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A variação linguística

e o texto na sala de aula


Editora da Universidade Estadual de Maringá

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Projeto Gráfico e Design Marcos Kazuyoshi Sassaka


Fluxo Editorial Edneire Franciscon Jacob
Mônica Tanamati Hundzinski
Vania Cristina Scomparin
Edilson Damasio
Artes Gráficas Luciano Wilian da Silva
Marcos Roberto Andreussi
Marketing Marcos Cipriano da Silva
Comercialização Norberto Pereira da Silva
Paulo Bento da Silva
Solange Marly Oshima
Formação de Professores em letras - EAD

Neiva Maria Jung


(Organizadora)

A variação linguística e o
texto na sala de aula

7
Maringá
2010
Coleção Formação de Professores em Letras - EAD

Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese


Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331
Revisão Gramatical: Manoel Messias Alves da Silva
Edição, Produção Editorial e Capa: Carlos Alexandre Venancio
Júnior Bianchi
Eliane Arruda

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Variação linguística e texto na sala de aula / Neiva Maria Jung, organizadora. --


V299 Maringá : Eduem, 2010.
100p. 21cm. (Formação de Professores em Letras - EAD; n. 7)

ISBN: 978-85-7628-288-4

1. Linguística - Estudo e ensino - Textos. 2. Linguística - Fala e escrita. 3. Língua


portuguesa - Brasil. I. Jung, Neiva Maria, org.

CDD 21. ed. 410

Copyright © 2010 para o autor


Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo
mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos
reservados desta edição 2010 para Eduem.

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http://www.eduem.uem.br / eduem@uem.br
S umário

Sobre os autores > 5

Apresentação da coleção > 7

Apresentação do livro > 9

UNIDADE 1 - VARIAÇÃO LINGUÍSTICA > 11

CAPÍTULO 1
Preconceito linguístico > 15

CAPÍTULO 2
As variedades e a questão da norma no ensino de línguas > 23

CAPÍTULO 3
Propriedades do Português do Brasil > 31

CAPÍTULO 4
A questão da norma e o ensino de línguas > 37

CAPÍTULO 5
Fala e escrita
> 43

3
A variação
linguística e o texto
UNIDADE 2 - TEXTO > 49
na sala de aula

CAPÍTULO 1
Definições > 51

CAPÍTULO 2
Fatores pragmáticos da textualidade > 55

CAPÍTULO 3
Condições de produção > 71

CAPÍTULO 4
A argumentação marcada
na língua: os operadores argumentativos
> 79

4
S obre os autores

ANA PAULA PERON


Professora colaboradora da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Graduada e Mestre em Letras pela mesma universidade.

NEIVA MARIA JUNG


Professora do Departamento de Letras da Universidade Estadual de

Maringá (UEM). Graduada pela Universidade Estadual do Oeste do

Paraná. Mestre em Linguística Aplicada (Universidade Estadual de

Campinas) e Doutora em Letras (Universidade Federal do Rio Grande

do Sul). Pesquisadora na área de Linguística Aplicada, com ênfase

em Sociolinguística Interacional, Etnografia e Análise da Conversa

Etnometodológica, trabalhando principalmente com os seguintes temas:

Letramento, Identidades Sociais, Fala-em-Interação, Multilinguismo e

Metodologia de Pesquisa.

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A presentação da Coleção
Os 54 títulos que compõem a coleção Formação de Professores em Letras fazem
parte do material didático utilizado pelos alunos matriculados no Curso de Licenciatu-
ra em Letras, habilitação dupla, Português-Inglês, na Modalidade a Distância, da Uni-
versidade Estadual de Maringá (UEM). O curso está vinculado à Universidade Aberta
do Brasil (UAB) que, por seu turno, faz parte das ações da Diretoria de Educação a
Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior
(Capes).
A UEM, na condição de Instituição de Ensino Superior (IES) proponente do curso,
assumiu a responsabilidade da produção dos 54 livros, dentre os quais 51 títulos fica-
ram a cargo do Departamento de Letras (DLE), 2 do Departamento de Teoria e Prática
da Educação (DTP) e 1 do Departamento de Fundamentos da Educação (DFE). O pro-
cesso de elaboração da coleção teve início no ano de 2009, e sua conclusão, seguindo
o cronograma de recursos e os trâmites gerais do Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação (FNDE), está prevista até 2013. É importante ressaltar que, visando a
atender às necessidades e à demanda dos alunos ingressantes no Curso de Graduação
em Letras-Português/Inglês a Distância, da UEM, no âmbito da UAB, nos diferentes
polos, serão impressos 338 exemplares de cada livro.
A coleção, não obstante a necessária organicidade que aproxima e estabelece a
comunicação entre diferentes áreas, busca contemplar especificidades que tornam o
curso de Letras uma interessante frente de estudos e profissional. Deste modo, as
três principais instâncias que compõem o curso de Letras na modalidade a distância
(Língua Portuguesa, Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa e
Língua Inglesa e Literaturas Correspondentes) são contempladas com livros que
são organizados tendo em vista a construção do saber de cada área. Semelhante cons-
trução não apenas trabalha conteúdos necessários de modo rigoroso tal como seria
de esperar de um curso universitário, como também atua decisivamente no sentido de
proporcionar ao aluno da Educação a Distância a autonomia e a posse do discurso de
modo a realizar uma caminhada plenamente satisfatória tanto em sua jornada acadê-
mica quanto em sua vida profissional posterior. Isso só é possível graças à competência
e comprometimento dos organizadores e autores dos livros dessa coleção, em sua
maior parte ligados aos departamentos da Universidade Estadual de Maringá envol-
vidos neste curso, além de convidados que enriqueceram a produção dos livros com
sua contribuição. A excelência e a destacada contribuição científica e acadêmica desses

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A variação autores e organizadores são outros elementos que garantem a seriedade do material
linguística e o texto
na sala de aula e reforça a oportunidade que se abre ao aluno da Educação a Distância. Além disso, o
material produzido poderá ser utilizado por outras instituições ligadas à Universidade
Aberta do Brasil, abrindo uma perspectiva nacional para os livros do curso de Letras
a Distância.
Além do trabalho desses profissionais, essa coleção não seria possível sem a con-
tribuição da Reitoria da UEM e de suas Pró-Reitorias, do Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes da UEM e seus respectivos representantes e departamentos, da Diretoria
de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do
Ensino Superior (Capes) e do Ministério da Educação (MEC). Todas essas esferas, de
acordo com suas atribuições, foram de suma importância em todas as etapas do traba-
lho. Diante disso, é imperativo expressar, aqui, nosso muito obrigada.
Por último, mas não menos importante, registramos nosso agradecimento especial
à equipe do NEAD-UEM: Pró-Reitoria de Ensino, Coordenação Pedagógica e equipe
técnica, pela dedicação e empenho, sem os quais essa empreitada teria sido muito
mais difícil, se não impossível.

Rosângela Aparecida Alves Basso,
Organizadora da coleção.

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A presentação do livro
Esta obra é resultante de uma experiência de alguns anos com a disciplina de Lin-
guística I, no curso presencial de Letras da Universidade Estadual de Maringá. Nela,
procuramos trabalhar o conteúdo da disciplina de Linguística II, do Curso de Letras a
Distância, tendo em vista a ementa a seguir, da disciplina:
- Funcionamento da linguagem, considerando-a uma forma de atuação social, na
formação dos profissionais de Letras. (Resolução 181/2005 - CEP).
O fascículo significou um grande desafio: trabalhar dois conteúdos bastante signifi-
cativos para o profissional de Letras, a saber: Variação Linguística e Texto, de modo que
pudéssemos levar o estudante a reconhecer e compreender os dois fenômenos a partir
de suas áreas de estudo, no caso Sociolinguística Laboviana e Linguística Textual, e ao
mesmo tempo pensá-los em termos de prática pedagógica. Geralmente, no curso presen-
cial, os alunos resistem bastante em relação ao primeiro conteúdo, a variação linguística,
devido a toda uma cultura conservadora que temos em nossa sociedade. Por esse motivo,
na primeira unidade, optamos por iniciar a discussão com o preconceito linguístico,
procurando levar o aluno a reconhecer gradativamente como se constitui social e linguis-
ticamente a variação do português brasileiro. Esta unidade tem cinco capítulos.
Na segunda unidade, com quatro capítulos, contextualizamos o surgimento da Lin-
guística Textual, apresentamos a noção de texto os padrões de textualidade, as con-
dições de produção fundamentais para a produção textual e, por fim, a noção de
subjetividade a partir dos operadores argumentativos.
O fascículo foi escrito pela organizadora, com exceção do capítulo 2.4 escrita pela
professora Ana Paula Perón. Optamos por apresentar as referências no final de cada
unidade, com exceção do capítulo 2.4. Em alguns capítulos, apresentamos Proposta
de Atividades, no final.
Espero que o fascículo tenha a aceitabilidade do nosso provável leitor, aluno do
segundo semestre do Curso de Licenciatura em Letras, habilitação dupla, Português-
Inglês, na Modalidade a Distância, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), cum-
prindo dessa forma a sua função sociocomunicativa, e que leve o aluno-professor a
reconhecer a importância dos conteúdos trabalhados para a sua prática de sala de aula.

Neiva Maria Jung


Organizadora

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U nidade 1

VARIAÇÃO LINGUÍSTICA
Caro professor, uma das questões ainda pouco resolvidas no ensino escolar é a ques-
tão da variação linguística. Os documentos oficiais (PCN, Diretrizes Curriculares do Es-
tado do Paraná) recomendam reconhecer e trabalhar a diversidade, conforme podemos
verificar na citação a seguir de um trecho das Diretrizes do Estado do Paraná (2008):

Se a escola, constitucionalmente, é democrática e garante a socialização do co-


nhecimento, deve então acolher alunos independentemente de origem quanto
à variação linguística de que dispõem para sua expressão e compreensão do
mundo. Compete à escola tomar como ponto de partida os conhecimen-
tos linguísticos dos alunos, promover situações que os incentivem a falar,
ou seja, fazer uso da variedade de linguagem que eles empregam em suas
relações sociais (PARANÁ, 2008, p. 17).

Nessa citação, fica claro que a escola deve reconhecer a variação na fala dos alu-
nos e incentivá-los a usar os seus conhecimentos linguísticos. Trata-se de uma forma
bastante simples de reconhecer a variação como constituinte da prática da oralidade
e da escrita. Não há ainda nesse caso nenhuma proposta pedagógica para trabalhar a
questão em sala de aula.
Na sequência, o documento faz isso, apresenta como trabalhar a variação linguísti-
ca em sala de aula. Vejamos:

Não se devem tomar as variedades linguísticas como pretexto para discri-


minação social, mas promover o diálogo entre os diferentes falares,
considerando a necessidade de sua escolha, conforme as circunstâncias de
interlocução. Isso não significa valorizar em excesso as variedades linguís-
ticas em prejuízo da norma padrão; ao contrário, a sala de aula é o espaço
de apropriação deste conhecimento, porque é o único lugar que possibilita
à grande maioria dos alunos contato com a norma culta da língua (PARANÁ,
2008, p. 18).

Em primeiro lugar, conforme o trecho citado do documento, a escola deve pro-


mover o diálogo entre os diferentes falares, em segundo, chama a atenção para que

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A variação isso não aconteça em prejuízo da norma padrão, e, por último, que a sala de aula é o
linguística e o texto
na sala de aula espaço de contato da maioria dos alunos com a norma culta da língua. Nesse caso, fica
difícil compreender o que seria a norma padrão e o que seria a norma culta da língua.
O documento parece referir-se a mesma norma, partindo do pressuposto de que a
norma padrão escrita deve ser ponto de chegada tanto da língua falada quanto da
língua escrita. É uma confusão conceitual bastante prejudicial para o ensino da língua,
conforme discutiremos mais adiante.
Outra questão que merece ser destacada é a sugestão de que o professor deve
promover o diálogo entre os diferentes falares. De que forma? Parece que a questão
não necessita de proposta de ensino, de uma sistematização da língua, de um trabalho
com gêneros textuais que mostre o uso, funcionamento e os valores sociais associados
às escolhas linguísticas.
Os PCNs de língua portuguesa, assim como os de pluralidade cultural, reconhecem
por sua vez a existência de variantes linguísticas, que devem ser respeitadas, pois não
há um modo certo ou um modo errado de falar. Há o reconhecimento da língua como
veículo de transmissão de cultura, de valores, de preconceitos. O problema dos PCNs
é que a linguagem é tratada com base na noção de adequação, que não é explicada
satisfatoriamente. Segundo esse documento, saber falar ou escrever bem é falar ou
escrever adequadamente, sabendo qual variedade usar, empregando um determinado
estilo, esperando determinadas reações. Segundo os PCNs (BRASIL, 1997):

A questão não é falar certo ou errado, mas saber qual forma de fala utilizar,
considerando as características do contexto de comunicação, ou seja, saber ade-
quar o registro às diferentes situações comunicativas. [...] A questão não é de
correção da forma, mas de sua adequação às circunstâncias de uso, ou seja, de
utilização eficaz da linguagem: falar bem é falar adequadamente, é produzir o
efeito pretendido (p. 31-32).

O que, porém, não está explícito é que esse “falar adequado”, essa “utilização efi-
caz” está ligado/a, na verdade, a relações de poder, quem está no poder quer continuar
nele e, para isso, oprime a grande maioria da população pela sua maneira de falar.
Outro ponto: como ter certeza de que produziremos tal efeito, se escrevemos ou fala-
mos para pessoas diferentes (os documentos não afirmam a diversidade cultural?). De
acordo com Faraco,

[...] nosso grande desafio, neste início de século e milênio, é reunir esforços
para construir uma pedagogia da variação linguística que não escamoteie a rea-
lidade linguística do país (reconheça-o como multilíngue e dê destaque crítico
à variação social do português); não dê um tratamento anedótico ou estereo-
tipado aos fenômenos da variação; localize adequadamente os fatos da norma
culta/comum/standard no quadro amplo da variação e no contexto das práticas

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sociais que a pressupõem; abandone criticamente o cultivo da norma-padrão; Unidade 1
estimule a percepção do potencial estilístico e retórico dos fenômenos da varia-
ção (FARACO, 2008, p. 182, grifo do autor).

Convido, assim, você, professor, a me acompanhar para tentarmos entender me-


lhor o que é preconceito linguístico, norma, norma padrão, norma culta, variação e
mudança linguística, os valores sociais atribuídos às escolhas linguísticas que fazemos
e as implicações de um trabalho pedagógico efetivo com a variação linguística em sala
de aula.
Para dar conta dessas questões, os objetivos visados neste capítulo são:
- Reconhecer e discutir o preconceito linguístico presente em nossa sociedade;
- Descrever o que é variação linguística;
- Conhecer algumas características do português brasileiro;
- Refletir sobre as implicações teórico-metodológicas de uma prática pedagógica
que trabalhe efetivamente a variação linguística em sala de aula.

Para atingir esses objetivos propostos, a Unidade está dividida em cinco capítulos:
no primeiro, apresenta-se o preconceito linguístico em nossa sociedade e as suas con-
sequências; no segundo, discute-se o que é variação linguística, considerando os dois
níveis: social e linguístico; no terceiro, apresentam-se algumas características do por-
tuguês brasileiro; no quarta capítulo, uma discussão das implicações de um trabalho
com a variação linguística em sala de aula e, na quinta, a relação fala/escrita.

13
1 Preconceito
linguístico

Neiva Maria Jung

Comumente nos deparamos com julgamentos sobre o modo de falar de alguém,


com afirmações como “O bom português é aquele praticado no Maranhão”, “O ca-
boclo fala errado”, “Nenhum brasileiro fala o português corretamente”, ou tentando
entender a razão pela qual o nosso atual presidente da república fala “errado”. Veja-
mos um exemplo desse último tipo de comentário:

O Lula fala errado por ironia ou por falta de estudo?

Nos pegamos com muitas frases errôneas quanto a pronúncia de nosso Presidente. Agora
fica a dúvida?!!! Será que o mesmo se aproveita desse subterfúgio devido a grande parte de
nossa população ter dificuldade com a língua portuguesa ou será que realmente o mesmo tem
dificuldades em pronunciá-la.

Disponível em: <http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20061026054834AAg8b


CV>. Acesso em: 10 fev. 2010.

Nesse caso, o autor da afirmativa cogita duas razões para “julgar” a fala de Lula:
ironia ou falta de estudo. Quanto à primeira, essa não fica suficientemente clara no
texto, mas a segunda é, sem dúvida, colocada de forma bastante preconceituosa. O
autor deixa implícito que “a dificuldade da grande parte de nossa população com a
língua portuguesa” está relacionada à falta de estudo. Esse é um equívoco, que está
na base de um preconceito muito presente no Brasil.
O segundo equívoco presente na afirmativa está no fato de compreender a língua
somente em termos de pronúncia, o presidente teria dificuldades para pronunciar
a língua. De fato, a pronúncia, reconhecida em termos de sotaque, constitui uma
língua, mas há diferenças em muitos outros níveis da língua, como na concordância
nominal (Os meninu), verbal (Eles fez tudo errado), colocação pronominal (“Nós
pegamos” (próclise) é uma variante, muito utilizada hoje no lugar de “Pegamo-nos”
(ênclise)), entre tantos outros. Se adotássemos a mesma visão purista do autor da

15
A variação afirmação, diríamos que o seu texto também apresenta erros. Considerando, no en-
linguística e o texto
na sala de aula tanto, que se trata de uma resposta a uma pergunta, lançada no site do Yahoo, e que
a ênclise é um uso bastante restrito hoje a textos mais formais e antigos, o uso “Nos
pegamos” pode ser considerado adequado para o gênero resposta virtual.
A partir desse exemplo, é fácil concluirmos que a qualificação de certo e erra-
do em relação aos diferentes falares alimenta um tipo de preconceito. As pessoas
não reconhecem que a fala não corresponde à fala culta, não reconhecem ou tem
dificuldades de reconhecer quais traços linguísticos não correspondem a essa fala,
mas se sentem autorizadas para julgá-la. Nesse caso, trata-se de um julgamento que
é, na verdade, social, e não linguístico. Na base desse preconceito está “quem falou
isso”, que pode ser uma pessoa ou um grupo social, e não como alguém falou isso.
Reconhecemos esse fenômeno como preconceito linguístico.
Para Marcos Bagno (1999a), o preconceito linguístico é a atitude que consiste em
discriminar uma pessoa devido ao seu modo de falar. Trata-se de um preconceito
exercido por aqueles que tiveram acesso à educação de qualidade, à “norma padrão
de prestígio”, ocupam as classes sociais dominantes e, sob o pretexto de defender
a língua portuguesa, acreditam que o falar daqueles sem instrução formal e com
pouca escolarização é “feio”, e carimbam o falar diferente sob o rótulo de erro. Infe-
lizmente, “preconceito linguístico” é somente uma denominação “bonita” para um
profundo preconceito “social”: não é a maneira de falar que sofre preconceito, mas
a identidade social e individual do falante.
Na obra Preconceito linguístico: o que é e como se faz, Bagno desmistifica oito
diferentes concepções - que ele chama de “mitos” -, que alimentariam tal precon-
ceito. A seguir, apresentamos cada um desses mitos, seguidos de questionamentos
sobre a sua impropriedade.

• Mito 1. A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade sur-


preendente. Essa unidade não existe. Os falares mudam de uma região para
outra, de uma classe social para outra, de uma geração para outra, conforme
veremos mais adiante nesta unidade.

• Mito 2. Brasileiro não sabe falar português; só em Portugal se fala bem


português. Ainda que se trate da mesma língua histórica - o português -, é
preciso considerar que a língua serve às demandas de seus falantes e há signi-
ficativas diferenças entre Brasil e Portugal, as quais se revelam em vários itens
culturais, inclusive na língua.

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• Mito 3. Português é muito difícil. O português é tido como uma língua Preconceito linguístico

transparente, uma língua em que não há diferenças tão extremas entre fala
e escrita. No inglês, entre outras línguas, podemos observar como tais di-
ferenças são bem maiores, tanto que, não raro, não temos ideia de como
pronunciar determinadas palavras que estamos lendo. Na fala em português,
este mito também não se sustenta porque a maioria dos falantes da língua
portuguesa fala o português sem dificuldades. Os falantes não usam as formas
verbais, com a complexidade flexional da variedade culta (não é comum o uso
da forma vós, por exemplo), mas essa é a norma da fala. Tendemos a simpli-
ficar os usos da língua na fala, quer nas flexões das palavras (dois pãozinho)
quer nas construções frasais (eu vô lê).

• Mito 4. As pessoas sem instrução falam tudo errado. Eis, aqui, o centro do
preconceito linguístico. A variedade falada pelas pessoas não escolarizadas é
apenas diferente das demais, não melhor ou pior.

