectiva de Mário Alberto: a


tetracampeã, que derrotou o Brasil na Copa de 2014 no fatídico duelo dos 7 gols
a 1, deixava o mundial de 2018, ao passo que nossa seleção avançava para as
oitavas de final.
Quanto à dimensão discursiva, a charge se organiza, na parcela verbal, a
partir da fala do personagem que representa a seleção brasileira – um canário
animado, que se dirige diretamente ao leitor, fazendo o gesto de servir um pouco
de cerveja em um copo. O componente descritivo do nomear e do qualificar
aparece em referência à bebida como “cervejinha made in Korea”. É também
manifesto no rótulo da garrafa, que contém o adjetivo “eliminada”, aludindo à
Alemanha.
A referência não verbal à bandeira alemã, nesse sentido, complementa
visualmente o adjetivo “eliminada” no frasco da bebida. Além disso, os signos não
verbais também qualificam o personagem que fala como um representante da
seleção brasileira não apenas pela identificação com o canarinho – ave típica de
nossa fauna –, mas também pelo uniforme que veste com o emblema da
Confederação Brasileira de Futebol.
Infere-se, ainda, uma narrativa implícita à cena, na qual o protagonista
brasileiro é o actante que atua de maneira voluntária em benefício próprio, numa
comemoração motivada pela derrota da seleção alemã pela coreana. Sendo assim,
sob uma outra ótica, a Coréia pode ser considerada como aliada da seleção
brasileira, no sentido de “vingá-la” da derrota histórica que sofreu dos alemães
em 2014.
Na dimensão discursiva do texto, os estereótipos são novamente
convocados a fim de captar o leitor a também celebrar, juntamente com o
enunciador-chargista, o acontecimento que comenta. Na peça em análise, a
representação cristalizada em jogo é a da figura do canarinho em referência à
seleção brasileira, uma ave escolhida como mascote dadas as cores verde e amarela
de sua plumagem, as mesmas do uniforme do time. Além disso, outro traço
metonímico da cultura brasileira cristalizado na referência que se faz ao país na
charge é o hábito de beber cerveja, tão comum em nosso país tropical.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |177

No tocante à dimensão formal do texto, notemos que a figura estereotípica


e simbólica do canário amarelo ocupa a posição central da charge, sendo
enquadrada sob um plano médio ou aproximado, que dá bastante clareza aos
aspectos fisionômicos do personagem, ressaltando a alegria de sua comemoração.
Vale destacar, como já citamos, que a personagem convoca diretamente o leitor
com seu olhar, interpelando-o numa clara atitude alocutiva, que vai ao encontro
da visada de captação do chargista.
Trata-se de uma projeção do conhecido padrão brasileiro em época de
Copa do Mundo, a quem o enunciador da charge parece querer se reportar com
seu traço-texto: o tipo alegre, munido de uma “gelada” e vestido com a camisa da
seleção. Como postula Charaudeau (2007), o estereótipo entra em cena
desempenhando uma função social identitária, com suas propriedades de refratar
a alteridade desviante e, ao mesmo tempo, refletir algo verdadeiro sobre o próprio
sujeito enunciador e suas crenças.

5. Placar geral

No Discurso das Mídias, Charaudeau (2010, p.176) se refere à construção


do comentário midiático em oposição ao mero relato, mais objetivo, afirmando
que “o comentário é histérico”. O argumento do analista francês é que, embora
relatar e comentar sejam atividades intrinsecamente ligadas no fazer midiático,
enquanto o primeiro goza da “feliz liberdade” de solicitar apenas uma possível
identificação de quem se informa, o comentário implica diretamente o leitor,
obriga-o a tomar uma posição, atingindo-o diretamente de forma emocional.
Sendo um gênero opinativo, a charge eleva ao extremo a fórmula fazer
simples e ser motivador que caracteriza a encenação midiática do comentar. Com
esse objetivo, apela para os imaginários e estereótipos amplamente conhecidos do
grande público, produzindo uma dramatização que suplanta a subjetividade do
chargista e evoca a dimensão coletiva e compartilhada dos discursos em favor de
uma interdiscursividade mais potente, a que não podemos ficar insensíveis.
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No dizer de Spink (1995, p.9), as representações sociais “são valorativas


antes de serem conceituais; e respondem a ordens morais locais, ficando, como
tal, prenhes de afeto”. O apelo às representações estereotipadas é, pois,
fundamental para a garantia de sucesso na produção/interpretação do comentário
das charges, o que depende de uma ressonância. O estereótipo torna-se, pois, um
trunfo no esquema tático dos artilheiros do discurso chargístico, garantindo uma
goleada de sentidos em que todos saem vencedores.

REFERÊNCIAS

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180 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

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Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |181

O DIALOGISMO E A POLIFONIA NA PRODUÇÃO DE SENTIDOS EM CAPAS


DE REVISTAS

Gesseldo de Brito Freire (UERJ/FERLAGOS)

1. Introdução

Ao nos depararmos com um conjunto de publicações em capas de revistas,


somos levados a pensar em como os sentidos ali são produzidos, quais são as
estratégias de persuasão e de convencimento de que se valem os enunciadores
para alcançarem êxito perante o público que pretendem atingir. Que artifícios
linguageiros são vistos como recorrências capazes de provocar a atenção dos
leitores. Aliás, pensar a linguagem é, indubitavelmente, numa menção ao que nos
explica Bakhtin, se defrontar com dificuldades conceitos como o sentido.
Ao sentido, pode ser atribuída uma lista de abordagens, levando-se em
conta que a visão trazida pelos estudos bakhtinianos não se limita a aspectos
linguísticos e linguístico-literários, mas sim está relacionada a uma postura,
quanto à linguagem, que articula estética, ética e outros diferentes pressupostos
teóricos. Desse modo, pensar o que trazem as capas de revistas nos leva a
considerar que aquilo que se apresenta como uma informação, um novo dado, não
deve ser pensado tão somente a partir de um enfoque que se ancore em aspectos
voltados a elementos linguísticos que constituem o texto e, quando muito,
ancorados na sintaxe desses elementos na malha do texto.
Não há dúvida, portanto, de que é preciso um olhar mais crítico, uma vez
que os modos de dizer são, certamente, de grande relevância para os interesses
daqueles que propõem enunciar. É preciso “trabalhar a integridade concreta e
vida da língua e os aspectos da vida concreta do discurso” (CASTRO, 1997, p. 129),
o que revela o caráter dialógico do objeto da metalinguística, considerando
elementos extralinguísticos na construção do texto.
Numa recorrência a Koch (2013), podemos ainda dizer que o que se
apresenta não está em maior parte no texto, mas indubitavelmente fora dele.
182 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Nesse sentido, não somos capazes de formular um cálculo satisfatório sobre aquilo
que, periodicamente, lemos em diferentes capas de revistas, se não voltarmos
nossa atenção a plausíveis aspectos dialógicos na construção dos textos ali
publicados. Pensar nas recorrências linguageiras ali presentes é o mesmo que
considerar a ocorrência de um bom número de marcas enunciativas, de caráter
polifônico, contribuintes para a produção dos sentidos pretendidos por seus
enunciadores.
Como afirma Bakhtin (2003), não importa se trata como língua ou como
discurso, a linguagem empregada será sempre dialógica. Implica dizer, portanto,
que o não reconhecimento disso significa apagar a conexão existente entre a
linguagem e a vida.
Diferentemente, não seria. A linguagem, por ser dialógica, é construída no
embate de vozes que ocorre ao longo da enunciação. Assim como nada é adâmico
em nosso contato com o mundo (embora em maior parte essas corriqueiras
relações sejam de modo simplório, exigem de nós muitas vezes apurado engenho
para conseguirmos atingir nossos objetivos, produzir os sentidos necessários para
nossos enunciados, nossos textos, nosso agir sobre o mundo e por ele sermos
alcançados), assim também é quando estamos diante de capas de revistas, como a
edição 2334 e 919, de Veja e Carta Capital, respectivamente. Nelas, com alusão a
um possível processo de impeachment da então Presidente da República, Dilma
Roussef, é possível perceber que, o êxito da informação exige do produtor
requintes no trabalho com a linguagem, engenhos esses que passam pelos recursos
do Dialogismo e da Polifonia.

2. Dialogismo e polifonia

Em qualquer que seja a discussão sobre o Dialogismo e a Polifonia, os


estudos apresentados pelo pesquisador russo Mikhail Bakhtin e outros teóricos de
mesma linha serão sempre uma recorrência. Antecipando-se bastante às
principais orientações trazidas pela linguística moderna, sobretudo no que tange
aos estudos com respeito a interação verbal, produção de sentido, bem como às
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |183

relações entre a tríade linguagem-sociedade-história e a dupla linguagem-


ideologia, o autor de Marxismo e Filosofia da Linguagem nos traz uma relevante
contribuição para novos estudos sobre o texto.
“Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada” (BAKHTIN,
2006, p. 109). Desse modo, podemos dizer que os sujeitos “agem, adentrando no
curso da comunicação verbal, ou seja, somente quando mergulham nessa corrente
é que sua consciência desperta e começa a operar” (2006, p. 109). Em termos
práticos, a língua não deve ser pensada fora de seu conteúdo ideológico, dissociada
da vida.
Logo, necessário é que, ao se valerem da língua, os indivíduos adicionem
em seu planejamento uma noção daquele para o qual sua voz será destinada, de
modo que moldem constantemente seus atos diante das possíveis reações
percebidos sobre o outro. Implica, assim, dizer que esse processo faz de todo ato
verbal um exercício de interação, motivo pelo qual Bakhtin tratar a enunciação
como social, em oposição a um procedimento individual, bem como também
considera a fala como uma ação “indissoluvelmente ligada às condições da
comunicação, que, por sua vez, estão ligadas às estruturas sociais” (2006, p. 15).
O sentido daquilo que enuncia não se encontra no sujeito, nem mesmo no
objeto a ser descrito. É produzido a partir da relação do sujeito com o mundo. Ao
realçar as relações entre sujeitos, linguagem, história e sociedade, a noção de
dialogismo, de enunciação desenvolve um processo de caráter intersubjetivo.
Como um sujeito kantiano, de mesmo modo é o sujeito ao qual se refere Bakhtin,
ou seja, um sujeito que, na construção de ideias sobre as coisas, tem sua voz
construída nas inúmeras interações com o mundo, levando-se em conta que “todo
o conhecimento começa com a experiência” (KANT, 1983, p. 23).
Para Bakhtin (2003), viver significa participar de um diálogo, razão pela
qual não ser pertinente pensar o indivíduo a partir de uma visão cartesiana, numa
referência à recorrente frase “Penso, logo existo” (DESCARTES, 1985). O
pensamento não se desenvolve no indivíduo como se este fosse um objeto, ou, em
outros termos, como se bastasse pensar para que considerássemos sua existência.
184 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Pela perspectiva bakhtiniana, o sujeito fala porque, somada a uma


faculdade humana, possui sua consciência construída na interação, nas trocas
intersubjetivas, em

um conjunto de mecanismos simbólicos para controle de


comportamento, isto é, “depósitos” de informações extra-
somáticas, em que a cultura possibilita a construção de um vínculo
entre o que os homens são intrinsecamente capazes de se tornar e
o que eles realmente se tornam, um por um (GEERTZ, 2008, p. 37).

Diferentemente de Descartes, que apresenta seu método aportado na


dúvida, defendendo que nossos sentidos por vezes nos enganam, a ponto de
pensarmos que nossa realidade é nada mais que tão somente um sonho, para
Bakhtin os sentidos são produzidos por nós, na interação com mundo, fazendo de
nós sujeitos dessa situação. Desse modo, podemos dizer que não somente
construímos uma realidade, ainda que efêmera, mas, para além dessa perspectiva,
somos capazes de avançar nessa experiência, podendo avançar nessa experiência,
fazendo-nos capazes de reconstruir nossas ideias sobre as coisas, sobre os
fenômenos.
O “pensamento, como pensamento, nasce no pensamento do outro”
(BAKHTIN, 2003, p. 307-308). Isso nos leva a pensar que, na enunciação, a
intersubjetividade precede à subjetividade. O filósofo russo complementa,
afirmando que o eu somente “pode se realizar no discurso, apoiando-se em nós”
(1981, p. 192). Daí, os sentidos da fala não poderem ser entendidos ancorados em
uma visão estruturalista da língua; devem, como explica Weedwood (2002), ser
compreendida a partir das condições de comunicação, de modo contínuo
vinculadas às estruturas sociais.
Assim, cumpre dizer que

a língua, a palavra são quase tudo na vida humana. Contudo, não se


deve pensar que essa realidade sumamente multifacetada que tudo
abrange possa ser objeto apenas de uma ciência – a linguística – e
ser interpretada apenas por métodos linguísticos. O objeto da
linguística é apenas o material, apenas o meio de comunicação
discursiva mas não a própria comunicação discursiva, não o
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |185

enunciado de verdade, nem as relações entre eles (dialógicas), nem


as formas de comunicação, nem os gêneros do discurso (BAKHTIN,
2003, p. 324).

Portanto, o estudo de qualquer que seja algum material linguístico significa


considerar a ocorrência de uma gama de vozes nos enunciados ali presentes, uma
vez que o que se fala é carregado de enunciados dos outros. Descobrimos, em
nossos enunciados, as palavras do outro ocultas ou semiocultas, com graus
distintos. Daí, a enunciação ser compreendida como a realidade da linguagem,
bem como a estrutura socioideológica.
Não é demasiado (re)afirmar que

as relações dialógicas que, segundo Bakhtin, definem o


acontecimento da linguagem, são relações de sentido que se
estabelecem entre enunciados produzidos na interação verbal.
Neste sentido, o conceito de dialogismo se sustenta na noção de
vozes que se enfrentam em um mesmo enunciado e que
representam os diferentes elementos históricos, sociais e
linguísticos que atravessam a enunciação (ZOPPI-FONTANA,
1997, p. 118). (o grifo é da autora)

Por fim, nos cabe pensar que as vozes presentes em uma enunciação serão
sempre vozes sociais, revelando as consciências valorativas que tornam possíveis
compreendermos um enunciado. Quando enunciamos, ainda que a relação com a
coisa referida (na sua pura materialidade) não seja dialógica, seu sentido será
sempre de cunho dialógico (BAKHTIN, 2003). Por conseguinte, a compreensão
dos enunciados é possível, graças à seleção de um número de recursos
linguageiros, como uma palavra, uma expressão, uma máxima, uma citação etc,
expedientes que, selecionados por alguém para a produção dos sentidos
pretendidos, poderão estar presentes em outras vozes, em outros discursos, ainda
que não diretamente ligados ao conteúdo ao que em algum momento se pretende
informar.
186 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

3. Análise

Cumpre, antes de apresentar a primeira capa a ser analisada, trazer algumas


informações contextuais sobre o fato que motivou sua construção. Em entrevista
à Folha de S. Paulo no dia 06.07.2016, a então Presidente da República, Dilma
Rousseff, após seus adversários defenderem seu afastamento do cargo, fez a
seguinte afirmação: “Eu não vou cair. Eu não vou, eu não vou. Isso aí é moleza, é
luta política”. Em outro trecho, continua: "Não tem base para eu cair, e venha
tentar. Se tem uma coisa que não tenho medo é disso”. Poucos dias após a
publicação da entrevista pelo jornal paulistano, em 15.07.2016, a Revista Veja
apresentou a seguinte capa para sua edição 2334:

Figura 1

Não há dúvida de que a imagem de Dilma Rousseff, sentada em uma


cadeira azul solta no ar, acima das nuvens, tendo como pano de fundo o azul
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |187

predominante do céu, tom que cobre quase toda a extensão da capa, merece uma
reflexão. Em prol disse, cumpre proceder à leitura de um número de elementos
e, na sequência, voltar a atenção para possíveis diálogos que, de algum modo,
contribuem para a produção dos sentidos trazidos pelo texto.
Popularmente, ouvimos que “uma vez imagem vale mais do que mil
palavras”. A princípio, as imagens atraem mais do que as palavras, a ponto de
podermos afirmar que é a capa que vende. Assim, se a imagem nela está, não será
difícil afirmar que o procedimento inicial de análise por buscar compreender o
que compõe o conteúdo imagético. Não obstante, para principiar, a escolha do
título “A INSUSTENTÁVEL LEVEZA”.
O título, inevitavelmente, nos remete para o romance “A Insustentável
Leveza do Ser”, de Milan Kundera, escritor da antiga Tchecoslováquia. Na obra
de Kundera, o desenvolvimento do enredo erótico-amoroso se conjuga com
enorme sensação de felicidade a um momento histórico politicamente opressivo
e à reflexão sobre a existência humana como um enigma que resiste à decifração.
Como resultado de suas escolhas ou por interferências alheias, cada uma de suas
personagens experimenta, ao seu modo, o peso insustentável que calcula a vida.
De ouro modo, podemos dizer que elas buscam meios para reconhecer a opressão
política dos anos de 1960 e 1970 em Praga e, de algum modo, tentar amenizá-la.
Na primeira parte da obra, na pretensão de estabelecer uma distinção entre
o “peso” e a “leveza”, o autor alerta que o

o fardo mais pesado é também, ao mesmo tempo, a imagem do


momento mais intenso de realização de uma vida. Quanto mais
pesado for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida
e mais real e verdadeira é. Em contrapartida, a ausência total de
fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, fá-
lo voar, afastar-se da terra, do ser terrestre, torna-o semirreal e os
seus movimentos tão livres quanto insignificantes. Que escolher,
então? O peso ou a leveza? (p. 2).

Levando em conta o aspecto existencialista das palavras de Kundera,


podemos atribuir à leveza trazida pelo texto a ideia de uma vida regrada por uma
liberdade desprovida de compromisso. É possível que essa tranquilidade tenha sua
188 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

gênese em um estado de não engajamento com as situações em que os indivíduos


estejam inseridos no cotidiano.
Cumpre ressaltar que, tomando como base tão somente o primeiro plano
de leitura, tecermos um número de relações entre a capa de Veja em tela e o texto
de Kundera não nos oferecererá um número razoável de elementos para
compreensão. No entanto, considerando o princípio bakhtiniano de que, na
construção de um texto, há “o diálogo entre muitos textos da cultura, que se
instala no interior de cada texto e o define” (BARROS, 2011, p. 4), vale recorrer
alguns trechos de “A Insustentável Leveza do Ser”, a fim de um entendimento
sobre os sentidos produzidos na capa em estudo.
Milan Kundera, na primeira parte do romance, ressalta que “o fardo mais
pesado é também, ao mesmo tempo, a imagem do momento mais intenso de
realização de uma vida”. Se buscarmos realizar um diálogo com a capa da revista,
podemos pensar que o cargo assumido por Dilma Rousseff significa para um
político o grau máximo de sua realização pessoal, exigindo dele uma postura
responsável na mesma medida.
Vale não descartar a ideia de que, em tomadas de grandes decisões ou
diante de grandes adversidades, essa responsabilidade possa se traduzir em um
grande “peso” para um político. De outro modo, podemos dizer que quanto maior
sua representatividade política, maior será sua responsabilidade.
Prosseguindo no texto da mencionada obra de Kundera, o autor alerta que
“quanto mais pesado for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida e
mais real e verdadeira é”. Diferentemente disso, Veja apresenta a imagem de uma
presidente sentada sobre uma cadeira totalmente solta acima das nuvens, como
se provida de uma sensação de liberdade, distante das responsabilidades típicas de
sua função. A face sisuda, o olhar fixo, as vestes e calçados em concordância com
o cargo assumido, as mãos fechadas e cruzadas, os punhos cerrados e os pés
cruzados e apoiados na base de sua cadeira servem para construir uma sensação
de firmeza da presidente, como popularmente se diz, “dona da situação”.
Essa “firmeza” contrasta com o restante da imagem. A cadeira solta no ar,
tendo como base as nuvens, é capaz de transmitir ao leitor uma sensação de
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |189

“leveza”. Ademais, a escolha pelo azul de um céu limpo, claro, sem imagens de
qualquer ameaça, também sugere a imagem de uma presidente aparentemente
segura em seu posto. Assim, considerando o tom de suas declarações à Folha de S.
Paulo, tal cor parece oferecer à contestada presidente uma sensação de
serenidade, resultado da confiança em si mesma ao longo da entrevista.
A cor não é uma matéria, mas sim uma sensação (FARINA, 1982). Podemos
inferir que, ao escolher o tom azul para transmitir uma aparente serenidade
atribuída à Dilma Rousseff, a revista sugere que os leitores compartilhem de seu
discurso, isto é, uma ironia à autoconfiança da presidente. Desse modo, se para
Veja Dilma mostra-se aparentemente relaxada, alheia às críticas sofridas naquele
momento, da mesma visão seus leitores deverão compartilhar, o que, de certo
modo, contribui para a queda da então Presidente.
Finalizando a transcrição dos fragmentos da obra de Kundera, dividirei o
trecho restante em três partes. No primeiro deles, o escritor ressalta que “a
ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar”.
Nesse ponto, a justificativa do título apresentado por Veja parece ganhar ênfase,
uma vez que, “sem apoio popular e do Congresso, o governo Dilma flutua em um
ambiente de incerteza”, conforme enunciado da capa.
A partir da capa escolhida de Veja, para a edição 2334, a grande crítica da
revista à figura de Dilma Rousseff. Ao lado de outros elementos semióticos, Veja
afirma que “enquanto as suspeitas de corrupção chegam perigosamente perto do
Planalto”, a presidente parece não oferecer a devida importância à sua situação
política. Desse modo, seu descompromisso com a opinião pública, não
reconhecendo a baixa popularidade provocada pelas últimas notícias, torna suas
declarações apresentadas na entrevista à Folha de S. Paulo “tão livres quanto
insignificantes”, fazendo aqui um diálogo com um trecho da citada obra de
Kundera.
Na parte final da transcrição de “A Insustentável Leveza do Ser”, a grande
indagação: “Que escolher, então? O peso ou a leveza?”. Como uma voz que, de
praxe, se posiciona contrariamente ao que propõe a gestão petista, Veja parece
construir uma resposta que permite aos seus leitores pensarem que Rousseff
190 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

diante das acusações preferiu estar, como na fala popular, “livre, leve e solta”, não
oferecendo a devida importância às últimas publicações sobre seu governo. Por
sua vez, com o título “A INSUSTENTÁVEL LEVEZA”, Veja demonstra ao seu
público que as respostas da presidente, buscando transmitir segurança, livre de
qualquer preocupação sobre as acusações recebidas, não são suficientes para
esconder a insustentabilidade de sua situação política.
Observando o histórico de outras publicações da revista ao longo do
período em que a Presidência da República esteve ocupada por algum membro
do PT, podemos notar que, como nesta última capa, o periódico agiu
constantemente como uma voz que não se afastou do embate com o partido.
Assim como nas edições até aqui apresentadas, a revista busca fazer um recorte
da realidade, não deixando de fazer valer o posicionamento que pretende
imprimir em seu discurso, uma vez que não “não é possível o acesso ao real sem
atribuir um recorte ideológico” (HERNANDES, 2006, p. 23). Portanto, é
necessário ao profissional da imprensa atribuir valores àquilo que publica.
Diferentemente de Veja, nas capas da revista Carta Capital não são comuns
posicionamentos desfavoráveis à imagem do Partido dos Trabalhadores. Na capa
construída para a edição 919, é possível observar que a revista sai em defesa do
PT, ainda que não cite diretamente o nome do partido ou o nome de algum de
seus membros.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |191

Figura 2

Sem deixar totalmente explícito, Carta Capital busca associar as atividades


do promotor representante da Operação Lava Jato, Deltan Dallagnol, às cruzadas
católicas ocorridas na Idade Média. O que torna possível essa leitura são as
relações capazes de seres construídas a partir do texto imagético, do título e do
subtítulo escolhido para a capa.
A imagem construída para o coordenador da força-tarefa da operação da
Polícia Federal dialoga com a imagem de um pregador medieval, numa referência
às grandes cruzadas católicas promovidas pela Igreja naquele momento da
história. No plano superior, a imagem de Dallagnol parece orientar uma multidão
atenta ao seu discurso, assim como Pedro de Amiens (1050-1115), célebre monge
pregador e guia espiritual da Primeira Cruzada, agiu, exaltando os ânimos do
povo, a partir de seu lema, para a necessidade de lutar contra as injustiças na
Jerusalém de sua época, dominada pelos mulçumanos.
192 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Vale ainda notar que na Idade Média, outro grave problema enfrentado
pelos homens estava relacionado à imagem de justiça. A esse respeito, FRANCO
JÚNIOR (1992, p. 54) explica que “os elementos socialmente mais humildes (..)
ficavam inevitavelmente à mercê de nobres, clérigos e funcionários reais ou
feudais, muitas vezes donos de grande autonomia e de grande cupidez”. Na capa,
infere-se que Carta denuncia uma dependência do povo brasileiro diante dos
sentidos de justiça promovidos por discursos como o pregado por Dallagnol nas
investigações da Lava Jato.
A fim de melhor compreender esse processo dialógico na referida capa,
penso ser interessante recorrer ao que em 16.09.2016, outro veículo de
comunicação, o Jornal Zero Hora, de Porto Alegre, apresenta sobre o coordenador
da Lava Jato. Para o periódico, o cristão Deltan Dallagnol “é movido por suas
crenças”. Ele “acredita que pode mudar a forma de combater a corrupção no país”.
Para isso, “também se associou às 10 medidas de combate à corrupção, projeto que
chegou ao Congresso com a assinatura de mais de 2 milhões de pessoas”. Nessa
missão, “em busca de apoio, o procurador peregrinou por igrejas”, enquanto
“advogados e procuradores mais experientes não aprovam o estilo”. É em razão
disso que “adversários dizem que Dallagnol quer ‘santificar’ a Lava-Jato”.
Daí, a imagem do chefe da Lava Jato com os braços levantados em direção
ao céu. Firme em uma das mãos, a figura de um crucifixo. Em um plano inferior,
uma multidão de seguidores, ouvintes de sua “pregação”, a luta contra a
corrupção, segundo seus depoimentos. “Um seguidor de Jesus”, como se descreve,
“a partir dos cultos, levou sua palavra contra a corrupção, que ecoou por escolas,
associações, clubes e o plenário do Congresso” (Jornal Zero Hora, 16.09.2016).
Observando o contexto da edição de Carta Capital, é válido considerar que
a investida da Lava Jato contra os acusados, sendo os maiores alvos políticos e
empresários ligados ao Partido dos Trabalhadores, a alusão ao “golpe” se refere ao
afastamento do PT do mais alto escalão do governo, a Presidência da República,
o que para os enunciadores, caso se concretize, significaria um ato inapropriado.
Desse modo, Deltan Dallagnol representa esse ameaça, tendo como fundamento
um discurso movido por uma “farsa”, ou seja, o levantamento de acusações sem
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |193

quaisquer provas contundentes, o que para a revista traduz a “demência” dos


membros da operação.
Por fim, vale dizer em poucas palavras que o título escolhido por Carta
Capital, “o golpe, da farsa à demência”, apresenta marcas de um posicionamento
político favorável à gestão do Partido dos Trabalhadores. Essa postura demonstra,
inclusive, a disposição da revista para polemizar com quaisquer veículos de
comunicação que possam apresentar algum posicionamento distinto ao seu no
que tange à Operação Lava Jato.

4. Considerações finais

Pode-se dizer que é a capa que vende. E, respeitando as diferenças que


existem entre o jornalismo e a publicidade, vale dizer que também ocorre nos
textos da imprensa o jogo de sedução. Aliás, a notícia é um produto bruto,
carecendo de arranjos por meio da linguagem. Nesse sentido, nas capas analisadas,
antes de convencer os leitores das verdades (re)produzidas sobre os fatos, mais
nítidas ficam as marcas de persuasão no oferecimento do novo sobre os fatos.
Afinal, “quem persuade leva o outro à aceitação de uma ideia” (MONNERAT,
2003, p. 36).
Se os anúncios publicitários vendem sonhos, os textos jornalísticos vendem
realidades construídas sobre o que ocorre no cotidiano. Ao seu modo, cada um
dos profissionais dessas esferas é desafiado a moldar seu texto, em consonância
não somente com seus interesses empresariais. Ressalte-se que os textos
jornalísticos seguem uma ideologia que não é efêmera como os discursos
publicitários. A estes, um novo anúncio significa um novo sonho; porém, quando
falamos de uma capa de revista, um grande desafio: trazer a novidade, sem abrir
mão da linha ideológica do veículo.
Daí, portanto, os arranjos linguageiros. Neles, o expediente do dialogismo
é uma marca relevante. Aliás, pela teoria bakhtiniana, não é possível um texto
que não seja motivado por outro texto. Este, cumpre ressaltar, é a materialização
194 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

do discurso. Nos sentidos de cada uma das capas analisadas, uma gama de textos
pertencentes a diferentes campos podem ser trazidos ao diálogo.
Como afirma Bakhtin (2006), somente no contato entre textos é que uma
luz brilha, de modo a iluminar tanto o posterior como o anterior, associando o
texto a um diálogo. Daí, portanto, “o texto só ganha vida em contato com outro
texto” (op. cit., p. 162), processo observado nas duas capas de revistas trazidas aqui
para uma reflexão sobre o Dialogismo e a Polifonia.
“Quando aceitamos que um texto não é um sistema fechado, somos levados
a reconhecer que o autor – o produtor do texto – vem carregado de influências
várias, de múltimas citações” (VALENTE, 2008, p. 88), razão pela qual tanto
autores quanto leitores serem resultados de uma gama de leituras que realizamos
em nosso cotidiano. Cada um desses textos é repleto de um número de vozes
entrecruzadas, ainda que pertencentes a diferentes campos.
Por fim, ao observarmos os elementos que compõem a construção de cada
uma das capas selecionadas para este estudo, podemos perceber que os sentidos
ali pretendidos por seus produtores são resultados de recursos dialógicos e
polifônicos. Coube, portanto, tanto à Veja quanto à Carta Capital recorrer a esses
expedientes na tentativa de produzir sentidos capazes de provocar o aceite de seus
respectivos públicos, buscando que estes compartilhem dos mesmos discursos
que esses veículos carregam, representados aqui por suas capas.
Considerando, portanto, que o conteúdo trazido por essas revistas é fruto
de reflexões de um conjunto de notícias já publicadas por outros veículos no dia
a dia, é preciso recorrer a expedientes capazes de atrair seus leitores para novas
leituras sobre um fato ou acontecimento. Afinal, é assim que (re)construímos
nossas visões sobre o mundo e, como destaca Valente (2008, p. 88), “se de alguma
forma tudo já foi dito no mundo e cabe-nos apenas saber redizer, que saibamos
então fazê-lo com engenho e arte”, procedimentos escolhidos por Veja quanto e
Carta Capital para construir suas capas e, por conseguinte, serem alvos de aceite
de seus respectivos leitores.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |195

REFERÊNCIAS

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Bakhtine: le principe dialogique. Paris: Éditions du Seuil, 1981.

BARROS, D. L. P. Dialogismo, Polifonia e enunciação. In: _______; FIORIN, José


Luiz (Org.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade : em torno de Bakhtin. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.

CASTRO, Maria Lília Dias de. A dialogia e os efeitos de sentido irônicos. In:
BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas, SP:
Editora da UNICAMP, 1997.

DESCARTES, René. Discurso do método. Brasília: UnB, 1985.

FARINA, Modesto. Psicodinâmica das cores em comunicação. São Paulo: Edgard


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FRANCO Jr., Hilário. As Utopias Medievais. São Paulo: Brasiliense, 1992.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

HERNANDES, Nilton. A mídia e seus truques: o que jornal, revista. TV, rádio e
internet fazem para captar e manter a atenção do público. São Paulo: Contexto,
2006.
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KANT, I. Crítica da Razão Pura. In: Kant. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os
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KOCH, Ingedore G. Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 10. ed. São Paulo:
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<https://lelivros.pro/book/baixar-livro-a-insustentavel-leveza-do-ser-milan-
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MONNERAT, Rosane Mauro. A publicidade pelo avesso: propaganda e


publicidade, ideologias e mitos e a expressão de ideias: o processo de críticas da
palavra. Niterói: EdUFF, 2003.

VALENTE, A. Intertextualidade e interdiscursividade nas linguagens midiática e


literária: um encontro luso-brasileiro. In: OLIVEIRA, Fátima; DUARTE Isabel
Margarida. O fascínio da linguagem: actas do Colóquio de Homenagem a
Fernanda Irene Fonseca. Porto: Centro de Linguística, Universidade do Porto,
2008.

WEEDWOOD, Barbara. História concisa da linguística. São Paulo: Parábola


Editorial, 2002.

ZOPPI-FONTANA, Mónica. Cidadãos modernos: discurso e representação


política. Campinas: Ed. da Unicamp, 1997.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |197

A ARGUMENTAÇÃO PARA ALÉM DO TIPO TEXTUAL DISSERTATIVO-


ARGUMENTATIVO

Gisele de Menezes Surcin (UERJ)

1. Introdução

As tipologias textuais são tópico de estudo na vida escolar e nos cursinhos


preparatórios para vestibulares e concursos públicos no país e podem ser foco nas
aulas de redação, de gramática e de literatura. Devido à experiência em sala de
aula no ensino desse tema, surge a necessidade de se exporem as dificuldades em
relação ao ensino e aprendizado de uma dessas tipologias: a argumentação, a qual
é trabalhada geralmente apenas no Ensino Médio, com o propósito de preparar o
aluno para a escrita de redações que cobram o posicionamento do autor.
Tendo em vista que o processo mecânico de apresentar a argumentação –
por meio de esquemas prontos para a escritura de redações dissertativas –
sobressai em sala de aula, este trabalho tem o objetivo de apresentar como
proposta a inclusão do ato de argumentar em outras tipologias, dando prioridade
à narração e à descrição, visto que são tipologias primeiras no aprendizado das
estruturas textuais e, como todo texto, apresentam traços de posicionamento do
autor, explícita ou implicitamente.
Para tanto, analisaremos o que são as tipologias e como são trabalhadas na
escola, utilizaremos conceitos sobre argumentação e traremos reflexões sobre os
aspectos argumentativos não apenas em textos estruturados predominantemente
para esse fim, com o propósito de avaliar a importância do ato de argumentar para
além de um único objetivo.

2. As tipologias textuais

O trabalho em sala de aula com textos é de suma importância para o


aprendizado da língua materna, visto que, não obstante representar uma língua
198 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

“criada” - desenvolvida pelo ser humano -, menos simples e menos espontânea


que a língua oral, a língua escrita faz parte do mesmo sistema linguístico da língua
falada e tem também o propósito da comunicação. Devido a esse propósito,
estamos rodeados pela língua escrita: jornais, revistas, redes sociais na internet,
documentos oficiais, propagandas etc. Para tanto, fica evidente a necessidade do
trabalho com textos em sala de aula.

(...) são também excelentes meios de intercomunicação, bem como


de produção, preservação e transmissão do saber. Determinados
aspectos de nossa realidade social só são criados por meio da
representação dessa realidade e só assim adquirem validade e
relevância social, de tal modo que os textos não apenas tornam o
conhecimento visível, mas, na realidade, sociocognitivamente
existente. A revolução e evolução do conhecimento necessita e
exige, permanentemente, formas de representação notoriamente
novas e eficientes. (KOCH, 2003, p.3)

No ensino de língua portuguesa, são apresentadas teoria e prática das


modalidades discursivas do texto: as tipologias textuais, as quais, de acordo com
Marcuschi (2002, p.22), são definidas da seguinte maneira:

Usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de


sequência teoricamente definida pela natureza linguística de sua
composição {aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações
lógicas}. Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia dúzia
de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição,
descrição, injunção.

Portanto, basicamente, há cinco tipos textuais, definidos de acordo com a


estrutura linguística, podendo haver mais um ou dois tipos dependendo da
perspectiva teórica: o preditivo e o dialogal. Além disso, há uma discussão no meio
acadêmico sobre a dissertação: a argumentação e a exposição seriam ramificações
da tipologia dissertativa ou a dissertação seria um gênero textual pertencente à
argumentação? Todavia, este trabalho não tem pretensão de focar nesse debate e
abordará os tipos como são trabalhados pela tradição escolar: a tricotomia
narração, descrição e dissertação.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |199

A narração é a primeira estrutura apresentada aos alunos, estrutura essa


que incansavelmente é desenvolvida ano após ano, perpassando os segmentos
escolares (fundamental e médio), visto que é, possivelmente, a primeira
capacidade, dentre as tipologias, que o ser humano adquire. Mesmo antes da
escrita, ensinamentos e práticas culturais eram passados de geração em geração
por meio de histórias, como as parábolas, gênero textual narrativo muito presente
na Bíblia e utilizado por Jesus Cristo como meio de transmitir ensinamentos.

(...) a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os


lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria
história da humanidade; não há, em parte alguma povo algum sem
narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas
narrativas, e frequentemente estas narrativas são apreciadas em
comum por homens de cultura diferente, e mesmo oposta (...).
(BARTHES, 1976, p.19)

A descrição é um tipo textual que costuma colaborar com outros tipos


textuais, devido às suas peculiaridades linguísticas, as quais são um recurso para
representar o objeto do discurso. Os exemplos apresentados em aula costumam
ser trechos pertencentes a narrativas, pois fica mais evidente o propósito de
descrever em momentos em que se pausa a narrativa para relatar aspectos de uma
personagem ou de um lugar, por exemplo.
Levando-se em conta que o tipo narrativo (ou o narrativo-descritivo) é
inserido nas atividades de produção textual já no primeiro segmento escolar, é
clara a facilidade que o aluno tem em entender o propósito desse tipo e a
facilidade que o aluno tem em redigir textos com essa estrutura linguística. Por
outro lado, a exposição e a argumentação são textos trabalhados posteriormente,
geralmente com o propósito de levar o aluno a redigir redações em concursos e
vestibulares. Não é raro o ensinamento dos textos expositivos em oposição aos
argumentativos, colocando-os como a oposição entre ter ou não argumentos,
porém também não é raro, por experiência própria em sala de aula, haver uma
confusão, por parte dos alunos, entre o texto dissertativo, especialmente o
expositivo, e o descritivo.
200 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Platão e Fiorin (1994, p.229) analisam os textos dissertativo e descritivo em


um mesmo capítulo, nomeado “Descrição e dissertação”:

A descrição relata propriedades e aspectos de um objeto particular


concreto (uma paisagem, uma casa, um personagem, um rosto)
situado num momento definido do tempo; a dissertação interpreta,
através de modelos teóricos, um objeto genérico (a espacialidade, o
sistema arquitetônico, o brasileiro, a personalidade do homem, a
fisionomia) abstraído de suas características individualizantes. Na
descrição, como se relatam aspectos simultâneos de um objeto, não
há relação de anterioridade e posterioridade entre os enunciados.
Na dissertação, em princípio, não existe uma progressão temporal
entre os enunciados. Nesse tipo de texto, no entanto, os enunciados
guardam entre si relações de natureza lógica, isto é, relações de
implicação (causa e efeito; um fato e sua condição; uma premissa e
uma conclusão; etc.).

3. A argumentação

O ato de argumentar faz parte do cotidiano do usuário da língua - mesmo


que, em muitos contextos, quase imperceptível -, visto que o ser humano coloca
seu posicionamento em vários atos de fala. Os estudos sobre argumentação
passaram por Platão e Aristóteles, na Grécia Antiga, e continuam instigando
pesquisas, devido à importância da retórica e da dialética para o posicionamento
do homem em sociedade. Mas, o que é, de fato, argumentar? A argumentação e a
sua arte, a retórica, deram origem a técnicas diversas para “falar bem”, “expressar-
se de maneira convincente”; não à toa, há profissionais oferecendo cursos e
palestras sobre o tema. De acordo com Abreu (2001, p.9)

argumentar é a arte de convencer e persuadir. Convencer é saber


gerenciar informação, é falar à razão do outro, demonstrando,
provando. Etimologicamente, significa vencer junto com o outro
(com + vencer) e não contra o outro. Persuadir é saber gerenciar
relação, é falar à emoção do outro. A origem dessa palavra está
ligada à preposição per, ”por meio de” e a Suada, deusa romana da
persuasão. Significava ”fazer algo por meio do auxílio divino”. Mas
em que convencer se diferencia de persuadir? Convencer é
construir algo no campo das ideias. Quando convencemos alguém,
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |201

esse alguém passa a pensar como nós. Persuadir é construir no


terreno das emoções, é sensibilizar o outro para agir. Quando
persuadimos alguém, esse alguém realiza algo que desejamos que
ele realize.

Para Garcia (2010), para haver argumentação, é necessário haver


condições para tal, isto é, os princípios da lógica devem estar presentes, e não a
falácia ou o sofisma, que retiram os fatos, as ideias e os princípios de cena e, no
lugar, trazem o insulto, o xingamento e o sarcasmo. Além do mais, os preconceitos
e as generalizações tampouco constituem argumentos.
Essa arte que une o “convencer” ao “persuadir” vai além de escolhas
lexicais, porquanto envolve técnicas emotivas, gestuais, inclusive por meio de
posicionamento corporal e entonação vocal. Mas, em sala de aula, o ato de
argumentar foca especialmente na produção dos textos dissertativo-
argumentativos - ou só argumentativos.
Azeredo (2018, p.94) afirma que a tipologia argumentativa é o
“encadeamento de proposições com vista à defesa de uma opinião e ao
convencimento do interlocutor” e complementa que “São característicos deste
tipo sequencial os conectivos condicionais (se, caso), concessivos ou contrastivos
(embora, mas, mesmo que, por outro lado), conclusivos (portanto, por isso) etc.
E, como tipologia, a argumentação tem características que a distinguem
dos outros tipos textuais. Essas características podem se resumir por meio dos
seguintes tópicos:

1. Não predominância de tempos verbais, mas os verbos no presente são


os mais frequentes;
2. Presença de uma tese (ponto de vista do autor);
3. Fatos, dados estatísticos, conceitos – fundamentação lógica;
4. Raciocínios que conduzem a uma conclusão lógica – argumentos;
5. Parcialidade.

A partir dessas informações, o professor busca orientar os alunos a


“montar” uma estrutura argumentativa em torno de trinta linhas. Como o contato
202 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

com a argumentação já se dá tardiamente, o discente se depara com inúmeras


dificuldades para entender o que é argumentar e para inserir essas ideias em um
texto limitado. Justamente por isso, há tantas dissertações que fogem ao padrão
argumentativo, principalmente nos vestibulares. Não raro, textos
predominantemente narrativos ou expositivos são produzidos no lugar do texto
predominantemente argumentativo.
A realidade da sala de aula aponta para mecanismos de decoreba de
operadores argumentativos, criando o famoso “caveirão” dos cursinhos
preparatórios, que ensinam esquemas fixos de introdução, desenvolvimento e
conclusão. O resultado são inúmeras redações parecidas, pois o “caveirão” é uma
maneira de fazer o aluno escrever qualquer tema a partir desses esquemas
predeterminados, não incentivando a reflexão sobre o assunto abordado. É
comum nos depararmos com sites na internet que tratam o assunto dessa forma
esquematizada, confirmando a visão de argumentação exclusivamente para
redações de vestibulares e concursos.
Logo, a apresentação tardia da argumentação ao discente torna leitores e
usuários da língua verdadeiros desconhecedores sobre a arte da retórica, visto que
esses usuários não compreendem e não percebem o ato de convencer e persuadir
em vários atos de fala no cotidiano: no trabalho, em família, em um
relacionamento amoroso, em textos simples, como uma chamada de jornal ou
uma breve história.

4. A argumentação para além da dissertação

Como visto no tópico anterior, o ato de argumentar é complexo e pouco


explorado, ou explorado tardiamente na escola. Para tanto, este item tem a
intenção de analisar como a arte de convencer e/ou persuadir está presente muito
antes na vida do aluno e como pode ser explorada de forma gradativa, por meio
das primeiras tipologias estudadas na vida escolar. Sobre essa possibilidade de se
explorar a argumentação em outras tipologias, Platão e Fiorin (Op. cit., p.173) nos
esclarecem que
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |203

um dos aspectos importantes a considerar quando se lê um texto é


que, em princípio, quem o produz está interessado em convencer o
leitor de alguma coisa. todo texto tem, por trás de si, um produtor
que procura persuadir o seu leitor (ou leitores), usando para tanto
vários recursos de natureza lógica e linguística.

Por conseguinte, todo texto tem uma tomada de posição por parte do
enunciador, porquanto, ao contar uma história, por exemplo, o enunciador faz
escolhas, além das lexicais, de fatos considerados mais importantes, omitindo - ou
relatando superficialmente - outros fatos. Uma mesma história, ao ser contada por
outro enunciador, não terá exatamente o mesmo relato, assim como uma
descrição é determinada pelo ponto de vista e pela tomada de posição, pois
depende da intencionalidade do autor. O mesmo vale para os textos expositivos,
considerados impessoais frente aos argumentativos; os expositivos, os quais
explicam ou revelam informações sobre um determinado objeto do discurso,
também têm, por trás de sua estrutura, uma perspectiva adotada pelo enunciador.
Nesse sentido, Koch (2009, p.17) afirma que

a interação social por intermédio da língua caracteriza-se,


fundamentalmente, pela argumentatividade. Como ser dotado de
razão e vontade, o homem, constantemente, avalia, julga, critica,
isto é, forma juízos de valor. Por outro lado, por meio do discurso –
ação verbal dotada de intencionalidade – tenta influir sobre o
comportamento do outro ou fazer com que compartilhe
determinadas de suas opiniões. É por esta razão que se pode
confirmar que o ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no
sentido de determinadas conclusões, constitui o ato linguístico
fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia ,
na acepção mais ampla do termo. A neutralidade é apenas um mito:
o discurso que se pretende “neutro”, ingênuo, contém também uma
ideologia – a da própria objetividade.

Com base nessa não neutralidade, tomemos como exemplo a parábola do


bom samaritano, contida no Novo Testamento (Lc, 10:25-37), adaptada a seguir:
204 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Um homem descia de Jerusalém para Jericó, quando caiu nas mãos


de assaltantes. Estes lhe tiraram as roupas, espancaram-no e se
foram, deixando-o quase morto. Aconteceu estar descendo pela
mesma estrada um sacerdote. Quando viu o homem, passou pelo
outro lado. E assim também um levita; quando chegou ao lugar e o
viu, passou pelo outro lado. Mas um samaritano, estando de viagem,
chegou onde se encontrava o homem e, quando o viu, teve piedade
dele. Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas
vinho e óleo. Depois colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-
o para uma hospedaria e cuidou dele. No dia seguinte, deu dois
denários ao hospedeiro e lhe disse: ‘Cuide dele. Quando eu voltar
lhe pagarei todas as despesas que você tiver’.

O dicionário Aurélio (1993, p.263) define parábola como “Narração


alegórica na qual o conjunto de elementos evoca outra realidade de ordem
superior”; para melhor explicitar, a parábola transmite uma mensagem indireta
por meio de uma analogia. Esse gênero textual pertence à narrativa devido às suas
características linguísticas: há personagem - ou personagens -, há sequência de
ações, local, espaço temporal etc. Mas, a breve história contada por Jesus a um
homem, mais precisamente um perito da lei, que lhe perguntou o que era preciso
fazer para herdar a vida eterna, não cessa na estrutura narrativa: há intenções
comunicativas por meio desse samaritano. A partir dessa história alegórica, Cristo
responde à pergunta do homem de maneira mais fácil de convencê-lo dessa
resposta; além disso, há todo um contexto histórico que motiva o uso de um
samaritano como personagem: à época, os judeus desprezavam esses habitantes da
cidade de Samaria. Portanto, nessa parábola, Jesus ensinou que os judeus deviam
amar a todos e deixar as rivalidades para trás, visto que quem ajudou o necessitado
não foram os “bons judeus”, mas sim aquele considerado inimigo. Portanto, o
convencer e o persuadir estão presentes nesse texto estruturado de forma
narrativa.
Nas descrições, essa tomada de posição por parte do enunciador também é
realidade, visto que as escolhas lexicais para retratar as características do objeto
do discurso dependem da intencionalidade do enunciador, especialmente quando
a descrição é subjetiva, visto que esse enunciador foca nos elementos que estão
em evidência, de acordo com seu próprio olhar. A descrição pode auxiliar,
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |205

inclusive, textos dissertativos, visto que será, nesse caso, uma estratégia de
convencimento para o leitor. Em propagandas, essa estratégia descritiva é muito
utilizada, porque os vocábulos que compõem a classe gramatical mais utilizada
nessa tipologia - os adjetivos - são escolhidos intencionalmente para enaltecer o
produto, deixando de lado possíveis características negativas.
Para a elaboração de um texto argumentativo propriamente dito, faz-se
necessário utilizar estratégias e operadores argumentativos, que são explorados
pelos manuais de redação. Como exemplo, é correto citar os argumentos de
autoridade, baseado no consenso, baseado em provas concretas, baseado no
raciocínio lógico e baseado na competência linguística. Para a estruturação dos
parágrafos em si, há a montagem do tópico frasal, que pode ser uma declaração
inicial, uma alusão histórica, uma interrogação, etc. Para o desenvolvimento
desses parágrafos, há, por exemplo, as estratégias de causa e efeito, de
enumeração, de exemplificação e de contraste. Além disso, há a escolha lexical e
os operadores, que envolvem o campo da coesão e da coerência - os conectores,
principalmente - e outras tantas estratégias.
Tomemos como exemplo, agora, “Tragédia Brasileira”, de Manuel
Bandeira:

Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade.


Conheceu Maria Elvira na Lapa- prostituída, com sífilis, dermite
nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de
miséria.
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no
Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela
queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um
namorado. Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um
tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de
casa.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General
Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de
Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio,
Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
206 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e


de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la
caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul. (In: Platão e
Fiorin, 1994, p.58,59)

O poema de Bandeira tem características narrativas típicas de uma notícia


policial: há personagens bem identificadas, com nome e profissão, além de outros
aspectos narrativos: sequência temporal, conflito, etc. Para além da narrativa,
estão elementos subjetivos e marcas linguísticas que demonstram uma intenção
de Bandeira que pode ser explorada em sala de aula. Primeiramente, chamam a
atenção inferências possíveis para esse texto, visto que há todo um contexto
histórico e cultural presente: o fato de ser uma mulher prostituta e adúltera
causaria escândalo para a sociedade - “Misael não queria escândalo” -, o local onde
essa mulher morreu, depois de morarem em tantas ruas da cidade - Rua da
Constituição, representando um conjunto de leis - e, conforme Platão e Fiorin
(Op.Cit., p.60), “Ao dar o nome de tragédia brasileira ao texto, o narrador quer
mostrar o conservadorismo presente nas relações afetivas: se um homem dá a uma
mulher conforto se julga no direto de exigir dela fidelidade.”, comprovando,
assim, a intenção de convencimento por parte do enunciador.
Além disso, podem-se perceber outras marcas argumentativas, como o
operador “logo”, em “arranjou logo um namorado”, frase que não teria o mesmo
efeito se fosse “arranjou um namorado”. A sequência descritiva “prostituída, com
sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de
miséria” reforça o caráter argumentativo, explicando o quanto essa mulher era
subjugada, visto que os adjetivos - principais elementos de uma descrição - podem
ser um recurso eficiente, desde que usados com perícia para a construção do texto.

É no circuito discursivo que o enunciador procura construir sua


credibilidade a partir de uma linguagem direta e objetiva. Nesse
circuito, o enunciador pode utilizar os recursos do adjetivo
anteposto e ou posposto ao substantivo dependendo do que a
expressividade enunciativa requer, de modo a sustentar a
representação semântica e a interpretação pragmática da utilização
do adjetivo no enunciado utilizado pelo escritor. (RIBEIRO, 2010.
p.14)
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |207

Ademais, o trecho “Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada
disso: mudou de casa.”, demonstra, por meio de verbo “poder” que, para a
sociedade, esse homem estava liberado para matar, reafirmando a explicação dada
anteriormente sobre o conservadorismo nas relações amorosas. Por fim,
entendemos claramente um posicionamento do enunciador no trecho “privado
de sentidos e de inteligência” ao opinar sobre a atitude de Misael.

5. Considerações finais

O propósito deste artigo não é o de minimizar as tipologias narrativa e


descritiva, mas sim o de demonstrar que é possível trabalhar com a argumentação
a partir dessas estruturas, analisando os implícitos textuais e os operadores e as
estratégias argumentativas para comprovar que todo texto tem um
posicionamento, mesmo que sutil. Assim, a argumentação não será,
posteriormente, um texto engessado e sem propósito, mas sim será vista com
naturalidade e facilidade, entendendo-se que o ato de convencer e persuadir faz
parte da comunicação, visto que não há texto sem impressões autorais, pois
pretendem levar o leitor a uma conclusão.

REFERÊNCIAS

ABREU, Antônio Suarez. Curso de Redação. São Paulo: Ática, 2001.

AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da língua portuguesa. São Paulo:
Publifolha, 2018.

BARTHES, Roland. Introdução à Análise Estrutural da Narrativa In: ______.


Análise estrutural da narrativa. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1976.

BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995.


208 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário prático da língua


portuguesa: Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

FIORIN, J. L.; SAVIOLI, F. P. Para entender o texto. Leitura e redação. São Paulo:
Ática, 1994.

GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. 27. ed. Rio de Janeiro: Ed.
da FGV, 2010.

KOCH, Ingedore Villaça. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 2009.


______. Linguística Textual: uma entrevista com Ingedore Villaça Koch. In:
Revista Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL. V. 1, n. 1, agosto de 2003.
Disponível em <http://www.revel.inf.br>. Acesso em janeiro de 2016.

MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO,


A. P. et al. (orgs.) Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

RIBEIRO, Simone B. C. A expressividade enunciativa do adjetivo no gênero


textual: redações de vestibular. Revista Línguas & Letras. Vol. 11 – Nº 20 – 1º
Semestre de 2010. p. 1-16. Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras -
Nível de Mestrado “Linguagem e Sociedade”. Cascavel: Universidade Estadual do
Oeste do Paraná, 2010.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |209

RETEXTUALIZAÇÃO DO GÊNERO CAUSO: UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA


PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM DE PRODUÇÃO DE TEXTO

Gleiciane Rosa Vinote Rocha (UFRRJ)

1. Introdução

Os problemas de escrita encontrados em turmas do Ensino Fundamental


são comuns. Muitas deles devido à dificuldade que se tem de encontrar uma
metodologia eficaz para o ensino da produção textual, tratando a escrita como um
produto pronto e criando, então, certos mitos como: escrever é para poucos, é
difícil e é um dom. Assim também há dificuldade por parte dos profissionais da
linguagem de inserir na sala de aula práticas de oralidade. Este trabalho reflete
sobre a importância social da escrita, assim como propõe uma sequência didática
eficaz para o ensino-aprendizagem de produção textual, por meio da
retextualização de causos orais em escritos, a fim de reduzir marcas inadequadas
de oralidade, levando em consideração o contínuo oralidade-letramento proposto
por Bortoni-Ricardo (2004), a situação comunicativa e as características do gênero
causo.
A pesquisa foi aplicada a alunos do oitavo ano do Ensino Fundamental de
uma escola municipal, que fica localizada numa área rural do município de Rio
Claro/RJ, no subdistrito Fazenda da Grama, pertencente ao distrito de Passa Três.
As questões teóricas estão pautadas nas considerações dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN, 1998) referentes a texto e a discurso; alicerçados na
teoria de gêneros proposta por Bakhtin (2003); nas compreensões de Marcuschi
(2010) a respeito de retextualização; na visão de letramento proposta por Rojo
(2009); no contínuo oralidade-letramento sugerido por Bortoni-Ricardo (2004); e
em abordagens de Schneuwly e Dolz (2011) sobre sequência didática.
Destaca-se que todo o trabalho foi avaliado de forma somativa e processual,
criando espaço para que o próprio aluno analisasse o que aprendeu. Assim, houve
210 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

o desenvolvimento da competência da escrita, a ampliação do letramento e a


inserção de práticas discursivas locais dentro do ambiente escolar, formando um
aluno livre de preconceitos.

2. Gêneros textuais, letramento e ensino

Com o surgimento das orientações dos PCN (BRASIL, 1998) para o terceiro
e quarto ciclos do Ensino Fundamental, o ensino de língua materna passou a
privilegiar mais os textos inseridos num contexto sócio-histórico e na pragmática,
entendendo a língua como uma prática social.
De acordo com Elias (2014), a competência comunicativa é atingida
quando se sabe usar a língua na modalidade oral e na modalidade escrita, levando
em consideração o comportamento linguístico diferente numa ou noutra
modalidade, de acordo com a situação comunicativa. A autora acrescenta que,
apesar de elas serem modalidades distintas, não são dicotômicas.
Galvão e Azevedo (2015) pautam-se nas considerações de Marcuschi
(2005) e destacam que uma forma de estudar a oralidade amplamente é relacioná-
la à escrita, observando diferenças e semelhanças. Elas também ressaltam que o
trabalho com a oralidade pode contribuir na formação cultural e no regaste de
tradições.
Fávero, Andrade e Aquino (2014) acrescentam que é importante que a
escola realize um trabalho de integração fala/escrita valorizando o contínuo e não
diferenças. Um dos contínuos proposto por Bortoni-Ricardo (2004) é o da
oralidade-letramento. Numa das pontas do contínuo, está a cultura de oralidade
e na outra a de letramento:

+ oralidade .............................................................................. + letramento

Na perspectiva do uso e não de sistemas de língua, não há dicotomias, o


que há são práticas sociais preferencialmente orais e outras escritas. Portanto, fala
e escrita não são polos opostos, mas um contínuo tipológico encontrado nas
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |211

práticas sociais de produção de textos, que sofrem variações graduais e escalares,


de acordo com a exigência da situação comunicativa, podendo até se mesclarem,
como no causo escrito.
De acordo com Bakhtin (2003), os diversos textos que circulam
socialmente são denominados gêneros do discurso e considerados “tipos
relativamente estáveis de enunciados, constituídos historicamente, e que mantêm
uma relação direta com a dimensão social”. (BAKHTIN, 2003, p. 262). Para o
autor, eles são caracterizados com um conteúdo temático, um estilo (estruturação
linguística) e uma construção composicional (organização textual) e podem ser
classificados em gêneros primários (simples, referentes a situações comunicativas
do cotidiano, como uma fala espontânea e uma carta pessoal) e secundários (mais
complexos, referentes a situações comunicativas mais elaboradas, formais como
uma reportagem e um discurso político).
Marcuschi (2002) ainda acrescenta que os gêneros textuais se distribuem
pelas modalidades orais e escritas num contínuo, dos mais informais aos mais
formais em diferentes situações comunicativas. Porém, há gêneros que só são
recepcionados de forma oral, mesmo tendo uma base escrita. Como exemplo, cita-
se a notícia televisiva. Logo, é difícil a classificação dos gêneros em orais ou
escritos.
Deve haver um uso adequado do gênero de acordo com a situação
comunicativa, observando conteúdo, nível de linguagem, tipo de situação, relação
entre os participantes e natureza dos objetivos pretendidos nas atividades
desenvolvidas. Não observar esses aspectos pode trazer problemas. Ressaltando
que, por exemplo, o gênero causo oral, objeto de estudo deste trabalho, encontra-
se no polo da informalidade, portanto, na operação do oral para o escrito nem
todas as marcas informais desaparecerão. Caso isso acontecesse, ocorreria uma
descaracterização do gênero.
212 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

3. Gênero causo

O gênero textual causo encaixa-se, predominantemente, na tipologia


textual narrativa, logo, tem como elemento central de sua organização a
sequência temporal. É um gênero primário, já que aparece nas atividades
familiares em situações espontâneas, não elaboradas e informais.
Segundo Batista (2007), a palavra causo, por vezes, é encontrada grafada
entre aspas, a fim de destacar que é uma variante da palavra caso, um jeito
particular de falar de um determinado grupo social, geralmente pessoas de classe
social menos favorecida. Porém, a autora salienta que causo é um gênero textual
específico, com características próprias e diferentes de caso, sinônimo de um fato,
uma história ou uma ocorrência. Em ambos os gêneros, a referência é um fato,
entretanto a maneira de relatá-los é distinta.
Segundo Berti (2015), os causos possuem tradição oral e são narrados com
uma linguagem espontânea, registrando o jeito de falar de determinada região ou
local. Sua temática é pitoresca, envolvendo realidade e/ou ficção, narrador-
personagem ou narrador-observador. O causo envolve troca de turnos entre
enunciador com seu enunciatário. Para prender a atenção dos ouvintes, o
contador de causos utiliza recursos como humor, suspense, entonação, gestos,
sotaque e vocabulários regionais.
Em relação ao extraordinário, Batista (2007) acredita que os contadores e
ouvintes oscilam entre a dúvida e a crença, fazendo com que o extraordinário não
seja um elemento ficcional, mas um aspecto do imaginário, mesclando o real e o
sobrenatural e procurando explicações racionais para justificar os fatos narrados,
dando um efeito de contiguidade entre real e sobrenatural. Sendo que nem todos
os causos trarão elementos do sobrenatural, já que também podem ser narradas
histórias pitorescas sobre o lugar. Os contadores de causos acreditam fielmente
em suas e histórias e chegam a se sentirem ofendidos, caso as coloquem em
dúvida.
Batista (2007) afirma que o causo não é anônimo ou coletivo, quem o conta
é seu autor ou, quando quem o conta não é seu autor, é dada a sua referência de
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |213

autoria, o lugar onde o fato aconteceu é citado. Também se faz referência ao


tempo de acordo com as memórias do contador. Por exemplo, “quando eu era
criança”. Quanto aos personagens, a autora cita que geralmente são pessoas
conhecidas do contador, sendo ou não seres sobrenaturais.
Já sobre os temas, Batista (2007) relata que são diversos. Geralmente, um
fato vira um causo quando representa os valores e crenças de sua comunidade.
Podem acontecer acréscimos, inclusive inconscientes por parte do contador
devido a seus valores, medos e até mesmo para causar maior impacto no ouvinte.
Como função social do causo, a autora cita a valorização e a preservação de
um determinado modo de viver, de pensar, de uma memória, de uma identidade
cultural e local, já que os causos são de dado povo/lugar, destacando a noção de
pertencimento.
Em relação à circulação do gênero causo, Batista (2007) salienta o ambiente
familiar (geralmente, pessoas mais velhas da comunidade), também entre amigos
e colegas de trabalho. Por serem narrativas orais, não possuem títulos. Também
aparecem expressões típicas de uma dada região.
Esse gênero perdeu espaço no convívio familiar com o surgimento da
televisão e também com o advento da iluminação, que impossibilita, segundo
alguns contadores, o aparecimento de assombrações. Algumas atitudes têm
surgido com a intenção de fazer com que o gênero causo prevaleça, como a criação
de grupos folclóricos e de espaços para rodas de contadores de causos, como esta
pesquisa.

4. Retextualização e sequência didática

A retextualização é um mecanismo produtivo para o ensino da produção


textual por fazer parte do nosso cotidiano, mesmo que, inconscientemente, como
ao anotar uma receita dada num programa televisivo. De acordo com Marcuschi
(2010), retextualização é a passagem do texto falado para o escrito, envolvendo
algumas operações. “Trata-se de um processo que envolve operações complexas
que interferem tanto no código como no sentido e evidenciam uma série de
214 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

aspectos nem sempre bem compreendidos da relação oralidade-escrita.”


(MARCUSCHI, 2010, p. 46).
O autor propõe nove operações que podem ser aplicadas na passagem do
oral para o escrito. No entanto, devido à natureza informal do gênero causo e
também por causa do nível de maturidade linguística de uma turma de oitavo ano
do Ensino Fundamental, a proposta deste trabalho não atenderá a todas as
operações propostas pelo autor, atendo-se às sete primeiras operações (quadro 4).
Segundo Schneuwly e Dolz (2011), deve haver sistematização no ensino
da comunicação seja ela escrita ou oral por meio de uma sequência didática que
confronte as práticas de linguagem dos alunos, para que eles possam reconstruí-
las e delas se apropriarem. Para os autores, as sequências didáticas são
“instrumentos que podem guiar as intervenções dos professores”. (SCHNEUWLY;
DOLZ, 2011, p. 45). Propõem uma sequência didática composta das seguintes
partes: apresentação da situação, produção inicial, módulos e produção final.
Na apresentação da situação, serão expostas para o aluno, de forma
detalhada, as tarefas que eles desenvolverão.
Na primeira produção, o aluno fará um primeiro texto sobre o gênero. Essa
produção revela para o docente e para o discente que conhecimentos têm ou não
sobre o gênero em questão.
Nos módulos, serão trabalhados separadamente os problemas que
apareceram na primeira produção, dando aos alunos os instrumentos para
superação dessas dificuldades.
Na produção final, os alunos podem colocar em prática o que aprenderam
nos módulos e o professor pode avaliar de forma somativa o processo, planejando
a continuação do trabalho para rever eventuais pontos não assimilados.
Em seguida, apresenta-se parte de uma sequência didática, uma produção
de atividade coletiva, a fim de reduzir marcas de oralidade inadequadas presentes
nos textos escritos, refletindo sobre as semelhanças e diferenças entre as
modalidades falada e escrita, respeitando o contínuo proposto por Bortoni-
Ricardo (2004) e Marcuschi (2010) e as características do gênero textual em
questão, por meio da retextualização de causos orais em escritos.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |215

5. Proposta de intervenção

1) Apresentação da situação
Para começar essa fase, foram apresentadas as etapas do trabalho e a
finalidade das tarefas. Em seguida, foi comentado com os alunos sobre as
características da fala e da escrita, apresentando slide explicativo sobre essas
modalidades, assim eles puderam entender os contextos de uma produção oral e
de uma produção escrita. Posteriormente, foi novamente esclarecido que não há
divisão entre essas modalidades e apresentado o contínuo oralidade - letramento
proposto por Bortoni-Ricardo (2004).
Foi destacado que, no processo de retextualização do causo oral para o
escrito, é necessário considerar a situação comunicativa para definir que nível do
contínuo adotar, analisando se deve ou não ter apagamento de marcas de
oralidade. Os alunos chegaram à conclusão de que traços regionais e de humor
deveriam ser mantidos por serem característicos do gênero.

2) Preparação para exposição oral


Nessa etapa, foi realizada a escolha dos contadores de causos na Fazenda
da Grama, conversando com os alunos sobre que características que essa pessoa
deveria ter. Em seguida, os discentes escolheram os nomes. Na semana seguinte,
os alunos foram ao campo para fazerem os convites para os contadores de causos
participarem da roda de contação a ser realizada na semana posterior.

3) Produção inicial: Roda de contação de causos sobre a Fazenda da Grama


Foi realizada a roda de contação de causos. A professora explicou os
objetivos da proposta, apresentou os convidados, falou sobre as características e a
função social dos causos orais e foi conduzindo o início da contação. Em seguida,
de acordo com os assuntos que surgiam, os alunos foram participando
comentando os causos narrados e perguntando sobre outros que já haviam
escutado. Finalizada a roda de contação, foi compartilhado um café da manhã e
entregue uma lembrança de agradecimento aos contadores.
216 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Para dar continuidade a esta etapa, na semana posterior, foram


apresentadas em slides as características do gênero causo oral, exemplificando-as
em vídeos por meio dos seguintes causos orais de Rolando Boldrin e Geraldinho
Nogueira: Causo da procissão, Causo do papagaio e Causo da bicicleta.
Após a exibição, a professora voltou ao quadro e foi salientando cada
característica do gênero nos vídeos vistos, citando uma característica do causo
oral e os alunos anotando o que lembravam.

4) Oficina 1: Partindo da produção oral para o texto escrito de forma


coletiva
Primeiramente, foi exibida a roda de contação de causos sobre a Fazenda
da Grama para observar oralmente aspectos linguísticos, paralinguísticos e
cinésicos. Os alunos notaram as peculiaridades do jeito de contar os causos, como
gestos, humor, tom de voz e expressões regionais. Sobre o tempo, destacaram as
expressões como “naquela época” e “na época do meu pai”. Também ressaltaram
a presença de personagens conhecidos e de testemunhas que presenciaram os
fatos para dar aspecto de veracidade. Ainda conseguiram perceber o tipo de
narrador usado.
Como próxima tarefa, foram analisados três causos escritos: “O causo do
Caixeiro-viajante” de autor desconhecido, “Ai, que dor de dente” de Pedro
Malasartes e “A árvore que dava dinheiro” do mesmo autor para serem observadas
as características do gênero.
Na semana seguinte, foi escolhido o texto “Causo dos barulhos na Casa
Grande” para ser retextualizado coletivamente, levando em consideração a
transcrição prévia dele e atentando-se para as regras gramaticais da modalidade
escrita. O texto retextualizado da etapa de trabalho coletivo não terá amostragem
neste artigo, porque ela se compara aos passos da produção individual escolhida
como amostragem, observada no item 6 a seguir.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |217

5) oficina 2: Desenvolvendo o domínio bimodal da língua


Na semana seguinte, a professora levou o texto retextualizado de forma
digitada e três quadros para serem analisados e preenchidos coletivamente.
Primeiramente, o vídeo do Causo barulhos na Casa Grande foi reexibido
para que fosse preenchido um quadro citando aspectos paralinguísticos e
cinésicos, analisando a produção de sentido gerada. As observações foram feitas
de forma coletiva e uma aluna escolhida para ser a redatora.
Em relação aos elementos paralinguísticos, a turma observou a fala de
forma introspectiva, num tom médio, com uma velocidade normal, fazendo uso
de pausas e a presença de risos quando usa termos regionais. Sobre os elementos
cinésicos, os alunos notaram que os ouvintes ficaram com o olhar concentrado na
contadora e que algumas vezes os participantes interagiam com expressões de
susto, surpresa e riso. Também salientaram que os contadores gesticulavam muito
as mãos e que as pessoas estavam sentadas numa postura descontraída, típico de
rodas de causos.
Em seguida, a observação foi feita entre o causo oral e o causo escrito,
retextualizado na aula anterior coletivamente. Os alunos destacaram que o oral
tem a fala de mais de um orador. Já sobre o causo escrito, eles observaram que só
há a fala da contadora e que houve uma inserção na introdução ao começar pela
marcação do tempo e do lugar. Ainda notaram que organizaram os fatos ao
modificarem algumas ordens. A partir daí, foram falando o que eliminaram do
causo oral no escrito: marcadores conversacionais (né, aí, oh), truncamentos e os
risos. Por seguinte, salientaram que foi preciso dar coerência a algumas partes e
ainda que houve acréscimo de pontuação. Também que eliminaram aspectos
secundários, e que fizeram escolha vocabular.
Posteriormente, a professora entregou de forma digitada para a turma o
causo produzido, coletivamente, na aula anterior.
Logo depois, o Causo dos barulhos na Casa grande, já digitado, foi projetado
no quadro e entregue o terceiro quadro com os processos de retextualização
propostos por Marcuschi (2010), para que fosse modificado o necessário. E, assim,
foi sendo realizada a reescrita do texto produzido coletivamente, considerando
218 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

recursos expressivos da escrita e aspectos gramaticais, por meio do processo de


retextualização propostos por Marcuschi (2010), com a mediação da professora.

6) Oficina 3: Partindo da produção oral para o texto escrito de forma


individual
Na semana seguinte, foram distribuídos diversos causos para serem
retextualizados individualmente, levando em consideração a transcrição prévia
dele. Um deles foi o Causo da pedra do tesouro, escolhido aqui como amostragem.
Ele foi retextualizado pelo aluno 12.