• Mito 5. O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão.


A marcante presença lusitana no Maranhão moveu historicamente esse mito,
possivelmente em razão de a fala local revelar-se mais próxima do português
de Portugal.

• Mito 6. O certo é falar assim porque se escreve assim. A escrita representa


a fala e não a fala representa a escrita. Logo, a escrita não pode nortear a for-
ma de falar dos usuários de uma língua, porque ela tem caráter secundário e
requer aprendizado, diferentemente da fala.

• Mito 7. É preciso saber gramática [normativa/tradicional] para falar e


escrever bem. Sabemos que muitos dos grandes escritores de nossa língua já
confessaram não saber gramática normativa.

• Mito 8. O domínio da norma padrão é instrumento de ascensão social. Se


assim fosse, os professores de Português seriam milionários, não é verdade?

Trata-se, em síntese, de oito mitos que carregam no cerne a relação linguagem


e poder. A linguagem é um importantíssimo elemento de dominação sociocultural
e política, talvez o mais importante instrumento de dominação e opressão. Quem
está no poder quer continuar nele e, para isso, a maneira de falar dos poderosos,

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A variação dos privilegiados, se transforma numa arma de defesa do poder contra a eventual
linguística e o texto
na sala de aula insurreição dos oprimidos. Eles tornam a norma-padrão tradicional uma espécie
de “cerca de arame farpado”, que separa a pequena elite de iluminados do resto da
população (GNERRE, 1985). Não é por acaso que, em todas as sociedades europeias,
o modelo de língua “certa” tenha sempre se baseado no modo de falar das regiões
mais ricas, politicamente importantes, centros do poder. Não é por acaso também
que o inglês-padrão é chamado de “inglês da Rainha”. Assim como o rei francês
Luís XV dizia que “o Estado sou eu”, os poderosos também podem dizer “língua é a
minha” - o resto é “jargão”, “algaravia”, “dialeto”, “caçanje”, ou simplesmente “não
é português” (BAGNO, 2008).
O texto a seguir, uma comédia, de Luís Fernando Veríssimo, mostra, de forma
bem-humorada, um pouco da nossa cultura de correção da fala, corrigimos usos
da língua, como o caso da colocação pronominal na fala, que muitas vezes já estão
restritos a textos escritos e, algumas vezes, a alguns gêneros escritos, textos mais
antigos.

PAPOS
- Me disseram...
- Disseram-me.
- Hein?
-O correto é “disseram-me”. Não “me disseram”.
- Eu falo como quero. E te digo mais... Ou é “digo-te”?
- O quê?
- Digo-te que você...
- O “te” e o “você” não combinam.
- Lhe digo?
- Também não. O que você ia me dizer?
- Que você está sendo grosseiro, pedante e chato. E que eu vou te partir a
cara. Lhe partir a cara. Partir a sua cara. Como é que se diz?
- Partir-te a cara.
- Pois é. Parti-la hei de, se você não parar de me corrigir. Ou corrigir-me.
- É para o seu bem.
- Dispenso as suas correções. Vê se esquece-me. Falo como bem entender.
Mais uma correção e eu...
- O quê?
- O mato.
- Que mato?
- Mato-o. Mato-lhe. Mato você. Matar-lhe-ei-te. Ouviu bem?
- Pois esqueça-o e pára-te. Pronome no lugar certo é elitismo!
- Se você prefere falar errado...
- Falo como todo mundo fala. O importante é me entenderem. Ou
entenderem-me?
- No caso... não sei.
- Ah, não sabe? Não o sabes? Sabes-lo não?
- Esquece.
- Não. Como “esquece”? Você prefere falar errado? E o certo é “esquece” ou
“esqueça”? Ilumine-me. Me diga. Ensines-lo-me, vamos.
- Depende.

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- Depende. Perfeito. Não o sabes. Ensinar-me-lo-ias se o soubesses, mas não Preconceito linguístico
sabes-o.
- Está bem, está bem. Desculpe. Fale como quiser.
- Agradeço-lhe a permissão para falar errado que mas dás. Mas não posso mais
dizer-lo-te o que dizer-te-ia
- Por quê?
- Porque, com todo este papo, esqueci-lo ( VERÍSSIMO, 2001, p. 65).

Antes de abordar a crítica feita por Veríssimo em relação ao uso do pronome


oblíquo na fala, vamos retomar de que forma a gramática normativa descreve a co-
locação pronominal.
A colocação pronominal se refere à posição que os pronomes pessoais oblíquos
átonos ocupam na frase. De acordo com Bechara (2004, p. 587-588),

O pronome átono pode assumir três posições em relação ao vocábulo tônico,


donde a ênclise, próclise e mesóclise.

ÊNCLISE é a posposição do pronome átono (vocábulo átono) ao vocábulo


tônico a que se liga:
Deu-me a notícia.

PRÓCLISE é a anteposição ao vocábulo tônico.


Não me deu a notícia.

MESÓCLISE é a interposição ao vocábulo tônico.


Dar-me-ás a notícia (Grifos no original).

Próclise, ênclise e mesóclise são fenômenos do português que se caracterizam


pelo fato de nenhuma palavra ocorrer entre os pronomes oblíquos átonos e o verbo.
Há alguns critérios para a colocação dos pronomes pessoais átonos, como, quando
há um só verbo, não se inicia período por pronome átono, não se pospõe, geralmen-
te, pronome átono a verbo flexionado em oração subordinada, não se pospõe pro-
nome átono a verbo modificado diretamente por advérbio ou precedido de palavra
de sentido negativo, dentre vários outros critérios.
No português falado, o uso é diferente. Há inclusive uma diferença nesse uso
entre o português do Brasil e de Portugal. No Brasil, opta-se sempre por próclise,
independente da posição do grupo/sintagma/locução verbal (pronome e verbo) na
oração. Já em Portugal, dependendo da posição do grupo verbal na oração, opta-se
ou não pela próclise. Vejamos exemplos:

No Brasil
Me diz quem tem razão.
Te vi na rua.

19
A variação Em Portugal
linguística e o texto
na sala de aula Diz-me quem tem razão.
Vi-te na rua.

Muitas gramáticas normativas condenam o uso brasileiro de próclise e esse uso


é ensinado na escola como sendo proibido na escrita e também na fala, como defe-
dem alguns puristas da língua. Segundo Bechara (2004, p. 587):

Durante muito tempo viu-se o problema apenas pelo aspecto sintático,


criando-se a falsa teoria da “atração” vocabular do não, do quê, de certas
conjunções e tantos outros vocábulos. Graças a notáveis pesquisadores, e
principalmente a Said Ali, passou-se a considerar o assunto pelo aspecto fo-
nético-sintático. Abriram-se com isso os horizontes, estudou-se a questão dos
vocábulos átonos e tônicos, e chegou-se à conclusão de que muitas das regras
estabelecidas pelos puristas ou estavam erradas, ou se aplicavam em especial
atenção ao falar lusitano. [...] É urgente afastar a idéia de que a colocação
brasileira é inferior à que os portugueses observam [...].

A comédia de Luís Fernando Veríssimo vem questionar o posicionamento purista


em relação à língua. Ele mostra que, mesmo na língua dos “escolarizados”, as cons-
truções pronominais regidas pelas gramáticas normativas, o uso da ênclise e mesó-
clise, aparecem como recurso estilístico em situações formais, quando o falante quer
deixar claro que domina as regras impostas por essa gramática.
Esse texto aponta que a noção de certo e errado está baseada geralmente na
descrição que algumas gramáticas normativas apresentam da língua escrita. Na fala,
alguns fenômenos muitas vezes já acontecem de modo muito diferente, variam ou
mudaram, mas a referência continua sendo o português padrão escrito. Nesse caso,
por exemplo, é preciso entender que a colocação pronominal no português passa
por uma reorganização, inclusive nos pronomes do caso reto, com o uso de “a
gente” em concorrência com “nós”, como primeira pessoa do plural, dentre outros
exemplos que veremos mais adiante, o que acontece para atender às necessidades
linguísticas das comunidades que falam o português brasileiro.
Em termos pedagógicos, o professor simplesmente apontar os “erros gramati-
cais” dos alunos a partir das gramáticas normativas não constitui uma prática do-
cente adequada, válida para analisar os fenômenos da língua. De acordo com Bagno
(1999b),

O Preconceito Linguístico está ligado, em boa medida, à confusão que foi


criada, no curso da história, entre língua e gramática normativa. Nossa tarefa
mais urgente é desfazer essa confusão. Uma receita de bolo não é um bolo,
um molde de vestido não é um vestido, um mapa-múndi não é o mundo...
Também a gramática não é a língua.

20
Soares (1986), ao afirmar que o preconceito é contra a condição dos falantes e Preconceito linguístico

não contra a sua forma de falar, parece traduzir de fato o que acontece na sociedade,
ou seja, atribuímos valor às pessoas por sua condição socioeconômica e de escolari-
zação e, com essa atribuição, vem o julgamento de sua forma de falar. Possivelmente,
se as elites econômicas e educacionais usassem a forma pobrema em vez da forma
problema, o “erro” estaria em problema e não em pobrema. Podemos, desde já,
inferir as tantas repercussões que essa realidade apresenta na escola, dentre as quais
a legitimação do preconceito linguístico.
A importância de se trabalhar explicitamente com o preconceito linguístico é
apresentada da seguinte forma por Guacira Lopes Louro (1997, p. 65):

Dentre os múltiplos espaços e as muitas instâncias onde se pode observar a


instituição das distinções e das desigualdades, a linguagem é, seguramente,
o campo mais eficaz e persistente - tanto porque ela atravessa e constitui a
maioria de nossas práticas, como porque ela nos parece, quase sempre, mui-
to ‘natural’. Seguindo regras definidas por gramáticas e dicionários [...] supo-
mos que ela é, apenas, um eficiente veículo de comunicação. No entanto, a
linguagem não apenas expressa relações, poderes, lugares, ela os institui; ela
não apenas veicula, mas produz e pretende fixar diferenças.

Essas diferenças fixadas e reafirmadas pela linguagem precisam ser compreendi-


das na escola. É preciso levar os alunos a reconhecer as variantes que constituem a
sua fala e o valor social que essas têm em comparação às variantes da norma culta.
Para tanto, há necessidade de um trabalho intenso com a estrutura da língua e uma
correlação dessa estrutura com a estrutura da sociedade.
O que ainda se vê, no entanto, na prática pedagógica, é uma abordagem pouco
sistemática e até mesmo a omissão da questão. Muitas vezes é dedicada uma unidade
à variação linguística, como no livro de Português para o Ensino Médio do Estado do
Paraná. Isso mostra que a questão ainda não está devidamente compreendida, pois
se a variação é constituinte da língua, deveria ser trabalhada em todas as unidades
de um livro didático.

21
A variação
linguística e o texto
na sala de aula
Leia mais

Para entender melhor a relação entre prestígio dos falantes e a construção de pre-
conceito linguístico, Bortoni-Ricado (2004) recomenda a leitura dos seguintes livros
de Marcos Bagno:

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola,
1999.
______. A norma oculta: língua & poder na sociedade brasileira. São Paulo: Parábo-
la, 2003.

Anotações

22
2 Variação linguística

Neiva Maria Jung

Dificilmente prestamos atenção naquilo que constitui a diferença na língua de um


e de outro, simplesmente a julgamos. Será que se atentarmos ao modo de falar das
pessoas que estão a nossa volta, conseguiremos identificar diferenças? Convido você
a fazer isso e tentar transcrever em um papel tais diferenças, a fim de que possamos
iniciar a nossa discussão sobre língua.
O que é uma língua? Para a Sociolinguística Laboviana, toda e qualquer língua é um
conjunto heterogêneo de variedades. Uma língua não é usada da mesma forma por
todos os seus falantes. O uso de uma língua varia de época para época, de região para
região, de classe social para classe social, e assim por diante. Nem individualmente po-
demos afirmar que o uso seja uniforme. Dependendo da situação, uma mesma pessoa
pode usar diferentes variedades de uma só forma da língua. Mas isso não significa que
o uso da língua seja uma questão de vontade individual. Fazemos escolhas sim, mas a
partir de uma norma linguística que permite que nos identifiquemos com determina-
dos grupos, com determinadas comunidades de fala (HYMES, 1989).
A Sociolinguística Laboviana inicia seus estudos com William Labov, na década de
60, nos Estados Unidos, e estuda a relação língua e sociedade, procurando descrever
como as variações se organizam e o modo como os fatores linguísticos (internos da
língua) e extralinguísticos (externos/sociais) estão correlacionados ao uso de varian-
tes nos diferentes níveis da língua. Labov mostra, em seus estudos, que não há “caos
linguístico” na fala, o que há são variantes que coexistem em seu campo natural de
batalha. O modelo de análise proposto por Labov também é rotulado por alguns de
Sociolinguística Quantitativa, por operar com números e tratamento estatístico dos
dados coletados (TARALLO, 1990).
Essa área de estudos reconhece, assim, que “A variação linguística constitui fenôme-
no universal e pressupõe a existência de formas linguísticas denominadas variantes”
(MOLLICA, 2003). É importante ressaltar que em todas as línguas naturais convivem
ou conflitam forças, nesse caso variantes, objetivando estabilidade. Por isso, diz-se que

23
A variação a variação, bem como a mudança, é um processo contínuo que não respeita e nem de-
linguística e o texto
na sala de aula marca fronteiras fixas e/ou períodos temporais. Tais fenômenos, que são a regra, acon-
tecem em termos de comunidades de fala. Nessas comunidades, fatores linguísticos e
sociais podem estar configurando variação ou mudança linguística, uma realidade que
geralmente revela outros processos sociais em mudança.
Nesse caso, variedade linguística ou variedade dialetal é o modo de falar de uma
comunidade. Uma variedade inicia a sua constituição a partir do momento em que um
grupo de pessoas forma uma comunidade. Nesse caso, a origem dessas pessoas, o modo
de trabalho (agrário, industrial, comercial...), a classe social, a localização geográfica da
comunidade (isolada, com intensos contatos), a escolaridade, o contato com o texto
escrito, são fatores que influenciam na formação da variedade de língua que vão falar e
essa variedade os constituirá como grupo e como indivíduo. Algumas marcas linguísticas,
reconhecidas pela Sociolinguística como variantes, constituirão essa variedade e a dife-
renciarão de outras variedades. Essas variantes, como “nós fumo”, que o falante da varie-
dade geralmente não reconhece, mas fala, são índices de pertencimento ao grupo, traços
de identidade. Eles revelam em uma interação a que grupo social o falante pertence.
Desse modo, falar em tipos ou espécies de variação acontece só por uma questão
metodológica, para facilitar a compreensão de quais são os possíveis fatores que po-
dem influenciar a formação de uma variedade dialetal. Não é possível, por exemplo,
pensar que o português falado no noroeste do Paraná seja somente uma variação ge-
ográfica. Na verdade, esse português é resultado de fatores geográficos (localização),
fatores sociais (classe social), fatores migratórios, entre outros. O grande porcentual
de paulistas que migraram para a região, e nesses estavam muitos japoneses, e a pros-
peridade das lavouras de café na década de 70, fez com que viessem para a região pes-
soas que já falavam um português diferente. O convívio entre eles e a vinda de outros
grupos resultou em marcas específicas, como o uso do /r/ retroflexo, hoje característi-
co dessa variedade, e uma marca trazida do interior de São Paulo.
De acordo com Camacho (1998), observa-se haver no seio de um mesmo instru-
mento de comunicação quatro modalidades específicas de variação linguística, respec-
tivamente, histórica ou diacrônica, geográfica ou espacial, social e estilística (p. 29-30).

Variação histórica
Acontece ao longo de um determinado período de tempo, pode ser identificada ao
se comparar dois estados de uma língua. O processo de mudança é gradual: uma va-
riante inicialmente utilizada por um grupo restrito de falantes passa a ser adotada por
indivíduos socioeconomicamente mais expressivos. A forma antiga permanece ainda
entre as gerações mais velhas, período em que duas variantes convivem; porém, com

24
o tempo, a nova variante torna-se “normal”, a norma na fala, e finalmente consagra-se Variação linguística

pelo uso na modalidade escrita. As mudanças podem ocorrer em todos os níveis da


língua (fonológico, morfossintático, semântico, prosódico, estilístico).

Variação geográfica
Trata das diferentes formas de pronúncia, de vocabulário, de variação no nível fo-
nológico, morfológico e sintático da língua entre regiões. Dentro de uma comunidade
mais ampla, formam-se comunidades de fala menores em torno de centros polariza-
dores da cultura, política e economia, que acabam por definir os padrões linguísticos
utilizados na região de sua influência. As diferenças linguísticas entre as regiões são
graduais, nem sempre coincidindo com as fronteiras geográficas.

Variação social
Agrupa alguns fatores de diversidade: o nível socioeconômico, determinado pelo
meio social onde vive um indivíduo; o grau de escolaridade; a idade; o sexo. O uso de
certas variantes pode indicar qual o nível socioeconômico ou a idade de uma pessoa.

Variação estilística
Considera um mesmo indivíduo em diferentes circunstâncias de comunicação: se
está em um ambiente familiar, profissional, o grau de intimidade, o tipo de assunto tra-
tado e quem são os interlocutores. Sem levar em conta as graduações intermediárias,
é possível identificar dois limites extremos de estilo: o informal, quando há um míni-
mo de reflexão do indivíduo sobre as normas linguísticas, utilizado nas conversações
imediatas do cotidiano; e o formal, em que o grau de reflexão é máximo, utilizado em
conversações que não são do dia a dia e cujo conteúdo é mais elaborado e complexo.
Não se deve confundir o estilo formal e informal com língua escrita e falada, pois os
dois estilos ocorrem tanto na língua falada como na língua escrita.
É importante destacar mais uma vez aqui que as diferentes modalidades de varia-
ção linguística não existem isoladamente, havendo um inter-relacionamento entre elas:
uma variante geográfica pode ser vista como uma variante social, considerando-se a mi-
gração entre regiões do país. Um exemplo muito claro disso é o do português brasileiro
falado nas periferias dos grandes centros, como São Paulo e Brasília. Muitos traços que
constituem as variedades faladas nesses locais são resultado da grande onda migratória
que aconteceu no Brasil a partir da década de 60. Para esses dois grandes centros migra-
ram principalmente nordestinos e nortistas, que levaram sua fala, seus costumes, sua
culinária, sua cultura enfim, para as novas comunidades. Em contato com as pessoas
que já residiam nos locais, mantiveram alguns desses traços e adquiriram outros.

25
A variação Outro exemplo de inter-relacionamento pode acontecer no meio rural. Por ser
linguística e o texto
na sala de aula menos influenciado pelas mudanças da sociedade, pode preservar variantes antigas
(variação histórica).
Ou seja, as variedades do português brasileiro são resultantes de mais de um fator.
Para conhecer e/ou descrever uma variedade, é necessário começar pela formação da
comunidade, saber quais grupos vieram para o lugar, como se estabeleceram no lu-
gar, se de forma isolada ou integrada, qual o grau de letramento dos grupos, qual a
orientação dos grupos. Retomando o exemplo do noroeste do Paraná, seria necessário
investigar se as pessoas se orientam ou orientavam mais para São Paulo que para Curi-
tiba, capital do Estado, a base da economia, entre outros fatores.
Vamos refletir um pouco mais sobre essa questão, observando algumas palavras do
português que estão em processo de variação, nesse caso variantes da norma culta.