Quadro 1 – Transcrição do Causo da pedra do tesouro


Sra. Eliseth: [Embaixo] da Casa Grande... tinha uma pedra que [depende] se você mexer nela como
se fosse uma:: passagem secreta oh gente eu já andei [para cima] apertando as pedras...
((Risos))
Sra. Elizabeth: Aí por coincidência por coincidência ali embaixo da Casa Grande... ali na descida
vocês podem [ir ver] vocês passam por ali... quando você desce ali a escada da gruta... tem é:: uma
pedra enorme... é como se fosse uma passagem mesmo já viu né Bruno o Bruno já viu... todas as
pedras são pequenas aquela pedra é grande pô eu já fui muitas vezes ali
((Risos))
Sra. Elizabeth: ((Ininteligível – 00:00:37)) que diz que era embaixo que ele era tipo um alçapão
embaixo... onde ele guardava o tesouro então fico imaginando gente já imaginou às vezes tem um
tesouro ali né... já pensou mas como que você vai ((ininteligível – 00:00:51)) e eu fui muitas vezes
naquela pedra e fiquei [rondando]
((Ininteligível, vozes simultâneas – 00:00:57))
Sra. Elizabeth: Lá de cima da escada da gruta... da gruta
Sr. Aladir: Ah ãhn
Sra. Elizeth: Quando você desce a escada você vê uma pedra grande como se fosse uma passagem
secreta... sabe a pedra toda do muro que as casas foram construídas assim mas são pedras de
tamanhos normais entendeu Essa não essa é grande mesmo como se fosse lá uma passagem mesmo
sabe... Interessante... se você parar para pensar é interessante ((ininteligível – 00:01:24)) o Bruno
já viu já passou por lá né Bruno
((Risos)).
((Ininteligível, vozes simultâneas – 00:01:31)
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |219

No bimestre anterior, foi feita uma avaliação diagnóstica, numa roda de


contação informal e o aluno 12 produziu o seguinte texto:

Quadro 2 - Produção diagnóstica do aluno 12


Ilha misteriosa
Essiste uma ilha no açude da fazenda da grama que misteriosa ela e uma ilha diferente que embaixo
e lama e encima e de capim. E ela fica vagondo pelo açude e toda as vezes que ela sobi la procima
no açude uma pessoa maioria das vezes alguém morrer e sempre no verão que e a parte do ano que
fica mais cheia muita familia mais muitas pessoas que usam drogas e bebem muito e sempre os
homens que morrer sempre morrer ele distante das pessoas que estão na berada do açude essas
pessoas morrer perto da ilha.

Em relação à avaliação diagnóstica, o aluno 12 não fez uso da marcação de


parágrafos e também não utilizou adequadamente os sinais de pontuação
apresentando apenas duas vezes o ponto final, deixando os períodos longos e
incoerentes. Houve também repetições excessivas de palavras como “ilha”, “ela”,
“açude” e “pessoas” e a construção de estruturas truncadas e sem sentido, por
exemplo: “e toda vez que ela ‘sobi’ ‘la’ ‘procima’ no açude uma pessoa maioria das
vezes ‘alguem’ ‘morrer’” e “muita ‘familia’ ‘mais’ muitas pessoas que usam drogas
e bebem muito e sempre os homens que ‘morrer’ sempre ‘morrer’ e “ele distante
das pessoas que estão na ‘berada’ do açude essas ‘pessos’’morrer’ perto da ilha”.
Além disso, como perceptível nos trechos citados acima, há a presença de
muitos erros ortográficos.
Após receber a transcrição do Causo da pedra do tesouro e realizar a
retextualização do texto, seguindo a tabela com os processos propostos por
Marcuschi (2010), o aluno 12 apresentou o seguinte texto:

Quadro 3 - Primeira produção do aluno 12 após aplicação das oficinas Causo da pedra do tesouro
Causo da pedra do tesouro
Embaixo da casa grande, tinha uma pedra como fosse passagens secreta.
Embaixo da casa grande, descido tem uma pedra enorme, e como se fosse uma passagem mesmo
todas as pedras são pequenas e aquela e grande.
Dizem quer embaixo, e um alcapão onde ele guardava o tesouro.
220 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Quando você desce, vê uma pedra grande como fosse passagem secreta, pedras do muro são
tamanhos normais Essa não e pedra como fosse uma passagem.

Na primeira produção individual do aluno 12, após a aplicação das oficinas


1, 2 e 3, baseando-se no contínuo oralidade-letramento de Bortoni-Ricardo
(2004), nas características do gênero causo e nos processos de retextualização
propostos por Marcuschi (2010), e tendo como base o texto transcrito (quadro 1),
nota-se evolução nas habilidades de produção escrita.

Quadro 4 - Operações de retextualização aplicadas na produção individual do aluno 12


Estratégias de retextualização
1ª operação: Eliminação de marcas O aluno realizou com sucesso.
estritamente de interação
- Hesitações: ah..., eh..., o...o;
- Marcadores conversacionais: “sim”,
“né”, “viu”, “que acha”;
- Segmento de palavras iniciadas e não
concluídas;
- Sobreposições ou partes transcritas
como duvidosas.
- Eliminação de comentários sobre ações
realizadas pelos falantes como risos e
tosses.
2ª operação: Baseado na entonação das O aluno fez uso do ponto final e da vírgula, ora
falas, é introduzida a pontuação, ou seja, adequadamente, como no primeiro parágrafo, ora
utiliza-se estratégia de inserção. inadequadamente: “Dizem que embaixo, „e‟ um
„alcapão‟...”.
3ª operação: Eliminam-se as repetições, O aluno repetiu palavras como “casa grande”,
reduplicações, redundâncias, paráfrases e “passagem”, “pedra” e “embaixo”.
pronomes egóticos (eu/nós).
4ª operação: Introduz-se paragrafação e O aluno introduziu adequadamente a paragrafação.
pontuação de forma detalhada sem Assim como fez uso de pontuação de forma
modificação da ordem dos tópicos detalhada, como para separar o adjunto adverbial de
discursivos, logo se trata de uma estratégia lugar no primeiro parágrafo.
de inserção.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |221

5ª operação: Para deixar claro o que foi O aluno não utilizou essa operação.
dito no oral em relação à referenciação ou
à orientação espacial são acrescentadas
algumas palavras, para referenciar ações e
verbalizar conteúdos expressos por
dêiticos (elementos linguísticos que
indicam o lugar (aqui) ou o tempo (agora)
e os participantes (eu/tu), ou seja, há uma
estratégia de reformulação).

Em relação ao gênero causo, o aluno não fez referência ao espaço e ao


tempo e não usou traços de humor ou regionalismo, mas marcou a presença de
testemunhas: “Dizem que...”.
Na semana seguinte, a professora entregou o texto para o aluno 12 para que
fosse realizada a revisão, também apoiado na tabela com os processos de
retextualização. Após, realizar essa etapa, o texto do aluno 12 ficou da seguinte
forma:

Quadro 5 - Texto do aluno 12 após revisão

Causo da pedra do tesouro


Embaixo da casa grande, tinha uma pedra como se fosse uma passagem secreta.
Decendo a casa, tem uma rocha enorme, igual uma passagem, mesmo todas as pedras (sendo)
tamanho pequena essa e grande.
Dizem que embaixo, e um alçapão, onde Breves guardava o tesouro.
Quando desce, você pode ver uma pedra grande, como uma porta, todas as rochas do muro tem
tamanho normal, essa não, ela parece uma passagem.

Em relação à segunda e quarta operações, o aluno inseriu a oração reduzida


“„decendo‟ a casa” e usou a vírgula para separá-la. Assim também colocou a
oração “como uma porta” entre vírgulas.
Sobre a terceira operação, para evitar as repetições, o aluno trocou “pedra”
por “rocha” em alguns trechos e a expressão “como se fosse uma passagem secreta”
para “como uma porta”, evidenciando, assim, também o tratamento estilístico,
222 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

sétima operação. Ela também foi aplicada ao substituir o pronome “ele” por
“Breves”.
O texto final do aluno 12 ainda precisa melhorar em relação ao
encadeamento e progressão das ideias, porém comparando-o à avaliação
diagnóstica, percebe-se desenvolvimento na competência da escrita. Isso é
observado no uso da paragrafação, na redução considerável dos erros ortográficos,
na inserção do uso da vírgula e do ponto final e na diminuição notável de
estruturas truncadas em relação à avaliação diagnóstica.

7) Demais etapas da produção final

Entendendo a necessidade de o texto ter uma função social, conforme


propõe a visão sociointeracional adotada pelos PCN (1998) e defendida neste
artigo e também descobrindo a importância do resgate cultural realizado por meio
desta pesquisa, pensou-se numa produção final que permitisse a circulação dos
textos para além dos muros da escola, a fim de que os causos ganhassem a
relevância que merecem, dando destaque para gêneros textuais de esferas
comunicativas menos prestigiadas e uma função social efetiva para o gênero,
dando a ele dimensão social, como Bakhtin (2003) recomenda. Então foi
promovida uma exposição cultural na Casa da Cultura do município de Rio Claro,
algo de início distante para um trabalho escolar e de um subdistrito pouco
valorizado e enxergado pelos munícipes.
Para ilustrar os causos, foi escolhido pelos alunos um colega da turma, por
ter habilidade para esse fim.
Na semana seguinte, a turma escolheu o título da exposição. Após
levantamento de algumas sugestões, chegou-se ao seguinte: “Fazenda da Grama:
Causos e Encantos”.
Para produção dos convites, a docente contou com a ajuda de uma aluna
de outra escola, uma vez que os alunos da turma não têm computadores nem
conhecimento de recursos gráficos digitais.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |223

Este convite circulou na rede social da escola, nas redes sociais dos alunos
e da professora, de demais membros da comunidade escolar e da prefeitura, assim
como foi impresso no Boletim Oficial do município, desde 15 dias antes da
inauguração.
Para que a exposição cultural tivesse um aspecto mais profissional,
utilizou-se como materiais de divulgação banners em lona. Foi pedido a um aluno
de outra escola que a professora trabalha para criar os designs de cada banner;
pois, conforme já dito, ninguém da turma tinha esse conhecimento e nem acesso
a esses recursos.
No dia da inauguração, os alunos e a comunidade vieram no ônibus cedido
pela prefeitura. Foi muito comovente vê-los chegando junto com a comunidade,
antes dos demais, e vendo que o trabalho deles alcançou algo, a princípio, tão
utópico. A cada banner visto com o nome deles, os olhares se encantavam,
cumprindo-se assim a função social da escrita e a valorização e a inserção dos
letramentos locais.
Na aula seguinte, foi realizada a autoavaliação do trabalho, conforme
propõem Schneuwly e Dolz (2011). Os alunos destacaram aspectos evolutivos da
produção textual, assim como os efeitos do projeto, como resgate cultural.

6. Considerações finais

Com o trabalho de retextualização do causo oral para o escrito, foi possível


a redução de marcas de oralidade inadequadas presentes nos textos escritos,
refletindo sobre as semelhanças e diferenças entre as modalidades falada e escrita,
respeitando o contínuo proposto por Bortoni-Ricardo (2004) e Marcuschi (2010)
e as características do gênero textual em questão, por meio da retextualização de
causos orais em escritos. Foram reduzidas marcas como a repetição de palavras e
o uso de marcadores conversacionais, por intermédio do uso da pontuação, da
paragrafação e da escolha vocabular para redução de repetições, desenvolvendo a
competência escrita. Também é notável a valorização do letramento local ao
resgatar os causos orais da comunidade, prestigiando a cultura/história do lugar.
224 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

REFERÊNCIAS

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Língua Portuguesa: O Que Dizem Os Professores Do Ensino Básico. Filologia e
Linguística Portuguesa, v. 17, n. 1, p. 249-272, 21 jun. 2015. Disponível em:
<https://doi.org/10.11606/issn.2176-9419.v17i1p249-272>. Acesso em: 20 de
março de 2016.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo


Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BATISTA, Gláucia Aparecida. Entre causos e contos: gêneros discursivos da


tradição oral numa perspectiva transversal para trabalhar a oralidade, a escrita e
a construção da subjetividade na interface entre a escola e a cultura popular. 2005.
216f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) – Universidade de Taubaté,
São Paulo, 2007.

BERTI, Maria Mônica Gimenez. Recursos coesivos em narrativas orais e escritas:


uma sequência didática a partir de causos populares. 2015. 99f. Dissertação
(Mestrado Profissional em Letras). Universidade Estadual de Maringá, Paraná,
2015.

BORTONI-RICARDO. Stella Maris. Educação em Língua Materna: a


Sociolinguística em sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares de


Língua Portuguesa – 3º e 4º ciclos. Brasília: MEC/SEF, 1998.

DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e Org.


Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de letras, 2011.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |225

ELIAS, Vanda Maria (Org.). Ensino de Língua Portuguesa: oralidade, escrita e


leitura. São Paulo: contexto, 2014.

FÁVERO, L. L.; ANDRADE, M. L. C. V. O.; AQUINO, Z. G. O. Reflexões sobre


oralidade e escrita no ensino de língua portuguesa. In: ELIAS, Vanda Maria
(Org.). Ensino de Língua Portuguesa: oralidade, escrita e leitura. São Paulo:
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MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO,


A. P. et al. (org.) Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, p. 19-
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______. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 10. ed. São Paulo:
Cortez, 2010.
226 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

PERCURSO METODOLÓGICO DE UMA PESQUISA SOBRE POLÍTICAS


LINGUÍSTICAS E INTERNACIONALIZAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA

Jefferson Evaristo (UERJ/UPM)

1. Introdução

Não raramente, para os pesquisadores em início de formação, a tarefa de


realizar alguma pesquisa acadêmica se mostra como algo intangível, não sendo
compreensível de imediato quais são as suas etapas, formas de realização,
organização, conceitos empregados e etc.. É como que uma “tarefa complexa,
exaustiva e, por vezes, misteriosa – no sentido de não haver, efetivamente, uma
preparação prévia para tal atividade (SILVA, 2016).
Ainda assim, apesar desse cenário de aparente impossibilidade, quando
dos estudos em nível de pós-graduação, é demandado dos pesquisadores que
realizem pesquisas complexas, que envolvem árdua e longa preparação,
planejamento e organização. Empreender uma pesquisa que resultará em uma
dissertação ou tese é, de fato, um desafio.
Em geral, raras são as contribuições de pesquisadores que já trilharam
esse caminho, no sentido de mostrar os passos dados que resultaram no trabalho
finalizado. O comum, nesse tipo de situação, é o haver textos teóricos que
ensinam conceitos e teorias sobre a pesquisa e o fazer científico (SEVERINO,
2016; LÜDKE e ANDRÉ, 2015; ANDRÉ, 2015; SIMÕES e GARCIA, 2014;
SANTADE, 2014; MARCONI e LAKATOS, 2010; MINAYO, 1994), mas poucos
trabalhos que ensinam como utilizar na prática esses conceitos e teorias. De
maneira modesta, em duas ocasiões (EVARISTO, 2020; SILVA, 2016), nós
tentamos contribuir com o cenário.
Pensando nisso, nosso texto está estruturado nas seguintes seções: a
primeira, esta, em que apresentamos a proposta a ser desenvolvida. A segunda,
em que demonstraremos alguns de nossos encaminhamentos metodológicos,
apontando brevemente nosso percurso, objetivos e corpus, dentre outros. Na
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |227

terceira seção, mostramos as etapas que empreendemos para alcançar a realização


da pesquisa e, por fim, na quarta parte, deixamos algumas considerações finais
sobre a proposta.

2. Encaminhamentos metodológicos: desenhando um percurso

Na introdução, apresentamos algumas das motivações para este texto. A


partir de agora, detalharemos os encaminhamentos metodológicos empregados
para a realização da pesquisa a que nos referimos, incluindo suas etapas, critérios
de análise e questões que lhe serviram de norte.
Cabe esclarecer que por metodologia da pesquisa entendemos

[...] o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem


da realidade. (...) A metodologia inclui as concepções teóricas de
abordagem, o conjunto de técnicas que possibilitam a construção
da realidade e o sopro divino do potencial criativo do investigador”
(MINAYO, 1994, p. 16).

À adoção de uma concepção de metodologia segue a necessidade de


definir o que se entendeu por pesquisa no âmbito da tese.

2.1. Definição da pesquisa

Em consonância com a ideia de que pesquisa é “a atividade básica da


ciência na sua indagação e construção da realidade” (MINAYO, 1994, p. 17), a
pesquisa realizada assumiu o conceito de Marconi e Lakatos, que consideram a
pesquisa como

[...] um procedimento reflexivo sistemático, controlado e crítico,


que permite descobrir novos fatos ou dados, relações ou leis, em
qualquer campo do conhecimento. A pesquisa, portanto, é um
procedimento formal, com método de pensamento reflexivo, que
requer um tratamento científico e se constitui no caminho para
conhecer a realidade ou para descobrir verdades parciais
(MARCONI e LAKATOS, 2010, p. 139).
228 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Os autores argumentam que uma tese será sempre uma obra de pesquisa,
documentação, reflexão e análise, objeto de uma investigação sistemática. Trata-
se, portanto, “[...] de trabalho científico que levanta, coloca e soluciona
problemas; argumenta e apresenta razões baseadas na evidência dos fatos, com o
objetivo de provar se as hipóteses levantadas são falsas ou verdadeiras”
(MARCONI e LAKATOS, 2010, p. 228). Definir uma pesquisa é definir como o
pesquisador irá se apropriar do objeto/fenômeno que pesquisa, assim como a
forma como ele o compreenderá.
A partir de então, por desdobramento natural, definirá a forma como ele
irá abordar e analisar esse mesmo objeto/fenômeno. “Por essa razão, várias são as
modalidades de pesquisa que se podem praticar, o que implica coerência
epistemológica, metodológica e técnica, para o seu adequado desenvolvimento”
(SEVERINO, 2016, p. 124).
A pesquisa que realizamos definiu como sendo qualitativa. Segundo
Santade (2014, p. 99), “a pesquisa qualitativa define-se como um estudo não
estatístico, que identifica e analisa, de forma acurada, dados de difícil
mensuração”, tratando o objeto de forma subjetiva e interpretando-o com base
não em estatísticas, tabelas e gráficos, mas em análises de cunho interpretativo,
efetivadas por um pesquisador-observador – ou um professor-pesquisador
(BORTONI-RICARDO, 2008). Tal postulado epistemológico se opõe a um outro,
quantitativo, que “faz uso intenso de técnicas estatísticas, correlacionando as
variáveis e verificando o impacto e a validade do experimento” [tendo como uma
de suas principais características a] “descrição dos significados considerados como
inerentes a objetos, atos e fatos” (SANTADE, 2014, p. 98)12.
Pesquisas qualitativas vêm sendo aplicadas nas ciências da linguagem há
algumas décadas, posto que novas concepções e necessidades de pesquisa

12Não pode deixar de ser dito, entretanto, que outros autores afirmam que ser qualitativa não é uma
definição da pesquisa, mas uma forma dentre as suas abordagens (LÜDKE e ANDRÉ, 2015). Isso vai
ao encontro da ideia de que, eventualmente, as abordagens, definições e escolhas podem ser
conflitantes entre si. Trata-se, antes de tudo, de uma característica da pesquisa social e da marcante
análise subjetiva que configura as ciências humanas, sociais e da linguagem.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |229

demandam novas formas de investigação e procedimentos metodológicos


(SEVERINO, 2016; LÜDKE e ANDRÉ, 2015; SIMÕES e GARCIA, 2014;
MARCONI e LAKATOS, 2010). Tais mudanças foram fundamentais,
possibilitando o entendimento de questões que, até então, não eram possíveis sob
um prisma positivista13 – de caráter dedutivo14 e subserviente a uma ideia de
observação e interpretação da realidade dos fatos – seja lá o que se entenda como
realidade dos fatos.
Assim, a opção científica para definição desta pesquisa foi a de conduzi-
la como uma pesquisa qualitativa e indutiva, esta última entendida como um
processo mental

[...] por intermédio do qual, partindo de dados particulares,


suficientemente constatados, infere-se uma verdade geral ou
universal, não contida nas partes examinadas. Portanto, o objetivo
dos argumentos indutivos é levar a conclusões cujo conteúdo é
muito mais amplo do que o das premissas nas quais se basearam
(MARCONI e LAKATOS, 2010, p. 68)

A perspectiva qualitativa foi utilizada nesta pesquisa na análise do


levantamento de pesquisas já realizadas sobre o tema em investigação, que na tese
correspondeu ao capítulo 2. A partir da análise individual dos dados pesquisados,
considerando-se sua totalidade e aquilo que de maneira mais ampla apontavam,
foram levantadas e discutidas as tendências de pesquisa da área, ainda no capítulo
2. A simples leitura individual das pesquisas realizadas não seria capaz de
fornecer esses dados. É por isso que “o papel do pesquisador é justamente o de
servir como veículo inteligente e ativo entre esse conhecimento construído na
área e as novas evidências que serão estabelecidas a partir da pesquisa” (LÜDKE e
ANDRÉ, 2017, p. 5).
Em um trabalho de pesquisa, é necessário o confronto com “o
conhecimento teórico construído a respeito dele” (LÜDKE E ANDRÉ, 2017, p. 2).

13 “De acordo com o paradigma positivista, a realidade é apreendida por meio da observação empírica”
(BORTONI-RICARDO, 2008, p. 14).
14 Processo pelo qual, a partir de premissas gerais (e reincidentes), é possível chegar a proposições

particulares. De um resultado geral, chega-se a uma observação individual.


230 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Uma discussão que desconsidere os percursos já construídos por outros corre o


risco de ser incipiente. Assim, julgou-se importante fazer um levantamento
prévio sobre a produção acadêmica em áreas correlatas que permitissem mapear
entendimentos e tendências15 sobre políticas linguísticas de internacionalização
da língua portuguesa e suas interfaces com os Planos de Ação (PA) da
Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Cassel e Symon (1994 apud SANTADE, 2014, p. 100)16 definem algumas
das linhas gerais de uma pesquisa qualitativa. São elas:

a) Um foco na interpretação ao invés de na quantificação:


geralmente o pesquisador qualitativo está interessado na
interpretação que os próprios participantes têm da situação sob o
estudo;
b) Ênfase na subjetividade ao invés de na objetividade: aqui
se aceita que a busca de objetividade é um tanto quanto inadequada,
já que o foco de interesse é justamente a perspectiva dos
participantes;
c) Flexibilidade no processo de conduzir a pesquisa: o
pesquisador trabalha com situações complexas que não permitem a
definição exata e a priori dos caminhos que a pesquisa irá seguir;
d) Orientação para o processo e não para o resultado: a ênfase
está no entendimento de um processo dinâmico e não num objetivo
pré-determinado e estanque, como na pesquisa quantitativa;
e) Preocupação com o contexto, no sentido de que o
comportamento das pessoas e a situação ligam-se intimamente na
formação da experiência;
f) Reconhecimento do impacto do processo de pesquisa sobre
a situação de pesquisa: admite-se que o pesquisador exerça
influência sobre a situação de pesquisa e é por ela também
influenciado.

Em especial, chamamos a atenção para o item “a” apresentado acima, que


coloca em foco a interpretação como característica da pesquisa qualitativa. Cabe

15 Em Evaristo e Silva (2021) e Evaristo (2021) é possível encontrar exemplificações de pesquisas


realizadas tendo como método esse mapeamento de tendências, ao qual damos o nome de “estado da
arte” (FERREIRA, 2002).
16 Na impossibilidade de ter acesso ao livro original, excepcionalmente, utilizamos a citação a partir

de Santade (2014).
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |231

assinalar que, embora esse modelo de pesquisa admita flexibilidade, exige


observação atenta do objeto investigado. Nesse sentindo, “interpretar” não se
reduz a “opinar”, pois há que se estabelecer critérios de análise e interpretação
dos dados.
Dessa forma, coadunamos com o paradigma interpretativista, segundo o
qual

[...] não há como observar o mundo independentemente das


práticas sociais e significados vigentes. Ademais, e principalmente,
a capacidade de compreensão do observador está enraizada em seus
próprios significados, pois ele (ou ela) não é um relator passivo, mas
um agente ativo (BORTONI-RICARDO, 2008, p. 32)

Em síntese, nossa pesquisa adotou uma abordagem qualitativa-


interpretativista. Importavam para nós não os números absolutos, as
generalizações e as porcentagens, mas a interpretação dos dados.

2.2 Objeto de estudo e sua delimitação

Políticas linguísticas de internacionalização que compõem e norteiam os


Planos de Ação (PA) para a Promoção, Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa,
definidos pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), e suas
relações com as publicações em revistas acadêmicas, estrato Qualis A, entendidas
como veículo de promoção e de reconhecimento da língua portuguesa como
língua de ciência.

2.3. Problematização e questões do estudo

Que a língua inglesa seja, na atualidade, a língua franca da ciência não se


discute. Esse é um fato atestado por diversos autores (GRADIM e PIÑEIRO-
NAVAL, 2019; GRADIM e MORAIS, 2016; RIGHETTI, 2011; FORATTINI,
1997) de diferentes áreas do conhecimento. O mundo globalizado (SCHMIDT,
2012; BRYDON, 2011) impõe a necessidade de uma comunicação que seja efetiva
232 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

internacionalmente, um papel que tem sido desempenhado majoritariamente


pela língua inglesa.
Este fato traz desafios adicionais para a internacionalização de outras
línguas modernas como a língua portuguesa, por exemplo. Se, por um lado, há
documentos oficiais que respaldam os processos de internacionalização como, no
caso dos países lusófonos, os Planos de Ação para a Promoção, a Difusão e a
Projeção da Língua Portuguesa (PAB, 2010; PALis, 2014; PADíli, 2017), por
outro, os veículos de divulgação científica parecem desconsiderar as orientações
desses documentos.
Assim sendo, internacionalizar a língua portuguesa, com base naquilo
que as diretrizes dos PA propõem, especificamente para a ciência e para a
produção acadêmico-científica, é um dos desafios da comunidade lusófona. Ao
mesmo tempo em que o uso da língua portuguesa cresce no mundo, esse
crescimento ainda não acompanha os planos de internacionalização da língua,
como mostram Righetti (2011), Forattini (1997) e, recentemente no Brasil,
cientometristas como Hermes-Lima17. No contexto das revistas acadêmicas, por
exemplo, Gradim e Piñeiro-Naval (2019) e Gradim e Morais (2016) mostram
como o quantitativo de artigos publicados em língua portuguesa tem crescido
exponencialmente nos últimos anos, a ponto de o português ser chamado de
língua de ciência por Castro (2009).
Com base neste cenário propusemos para orientar a investigação as
seguintes questões:

a) Qual a origem do conceito de “políticas linguísticas”, sua complexidade


e suas implicações para a promoção da língua portuguesa?

b) Quais são as tendências contemporâneas da produção acadêmica


brasileira sobre “políticas linguísticas” e suas relações com a promoção
da língua portuguesa?

17O autor, cientista da UNB, costuma publicar seus textos em jornais e blogs, além de em suas mídias
sociais. Vejam-se alguns de seus textos em https://bit.ly/2xb3cDk - acesso em 04/03/2022 às 16h16min.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |233

c) Que políticas linguísticas representam ações conjuntas entre países


lusófonos para a promoção da língua portuguesa e qual o papel da CPLP
neste contexto?

d) De que modo as políticas de produção científica indicadas pelo Qualis A


se alinham às políticas linguísticas em termos de promoção da língua
portuguesa, em especial, como língua de ciência através de revistas
acadêmicas?

As questões acima levantadas estavam estreitamente articuladas com os


objetivos propostos para a pesquisa, como será visto a seguir.

2.4. Objetivos da pesquisa

Tomando em conta o objeto desta pesquisa e suas intenções,


propuseramos os seguintes objetivos:

1) Investigar e analisar, em perspectiva histórica, o conceito de “políticas


linguísticas”, sua complexidade e suas implicações para a promoção da
língua portuguesa.
2) Mapear a produção acadêmica brasileira sobre “políticas linguísticas” e
suas relações com a promoção da língua portuguesa, identificando suas
tendências.
3) Descrever e discutir os Planos de Ação da CPLP, especificamente os de
Brasília, Lisboa e Díli.
4) Identificar e analisar políticas que norteiam a produção acadêmica,
especialmente no Brasil, assinalando seu papel para a promoção da língua
portuguesa (como língua de ciência).
234 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

5) Analisar criticamente as políticas de promoção da língua portuguesa, no


contexto da internacionalização e produção acadêmica em língua
portuguesa.

2.5. Corpus de análise

O corpus de análise desta pesquisa constituiu-se de documentos oficiais


no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), adotados pelo
Brasil como políticas oficiais de projeção internacional, a saber, os Planos de Ação
(PA) de Brasília (2010), de Lisboa (2013) e de Díli (2017). A opção por esse corpus
se deve ao papel da CPLP como instância internacional da comunidade lusófona,
uma vez que é, de certa maneira, a responsável pela gestão internacional da língua
portuguesa18. Cabe ao órgão planejar, gerir e implementar – ou delegar a
implementação – das políticas de promoção da língua portuguesa.
Face à extensão dos PA e a abrangência de temas de que tratam dentro
de uma estratégia internacional de promoção da língua portuguesa, consideramos
necessário estabelecer um recorte para a análise dos documentos, privilegiando
os aspectos relacionados à língua portuguesa como língua de ciência e de
inovação. Esse recorte foi ampliado e incorporou à análise aspectos das políticas
editoriais referentes aos idiomas de publicação das revistas científicas
internacionais, classificadas como Qualis A pela Capes no quadriênio 2013-2016.
Revistas Qualis A representam um padrão mais alto de qualidade, tanto em
termos nacionais como internacionais. Nesta pesquisa importou averiguar, na
perspectiva da ideia de língua de ciência, se e como a língua portuguesa é aceita
para publicação.

3. Etapas da pesquisa

O desenvolvimento desta tese se organizou a partir das seguintes etapas:

18 Ainda que, obviamente, a ação não esteja restrita à CPLP.


Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |235

Etapa 1 – Levantamento preliminar de fontes bibliográficas.

Levantamento inicial de fontes bibliográficas acerca dos seguintes temas:

a) Sobre políticas linguísticas voltadas para a promoção da língua


portuguesa em contexto de internacionalização.

b) Sobre o conceito de política.

c) Sobre a língua portuguesa em contexto para estrangeiros, em sentido


amplo.

d) Sobre a políticas linguísticas e estudos linguísticos, em sentido amplo.

Etapa 2 – Mapeamento da produção acadêmica brasileira sobre políticas


linguísticas.

a) Consulta ao banco de dados da CAPES, selecionando todas as teses e


dissertações disponíveis no catálogo de teses e dissertações da CAPES. (TEMPO –
PALAVRAS-CHAVE)
b) Análise das teses e dissertações para a identificação de tendências dos
estudos na área de políticas linguísticas.

Etapa 3 – Definição preliminar do corpus de análise

a) Planos de Ação da CPLP


b) Revistas Acadêmicas Qualis A.

Etapa 4 – Proposição de categorias de discussão


236 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Esta tese se organizou a partir das seguintes categorias:


encaminhamentos metodológicos; tendências e conceitos atuais em políticas
linguísticas; origens do conceito de políticas linguísticas; planos de ação e suas
relações com as revistas acadêmicas; internacionalização e o português como
língua de ciência.

Etapa 5 – Definição dos encaminhamentos metodológicos.

Etapa 6 – Produção, organização e análise de dados.

Etapa 7 – Elaboração do Relatório Final

4. Considerações finais

O percurso que indicamos neste texto, esperamos, foi uma forma de


colaborar com a tarefa de novos pesquisadores em sua realização de dissertações
e teses, especialmente no campo das políticas linguísticas e da internacionalização
da língua portuguesa.
Nesse sentido, buscamos demonstrar alguns dos princípios que
nortearam a pesquisa, como a delimitação de seus objetivos, corpus, concepções,
conceitos e etapas.
Esperamos, aqui, que outros pesquisadores e profissionais possam se
sentir incentivados e amparados em suas tarefas, sabendo que, entretanto,
apresentamos uma proposta de caminho que não é única, exaustiva, perfeita,
irretocável ou impassível de críticas.

REFERÊNCIAS

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pesquisa qualitativa. São Paulo: Parábola Editorial, 2008
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |237

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R.; ARAUJO, V. (Orgs.) Formação de professores de línguas: ampliando
perspectivas. Jundiaí: Paco Editorial, 2011.

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Internacionalização da Língua Portuguesa. Associação Sindical dos Diplomatas
Portugueses, Lisboa, 16.VI.2009

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contexto de PLE no Brasil. ÑEMITYRÃ: Revista Multilingüe de Lengüa, Sociedad
y Educación, v. 3, p. 127-133, 2021

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estado da arte do caso Manaus. REVISTA DIÁLOGOS (REVDIA), v. 9, p. 82-96,
2021

EVARISTO, Jefferson. Percurso metodológico de uma pesquisa medieval em


estudos linguísticos sobre a “língua italiana”. MEDIEVALIS, v. 9, p. 1-23, 2020

FERREIRA, Norma S. de A. As pesquisas denominadas “Estado da arte”. Revista


Educação & Sociedade, ano XXIII, nº 79, agosto/2002

FORATTINI, Oswaldo Paulo. A Língua Franca da Ciência. Revista de Saúde


Pública, São Paulo, v. 31, p. 3-8, 1997

GRADIM, Anabela; MORAIS, Ricardo. Tendências atuais na publicação


científica: o português como língua de ciência. OBS*, Lisboa, v. 10, n. 3, p. 119-
134, out. 2016 .
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GRADIM, Anabela; PIÑEIRO-NAVAL, Valeriano. Políticas para português e


espanhol: a segunda língua de publicação do mundo em teia da ciência. Inf. &
Soc.:Est., João Pessoa, v.29, n.2, p. 145-160, abr./jun. 2019

LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens


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RIGHETTI, Sabine. Língua portuguesa esconde ciência nacional. Rem: Rev. Esc.
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e práxis. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2014.
240 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

ESTUDOS DE GRAMÁTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL: TRANSITIVIDADE E


CONTEXTO NO ENSINO DE GRAMÁTICA DE LÍNGUA PORTUGUESA

Jordana Lenhardt (IFMT)

1. Apresentação

Pensar a língua como um sistema influenciado pelo uso é ver em cada


texto diferentes escolhas, e, em cada escolha posicionamentos, crenças e
motivações diferentes.
Aquele que estiver consciente das relações de poder que envolvem a
língua pode perceber na/pela linguagem possibilidades de manter as coisas como
estão ou de desafiá-las. Percebendo que as regras de uso são na verdade
convenções sociais construídas pelo ser humano, e que são essas convenções que
determinam o que é considerado, ou não, adequado em determinado contexto em
uma comunidade de fala. Buscamos assim, ver os estudos linguísticos por uma
perspectiva dinâmica e funcional.
A produção de estudos gramaticais no Brasil pode ser traçada a partir da
obra “Breve retrospecto sobre o ensino de Língua Portugueza”, de Maximino
Maciel, que antecede sua “Grammatica Descriptiva” de 1914. Qualificada pelo
autor como uma gramática descritiva, a obra tem por objetivo: “(...) a
sistematização orgânica dos fatos e normas próprios de uma língua, isoladamente
considerada.” (1914, p. 1).
Fávero e Molina (2006), em um estudo das concepções linguísticas no
Brasil no século XIX, propõem considerar a gramática, de acordo com Chartier,
como um objeto cultural, que expressa uma materialidade e um espaço de
relações. Nessa obra, as autoras relacionam o progresso sociocultural no país com
os primeiros ensaios de consciência linguística e a tarefa de descrição e ensino do
português brasileiro por meio da produção gramatical.
Em uma linha descritiva, no Brasil, atualmente, trabalhos como os de
Maria Helena de Moura Neves, com a obra “Gramática de Usos do Português”
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |241

(2011), e Ataliba de Castilho, com “Nova Gramática do Português Brasileiro”


(2010) podem ser citados por buscar uma visão não tradicional da língua.
O trabalho aqui apresentado se constitui de uma proposição de estudos
gramaticais da língua portuguesa em perspectiva funcional, e tem por base a
Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) da língua inglesa de Halliday (1994). Nesse
sentido, objetiva a descrição e análise da língua a partir de textos de contextos
reais de uso.
Um olhar para o uso da língua portuguesa atualmente no Brasil sob tal
perspectiva se constitui em um desafio, consideradas as particularidades da língua
e sua natureza dinâmica, especialmente no que diz respeito à adaptação e as
diferenças entre as categorias gramaticais da língua portuguesa do Brasil e as da
língua inglesa, em que a GSF foi concebida.
As proposições apresentadas a seguir partem do princípio de que é
refletindo a funcionalidade do sistema gramatical da língua, a partir do uso de
itens lexicais e gramaticais, que significados são co-construídos e definem-se
funções.

2. Justificativa

Ao propor um olhar para o sistema da língua, em uma perspectiva


funcional, a gramática deve ser compreendida e interpretada no discurso e em
seus diferentes contextos de interação. Portanto, ao contrário de uma gramática
formalista, busca demonstrar escolhas feitas no uso da língua de acordo com o
contexto, a fim de conscientizar de que essas escolhas, mesmo quando
inconscientes, significam.
Os textos apresentados e analisados a seguir, demonstram que as
escolhas/diferenças no uso da língua podem ser motivadas por mudanças em
relação a quem escreve/lê, mesmo em se tratando do mesmo gênero, e assim
buscam conscientizar.
Tomando por base que textos são resultado de toda e qualquer situação
de interação, os estudos aqui apresentados, buscam analisar a língua em relação a
242 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

sua função social, no modo como ela é usada, ou seja, a língua enquanto escolha.
Para tanto, analisamos 2 textos retirados de contextos reais de comunicação,
dados reais de fala/escrita.

3. A Gramática Sistêmico-Funcional

Nos caminhos teóricos que orientam nossos estudos, Halliday pode ser
considerado um dos linguistas mais influentes do século XX, com uma teoria que
se caracteriza por ser de base paradigmática, em que o componente semântico
assume importância central.
Esse autor defende que a língua é o que é por possuir uma função social,
o falante/escritor faz determinadas escolhas linguísticas em detrimento de outras,
e é essa relação que gera um sistema que influencia e é influenciado pelos que
estão a sua volta: “a língua é como é por causa das funções em que ela evoluiu na
espécie humana.”. (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p.31)19
Também designada Linguística Sistêmico-Funcional, ou LSF, a teoria de
Halliday relaciona a natureza da língua com as necessidades que lhe impomos e
as funções a que ela deve servir. Portanto, a LSF corresponde a uma teoria geral
de funcionamento da linguagem humana, uma abordagem descritiva baseada no
uso.
A Gramática Sistêmico-Funcional Hallidiana (doravante GSF) de 1970
recusa as descrições meramente estruturais até então dominantes na linguística e
propõe olhar mais amplo, não somente para o sistema da língua, mas para suas
funções em simultâneo, relacionando texto e contexto, e descrevendo as redes de
escolhas da léxico-gramática que realizam o potencial semântico do sistema.
Nesse sentido, os pressupostos teórico-metodológicos da LSF fornecem
instrumentos de descrição da língua, recusam as descrições meramente
estruturais e, dessa forma, elegem o uso como marca fundamental de
caracterização de uma língua (op. cit.), descrevendo como e por que a língua pode

19Tradução minha para: “Language is as it is because of the functions in which it has evolved in the
human species”
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |243

variar em função de e em relação com grupos de falantes e contextos de uso. Para


esse autor:

Gramática vai além de regras formais de correção. Ela é um meio


de representar padrões da experiência. Ela possibilita aos seres
humanos construir uma imagem mental da realidade, a fim de dar
sentido às experiências que acontecem ao seu redor e dentro deles.
(HALLIDAY, 1985, p.101)

Olhar a gramática é um dos aspectos mais interessantes do estudo da


língua, uma vez que pressupõe hierarquias, inclusive semânticas. Para que se
contemple a língua em uso, na orientação teórica adotada, tomamos o texto por
unidade maior de funcionamento da língua. É no texto, composto por enunciados,
que as entidades da língua devem ser avaliadas em relação ao nível em que
ocorrem e em relação ao próprio texto.
A Gramática de Halliday, que começa a ser delineada em 1970, tem seus
estudos aprofundados e desenvolvidos em coautoria com Matthiessen em 1994.
Como uma teoria social de uso, a GSF considera a conexão texto-contexto, em
que o texto é por essência uma entidade semântica, uma troca social de
significados entre falante/escritor e ouvinte/leitor em um contexto de situação.
Para Halliday e Matthiessen (1994) todo o texto acontece em algum
contexto de uso e são esses usos linguísticos dão forma ao sistema, ou seja, a
gramática é a forma particular assumida pelo sistema de uma língua. Desse modo,
o autor defende que a gramática está intimamente relacionada com as
necessidades sociais e pessoais que a língua é chamada a servir.
Nessa perspectiva, a língua é vista como um potencial de significados e
se organiza em redes de escolhas que correspondem a suas funções básicas. Para
o autor (op. cit.), a linguagem desempenha três funções para além da função
comunicativa, denominadas por ele “metafunções”: ideacional, interpessoal e
textual.
As metafunções, para Halliday e Matthiessen (1994), ocorrem
simultaneamente e fornecem explicações do uso da língua a partir das
necessidades ou propósitos do falante em determinado contexto de situação. Na
244 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Metafunção Interpessoal, focalizam-se as relações sociais em termos de atribuição


de papeis de fala entre falante e ouvinte, ou entre escritor e leitor; a Metafunção
Ideacional, diz respeito ao uso da língua como representação, estando relacionada
ao mundo externo; já na Metafunção Textual se relaciona à variável de registro,
se expressa por meio da ordem dos constituintes da oração, dando significado à
mensagem.

 Contexto(s):

Como a grande preocupação da GSF é compreender e descrever a


linguagem em funcionamento, a vemos como um sistema de comunicação
humana, vinculada ao seu contexto de uso, e não como um conjunto de regras
gerais. Assim, analisar a língua em uso é partir de produtos autênticos da interação
social (textos), que precisam ser vinculados ao seu contexto de uso. Podemos
dizer, então, que é na situação em esses textos ganham vida.
Nos estudos etnográficos da linguagem de Malinowski (1923, 1935)
vemos os primeiros traços de uma visão bipartite do contexto em uma distinção
entre “contexto de situação” e “contexto de cultura”. Posteriormente, tais noções
do contexto foram aprofundadas e desenvolvidas por Firth, para o qual o contexto
de situação também não deve ser interpretado em termos concretos, mas como
uma representação abstrata do meio.
Firth (1937, p.110) se deu conta de que o significado é contextualmente
motivado. Para esse autor, o significado é mais bem entendido como “um
complexo de relações de vários tipos entre os termos componentes de um
contexto de situação”.
No Brasil, estudos de Cunha e Souza (2007, p. 20) apontam o contexto de
cultura como a soma de todos os significados possíveis de fazerem sentido em uma
cultura particular, e nele, falantes e ouvintes usam a linguagem em contextos
imediatos, mais específicos, conhecidos na GSF como contexto de situação.
Percebemos então, que os textos ocorrem dentro de dois contextos, um
dentro do outro, contexto de situação e contexto de cultura. A combinação dos
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |245

dois tipos de contextos resulta em semelhanças e diferenças entre textos, pois tais
contextos influenciam e regulam a produção e o uso da língua.
A noção de contexto implica fortemente nos significados que queremos
“fazer” ou transmitir, assim, tão importante quanto nossa habilidade linguística,
são os aspectos contextuais, é preciso conhecimento de como as coisas são
tipicamente/obrigatoriamente ditas em determinado contexto.
A relação texto-contexto é tão forte, que podemos prever os significados
ou as características linguísticas potenciais mais previsíveis que serão ativadas em
determinado contexto, tanto quanto, é possível deduzir o contexto em que um
determinado texto fora produzido, utilizando-se desses mesmos aspectos, em uma
relação probabilista (cf. HALLIDAY, 1992).
Para Halliday (1985), elementos linguísticos não significam
isoladamente, assim, os parâmetros do contexto de situação afetam nossas
escolhas linguísticas, porque refletem as três funções que constituem os
propósitos principais da linguagem, as chamadas metafunções da linguagem:
ideacional, interpessoal e textual.
Os conceitos de gênero, enquanto contexto de situação, e registro, como
contexto de cultura, são as duas principais camadas do contexto que tem impacto
no texto, as duas principais dimensões de variação entre textos.
O conceito de gênero, conforme Bakhtin (2003, p. 266) está relacionado
a diferentes atividades em uma cultura, em que determinadas condições de
comunicação discursiva, específicas de cada campo de atividade humana geram
determinados tipos estilísticos, composicionais e temáticos relativamente
estáveis, ou seja, determinados gêneros. Em outras palavras, o gênero é produzido
no contexto de cultura, e surge ou se modifica em função da atividade social
humana.
Para a GSF todo o texto é multidimensional e possibilita a realização,
simultaneamente, das três funções ou três tipos de significado, presentes em
qualquer uso da linguagem.
Conforme as teorias de Halliday (1985) e Halliday e Mathiessen (2004),
as metafunções da linguagem realizam-se gramaticalmente por meio de escolhas
246 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

léxico-gramaticais, que ocorrem de acordo com a situação comunicativa, estando,


assim, as necessidades comunicativas diretamente relacionadas ao contexto de
situação, como podemos perceber no quadro abaixo:

Variáveis de Contexto Metafunções Realizações Léxico-gramaticais


Campo Ideacional Transitividade
Relações Interpessoal Modo e Modalidade
Modo Textual Tema e Rema
Tabela 1: Variáveis de contexto, metafunções e suas realizações léxico-gramaticais.

Enquanto a metafunção ideacional, (cf. HALLIDAY; MATTIESSEN,


2004) representa e constrói significados de nossa experiência, tanto do mundo
interior (psicológico) quanto do exterior (social), por meio do sistema de
transitividade; a metafunção interpessoal representa a interação e os papeis
assumidos pelos participantes por meio dos sistemas de modo e modalidade; e a
metafunção textual, por meio do sistema temático, está ligada ao fluxo de
informação e organiza a textualização.

4. A Transitividade

O fenômeno da transitividade é visto em estudos gramaticais sob diversos


viesses, enquanto as gramáticas tradicionais concentram-se mais no fenômeno da
regência, as gramáticas descritivas enfocam mais valência e transitividade.
A transitividade, como um fenômeno gramatical complexo, tem sido
investigada sob diversos olhares teóricos. Sob a égide do funcionalismo, defende-
se que a estrutura reflete e é motivada pela função. A obra “transitividade e seus
contextos de uso” de Cunha e Souza (2007), aponta que os conceitos de regência
verbal, valência verbal e transitividade são tratados como sinônimos tanto em
gramáticas tradicionais (cf. CUNHA; CINTRA, 1985; SAID ALI, 1971) como nas
descritivas (NEVES, 2011; PERINI, 1995; CASTILHO, 2010).
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |247

Nas gramáticas tradicionais o enfoque recai em critérios semânticos e


formais, e a transitividade é tomada como uma propriedade inerente ao verbo.
Como afirma Celso Luft (2002), um verbo transitivo é aquele que "necessita de
um objeto que lhe complemente o sentido" (p.59), já o verbo intransitivo, é o que
não necessita de complemento, pois possui uma predicação completa.
Apesar da rígida distinção entre verbos transitivos e intransitivos, mesmo
as gramáticas tradicionais apontam que a demarcação entre eles nem sempre pode
ser rigorosa. Said Ali, em 1971, na obra “Gramática histórica da língua
Portuguesa” já salientava que alguns verbos transitivos podem ser empregados
intransitivamente.
O Dicionário de Linguística e Linguagem (TRASK, 2004, p. 299)
conceitua o termo, de forma bastante tradicional, como "a maneira pela qual o
verbo se relaciona com os sintagmas nominais numa mesma oração". Em
contrapartida, a noção de transitividade sob a perspectiva funcionalista é
assinalada pelo autor ao afirmar que esse termo pode ser entendido como
denotando o tipo de atividade ou processo expresso por uma sentença, o número
de participantes envolvidos e a maneira como estão envolvidos.

4.1. A Transitividade para a GSF:

O fenômeno da transitividade na GSF é entendido como uma categoria


gramatical dentro da função ideacional da linguagem. Seu sistema permite
identificar as ações e atividades humanas que estão sendo expressas no discurso e
a realidade ali retratada, isto é, os elementos da transitividade (processos,
participantes e circunstâncias) traduzem nossa experiência em linguagem.
Na perspectiva de uma gramática funcional (cf. HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2004) entendemos a transitividade, não como uma propriedade
intrínseca do verbo, já que a oposição entre transitivo e intransitivo não é
absoluta, mas que ela está sujeita a fatores que ultrapassam o âmbito do Sintagma
Verbal (SV), deve ser vista de acordo com o texto, e não isoladamente.
248 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Os principais papéis de transitividade são: Processos, Participantes e


Circunstâncias, os quais possuem várias subdivisões, há vários tipos de processos,
com participantes específicos e várias circunstâncias. De modo geral, com base
em Cunha e Souza (2007), podemos dizer que esses três conceitos correspondem
às três classes de palavras da Gramática Tradicional da Língua Portuguesa: verbo,
substantivo e advérbio e, nos permitem identificar quem faz o quê, a quem, e em
que circunstâncias.
Dada essa variedade de possibilidades, o ponto central da teoria
hallidiana reside na questão da escolha, pois, ao falar/escrever, o falante/escritor
está realizando uma escolha dentre várias outras prováveis, assim fazendo com
que o uso da língua tenha um caráter probabilístico (cf. HALLIDAY, 1992).
Nesse sentido, para Halliday e Matthiessen (2004), é nesse sistema que o
falante constrói um mundo de representações, baseado na escolha de um número
tangível de tipos de processos.
Os Processos (verbos) desempenham papel central no sistema de
transitividade, sistema pelo qual eles podem ser divididos em seis tipos: sendo os
principais: materiais, mentais e relacionais; e os secundários: verbais,
comportamentais e existenciais, conforme a figura a seguir:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |249

Figura 1: Processos do Sistema de Transitividade da LSF.


Traduzido de: Halliday & Matthiessen, 2004, p. 172.

A cada um desses processos relacionam-se participantes específicos,


substantivos ou nomes, e circunstâncias, informações adicionais atribuídas por
meio de advérbios ou sintagmas adverbiais.
Os Participantes, se realizam por meio dos sintagmas nominais (SN), são
elementos envolvidos com os processos, de forma obrigatória ou não.
As Circunstâncias, o terceiro componente no sistema de transitividade,
as quais se referem às condições e coerções relacionadas aos processos. Como dito
anteriormente, elas se realizam gramaticalmente por meio de advérbios ou
sintagmas adverbiais. Ao contrário dos participantes, as circunstâncias ocorrem
livremente com qualquer tipo de processo, e com a significação que lhe é inerente
onde quer que se realizem. Isso não quer dizer, porém, que em um determinado
contexto de uso, uma circunstância não possa revelar sentido diferente, para além
da sua significação básica.

5. Análise de dados

Para ilustrar o sistema analítico proposto nesses estudos, encontramos no


gênero receita a possibilidades de análise de textos reais e cotidianos de fácil
acesso e reconhecidos pela maioria dos falantes.
Escolhemos, então, como corpus deste estudo dois textos, duas receitas
de bolo de laranja retiradas da internet por meio de uma pesquisa no site Google
tendo por palavras-chave o sintagma “receita bolo de laranja”. As receitas foram
escolhidas de forma aleatória e são as seguintes: “bolo fofo de laranja com calda”
do site “Gshow” da globo.com e “bolo de laranja fofinho” do site “receitas e
temperos”, ambas classificadas como receitas fáceis.
Os textos escolhidos, de maneira geral, podem ser facilmente
reconhecidos por qualquer falante de português brasileiro. Pois, a receita, como
um gênero discursivo, apresenta-se com duas partes textuais bem definidas,
denominadas: ingredientes e modo de preparo. Os textos selecionados
250 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

apresentam essas duas partes, elementos os quais podemos definir como


compulsórios ao gênero.
Analisar o sistema de transitividade, nos permite identificar ações e
atividades humanas expressas no discurso e como essa realidade está sendo
retratada, os dados dos textos escolhidos, analisados contrastivamente trazem
alguns aspectos relevantes, como:
a) Há predominância de processos materiais na parte denominada como
modo de preparo nos dois textos. Esses processos, para Halliday (1994),
são processos de fazer e estão relacionados a ações do mundo físico.
A predominância de processos do tipo material se deve ao fato de que
esses são responsáveis pela criação de uma sequência de ações concretas, que
conforme Halliday e Matthiessen (2004), podem ser criativas ou de
transformação. Tidos como os processos do “fazer”, eles se constituem de ações de
mudanças externas, físicas e perceptíveis, bastante condizentes com o objetivo de
uma receita culinária.
b) Há ainda, nos dois textos, um grande número de ocorrências de
circunstâncias, o que não pode ser considerado inesperado, já que esse
gênero tem como intenção a instrução de pessoas a “fazer” algo, e,
especificamente no caso das receitas fáceis, como as que aqui analisamos,
instruir pessoas sem muita experiência com a prática culinária.
O texto 1, “bolo fofo de laranja com calda”, não apresenta ocorrências de
outros tipos de processos além do material e pode ser considerado um texto
bastante sucinto. Nos Processos materiais o ator é aquele que faz a ação, enquanto
a meta é o participante para quem a ação é direcionada.
O modo de preparo, neste texto, está divido em passos, o que pode
facilitar tanto o entendimento daquele que prepara quando a sua visualização
durante o processo do fazer culinário. Esse texto apresenta 9 ocorrências de
processos materiais (sendo uma delas uma locução verbal tendo por núcleo um
material) 8 delas no imperativo, o que, para a GSF, indica modulação. Já que
receitas são instruções de “fazer culinário”, para cada verbo há uma circunstância.
Vejamos um exemplo de processo material no imperativo:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |251

Excerto 1 (Texto 1)
(Você) Bata os ovos com o açúcar e a margarina.
ator processo material meta circunstância de acompanhamento

No exemplo acima, apesar de o ator não estar explicito na oração,


podemos recuperá-lo pelo verbo no imperativo, você. Nesse sentido, conforme
Castilho e Elias (2012), os sujeitos são sintagmas nominais que concordam em
pessoa e número com o verbo, mas não precisam obrigatoriamente aparecer na
sentença.
O imperativo, para Neves (2011, p. 805), pode ser caracterizado como
“um ato de fala injuntivo”, ou deôntico. Para Castilho e Elias (2012, p. 179),
expressando uma ordem ou um pedido, dirigido ao interlocutor, ele só deveria ser
conjugado na segunda pessoa.
Na GSF (cf. HALLIDAY E MATTHIESSEN, 2004), o uso do imperativo
é característico de modulação, ou “modalidade deôntica”, e ocorre em propostas,
ofertas e comandos, com graus distintos de inclinação ou obrigação entre os polos
positivo e negativo.
Quanto as circunstâncias, Fuzer e Cabral (2010) esclarecem que elas
adicionam significados a oração pela descrição do contexto dentro do qual o
processo se realiza. No caso em tela, vista classificação fornecida pelas autoras,
podemos classificar “com o açúcar e a margarina” como circunstância de
acompanhamento comitativo.
Vejamos o segundo exemplo:

Excerto 2 (Texto 1)
(Você) Leve Ø ao fogo.
Ator processo material meta circunstância de localização

No segundo excerto, como nos demais casos de processo material no


imperativo, recuperamos o ator (sujeito) por meio do processo (verbo), e, por
meio do texto, podemos recuperar a meta (objeto).
252 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

O texto 2, “bolo de laranja fofinho”, assim como o texto 1, também não


apresenta outros tipos de processos, além do processo material, no modo de
preparo.
Ressaltamos, porém, que os processos materiais nessa receita, ao
contrário da primeira, não estão todos modalizados (no imperativo). O modo de
preparo da massa do bolo tem por ator a primeira pessoa do singular. A modulação
(imperativo) ocorre em uma segunda parte do preparo, a qual podemos
denominar “preparo da calda”, em que o ator em primeira pessoa dá lugar ao usual
imperativo – modulação.
Vejamos os exemplos:

Excerto 3 (Texto 2)
Na batedeira, eu bato a manteiga.
circunstância de localização ator processo material meta
(lugar)

A sentença acima tem o tema marcado, ou seja, invertida a ordem usual


(sujeito, verbo, objeto), a circunstância aparece em evidência. Logo após o ator
“eu” seguido do processo material “bater” e da meta.
Vejamos mais um exemplo:

Excerto 4 (Texto 2)
(Eu) Misturo Delicadamente […]
Ator processo material Circunstância de modo

No exemplo acima, apesar de implícito, o ator “eu” pode ser recuperado


pelo processo material “misturar”, no presente indicativo.
Podemos dizer que o uso do imperativo é uma das características
compulsórias do gênero receita, portanto, não acreditamos que sua alteração
ocorra sem motivação ou intenção. A escolha por um padrão diferente, ao usar o
presente indicativo, em uma receita pode ser justificada por uma informação
encontrada na página do site que traz a receita: “*receita patrocinada”.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |253

Como essa receita é uma receita patrocinada pela maizena®, ao assumir


o ator dos processos em primeira pessoa do singular e no presente indicativo, a
culinarista do site “receitas e temperos” assume a autoria das práticas ali
apresentadas e dá ao leitor a ideia de um testemunho. Essa pequena alteração,
imperceptível à leitores desavisados, traz ao texto um tom de veracidade,
frequência e pessoalidade, o que no caso em tela, pode estar sendo usado a fim de
favorecer esse tipo de prática culinária e, assim, a venda desse produto.
Nesta esteira, Castilho e Elias (2012, p. 178) definem que entre os três
modos verbais do português brasileiro, o modo indicativo é “o dito como um
estado de coisas real, verdadeiro”, enquanto o modo imperativo expressa uma
ordem, possibilidade ou necessidade.

6. Considerações finais

Como pudemos apreciar nas análises e textos apresentados, a linguagem


está longe de seguir um único padrão linguístico mesmo em um gênero tão
utilizado e conhecido no português brasileiro, deve sim ser vista como um dos
sistemas de significados que compõem a cultura humana.
Como já mencionamos anteriormente, a metafunção ideacional
representa e constrói significados de nossa experiencia, é responsável pela
representação do nosso mundo exterior e interior. Assim, os elementos da
transitividade: processo, participantes e circunstâncias trazem à tona
representações calcadas na escolha.
Perceber a linguagem sob a perspectiva funcional, é refletir a língua em
uso, as escolhas, e como elas significam. Categorias linguísticas não devem, então,
ser consideradas inflexíveis, discretas e nem mesmo binárias, mas sim vistas em
um continuum, considerando texto e contexto.
Ao promover a análise contrastiva de textos de um mesmo gênero,
especialmente um gênero tão comum como a receita culinária, buscamos rastrear
escolhas que contextualizadas revelam sentidos a fim de conscientizar.
254 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

REFERÊNCIAS

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256 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

SOCIOLINGUÍSTICA: VARIAÇÃO E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA,


UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA

Juliete Maganha Silva (UENF)


Iago Pereira dos Santos (UENF)
Bárbara Viana Villaça (UENF)
Eliana Crispim França Luquetti (UENF)

1. Introdução

O cotidiano dentro dos espaços escolares está cada vez mais desafiador,
pois exige dos profissionais da área, principalmente professores, atitudes capazes
de transformar por meio de práticas educativas pensamentos e ações, no intuito
de promover o respeito e a compreensão dos sujeitos às individualidades
existentes no bojo da sociedade.
Posicionar-se contra qualquer forma de preconceito e desenvolver ações
que promovam a valorização cultural é indispensável para a garantia do direito a
uma educação de qualidade para todos, sem distinção de cor, gênero, religião ou
nível socioeconômico. Dentre as possíveis formas de preconceito está o
linguístico que, assim como os outros, gera muitos transtornos e dificuldades de
ensino e aprendizagem no cotidiano escolar.
No que diz respeito às questões extralinguísticas que compõem o cotidiano
da escola, as diversas formas de se expressar ou variações linguísticas são
influenciadas por fatores geográficos, de gênero, socioeconômicos, de faixa etária,
dentre outras peculiaridades nas quais os indivíduos estão inseridos. Esses fatores
vivenciados pelos indivíduos têm grande influência na formação de sua
linguagem e podem ser observados nos diferentes modos de falar, gerando a
discriminação, sobretudo, o preconceito linguístico na sociedade, provocado por
aqueles que se denominam falantes nativos do português padrão, o qual é
criteriosamente pautado em regras que delimitam o que é certo e o que é errado
em torno da língua.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |257

O preconceito linguístico pode ser visto constantemente no dia a dia,


inclusive no ambiente escolar, principalmente na relação professor/aluno, onde
alguns professores corrigem seus alunos de forma ineficaz quando os mesmos não
respeitam a norma padrão da língua portuguesa. Esses profissionais da Educação
assumem uma postura equivocada quando ensinam a língua portuguesa, tomando
modos peculiares de se expressar, que não correspondem ao padrão estabelecido
pelos compêndios de gramática, como desvios normativos. Entretanto, um
comportamento repreensivo por parte do professor pode trazer resultados
negativos para a aprendizagem da própria norma padrão, uma vez que o aluno
passa a se sentir envergonhado, criando um bloqueio que o impede de se expressar
e que consequentemente irá interferir no seu rendimento de maneira geral.
É por isso que esta pesquisa tem como tema os aspectos que constituem a
ciência Sociolinguística, à medida que trata da variação linguística no cotidiano
escolar, mais precisamente no ensino de língua portuguesa. Esse tema tem como
pressuposto o fato de que o aluno leva traços da comunidade linguística a que
pertence para a sala de aula e, muitas vezes, esse fato é trabalhado de forma
inadequada, principalmente nas aulas de língua portuguesa, na qual o educando
deveria ampliar o seu aspecto comunicativo, assumindo uma postura
epilinguística ao invés de metalinguística frente a sua língua materna.
O objetivo geral desta pesquisa foi discutir a importância dos
conhecimentos da sociolinguística, doravante, sociologia da linguagem,
levantando questionamentos que buscam sensibilizar alunos e professores para a
diversidade linguística que se encontra nas salas de aula. Para tanto, nos
subsidiamos nos estudos de pesquisadores que se dedicam ao tema, como Bagno
(2015), Bortoni-Ricardo (2005), Cagliari (2009), Camacho (2004), Geraldi (2006),
Mollica (2003), dentre outros autores. Nesse sentido, este artigo busca contribuir
para as práticas pedagógicas docentes, propondo a conscientização do professor
frente às variações linguísticas que são identificadas no âmbito da diversidade
linguística presente no ambiente da sala de aula.
258 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

2. Sociolinguística: uma breve concepção da relação entre língua e sociedade

Sempre ouvimos ao nosso redor alguém com um vocabulário ou sotaque


diferente do nosso, e que muitas vezes os achamos “estranhos” e que fazem parte
de uma fala considerada “errada”. Mas será que existe mesmo o correto quando
estamos nos referindo aos atos de fala? Alguns podem acreditar que sim, outros
não. O fato é que a Sociolinguística, ramo da linguística que estuda a relação entre
língua e sociedade, tem no centro de seus estudos os usos linguísticos concretos e
admite que para cada situação de uso concreto da língua uma forma de registro
linguístico será utilizada em detrimento de outra.
A Sociolinguística surge a partir da importância dada à fala, sua
preocupação é com o fenômeno linguístico em sua abrangência dialetal e
variacional, observando como a língua funciona em um contexto de fala e quais
os fatores que influenciam para que as mudanças linguísticas aconteçam. Seus
estudos foram fortalecidos a partir de 1964 com a realização de um congresso na
Universidade da Califórnia, em Los Angeles, Estados Unidos, organizado por
William Bright, contando com a participação de importantes figuras nos estudos
da Sociolinguística mundial: William Labov, Dell Hymes e John Gumperz
(SOUSA, 2005). Essa ciência surgiu para mostrar que não existe um padrão que se
encaixe em todas as manifestações de linguagem existentes na sociedade. Mollica
(2003, p.09) define a Sociolinguística como:

uma das subáreas da Linguística que estuda a língua em uso, no seio


das comunidades de fala, voltando a atenção para um tipo de
investigação que correlaciona aspectos linguísticos e sociais. Esta
ciência se faz presente num espaço interdisciplinar, na fronteira
entre língua e sociedade, focalizando precipuamente os empregos
linguísticos concretos, em especial os de caráter heterogêneo.
(MOLLICA, 2003, p.9)

Os objetos de estudo da sociolinguística são representados pela variação


regional, variação social e variação estilística. A variação regional é motivada por
fatores geográficos; a variação social se refere às diferenças observadas na
linguagem de diversos grupos sociais, os quais podem ser formados por critérios
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |259

variados, como: idade, classe social, escolaridade, sexo, etnia, profissão, entre
outros. A oposição mais importante quanto à classe social e a escolaridade, fatores
geralmente apresentados juntos, se dá entre a variedade mais próxima da chamada
“norma culta” (variedades padrão) e as falas coloquiais (variedades não-padrão).
Já variação estilística refere-se às diferenças nas falas de um mesmo indivíduo.
Dependendo da situação em que se encontra, ele escolhe o tipo de linguagem que
julga ser mais conveniente, como por exemplo: o tipo de ouvinte, a relação entre
os interlocutores, o estado emocional do falante, o grau de formalidade do
discurso ou informalidade. (MOLLICA, 2007).
Por conseguinte, a língua é diferente em qualquer ato de comunicação em
que se realiza, pois seus usuários possuem propósitos e estratégias diferentes ao
utilizá-la. Seu uso é feito de forma singular, independentemente da similaridade
de objetivos a serem alcançados, devido às particularidades de cada situação que
faz com que o usuário busque recursos mais adequados para tal (TRAVAGLIA,
2007).
A grande diversidade linguística é discutida a fundo entre os estudiosos da
área. Camacho (2004, p. 35) mostra:

[...] toda língua varia, isto é, não existe comunidade linguística


alguma em que todos falem do mesmo modo. Isso ocorre porque a
variação é o reflexo de diferenças sociais, como origem geográfica
e classe social, e de circunstâncias da comunicação.

Assim, língua e sociedade estão profundamente ligadas, como afirma


Calvet (2002, p. 12), quando reitera que “as línguas não existem sem as pessoas
que as falam, e a história de uma língua é a história de seus falantes”. Todos os
tipos de diversidades são importantes para a formação da identidade social de um
grupo e a diversidade linguística não está fora disso. É por meio da fala podemos
perceber muito sobre o falante, como por exemplo, classe social, grau de
escolaridade, faixa etária, gênero, religião, dentre outras particularidades.
A partir de toda diversidade de formas de expressão, para vários propósitos
por um grande número de falantes, Travaglia (2007) alega que
260 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

O problema da variação remete ao julgamento do que é certo ou


errado em linguagem que, por sua vez, é julgamento relativo e
dependendo do conceito de norma. Norma em linguagem pode ser
tratada dentro de duas perspectivas. Tradicionalmente se considera,
dentro da norma, a linguagem que estiver de acordo com os padrões
de língua culta que as gramáticas normativas tradicionais
preconizam e, numa perspectiva menos tradicional, norma seria o
uso comum que vários indivíduos de um mesmo grupo social fazem
da língua (TRAVAGLIA, 2007, p. 30-31).

Marcos Bagno que é defensor dos princípios sociolinguísticos no Brasil


vem justamente defender essa importância:

É preciso abandonar essa ânsia de tentar atribuir a um único local


ou a uma única comunidade de falantes o “melhor” ou o “pior”
português e passar a respeitar igualmente todas as variedades da
língua, que constituem um tesouro precioso de nossa cultura. Todas
elas têm o seu valor, são veículos plenos e perfeitos de comunicação
e de relação entre as pessoas que as falam (BAGNO, 2015, p. 78).

Sendo assim, podemos observar nas palavras de Bagno que a disciplina


sociolinguística não despreza o ensino de língua portuguesa pautado na gramática
normativa, o qual se manifesta na escola por meio do ensino das regras linguísticas
que são ditadas por uma parcela ínfima da população brasileira (as classes de alto
prestígio social) e que futuramente serão cobradas nos vestibulares e concursos
públicos, os quais os falantes de português brasileiro irão se submeter
futuramente, após o término dos estudos na Educação Básica. Todavia, a
sociolinguística se preocupa com as questões concernentes a língua em seus atos
concretos de uso e com o que surtirá na sociedade se João fala de uma maneira e
Maria fala de outra.
Logo, as questões que dizem respeito à sociolinguística são de fatores
extremamente sociais e que não podem ser desprezadas no ensino de língua
portuguesa para falantes nativos dessa língua. Como definido por Bortoni-Ricardo
(2017, p. 157), “a sociolinguística é uma ciência que nasceu preocupada com o
desempenho escolar de crianças oriundas de grupos sociais ou étnicos de menor
poder econômico e cultura predominantemente oral”, por isso é preciso buscar
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |261

conhecimento nessa ciência que oferece subsídios para trabalhar com as


diferenças dos falantes em sala de aula, além de ser substancialmente necessário
articular estratégias didáticas para auxiliar nesse exercício, sendo aqui neste artigo
proposta a prática de leitura na escola. Desse modo, adiante discutiremos de forma
reflexiva sobre os pressupostos da sociolinguística que envolvem a sala de aula e
o trabalho do professor de língua portuguesa.

3. A sociolínguística na sala de aula: subsídios para o trabalho docente

Ensinar a Língua Materna em um país como o Brasil por hora parece uma
tarefa fácil, contudo quando paramos para refletir sobre as características
multiculturais pré-existentes em nosso ceio social, essa tarefa que é incumbida
aos professores de língua portuguesa torna-se totalmente complexa, necessitando
de uma reflexão, por parte desses profissionais e dos atores das políticas públicas
linguísticas, no que diz respeito às variadas questões sobre língua que
circunscrevem as vivências na sala de aula.
No cerne dessa discussão, os estudos sociolinguísticos são fundamentais
para esclarecer a interferência de diferentes tipos de variação linguística na fala e
na escrita de alunos em processo de letramento, visando ajudá-los no aprendizado
da variedade padrão na modalidade oral e escrita de sua língua nativa.
É muito comum na escola alunos dizendo “nois vai pro recreio agora”, “fiz
meu devê de casa”, “os professor marcou prova”. Esses são exemplos de variações
linguísticas facilmente encontradas no cotidiano de um professor, seja no período
de alfabetização – aqui entendido como aquisição do sistema grafocêntrico da
língua – ou nos períodos posteriores, os quais denominamos de processo de
letramento (SOARES, 2004). E isso não se limita apenas a fala, em muitos casos o
aluno leva essas características para sua escrita. De acordo com Bagno apud
Bortoni (2004, p.8):

[...] estamos diante de diferenças e não de “erros”. A noção de “erro”


nada tem de linguística [...] é decorrente dos critérios limitados de
avaliação isto é, dos preconceitos, que os cidadãos pertencentes à
minoria privilegiada lançam sobre todas as outras classes sociais.
262 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

[...] O erro não existe, mas sim formas diferentes de usarmos os


recursos disponíveis na língua.
Segundo Silva (2002), a grande rejeição que ainda se tem ao falar de
variação linguística ocorre em função da visão imposta pela gramática normativa,
que repudia qualquer fenômeno extralinguístico ocorrido em torno da língua que
ela não consegue explicar sob forma de regra. Dessa forma há apenas a correção
de erros ortográficos, sem maiores considerações, como de sentido, por exemplo,
como afirma Geraldi (2006)

Parece-me que o mais caótico da atual situação de ensino de língua


portuguesa em escolas de primeiro grau consiste precisamente no
ensino, para alunos que nem sequer dominam a variedade culta, de
uma metalinguagem de análise dessa variedade – com exercícios
contínuos de descrição gramatical, estudo de regras e hipóteses de
análise de problemas que mesmo especialistas não estão seguros de
como resolver. (GERALDI, 2006, p. 45)

Assim, para a teoria sociolinguística, dentro do sistema da língua, os


chamados “erros” cometidos pelos alunos possuem uma explicação de causa e
efeito, podendo ser trabalhados na aula de modo a ser ensinada a norma padrão
da língua, sem deixar de lado as características próprias da fala dos alunos, as quais
já estão consolidadas desde os seus primeiros registros linguísticos em sua
realidade social. Não se podem ignorar os fatores de ordem social que estão por
trás dessas particularidades, como também não se atentar para as dificuldades que
o aluno pode ter no aprendizado da variedade padrão. Se o ensino não tiver
maiores explicações ou considerações a serem dadas aos alunos, estando apenas
estagnado em classificações de “certo” e “errado”, o fracasso na língua padrão,
tornará um fracasso em linguagens.
Segundo Faraco (2008, p. 182) “cabe reiterar que nosso grande desafio,
neste início de século e milênio, é reunir esforços para construir uma pedagogia
da variação linguística que não escamoteie a realidade linguística do país”. Tal
como aponta Franchi (2006) e Cagliari (2009):

Essa distinção simplificada, imposta pela sociedade e, sobretudo


pela escola, que trata a diversidade da língua em termos de certo e
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |263

errado, em vez de ajudar, pode gerar um bloqueio do aluno nas


atividades dentro da sala de aula pelo fato do mesmo empregar uma
variedade linguística muito distante da variedade padrão. Não é
classificando o uso linguístico dessas crianças como “vulgar”,
“incorreto” ou “feio” que vai ajudá-las no desenvolvimento
linguístico que se espera no aprendizado formal da língua nas
escolas; tampouco as ajudará no aprendizado da variedade padrão.
Ao contrário, esse procedimento pode levá-las a um bloqueio na
expressão da linguagem oral e a profundas dificuldades na aquisição
da escrita (FRANCHI, 2006 p. 38).