Nº Variantes Forma culta Tipo de variação


1) pobrema Problema Variação social
Significando coisa ou
Variação geográfica e
2) substituindo substantivos em
Trem social
geral.
3) eslaque Calça comprida feminina Variação social - idade

Refletindo sobre essas variantes, a de número 1 está descrita ou reconhecida no qua-


dro como uma variação social e, como tal, é objeto de grande preconceito linguístico
na nossa sociedade. É uma variante, reconhecida como constituinte da fala dos estratos
sociais economicamente desprivilegiados, os quais, na maioria das vezes, não têm acesso
à plena escolarização, por isso tende a sofrer maior discriminação. Se analisarmos de um
outro ponto de vista, no entanto, podemos observar que se trata também de um traço
de determinadas comunidades de fala regionais. Além disso, é uma variação histórica.
De acordo com Bagno (2006), a transformação do L em R nos encontros consonan-
tais ocorreu amplamente na história da língua portuguesa. Muitas palavras que hoje
têm um R apresentavam um L na origem:

LATIM PORTG
blandu- brando
clavu- cravo
duplu- dobro
flaccu- fraco
fluxu- frouxo
obligare obrigar
placere- prazer
plicare pregar
plumbu- prumo

26
Assim, a suposta variação social é na verdade um prosseguimento de uma tendên- Variação linguística

cia muito antiga no português (e em outras línguas) que os falantes rurais ou não esco-
larizados levam adiante. Trata-se de um fenômeno reconhecido na linguística histórica
como rotacismo.
Esse exemplo (mudança de L para R em encontros consonantais) não deve levar
ninguém a supor que esses fenômenos variáveis e mutantes só ocorrem na língua dos
falantes rurais, sem escolarização, pobres, etc. Eles também ocorrem na língua dos
falantes “cultos”, urbanos, letrados, muito embora esses mesmos falantes acreditem
ser os legítimos representantes da língua “certa”.
O que estamos querendo registrar é que variedades regionais (diatópicas), de idade
(diageracionais), estilos (gíria, fala coloquial...) ou jargões (falas técnicas) não estão
necessariamente ligados à condição socioeconômica e à escolarização.
De acordo com Bortoni-Ricardo (2004, p. 49), todos os fatores apresentados repre-
sentam atributos de um falante: sua idade, sexo, seu status socioeconômico, nível de
escolarização, etc. Trata-se de atributos individuais do falante. Há outros que são fun-
cionais, que resultam da dinâmica das interações sociais. Segundo a autora, a variação
linguística depende, então, de fatores socioestruturais e de fatores sociofuncionais,
ou seja, aquilo que a gente é influencia juntamente com a situação de interação (com
quem, quando e sobre o que estamos conversando) a forma como se fala em uma con-
versa. Os fatores estruturais se inter-relacionam com os fatores funcionais na formação
dos repertórios sociolinguísticos dos falantes.
Falamos até agora de fatores sociais, externos à língua, que influenciam na formação
da variedade que falamos. Como vimos, são vários fatores que podem influenciar con-
juntamente nessa formação. Em termos linguísticos, a questão também é mais complexa
do que geralmente é apresentada. A variação não acontece somente na pronúncia dife-
renciada, na musicalidade ou prosódia da língua, e no uso de palavras diferentes para
definir o mesmo objeto. O exemplo clássico de variação é o uso de mandioca, que no
Sul é aipim e no Nordeste macaxera. Na realidade, precisamos trabalhar também outros
fatores linguístico-estruturais, tais como o ambiente fonológico em que o segmento que
está em variação ocorre, a classe da palavra, a estrutura sintática, etc. Em suma, os fatores
linguístico-estruturais podem ser fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos, prag-
máticos e até discursivos, como veremos na próxima seção deste Capítulo.

27
A variação
linguística e o texto
na sala de aula
Leia mais

Para entender melhor a importância do fator social e cultural para uma língua, seria
interessante conhecer um pouco mais sobre a formação do português brasileiro. A lín-
gua falada no Brasil não vem apenas dos portugueses. Ela também recebeu influência
de índios, africanos e migrantes europeus. Saiba tudo sobre a formação do português
brasileiro no texto “A hora e a vez do português”, de Ataliba Castilho (http://www.
poiesis.org.br/files/mlp/texto_7.pdf ).

Proposta de Atividade

A partir do que vimos nesta seção, vamos procurar pensar em uma abordagem apropriada
para desenvolver atividades em uma aula de Língua Portuguesa com os seguintes poemas:

Vício na fala
Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mio
Para pior pio
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados

O gramático
Os negros discutiam
Que o cavalo sipantou
Mas o que mais sabia
Disse que era
Sipantarrou.
(Oswald de Andrade)

Será que seria o caso de simplesmente apontar para a ausência da fluência discursiva como
resultado da oralidade, enfocar o caráter caótico da oralidade, explicar que a fragmentação
do texto se deve ao caráter impreciso da fala, propor uma atividade de retextualização. Todas
essas abordagens simplesmente reforçariam alguns mitos, como o de que a escrita é mais orga-
nizada que a fala, e principalmente que a questão social é a responsável pela variação na fala,
ou seja, pessoas de classes ou grupos não privilegiados não sabem falar bem.
Pensar em uma prática efetiva a partir desse gênero textual implicaria salientar que a des-
concatenação do texto se deve à naatureza do texto. Trata-se de poesias escritas por Oswald
de Andrade, um dos nomes fundamentais do Modernismo. Em sua poesia, segundo afirma
Haroldo de Campos: “Oswald recorreu a uma sensibilidade primitiva (como fizeram os cubis-
tas, inspirando-se nas geometrias elementares da arte negra) e a uma poética da concretude
(‘Somos concretistas’, lê-se no ‘Manifesto Antropófago’) para comensurar a literatura brasileira
às novas necessidades de comunicação engendradas pela civilização técnica.”

28
Variação linguística

Anotações

29
A variação
linguística e o texto
na sala de aula
Anotações

30
3 Propriedades do
português do Brasil

Neiva Maria Jung

Agora chegou o momento de entendermos melhor quais são as regras do portu-


guês brasileiro que estão em variação e qual é o valor atribuído socialmente para essas
regras. Conforme já anunciamos, neste fascículo, elas acontecem em todos os níveis de
funcionamento da linguagem, de forma sistemática e coerente. Vejamos alguns desses
contextos, sujeitos à grande incidência de variação. Antes, porém, vamos tentar lem-
brar de alguma variação que percebemos em nossa fala ou na fala de outra pessoa e
que tentamos descrever anteriormente.
Vejamos agora algumas variantes na fonologia e na morfossintaxe do português
brasileiro.

I FONOLOGIA
De acordo com Bortoni-Ricardo (2004), as principais regras fonológicas do por-
tuguês brasileiro ocorrem na posição pós-vocálica na sílaba. A sílaba, uma emissão
de voz marcada por um ápice de abrimento articulatório e tensão muscular, na
língua portuguesa, é sempre representada por uma vogal. Desse modo, a vogal é o
núcleo silábico. Antes dessa vogal podem ter consoantes, e é justamente a conso-
ante que segue o núcleo silábico, posição chamada pós-vocálica ou de travamento
na sílaba, que está sujeita à grande incidência de variação.
Antes de descrever esse contexto de variação, observemos quais são as confi-
gurações possíveis das sílabas em português (C significa consoante e V significa
vogal):
• CV: má, lá, li, vê, etc.
• V: a, é, a-vião, etc.
• CVC: por mar, ver, pos-te, etc.
• CCV: bra-ço, pla-ca, etc.
• CCVC: plas-ma, pres-tígio, etc.
• CCVCC: trans-porte, etc.
• CVCC: pers-pectiva.

31
A variação No contexto da formação silábica, há, por um lado, uma preferência pela sílaba
linguística e o texto
na sala de aula canônica consoante+vogal (CV ) porque esta se constitui de uma consoante e uma
vogal. Na articulação da vogal, a corrente de ar passa livremente pela cavidade bucal,
variando apenas o grau de abertura da cavidade. Desse modo, nesse padrão silábico
dificilmente ocorre variação.
Por outro lado, os segmentos átonos são pouco resistentes em relação à redução
e à mudança e a sílaba que se constitui do padrão silábico CVC. Nesse último caso, há
uma forte tendência à queda da segunda consoante, quando a sílaba CVC ocorre no
final de palavra. São seis as consoantes que podem ocorrer nessa posição: /r/, /s/, /n/,
/l/, /u/, /i/.
O /r/ que tem mais probabilidade de ser suprimido (apagado) na pronúncia é o dos
infinitivos verbais, como em “dizer, fazer” e das formas do futuro do subjuntivo, como
em “se eu estiver”. Os nomes monossilábicos tendem à conservação do /r/, em palavras
como “dor”, “cor”, “mar”, etc., e os polissilábicos tendem à supressão dessa consoante
final. Além disso, em sílabas átonas finais, como em “revólver”, o /r/ tende mais a ser
suprimido que em sílabas finais tônicas, como em “malmequer”.
O /s/, morfema de plural, como em “meninos”, tende mais a ser suprimido que o /s/
que ocorre ao final de palavras monomorfêmicas, como em “lápis, “pires”, “Paris”, etc.
Além disso, o /s/ que ocorre no morfema {-mos} (pronuniciado /mus/) da primeira
pessoa do plural dos verbos também apresenta alta incidência de supressão. Trata-se,
de fato, de um traço gradual, segundo Bortoni-Ricardo (2004), ou seja, um traço que
está em alguma medida na fala de todo povo brasileiro. Ex. “nós fazemos > nós faze-
mu; nós viemos > nós viemu”.
No caso da nasalização, o travamento nasal, representado na escrita pelo til ou pe-
las consoantes nasais, também tende a ser suprimido. Trata-se nesse caso da desnasali-
zação, que acontece em sílabas finais átonas, como “virgem > virge, homem > homi”.
Nas formas verbais de terceira pessoa do plural, a desnasalização resulta em formas
como (eles) fizeru, (eles) andaru, etc. Em sílabas tônicas, com travamento nasal, não
há desnasalização, em palavras como caminhão, armazém, estarão, reunião, irmã.
O /l/, na posição pós-vocálica final, pode ser realizado como uma consoante lateral
/l/, como encontramos no Sul do Brasil, ou como vogal /u/, uma variante bastante ge-
neralizada no português brasileiro atual.
As semivogais /i/ e /u/, que ocupam o lugar da segunda consoante nas sílabas CVC,
travando-a, também estão sujeitas à supressão, resultando no processo de monotonga-
ção. Nesse caso, o fator que favorece a variação é a assimilação, ou seja, a influência ar-
ticulatória do segmento seguinte, como em “falou>falô, sou>sô, besouro>besoro,
louco>loco, etc”. Essa regra variável está tão avançada, segundo Bortoni-Ricardo, que

32
até em sílabas tônicas finais, mais resistentes à mudança, como em “falou>falô”, re- Propriedades do
português do Brasil
duzimos este ditongo.
Ainda em relação à questão da predominância do ritmo silábico no português do
Brasil, devemos considerar a tendência à redução das proparoxítonas, regra variável
mais frequente nas variedades rurais e rurbanas (BORTONI-RICARDO, 2004). Essa re-
dução pode seguir diferentes padrões, dos quais o mais comum é a supressão da vogal
átona da penúltima sílaba, como em: “chácara”> “chacra”. Se a supressão da referida
vogal resultar em estrutura silábica estranha aos padrões fonológicos da língua, como
em: “número” > “numro” ou “lâmpada” > “lampda”, as palavras podem sofrer mais
um processo de redução: “numro” > “nữro” ou “lampda” > “lampa”.
A redução pode ocorrer também com a supressão de uma vogal pretônica e da con-
soante seguinte, como em: “específico” > “especifo”; “depósito” > “deposo”. Há ainda
a possibilidade da supressão de toda a sílaba átona final, como em: “quilômetro” >
“quilomi” ou “legítimo” > “legiti”. Um processo mais raro, mas que também pode ocor-
rer, é a simples alteração da sílaba tônica sem mudanças segmentais: “incômodo” >
“incomodo” (BORTONI-RICARDO, 2004).
Essas são algumas variantes fonológicas, apresentadas por Bortoni-Ricardo, que
constituem o português brasileiro. Vejamos agora na morfossintaxe.

II MORFOSSINTAXE
São muitos os lugares da estrutura morfossintática que estão em variação no Brasil
e que nos diferenciam dos dialetos portugueses. A morfologia verbal, especialmente a
flexão de número e pessoa, e a morfologia pronominal - aqui se destacando os prono-
mes pessoais - são palco de grandes processos de variação e mudança.
A variação na concordância de número (nominal e/ou verbal) é uma das mais pro-
dutivas. Muitos pesquisadores da área da Sociolinguística Variacionista, como Scherre
e Naro (2000), têm estudado exaustivamente a regra da concordância de número (ver-
bal e nominal) e mostrado que esta, conforme previsto nas gramáticas normativas, só
se aplica atualmente em estilos muito monitorados na fala e na língua escrita formal.
No caso da concordância nominal, segundo Scherre (1994), em estilos não mo-
nitorados há uma tendência de se usar uma regra de concordância não redundante,
ou seja, em vez de se flexionar todos os elementos do sintagma, apenas o primeiro é
flexionado (Ex. “Os meninu falô”). Isso reflete uma prática no português brasileiro de
não se fazer concordância entre os determinantes e o núcleo do sintagma representa-
do por um nome ou pronome, no plural.
De acordo com Bortoni-Ricardo (2004, p. 89), há duas coisas que o professor não
pode esquecer ao lidar com o fenômeno da concordância nominal:

33
A variação 1) no português brasileiro, tendemos a flexionar o primeiro elemento do sin-
linguística e o texto tagma nominal plural e a não marcar os demais. Esta é uma tendência que se ex-
na sala de aula
plica porque geralmente dispensamos elementos redundantes na comunicação
e as diversas marcas de plural no sintagma nominal plural são redundantes. Ao
escrever sintagmas nominais plurais, o aluno vai tender a flexionar somente o
primeiro elemento, que pode ser um artigo, um pronome possessivo, demons-
trativo etc. Exemplos:

“os amigo”; “meus brinquedo”; “aqueles homi”; “os meus tio”.

2) Quanto mais diferente for a forma plural de um nome ou pronome da sua


forma singular, mais tendemos a usar a marca de plural naquele nome ou pro-
nome. Exemplos:

“rapaz - rapazes”; “vez - vezes”; “hotel - hotéis”.

Quando a forma de plural é apenas um acréscimo de um /s/, tendemos a não


empregá-la. Exemplos:

“aluno - alunos”; “casa - casas”; “minha - minhas”.

Também a regra de concordância verbal tem sido muito estudada pelos pesquisa-
dores da área de Sociolinguística Variacionista. Scherre (1994) constatou que quando
a forma de terceira pessoa do plural for muito distinta da forma de terceira pessoa do
singular, há mais probabilidade de os falantes fazerem a flexão. É o chamado princípio
da saliência fônica. Desse modo, em formas como “estava>estavam, fala>falam”, há
menos probabilidade de ocorrer flexão nas formas de terceira pessoa do plural do que
nas formas “dá>dão, comeu>comeram, foi>foram”. Isso acontece porque há uma
diferença maior entre a forma singular e plural dessas três últimas classes de verbos.
Esses exemplos mostram que os professores devem dar mais ênfase aos plurais regu-
lares do que aos irregulares, pois as pesquisas mostram que são os regulares que têm
maior probabilidade de não serem flexionados.
Outra constatação foi a de que existe maior probabilidade de ocorrer a flexão na
forma verbal quando o sujeito está anteposto ao verbo. Quando o sujeito vem depois
do verbo, está posposto, tendemos a não flexionar o verbo. Ex: “Os jornais chegaram/
já chegou os jornais”.
Em termos de ensino, o professor deve tratar prioritariamente as variáveis que mais
atuam para a ocorrência do “erro” na escrita, ou seja, os sintagmas verbais e nominais
cujo plural é regular e menos saliente fonicamente, como “ele fala - eles falam” ou
“casa - casas”. Estes sintagmas constituem o subgrupo mais problemático para o falan-
te, que costuma marcar geralmente o plural nas formas mais marcadas fonicamente
apenas no primeiro elemento no sintagma nominal (MOLLICA, 2000, p. 60).
Para refletirmos sobre o valor atribuído socialmente para as regras variáveis, vamos

34
ler o texto a seguir de Ricardo Freire: Propriedades do
português do Brasil

Cadê os plural?
É só impressão minha, ou está cada vez mais difícil ouvir plurais ortodoxos? Aque-
les de antigamente, arrematados com um ‘’s’’ - plurais tradicionais, quatrocentões?
Os plurais agora estão cada vez mais enrustidos, dissimulados, problemáti-
cos. Cada vez menos plurais são assumidos. Os plurais agora precisam ser
subentendidos.
Verdade seja dita: não somos os únicos no mundo a ter problemas com a maldita
letra ‘’s’’ no final das palavras. Os franceses, debaixo de toda aquela empáfia, há
séculos desistiram de pronunciar o ‘’s’’ dos plurais. No francês oral, o plural é
indicado pelo artigo, e pronto. Ou seja: eles falam ‘’as mina’’ e ‘’os mano’’ desde
que foram promovidos de gauleses a guardiães da cultura e da civilização.
Os italianos também não podem com a letra ‘’s’’ no fim das palavras. Fazem seus
plurais em ‘’i’’ e em ‘’e’’, dependendo do sexo, ops, do gênero das palavras. Quan-
do a palavra é estrangeira, entretanto, eles simplesmente desistem de falar no plu-
ral: decretaram que termos forasteiros são invariáveis, e tudo bem. Una foto, due
foto; una caipirinha, quattro caipirinha. Quattro caipirinha? Hic! Zuzo bem!
Os alemães, metódicos que só, reservam o ‘’s’’ justamente a esses vocábulos es-
trangeiros que os italianos permitem que andem por aí sem plural. Com as pala-
vras do seu próprio idioma, no entanto, os alemães são implacáveis. As palavras
mais sortudas ganham apenas um ‘’e’’ no final, mas as outras são flexionadas com
requintes de tortura - com ‘’n’’ (!) ou com ‘’r’’ (!!), às vezes em conjunto com
um trema (!!!) numa vogal da penúltima sílaba (!!!!), só para infernizar a vida dos
alunos do Instituto Goethe ao redor do planeta.
Práticos são os indonésios, que formam o plural simplesmente duplicando o sin-
gular: gado-gado, padang-padang, ylang-ylang. Pelo menos foi isso que eu li uma
vez. (Claro que não chequei a informação. Eu detestaria descobrir que isso não é
verdade.) Já pensou se a moda pega aqui, feito aquele pavoroso cigarro de cravo?
Os mano-mano. As mina-mina. Um chopps e dois pastel-pastel.
Nem mesmo nossos primos de fala espanhola escapam da síndrome dos come-
dores de plural. Os andaluzes e praticamente todos os latino-americanos também
não são muito chegados a um ‘’s’’ final. Em vez do ‘’s’’ ríspido e perigosamente
carregado de saliva dos madrilenhos (que chiam quase tanto quanto os portugue-
ses), eles transformaram o plural num acontecimento sutil, perceptível apenas
por ouvidos treinados. Em Sevilha, Buenos Aires ou em Santo Domingo, o ‘’s’’
vira um ‘’h’’ aspirado - lah cosah, lah personah, loh pluraleh.
Entre nós, contudo, a mutilação do plural não tem nada a ver com sotaques ou
incapacidade de pronunciar fonemas. Aqui em São Paulo, a falta de ‘’s’’ é um
fenômeno sociocultural. Os pobres não falam no plural por falta de cultura. Da
classe média para cima, deixamos o plural de lado quando há excesso de intimi-
dade. É como se o plural fosse algo opcional, como escolher entre ‘’você’’ e ‘’o
senhor’’. Se a situação exige, você vai lá e aperta a tecla PLURAL. Se a conversa
for entre amigos, basta desligar, e os esses desaparecem em algum ponto entre o
cérebro e a boca.
O que se deve fazer? Uma grande campanha educativa, com celebridades decla-
rando que é chique falar os plurais? Lançar pagodes e canções sertanejas falando
da dor-de-cotovelo causada por não usar ‘’s’’ no final das palavras? Ou contratar
um grupo de artistas alternativos para sair pichando nos muros por aí uma men-
sagem subversiva? Tipo assim: OS MANOS E AS MINAS (FREIRE, 2009).

Ricardo Freire reconhece que o plural é um fenômeno mundial, e procura compre-


endê-lo em termos sociais e interacionais. Conforme vimos nesta seção, no entanto,

35
A variação trata-se também de um fenômeno linguístico e, reconhecendo que a própria língua
linguística e o texto
na sala de aula prevê esse apagamento, devido a uma questão de redundância no caso da concordân-
cia nominal e verbal, fica muito evidente que a valoração que se costuma fazer desse
fenômeno é social.
Por outro lado, é preciso destacar que uma mudança na língua não envolve apenas
motivações estruturais, mas igualmente motivações sociais, uma “mudança no com-
portamento social”. Ela se inicia em um determinado grupo social, no qual é associada
a um determinado valor social e, gradativamente, se expande para outros grupos so-
ciais, até se completar. Nesse estágio, os estudos têm apontado que os grupos imple-
mentadores de mudanças têm geralmente baixo prestígio social e sua fala costuma ser
valorada de forma negativa pelos grupos mais privilegiados econômica, social e cultu-
ralmente. Com a quebra gradativa dessa valoração negativa do grupo social, as formas
inovadores vão adquirindo condições de se expandir para outras variedades da língua.
Nesse processo de expansão, as formas inovadoras, já em consolidação em sua área
de origem, podem ser adotadas como parte de um processo mais amplo de busca de
identificação com esses centros de maior prestígio (CHAMBERS; TRUDGIL, 1980). Ou-
tras vezes, uma comunidade (principalmente quando pequena e com rede de relações
internas bastante firmes) pode desencadear um processo de mudança para marcar sua
diferença em relação a grupos falantes de outras áreas, conforme foi observado por
Labov (1972) na ilha de Martha’s Vineyard, onde os jovens, por exemplo, com plano
de deixar a ilha centralizavam menos os ditongos /ay/ e /aw/ que aqueles que planeja-
vam permanecer.

Anotações

36
4 A questão da norma e
o ensino de línguas

Neiva Maria Jung

Na nossa sociedade, ouvimos expressões como língua padrão, língua culta, língua
pedagógica, ou então norma padrão, norma culta, norma pedagógica, sem muitas ve-
zes termos muito clareza quanto ao que distingue um conceito de outro.
Iniciamos com uma apresentação do conceito de norma, da Dona Norma, confor-
me Faraco (2008).
O conceito de norma foi apresentado inicialmente na Linguística por Eugênio Co-
seriu para definir algo que ele reconhecia estar entre os conceitos de língua e fala,
apresentados por Saussure. A norma não seria nem individual, nem social (conforme
denominações de Saussure), mas um certo arranjo de possibilidades admitidas pelo
sistema e que se desenharia a partir do uso corrente de determinado grupo de falantes
socialmente definidos. Norma, nesse caso, é o conjunto de fenômenos linguísticos
(fonológicos, morfológicos, sintáticos e lexicais) que são costumeiros, habituais, recor-
rentes (“normais”) numa certa comunidade de fala. Trata-se de um termo que surgiu
em um arcabouço teórico estruturalista, mas que é possível de ser transportado para
outros quadros teóricos. A partir dele, não se reconhece e descreve apenas um conjun-
to de fenômenos fixos, mas fenômenos em variação.
Castilho (1988) apresenta um conceito amplo e um conceito estrito de norma. De
acordo com o conceito amplo, a norma corresponde à necessidade que um grupo
social experimenta de defender seu veículo de comunicação das alterações que pos-
sa vir a sofrer, pois dessa forma estaria assegurando intuitivamente a própria coesão
(isto é, sua identidade), ameaçada pela fuga ao padrão aceito. Em um sentido estrito,
a norma corresponde aos usos e atitudes de determinado segmento da sociedade,
precisamente aquele que desfruta de prestígio dentro da nação, em virtude de razões
políticas, econômicas e culturais. Trata-se aqui da norma ou língua culta, também defi-
nida algumas vezes de norma objetiva, norma explícita, padrão real, a qual correspon-
de ao dialeto social praticado pela classe de prestígio. Muitas vezes, essa língua culta é
confundida com a língua padrão que é transmitida na escola (definida, então, também

37
A variação como língua pedagógica) e que vem descrita em dicionários e gramáticas. A questão
linguística e o texto
na sala de aula principal é: será que o grupo socioeconomicamente ou culturalmente privilegiado fala
a norma padrão, aquela que está dicionarizada? Parece-nos que não, conforme mostra
o exemplo a seguir:

Sistema pronominal
Norma Padrão Norma Culta
Eu Eu (a gente?) Zero
Tu Tu/Você/Zero
Ele (Ela) Ele/Ela
Nós Nós/A gente (enti para forma de sujeito)
Vós Vocês
Eles (Elas) Eles/Elas

Conforme o quadro, há uma diferença significativa entre o sistema pronominal da


língua culta e da língua padrão que se procura ensinar na escola. A língua culta, então,
poderia ser definida como mais um dialeto ou uma variedade do português, conforme
preferem alguns linguistas. Ela, assim como as variedades rurais, as variedades regio-
nais, as variedades faladas por grupos socioeconomicamente desprivilegiados ou gru-
pos sem escolarização, tem normas específicas quanto ao uso da língua portuguesa, as
quais são fatores de identificação com o grupo. Quanto à interessante confusão entre
língua culta e língua padrão parece tratar-se de mais uma forma sutil de dominação
da classe socioeconomicamente favorecida, ou seja, de uma postura de “nós sabemos,
nós falamos uma língua verdadeira, gramatical, e o povo fala uma corrupção da língua,
portanto, precisa aprender as nossas regras na sala de aula”.
De acordo com Faraco (2008), o conceito de norma é usado no senso comum em,
pelo menos, três acepções diferenciadas: 1ª) em substituição ao termo gramática; 2ª)
para designar o conjunto de preceitos da velha tradição excessivamente conservadora
e pseudopurista; e 3ª) como equivalente de “expressão escrita”. Segundo o autor, é um
termo científico que foi deslocado para renomear fatos linguísticos, de alguma forma,
desgastados.
“Norma culta se tornou moeda corrente para, em primeiro lugar, resolver a mal-
dição que caiu sobre a palavra gramática” (FARACO, 2008, p. 24). Ou seja, a palavra
caiu como uma luva para “os defensores do vale-tudo apregoado pelos linguistas”,
que passaram a defender não o ensino da gramática, uma realidade desgastada, mas
o ensino da língua culta, “[...] a novidade da expressão deu um ar de renovação, de
modernização ao ensino de português.” Em segundo lugar, o termo norma culta passa
a ser o referencial do certo e errado, tornou-se, segundo Faraco, um ente etéreo, a
partir do qual se assevera categoricamente o que se imagina ser o certo e o errado, sem

38
se perguntar o que é precisamente a norma culta no Brasil. E, por último, dominar a A questão da norma e o
ensino de línguas
norma culta significaria dominar a escrita, uma concepção reducionista por conceber
que todos os gêneros escritos devem ser escritos na norma culta. Trata-se de usos que
facilitaram a vida e o discurso de algumas pessoas, mas que em nada contribuíram ou
contribuem para fazermos avançar nossa cultura linguística. Ao contrário, tais usos
equivocados parecem asseverar, ou inflacionar ainda mais um discurso purista (FARA-
CO, 2008).
No Brasil, temos então várias normas. Embora a realidade linguística brasileira con-
tinue sendo definida geralmente em termos dicotômicos, como língua culta versus
português popular, português formal versus português informal, a cara linguística do
Brasil é heterogênea. Os processos de colonização do nosso vasto território nacional
não permitem pensar em homogeneidade linguística. Em cada região, tivemos um
ou mais grupos contribuindo mais intensamente com a colonização, definindo desse
modo a cara linguística e cultural da região. Além disso, tivemos movimentos migra-
tórios internos, que também contribuíram com a formação de normas do português
brasileiro, além de fatores sociais, econômicos, históricos, dentre outros.
Para o estudo da diversidade que constitui o português brasileiro, o modelo que,
segundo Faraco (2008), parece hoje fornecer o melhor instrumento seria o proposto
por Stella Maris Bortoni-Ricardo (2004), que busca distribuir as variedades em três
continua que se entrecruzam: o continuum rural-urbano, o de oralidade-letramento
e o da monitoração estilística. Esse modelo parte ou considera as características da
urbanização do país nos últimos cinquenta anos (80% da população, hoje, está nas
cidades) e os níveis de letramento da população brasileira (10% da população adulta
tem escolaridade superior).
Em um dos seus polos situa-se a língua culta efetivamente usada nas áreas urba-
nas pelas pessoas cultas, da qual o corpus do projeto Nurc1 é representativo, e, na
extremidade oposta, as variedades usadas nas comunidades mais isoladas geográfica e
socialmente, pelos falantes analfabetos ou semianalfabetizados.
Esse construto teórico permite compreender melhor a forma como os usuários da
língua se comportam e se movem com os usos linguísticos distintos. O continuum,
uma linha imaginária, distribui os fenômenos linguísticos de variação em graduais, isto
é, as variantes que estão presentes no repertório de todos os grupos sociais, variando

1 O Projeto Norma Linguística Urbana Culta (NURC), iniciado na década de 70, foi proposto
para descrever a norma culta falada, a variedade de uso corrente entre falantes urbanos com
escolaridade superior completa, em situações monitoradas. A norma culta seria, pelos critérios
do NURC, a variedade que está na intersecção dos 3 continua, mais próximos do urbano, do
letramento e dos estilos mais monitorados.

39
A variação apenas a sua frequência e a maneira como se associam aos diversos estilos ou registros,
linguística e o texto
na sala de aula e em traços descontínuos. Um dos exemplos de traços graduais é a perda do -r final
nos infinitivos verbais (comê, nadá, corrê, andá).
Os traços descontínuos marcam o repertório de grupos isolados, de raízes rurais, e
são muito estigmatizados. Exemplos desses traços são: a vocalização do fonema lateral
palatal (muié, trabaio), metáteses, como em eles drome e variantes de formas verbais
como nóis vinhemu.
No contínuo da urbanização, em uma das extremidades estariam situados falares
rurais mais isolados e, na outra extremidade, falares urbanos “[...] que, ao longo do
processo sócio-histórico, foram sofrendo influência de codificação linguística [...] de
dicionários e gramáticas.” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 51). De um lado do contí-
nuo, os falares rurais, de algum modo, mais isolados, em razão de dificuldades geo-
gráficas, como montanhas, rios, distâncias de centros urbanos, e, de outro, variedades
urbanas padronizadas, as quais sofreram influência das comunidades urbanas, ou seja,
sistematicamente expostas à ação marcante da imprensa e às influências da escola.
A autora representa assim este contínuo (p. 52):

Variedades Área Variedades urbanas


rurais isoladas Urbana padronizadas

No centro do contínuo, há uma área chamada rurbana. Os grupos rurbanos seriam


formados pelos migrantes de origem rural que preservam muito de seus antecedentes
culturais, principalmente no seu repertório linguístico, e as comunidades interioranas
residentes em distritos ou núcleos semirrurais, submetidas à influência urbana, seja pela
mídia, seja pela absorção de tecnologia agropecuária (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 52).
A relevância dessa proposta está, segundo Cerutti-Rizzatti (2009), no espectro que
a noção de contínuo cria, sugerindo uma mobilidade maior ou menor em direção a
ambos os extremos e não dicotomizando duas realidades opostas, como acontecia
com as definições língua culta e variedades populares. Esse construto teórico, ao con-
trário, estabelece uma interface entre as duas realidades, no caso entre as variedades
rurais e as variedades urbanas.
No contínuo oralidade-letramento, o critério para categorizar os falares ao longo
da linha imaginária é o maior ou menor domínio da língua escrita. Bortoni-Ricardo
(2004, p. 62) representa assim esse contínuo:

40
A questão da norma e o
ensino de línguas

Eventos de Eventos de
Oralidade letramento

Nesse continuo, em um dos extremos estariam usos da língua marcados pela orali-
dade, a exemplo de uma conversa no muro entre vizinhos; já, no outro extremo, usos
da língua marcados pela presença expressiva da escrita, a exemplo de uma conferência
em um encontro científico formal. No meio-termo, estariam usos em que oralidade e
escrita se mesclam, a exemplo de rituais religiosos.
O último dos três contínuos de que trata Bortoni-Ricardo (2004) é o contínuo da
monitoração estilística, que envolveria desde os usos da língua totalmente espontâ-
neos até aqueles previamente planejados e que exigem muita atenção do falante. A
autora (p. 62) representa assim este contínuo:

- monitoração + monitoração

Segundo a autora, o ambiente, o interlocutor e o tópico da conversa determinam,


em boa medida, o nível de monitoração de que nos devemos valer.
A relevância desse construto teórico-metodológico reside no fato deste reconhecer
que não há fronteiras bem marcadas nesses contínuos, ao contrário, as fronteiras são
fluidas, podendo haver sobreposições. Há uma movimentação nos usos, mais para
um dos polos ou mais para outro, e os usuários da língua transitam no interior dessas
linhas imaginárias, ao longo do tempo, considerando o espaço social que ocupam,
assim como determinações ambientais, de interlocução, de intencionalidade, etc.
Apesar desse avanço científico em termos de reconhecer e descrever os usos do
português brasileiro, muitos continuam se orientando pelos conceitos anteriormente
apresentados de norma. De acordo com Faraco, trata-se de uma “norma curta”, uma
concepção que apequena a língua, que encurta sua riqueza, que não percebe (por
conveniência ou ignorância?) que o uso culto tem abundância de formas alternativas
e não se reduz a preceitos estreitos e rígidos. “Ela é uma enorme fraude histórica,
mas utilíssima para preservar a cara de quem nada tem a dizer.” (p. 68). Por outro
lado, há a norma padrão, que não é bem uma variedade da língua, mas um construto
sócio-histórico que serve de referência para estimular um processo de uniformização
(BAGNO, 2007; FARACO, 2008).
Em termos de ensino, parecem ser esses os dois conceitos - norma culta e norma

41
A variação padrão - que se procura impor para os alunos. Esse ensino para a grande parcela da
linguística e o texto
na sala de aula população que tem como língua materna - do lar e da vizinhança - variedades popula-
res da língua tem pelo menos duas consequências desastrosas: não são respeitados os
antecedentes culturais e linguísticos do educando, o que contribui para desenvolver
nele um sentimento de insegurança, nem lhe é ensinada de forma eficiente a língua
padrão (BORTONI-RICARDO, 2007).
Para alterar substancialmente o quadro educacional brasileiro, precisaríamos, se-
gundo Faraco, alcançar pelo menos três metas:

1ª) universalizar a educação básica, isto é, garantir de 11 a 12 anos de escola a


todas as nossas crianças e adolescentes;
2ª) oferecer a todos uma educação de qualidade, o que significa, na área da
linguagem, garantir, entre outras coisas, que os alunos saiam da escola básica
com um bom domínio das práticas sociais de leitura e escrita;
3ª) redesenhar nossa maneira de encarar nossa realidade linguística, em es-
pecial, nosso modo de entender a norma culta/comum/standard falada e
escrita (FARACO, 2008, p. 71).

Em sala de aula, professores deveriam olhar a língua como uma realidade hetero-
gênea, buscando compreender as bases dessa heterogeneidade, porque é justamente
a variedade da língua no espaço geográfico, na estrutura social e no tempo, uma das
realidades que mais reações preconceituosas suscitam em nossa sociedade.

42
5 Fala e escrita

Neiva Maria Jung

Na escola, além de a questão da variação ficar negligenciada ou restrita a alguns


discursos, ela é reconhecida algumas vezes na relação fala e escrita, especialmente no
período da alfabetização. Compreender essa relação pode ser benéfico especialmente
para desconstruir a cultura do “erro”, muito presente na escola. Nesta seção, vamos
apresentar de forma breve como acontece a relação fala/escrita na escola ou fora dela.
A linguística moderna, especialmente com os estudos da Sociolinguística Variacio-
nista, propõe que se inverta a ênfase dada à escrita, através da história, em favor do
aspecto oral da linguagem. A língua escrita é secundária em relação à fala em pelos
menos três aspectos: origem, evolução e intensidade de uso. A fala surgiu e evoluiu
antes da escrita e é o uso primordial da linguagem, a socialização inicial do ser hu-
mano acontece por esse uso. Desse modo, a escola precisa trabalhar também a fala,
reconhecer o que a constitui e como acontece a relação fala/escrita.
De acordo com Marcuschi (2001), os resultados das investigações realizadas nos
últimos anos parecem mostrar que a relação fala/escrita é complexa e variada. Para o
autor, a dicotomia em questão expressa duas atividades interativas e complementares
no contexto das práticas socioculturais. Ao contrário do que se pensava em outros
tempos (quando a escrita era tida pela maioria dos estudiosos como estruturalmente
elaborada, complexa, formal e abstrata, contrapondo-se à fala, que era considerada
concreta, contextual e estruturalmente simples), as semelhanças entre as duas formas
de expressão linguística são maiores que as diferenças.
Em termos de ensino de língua materna, a importância da fala e as relações desta
com a escrita só começaram a ser compreendidas a partir do desenvolvimento de pes-
quisas, após a década de 70. Os resultados dessas investigações levaram à compreensão
de que, para explicar o funcionamento da escrita nos primeiros anos escolares, é neces-
sário antes ter compreendido como funciona a língua oral.
Ao entrar em contato com o sistema ortográfico da língua, na escola, o sujeito
aprendiz da leitura e da escrita depara-se com interferências do sistema fonológico.

43
A variação Daí a necessidade de estudar as características dos sons vocálicos e consonantais, bem
linguística e o texto
na sala de aula como o modo como eles se organizam em unidades maiores, como as sílabas.
A estrutura silábica mais comum no português e menos problemática para a aquisi-
ção da escrita é a formada por consoante+vogal (CV ), conforme descrito na seção 2.3
deste fascículo. Se a estrutura silábica for consoante+vogal+consoante (CVC), como
em POR (porta), a consoante pós-vocálica, no caso o -r, torna-se mais problemática,
uma vez que, além de ser menos frequente na língua, está mais sujeita a variações na
fala e, consequentemente, na escrita.
Assim, há, segundo Tasca (2002), expectativas de que aprendizes da língua escrita
encontrem algum tipo de dificuldade na representação gráfica de sílabas como as su-
blinhadas nas palavras: revolta (grafando “revouta” ou “revota”, etc.); comer (grafando
“come” ou “comerr”, etc.); peixe (grafando “pexe”, etc.); contou (grafando “conto”,
etc.); entre outras.
Em termos morfossintáticos, há grandes chances, como já descrito neste livro, de
o aluno flexionar em sintagmas nominais somente o primeiro elemento, que pode
ser um artigo, um pronome possessivo, demonstrativo, etc., ou seja, são exemplos
que mostram a interferência da fala na escrita. Os “erros” de escrita dos nossos alunos
podem evidenciar traços de sua fala, ou melhor, da variedade dialetal que falam. Nesse
sentido, Mollica recomenda uma metodologia pedagógica que dê conta de todos os
fenômenos variáveis (ou aparentemente variáveis) indo do discurso para a sentença,
do mais frequente para o menos frequente e do mais provável para o menos provável.
Além disso, se pensarmos a língua como ação social, teremos que analisar a ma-
terialidade dos textos em temos de gêneros textuais, ou seja, em termos de “padrões
comunicativos socialmente utilizados, que funcionam como uma espécie de modelo
comunicativo global que representa um conhecimento social localizado em situações
concretas. Sociedades tipicamente orais desenvolvem certos gêneros que se perdem
em outras tipicamente escritas e penetradas pelo alto desenvolvimento tecnológico.”
(MARCUSCHI, 2008, p. 190). Dentro dessa perspectiva, temos gêneros estritamente
orais, gêneros escritos e gêneros híbridos, constituídos pela oralidade e pela escrita.
Os gêneros orais não se restringem, todavia, a sociedades tipicamente orais. Todos
nós reconhecemos e algumas vezes já participamos de debates, aula expositiva, ser-
mões, consulta, fofocas, piadas, etc. São alguns poucos exemplos de gêneros orais, nos
quais a variação pode ser constituinte do gênero. Vejamos o exemplo de uma piada:

Cortando o mal pela raiz


O caipira ao ver um trem pela primeira vez se assustou e logo decidiu:
- Vô laçá esse bicho ou num mi chamo Zé das Farinha! Na próxima vez em que
o trem passou o Zé pegou a corda e laçou a locomotiva, que evidentemente o
arrastou por mais de cem metros. O caipira ficou todo arrebentado.

44
Passando um tempo, o caipira foi até a cidade. Passando por uma loja de brin- Fala e escrita
quedos e ao ver um ferrorama que estava em exposição, pegou um porrete e
começou a bater no brinquedo. Assustado, o dono da loja chega e pergunta:
- O senhor está ficando doido? E ele responde:
- A gente tem qui matá esses bicho inquanto tá pequeno, porque dispois que ele
cresce ninguém segura! (CORTANDO, 2000).

Trata-se de uma piada, de caipira, conforme a classificação no site, e que mostra um


caipira bastante estereotipado. A ação e a fala do caipira nos remetem a um caipira do
século passado. Nesse caso, é preciso levar o nosso aluno não somente a reconhecer
os traços que compõem a fala do caipira, mas instigá-lo a refletir se esse caipira ainda
existe, se sim, onde, ou seja, a perceber o valor social da variação nesse gênero textual.

Referências

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Professores do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, fev. 2008. Disponível em: <http://
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BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. rev. e ampl. 14.
reimpr. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.

45
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linguística e o texto
na sala de aula difícil transição. In: CAVALCANTI, M. C.; BORTONI-RICARDO, S. M. (Org.).
Transculturalidade, linguagem e educação. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007.
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crioulização ou mudança natural. PAPIA, Brasília, DF, n. 11, p. 41-50, 2000.

SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1986.
(Série fundamentos).

47
A variação TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. 3. ed. São Paulo: Ática, 1990. (Série
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na sala de aula princípios).

TASCA, Maria. Interferência da língua falada na escrita das séries iniciais: o papel
de fatores linguísticos e sociais. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.

VERÍSSIMO, Luís Fernando. Comédias para se ler na escola. Rio de Janeiro:


Objetiva, 2001.

Anotações

48
U nidade 2

TEXTO

Nesta Unidade, vamos apresentar uma introdução aos estudos do texto.