A escola, naturalmente deve fazer os alunos verem que eles falam


não de uma única maneira, mas de várias, segundo dialetos de cada
um, e que se todos escrevessem as palavras como as falam, usando
as possibilidades do sistema de escrita como quisessem, haveria uma
confusão muito grande quanto à forma de grafar as palavras, e isso
dificultaria em muito a leitura entre os falantes de tantos dialetos
(CAGLIARI, 2009 p. 27).

O professor deve estar sempre em busca de estratégias adequadas para


melhorar seu ensino. Se ele não souber lidar com a variação linguística de seu
aluno, e se prender apenas a visão normativa da gramática, desconsiderando todos
os fatores que existem por trás da linguagem usada pelo aluno, ao tentar corrigi-
lo poderá repreendê-lo, desconsiderando assim, o fato de que o aluno já faz uso
da língua antes de fazer parte do ambiente escolar. E o resultado disso não será
em nada positivo para seu desenvolvimento, pois ele pode sentir-se envergonhado
e consequentemente gerará um bloqueio no aluno, impedindo-o de se expressar
de forma eficaz em sua própria língua. Bortoni-Ricardo (2005) afirma que:

A escola não pode ignorar as diferenças sociolinguísticas. Os


professores e, por meio deles, os alunos têm que estar bem
conscientes de que existem duas ou mais maneiras de dizer a mesma
coisa. E mais, que essas formas alternativas servem a propósitos
comunicativos distintos e são recebidas de maneira diferenciada
pela sociedade (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 15).

A escola é peça chave para se formar bons usuários da língua padrão, mas
não pode deixar de lado as variedades linguísticas, reconhecendo-a como algo
intrínseco à sociedade, tal como aponta Cagliari (2009) ao afirmar que a sociedade
264 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

mudará seu modo de encarar esse fenômeno e passará a ter um comportamento


social mais adequado com relação às diferenças linguísticas, desde que os alunos
aprendam a verdade linguística das variantes, no decorrer das gerações.
Dessa forma, se formarão falantes conscientes da diversidade linguística da
língua, banindo o desrespeito e o preconceito com as variações linguísticas. Bagno
(2015, p. 199-202) aponta dez cisões para um ensino de língua menos
preconceituoso possível:

1) Conscientizar-se de que todo falante nativo de uma língua é um


usuário competente dessa língua, por isso ele SABE essa língua.
Sendo assim,
2) Aceitar a ideia de que não existe erro de português. Existem
diferenças de uso ou alternativas de uso em relação à regra única
proposta pela gramática normativa.
3) Não confundir erro de português (que, afinal, não existe), com
simples erro de ortografia.
4) Reconhecer que tudo o que a Gramática Tradicional chama de
erro é na verdade um fenômeno que tem uma explicação científica
perfeitamente demonstrável.
5) Conscientizar-se de que toda língua muda e varia. O que hoje é
visto como “certo” já foi “erro” no passado. O que hoje é
considerado “erro” pode vir a ser perfeitamente aceito como “certo”
no futuro da língua.
6) Dar-se conta de que a língua portuguesa não vai nem bem, nem
mal.
7) Respeitar a variedade linguística de toda e qualquer pessoa, pois
isso equivale a respeitar a integridade física e espiritual dessa pessoa
como ser humano, porque
8) a língua permeia tudo, ela nos constitui enquanto seres humanos.
Nós somos a língua que falamos. Assim,
9) uma vez que a língua está em tudo e tudo está na língua, o
professor de português é professor de TUDO.
10) Ensinar bem é ensinar para o bem. Ensinar para o bem significa
respeitar o conhecimento intuitivo do aluno, valorizar o que ele já
sabe do mundo, da vida, reconhecer na língua que ele fala a sua
própria identidade como ser humano.

O ensino em sala de aula deve ser trabalhado de forma contextualizada


com a realidade dos alunos e da escola, para que, assim a língua seja alcançada
como um fato social que só acontece por meio da variação de seus integrantes.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |265

Em relação à variação que ocorre na língua, os Parâmetros Curriculares Nacionais


(PCNs) de Língua Portuguesa afirmam:

A variação é constitutiva das línguas humanas, ocorrendo em todos


os níveis. Ela sempre existiu e sempre existirá, independentemente
de qualquer ação normativa. Assim, quando se fala em Língua
Portuguesa, está se falando de uma unidade que se constitui de
muitas variedades. Embora no Brasil haja relativa unidade
linguística e apenas uma língua nacional, notam-se diferenças de
pronúncia, de emprego de palavras, de morfologia e de construções
sintáticas, as quais não somente identificam os falantes de
comunidades linguísticas em diferentes regiões, como ainda se
multiplicam em uma mesma comunidade de fala (BRASIL, 1998, p.
29).

É dever fundamental do professor de língua portuguesa compreender a


variação linguística, para que, assim, prevaleça uma visão mais igualitária e
inclusiva do ensino de língua na escola, e para que o ensino de língua não se
aproprie apenas de regras rígidas da gramática.
Além disso, os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) afirmam que os
conteúdos de Língua Portuguesa nas escolas devem ser relacionados em função
das habilidades dos alunos. Considerar o conhecimento antecedente do aluno é
um início didático para que o professor possa ensinar e trabalhar as variedades
linguísticas em sala de aula. Dessa forma, é de fundamental importância que os
conhecimentos sociolinguísticos sejam inseridos nos planejamentos e práticas do
profissional de língua portuguesa no âmbito escolar. Assim, estará contribuindo
para formação de cidadãos habilitados para compreender e utilizar a linguagem
adequadamente em diversas situações, e contribuindo para extinção do
preconceito linguístico.

4. Considerações finais

Considerando a língua como algo naturalmente diversificado, e que não


podemos rotular modos de falar como “certo” ou “errado”, não podemos também
considerar que uma pessoa tenha mais prestígio que outra por falar a norma culta.
266 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Todas as variações linguísticas devem ser respeitadas e no ambiente escolar isso


não pode ser diferente. Essas variações devem ser analisadas, estudadas e
trabalhadas de forma a contribuir para o desenvolvimento do aluno, fazendo-o
entender que se deve respeitar a sua própria linguagem e a do outro. A escola
deve se livrar de concepções ultrapassadas e que geram preconceitos e práticas de
exclusão.
Nesse sentido os pressupostos da sociolinguística têm muito a contribuir e
deve ser inserida no contexto escolar, principalmente no ensino de língua
portuguesa. O aluno precisa buscar a competência comunicativa e saber adequar
a sua fala de acordo ao contexto em que se encontrar. Durante esse processo de
aprendizado o professor, principalmente o de língua portuguesa, deve estar
sempre em busca de conhecimentos mais especializados sobre os diversos aspectos
que incluem a concepção e a representação de uma língua para a elaboração de
estratégias de ensino linguístico mais condizente com a realidade do aluno e que
permitam esclarecer da melhor maneira possível o funcionamento da língua.
Não adianta tratar a língua sem considerá-la cientificamente. Dessa forma,
é preciso sempre entender as variações linguísticas e explicá-las aos alunos, de
modo a levá-los a refletir sobre a sua própria língua, deixando bem claro que a
língua quando propagada assume posição de poder de uma parcela social em
detrimento de outras. Nunca se deve contribuir com a concepção de que é difícil
aprender português, gerando no aluno a ideia de que o que ele fala é algo
totalmente antagônico. A ideia de “certo” e “errado” contribui para a perda da
personalidade de um falante da língua materna dentro de uma comunidade de
fala. Não se pode nunca esquecer que a língua é uma forma de identidade e faz
parte do que somos.
Nesse sentido, propomos que o ensino de língua portuguesa deve estar
incorporar os princípios da Educação Linguística, a qual preconiza que o ensino
de língua para ser eficaz para a vida do aluno, dentro e fora da escola, precisa
partir da concepção de que a língua está intimamente ligada às questões de ordens
político, socioeconômico e cultural. Sendo assim, desrespeitar um falante seja por
motivos de não adequação ao português padrão em sua fala ou em sua escrita é
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |267

antes de tudo desrespeitar ao multiculturalismo existente em nossa sociedade,


apontando assim para uma visão preconceituosa em torno da língua de um falante
em detrimento de outro.
A escola necessita de melhores concepções e metodologias no que
concerne o ensino da língua portuguesa, já que essa por direito é uma fortuna a
ser adquirida, sobretudo, no ambiente escolar.

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Parábola Editorial, 2015.

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Paulo: Parábola Editorial, 2005.

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Nacionais: terceiro e quatro ciclos do ensino fundamental: Língua Portuguesa.
Brasília: MEC/SEF, 1998

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Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2002.
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Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |269

PRÁTICAS DE LETRAMENTO E PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO

Karine Oliveira Bastos (UERJ/UFRRJ)

1. Reflexões iniciais

Investigar o desenvolvimento do letramento de estudantes consiste


numa tarefa que exige entendê-lo como um processo formativo para além da
apropriação da escrita na forma do código alfabético e para além do acesso à
norma padrão da língua. É preciso considerá-lo numa perspectiva mais ampla,
que esteja movida a tornar o estudante um sujeito partícipe de diferentes
modalidades de interação da cultura letrada e, de fato, integrado às diferentes
práticas de construção de conhecimento na sociedade.
A construção da autonomia do aluno, por seu turno, é um processo que,
certamente, se apresenta como um desafio para determinados modelos da
educação formal. A própria relação historicamente verticalizada entre professor
e aluno não viabiliza um processo de formação de dialogicidade, que permita a
construção coletiva dos conhecimentos. Pelo contrário, tal relação geralmente
sustenta práticas pedagógicas que se limitam à reprodução de conhecimentos, a
formatos fixos de ensino-aprendizagem. São esses modelos que, muitas vezes,
eliminam a possibilidade de permanência — e de resistência — de sujeitos no
âmbito do ensino regular.
O presente trabalho concentra-se na discussão sobre práticas de
letramento no contexto da Educação de Jovens e Adultos. Nesse sentido, atuar na
EJA inevitavelmente nos coloca diante de questionamentos acerca da própria
modalidade de ensino: Quem são os sujeitos da EJA? Como se constituem as
diferentes práticas pedagógicas que envolvem estudantes de EJA? Quais fatores
têm provocado lacunas tão significativas no desenvolvimento do letramento de
grande parte da população brasileira? Qual o papel do professor que se dedica
especialmente à EJA, no sentido de lidar com tais lacunas do processo de formação
de sujeitos teoricamente à margem da cultura científica dominante? Quais
270 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

práticas pedagógicas relacionadas à leitura e à produção de textos propiciam, para


além da apropriação da norma padrão da língua e da reprodução de conceitos
gramaticais, uma maior inserção/participação dos sujeitos na cultura letrada?
Tais questões nos exigem refletir sobre — e, por vezes, (re)pensar —
certas práticas pedagógicas adotadas, bem como seus efeitos na formação dos
sujeitos. Nesse contexto, se coloca a tensão entre a subjetividade assujeitada e a
subjetividade singularizada, de modo que esta pressuponha a criação de processos
múltiplos e diversos no lugar daquela, que envolve a reprodução do idêntico,
processos homogeneizantes, discursos massificados.
Não por acaso, os discursos que exaltam a importância da educação na
vida das pessoas evocam a função social do estudo — este delineado em formatos
fixos —, qual seja: “para ser alguém na vida”. Se alguém não estuda nos moldes
exigidos pela escola formal ou não corresponde aos objetivos rigidamente traçados
por esta escola, é, de modo rústico, considerado “ninguém” para a sociedade
contemporânea.
No âmbito do ensino de língua materna, por sua vez, práticas pedagógicas
que envolvem os conhecimentos linguísticos, muitas vezes, alimentam a cultura
de “escrever bem” e “falar correto” com base apenas em usos linguísticos
admitidos pelo prestígio que lhes confere. Tais práticas, além de evidenciarem um
hiato entre os saberes legitimados pela escola e os saberes trazidos pelos
estudantes para o âmbito escolar, reduzem a possibilidade de trocas nesse espaço
e contribuem ainda mais para a verticalidade da relação professor-aluno.
A partir dessas reflexões, este trabalho se propõe a discutir práticas
pedagógicas de letramento em sala de aula. Em outras palavras, intenta-se
discorrer sobre uma experiência em EJA, que traz em seu projeto político-
pedagógico a defesa de que a integração curricular a partir de determinados eixos
temáticos — diferente de um currículo sob a organização disciplinar de saberes
— produz modos de aprendizagem, em certa medida, mais propensos a exercícios
de reflexão, de questionamento da própria realidade, de leituras de mundo mais
autônomas, enfim, modos de aprendizagem mais propensos à emancipação do
sujeito, este possivelmente mais inclinado para as transformações sociais. Nesse
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |271

sentido, a questão que se coloca inicialmente está ligada ao “como fazer” das
práticas de letramento, isto é, aos exercícios de leitura e de escrita atrelados às
possibilidades de construção da autonomia, que permitam, inclusive, a análise do
que chamamos de “cultura letrada”.

2. Língua e sociedade

Em debates acerca do fracasso escolar produzido pela/na educação


pública do contexto brasileiro, emerge uma recorrente inquietação: o fato de a
linguagem ser o fator mais expressivamente implicado nesse processo. Essa
relação se justifica, porque língua e sociedade são elementos intrinsecamente
ligados, motivo pelo qual aquela passa a ser um dos fatores de aceitação ou
exclusão social. No que se refere a essas questões, Soares (1986) tece críticas
fundamentais em relação ao papel da escola:

(...) a prática pedagógica na escola brasileira, em todas as matérias


e, particularmente, no ensino da língua materna, tem sido
dissociada de suas determinações sociais e sociolinguísticas; ora, ao
lado da também indispensável perspectiva psicolinguística, a
perspectiva social — resultado da contribuição integrada e
articulada da Sociologia, da Sociologia da Linguagem e da
Sociolinguística — é indispensável a uma prática de ensino que,
fundamentando-se em conhecimentos sobre as relações entre
linguagem, sociedade e escola, e revelando os pressupostos sociais
e linguísticos dessas relações, seja realmente competente e
comprometida com a luta contra as desigualdades sociais.
(SOARES, 1986, p. 6)

Nessa perspectiva, é possível considerar que o letramento configura um


processo formativo que vai muito além do (re)conhecimento da língua escrita
como uma atividade de codificação e decodificação. De outro modo, discutir tal
conceito pressupõe criar espaço para uma série de fatores que envolvem a
complexa apropriação da escrita pelo sujeito. Apropriar-se da escrita, nesse caso,
significa não somente desenvolver uma aptidão em relação às diversas
modalidades de leitura e gêneros de textos, mas a possibilidade de se constituir
272 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

sujeito-construtor de conhecimentos. Street (1984 apud KLEIMAN, 1995), por


seu turno, ao apresentar os dois modelos de concepção de letramento que se
contrapõem – o autônomo e o ideológico20 –, defende a necessidade de se
considerar a natureza social do letramento, em oposição à tendência dominante
de tratá-lo como um fenômeno essencialmente “técnico” e individual.
Nesse sentido, com base numa perspectiva sociointeracionista da língua,
assume-se como princípio norteador do ensino de língua materna a interação
humana: atividade esta “altamente complexa de produção de sentidos” (KOCH,
2006). Em outros termos, a linguagem é o meio pelo qual significados se
constroem e se constituem, ou seja, é por meio desta que significados coletivos se
articulam, se confrontam e sofrem transformações ao longo do tempo, nas
diferentes culturas, na vida em sociedade. Se o conhecimento é construído
socialmente, a linguagem, evidentemente, o traduz sem neutralidade.
No entanto, a linguagem perpassa não só o conhecimento, mas também
as formas de conhecer, o pensamento, as ações e as relações sociais. Hara (2011,
p. 105), sob a perspectiva foucaultiana, discorrendo sobre a “escrita de si”, prática
filosófica destinada à formação de um sujeito, destaca: “A escrita de si é uma
ferramenta, um instrumento, é um equipamento para dar conta da
multiplicidade, da pluralidade de imagens e representações existentes no mundo
exterior a nós mesmos”.
Nesse sentido, em turmas de EJA, torna-se essencial a possibilidade de
estes estudantes ultrapassarem a perspectiva de se constituírem como sujeitos que
tentam captar ideias expressas por outrem, instituindo-se como sujeitos em certa
medida mais autônomos, capazes de interagir nos diferentes contextos
sociocomunicativos, seja exercitando a pesquisa, a reflexão e o questionamento
diante da própria realidade, seja manifestando ideias que possam intervir nesta
realidade.

20A concepção de letramento autônomo está voltada para a dicotomia fala versus escrita, em que esta
segunda representa uma forma de progresso e civilização, tal como se nota na escola muitas das vezes;
já a concepção de letramento ideológico considera os contextos de uso, as possibilidades reais de
práticas e eventos de letramento.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |273

Larrosa (2004), considerando o olhar foucaultiano para o gênero ensaio,


discute a relação entre escrita e pensamento:

O ensaio tem algo da expressão de uma subjetividade, da biografia


de uma subjetividade. Mas desde que essa subjetividade expresse
um mundo, o seu mundo. E, também, desde que essa subjetividade
se ponha à prova, se ensaie, se invente e se transforme. Por isso, o
ensaísta não só põe em questão o que somos, o que sabemos, o que
pensamos, o que dizemos, o modo como olhamos, como sentimos,
como julgamos, mas, acima de tudo, põe em jogo a si mesmo nesse
questionamento. Por isso, o ensaio é, também, olhar a existência a
partir dos possíveis, ensaiar novas possibilidades de vida.
(LARROSA, 2004, p. 37).

3. Escrita de si e a formação do sujeito

Foucault (1983) discute sobre a escrita de si, prática filosófica destinada


à formação do sujeito, parte da discussão sobre a estética da existência e o domínio
de si e dos outros na cultura greco-romana. Segundo o autor, se a arte de viver
pressupõe “um treino de si por si mesmo”, o ato de escrever para si e para o outro
se configura fundamental nesse contexto. Hara (2011) relaciona tal treino a
exercícios filosóficos para a alma — que envolvem subjetividade — e os contrapõe
ao modo de ser de uma sociedade anestesiada, que não se submete aos exercícios
da alma nem às sensações de suas dores.
Assim, sob a perspectiva do seu exercício, a escrita consiste no processo
de “elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em
princípios racionais de ação” (FOUCAULT, 1983, p. 147). Para fundamentar tal
ideia, o autor discute a prática dos hupomnêmatas, cadernos de anotações, uma
espécie de “livro de vida”, que se inicia na Grécia, no século 4 a. C. Essas anotações
não representavam um suporte de memória, que apenas armazenasse lembranças,
mas um material que envolve o exercício cíclico e constante de “selecionar,
escrever, ler, reler, meditar, conversar consigo mesmo e com outros”: um processo
de subjetivação dos discursos.
Tal como se relaciona o exercício da escrita de si à pratica de meditação,
também é possível atrelá-lo à metáfora da digestão. Em outras palavras, diante de
274 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

tantas informações, referências, estímulos, leituras do mundo que nos cerca,


digerir configura-se um processo de recolher os ditos e de se recolher nesses ditos
para a constituição de si.

Digiramos a matéria: caso contrário, ela entrará em nossa memória,


não em nossa inteligência. (...) O papel da escrita é constituir, com
tudo o que a leitura constituiu, um ‘corpo’. E é preciso compreender
esse corpo não como um corpo de doutrina, mas sim (...) como o
próprio corpo daquele que, transcrevendo suas leituras, delas se
apropriou e fez sua a verdade delas: a escrita transforma a coisa vista
ou ouvida ‘em forças e em sangue’. Ela se torna no próprio escritor
um princípio de ação racional. (FOUCAULT, 1983, p. 152).

Essas reflexões sobre a escrita de si retomam a discussão sobre o


desenvolvimento do letramento no âmbito escolar, em especial, nas aulas de
língua materna.
A apropriação da escrita envolve — para além dos conhecimentos
linguísticos e textuais, isto é, para além do domínio das normas gramaticais da
língua e das especificidades de determinado gênero textual — “digestão” das
diversas leituras às que os estudantes têm acesso. Evidentemente, tais leituras não
representam apenas o somatório de referências validadas dentro e fora da escola,
mas experiências de vida em seu sentido rizomático, no termos de Deleuze e
Guattari.

4. Práticas de letramento: uma experiência em EJA

Com base nessas reflexões, propõe-se a seguir uma análise das práticas de
letramento no âmbito da EJA-Manguinhos (Educação de Jovens e Adultos de
Manguinhos), curso desenvolvido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), sob
orientação e certificação da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
(EPSJV). Tal curso, abarcando turmas de Ensino Fundamental e Ensino Médio,
busca contextualizar sua prática a partir das questões ligadas ao território de
moradia da maioria dos estudantes, sobretudo suas condições de vulnerabilidade,
de modo que seja exercício cotidiano a construção de conhecimentos no âmbito
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |275

escolar comprometida com as possibilidades de intervenção/transformação


daquele território.
Assim, atuando como professora de língua portuguesa em turmas da EJA-
Manguinhos, proponho o resgate de algumas práticas de leitura e produção de
textos em sala de aula ao longo da trajetória de uma turma de Ensino Médio sob
a perspectiva da integração curricular por meio de eixos temáticos.
A turma — em seu primeiro período (Médio I) — participava, nas aulas
de diferentes áreas de conhecimento, de discussões sobre o eixo “Movimentos
Sociais na luta por Direitos Humanos”. Como era o início de um ciclo, algumas
conversas aconteceram sobre as expectativas em relação ao Ensino Médio, seja
com estudantes que tinham acabado de concluir o Ensino Fundamental no
mesmo curso, seja com estudantes que haviam acabado de ingressar na escola,
depois de algum tempo distante desta. Como primeira leitura, a turma teve acesso
a um texto intitulado “Qual a nossa identidade?”, produzido coletivamente por
outra turma da EJA, que já havia se formado.

Nós somos estudantes de EJA, adultos, trabalhadores, mães e pais


de família, que, em algum momento de nossas vidas, não tivemos
oportunidade de continuar estudando. Mas não deixamos de
acreditar que podemos crescer na vida, isto é, abrir a mente para
novos conhecimentos, conseguir um bom emprego, ter uma
moradia digna, ser respeitado e respeitar as diferenças.
(...)
O que nos levou a retornar à escola é o desejo de fazer a
diferença nesse mundo, é provar para nós mesmos e para todas as
pessoas que nunca é tarde para recomeçar. Não é por que somos
moradores de comunidade que temos que ser taxados como pessoas
que não são capazes de aprender novos conhecimentos.
Merecemos, sim, respeito e ter acesso a direitos como qualquer
outro cidadão dessa sociedade. Não podemos permitir e nem aceitar
a manipulação, não só da mídia, mas também dos governantes e da
classe dominante, que insistem em nos fazer de marionetes.

Essas passagens do texto revelam que a identidade “estudantes de EJA” é


geralmente marcada por características previsíveis — trabalhadores, mães e pais
de família — nessa modalidade de educação. Do mesmo modo, as expectativas
276 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

desse público em relação à escola — crescer na vida, conseguir um bom emprego,


fazer a diferença — são acompanhadas pela crença de que “nunca é tarde para
recomeçar”. Outros discursos, no entanto, perpassam o processo formativo dos
estudantes desta turma na medida em que, ao justificarem sua própria trajetória,
mencionam a falta de “oportunidade de continuar estudando” e, ao projetarem
possibilidades de vida, destacam, por exemplo, “ter acesso a direitos como
qualquer outro cidadão dessa sociedade”, “não podemos permitir e nem aceitar a
manipulação”.
Assim, no início do semestre, alguns estudantes escreveram sobre suas
expectativas para o Ensino Médio. Destaca-se o texto do estudante A. A:

Expectativas para o Ensino Médio


Eu estou muito feliz por estar cursando o Médio I, e tenho o
objetivo de continuar essa trajetória, sei que tenho muita coisa pela
frente, mas os obstáculos estão aí para serem superados.
Não tem vitória sem obstáculos, só de ter chegado até aqui já é uma
conquista inédita, é muito bom subir até o podium, pois o gosto do
podium nos dá forças para continuarmos a ir até o encontro da
vitória que ainda almejamos em conquistar, mas com a nossa força
chegaremos até o novo ciclo que é escalar o Everest, que é o médio
4. Mais eu tenho fé que chegaremos até lá nos encontraremos no
final. Obrigado por tudo.
A. A.

É possível notar claramente a conotação de esforço pessoal numa


trajetória repleta de desafios, de “obstáculos”, na qual se evidencia o desejo pela
“vitória”, pelo “podium”. Cursar o Ensino Médio, portanto, se assemelha a uma
prova árdua, típica de competições esportivas, cujo objetivo final é ser “vencedor”,
isto é, subir até o “podium”. O estudante, inclusive, se serve da metáfora “escalar
o Everest” ao mencionar o “ponto mais alto” dessa prova: o Médio IV. Também é
possível notar semelhanças com o próprio discurso religioso, de modo que a fé é
sempre um elemento importante nesse processo, assim como o ato de agradecer
(a Deus, aos professores etc.).
No mesmo período, outras leituras se destacaram: a crônica “Povo”, de
Luís Fernando Veríssimo; a canção “Meu guri”, de Chico Buarque; o artigo de
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |277

opinião “Favela ou comunidade: um olhar de quem vive lá”, de Repper Fiell. De


algum modo, os textos expunham, por meio de diferentes linguagens, as
desigualdades sociais que marcam a realidade brasileira.
Nesse mesmo contexto, os professores da turma planejavam atividades
integradas que tivessem relação com o período de eleição para prefeito da cidade
do Rio de Janeiro. Assim, nas aulas de Português, em um primeiro momento, os
estudantes escreveram uma carta ao(s) candidato(s) à prefeitura, apresentando
suas expectativas em relação ao seu futuro mandato. Nas aulas seguintes, alguns
grupos se formaram para construir um projeto de cidade guiado pela seguinte
questão: O que queremos para a nossa cidade para os próximos 4 anos? A proposta
consistia em construir um mapeamento das ideias da turma, por meio de
pesquisas, leituras e entrevistas, a partir das seguintes responsabilidades do
prefeito: limpeza urbana, saneamento básico, manutenção de espaço públicos,
postos de saúde, escolas e transporte público. A seguir, analisaremos a carta escrita
pelo estudante J. H.

Caro candidato,
Meu nome é J., sou casado, pai de três filhos, tenho 43 anos e moro
numa comunidade desta cidade.
O motivo desta carta é para saber quais são as suas propostas para a
nossa cidade, pois estamos passando por diversas dificuldades, como
segurança, saúde, educação. Então, é muito importante que você
responda esta carta, pois eu preciso destas informações para que eu
e os demais eleitores possa votar nessas eleições com consciência.
Nunca procurei esse tipo de informação porque não tinha interesse
algum por política, mas eu agora sei que é de grande importância
para nós eleitores saber as propostas de nossos políticos e observar
se está sendo cumprido o que foi prometido.
(...)
Um abraço e que tenha uma boa vitória.
J. H.

O estudante J. H., além de se apresentar — “casado, pai de três filhos,


tenho 43 anos e moro numa comunidade desta cidade” — ao candidato à
prefeitura, destinatário da carta, faz uma enumeração bastante sucinta das
dificuldades enfrentadas pela população – segurança, saúde, educação – e admite
278 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

que buscar informações a respeito das propostas dos candidatos bem como ter
“interesse por política” são novidades em sua vida. Certamente, esse texto dialoga
com o trabalho integrado proposto nesta turma, que se propunha não só a discutir
o período de eleição para prefeito da cidade do Rio de Janeiro, como também a
exercitar uma participação política mais ativa por parte de estudantes-cidadãos.
No semestre seguinte, as discussões da turma Médio II estavam atreladas
ao eixo “Identidade e Cultura local”. Nas aulas de Português, havia reflexões sobre
a identidade da língua portuguesa, cujo estudo abarcava um pouco da história
dessa língua no Brasil, o processo de colonização portuguesa, as variações
linguísticas — diferenças do português em regiões distintas e variação do
português no tempo —, a relação entre preconceito linguístico e preconceito
social etc. No início do semestre, sob inspiração dos contos “Restos de carnaval”
e “Banhos de Mar”, de Clarice Lispector, e do filme “Central do Brasil”, a proposta
era que cada estudante escrevesse um pouco sobre si e também sobre sua trajetória
de vida, resgatando lembranças da própria infância.
A estudante S. C., nascida em Pernambuco, conta como foi sua chegada
ao Rio de Janeiro:

Eu nasci no estado de Pernambuco, Recife capital, no bairro


Ladeira de Pedra. Um belo dia minha mãe e meu padrasto
resolveram vir para o Rio de Janeiro com o meu irmão, e deixou eu
e minha irmã com a mãe do meu padrasto. Quando um dia ela volta
para Recife, meu coração se enche de alegria, pois eu achava que
ela estava voltando para nos buscar, só que não, pois ela só tinha a
passagem dela de volta para o Rio de Janeiro. Fomos levar ela na
rodoviária, quando começamos a chorar por que não queríamos
ficar sem ela, foi quando minha mãe resolveu nos esconder debaixo
do banco do ônibus, e foi assim que eu e minha irmã viemos para o
Rio de Janeiro, eu tinha apenas sete anos.

Essa história, narrada num primeiro momento em parágrafos pela


estudante S. C., foi transformada no gênero cordel, a partir de uma produção
coletiva da turma, à medida que os demais estudantes também iam se apropriando
da narrativa. Assim como em “Central do Brasil” as trajetórias dos personagens se
entrecruzam, a migração Nordeste-Sudeste configura uma realidade comum para
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |279

diversos estudantes da EJA, mas submersa de singularidades, tais como se


evidenciam em algumas estrofes do cordel em destaque:

Em Ladeira de Pedra nasci


Até 7 anos, lá vivi
Era tempo de alegria
Meu Recife, só folia

Mas o desemprego chegou


Aquela folia acabou
Então mamãe nos deixou,
Causando sofrimento e dor
Veio pro Rio de Janeiro
Em busca de algum dinheiro
Ela tinha expectativa
De melhorar nossa vida

(...)

Chegando mais uma despedida


Juntas fomo pra rodoviária
Um chororô desesperado
Um desfecho inesperado

Eu e minha irmã tristes


Mainha aperreada
Sem saber o que fazer
Na hora da partida
ela teve ideia repentina
Dentro do ônibus nos esconder

Sem lenço, sem documento


Sem bagagem... sem passagem!
Assim, começou nossa viagem.
(...)

Aqui, a luta é todo dia


Mas, se antes, a gente quase se separou por um triz,
a gente hoje é muito feliz!

No terceiro semestre, a turma Médio III estudou o tema “Meio ambiente


e desenvolvimento local”. Leituras como “Casa grande e quintal”, de Moacyr
280 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Scliar, e algumas canções brasileiras — Aquarela do Brasil (Ari Barroso - 1939);


Aquarela brasileira (Silas de Oliveira - 1964); Querellas do Brasil (Maurício
Tapajós e Aldir Blanc - 1978); Brasis (Seu Jorge - 2005) — propunham a discussão
sobre os diferentes olhares para o Brasil, em diferentes épocas. A partir dessas
leituras, como proposta de produção textual, os estudantes, então, desvelavam seu
próprio olhar para o Brasil de 2017:

Em pleno século XXI, vivemos dias medievais. O Brasil está


passando por um grande retrocesso, onde muitos de nossos direitos
estão sendo retirados sem o menor pudor.
(...)
A educação, na minha opinião, é a base de tudo, pois com
educação podemos construir um país completamente diferente!
Quando passamos a educar as crianças de forma que elas se tornem
cidadãs pensantes e não apenas máquinas programadas para
trabalhos subjugados e com má remuneração.
A. S.

A estudante A. S. cita o “retrocesso” com a perda de direitos e faz uma


crítica em relação aos problemas da educação, que, no seu ponto de vista, é “a base
de tudo”. Já a estudante A. P. se apropria da identidade “moradora de favela” e
denuncia o que, de acordo com sua vivência, “verdadeiramente acontece”.

O nosso Brasil, visto com um olhar do povo periférico, negro,


excluído pela burguesia, que, de suas janelas da Zona Sul do Rio,
não sabem da missa um terço do que verdadeiramente acontece,
pois na TV só passa o que os convém mostrar.
Na realidade nua e crua, quem mora nas favelas tem seus direitos
todos os dias violados, na saúde, educação, moradia e transporte.
No entanto, estamos todos os dias no horário certo no trabalho, faça
chuva ou faça sol, pois os favelados só servem para ser a massa
trabalhadora, para ser explorados dia e noite, muitas vezes com um
salário indigno.
A. P.

A. P. ainda faz a crítica de que os moradores da favela, além de terem


seus direitos violados, ainda são explorados diariamente como “massa
trabalhadora”.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |281

No mesmo período, com o lançamento de “Nunca me sonharam”,


documentário nacional que aborda os desafios da realidade do Ensino Médio nas
escolas públicas brasileiras, um grupo de professores propôs uma atividade de
cinedebate para todas as turmas do curso, de modo a criar uma ponte entre as
vozes de estudantes, gestores, professores e especialistas apresentados no
documentário e as diferentes vozes da EJA-Manguinhos. Se, em vídeo, jovens
falavam sobre seus sonhos, suas expectativas para o futuro, no debate após filme
e em produções escritas, estudantes da EJA discorriam sobre as questões: Que
escola eu sonho para nossos filhos? Que escola eu sonho para mim?
O estudante A. A, que no início do Médio I havia escrito sobre suas
expectativas para o Ensino Médio, neste momento, expande seu prisma em
relação à escola no seguinte texto:

Eu sonho para mim um escola com um bom ensino como a EJA que
admiro estar estudando nesse espaço com bons professores quem
tem uma enorme paciência com seus alunos.
E que nos dá o direito de nos expressarmos e fazer com que a nossa
voz seja ouvida e assim reconhecida por todos para o nosso
crescimento, e também de nossos professores na ajuda de nossa
formação acadêmica.
E também do crescimento cada vez maior da nossa escola na
formação de novos alunos e alunas de nossa EJA, formação de
jovens e adultos que nos tem dado sempre um grande suporte na
reta de nossa formação e de nosso aprendizado em sermos grandes
guerreiros em estarmos firmes com a graça de deus em não
desistirmos de nossos estudos.
E assim poder ser exemplos para toda a sociedade e ser reconhecido
por todos e fazer valer a pena a sua postura de pessoa bem estudada
e poder compartilhar suas experiências com outros alunos e alunas
de nossa linda EJA Manguinhos.
Obrigado a todos os professores dessa escola maravilhosa.
A. A.

É possível observar que o mesmo estudante, que antes associava sua


trajetória na escola a uma prova árdua, típica de competição esportiva — cujo
objetivo final era ser “vencedor”, subir até o “podium” —, em momento posterior,
relaciona um “bom ensino” àquele que “dá o direito de nos expressarmos e fazer
282 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

com que a nossa voz seja ouvida e assim reconhecida por todos para o nosso
crescimento”. Evidentemente, considerando os eixos temáticos discutidos em sala
de aula ao longo do curso, inferem-se os discursos que envolvem um projeto
político-pedagógico proposto a estimular a participação ativa dos estudantes, a
mobilização coletiva, o exercício do questionamento. Emerge do texto também a
ideia de “compartilhar suas experiências com outros alunos e alunas”. Tal como
antes, a fé é sempre um elemento importante para que não se desista dos estudos.
Dando sequência à trajetória da turma, no seu último período (Médio
IV), o eixo temático proposto para discussão em sala de aula foi “Trabalho”. Assim,
discutindo a rotina do trabalhador na cidade do Rio de Janeiro, resgatamos um
pouco das atividades realizadas no Médio I a respeito do projeto de cidade
elaborado pela turma, que incluía a produção de uma carta ao(s) candidato(s) a
prefeito na ocasião. Passado o período eleitoral, assim como o primeiro ano de
mandato do novo prefeito da cidade, neste momento, a proposta de escrita
consistia numa carta destinada ao próprio prefeito, não como registro de
expectativas pós-eleição, mas como avaliação do seu primeiro ano de mandato. O
estudante J. H., que antes havia mencionado em sua carta para o candidato seu
interesse recente por política, desta vez, delineia melhor sua insatisfação em
relação aos serviços básicos, de responsabilidade da prefeitura:

Caríssimo Crivella,
Venho através desta fazer o meu desabafo como morador desta
cidade maravilhosa. Não só eu, mas todos que moram aqui têm
sofrido muito com a falta de segurança, desemprego, transportes e
muitos outros transtornos que têm acontecido aqui. Portanto, eu
queria uma solução para esses problemas, pois são de sua
responsabilidade.
Nós, moradores de comunidades, sofremos com preconceito,
insegurança, falta de saneamento básico e coleta de lixo e enchentes
quando chove, por falta de drenagens nos rios, sem falar na falta de
médicos nas unidades de saúde mais próximas. Gostaria que você
governasse com mais respeito aos moradores de comunidades.
J. H.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |283

Nesta carta, o estudante J. H. opta não por se apresentar como “casado,


pai de três filhos, tenho 43 anos”, tal como fez na outra, mas se identifica como
sujeito coletivo — nós, moradores de comunidades — que vive de perto mazelas,
como “insegurança, falta de saneamento básico e coleta de lixo, e enchentes
quando chove, por falta de drenagens nos rios”. É possível inferir que seu
“interesse pela política” tornou-se ainda mais substancial no decorrer das aulas do
Ensino Médio.

5. Reflexões finais

Resgatando as reflexões iniciais deste trabalho, revela-se a necessidade


de se discutir o status da educação na formação de sujeitos, bem como
problematizar tais expectativas culturalmente depositadas nessa instituição. Em
tempos de políticas públicas que propõem uma regressão à formação instrumental
do trabalho, a partir da hierarquia entre as disciplinas do currículo do ensino
médio, legitimando ainda mais a distinção entre o ensino oferecido para as classes
populares e o oferecido para a elite, esse debate se torna ainda mais urgente e
necessário.
No que se refere ao ensino de língua materna, à formação integrada na
EJA, a análise das práticas de letramento proposta buscou, de algum modo,
evidenciar não só a relação entre língua e sociedade, mas a apropriação da prática
da escrita como “digestão” das diferentes leituras, dos diversos processos
formativos em que os estudantes estão inseridos.

Em Foucault, o pensamento se faz escrita, se pensa como escrita e,


no limite, se dissolve em escrita. E é justamente ao dissolver-se
como escrita que ele se abre para a sua própria transformação, para
o seu próprio ensaio. (LARROSA, 2004, p. 41)

Como professora-pesquisadora, me coloco implicada nesse processo,


sobretudo, considerando que as discussões que ganham corpo neste trabalho
perpassam, necessariamente, a relação professor-aluno, esta que se pretende cada
vez menos verticalizada. Esta escrita de si, no termos de Foucault (1983), envolve
284 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

o próprio exercício cíclico de “selecionar, escrever, ler, reler, meditar, consigo


mesmo e com outros” à medida que também me transforma.
A construção da autonomia de estudantes da EJA, por sua vez, é a utopia
a que este trabalho se serve. Nesse caso, fica a expectativa de que as práticas
pedagógicas aqui discutidas possam produzir modos de aprendizagem, em certa
medida, mais propensos a exercícios de reflexão, de questionamento da própria
realidade, de leituras de mundo mais autônomas, enfim, modos de aprendizagem
mais propensos à emancipação do sujeito, este possivelmente mais inclinado para
as transformações sociais.

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. “A escrita de si” (1983). In: MOTTA, Manoel Barros (org).
Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 144-
162.

HARA, Tony. “Escrita de si: um rascunho da vida”. In: HARA, Tony. Ensaios
sobre a singularidade. Londrina: Kan Editora, 2011, p. 99-112.

KLEIMAN, Angela. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a


prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995.

KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender os sentidos do


texto. São Paulo: Contexto, 2006.

LARROSA, Jorge. “A operação ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no


pensamento, na escrita e na vida”. In: Educação & Realidade. Porto Alegre: Ed.
UFRGS. 2004. V. 29, n. 1, p. 27-44.

SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática,
1986.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |285

ANÁLISE TEXTUAL DA MÚSICA “APESAR DE VOCÊ”, DE CHICO


BUARQUE: INTERDISCIPLINARIDADE E LEITURA TUTORIAL

Letícia Lopes de Almeida


Tatiane Castro dos Santos

1. Introdução

É comum ouvirmos, nas reuniões de planejamento pedagógico, professores


relatarem que a maioria dos alunos não quer, não tem costume e ou não consegue
ler de forma autônoma, não compreende o texto. Pode-se até dizer que muito se
reclama, mas pouco se pensa sobre como mudar esse quadro. Isso porque, talvez,
seja muito complicado ensinar a ler ou porque o professor ainda não descobriu a
melhor estratégia para conseguir êxito em suas aulas. A questão passa pelo papel
da escola: como transformar os alunos em leitores proficientes?
Este assunto tão debatido no meio acadêmico, nas salas de aula de ensino
superior, é o “calcanhar de Aquiles” de muitos professores, até mesmo de Língua
Portuguesa. Sabe-se, por experiência diária e convívio com outros colegas, que
alguns professores da língua materna não conseguem ensinar (e até mesmo
motivar) alunos a lerem, simplesmente porque muitos deles — os professores —
consideram somente o ensino da gramática essencial para o desenvolvimento do
aluno, não desenvolvem um trabalho de leitura ativa em sala de aula. É provável
que alguns profissionais não tenham, também, compreensão do que é leitura e de
como ensinar a ler. Incompreensão essa, talvez, por achar que ler é algo natural,
automático, de forma que, após aprender o bê-á-bá, é como se o aluno já se
tornasse um bom leitor. O debate estende-se, ainda, ao fato de que há, dentro das
escolas, a cultura de que interpretação de texto só se faz nas aulas de Língua
Portuguesa.
Dessa forma, pensando em uma ferramenta eficaz para se trabalhar leitura
com alunos do 9º ano do ensino fundamental II, este artigo aborda as questões
teóricas que envolvem a interdisciplinaridade, a estratégia adotada para análise
286 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

textual e, ainda, relata a experiência desenvolvida em sala de aula com a letra de


música em uma proposta de leitura tutorial que auxilie o aluno a compreender
melhor os conteúdos (com protocolo de leitura e método de andaimagem). No
caso deste trabalho, trata-se da canção censurada na época da Ditadura Militar —
Apesar de você, de Chico Buarque — para entender, também, o processo de
criação do autor em meio ao cenário histórico, estudado na disciplina de História
— o que configura a interdisciplinaridade na prática. A atividade em sala foi
baseada nas contribuições sobre análise de textos de Antunes (2010) e leitura
tutorial, com base em Bortoni-Ricardo, Machado e Castanheira (2010).
O objetivo deste artigo é somar, contribuir com a discussão entre o meio
acadêmico e escolar, sobre a dificuldade que alguns professores (de todas as áreas)
têm em ensinar leitura, e ainda apresentar uma proposta exequível de trabalho
interdisciplinar que contribua para a competência leitora dos alunos. Considera-
se, aqui, não a crítica do problema, mas uma sugestão de trabalho que envolve
duas professoras, de disciplinas diferentes, que podem, juntas, trabalhar textos
com mesma temática.

2. Referencial teórico

2.1. Você e eu, eu e você

Contar histórias ou ouvi-las sempre foi uma característica do ser humano.


Todos estão diariamente ouvindo-as, recriando, reinventando, descobrindo
novidades, repensando o que foi dito, opinando ou ignorando. Já as aulas de
História, com aqueles conteúdos que remontam a uma época bem distante dos
alunos, podem ser prejudicadas, por motivos aparentes ou desconhecidos, que só
os professores da área podem relatar; como também, dependendo do profissional,
sua experiência pode ser exitosa.
O que, na verdade, espera-se é que as aulas de História não devam ser
limitadas a um professor à frente, falando, falando, falando. Muito deve ser
pensado e planejado, de acordo com a turma com que se irá trabalhar,
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |287

principalmente, quando o conteúdo envolve uma época tão distante da vida do


aluno, quando ele não enxerga a importância de se conhecer o passado e entender
seu contexto histórico — que hoje não contamos apenas com livros impressos ou
manuais como a Barsa, temos toda e qualquer informação, sobre tudo, na internet.
Ao se pensar nos conteúdos propostos para o 9º ano, na disciplina de
História, interessa, aqui, evidenciar que é possível fazer um trabalho indisciplinar,
pois
Entendemos a Interdisciplinaridade como um movimento que
possibilita o diálogo entre os seres humanos e os saberes. Isto impõe
uma nova consciência; o ensino pautado na comunicação
convergente dos programas de estudo das disciplinas, no diálogo
entre os professores e alunos em uma perspectiva de troca e
enriquecimento de saberes individuais e experiências de vida,
proporcionando a alegria da busca e do conhecimento (VALÉRIO,
2010, p. 52)

Ensinar a leitura de um texto que envolve mais de uma disciplina atrai o


aluno, pois ele não estará vendo um novo conteúdo, mas, sim, enriquecendo seu
saber sobre aquele tema. Ao perceber que os professores se uniram em prol do
conhecimento, haverá uma troca e o aluno poderá acrescentar, também, a sua
experiência no coletivo, nas duas disciplinas envolvidas.
Para conseguir realizar esse tipo trabalho, é necessário estar atento, e como
afirmam Fazenda et al. (2007), “é preciso integração, o momento da
interdisciplinaridade em que há a organização das disciplinas, num programa de
estudos, é o conhecer e relacionar conteúdos, métodos e teorias .” É necessário,
também, como afirmam Carneiro et al. (1994), que as disciplinas fecundem-se
cada vez mais reciprocamente.
Dessa forma, tais afirmações fazem-nos perceber que a
interdisciplinaridade não é um trabalho individual, é coletivo: os alunos, os
professores, a escola e a educação ganham com essa prática, tão pouco vista no dia
a dia das salas de aula. Os seis autores, citados acima, também afirmam que o
primeiro passo é escolher um objeto, um tema, um problema. Por isso, foi pensada
para trabalhar, na sala de aula do 9º ano, a letra da canção — porque ela é uma
música criada na época da Ditadura Militar, tema na disciplina de História.
288 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

2.2 A “dita-cuja”

Para trabalhar o tema da Ditadura Militar, a professora de História usa o


livro didático, material audiovisual e outros textos coletados de revistas e internet.
O livro didático dos alunos do 9º ano é o do Projeto Teláris, dos autores Gislane
Azevedo e Reinaldo Seriacopi. O conteúdo está na Unidade 7, intitulada “A
ditadura civil-militar brasileira”, com 13 páginas sobre todo o contexto histórico
de

1964 a 1985, época em que o Brasil viveu sob uma ditadura civil-
militar. Usando como argumento o combate à ameaça de
implantação do comunismo no Brasil e a defesa da “moral e dos
bons costumes” da sociedade, os militares que governaram o Brasil
nesse período suspenderam os direitos civis da população,
instituíram a censura aos meios de comunicação, prenderam,
torturaram e mataram opositores do regime (AZEVEDO;
SERIACOPI, 2016).

Por ter conhecimento desse assunto, a proposta busca, no estudo da música


de Chico Buarque (que foi proibida de circular nos meios de comunicação da
época), acrescentar conhecimento aos alunos sobre esse contexto vivenciado
pelos brasileiros, só que nas aulas de Língua Portuguesa.

2.3. Sou eu

Não se objetiva aqui explorar de forma aprofundada a biografia de Chico


Buarque, mas, em pesquisas feitas em sites da internet, foi encontrado o básico
para situar este artigo na condição do trabalho que será realizado, que é a análise
de uma música do cantor. Não nos aprofundaremos em toda a obra do artista, pois
não convém no momento.
De acordo com o site eBiografia, Francisco Buarque de Holanda nasceu em
19 de junho de 1944, no estado do Rio de Janeiro. É músico, escritor e dramaturgo.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |289

Durante o regime militar teve várias músicas


censuradas e foi ameaçado, se exilou na Itália em
1969. Suas canções denunciavam aspectos sociais e
culturais da época. Sua volta ao Brasil, em 1970, foi
comemorada com manifestações de amigos e
admiradores. (...) Sua música "Apesar de Você" vende
cerca de 100 mil cópias, mas é censurada e recolhida
das lojas.

Vê-se que a música que iremos trabalhar foi citada nessa biografia. Chico
Buarque, como afirma Marcelino (2011), usou o pseudônimo de Julinho de
Andrade para enganar a censura.
A escolha pelo artista partiu do entendimento de memória coletiva, do
conhecimento desta parte da história, estudada na escola e vista nas mídias, em
reportagens, séries e novelas.

O caso de Chico Buarque é exemplar, pois talvez ele tenha sido


quem ficou mais cristalizado na memória coletiva como um
representante de resistência intelectual à ignorância da repressão.
De fato, seu reconhecido talento associou-se à sua habilidade, em
alguns momentos, de burlar a censura, tornando-o emblemático da
valorizada capacidade da classe artística de resistir (MARCELINO,
2011, p.23).

Era preciso escolher um texto que representasse o tema da aula de


História e que fosse, também, conteúdo das aulas de Língua Portuguesa:
Manifesto e Letras de protesto. Assim, a interdisciplinaridade sai do papel e pode
ser praticada.

2.4. O que será

Instintivamente, já sabemos que o hábito da leitura aprimora o


desenvolvimento do ser humano, e esse costume deve ser plantado na escola. É
uma semente que nós, professores, devemos fazer germinar na consciência dos
alunos e ler, para eles, deve ser algo atrativo, visto que parece que eles cansam ao
290 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

ler e o professor é um modelo de leitor para o aluno. É por isso que a leitura
tutorial, segundo Bortoni-Ricardo, Machado e Castanheira (2010, p. 51), é “aquela
em que o professor exerce papel de mediador durante o processo de leitura e
compreensão”, e é um processo fundamental para que nós, professores,
alcancemos o êxito em nossa prática.
Há muito tempo, trabalhar a leitura não é tarefa somente dos professores
de Língua Portuguesa. Se o aluno não lê bem, não é culpa deles também. Todas as
áreas do conhecimento, sistematizado (como nas escolas) ou não, estão associadas
à leitura e os professores de todas as áreas devem internalizar essa ideia. Na
verdade,
é imprescindível que a leitura esteja no centro das atividades
pedagógicas. Dessa forma, a leitura, por integrar saberes e
contribuir para a construção de novos saberes, tem um papel
importante na escola dentro desse novo contexto. Nessa
perspectiva, a leitura é a atividade elo que transforma os projetos
de um professor em projetos interdisciplinares (BORTONI-
RICARDO; MACHADO; CASTANHEIRA, 2010, p.52).

A escola possui um papel importante: sob comando da gestão, coordenação


e professores, é possível que se explorem as habilidades e as estratégias que o
trabalho com a leitura oferece. Se há uma riqueza de textos, deve-se obter uma
riqueza igual de mecanismos que possam melhorar a competência leitora do
aluno.
A família também pode contribuir e apoiar a escola na criação dessa cultura
de letramento eficaz que tornará os alunos em leitores competentes, que saibam
entender o que leem, que saibam identificar o tema, fazer relações e inferências,
que possam interagir com as pessoas no mundo em que vivem.
Este artigo visa não focar nas dificuldades que os alunos têm, não busca
criticar trabalho alheio nem julgar aqueles profissionais que ainda não conseguem
ensinar o aluno a aprender a ler (no 9º ano). É apenas uma contribuição para que
professores possam auxiliar os alunos na questão da compreensão dos textos, nos
três momentos propostos pelas autoras e que talvez, instintivamente, muitos
professores possam ter feito, que é, antes de ler o texto, preparar os alunos, situá-
los no tempo e contexto, ler e reler (e analisar) e avaliar o depois da leitura, nesse
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |291

processo conhecido como leitura tutorial, com mediação do professor e protocolo


de leitura com o método de andaimagem.

3. Foi assim

Esta pesquisa se baseia no livro Formação do Professor como agente


letrador, de Bortoni-Ricardo, Machado e Castanheira (2010), mais
especificamente no capítulo sobre “A leitura tutorial como estratégia de mediação
do professor”, com o método de andaimagem e protocolos de leitura.
Para desenvolver a pesquisa, foram escolhidos os alunos do 9º ano, turma “A”,
com 34 alunos, turno vespertino da escola Senador Adalberto Sena, localizada na
Rua W-1, n.º 284, bairro Tucumã. A escolha foi feita por conta dos horários das
duas disciplinas envolvidas e, de preferência, em tempo hábil para que os alunos
já tivessem estudado o conteúdo de História.
Nas duas primeiras semanas, os conteúdos de História foram ministrados e, na
terceira semana, foi feita a análise textual da letra de música, junto com os alunos,
que será descrito no protocolo mais à frente.
O objetivo é demonstrar, através da proposta de leitura tutorial, uma estratégia
que seja capaz de desenvolver a competência leitora nos alunos e despertar a
atenção deles para conhecerem e entenderem o contexto histórico em que a letra
escolhida foi criada pelo compositor Chico Buarque, o que faz a ponte com a outra
disciplina.

4. Proposta

Como já foi dito, o presente artigo baseia-se nos estudos de Bortoni-


Ricardo, Machado e Castanheira (2010) e apresentará aqui um modelo de
protocolo de leitura cuja
mediação da professora é subsequente aos turnos de leitura ou de
respostas do aluno leitor. De fato, a professora pesquisadora
interage durante todo o evento com o leitor, desenvolvendo uma
sequência de intervenções de mediação, que se caracterizam como
292 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

andaimes (BORTONI-RICARDO; MACHADO; CASTANHEIRA,


2010, p.28).
O protocolo, transcrito abaixo, é baseado numa gravação de quase 34
minutos de análise da canção “Apesar de você”, de Chico Buarque, feita com 29
dos 34 alunos matriculados na turma de 9º ano da escola Senador Adalberto Sena.
No início da aula de Língua Portuguesa, a professora explicou aos alunos
que eles iriam ouvir uma música para entender um pouco mais sobre o assunto
que estão estudando em História, pois se tratava de uma música composta no
período da Ditadura Militar. E perguntou o que eles sabiam sobre a Ditadura.
Assim, foram realizadas duas estratégias para o “antes” da leitura, proposto pelas
autoras.
É importante que os leitores saibam o motivo pelo qual realizarão a
leitura (...) é relevante também ativar e/ou atualizar os
conhecimentos prévios dos leitores. (...) é preciso, primeiro, fazer
um diagnóstico do que os leitores sabem acerca do tema. Com esse
diagnóstico, será possível avaliar a necessidade de prestar mais
informações acerca do assunto (BORTONI-RICARDO;
MACHADO; CASTANHEIRA, 2010, p.56).

Assim como as autoras afirmam, se os alunos sabem muito sobre o tema,


pode ser uma atividade de sucesso; se eles não sabem muito, poderá ser um
fracasso.
Foi possível diagnosticar, no início, pelos alunos que se manifestaram, que
eles sabiam o que é a Ditadura Militar, o período em que ela aconteceu, onde
aconteceu e o que representou para o país.
Vale destacar que, por questões de ética, os nomes dos alunos participantes deste
protocolo de leitura não serão mencionados. Serão tratados pelas iniciais dos
alunos e não está completa, pois se trata apenas de uma demonstração de como
podemos trabalhar em sala de aula.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |293

PROTOCOLO DE LEITURA
I
(Após assistirem ao vídeo com a música)

Professora: Alguém já ouviu essa música? (Três apenas levantaram a mão)

Professora: Alguém é capaz de me dizer, após a audição dessa música, qual o tema dela?
Aluna R.: Ela fala sobre a Ditadura Militar, mas não da parte ruim, fala da parte que o povo quer
mudança e espera por ela.
Professora: De que década é a música?
Aluna R: Década de 70
Professora: Isso... muito antiga, né? Da época da...
Ao mesmo tempo, alguns: Ditadura...
Professora: Isso, aí olha só...nós vamos fazer a leitura dela, da letra dela, pra saber o que ela tem a
ver com a Ditadura e como o autor quis passar sua mensagem... é uma releitura passo a passo.

(Nesse momento, em slides, a letra estava visível por trechos para a leitura tutorial coletiva)
II
Professora: Qual é o título da música?
Vários: Apesar de você.
Professora: Como é o nome do autor?
Aluna R: Chico Buarque.
Professora: Quem conhece Chico Buarque? (Nem um aluno sequer disse que conhecia, apenas
leram o que tinha nos slides).
III
Professora: Por que você acha que ele repetiu três vezes o verso “Amanhã vai ser outro dia”?
Aluno G.L.: Porque a cada dia que se passa, ele pensa que amanhã pode ser um dia melhor.
Aluno G.F: Porque a cada dia que se passa, ele acha que vai ser aquela mesma rotina, mesmo que
ele tenha esperança, será uma rotina.

(O aluno G.L compreendeu o sentido da frase, já o aluno G.F fez uma ligação entre a repetição e o
fato de ser algo rotineiro, fazendo a associação entre sentido e efeito de sentido da expressão.)
IV
Professora: Quem é esse você?
Vários: O governo militar.
Professora: Tá muito claro pra vocês que é o governo? Ele manda em quê?
Aluna R.: Nas pessoas, no povo.
294 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Professora: Pessoas e povo são a mesma coisa?


Aluna G.C: Tipo... sim. Ou não... pera... pessoas e povo são a mesma coisa, mas povo pode ser todas
as pessoas e todas as pessoas não precisa ser o povo todo.

V
Professora: Na parte A minha gente hoje anda/Falando de lado/E olhando pro chão, viu”, esse
“anda” representa andar com as pernas ou andar de se encontrar, estar?
(Nesse momento, gerou-se uma discussão em que só uma aluna considerou que o andar era no
sentido de locomover-se).
Professora: Não pode ser, gente?
Aluna S.C: Eu acho que é de estar assim, não de andar com as pernas.
Aluno J.V.L: Eu acho que é andar de estar falando de lado, não de caminhar.
Aluna K.: Pra mim é andar. (e fez o gesto de dar passos com os dedos).

(Talvez por conta de a maioria não achar que seja “locomover-se”, não tiveram a atitude de
encenar)
VI
Professora: Que estado que ele inventou?
Aluna G.C: Inventou isso aqui que tá acontecendo.
Professora: Em outro contexto, outra situação, a palavra estado pode ser um lugar? Como?
Aluno C.M: Sim, o Acre é um estado. Será que ele não tá falando do estado que ele mora?
Professora: E aí, gente? O que vocês acham? Pode?
Alguns: Acho que não...
Professora: Posso usar a palavra “estado” em que outras situações, além dessas? (burburinho e
ninguém soube dizer) A água de beber é em que estado?
Aluna R.: Líquida.
Professora: O gelo é a água em qual estado?
Vários: Sólido.
Professora: A água evaporando é em qual estado?
Vários: Gasoso.
Professora: Então o que significa “estado” quando falo isso?
Aluno G.L, brincando: Governo!

VII
Professora: O que ele quis dizer com Como vai proibir/Quando o galo insistir/Em cantar?
Aluna G.C: Que o governo não vai poder proibir quando o povo tiver que fazer o que deve ser
feito. Quando a pessoa for atrás do direito dela.
Professora: Tem como alguém proibir o galo de cantar?
Alguns: Não...
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |295

Professora: Como não?! Claro que tem...


Alguém gritou de trás: É só amarrar o bico dele.
Aluna R.: Mas essa música passou... pela censura? (Momento em que uma aluna faz uma pergunta
pela primeira vez)

Professora: Passou... alguém lembra o que eu falei sobre ela ter passado pelo filtro?
Aluna G.C: A senhora falou “indagora” que eles no começo achavam que o “você” era uma mulher.
Aluna R.: Ah sim...
VIII
Professora: Quem é esse “a gente”?
Alguns: Nós.
Professora: Nós aqui?
(os alunos entendem que “a gente” é o mesmo que “nós”, mas a professor instiga-os)

Aluna G.C: Não porque nós não estávamos lá.


Professora: Isso. É o povo. O povo daquela época. Nós não vivemos essa época da Ditadura.
Uma aluna não identificada pela voz: Graças a Deus.

(Podemos perceber que ela manifesta seu sentimento gratidão por não ter sofrido como as pessoas
da época)

IX
Professora: “Quando chegar o momento”. De qual momento ele fala?
Aluno G.F: O momento em que todos serão livres pra falar o que quiserem.
Professora: Como é cobrar com juros?
Aluna R.: É como se fosse cobrar mais deles.
Professora: Em que lugar se ouve falar em juros, normalmente?
Aluno G.L: No banco.
Professores: O que são os juros?
Aluna R.: É tipo se... a pessoa deve e não paga, o banco vai cobrar uma taxa.
Professora: Isso! Taxa... e qual a brincadeira que o cantor faz com as palavras no final do verso?
Aluna G.C: Juros de taxa e juro de jurar. É um verbo.
X
Professora: O que significa “reprimido”?
Aluno G.B: Revoltado.
Professora: Revoltado, gente?
Alguns: Não.
Professora: Então é o que?
296 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Aluna R.: Ser impedido, de falar ou fazer algo.


Professora: E por que no escuro?
Aluno M.G: Esse samba que foi feito meio que escondido.

(O aluno faz o gesto com as mãos sugerindo uso das aspas quando fala “escondido”.)

Aluna R.: Um samba no escuro para não ser descoberto.


XI
Professora: O que é fineza?
Alguém disse: Não sei.
Aluna G.C: Fino
Professora: Mas fino, assim? (ela mostra o dedo mindinho)
Aluna C.G: Não... fineza de “chiqueza”, de ser chique.
Aluno M.G: Ser educado, ter bons modos.
Professora: Isso! Ser educado... Por que “desinventar” está entre aspas?
Aluna R.: Porque é uma palavra que não existe.

(A professora brinca com a aluna que sempre responde tudo e pede pra ela não repetir porque fará
a pergunta de novo, direcionando; ela pede para que levante o braço aquele aluno que não sabe
por que a palavra está entre aspas e apenas três não levantaram)

Professora: Então me diz, L., já que você não levantou o braço...


Aluno J.V.L: Porque ela não existe.
Professora: Mas a gente entende o que ele quis dizer. O que é?
Aluno G.F: De fazer com que o povo volte a ser feliz.
Professora: Muito bem!
XII
Professora: O que representa pagar dobrado?
Aluno G.L: Pagar em dobro.
Professora: O que representa pagar em dobro?
Aluno G.L: Que o governo vai ter que arcar com as consequências do mal que causou.
Professora: E como seria isso?
Aluno G.L: Aguentar tudo o que povo quer, até mesmo ser contra ele.
XIII
Professora: Qual sentimento o eu-lírico demonstra nessa parte: Que esse dia há de vir/Antes do
que você pensa?
Aluna M.L: Esperança.
Professora: A canção demonstra isso? Ter esperança?
Aluna T: Sim, desde o começo.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |297

Professora: No verso “Sem lhe pedir licença”, o autor quis demonstrar o quê?
Aluno M.G: Ele está sendo sarcástico. Irônico.
Professora: O que é ser sarcástico?
Aluno M.G: É você meio que zombar, dizer algo que não quer dizer de verdade.
Aluna R.: Esse pedir licença é porque tudo tinha que passar pela ditadura.
Professora: Mais especificamente, pela censura.
XIV
Professora: “Morrer de rir” é uma expressão com efeito estilístico. Qual?
Aluno G.C: É tipo como se... como se tivesse sendo exagerado.
Professora: Como se conceitua isso em língua portuguesa? ...(depois de burburinhos)... Hipérbole.
Aluna T: Ah, a gente estudou isso ano passado.
Professora: Então, o que é?
Aluna T: Não sei, só "lembrei desse" nome, mas a senhora disse que é um exagero, diga outros
exemplos aí.
Professora: Hipérbole é um recurso na linguagem pra gente falar algo que é um exagero. Por
exemplo: “Te liguei mil vezes, fia”. “Chorou um rio de lágrimas”, etc.
Alguns: Ah...
(Aproveitamento do texto para ensinar as figuras de linguagem)
XV
Professora: O que significa “Impunemente”?
Aluna R.: Sem punição. Uma coisa que eles faziam muito nessa época.
Professora: “Como vai abafar/nosso coro a cantar/na sua frente”. Esse coro representa o quê?
Aluno G.L brincando: A pele. (vários riem)
Professora: Sério, gente...
Aluna M.L: Coro de voz, muitas vozes.
Professora: Mas esse coro significa que vamos falar...
Alguns: Juntos!
Professora: Vamos falar juntos, a mesma...
Aluno G.L: Coisa!
298 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

XVI
Professora: Esse “lá, lá iá, lá, lá iá...” representa o quê?
Aluno G.B: Que ele não quer mais cantar! (alunos riram)
Professora: Pode ser... mas pode ser o que também?
Aluna R.: Que a música tá acabando...
Professora: Pode ser! Pode mais outras coisas... o quê?
Aluna G.C: Pode ser que o coro vai seguir cantando junto esse “lá, lá iá”.
Professora: Pode! O que mais?
Aluno M.G, impaciente: Lá, lá iá é qualquer coisa que não é a letra da música, é só a melodia...
Quando uma pessoa não sabe cantar ela canta lá, lá iá junto com a melodia e não precisa saber a
letra. A música é o som, a letra “é as palavras”.
XVII
(A professora encerrou a aula, falando sobre os vídeos que assistiu sobre a Ditadura Militar, sobre
a supersérie exibida na Rede Globo “Os dias eram assim”, sobre as entrevistas a que assistiu com
Chico Buarque falando sobre essa época. Disse que na Internet tem muito conteúdo interessante
sobre o assunto, mas que é preciso saber pesquisar em sites sérios. Motivou os alunos a pesquisarem
e quis saber se eles tinham algo a falar ou perguntar).

Aluno G.B: O que é ser exilado?


(Aluna R. respondeu)
(Para finalizar, a professora perguntou se ouvir e estudar a música ajudou-os a aprender um pouco
mais sobre a ditatura militar e a maioria disse que sim).
Professora: Ajudou em quê?
Aluna R.: A aprender sobre a censura e o que os artistas queriam dizer na época.
Professora: A gente estudou só sobre conteúdo de História?
Aluno G.B: Não, a gente estudou coisas que são da língua portuguesa, como as palavras... as palavras
que a gente não sabia o significado... Estudou o que o homem... o homem não, desculpa, o cantor
quis falar, quis botar pra fora... Como se ele tivesse engasgado e precisasse dizer algo através da
canção, das palavras, dos duplos sentidos...

5. Hein?
Analisar um texto, com base na mediação direta do professor, em uma
atividade de leitura tutorial com o método de andaimagem, requer planejamento
e paciência. Planejamento porque se deve ter conhecimento dos conteúdos a
serem ministrados, ainda mais quando se irá trabalhar a interdisciplinaridade;
paciência porque o processo de leitura, passo a passo, é lento e demanda controle
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |299

de sala, para que os alunos não fiquem dispersos. Há de se concordar com


Antunes (2010, p.14), quando ela afirma que “falta ao professor uma prática
contínua de análise, que possibilite o desenvolvimento da capacidade de enxergar
os elementos que (...) são centrais para o entendimento do texto”.
Para fazer a análise, perguntas claras e diretas foram criadas para que o
aluno pudesse perceber que existe a compreensão explícita, como perguntar título
e autor do texto, por exemplo (item I do protocolo). Também foram elaboradas
perguntas com que eles pudessem interagir e relacionar com algum aspecto da
linguagem em si. (Ver todos os itens do protocolo)
Como Antunes (2010, p.32) afirma que o “texto se constrói a partir de
um tema, de um tópico, uma ideia central”, podemos observar o cuidado da
professora (no item I do protocolo) em perguntar se os alunos sabiam o tema,
depois do primeiro contato com a leitura, feita, de início, ouvindo a música e
acompanhando a letra no vídeo.
Ao analisar a letra com os alunos, podemos perceber que foi possível que
eles identificassem a intenção do autor ao escrevê-la. Ainda citando Antunes
(2010, p.34): “Nenhum texto, como sabemos, ocorre no vazio, em abstrato, fora
de um contexto sociocultural determinado. Todo ele está ancorado num (...)
contexto social qualquer”.
Pode-se considerar que a leitura tutorial feita contribuiu, pois

analisar textos é procurar descobrir, entre outros pontos, seu


esquema de composição; sua orientação temática, seu propósito
comunicativo; é procurar identificar suas partes constituintes; as
funções pretendidas para cada uma delas, as relações que guardam
entre si e com elementos da situação, os efeitos de sentido
decorrentes de escolhas lexicais e recursos sintáticos. É procurar
descobrir o conjunto de suas regularidades, daquilo que costuma
ocorrer na sua produção e circulação (ANTUNES, 2010, p.49).

É possível que ouçamos uma música e não nos demos conta da mensagem
que ela quer transmitir. É possível que os alunos não tivessem outra oportunidade
de conhecer a canção estudada aqui. Para isso, a análise por andaimagem
300 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

consegue auxiliar o processo de entendimento global do texto e, ainda, o


funcionamento da língua materna em seu processo comunicativo.
Na análise feita no Protocolo de Leitura desta aula, podemos observar os
seguintes aspectos:
a) Participaram da aula 29 alunos, 16 meninas e 13 meninos;
b) 51,7% deles participaram da aula de forma ativa, alguns respondiam,
outros interagiam; alguns deles apenas se manifestaram uma vez;
c) Não houve o cuidado da professora em direcionar perguntas a alunos
que não estavam falando, talvez pela falta de prática ou pelo motivo de eles
estarem parecendo compreender;
d) Apesar de ser assunto sobre a década de 1970, eles não pareceram
resistentes, não demonstraram falta de interesse;
e) Os alunos demonstraram conhecimento do conteúdo de História e
fizeram poucas perguntas, talvez por timidez ou por não precisar tirar nenhuma
dúvida, exceto em duas perguntas;
f) É possível que a forma como foi conduzida a mediação possa ser
aprimorada, reavaliada e utilizada, caso seja necessário realizar a atividade com
outras turmas.
Enfim, houve diálogo entre duas disciplinas — História e Língua
Portuguesa; professores se uniram em prol do conhecimento, com planejamento
e conhecimento dos conteúdos de ambas; e por ser um trabalho coletivo, os
alunos, os professores, a escola e a educação ganharam com essa prática.