Os objetivos visados são:
- Reconhecer o que é texto;
- Conhecer os padrões de textualidade;
- Refletir sobre as condições de produção, fundamentais para a produção textual;
- Identificar a subjetividade presente na linguagem e os operadores argumentati-
vos que evidenciam a presença de sujeitos marcados no texto.

Para atingir os objetivos propostos, dividimos a unidade em quatro capítulos: no


primeiro capítulo, contextualizamos a Linguística Textual e o conceito de texto; no
segundo, apresentaremos uma visão geral dos padrões de textualidade; no terceiro, as
condições de produção e, no quarto, a subjetividade presente na linguagem e revelada
pelos operadores argumentativos.

49
1 Definições

Neiva Maria Jung

“Pode-se definir texto ou discurso como ocorrência linguística falada ou escrita, de


qualquer extensão, dotada de unidade sociocomunicativa, semântica e formal” (COS-
TA VAL, 1991). Trata-se de um posicionamento da Linguística Textual que surge na
década de 60, na Alemanha, e que trabalha o texto como unidade de sentido.
Inicialmente, essa área de estudos reconheceu a necessidade de um estudo além da
frase, além das análises realizadas pelas gramáticas normativas, propondo uma Análise
transfrástica. Segundo Fávero e Koch (1988), o enfoque é o estudo das relações que
podem ocorrer entre as diversas frases que compõem uma sequência significativa no
texto.
Em seguida, são propostas as Gramáticas textuais. É o momento que tem como
finalidade refletir sobre os fenômenos linguísticos inexplicáveis por meio de uma gra-
mática da frase. A elaboração de gramáticas textuais objetiva: a) verificar o que faz
com que um texto seja um texto, isto é, determinar seus princípios de constituição; b)
levantar critérios para a delimitação de textos; c) diferenciar os tipos de texto (FAVERO;
KOCH, 1988).
Por fim, apresenta as Teorias de texto - momento em que a investigação se es-
tende do texto ao contexto, compreendido como as condições externas de produção
e recepção (interpretação) dos textos. “O texto deixa de ser entendido como uma
estrutura acabada (produto), passando a ser abordado no seu próprio processo de
planejamento, verbalização e construção” (KOCH, 1998, p. 21). O sentido de um texto
é resultado parcial de nossa atividade comunicativa, que compreende processos, ope-
rações e estratégias que têm lugar na mente humana, e que são postos em ação em
situações concretas de interação social.
Analisando o percurso da disciplina, observamos que, de uma abordagem ao
texto centrada mais na imanência, no produto e na construção de uma teoria geral
do texto, a Linguística Textual, hoje, busca analisar o texto nas suas condições de
produção.

51
A variação Segundo Koch, o conceito de texto depende das concepções que se tem de língua
linguística e o texto
na sala de aula e de sujeito. Na concepção de língua como representação do pensamento e de sujeito
como senhor absoluto de suas ações e de seu dizer, o texto é visto como um produto -
lógico - do pensamento (representação mental) do autor, nada mais cabendo ao leitor/
ouvinte senão “captar” essa representação mental, juntamente com as intenções (psi-
cológicas) do produtor, exercendo, pois, um papel essencialmente passivo (KOCH,
2002, p. 16).
Na concepção de língua como código - ou seja, como apenas um instrumento para
a comunicação - e do sujeito como predeterminado pelo sistema, o texto é visto como
simples produto da codificação de um emissor a ser decodificado pelo leitor/ouvinte,
bastando a este, para tanto, o conhecimento do código, já que o texto, uma vez codi-
ficado, é totalmente explícito. Também nesta concepção o papel do “decodificador” é
essencialmente passivo (KOCH, 2002, p. 16).
Na concepção de língua como interação (dialógica), na qual os sujeitos são vistos
como agentes sociais, “o texto passa a ser considerado o próprio lugar da interação
e os interlocutores, como sujeitos ativos que - dialogicamente - nele se constroem e
são construídos” (KOCH, 2002, p. 17). Como afirma Geraldi (1993, p. 102), “o outro
é a medida: é para o outro que se produz o texto. E o outro não se inscreve no texto
apenas no seu processo de produção de sentidos na leitura. O outro insere-se já na
produção, como condição necessária para que o texto exista”. Em outras palavras: ao
elaborar o texto, nós o fazemos pensando no interlocutor (quem ele é, o que sabe,
etc.) e nos efeitos de sentido que queremos produzir sobre ele (informar, convencer,
esclarecer, ameaçar, etc.).
Atualmente, para que um texto tenha o estatuto de texto, basta ao objeto que este
faça sentido em determinada situação de interlocução (COSTA VAL, 1991). Assim, tan-
to um romance como uma conversa cotidiana são textos.

Um texto se constitui enquanto tal no momento em que os parceiros de uma


atividade comunicativa global, diante de uma manifestação linguística, pela
atuação conjunta de uma complexa rede de fatores de ordem situacional, cog-
nitiva, sociocultural e interacional, são capazes de construir, para ela, determi-
nado sentido (KOCH, 1998, p. 25).

Ou seja, essa concepção de texto tem como postulado básico que “o sentido não
está no texto, mas se constrói a partir dele, no curso de uma interação”.
Em resumo, a partir da década de 80, o foco da Linguística Textual se voltou para
o estudo do texto inserido no contexto pragmático, começou a ser de seu interesse
a análise dos textos nas condições de interação. O texto, dentro dessa perspectiva, é
resultado de uma atividade verbal entre sujeitos, na qual estes coordenam suas ações

52
com o objetivo de alcançar um fim social, em conformidade com as condições sob Definições

as quais a atividade se realiza. Para dar conta dessas condições, na década de 80, os
estudiosos da área passaram a adotar em suas pesquisas o conceito de textualidade,
formado por um conjunto de padrões, conforme explicitaremos na seção seguinte
desta unidade, que contribuem para a construção e legibilidade do texto.

Anotações

53
A variação
linguística e o texto
na sala de aula
Anotações

54
2 Padrões de
textualidade

Neiva Maria Jung

Na década de 80, no Brasil, os aspectos mais focalizados nas pesquisas em Linguís-


tica Textual foram os padrões de textualidade, a partir do conceito introduzido por Be-
augrande e Dressler, em 1981, no livro Introduction to text linguistics. Para os autores,
o texto pode ser definido como uma ocorrência comunicativa que satisfaz sete padrões
constitutivos da textualidade, que são:

Coerência - Diz respeito às formas nas quais os componentes do mundo tex-


tual, isto é, a configuração de conceitos e relações que subjazem ao texto de
superfície, são mutuamente acessíveis e relevantes. A coerência não é uma mera
característica dos textos, mas antes o resultado de processos cognitivos entre os
usuários de textos;

Coesão - Diz respeito às formas como os componentes do texto de superfície,


isto é, as palavras que efetivamente ouvimos ou vemos, conectam-se em uma
sequência veiculadora de sentido. Para isso, a coesão deve se relacionar com os
outros padrões de textualidade;

Intencionalidade - Diz respeito à atitude do produtor de que o conjunto de


ocorrências deva constituir um texto coeso e coerente, eficiente ao cumprir as
intenções do produtor. Relacionam-se as intenções do autor, que podem ser:
informar, impressionar, convencer, pedir, ofender, etc.;

Aceitabilidade - Diz respeito à atitude do interlocutor do texto de que o conjun-


to de ocorrências deva constituir um texto coeso e coerente e que tenha algum
uso e relevância para o interlocutor;

Informatividade - Diz respeito ao grau de informação contido em um texto:


se as ocorrências do texto apresentado são esperadas versus não-esperadas, ou
conhecidas versus desconhecidas/incertas.

Situacionalidade - Diz respeito aos fatores que tornam um texto relevante para
uma dada situação de ocorrência. O sentido e a compreensão do texto são de-
cididos pela situacionalidade.

Intertextualidade - Diz respeito aos fatores que fazem a compreensão de um


texto dependente do conhecimento de um ou mais textos já existentes.

Esses padrões de textualidade têm sido rediscutidos recentemente, uma vez que, à
época, foram interpretados e aplicados por pesquisadores no estudo do texto concebido

55
A variação como produto. Para Beaugrande (2004), esses padrões deveriam ser vistos de modo
linguística e o texto
na sala de aula funcional, integrado e em uma perspectiva transdisciplinar, pois o texto é um evento
comunicativo em que convergem questões de ordem linguística, cognitiva e social. Ou
seja, os sete padrões de textualidade não são critérios/regras para identificar textos e
não textos - pois não existem não textos -, mas são princípios que orientam o proces-
samento (produção) do texto e sua interpretação. Um texto como produto é um mero
artefato, segundo o autor, que se transforma em um texto no ato da interação.
Na sequência, apresentamos em detalhe os sete fatores de textualidade.

Coerência
Para Beaugrande e Dressler (2002), a coerência não é uma propriedade do texto
em si, mas essencialmente um conjunto de processos cognitivos que constrõem a inter-
pretação do texto. Portanto, em termos gerais, todos os elementos que colaboram para
que um texto se constitua como interpretável para o interlocutor podem ser analisados
como fatores de coerência.
Considerando que a coerência não está no texto em si (artefato), mas é estabelecida
no momento da interação, os fatores que contribuem para a coerência textual dizem
respeito tanto aos aspectos formais do texto, quanto ao interlocutor, ao produtor do
texto e à situação de interação em que eles se encontram. De acordo com Charolles
(1988), não há textos incoerentes, não textos, mas textos lidos por leitores não previs-
tos, fora da situação de interlocução prevista ou com muita informação nova, uma vez
que o produtor do texto não conseguiu produzi-lo para o seu provável leitor. O estabe-
lecimento da coerência dependerá, portanto, não apenas do esforço do interlocutor em
construir sua interpretação do texto, mas também da capacidade do produtor do texto
de prever quanto de conhecimento seu interlocutor pretendido possui a respeito dos
processos de textualização e dos gêneros do discurso.
Koch e Travaglia (1995) resumem que o estabelecimento da coerência do texto
depende:
a) do conhecimento de mundo (largamente explorado pela semântica cognitiva e/ou
procedural), bem como o grau em que esse conhecimento é partilhado pelo(s)
produtor(es) e receptor(es) do texto, o que se reflete na estrutura informa-
cional do texto, entendida como a distribuição da informação nova e dada nos
enunciados e no texto, em função de fatores diversos;
b) de elementos linguísticos (seu conhecimento e uso), bem como, evidentemente,
da sua organização em uma cadeia linguística e como e onde cada elemento se
encaixa nessa cadeia, isto é, do contexto linguístico;
c) de fatores pragmáticos e interacionais.

56
Conhecimento de mundo Padrões de textualidade

O conhecimento de mundo significa toda a bagagem cultural que possuímos e que


mobilizamos quando lemos e produzimos textos. Quando lemos, por exemplo, a se-
guinte frase: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.
Para atribuir sentido para essa frase, é necessário conhecer um pouco da história
do Pequeno Príncipe, do autor Antoine de Saint-Exupéry, e conhecer o significado da
palavra “cativar”.

Conhecimento linguístico
Os elementos linguísticos formam a base da coesão. Da mesma forma, o estabeleci-
mento da coerência também depende fortemente do léxico e da sintaxe. Esta, contudo,
não pode ser entendida tão-somente em seu sentido estrito, como uma estruturação
das frases, com termos dispostos linearmente e unidos por relações de dependência
estrutural, marcadas ou não por conectivos.
São os elementos linguísticos que, num primeiro momento, garantem a coerência do
texto, ao remeter o interlocutor a um ambiente, assim como a um contexto. Mas esses
elementos também podem remeter o leitor a outros níveis de interpretação do texto.
Observamos que os elementos linguísticos do texto, ao evocar conceitos e relações
variadas, permitem a criação de um mundo textual, nos termos de Beaugrande e Dressler
(2002).

Conhecimento partilhado
O conhecimento de mundo e o linguístico não são suficientes para que a comunica-
ção funcione bem. É necessário que haja o partilhamento de sentido com a pessoa para
quem está se falando ou escrevendo, o interlocutor.
Vejamos como Luís Fernando Veríssimo abordou o tema sexo em uma de suas
crônicas:

SEXA ???

- Pai........
- Hummmmm?
- Como é o feminino de sexo?
- O quê?
- O feminino de sexo.
- Não tem.
- Sexo não tem feminino?
- Não.
- Só tem sexo masculino?
- É. Quer dizer, não. Existem dois sexos. Masculino e Feminino.
- E como é o feminino de sexo?
- Não tem feminino. Sexo é sempre masculino.

57
A variação - Mas tu mesmo disse que tem sexo masculino e feminino.
linguística e o texto - O sexo pode ser masculino ou feminino. A palavra “SEXO” é masculina. O SEXO
na sala de aula
masculino, o SEXO feminino.
- Não devia ser “A SEXA”?
- Não.
- Por que não?
- Porque não! Desculpe. Porque não. “SEXO” é sempre masculino.
- O sexo da mulher é masculino?
- É. Não! O sexo da mulher é feminino.
- E como é o feminino?
- Sexo mesmo. Igual ao do homem.
- O sexo da mulher é igual ao do homem?
- É. Quer dizer... Olha aqui. Tem o SEXO masculino e o SEXO feminino, certo?
- Certo.
- São duas coisas diferentes.
- Então como é o feminino de sexo?
- É igual ao masculino.
- Mas não são diferentes?
- Não. Ou, são! Mas a palavra é a mesma. Muda o sexo,mas não muda a palavra.
- Mas então não muda o sexo. É sempre masculino.
- A palavra é masculina.
- Não.” A palavra” é feminino. Se fosse masculino seria “o pal...”
- Chega! Vai brincar, vai.
O garoto sai e a mãe entra. O pai comenta:
- Temos que ficar de olho nesse guri...
- Por quê?
Ele só pensa em gramática ( VERÍSSIMO, 2001).

Depois de lido, você deve ter achado engraçado, não foi? Mesmo quem não riu deve
ter, no mínimo, achado curioso. Pois bem: tente descobrir onde reside o humor ou o
inusitado nesse texto. Por que você acha que o título é “Sexa”? E como se deu o diálogo
entre o pai e o filho.
Você perceberá que um personagem fala sobre uma coisa e o outro sobre outra. Isso
caracteriza um problema de partilhamento de sentidos ou de conhecimentos.

Partindo da noção de textualidade, apresentada por Beaugrande e Dressler, Charol-


les (1988) apresentou quatro metarregras que um texto coerente deveria satisfazer: a
metarregra de repetição; a metarregra de progressão; a metarregra de não contradição;
a metarregra de relação.

Metarregra de repetição: Diz respeito à necessária retomada de elementos no de-


correr do discurso. Um texto coerente apresenta continuidade semântica na retomada
de conceitos, ideias. Um texto que trate a cada passo de assuntos diferentes, sem um
explícito ponto comum, não tem continuidade. Isto fica evidente na utilização de recur-
sos linguísticos específicos, como pronomes, repetição de palavras, sinônimos, hipôni-
mos, hiperônimos, etc., conforme veremos na próxima seção. Os processos coesivos

58
de continuidade se dão com elementos expressos na superfície textual; um elemento Padrões de textualidade

coesivo sem referente expresso, ou com mais de um referente possível, torna o texto
malformado.

Metarregra de progressão: O texto deve retomar seus elementos conceituais e


formais, mas não deve limitar-se a isso. Os acréscimos semânticos ou as informações
novas fazem o sentido do texto progredir. No plano da coerência, percebe-se a progres-
são pela soma das ideias novas às que são já tratadas. Há muitos recursos capazes de
conferir sequenciação a um texto.

Metarregra de não contradição: um texto precisa respeitar princípios lógicos


elementares. Não pode afirmar A e o contrário de A. Suas ocorrências não podem se
contradizer, devem ser compatíveis entre si e com o mundo a que se referem, já que o
mundo textual tem que ser compatível com o mundo que representa. Se, por exemplo,
o texto se refere ao mundo real, seria impossível propor que pessoas voam, uma propo-
sição aceitável em um mundo ficcional. Esta não contradição se expressa nos elementos
linguísticos, no uso do vocabulário, por exemplo. Em redações escolares, costuma-se
encontrar significantes que não condizem com os significados pretendidos. Isso resulta
do desconhecimento, por parte do produtor do texto, do vocabulário a que recorreu.

Metarregra de relação: um texto articulado coerentemente possui relações esta-


belecidas, firmemente, entre suas informações, e essas têm a ver umas com as outras.
A relação em um texto refere-se à forma como seus conceitos se encadeiam, como se
organizam, que papéis exercem uns em relação aos outros. As relações entre os fatos
têm que estar presentes e serem pertinentes.
Em síntese, a coerência é algo que se estabelece na interação, na interlocução, numa
situação interlocutiva entre dois usuários. Ela seria a possibilidade de estabelecer, no
texto, alguma forma de unidade ou relação, que é sempre apresentada como uma uni-
dade de sentido no texto, o que caracteriza a coerência como global, isto é, referente ao
texto como um todo (KOCH; TRAVAGLIA, 1995, p. 11-12).

Coesão textual
A coesão é responsável pela ligação dos sentidos isolados para evidenciar a estrutu-
ração da sequência superficial do texto, não perdendo de vista o todo e a intenção com
que se produz esse todo, para constituir finalmente um texto. Os mecanismos para a
coesão de um texto podem ser o uso adequado dos operadores argumentativos, do léxi-
co através da reiteração (repetição do mesmo item lexical: sinônimos, nomes genéricos,

59
A variação etc.) e da colocação (uso de termos pertencentes a um mesmo campo significativo).
linguística e o texto
na sala de aula Um texto, seja oral ou escrito, está longe de ser um mero conjunto aleatório de
elementos isolados, mas, sim, deve apresentar-se como uma totalidade semântica, em
que os componentes estabelecem, entre si, relações de significação. Vejamos isso no
texto a seguir:

Como usar os gêneros para melhorar a leitura e a escrita

(1) Eles invadiram a escola - e isso é bom. (2) Mas é preciso parar de ficar só
ensinando (3) suas características. Todo dia, (4) você acorda de manhã e pega o
jornal para saber das últimas novidades enquanto toma café. (5) Em seguida, vai
até a caixa de correio e descobre que recebeu folhetos de propaganda (6) e (sur-
presa!) uma carta de um amigo que está morando em outro país. (7) Depois, vai
até a escola (8) e separa livros para planejar uma atividade com seus alunos. (9)
No fim do dia, de volta à casa, pega uma coletânea de poemas na estante (10) e
lê alguns antes de dormir. Não é de hoje que (11) nossa relação com os textos
escritos é assim: (12) eles têm formato próprio, suporte específico, possíveis
propósitos de leitura - em outras palavras, têm o que os especialistas chamam de
“características sociocomunicativas”, definidas pelo conteúdo, a função, o estilo
e a composição do material a ser lido. E é (13) essa soma de características que
define os diferentes gêneros. (14) Ou seja, se é um texto com função comunica-
tiva, tem um gênero [...] (MOÇO, 2009, p. 48-49).

Podemos observar no texto que este não é apenas uma soma ou sequência de frases
isoladas. O título apresenta um dado, já conhecido pelo leitor, que é retomado pelo pro-
nome (1) “Eles”. Logo depois, há o encadeamento de um dado novo, articulado no texto
pela conjunção “mas”. Em (3), novamente uma retomada de gêneros através do prono-
me “suas”. O pronome “você” estabelece a interlocução com o provável leitor do texto.
Em (5), (7) e (9), temos elementos linguísticos sequenciais que marcam a sequência
cronológica dos fatos. Em (6), (8) e (10), um “e” responsável por adicionar argumentos
ou ideias, uma retomada em (12), uma explicação em (14) e uma retomada e síntese em
(13).
É por meio de mecanismos como esses que se vai tecendo a tessitura do texto.
Portanto, para interpretar um texto, é necessário reconhecer que um elemento no dis-
curso depende da interpretação de outro elemento. Trata-se de uma relação semântica,
garantida por componentes do sistema léxico-gramatical. Ou seja, há formas de coesão
realizadas através da gramática, e outras através do léxico. Deve-se ter em mente, no
entanto, que podemos encontrar textualidade em textos que não apresentam recursos
coesivos. Nesse caso, a textualidade se dá em nível de coerência, como no seguinte
exemplo apresentado por Koch (1991, p. 19):

Olhar fito no horizonte. Apenas o mar imenso. Nenhum sinal de vida humana.
Tentativa desesperada de encontrar alguma coisa. Nada.

60
Em contrapartida, a coesão não é suficiente para que um texto tenha tex- Padrões de textualidade

tualidade, os enunciados não chegam a constituir textos, por faltar-lhes coe-


rência, como em:

O dia está bonito, pois ontem encontrei seu irmão no cinema. Não gosto de ir ao
cinema. Lá passam muitos filmes divertidos (KOCH, 1991, p. 19).

Por um lado, o primeiro exemplo mostra que a coesão não é condição necessária para
que um texto seja um texto, por outro lado, pelo segundo exemplo podemos observar que
o uso inadequado de elementos coesivos compromete a legibilidade de um texto, pois os
elementos linguísticos utilizados comprometem as relações de sentido do texto. Isso fica
muito claro em “Não gosto de ir ao cinema. Lá passam muitos filmes divertidos”, em que
“lá” retoma cinema, mas o que vem a seguir é incoerente com não gostar de cinema.
Em resumo, “pode-se afirmar que o conceito de coesão textual diz respeito a todos
os processos de sequencialização que asseguram (ou tornam recuperável) uma ligação
linguística significativa entre os elementos que ocorrem na superfície textual” (KOCH,
1991, p. 19).
De acordo com Halliday & Hasan, há cinco diferentes mecanismos de coesão:
1) Referência: elementos referenciais são os que não podem ser interpretados por
si sós, mas têm que ser relacionados a outros elementos no discurso para serem
compreendidos. Há dois tipos de referência: a situacional (exofórica), feita a al-
gum elemento da situação, e a textual (endofórica), ou seja, a retomada dentro
do próprio texto.
Ex: Você não se arrependerá de ler este anúncio. - exofórica
Paulo e José são advogados. Eles se formaram na PUC. - endofórica
2) Substituição: colocação de um item no lugar de outro no texto, seja este ou-
tro uma palavra, seja uma oração inteira. Ex: Pedro comprou um carro e José
também.
Para Halliday & Hasan, a distinção entre referência e substituição está em que
na ocorrência da substituição, há uma readaptação sintática a novos sujeitos ou
novas especificações. Ex: Pedro comprou uma camisa vermelha, mas eu preferi
uma verde (há alteração de uma camisa vermelha para uma camisa verde).
3) Elipse: substituição por zero: omissão de um item, de uma palavra, um sintag-
ma, ou uma frase: - Você vai à Faculdade hoje? - Não.
4) Conjunção: este tipo de coesão permite estabelecer relações significativas entre
elementos e palavras do texto. Realiza-se através de conectores como “e, mas,
depois, etc.” Há elementos meramente continuativos: agora (abre um novo es-
tágio na comunicação, um novo ponto de argumentação, ou atitude tomada ou

61
A variação considerada pelo falante); bem (significa “eu sei de que trata a questão e vou dar
linguística e o texto
na sala de aula uma resposta”).
5) Coesão lexical: obtida através de dois mecanismos: repetição de um mesmo
item lexical, ou sinônimos, pronomes, hipônimos, ou heterônimos. Ex: O Presi-
dente foi ao cinema ver Tropa de elite. Ele levou a esposa.

Koch (2007), tomando por base os mecanismos coesivos na construção do texto,


estabelece a existência de duas modalidades de coesão:
1) Coesão referencial: existe coesão entre dois elementos de um texto, quando um
deles, para ser interpretado semanticamente, exige a consideração do outro, que
pode aparecer depois ou antes do primeiro (catáfora e anáfora, respectivamente)
- Ele era tão bom, o meu marido! (catáfora)
- O homem subiu as escadas correndo. Lá em cima ele bateu furiosamente a
uma porta (anáfora).
A forma retomada pelo elemento coesivo chama-se referente. O referente tanto
pode ser um nome, um sintagma, um fragmento de oração, uma oração, ou todo um
enunciado. Ex: A mulher criticava duramente todas as suas decisões. Isso o aborrecia
profundamente (o referente é toda a oração anterior). Perto da estação havia uma pe-
quena estalagem. Lá reuniam-se os trabalhadores da ferrovia (o referente é o sintag-
ma nominal “uma pequena estalagem”). No quintal, as crianças brincavam. O prédio
vizinho estava em construção. Os carros passavam buzinando. Tudo isso tirava-me a
concentração (o referente é todo o enunciado anterior).
Elementos de várias categorias diferentes podem servir de formas remissivas:
- pronomes possessivos - Joana vendeu a casa. Depois que seus pais morre-
ram, ela não quis ficar lá.
- pronomes relativos - É esta a árvore a cuja sombra sentam-se os viajantes.
- advérbios - Antônio acha que a desonestidade não compensa, mas nem
todos pensam assim.
- nomes ou grupos nominais - Imagina-se que existam outros planetas habi-
tados. Essa hipótese se confirma pelo grande número de Ovnis avistados.

2) Coesão sequencial: conjunto de procedimentos linguísticos que relacionam o


que foi dito ao que vai ser dito, estabelecendo relações semânticas e/ou pragmáticas à
medida que faz o texto progredir. Esses elementos que marcam a coesão sequencial são
chamados relatores e podem estabelecer uma série de relações:
a) implicação entre um antecedente e um consequente: se, etc.
b) restrição, oposição, contraste: ainda que, mas, no entanto, etc.

62
c) soma de argumentos a favor de uma conclusão: e, bem como, também, etc. Padrões de textualidade

d) justificativa, explicação do ato de fala: pois, etc.


e) introdução de exemplificação ou especificação: seja... seja, como, etc.
f ) alternativa (disjunção ): ou, etc.
g) extensão, amplificação: aliás, também, etc.
h) correção: isto é, ou melhor, etc.

E mais as relações estabelecidas por outras conjunções coordenadas e subordinadas.


Como se viu nesta seção, os mecanismos da coesão dão conta da estruturação da
sequência superficial do texto; não são simplesmente princípios sintáticos e sim uma es-
pécie de semântica da sintaxe textual, onde se analisa como as pessoas usam os padrões
formais para transmitir conhecimentos e produzir sentidos com recursos linguísticos.

Fatores pragmáticos da textualidade


Intencionalidade, aceitabilidade e situcionalidade
Em termos de textualidade, é possível observar o texto como processo, e não mais
como produto, a partir dos cinco fatores pragmáticos, propostos por Beaugrande e
Dressler (2002), dos quais os dois primeiros se referem aos protagonistas do ato de
comunicação: a intencionalidade e a aceitabilidade.
A intencionalidade concerne ao empenho do produtor em construir um discurso
coerente, coeso e capaz de satisfazer os objetivos que tem em mente numa determina-
da situação comunicativa. A meta pode ser informar, ou impressionar, ou alarmar, ou
convencer, ou persuadir, ou defender, etc., e é ela que vai orientar a confecção do texto.
O outro lado da moeda é a aceitabilidade, que concerne à expectativa do recebedor de
que o conjunto de ocorrências com que se defronta seja um texto coerente, coeso, útil
e relevante, capaz de levá-lo a adquirir conhecimentos ou a cooperar com os objetivos
do produtor.
O terceiro fator de textualidade, segundo Beaugrande e Dressler (2002), é a situa-
cionalidade, que diz respeito aos elementos responsáveis pela pertinência e relevância
do texto quanto ao contexto em que ocorre. É a adequação do texto à situação so-
ciocomunicativa. A conjunção dos três fatores já mencionados resulta numa série de
consequências para a prática comunicativa. Em primeiro lugar, é importante para o
produtor saber com que conhecimentos do recebedor ele pode contar e que, portanto,
não precisa explicitar no seu discurso. Esses conhecimentos podem advir do contexto
imediato ou podem preexistir ao ato comunicativo. O interesse do recebedor pelo tex-
to vai depender do grau de informatividade de que o último é portador. Esse é mais
um fator de textualidade apontado por Beaugrande e Dressler (2002) e diz respeito à

63
A variação medida, na qual as ocorrências de um texto são esperadas ou não, conhecidas ou não,
linguística e o texto
na sala de aula no plano conceitual e no formal.

Informatividade
A informatividade responde pela suficiência de dados no texto, como também pelo
grau de previsibilidade nas ocorrências no plano conceitual e no formal.
Em termos de informação conceitual ou semântica contida no texto, distribui-se em
dois grandes blocos: o dado e o novo, cuja disposição e dosagem interferem na constru-
ção do sentido. A informação dada tem por função estabelecer os pontos de ancoragem
para o aporte da informação nova. Nesse sentido, a retomada de informação já dada no
texto se faz por meio de remissão ou referência textual, formando no texto as cadeias
coesivas, que têm papel importante na organização textual, contribuindo para a produ-
ção de sentido pretendido pelo produtor do texto. A remissão se faz, frequentemente,
não a referentes textualmente expressos, mas a “conteúdos de consciência”, isto é, a
referentes estocados na memória dos interlocutores, que, a partir de “pistas” encontra-
das na superfície textual, são (re)ativados, via inferenciação. As inferências constituem
estratégias cognitivas extremamente poderosas, que permitem estabelecer a ponte en-
tre o material linguístico presente na superfície textual e os conhecimentos prévios e/
ou compartilhados dos parceiros da comunicação.
Com ancoragem na informação dada, opera-se a progressão textual, através da intro-
dução de informação nova, estabelecendo-se, assim, relações de sentido entre: a) seg-
mentos textuais de extensões variadas; b) segmentos textuais e conhecimentos prévios;
c) segmentos textuais e conhecimentos e/ou práticas socioculturalmente partilhados.
Aqui entramos no aspecto cognitivo que envolve a produção e a compreensão de
textos. É necessário que os interlocutores tenham conhecimento partilhado, a fim de
que o leitor seja capaz de ler as pistas deixadas no texto.
Finalmente, o postulado básico dessa concepção de texto: o sentido não está no
texto, mas se constrói a partir dele, no curso de uma interação. Ou seja, elementos da
situação comunicativa podem ser tão importantes ou mais para a produção de sentido.
Além disso, no curso de uma interação, os interactantes não somente produzem senti-
dos, mas fundam a própria interação como prática sociocultural.

Intertextualidade
A intertextualidade mostra a interdependência dos textos entre si, tendo em vista que
um texto só faz sentido quando é entendido em relação a outro texto (COSTA VAL, 1991).
A intertextualidade acontece quando há uma referência explícita ou implícita de um
texto em outro. Também pode ocorrer com outras formas além do texto, música, pintura,

64
filme, novela, etc. Toda vez que uma obra fizer alusão à outra ocorre a intertextualidade. Padrões de textualidade

Apresenta-se explicitamente, quando o autor informa o objeto de sua citação. Num


texto científico, por exemplo, o autor do texto citado é indicado, já na forma implícita,
a indicação é oculta. Por isso é importante para o leitor o conhecimento de mundo,
um saber prévio, para reconhecer e identificar quando há um diálogo entre os tex-
tos. A intertextualidade pode ocorrer afirmando as mesmas ideias da obra citada ou
contestando-as.
Para Koch e Travaglia (1995), a intertextualidade inclui fatores relativos a conteúdo,
fatores formais e fatores ligados a tipos textuais. Segundo os autores, os fatores associa-
dos a conteúdo são os mais notórios e estão associados ao conhecimento de mundo.
Os autores citam o exemplo das matérias jornalísticas relativas a um fato destacado,
publicadas durante vários dias, e dizem que cada novo texto assume que os leitores
conheçam os textos anteriores sobre o mesmo tema.
Um exemplo disso é a charge a seguir, que só será compreensível para um leitor que
tenha acompanhado as notícias de abril a maio de 2009 sobre: a) a escolha do Rio de
Janeiro para sediar as Olimpíadas em 2016; b) a violência no Rio.

Esta charge do Humberto foi feita originalmente para o

http://www.acharge.com.br/index.htm. Acesso: 20 de outubro de 2009.


Em termos de fatores formais, a intertextualidade acontece geralmente de duas for-
mas: pela paráfrase e pela paródia.

65
A variação Paráfrase
linguística e o texto
na sala de aula Na paráfrase, as palavras são mudadas, porém a ideia do texto é confirmada pelo
novo texto, a alusão ocorre para atualizar, reafirmar os sentidos ou alguns sentidos do
texto citado. É dizer com outras palavras o que já foi dito. Temos um exemplo citado por
Affonso Romano Sant’Anna em seu livro “Paródia, paráfrase & Cia” (p. 23):

Texto original
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá,
As aves que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá.
(Gonçalves Dias, “Canção do exílio”).

Paráfrase
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos
Minha boca procura a ‘Canção do Exílio’.
Como era mesmo a ‘Canção do Exílio’?
Eu tão esquecido de minha terra…
Ai terra que tem palmeiras
Onde canta o sabiá!
(Carlos Drummond de Andrade, “Europa, França e Bahia”).

Esse texto de Gonçalves Dias, “Canção do Exílio”, é muito utilizado como exemplo
de paráfrase e também de paródia. O poeta Carlos Drummond de Andrade retoma o
texto primitivo conservando suas ideias, não há mudança do sentido principal do texto
que é a saudade da terra natal.

Paródia
A paródia é uma forma de contestar ou ridicularizar outros textos, há uma ruptura
com as ideologias impostas e por isso é objeto de interesse para os estudiosos da língua
e das artes. Ocorre, aqui, um choque de interpretação, a voz do texto original é retoma-
da para transformar seu sentido, que leva o leitor a uma reflexão crítica de suas verda-
des incontestadas anteriormente, há uma indagação sobre os dogmas estabelecidos e
uma busca pela verdade real, concebida através do raciocínio e da crítica. Os programas
humorísticos fazem uso contínuo dessa arte, frequentemente os discursos de políticos
são abordados de maneira cômica e contestadora, provocando risos e também reflexão
a respeito da demagogia praticada pela classe dominante. Com o mesmo texto utilizado
anteriormente, teremos, agora, uma paródia.

Texto Original
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá,
As aves que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá.
(Gonçalves Dias, “Canção do exílio”).

66
Paródia Padrões de textualidade
Minha terra tem palmares
onde gorjeia o mar
os passarinhos daqui
não cantam como os de lá.
(Oswald de Andrade, “Canto de regresso à pátria”)

O nome Palmares, escrito com letra minúscula, substitui a palavra palmeiras, e


retoma um contexto histórico, social e racial neste texto. Palmares é o quilombo lide-
rado por Zumbi, dizimado em 1695. Nesse sentido, há uma inversão do sentido do
texto primitivo que foi substituído pela crítica à escravidão existente no Brasil.
Por fim, a intertextualidade por fatores tipológicos, para Koch e Travaglia (1995),
dá-se em termos de retomada da “estrutura que caracteriza cada tipo de texto” ou de
“aspectos formais de caráter linguístico próprios de cada tipo de texto”. Segundo os
autores, “para que um texto seja bem compreendido e visto como coerente, é preciso
que apresente certas características próprias do tipo de texto do qual ele é apresenta-
do como sendo um exemplar” (KOCH; TRAVAGLIA, 1995, p. 92).
Entretanto, é ilusória a ideia de que existam tipos textuais com características for-
mais definidas, parece mais adequado falar-se, hoje, em intertextualidade de gêneros
discursivos, uma vez que esse conceito prevê maior flexibilidade. Os gêneros são re-
lativamente estáveis, por isso oferecem um contorno geral para a interação. Assim, a
situacionalidade, a intencionalidade e a aceitabilidade, entre outros aspectos, podem
exercer decisiva influência sobre as escolhas de forma e conteúdo.
Por exemplo, uma carta pessoal ainda é uma carta, mesmo que a autora tenha
esquecido de assinar o nome no final e só tenha dito no início: “Querida mamãe”.
Uma publicidade pode ter o formato de um poema ou de uma lista de produtos em
oferta; o que conta é que divulgue os produtos e estimule a compra por parte dos
clientes ou usuários daquele produto. Além disso, muitos gêneros do discurso não
apresentam características formais fixas, definindo-se como tais pela recorrência de
outros elementos, que não a forma, como aqueles ligados à dimensão social do texto.
A crônica, por exemplo, tradicionalmente enquadrada pelas tipologias de texto como
um tipo textual narrativo, frequentemente não tem estrutura narrativa. E, quando a
tem, sua distinção em relação ao gênero conto frequentemente só se dá pela esfera
discursiva e pelo suporte. Enquanto o conto é da esfera da literatura, a crônica é um
gênero da esfera jornalística, publicado em jornais e revistas (RODRIGUES; SILVA;
SILVA FILHO, 2009).
Nesse caso, podemos ter também a intertextualidade intergêneros, que designa,
segundo Marcuschi (2002), o aspecto da hibridização ou mescla de gêneros em que
um gênero assume a forma de outro. Vejamos o exemplo apresentado por Marcuschi,

67
A variação um artigo de opinião do jornal Folha de São Paulo, que, embora escrito na forma de
linguística e o texto
na sala de aula um poema, continua sendo um artigo de opinião:

Um novo José
Josias de Souza
- São Paulo - Diga: ora, Drummond, Agora FMI.
Calma José. Se você gritasse,
A festa não começou, se você gemesse,
A luz não acendeu, se você dormisse,
A noite não esquentou, se você cansasse,
O Malan não amoleceu, se você morresse ...
mas se voltar a pergunta: O Malan nada faria,
E agora José? mas já há quem faça.
 
Diga: ora Drummond,
 
agora Camdessus. Ainda só, no escuro,
Continua sem mulher, qual bicho-do-mato,
continua sem discurso, ainda sem teogonia,
continua sem carinho, ainda sem parede nua,
ainda não pode beber, para se encostar,
ainda não pode fumar, ainda sem cavalo preto,
cuspir ainda não pode, Que fuja a galope,
A noite ainda é fria, você ainda marcha, José!
O dia ainda não veio, Se voltar a pergunta:
O riso ainda não veio, José, para onde?
Não veio ainda a utopia, Diga: ora Drummond,
O Malan tem miopia, por que tanta dúvida?
mas nem tudo acabou, Elementar, elementar,
Nem tudo fugiu, sigo pra Washington
Nem tudo mofou. e, por favor, poeta,
Se voltar a pergunta: não me chame de José.
E agora José? Me chame Joseph.
Fonte: Folha de São Paulo, Caderno 1, p. 2 - Opinião, 4 out. 1999

O texto apresenta uma configuração híbrida, tendo o formato de um poema para


o gênero artigo de opinião. Isso configura uma estrutura intergêneros de natureza

68
altamente híbrida e uma relação intertextual com alusão ao poema e ao poeta autor do Padrões de textualidade

poema no qual se inspira e do qual extrai elementos: “E agora José”, de Carlos Drum-
mond de Andrade. Nesse caso, fica evidente que, mais importante que os elementos
formais, são os parâmetros da interação: em que esfera social o texto foi produzido,
quem são os interlocutores, qual a relação entre eles, qual a modalidade (oral, escrita,
mista), etc.
Em síntese, fica claro nesta concepção de texto, que a articulação não acontece so-
mente pelo aspecto temático e estrutural. Embora esses aspectos sejam, de alguma for-
ma, retomados, amplia-se a noção de articulação. A tessitura do texto precisa ser cons-
truída considerando aspectos linguísticos, textuais, sociocognitivos e interacionais. Ela
é uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza,
evidentemente, com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e
na sua forma de organização, mas que requer a mobilização de um vasto conjunto de
saberes e sua reconstrução no interior do evento comunicativo.
Uma vez que o leitor, o conhecimento de mundo e a situação comunicativa são
partes desse processo de produção de texto, eles precisam ser considerados, ou talvez,
textualizados.