6. “E pela paz derradeira”

Concluir o trabalho e pensar sobre toda a prática traz-nos certo alívio, certa
paz e um sentimento de que foi feita a nossa parte. Muito se fala sobre leitura nas
séries finais do ensino fundamental II, muito se questiona, há bastante conteúdo
prático e eficaz ao nosso alcance, em livros, artigos alheios, vistos nas aulas de
Letramento e ensino, por exemplo. Porém, este trabalho procurou contribuir com
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |301

as aulas de História e trabalhar uma estratégia encontrada e estudada nos livros


sobre nosso trabalho como professores, agentes letradores.
Para que os alunos pudessem ter contato com um texto, pensou-se na
música como forma de atração inicial. Ao analisá-la sob mediação da professora,
com o método de andaimagem mostrado através do protocolo, é clara a riqueza
do trabalho em relação a utilizar uma estratégia eficaz que faça o aluno não só ler,
mas refletir sobre a língua, a linguagem, o contexto histórico.
Fazer a ponte com outra disciplina proporcionou, aos alunos, certa
intimidade com o tema, certa facilidade em pensar sobre o porquê de aquelas
palavras e expressões serem escolhidas pelo compositor — o que nos faz
considerar como produtivas as aulas ministradas pela professora de História nessa
turma acompanhada.
Se o desafio da escola é tornar os alunos proficientes, se ensinar leitura é
um desafio para os professores, se muitos reclamam porque estão em sala de aula
diariamente, esperamos que, neste artigo, encontrem uma estratégia que pode
auxiliá-los, que pode motivá-los a praticar. Não será, necessariamente, Língua
Portuguesa com História, mas qualquer outra dupla (trio, conjunto) de
disciplina(s) que possa(m) fazer um trabalho coletivo de leitura, com textos
diferentes com temas iguais, como a proposta utilizada neste artigo.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Irandé. Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo:


Parábola Editorial, 2010.

AZEVEDO, Gislane; SERIACOPI, Reinaldo. História: Projeto Teláris. São Paulo:


Ática, 2016. (6º ao 9º ano)

BORTONI-RICARDO, Stella Maris; MACHADO, Veruska Ribeiro;


CASTANHEIRA, Salete Flores. Formação do professor como agente letrador . São
Paulo: Contexto, 2010.
302 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

CARNEIRO, A. L.; RIBEIRO, E. E.; SÁNCHEZ, M. G. de; MÜLLER, S. M.;


HARACEMIV, S. M. C.; CARNEIRO, S. M. M. O conhecimento e a
interdisciplinaridade: primeiras reflexões. Educar, Curitiba, n.10, p-33-38, 1994.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
40601994000100004> Acesso em 06/07/2018.

FAZENDA, I.C.A; KIECKHOEFEL, L.; PEREIRA, L.P.; SOARES, A.Z. Avaliação


e interdisciplinaridade. Publicação Oficial do GEPI- Grupo de Estudos e Pesquisa
em Interdisciplinaridade – Educação/ Currículo – Linha de Pesquisa:
Interdisciplinaridade: PUC/SP. R. Interd., São Paulo, Volume 1, número 0, p.01-
83. Out, 2010. Disponível em:
<http://www.pucsp.br/gepi/downloads/revistas/revista-7-gepi-out15.pdf>.
Acesso em: 05/07/2018.

FRAZÃO, Dilva. Biografia de Chico Buarque de Holanda. eBiografia: biografias


de famosos, resumo da vida, obras, carreira e legado. Disponível em:
<https://www.ebiografia.com/chico_buarque/>. Acesso em: 05/07/2018.

MARCELINO, Douglas Attila. Subversivos e pornográficos: censura de livros e


diversões públicas nos anos 1970. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2011.

VALÉRIO, Rosângela Almeida. Ilustração do texto verbal: uma leitura


interdisciplinar. Publicação Oficial do GEPI- Grupo de Estudos e Pesquisa em
Interdisciplinaridade – Educação/ Currículo – Linha de Pesquisa:
Interdisciplinaridade: PUC/SP. R. Interd., São Paulo, Volume 1, número 0, p.01-
83. Out, 2010. Disponível em:
<http://www.pucsp.br/gepi/downloads/revistas/revista-7-gepi-out15.pdf>.
Acesso em: 05/07/2018.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |303

Vídeo passado aos alunos na aula: <https://www.youtube.com/watch?v=33-


bMTOlvx0> Acesso em 28/06/2018.
304 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

CLAREZA TEXTUAL: CAMINHOS DO SENTIDO

Luiz Antônio Cavalcanti Monteiro (UERJ)

1. Introdução

Sobre o que falamos quando falamos de clareza? Podemos expor a


indagação de outras formas, mas a dúvida continuará nos provocando: quando
pedimos que o aluno escreva sua redação com clareza, o que de fato pedimos que
seu texto apresente? Que elementos a escrita precisa ter para ser clara? A clareza
é um efeito da estrutura textual, por certo, mas em que medida a coesão, a
coerência e as escolhas sintáticas a afetam? A clareza é um marcador de estilo? A
intencionalidade do autor e a aceitabilidade, compreendida como um elemento
da alteridade representada pelo leitor-interlocutor, afetam a clareza de um
enunciado?
Linguistas podemos afirmar que as respostas para as perguntas acima já nos
indicam origem multifatorial para os efeitos de clareza de um texto. Da sintaxe à
intencionalidade do autor e aos elementos coesivos que moldam a coerência
narrativa, todos os componentes de um texto contribuem em certa medida para
que a linguagem, aplicada à sua função interativa, se construa como comunicação
efetiva.
É plausível acharmos que todo autor deseja que seu texto seja
compreendido pelo leitor tal como ele, autor, planejou. Sabemos também que
determinados gêneros, sobretudo os literários, navegam em águas mais turvas
quando o assunto é facilitar a compreensão dos leitores ao flertarem com a
polissemia e a ambiguidade intencional da narrativa que explora os sentidos no
limite da linguagem.
Vejamos o exemplo de Fiorin (2018, p.210), com o poema “À moda da
casa”, de José Paulo Paes:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |305

feijoada
marmelada
goleada
quartelada
Fiorin sustenta que o texto de Paes — formado por palavras soltas,
aparentemente desconexas, sem elementos coesivos — oculta um fio condutor
que lhe dá a coerência de sentido. Há, no plano morfológico, um paralelismo
marcado pela presença do sufixo ada, que conduz o leitor a diversos significados
possíveis quando presente numa formação lexical21.
Os significados das palavras, tanto em sua vertente denotativa quanto na
conotativa, possibilitam, ao leitor atento, percorrer caminhos para responder a
dúvidas internas do coenunciador que revelam uma busca pela compreensão de
um enunciado e onde, enfim, reside sua clareza: “Esse texto fala de quê? Não ficou
claro para mim...”. Fiorin revela seu entendimento sobre o poema de Paes (ibid.,
p. 211):

Entendemos que o texto está enumerando elementos definidores


do Brasil: no plano culinário, no plano das relações sociais, no plano
esportivo, no plano político. Por que somos capazes de
compreender esse texto? Porque é coerente.

José Paulo Paes, dotado de criatividade e estilo exemplares, não deixa


dúvidas quanto à intencionalidade de seu texto: explorar os aspectos polissêmicos
de lexemas sem conexão sintática para estruturar um poema cuja narrativa
demonstra robusto viés sociopolítico. Quando o leitor descobre os diversos
caminhos possíveis de sentido, está, em verdade, construindo a clareza desse
texto.
Há, porém, segmentos profissionais que trabalham com a textualidade nos
quais, por dever de ofício, esses caminhos devem ser pavimentados com uma
relação semântico-sintática mais direta, menos aberta a bifurcações que

21Segundo o Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 7.0, -ada: 1. tônico = ‘ação’ ou ‘resultado de
ação (enérgica)’; ‘coleção’; ‘multidão’; ‘golpe’; ‘produto alimentar’; ‘duração’; ‘porção’; ‘marca feita com
um instrumento’; ‘acontecimento’; ‘movimento’.
306 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

conduzem a sentidos diversos. Áreas como o ensino de produção textual e o


jornalismo tratam a questão da clareza como fundamento pétreo. Nos manuais de
redação jornalística, por exemplo, a clareza é citação constante, como vemos
nestes exemplos:
Clareza na linguagem, precisão nas informações — e bom gosto.
Um texto não precisa de muito mais do que isso para ser lido com
prazer.
(MARANHÃO, Carlos – Manual de Estilo da Editora Abril: 1990,
p.11)
(...) exige-se fidelidade a três requisitos: exatidão (para não enganar
o leitor), clareza (para que ele entenda o que lê) e concisão (para
não desperdiçar nem o tempo dele nem o espaço do jornal).
(Manual de Redação e Estilo de O Globo: 1992, p.15)
Seja claro, preciso, direto, objetivo e conciso.
(Manual de Redação e Estilo de O Estado de S. Paulo: 1990, p.16)

Obras relacionadas ao ensino de produção textual também registram a


clareza como elemento essencial do texto, muitas vezes ao lado de outras
qualidades como correção, ênfase e concisão. Filólogo e linguista, Othon Moacyr
Garcia legou à Língua Portuguesa uma obra essencial: Comunicação em Prosa
Moderna, livro até hoje referência nos estudos sobre desenvolvimento da
textualidade. Segundo Costa Val (2006, p. 5), a textualidade define-se pelo
conjunto de características que fazem um texto ser reconhecido como tal, e não
apenas como frases amontoadas e desconexas22.
Destacamos algumas passagens relevantes da obra de Garcia em que a
clareza aparece como um dos fundamentos do texto bem construído:

1. Pensamento e expressão são interdependentes, tanto é


certo que as palavras são o revestimento das ideias e que, sem elas,
é praticamente impossível pensar 23.(...) A própria clareza das ideias
(se é que as temos sem palavras) está intimamente relacionada com
a clareza e a precisão das expressões que as traduzem.

22 Costa Val apoia-se nos estudos de linguística textual de Robert de Beaugrande e Wolfgang Dressler,
que definem os sete fatores responsáveis pela textualidade: coesão, coerência, informatividade,
situacionalidade, intertextualidade, intencionalidade e aceitabilidade.
23 Garcia retoma aqui reflexões de Adam Schaff, em Introdução à Semântica (Civilização Brasileira,

1968), e Émile Benveniste, em Problèmes de Linguistique Générale (Gallimard, 1975).


Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |307

(GARCIA, 2006, p.173);


2. Aprender a escrever é, em grande parte, se não
principalmente, aprender a pensar, aprender a encontrar ideias e a
concatená-las (...). Quando o estudante tem algo a dizer porque
pensou, e pensou com clareza, sua expressão é geralmente
satisfatória.
(ibid., p.301)

Vemos nas explicações de Garcia que a clareza, antes de se materializar no


texto, nasce no pensamento, e este está diretamente ligado às expressões
linguísticas. Palavras e ideias são irmãs siamesas. O texto claro, portanto (ou os
caminhos de sentido que o texto possa tomar), é resultado de um processo que se
estrutura muito antes das escolhas sintático-lexicais.
O livro de Othon Moacyr Garcia foi lançado em 1967, e sua frase
“Aprender a escrever é aprender a pensar”, vista acima na citação 2, vem
reverberando nos estudos de produção textual mais de meio século depois. Dada
a consistência e a riqueza da obra — fundamentos de sua longevidade e atualidade
—, podemos naturalmente entender que ela nasce de um longo processo de
evolução do trabalho e da pesquisa de Garcia24.
Sabemos, no entanto, que os estudos linguísticos, por seu caráter de ciência
de humanidades, têm um caminho sinuoso em que as linhas de pensamento, as
definições e as teorias vêm e vão ao longo do tempo, sendo retomadas e
retrabalhadas por diversos pesquisadores que por certo tiveram acesso às mesmas
fontes de pesquisa.
Citamos, então, outro renomado filólogo e linguista brasileiro, Joaquim
Mattoso Camara Jr., que em 1961 lançou o livro Manual de Expressão Oral e
Escrita (publicado originalmente pela editora J. Ozon-Editora), no qual já
mostrava a relação entre pensamento e linguagem (CAMARA Jr., 1977, p.12):

24Por Conforte (2014, p. 104), sabemos que o primeiro estudo literário de Othon Moacyr Garcia foi
publicado em 1939 na Revista de Cultura e Técnica, quase 30 anos antes da primeira edição de
Comunicação em Prosa Moderna .
308 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Assim, deixando de parte muitas outras funções da linguagem na


vida humana, podemos fixar-nos nestas duas primaciais e
incontestáveis:
a) possibilitar o pensamento em seu sentido lato;
b) permitir a comunicação ampla do pensamento assim
elaborado.
(...) Há quem assim se desculpe quando o que diz ou escreve produz
um resultado contraproducente: (...) O erro está, a rigor, numa
confusão de ideias.

2. Algumas definições

Às vezes parece-me que o termo “clareza” habita uma zona ainda a ser
ocupada por definições inequívocas, talvez pela complexidade de fazê-lo devido
aos múltiplos elementos que compõem os efeitos da clareza enunciativa. Algo
muito semelhante ao que veio ocorrendo com a noção de “estilo” durante boa
parte do Século XX25. Volto à obra de Mattoso Camara citada acima, pois entendo
que — ao menos até este ponto do estudo — ela traz a conceituação de clareza
mais consistente (CAMARA Jr., 1977, p.148):

A clareza é a qualidade central de quem fala ou escreve. A sua


importância decorre das próprias funções que, inicialmente,
deduzimos como primaciais da linguagem:
a) possibilitar o pensamento em seu sentido lato;
b) permitir a comunicação ampla do pensamento assim
elaborado.

Mattoso enriquece o conceito de clareza subdividindo-o em dois aspectos:


a clareza interna e a clareza externa. Sobre a primeira, explica tratar-se da
comunicação que emerge do pensamento límpido, resultando em uma linguagem
comparável a um copo cristalino “através do qual se vê nitidamente o líquido que
o enche” (ibid., p.149). Está evidente aqui a associação metafórica — e até muito

25Chociay (1983) lista 11 definições diferentes para o termo “estilo”, embora, em quase todas, perceba-
se a presença de elementos do mesmo campo sêmico, como “autor”, “homem”, “caráter”, evidenciando
a gênese humana dos fenômenos estilísticos do texto.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |309

natural — entre a ideia de clareza e outros lexemas de seu campo semântico, como
limpidez, cristalinidade e nitidez.
Sobre a clareza externa, Mattoso diz tratar-se do pensamento claramente
projetado, uma vez tendo sido claramente concebido. Essa projeção se faz com os
elementos da língua (ibid., p.150):

A clareza externa define-se, portanto, como o aproveitamento


adequado dos meios linguísticos para o fim da comunicação. Em
outros termos, é preciso que utilizemos com mestria e segurança a
linguagem normal.

Ainda segundo Mattoso Camara, a clareza é resultado da boa aplicação de


tudo o que é ensinado nas aulas de língua materna: correção na articulação e
ortografia, na estrutura da frase, no bom emprego das formas gramaticais e na
escolha das palavras:

Até uma qualidade puramente estética, como a da harmonia


sonora, justifica-se como o meio de satisfazer àquele senso estético
coletivo que vimos inerente nos homens no âmbito das
comunicações linguísticas. (ibid., p.148).
Volto décadas no tempo para dialogar com o médico e linguista Ernesto
Carneiro Ribeiro (1915, p. 862), que dedica um bom trecho de sua obra Serões
Grammaticaes para tratar de questões da estilística textual e conceituar a clareza
como uma das qualidades gerais do estilo, que são as seguintes: correção,
propriedade, clareza ou perspicuidade, precisão, naturalidade, nobreza e
harmonia.

A clareza ou perspicuidade é uma qualidade fundamental do estylo;


consiste em exprimirmos o nosso pensamento sem obscuridade ou
ambiguidade (...). A clareza nas palavras, nas expressões e nas
phrases arrasta não só a pureza, senão a propriedade e a precisão.

Indo além da definição, Ribeiro organiza a explicação como regras


normativas da boa escrita, como um guia de estilo ou manual de produção textual
(ibidem):
310 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Para conseguirmos a clareza ou perspicuidade do estylo, devemos


collocar as palavras, as locuções explicativas e orações junto ás que
se lhes correlacionam, em forma que se não quebre a relação que as
liga e de que dependem; devemos evitar todo o modo de travar e
tecer o discurso que torne o sentido ambiguo e embaraçoso, não se
alcançando, á prima vista, o sentido do escriptor; devemos
proscrever todas as ellipses e inversões viciosas, todos os hyperbatos
exaggerados e todos esses vocabulos e phraseados, que não sejam
sanccionados pelas tradições da lingua, nem autorizados pelos bons
escriptores.

É patente aqui a intenção prescritiva que Ernesto Ribeiro impõe a seu


texto, alçando a clareza a um dos elementos centrais do estilo, ou, em verdade,
mostrando que os estudos estilísticos — tal como identificamos acontecer por
nossas pesquisas no tema “clareza” — devem dar conta de vários fatores para
alcançar um resultado eficiente na comunicação. Aqui, como se trata de uma
gramática seminal da Língua Portuguesa, sobressaem os aspectos sintáticos e
semânticos.

3. Clareza e sintaxe

É importante agora pensarmos como a questão da clareza se relaciona com


a sintaxe. Sabemos que a estrutura oracional é influência central na exatidão ou
na ambiguidade e vagueza da mensagem, e logo nos vêm à mente orações como
“O menino a menina beijou”, na qual não se sabe claramente quem são agente e
paciente em torno do verbo.
Embora a ordem natural da sintaxe de colocação, na Língua Portuguesa,
seja a de “sujeito-verbo-complemento”, a mobilidade dos termos da oração é
característica marcante de estilo e praticada em diferentes gêneros, ora por ênfase,
ora por um diversionismo intencional do autor. Essa ordem inversa da sintaxe
natural recebe o nome de anástrofe. “Quando a colocação chega a prejudicar a
clareza da mensagem, pela disposição violenta dos termos, diz-se que há um
hipérbato”, explica Bechara (2009, p.582).
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |311

Há ainda o fenômeno da sínquise, que Bechara registra em alguns autores


como sendo um tipo específico de hipérbato em que a perda da clareza se dá pela
ocorrência de uma ambiguidade. Aqui, exemplifico com um título de reportagem
do site Brasil 247:

Maia: Acordo entre Embraer e Boeing deve passar* pelo Congresso


(agosto de 2018)

O título refere-se a uma reportagem que replica uma entrevista do


deputado Rodrigo Maia ao jornal Valor Econômico na mesma data (13/08/2018)26.
A locução verbal “deve passar” encerra um duplo sentido: tanto pode significar
“obrigatoriedade de ser analisada e receber um parecer do congresso” — sentido
que está mais explícito na reportagem do jornal Valor Econômico (“Congresso
deve opinar...”) — quanto o de “grandes possibilidades de ser aprovada”.
Percebo aqui uma estratégia semântico-discursiva do site Brasil 247 que,
ao recriar o título da matéria original, acrescentou intencionalmente outros
sentidos à fala do deputado, notadamente aquela segunda acepção (grande
possibilidade de ser aprovada), e assim reforçou o argumento defendido por sua
linha editorial: o de que o Governo Temer, que Rodrigo Maia representa como
aliado, estaria “entregando os ativos e os bens nacionais ao capital estrangeiro”.
Assim, nesse exemplo, a falta de clareza serve, a partir de uma escolha sintática
com duas derivações semânticas, como recurso argumentativo.
Aqui, um outro exemplo de ambiguidade, mas desta vez com o registro da
correção, no site UOL:

26 A matéria original do Valor pode ser encontrada aqui:


https://www.valor.com.br/politica/5729475/congresso-deve-opinar-sobre-acordo-de-boeing-e-
embraer-diz-maia.
312 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Figura 1
UOL - 01/02/2018, publicado às 16h.

Primeira versão do texto assinalada em círculo, com colocação inadequada


dos termos da oração, gerando sentido ambíguo ao dispor em evidência semântica
o sintagma “cigarro com sabor proibido”. O sentido mais ilógico seria: “O STF
manteve — ou seja, preservou a comercialização ou uso — cigarros cujo sabor já
se sabia proibido anteriormente (pensando em termos mais abstratos, um sabor
específico cujo uso deveria estar vetado), mas, por motivos que não ficam claros
no título, talvez estivessem sendo usados ou vendidos. A função sintática do
sintagma adjetivo “proibido”, nesse caso, é adjunto adnominal. Como a tecnologia
digital permite correções e atualizações, o texto foi modificado para eliminar a
ambiguidade, conforme vemos abaixo:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |313

Figura 2
Correção do título, publicada às 20h30.

O sintagma adjetivo “proibido” ganha função sintática de predicativo, e o


significado da oração se torna mais claro: “O STF manteve a proibição de cigarros
com sabor”.
Outra ambiguidade muito comum em textos menos coesos refere-se ao uso
do pronome possessivo de 3ª pessoa como referenciador. Cunha e Cintra (2013,
p. 335) explicam:

As formas seu, sua, seus, suas aplicam-se indiferentemente ao


possuidor da 3ª pessoa do singular ou da 3ª pessoa do plural, seja
este possuidor masculino ou feminino.
e exemplificam (ibid., p. 336):

Em casual encontro com Júlia, Pedro fez comentários sobre seus exames

No exemplo, três significados possíveis, comprometendo a clareza da


oração: os exames podem ser de Júlia, de Pedro ou de ambos.
314 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

4. Clareza: uma questão (também) semiótica

A teoria semiótica de Charles Peirce, desenvolvida ainda no século XIX,


tem-se mostrado eficiente e de impacto duradouro nos estudos dos signos não
verbais como elementos fundamentais para a comunicação e a linguagem. De
forte base lógico-filosófica, tem sido usada como um caminho para análise e
construção de significados por diversas ciências, exatas ou de humanidades, e
áreas da atividade cultural e artística que trabalham com imagens, gráficos e
elementos cênicos ou audiovisuais (como o cinema, o teatro e a fotografia).
Peirce (2015, p. 46) chama os signos de representámen: “(...) aquilo que,
sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto
é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais
desenvolvido” . O signo está ligado a três elementos que, juntos, formam a base
da análise semiótica: objeto — aquilo que o signo representa; interpretante — o
signo criado para representar algo; e fundamento — que Peirce explica ser uma
ideia que, entendo, é o sentido mentalmente criado pelo indivíduo (leitor,
ouvinte, intérprete...) para dar significado ao signo.
Os signos se dividem em ícone, índice e símbolo:
a) ícone: signo construído pela similaridade ou semelhança com
seu objeto. Exemplo: uma fotografia ou o desenho de um
animal são representações do objeto (animal);
b) índice: signo cuja interpretação é construída pela contiguidade
entre representante e objeto representado. Exemplo: uma
batida na porta é índice da presença de alguém pedindo para
ser atendido ou entrar em algum recinto;
c) símbolo: é o signo cuja intepretação é possível pela
contiguidade compartilhada e instituída. Digo
“compartilhada”, pois ela deve ser aceita e construída a partir
de saberes comuns. Assim é que símbolos religiosos têm
diferentes significados para determinados adeptos de cada
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |315

culto ou crença. E instituída porque constitui uma regra de


representação entre determinada comunidade ou cultura.
Simões (2009) vem desenvolvendo há mais de uma década uma teoria de
base semiótica para tratar da construção de sentidos dos signos verbais que,
entendo, é fundamental para pensarmos sobre a clareza por seu profundo
compromisso com a cognição e a produção de significados. Entender um texto,
ou seja, estabelecer seus efeitos de clareza é, em essência, um processo de
compreensão semiótica:

A Teoria da Iconicidade Verbal tem como objetivo maior subsidiar


o entendimento da semiose textual e das consequências semióticas
derivadas da interação entre sujeito e texto, sob as interferências do
contexto de produção de interlocução. (SIMÕES, 2009, p. 60)

A iconicidade verbal leva em conta o processo cognitivo que envolve os


esquemas mentais acionados quando interpretamos um texto, não importa se a
composição textual é de signos verbais ou não verbais. Ao compreender um texto
em toda a sua complexidade — contextual, semântico-pragmática, gramatical e
estilística — o leitor-ouvinte credencia-se a ser também um produtor de textos
que consiga criar enunciados expressivos e com forte carga semântico-imagética.
Partindo da premissa de que o signo se funda a partir da imagem mental
de algo, que se constitui no ícone-primeiro, a teoria da iconicidade avança para o
material gráfico-sonoro representado na escrita por ícones de segunda
(hipoícones), palavras no texto materializado. A iconicidade lexical tem destaque
nos estudos da semiótica verbal, observando-se, quanto à produção textual, a
importância das escolhas lexicais de alta iconicidade, evitando a impropriedade
de seleção e a consequente obscuridade do enunciado. “Uma iconicidade ao
avesso: em vez de ajudar na compreensão do texto, acaba por atrapalhar o
processo”, explica Simões (2009, p. 107).
Entram aqui conceitos importantes para os nossos estudos sobre clareza:
isotopia e transparência. A isotopia pode ser entendida como recorte temático do
texto, ajudando o leitor-intérprete a responder àquela pergunta tradicional
quando buscamos entender um enunciado: “Esse texto fala do quê?”. “No plano
316 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

da análise de textos em geral, a iconicidade isotópica se faz no rastreamento de


palavras e expressões que possam sustentar esse ou aquele tema”, explica Simões
(ibid., p. 89).
O enunciador deve considerar a importância de fazer uma seleção lexical
que conduza o leitor pelos caminhos de sentido, dando clareza a um texto. Assim,
entra em nossa análise o segundo conceito, o de transparência, relacionada à carga
icônica dos signos verbais. Quanto mais alta a iconicidade de um texto, mais
transparente — portanto mais dotado de caminhos de sentido para se construir a
clareza — ele é.
A alta e a baixa iconicidade, portanto, podem ser definidas como a
potencialidade de cumprir-se ou não o projeto comunicativo do texto. Mas como
identificá-las? Através das âncoras textuais: “Em nossa teoria, criamos a figura das
âncoras textuais, que são palavras-chave que norteiam a identificação de uma
isotopia”, esclarece Simões (2009, p. 91). Os textos de alta iconicidade orientam o
leitor à produção de sentido em função da apresentação estratégica de pistas de
leitura. Com a baixa iconicidade, “o texto se torna opaco porque não oferece pistas
suficientes ou eficientes para o desenrolar da leitura”, conclui Simões (ibid., p.
94).
O grau de iconicidade, por certo, se evidencia na materialização
enunciativa, pela seleção lexical, no modelo gramatical, no gênero ou no tipo
textual e no projeto gráfico. Um texto de alta iconicidade, enfim, exibirá suas
isotopias (seus temas) com clareza e permitirá inferências, deduções e conclusões.
Como exemplo do entendimento que desenvolvi da teoria da iconicidade
verbal, escolho para uma breve análise um trecho da primeira estrofe da canção
“Último Desejo”, escrita por Noel Rosa em 1937, ano de sua morte. A música é de
Osvaldo Gogliano, o “Vadico” — parceiro de Noel em outras obras-primas como
“Feitio de Oração”, “Conversa de Botequim” e “Feitiço da Vila”. “Último Desejo”
foi gravada por Aracy de Almeida ainda em 1937, embora só divulgada no ano
seguinte27:

27 Fonte: Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira: http://dicionariompb.com.br/.


Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |317

Nosso amor que eu não esqueço


E que teve seu começo
Numa festa de São João
Morre hoje sem foguete
Sem retrato e sem bilhete
Sem luar sem violão
(Último Desejo – Noel Rosa e Vadico)

Repare-se na alta carga icônica dos termos grifados, que formam um campo
semântico-imagético coerente com uma memória afetiva (estou sendo otimista)
do relacionamento amoroso que se aproxima do fim. Nesse caso há um drama
adicional: o “fim” pode ser o da própria vida de Noel, que morreu antes de ouvir
a canção gravada por Aracy.
Há uma relação antitética nos lexemas “começo” e “morre”: o início e o
fim. O sintagma “festa de São João”, remetendo à celebração, ganha carga irônica
e dramática, pois a alegria festeira contrasta com a tristeza da morte próxima. Essa
inferência se reforça com a presença de “foguete”, índice de festividade, de
ajuntamento para comemorar, e contrasta com a solidão do fim. “Retrato” e
“bilhete” operam aqui como índices da memória, mas também como símbolos da
afetividade, pois, sendo suportes de comunicação verbal (o bilhete) e não verbal
(o retrato), indicam que a relação foi frutífera a ponto de ter deixado rastros de
agradável memória.
“Luar” nos conduz para o simbolismo do romântico, reforçando a
coerência de namoro, mas também de “São João”, posto que seja uma festa que
geralmente acontece à noite. Uma carga semiótica parecida está em “violão”,
índice de serenata que, por extensão, nos remete a um símbolo de romantismo.
Vemos, portanto, em um pequeno trecho desta belíssima letra, que Noel
criou um texto de alta iconicidade ao fazer escolhas lexicais que, ao comporem
um potente campo semântico-imagético, nos conduzem por um caminho
semiótico onde se misturam paixão, vida (pela alegria da festividade), memória e
morte. Uma metáfora do correr da vida, talvez, e, sendo metáfora (ao menos neste
trecho da letra), também um ícone da curta vida que Noel Rosa teve.
318 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

5. Conclusão

Reconhecendo ser este texto um breve instantâneo do correr da minha


pesquisa, penso ter contribuído para enriquecer nossas reflexão e compreensão
científica sobre a clareza, um tema tão caro a diversas áreas profissionais e, até
certo ponto (admitindo os diversionismos intencionais dos autores mais
provocadores), uma espécie de santo graal dos que vivem de escrever ou escrevem
para viver.
Visitamos diversas linhas de estudo da produção textual, como a coerência,
a textualidade, a sintaxe, a semiótica e a pragmática, e podemos ver que a clareza
é resultante de uma variedade de fatores. Mapeá-los, compreendê-los e preparar
essas análises para exposição em salas e diálogos com a comunidade docente, pode
— veleidade minha — contribuir enfaticamente para mostrarmos aos nossos
alunos como produzir textos mais consistentes e comunicativos.
O passo seguinte da minha pesquisa, percebo, é mergulhar mais
profundamente em todos estes elementos, com especial atenção à filosofia da
linguagem e aos fatores constituintes da textualidade. Entendo que a
intencionalidade do autor e a aceitabilidade do leitor-ouvinte exercem papel
importante na construção dos sentidos do texto, porque esses termos evidenciam
um contrato tácito entre interlocutores. Os estudos estilísticos voltados à área
jornalística serão o ponto final da jornada, já que demandam textos de alta
iconicidade e estilo agradável que às vezes flerta com a literatura. Espero ter sido
agradável mas, sobretudo, claro.

REFERÊNCIAS

AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo:
Publifolha, 2011.

BECHARA, Evanildo C. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed . Rio de Janeiro:


Nova Fronteira, 2009.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |319

CAMARA, JR., Joaquim Mattoso. Manual de Expressão Oral e Escrita. 4ª ed.


Petrópolis: Vozes, 1977.

CHOCIAY, Rogério. “Em busca do Estilo”. In: Alfa, São Paulo, p. 65-76. 1983.

CONFORTE, André. “Dispersos de Othon M. Garcia”. In: Revista Idioma, nº 26;


pp 104-124. Rio de Janeiro: Instituto de Letras da Uerj, 2014.

CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Gramática do Português Contemporâneo. Rio


de Janeiro: Lexikon, 2013.

GARCIA, Othon M. Comunicação em Prosa Moderna. 26ª ed. Rio de Janeiro:


Editora FGV, 2006.

Manual de Estilo da Editora Abril. Editora Nova Fronteira; 1990.

Manual de Redação e Estilo do Estado de S. Paulo. Editora Oesp, 1990.

Manual de Redação e Estilo de O Globo. Editora Globo, 1992.


Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 7.0. Editora Positivo: 2010.

PEIRCE, Charles S. Semiótica (trad. José Teixeira Coelho Neto). São Paulo:
Perspectiva, 2015.
RIBEIRO, Ernesto Carneiro. Serões Grammaticaes ou Nova Grammatica
Portugueza. 2ª ed. Salvador: Livraria Catilina, 1915.

SIMÕES, Darcilia. Iconicidade verbal – Teoria e Prática. Rio de Janeiro:


Dialogarts, 2009.
320 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

MEMES DE INTERNET COMO PRÁTICA COMUNICATIVA: UMA


SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Maria Alice de Souza (UEMG)

1. Introdução

Torna-se cada vez mais imperativo, na contemporaneidade, utilizar as


tecnologias digitais para produzir e publicar textos, para interagir e colaborar com
os outros. Nesse cenário, a fim de resolver problemas, os indivíduos, além da
capacidade de reunir, compreender, analisar, avaliar, sintetizar, relatar
informações e ideias, precisam criar textos impressos e não impressos em mídias
antigas e novas. Com efeito, nesse contexto social, a necessidade de produzir e
consumir mídia vem sendo incorporada aos aspectos da cultura escolar, tornando
as tecnologias digitais um componente do currículo atual. Em outras palavras, se,
de um lado, os contextos sociais moldam a função e a forma das práticas letradas,
por outro, são moldados por elas. Embora as tecnologias não criem gêneros, seus
usos interferem nas atividades comunicativas cotidianas (LEU et al, 2013;
ROWSSELL et al, 2013).
Ao contrário dos tradicionais, os textos da internet integram uma série de
símbolos e formatos de mídia múltipla, incluindo ícones, símbolos animados,
áudio, vídeo, tabelas interativas e ambientes de realidade virtual. Desse modo, os
letramentos críticos são centrais para novos letramentos, que são múltiplos,
multimodais, multifacetados e dêiticos. Como tecnologia, a internet determina
um aprendizado dentro de uma comunidade global, exigindo novos letramentos
para que os sujeitos possam acessar totalmente seu potencial (MARCCUSCHI,
2005; LEU et al, 2013; ROWSSELL et al, 2013).
Em se tratando de práticas de leitura e escrita, as possibilidades que
surgiram com as tecnologias digitais são bastante diferentes daquelas que existiam
há 40 anos. Hoje os sujeitos clicam, seguem e leem hiperlinks, comunicam pelas
redes sociais e produzem textos de formas associadas, utilizando telas de
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |321

navegação, rolagem e digitalização em vários sites. Nesse sentido, um usuário


proficiente da internet é aquele que entende como construir significado de novas
maneiras, manipulando e fazendo upload de suas próprias informações ou
adicionando dados ao constante crescimento que define a internet (LEU et al,
2013; ROWSSELL et al, 2013).
Desse modo, diante do desafio de atender as demandas sociais que se
voltam para o uso das tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC),
a escola deve promover práticas de leitura e produção de texto de maneira crítica.
Salienta-se ainda que o cenário contemporâneo é marcado pelos crescentes e cada
vez mais diversificados modos de se criar. Com isso, leitores ao buscar hiperlinks,
cores e imagens, encontram, nesse trajeto, diferentes tipos de informação em todo
tipo de textos. No entanto, um ingrediente muitas vezes ausente nesse consumo
de textos é a compreensão e o enquadramento crítico (LEU et al, 2013;
ROWSSELL et al, 2013).
Em virtude disso, com a intenção de desenvolver um trabalho que não
priorizasse a classificação de gêneros digitais, valorizando a produção dos alunos,
recorri ao meme de internet para desenvolver uma sequência de aulas de Língua
Portuguesa voltadas para a leitura e a produção de textos multissemióticos.
O meme de internet tornou-se conhecido na década de 90, quando Joshua
Schachter desenvolveu um site que reunia conteúdos e links que se proliferavam
pela rede — o Memepool. No entanto, o conceito de meme surgiu com Richard
Dawkins na década de 70. Na obra “O gene egoísta” , ao teorizar sobre evoluções
culturais e genéticas, Dawkins cria o vocábulo para designar a unidade de cultura
que se propagava de um cérebro para outro. Proveniente do inglês “mimeme” e
originado do grego “mimema”, da mesma raiz de “mimese” (imitação), o
neologismo, para o etólogo, apresentava semelhanças entre as palavras “gene” e
“memória” (DAWKINS, 1978; HORTA, 2015).
Nessa perspectiva, o meme de internet se configurou como o gênero ideal
para centralizar uma sequência didática, uma vez que as “práticas de linguagem
contemporâneas não só envolvem novos gêneros e textos cada vez mais
multissemióticos e multimidiáticos, como também novas formas de produzir, de
322 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

configurar, de disponibilizar, de replicar e de interagir”. Vale lembrar ainda que


“as novas ferramentas de edição de textos, áudios, fotos, vídeos tornam acessíveis
a qualquer um a produção e disponibilização de textos multissemióticos nas redes
sociais e outros ambientes da web (BRASIL, 2017, p. 66).
Isso exposto, quanto ao procedimento metodológico, este estudo, além de
realizar um levantamento e seleção bibliográficos de material já publicado sobre
o assunto, caracterizando como revisão de literatura com um recorte qualitativo,
se enquadra como relato de experiência, por apresentar uma sequência didática
desenvolvida com alunos do primeiro ano do ensino médio de uma escola pública
da rede estadual do município de Belo Horizonte (MARCONI; LAKATOS, 2010).
Quanto à estruturação, este artigo é organizado em três partes: na primeira,
há a delimitação do tema do trabalho, as motivações da sequência didática e a
metodologia empregada; na segunda, considerações sobre as particularidades do
meme de internet são revisitadas; e, finalmente, na terceira parte, uma sequência
didática desenvolvida nas aulas de Língua Portuguesa mostra aspectos
relacionados à leitura e à produção do meme de internet.

2. O cenário digital e o meme de internet

Cada vez mais a tela tem se tornado o local das produções contemporâneas,
que recorrem a várias modalidades da linguagem como fala, imagem (fixa ou
movimento), escrita e música. Nesse cenário, textos multimodais, que
possibilitam a recombinação de conteúdos provenientes de qualquer mídia,
coexistem com os tradicionais, levando os sujeitos a diferentes comportamentos.
Com efeito, superando o simples desvendar de códigos, as práticas de leitura e a
escrita configuram-se como condutas sociais que reverberaram em toda sociedade
(COSCARELLI; RIBEIRO, 2005; XAVIER, 2005; DIAS, 2011; LEU et al, 2013;
ROWSSELL et al, 2013).
Assim, nesse ambiente digital, tem-se lido para identificar questões
importantes, para localizar e avaliar criticamente dados, para sintetizar e
comunicar informações. Os textos recentes são igualmente tipificados pelos meios
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |323

e tecnologias de sua produção, envolvendo muitas vezes autoria múltipla,


continuamente fluida. Desse modo, gêneros novos ou modificados, como e-mail,
sites, blogs têm potencial aberto e irrestrito de disseminação em telas de vários
tipos. Ora, se a internet permite a qualquer um publicar qualquer evento, não se
pode esquecer de que essas publicações estão mais disponíveis a pessoas que
possuem força política, econômica, religiosa ou ideológica. O que influencia
profundamente a natureza dessa uma informação (LEU et al, 2013; ROWSSELL
et al, 2013).
Normalmente caracterizado pela presença de imagens e frases irônicas, o
meme de internet tornou-se popular pela recorrência de transmissões,
comentários ou imitações por meio de blogs, sites, redes sociais e aplicativos de
mensagens instantâneas (CHAGAS, 2016). Acrescenta-se a isso que o
espalhamento do gênero tem reunido os indivíduos em torno de interesses
comuns (BARRETO, 2015; ESCALANTE, 2016), tornando uma prática
comunicativa que abarca diversas esferas da vida contemporânea (EUZÉBIO;
CERUTTI-RIZZATTI, 2013).
Aliás, não se pode falar em meme de internet, sem mencionar que esse
gênero, impregnado de intertextualidade, incorpora elementos como o remix e o
humor. Ora, se de um lado, o remix indica uma versão alterada ou recombinada
de obra original, do outro, o humor permite de modo inesperado a descoberta de
sentido diverso do texto (CHAGAS, 2016). Acresce a isso que o meme de internet
pode ser classificado de acordo com seu conteúdo ou intenção comunicativa,
sendo: a) persuasivo, quando incorpora o discurso do convencimento; b) de ação
popular, quando indica um comportamento coletivo repetido, pose de foto ou
frase de efeito, que se replicam em situações e cenários diferentes; e c) ou de
discussão pública, quando incorpora referências intertextuais e humor crítico
(SHIFMAN, 2014).
Nesse sentido, o sentimento de pertencimento a um grupo é estimulado
pelos diversos compartilhamentos de um meme de internet, que convergem o
estado afetivo de um indivíduo aos estados afetivos daqueles com quem dialoga.
Em outros termos, o meme está carregado de valor simbólico, já que transmite
324 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

determinadas ideologias culturais. Dessa forma, os comentários tecidos a partir do


compartilhamento de uma determinada peça podem tanto proporcionar o
estreitamento dos vínculos sociais como aumentar as distâncias (RECUERO,
2007; BARRETO, 2015).
Nessa seção, algumas características intrínsecas ao meme de internet foram
mencionadas. Impregnado de intertextualidade e demandando de quem o
interpreta vários conhecimentos, o meme ainda foi entendido como unidade de
imitação que compreende não apenas tendências culturais, mas a essência da
cultura que compartilha, imita e combina.

3. Memes de internet nas aulas de língua portuguesa

Com a finalidade de proporcionar ao aprendiz uma experiência que


possibilitasse sua participação crítica em práticas de linguagem que envolvessem
gêneros digitais e textos multissemióticos, elaborei uma sequência didática em
que o meme de internet se configurou como unidade de trabalho.
Assim, envolvendo os adolescentes em atividades que permitissem ampliar
a capacidade de uso da língua, busquei métodos em que o ensino da língua não
estivesse voltado para sua natureza teórica e metalinguística. Além disso,
seguindo as recentes recomendações dos documentos curriculares, relacionei o
meme ao seu contexto de produção, promovendo ações significativas de leitura e
produção de texto em mídias digitais (BRASIL, 2017).

1ª etapa: apresentação da sequência didática


A primeira etapa da sequência didática caracterizou-se pela exposição
detalhada das atividades que seriam realizadas pelos alunos. A simples menção da
palavra “meme” causou uma animação entre os adolescentes, que relataram
euforicamente sua vivência com o gênero. Nesse momento, averiguei o que eles
sabiam sobre o meme de internet, observando como eles utilizavam-no no dia a
dia. Comuniquei aos estudantes os objetivos do trabalho, explicitando a origem
do gênero, locais e modos de circulação. Ainda esclareci sobre suas funções
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |325

comunicativas, mostrando a importância de uma leitura crítica desse texto


multissemiótico.
Nessa ocasião, também indaguei dos alunos sobre por que eles produziam
memes de internet e como essas peças circulavam socialmente. Apesar das
diferentes respostas, elas se convergiram, mostrando que os estudantes produziam
memes para interagir com alguém. Utilizando o meme de internet, como
exemplo, expliquei aos alunos que a linguagem permite expressar crenças,
opiniões, sentimentos. Mostrei a eles que, numa interação, não se pode
desconsiderar os interlocutores, a situação comunicativa, os valores e as crenças
dos produtores. Também expus a eles que o sentido de um texto não é dado apenas
por ele, “mas é produzido pelo leitor em cada evento de uso de uso da língua.
Embora produza o sentido, o leitor não é livre para produzir qualquer sentido”
(FERREIRA; VIEIRA, 2013, p. 18).
Nesse diálogo, tive oportunidade de identificar o que os adolescentes
conheciam sobre memes de internet e suas potencialidades. Observei que eles
tinham uma vivência em relação ao meme, sabiam identificar suas características,
mas desconheciam a origem do gênero ou a evolução do conceito ao longo dos
anos.

2ª etapa: trabalhando o gênero digital em seu suporte original


Como é importante trabalhar os gêneros em seu suporte original, no
segundo momento da sequência didática, levei os alunos para a sala de informática
para acessarem a internet, apontando seus memes de internet preferidos. Em
virtude do número de computadores, a atividade foi realizada em duplas,
conforme Figura 1.
326 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Figura 1. Segunda parte da sequência didática. Na sala de informática, alunos apontam seus memes
de internet prediletos. Fonte: Maria Alice de Souza.

Durante a atividade, ao apontarem seus memes prediletos, os alunos iam


também identificando as principais características do gênero percebidas por eles.
Nesse momento, esclareci a eles que os modos de leitura e tipos de leitores são
moldados pelas possibilidades de sua disseminação e nos encontros com o texto.
Sem dificuldade, os aprendizes entenderam que uma abordagem multimodal
significa que todos os aspectos da tela combinam para criar significado. Um texto
multissemiótico é projetado para permitir que o interesse de qualquer leitor, por
seu engajamento, encontre a coerência (LEU et al, 2013; ROWSSELL et al, 2013).

3ª etapa: considerações teóricas sobre o meme de internet


Na terceira etapa da sequência didática, na sala de multimídia, ministrei
duas aulas com intenção de mostrar aos alunos como se dá a interpretação de uma
imagem e qual sua relação com o texto escrito. Para isso, na primeira aula dessa
série, recorri às três dimensões interativas da imagem, segundo a Gramática do
Design Visual, de Kress e van Leuween (2001). Desse modo, os adolescentes foram
convidados a analisar imagens levando em consideração o olhar (de demanda e
de oferta), o enquadramento (distanciamento dos participantes da imagem em
relação ao leitor) e a perspectiva (ângulo horizontal e vertical), conforme pode
ser verificado na Figura 2.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |327

Figura 2. Terceira etapa da sequência didática. Aula explanatória sobre as dimensões interativas da
imagem. Fonte: Maria Alice de Souza.

Na segunda aula, ainda na sala de multimídia, apresentei um conjunto de


memes de internet tendo como temática o contexto político brasileiro. A partir
das peças produzidas por sites de entretenimento, pude abordar questões relativas
a variações linguísticas, intertextualidade, humor e figuras de linguagens, como a
ironia. Ao salientar aos alunos que o meme de internet se tratava de um texto
multissemiótico, analisei os elementos visuais e verbais que constituíam cada peça
apresentada, explorando as intencionalidades do discurso de cada meme.
Ressaltei aos adolescentes que os gêneros digitais fazem parte de nossas
práticas sociais, mencionando que o estilo, os modos de composição e a natureza
temática são critérios de organização para qualquer tipo de texto, por isso a
importância de se saber produzir ou escolher o gênero apropriado para cada
situação (BAKHTIN, 2003; COSTA VAL, 2006; FERREIRA;VIEIRA, 2013). Além
disso, reforcei o papel do suporte na constituição da identidade do texto,
mostrando aos alunos como os suportes permitem que um determinado gênero
circule na sociedade. Os alunos entenderam que os suportes, além de servirem
como ambiente para a ancoragem de um determinado gênero, que se materializa
como texto, influenciam na natureza do gênero amparado (MARCUSCHI, 2008).
328 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

4ª etapa: Produção final

A quarta parte da sequência didática foi dedicada à criação de um meme


de internet de conteúdo livre na sala de informática. Os alunos foram orientados
a confeccionar uma peça a partir de um gerador de memes, ferramenta disponível
em diversos sites da internet. Esse tipo de software permite criar memes
personalizados tanto pelo banco de imagens do sítio eletrônico como pelo upload
de imagens pessoais. Após algumas explanações sobre a operacionalidade do
programa, os alunos foram orientados a produzir memes que reunissem noções
sobre esse gênero digital. Embora muitos alunos utilizassem o software pela
primeira vez, não sentiram dificuldade em manuseá-lo.
Durante o desenvolvimento da atividade, intervim pontualmente,
mostrando o sentido de cada tarefa realizada na sequência (FERREIRA; VIEIRA,
2013). Na confecção das peças, recorrendo ao gerador de meme, os adolescentes
associaram textos ou imagens disponíveis na web a situações de seu cotidiano,
como mostra a Figura 3.

Figura 3. Terceira parte da sequência didática. Aluna utilizando o gerador de memes. Fonte: Maria
Alice de Souza.

O meme de internet produzido demonstrou a propriedade dos alunos no


manuseio de software de edição e o conhecimento adquirido sobre os gêneros
digitais. A partir dessa produção, os alunos puderam constatar que a concepção
de si mesmo está completamente interligada a recursos textuais, seja na
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |329

elaboração de textos para divulgação (produção externa), seja no envolvimento


com textos em transformação (produção interna). Eles entenderam que, em cada
caso, há uma acomodação dos princípios que são evidentes na forma do texto e,
ao longo do tempo, uma habituação às características sociais e semióticas que
ascendem às características dos textos em suas possibilidades de acesso e
participação na vida social (LEU et al, 2013; ROWSSELL et al, 2013), conforme
Figura 4.

Figura 4. Meme de internet produzido por aluna na terceira fase da sequência didática mostra
aspectos do comportamento adolescente. Fonte: Maria Alice de Souza.

Nesses parágrafos, uma sequência didática com os alunos do primeiro ano


do ensino médio de uma escola da rede estadual do município de Belo Horizonte
foi descrita. A proposta didática foi apresentada para ilustrar como o componente
Língua Portuguesa pode promover práticas de leitura e produção de texto de
maneira crítica.
330 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

4. Analisando os resultados da sequência didática

Com efeito, ao trabalhar com memes de internet nas aulas de Língua


Portuguesa, pude promover um debate em torno dos limites entre liberdade de
expressão e discursos de ódio, mostrando aos alunos que, diferente do ataque a
direitos, a divergência de ideias permite posicionamentos e argumentos
contrários (BRASIL, 2017).
Durante as aulas expositivas, as características dos textos multimodais
foram tratadas, levando o aprendiz a perceber que a multimodalidade possui em
sua constituição vários recursos semióticos como sons, escrita, imagens, cores e
ícones. Os adolescentes entenderam que esse conceito abarca tanto os aspectos
visuais das fotografias, desenhos, pinturas, caricaturas, como a disposição gráfica
do texto no papel ou na tela (FERREIRA; VIEIRA, 2013).
Ainda tomei cuidado em diversificar as atividades em torno do gênero
digital. Desse modo, além de abordar as situações de comunicação em que os
memes de internet ocorriam, desenvolvi com os alunos atividades de observação,
análise e produção de memes. Ao final de cada sequência, cuidei para que os
adolescentes refletissem sobre as atividades realizadas, expondo os
conhecimentos capitalizados sobre o gênero.
Não deixando de abordar os gêneros e textos multissemióticos já
consagrados pela escola, como etiqueta, relatório de experiência, tirinha, charge
e cartaz, também contemplei os gêneros essencialmente digitais, como emoticons,
emojis, gif e homepage. Entendendo que nenhum gênero é menor que outro,
mostrei aos alunos que é tão importante compreender um relatório de experiência
como atribuir sentidos a um meme de internet (BRASIL, 2017).
Nas atividades envolvendo o meme de internet, considerei sua estrutura
composicional e estilo de linguagem, contemplando aspectos quanto ao
vocabulário, estrutura sintática e escolha lexical (MARCUSCHI, 2005). Em
síntese, a sequência didática evidenciou que os multiletramentos e os eventos da
cultura digital podem contribuir para uma participação mais crítica dos
adolescentes nas práticas de linguagem, permitindo que eles produzam novos
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |331

sentindo ao combinar, transformar e redistribuir um texto já existente (BRASIL,


2017).
Foram realizadas, nessa seção, reflexões sobre como o meme de internet se
configurou como o gênero ideal para centralizar uma sequência didática
empreendida com alunos do primeiro ano do ensino médio de uma escola pública
da rede estadual do município de Belo Horizonte.

5. Considerações finais

Com o objetivo de compartilhar práticas de linguagem que


proporcionassem a participação crítica do aprendiz em atividades de leitura e
produção de texto, este artigo apresentou uma sequência didática em que se
considerou o meme de internet como unidade de trabalho. No conjunto de ações
desenvolvidas, foram avaliados tanto a intenção comunicativa de quem produziu
o gênero, como o ambiente e os conhecimentos anteriores de seus interlocutores.
Ao longo da sequência didática, os alunos do ensino médio de uma escola
pública do município de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais, entenderam
que, ao se produzir um discurso, as escolhas não são fortuitas. Todo texto sempre
se dirige a alguém, já que, nas práticas sociais, quem produz, não produz
aleatoriamente.
A experiência mostrou que, em se tratando do componente de Língua
Portuguesa, a produção de memes de internet pode contribuir para o engajamento
crítico dos alunos nas diferentes práticas de linguagem. Indicou ainda que esse
gênero digital não apenas compartilha um conteúdo, mas exige a articulação de
conhecimentos prévios vindos de diferentes fontes.
Em síntese, se de um lado, a escola produz práticas e modos de construção
dos indivíduos que lhe são particulares; de outro, ela abarca os discursos presentes
nos vários gêneros e textos da contemporaneidade. Tais questões colocam os
educadores diante do desafio de incluir o teor da internet nas disciplinas
escolares, garantindo que os aprendizes possam ler criticamente o conteúdo
disponível em rede.
332 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

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336 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO EM PRÁTICAS DISCURSIVAS A PARTIR


DAS HQS

Marlene Mendes Silva (UFF)


Marlúcia Mendes da Rocha (UESC)

1. Introdução

Este trabalho surgiu da necessidade de criar uma prática de observação e


investigação dos processos de produção de linguagem que nascem a partir da
compreensão de se tomar o discurso enquanto itinerário para o alcance da geração
de sentidos de um texto.
Tem-se a intenção de entender como as formações ideológicas
atravessam as formações que geram efeitos de sentidos utilizados nos recursos
estilísticos e morfossintáticos da História em Quadrinhos dos gibis do Chico
Bento, de Maurício de Souza, para se trabalhar leitura, compreensão,
interpretação, extrapolação e produção de textos, ressaltando suas estratégias
semânticas e sintáticas.
Recorremos à Análise de Discurso, na linha francesa de Michel Pêcheux,
e à História das Ideias Linguísticas, de Auroux; Orlandi, para analisar os sentidos,
percebendo o histórico, o social, o ideológico e o linguístico.

2. Articulação entre Análise de Discurso e História das Ideias Linguísticas

Orlandi (2010, p.16) explica que “ levando em conta o homem na sua


história, considera os processos e as condições de produção da linguagem pela
análise da relação estabelecida pela língua com os sujeitos que a falam e as
situações em que se produz o dizer” . Porque só assim pode-se reconhecer o lugar
em que o sujeito da enunciação consegue expressão no resgate das relações entre
o texto e o contexto sócio-histórico que o produziu.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |337

Acrescenta-se, ainda, tomando a argumentação da autora como


referência, que as várias formações ideológicas, atravessadas nas formações
discursivas que geram efeitos de sentidos, têm no discurso o lugar de observação
da relação existente entre a língua e a ideologia vigente, entendendo a língua
como a principal produtora de sentido entre os sujeitos (ORLANDI, 2010).
A investigação tem o objetivo de explorar alguns recursos estilísticos e
morfossintáticos das Histórias em Quadrinhos — HQs — especificamente, os
gibis de Chico Bento, criação de Maurício de Sousa, para não só mostrar as
intenções discursivas e ideológicas por trás das representações verbais e não
verbais dos textos, como também entender e compreender as
estratégias semânticas utilizadas no domínio e uso da língua materna para
codificar e decodificar mensagens.
Pretende-se desenvolver uma metodologia capaz de auxiliar a leitura, a
compreensão, a criticidade e a extrapolação dos sentidos das peças e que possa,
também, ajudar na produção textual no sentido de desenvolver habilidades na
expressão de ideias próprias e domínio no aprendizado da língua materna.
Deseja-se mostrar a articulação de AD com HIL. De acordo com a visão
de Nunes (2008), é do contato entre esses dois domínios do saber e das questões
que um coloca ao outro que se dá a repercussão tanto em uma quanto em outra
direção. Para uma melhor compreensão dessa articulação:

(...)Visto que a AD se constitui como um modo de leitura,


sustentado por um dispositivo teórico e analítico, que considera a
historicidade dos sujeitos e dos sentidos, ela traz uma contribuição
considerável para o estudo da história das ideias linguísticas.
Tomando as diversas formas de discurso sobre a(s) língua(s) para
análise, efetuam-se leituras que remetem esses discursos a suas
condições de produção, considerando-se a materialidade linguística
na qual eles são produzidos e evitando-se tomá-los como
documentos transparentes ou simplesmente como antecessores ou
precursores da ciência moderna. Tais discursos atestam, de fato,
modos específicos de se produzir conhecimento em determinadas
conjunturas históricas. (NUNES, 2008, p.110)
338 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Assim, parafraseando Nunes (2008), temas versados em Histórias das


Ideias Linguísticas recebem um olhar específico quando vistos sob a ótica da
Análise de Discurso, visto que os temas ganham observação e descrição do
funcionamento discursivo da autoria em determinadas circunstâncias.

3. Processo de produção de plano de aula

Para montar planos de aulas em que se explore gênero textual, variação


linguística e pontuação, usou-se como material de análise os gibis de Chico Bento,
focando em uma história do gibi nº 449, de 2005, que trouxe uma versão inédita
da história republicada de 1990, a qual conta a história da Mariana, irmãzinha de
Chico Bento que morreu ainda bebê.
A primeira versão do Gibi Chico Bento, de nº 87, traz a história de "Uma
estrelinha chamada Mariana". Mariana era uma estrela que tinha o desejo de virar
humana e morar na Terra com uma família bem carinhosa. Depois de longa
observação e procura, ela chegou à família de Chico Bento. Assim, fez um acordo
com as outras estrelas: viria à Terra, entraria na família como irmã de Chico Bento
e ficaria um tempo para realizar seu desejo, mas as estrelas a chamam de volta
logo assim que Mariana sentiu-se realizada, ainda bebê. Mariana, ao partir cedo,
deixou além de muita dor, um vazio imenso para a família.
Essa primeira versão fez tanto sucesso que foi republicada em 2003. Em
2005, Mariana volta com o título "O presente de uma estrelinha" , no gibi Chico
Bento, nº 449, contando a visita que a Mariana fez ao Chico no aniversário dele.
A história começa com Chico sentado em sua varanda, pensando na sua
irmãzinha, em como seria bom tê-la com ele no dia do seu aniversário. Chico
corre para a cozinha para falar com sua mãe que estava fazendo o bolo e não lhe
dá atenção, porque estava com pensamento longe dali.
Chico Bento conclui que sua mãe estava com saudades de Mariana, por
isso estava daquele jeito, pensa que seria muito bom se Mariana estivesse com ele
para comemorar seu aniversário. Mas acaba se conformando, dizendo que sua
irmãzinha foi levada pelo papai do céu e que deve ter sido por um bom motivo.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |339

E, ainda, sente-se feliz por saber que, quando ele olha para o céu, sabe que ela está
lá em cima olhando por eles.
A partir daí, ele começa a admirar o céu. Em sua contemplação, Chico
percebe uma estrela com um brilho intenso e diferente que está crescendo muito
e que vem se aproximando dele; quando ele olha, percebe que é Mariana que vem
para falar com ele.
Chico fica muito feliz e quer chamar seus pais para reverem Mariana,
mas ela o impede, diz que a visita era apenas para ele. Mariana conta a Chico que
era uma estrela que queria saber como era conviver com uma família amorosa,
conversando com suas irmãs estrelas; elas concordaram com sua vinda, porém,
determinaram um tempo para ela ficar aqui na Terra e, assim que o tempo acabou,
chamaram-na de volta. Por esse motivo, Mariana não pode ficar com a família.
Inconformado, Chico insiste para que ela veja os pais, mas ela acha
melhor não, argumentando que os adultos não podem falar com as estrelas, eles
só podem senti-las com o coração. Nessa hora, as estrelas do céu se agrupam e
Mariana diz que já está na hora de subir novamente. Chico fica triste por sua
irmãzinha ter que ir de novo, mas antes de ir, Mariana fala que tem um presente
para ele. Ela pede que ele feche os olhos e brilha intensamente, dando ao Chico
uma sensação de paz e tranquilidade e, então, some sem que ele veja.
Chico adormece na varanda e seu pai o carrega para cama. No outro dia,
Chico acorda e fica em dúvida se tudo fora um sonho ou não. Para ele, aquele
aniversário era o melhor de sua vida, pois ver Mariana, mesmo que em sonho, era
o melhor presente que podia ter recebido, já que alimentava a esperança de
encontrá-la outras vezes, mesmo que não soubesse de que forma iria revê-la.
Por esse motivo, adquiriu o hábito de sempre olhar para o céu. Passa-se
o tempo e Chico, já adulto, casado com Rosinha, percebeu que Mariana fazia parte
da vida dele, desde aquele aniversário, e que voltou reencarnada como a filha dele
com a Rosinha, terminando, assim, a história.
340 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

4. Trabalhando gênero textual do gibi

Posta a condição de produção do gibi, passamos para o estudo do gênero


textual, que são os textos orais e escritos definidos por sua composição, seu estilo
e por suas intenções comunicativas, uma vez que nascem da união de forças
históricas, sociais e culturais. Segundo Bakhtin (1992, p. 301),

para falar, nos utilizamos sempre dos gêneros do discurso, em


outras palavras, todos os nossos enunciados dispõem de uma forma
padrão e relativamente estável de estruturação de um todo.
Possuímos um rico repertorio dos gêneros do discurso orais (e
escritos). Na prática, usamo-los com segurança e destreza, mas
podemos ignorar totalmente sua existência teórica .

Por isso os gêneros são caracterizados conforme a atividade


sociodiscursiva a que servem. Quando conhecemos um gênero, conhecemos uma
forma de realizar, linguisticamente, objetivos específicos em situações
particulares. Ainda convém lembrar que o conhecimento e o domínio dos
diferentes gêneros textuais são uma ferramenta imprescindível de socialização
para a inclusão funcional dos indivíduos nas atividades sociais em que se inserem.
É importante ressaltar que as histórias em quadrinhos são um gênero que,
para contar as suas histórias, recorre ao uso de falas (verbal) e imagens (não
verbal), estratégias que facilitam a compreensão do leitor. Exemplo:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |341

Trecho da HQ de 'Chico Bento Nº 87' (Ed. Globo, 1990)


(http://arquivosturmadamonica.blogspot.com/2014/04/esquecidos-7-mariana-irma-do-chico-
bento.html). Acessado em 05/09/2018

As histórias em quadrinhos têm como características apresentarem


elementos básicos de uma narrativa com enredo, personagem, tempo, lugar,
clímax e desfecho. Os balões trazem tipos e formas variados que servem de
suporte para os diálogos, cujo objetivo é representar a fala ou mostrar o
pensamento dos personagens. Além de empregar recursos expressivos, como
figuras de linguagem, tipografias de letras diferentes e sinais de pontuação. A
exemplo,
342 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

(https://www.google.com.br/search?q=tirinha+do+chico+bento+em+que+ele+fala+da+chuva+com+r
osinha). Acessado em 10/09/2018.

5. Trabalhando diversidade linguística

Nessa tirinha, podemos observar o modo como o desenhista joga com as


cores, tipografia das letras, formas dos balões e a pontuação para realizar a
expressividade da personagem para correr da chuva.
Outro tópico importante que o gibi do Chico Bento nos possibilita
trabalhar é a variação linguística no ensino de língua portuguesa nas escolas de
Ensino fundamental e médio no Brasil. Nas escolas não se tem espaço para
discussão, observação e trabalho com a nossa diversidade linguística. Esse
assunto não é muito frequente nos conteúdos desenvolvidos, pois é extremamente
difícil, não só para o professor como também para o aluno utilizar a linguagem
como método de interação, respeitando as variantes linguísticas, buscando
romper com o bloqueio de acesso ao ensino mecânico, descontextualizado da
gramática que serve para ditar o certo e o errado. Usar a norma culta,
principalmente na escrita, é forma de prestígio, uma forma de mostrar que, por
meio da linguagem, se é uma pessoa escolarizada e, portanto, assumindo a
condição de ter um certo poder sobre as outras pessoas.
Para Preti (2002), só é possível trabalhar as variações linguísticas se o
professor entender a necessidade de se conhecer as regras de conversação, ou seja,
as características da língua falada para compreender melhor sua aplicação no
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |343

ensino; e as formas pelas quais o professor deverá agir para desenvolver a


competência do aluno na comunicação oral.
Para ilustração, utilizamos uma página da revista de nº 449, de 2005, na
qual Chico usa de uma linguagem regional em conversa com sua irmã estrelinha
que, falando de acordo com o padrão da norma culta, não o corrige, pois respeita
a sua forma de dizer.

Trecho da HQ de 'Chico Bento Nº 449' (Ed. Globo, 2005)


(http://arquivosturmadamonica.blogspot.com/2014/04/esquecidos-7-mariana-irma-do-chico-
bento.html). Acessado em 05/09/2018

É importante salientar que o ambiente de ensino causa diversos


obstáculos para o aprendizado, no tocante às variantes sociais, econômicas e
regionais, principalmente as que não fazem parte do cotidiano escolar. É uma
missão quase impossível para o professor driblar essas diferenças e trabalhar o
ensino da língua portuguesa sob forma de uma comunicação interativa.
É sabido e notório que, por fatores históricos e políticos, o ensino da
língua portuguesa adotou como o bem falar a forma “padrão” e “culta” para língua
344 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

e aqueles que não conseguem usar a linguagem considerada correta, são


considerados errantes, falantes que não sabem falar o português.
Por essa razão que o professor não deve supervalorizar a língua
portuguesa padrão; ele deve mostrar ao aluno que a norma culta/padrão é uma
das formas de se usar a língua, mas que não se pode esquecer ou menosprezar as
variantes, utilizadas pelas comunidades que atendem ao processo de
comunicação. E, assim, combater o preconceito linguístico, não supervalorizando
o uso da norma padrão, conforme exemplo,

(https://cafecomsociologia.com/preconceito-linguistico/). Acessado em 05/09/2018.

De acordo com os PCN (1997), há um reconhecimento de que no Brasil


usam-se diferentes variantes linguísticas, o que deixa claro que
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |345

frente aos fenômenos da variação, não basta somente uma mudança


de atitudes; a escola precisa cuidar para que não se reproduza em
seu espaço a discriminação linguística. Deste modo, não pode tratar
as variedades linguísticas que mais se afastam dos padrões
estabelecidos pela gramática tradicional e das formas diferentes
daquelas que se fixam na escrita como se fossem desvios ou
incorreções. (PCN, 1997, p.82).

Portanto, não se faz necessário eliminar a gramática tradicional do


ensino nas escolas, porém, algumas coisas devem ser modificadas para que o
ensino de língua seja mais significativo e mais lúdico. Uma das coisas a se
trabalhar é mostrar a língua padrão apenas como uma possibilidade de uso, como
das variantes linguísticas, que pode e deve ser aplicada em determinadas situações
de comunicação. Outra forma é mostrar que essa linguagem padrão não é
adequada nas conversações familiares e em situação não formais.
O gibi do Chico Bento, de nº 77, de 2005, também nos permite trabalhar
com a interdiscursividade (memória) que, para Orlandi,

Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar,


independentemente. Ou seja, é o que chamamos memória
discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que
retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do
dizível, sustentando cada tomada da palavra. O interdiscurso
disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa
em uma situação discursiva dada. (ORLANDI, 2010, p.31)

A irmã de Chico Bento era uma estrela que veio a Terra passar uns
tempos com uma família amorosa, mas suas irmãs estrelas não a deixam ficar por
muito tempo na terra e a chamam de volta. Anos mais tarde, essa estrela volta à
Terra para conversar com o Chico Bento para matar as saudades e anos mais tarde
torna-se sua filha. A exemplo,
346 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Trecho da HQ de 'Chico Bento Nº 449' (Ed. Globo, 2005)


(http://arquivosturmadamonica.blogspot.com/2014/04/esquecidos-7-mariana-
irma-do-chico-bento.html). Acessado em 05/09/2018

6. Formação discursiva e sua relação com o já-dito

Por ilação, a ilustração remete a uma formação discursiva que traz


enunciados os quais “vão nos inventando um passado inequívoco e empurrando
um futuro pela frente e que nos dão a sensação de estarmos dentro de uma história
de um mundo conhecido...” (ORLANDI, 1993, p.12).
Ainda, de acordo com o ponto de vista de Orlandi (1993), no movimento
do processo de construção de uma formação discursiva existe na construção do
significado: apagamento de uma memória estabelecida dos sentidos (o já-dito);
uma resistência a esse apagamento com a construção de outros sentidos e um
retorno aos sentidos que foram excluídos e que “se produz no percurso que vai do
sem-sentido em direção ao sentido”. (ORLANDI, 1993, p.11). Tornando-se, assim,
discursos em que há identidade histórica com memória temporalizada e que se
apresentam como institucionais, legítimos.
O dizer do Gibi nº 449 não só retoma a lenda indígena brasileira da
vitória-régia que nos conta:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |347

Vitória-régia (ou mumuru) – a estrela dos lagos


Maraí era uma jovem e bela índia, que amava muito a natureza e
tinha o hábito de contemplar a chegada da Lua e das estrelas.
Nasceu nela, então, um forte desejo de se tornar uma estrela.
Perguntou ao pai como surgiam aqueles pontinhos brilhantes no
céu e, com grande alegria, soube que Jacy, a Lua, ouvia os desejos
das moças e, ao se esconder atrás das montanhas, transformava-as
em estrelas. Muitos dias se passaram sem que a jovem realizasse seu
sonho. Maraí resolveu, então, aguardar a chegada da Lua junto aos
peixes do lago. Assim que ela apareceu, Maraí, encantada com sua
imagem refletida na água, foi sendo atraída para dentro do lago, de
onde nunca mais voltou. A pedido dos peixes, pássaros e outros
animais, Maraí não foi levada para o céu. Jacy transformou-a em
uma bela planta aquática, que recebeu o nome de vitória-régia (ou
mumuru), a estrela dos lagos.

(http://prodoc.museudoindio.gov.br/noticias/retorno-de-
midia/68-mitos-e-lendas-da-cultura-indigena) Acessado em
20/09/2018

Como retoma também uma lenda da tradição religiosa africana iorubá, a


respeito dos abikus, crianças que fazem parte de uma sociedade secreta, que
moram no orun, no céu, e que gostam de onde estão na companhia de seus amigos.
Elas fazem pactos com seus amigos de que se forem reencarnadas, morrerão logo
e/ou nascerão mortas para voltar a ficar com seus amigos no orun. Uma criança
abiku é reconhecida por estar sempre correndo alguns perigos na vida,
principalmente, até completar sete anos. São crianças que têm um universo
interior cheio de fantasias, imaginação, geralmente com “amigos secretos”; elas
passam alguns momentos do seu dia em alheamento, buscando um contato com
os seus amigos invisíveis. O que vai prender uma criança abiku na terra é o amor
e a atenção que a família dá para essa criança, além dos trabalhos espirituais que
se deve fazer para mantê-la no aiê, na terra e inviabilizar o pacto feito no orun.
Portanto, como Orlandi nos mostra, “todo dizer, na realidade, se
encontra na confluência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o da
atualidade (formulação). E é desse jogo que se tiram os sentidos.” (ORLANDI,
2010, p.33) Como vimos nos trechos trabalhados do gibi, “o interdiscurso é todo
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o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos.”


(ORLANDI, 2010, p.33)
Para se trabalhar a pontuação, ainda com palavras de Orlandi (2001), que
entende a linearidade enunciativa trazendo noções de acréscimo e incompletude,
detectando faltas e excessos, o que é dito a mais se dá do interior para o exterior
do que se anuncia (expansão); e do exterior para o interior (inserção).