Anotações

69
A variação
linguística e o texto
na sala de aula
Anotações

70
3 Condições de produção

Neiva Maria Jung

A produção de textos (orais e escritos) é o ponto de partida (e ponto de chega-


da) de todo processo de ensino/aprendizagem da língua (GERALDI, 1997). Nesse
sentido, o referido pesquisador apresenta uma distinção entre “produção de texto”
e “redação”, afirmando que “nesta, produzem textos para a escola; naquela produ-
zem-se textos na escola” (p. 136). Ou seja, a redação está basicamente associada ao
exercício escolar da escrita, em que se anula o papel do aluno, enquanto sujeito
ativo de seu discurso. O texto é visto como um produto pronto e acabado, não
como um processo que permite ao aluno estabelecer uma relação dialógica com o
seu interlocutor, visto que “na redação, não há um sujeito que diz, mas um aluno
que devolve ao professor a palavra que lhe foi dita pela escola” (GERALDI, 1985).
Nesse caso, prevalece a escrita “para a escola”, “para o professor” que a utiliza como
uma forma de avaliar o aluno, sem levar em consideração a prática da escrita como
função social, que vai além dos muros escolares. Dentro desse cenário, portanto,
não há espaço para a interação.
Quanto à produção de textos, Geraldi considera-a como um processo dinâmico,
no qual o texto é visto como um lugar em que os sujeitos concretizam seus discursos,
em que estabelecem interlocução, cientes da real função da escrita nas suas diversas
situações de uso. Enfim, é uma atividade dialógica, em que a linguagem é vista como
forma de interação humana, em que o aluno sabe de fato “o que dizer”, “para quem
dizer” e “como dizer”.
Em seu livro Portos de Passagem, Geraldi (1997) apresenta aspectos fundamentais
para a produção de texto, as condições de produção. Segundo o autor, para produzir
um texto, em qualquer modalidade, é preciso que:
a) se tenha o que dizer;
b) se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer;
c) se tenha para quem dizer o que se tem a dizer;
d) o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que diz para quem
diz (ou, na imagem wittgensteiniana, seja um jogador no jogo);
e) se escolham as estratégias para realizar (a), (b), (c) e (d).
Para se produzir um texto, levando em consideração essas condições propostas por

71
A variação Geraldi, cabe ao professor oferecer ao aluno situações adequadas de produção, permitin-
linguística e o texto
na sala de aula do-lhe empenhar-se na realização consciente de um trabalho linguístico que realmente
tenha sentido para si, e isso só é possível à medida que a atividade de produção textual
tenha objetivos claros e bem definidos. É necessário que o aluno possa sentir que de fato
está produzindo para um interlocutor (que não seja apenas o professor), eliminando a
exclusividade das situações artificiais da produção escrita tão presentes no meio escolar.
As condições de produção têm os seus fatores condicionados nas relações de sen-
tido de um discurso sobre outros em contínuo processo, onde o mecanismo de ante-
cipação irá regular a argumentação, com base no lugar de onde o sujeito se constitui.
Esse jogo imagético é o que Pêcheux (1988) chama de “jogo de imagens de um
discurso”: a imagem que o sujeito, ao enunciar seu discurso faz: do lugar que ocupa;
do lugar que ocupa seu interlocutor; do próprio discurso ou do que é enunciado,
bem como da imagem que o sujeito ao enunciar seu discurso faz da imagem que o seu
interlocutor faz.
Trata-se da enunciação, do qual resulta um enunciado e, sob essa perspectiva, a
textualidade de um texto é resultante das condições de produção. Quem foi o inter-
locutor previsto? Qual o jogo de imagens de enunciador e enunciatário em relação ao
assunto, ao meio em que foi veiculado o gênero e na relação de um com outro.
Para Menegassi (2003, p. 57), os quatro aspectos das condições de produção estão
intimamente ligados. Segundo o pesquisador, “[...] ao definir a finalidade de produ-
ção, opta-se pelo tipo de gênero textual, que, por sua vez, abarca o lugar de circula-
ção de texto e, consequentemente, impõe um tipo de interlocutor”. Por essa razão, é
importante que, ao solicitar uma atividade de produção textual, o professor elabore o
comando de produção textual com base nesses aspectos para que aluno tenha condi-
ções de organizar pontualmente seu texto seguindo as instruções dadas.
Além disso, é necessário retomar que “ao definir a finalidade de produção, opta-se
pelo tipo de gênero textual” (MENEGASSI, 2003, p. 55-79), ou seja, a noção de gêneros
do discurso baliza as condições de produção de um texto. No processo de produção,
por exemplo, os gêneros balizam o autor: Em que esfera social se encontram autor e
interlocutor? Em qual interação social? Qual a finalidade dessa interação? Quem é o
interlocutor previsto? O que dizer e como dizer? No ato da leitura, se não soubermos a
que gênero relacionar o texto que estamos lendo, teremos dificuldade em interpretá-lo.
Nesse sentido, de acordo com as crescentes pesquisas acerca dos gêneros do dis-
curso no campo da Linguística Aplicada e na vertente enunciativa da Linguística Tex-
tual, os padrões de textualidade também podem ser relidos à luz dos gêneros (RODRI-
GUES; SILVA; SILVA FILHO, 2009).
Para Bakhtin (2003), o ponto de partida do conceito de gênero é a definição de um

72
vínculo orgânico entre a utilização da linguagem e a atividade humana. Para ele, todas Condições de produção

as esferas da atividade humana estão sempre relacionadas com a utilização da lingua-


gem, e essa utilização efetua-se em forma de enunciados que constituem ou emanam
de uma ou outra esfera da atividade humana.
De acordo com Matencio (2006), para abordar o gênero é necessário que se consi-
dere, a um só tempo:

(i) as instâncias ou esferas sociais que delimitam historicamente os discursos e


seus processos, particularmente no que se refere às relações entre instituições,
lugares e papéis sociais e às suas representações;
(ii) as práticas discursivas efetivamente em construção nessas instâncias num
aqui-agora, num dado evento de interação, ou seja, a assunção efetiva de lugares
e papéis comunicativos, as representações das ações que se deve empreender
e dos modos pelos quais elas podem se materializar numa forma linguageira; e
(iii) os processos de textualização que daí resultam, isto é, a produção de ações
linguageiras, por um eu e por um tu, no aqui-agora (MATENCIO, 2006, p. 5).

Ou seja, o dizer sempre acontece em uma ou outra esfera da atividade humana,


porque não falamos no vazio, não produzimos enunciados fora das múltiplas e varia-
das esferas do agir humano. Nossos enunciados (orais ou escritos) têm, ao contrário,
conteúdo temático, organização composicional e estilo próprio, correlacionados
às condições específicas e às finalidades de cada esfera da atividade.
Dentro dessa perspectiva, os gêneros constituem-se a partir do surgimento e da
(relativa) estabilização de novas situações sociais de interação. Rodrigues, Silva e Silva
Filho (2009) apresentam, como exemplo, o caso do gênero bula de medicamento.
Esta originalmente se destinava a comunicação entre o laboratório e o profissional de
saúde e, nessa situação, a bula era escrita em estilo técnico e bastante hermético. Atual-
mente, devido ao interesse do paciente em acompanhar a prescrição médica, o estilo
da bula passou a ser mais acessível ao cidadão comum, produzida em uma linguagem
menos técnica.
Além disso, cada gênero tem sua concepção de autor e interlocutor, tem uma finalida-
de discursiva própria e apresenta certo modo de composição textual e estilo particular.
Por exemplo, o mesmo indivíduo assume papéis de autor bastante diversos ao escrever
um romance ou uma tese; um artigo científico e um livro didático dirigem-se a interlo-
cutores distintos; a finalidade discursiva do artigo científico (apresentar resultados de
pesquisa) é diferente daquela que tem o livro didático (apresentar conteúdos escolares
aos alunos e mediar seu ensino-aprendizagem); o artigo científico e a notícia têm estilos
diferentes, mesmo que ambos sejam redigidos na variedade linguística de prestígio.
Em resumo, os gêneros do discurso são concebidos como modos sociais de inte-
ração sócio-historicamente constituídos, pois conduzem o processo de produção e

73
A variação interpretação de textos. Nesse sentido, os padrões de textualidade são balizados pe-
linguística e o texto
na sala de aula los gêneros, que vão orientar diferenças de textualização. Até mesmo os padrões que
foram inicialmente compreendidos como ligados à materialidade do texto - a coesão
e a coerência - constituem ações linguísticas e discursivas mobilizadas com vistas a
cumprir o propósito discursivo dos interlocutores dentro de determinado gênero.
Essa compreensão sobre os gêneros textuais precisaria nortear o ensino. Segundo
Faraco (2003),

talvez a apropriação pedagógica da noção de gênero do discurso de Bakhtin


tivesse sido mais enriquecedora do que cristalizadora, se suas reflexões
tivessem sido entendidas pelo seu caráter inerentemente dinâmico e não
tivesse se resumido a submetê-las a uma leitura apenas formal dos gêneros
(p. 118).

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VERÍSSIMO, Luís Fernando. Comédias para se ler na escola. Rio de Janeiro:


Objetiva, 2001.

Proposta de Atividade

Observe o comando a seguir, que solicita a produção do gênero textual “bilhete”,


apresentado na prova PAS-2009, da Universidade Estadual de Maringá.

Agora, você deve prestar atenção à situação comunicativa abaixo, de que participam você
e seu chefe:
Você está esperando seu chefe chegar ao local de trabalho, para poder ir ao banco pagar
algumas contas particulares com vencimento naquele dia. Precisa comunicar sua saída ao seu
chefe, mas não quer deixar recado com seu companheiro de trabalho. Tenta entrar em contato
com o seu chefe, mas o celular não atende. Como não pode adiar o pagamento e tem de avisá-
lo de que saiu e de que voltará a fim de passar-lhe os recados recebidos, a única solução é
escrever um BILHETE para o seu chefe.

Gênero textual 2 - Bilhete

1) A partir da situação comunicativa apresentada, produza um BILHETE, considerando:


a) o assunto - onde você foi e por que fez isso, antes de o seu chefe chegar ao local de
trabalho;
b) o seu interlocutor - você vai se comunicar com o seu chefe;
c) os conhecimentos que seu chefe tem sobre o que você foi fazer fora do seu local de
trabalho, no horário do expediente. Não se esqueça de que o seu chefe deve saber
porque a tarefa não poderia ser realizada em outro dia nem em outro horário;
d) o grau de intimidade entre você e seu interlocutor - seu chefe, a quem você é
subordinado. Qual o tratamento que você dispensa a ele;

76
e) a linguagem - numa situação como a apresentada, ela precisa ser formal? Pode ser Condições de produção
informal?
f ) a escrita, independentemente de ser formal ou informal, deve obedecer às regras
gramaticais;
g) a comunicação tem que ser rápida e objetiva, pois você deve escrever um BILHETE,
gênero textual cujo objetivo é informar o seu interlocutor, que, no caso, é o seu chefe.
Por isso, o seu BILHETE deve ser escrito com o mínimo de 20 (vinte) e o máximo de
35 (trinta e cinco) palavras, levando em conta todas elas, independentemente da classe
ou da categoria;
h) assine o BILHETE com o nome JOÃO.

2) O texto a seguir é resultado desse comando, foi produzido por um aluno da 1ª série do
Ensino Médio, que fez a Etapa 1 desse sistema de avaliação. Analise o que se pede em cada
item, procurando observar se as condições de produção apresentadas de “a” a “h” foram
preenchidas pelos textos.

Fui ao banco quitar dívidas pessoais com vencimento hoje, tentei


avisa-lo pelo celular mas não consegui. Voltarei em seguida e passarei
os recados recebidos.
Atenciosamente, João

a) Qual a finalidade proposta para o gênero? O texto consegue dar conta dessa finalidade?
b) Quais as marcas do provável interlocutor do bilhete?
c) É possível identificar marcas do produtor do texto?
d) Como apresenta o assunto a partir do que foi solicitado?
e) A linguagem utilizada é coerente com a situação de interação proposta?
f ) A articulação do texto contribui para que o texto cumpra a sua função sociocomunicativa?

Anotações

77
A variação
linguística e o texto
na sala de aula
Anotações

78
4 A argumentação
marcada na língua:
os operadores
argumentativos

Ana Paula Peron

1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARGUMENTAÇÃO E A


LINGUAGEM
Quando se fala a respeito de linguagem e de argumentação, certamente pensamos
em elementos que fazem parte de nosso cotidiano e dos quais fazemos uso nas mais
diversas situações, desde as mais simples, como um convite informal para um passeio,
até as mais elaboradas, como aqueles textos que consideramos difíceis ou um pronun-
ciamento político a que assistimos. Todos nós temos, portanto, algum conhecimento
sobre linguagem e argumentação - que andam sempre juntas - e, inclusive, nos vale-
mos delas como forma de interagir com as outras pessoas todos os dias.
Essa interação social torna-se possível por meio de um instrumento privilegiado
que é a linguagem, compreendida como uma forma de ação sobre o mundo dotada de
intencionalidade (KOCH, 1998, 1999). Desse modo, a utilização da linguagem assume
um funcionamento muito mais abrangente do que a de tão somente transmitir infor-
mações, expressar pensamentos ou proporcionar a comunicação entre os homens: ao
utilizar a linguagem para interagir, as pessoas sempre procuram atuar sobre as outras
de alguma maneira. Assim, sob a perspectiva da Semântica Argumentativa, é possível
afirmar que a interação social concretizada por meio da língua caracteriza-se pela argu-
mentatividade: “o ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de de-
terminadas conclusões, constitui o ato linguístico fundamental” (KOCH, 1999, p. 19).
Aceitando esse postulado, podemos dizer que nenhum discurso (atividade comuni-
cativa de um locutor em uma determinada situação de comunicação, linguisticamente
manifestado em textos) é isento de intencionalidades e nem de ideologias e que até
mesmo aqueles discursos ditos neutros carregam consigo a ideologia de uma aparente

79
A variação e falsa neutralidade. Aliás, esse fato hoje parece ser de mais fácil aceitação, uma vez
linguística e o texto
na sala de aula que, por exemplo, já se considera e se declara, mais explicitamente, que cada veículo
de comunicação defende um posicionamento que lhe é particular, parecendo haver
maior desapego daquele “mito” de neutralidade.
É um dizer recorrente o de que, ao posicionar-se criticamente diante de um fato,
fazer reflexões acerca dele e defender seu ponto de vista, aquele que discursa também
argumenta, procurando modificar relações, opiniões e comportamentos. Daí o caráter
interativo e transformador da argumentação na linguagem. Compartilhar dessa ideia
implica, pois, em reforçar a intrínseca relação existente entre a linguagem e a argu-
mentação.
Geralmente compreendemos a argumentação como uma “técnica” da qual nos va-
lemos para persuadir o outro a fazer alguma coisa, a aderir ao nosso ponto de vista, a
convencê-lo a respeito de determinado assunto. Como afirma Cabral (2010), para ser
eficaz, essa “técnica”, realizada por meio da linguagem, depende também das escolhas
linguísticas que fazemos em nossos textos (um adjetivo, um advérbio, alguns conec-
tores), pois, por meio delas, marca-se uma tomada de posição diante daquilo que está
sendo enunciado. É diferente, por exemplo, dizermos que estamos felizes ou muito,
mega felizes com as novidades contadas por uma amiga, ou então darmos um recado
a alguém usando uma destas formas:

Gabriel gostou de sua visita ontem. Ele telefonou para agradecer.

Gabriel gostou demais de sua visita ontem. Ele até telefonou para agradecer.

Nesses enunciados, a utilização ou não utilização de recursos que possuem um fun-


cionamento argumentativo como demais e até faz diferença na construção de sentidos
obtida na interação. Assim, é através da argumentatividade que se torna possível dire-
cionar o discurso para uma determinada conclusão em detrimento de outra, aceitar ou
não determinados valores, enfim, estabelecer uma relação de sentidos na linguagem.
A Semântica Argumentativa considera a argumentação como uma constante relação
entre os sentidos que orientam os enunciados para determinadas conclusões em situa-
ções específicas de uso da língua. O enunciado consiste em um segmento de discurso
que, para acontecer, sempre pressupõe lugar, data, interlocutores específicos, situação
específica, enfim: a língua em uso. Ele é a realização da frase que, nessa perspectiva,
é vista como uma possibilidade gramatical que “contém instruções para aqueles que
deverão interpretar o enunciado dela” (CABRAL, 2010, p. 29). O enunciado acontece
quando eu utilizo essas possibilidades da gramática para realizar uma comunicação/
interação efetiva e, assim, produzir sentidos na e pela linguagem.

80
Para exemplificar essa diferença entre frase e enunciado, podemos pensar no as- A argumentação
marcada na língua:
pecto pragmático. Assim, se alguém disser a seguinte frase: “Está um pouco frio aqui” os operadores
argumentativos
e eu a observar isoladamente, desvinculada do contexto em que foi pronunciada, cer-
tamente poderei afirmar, de modo geral, que ela está se referindo à baixa temperatura
de um lugar; e isso seria a instrução interpretativa da frase. Porém, se ela é dita em uma
sala que está com o ar-condicionado ligado, ela pode significar um pedido para que au-
mentem a temperatura. Se for pronunciada em um ambiente onde todos se encontram
com muito calor e aparece uma pessoa vestida com blusa de manga longa, ela pode
imprimir certa ironia à forma de vestir-se do outro e assim por diante.
Dessa forma, a relação de sentidos na linguagem acontece por meio da utilização
de enunciados. E na estrutura linguística desses enunciados aparecem inscritas as mar-
cas da argumentação, ou seja: a argumentação está inscrita na língua, configurando-se
como parte integrante dos enunciados e não como algo decorrente de seu uso (DU-
CROT, 1981). Tal constatação torna possível a afirmativa de que a utilização da lingua-
gem é essencialmente argumentativa, ou seja, todos os enunciados carregam consigo
um sentido capaz de conduzir o interlocutor a uma determinada conclusão. Se vol-
tarmos a nossos exemplos iniciais, poderemos observar que a utilização de um ou de
outro não é indiferente, pois cada um poderia nos direcionar para uma conclusão.
No primeiro enunciado, podemos orientar nossas conclusões para o fato de que Ga-
briel está cordialmente retribuindo a gentileza da visita; já no segundo, os elementos
destacados (demais e até) imprimem-lhe uma orientação diferente, que pode ir além
da constatação de um telefonema de agradecimento. Como salienta Cabral (2010, p.
48), “nossas escolhas linguísticas implicam efeitos de sentido, o que é, evidentemente,
óbvio; no entanto, nem sempre levamos esse fato em conta ao construirmos nossos
textos, nem quando lemos os textos de outrem”. E aqui fica a sugestão de pensarmos
mais a esse respeito no momento de produzir e ler textos.
Ducrot (1981) ressalta que o sentido do enunciado reside muito mais na orien-
tação dada à sequência do discurso do que nas coisas efetivamente ditas por esse
enunciado. Descrever um enunciado é, então, descrever para onde ele conduz, quais
as sinalizações das intenções argumentativas presentes ali, a que conclusões se quer
chegar ao utilizar aqueles enunciados daquela maneira. Como nos explica o autor,

a função argumentativa tem marcas na própria estrutura do enunciado: o valor


argumentativo da frase não é somente uma consequência das informações por
ela trazidas, mas a frase pode comportar diversos morfemas, expressões ou ter-
mos que, além de seu conteúdo informativo, servem para dar uma orientação
argumentativa ao enunciado, a conduzir o destinatário em tal ou qual direção
(DUCROT, 1981, p. 178).

81
A variação Trilhando esse mesmo caminho, Vogt (1989) e Guimarães (2005) compreendem
linguística e o texto
na sala de aula que o sentido linguístico não deve ser encarado somente em termos de verdade ou fal-
sidade, mas, sobretudo, em termos de orientação argumentativa, de futuro discursivo,
para onde esse enunciado aponta. Vejamos, por exemplo, este enunciado, retirado de
uma propaganda governamental que incentivava o turismo no Estado do Ceará, em
uma época de festejos de carnaval:

Carnaval no Ceará. Também tem mangueira, beija-flor e 573 km de praias pa-


radisíacas para você desfilar em alto astral. Ceará. Quem conhece só fala bem.

Nesse enunciado, o futuro discursivo aponta para as belezas daquele Estado brasi-
leiro e para os aspectos interessantes que também ele apresenta, procurando persu-
adir o interlocutor a visitar o Ceará. Veiculado em época do carnaval, quando muitos
turistas visitam especificamente o Rio de Janeiro, por conta dos desfiles das escolas de
samba e dos demais atrativos da cidade, o anúncio incentiva a visitar também o Estado
nordestino, pois, embora distintas, o Ceará também tem mangueira, beija-flor (o que,
no Rio remetem a duas tradicionais escolas de samba), praias paradisíacas e desfiles.
Sendo assim, o que se veicula nesse enunciado não é apenas um conteúdo informativo
a respeito do Ceará, mas funciona como uma razão apresentada ao interlocutor para
que ele chegue à conclusão que se deve visitar o Estado. É, portanto, para esse conteú-
do que o enunciado orienta. E a marca dessa orientação argumentativa está no item
também. Em seguida, o enunciado: Quem conhece só fala bem, reforça essa conclusão
por meio do elemento restritivo só, que excluiria, no discurso, qualquer eventual pos-
sibilidade de alguém que conhece aquele Estado falar mal dele.
Assim, a orientação argumentativa pode ser definida como a possibilidade discursi-
va de encadeamento de um enunciado com outros enunciados. Orientar argumentati-
vamente significa, então, dispor, encadear os enunciados em uma estrutura textual de
modo a defender uma tese e conduzir o interlocutor a aderir ou, ao menos, a aceitar a
validade da conclusão pretendida por aquele que argumenta.
Se observarmos um texto em sua extensão, encontraremos vários enunciados dis-
postos na estrutura textual que são dados como razão para se chegar à tese pretendida
por aquele que argumenta. Como ressalta Guimarães (2001, p. 25), “orientar argumen-
tativamente com um enunciado X é apresentar seu conteúdo A como devendo conduzir
o interlocutor a concluir C (também um conteúdo)”, ou seja, é apresentar determinado
conteúdo A como uma razão para se acreditar no conteúdo C. Entretanto, enfatiza o
autor, não se trata de dizer A para que o interlocutor pense ou conclua C, pois senão a
argumentatividade seria vista como consequência daquilo que se diz, e não como fator
constitutivo da língua. Essa relação entre os conteúdos precisa estar marcada na língua.