7. Considerações finais

De acordo com o exposto, assim está contida nessa categorização a noção


de camadas de enunciação que se harmonizam e se amalgamam para produzir o
plano linear na textualização, numa formulação subjetiva, histórica, política,
ideológica. Daí, o texto ser vestígio material do interdiscurso. Ademais, ainda com
Orlandi (2001), o mecanismo da pontuação fornece elementos para compreender
o funcionamento político-ideológico dos discursos nos seus pontos de
subjetivação na produção e na interpretação.
Continuando, para melhor esclarecimento sobre posição ideológica na
leitura e interpretação, a autora afirma que:

A relação com o simbólico, como tenho proposto, é uma relação


com a interpretação. Ela está na base da própria constituição do
sentido, já que, diante de qualquer objeto simbólico, o sujeito é
instado a interpretar (a dar sentido) determinado pela história, pela
natureza do fato simbólico, pela língua. Aí está o princípio mesmo
da ideologia: não há sentido sem interpretação, mas este processo
de constituição de sentido (sua historicidade) não é transparente
para o sujeito. Ao contrário, é através de um processo imaginário
que o sentido se produz no sujeito na relação que interliga
linguagem/pensamento/mundo. A interpretação, assim como a
ideologia, é igualmente necessária. (ORLANDI, 1996, p.133)

Já para Nunes,

Conhecer essas diferentes formas de saber linguístico na história


conduz a se posicionar criticamente diante das produções atuais.
Tal posicionamento pode ser considerado, a meu ver, ao menos em
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |349

três instâncias (Nunes, 2007): a) um posicionamento diante das


ciências da linguagem, que procura mostrar o modo como o político
e o histórico estão ou não presentes nas teorias e de que modo; b)
um posicionamento diante da produção dos instrumentos
linguísticos, com a análise e a crítica das obras recentemente
publicadas, considerando-se a memória do saber linguístico; nesse
sentido, cabe também a proposição de novos procedimentos de
fabricação desses instrumentos, bem como o desenvolvimento de
projetos compatíveis com esses procedimentos; c) um
posicionamento junto à “opinião pública”, com a produção de
materiais de divulgação e a realização de fóruns de discussão sobre
os conhecimentos linguísticos. (NUNES, 2008, p. 120)

Para finalizar, as práticas escolares vinculadas à análise linguística têm


que ter momentos de análise constantes sobre a pontuação, não só do gibi, mas
dos diversos gêneros textuais escritos.
Cabe ressalta que, nos PCN, com as diretrizes para o ensino fundamental
de Língua Portuguesa, ressalta-se que a leitura e a produção de textos, tanto orais
quanto escritos, são as práticas discursivas que, combinadas com a reflexão sobre
as estruturas da língua, devem ser priorizadas no trabalho com a língua materna.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

NUNES, José Horta. Uma articulação da análise de discurso com a história das
ideias linguísticas. In Revista Língua, sujeito e história nº 37. RS: Universidade
Federal de Santa Maria, 2008. Pág. 107 a 124.

PRETI, Dino. Oralidade e gíria: como tratá-las no ensino. (Org. Neusa Barbosa
Bastos). Língua Portuguesa – uma visão em mosaico. São Paulo: COMPED /
EDUC / IP-PUC/SP, 2002.
350 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:


introdução aos parâmetros curriculares nacionais/ Secretaria de Educação
Fundamental – Brasília: MEC/SEF, 1997.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios e procedimentos.


Campinas: Pontes, 2010.

_______________________. (org.) Discurso fundador (A formação do país e a


construção da identidade nacional). Campinas, SP: Pontes, 1993.

________________________. Ponto final: interdiscurso, incompletude,


textualização. In. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos.
Campinas: Pontes, 2001.

_______________________. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho


simbólico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

Webgráficas
http://arquivosturmadamonica.blogspot.com/2014/04/esquecidos-7-mariana-
irma-do-chico-bento.html
http://prodoc.museudoindio.gov.br/noticias/retorno-de-midia/68-mitos-e-
lendas-da-cultura-indigena)
https://cafecomsociologia.com/preconceito-linguistico/
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |351

RECURSOS DIDÁTICOS DO IMPRESSO ÀS NOVAS TECNOLOGIAS DA


INFORMAÇÃO NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: POSSIBILIDADES
DE TRABALHO

Mateus Esteves de Oliveira (CEFET-MG)

1. Livro didático de língua portuguesa: histórico e relevância na sala de aula


brasileira

Diante do atual cenário educacional brasileiro que clama por atenção das
autoridades públicas e por melhores condições de trabalho para seus profissionais,
os materiais e recursos didáticos utilizados pelos professores em sala de aula
merecem um olhar especial. Essa ótica se justifica e se aprofunda à medida que o
livro didático se firma como protagonista frente aos demais materiais didáticos.
Dentre outros fatores, sua centralidade está marcada pela facilidade que
proporciona ao docente, que, por não raras vezes, dobra ou até mesmo triplica sua
jornada de trabalho em uma ou mais instituições escolares (SOARES, 2002). Tudo
isso para conceder o mínimo de conforto e estabilidade financeira a ele e à sua
família.
Essa importância possui valor histórico. De acordo com Bunzen e Rojo
(2006), as primeiras experiências com relação ao emprego de impressos no Brasil,
sobretudo no ensino de língua portuguesa, vinham em forma de cartilhas, livros
de leitura, gramáticas e manuais de redação. Esses materiais abrangiam os anos
iniciais da alfabetização até as séries finais do ensino regular.
Um importante suporte que ficou marcado no século XX diz respeito às
antologias que eram constituídas por uma seleção de cânones literários escritos
por autores de destaque no Brasil e em Portugal. Por meio desse livro, os alunos
mantinham contato com textos tradicionais e que compunham a coleção literária
valorizada pela crítica (BUNZEN; ROJO, 2006).
Entretanto, esse material não era elaborado como o livro didático que se
conhece nas escolas de hoje e que é avaliado e legitimado pelo PNLD (Programa
352 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Nacional do Livro Didático). Era apenas um conjunto de textos, que não


necessariamente tecia uma relação lógica de sentido e sequência entre eles, a fim
de servir como apoio ao professor de português na preparação das aulas
(BUNZEN; ROJO, 2006). Em outras palavras, não havia nas páginas das antologias
atividades e instruções que conduziam o trabalho do professor, este deveria,
mediante planejamento, elaborar suas próprias questões e decidir a maneira de
utilizar o texto em sala de aula. O máximo que esse material disponibilizava para
o docente e aos alunos eram alguns comentários rasos, notas explicativas e até
mesmo um limitado vocabulário (BUNZEN; ROJO, 2006, p. 74).
Assim, é possível perceber que o professor era o agente que estruturava e
conduzia sua própria aula, ocupava a centralidade da classe, cabendo a ele decidir
sobre o uso de determinados materiais. Vale lembrar também que esse contexto
nos remete, em boa parte, à primeira metade do século passado, momento em que
a educação pública brasileira era destinada a poucos. Em outras palavras, o direito
de estudar pertencia às classes médias e altas, enquanto a maior parte da
população pertencia à camada mais pobre e, portanto, sem acesso a serviços
essenciais, como saúde, saneamento básico, segurança e a própria educação
pública.
Com o decorrer desse percurso na história da utilização do livro didático
de português no Brasil, Bunzen e Rojo (2006) abordam que o surgimento dessa
tecnologia tal como se conhece hoje se deu por volta dos anos 70. Os autores
conferem seu nascimento “às mudanças educacionais brasileiras da época da
ditadura e à promulgação da LDB e da Lei 5692/71” (BUNZEN; ROJO, 2006, p.
74). Todavia, ressaltam que “sua gestação, no entanto, é mais longa e se dá entre
os anos 50 e 60” (BUNZEN; ROJO, 2006, p. 74). Reforçam que, nesse período
histórico, as instituições escolares passaram a privilegiar o uso de livros que
forneciam o conjunto de textos literários e conteúdos gramaticais em um único
volume em detrimento das antologias e gramáticas em obras distintas.
Essa mudança de suporte veio acompanhada de novas condições políticas
e sociais no Brasil. Dentre tais condições, pode-se citar a crescente oferta de vagas
nas escolas públicas para atender a população que, por sua vez, era mais industrial
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |353

e urbana, em destaque na região sudeste. Nesses termos, Clare (2002, s/p, apud
BUNZEN; ROJO, 2006, p. 77.) escreve que em presença da ditadura militar, a qual
se iniciou em 1964, “passe-se a buscar o desenvolvimento do capitalismo,
mediante expansão industrial”. Assim, a escola se reorganizou a fim de formar
cidadãos para o exercício de uma profissão. Passava, então, a fornecer as condições
essenciais para o setor produtivo que carecia de mão de obra qualificada.
Em meio a esse cenário de profundas mudanças estruturais na sociedade
brasileira, o ingresso altamente ampliado à escola pública (BUNZEN; ROJO,
2006) levanta uma problemática que merece atenção: qual é o reflexo dos novos
agentes (docentes e discentes) dessa escola na educação nacional?

Não é mais uma escola pública destinada apenas aos filhos das elites,
mas as camadas populares passaram a ter assento nas salas de aula.
O novo perfil cultural do alunado, por exemplo, acarreta
heterogeneidade nos letramentos e nas variedades dialéticas. Os
esforços das escolas em adequar-se à nova realidade têm impactos
visíveis na qualidade do ensino. Também o perfil sociocultural,
econômico e social dos docentes sofre alteração, com a ampliação
das redes. Dessa forma, a profissão de professor começa a
desprestigiar-se, a perder autonomia, a deslocar-se nos espaços
sociais. (BUNZEN; ROJO, 2006, p. 74)

Tendo em vista a reconfiguração nos papéis da escola, a profissão docente


passou a ser uma possibilidade de crescimento por parte dos jovens de classes
populares. Isso fez com que a oferta de professores aumentasse
consideravelmente. Essa ascensão numérica de professores no mercado de
trabalho, até mesmo impulsionada pela facilidade de acesso à formação docente,
contribuiu em larga escala para desprestigiar a profissão, reduzindo salários e
piorando as condições de trabalho existentes.
Tais condições interferiram diretamente no ensino da disciplina de Língua
Portuguesa, a qual passou a ser denominada, como expõe Bunzen e Rojo (2006),
Comunicação e Expressão, nos primeiros anos escolares, e Comunicação e
Expressão em Língua Portuguesa para os demais anos do ensino fundamental. No
que hoje se considera Ensino Médio, passou a se chamar Língua Portuguesa e
Literatura Brasileira.
354 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Diante disso, os materiais didáticos foram recriados para atender a uma


nova lógica de organização social fundamentada na ordem de produção
capitalista. “Agora, em lugar de obras de referência como antologias, seletas e
gramáticas, cria-se um novo tipo de material didático de apoio à prática docente
que, propositalmente, interfere na autonomia do professorado.” (BUNZEN;
ROJO, 2006, p. 74)
Com isso, a atuação do professor como profissional responsável do processo
de ensino em sala de aula fica completamente nublada pela determinação imposta
pelo livro didático. Tendo que trabalhar em mais de uma escola e turno para
justificar o ganho salarial satisfatório, os momentos destinados à preparação das
aulas, à elaboração de atividades e trabalhos e os períodos separados para a
formação continuada ao longo da vida começaram a ficar profundamente
prejudicados. É nesse instante que o livro didático se firma como o mais
importante e utilizado recurso para ensinar empregado na escola.

O livro didático, ao apresentar atividades acompanhadas e


minuciosas explicações — muitas vezes disponibilizando
conhecimentos quase banais —, não prevê a atuação do professor
como mediador entre esse tipo de livro e o aluno. Podemos também
afirmar que ele vem sendo concebido como mediador entre a
produção científica e a escola. Ele assume também a função de livro
teórico, responsável pela formação dos professores. Ao professor,
que também deveria atuar como mediador parece caber o papel de
“aluno” desses manuais. (PINHEIRO, 2010, p. 154)

Pinheiro (2010) observa que o papel do livro didático ficou ainda mais
estabelecido pela criação do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), o qual
colocou o governo brasileiro como o principal comprador de livros escolares no
mundo, fato que o consolidou como o maior programa de compra e distribuição
desse tipo de livro no cenário internacional (DAHER et al, 2013).
Frente às críticas desenvolvidas em torno do livro didático, embasadas
sobre a ótica de que ele deturpa a autoridade professoral e a liberdade de escolha
de conteúdos, Soares (2002) tem o cuidado de considerar que, em seus próprios
termos, o livro didático possui um “papel ideal e um papel real” bem díspares.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |355

[...] há o papel ideal e o papel real. O papel ideal seria que o livro
didático fosse apenas um apoio, mas não o roteiro do trabalho dele.
Na verdade isso dificilmente se concretiza, não por culpa do
professor, mas de novo vou insistir, por culpa das condições de
trabalho que o professor tem hoje. Um professor hoje nesse país,
para ele minimamente sobreviver, ele tem que dar aulas o dia
inteiro, de manhã, de tarde e, frequentemente, até a noite. Então, é
uma pessoa que não tem tempo de preparar aula, que não tem
tempo de se atualizar. A consequência é que ele se apoia muito no
livro didático. Idealmente, o livro didático devia ser apenas um
suporte, um apoio, mas na verdade ele realmente acaba sendo a
diretriz básica do professor no seu ensino. (SOARES, 2002, s/p)

Vale destacar que, segundo a pesquisadora, as más condições de trabalho


do professor e sua jornada estendida interferem sistematicamente na qualidade
do ensino. Isso o torna um profissional impulsionado pelo automático, extraindo
de si a capacidade de reflexão crítica para com as práticas pedagógicas, tão
importante e indispensável à profissão docente.
Porém, é inegável que o livro didático é uma tecnologia a serviço do
professor e da escola. Trata-se de um impresso com imenso valor no trabalho
docente, mas que deve ser utilizado de forma consciente e crítica. Para isso é
necessário, como bem afirma Soares (2002), repensar sua aplicação. Certamente,
a exitosa experiência com o livro didático de língua portuguesa parte da
concepção de que o professor é o agente que decide como e em qual situação usá-
lo. Para isso, é possível introduzir mudanças ao intercalá-lo com outros recursos
que também podem ser trabalhados didaticamente e que estejam mais próximos
à prática social dos alunos, como por exemplo, as novas tecnologias da
comunicação, as quais são maximizadas pela rede mundial de computadores.

2. Um olhar além do livro didático

Tendo em vista o protagonismo que o livro didático assumiu na escola


brasileira, seu uso como único e exclusivo material didático se tornou uma
356 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

realidade não muito rara. Principalmente quando se observam os esforços que o


governo da União, em conjunto com os poderes estaduais, tem empregado para
firmar a política escolar do PNLD. No entanto, não constitui objetivo deste artigo
menosprezar ou desvalorizar a utilização do livro didático, mas sim apontar
criticamente os mecanismos que colaboraram para promovê-lo ao patamar em
que se encontra hoje, além de sugerir alternativas pedagógicas que possam ser
desenvolvidas em paralelo com o livro.
É sabido que o percurso intelectual, cultural, tecnológico e logístico pelo
qual perpassa o livro didático é merecedor de respeito e consideração por parte
da comunidade acadêmica devido aos altos critérios de qualidade que o PNLD
impõe às editoras (DAHER et al., 2013). Sem essas exigências técnicas, eles não
estariam nas carteiras de alunos por todo o território nacional.
Consequentemente, o contato com a produção científica ficaria, em larga medida,
prejudicado, uma vez que o acesso à internet e às novas tecnologias da
comunicação no ambiente escolar ainda está muito aquém do que se verifica em
países desenvolvidos que tratam a educação com o devido cuidado que merece.
Entretanto, toda essa importância atribuída a esse tipo de livro acaba por
atrapalhar, ou até mesmo distanciar, a possibilidade de outros recursos. Nesse
sentido, Carvalho (2005) traz sua contribuição ao estudo dos materiais didáticos
ao abordar a diversidade de meios que o professor pode utilizar em sua prática de
trabalho.

Há uma grande gama de materiais didáticos, em vários suportes,


que podem ser utilizados pelo professor em sua sala de aula. Esses
materiais, bem empregados, podem enriquecer muito o ensino-
aprendizagem. Em alguns casos, são mesmo essenciais, como, por
exemplo, os laboratoriais, sem os quais o ensino-aprendizagem de
Física, Química e Biologia fica completamente desvirtuado.
(CARVALHO, 2005, p. 44)

Esse autor destaca justamente que a variedade de materiais, trabalhada


didaticamente, não necessariamente precisa estar na forma de livro, mas aponta
para o leque de oportunidades que a tecnologia tem a oferecer:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |357

Uma diferença significativa em relação ao passado é que, agora, os


vários materiais didáticos à disposição do professor têm vários
suportes, não só o do papel. Temos “materiais concretos” de
madeira e plástico, entre outros; fitas cassete e DVDs; filmes; e, por
fim, o computador, por vezes com acesso à Internet, o que muito
amplia suas potencialidades. (CARVALHO, 2005, p. 45)

Todavia, Carvalho (2005) chama atenção para o fato de que as


possibilidades de materiais a serviço do professor, muitas das vezes, implicam no
desconforto da seleção.

O professor vai a congressos em que são mostrados materiais;


recebe catálogos do MEC, com a lista dos programas disponíveis; as
escolas estão ligadas por antena parabólica diretamente a canais
educativos. Ao mesmo tempo, o professor lê artigos em que se louva
o emprego de outros materiais e vai a congressos em que se enaltece
o uso desses novos meios para enriquecer sua atividade docente.
(CARVALHO, 2005, p. 45)

Diante de tantas opções, o docente deve construir critérios para escolher


recursos mais condizentes com seu objetivo determinado no plano de aula. Nesse
contexto, o referido autor levanta a problemática: Como o professor se orienta
perante o assédio das editoras de um lado e a ampla variedade de novos recursos
à sua disposição do outro? Por qual forma escolher o que é mais adequado à sua
prática de ensino?
Ao sugerir uma medida capaz de minimizar esse desconforto gerado pela
escolha, Carvalho (2005) preconiza que uma boa opção seria “agrupar” ao redor
do livro didático todas as possibilidades de trabalho. Para justificar sua orientação
com referência ao livro didático, o autor se baseia no pressuposto de que durante
o momento de sua seleção, no início do ano letivo, o docente tenha se respaldado
no Projeto Político Pedagógico da escola. Isso faz com que essa relação não entre
em conflito com as diretrizes básicas do curso. Também se pode afirmar que tal
sugestão contribui para alinhar a proposta curricular escolar com as estratégias
pedagógicas do docente em serviço. Além disso, corrobora para com o uso
358 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

racional e crítico do livro, sendo que abre oportunidades para novas experiências
com esse material tão tradicional e enraizado na cultura educacional do Brasil.
Esse autor ainda indica cinco práticas específicas ao professor, no intuito
de selecionar o material didático adequado. São elas: clareza dos objetivos os quais
se pretende alcançar; avaliação das condições e disponibilidades físicas da escola
para com tal opção; conhecimento profundo do material a ser utilizado, tendo em
mente suas potencialidades e deficiências; planejamento sistemático e, por fim, a
avaliação dos resultados obtidos.
Esses apontamentos são simples e passíveis de aplicação em contextos
escolares. Por isso, apresentar-se-á, em seguida, uma experiência vivenciada em
uma turma de curso preparatório para o Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM) na disciplina Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. As cinco práticas
citadas no parágrafo anterior estarão presentes no decorrer da narrativa descritiva
da aula, que também incluirá relatos dos próprios alunos sobre a percepção que
tiveram ao usar o aparelho celular com propósito pedagógico.

3. Celular e vídeo como instrumentos pedagógicos

A experiência exposta aqui foi desenvolvida em uma classe de estudantes


que se preparam para o ENEM na cidade de Itaguara, região metropolitana de
Belo Horizonte. O programa adotou o nome de Itaguara Valoriza. Trata-se de um
curso organizado por uma associação informal de amigos e professores. É apoiado
pelo Conselho Municipal de Desenvolvimento Social e Comunitário de Itaguara
e pela prefeitura da cidade. Não possui fins lucrativos e o único custo arcado pelos
alunos é a remuneração dos professores, o qual é estabelecido mediante rateio.
Funciona de segunda a sexta-feira, das 19h às 22h10 no prédio da Secretaria de
Educação.
A idealização do projeto surgiu da necessidade de oferecer aos jovens
itaguarenses condições, a um preço acessível, de se prepararem para os exames de
seleção universitária sem precisar sair da própria cidade. Muitos adolescentes
procuravam outros municípios para ter acesso a esse tipo de educação, viajando
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |359

diariamente para assistir às aulas. Como muitos ainda estavam no ensino médio,
o cansaço físico era evidente e, assim, o aproveitamento escolar regular era
prejudicado. O programa ainda colaborou com aqueles que não dispunham de
condições financeiras para arcar com as mensalidades de cursos tradicionais.
São oferecidas aulas de Linguagens (Português), Matemática, Física,
Química, Biologia, História, Geografia, Sociologia, Filosofia e Redação. Os
professores são atuantes nas escolas de ensino médio da região e/ou profissionais
experientes na disciplina que lecionam.
O Itaguara Valoriza iniciou-se no ano de 2017 com 25 matriculados. A
turma era heterogênea. Os alunos adolescentes e adultos compartilhavam o
mesmo espaço físico. Mediante os bons resultados alcançados pela turma do ano
passado, em 2018, o projeto iniciou com o dobro de matrículas, o que diminuiu
ainda mais o valor da mensalidade.
O material didático de Português (apostila) assim como para as demais
disciplinas é produzido por escolas privadas especializadas em cursos
preparatórios para concursos e vestibular. É oferecido e distribuído gratuitamente
para todos no início do curso. As despesas de compra e transporte são bancadas
pelo Conselho Municipal de Desenvolvimento Social e Comunitário de Itaguara.
Observa-se que ele é bem utilizado pelo corpo docente e discente. Possui pouco
espaço para explicações, o que contribui para a presença sistemática do professor
na mediação do conteúdo, e extensa lista de exercícios, os quais são separados
entre: ortografia, gramática e interpretação de texto. O professor de Linguagens
optou por priorizar a interpretação textual com base no conteúdo cobrado pelo
ENEM, principal referencial do curso, mas sem negligenciar as outras duas áreas
de estudo, pois representam significativa importância na prática da escrita.
A sala de aula é ampla e bem equipada. Conta com um computador a
serviço do professor ligado à internet, carteiras individuais, ventilação e
luminosidade adequadas, uma televisão de 50 polegadas e quadro negro. Quanto
ao perfil da turma, percebe-se que a maioria ainda está no Ensino Médio. Os
demais alunos são recém-formados no Ensino Médio ou trabalhadores de diversos
setores econômicos que buscam ingressar na universidade.
360 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Dentro desse escopo, a prática apresentada foi realizada logo no início do


curso, em 2018, na aula de português. Os primeiros conteúdos trabalhados com a
turma foram as seis Funções da Linguagem de Jakobson (emotiva, referencial,
poética, fática, metalinguística e conotativa). A aula foi predominantemente
expositiva. Utilizou-se apresentação em PowerPoint através da televisão. Ao final
da explicação, houve um momento de discussão sobre exemplos práticos de
aplicação das funções. Durante esse período, o professor esclareceu dúvidas gerais
e seguiu sua aula com uma lista de atividades retiradas de vestibulares por todo o
Brasil e de edições do ENEM. Não foi possível realizar a correção na mesma aula
devido ao tempo.
No entanto, o diferencial didático estava na próxima aula. A fim de tentar
fixar o conteúdo, o professor deixou de lado os métodos tradicionais e utilizou
uma tecnologia presente na mão de todos os alunos da turma, o celular. O objetivo
central da aula era apresentar o aparelho como uma nova tecnologia a serviço da
educação. Nesse caso, o conteúdo Funções da Linguagem foi apenas um meio para
atingir esse alvo.
A disponibilidade do celular entre os alunos era visível. Todos afirmaram
ter o aparelho. Isso contribuiu amplamente para o êxito da aula. O professor
propôs que a turma se dividisse em seis grupos. Cada grupo ficaria responsável
por uma função da linguagem. Mas antes de iniciar as atividades, foi promovido
um espaço para discutir o uso do celular em sala de aula. O texto motivador foi
uma reportagem28 retirada do site de vídeos youtube.com que retratava
experiências de sucesso utilizando essa ferramenta de comunicação em escolas do
estado de São Paulo. Os estudantes tiveram a oportunidade de expor seu ponto de
vista sobre o assunto e o professor mediava e comentava as colocações.
Após esse momento, o trabalho se dividiu em duas partes. A princípio, o
grupo deveria construir uma reflexão sobre os benefícios que o celular oferece
didaticamente; essa conclusão deveria ser enviada ao professor por meio do
aplicativo de mensagem WhatsApp, em forma de texto escrito ou áudio. Depois

28Vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=LAXEj0ew_3E . Acesso em 08 de abril de


2018.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |361

de concluída essa etapa, para aplicar o conteúdo da aula da semana anterior, os


estudantes deveriam produzir um vídeo no qual ficasse clara a manifestação da
função linguística destinada. O vídeo deveria ser exibido para a turma ao final da
aula.
A criatividade tomou conta das apresentações e a expectativa inicial foi
alcançada. Os alunos perceberam que o aparelho celular possui possibilidades que
vão além do simples entretenimento conforme registrado:

[...] o celular e as demais tecnologias podem sim ser um grande


aliado dos educadores, já que facilitam as pesquisas e o
aprofundamento do conhecimento, proporcionam uma visão mais
clara e próxima de diversos assuntos, além de tornarem as aulas
mais dinâmicas. (GRUPO 3)
[...] estar conectado é hoje algo cada vez mais comum no nosso dia
a dia, e é uma ferramenta que pode facilitar o entendimento do
aluno. (GRUPO 2)
O uso do telefone celular torna a busca pelo conhecimento mais
fácil e prática, deixando as aulas mais dinâmicas e menos
monótonas e despertando o interesse dos alunos. (GRUPO 1)

A empolgação para gravar um bom vídeo foi percebida pela maioria da


turma. Até então era o momento de trabalhar novas experiências com um recurso
que faz parte da vida deles, saindo do tradicional e abrindo espaço para outras
manifestações da comunicação como a linguagem oral e corporal. Foi observado,
no momento do debate, que muitos da turma usavam, pela primeira vez, o
aparelho celular para realizar uma atividade educativa. Entretanto, as produções
audiovisuais conseguiram traduzir com clareza cada função da linguagem; isso foi
valorizado pelo professor e a turma recebeu os elogios e apontamentos
necessários.
Ao final, é importante frisar, inclusive, que o pensamento crítico dos
alunos foi evidenciado nas ressalvas a respeito da aplicação do celular em aula.
Para eles, o uso desse equipamento na escola, ao mesmo tempo que diversifica as
condições para apropriação de conteúdos disciplinares, pode desviar a atenção do
usuário para assuntos não relevantes ao momento, dificultando o trabalho do
educador, sendo que não é possível controlar o que cada estudante faz com o
362 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

aparelho. Entretanto, reconhecem que o uso pleno dessa tecnologia se faz por
meio de maturidade e disciplina de quem a usa.

O celular se torna uma ferramenta mais prática e rápida de


informação. Porém, não é possível que o professor controle o uso
ideal por parte dos alunos sobre o que foi proposto, o que o torna
uma ferramenta cada vez mais difícil de se aplicar. (GRUPO 4)
Eu uso meu celular para acessar a internet, facilitando novas formas
de pesquisas dentro da sala de aula e assisto aulas on-line para
entender melhor a matéria. Mas é necessário maturidade da nossa
parte para utilizar de maneira correta dentro da escola! (FALA DE
ALUNO, GRUPO 5)
O uso do celular nas escolas tem pontos positivos e negativos.
Positivos porque facilita o acesso à informação e dinamicidade das
aulas, e negativos porque não seria possível fiscalizar todos os
celulares para saber se todos realmente estariam usando para o
determinado fim, dependeria muito da consciência do aluno.
(GRUPO 6)

Diante desses registros, também se observa, por outro lado, que o discurso
presente em boa parte das escolas, de que o celular pode desviar a atenção e
corromper o planejamento da aula, esteve presente no relato dos alunos. Isso
reforça a ideia de que os professores exercem influência na opinião do alunado
até mesmo quando se trata de um aparelho que os adolescentes dominam com
tanta facilidade. Essa habilidade dos alunos contrasta com o comportamento de
boa parte dos professores da educação básica que, por deficiência na formação
inicial e/ou contínua ou por condições tecnológicas precárias na escola pública de
modo geral, ainda preferem ministrar aulas tradicionais, fundamentadas em
práticas compartimentalizadas de conteúdo, deixando de lado outros recursos
didáticos que podem ser introduzidos à sala de aula, os quais estejam mais
próximos às práticas sociais dos estudantes, para o aperfeiçoamento das estratégias
de ensino.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |363

4. Considerações finais

Pode-se então apreender que as críticas que os estudantes desenvolveram


ao longo do trabalho foram importantes para compreender que o uso didático do
celular na escola vem acompanhado de planejamento, com relação ao professor,
e de disciplina, por parte da turma. Cabe ao docente refletir sobre as vantagens e
desvantagens dessa ferramenta e as possíveis formas de aplicabilidade em aula;
por esse motivo que o planejamento é essencial no contexto escolar. Diante de
atividades soltas e não sistematizadas, o aluno pode usar o aparelho mais como
um passatempo do que um instrumento de trabalho. Se os alunos não tiveram
maturidade e respeito ao que o professor propõe, o planejamento pode não atingir
o objetivo esperado.
Por isso, a construção dessa consciência deve ser trabalhada em todo o
período letivo. É recomendável, portanto, que o professor não se deixe levar pela
comodidade que as aulas convencionais, fundamentadas no protagonismo do
livro didático, oferecem. Ademais, torna-se fundamental que ele procure meios
de aproximar o conteúdo o qual precisa ensinar à realidade que o cerca, para assim
conseguir consolidar a formação crítica e cidadã de seu aluno.

REFERÊNCIAS

BATISTA, Antonio Augusto Gomes. A avaliação dos livros didáticos: para


entender o PNLD. In.: BATISTA, A. A. G.; ROJO, R. Livro didático de Língua
Portuguesa, Letramento e Cultura da Escrita. São Paulo: Mercado de Letras, 2003,
p. 25-68.

CARVALHO, João Bosco Pitombeira. Impressos e outros materiais didáticos em


sala de aula. In.: Materiais Didáticos: escolha e uso. Brasília: MEC, Boletim 14,
agosto de 2005, pp. 44-49.
364 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

DAHER, Del Carmen; FREITAS, Luciana Maria de Almeida; SANT’ANNA, Vera


Lúcia de Albuquerque. Breve trajetória do processo de avaliação do livro didático
de língua estrangeira para a educação básica no âmbito do PNLD. Eutomia,
Recife, 11 (1): 407-426, Jan./Jun. 2013.

PINHEIRO, Marta Passos. Livro didático de Língua Portuguesa: tecnologia a


serviço de que. In.: RIBEIRO, A.E; COURA-SOBRINHO, J; VILLELA, A.M.N;
SILVA, R.B. (ed) Leitura e Escrita em Movimento. São Paulo: Peirópolis, 2010, p
147-156.

ROJO, Roxane; BUNZEN, Clécio. Livro didático de língua portuguesa como


gênero do discurso: autoria e estilo. In. VAL, Maria da Graça Costa;
MARCUSCHI, Beth (Org.) Livros didáticos de Língua Portuguesa: letramento e
cidadania. Belo Horizonte: Autêntica/CEALE/FaE/UFMG, 2006, p. 73-118.

SOARES, Magda. O livro didático e a escolarização da leitura. Salto para o Futuro.


Entrevistas Brasil, 2002 (postada em 2008).
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |365

JORNAL IFFOLHA: AUTORIAS NO ENSINO TÉCNICO FEDERAL

Melina Rezende Dias (Colégio Militar de Belo Horizonte)


Ana Beatriz Simões da Matta (IFFluminense)

1. Introdução

O projeto Jornal IFFOLHA surgiu, em 2016, da necessidade de


desenvolver a produção textual dos alunos do IFFPádua. Nas aulas de Língua
Portuguesa, era notável a dificuldade de alguns desses com a escrita; mas, ao
mesmo tempo, podíamos perceber que esses alunos gostavam de escrever. Foi,
então, que pensamos na possibilidade de construir um jornal escolar em que todos
os discentes, professores e funcionários técnico-administrativos pudessem redigir
seus textos para serem publicados e lidos por toda a comunidade escolar.
A redação de um jornal é uma atividade que desenvolve muito a
produção textual. O aluno tende a se dedicar mais à escrita, uma vez que não
escreve somente para o professor, mas para a comunidade. É um trabalho de
reescrever e refazer constante. Além disso, a elaboração deste gênero textual
propicia a integração com as outras disciplinas, pois o aluno precisa ativar
diferentes conhecimentos a fim de produzir seus textos, fato esse que parece não
delegar, apenas, ao docente de Língua Portuguesa a tarefa de desenvolver a
produção textual no ambiente escolar.
A respeito dessa afirmação, Faria e Zanchetta Jr. (2012) ressaltam:

Pelo fato de ser um veículo que tem como material a palavra,


considera-se, em geral, que cabe ao professor de português a tarefa
de organizar o jornal. Entretanto, a variedade de assuntos que
aborda o transforma num instrumento de participação de todos os
professores, num trabalho coletivo que deve envolver não só os
professores e alunos, como também os funcionários da escola, os
pais e a comunidade. (FARIA; ZANCHETTA JR., 2012, p. 141)

Desse modo, o ensino de Língua Portuguesa deve pautar-se em uma


prática constante de leitura e escrita, o que pressupõe um trabalho com a
366 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

diversidade de objetivos, modalidades e textos que caracterizem as práticas


linguísticas reais e oriundas de diferentes campos do saber. Por isso, a escola deve
ressignificar as formas sociais de leitura e escrita da maneira mais verossímil
possível. A produção de um jornal escolar pelos alunos permite um rico trabalho
com vários gêneros textuais que fazem parte do cotidiano do aluno.
Não é fácil despertar o interesse dos alunos em ler jornal impresso, numa
época em que eles estão conectados à internet diariamente. Porém, a proposta de
produção de um jornal por eles e não apenas a sua leitura pode ser uma tarefa
eficaz de maneira a provocar o interesse pelo jornal impresso. Com isso,
contribui-se para a formação de leitores habituais e cidadãos críticos e bem
informados.
Inicialmente, é preciso ensinar os alunos a ler um jornal impresso. Nas
aulas de Língua Portuguesa, foi desenvolvido um trabalho com jornais. Muitos
alunos demonstraram não saber manusear um jornal, tampouco selecionar qual
texto ler diante de tantas opções. Sobre isso, a revista Nova Escola explica:

É importante fazer os alunos se relacionarem com o jornal como se


fossem leitores comuns: eles devem manuseá-lo por inteiro (não só
textos recortados), aberto sobre uma mesa, no chão ou dobrado; e
buscar os cadernos que mais interessam, vendo fotos e lendo títulos,
subtítulos e o início de cada reportagem, para saber se vale seguir
até o final. "É comum a pessoa iniciar a leitura pela área de que mais
gosta, mas isso não significa que ela irá até o fim do texto", afirma
Maria José Nóbrega, consultora de Língua Portuguesa. (NOVA
ESCOLA)

Nas aulas de Língua Portuguesa, os alunos aprenderam não só a


diferenciar conceitos como tipo textual e gênero textual, como também a
reconhecer os diversos gêneros textuais nos jornais impressos, a perceber
diferenças e semelhanças entre eles e a analisar as interações comunicativas
estabelecidas por cada gênero.
Durante todo o ano letivo, realizou-se o estudo de vários gêneros
textuais, em que o aluno era desafiado a analisar a forma/estrutura do gênero
textual lido, a linguagem empregada, a função daquele texto, o seu suporte, quem
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |367

era o locutor e o interlocutor, qual tipo textual era utilizado. Além disso, o aluno
era instigado a realizar uma leitura crítica dos textos. Dessa forma, os alunos
foram se tornando capazes de produzir diferentes gêneros textuais nas diversas
práticas linguísticas reais.
Segundo Costa Val (2007), os gêneros textuais devem ser abordados na
sala de aula de maneira funcional:

Isso significa trabalhar com o objetivo de que OS ALUNOS


APRENDAM A USÁ-LOS, isto é, que aprendam a: 1. Ler os gêneros
presentes na vida social, compreendendo sua função (sua utilidade,
seus objetivos) e seu alcance (o contexto social em que circulam,
que implicações podem ter na vida dos usuários, a que estrutura de
poder se vinculam). 2. Escrever textos em gêneros diversos, o que
envolve escolher o gênero adequado à situação social e à ação de
linguagem e produzir um texto pertinente a esse gênero — quanto
ao conteúdo, à forma e ao estilo de linguagem. (COSTA VAL, 2007,
p. 21)

Os alunos também adquiriram conhecimentos sobre a função das pessoas


que atuam em um jornal: repórter, entrevistador, ilustrador, quadrinista,
fotógrafo, conselho editorial etc. Enfim, durante todo o ano letivo, o jornal era
usado nas aulas de Língua Portuguesa para despertar o interesse dos alunos em ler
e produzir textos.

2. Metodologia

Após a sua elaboração, o “Projeto Jornal IFFolha” foi apresentado à


comunidade escolar e todos foram convidados a participar. A primeira edição foi
produzida apenas com voluntários. Optamos por apresentar, neste artigo, a
metodologia utilizada a partir da 2ª edição. Essa decisão foi tomada pelo fato de
que na 1ª edição ainda não possuíamos alunos bolsistas nem um Conselho
Editorial. Durante o processo de elaboração, o IFFPádua entrou em greve. Dessa
maneira, foi preciso adiantar a impressão e finalizamos sem concluir o projeto
gráfico e sem o logotipo. No próximo item desse artigo, apresentaremos as
edições, em que é possível notar claramente a diferença da primeira edição para
368 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

as demais. Portanto, consideramos que a primeira edição foi como uma etapa
piloto, com vistas a verificar o êxito do projeto e a motivação dos participantes
em seguir no projeto. Apesar dos problemas listados, constatamos que esta fase
inicial foi bastante exitosa. Os alunos gostaram muito de participar, escreveram
textos muito interessantes, a comunidade escolar abraçou o projeto e ele cresceu
a cada edição.
No início de 2017, submetemos o “Projeto Jornal IFFolha” ao “Projeto
Jovens Talentos para a Ciência” da FAPERJ. O projeto foi aprovado e nos foram
concedidas 3 bolsas para os alunos do IFFPádua. Fizemos a seleção dos alunos
bolsistas e demos continuidade ao nosso trabalho.
A metodologia utilizada seguiu as sugestões dadas por Faria e Zanchetta
Jr. (2012) e aplicadas à realidade do IFFPádua. Os tópicos a seguir resumem os
passos metodológicos:

1) O Conselho Editorial, formado pela coordenadora, vice-coordenadora e pelos


bolsistas do projeto, reunia-se semanalmente para planejar cada edição. Foi
elaborado um cronograma definindo os prazos a serem cumpridos para a execução
do projeto. Também foram definidas as tarefas de cada bolsista.
2) O Conselho Editorial visitava todas as turmas da escola, antes de cada edição,
para divulgar o jornal e convidar os alunos a participarem. Além disso, convidava
também todos os funcionários da escola. O Conselho solicitava constantemente
colaboração dos professores na orientação dos alunos ao produzirem textos
relacionados à área de atuação deles.
3) A coordenadora criou um grupo no Whatsapp com todos os bolsistas e
voluntários. Em cada edição, a lista dos participantes desse grupo era atualizada.
Alguns saíam, outros entravam. A comunicação pelo Whatsapp se tornava mais
viável e os problemas que surgiam eram resolvidos mais rapidamente.
4) Definição do tema de cada edição: todos os envolvidos no projeto podiam
sugerir temas para cada edição. A votação era feita no grupo do Whatsapp e o
tema mais votado era o vencedor. Todos os textos da primeira parte do jornal
tratavam do tema escolhido. Na segunda parte, a temática era livre.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |369

5) Após definição do tema, cada participante definia o gênero textual e o assunto


(seguindo o tema ou livre) do texto que iria produzir. Dessa forma, um dos alunos
bolsistas elaborava a lista de gêneros textuais escolhidos pelos voluntários e assim
os grupos eram formados.
6) Durante todo o ano letivo, a professora de português e coordenadora do projeto
trabalhou os diferentes gêneros textuais em sala de aula.
7) Após a definição dos grupos, a data de entrega dos textos era estipulada e
cumprida rigorosamente.
8) Cada grupo desenvolveu suas ideias, métodos e ações, responsabilizando-se por
pensar e produzir os textos de acordo com a temática da edição e com a realidade
do Campus e da região. O Conselho Editorial fez reuniões separadas com cada
grupo para definirem alguns aspectos:

Exemplos:
a) Grupo da reportagem: definir as reportagens que poderiam ser feitas, de acordo
com o que estivesse acontecendo na escola, por exemplo: trabalhos de campo;
apresentação de atividades culturais; premiação de concursos; projetos
desenvolvidos.
b) Grupo da notícia: definir as notícias que mereceriam ser publicadas: o que
aconteceu na escola de interessante? Quem esteve envolvido? Onde e quando
aconteceu? Qual notícia deveria ser a capa da edição?
c) Grupo dos entrevistadores: planejar a entrevista: que pessoas iriam entrevistar?
Que assunto seria abordado? Que perguntas seriam feitas? Como seria o texto
introdutório da entrevista? Que dados deveriam ser informados?
d) Grupo de ilustradores: planejar como seria a ilustração do jornal: os desenhos
seriam atrelados aos textos? Seriam engraçados? Coloridos? Em preto e branco?
Seria charge? Cartum?
e) Grupo dos quadrinistas: que histórias poderiam ser criadas? Que assuntos
poderiam abordar? Como seriam criadas? Com ou sem diálogos? Em balões ou em
quadrinhos? Coloridos ou não? Engraçados? Críticos? Desenhados à mão ou em
programas de computador?
370 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Essas reuniões eram feitas com todos os grupos no início de cada edição e à medida
que cada grupo sentia necessidade de tirar dúvidas e resolver problemas. Os
grupos também procuravam ajuda dos professores das diversas disciplinas para
dirimir suas dúvidas.
9) Cada bolsista ficou encarregado de produzir quatro textos para cada edição e ir
a campo fazer entrevistas nas cidades vizinhas. Em conjunto com alguns
voluntários, encarregaram-se de definir o projeto gráfico do jornal. Para isso,
analisaram o projeto gráfico de outros jornais e elaboraram um específico para o
IFFolha. Criaram ainda uma identidade visual, ou seja, escolheram o tipo das
letras para os títulos, textos e legendas, o uso ou não de cores. Estabeleceram as
seções que apareceriam sempre no mesmo espaço. Definiram quais gêneros
textuais não poderiam faltar. E, se algum deles não tivesse voluntário para
produzir, os bolsistas se encarregavam dessa tarefa. Além disso, reunidos uma vez
por semana com a coordenadora do projeto, liam e discutiam textos teóricos sobre
a produção de um jornal escolar, incluindo o livro “Para ler e fazer o jornal na
sala de aula”, de Faria e Zanchetta Jr. (2012).
10) Os alunos voluntários foram convidados a pensarem num logotipo para o
IFFolha. Foram produzidas duas logos bem criativas. Após votação de todos os
envolvidos no projeto, a logo criada por uma aluna voluntária do projeto foi a
vencedora e tornou-se a logo oficial do IFFolha.

Figura 1
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |371

A aluna propôs uma releitura da logo dos Institutos Federais, que foi
transformada em um jornal sendo lido por uma pessoa.

11) O Conselho Editorial visitou a Secretaria Municipal de Cultura de Santo


Antônio de Pádua e, para cada edição, fazia contato via e-mail com uma Secretaria
Municipal das cidades vizinhas, para elaboração dos cadernos “Acontece em
Pádua” e “Acontece nos arredores”.
12- Após a entrega dos textos de cada edição, iniciava-se o período de leitura,
avaliação e revisão de cada texto a ser publicado, o que também era feito pelo
Conselho Editorial.
13- Com o fim desse processo, a diagramação era iniciada. Os bolsistas, então,
usando dos softwares Adobe InDesign e Adobe Photoshop, criavam o corpo das
edições, distribuindo os textos pelas páginas. Para fazer a diagramação, os bolsistas
contaram com ajuda do designer gráfico do IFFPádua.
14- Após a impressão, o Conselho distribuía as cópias para a comunidade escolar
(cerca de 200 a 250 cópias por edição) e publicava a versão digital (feita no
aplicativo on-line issuu) na página do IFFolha no Facebook. A leitura do jornal
impresso era feita nas aulas de Língua Portuguesa para que os alunos pudessem
conhecer, comentar e avaliar as publicações.
15- Encerrada a edição, retomávamos os passos metodológicos para a produção da
próxima.
372 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

3. Edições publicadas

Edição Voluntários Bolsistas Número de Número de


páginas textos
1ª edição 29 Nenhum 15 20
2ª edição 68 3 24 33
3ª edição 63 3 31 48
4ª edição 55 3 no início. Ao ser 28 50
publicado, já tínhamos
5 bolsistas
Quadro 1: Edições publicadas do jornal IFFOLHA.

Como podemos observar neste quadro, a comunidade escolar sempre


mostrou interesse em participar do IFFolha. O número de produções cresceu a
cada edição e a qualidade dos textos nos surpreendia a cada leitura.
O Jornal IFFolha já recebeu 2 prêmios. Em 2017, ganhou o 3º lugar na
mostra FAPERJ de Extensão do Noroeste Fluminense e, em 2018, ganhou o 1º
lugar na VI Mostra do Conhecimento Ensino, Pesquisa e Extensão do Campus
Bom Jesus do Itabapoana.
Além de estimular a leitura e a produção textual, o processo de criação e
divulgação do Jornal IFFolha contribui para a formação dos alunos enquanto
indivíduos pensantes de uma sociedade. A grande adesão da comunidade escolar
(principalmente dos estudantes) mostra que é possível desenvolver
voluntariamente trabalhos desse tipo.

3.1. IFFolha 1ª Edição

A primeira edição do IFFolha foi publicada em novembro de 2016. A


seguir apresentamos a capa desta edição e o link para acesso online:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |373

Figura 2
Link para acesso:<https://issuu.com/jornaliffolha/docs/jornal_iffolha_1__edi__o>. Acesso em 03 nov.
2018.
374 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Não estipulamos uma temática para esta edição e, por isso, recebemos
textos de diversos assuntos. No quadro a seguir apresentamos os gêneros textuais
produzidos e os assuntos abordados.

Gênero Tema
Notícias 1- Greve no instituto
2- Olimpíadas 2016
3-Competições esportivas de que os alunos do IFFPádua participaram
Editorial Apresentação do jornal
Reportagem 1-Conscientização da comunidade escolar para ajudar o instituto a
economizar
2-Projeto de pesquisa “Da guerra ao terror”
Entrevista Com os professores do IFFPádua sobre a Reforma do Ensino Médio
Pesquisa Reforma do Ensino Médio
Poemas Diversos
Crônica Um acontecimento na vida do autor
Playlist, caça- Diversos
palavras
Recados Sobre um fato que aconteceu no Instituto
Horóscopo Signo dos professores
Artigo de opinião Relacionamentos abusivos
Quadro 2: Gêneros e temas da primeira edição do Jornal IFFolha.

3.2. IFFolha 2ª Edição

A segunda edição do IFFolha foi publicada em julho de 2017. A seguir


apresentamos a capa desta edição e o link para acesso online:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |375

Figura 3
Link para acesso: <https://issuu.com/jornaliffolha/docs/jornal_2ed> Acesso 03 nov. 2018.

O tema escolhido para esta edição foi questões de gênero, em que se


abordou machismo, feminismo, violência contra a mulher, homofobia etc. Os
alunos escolheram esse tema devido a um texto da 1ª edição, na qual um aluno do
IFFPádua, que participou de um campeonato pela escola, foi entrevistado por
uma das redatoras. Ao ser questionado a respeito do que mais chamou a atenção
376 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

dele nos jogos, respondeu que foram “as fêmeas”. Assim que a 1ª edição foi
publicada, muitas alunas se sentiram ofendidas com essa declaração do aluno e se
propuseram a fazer textos para a 2ª edição abordando não só este acontecimento
como outros ocorridos na escola e que elas consideraram machistas.
Acerca do ocorrido e de como o jornal pode ser um instrumento de
empoderamento da comunidade, Santos e Pinto (1992) ressaltam:

O jornal escolar, juntamente com outras formas e canais de


expressão, pode ser um espaço importante de os alunos tomarem a
palavra e darem a conhecer o que acham significativo ou que
precisam; tornarem públicas as suas inquietações e os seus sonhos;
trazerem ao debate os assuntos quentes; desenvolverem as distintas
linguagens gráficas; expressarem as suas capacidades e os seus
gostos; exercerem a crítica e a sugestão. Ao fazê-lo, não são apenas
os conteúdos que adquirem importância, mas igualmente os
processos e as aprendizagens absolutamente essenciais que a prática
do jornalismo escolar possibilita. (SANTOS; PINTO, 1992, p. 7 apud
FARIA; ZANCHETTA Jr., 2012, p. 142).

Como já foi dito, essa temática abrangia apenas a primeira parte do jornal.
No quadro a seguir, apresentamos os gêneros textuais produzidos nesta parte:

Gênero 1ª parte - tema: questões de gênero


Notícia Encontro do grupo Nísia Floresta
Editorial Sobre a edição e a escolha do tema
Artigo de opinião Machismo
Tirinha Machismo
Crônica Situações pelas quais a mulher passa por ser mulher
Resenha Livro de poesias “Outros jeitos de usar a boca” de Rupi Kaur, que trata
dos processos pelos quais a mulher tende a passar na vida
Horóscopo Homenagem ao dia da mulher
Playlist Homenagem ao dia da mulher
Entrevista Com o professor de filosofia da UFF sobre o tema “o atual cenário de
violência contra homossexuais, transgêneros e travestis na sociedade
brasileira”.
Pesquisa Violência contra homossexuais, transgêneros e travestis
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |377

Conto Questões de gênero. Pessoas que não se identificam com o gênero que
lhes foi atribuído quando de seu nascimento.
Obs: este texto veio na segunda parte do jornal devido a um erro na hora
de fazer a diagramação.
Quadro 3: Gêneros e temas da primeira seção da segunda edição do Jornal IFFolha.

No quadro a seguir apresentamos os gêneros textuais produzidos na


segunda parte, em que o tema era livre.

Gênero 2ª parte - tema: livre


Notícias 1-Competições esportivas de que os alunos do IFFPádua participaram
2- Sobre uma brincadeira entre dois professores (Elson rouba Yoda)
3- Criação da rádio da escola pelo grêmio do IFFPádua
4- 21 dias de ativismo no IFFPádua
5- Sobre a campanha para adoção de cães que vivem na escola
Entrevista Com o professor de Educação Física do IFF sobre a sua disciplina
Reportagem 1-Sobre os cursos técnicos do IFFPádua. Nesta edição, abordou-se o curso
de Automação.
2- Feira Anglo-Hispânica realizada no IFFPádua
3- Participação do clube de astronomia no Encontro Internacional de
Astronomia e Astronáutica
4- Sobre os alunos que já pensaram em desistir de estudar no IFFPádua
Poemas Diversos
Artigo de opinião 1-Crise da carne brasileira (operação Carne Fraca)
2-Cotas raciais
Textos de autoajuda Diversos
Playlist, labirinto Diversos
Tirinhas Diversos
Recados Sobre fatos que aconteceram no Instituto
Anúncio Publicitário Sobre as promoções da cantina
Quadro 4: Gêneros e temas da segunda seção da segunda edição do Jornal IFFolha.

Ao comparar a 1ª edição com a 2ª, é possível notar o quanto o jornal


evoluiu. O número de participantes e de textos cresceu significativamente, alunos
que diziam não gostar de escrever se interessaram pelo projeto e passaram a
produzir textos por vontade própria. E os alunos que estavam animados desde o
378 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

início, a cada dia se empolgavam mais, cada dia traziam uma ideia nova para
desenvolver ainda mais o projeto. Isso nos revela com clareza o quão importante
é esse modo de aprendizado, dentro e fora da sala de aula.
Assim que finalizamos a 2ª edição, os alunos tiveram a ideia de fazermos uma
camisa do Jornal IFFolha. A partir da 3ª edição, a foto da Equipe IFFolha, na
última página, é sempre tirada com a camisa oficial do jornal.

3.3 IFFolha 3ª Edição

A terceira edição do IFFolha foi publicada em dezembro de 2017. A


seguir apresentamos a capa desta edição e o link para acesso online:

(Inserir FIG4 MelinaeAnaBeatriz aqui)


Link para acesso: <https://issuu.com/jornaliffolha/docs/jornal_iffolha_3__edi____o> Acesso em 03
nov. 2018.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |379

O tema escolhido para esta edição foi bullying, depressão e suicídio. Os


alunos escolheram esse tema devido a alguns relatos de ocorrência de bullying no
Campus e a algumas tentativas de suicídio e relatos de pensamentos suicidas.
Também devido à grande comoção do Instituto em relação à campanha
“Setembro Amarelo”.
De acordo com Pinto apud Faria; Zanchetta Jr. (2012, p. 173), “o jornal
escolar não tem de ser um fator de perturbação; mas, se os assuntos importantes
forem perturbadores, o jornal não poderá escondê-los, mas, antes, tratá-los com
rigor.”
Essa temática abrangia apenas a primeira parte do jornal. No quadro a
seguir, apresentamos os gêneros textuais produzidos nesta parte:

Gênero 1ª parte tema: bullying, depressão, suicídio


Notícia Suicídio
Editorial Sobre a edição e a escolha do tema
Artigo de opinião Dois artigos sobre suicídio
Crônica 1- Suicídio
2- Depressão
Textos de autoajuda Vários sobre depressão
Tirinha 1- Bullying
2-Depressão
Resenha Livro de poesias “Como eu era antes de você” de Jojo Moyes, que aborda
a temática do suicídio
Poemas Vários sobre bullying, depressão e suicídio
Horóscopo Bullying
Entrevista 1- Com o psicólogo do Departamento de Saúde Mental de Pádua sobre o
tema depressão e suicídio
2- Com os professores do IFFPádua
Depoimentos Bullying
Pesquisa Bullying no IFFPádua
Quadro 5: Gêneros e temas da primeira seção da terceira edição do Jornal IFFolha.

No quadro a seguir, apresentamos os gêneros textuais produzidos na


segunda parte, em que o tema era livre.
380 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Gênero 2ª parte tema: livre


Notícias 1- Comemoração do dia do estudante no IFFPádua
2- Rede da amizade
3- Encontro de Folia de Reis em Pádua
4- O fim da Missão Cassini
5- Jogo entre servidores e alunos
Reportagem 1- Centro Cultural de Miracema
2- Os caminhos da Gestão Cultural de Pádua
3- Alunos do IFFPádua vão à Bienal 2017
4- Pierre de Fermat
5- Sacaiff
6- Estágio dos alunos do 3º ano
7- Sobre os cursos técnicos do IFFPádua. Nesta edição abordou-se o
curso de Administração.
Poemas Diversos
Artigo de opinião “Cura Gay”
Piadas Diversos
Playlist Diversos
Anúncio Publicitário Sobre as promoções da cantina
Indicações de filmes, Diversos
livros e séries
Quadro 6: Gêneros e temas da segunda seção da terceira edição do Jornal IFFolha.

3.4 IFFolha 4ª Edição

A quarta edição do IFFolha foi publicada em agosto de 2018 . A seguir


apresentamos a capa desta edição e o link para acesso online:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |381

Figura 5
Link para acesso: <https://issuu.com/jornaliffolha/docs/jornal_iffolha_4__edi__o> Acesso em 03 nov.
de 2018.

O tema escolhido para esta edição foi amizade. Os alunos escolheram


esse tema porque queriam um tema mais “leve” para a quarta edição, tendo em
vista que os temas da 2ª e 3ª edições foram mais delicados e impactantes.
Essa temática abrangia apenas a primeira parte do jornal. No quadro a seguir,
apresentamos os gêneros textuais produzidos nesta parte:
382 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Gênero 1ª parte tema: amizade


Reportagem Dia do amigo
Notícia Rede da amizade
Editorial Sobre a edição e a escolha do tema
Artigo de opinião Três artigos sobre amizade
Textos de autoajuda Vários textos sobre amizade
Tirinha Amizade
Curiosidades Amizade
Entrevista Com algumas pessoas do Campus (alunos, professores, funcionário
técnico-administrativo) sobre o tema amizade
Poemas Amizade
Recadinhos Amizade
Quadro 7: Gênero e temas da primeira seção da quarta edição do Jornal IFFolha.

No quadro a seguir, apresentamos os gêneros textuais produzidos na


segunda parte, em que o tema era livre.
Gênero 2ª parte tema: livre
Notícias 1- Primeira formatura no IFFPádua
2- I Seminário de Saberes sobre Violência Doméstica no Noroeste
Fluminense
3- Novos cursos recebidos pelo IFFPádua
Poemas Diversos
Recadinhos Diversos
Textos de autoajuda Diversos
Horóscopo Diversos
Reportagem 1-Sobre os cursos técnicos do IFFPádua. Nesta edição abordou-se o curso
de Edificações.
2- A praça da Matemática em Itaocara
Artigo de opinião 1-Matemática
2-Carnaval Rio 2018
Anúncio Publicitário Sobre cartas vendidas por um aluno
Entrevista Sobre a Escola de Artes Patápio Silva
Pesquisa Sobre sedentarismo
Indicações de filmes, Diversos
livros, séries e jogos
Caça-palavras Diversos
Quadro 8: Gêneros e temas da segunda seção da quarta edição do Jornal IFFolha.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |383

Devido à especificidade do tema, pela primeira vez, não produzimos uma


notícia de capa, mas sim uma reportagem.
Os resultados parciais do projeto demonstram a melhora dos conceitos
em língua portuguesa e produção textual, bem como o aumento do interesse dos
participantes em argumentar acerca do meio em que se inserem. Os alunos
demonstram muito interesse em produzir textos para o IFFolha, pois veem como
uma oportunidade de ter seus textos lidos por toda a escola. É uma forma de expor
o que pensam, de divulgar poesias, crônicas que costumam escrever no dia a dia.
É uma maneira eficiente de dialogar com seus pares.

4. Considerações finais

A atividade de produzir jornais escolares traz inúmeros benefícios ao


processo de ensino/aprendizagem, pois propicia o desenvolvimento dos alunos
em vários aspectos. O trabalho de escolher temas, buscar fatos, redigir e revisar
textos, entre outras atividades necessárias à realização de um jornal, incentiva a
leitura e a escrita, estimula a pesquisa, possibilita o acesso a informações e
opiniões diferentes e contribui para uma maior interação do aluno com a
realidade. Soma-se a isso a ampliação do universo dos alunos, assim como a
formação de leitores competentes. É um trabalho que envolve toda a comunidade
escolar, já que todos os servidores podem contribuir de alguma forma na produção
de cada gênero textual. Além disso, possibilita um trabalho integrado com todas
as disciplinas. Os alunos desenvolvem ainda mais a capacidade de trabalhar em
grupo e a visão crítica acerca da realidade.
Consideramos que os nossos objetivos foram cumpridos, e a grande
adesão da comunidade escolar ao projeto evidencia isso. Os temas propostos para
as edições foram abordados em diferentes gêneros textuais e de diversos pontos
de vista. O envolvimento dos estudantes com o jornal mostra que estamos no
caminho certo.
384 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Com a redistribuição da coordenadora do IFFolha para o Colégio Militar


de Belo Horizonte e com o afastamento da vice-coordenadora para cursar o
mestrado, o “Projeto Jornal IFFolha” foi transferido para o diretor geral do
Campus, com formação em Letras. Apesar da distância, desejamos ver o jornal
IFFolha crescendo cada dia mais. Acreditamos que ele possui um inegável papel
na construção do ambiente escolar do IFF Campus Santo Antônio de Pádua, sendo
uma das marcas do Instituto. Esperamos que, a cada edição, o IFFolha se torne
cada vez maior e mais democrático, pois, incentivando a produção textual, o
debate, a crítica, a livre expressão e a integração, é possível construir um ambiente
muito mais produtivo e saudável.

REFERÊNCIAS

COSTA VAL, Maria da Graça. Produção escrita: trabalhando com gêneros


textuais. Belo Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2007.

FARIA, Maria Alice; ZANCHETTA Jr., Juvenal. Para ler e fazer o jornal na sala
de aula. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2012.

NOVA ESCOLA. Jornal na sala de aula: leitura e assunto novo todo dia.
Disponível em: <http://novaescola.org.br/conteudo/324/leitura-de-jornal-na-
sala-de-aula.> Acesso em: 16 set. 2016.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |385

USO DA MODALIDADE EM DEPOIMENTOS DE REFUGIADOS NO BRASIL:


UM ESTUDO REFLEXIVO

Michele Cristine Silva de Sousa (UERJ)

1. Introdução

A análise dos depoimentos far-se-á sob os preceitos teóricos da Linguística


Sistêmico-Funcional (doravante, LSF) de Halliday (2004), que considera a língua
um instrumento de interação social, cujo correlato psicológico é a competência
comunicativa, ou seja, a capacidade de manter a interação por meio da linguagem,
com vista a analisar as suas funções, os seus usos em um determinado contexto. O
Funcionalismo analisa a língua em uso, pois compreende que a linguagem é
permeada por trocas sociais e como tal não pode ser analisada de forma
descontextualizada, por isso, na perspectiva funcional, não faz sentido analisar a
língua fora do texto, sem perceber a sua funcionalidade.
Na visão funcionalista, Halliday (1994) sustenta que a linguagem cumpre
funções nos contextos em que atua e deve ser interpretada em relação aos
contextos de situação e de cultura. Para entendermos contexto de situação,
podemos perguntar: que atividade está acontecendo? (campo); quem está
participando? (relações); como está ocorrendo esta troca? (modo). Essas variáveis
se inter-relacionam para que possamos entender a informação em sua plenitude.
Cada uma delas conecta-se a uma metafunção: ideacional (compreender o
campo), interpessoal (estabelecer relações) e textual (organizar as informações).
Dentro da perspectiva do arcabouço da LSF, cumpre apresentar as variáveis de
situação e os correspondentes metafuncionais da linguagem, com abordagem mais
aprofundada da metafunção interpessoal, isto é, na interação estabelecida, através
da linguagem, entre os atores sociais. Pela linguagem, os sujeitos podem expressar
o seu posicionamento diante de uma determinada situação, podem agir no mundo
efetivamente.
386 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

O presente artigo, orientado pelos construtos teóricos da Linguística


Sistêmico-Funcional hallidayana, tem como principal objetivo discutir as relações
interpessoais construídas pelos tipos de modalidade (modalização e modulação)
empregados em depoimentos de pessoas em situação de refúgio no Brasil.
Justifica-se tal análise, principalmente, devido à necessidade da abordagem da
temática na atual conjuntura social do país, na percepção de que a oração é vista
como troca de informações ou bens e serviços. Nas próximas seções, serão
apresentados: quadro teórico da LSF, metodologia de pesquisa, análise do corpus
e as considerações finais.

2. Uma breve conceituação sob a perspectiva sistêmico-funcional

Antes de iniciar os estudos sobre a modalidade, faz-se necessário


entender dois polos antagônicos dentro da Linguística. De um lado, tem-se o
Formalismo, no qual a análise da forma linguística é concebida a priori; de outro,
tem-se o Funcionalismo, no qual a função dos elementos linguísticos desempenha
um papel prioritário, momento em que a língua é vista como um elemento
essencial para a comunicação. Dentro dessa perspectiva funcionalista, a língua é
um instrumento de interação social, sendo, portanto, influenciada pelo contexto.
Texto e contexto, nessa perspectiva, estão inter-relacionados, ou seja, o
contexto influencia diretamente o que é produzido, por esse motivo, ao se ler um
texto deve-se levar em consideração o contexto de situação, que é o ambiente
imediato no qual o texto está de fato funcionando; e o contexto de cultura que se
relaciona ao ambiente sociocultural mais amplo, como os presentes nos grupos
sociais, escola, família etc. (FUZER; CABRAL, 2014), por esse motivo, o objeto de
análise precisa partir de textos reais, para que se percebam os sentidos utilizados
pelos autores do texto.
O contexto de situação é formado por três variáveis: o campo refere-se à
natureza da atividade social e envolve os atos executados e seus objetivos. A
relação refere-se ao conjunto de papéis dos agentes envolvidos em determinada
atividade. O modo refere-se ao papel que a língua desempenha na interação , à
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |387

organização simbólica do texto, à sua função no contexto, ao canal (fônico ou


gráfico), ao meio (falado ou escrito) da mensagem e ao modo retórico, incluindo
categorias como: persuasivo, expositivo, didático e outros. Essas variáveis
correspondem diretamente às metafunções da linguagem, ou seja, manifestações
dos propósitos usuais da língua: ideacional (compreender o meio), interpessoal
(relacionar-se com o outro) e textual (organizar a informação) (FUZER; CABRAL,
2014).
Na metafunção ideacional (experiencial), o indivíduo expressa a sua
experiência do mundo material ou de seu mundo interior, por esse motivo, tal
análise da oração é feita levando em consideração toda a sua estrutura, como:
participantes envolvidos, processo e circunstâncias. Os funcionalistas se
preocupam com as relações (funções) entre a língua como um todo (NEVES,
1997), por esse motivo, não faz sentido analisar apenas um componente da oração
separadamente. Relevante, sem dúvida, é entender o sistema de funcionalidade
das estruturas através da transitividade.
A metafunção interpessoal marca a linguagem como um processo de troca,
ou seja, a linguagem é usada para expressar opiniões, negociar relações, assim
como possibilitar ao sujeito construir significados. Por esse motivo, tal
metafunção não representa apenas as experiências externas, mas também
possibilita que falantes e ouvintes desempenhem funções da fala, como por
exemplo, informações (proposição), ou bens e serviços (proposta). A metafunção
interpessoal, cerne desse artigo, será mais bem explorada na próxima seção.
Por outro lado, na metafunção textual a oração é vista como mensagem,
momento em que os significados experienciais e interpessoais são organizados
(CABRAL; FUZER, 2014). No processo, em questão, o sujeito tenta construir o
enunciado de fácil compreensão para o ouvinte, busca estabelecer uma
comunicação coerente e coesa. Por conseguinte, deve-se levar em consideração,
para o estudo da metafunção textual, a Estrutura da informação (informação dada
e informação nova) e a Estrutura temática (Tema e Rema).
De acordo com Halliday (2002), todas essas funções ocorrem
simultaneamente e estão presentes na oração. Neste artigo, tem-se como principal
388 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

objetivo discutir as relações interpessoais construídas pelos tipos de modalidade


(modalização e modulação) em depoimentos de pessoas em situação de refúgio no
Brasil.

3. A metafunção interpessoal e as funções da fala

Desde os desenhos rupestres nas cavernas até os dias hodiernos, o


homem sempre buscou se comunicar com o mundo seja através da linguagem
verbal, seja através da não verbal. Tal fato mostra que os papéis dos falantes são
determinados pelo aspecto contextual, porque “estar no mundo” compreende um
posicionamento e uma tomada de atitude perante o outro. Por assim dizer, a
função interpessoal da linguagem analisa essas trocas linguísticas, do tipo de
proposição ou proposta que está ocorrendo, assim como das atitudes de avaliação
e julgamento que estão sendo trocadas. Essas trocas se realizam por meio do
sistema de MODO, que corresponde a orações interrogativas, declarativas e
imperativas. As interrogativas podem realizar-se através de perguntas ou de
questões que suscitam respostas do tipo sim/não. Já as declarativas podem ser
exclamativas e não exclamativas.
No evento interativo, falante e audiência adotam um papel de fala
específico que sinaliza para o ouvinte um papel complementar. Nas funções de
fala, os papéis estabelecidos são os de fornecer e de demandar informações ou
bens e serviços. Logo, o falante está dando alguma coisa ao ouvinte (fornecendo
informação) ou está demandando algo dele (solicitando informação). Na referida
teoria, fornecer significa ‘convidar a receber’ e demandar significa ‘convidar a
fornecer’. O próprio falante não somente faz alguma coisa, mas também requer
algo (HALLIDAY, 1989). Quando a língua é usada para trocar informações, a
oração tem a forma de uma proposição, ou seja, é algo que se pode argumentar.
Por outro lado, quando a língua é usada para trocar bens e serviços tem a forma
de uma proposta.
Dentre os recursos gramaticais que contribuem para explicitar a função
interpessoal da linguagem, podem-se encontrar: vocativos; palavras e expressões
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |389

expletivas; verbos modais, adjuntos modais, que podem indicar polaridade


(escolha entre positivo e negativo), modalidade (pode indicar probabilidade,
usualidade, prontidão ou obrigação), temporalidade e o modo; adjuntos de
comentários, como por exemplo, “honestamente”, “infelizmente”, e as expressões
modalizadoras, como por exemplo, “é preciso”, “é possível”. (FUZER; CABRAL,
2014). As informações ou bens e serviços trocados entre os participantes podem
ocorrer no polo afirmativo (Sim. Aceito) ou negativo (Não. Discordo). Quando
essas trocas estão em níveis intermediários, temos as modalidades.
Nas funções da fala “dar ou demandar informações” ou “bens e serviços”,
nem sempre exige do interlocutor uma resposta afirmativa ou negativa, mas pode
apresentar escalas intermediárias, como por exemplo, “às vezes”, “possivelmente”,
“infelizmente”, entre outras. Tais escolhas são definidas por Halliday (1994) como
modalidade.
Na abordagem funcionalista, a proposição (informação) é algo sobre o
que se pode argumentar, seja negando, afirmando, duvidando; e a proposta (bens
ou serviços) ocorre quando a oração não pode ser negada ou afirmada (FUZER;
CABRAL, 2014). Os falantes assumem papéis de acordo com as condições de
contexto, ou seja, de acordo com as situações socioeconômicas, particulares, entre
outras. Por esse motivo, tal posicionamento, seja de proposta, seja de proposição,
sempre estará relacionado às reações esperadas dos interlocutores, como por
exemplo, de apoio ou de confronto.

4. Modalidade

A modalidade é um recurso interpessoal utilizado para marcar o


posicionamento do falante, ou seja, sua opinião ou ponto de vista sobre um
determinado enunciado. Por ser um critério julgador, pode-se reconhecer que o
falante pode usar a linguagem apenas para dar/solicitar informações, com as
proposições (Modalização), com graus de probabilidade ou usualidade, ou pode
usá-la para demandar uma atitude do interlocutor, com propostas (Modulação),
com graus de obrigação e inclinação.
390 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

4.1 Modalização

Como foi mencionada, a Modalização, ou “Modalidade epistêmica”


ocorre em proposições, isto é, quando na comunicação ocorre troca de
informações entre o falante e seu interlocutor. Essas informações são expressas
por graus de probabilidade (“pode”, “deve”) ou de usualidade (“frequentemente”,
“raramente”, “às vezes”, “com frequência”, entre outros).

QUADRO 1- Modalização
Ex1: O time pode ser o campeão Probabilidade: o grau indica uma
possibilidade
Ex 2: O professor, normalmente, Usualidade: o grau indica uma
viaja nas férias. frequência

No exemplo 1, caso o falante tivesse usado “deve ser”, a frase teria seu
sentido alterado, porque “deve” marca uma certeza maior do que “pode”, que, no
caso, indica uma possibilidade. Assim, a escolha entre “deve” ou “pode” marca
uma tomada de posicionamento do falante, suas reais intenções, ou simplesmente,
o que ele deseja que o interlocutor entenda da sua mensagem.

4.2 Modulação

A Modulação (Modalidade deôntica) manifesta-se através de comandos,


ofertas e sugestões do falante ou escritor para estabelecer relações com o
interlocutor, com graus de obrigação ou de inclinação (HALLIDAY, 1994). O grau
da obrigação é expresso por meio de expressões como: “necessário”, “aceitável” e
“permitido”; o da inclinação, por: “determinado”, “desejoso” e “inclinado”.
Também podem aparecer os verbos modais (“dever”, “deveria”) e expressões
como: “é necessário”, “é preciso” etc. Exemplo:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |391

QUADRO 2- Modulação
Ex1: É preciso ter urgência no Obrigação
transplante de coração.
Ex2: Determino que você vá embora. Inclinação

No exemplo 1, “é preciso” marca o posicionamento do falante, que, no caso,


é de obrigação, isto é, ele quer que “o transplante de coração seja feito
rapidamente”. Já no exemplo 2, o falante marca uma inclinação no discurso, ao
enunciar que “determina que você vá embora”.
Salienta-se que tanto a Modulação quanto a Modalização apresentam
graus intermediários entre os polos positivos e negativos. Além disso, o valor de
julgamento, alto, médio ou baixo, marca a opinião do leitor, pois o valor mais alto
é o que se encontra mais próximo do polo positivo, já o valor mais baixo está
próximo do polo negativo (FUZER, CABRAL, 2014).

5. Metodologia

Este estudo tem como corpus seis depoimentos de refugiados do Congo


veiculados no site da BBC, produzidos na sede da Cáritas Arquidiocesana do Rio
de Janeiro, no Bairro do Maracanã, zona norte. Tais depoimentos foram
analisados de forma individual, com base na pesquisa qualitativa, pois de acordo
com Malhotra et al (2005), o objetivo da pesquisa qualitativa é a obtenção da
compreensão qualitativa do problema, ou seja, tem-se como prioridade analisar o
objeto em si, sem levar em consideração o quantitativo.

6. Gênero depoimento

A LSF concebe o gênero dentro do contexto de cultura, ou seja, todo


texto está permeado e é influenciado por questões de poder e de ideologia de um
determinado espaço cultural. Por esse motivo, gênero é uma atividade social em
392 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

etapas, com objetivos, na qual as pessoas organizam seus discursos (Eggins, 1994;
Martin, 1992). Assim, os usuários de uma língua reconhecem um gênero devido
ao seu uso social, aos seus objetivos imediatos para a comunicação. Hasan (1989)
sugere que tais textos (orais, verbais e não verbais) possuem uma estrutura
potencial a qual prevê elementos obrigatórios e opcionais, por isso, o usuário de
uma língua pode reconhecer um gênero devido aos seus aspectos estruturais
frequentes e pela ausência de outros.
O depoimento é considerado um texto narrativo, em 1ª pessoa, na qual
o indivíduo relata episódios e acontecimentos reais da sua vida pessoal. Nos
depoimentos proferidos na sede da Cáritas, os sujeitos narraram fatos pertinentes
à saída do seu país de origem e de como foram recebidos no Brasil.

7. Análise do corpus

O site da BBC coletou os seis depoimentos na sede da Cáritas


Arquidiocesana, no bairro do Maracanã. Na ocasião, os repórteres conseguiram
conversar com seis congoleses, residentes em diversos bairros do Rio de Janeiro.
Por motivo de ética e para preservar os indivíduos, os nomes descritos nas
narrativas são fictícios.

Depoimento de Pierre:
"Sou de Kinshasa. Estou aqui há quase cinco meses. Ainda não saiu meu
refúgio.
Eu fugi da guerra na minha terra, porque era membro de um partido, eu fugi
por causa dessas coisas de política. Se ficasse lá podiam me matar. Antes de fugir, eu
estava preso. Depois consegui fugir e arranjei uma maneira de chegar aqui no Brasil.
Não vim porque gostasse antes do Brasil, eu estava precisando de um lugar
onde eu pudesse viver em paz, por isso fiquei aqui.
Mas, desde que eu cheguei aqui, não está nada bom. Estou sozinho aqui. A
gente fugiu do sofrimento, mas aqui está no fogo, dentro do sofrimento.
Aqui não há consideração pelos refugiados. Se você solicita um trabalho em
qualquer lugar e apresenta os documentos que mostram que você é refugiado, eles
não deixam trabalhar.
O brasileiro pensa que o refugiado é um homem que matou no país dele e
fugiu para cá, mas não é. O refugiado é uma pessoa que estava sofrendo na terra dele
e fugiu para viver uma nova vida."
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |393

O depoimento 1 relata os motivos que levaram o congolês Pierre a


deixar seu país. Por ser meramente descritivo e narrativo, é possível perceber que a
estrutura do texto está repleta de “informações”, com o simples intuito de dar um
relato fiel sobre as angústias vivenciadas no país de origem (“eu fugi da guerra na
minha terra, porque era membro de um partido, eu fugi por causa dessas coisas de
política”) e o preconceito sofrido no país de refúgio, como por exemplo, “o brasileiro
pensa que o refugiado é um homem que matou no país dele e fugiu para cá, mas não
é”. Esses valores configuram uma proposição, ou seja, são trocadas informações sobre
a situação de vida do refugiado, como por exemplo, “se ficasse lá podiam me matar”,
por isso, Pierre não ficou e quis partir.
Ressalta-se que o texto é repleto de advérbios de negação “não”, o que marca
a polaridade negativa da narrativa. Tal escolha não é por acaso, visto que o discurso
proferido fala sobre abandono, preconceito e refúgio, palavras que carregam uma
carga semântica muito forte de negatividade.

Depoimento de Carlos
"Eu fazia parte de um partido político opositor. A gente começou a fazer
manifestação e isso causou problema para nós. Eu sou enfermeiro formado e
trabalhava como socorrista. Muitos de nós foram presos e outros foram executados.
Aí começou a dar muito medo.
Eu decidi vir para o Brasil porque era o caminho mais fácil para conseguir o
visto. Hoje, no país da gente, para conseguir o visto da França ou Canadá, é muito
difícil, então o Brasil foi mais fácil. O Brasil abriu as portas.
Demorei mais ou menos dois anos para conseguir trabalho. São essas as
maiores dificuldades que a gente tem.
À primeira vista, as pessoas recebem muito bem a gente, com muito calor.
São curiosos, fazem muitas perguntas. Tem também outros que têm preconceito. O
fato de que a gente é da África já faz com que muitos tirem a conclusão de que a
gente é traficante, não sei por quê.
Pessoalmente, esse negócio de preconceito é muito difícil ter certeza. As
pessoas fazem isso com muita inteligência, para não parecer ser racista, entendeu? É
muito difícil.
Uma vez, o que eu percebi foi na Cinelândia. Eu estava andando
normalmente e tinha uma moça na minha frente. Ela se assustou do nada e começou
a fugir. Mas isso não tem nada a ver com o fato de eu ser refugiado... acho que ela não
sabia que eu sou estrangeiro, é por causa de ser negro. É uma coisa séria ser refugiado
e também (ter) a cor da gente, os refugiados brancos acho que não encontram as
mesmas dificuldades que a gente.
Eu desejo fazer a minha vida aqui. Eu vivo com uma brasileira, penso em ter
um filho com ela, então viver feliz aqui, porque não é muito diferente da minha terra
não."

O segundo depoimento também narra a história de um congolês. Da


mesma forma que o primeiro, a estrutura do texto apresenta informações
394 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

relacionadas ao motivo do refúgio no Brasil (“eu fazia parte de um partido político


opositor”, “eu decidi vir para o Brasil porque era o caminho mais fácil para
conseguir o visto”), assim como o preconceito que sofreu (“o fato de que a gente
é da África já faz com que muitos tirem a conclusão de que a gente é traficante,
não sei por quê”).
O texto é repleto de informações, ou seja, é marcado por proposições, pois
o falante tem o intuito de fornecer os reais motivos de ter fugido do seu país de
origem e de ter pedido refúgio no Brasil. Além das proposições, esse depoimento
apresenta um questionamento (“as pessoas fazem isso com muita inteligência,
para não parecer ser racista, entendeu?”), como se quisesse que o outro
(interlocutor) compreendesse a situação do preconceito. Além disso, a presença
do verbo “achar” confere ao texto um caráter mais pessoal, o que é compreensível
por se tratar de um depoimento.

Depoimento de Pascal
Cheguei no Brasil há três meses. Estou estudando português, eu era militar,
tenho facilidade porque militar tem que estudar outras línguas. Sou carioca, um
antepassado morou aqui, ele veio para cá como escravo e depois voltou para o Congo.
Por isso eu sou carioca.
Uma pessoa me ajudou, me trouxe aqui. Ele falou "vamos para a América",
eu achei que estivéssemos indo para os Estados Unidos da América. Mas ele me
deixou aqui, por isso eu estou estudando.
Aqui estou morando na Central do Brasil. Estou alugando minha casa,
porque aqui (na Cáritas) me ajudam, mas o dinheiro daqui às vezes não vem no
tempo, às vezes fica dois meses sem vir. Aqui me pagam R$ 300. Só dá para pagar o
quarto.
Estou procurando emprego para trabalhar. Se Deus permitir, eu não quero
mais voltar para o Congo não, eu sou carioca.
Estou vendendo água (como camelô) para pagar a casa, mas os guardas me
perturbam muito.

O depoimento de Pascal apresenta informações (proposições) relacionadas


à forma de ingresso no Brasil (“uma pessoa me ajudou, me trouxe aqui. Ele falou
‘vamos para a América’”). É possível analisar a incidência do adjunto “às vezes”,
como recurso usado pelo falante para modalizar o seu discurso (“mas o dinheiro
daqui às vezes não vem no tempo, às vezes fica dois meses sem vir”); compreende-
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |395

se que tal recurso está ligado ao grau de usualidade, ou seja, incide sobre a
frequência da informação, que, no caso, está mais próxima do polo negativo.
De igual modo, convém salientar a presença do advérbio de negação “não”,
como marcação de um discurso altamente negativo sobre não querer voltar para
o país de origem (“se Deus permitir, eu não quero mais voltar para o Congo não,
eu sou carioca”). Entende-se, portanto, que o falante enfatiza o advérbio “não”
para reforçar o caráter negativo da experiência de ter vivido no Congo.

Depoimento de Ben
"Estou há seis meses no Brasil. Eu morava perto de Goma, na Província do
Kivu do Norte (no Congo). Lá a situação está muito complicada. A minha esposa foi
baleada e morreu e eu fugi para Uganda, onde consegui o documento para vir para
cá para o Brasil.
A vida aqui para o refugiado é muito complicada. Chegamos aqui e não tem
casa. A gente paga aluguel e é muito caro. Um quartinho, uma quitinete é R$ 400,
R$ 300, mas aqui (na Cáritas) nós recebemos R$ 300.
Eu moro na favela. Tem outros congoleses perto, mas eles não podem me
ajudar, eles também têm dificuldades.
A favela é muito complicada, mas a gente tem que acostumar. É muito
complicado, o barulho de tiro, fica complicado para nós.
Estou feliz (de estar aqui). Eu cheguei há pouco, demora até a gente se
acostumar com o país, mas vai dar certo. Vou ficar aqui, com certeza."

O depoimento de Ben é parecido com os anteriores, pois retrata as


dificuldades vividas por ele no Congo e no Brasil. Assim como os demais, as
informações (proposições) são o cerne do texto, marcadas por diversos recursos
léxico-gramaticais, como o verbo modal (“pode”), “mas eles não podem me ajudar,
eles também têm dificuldades” e pelo grupo adverbial (“com certeza”), “vou ficar
aqui, com certeza”, afirmando o desejo de permanecer no Brasil, apesar das
dificuldades enfrentadas como refugiado.
Ressalta-se a grande incidência do adjetivo “complicado(a)”, “a vida aqui
para o refugiado é muito complicada”, ou seja, difícil, o que marca um discurso
negativo sobre a vida no Brasil, por assim dizer, marca a sua própria identidade
enquanto pertencente a uma sociedade, a um contexto de cultura.
396 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Depoimento de Angélica
"Nasci em Kinshasa, na capital (da República Democrática do Congo). Eu
era estudante e fui fazer um estágio em um orfanato. Lá havia pessoas traficando
crianças. Eu sabia que lá tinha tráfico de crianças e queria denunciar, mas começou
uma confusão, me ameaçaram.
Eu moro na casa de um outro congolês, em uma favela de Brás de Pina. A
maior dificuldade é a língua, que é um pouco difícil.
Eu moro na favela, pode ter algum problema. Tem muitos tiros lá, eu ouço
muitos tiros. Eu tenho vontade de sair de lá.
Não posso voltar para o Congo, porque as pessoas que me ameaçaram estão
lá.
Eu vim sozinha para cá, é muito difícil. Mas, mesmo assim, quero ficar aqui
pra sempre. Estou alegre porque não estou mais me sentindo ameaçada.”

O depoimento de Angélica também apresenta informações (proposições),


com o intuito de relatar os motivos que a fizeram sair do Congo e vir para o Brasil.
Assim como os anteriores, seu depoimento é marcado pelo caráter negativo da
experiência, desde a língua (“a maior dificuldade é a língua, que é um pouco
difícil”), até o local de morada, favela (“tem muitos tiros lá, eu ouço muitos tiros.
Eu tenho vontade de sair de lá”). Para reforçar o caráter negativo, o falante faz
uso do advérbio de negação (“não posso voltar para o Congo”), assim, deixa claro
que de forma alguma gostaria de voltar para o país de origem.
Além disso, é possível perceber recursos modais, como por exemplo, o
verbo “pode” (“eu moro na favela, pode ter algum problema”); assim ao modalizar,
o falante retira toda a carga depositada no verbo “tem”, ou seja, ele ameniza o seu
próprio discurso.

Depoimento de Camille
"O país (Congo) não está bom, está em guerra. Foi uma grande história para
chegar aqui. Eu vim de avião, uma pessoa me ajudou. Fizeram documentos falsos.
Mas, depois que cheguei, a pessoa me deixou na rua com as crianças e foi embora.
Tive que dormir na rua no primeiro dia com as três crianças.
Tenho três filhos. O primeiro tem 9, essa tem 3 e um bebê que nasceu aqui
e tem três meses. Não tenho ninguém que possa me ajudar, estou sozinha. Se não
fossem os vizinhos, não sei como seria minha vida. O dinheiro (que ganho da Cáritas)
só dá pra pagar o aluguel da casa.
Eu estou triste porque meus filhos não têm leite para tomar, as outras estão
com fome. Eu não tinha idéia de que no Brasil seria ruim assim, eu não imaginava
que um dia fosse dormir com fome no Brasil."
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |397

O último depoimento também apresenta informações (proposições)


relacionadas à situação vivida por Camille no seu país de origem e no Brasil.
Ressalta-se o caráter negativo da experiência (“mas, depois que cheguei, a pessoa
me deixou na rua com as crianças e foi embora”), além disso, é possível perceber
a polaridade negativa identificada pela presença do advérbio de negação “não”
(“eu não tinha idéia de que no Brasil seria ruim assim”); essa marcação denota a
interpessoalidade no discurso.
Destaca-se a presença de palavras com cargas semanticamente negativas,
como: “guerra”, “ninguém”, “sozinha”, “triste”, “fome”, “ruim”, entre outras,
marcas que emolduram um discurso de um refugiado sem esperanças no Brasil.
Tal percepção, sem dúvida, é entoada pela escolha das palavras proferidas no
discurso, por esse motivo, nota-se que tudo que foi proferido foi sistematicamente
pensado.

8. Considerações Finais

A metafunção interpessoal da linguagem tem como princípio a interação


entre os sujeitos. Por meio dessa troca são reconhecidos os papéis sociais
desempenhados em um determinado contexto. Com base nessa informação e de
posse das análises dos seis depoimentos dos refugiados, é possível perceber que os
locutores têm uma visão negativa sobre a situação do refúgio, tanto em relação ao
país de origem, quanto em relação ao país de destino. Tal percepção, sem dúvida,
é notada pela presença constante de palavras que contém uma carga semântica de
negatividade, como: “preconceito”, “complicada”, “guerra”, “sozinha”, “triste”,
“fome”, “ruim”, entre outras. Além disso, o aspecto é reforçado pelo uso do
advérbio de negação “não”, em vários momentos do depoimento.
Ressalta-se que os depoimentos compreendem informações (proposições), em
função justamente da própria natureza do gênero, que, como tal, tem o intuito de
comunicar ao leitor as mazelas sofridas pelo refugiado, assim como suas
perspectivas de vida. Importa destacar, em especial, a presença de recursos
398 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

modalizadores, como o verbo modal “pode”, o grupo adverbial “com certeza”, o


adjunto “às vezes”, entre outros recursos. Essas características mostram que o
locutor quis modalizar (Modalização) o discurso, ou seja, ele utilizou recursos
para indicar seu posicionamento em relação ao que diz ou ao seu interlocutor.

REFERÊNCIAS

CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova Gramatica do Português


Contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

DEPOIMENTOS BBC. Disponível em:


http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/03/130311_refugiados_depoime
ntos_cq#Acesso em: 10 mar. 2016.

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Publishers, 1994.

FUZER, Cristiane; CABRAL, Sara Regina Scotta. Introdução à Gramática


Sistêmico-Funcional em Língua Portuguesa. Campinas, São Paulo: Mercado das
Letras, 2014.

HALLIDAY, M; MATTHIESSEN. An Introduction to Functional Grammar .


London: Hodder Arnold, 2004.

HASAN, R. The structure of a text the identity of text. In: HALLIDAY, M. A. K.;
HASAN, R. Language, context and text: aspects of language in a social-semiotic
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MALHOTRA et al. Introdução à Pesquisa de Marketing. São Paulo: Pearson


Prentice Hall, 2005.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |399

MARTIN, J.R. Context: register, genre and ideology . ______. English text:
systems and structure. Philadelphia/Amsterdam: John Benjamins Publishing
Company, 1992.

NEVES, Maria Helena de Moura. A Gramática Funcional. São Paulo: Martins


Fontes, 1997.
400 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

A ESCOLA EM CONTEXTO MULTILÍNGUE: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE


PROFESSORAS DA REDE PÚBLICA DE BOA VISTA - RR

Nilmara Milena da Silva Gomes (UERR)

1. Introdução

Vivenciamos, neste século, uma preocupação em viabilizar o ensino com


base na mobilização de saberes múltiplos, determinados pelas cobranças sociais e
pelo imediatismo. O ensino pautado em discursos homogêneos cedeu lugar ao
diálogo, à diversidade, aos (des)encontros e, sobretudo, à compreensão de que o
sentido sempre pode ser outro.
Com base nessas reflexões e na esteira de Fairclough (2001b) e Goffman
(1975), este trabalho apresenta um recorte da minha dissertação que teve como
mote analisar as representações de língua construídas no discurso de professoras
de língua portuguesa, em que foi necessário analisar as representações de escola
construídas no discurso das professoras, a fim de observar se os motivos que as
levaram a optarem pela profissão docente refletem nas representações de escola
e, por conseguinte, contribuem para a construção de sistemas de conhecimento e
crença sobre a LP. Participaram da pesquisa apenas professoras porque os
professores convidados a participar da discussão justificaram sua recusa na falta
de tempo disponível para esse tipo de atividade.
À vista disso, optei pelo Grupo Focal (BARBOUR 2009) por ser um recurso
de coleta de dados qualitativo que possibilita a investigação das crenças e atitudes
das professoras sem produção prévia, revelando no fio do discurso a formação
discursiva constitutiva do processo de produção da prática discursiva. Contudo,
devido ao curto espaço desse artigo, me detenho à exposição das representações
de escola-prédio, assim nomeadas porque os desenhos apresentaram
configurações características de um prédio.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |401

2. Teoria Social do Discurso

Um dos pressupostos teóricos da presente pesquisa que encontrei


desenvolvido na perspectiva da Teoria Social do Discurso é o de que, ao lançar
mão do uso da linguagem como discurso, a investigação, impreterivelmente,
seguirá um método informado social e teoricamente, como forma de prática
social. Isso implica que esse uso é um modo de ação e de representação
historicamente situado, envolto por uma relação dialética com o contexto social,
ou seja, o discurso integra o mundo social, constituindo esse mundo e sendo
constituído por ele.
A centralidade atribuída à linguagem como mediadora da constituição
social é um ponto em comum entre os postulados teóricos de Fairclough (2001b)
e Goffman (1975). Para ambos, o sujeito se constitui imerso no social. Ao construir
o conceito de representação social, Goffman (1975) destaca que o mundo é um
teatro e cada um, sozinho ou em grupos, representa suas ações cotidianas, no
intuito de ser aceito pelas pessoas em diferentes grupos sociais.
Para Fairclough (2001a, 2001b, 2003, 2012), o discurso é visto como
forma de prática social, intimamente ligado ao situacional, institucional e societal
porque lida não apenas com o interior dos sistemas linguísticos, mas,
principalmente, com a investigação de como esses sistemas funcionam na
representação de eventos e na construção de relações sociais. Desse modo,
estabelece-se uma relação dialética entre discurso e estrutura social, em que o
discurso é uma prática tanto de representação quanto de significação do mundo,
constituindo e construindo as relações sociais e os sistemas de conhecimento e de
crença.
A prática social, moldada e restringida pelas estruturas sociais, constitui
a prática discursiva que envolve processos de produção, distribuição e consumo
textual, sendo variável a natureza desses processos entre diferentes tipos de
discurso, de acordo com fatores sociais. Ou seja, como pontua Fairclough (2001b,
p. 107), “os textos são produzidos de formas particulares em contextos sociais
específicos [...] são consumidos diferentemente em contextos sociais diversos”.
402 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Nessa perspectiva, os contextos sociais definem a forma como os textos


serão explorados e consumidos, ou seja, dependerá dos modos de interpretação
disponíveis, que são vistos como socialmente restringidos num sentido duplo,
primeiro pelas estruturas sociais efetivamente interiorizadas — fazendo parte
delas as normas, ordens do discurso, convenções estabelecidas para a produção,
distribuição e consumo de textos — constituídas mediante prática e luta social.
Segundo, pela natureza específica da prática social a qual determina os recursos
dos membros a que se recorre e como a eles se recorre (FAIRCLOUGH, 2001a).
Essa concepção implica considerar que a produção discursiva é
organizada em forma de estruturas e que cada enunciado novo é uma ação
individual sobre tais estruturas, que podem tanto contribuir para a continuidade
quanto para a transformação de formas padronizadas (RAMALHO; RESENDE,
2006; RAMALHO; RESENDE, 2011). Nesse sentido, Bourdieu (1989, p. 9) afirma
que os sistemas simbólicos “só podem exercer um poder estruturante porque são
estruturados”. Desse modo, os sistemas simbólicos funcionam como estruturas
estruturadas — formadas pelas normas, ordens do discurso e convenções
estabelecidas para a produção, distribuição e consumo de textos — e como
estruturas estruturantes — que são constituídas mediante prática e luta social, no
intuito de ressignificar regras e convenções e desse modo construir novas
estruturas.
Para a Teoria Social do Discurso, o poder é temporário, com equilíbrio
apenas instável, como veremos nas análises que seguem. Por isso relações
assimétricas de poder são passíveis de mudança e superação. Bourdieu (1989)
enfatiza que o poder simbólico é um poder invisível que só pode ser exercido com
a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo
que o exercem. Assim, o poder está implícito nas práticas sociais cotidianas,
distribuídos e constantemente empregados. Além do mais, o poder só é
consentido mediante o ocultamento de seus próprios mecanismos, do contrário
será moldado e reinstrumentalizado de acordo com as necessidades sociais
(FAIRCLOUGH, 2003).
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |403

3. O contexto da pesquisa

Roraima, situado mais ao norte do Brasil, possui a maior parte da extensão


territorial localizada acima da Linha do Equador. Estado, que por possuir
fronteiras internacionais com dois outros países, a Venezuela e a República
Cooperativista da Guiana, antiga Guiana Inglesa, como afirmam Kanai e Oliveira
(2011, p. 104), ocupa um “[...] espaço fundamental para a economia transnacional
e a integração infraestrutural entre os países dessa região”. Por isso, está incluído
no processo de modernização da Amazônia, iniciado na década de 60. O mapa a
seguir mostra a divisão política do Brasil, com destaque para Roraima e a ligação
com os países fronteiriços.
Nesse panorama, as migrações de trabalhadores, indígenas e aventureiros
traçaram uma nova ordem para o espaço e a realidade roraimense. Assim,
Roraima apresenta diversidades e contradições, “onde muitos se encontram, onde
os nexos se fazem no encontro, nem sempre pacífico e consensual entre ‘nós’ e
‘eles’, entre o ‘eu’ e o ‘outro’” (SOUZA, 2009, p. 40).
Outro fator que impulsionou a migração e a consequente diversidade
linguística foi a abertura dos eixos rodoviários que proporcionou um movimento
ininterrupto de migrantes, concentrados ao longo das estradas, aumentando as
taxas intensas de crescimento demográfico em Roraima, principalmente em Boa
Vista. Em seguida, segundo Florisse e Oliveira (2011), os concursos públicos
foram os empregos que mais atraíram os migrantes, já o comércio atrai
guianenses, venezuelanos, bolivianos.
Boa Vista foi o primeiro povoamento caracteristicamente urbano de
Roraima e por isso sua história se confunde com a do Estado. No século XIX, várias
fazendas se instalaram ao longo dos rios que compõem a bacia do Rio Branco,
iniciando, assim, a formação de um pequeno povoado que se chamou Freguesia
de Nossa Senhora do Carmo, sendo posteriormente chamado de Boa Vista do Rio
Branco. Na década de 30, uma fazenda do Império, que originou uma pequena
população, passou a chamar-se Boa Vista e deu nome definitivo ao lugar.
404 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

É a cidade mais antiga do estado de Roraima, fundada em 1890. Seus


primeiros habitantes foram os índios e os migrantes, principalmente os
nordestinos, atraídos pela pecuária e pelo extrativismo. Nas últimas três décadas,
houve um crescimento populacional impressionante em Roraima e os processos
migratórios foram os principais responsáveis por esse crescimento demográfico,
concentrado grande parte em Boa Vista.
À heterogeneidade linguística encontrada em Boa Vista liga-se a presença
da população vinda de países vizinhos, sobretudo da Venezuela e Guiana que
levam à Boa Vista a sua língua com inúmeras variações linguísticas, o inglês e o
espanhol, respectivamente, “tornando-se mais um elemento neste mosaico
cultural denominado Roraima” (ESTAEVIE, 2011, p. 485). Assim, tanto Roraima
quanto Boa Vista possuem grande pluralidade cultural decorrente da formação de
seus habitantes, apresentando ainda certa particularidade que é o número de
comunidades indígenas existentes no estado.
Nesse contexto, investigar as representações de escola construídas no
discurso de professoras de LP é pertinente porque Boa Vista é marcado pela
diversidade linguística e cultural promovida pelo convívio das diferentes etnias
indígenas, não indígenas, pela presença de migrantes de toda parte do país e
imigrantes de vários países, principalmente Venezuela. Isso posto, exponho a
seguir o tipo de pesquisa que adotei.

4. Grupo focal: definição, origem e método

Grupo focal é definido como um conjunto de pessoas selecionadas, a partir


de características em comum, reunidas em um mesmo espaço e tempo, por
pesquisadores, para discutir e comentar um item, que é objeto da pesquisa, a partir
da sua experiência pessoal. Esta metodologia centra-se na pesquisa de cunho
qualitativo por se caracterizar pela busca de respostas “acerca do que as pessoas
pensam e quais são seus sentimentos” (ASCHIDAMINI; SAUPE, 2004, p. 10).
A utilização do grupo focal cresceu a partir do que Merton, Fiske e Kendall
(1956 apud BYERS et al, 1991) chamaram de “entrevista focada”, um grupo de
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |405

discussão formado por oito a doze participantes, facilitado por um moderador que
se concentra em um determinado tema ou temas.
Na ADC, os recursos utilizados na coleta dos dados são inúmeros, advindo
de tradições linguísticas anteriores à Análise do Discurso, a exemplo da Teoria
dos Atos de Fala, da Pragmática e da Retórica. No entanto, analisar o discurso do
ponto de vista proposto nesta pesquisa significa defender o uso dinâmico da
linguagem e seus efeitos, pressupondo-a como efeito da própria forma linguística,
sendo ao mesmo tempo criadora e indicadora da realidade social, diferentemente
das outras abordagens citadas anteriormente em que a linguagem é tida como uma
simples marca de um grupo social.
Nesta perspectiva, o grupo focal foi escolhido como método de coleta de
dados por três motivos: primeiro, por contribuir para a formação (continuada) das
professoras de língua portuguesa, de modo a refletir criticamente sobre sua
prática, sobre o próprio conhecimento, assim como para propor e executar ações
coerentes com a consciência linguística crítica, é que oportunizei, nas dinâmicas
do grupo focal, espaços para reflexão crítica sobre o ensino de Língua Portuguesa.
Segundo, por tornar possível a avaliação das crenças e atitudes dos professores em
relação a políticas e procedimentos no local de trabalho, no que se refere ao
ensino de LP, como também por fornecer informações mais detalhadas, já que o
grupo está a escutar uns aos outros, discutindo sobre uma mesma temática,
podendo surgir tópicos relevantes que o mediador não havia considerado ao
elaborar a entrevista. Terceiro, porque os grupos focais “podem estimular
mudanças significativas e levar participantes a redefinirem seus problemas de
uma forma mais politizada” (BARBOUR, 2009, p. 31). Nesse sentido, conforme
afirma Byers et al (1991, p. 64):

Os grupos focais têm o potencial de ser uma excelente fonte de


dados qualitativos (Zeller, 1986). Como Goldman (1962) sugere, o
grupo de foco oferece aos pesquisadores a oportunidade de ver
“processo” em ação, oferecendo aos pesquisadores a oportunidade
de observar a discussão do tema em foco entre os participantes,
como eles respondem e reagem ao outro. Tal exploração pode expor
atitudes subjacentes, opiniões e padrões de comportamento.
406 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Assim, após visitar inúmeras escolas, o grupo focal foi formado por 10
professoras de língua portuguesa que lecionam do 6º ao 9º ano em escolas situadas
no centro de Boa Vista - RR. Foram realizados 10 encontros, dispostos em duas
semanas, com duração de 2h cada, totalizando 20h de discussões. Os encontros
foram realizados à noite, das 18 às 20h, no horário em que as professoras cumprem
2h referentes a reuniões pedagógicas, em um espaço cedido por uma escola
estadual. Como os encontros foram filmados e gravados em áudio, o grupo assinou
o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) e o Termo de Autorização
de Uso de Imagem e Voz, que implicaram no sigilo dos nomes das participantes
da pesquisa.
Como recomendado por Barbour (2009), durante os encontros eu registrei
as observações imediatas sobre a discussão do grupo focal, anotando qualquer
característica sobressalente e minhas impressões sobre os temas e os participantes
mais envolvidos. Ao final, transcrevi os encontros e selecionei os excertos
relevantes para a pesquisa.
O planejamento do encontro em que tratei da representação de escola
demandou a elaboração de uma proposta metodológica multidimensional,
realizada a partir da coleta e do processamento de um conjunto diversificado de
informações advindas de desenhos produzidos individualmente e das discussões
em grupo. Assim, entreguei para as professoras cartolina, lápis de cor variados,
cola colorida e pedi que sentassem distante umas das outras para que os desenhos
das colegas não as influenciassem. Em seguida, pedi para que mostrassem e
apresentassem os desenhos, o que desencadeou discussões ricas e muito
produtivas, apresentadas a seguir.

5. Escola-prédio: representações sociais no discurso das professoras

As representações, por serem reveladoras de uma realidade social, atuam


orientando as ações dos sujeitos e criam conhecimentos expressos a partir de
imagens. Estas imagens buscam referência no real e no imaginário e vão adquirir
coerência a partir de um movimento do olhar que compreende a escola como um
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |407

espaço simbólico. Representar a escola por meio do desenho é uma das formas de
expressão da experiência, da visão e das crenças que constroem e constituem as
professoras durante os anos vividos nesse espaço.
Nesse sentido, analiso o discurso juntamente com os desenhos produzidos
por quatro professoras em um encontro de grupo focal, a fim de destacar aspectos
comuns e incomuns das representações de escola. As representações foram
nomeadas como escolas-prédio porque os desenhos apresentaram configurações
características de um prédio, como exposto abaixo.

Imagem 1 – Ane

Imagem 2 – Carolina
408 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Imagem 3 – Elen

Imagem 4 – Margarida

As escolas-prédio expressam caráter de monumento, no intuito de causar


deslumbramento, evocando sentimento de respeito e contemplação. Os desenhos
atingem quase os limites da página, descortinando um sentimento de compressão
do ambiente. Tais representações propagam a ação do poder político, ostentando
status de elementos representantes e divulgadores das elites sócio-políticas, tais
como piscina olímpica (Ane e Elen, lado inferior direito), antena de acesso à
internet (Ane e Elen, lado superior direito), escadas que levam a grandes fachadas
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |409

(Ane e Margarida), portas grandes de entrada que representam a limitação e a


passagem entre dois campos diferentes (Ane, Carolina e Elen).
Esse processo é uma dialética de colonização/apropriação, como afirma
Fairclough (2012), ou seja, quando as professoras enfatizam a imponência dos
prédios escolares, “aquela entrada enorme [...] aquela porta imensa pro aluno
entrar [...] uma biblioteca bem grande” (ANE, 2º encontro, p. 2), e a quantidade
de atividades desenvolvidas, “eu coloquei várias coisas assim que eu realmente
acho que contribuiriam pra uma boa escola [...] sala de dança [...] sala de
informática [...] quadros digitais [...] aqui do lado eu coloquei a questão do
dentista” (ELEN, 2º encontro, p. 12-13), se apropriam do discurso que é
disseminado globalmente fornecendo um quadro do poder que coloniza o senso
comum: o desejo de fazer parte da alta sociedade, nem que seja por um momento,
na escola.
O significante atribuído ao desejo é representado pela porta fechada ou
aberta nas instituições escolares. A relação entre a escola e a sociedade é mediada,
há algo que se impõe entre elas. A ordem social é a via de acesso à satisfação. Nesse
sentido, as portas fechadas representam o isolamento do ator e de seu objeto de
satisfação. Esse isolamento é operado pelo poder simbólico como estrutura
estruturada que impõe um limite para a ação do homem ou para o que ele pode
dizer de seu desejo.
Diante do desejo de satisfação, uma primeira alternativa é aceitar os limites
da ordem do discurso dominante e permanecer enclausurado nos limites das salas
de aulas, repetindo o que é possível dizer de acordo com as normas, acatando
restrições sociais, abrindo mão de parte de sua satisfação para ser inserido na
sociedade aristocrática, a exemplo das escolas-prédio. Outra alternativa é não se
curvar aos limites das ordens do discurso, buscando a satisfação exatamente onde
as leis proíbem. Essa última assertiva é rejeitada pelas professoras porque prezam
pelas relações sociais horizontais por fazerem parte de uma sociedade cujo laço
social era vertical, ou seja, tinha como ideal o patrão, a pátria, como afirma
Carolina (2º encontro, p. 10): “quando eu estudava, era maravilhoso, a gente usava
aquelas sainhas, as meinha, todo mundo bem uniformizado né, a questão
410 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

também... das normas serem cumpridas.” O discurso de Carolina aponta para o


reencontro do mesmo, representando a escola atual como desnaturalizada de suas
competências, quais sejam: usar farda e cumprir normas preestabelecidas visando
atingir objetivos também preestabelecidos.
Carolina sonha para a escola do século XXI os mesmos objetos (abstratos e
concretos), no mesmo lugar, da mesma forma da época em que era estudante. Ela
gostaria que o tempo não passasse, que as normas fossem cumpridas e os desejos
juvenis de desordem fossem apagados. Carolina vê a escola pelo espelho
retrovisor, onde a garantia de futuro é ser o passado, onde tudo parece evidente.
Passado esse que estabelecia padrões claros e rígidos de comportamento. O futuro
remete à desorganização, falta de controle. O discurso de Carolina (2º encontro,
p. 10) aponta para a escola enquanto agente da castração, à medida que afirma:
“então a escola acaba sendo... desorganizada... porque não tem esse controle,
aluno entra a hora que quer, sai a hora que quer, não tem aquele controle”, em
que o controle funciona como um modelo identificatório, levando ao laço social
baseado na submissão.
Desta forma, as ações desempenhadas pelas escolas-prédio em relação à
sociedade, inerentes ao conhecimento, ao sentimento e ao comportamento, dão
origem a um ambiente asséptico, isento de características individuais. O convívio
social em escolas-prédio exige a supressão momentânea de boa parte do que
somos, de como pensamos e sentimos. Para nos integrarmos, precisamos enfatizar
as nossas características e comportamentos que são demandados naquele espaço,
naquele dado momento. Isso ocorre porque o ensino na escola-prédio é
departamentalizado.
Deste modo, as escolas-prédio fundam-se na crença de que o
conhecimento tem um sentido como um todo finito e bem ordenado, em que o
ensino materializa-se em departamentos, supondo uma extensão essencialmente
infinita e homogênea. Nesse contexto, a prática social das professoras é regulada
pela uniformidade da departamentalização do ensino, incitando os alunos a
investir o tempo de suas vidas em benefício do futuro.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |411

Assim, as professoras, diante dos integrantes do grupo focal, que por sua
vez fazem parte da esfera social que abrange o exercício de sua competência
profissional, preocupam-se em dar uma demonstração de eficiência. Ao optar por
uma representação ou outra, as professoras estão interessadas não tanto no curso
completo das diferentes práticas que executam, mas somente naquela da qual
deriva sua reputação profissional.
O desempenho das professoras tende a incorporar e a exemplificar os
valores oficialmente reconhecidos pela sociedade, mais do que o seu
comportamento de indivíduo como um todo. Na medida em que os valores sociais
comuns são ressaltados, percebo a reafirmação dos valores morais da comunidade
escolar. Segundo Goffman (1975, p. 41), “tanto quanto a tendência expressiva das
representações venha a ser aceita como realidade, aquela que é no momento
aceita como tal terá algumas das características de uma celebração”. Em outras
palavras, não aceitar ou não comungar tais eventos, não ter vontade de estudar, é
permanecer longe do lugar onde a realidade está acontecendo. O mundo na
verdade é uma reunião.
A escola-prédio atribui ao quadro — exposto em uma sala quadrangular
com carteiras alinhadas e alunos organizados e silenciosos diante da parede do
conhecimento — um papel central, representando o espaço escolar e a construção
da ordem, que assume o lugar dos guardiões do saber. O discurso de Elen (2º
encontro, p. 13), “aqui eu coloquei uma sala [...] que nós pudéssemos utilizar um
quadro desses novos [...] esses quadros digitais”, apresenta um alto grau de
compartilhamento e repetição do poder simbólico.
A hierarquia que tangencia o discurso da professora é reflexo da prática
discursiva que legitima a instituição escolar como o lugar natural para o
conhecimento ocorrer, em que a posição de professor está investida e legitimada
pela sociedade como elo entre o conhecimento e os alunos. À vista disso, a
representação resvala a sustentação de um status individual/profissional — o
professor é uma autoridade a ser respeitada e na qual os alunos têm de acreditar
— no intuito da conquista do consenso social — que o poder do professor seja
mantido e respeitado —, por isso o professor é o intermediário entre o
412 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

conhecimento representado pelo quadro, no cume da pirâmide, e os alunos,


localizados na base.
Desse modo, Elen oferece ao grupo uma impressão que é idealizada, uma
vez que, ao fazer menção ao quadro digital, o seu discurso busca desenvolver
comportamentos aristocráticos, já que mobiliza equipamento tecnológico
característico de classe média e injeta no quadro digital uma expressão de poder
e dignidade. Assim, a representação de Elen é socializada, moldada e modificada
para se ajustar à compreensão e às expectativas da ordem do discurso que provoca
a vontade de fazermos parte da sociedade aristocrática, certificada com selos de
origem e árvores genealógicas.
Goffman (1975) justifica essa ambivalência afirmando que isso é uma
consequência natural na organização social. Isto quer dizer que a sociedade não
funcionaria se não houvesse ordem, controle de um grupo sobre outros grupos e
seus membros, relações de peso e contrapeso, sem as muitas relações legítimas de
poder. Nesse sentido, como pontua Fairclough (2001a), o discurso deve ser visto
em termos de uma dialética, na qual o impacto da prática discursiva depende de
como ela interage com a realidade pré-construída. Ora, não é difícil perceber essa
imbricação entre escola-casa e escola-prédio. No contexto institucional da sala de
aula, o discurso do professor é pressupostamente considerado verdadeiro, por isso
o professor tem poder sobre os alunos: é o professor quem decide que assuntos são
importantes e estabelece o que é certo ou errado em termos de comportamento
na sala de aula.

6. Considerações finais

A pesquisa em ADC significa não atuar de forma isolada e não ignorar os


acontecimentos diários. Desse modo, ao refletir sobre o campo educacional,
sobretudo o ensino de língua portuguesa, tal atitude se torna praticamente
inviável, pois lidamos com um objeto dinâmico, multifacetado, materializador do
pensamento — a língua.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |413

Do mesmo modo, quando analisei os desenhos de escola e as confrontei


com os discursos, me deparei com o processo de formação do professor, pois foram
convidados a assumirem uma nova posição diante da educação brasileira, mesmo
que seja temporária. Desse modo, percebi que representações construídas no
discurso das professoras incluem referência a objetos pré-construídos — a
importância atribuída ao quadro — tanto quanto a significação criativa e
constitutiva dos objetos — quadro-negro x quadro digital.
Assim, escolas-prédio expõem uma forma dominante de conduzir a
educação. A forma dominante mantém distância social entre professor e aluno e
a autoridade do professor sobre a forma como a interação prossegue. Tal
representação torna-se hegemônica porque faz parte do senso comum legitimador
que mantém as relações de dominação. Ou seja, se pensarmos na dialética do
discurso em termos históricos, em termos dos processos de mudança social, surge
a questão sobre os modos e as condições em que ocorrem os processos de ensino-
aprendizagem e consequentemente o que fundamenta a ação docente.
Nesse sentido, constatei que as escolas-prédio privilegiam uma abordagem
comportamentalista, em que a dimensão técnica é destacada, ou seja, os aspectos
objetivos, mensuráveis e controláveis do processo são enfatizados em detrimento
dos demais. Isso sugere uma mudança qualitativa do ensino/aprendizagem de tal
forma que a aceitação de suas múltiplas implicações e relações sejam dirigidas pelo
conhecimento — a mudança ocorre em ritmo acelerado, pela geração, circulação
e operacionalização de conhecimento nos processos educacionais.
Essas reflexões permitiram perceber que as professoras estão
constantemente expostas aos desafios que as convocam a lidar com expectativas
que mobilizam para o novo. Importante destacar que as mudanças ocorrem apesar
de as professoras estarem ou não profissionalmente aptas para enfrentá-las.
Assim, os rituais da palavra, os grupos doutrinários e as apropriações sociais
operam juntos, na maior parte do tempo, constituindo o poder simbólico como
estrutura estruturada que garante a distribuição dos sujeitos que falam nos
diferentes tipos de discurso e a apropriação dos discursos por certas categorias de
sujeito.
414 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

REFERENCIAIS

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mai. 2012.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |417

A INTERDISCIPLINARIDADE COMO UM DOS CAMINHOS PARA AS AULAS


DE PORTUGUÊS

Raquel Pontes Avila (UERJ)

1. Introdução

É constante o movimento de autoavaliação das práticas pedagógicas do


professor da Educação Básica. São muitos os fatores que provocam essa reflexão:
perfil dos alunos, localização da escola, mudanças históricas da sociedade, avanços
tecnológicos, estudos e pesquisas de cada área, orientações da legislação brasileira,
entre outros. Repensar sua prática é, portanto, ofício diário do docente.
Aos professores de Português tal tarefa é uma consequência natural dado
o caráter da disciplina. Fazemos seleção de textos e materiais para trabalhar em
sala de aula e mesmo aqueles profissionais mais rotineiros têm à mão alguns bons
manuais de consulta que são revisados e atualizados periodicamente. Quando nos
propomos a pensar a sintaxe da língua, também podemos pensar em como os
textos jornalísticos são marcados por escolhas, que demonstram sempre um
posicionamento. O que se quer dizer é que não é possível pensar a língua de forma
estanque por ser ela mesma um organismo vivo e cheio de possibilidades.
Ocorre que é ainda vigente a ideia de que somente em Língua Portuguesa
devem ser exploradas habilidades de leitura, compreensão e escrita. Não é raro
ver colegas de outras cadeiras responsabilizando professores de português por
dificuldades apresentadas por alunos. Não trabalhamos todos com a mesma
língua? Não há contato com textos nas outras aulas? Não é necessário localizar
informações? Não há interpretação de casos exemplares em Matemática, Ciências
ou Geografia? A leitura acontece quando diante de palavras? Essas são reflexões a
serem enfrentadas. Para isso, é necessário que exista uma equipe comprometida
com o trabalho, que será naturalmente maior, equipe diretiva que preze pelo
diálogo entre os professores e que ofereça condições para a realização das
propostas.
418 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

2. Interdisciplinaridades
Este item tem a intenção de debater os conceitos possíveis de
interdisciplinaridade, pois compreendemos que as práticas são variadas e,
portanto, também serão várias as teorias.
Surgido, na literatura nacional, a partir da década de 70 com os estudos de
Ivani Fazenda e Hilton Jupiassu, o conceito de interdisciplinaridade é bastante
amplo e ainda suscita muitas discussões (Garcia Joe, 2008). Essa abrangência
provoca dúvidas nos atores da educação, pois não há um desenho bem delineado
sobre o que pode ser considerado interdisciplinar. Se um texto de Ciências é
utilizado pelo professor de Português, pode-se dizer que houve
interdisciplinaridade? Se a escola promove um projeto e convida todos os
professores a abordarem o mesmo assunto, houve interdisciplinaridade? Seriam
essas apenas ações pontuais? A priori, respondemos afirmativamente a esta última
questão. No entanto, não nos furtamos a refletir sobre o que estamos, de fato,
realizando para implementar uma prática interdisciplinar, conforme preconizam
os documentos oficiais e conforme os debates de estudiosos do tema.
Logo no início dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua
Portuguesa para o 3º e 4º ciclos, lê-se que um dos objetivos do Ensino
Fundamental é que o aluno seja capaz de:

utilizar as diferentes linguagens verbal, musical, matemática,


gráfica, plástica e corporal como meio para produzir, expressar e
comunicar suas ideias, interpretar e usufruir das produções
culturais, em contextos públicos e privados, atendendo a diferentes
intenções e situações de comunicação (BRASIL, 1998).

A partir desta publicação do Ministério da Educação e do Desporto,


depreende-se que o ensino de qualquer disciplina não se encerra nela mesma, mas
abarca uma extensa gama de informações e conhecimentos de mundo. Não à toa,
ao longo do texto, há objetivos gerais para todas as disciplinas e temas que
atravessam todas elas. Tem-se, neste caso, um rompimento oficial com a ideia de
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |419

conhecimento fragmentado, ou seja, o conhecimento é global, holístico,


interdisciplinar.
No mesmo documento (BRASIL, 1998), a discussão sobre
interdisciplinaridade somente aparece explicitamente quando trata dos temas
transversais (Ética, Saúde, Meio Ambiente, Orientação Sexual, Pluralidade
Cultural, Trabalho e Consumo). Aponta-se a possibilidade de um trabalho
integrado entre as disciplinas, reforçando que o papel da Língua Portuguesa não
deve ter caráter meramente tecnicista:

Os temas transversais abrem a possibilidade de um trabalho


integrado de várias áreas. Não é o caso de, como muitas vezes ocorre
em projetos interdisciplinares, atribuir à Língua Portuguesa o valor
meramente instrumental de ler, produzir, revisar e corrigir textos,
enquanto outras áreas se ocupam do tratamento dos conteúdos.
Adotar tal concepção é postular a neutralidade da linguagem, o que
é incompatível com os princípios que norteiam estes parâmetros.
Um texto produzido é sempre produzido a partir de determinado
lugar, marcado por suas condições de produção. Não há como
separar o sujeito, a história e o mundo das práticas de linguagem
(BRASIL, 1998, p. 40).

3. Por uma prática

Serão apresentadas duas propostas de trabalho em integração com Língua


Portuguesa: uma com a disciplina de Ciências, ainda a ser desenvolvida, e a outra
com História, já vivenciada. A título de contextualização, alguns dados sobre o
ambiente em que estamos inseridos: trata-se de uma escola situada na cidade de
Duque de Caxias, Rio de Janeiro, mais especificamente no 4º distrito de Duque de
Caxias, num bairro chamado Fazenda Piranema, pouco conhecido inclusive pelos
habitantes da cidade, que possui mais 900 mil habitantes. A escola funciona nos
turnos da manhã e da tarde e recebe alunos desde a Educação Infantil. Somente a
partir de 2011 a unidade passou a trabalhar com o 3º e 4º ciclos do Ensino
Fundamental. Há, atualmente, apenas uma turma para cada ano de escolaridade
do segundo segmento (6º, 7º, 8º e 9º) e um professor de cada disciplina.
420 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

4. Língua Portuguesa e Ciências

Por se tratar de uma região com pouco infraestrutura, carente de


saneamento básico e de assistência médica pública, há, desde sempre, uma
preocupação em alinhar o conhecimento produzido na escola com as necessidades
locais. Entendemos que o aluno é fundamental para a disseminação de
informações e poderá ser agente transformador de realidades, se estiver bem
instrumentalizado.
A disciplina de Ciências, como todas as outras, tem também como objetivo
fazer o aluno ler o mundo. Existe uma linguagem própria da ciência, mas que é
também indissociável das nossas experiências. Daí a importância do professor em
buscar este elo e dar sentido àqueles termos científicos e muitas vezes pouco
usuais. Dulac e Lopes, no livro “Ler e compreender: compromisso de todas as
áreas” (2017), ressaltam justamente esse ponto:

Representar e ler este mundo tem uma amplitude maior que


entender os conceitos cristalizados pela linguagem científica como
um recorte da realidade que deve ter um compromisso com o todo,
estabelecendo relações significativas com as demais formas de ler
este mundo (DULAC; LOPES, 2017, p.45).

A proposta partiu de um conteúdo de Ciências para o 7º ano, “Doenças


parasitárias” (dengue, malária, escabiose, AIDS, meningite meningocócica,
Doença de Chagas, elefantíase, tuberculose). A ideia do professor Jackson Bezerra
é a de que os alunos produzam vídeos sobre uma determinada doença com noções
de contágio e prevenção. A disciplina de Português passará a integrar a atividade
para auxiliar na elaboração do roteiro do vídeo. Foi agregada à ideia inicial a
possibilidade de se entrevistar moradores da região. Sendo assim, delineamos uma
atividade que pretende aproximar a comunidade da escola e mostrar que os
conhecimentos escolares podem e devem ultrapassar a sala de aula.
O trabalho será feito em grupos com 4 componentes que deverão pesquisar
sobre a doença parasitária que foi designada durante as aulas de Ciências. Os
vídeos que serão produzidos terão duração aproximada de 5 minutos. Para a
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |421

elaboração desse material, nas aulas de Língua Portuguesa, os grupos deverão:


designar os responsáveis pelas filmagens, edição e entrevistas; escolher a(s)
pessoa(s) que serão entrevistas e elaborar as perguntas que serão feitas.
Haverá sugestões para a sequência do vídeo: breve apresentação da doença
(sintomas, agente causador e profilaxia); exibição da entrevista ou relato de
moradores da região; finalização com um alerta que relacione o(s) relato(s) com o
conhecimento que eles já terão sobre a parasitose discutida em sala e pesquisada.
Caberá ao grupo adaptar as orientações gerais de acordo com sua criatividade.
Entendemos que o trabalho, que será avaliado nas duas disciplinas,
colabora na formação da cidadania, na medida em que promove debate entre os
alunos e entre os moradores, aproxima-se da realidade dos discentes e pode
despertar uma consciência política, pois existe uma boa parcela de
responsabilidade do poder público no tema, que não pode ser olvidada.
Língua Portuguesa e História
Para retomar a importância de criar pontes entre Português e outras
disciplinas, já que o conhecimento é holístico e se constrói de maneira global,
acrescenta-se mais um trecho dos Parâmetros Curriculares Nacionais:

A língua, sistema de representação do mundo, está presente em


todas as áreas de conhecimento. A tarefa de formar leitores e
usuários competentes da escrita não se restringe, portanto, à área
de Língua Portuguesa, já que todo professor depende da linguagem
para desenvolver os aspectos conceituais de sua disciplina (BRASIL,
1998).

A atividade integrada por Língua Portuguesa e História trata-se de uma


visita ao Centro Histórico do Rio de Janeiro. A professora de História da unidade,
Carolina Sá, montou um roteiro de visitação e nos expôs os temas que seriam
abordados durante a aula. Para trabalhar em sintonia, nas aulas de Português,
foram pesquisados textos e/ou músicas que tivessem relação com os fatos e temas
a serem tratados durante a visitação. Demos um nome para o projeto: “História
entre ruas e versos”. Num artigo do livro “Ler e compreender: compromisso de
422 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

todas as áreas” (2017), o autor discute o impacto que a disciplina deve ter na
aprendizagem:

Os conhecimentos históricos podem servir de apoio na leitura de


qualquer outra modalidade de texto, em qualquer outra área, na
medida em que todo texto é datado historicamente, vinculado a
determinada visão de mundo ou conjuntura. A partir de
referenciais da história, podemos interrogar textos produzidos em
outras áreas, verificando sua relação com as discussões e
problemáticas de cada período histórico (SEFFNER, 2017, p. 123).

Ivani Fazenda (2006), ao mostrar o caráter interdisciplinar do ensino da


história, ressalta que muitos estudos dos quais teve conhecimento indicaram que:

o ensino de História deve procurar cultivar valores, atitudes e


hábitos que libertem o indivíduo do isolamento cultural ao qual a
civilização o condenou. Nesse sentido, a história, vista sob
perspectiva interdisciplinar, deve ser mais que simples ordenação
sequencial e manuseio de certos materiais para consulta, deve
plantar a ‘semente’ do futuro pesquisador e do cidadão que luta por
seus direitos e deveres, enfim, por sua liberdade (FAZENDA, 2006,
p. 61).

Diante do exposto, consideramos que encontramos uma proposta


consistente de integração e interdisciplinaridade. Conhecer a capital do estado é,
a princípio, algo simples, mas não para alunos que vivem numa zona rural de
outra cidade. Alguns ainda não tiveram oportunidade de conhecer sequer o
Centro de seu próprio município. Esses dados mostram a importância da
atividade, que contribuirá também para o conhecimento de sua própria história.
Localizar-se no mundo e no tempo histórico são fundamentais para formação de
identidades e tomada de consciência como seres políticos e históricos.
Para efeito de ilustração, relatarei brevemente a experiência que tivemos
no ano de 2018. Começamos a atividade no Cais do Valongo, seguimos para o
Instituto dos Pretos Novos (IPN) e fomos para a Praça da Harmonia. Após as
exposições em sala de aula e as novas informações passadas durante o percurso, os
alunos são sempre chamados à reflexão e questionados sobre os fatos expostos.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |423

Temas como escravidão, formação da Cidade do Rio de Janeiro e de outras cidades


e a desigualdade social são primordiais e levaram os alunos a entender mais
consistentemente o sentido de certas canções e poemas. Este foi o momento de
cantar o “Rap da Felicidade”, conhecido nas vozes de Cidinho e Doca. O eu lírico
da canção percebe as diferenças sociais, os recortes feitos em cartões postais e o
apagamento de certos setores da sociedade. O reconhecimento do viés político da
música fez com que o grupo entoasse com mais força os versos finais: “O povo
tem a força, só precisa descobrir / Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui”.
Na Pedra do Sal, após a história do local e do samba, era hora de mostrar a
resistência através de outras canções. Além das opções apresentadas em sala, os
alunos sugeriram outro samba: “Não deixe o samba morrer”, de Ataulpho Alves.
Foram cantadas duas canções naquele momento: um clássico que eles já
conheciam e um clássico que passaram a conhecer, “Alguém me avisou”, de
autoria de Dona Ivone Lara, que falecera naquele ano. Tratava-se de uma mulher
fazendo música e alcançando notoriedade por sua arte. Foi possível conhecer, ao
longo das aulas, a biografia de outras figuras importantes no cenário musical
brasileiro: Zé Kéti, Elza Soares (que, inclusive, tem fotografia sua no IPN),
Gilberto Gil, Elis Regina. Salientamos que todos os textos (canções ou poemas)
foram trabalhados previamente em sala de aula.
Na Praça XV, sob a estátua de João Cândido, cantamos “O mestre-sala dos
mares”, de Aldir Blanc e João Bosco. A partir dos conhecimentos históricos, a letra
ganha sentido novo, de luta e de denúncia, servindo como registro de momentos
fundamentais da história do país. Damos, assim, “Glória a todas as lutas inglórias
/ Que através da nossa história / Não esquecemos jamais”.
O trajeto continuou sempre com essa sequência e sofrendo interferências
muito positivas dos alunos. Nas aulas seguintes, os alunos fizeram um balanço do
projeto e elaboraram um relatório, destacando o que consideraram mais
importante e suas impressões. Muitos utilizaram fotos que eles mesmos haviam
tirado.
424 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

5. Considerações finais

A partir das diferentes concepções de interdisciplinaridade e das atividades


propostas, compreende-se que este conceito pedagógico contempla aspectos
gerais e aspectos específicos na sua execução. Os primeiros seriam os diálogos
possíveis entre as disciplinas, os objetivos comuns na formação dos cidadãos
atuantes e conscientes, atividades mistas propostas por professores e equipe
pedagógica. Os aspectos específicos têm a ver com o fazer in loco, com aspectos
que individualizam a experiência. Em outras palavras, cada professor ou grupo de
professores terá experiências próprias a serem partilhadas. Ainda que outras
práticas sejam transmitidas, relatadas e estudadas, somente no seu fazer o docente
descobrirá o que contribui para aquele determinado grupo.
Sobretudo numa escola do campo, há muitos fatores individualizantes. A
maior parte das escolas públicas no Brasil concentra-se nos centros urbanos. Para
efeito de exemplificação, em Duque de Caxias, há 178 escolas municipais, das
quais apenas 6 são consideradas do campo. Obviamente não se está desprezando
as experiências e os estudos alheios. Seria descabida tal consideração e, inclusive,
sem propósito o presente artigo. O que se pretende é salientar as idiossincrasias
pedagógicas, capazes de enriquecer os debates acerca do assunto e inevitáveis para
alcançar o tão almejado êxito no ensino.
Considera-se, portanto, que todos os movimentos no sentido de buscar a
integração das cátedras e de romper as barreiras do ensino mais tradicional são
válidos. A eficiência talvez esteja na constância em que os movimentos se dão.
Apenas se muda o sistema se houver insistência e perseverança. Não há nada
pronto no que diz respeito à aprendizagem. Tudo está relacionado a experiências
e fases.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |425

REFERÊNCIAS

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9394/96. Brasília, 1996.

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R. G. S., 9ª ed. 2007. p. 41 -48.

SEFFNER, Fernando. “Leitura e escrita na história”. In: NEVES, I. C. B. (Org.) Ler


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p. 111-124.
426 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

VEREDAS DA ARGUMENTAÇÃO NO GÊNERO CARTUM: UMA PROPOSTA


DE ANÁLISE

Roberta Viegas Noronha (UFF)

1. Introdução

Os muitos papéis sociais que assumimos em diferentes situações


comunicativas nos exigem práticas argumentativas que mobilizam uma série de
habilidades e determinadas estratégias, com o intuito de modificar a realidade que
nos cerca através do logos e para despertar no outro uma disposição para a ação.
Saber argumentar é saber atuar socialmente.
Os estudos acerca da argumentação remontam à Antiguidade Clássica e,
desde então, têm despertado o interesse de diferentes campos do saber. No
contexto escolar, o trabalho com a argumentação esteve pautado, durante muito
tempo, na aprendizagem de modelos tipológicos
(descrição/narração/argumentação) e de técnicas para a produção de uma “boa
redação” com o intuito de lograr desempenho satisfatório em exames oficiais. Mas
as atuais demandas sociais de uso da linguagem exigem um trabalho que
ultrapasse a mera reprodução. É necessário que a escola considere as reais
situações comunicativas do cotidiano do aluno e o instrumentalize para a prática
do argumentar ao mesmo tempo em que contribua para sua formação geral como
cidadão que participa de maneira consciente do seu contexto político, econômico
e social.
Nesse sentido, considerando que a argumentatividade é inerente aos
discursos e que o ensino de Língua Portuguesa deve estar pautado na perspectiva
dos gêneros, como aponta os PCN (BRASIL, 1998), este trabalho, ancorado em
uma abordagem linguístico-discursiva, objetiva refletir sobre a dimensão
argumentativa do cartum e sua produtiva relação com o ensino da argumentação,
pois acreditamos que a própria natureza desse gênero, o seu papel argumentativo,
seu aspecto composicional e suas temáticas favorecem o estudo da argumentação
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |427

para além das abordagens tradicionais, de modo que a criticidade, a capacidade


argumentativa e as habilidades de leitura de textos verbo-visuais e de produção
escrita possam ser desenvolvidas de maneira eficaz.
Para isso, analisaremos um cartum da artista argentina Maitena
Burundarena. Os estudos dos Quadrinhos (Ramos, 2011, Teixeira, 2005), da
Argumentação (Amossy, 2006; Fiorin, 2014), do Texto (Marcuschi, 2002; Koch,
2002, 2006) e alguns conceitos da Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso
nortearão este trabalho.

2. Argumentação: algumas observações

Argumentar é uma atividade discursiva que desempenhamos muito antes


de ingressarmos na educação formal, pois em nossas interações com os outros, por
meio da linguagem (oral ou escrita), emitimos opiniões, assumimos pontos de
vista e, mesmo que de maneira subespontânea, tentamos frequentemente
persuadir, convencer e exercer influência sobre outrem. Logo, “o uso da
linguagem é essencialmente argumentativo” (KOCH, 2006, p. 29).
Charaudeau (2008, p. 205) ressalta que a argumentação não se limita a uma
sequência de conectores lógicos porque, frequentemente, o aspecto
argumentativo de um discurso encontra-se no que está implícito. Segundo o
autor, algumas condições são necessárias para que a argumentação exista: (i) uma
proposta sobre o mundo que provoque um questionamento quanto à viabilidade
de uma proposta; (ii) um sujeito que desenvolva um raciocínio que tente
estabelecer a legitimidade da proposta; (iii) um outro sujeito que se constitua no
alvo da argumentação.
Assim, argumentar é uma atividade que depende tanto daquele que
argumenta como daquele que recebe a argumentação e emite uma resposta a
partir dela. É, portanto, uma relação triangular entre um sujeito argumentante,
uma proposta sobre o mundo e um sujeito-alvo. A argumentação é uma totalidade
que o modo argumentativo contribui para construir, é o resultado textual de uma
428 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

combinação entre diferentes componentes que dependem de uma situação com


finalidade persuasiva. Perelman salienta que

O objetivo de toda argumentação é provocar ou aumentar a adesão


dos espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento: uma
argumentação eficaz é a que consegue aumentar essa intensidade
de adesão, de forma que se desencadeie nos ouvintes a ação
pretendida (ação positiva ou abstenção) ou, pelo menos, crie neles
uma disposição para a ação, que se manifestará no momento
oportuno. (PERELMAN, et. al, 2005, p. 50)

Na perspectiva Semiolinguística, o dispositivo argumentativo configura-se


a partir de uma Proposta (Tese), passa pela Proposição (quando o argumentante
justifica, refuta ou pondera sobre a Tese), chegando à Persuasão, momento em
que as provas de justificativa, refutação ou ponderação são apresentadas.
Para Amossy (2006, p.34), a argumentação não deve ser pensada somente
como o fruto de debates em que os raciocínios lógicos se afrontam. Para a autora,
a argumentação está dividida em visadas argumentativas e em dimensões
argumentativas. As visadas argumentativas, que caracterizam somente alguns
discursos, constituem uma forma de persuasão sustentada por uma intenção
consciente, oferecendo estratégias programadas para sua realização; enquanto a
segunda, inerentes a numerosos discursos, constitui uma transmissão de um ponto
de vista sobre as coisas, sem que se pretenda expressamente modificar as posições
do interlocutor.
Dessa forma, Amossy estabelece uma concepção mais larga de
argumentação, entendida como a tentativa de modificar, de reorientar, ou
simplesmente, de reforçar, pelos recursos da linguagem, a visão das coisas da parte
do interlocutor, pela tentativa de fazer aderir não somente a uma tese, mas
também a modos de pensar, de ver, de sentir.
Na concepção de Fiorin (2014, p. 69), todos os discursos são
argumentativos, pois todos eles fazem parte de uma controvérsia, refutando,
apoiando, contestando, sustentando, contradizendo um dado posicionamento. A
argumentação é, então, uma reação responsiva a outro discurso. Nesse sentido, “a
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |429

linguagem passa a ser encarada como forma de ação, ação sobre o mundo, dotada
de intencionalidade, veiculadora de ideologia” (KOCH, 2002, p. 15).
Levando em conta essas afirmações, podemos entender que, em maior ou
menor grau, a argumentatividade está presente em todos os gêneros textuais e que
o texto é um objeto multifacetado que revela não só o que sabemos da língua mas
também o que sabemos sobre o mundo em que vivemos (KOCK; ELIAS, 2018, p.
10). Sendo assim, ao considerarmos que os textos carregam tipos discursivos
variados, ensinar/aprender a argumentar deve ir além de análises das estruturas e
técnicas argumentativas pré-moldadas. Trataremos a seguir do trabalho com a
argumentação no contexto escolar.

3. Argumentação e ensino

Os PCN de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998, p. 41) consideram a


argumentação como uma capacidade relevante para o exercício da cidadania, por
meio da análise das formas de convencimento empregadas nos textos, da
percepção da orientação argumentativa que sugerem, da identificação dos
preconceitos que possam veicular no tratamento de questões sociais.
Dessa maneira, o trabalho com os gêneros predominantemente
argumentativos, que, em geral, trazem em seu bojo a discussão de temáticas
sociais polêmicas ou controversas, possibilita ao aluno poder expressar-se
autenticamente sobre questões efetivas e desenvolver a competência
argumentativa ao emitir opinião, refutar um pensamento dado e negociar
tomadas de posição. Porém, se a argumentatividade atravessa todos os discursos,
cabe à escola promover práticas de leitura e de produção de textos diversificadas,
a fim de fomentar a reflexão sobre as funções sociais dos gêneros discursivos, as
estratégias argumentativas utilizadas/reveladas em cada texto e “a expansão das
possibilidades do uso da linguagem” (BRASIL, 1998, p. 43).
A BNCC (BRASIL, 2017) indica a argumentação como uma das
competências gerais a serem desenvolvidas nos estudantes, pois, segundo tal
documento, é necessário dar voz a quem geralmente é visto como ouvinte, com
430 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

vistas ao desenvolvimento da consciência crítica cidadã e à formação de um leitor


/escritor autônomo e proficiente. Nesse sentido, sugere que o educando deve
aprender a

7. Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis,


para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões
comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a
consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito
local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao
cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta. (BRASIL, 2017, p. 9)

O amadurecimento da competência argumentativa só é possível a partir do


ensino de língua materna voltado para a leitura e para o processo de produção de
sentido de um texto. O desenvolvimento da competência leitora nos alunos
requer professores competentes, pois saber ler é um processo muito mais
complexo que a simples decodificação de signos linguísticos e que não pode se
limitar ao verbal. É necessário considerar os elementos extralinguísticos e não
verbais dada a predominância de textos verbo-visuais que circulam em nossa
sociedade.
Saber ler é ser capaz de circular entre textos e produzir sentidos. É uma
atividade, como bem aponta Garcez (2004 ano apud SIQUEIRA; XAVIER, 2019,
p. 85), que lida com “a capacidade simbólica e com a habilidade de interação
mediada pela palavra”. Dessa forma, é fundamental que o professor auxilie o
educando, apontando o “caminho” a ser percorrido para se alcançar a significação
de uma totalidade discursiva. Na atividade de leitura (e por meio dela), acionamos
conhecimentos linguísticos, enciclopédicos, relações com o outro, experiências,
lugar social, fazemos inferências e comparações, internalizamos estruturas da
língua, tipos de textos, ampliamos nosso repertório textual e cultural, e,
consequentemente, escrevemos melhor.
Logo, para Demo (2000 apud SIQUEIRA; XAVIER, 2019, p. 77), não
adianta apenas expor o aluno aos gêneros predominantemente argumentativos, é
necessário que ele entenda como se dá a argumentação dentro de cada texto a
partir da identificação da temática abordada, das condições de produção do
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |431

discurso e das estratégias utilizadas pelo autor na construção da argumentação em


relação ao gênero utilizado.
Sob essa perspectiva, Charaudeau (2008, p. 204), a título de exemplificação,
ressalta que os slogans publicitários, por menos argumentativos que sejam em sua
aparência, devem ser compreendidos em função do esquema argumentativo que
define esse gênero de comunicação. Sendo assim, consideramos que o trabalho
com textos verbo-visuais seja uma fonte favorável de estímulo para o estudo da
argumentação em sala de aula, bem como para o desenvolvimento da
competência leitora de textos multimodais, conforme veremos a seguir.

4. A argumentação e o gênero discursivo cartum: uma relação produtiva de sentidos

Os estudos em torno dos gêneros discursivos estiveram, durante muito


tempo, ligados, especialmente, aos estudos literários. Porém, a partir da primeira
metade do século XX, Mikhail Bakhtin, ao considerar tanto os gêneros literários
como os não literários por meio de uma perspectiva de linguagem como prática
sociointeracional, amplia a discussão e abre caminho para novas abordagens.
Atualmente, a noção de gênero ainda é objeto de estudo de diferentes teorias
linguísticas, além de ser questão central no que diz respeito ao ensino de língua
materna.
Na perspectiva bakhtiniana, os gêneros do discurso são “tipos
relativamente estáveis de enunciados” elaborados pelas mais variadas esferas da
atividade humana que refletem as condições e finalidades específicas da língua
em funcionamento, ou seja, os gêneros resultam de um uso comunicativo da
língua em sua realização dialógica e interativa. São, portanto, caracterizados
enquanto atividades sociodiscursivas e possuem três dimensões constitutivas:
conteúdo temático, estilo e construção composicional.

A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e


escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou
doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as
condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas,
não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, [...] mas
432 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

também, e sobretudo, por sua construção composicional. [...]


Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual,
mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos
gêneros do discurso. (BAKHTIN, 1997, p. 279)

Além disso, segundo Bakhtin (1997, p. 302), os gêneros podem ser


primários ou secundários. Os primários são produzidos em contextos
comunicativos mais simples e espontâneos, como no bilhete e na carta, por
exemplo; enquanto os secundários, que surgem a partir dos primários, evidenciam
uma forma de comunicação mais complexa, tendo o discurso científico, o discurso
ideológico, o teatro e o romance como exemplos. Dessa forma, os gêneros “são
modelos comunicativos e servem, muitas vezes, para criar uma expectativa no
interlocutor e prepará-lo para uma determinada reação. Operam,
prospectivamente, abrindo o caminho da compreensão”. (MARCUSCHI, 2002,
p.14)
Nossa comunicação diária só se efetiva por meio dos gêneros. “Se não
existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de
construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase
impossível” (BAKHTIN, 1997, p. 301-302).
Marcuschi (2002), que também se debruçou sobre o estudo dos gêneros
discursivos, parte das noções propostas por Bakhtin e considera os gêneros como
entidades sociodiscursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer
situação de comunicação. Marcuschi ressalta que eles são caracterizados muito
mais por suas funções comunicativas, cognitivas, e institucionais do que por suas
peculiaridades linguísticas e estruturais. Assim, os gêneros surgem, situam-se e
integram-se funcionalmente nas culturas em que se desenvolvem; e contribuem
para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia a dia (MARCUSCHI,
2002, p. 19).
Marcuschi (2002, p. 22) diferencia gênero de tipo textual, sendo o
primeiro uma noção para referir os textos materializados que encontramos em
nosso cotidiano e que apresentam características sociocomunicativas, enquanto o
segundo designa uma espécie de construção teórica definida pela natureza
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |433

linguística de sua composição e abrange “cerca de meia dúzia” de categorias


conhecidas, como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção.

TIPO TEXTUAL GÊNERO TEXTUAL


1. constructos teóricos definidos por 1. realizações lingüísticas concretas definidas
propriedades lingüísticas intrínsecas; por propriedades sócio-comunicativas;
2. constituem seqüências lingüísticas ou 2. constituem textos empiricamente realizados
seqüências de enunciados e não são textos cumprindo funções em situações
empíricos; comunicativas;
3. sua nomeação abrange um conjunto limitado 3. sua nomeação abrange um conjunto aberto e
de categorias teóricas determinadas por praticamente ilimitado de designações
aspectos lexicais, sintáticos, relações lógicas, concretas determinadas pelo canal, estilo,
tempo verbal; conteúdo, composição e função;
4. designações teóricas dos tipos: narração, 4. exemplos de gêneros: telefonema, sermão,
argumentação, descrição carta comercial, carta pessoal, romance,
bilhete, aula expositiva, reunião de
condomínio, horóscopo, receita culinária, bula
de remédio, lista de compras, cardápio,
instruções de uso, outdoor, inquérito policial,
resenha, edital de concurso, piada, conversação
espontânea, conferência, carta eletrônica, bate-
papo virtual, aulas virtuais etc.
Quadro 1: Quadro sinóptico (MARCUSCHI, 2002, p. 22)

Amossy (2006, p.35) ressalta que mesmo que a argumentação no seu


sentido restrito não seja o objeto de um romance, de uma autobiografia, de um
artigo de jornal etc., ela perpassa tais textos.

Nos discursos oriundos de uma conversa familiar, do ensaio, do


romance, o locutor não é obrigado a resolver um conflito de opinião
[...]. O discurso argumentativo pode propor questões sobre as quais
trabalhou para lhes dar uma certa ênfase e a bem formulá-las, mas
não precisa resolvê-las. Este discurso pode submeter um problema
à reflexão do auditório sem, no entanto, lhe impor uma solução
definitiva. (AMOSSY, 2006, p. 35)
434 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Para Charaudeau (2008, p. 78), os gêneros textuais tanto podem coincidir


com um modo de discurso que constitui sua organização dominante quanto
resultar da combinação de vários desses modos. O autor salienta, ainda, que o
mesmo ocorre com a Imprensa de modo geral, e nela é possível encontrar textos
com tendência descritiva, narrativa e argumentativa.
Como os demais gêneros do domínio jornalístico, os cartuns buscam
retratar e satirizar situações do âmbito cultural, político, esportivo, familiar etc.,
sem se preocuparem com um contexto sócio-histórico específico, pois o cartum é
atemporal, universal e não perecível. É um desenho de humor e crítica, um
veículo de comunicação social que provoca ao mesmo tempo o riso e a reflexão.
Tal como a charge, ele propõe uma síntese funcional da política, da realidade e da
cultura, sob o ponto de vista exclusivo da reflexão e do humor (TEIXEIRA, 2005,
p.103).
Para Ramos (2011), o cartum é um texto de curta extensão, construído
com um ou mais quadrinhos de formato retangular que apresenta uma crítica a
hábitos e costumes humanos não situados no tempo. Além disso, não utiliza em
sua composição gráfica retratos caricatos de pessoas específicas, mas sim
personagens fictícios que podem ser fixos ou não. Apresenta temática atrelada ao
humor e narrativa com desfecho inesperado no final.
Ancorado em saberes, representações e imaginários, o cartum explora
temáticas que podem suscitar controvérsias e polêmicas, já que tais temáticas são
tratadas a partir de um ponto de vista e de uma maneira singular de entender a
vida em sociedade. O cartunista, apoiado nesses saberes, tem como matéria-prima
o senso comum e se vale de estratégias de captação com a intenção de, em certa
medida e não necessariamente, modificar comportamentos e levar o leitor a aderir
ou não ao seu projeto de fala. Sendo assim, o cartunista pode ser considerado voz
crítica da sociedade, falando em nome de uma coletividade, como bem aponta
Xavier (2001):

O fazer-cartum é uma arte que depende de identificação imediata,


portanto o cartunista é obrigado a laborar essencialmente sobre
referências sociais e comuns visando a atingi-la. Tal identificação é,
na maioria das vezes, plenamente conquistada, o que nos leva à
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |435

identificação de pelo menos três funções do artista. O cartunista é,


em determinada medida: a) Voz crítica da sociedade [...]. b) O herói
Perseu, que usa o espelho (o cartum) para revelar à Medusa seu
próprio rosto horrendo [...]. c) ‘Antena da raça’, expressão utilizada
por Ezra Pound para definir certa qualidade de artistas. Para Pound,
o verdadeiro artista é capaz de reconhecer e ‘captar’ antes de todos
uma tendência futura, a direção para qual a sociedade caminha,
antes de esta estar definitivamente estabelecida. (XAVIER, 2001, p.
198-199)

Dessa forma, de caráter opinativo, crítico e quase de denúncia, o cartum


expõe comportamentos e valores capazes de provocar sentimentos e reflexões
sobre a realidade que nos circunda.
Além disso, como um texto multissemiótico, ou seja, que se constitui de
diferentes signos, numa combinação entre o signo linguístico e os não
linguísticos, o cartum possibilita diversas abordagens, com focos diferenciados
sobre seu material semiótico. Assim, carrega inúmeras características que o
transforma em centro de observação de diferentes campos do conhecimento,
principalmente, os das Ciências da Linguagem, que o tomam, muitas vezes, como
objeto de estudo linguístico-discursivo, além de ser uma interessante ferramenta
no ensino de língua materna.
Como aponta Silveira (2003 apud RAMOS, 2011, p. 86), textos verbo-
visuais, como as histórias em quadrinhos, por exemplo, podem ser um excelente
instrumento didático porque, quando bem aplicados em sala de aula, permitem
uma leitura mais crítica e proficiente por parte dos estudantes. Porém, segundo a
autora, as escolas ainda encontram dificuldade em trabalhar textos que mesclem
os códigos verbal e visual, pois é necessário levar em conta que os quadrinhos são,
além de um texto híbrido, um tipo textual híbrido, ou seja, há predominância da
sequência narrativa, mas também de outras sequências, em especial a
conversacional-dialogal e a argumentativa.
Koch e Elias (2018, p. 28) salientam que é comum em nossas práticas
comunicativas contarmos uma história com o intuito de envolver o outro e dele
obter uma reação desejada, de justificar um modo de pensar e de agir, uma tomada
de decisão etc. Sendo assim, narrar pode ser também uma estratégia
436 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

argumentativa, ou seja, um recurso para tentar convencer, como veremos na


análise a seguir.

5. A dimensão argumentativa do cartum: uma proposta de análise

Maitena Burundarena iniciou sua carreira na revista argentina Sex and


humor, na década de 1980, enfrentando uma difícil trajetória devido à ditadura
militar argentina, até que sua carreira fosse consolidada. Sua obra divide-se em
três séries: Mulheres Alteradas, Mulheres Superadas e Curvas Perigosas. Seu
público-alvo são, majoritariamente, mulheres, em especial, mulheres maduras,
mas o endereçamento ao gênero masculino se estabelece justamente pelas
temáticas que aborda em suas produções. O universo feminino e seus dilemas, as
relações humanas, os conflitos familiares, o divórcio, o casamento, o sexo casual
e a homossexualidade são temas que contemplam e representam a mulher e o
homem contemporâneos. A obra dessa autora chama-nos a atenção justamente
pelo viés subversivo e irônico presentes na construção de sua narrativa, seus
personagens e seu projeto de fala.
Maitena, ao retratar o universo feminino, fala em defesa das mulheres,
independentemente das feminilidades reveladas em sua obra, como salienta Vivas
(2008, p. 3.133). Esse aspecto é apontado em sua obra, em grande parte, a partir
de recursos que acionam o deboche, a ironia, o escárnio e a dissimulação,
marcando o teor subversivo de sua composição artística. O riso e a ironia são
mecanismos pelos quais Maitena afeta e influencia seu público. Ela utiliza os
estereótipos para debochar da imagem das mulheres “engessadas” e dos homens
machistas. Ou seja, ela ridiculariza as imagens estereotipadas e caricaturadas para
fazer-refletir seu interlocutor.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |437

Texto 1

Fonte: Mulheres Alteradas 3. Editora Rocco, v.01, p.47, 2003.

O cartum em análise integra o livro Mulheres Alteradas 3. Nele,


observamos a organização do espaço em oito quadros em que se percebem,
inicialmente, as mudanças ocorridas na moda feminina ao longo do século XX
como reflexo da mudança na condição social e histórica das mulheres, apontando
para a libertação do corpo e o empoderamento feminino na sociedade atual.
Porém, apesar de tais mudanças, a cartunista ilustra uma situação que se repete
em todos os quadros e diz respeito ao espaço de tematização do texto: o
comportamento machista masculino de dominação em relação à mulher. Todas
as mulheres retratadas são vítimas de comentários pejorativos e da imposição de
um comportamento adequado por parte de seus companheiros. É possível
438 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

observar visualmente a expressão de espanto e de insatisfação no rosto dos


homens retratados, acompanhada do verbal “É isso que você vai usar?”; “Com isso
não vai nem morta!”. Assim, a narratividade se apoia nos dizeres dos personagens.
As legendas em amarelo “1920 aparece o tubinho”, “1930 as saias
encurtam”, “1940 a calça se impõe” fornecem um enquadre temporal e servem
para situar no tempo e descrever as mudanças ocorridas nas épocas retratadas no
cartum. Essa descrição é complementada também pela parcela visual.
A argumentação explícita se evidencia no título (declaração inicial) “Nós,
mulheres, mudamos, a moda também... Os que não mudam nunca são os
homens!” e deixa claro a tese (Proposta) defendida pela cartunista: apesar de
tantas mudanças sociais e históricas, os homens não mudaram e continuam a
reproduzir as desigualdades. As oito cenas são os argumentos-prova (Persuasão)
de que as mulheres buscaram libertação enquanto os homens, ao longo das
décadas, insistem em manter o patriarcado que tanto os beneficia.
O leitor precisa ativar saberes e preencher lacunas para entender em que
se apoia a argumentação de Maitena, já que o cartum condensa muitas
informações. Sendo assim, é necessário pensar nos imaginários em torno da
masculinidade e da feminilidade e dos papéis e comportamentos que são
esperados de homens e mulheres: dominação e submissão.
Também é preciso acionar conhecimentos extralinguísticos em torno dos
períodos históricos retratados pela cartunista: décadas de 20 a 90, períodos em
que ocorreram muitas transformações na sociedade do século XX,
principalmente, no exemplo em tela, no que diz respeito aos movimentos
feministas.
O discurso de opinião demonstrado por Maitena constrói uma visão
negativa, de crítica e de deboche ao comportamento masculino. Tal opinião pode
suscitar controvérsias e polêmicas, uma vez que, ao mostrar o senso comum, ao
revelar como as coisas são, de certo modo, ela mostra também que é preciso mudar
e romper com os padrões impostos socialmente, além de dizer que só as mulheres
evoluem. As estereotipias utilizadas por Maitena como signo paródico tem o
efeito de crítica social.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |439

A cartunista, através do humor e da ironia, é movida por uma visada de


captação que tem a intenção de fazer-refletir seu interlocutor. Assim, as escolhas
dos modos de linguagem e sua organização, o aspecto composicional do cartum,
a temática, os signos verbais e não verbais constituintes são estratégias que
estabelecem os posicionamentos da cartunista, propiciam o espelhamento e
convidam o leitor a refletir sobre as opiniões e os pontos de vista construídos no
texto.
Com isso, constatamos como a argumentatividade é constitutiva do cartum
e, portanto, pretendemos demonstrar a importância do ensino de leitura de textos
multimodais, de modo a ampliar o repertório dos alunos e levá-los ao
entendimento de que a compreensão de um texto se efetiva não só pela
informação explícita mas também por meio de implícitos; e que através de
estratégias ligadas à narração e à descrição também é possível argumentar.

6. Considerações finais

De acordo com o que foi exposto, verificamos que os signos linguísticos


constituintes do cartum não são dotados de sentido pleno e, por isso, exigem um
leitor competente, que leve em conta os contextos linguísticos e extralinguísticos
ativados na verbo-visualidade. Textos desta natureza, multimodais (ricos em
linguagens), constitui um amplo campo de reflexões e uma profícua oportunidade
de desenvolver habilidades de leitura e de produção de textos.
Além disso, as temáticas sociais abordadas no cartum e a maneira criativa
de construir argumentos, quando levadas à sala de aula, possibilitam ricas
discussões e compartilhamento de ideias que contribuem para o exercício da
competência argumentativa e da autonomia crítica do aluno.
Por isso, acreditamos que o gênero escolhido, neste trabalho, é uma
importante ferramenta para discutir/refletir sobre os costumes, os saberes e
imaginários que circulam em uma sociedade, os recursos linguísticos e discursivos
empregados pelo cartunista, as estratégias de persuasão e de construção da
argumentatividade, além de ser uma maneira divertida de se trabalhar a
440 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

argumentação. Afinal, a argumentação e o gênero discursivo cartum apresentam


uma relação produtiva de sentidos.
Dessa maneira, fica evidente que a escola pode e deve priorizar a prática
de leitura de gêneros textuais diversificados, a fim de promover um trabalho
constante com a argumentação que garanta a formação de leitores/escritores
críticos, autônomos e conscientes da realidade que os cerca.

REFERÊNCIAS

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BAKTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina G. G. Pereira. São


Paulo: Martins Fontes, 1997.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília:


MEC, 2017.

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Fundamental: língua portuguesa. Brasília/Secretaria de Educação Fundamental:
MEC/SEF, 1998.

CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. 2ª ed. São


Paulo: Contexto, 2008.

FIORIN, José Luiz. Argumentação e discurso. Bakhtiniana, São Paulo, n. 9, p. 53-


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KOCH, Ingedore Vilaça; ELIAS, Vanda Maria. Escrever e argumentar. São Paulo:
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KOCH, Ingedore Vilaça. Argumentação e linguagem. 7ª ed. São Paulo: Cortez,


2002.

KOCH, Ingedore Vilaça. A inter-ação pela linguagem. 10ª ed. São Paulo: Contexto,
2006.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros Textuais: definição e funcionalidade. In.:


DIONÍSIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Org.) Gêneros textuais e
ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

PERELMAN, C. OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação: A Nova


Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

RAMOS, Paulo. Faces do humor: uma aproximação entre piadas e tiras. Campinas,
SP:
Zarabatana Books, 2011.

TEIXEIRA, LGS. Sentidos do humor, trapaças da razão: a charge. Rio de Janeiro:


Fundação Casa Rui Barbosa, 2005.

VIVAS, Michele. As Mulheres Alteradas e a Literatura Mulherzinha - a


construção de feminilidades a partir de diferentes leituras de tirinhas cômicas de
Maitena. In: V Congresso Brasileiro de Hispanistas, 2008, Belo Horizonte. Anais...
Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG., 2008. v. 1, p. 3.126-3.135.

XAVIER, Glayci R. S.; SIQUEIRA, Sirley Ribeiro. Pensar por si e dizer o que
pensa: o ensino da argumentação e a formação de sujeitos autônomos.
Entrepalavras, Fortaleza, v. 9, n. 1, p. 72-92, jan./abr. 2019.
442 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

XAVIER, Caco. Aids é coisa séria! - humor e saúde: análise dos cartuns inscritos
na I Bienal Internacional de Humor, 1997. História, Ciências, Saúde-Manguinhos,
Rio de Janeiro, v. 8, n.1, p. 193-221, mar./jun. 2001.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |443

REFLEXÕES SOBRE ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA SURDOS –


SUGESTÕES DE ESTRATÉGIAS NA APLICAÇÃO DOS CONTEÚDOS

Roseni Maciel Couto (UFF/CMPDI)


Osilene Cruz (INES/UFF)

1. Introdução

Os desafios da educação brasileira são inúmeros, as rápidas transformações


sociais requerem o surgimento de novos métodos e abordagens para atender as
demandas da diversidade humana presente na escola. No que tange à educação
das pessoas surdas, nas últimas décadas, houve avanços em políticas públicas,
promovendo o reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais, Lei 10.436
(BRASIL, 2002), e sua regulamentação pelo Decreto 5.626 (BRASIL, 2005), além
da regulamentação da profissão do intérprete de Língua Brasileira de Sinais pela
Lei 12.319 (BRASIL, 2010).
Todavia, a transformação no sistema de ensino caminha lentamente, pois,
além das políticas públicas, é necessário reformulação no planejamento e na
execução do atendimento a esse público-alvo, perpassando pela formação dos
profissionais, não somente professores, e pela conscientização dos discentes não
surdos. De acordo com Guarinello (2007), a escola regular não conhece o
estudante surdo, ele ainda é recebido com ressalvas, principalmente por falar uma
língua diferente da língua usada pela maior parte da comunidade escolar.
Tomamos a definição de pessoa surda do Decreto 5.626/2005, Capítulo I,
Artigo 2º: “considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva,
compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais,
manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de
Sinais – Libras” (BRASIL, 2005). Diante disso, é necessário pensar que o trabalho
com um público, cujo perfil linguístico e cultural é distinto, demanda
metodologias específicas, por meio de recursos e estratégias visuais, de leitura de
444 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

imagens, elementos cruciais na organização do ensino para crianças surdas


(LEBEDEFF, 2010).
De acordo com Lodi, Bortolotti e Cavalmoreti (2014), o aluno surdo possui
demandas linguísticas que requerem perspectiva de educação bilíngue
(Libras/Língua Portuguesa escrita):

Essa relação entre língua constitutiva deste grupo sociocultural


torna, porém, o processo de letramento de surdos particular, ao
considerar que suas condições de bilinguismo diferem daquelas
observadas para pessoas ouvintes usuárias ou aprendizes de duas
línguas orais/escritas [...]. (LODI; BORTOLOTTI;
CAVALMORETI, 2014, p.132).

É fato que o processo de ensino de LP para surdos exige estudos


aprofundados e os cursos de licenciatura para professores de Língua Portuguesa
parecem não contemplar essa exigência. Na realidade, conteúdos ou metodologias
de ensino de Língua Portuguesa para surdos não são abordados na maioria dos
cursos de licenciatura. Balbaaki (2017) analisou um corpus composto por ementas
de 20 cursos de Licenciatura em Letras-Libras (e demais nomeações) e identificou
duas possibilidades em relação ao processo de disciplinarização:

1) Língua Portuguesa como objeto de conhecimento a ser


adquirido/aprendido pelo aluno surdo. Neste grupo, o enfoque
recai na proficiência e na construção de conhecimento
metalinguístico na LP2 (conhecer estrutura fonológica,
morfológica, sintática, aspectos textuais); 2) formas de tratar a
transmissibilidade da LP2 para surdos. Nesse grupo, há ênfase nas
metodologias a serem empregadas no ensino e na produção de
materiais. (BALBAAKI, 2017, p. 24).

Vale ressaltar necessidade de formação inicial e continuada do professor


para atuar com discentes surdos como prevê o Decreto 5.629/200. Balbaaki (2017)
identificou um número maior de oferta de disciplinas de Língua Portuguesa com
ênfase no aspecto metalinguístico, ou seja, em abordagens gramaticais, deixando
uma lacuna nos conteúdos que abordam metodologias a serem empregadas no
ensino do português para surdos. Nosso entendimento sobre o estudo da autora
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |445

denota que o uso de metodologias e estratégias não é, ainda, uma preocupação


prioritária na elaboração das ementas dos cursos de licenciatura em Letras/Libras
(Língua Portuguesa).
Para formação educacional e social de um sujeito, é necessário conhecê-lo,
conhecer o processo de aprendizagem. No caso do sujeito surdo, implica também
conhecer a língua de sinais e a cultura surda. No ensino da LP escrita para surdos,
não há como excluir a Libras, a língua primeira desse sujeito e língua de instrução
para o ensino da LP. Parece senso comum a afirmação de que os surdos
apresentam dificuldades e limitações na aprendizagem de LP. Concordamos que
possa haver limitações, no entanto, o aprendiz surdo não pode assumir essa
responsabilidade de não aprender, pois há outros fatores: limitações nos cursos de
formação docente, no sistema de ensino, nos recursos, nas abordagens
metodológicas, na sociedade.
Na verdade, não é o surdo que precisa de adaptações para o seu processo
de ensino-aprendizagem, mas o sistema educacional que demanda mudanças,
removendo barreiras e construindo caminhos para que os objetivos propostos
possam ser alcançados. Corroboramos nosso entendimento na própria exposição
do Decreto 5.626/2005, no capítulo IV, ao responsabilizar as instituições federais
de ensino no sentido de

(...) garantir, obrigatoriamente, às pessoas surdas acesso à


comunicação, à informação e à educação nos processos seletivos,
nas atividades e nos conteúdos curriculares desenvolvidos em todos
os níveis, etapas e modalidades de educação, desde a educação
infantil até à superior. (BRASIL, 2005. Art. 14)

Em turmas inclusivas, para o atendimento do aprendiz surdo, é necessária


a presença e atuação do intérprete educacional, cuja função é promover a
interpretação de uma língua para outra e mediar a comunicação entre surdos e
ouvintes no espaço escolar. Vale ressaltar que não compete ao intérprete o
desempenho de funções, normalmente a ele delegadas, por não constarem na
esfera de atuação, como acompanhar, ensinar, sanar dúvidas, atuar no
Atendimento Educacional Especializado, entre outras. A competência de
446 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

preparar aulas, pensar em recursos, metodologias e estratégias de ensino é do


professor e não do profissional intérprete.
Pensar que a inclusão se concretiza eficazmente pelo simples fato de inserir
o intérprete em sala de aula é um equívoco, pois o acesso à aula interpretada faz
parte da inclusão e da integração do aluno à escola. O artigo 14, do Decreto
5.626/2005, esclarece:

O professor da educação básica, bilíngue, aprovado em exame de


proficiência em tradução e interpretação de Libras - Língua
Portuguesa, pode exercer a função de tradutor e intérprete de
Libras - Língua Portuguesa, cuja função é distinta da função de
professor docente. (BRASIL, 2005)

A Lei 12.319/2010, que regulamenta a profissão do TILSP, corrobora o que


está estabelecido no referido decreto, ao elencar as atribuições do profissional, no
art. 6º, das quais nos interessam neste artigo as atividades relativas ao intérprete
educacional:

I - efetuar comunicação entre surdos e ouvintes, surdos e surdos,


surdos e surdos-cegos, surdos-cegos e ouvintes, por meio da Libras
para a língua oral e vice-versa;
II - interpretar, em Língua Brasileira de Sinais - Língua Portuguesa,
as atividades didático-pedagógicas e culturais desenvolvidas nas
instituições de ensino nos níveis fundamental, médio e superior, de
forma a viabilizar o acesso aos conteúdos curriculares (...) (BRASIL,
2010).

Considerando a importância de estratégias e de recursos adequados e


específicos para o ensino de LP para surdos, abordaremos uma reflexão sobre essa
temática.

2. Reflexões sobre ensino de Língua Portuguesa para surdos

Ao professor de Língua Portuguesa para aprendizes surdos, cabe a tarefa


de apresentar conteúdos de forma adequada, a partir de gêneros discursivos, que
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |447

façam parte de sua vivência, de sua rotina, de sua prática enquanto agente social
(CRUZ, 2016). Nesse sentido, pensamos no ensino de LP para surdos de forma
instrumental, funcional e dialógica, a partir das necessidades desse aluno,
buscando comparar sempre questões inerentes à Libras e à LP escrita e de modo
que o aprendiz se identifique com os textos e gêneros discursivos utilizados
durante o processo de ensino-aprendizagem.
O uso de recursos visuais é muito importante, tendo em vista a
singularidade desse aprendiz, pois sua primeira língua é a Libras, uma língua
espaço-visual, com estrutura gramatical própria (BRASIL, 2002). Vale destacar
também o direito desse aluno à aprendizagem da LP escrita, tendo em vista que
essa é sua segunda língua, apresentada e utilizada na modalidade escrita.
Neste artigo, como o leitor verá adiante, selecionamos alguns conteúdos,
tradicionalmente trabalhados nas aulas de Língua Portuguesa, cujos conceitos e
definições partem da gramática tradicional da LP e, algumas vezes, não fazem
sentido em Libras, por isso, o aluno pode ter dificuldade para compreender. Dessa
forma, reiteramos que o uso de estratégias e recursos inadequados com alunos
surdos os levará ao insucesso na aprendizagem, mas a responsabilidade por esse
insucesso não é dele, e sim do professor, que não conseguiu contemplar suas
demandas cognitivas e linguísticas.
Buscamos trabalhar os conteúdos a seguir por meio de recursos imagéticos,
gêneros discursivos com os quais eles tenham contato em sua rotina diária,
respeitando a dialogia entre os alunos, suas individualidades, a especificidade
linguística e cultural, a instrumentalidade e a funcionalidade da LP, língua-alvo.
Apresentamos nossas propostas de abordagens dos assuntos nas próximas
subseções.

 Substantivos
“Substantivos são palavras que designam seres-visíveis ou não,
animados ou não, ações, estados, sentimento, desejos, ideias” (CEREJA;
MAGALHÃES, 2005, p.114). Bechara (1999) define da seguinte forma:
448 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Substantivo é a classe de lexema que se caracteriza por significar o


que convencionalmente chamamos de objetos substantivos, isto é,
em primeiro lugar, substâncias (homem, casa, livro) e, em segundo
lugar, quaisquer outros objetos mentalmente apreendidos como
substâncias, quais sejam qualidades (bondade, brancura), estados
(saúde, doença), processos (chegada, entrega, aceitação).
(BECHARA, 1999, p. 112)

O professor poderá conceituar essa classe gramatical como sinais em


Libras, ou palavras em LP, complementando com a definição de Cereja e
Magalhães (ibid): “designam seres-visíveis ou não, animados ou não, ações,
estados, sentimento, desejos, ideias”. Reiteramos a necessidade de exemplificação
da ocorrência nas duas línguas.

Figura 1 (arquivo pessoal)

Destacamos duas frases da atividade proposta por Cereja e Magalhães


(2005, p.115), ao abordarem substantivos próprios:
Que substantivos próprios completam as frases a seguir, considerando-se o
contexto?
 O [ ] adverte: evite fumar na presença de crianças.
 O escritor português renascentista [ ] escreveu o conhecido poema épico Os
Lusíadas.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |449

A primeira frase, “O Ministério da Saúde adverte (...)”, é ouvida


rotineiramente na mídia, o ouvinte a conhece, portanto, não terá dificuldades
para completá-la; no entanto, para o surdo, muitas vezes, não é uma frase comum.
Para que ele responda a atividade proposta, o professor deverá trabalhar a frase e
o contexto em que é usada, inclusive, levando para sala de aula imagens com o
material de campanha do Ministério da Saúde, considerando-se que o surdo está
aprendendo a segunda língua e, consequentemente, outra cultura. O mesmo
ocorre ao trabalhar o segundo enunciado, ou seja, explicar em Libras e por meio
de recursos visuais pertinentes sobre a obra “ Os Lusíadas” e seu autor, Luiz Vaz
de Camões, que é a resposta correta.
Para classificar um substantivo em comum ou próprio, em uma
abordagem pensada para o aluno surdo, respeitando suas peculiaridades
linguísticas, pode ser feita a diferenciação entre o sinal particular e comum.
Assim, o sinal de professora (função) é um substantivo comum, já o sinal da
professora (nome dela) é um substantivo próprio.

Figura 2 (Arquivo pessoal)

A palavra instituto é um substantivo comum, mas Instituto Nacional de


Educação de Surdos (INES) é um substantivo próprio.
450 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Figura 3 (Arquivo pessoal)

Para abordar o assunto substantivos próprios com alunos surdos, sugerimos


um trabalho de leitura baseado no gênero textual documentos, utilizando os
documentos identidade e certidão de nascimento. Em seus documentos, o aluno
poderá compreender o motivo do seu sobrenome, nomes dos familiares, como
pais e avós paternos e maternos, nome do cartório em que foi feita a certidão de
nascimento, local onde nasceu etc. Dessa forma, o professor trabalhará, além do
conteúdo da disciplina, o autoconhecimento do aluno, fortalecendo sua
identidade e cidadania.

 Divisão silábica/ translineação


“Sílaba é um fonema ou um grupo de fonemas numa só emissão de voz,
a base da sílaba é a vogal; sem ela não há sílaba”. (CEREJA; MAGALHÃES, 2005,
p.65). Também é definida como: “Sílaba é um fonema ou um grupo de fonemas
num só impulso respiratório”. (BECHARA, 1999, p.84)
Cereja e Magalhães (2005, p. 66) trazem uma tirinha e propõem o seguinte:
Classifique quanto ao número de sílabas as seguintes palavras da tira:
Fiquei acredito mas aí campainha
Para realizar a atividade, o aluno ouvinte fará uso da pronúncia, porém, é
inviável para o aluno surdo separar as sílabas dessa forma. Então, nossa proposta
sugere que o professor separe as sílabas e solicite ao aluno surdo que classifique as
palavras quanto ao número de sílabas, como segue:
Fi-quei a-cre-di-to mas a-í cam-pa-i-nha
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |451

Nota-se que os conceitos e as atividades propostas acima não são exemplos


reais de uso. É necessário mostrar situações na escrita em que a regra se aplica.
Vejamos o exemplo:

Figura 4: Uso da separação silábica (Arquivo pessoal).

No início do processo de aquisição de vocabulário em LP, nos anos


iniciais do Ensino Fundamental, em algumas atividades, podem se oferecidas
palavras com as sílabas separadas, palavras previamente apresentadas e
contextualizadas, para que o aluno surdo perceba as sílabas unindo-as, como no
exemplo:
Sílabas separadas O aluno unirá as sílabas formando o nome das figuras.

Figura 5: Proposta de atividade para reconhecimento de sílabas (Arquivo pessoal)

Para essa atividade, sugerimos que o professor solicite aos alunos que
desenhem ou fotografem objetos cujos nomes eles desconheçam em LP. O
professor montará um cartaz com as palavras escritas e ilustradas com o material
dos alunos. Após mostrar que cada objeto tem um nome em LP, ele poderá
explicar a divisão silábica desses nomes e o processo de translineação. Deve ser
feita a continuidade com a criação de um texto coletivo. Com o auxílio dos alunos,
o professor fará o registro na lousa; os alunos poderão ser voluntários para
452 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

escrever as palavras que já aprenderam. Em seguida, copiarão o texto no caderno


e, assim, poderão aplicar a regra para divisão silábica em situações reais.
Essa atividade também desperta o interesse do aluno para aprender
palavras e ampliar o repertorio linguístico em LP, pois muitas crianças surdas,
somente na escola, descobrem que cada ser, cada objeto, cada fenômeno possui
um nome em português.
Algumas regras de divisão silábica podem ser percebidas visualmente,
como no caso dos dígrafos rr, ss, sc, xc etc. No entanto, ainda que o aluno surdo
saiba usá-las, haverá situações em que essa regra não será suficiente para dividir
outras partes da palavra, por exemplo: a palavra carreguei. O aluno saberá que (rr)
ficam separados (car-re), mas terá dificuldade na última sílaba (guei), por não
contar com o recurso da pronúncia.
Cabe aqui uma observação: em correção de provas escritas, em quaisquer
contextos, o avaliador precisa estar ciente dessa questão. O surdo não pode ser
penalizado por divisão silábica, a não ser que, durante a prova, ele possa consultar
a separação de sílabas no dicionário. De outra maneira, seria uma avaliação
injusta, pois, mesmo que sejam empregadas estratégias visuais apropriadas no
ensino, em muitos casos, a separação silábica só é possível através da pronúncia.

 Onomatopeias
As onomatopeias são classificadas nas gramáticas normativas como
representação do som: “Onomatopeias são palavras criadas com a finalidade de
imitar sons e ruídos produzidos por arma de fogo, sinos, campainhas, veículos,
instrumentos musicais, vozes de animais, etc.” (CEREJA; MAGALHÃES, 2005,
p.104) “Onomatopeia é o emprego de fonema em vocábulo para descrever
acusticamente um objeto pela ação que exprime.” (BECHARA, 1999, p.74).
As definições apresentadas foram pensadas para o público ouvinte, que faz
uso das onomatopeias na modalidade oral da LP em suas vivências. Porém, para o
público surdo, as definições mostradas não são claras. Então, se a explicação for
embasada nos conceitos apresentados nas gramáticas, não será suficiente para uma
compreensão plena.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |453

Para trabalhar a onomatopeia com o aluno surdo, sugerimos que seja usado
um conceito de som empregado na Física: “Som - fenômeno da propagação de
ondas de pressão produzidas no ar por um corpo que vibra.” (FERREIRA, 2011,
p. 822). A pessoa surda pode perceber o som através da vibração ou por ilustrações
visuais. O professor pode usar recursos que fazem parte das experiências dos
alunos, como: experimentar a vibração do aparelho celular; bater na porta e
mostrar que toc, toc é uma forma de representar em LP a vibração produzida.
Na imagem a seguir, há exemplos visuais de onomatopeias representando
sons que, muitas vezes, a pessoa surda não percebe ou, talvez, nunca tenha se dado
conta de que tais movimentos provocam ruídos sonoros, como engolir, mastigar,
arrotar etc.

Figura 6: exemplos de onomatopeias 29

Com esse recurso, o professor pode aguçar a curiosidade para outras


situações importantes, poderá orientar o aluno surdo sobre determinados
comportamentos que fazem parte da cultura ouvinte e ampliar o conhecimento,
explicando o porquê de evitarmos andar arrastando o sapato, fazermos
movimentos suaves para não acordar alguém que dorme, entre outras situações.
O professor pode trabalhar esse recurso da língua em um gênero textual;
sugerimos o gênero História em quadrinhos em que onomatopeia é um recurso
bem presente e marcado. A composição visual, as expressões das personagens, o

29 http://portaldoservidor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=13667acesso em 16/09/2018.
454 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

formato dos balões, as ilustrações etc. que, se bem explorados, ampliam a


compreensão das onomatopeias.
Como atividade, após a compreensão, o professor pode solicitar que os
alunos fotografem, desenhem ou selecionem imagens de eventos sonoros, nos
quais possam perceber a vibração de alguma forma, como: a água saindo da
torneira, a vibração do celular, a chuva caindo etc. Em sala de aula, com o auxílio
do professor, os alunos podem fazer a representação do som, isto é, da vibração
usando as onomatopeias. Também sugerimos que seja construída uma história em
quadrinhos com esses recursos para consolidação da aprendizagem.

 Classificação do sujeito – simples ou composto?


A abordagem do assunto classificação do sujeito com o aluno surdo requer
observações minuciosas nas escolhas lexicais em Libras e em Língua Portuguesa e
explicações muito claras, comparando as duas línguas, a fim de evitar equívocos
na compreensão. Vejamos as definições:

O sujeito, quando explicitado ou claro na oração, está representado


— e só pode sê-lo — por uma expressão substantiva exercida por
um substantivo (homem, criança, sol) ou pronome (eu) ou
equivalente. Diz-se, portanto, que o núcleo do sujeito é um
substantivo ou equivalente. (BECHARA, 2005, p.410)

“Quando apresenta um só núcleo é chamado de sujeito simples; quando


apresenta dois ou mais núcleos, é chamado de sujeito composto.” (CEREJA;
MAGALHÃES, 2005, p.248).
Algumas vezes, um sujeito simples na Língua Portuguesa pode ser um
sujeito composto em Libras. Partindo das definições de sujeito, mostramos casos
em que ocorre essa diferença. Tomamos como exemplo a palavra pais. Em LP,
pode significar plural de pai no masculino e, também, pai e mãe. Em Libras, no
entanto, para dizer pais, referindo-se a pai e mãe, um sinal apenas não contempla
essa representação, são feitos os sinais (pai-mãe). Exemplos: Português - Os pais
compareceram à reunião
Libras- Pai/mãe compareceram à reunião
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |455

Figura 7: sinal de pais (pai e mãe) – arquivo pessoal

Como vemos nas imagens acima, se o aluno surdo tiver dúvidas e recorrer
à interpretação, o intérprete ou o professor irá sinalizar pai/mãe, ou, mesmo se o
próprio aluno fizer a leitura em Libras, aparecerão pai/mãe, dois núcleos. Então,
o aluno poderá fazer a classificação, considerando o aspecto apresentado em
Libras, dois núcleos: sujeito composto. Para evitar esse equívoco, professor deve
ter conhecimento em Libras e em LP para mostrar ao aluno essa diferença nas
duas línguas. Sugerimos o uso do gênero textual convite (convite para reunião de
responsáveis), em que é empregado o termo pais, para exemplificar o significado
no contexto.

Figura 8: gênero textual convite com o uso da palavra pais (Arquivo pessoal)

Deve ser feita a leitura do convite com os alunos, extraindo o que eles
compreenderam, perguntando: Quem são os responsáveis? / O que significa a
palavra pais? Quem são seus pais ou responsáveis? Mostrando que, quando ele vê
a palavra pai em português, ela representa apenas uma pessoa do sexo masculino;
456 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

entretanto, a palavra pais (plural) pode representar (pai e mãe), (dois ou mais pais
do sexo masculino), (responsáveis: avós, tios, ou outras pessoas). A partir de um
exemplo usual o aluno poderá ter uma compreensão clara. Outro exemplo é a
palavra casal: em LP, representa duas pessoas ou dois seres, um do sexo masculino
e outro do sexo feminino; porém, em Libras, em algumas construções, a palavra
casal é representada pelos sinais homem ou (macho) e mulher ou (fêmea).

Figura 9: sinal de casal (Arquivo pessoal)

No exemplo30 a seguir, se o surdo considerar a representação de casal em


Libras e a imagem, sem que o conceito de casal em LP tenha sido explorado,
ocorrerão equívocos na classificação do sujeito. Exemplo: O casal de joão-de-
barro constrói a casa juntos para abrigar os filhotes que nascerão nos próximos
meses.

Figura 10: exemplo de casal (Google imagens)

30 Imagem extraída de: http://www.ninha.bio.br/biologia/joao-de-barro.html. Acesso em 14 jan 2019.


Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |457

A imagem mostra duas aves; em Libras, será feito o sinal do pássaro macho
e o da fêmea, logo, haverá dois núcleos, o que configura, em LP, sujeito composto.
É necessário mostrar o conceito através de situações reais, em que esta
palavra é empregada. Por exemplo, chamar um menino e uma menina à frente e
dizer que se trata de um casal de alunos, que a frase para registro da situação
poderia ser escrita das seguintes formas:
Um aluno e uma aluna vieram à frente. – uso de duas palavras, portanto,
dois núcleos.
Um casal de alunos veio à frente. – uso de uma palavra para representar
duas pessoas, portanto, somente um núcleo.
Em Libras, realmente, há dois núcleos; diferentemente da classificação em
LP, o sujeito é composto. Essa observação também deve ser mostrada ao aluno,
pois o surdo recebe as explicações em Libras e faz os registros escritos em LP,
certamente, seu raciocínio fica envolvido nas duas línguas.
Considerações finais
Embora a melhora na qualidade da educação dos alunos surdos exija
grande trabalho e esforço, todos os alunos, sem distinção, têm direito à educação
que atenda as suas demandas e lhes proporcione o desenvolvimento de suas
potencialidades. Quando são revistos os métodos que falharam e aprimorados os
bons métodos, com a finalidade de formar o aluno para o exercício pleno de
cidadania, garantindo-lhe os direitos previstos nas leis e nas diretrizes que regem
a educação, não só o estudante é beneficiado, todos os envolvidos ganham e a
sociedade usufrui do resultado positivo desse trabalho. O aluno surdo não é menos
capaz nem tem menos direitos, a escola também é para ele.

REFERÊNCIAS

BALBAAKI, Ângela. Disciplinarização da Língua Portuguesa como segunda


língua para alunos surdos: uma análise das ementas dos cursos de letras-libras.
Revista Arqueiro, Rio de Janeiro: INES, vol. 1, jan-jun 2017.
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BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37 ed. rev. e ampl. Rio de


Janeiro: Lucerna, 1999.

BRASIL. Decreto n° 5626/2005. Regulamenta a lei n°10.436/2002, que dispõe da


Língua Brasileira de Sinais-Libras Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccvil 03/ /Ato2004-
2006/2005/Decreto/d5626.htm. >. Acesso em: 15 nov. 2018.

______.Lei nº10.436/2002. Dispõe da Língua Brasileira de Sinais- Libras.


Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10436.htm>.
Acesso em 18 nov. 2018.

_____.Lei nº 12.319/2010. Regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da


Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12319.htm.
Acesso em 25 jan de 2019.

CEREJA, Willian; MAGALHÃES, Thereza. Gramática reflexiva. Texto,


semântica e interação. 2 ed. São Paulo: Atual, 2005.

CRUZ, Osilene Maria de Sá e Silva da. Estratégias didáticas para o ensino de


resenha acadêmica a graduandos surdos em uma perspectiva bilíngue: Libras e
Língua Portuguesa escrita. In: MORAES, Márcia (Org). Questões da educação.
Rio de Janeiro: iVentura, 2016, p. 135 – 159.

FERREIRA, Aurélio. Aurélio júnior: Dicionário escolar da língua portuguesa. 2


ed, Curitiba: Positivo, 2011.

GUARINELLO, Ana. O papel do outro na escrita de sujeitos surdos. São Paulo:


Plexus, 2007.
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LEBEDEFF, Tatiana. Aprendendo a ler “com outros olhos”: relatos de oficinas de


letramento visual com professores surdos. Cadernos de educação, 36,175-195.
FaE/PPGE/UFPel, Pelotas, São Paulo.2010.

LODI, A. C. B; BORTOLOTTI, E. C.; CAVALMORETI, M. J. Z. Letramentos de


surdos: práticas sociais de linguagem entre duas línguas/culturas. Bakhtiniana,
São Paulo, v. 9, n. 2, p. 131-149, ago./dez., 2014.
460 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

MATERIAIS DIDÁTICOS PARA SURDOS: OS DESAFIOS DE SUA PRODUÇÃO


E ELABORAÇÃO

Vanessa dos Santos Galvão Noronha (UERJ/ INES)


Angela Correa Ferreira Baalbaki (UERJ)
Gabrielli Afonso Serafim (UERJ/ INES)
Aline França dos Santos (UERJ)

1. Introdução

A educação de surdos no Brasil caminha a passos tímidos na busca por


recuperar anos de atraso causados pelo Congresso de Milão, em 1880, em que foi
proibido o uso das línguas de sinais em todo o mundo, dando lugar ao ensino
oralista. No caso do Brasil, a Língua Brasileira de Sinais (Libras) foi marginalizada
e excluída e a Língua Portuguesa em sua modalidade oral foi tornada obrigatória
no ensino de surdos, principalmente, a partir de 1911, com o Decreto nº 9.198.
O uso do oralismo na educação elevou o índice deficitário do ensino dos
alunos surdos, com reflexos negativos em sua integração social. Foram necessários
anos de lutas por direitos e por políticas linguísticas, até que a Lei nº 10.436/2002
homologou a Libras como meio legal de comunicação e expressão da comunidade
surda e possibilitou o seu acesso aos serviços públicos e educacionais, mesmo ela
não substituindo a modalidade escrita da Língua Portuguesa. Seu reconhecimento
aconteceu após mais de cem anos de exclusão da Libras na educação e na esfera
social.
Foi por meio do Decreto nº 5.626 de 2005 que o ensino de Libras nos cursos
de formação de professores no Ensino Médio e nos cursos de Licenciaturas no
Ensino Superior passou a ser obrigatório, a fim de promover uma formação mais
adequada no que se refere à educação de surdos, já que ainda é muito precária a
formação de docentes para o atendimento de discentes surdos, visto a grande
desinformação sobre a área.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |461

Visando promover pesquisas na área da surdez e, principalmente, no que


se refere ao ensino de Língua Portuguesa para a comunidade surda e na produção
de materiais didáticos que auxiliem o docente durante o processo de ensino, e,
consequentemente, auxiliar na formação dos alunos da graduação do curso de
Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), criou-se o projeto de
extensão “Recursos e materiais para o ensino de Português para alunos surdos”.
Esse projeto propõe a elaboração de materiais didáticos de Língua
Portuguesa escrita, como segunda língua, que contemple as diferenças e
especificidades linguísticas do aluno surdo, atuando com o subsídio da Libras no
processo de ensino-aprendizagem, por meio de uma proposta de educação
bilíngue, em que a Libras é a primeira língua do discente surdo, enquanto o
Português escrito é a segunda. A Libras, atuará, portanto, como a língua de
instrução desse alunado no aprendizado da segunda língua.
O Português define-se como uma língua oral-auditiva, enquanto a Libras
é uma língua viso-espacial, logo ambas possuem estruturas linguísticas distintas
e, portanto, suas metodologias de ensino-aprendizagem também devem se
diferenciar. Por isso, faz-se necessário o uso de uma abordagem que explore
aspectos visuais, como imagens e vídeos legendados e em Libras, a fim de
promover o aprendizado da segunda língua.
A ideia da produção de um material didático surgiu devido à baixa
produção de materiais desenvolvidos especificamente para a comunidade surda.
Conforme Leite e Cardoso (2009), há uma escassez em sua produção ou, quando
existente, não contempla o desenvolvimento das interfaces de leitura e escrita
desse alunado. Não possui os recursos especializados para alunos surdos, além de
o material não fazer referência à sua cultura ou à sua identidade, excluindo
qualquer tipo de manifestação cultural do aluno surdo.
462 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

2. O que é Material Didático?

Costuma-se associar o conceito de material didático com o de livros


didáticos, já que os livros são as ferramentas mais utilizadas por professores no
processo de ensino-aprendizagem. Entretanto, seu conceito é muito mais
abrangente:

Em termos gerais, qualquer material que seja usado para fins


didáticos pode ser considerado um material didático, mesmo que a
sua produção inicial não tenha sido orientada ou voltada para o seu
uso educacional. Poemas, letras de músicas, filmes, jornais, por
exemplo, não são produzidos para fins pedagógicos, mas são usados
por professores de línguas (maternas e estrangeiras) com certa
frequência como materiais didáticos. (VILAÇA, 2011, p. 1020)

Portanto, como define Tomlinson (2004), citado por Vilaça (2012),


entende-se como material didático todo e qualquer recurso que atue como
facilitador no processo de ensino-aprendizagem de línguas. De forma mais
abrangente, definiremos como material didático os recursos empregados no
momento do ensino-aprendizagem como auxiliador na transmissão de conteúdos
entre professor e aluno.

2.1 E como são os materiais didáticos para o ensino de Língua Portuguesa como
segunda língua para surdos?

Para que se tenha uma educação bilíngue (Libras/Língua Portuguesa)


para discentes surdos, há a necessidade de um ensino que se adapte às
especificidades linguísticas desse alunado. Partindo desse aspecto, o material
passa a ser mais do que uma base para o estudo, é uma forma de inserção da cultura
surda e dos seus componentes, passando a ser um agente facilitador do processo
de ensino-aprendizagem.
Para compreender melhor como seriam esses materiais didáticos,
partindo do ponto que esses atendam às especificidades do aluno surdo, basear-
nos-emos nos critérios pautados em estudos de Vilaça (2009), que tratam da
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |463

necessidade de adequação desse material de acordo com as especificidades dos


alunos que terão contato com o livro em uma segunda língua. E, também, nos
critérios pautados em Baalbaki (2013), que expõe em seu texto que materiais
voltados para o ensino de Língua Portuguesa como L2 para alunos surdos devem
apresentar recursos visuais que dialoguem com os textos trabalhados em aula,
ressaltando a importância do bilinguismo.
Assim, os pontos temáticos importantes voltados aos aspectos
fundamentais relacionados à produção de materiais didáticos para alunos surdos
são: 1) Sequência didática com recursos visuais; 2) Tema que estimule o interesse
do aluno surdo; 3) Diversidade e adaptação de gêneros textuais; 4) Estimulação e
incorporação da experiência visual e da cultura surda; 5) Uso de metodologia
bilíngue.
Salienta-se que os recursos visuais presentes no texto devem ser
trabalhados de modo a estimular os alunos a contribuírem com o
desenvolvimento da aula, pois o processo de ensino-aprendizagem da Língua
Portuguesa, na modalidade escrita, não deve ser visto como sobreposição de
imagens a atividades pensadas a partir de um material desenvolvido para ouvintes.
Com o reconhecimento da Libras a partir da lei nº 10.436/2002 e do
Decreto nº 5626/2005, o desenvolvimento de propostas para o bilinguismo e a
construção de materiais e recursos didáticos voltados para os surdos demarcam
não apenas propostas educacionais, mas também a busca por reconhecimento e
consequente ocupação de espaços sociopolíticos de um grupo considerado como
minoria linguística e, portanto, muitas vezes excluído.
Contudo, ainda é muito baixa a oferta de materiais didáticos para a
comunidade surda; os docentes que trabalham com os surdos não conseguem
encontrar MDs suficientes, pois poucos são publicados e, quando são, poucos são
disponibilizados para as escolas, e até mesmo o acesso é restrito devido à
dificuldade de compra e alto custo desses materiais:
464 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Mas no caso de professores que atuam com o ensino de alunos


surdos há uma lacuna, pois não dispomos de um volume
representativo de materiais para o ensino das disciplinas da escola,
que contemplem a educação bilíngue dos surdos. Sendo assim, o
professor de cada disciplina fica responsável por pesquisar ou
elaborar atividades e materiais didáticos para o surdo. (SANTOS,
2012, p. 4-5)

Ao pensarmos na situação citada, fizemos uma busca pelos materiais


disponíveis para o ensino de Língua Portuguesa, com o objetivo de encontrar
materiais sob as bases da educação bilíngue. A busca não foi muito satisfatória,
então, resolvemos utilizar o levantamento feito por TEIXEIRA (2015) que dividiu
esses materiais em 4 grupos: a) Livros voltados para educadores; b) Livros voltados
para orientações curriculares; c) Livros voltados para o público discente; d)
Manual de atividades.
Dentre os materiais apresentados, escolhemos somente os com que
tivemos contato durante o período que permanecemos no projeto de extensão.
Um manual de atividades, “Português …eu quero ler e escrever” (ALBRES, 2010),
é um material que apresenta atividades voltadas para o ensino de LP para surdos,
que envolve questões vocabulares, e algumas atividades que abordam a leitura e
a produção de gêneros textuais. Ressaltamos que não é um material com imagens
sobrepostas, que apresenta palavras isoladas ou até mesmo descontextualizadas
com adaptações ou traduções da Língua Portuguesa. De fato, é um manual com
atividades preparadas a partir das especificidades linguísticas do alunado surdo.
Contudo, para ser adquirido é necessário comprá-lo na instituição que o produziu,
limitando o acesso ao material.
Como exemplo de livro didático, um dos poucos encontrados para essa
função, temos a coleção de Português do Projeto Pitanguá publicada pela editora
Moderna (2005), destinada a alunos da 1ª à 4ª série do Ensino Fundamental I,
atuais 2º ao 5º ano do Ensino Fundamental I, que foi distribuída gratuitamente
pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). O material foi produzido e
pensado para alunos ouvintes e, para que pudesse ser utilizado por discentes
surdos, ocorreu a tradução de todo o conteúdo para Libras, pela editora Arara
Azul. Desta forma, a coleção é uma tradução que apresenta a versão digitalizada
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |465

em CD-ROM. Para que o aluno consiga ter acesso ao conteúdo na forma digital,
ele precisa ir ao lado de cada frase e clicar em um ícone, em seguida, uma janela
é aberta e aparece o vídeo em Libras mostrando a tradução da frase do Português
para Libras.
Apesar da existência desse material, ele não é condizente com a
metodologia bilíngue, uma vez que quase não há a presença de recursos visuais,
ou a presença de algumas referências aos aspectos linguísticos do aluno surdo ou
à cultura surda.

3. Elaboração do Material: Construindo Juntos: uma aventura de leitura e escrita –


Volume I

Diante dessa escassez, o projeto de extensão “Recursos e materiais para o


ensino de Português para alunos surdos” (UERJ), a partir de 2014, desenvolveu o
primeiro volume do material didático intitulado de “Construindo Juntos: uma
aventura de leitura e escrita”, que consiste no ensino de Língua Portuguesa
escrita, como segunda língua, voltado para discentes surdos do 6º ano do Ensino
Fundamental I. O material didático foi produzido pensando nas diferenças e
especificidades linguísticas e culturais do aluno surdo, através de um processo de
ensino-aprendizagem pautado na proposta bilíngue de ensino, na qual a Libras é
a primeira língua (L1) desse aluno e a Língua Portuguesa, a segunda língua (L2).
Para a preparação do material, primeiramente, as bolsistas do projeto
realizaram estudos teóricos voltados para a educação dos surdos; pesquisas de
materiais existentes direcionados para o ensino de Língua Portuguesa, como L2,
para a comunidade surda; visitas às escolas de ensino bilíngue para observar as
dinâmicas de ensino e aprendizagem dos alunos e conversas com profissionais que
atuam com a comunidade surda em escolas regulares e no Instituto Nacional de
Educação de Surdos (INES). Por fim, foi iniciado o processo de planejamento do
material didático com a realização do levantamento do currículo base de Língua
Portuguesa do 6º ano do Ensino Fundamental I do município do Rio de Janeiro e,
466 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

posteriormente, foram feitas adaptações conforme a necessidade do público-alvo


do projeto.
A intenção desse material didático é desenvolver a escrita da Língua
Portuguesa do aluno surdo através de textos e imagens que estão presentes no seu
cotidiano e, também, com elementos pertencentes à cultura surda, assim,
promovendo a aproximação entre a Língua Portuguesa escrita e a Libras. Visto
que o Português é uma língua oral-auditiva, e a Libras é uma língua viso-espacial,
o material é elaborado com base em uma pedagogia visual que,
consequentemente, recorre ao uso de gêneros textuais e textos imagéticos que
explorem a percepção visual do estudante.
De acordo com Marcuschi (2003, p. 19), “os gêneros textuais são
fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social. Fruto
de trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as
atividades comunicativas do dia a dia.”. Assim, o material didático foi dividido em
quatro módulos que, por meio de diferentes gêneros textuais, são trabalhados
variados conteúdos gramaticais. O módulo I trabalha os gêneros textuais bilhete,
mensagem instantânea e e-mail; o módulo II, tirinhas e HQ; o módulo III, contos
de fadas; o módulo IV, poemas. A partir desses gêneros textuais foram elaboradas
atividades que contemplassem tanto aspectos da composição do gênero-textual,
quanto aspectos da sistematização linguística.
Além do livro impresso, o material didático também deverá contar com
videoaulas em Libras e legendas em Português que integrarão o conteúdo do
material e que, dessa forma, possibilitarão o aprendizado da segunda língua
através da primeira, proporcionando, assim, que haja um trabalho eficaz em
conjunto da Libras e da Língua Portuguesa e a consequente aproximação entre
ambas as línguas e seus aprendizes.
A seguir, a título de ilustração, inserimos duas páginas do material
produzido pelo grupo do projeto de extensão.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |467

Figura 1 – Material didático

3.1 Pedro Jorge e Maria Joana

No decorrer do material, os estudantes irão interagir com dois personagens


criados especialmente para auxiliar no processo de ensino-aprendizagem desse
aluno. O primeiro personagem se chama Pedro Jorge (seu sinal31 é a letra “p” da
Libras na altura dos olhos), sua função é de interagir diretamente com o aprendiz.
Ele aparece ao longo do material fazendo perguntas que provocam a reflexão do
aluno em relação ao conteúdo que será ensinado; é um personagem que faz a
mediação entre o material didático e o discente.
A outra personagem é a Maria Joana (seu sinal é a palma da mão aberta
voltada para a cabeça fazendo movimento de ondulação ao longo da lateral do
comprimento do cabelo), seu papel é de fazer observações importantes no que diz

31
O sinal de cada um dos personagens foi dado pelo professor surdo Weslei da Silva Rocha do Instituto
Nacional de Educação de Surdos (INES).
468 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

respeito ao conteúdo gramatical proposto no capítulo, além disso, traz dicas para
facilitar a compreensão do tema apresentado.

Figura 2 – Material didático


Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |469

3.2 Valorização da cultura surda

Durante a criação do livro didático, o projeto atentou-se em incluir,


sempre que cabível, elementos da cultura surda para que o aluno tivesse uma
maior identificação com o material. Além de que o material é, também, uma
forma de valorização, inserção e manifestação da cultura surda e dos seus
componentes. Para tal feito, foram inseridos, no decorrer do material, textos que
fizessem parte da cultura do aluno surdo, informações de personalidades surdas e
curiosidades pertencentes ao universo do aprendiz.

Figura 3 – Material didático

3.3 Projeto Final

No último capítulo do livro, é proposta a produção de uma peça teatral que


visa resgatar, de forma lúdica, todo o conteúdo visto ao longo de todo o material
didático. A escolha em trabalhar com a peça teatral como projeto final do livro
surgiu pelo fato de parecer um meio eficiente de retomar e revisar os conteúdos
apresentados ao longo dos módulos, pois através dela é possível o trabalho de
470 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

aspectos linguísticos da Língua Portuguesa aliado a Libras e a experiência visual,


imprescindível para um indivíduo que possui uma língua viso-espacial, como é o
caso dos surdos.
Com a produção da peça teatral, espera-se que o aluno desenvolva
competências linguísticas, como a leitura e a escrita da Língua Portuguesa, além
do desenvolvimento artístico e do trabalho em equipe. Por meio do processo de
produção da peça teatral, a atividade visa proporcionar o ensino da Língua
Portuguesa escrita, compreensão e produção textual, junto a uma proposta lúdica.
Além disso, a peça possibilita que os alunos surdos possam manifestar suas
emoções e se expressar dentro de sua própria realidade.

4. Desafios encontrados na elaboração do Material Didático

O processo foi pensado com o propósito de oferecer um material que


possibilitasse o ensino da Língua Portuguesa escrita de forma adequada à
realidade da comunidade surda, sempre respeitando suas particularidades
linguísticas e culturais. Porém, durante o processo de elaboração do material
didático, o projeto encontrou diversos desafios por todo o percurso.
O primeiro desafio encontrado foi a carência de materiais para ensino de
Língua Portuguesa como segunda língua para alunos surdos, visto que há uma
escassez desse tipo de material e os que existem são ineficientes e não atendem a
demanda do conteúdo escolar voltado para alunos surdos. Diante da ausência de
algum referencial, os participantes do projeto tiveram que realizar pesquisas
teóricas e de campo sobre o ensino bilíngue para surdos. Também contamos com
assessoria de professores da área de educação de surdos para compreender melhor
quais eram as maiores dificuldades dos seus discentes e quais ferramentas utilizar
para tornar o ensino-aprendizagem mais adequado.
Uma vez que o material está baseado no ensino de gêneros textuais, a
escolha de cada um desses gêneros não foi simples, pois existe uma série de
critérios que cada um deveria conter para ser inserido no livro didático: como
deve se relacionar, preferencialmente, com o cotidiano e a realidade da
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |471

comunidade surda, além de estimular o campo visual e possuir uma linguagem de


fácil compreensão, para, assim, despertar o interesse do aluno surdo. Portanto, o
projeto buscou somar o uso dos gêneros textuais com os aspectos da comunidade
surda, para que, assim, haja uma identificação do aprendiz com o material.
As definições de aspectos gramaticais encontradas em dicionários, livros e
gramáticas são definidas a partir da ideia de uma língua oral-auditiva e de um
interlocutor ouvinte, logo, quando esse interlocutor é um indivíduo surdo, suas
definições passam a ser, muitas vezes, incompreensíveis. Por exemplo, como
definir o que é uma oxítona, que de acordo com dicionários e gramáticas é a
palavra que possui a última sílaba sendo tônica? Que resulta em outra pergunta:
o que é sílaba tônica? E, também, em: o que são separações de sílabas? Como elas
são feitas?
Essas e outras definições são passíveis de compreensão para um aluno
ouvinte, pois a sua língua é oral-auditiva e ele pode se basear em aspectos
fonéticos e fonológicos de sua própria língua para compreendê-las; o mesmo não
ocorre com o sujeito surdo que está aprendendo a Língua Portuguesa. Portanto,
trabalhar com a gramática e as definições de termos que fossem passíveis de
compreensão para um surdo foi um grande desafio ao longo do processo de criação
do material, dado que era necessário fazer adaptações, levando em consideração
as especificidades de sua primeira língua.
Antes de tudo, foi necessário compreender melhor quais são os desafios
encontrados pelo discente surdo quando está no processo de aprendizagem da
segunda língua e, a partir disso, criar estratégias de ensino do sistema linguístico
do português, que fosse de fácil entendimento para o aluno surdo. As definições
com uma linguagem mais compreensível e objetiva, o uso constante de textos
imagéticos e a presença da Libras foram alguns dos métodos adotados como
estratégia de ensino da Língua Portuguesa. O auxílio das professoras do INES foi
de vital importância, pois contribuíram com aconselhamentos e ajudaram na
revisão das atividades.
Os poucos recursos também foram um obstáculo na criação do
“Construindo Juntos: uma aventura de leitura e escrita”, sendo eles: a falta de
472 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

utilização de um programa especializado na diagramação do livro; baixo recurso


financeiro; ausência de um espaço adequado para produção do material;
dificuldades de encontrar imagens específicas foram umas das dificuldades
encontradas.
Apesar dos diversos desafios, o livro foi finalizado, revisado e no presente
momento o projeto de extensão está em busca de uma parceria para a editoração
e a distribuição gratuita do livro didático.

5. Considerações finais

Devido às singularidades linguísticas e culturais do aluno surdo,


ressaltamos a importância de uma proposta de ensino bilíngue, em que a Libras
atua como língua de instrução, possibilitando, assim, que o aluno tenha um meio
de se desenvolver linguisticamente durante o processo de aprendizagem.
A partir de algumas reflexões sobre o ensino de Língua Portuguesa como
segunda língua para discentes surdos, buscamos mostrar os desafios encontrados
no que se refere à criação de materiais didáticos, que resultou no livro
“Construindo Juntos: uma aventura de leitura e escrita” e as estratégias escolhidas
para o ensino de Português como segunda língua para a comunidade surda.
Para que o livro pudesse ser elaborado, utilizamos recursos de imagens e
vídeos, além da própria Libras como forma de acessar a Língua Portuguesa na
modalidade escrita. O intuito desse material é promover o desenvolvimento da
escrita da Língua Portuguesa através de textos e imagens que estão presentes no
cotidiano do aluno e, também, com elementos pertencentes à cultura surda,
assim, promovendo a aproximação entre a Libras e a Língua Portuguesa escrita.
Deste modo, nosso objetivo é contribuir para reflexões que são
fundamentais para o ensino-aprendizagem do aluno surdo, propondo, a partir de
alguns questionamentos, apontar estratégias de como o ensino de Língua
Portuguesa como segunda língua pode ser desenvolvido em sala de aula.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |473

REFERÊNCIAS

BAALBAKI, A. C. F. A formação do professor e o ensino e o processo de ensino-


aprendizagem da Língua Portuguesa para alunos surdos. Pesquisas em Discurso
Pedagógico (On-line), v.1, p. 1-9, 2013.

BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei no


10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais –
Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, 23 dez. 2005. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004 2006/2005/decreto/d5626.htm

BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002.Dispõe sobre a Língua Brasileira de


Sinais – Libras e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25
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http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Leis/2002/L10436.htm Acesso em: 10
nov. 2018

LEITE, J. G.; CARDOSO. J. Inclusão Escolar de Surdos: Uma análise de livros de


alfabetização. In: Anais do IX Congresso Nacional de Educação – EDUCERE.
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PEREIRA, M. C. C. O ensino de português como segunda língua para alunos


surdos: princípios teóricos e metodológicos. Educar em Revista. Editora UFPR,
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474 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

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TEIXEIRA, V. G. Encontros e desencontros: reflexões sobre a prática pedagógica


no ensino de português como L2 para surdos à luz da Teoria dos Sistemas
Complexos. 2015. 198f. Dissertação [Mestrado]. Universidade do Estado do Rio
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em: 10 nov. 2018
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |475

DISCURSOS FALACIOSOS NO MEIO POLÍTICO

Vívian de Sousa Neves Pereira (UERJ/CAPES)

1. Introdução

As falácias ou silogismos falaciosos estão presentes nos mais diversos


tipos de manifestação da linguagem, podendo aparecer em ocasiões cotidianas ou
de extremo rigor formal. Nem sempre as falácias são propositais, entretanto,
muitas vezes, esse tipo de argumentação é intencional e bem estudado pelo
locutor ou emissor.
No meio político, as falácias são recursos utilizados pelas mídias
impressas, digitais ou orais, e pelos próprios políticos, bem como por quem se
envolve direta ou indiretamente com tais assuntos. Para CHARAUDEAU (2018,
p.113):
A imprensa é, essencialmente, uma área escritural, feita de
palavras, de gráficos, de desenhos e, por vezes, de imagens fixas,
sobre um suporte de papel. (...) A atividade de conceitualização é
muito mais analítica do que na oralidade ou na iconicidade. Além
disso, como tal atividade se acompanha de um movimento que
percorre seguidamente o espaço escritural do começo ao fim (e
mesmo em vários sentidos), o leitor põe em funcionamento um tipo
de compreensão mais discriminatória e organizadora que se baseia
numa lógica “hierarquizada”: operações de conexão entre as
diferentes partes de uma narrativa, de subordinação e de encaixe
dos argumentos, de reconstrução dos diferentes tipos de raciocínio
(em árvore, em contínuo, em paralelo, etc.). A escrita desempenha
o papel de prova para a instauração da verdade, o que não é possível
para a oralidade, não recuperável e, aparentemente, mais efêmera.
(Grifos nossos)

O propósito deste artigo é demonstrar, através de exemplos no meio


político recente, algumas construções de argumentação falaciosa, utilizadas por
pessoas públicas e publicadas em mídias digitais e impressas.
476 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Segundo DANEY (apud CHARAUDEAU, 2018, p.31):

Para que serve a informação, então? Vamos percorrer três respostas


possíveis. A mais inconfessável concerne a nossos interesses de
puro consumidor, voyeur solitário do espetáculo da atualidade. (...)
Há, também, menos inconfessáveis, os interesses do torcedor ou do
voyeur coletivo. (...) Há, enfim, totalmente confessáveis (mas que
não interessam a quase ninguém), os interesses do cidadão. (...) O
voyeur, o torcedor, o cidadão têm lá suas razões e não se trata de
desconsiderá-las. São as razões do perverso, do tribal e do cívico.

A opinião pública, diante dos enunciados, pode ser radicalmente


modificada dependendo de como se articula a argumentação e de quem profere o
discurso. Essas instituições de “autoridade”, de “legitimidade” e de “poder”
aparecem como diferenciais na repercussão do texto dito ou escrito. Para
CHARAUDEAU (2016, p.14), há diferença entre poder, autoridade e potência.
“Convém fazer algumas distinções, pois, quando se ouve falar de ‘crise do poder’,
de ‘perda de legitimidade’, de ‘queda de autoridade’ da potência pública, tem-se o
sentimento de que essas noções se confundem, que são usadas uma pela outra.”
Ainda segundo o autor:

O poder é a situação que permite a alguém decidir mudar alguma


coisa na ordem do mundo, agindo sobre outro ou sobre um grupo.
(...) Estabelece-se, então, uma relação de dominação entre um
dominante e um dominado, que faz com que o poder se defina
numa relação de alteridade, de maneira coercitiva. Mas também é
necessário que esse ‘agir sobre o outro’ seja justificado. Nesse caso,
colocam-se três questões: em nome do que se tem o direito de agir
— é a questão da legitimidade; qual a possibilidade de ser
reconhecido como digno de agir — é a questão da autoridade; quais
são os meios de agir — é a questão da potência.

2. Argumentação e lógica

Conforme define FIORIN (2015, p.69), um argumento são proposições


destinadas a fazer admitir uma dada tese. A finalidade da argumentação é
persuadir e, como qualquer discurso, o argumento é um enunciado que resulta de
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |477

um processo de enunciação que destaca três elementos, a saber: o enunciador, o


enunciatário e o discurso. Ou, ainda, denominados pelos retores como ‘o orador’,
‘o auditório’ e a própria argumentação, que é o discurso. Tais fatores convergem
para o ato persuasório. “Como mostra Aristóteles, na Retórica, convergem para a
persuasão o éthos do orador, o phátos do auditório e o lógos, o discurso. O orador
e o auditório são papéis socialmente determinados, cuja imagem se constrói no
discurso” (FIORIN, 2015. p.69).
Os argumentos e a lógica estão intrinsecamente ligados, de maneira
coerente ou não. Em exemplo citado por FIORIN (2015, p. 115), ele relembra uma
publicação feita em O Estado de São Paulo, no dia 2 de março de 2005, pela
jornalista e colunista Dora Kramer, em editorial, que afirmou terem os
argumentos quase lógicos uma conotação negativa, “pois implicita que os
discursos presidenciais não têm lógica, não são coerentes, são simplistas, fundam-
se no senso comum, não apresentam qualquer elaboração em termos de
raciocínio.” A alusão a esse tipo de argumento foi com base nos discursos do então
presidente Lula, segundo a colunista, “com base num estudo acadêmico”. Porém,
em contraste com o que foi publicado no jornal, FIORIN (2015, p. 115) explica:

A expressão está usada de maneira equivocada. Não se trata de


defender a estratégia comunicativa do presidente, mas de mostrar
o sentido que o termo tem na retórica. (...) Para o filósofo
(Aristóteles), um exemplo seriam os silogismos lógicos: Todos os
planetas do sistema solar giram ao redor do Sol. Marte é um planeta
do sistema solar. Logo, Marte gira ao redor do Sol. A conclusão de
que Marte é um planeta do sistema solar independe de convicções
morais, religiosas ou de preferências políticas, estéticas, etc. Se todo
planeta do sistema solar gira ao redor do Sol e se Marte é um planeta
do sistema solar, então, necessariamente, deve-se concluir que
Marte gira em torno do Sol. Os argumentos necessários pertencem
ao domínio da lógica. (...) Segundo Perelman e Tyteca, a lógica
examina as formas de demonstração; a retórica estuda a
argumentação (2005: 15-7) Argumentos são razões contra
determinada tese ou a favor dela, com vistas a persuadir o outro de
que ela é justa ou injusta, moral ou imoral, benéfica ou prejudicial,
etc. (...)
478 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Quando se remete a argumentos “quase lógicos”, é necessário saber que


estes têm estrutura de um raciocínio lógico, entretanto, sem a necessidade de
conclusões lógicas, propriamente. “Os raciocínios lógicos constroem-se com base
nos princípios da não contradição, da identidade, da reciprocidade, da
transitividade, da inclusão, da divisão e da comparação de quantidades. (...)”
(FIORIN, 2015, p.115). (Grifos nossos)
A argumentação quase lógica é bastante utilizada por todos, sem ter juízo
depreciativo ou pejorativo, mas porque “é da essência da argumentação operar
com raciocínios preferíveis, entre os quais, os quase lógicos: funções iguais,
salários iguais; X é corrupto, afinal, todos os políticos são corruptos (...)”. (FIORIN,
2015, p.116)
Dessa forma, como afirma FIORIN (2015, p.116), ao contrário do que
alguns pensam, utilizar-se de argumentos quase lógicos não significa falta de
propriedade para se raciocinar logicamente. Mas, sim, é um argumento que
utilizamos com bastante frequência sobre algo que é possível, plausível ou
provável, e que não é essencial sob a ótica da lógica.
As refutações também são importantes para entendermos as falácias
como silogismos. Segundo Aristóteles (2005, p.166), as diferentes espécies de
refutação devem ser analisadas como uma forma imprescindível nas
argumentações. “Podemos refutar, ou utilizando o contrassilogismo ou
introduzindo uma contraproposição.” Os “entimemas”, segundo Aristóteles, são
silogismos formulados com apenas uma premissa, em função de seu efeito
retórico, carente de rigor formal, por suprimir premissas consabidas, ou rigor
teórico, por utilizar argumentos apenas prováveis, sendo a segunda premissa
subentendida.

3. Argumentos fundamentados na estrutura da realidade

“Esses argumentos, segundo Perelman e Tyteca (2005: 297-393), são


aqueles baseados em relações que nosso sistema de significação considera
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |479

existentes no mundo objetivo: causalidade, sucessão, coexistência e


hierarquização.” (FIORIN, 2015, p.149)
Ou seja, a realidade ou validade das declarações irão depender de fatos,
não de juízos de valor, como em GARCIA (1967, p.304):
Declarações, apreciações, julgamentos, pronunciamentos
expressam opinião pessoal, indicam aprovação ou desaprovação.
Mas sua validade deve ser demonstrada ou provada. Ora, só os fatos
provam; sem eles, que constituem a essência dos argumentos
convincentes, toda declaração é gratuita, porque infundada, e, por
isso, facilmente contestável. O pronunciamento ‘Fulano é ladrão’
vale tanto quanto a sua contestação: “Não, Fulano não é ladrão’. E
nenhum dos dois convence. Limitando-se, apenas, a afirmar ou
negar sem fundamentação, isto é, sem a prova dos fatos, que são,
grosso modo, especificações em que se apoiam ou generalizações
traduzidas em pronunciamentos, os interlocutores acabam
travando um ‘bate-boca’ estéril, da mesma ordem daqueles a que
seriam levados se argumentassem, apenas, com palavras de sentido
intencional. Nenhum dos dois convence, porque ambos expressam
opinião pessoal, certamente não isenta de prevenções ou
preconceitos. Respeitável ou não, essa opinião ou julgamento terá
de ser posto de quarentena até que seja provado o que se nega ou se
afirma.

Logo, ao serem analisadas, as amostras de enunciados com argumentação


falaciosa demonstram que não podem ser consideradas como verdade absoluta,
mas como opinião ou juízo de valor. Entretanto, como ainda ressalta GARCIA
(1967, p. 305), existem ordens e declarações em que as provas não são necessárias
ou imprescindíveis:

I – quando a declaração expressa uma verdade universalmente


aceita;

II – quando é evidente por si mesma (axiomas, postulados);

III – quando tem o apoio de autoridade (testemunho autorizado);

IV – quando escapa ao domínio puramente intelectual:

a) é de natureza puramente sentimental (“o amor desconhece


outras razões que não as do próprio coração”);
480 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

b) implica a apreciação de ordem estética, em que o que se discute


ou afirma diz respeito à beleza e não à verdade (“gosto não se
discute”, “gosto porque gosto”);

c) diz respeito à fé religiosa (não se provam dogmas; apresentam-se


apenas “motivos de credibilidade”. “Credo quia absurdum”, creio
porque é absurdo (ou ainda que seja absurdo).

4. Análise das falácias:

O raciocínio falacioso ou vicioso é chamado, pela lógica, de sofisma, ou


seja, um raciocínio falso apresentado com a intenção de enganar. Contudo,
existem sofismas que não são elaborados com intuito ou propósito de enganar, e
que são denominados de paralogismos. Portanto, haveria diferença entre o
sofisma (com má-fé) e o paralogismo (boa-fé), conforme GARCIA (1967, p. 318).

a) Falácia do Espantalho - Desvirtuar um argumento para ficar mais fácil atacar


(exagerar, desvirtuar ou inventar um argumento).

Exemplo característico desse tipo de falácia foi a apresentação em


PowerPoint do Procurador da República, Daltan Dallagnol, denunciando o ex-
presidente Lula, “sem provas, mas com convicção”. O procurador realizou uma
entrevista coletiva e, no lugar de provas materiais, apresentou um gráfico pelo
programa de computador PPT, no qual, à maneira dele, ‘monta’ o que teria sido
o esquema organizado por Lula, entretanto, sem apresentar gravações, recibos ou
quaisquer documentos que ratificassem sua explanação como provas. De acordo
com a matéria retirada do site da revista “Veja”:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |481

Lula perde ação contra Dallagnol por causa de PowerPointPetista


quer reparação pela apresentação em que ele foi apontado como
personagem central no esquema de corrupção na Petrobras

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva perdeu a ação por danos morais
que moveu contra o procurador da República Deltan Dallagnol, da força-tarefa
da Operação Lava Jato. O processo foi motivado pela entrevista coletiva em que o
procurador apresentou um PowerPoint apontando o petista como personagem
central no esquema de corrupção na Petrobras. (Grifos nossos)
Para Lula, o procurador agiu de forma abusiva e ilegal e pedia
indenização de um milhão de reais. Em sua decisão, o juiz Carlo Mazza Britto
482 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

Melfi, da 5ª Vara Cível de São Bernardo do Campo, afirma que o ex-presidente


“busca reparação moral independente dos fatos apurados pelo procurador da
República, demonstrando preocupação com o meio de divulgação das
informações, em detrimento de seu conteúdo”.
“(…) Em sua decisão, o juiz Carlo Mazza Britto Melfi, da 5ª Vara Cível
de São Bernardo do Campo, afirma que o ex-presidente “busca reparação moral
independente dos fatos apurados pelo procurador da República, demonstrando
preocupação com o meio de divulgação das informações, em detrimento de seu
conteúdo”.
(...)

Em nota divulgada pouco depois da decisão de Britto Melfi, o advogado


Cristiano Zanin Martins, que defende o ex-presidente, anunciou que vai recorrer
da decisão. Segundo Zanin, a motivação da exposição feita pelo procurador foi de
“inflamar preconceitos e paixões” e “aniquilar a possibilidade de Lula ter um
julgamento justo e imparcial” e que, em virtude disso, não desistirão da ação.
(https://veja.abril.com.br/brasil/lula-perde-acao-contra-dallagnol-por-causa-de-
power-point/)

b) Falácia de apelo à emoção - Tenta-se manipular uma resposta emocional no lugar


de um argumento válido ou convincente.
Foi o que aconteceu durante a votação na Câmara dos Deputados, em
Brasília, para decidirem sobre o afastamento da ex-presidente Dilma Rousseff, em
que as “argumentações” dos deputados favoráveis à sua saída basearam-se, em
grande parte, no apelo ‘a Deus’ e ‘à família’, e não em fatos relacionados a crimes
supostamente cometidos por Dilma, como as “pedaladas fiscais”. Pode-se
perceber, nos excertos abaixo, retirados do site Congresso em Foco, que as
palavras ‘Deus’ e ‘família’ apareceram inúmeras vezes, respectivamente 59 e 136:

“Deputados citaram ‘Deus’ 59 vezes na votação do impeachment”


Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |483

Católicos, evangélicos e budistas criticam uso de referências religiosas em votação


na Câmara. "Deus" foi quase tão citado quanto “corrupção”, que teve 65 menções.
Houve dez referências a evangélicos e 136 a “família”

As referências à religião e a Deus nos discursos de parte dos deputados que


decidiram, no domingo (17), pela abertura de processo de impeachment da
presidente Dilma Rousseff incomodaram religiosos. Em defesa da separação entre a
fé e a representação política, líderes de várias entidades criticaram as citações e
disseram que os posicionamentos violam o Estado laico.
Durante a justificativa de voto, os parlamentares usaram a palavra “Deus” 59 vezes,
quase o mesmo número de vezes que a palavra “corrupção”, citada 65 vezes. Menções
aos evangélicos aparecem dez vezes, enquanto a palavra “família” surgiu 136, de
acordo com a transcrição dos discursos, no site da Câmara dos Deputados. A votação
foi aberta pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, evangélico, com os dizeres:
“Que Deus tenha misericórdia desta Nação”.
Para o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), composto pelas
Igrejas Evangélica de Confissão Luterana, Episcopal Anglicana do Brasil, Metodista
e Católica, que havia se manifestado contra o impeachment, assim como a
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ligada à Igreja Católica, as
menções não surpreenderam. A presidenta da entidade, a pastora Romi Bencke, disse
que as citações distorcem o sentido das religiões. “Não concordamos com essa relação
complexa e complicada entre religião e política representativa”, afirmou. (...)
O teólogo Leonardo Boff, que já foi sacerdote da Igreja Católica, expoente da
Teologia da Libertação no Brasil e hoje é escritor, também criticou o discurso
religioso dos parlamentares que, na sua opinião, colocaram em segundo plano os
motivos para o pedido de impeachment, as pedaladas fiscais e a abertura de créditos
suplementares pelo governo de Dilma.

(https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/deputados-citaram-
%E2%80%9Cdeus%E2%80%9D-59-vezes-na-votacao-do-impeachment/)

c) Falácia da falácia - Supor que uma afirmação está necessariamente errada,


porque não foi bem construída.É o exemplo da fala da ex-presidente Dilma, em
que sugere a produção de energia sustentável através de usinas eólicas. Porém,
considerando que esse tipo de recurso não pode ser acumulado, tal como é feito
com a água, ela se utiliza da expressão “estocar vento”. Logo se dá a confusão por
algo que parece um desconhecimento de Dilma, e não uma elaboração inadequada
de seu raciocínio para debater a possibilidade de novas formas de se produzir
energia.
484 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

d) Falácia Ad hominem- Atacar o caráter ou os traços pessoais em vez de refutar os


argumentos.
Ao falar da aparência física da ex-presidente Dilma, bem como de seu
modo de vestir e por não ter um marido, os ataques à pessoa dela são feitos com
base em suas características exteriores, por juízo de valor, e não por algum fator
realmente político. Em inúmeras publicações e programas de tv, a forma como a
ex-presidente se vestia foi sugerida como de “mau gosto” ou “inadequada”. Em
especial, na edição 2185 de 06/10/2010, da Revista Veja, em que a matéria tinha
como título “Vestida para mandar”, fazendo um jogo de palavras com a frase
“Vestida para matar (dressed to kill)”. De cunho expressamente crítico, a
reportagem fazia comparações entre Dilma e outras mulheres do poder, como
Michelle Obama, à época, primeira-dama dos EUA, e Carla Bruni, vinte anos mais
nova que Dilma e, também à época, primeira-dama da França. A revista,
inclusive, teceu tais críticas não só pelos textos verbais, como também por
imagens, nas quais detalhava seus óculos, calças, cores de peças de vestuário,
acessórios e outros.
No subtítulo, a legenda: “Em busca de um estilo para chamar de seu, Dilma
Rousseff não tem mandado bem. Contratou um estilista famoso, mas vacila entre o
brega e o careta. Eleita ou não neste domingo, o que não dá é para deixar esse PAC
pela metade”. Dentre outras censuras ao seu modo de ser e viver, a revista também
lançou: “a petista Dilma Rousseff teve de se render a essa realidade da exposição
permanente e tratou de investir em uma repaginação que eliminasse resquícios
do visual militante da juventude e do nada lisonjeiro look 'bibliotecária solteirona'
quando ministra”. Ou seja, no lugar de serem ressaltadas peculiaridades políticas
sobre a futura primeira mulher a exercer o cargo de presidente do Brasil, a revista
fez a escolha por depreciar seus aspectos físicos. (Grifos nossos)
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |485

(http://escrevalolaescreva.blogspot.com/2010/10/dilma-nao-esqueca-sua-funcao-no-mundo.html)

f) Apelo à autoridade - Usa-se a posição como figura ou instituição de autoridade


no lugar de um argumento válido.
A expressão “até o Papa sabe/concorda” ou outras semelhantes ratificam
o apelo à autoridade quando alguém se refere a quem está no mais alto posto de
comando da Igreja Católica. Recentemente, o Papa Francisco, um dos mais
engajados em causas políticas e sociais, ao menos por explicitar o que outros não
486 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

transpareciam, vira notícia ao falar que “o bom católico deve empenhar-se na


política”, como se vê na matéria publicada em 2014.

“Papa Francisco diz que o bom católico deve empenhar-se na política”


Em Missa celebrada em setembro de 2013, o Papa Francisco assinalou que
um bom católico deve empenhar-se na política e que o contrário não é um bom
caminho para os fiéis. O Santo Padre recordou que "a política - diz a Doutrina Social
da Igreja - é uma das formas mais elevadas da caridade, porque serve ao bem comum.
Eu não posso lavar as mãos, né? Todos devemos dar algo!"
Muitas vezes existe o hábito de somente falar mal dos governantes e criticar o que
não vai bem: "Assiste-se ao noticiário na televisão, lê-se o jornal, e as críticas são
contínuas. Fala-se sempre mal e contra!".
Talvez, "o governante seja sim um pecador, como Davi, mas eu devo colaborar com
a minha opinião, com a minha palavra, e também com a minha correção" porque
todos "devemos participar do bem comum!". E se "muitas vezes ouvimos: que 'um
bom católico não entra na política', isto não é verdade, esse não é um bom caminho".
"Um bom católico não se envolve na política. Isso não é certo. Este não é um bom
caminho. Um bom católico deve empenhar-se na política, oferecendo o melhor de
si, para que o governante possa governar. Mas, qual é a melhor coisa que podemos
oferecer aos governantes? A oração! Isso é o que diz Paulo: 'A oração por todos os
homens e pelo rei e por todos os que estão no poder'. 'Mas, Padre, aquela é uma má
pessoa, tem que ir para o inferno...'." Reza por ele, reza por ela, para que possa
governar bem, para que ame o seu povo, para que sirva ao seu povo, para que seja
humilde "
"Um cristão que não reza pelos seus governantes não é um bom cristão!". Continuou
dizendo que é necessário rezar para que se convertam.
O Papa, assinala a Rádio Vaticano, refletiu sobre a Carta de São Paulo a Timóteo em
que lhe pede rezar pelos governantes. Quem governa, disse, “deve amar o seu povo”,
porque "um governante que não ama não pode governar: no máximo poderá
disciplinar, colocar um pouco de ordem, mas não governar". O Santo Padre recordou
o exemplo de Davi, como ele amava o seu povo, tanto que depois do pecado cometido
pede ao Senhor que não castigue o povo, mas ele mesmo. Assim, “as duas virtudes de
um governante” são o amor pelo povo e a humildade.
"Não se pode governar o povo sem amor e sem humildade. E todo homem e mulher
que assume um cargo de governo, deve fazer-se estas duas perguntas: 'Eu amo o meu
povo para servi-lo melhor? Sou humilde e dou ouvidos a todos, ouço várias opiniões
para escolher o melhor caminho?'. Se estas duas perguntas não forem feitas, não será
um bom governo. O governante, homem ou mulher, que ama seu povo, é um homem
ou uma mulher humilde".(...)
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |487

g) Falácia da ambiguidade - Usa-se duplo sentido ou linguagem ambígua para


apresentar a sua verdade de modo enganoso.

O juiz de primeira instância, Sérgio Moro, ao escrever o despacho sobre


a decisão de deferir ou não o habeas corpus ao ex-presidente Lula, em 08/07/2018,
sabendo que seu ato seria publicado não só no âmbito jurídico, mas também
veiculado na mídia para leigos, usou as expressões “competente/incompetente”,
que funcionam de forma ambígua para o senso comum e para o Direito. Dessa
forma, ao designar o desembargador de plantão de INCOMPETENTE, não ficou
clara a intenção do juiz: se era chamá-lo de incapaz, inábil ou desprovido de
qualificações para tal ato, ou se era para se referir ao fato de que seu cargo não
abrangia as condições necessárias para proferir determinada sentença. Como se
vê no despacho de Moro:

“Então, em princípio, este Juízo, assim como não tem poderes de ordenar a prisão
do paciente, não tem poderes para autorizar a soltura.
O Desembargador Federal plantonista, com todo o respeito, é autoridade
absolutamente incompetente para sobrepor-se à decisão do Colegiado da 8ª Turma
do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e ainda do Plenário do Supremo Tribunal
Federal. (Grifos nossos)
Se o julgador ou a autoridade policial cumprir a decisão da autoridade
absolutamente incompetente, estará, concomitantemente, descumprindo a ordem de
prisão exarada pelo competente Colegiado da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal
da 4ª Região. (Grifos nossos)
Diante do impasse jurídico, este julgador foi orientado pelo eminente Presidente
do Tribunal Regional Federal da 4ª Região a consultar o Relator natural da Apelação
Criminal 5046512-94.2016.4.04.7000, que tem a competência de, consultando o
colegiado, revogar a ordem de prisão exarada pelo colegiado.
Assim, devido à urgência, encaminhe a Secretaria, pelo meio mais expedito, cópia
deste despacho ao Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto, solicitando
orientação de como proceder.
Comunique-se a autoridade policial desta decisão e para que aguarde o
esclarecimento a fim de evitar o descumprimento da ordem de prisão exarada pelo
competente Colegiado da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Curitiba, 08 de julho de 2018.”

(https://veja.abril.com.br/politica/em-despacho-moro-diz-que-desembargador-nao-
pode-soltar-lula/)
488 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

5. Considerações finais:

Após a análise dos corpora midiáticos digitais e impressos, podemos


perceber as articulações falaciosas, propositais ou não, que repercutiram nos
veículos de comunicação no âmbito da política e que demonstram a tentativa de
elocução de silogismos que podem induzir os leitores a terem outras perspectivas
dos agentes políticos e de seus discursos, tomando-os como melhores ou piores,
pelo que expõem através de palavras, e não por atitudes necessariamente eficazes
na política para resolver problemas sociais e organizacionais.

REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. 17ª ed. Tradução de Antônio Pinto
de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

CHARAUDEAU, Patrick. A Conquista da Opinião Pública: como o discurso


manipula as escolhas políticas. São Paulo: Contexto. 2016.

______.Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2018. 2ª ed.

FIORIN, José Luiz. Argumentação. São Paulo: Contexto, 2015.

GARCIA, Othon Moacir. Comunicação em Prosa Moderna. Rio de Janeiro:


Editora da FGV, 2010.

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a


nova retórica. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.

SÍTIOS ELETRÔNICOS PESQUISADOS:


(https://veja.abril.com.br/brasil/lula-perde-acao-contra-dallagnol-por-causa-de-
power-point/) Acesso em: 04/07/2018.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |489

(https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/deputados-citaram-
%E2%80%9Cdeus%E2%80%9D-59-vezes-na-votacao-do-impeachment/)
Acesso em: 04/07/2018.

(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/04/1762082-veja-frases-dos-
deputados-durante-a-votacao-do-impeachment.shtml) Acesso em: 04/07/2018.

(http://escrevalolaescreva.blogspot.com/2010/10/dilma-nao-esqueca-sua-
funcao-no-mundo.html) Acesso em: 04/07/2018.

(https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/em-nota-aecio-faz-
criticas-a-delacao-de-pedro-correa/) Acesso em: 04/07/2018.

(https://folhapolitica.jusbrasil.com.br/noticias/158348575/papa-francisco-diz-
que-o-bom-catolico-deve-empenhar-se-na-politica) Acesso em: 04/07/2018.

(https://veja.abril.com.br/politica/em-despacho-moro-diz-que-desembargador-
nao-pode-soltar-lula/) Acesso em: 04/07/2018.
490 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

A DIMENSÃO INTERCULTURAL NO CURRÍCULO DE FORMAÇÃO DE


PROFESSORES DE PORTUGUÊS

Viviane Silva dos Santos (UFBA)

1. Introdução

É consenso, para a comunidade acadêmica da área, que a formação docente


impera como fator primordial para a melhoria da qualidade do ensino. Por isso,
nos interessa discutir como os cursos de formação docente têm formulado os seus
currículos, com vistas à formação de professores capazes de articular,
coerentemente, seus conhecimentos teóricos e práticos no exercício da profissão.
Essa atenção recai, sobretudo, no contexto da educação básica por ser uma etapa
importante para o indivíduo em fase escolar na construção de valores e princípios
para convivência em sociedade.
A respeito do ensino de língua portuguesa, com base nos PCN, o foco da
formação recairia sobre os conhecimentos que viessem a culminar na qualificação
docente para o ensino da leitura, da produção textual (oral e escrita), da análise e
reflexão sobre a língua, a fim de desenvolver, nos estudantes, habilidades e
competências que implicam o uso da língua, necessárias ao longo da vida, nos
diferentes contextos sociais.
Nesse sentido, partimos da perspectiva de Freire (1989) ao afirmar que a
leitura do mundo precede a leitura da palavra, ou seja, por meio da leitura é
possível compreender o mundo e a nossa condição de sujeito inserido em um dado
contexto. Ler é compreender o mundo a nossa volta, é também uma forma de
desenvolver a percepção crítica sobre nossa existência e sobre a diversidade que
nos rodeia e isso não deve ser isolado do conhecimento desenvolvido nos
ambientes de ensino e aprendizagem.
Dessa forma, lendo o mundo, a leitura da palavra deve ser um ato coerente
entre linguagem e a realidade (FREIRE, 1989). Assim, a produção textual e a
reflexão sobre a língua nas aulas de português partiriam dessa observação sensível
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |491

a fim de reconhecer a pluralidade existente entre os sujeitos, a diversidade


cultural e suas manifestações dentro e fora da escola.
Foucamber (1994) também destaca a leitura como atividade reflexiva sobre
o mundo. Para ele, a leitura ultrapassa a relação da correspondência entre a letra
e o som, é uma habilidade que não pode ser ensinada de modo isolado das práticas
sociais e, por isso, exige do professor a capacidade de reflexão constante dos
objetivos da sua atuação ao desenvolver um ensino contextualizado em sua sala
de aula.
Assim, no contexto de ensino e aprendizagem de língua portuguesa, a
dimensão intercultural parte, então, dessa leitura de mundo, de reconhecer e
valorizar o caráter cultural. Para isso, convém uma percepção de língua como
prática de interação e meio pelo qual são construídas as relações culturais
existentes visando ao diálogo entre as diferentes culturas.
Nesse sentido, pensar na formação de professores de português exige-nos
debater sobre as propostas de referências curriculares que são a base para os cursos
de formação inicial e continuada desses profissionais, levando em conta as metas
e as estratégias para formar docentes cada vez atentos às demandas
contemporâneas da sociedade.
Assim, procuramos fazer uma breve discussão sobre a dimensão
intercultural na formação de professores de português a partir de dois pontos,
quais sejam: currículo, diversidade cultural e formação de professores de
português e a dimensão intercultural no ensino de língua portuguesa.
No primeiro ponto, destacamos as implicações do tratamento da cultura no
currículo, amparado nas definições de Silva (2009), Moreira (2013) e Apple
(1989), levando em conta, ainda, as deliberações presentes nos documentos
curriculares oficiais, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB) e suas implicações para a formação de professores.
No segundo ponto, discutimos sobre os princípios da dimensão
intercultural para a prática dos professores de português. Para tanto, recorremos
às considerações de Candau (2009), Mendes (2008), Souza e Fleuri (2003), entre
492 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

outros, com os quais buscamos mostrar a importância da dimensão intercultural


no ensino de língua portuguesa.

2. Currículo, diversidade cultural e formação de professores de português

Em face do cenário contemporâneo, composto por diferentes


manifestações culturais destacadas pelo dinamismo da globalização e por novas
relações pessoais impulsionadas com as novas tecnologias na comunicação, a
sociedade impõem novas necessidades para a formação de professores, o que nos
convoca a refletir como os currículos dos cursos de licenciatura têm olhado para
questões sociais ao formar docentes para uma sociedade marcada pela diversidade
cultural, como se observa nos contextos brasileiros, e suas implicações.
Diante disso, a teoria pós-crítica (SILVA, 2009) de currículo propõe a
discussão de temas como identidade, diferença, cultura, representação e
multiculturalismo. Tais abordagens para o contexto de ensino e aprendizagem de
língua são fundamentais quando engajadas com questões de ordem social. Assim,
o debate acerca do currículo, com vista à formação docente, levanta
questionamentos iniciais necessários para o compromisso com a educação: qual o
perfil ideal de professor para as demandas da sociedade contemporânea? No
ensino de língua portuguesa, qual compromisso este professor deverá assumir em
sala de aula para minimizar as imposições hegemônicas que segregam os grupos
sociais?
Considerando o currículo como campo de poder e conflito (SILVA, 2009;
APPLE, 1989), o que se propõem em documentos curriculares oficiais para o
ensino de língua portuguesa é a valorização da cultura com vista ao respeito às
singularidades culturais. Contudo, para Moreira e Silva (2013), a cultura é o
campo onde se dá “a luta pela manutenção ou superação das divisões sociais”
(p.35) e, por isso, falar de cultura e currículo significa levantar questões que
mexem com bases instituídas e põem em xeque o debate sobre discursos
conservadores, desigualdades sociais, padrões e identidades. Para Freire (1989),
um ensino que considere esta pauta destaca a importância da consciência de si e
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |493

do mundo, numa visão de respeito às pluralidades culturais.


A proposta de trabalhar um ensino baseado no respeito às diferenças já é
pautada na Lei de Diretrizes de Base da Educação (LDB), em consonância com a
Constituição Federal. No entanto, o tema ganha destaque em decorrência dos
conflitos causados dentro e fora dos ambientes escolares em virtude dos
constantes ataques a grupos minorizados, levantando temas como bullying,
racismo, homofobia, preconceito linguístico, discriminação religiosa, entre
outros.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por sua vez, endossa a
temática com a seguinte afirmação:

Sem aderir a um raciocínio classificatório reducionista, que


desconsidera as hibridizações, apropriações e mesclas, é importante
contemplar o cânone, o marginal, o culto, o popular, a cultura de
massa, a cultura das mídias, a cultura digital, as culturas infantis e
juvenis, de forma a garantir uma ampliação de repertório e uma
interação e trato com o diferente (BRASIL, 2018, p. 70)

A Base, como o nome já aponta, é referência nacional para elaboração dos


currículos escolares, além de atuar como documento referencial dos currículos
dos cursos de formação de professores sob orientação da LDB (cf.: Art. 62, inciso
8) e determina a formação docente como pauta obrigatória para o cumprimento
dos objetivos da política educacional brasileira.
No que respeita ao ensino de português, o documento basilar reconhece a
língua como fenômeno cultural, histórico, social, variável, heterogêneo e meio de
construção de identidades dos seus falantes em suas comunidades. Tal
compreensão viabiliza uma abordagem mais ampla sobre a língua no
direcionamento de práticas pedagógicas no ensino fundamental.
Ainda na BNCC, a abordagem da diversidade cultural na área do ensino de
língua portuguesa se apresenta como princípio para o respeito às diferenças, o que
reforça a necessidade das discussões sobre diferentes temas, entre eles as diversas
manifestações de preconceito (linguístico, de gênero, cor, religião, entre outros)
que precisam ser debatidos em sala para refletir sobre os efeitos nocivos à
494 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

sociedade.
Isso exigirá maior atenção do professor de português na seleção de textos
que fomentem o debate saudável, permitindo-lhe levantar, com o grupo dos
alunos, questionamentos e reflexões, a fim de explorar o universo da linguagem,
possibilitando que os estudantes conheçam mais sobre sua própria língua,
compreendendo-a como prática social, de bases ideológicas e culturais que
afetam, diretamente, o modo como entendemos o mundo e como nele atuamos.
Para isso, os currículos dos cursos de licenciatura de futuros professores de
língua portuguesa devem priorizar uma formação crítica e autorreflexiva pautada,
sobretudo, numa concepção de língua que permita o desenvolvimento da
criticidade desses profissionais, visando à superação de velhos conceitos em torno
da língua portuguesa e viabilizar as condições para que os estudantes “se
familiarizarem com as práticas sociais de linguagem orais e/ou escritas, relevantes
para sua efetiva inscrição sociocultural” (FARACO, 2006, p. 31). Além disso, nas
matrizes curriculares dos cursos de formação, é preciso ainda revisar o objetivo
das disciplinas que limitam o estudo da língua a uma concepção estrutural.
Com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), na década
de 1990, o Brasil deu um importante passo na educação básica. Na área de língua
portuguesa, o documento simbolizou um grande avanço no ensino de português
(ROJO, 2000). Nele, os gêneros discursivos assumiram um caráter mais
abrangente que permitiu considerar o texto como unidade básica de ensino. Para
além do limite da frase, a língua passa a ser vista e ensinada a partir da perspectiva
interacionista, de base bakhtiniana (1995). Além disso, temas como políticas
linguísticas, variação e desenvolvimento da criticidade do aluno passaram a
ocupar o centro das propostas para o ensino e aprendizagem de português, com
foco no desenvolvimento da leitura e da escrita.
A publicação dos PCN orientou, ainda, um conjunto de ideias ligadas à
formação docente com relação às políticas públicas para os professores de
português:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |495

A formação de professores se coloca, portanto, como necessária


para que a efetiva transformação do ensino se realize. Isso implica
revisão e atualização dos currículos oferecidos na formação inicial
do professor e a implementação de programas de formação
continuada que cumpram não apenas a função de suprir as
deficiências da formação inicial, mas que se constituam em espaços
privilegiados de investigação didática, orientada para a produção de
novos materiais, para a análise e reflexão sobre a prática docente,
para a transposição didática dos resultados de pesquisas realizadas
na linguística e na educação em geral. (BRASIL, 1998, p. 67)

Nesse sentido, a revisão e a atualização dos currículos de formação docente


deverão enfrentar os desafios que a realidade educacional impõe, sobretudo, no
que se refere à leitura e à escrita. Isso implica uma série de ações necessárias que
envolvem a compreensão dos representantes legais para um trabalho de escuta
sensível e efetiva de profissionais que conhecem os impasses típicos da área
educacional. Quando o debate está no campo do currículo, é de total importância
que as propostas sejam discutidas por quem, de fato, compreende as demandas, as
estratégias necessárias e os impactos das medidas propostas. Como critica Arroyo
(1999, p. 134):

É um estilo que acredita que a inovação só pode vir do alto, de fora


das instituições escolares, feita e pensada para elas e para seus
profissionais [...]. Essa perspectiva, tão disseminada nos
formuladores de políticas sociais e nas equipes dos órgãos oficiais,
envolve a crença de que a cada nova proposta vinda do alto a escola
se renovará. Quando nos aproximamos da escola, percebemos que
tal crença não faz parte da cultura dos profissionais da educação
básica.

Por isso, debater questões de currículo não se resume a inventariar um


conjunto de ações “inovadoras”, distante de seus atores sociais — professores e
alunos. O mesmo se aplica ao currículo de formação docente, uma vez que muitos
profissionais se queixam das dificuldades encontradas no exercício da profissão,
alegando distanciamento entre o conhecimento construído academicamente e as
demandas encontradas ao longo do exercício da profissão.
496 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

De acordo com Mclaren e Giroux (2013), os programas de formação


docente pouco estimulam os futuros professores a perceberem seu papel de
intelectuais e responsáveis pela visão emancipatória. Isso ressalta a necessidade
de uma formação crítica desses profissionais, de modo que eles possam atuar com
base numa postura política e, portanto, engajada com princípios que denotem o
respeito pela sua própria atuação profissional, e o compromisso de contribuir para
uma educação que fomente a igualdade, o respeito e o desenvolvimento de uma
sociedade mais justa.
Por outro lado, para atender às demandas da formação docente, convém
um diálogo entre as instituições formativas e a escola. As universidades precisam
ouvir e conhecer a realidade das escolas para as quais estão formando seus
professores. As políticas de incentivo à formação docente no Brasil já demonstram
um movimento de interesse na promoção desse diálogo. Além do estágio
supervisionado, próprio do currículo da graduação, há programas institucionais
que priorizam a articulação entre universidade e as escolas. O Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) e o Mestrado profissional
em Letras (ProfLetras) são exemplos dessa proposta.
O PIBID é dedicado aos estudantes de licenciatura que, a partir da
supervisão e orientação de professores da universidade e das instituições
escolares, desenvolvem projetos na educação básica. Os graduandos recebem uma
bolsa para o desenvolvimento das atividades e cumprem a carga horária de 20h
entre orientação e execução do projeto.
O ProfLetras, por sua vez, tem por objetivo a formação continuada de
professores de língua portuguesa em exercício da profissão, na educação básica.
Trata-se de profissionais que participam dos dois espaços de formação: a
universidade e a escola. O curso, com base nesta proposta de diálogo entre esses
dois espaços, favorece o compartilhamento das visões desses profissionais sobre
seus contextos de atuação, é também um retorno necessário para as universidades
e abre caminhos para se pensar nas estratégias de formação docente.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |497

3. A dimensão intercultural no ensino de língua portuguesa

De acordo com Relatório Mundial da UNESCO, a diversidade cultural é


“condição sine qua non para o diálogo intercultural e vice-versa” (UNESCO, 2009,
p.31). O relatório expõe uma importante premissa para diferentes contextos de
intervenção, um deles é a educação. Nesse contexto, a diversidade cultural dialoga
com a abordagem dos Temas Transversais propostos nos PCN (2000) que
evidencia o respeito aos diferentes grupos e manifestações culturais como
condição para viver em uma sociedade plural (BRASIL, 2000). Tal fundamento
reforça a dimensão intercultural para a efetiva valorização das culturas e o
fortalecimento do respeito mútuo em sociedade democrática.
A dimensão intercultural no âmbito da educação, segundo Candau (2009),
afeta a seleção curricular e, consequentemente, implica na organização escolar,
nas práticas didáticas e no papel dos professores. Nos estudos da Linguagem, o
trabalho pautado na dimensão intercultural decorre das pesquisas em Linguística
Aplicada (LA) que reforçam o ensino de língua comprometido com uma
abordagem social.
Segundo Moita Lopes (2006), é importante que LA focalize questões
sociais, o político e a história para que, desse modo, possa atender as demandas
contemporâneas. Para Signorini (1998, p.101), cada vez mais a LA tem buscado
referência em uma língua real, usada por falantes também reais, enfatizando o
objeto da área – “práticas específicas de uso da linguagem em contextos
específicos —, objeto que a constitui como campo de estudo outro, distinto, não
transparente e muito menos neutro”.
Depreende-se daí que o ensino de língua, no limiar da dimensão
intercultural, se preocupa com as relações humanas culturalmente distintas,
busca compreender o sentido da cultura nos diferentes padrões culturais e dos
significados constituídos por tais contextos (SOUZA; FLEURI, 2003). Por cultura,
entende-se como “[...] sistema de concepções herdadas, expressas em formas
simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem
seu conhecimento e suas atividades em relação à vida” (GEERTZ, 1989, p. 103); a
498 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

língua, por sua vez, constitui esse processo de desenvolvimento e perpetuação das
expressões simbólicas.
Nesse sentido, a relação língua e cultura sugere uma prática pedagógica
crítica em que, no contexto de ensino-aprendizagem, os educandos sejam capazes
de interagir com os seus modos particulares de interpretar o mundo. Segundo
Candau (2009, p. 165), uma das características fundamentais da perspectiva
intercultural é “a promoção deliberada da inter-relação entre diferentes grupos
culturais presentes em uma determinada sociedade”.
Para o ensino de língua pautado na premissa da educação intercultural,
Mendes (2008) destaca três princípios. O primeiro refere-se ao modo como vemos
o outro e o mundo a nossa volta; o segundo diz respeito ao modo como nos
posicionamos no mundo e compartilhamos nossa experiência; e, por fim, o
terceiro princípio está relacionado ao modo como nós interagimos e dialogamos
com o outro. Juntos, esses três princípios evidenciam que, no processo de ensino-
aprendizagem da língua, todos os sujeitos envolvidos, professores e alunos, podem
participar ativamente da construção crítica do conhecimento e da visão sobre
contexto no qual estão inseridos.
Com efeito, a dimensão intercultural como pauta para o ensino e a
aprendizagem de português orienta a prática docente no levantamento da
reflexão crítica da língua de modo que a tradição do ensino gramatical ganhe uma
direção voltada, por exemplo, para a análise linguística e não para a memorização
das regras, permitindo explorar o universo da linguagem por meio da descoberta
contínua e reflexiva.
No ensino de português, essa abordagem converge também para o respeito
à variedade linguística, que revela a criatividade dos falantes. Para Bakhtin
(1995), a variação é inerente à língua e representa também as variações sociais.
Sendo assim, ignorar este fenômeno linguístico é desenvolver uma pedagogia
excludente e cúmplice dos poderes de imposição das desigualdades sociais.
Outro aspecto importante da dimensão intercultural para o ensino de
língua se refere ao compromisso com a valorização da cultura na seleção de textos
e temas a serem discutidos, na variedade dos gêneros textuais apresentados em
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |499

sala de aula e na atenção dada aos temas que só ganham notoriedade em datas
específicas, mas que estão inseridas nas nossas vidas cotidianamente. Assim:

A educação intercultural não pode ser reduzida a algumas situações e/ou atividades
realizadas em momentos específicos, nem focalizar sua atenção exclusivamente em
determinados grupos sociais. Trata-se de um enfoque global que deve afetar todos os
atores e a todas as dimensões do processo educativo, assim como os diferentes âmbitos
em que ele se desenvolve. (CANDAU, 2009, p.170)

Com isso, trata-se de um compromisso político de respeito e empatia que


deve ser assumido, continuamente, pela escola, professores e entidades
governamentais. Desse modo, debater sobre o racismo e a discriminação não deve
estar limitado ao dia da Consciência Negra, assim como o feminicídio não deve
ser pensando apenas no dia mulher. Da mesma forma, falar da resistência dos
povos indígenas não é uma questão a ser lembrada apenas no dia do índio.
Discriminação religiosa, homofobia, preconceito linguístico e outras diversas
tentativas de segregação ocorrem a todo tempo e em diferentes espaços sociais; na
escola não é diferente, por isso que há a necessidade de uma escuta atenta das
vozes provenientes de sujeitos que sofrem situações dessa natureza. É por essas e
outras questões que o ensino de língua deve estar baseado no objetivo de formar
sujeitos aptos a viverem em sociedade democrática que respeite as diferenças.
Ainda de acordo com Candau (2009), a dimensão intercultural favorece o
processo de empoderamento, tão necessário para sujeitos que estiveram,
historicamente, à margem da sociedade. A dimensão intercultural, portanto, parte
do objetivo de romper com práticas discriminatórias no contexto da educação e
propõe atender a um projeto de reconhecimento e de valorização da pluralidade
cultural.

4. Considerações finais

O objetivo deste artigo foi trazer reflexões acerca da importância da


dimensão intercultural na formação de professores de língua portuguesa,
pensando a sua relação com o currículo. Discutimos, ainda, como as propostas
500 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

curriculares dos cursos de formação podem, e devem, atender às demandas sociais


contemporâneas. Focamos no ensino de língua portuguesa à luz da Linguística
Aplicada que se ocupa de tratar a linguagem na perspectiva social, engajada com
temas que destoam dos princípios de valorização e respeito à diversidade cultural.
O apreço à diferença trata-se de uma questão documentada em diferentes
registros oficiais que orientam as propostas curriculares para a qualidade da
educação. Neste trabalho, citamos os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)
de Língua Portuguesa e dos Temas Transversais, destacando o eixo “Pluralidade
Cultural”, a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), as Leis de Diretrizes de
Base da Educação (LDB), além do Relatório Mundial da UNESCO que discorre
acerca da relevância da abordagem da diversidade e do diálogo intercultural.
Nesse sentido, levantamos os seguintes questionamentos: qual o perfil ideal
de professor para as demandas da sociedade contemporânea? No ensino de língua
portuguesa, qual compromisso este professor deverá assumir em sala de aula para
minimizar as imposições hegemônicas que segregam os grupos sociais?
Com base nas discussões aqui apresentadas e amparadas nas definições de
cultura, língua, interculturalidade e currículo, compreendemos que o
compromisso do professor de língua portuguesa deve ser explorar o universo da
linguagem na seleção de textos que promovam o debate e a reflexão de
comportamentos que tendem a discriminar grupos culturais distintos.
É, também, estabelecer um perfil profissional cuja postura possa partir da
escuta sensível às necessidades de seus discentes, é observar a sua própria sala de
aula, reconhecendo cada indivíduo como ser culturalmente inserido no seu
processo de aprendizagem. Assim, o perfil esperado desse professor deverá seguir
o princípio da dimensão intercultural que tem como característica principal o
diálogo entre as culturas, entre as diversidades dos grupos culturais com pleno
reconhecimento da valorização dessas diferenças.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |501

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504 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

APONTAMENTOS PARA UM HISTÓRICO DO LIVRO DIDÁTICO DE


PORTUGUÊS: O CONTROLE GOVERNAMENTAL E A PRODUÇÃO DOS
MANUAIS ESCOLARES

Wesley Luis Carvalhaes (UEG)

1. Introdução

O presente artigo é um recorte da pesquisa “Livro didático de português:


um percurso histórico” (PrP/CP nº 118/2017) – desenvolvida na Universidade
Estadual de Goiás (UEG), Câmpus Inhumas – que desenvolve um estudo
historiográfico acerca do livro didático de português (LDP). Infelizmente, não há
muitos estudos que tratem especificamente da história do LDP, mas é consenso
entre as pesquisas da área, como as de Freitag, Motta e Costa (1989) e Oliveira et
al. (1984), a hipótese de que a produção didática é muito influenciada por
orientações do Governo Federal, principal comprador de livros didáticos no
Brasil.
Este artigo, por meio de pesquisa documental e bibliográfica, investiga
como o governo, desde o Brasil Colônia, exerce um controle sobre a produção e a
circulação do material didático para o ensino de língua materna. O estudo apoia-
se nos pressupostos teóricos apontados por Koerner (1996) e Milani (2011) e toma
como paradigma de investigação historiográfico-linguística os trabalhos de
Milani (2012a, 2012b) e de Rosa (2011). Na primeira parte do artigo, apontamos
um breve histórico do livro no Brasil, seguindo o percurso indicado por Araújo
(1999) e Hallewell (2005), pois o modo como a indústria editorial brasileira
desenvolveu-se influencia o processo de elaboração, de edição e de circulação do
LDP. Em seguida, discutimos a relação entre a produção do material didático e a
regulamentação do governo. Essa relação é importante para a elaboração de um
percurso historiográfico-linguístico do LDP, pois, conforme Koerner (1996) e
Milani (2001), a historiografia-linguística toma um dado objeto como
materialização do pensamento de uma época, constituído no curso de
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |505

determinadas relações de força. No caso em questão, essas relações dão-se entre


governo-editoras-equipe autoral. Os manuais didáticos são produzidos conforme
definem documentos oficiais que regulam a edição e a circulação do LDP,
configurando uma ordem do discurso sobre o livro didático (LD) a qual tem
cristalizado um modelo de produção do LDP.

2. A produção de material didático e a regulamentação do governo

Witzel (2002), em seu estudo sobre o LDP e a identidade do professor de


língua portuguesa, afirma que só é possível discorrer sobre a história do livro
didático se o fizermos com base na consideração da política do livro didático como
apontado em Freitag, Motta e Costa (1989) e Oliveira et al. (1984). Para o percurso
historiográfico-linguístico que aqui propomos, observar a relação entre a
produção didática e o controle do governo é fundamental, pois, na relação entre
a regulamentação do governo e a produção da obra didática, desenha-se um
percurso significativo para uma abordagem analítica que toma o LDP como
monumento.
A noção de monumento é apresentada por Foucault (2010) e por Le Goff
(1996). Para Foucault (2010), a história tradicional metódica toma os
acontecimentos, os episódios da vida social — que ele chama de monumentos —
e transforma-os em documentos, em registros oficiais. Para Foucault (2010), o
trabalho com o monumento é uma atividade arqueológica, que se “volta à
descrição intrínseca do monumento”.
No caso do LDP, objeto do presente estudo, trata-se de perguntar: Por que
o LDP constitui-se como elemento importante na prática de ensino? Por que o
governo controla o LDP? Por que o governo compra o LDP para as escolas
públicas? Tratar o LDP como monumento é fugir das interpretações simplistas e
reducionistas de uma realidade complexa; é pensar nas lutas pela imposição de
saberes (FOUCAULT, 2010); é operar sobre o LDP, um documento, ordenando-
o a partir de seu interior em relação ao contexto que lhe dá possibilidade de
506 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

existência, construindo unidades que o tornam monumento, descrevendo, enfim,


os discursos que nele materializam-se.
Na esteira de Foucault (2010), Le Goff (1996, p. 535), postula que a história,
forma científica da memória coletiva, constrói-se por materiais da memória, que
“podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do
passado, e os documentos, escolha do historiador”. Discutindo sobre essas noções,
Le Goff (1996, p. 536) afirma que, inicialmente, o monumento é visto como um
material de valor questionável, caracterizado “pelo poder de perpetuação,
voluntária ou involuntária, das sociedades históricas”, por meio de expressões não
escritas. O documento, ao contrário, expressão essencialmente escrita, é
considerado mais legítimo por ser associado à “neutralidade”. Le Goff (1996)
desconstrói a dicotomia entre documento e monumento, afirmando que todo
documento é, também, parcial, pois é fruto das escolhas de quem o elabora. O que
existe, desse modo, é um modo específico de abordagem que pode considerar o
dado como documento ou monumento. Desse modo, para Le Goff (1996, p. 545),
“o documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto
da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o
poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória
coletiva recuperá-lo [...].” A construção da memória coletiva, portanto, passa por
uma opção epistêmico-metodológica que toma um dado histórico como
documento-monumento. Foucault (2010) e Le Goff (1996) ressaltam a
necessidade metodológica de que a abordagem historiográfica considere o
documento como monumento.
Nesse sentido, o LDP, entendido a partir da noção de monumento, oferece-
nos suporte para entender como o controle do governo sobre a produção didática,
iniciado, segundo Almeida (2008), com a expulsão dos jesuítas, influencia a
produção e a reprodução de determinado modelo de material didático.
O governo brasileiro, especialmente a partir de 1937, como apontam os
trabalhos de Freitag, Motta e Costa (1989), Lemos (2010) e Witzel (2002),
configura-se como o maior comprador de livros didáticos. Nesse sentido, o
controle governamental sobre a produção de materiais didáticos, exercido pelo
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |507

governo federal, torna-se um meio pelo qual se pode compreender o estado atual
da produção do LDP.
Almeida (2008), em seu estudo sobre como se organizavam as aulas régias
no Brasil colonial, afirma que a expulsão dos jesuítas fez-se acompanhar do
primeiro gesto oficial de controle da produção de material didático por parte do
governo em terras brasileiras. Isso se deu, pois era preciso garantir, por meio do
material usado pelos estudantes, que as ideias jesuíticas fossem substituídas pela
ideologia pombalina.
Outro gesto oficial do governo para o estabelecimento de um controle da
produção de obras didáticas foi a lei de 17 de fevereiro de 1854. Essa lei, elaborada
na gestão do ministro Luiz Pereira de Coutto Ferraz, regulamentou a instrução
primária e secundária, suprimiu as aulas régias e criou a Inspetoria Geral da
Instrução Primária e Secundária da Corte32. Segundo Gondra (2005, p. 19),

o aparelho gerado nos termos dessa intervenção supõe uma


profissionalização da instrução, impondo regras para ingresso e
permanência de alunos e professores, redefinindo os saberes
escolares, ao mesmo tempo em que instaura uma rede de vigilância
sobre a organização escolar e seus sujeitos por intermédio da qual
se pretendia obter eficiência e eficácia na instrução primária e
secundária da Corte.

A “profissionalização da instrução” é uma ação do governo imperial no


intuito de gerir a educação brasileira que, nesse momento, apresenta-se de forma
desarticulada. Essa gestão amplia-se na imposição de regras, controle do tempo e
na definição do que a escola deve ensinar. Objetivando “eficiência” e “eficácia”, a
lei de 1854 estabelece vigilância à organização e ao funcionamento da escola.
Entre outras atribuições da inspetoria criada pela lei de 1854, inclui-se a de revisar
os compêndios (a expressão livro didático só é oficialmente empregada em 1937),
utilizados nas escolas públicas, corrigir esses manuais e, quando necessário,
substituí-los. Também era função da inspetoria a convocação do Conselho Diretor

32Conforme Piletti e Piletti (2013), entre as décadas de 1840 e 1860, foram criadas Diretorias-Gerais
de Instrução Pública em todos os estados do Brasil. Na corte, ou seja, na cidade do Rio de Janeiro, a
diretoria recebeu a designação de inspetoria.
508 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

que definia métodos e sistemas de ensino e designava os compêndios a serem


usados nas escolas. Embora o Conselho Diretor da Inspetoria Geral de Instrução
Primária e Secundária da Corte fosse responsável pela indicação dos manuais,
contava com o auxílio de pessoas externas à inspetoria, já que as obras a serem
escolhidas
eram encaminhadas pelo Conselho a pessoas consideradas
“idôneas” da época e que fossem de confiança das autoridades,
sendo uma significativa parcela desses sujeitos formados por
professores públicos, para que estas pudessem fazer sua avaliação,
aprovando somente obras que estivessem de acordo com os
interesses do poder vigente. Ao mesmo tempo em que previa a
regulação, o governo incentivava a criação destas obras ao garantir,
nos artigos 56º e 95° do regulamento, prêmios às pessoas que
compusessem compêndios para uso das escolas e aos que melhor
traduzissem os publicados em língua estrangeira. (LEMOS, 2010, p.
19)

Percebe-se, nesse excerto, como o controle sobre o material didático é


intensificado a partir de 1854. Desde esse momento histórico, já se estabelece uma
prática hoje comum em relação à escolha de material didático: a consulta externa.
Em 1854, a consulta era feita a pessoas “idôneas”, certamente intelectuais ou
pessoas ligadas ao governo, e a professores. Embora houvesse a consulta, fica claro
que, no fim das contas, eram escolhidos apenas os manuais que estivessem
alinhados ao que pensava o governo, o que já configura uma forma de controle.
Os estudos de Almeida (2008) apontam que essa situação se mantém durante toda
a segunda metade do século XIX, inclusive após a proclamação da república. A
realidade educacional brasileira, entre 1889 e 1930, conforme destacam Piletti e
Piletti (2013), conserva os traços básicos do fim do império. O ensino mantém-se
em pequeno número de escolas públicas e são poucos os estabelecimentos com
cursos regulares. A educação primária é tarefa dos estados, que contam com
poucos recursos, e o ensino secundário estabelece-se em função do acesso às
poucas escolas de ensino superior. Nesse contexto, os programas e orientações
didáticas referem-se ao que era proposto no Colégio Pedro II que, mesmo depois
do império, continua como referência no ensino secundário oficial.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |509

Para Piletti e Piletti (2013), em concordância com Aranha (1996) e


Hilsdorf (2003), a mudança no cenário da educação brasileira ganha contornos
com a Revolução de 1930, quando são criadas as secretarias estaduais de educação,
em substituição às Diretorias-Gerais da Instrução Pública, órgãos estatais que, até
então, eram responsáveis por gerir a educação nos estados brasileiros.
Conforme Piletti e Piletti (2013), após a Revolução de 1930, intelectuais
que pensavam a educação de um modo menos elitista e mais popular começaram
a ocupar cargos no governo. Essa realidade favorece a mudança de foco do ensino
público brasileiro que se abre para as contribuições da escola nova, ou educação
nova, de John Dewey (1959). Esse processo de mudança, entretanto, estanca
quando Gustavo Capanema, ministro da educação do governo constitucional
(1934-1937) e do Estado Novo (1937-1945), promove “a reforma de todos os graus
e modalidades de ensino, em iniciativas impostadas de cima para baixo, por meio
de decretos-lei, já que o Congresso fora fechado pelo ditador [Getúlio Vargas]”
(PILETTI; PILETTI, 2013, p. 182).
Em um cenário histórico marcado por um retorno aos padrões de uma
educação elitista, a centralização da gestão, como é próprio de um governo
autoritário, atinge também a área educacional. Gustavo Capanema estabeleceu
uma legislação de tal modo centralizadora que se criou a ideia geral de que “a
qualquer hora do dia, o ministro, em seu gabinete no Rio de Janeiro, sabia o que
estava ocorrendo na sala de aula de todas as escolas do país” (PILETTI; PILETTI,
2013, p. 185). Chama a atenção o fato de essa legislação centralizadora ter
prevalecido até 1961, dezesseis anos depois da queda do Estado Novo, quando foi
aprovada a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Como já vimos anteriormente, consoante Almeida (2008), o controle sobre
a produção do material didático estabeleceu-se com a expulsão dos religiosos
jesuítas, em 1759, e intensificou-se, em 1854, com a fundação da Inspetoria Geral
da Instrução Primária e Secundária da Corte.
A centralização na gestão da educação, resultado da atuação de Gustavo
Capanema à frente do Ministério da Educação durante o governo constitucional
(1934-1937) e o governo do Estado Novo (1937-1945), amplia a sistematização de
510 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

mecanismos de controle especificamente voltados para a elaboração, a publicação


e a circulação do livro didático. Isso se dá pela instituição de órgãos
governamentais com a tarefa específica de regulamentar a produção e a
publicação dos livros didáticos. No próximo tópico, propomos um inventário
desses órgãos estatais.

3. Órgãos governamentais de controle do livro didático

No caso do material didático, a sistematização e a centralização do controle


gestor por parte do governo torna-se mais efetiva com a fundação do Instituto
Nacional do Livro Didático (INL), em 193733, quando Gustavo Capanema inicia
seu segundo mandato como ministro da educação.
Segundo Witzel (2002), a fundação do INL, precursor do atual Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), causa mudanças significativas no percurso
referente à edição e à circulação de livros didáticos. O INL, criado por meio do
Decreto-Lei nº 93, de 21 de dezembro de 1937, tinha como atribuições iniciais: a
edição de obras literárias consideradas importantes para a formação cultural dos
brasileiros, a organização de uma enciclopédia e de um dicionário nacionais e a
criação de bibliotecas públicas.
No ano seguinte, pelo Decreto-Lei nº 1.006, de 30 de dezembro de 1938,
foi criada a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD). Essa comissão, formada
por membros nomeados pelo Presidente da República (Getúlio Vargas),
estabelece a primeira legislação para a produção e a circulação de obras didáticas.
Embora, segundo o Decreto-Lei nº 1.006, a criação da comissão tivesse o objetivo
de evitar impropriedades factuais e inexatidões nas obras didáticas, Freitag et al.
(1989) e Hallewell (2005) afirmam que essa comissão surgiu com uma clara função

33
A página eletrônica do FNDE apresenta como data de fundação para o INL o ano de 1929. Em Freitag
et al. (1989), bem como em Witzel (2002), aponta-se o ano de 1937. Essa data é corroborada pelo fac
simile da lei de criação do INL, que se encontra na página eletrônica do Senado Federal. Disponível
em <
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=93&tipo_norma=DEL&data=19371
221&link=s>. Acesso em 13 mai. 2017.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |511

de controle político-ideológico e não com um objetivo didático como apontado


pelo decreto.
Segundo Witzel (2002), até 1937/1938, não havia uma definição precisa do
que era livro didático. Foi justamente em 1938, que se consagrou “o termo ‘livro-
didático’ entendido até os dias de hoje como sendo, basicamente, o livro adotado
na escola, destinado ao ensino, cuja proposta deve obedecer aos programas
curriculares escolares” (WITZEL, 2002, p.17). Assim se definiu livro didático no
Decreto-Lei nº 1.006 de 30 de dezembro de 1938, em seu artigo segundo:
Compêndios são os livros que expõem total ou parcialmente a
matéria das disciplinas constantes dos programas escolares; livros
de leitura de classe são os livros usados para leitura dos alunos em
aula; tais livros também são chamados de livro-texto, compêndio
escolar, livro escolar, livro de classe, manual, livro didático.
(OLIVEIRA, 1980, p.12 apud OLIVEIRA et al, 1984, p. 22)

Essa definição “privilegia o aspecto da ‘consagração’ ou legitimação do


livro no próprio processo de ensino; o livro didático é basicamente o livro adotado
na escola” (OLIVEIRA et al., 1984, p. 23). No escopo de nosso trabalho, pois
entendemos que a definição de 1938 ainda reverbera na configuração dos LD
atuais, e, por extensão, dos LDP.
Além de apresentar a definição de livro didático, o decreto lei criou a
CNLD a cujos membros, indicados pelo governo, cabia, entre outras, as funções
de examinar, avaliar e julgar os livros didáticos, autorizando ou não seu uso nas
escolas. Percebe-se, pois, aqui, uma verticalização do controle iniciado com a
expulsão dos jesuítas, em 1759, e intensificado, em 1854, com a fundação da
Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária da Corte.
A atitude governamental de criar a CNLD, em pleno período do Estado
Novo, um momento político autoritário, marcante e polêmico, como pontuam
Freitag, Motta e Costa (1989), foi uma iniciativa que buscava garantir a
unidade/identidade nacional. Por um lado, essa unidade revela-se na
centralização da gestão da produção e da circulação do LD. Por outro, o próprio
LD, ao submeter-se aos critérios da CNLD, constitui-se como um veículo de
512 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

legitimação dessa unidade/identidade nacional objetivada pelo governo de


Getúlio Vargas.
O poder da CNLD foi questionado, especialmente em razão de os critérios
da comissão, segundo observação de Oliveira et al. (1984), valorizarem mais
aspectos político-ideológicos do que pedagógicos, já que o que estava em pauta
era assegurar que os LD atendessem aos propósitos de formação de um certo
espírito de nacionalidade. Oliveira et al. (1984) explicam que, dos critérios de
impedimentos para adoção de uma obra didática estabelecidos pela comissão,
apenas cinco tratavam de aspectos didáticos propriamente ditos, enquanto onze
estavam associados a questões político-ideológicas como aspectos morais, cívicos
e políticos. Com a CNDL, percebem-se mudanças nas políticas do LD. Todavia,
entre a comissão e o atual Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) há um
traço comum: o controle governamental (ou sua tentativa), às vezes explícito no
discurso governamental, às vezes subjacente ao que se enuncia nos documentos
oficiais.
A existência da CNLD não foi tranquila em função de constituir-se como
um processo permeado por impasses e dificuldades próprias da “centralização do
poder, do risco da censura, das acusações de especulação comercial e de
manipulação política, relacionada com o livro didático” (FREITAG; MOTTA;
COSTA, 1989, p. 14). Não obstante as dificuldades de operacionalização da
comissão e as loquazes críticas dos intelectuais da época a essa forma de
centralização, o órgão manteve-se e foi ampliado. A CNLD funciona até 1945.
Nesse ano, após a queda do governo de Vargas, o Estado restringe ao professor a
escolha do material didático a ser usado pelos alunos e, por meio do Decreto-Lei
nº 8.460, de 26 de dezembro de 1945, dissolve a CNLD. O INL é extinto apenas
em 1976.
No caminho do controle governamental da produção didática, até o atual
PNLD, há a criação e a extinção de vários órgãos e programas. Conforme Freitag,
Motta e Costa (1989), após a dissolução da CNLD, criam-se outros órgãos,
comissões e programas que antecedem o atual PNLD ou que a ele de algum modo
estão relacionados:
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |513

 Fundação Nacional do Material Escolar (FENAME), de 1967 a 1983;


 Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático (COLTED), de 1967 a
1971;
 Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), de 1968 à
atualidade,
 Programa do Livro Didático (PLID)34, de 1971 a 1985;
 Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), de 1983 a 1997;
 Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), de 1985 à atualidade.
Em nossa pesquisa, ao procurarmos informações sobre esses organismos de
gestão sobre a produção e circulação do LD, percorremos um intricado caminho
no qual se entrecruzam datas, justificativas pedagógicas, objetivos político-
ideológicos, questões didáticas e logísticas de naturezas diversas. O modo como
decidimos organizar esse complexo emaranhado de informações segue o percurso
cronológico da criação dos vários órgãos, comissões e programas de algum modo
associados à política do governo sobre o LD.
A Fundação Nacional do Material Escolar (FENAME) foi criada por meio
da Lei nº 5. 327, de 02 de outubro de 1967, durante o governo de Arthur Costa e
Silva. A FENAME, conforme pontua Höfling (2000, p. 163), tinha como
finalidade primeira a produção e a distribuição de materiais didáticos às escolas,
“mas não contava com organização administrativa nem recursos financeiros para
desempenhar tal tarefa”. Em virtude dessa situação, estabeleceu-se, por meio da
Portaria Ministerial nº 35, de 1970, um sistema de coedição com as editoras
nacionais. Nesse sistema, a FENAME tinha a tarefa de definir os critérios para a
elaboração do material didático e de revisá-lo quando necessário. A atuação da

34No histórico do PNLD disponível na página eletrônica do FNDE, assim como em Feijó, Amorim e
Rodrigues (2012), esse mesmo programa é denominado Programa do Livro Didático para o Ensino
Fundamental (PLIDEF). Em nosso trabalho, optamos por manter a denominação apresentada por
Freitag, Motta e Costa (1989). Höfling (2000) explica que o PLID engloba outros programas como o
Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental (PLIDEF), o Programa do Livro Didático para
o Ensino Médio (PLIDEM), o Programa do Livro Didático para o Ensino Superior (PLIDES) e o
Programa do Livro Didático para o Ensino Supletivo (PLIDESU). Esses programas, entretanto, tiveram
pequena duração.
514 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

FENAME torna-se mais efetiva em 1976. Com o Decreto n° 77.107, de 04 de


fevereiro de 1976, o então presidente Ernesto Geisel transfere à FENAME a
responsabilidade do PLID, até então competência do INL.
Acerca das competências da FENAME, Freitag, Motta e Costa (1989)
explicam que ela deveria definir, a partir de então, “as diretrizes para a produção
de material escolar e didático e assegurar sua distribuição em todo território
nacional; formular programa editorial; cooperar com instituições educacionais,
científicas e culturais, públicas e privadas, na execução de objetivos comuns”
(FREITAG; MOTTA; COSTA, 1989, p.15). Nessa época, surge, de maneira
explícita, a vinculação da política governamental do LD ao caráter assistencialista
que vai marcar, por exemplo, a decisão de se transferir para a Fundação de
Assistência o Estudante (FAE), no início da década de 80, o gerenciamento de
programas como o Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental
(PLIDEF). Essa concepção assistencialista resultou, segundo Freitag, Motta e
Costa (1989), em problemas como dificuldades de distribuição dos LD nos prazos
previstos; aproximação das empresas e editoras de órgãos governamentais
responsáveis a fim de terem escolhidos pelo programa seus LD; além de uma
tomada de decisões centralizadora e autoritária por parte dos responsáveis no
governo.
Conforme Freitag, Motta e Costa (1989) e Höfling (2000), em 1967, cria-se
a Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático (COLTED), extinta em 1971.
Sob a égide do regime militar, durante os anos 60, a COLTED resultou do Acordo
MEC/USAID35. Segundo Freitag, Motta e Costa (1989), esse acordo, firmado em
06 de janeiro de 1967, objetivava disponibilizar gratuitamente, no período de três
anos, cerca de 51 milhões de livros para estudantes brasileiros. Ainda conforme
as autoras, a COLTED propunha um programa desenvolvimentista – para cuja

35
MEC/USAID: acordo que incluiu convênios realizados entre o Ministério da Educação (MEC) e a
United States Agency for International Development (USAID), a partir de 1964. Esses convênios
objetivavam a implantação do modelo educacional americano no Brasil. O movimento estudantil da
época, discordando do acordo, protestou contra os convênios e reivindicou o fim do acordo. Diante
disso, as organizações estudantis foram consideradas clandestinas pelo regime militar (DICIONÁRIO
INTERATIVO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA, 2008).
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |515

concretização dispunha de farta disponibilidade financeira – que incluiria a


instalação de bibliotecas e a organização de cursos de treinamentos de instrutores
e professores. Entretanto, estudos como o de Höfling (2000) denunciam que, por
trás do acordo entre MEC/USAID, havia um interesse norte-americano de
controlar as escolas do Brasil. Esse controle, para Freitag, Motta e Costa (1989),
revela-se na elaboração dos LD que, por meio de uma fiscalização de conteúdo,
tornam-se instrumentos ideológicos dessa manipulação. Os resultados do trabalho
da COLTED foram desastrosos e culminaram em uma Comissão de Inquérito para
apuração de possíveis irregularidades e corrupção no mercado livreiro,
notadamente em relação à edição, divulgação e comercialização do LD.
O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) foi criado
pela Lei nº 5.537, de 21 de novembro de 1968, no governo Arthur da Costa e Silva.
Em funcionamento até a atualidade, esse fundo, uma autarquia vinculada ao
Ministério da Educação, tem como principal responsabilidade a captação e a
distribuição de recursos, via governo federal, para as instituições de educação
básica do Brasil. Vários programas relacionados à educação, como o atual PNLD,
estão vinculados ao FNDE.
Em 1971, depois da extinção da COLTED, a responsabilidade pela coedição
de obras didáticas, em conjunto com as editoras, passa ao INL. Cria-se, então, o
Programa do Livro Didático (PLID). Esse programa assume a função de
operacionalizar a edição e a distribuição de obras didáticas. Tendo terminado o
convênio MEC/USAID, os estados passam a contribuir financeiramente para que
os LD possam ser editados e enviados às escolas do Brasil. O INL, conforme
Höfling (2000), até 1975, promove, em conjunto com as editoras, um acordo de
coedição de obras didáticas. Nesse contexto, o Estado passa de “censor” do LD a
“financiador” desse material. O PLID foi assumido, em 1976, por determinação
de decreto presidencial, pela FENAME, criada em 1968.
Em 1983, organiza-se a Fundação Nacional do Estudante (FAE), em
substituição à FENAME. A FAE, criada pela Lei nº 7.091, de 18 de abril de 1983,
como nova denominação da FENAME, assume como tarefa principal a
diminuição nos custos de produção do material escolar (não só do LD), fazendo
516 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

que chegue a um maior número de alunos. Em 1984, ressalta Höfling (2000), o


sistema de coedição é finalizado. Desse modo, o governo passa de “financiador” a
“comprador” do LD. E não se trata de um comprador comum, pois há a intenção
de que todos os alunos matriculados nas escolas públicas tenham LD em mãos. Na
busca de concretizar esse objetivo, conforme Cury (2009, p. 225), “ao mesmo
tempo em que deu continuidade às ações de assistência ao estudante,
desenvolvidas anteriormente [...], a FAE foi gradativamente instituindo normas
reguladoras dessas ações e organizando-as em programas, além de implementar
novas ações”. Entre essas novas ações, figura a criação do atual Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD). A FAE é extinta em 1997, quando o PNLD passa a ser
desenvolvido pelo FNDE.
Em 19 de agosto de 1985, por meio do Decreto n° 91.542, o presidente José
Sarney institui o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Conforme Cury
(2009, p. 126), a criação desse programa ocorreu “no contexto da definição de
políticas de assistência ao estudante, unificadas na recém-criada Fundação de
Assistência ao Estudante. A FAE procurou consolidar essas políticas em
programas próprios segundo as diferentes áreas de atuação.” O PNLD, nessa
perspectiva, surge como um meio assistencial pelo qual o LD pode chegar ao
maior número de estudantes das escolas públicas brasileiras.

4. Considerações finais

Entendemos que a criação do PNLD e sua execução são mais um aspecto


do controle exercido pelo governo, que pode ser percebido de forma muito
marcada em quatro momentos: em 1759, ainda nos tempos do Brasil-Colônia,
com a expulsão dos jesuítas; em 1854, no Império, com a fundação da Inspetoria
Geral da Instrução Primária e Secundária da Corte; em 1937, no Estado Novo,
com fundação do INL e em 1985, com a criação do PNLD. O controle do governo
sobre o material didático, como se vê, não é algo novo. E esse controle funciona.
Prova disso é o fato de o PNLD estar em pleno desenvolvimento.
Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior |517

A constituição do livro didático está, portanto, condicionada à gestão do


governo e essa gestão existe, como provamos, desde 1759. No caso do LD atual, o
PNLD, subordinado ao FNDE, orienta programas, normas de produção, inscrição
das obras e sua distribuição, o que é feito pelas editoras. Assim, podemos dizer
que o PNLD constitui-se como um elemento decisivo na elaboração de novos
livros didáticos, pondo em relevo o controle que o governo exerce sobre a
produção didática.
O autor de um LD vai escrever algo que tenha perspectiva de venda, algo
que seja bem avaliado e figure no guia do PNLD, principal consumidor de obras
didáticas. Embora a educação privada não dependa do PNLD para a adoção dos
livros didáticos, o programa exerce sua influência também nesse âmbito, na
medida em que funciona como uma bússola a apontar para o norte do sucesso
editorial: as vendas.
Nesse sentido, é muito importante, tomando o LDP como fruto de um
momento histórico, compreender que esse objeto é um produto constituído no e
pelo discurso, noção que, como aponta Orlandi (1999, p. 15), “tem em si a ideia
de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim a palavra
em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o
homem falando”. É nesse movimento, nessa atividade social que marca as
situações concretas da existência, que se situam e se configuram nossas práticas
sociais, como a produção e a circulação do LDP, por exemplo.
As políticas públicas para o livro didático, em nossa perspectiva,
configuram-se como uma forma de controle governamental sobre o material
didático. A atuação do governo em relação à produção e à circulação de obras
didáticas põe em relevo um conjunto de relações, nas quais se envolvem os órgãos
do governo, as editoras, a equipe autoral de livros didáticos e os destinatários
desses manuais — professores e alunos. Nesse sentido, é que tomamos o livro
didático, entendendo que o LDP se inscreve na ordem do discurso oficial sobre a
produção de material didático.
Esse discurso oficial configura uma ordem discursiva que tem
cristalizado um modelo de produção do LDP, como mostramos em outra pesquisa
518 | Materiais didáticos, EAD, PIBID, Ensino de Língua Portuguesa e Ensino Superior

que desenvolvemos (CARVALHAES, 2018). A investigação da história do LDP


pode nos ajudar a compreender como esse objeto, visto como monumento,
materializa nossa forma de ver o mundo, o ensino, a língua seu ensino.
Desejamos que a presente pesquisa colabore no preenchimento de uma
lacuna relacionada à escassez de trabalhos científicos que tratam da história do
LDP, cuja utilização não é algo novo na atividade pedagógica dos professores do
materno idioma. Soares (2001), por exemplo, evidencia essa afirmação ao
construir uma história da leitura e da formação do professor-leitor por meio da
análise de dois livros didáticos – no caso, A Antologia Nacional, de Fausto Barreto
e Carlos de Laet, cuja primeira edição data de 1895, e Estudo dirigido de
Português, de Reinaldo Mathias Ferreira, publicado em 1970.
Estudos como os de Soares (2001) e os empreendidos pelos pesquisadores
do Centro de Memória da Educação da Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo (USP), por meio da Biblioteca do Livro Didático e do banco de dados
virtual dos livros escolares – LIVRES, põem em relevo a necessidade de estudos
sobre a história do material didático como elemento de compreensão das práticas
pedagógicas no ensino de língua portuguesa. Cientes dessa importância,
esperamos que nossa pesquisa possa fornecer subsídios para estudos que tomem o
material didático como fonte de investigação bem como para estudos sobre o
ensino-aprendizagem de língua portuguesa.

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