82
Sob esse enfoque, a argumentação está, pois, inscrita na própria língua que com- A argumentação
marcada na língua:
porta elementos capazes de marcar nossos posicionamentos diante dos conteúdos os operadores
argumentativos
enunciados. Assim, a argumentação pode ser observada através de marcas linguísticas
que, por estarem inseridas na própria gramática, aparecem na estrutura frasal e que o
enunciador deixa presentes em todos os seus enunciados, sejam eles orais ou escritos1.

2 OS OPERADORES ARGUMENTATIVOS E A CONSTRUÇÃO DE


SENTIDOS NO TEXTO
As palavras tradicionalmente classificadas como conjunções, definidas como vocá-
bulos que servem para relacionar duas orações ou dois termos semelhantes da mesma
oração e palavras denotativas, que possuem classificação à parte, mas sem nome
especial (CUNHA; CINTRA, 1999), constituem o que a Semântica Argumentativa de-
nominou de operadores argumentativos, foco dessa seção. Segundo Koch (1998), a
expressão é utilizada para referir-se a determinados elementos da gramática de uma
língua que têm por função indicar a força argumentativa dos enunciados e a direção
ou o sentido para o qual esses enunciados apontam.
Conforme explica Cabral (2010, p. 86), essa perspectiva não define tais conectores
enquanto elementos de ligação, que expressariam apenas relações lógicas entre os
conteúdos, mas entende-os como elementos de conexão, indicadores de orientação,
capazes de colocar “a informação do texto a serviço da intenção argumentativa” para
que o texto produza sentidos.
O sentido é, aqui, compreendido como o fator que estrutura a orientação argumen-
tativa dos enunciados, ou seja, que conduz os enunciados para determinada direção.
A esse respeito, Guimarães (2001, p. 115) salienta ainda que “a direção para a qual
os operadores argumentativos indicam não são segmentos futuros do texto, mas sim
lugares semânticos que organizam os textos, para além, ou aquém de sua segmenta-
lidade”. Isso quer dizer que o futuro discursivo do texto vai sendo, gradativamente,
construído e essa construção é sinalizada por meio de marcas (dentre as quais estão

1 Além dos operadores argumentativos, de que nos ocupamos neste artigo, Koch, em seu clás-
sico A inter-ação pela linguagem (1998) e também em Argumentação e linguagem (1999), apre-
senta outras marcas linguísticas da argumentação, como os marcadores de pressuposição, os
modalizadores, os indicadores atitudinais, os índices de avaliação e de domínio, a utilização dos
tempos verbais, os índices de polifonia, a argumentação por autoridade. Para um aprofunda-
mento a respeito dessas outras marcas, recomenda-se a leitura dos textos citados. Em A coesão
textual (2001), e Desvendando os segredos do texto (2002), Koch também analisa o funcio-
namento de operadores em diversas situações argumentativas. Outra leitura ainda recomendada
é o livro de Ana Lucia Tinoco Cabral, A força das palavras: dizer e argumentar (2010), que,
em linguagem simples, aborda elementos da argumentação.

83
A variação os operadores) que podem ser visualizadas na superfície textual.
linguística e o texto
na sala de aula Para observar essas noções, consideremos o texto abaixo, que é a transcrição de
uma tira de Luiz Fernando Veríssimo, já bastante conhecida, e consiste no diálogo
entre as lesmas Flecha e Shirlei, personagens de As Cobras:

Shirlei: Flecha, você é machista?


Flecha: Para mim não existe qualquer diferença entre os sexos, Shirlei. Que
pergunta!
Aliás, típica.

Nesse texto, inicialmente Shirlei pergunta para Flecha a respeito de ele ser ma-
chista. Em um primeiro momento de sua resposta, Flecha afirma que, para ele, não
há qualquer diferença entre os sexos. E acrescenta: Que pergunta! Se a leitura parasse
nesse ponto, a orientação argumentativa do texto conduziria a uma perspectiva não
machista assumida por Flecha. Entretanto, a resposta de Flecha é complementada por
um outro enunciado, que se liga ao anterior por meio de um operador: Aliás, típica.
Quando lemos esse último enunciado, observamos que o futuro discursivo do texto
se modifica: aquela pergunta só poderia ter sido feita por alguém que representasse
o sexo feminino, então seria típica de mulher. Ora, se a personagem afirma haver
alguma coisa típica de mulher, é porque provavelmente faz distinções entre os sexos.
O operador aliás, que encabeça o enunciado do último quadro e que marca aquele
argumento como o mais forte e decisivo para o texto, é que dá à leitura essa tônica,
deixando implícito um posicionamento machista de Flecha. Atentemo-nos, ainda, para
o fato de que sequer há, na tira, alguma marca de gênero gramatical para chamarmos
Flecha de ele, porém essa orientação argumentativa que o texto assume também nos
permite tal atitude.
Desse modo é que o sentido vai sendo gradativamente construído e que os opera-
dores organizam textualmente os conteúdos, sinalizando as possibilidades interpreta-
tivas e, além disso, imprimindo coesão e coerência ao texto. Como nos apresenta Koch
(2002, p. 133),

o emprego adequado dos articuladores é também garantia da continuidade te-


mática, na medida em que ficam explicitadas as relações entre os segmentos
textuais que interligam, quer as do tipo lógico-semântico, quer as de caráter
discursivo-argumentativo.

Portanto, podemos compreender também que a estrutura argumentativa do discur-


so, cujo traço característico é a dependência entre argumentos e conclusões, é o fator
responsável pela tessitura do texto: a argumentação faz o texto progredir através das
articulações que promove e se encontra subjacente aos demais fatores de textualidade,

84
contribuindo para a construção da coesão e da coerência textuais. E esse é mais um A argumentação
marcada na língua:
ponto favorável para pensarmos sobre a relevância de uma utilização adequada dos os operadores
argumentativos
operadores no momento da elaboração dos textos.

2.1 As classes e as escalas argumentativas e suas marcas na língua


Para estudar o funcionamento dos operadores, é importante retomar também as
noções de classe e de escala argumentativa, propostas por Ducrot (1981), que são
muito recorrentes na prática da estruturação textual.
A classe argumentativa é um conjunto de enunciados que podem servir de argu-
mento para uma determinada conclusão, ou seja: argumentos que podem ser usados
para levar o interlocutor a concluir algo. Ducrot (1981) salienta ainda que a noção de
classe argumentativa é totalmente relativa a uma conclusão particular e a um locutor
determinado, pois é o locutor quem coloca os enunciados em uma classe quando con-
sidera que tais argumentos podem ser favoráveis a uma conclusão. Isso ocorre porque,
a priori, não existe nenhum conteúdo que sirva de argumento para outro conteúdo:
todas as relações argumentativas são construídas na linguagem, de modo que cada
usuário organize seu discurso como lhe parecer mais apropriado em cada situação de
uso da língua.
Assim, o que se inclui nas escalas argumentativas não são enunciados que, em
uma determinada circunstância, podem servir de argumento para uma conclusão, mas
enunciados aos quais está agregada uma marca linguística de argumentação. É por isso
que Ducrot considera a argumentação como parte integrante do enunciado (GUIMA-
RÃES, 2005). É também por esse motivo que Koch (1999) enfatiza o valor retórico ou
argumentativo da gramática.
É necessário ainda salientar, como já o fez Guimarães (2005), que as relações argu-
mentativas não são absolutas, pois um argumento não é uma prova para algo, mas uma
razão que é dada ao interlocutor para aceitar determinada conclusão. Esse fato de os
argumentos autorizarem uma conclusão sem impô-la ao interlocutor é tratado por Du-
crot (1981) através da noção de escala argumentativa que se configura, linguisticamen-
te, quando os argumentos estão apresentados em uma escala gradual e apontam, com
maior ou menor intensidade, para uma conclusão. Também é o locutor que dispõe os
argumentos na escala, estabelecendo entre eles uma ordem de força argumentativa.
Ducrot (1981) explica que um argumento não é, por si só, mais forte do que outro,
mas que a força de um argumento fica marcada na superfície textual, sendo possível
observar essa força apenas em virtude da presença de determinados operadores ar-
gumentativos inseridos no discurso e que orientam as conclusões desses enunciados.
Essa ordem é sempre construção de linguagem, e qualquer dos argumentos pode,

85
A variação potencialmente, ocupar qualquer lugar na escala, tornando-se mais ou menos forte
linguística e o texto
na sala de aula do que o(s) outro(s). Desse modo, é o locutor que vai decidir sobre quais conteúdos
recairá a maior força argumentativa.
Vejamos um exemplo. Para argumentar de modo a chegar a uma conclusão cor-
riqueira como: “é necessário visitar meu primo que mora distante”, poderíamos nos
valer de conteúdos como:
a) Meu primo e eu sempre tivemos um bom relacionamento;
b) O filho dele esteve hospitalizado recentemente;
c) Faz seis meses que não nos encontramos.

Nenhum desses conteúdos, por si, é mais forte ou mais fraco enquanto argumento.
Eles não trazem intrínseca nenhuma força argumentativa, sendo apenas conteúdos
informativos. A força argumentativa é conferida a cada um deles quando eles são or-
ganizados textualmente por meio dos articuladores. Assim, podemos colocar a ênfase
em qualquer dos conteúdos dados como argumentos. Algumas possibilidades seriam:

Preciso visitar meu primo, porque sempre tivemos um bom relacionamento, o


filho dele esteve hospitalizado recentemente e, além do mais, já faz seis meses
que não nos encontramos.

Meu primo e eu sempre tivemos um bom relacionamento e já faz seis meses


que não nos vemos. Preciso ir visitá-lo, inclusive, porque o filho dele esteve
hospitalizado recentemente.

Preciso visitar meu primo, pois o filho dele esteve hospitalizado recentemente,
também faz seis meses que não nos encontramos e, além disso, sempre tive-
mos um bom relacionamento.

Haveria ainda, no jogo da língua, muitas outras formas de fazer com que esses
conteúdos informativos se tornassem argumentos para a conclusão pretendida: preci-
so visitar meu primo. Entretanto, esses enunciados listados acima, pela utilização de
palavras como já, além, além do mais, inclusive, enfatizam mais a um do que a outro
conteúdo. Essa organização que podemos fazer dos argumentos, conferindo maior
força a um deles é o que temos por escala argumentativa; o conjunto desses conteúdos
que damos como razão para crer naquela conclusão constitui uma classe argumentati-
va, em uma determinada situação de linguagem.
Nesse sentido, podemos observar que há, na língua, recursos para marcar que de-
terminados argumentos pertencem a uma classe e para mostrar que estão dispostos
em uma escala gradual que conduz o enunciado a uma conclusão específica. Segundo
Koch (1998), os operadores mais comuns que exercem essa função seriam aqueles
que somam argumentos orientados para uma mesma conclusão (também, nem (= e

86
não), não só... mas também, tanto... como, e, etc.) e também os que indicam os ar- A argumentação
marcada na língua:
gumentos mais fortes (ou mais fracos) em uma escala (além de, além disso, aliás, os operadores
argumentativos
a propósito, além do mais, até, até mesmo, inclusive, nem mesmo, etc.).
É certo que, no uso da língua, vários tipos de operadores ocorrem em concomitân-
cia para indicar a orientação argumentativa assumida pelos textos. Assim, ainda que
apresentemos em separado esses operadores, nossas análises argumentativas procu-
ram juntá-los para que possa ser observada a orientação argumentativa do texto.
Vejamos, neste fragmento inicial de um texto a respeito da utopia na luta pela terra
e pela igualdade social, como os argumentos vão sendo somados, formando classes ar-
gumentativas, e colocados em escalas, de modo a orientar o discurso para a definição
da utopia com a qual o autor trabalhará:

O termo utopia tem vários significados e aplicações. Para a maioria das pessoas,
como diz R. Berthold, no Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, a utopia é
“não só aquilo que nunca foi realizado em lugar algum, mas aquilo que não o
poderia ser, ou, pelo menos, aquilo que não poderia sê-lo integralmente”, isto
é, algo irrealizável (BRITO, 2009, p. 5).

Primeiramente, embora não seja esse o foco de nosso trabalho, observemos que
o autor traz uma citação que funciona, aqui, como argumento de autoridade. Nessa
citação, a partir da qual o autor da matéria continua o desenvolvimento de seu texto,
podemos observar que o termo utopia vai sendo definido por um acréscimo de infor-
mações: não só o que nunca foi realizado, mas o que nunca poderia ser. Com essas
marcas linguísticas, realiza-se, discursivamente, uma soma de argumentos que vão de-
finindo a utopia. Temos aqui uma classe argumentativa na qual o segundo argumento
aparece marcado com mais força, porque está colocado posteriormente ao conjunto:
não só... mas. Ou seja, nessa escala argumentativa, em que há uma soma de argumen-
tos, o fato de a utopia consistir naquilo que nunca poderia ser aparece mais forte do
que o que nunca foi realizado.
Na continuidade do texto, essa classe argumentativa ganha ainda outro argumento
- aquilo que não poderia sê-lo integralmente -, marcado agora com o operador pelo
menos, que, segundo Koch (1998), deixa subentendida uma escala com argumen-
tos mais fortes. Assim, a presença desse operador leva o leitor a subentender que o
fato de não poder ser realizado integramente é o mínimo que pode ocorrer dentro
daquela perspectiva na qual se compreende a utopia, que haveria outros fatores envol-
vidos naquela compreensão. O item pelo menos seria responsável por assinalar, então,
o argumento mais fraco em uma escala e também por indicar que haveria ali outros
argumentos mais fortes que poderiam ser subentendidos.
Por fim, o texto apresenta um item que funciona de modo a resumir um posi-

87
A variação cionamento do locutor: o isto é, após o qual se acrescenta algo irrealizável. Esse
linguística e o texto
na sala de aula argumento, que já está fora da citação do dicionário, mas refere-se a ela, marca o posi-
cionamento que prevalece na orientação argumentativa assumida pelo locutor e será a
partir dele que se deverá observar o futuro discursivo do texto.
Outros elementos responsáveis e muito utilizados para marcar o elemento mais
forte nas escalas argumentativa são o até e o inclusive. Vejamos:

Ele é um ótimo marido e é muito dedicado à família. Gosta até de acompanhar


a esposa nas demoradas idas ao supermercado.

Ele é um ótimo marido e é muito dedicado à família. Gosta, inclusive, de acom-


panhar a esposa nas demoradas idas ao supermercado.

Nesses enunciados, para se falar a respeito dos atributos de um determinado sujei-


to, assumindo uma postura de elogio com relação à pessoa, são elencados três argu-
mentos que formam uma classe argumentativa:
a) Ser um ótimo marido;
b) Ser muito dedicado à família;
c) Gostar de acompanhar a esposa nas demoradas idas ao supermercado.

Pela disposição que esses argumentos assumem na constituição daqueles enuncia-


dos, percebemos que, para argumentar em favor de alguém, incide uma maior força
sobre o fato de esse sujeito gostar de participar das demoradas idas ao supermercado
com a esposa. Inseridos pelos operadores até e inclusive, esse argumento se torna, na
orientação argumentativa do texto - linguisticamente construída e independente dos
seus valores de verdade - o mais significativo atributo daquele “bom marido dedicado
à família”. Notemos, todavia, que, embora o funcionamento desses dois operadores
seja parecido, visto que ambos têm essa função de marcar o argumento mais forte,
parece ser possível obter efeitos de sentidos um pouco diferenciados: com o até, o
fato de ir ao supermercado parece ser considerado como parte daqueles atributos do
“bom esposo”; com o inclusive, essa mesma atitude parece não fazer parte daquelas
“atribuições”. E então, poderíamos dizer que, neste caso específico, encabeçado com o
inclusive, a força argumentativa recai com maior intensidade sobre aquele argumento.
As escalas argumentativas também podem ser orientadas em sentido negativo.
Para tanto, segundo Koch (1998), o operador utilizado é o nem mesmo. Considerando
o exemplo anterior, se quiséssemos argumentar desfavoravelmente sobre o mesmo
sujeito e, assim, construir uma figura negativa dele, com os mesmos argumentos que
foram utilizados para construir aquela figura anteriormente positiva, poderíamos dis-
por da seguinte maneira (entre outras) os argumentos, o que faria incidir sobre o argu-

88
mento encabeçado por nem mesmo a maior força argumentativa no sentido negativo: A argumentação
marcada na língua:
os operadores
Ele não é um bom marido. Não se dedica à família e nem mesmo gosta de acom- argumentativos
panhar a esposa nas compras do supermercado.

Dessa forma, é relevante compreender que essas noções de classe e de escala argu-
mentativa nos permitem dispor linearmente os argumentos de acordo com a força que
queremos e/ou devemos imprimir a cada um deles para cumprir um propósito argu-
mentativo2. Nesse sentido, os operadores nos auxiliam na sinalização das orientações
argumentativas assumidas pelos textos, ou seja, “nos permitem marcar os argumentos
que consideramos mais fortes em relação à determinada conclusão de acordo com o
contexto do enunciado” (CABRAL, 2010, p. 56).

2.2 MAIS ALGUNS TIPOS DE OPERADORES E SEU FUNCIONAMENTO


NAS RELAÇÕES ARGUMENTATIVAS
Há, na língua, muitas outras relações argumentativas que não, necessariamente,
apresentam-se marcadas linearmente em escalas, como as que vimos até aqui. Ou seja:
apesar de todo texto somar argumentos em favor de uma conclusão, direcionando os
enunciados para um futuro discursivo (o que caracteriza, de certa forma, uma classe
e/ou uma escala argumentativa), há outras relações que são instauradas, também por
meio de operadores, para que ele chegue eficazmente a esse propósito, levando o
interlocutor a aderir ao posicionamento ali defendido.
Nesse sentido, observemos o texto abaixo, que comenta o desejo de realizações
dos jovens adultos brasileiros, no qual as relações de comparação tornam-se bastan-
te significativas para construir o direcionamento argumentativo:

Nada menos que 93% dos brasileiros dessa faixa etária [25 aos 34 anos] acham
que ainda têm muito a crescer, tanto no plano funcional quanto no emocio-
nal [...]. Além disso, para esses jovens adultos, ter sucesso profissional e um
emprego que os faça felizes é mais importante do que ganhar muito dinheiro
[...]. Ser um parceiro carinhoso vale mais do que ter uma família. Ou seja, para
esse pessoal, qualidade vem na frente de quantidade (MARINHO, 2009, p. 78.).

Nesse texto, a orientação argumentativa que sinaliza a busca da qualidade antes

2 Cabral (2010) faz um apontamento importante a respeito da marcação dos argumentos em


escalas. A autora salienta que muitas vezes, especialmente em textos publicitários, é uma estraté-
gia eficiente o fato de não deixar linguisticamente marcados os argumentos, hierarquizando-os
em escalas, pois assim não ficaria imposta ao leitor uma ordem de valores, pois ele pode não
concordar com aquela ordem, o que enfraqueceria a força argumentativa do texto.

89
A variação da quantidade no tocante às relações pessoais e profissionais dos jovens é construída
linguística e o texto
na sala de aula principalmente pela utilização de comparações entre os valores compartilhados pelo
grupo.
Ao elencar os argumentos que justificam a opção do jovem adulto pela qualidade, o
locutor insere-os no texto por meio de operadores como: tanto... quanto, mais... que,
mais... do que, argumentando a partir das comparações. Dessa forma, no plano da
língua, são colocados em situação de igualdade o crescimento do/no plano funcional
e profissional, pela comparação inserida pelo tanto... quanto, o que sinaliza a vontade
que o jovem tem de realizar-se em todas as áreas de sua vida, não apenas em alguma
delas. Essa realização, porém, já é fato iniciado na vida daqueles jovens adultos, con-
clusão que se nos mostra por meio do operador ainda, responsável por inserir no
discurso um conteúdo pressuposto: se eles ainda têm muito a crescer, significa que
um pouco, pelo menos, já foi feito.
Permanecendo nessa mesma orientação, e inseridos pelo operador que soma os
argumentos (além disso), ganham destaque os fatos de ter sucesso profissional e um
emprego que os faça felizes e ser um parceiro carinhoso. Esse realce é obtido pela
utilização do operador mais... que, que linguisticamente apresenta esses argumentos
como superiores e mais importantes do que ganhar dinheiro e ter uma família, res-
pectivamente.
A propósito, essa orientação argumentativa observável nas comparações começa a
ser construída logo no início do texto, quando o porcentual de jovens que buscam tal
qualidade é inserido por um operador que sinaliza para a totalidade dos integrantes
daquele grupo. Faz diferença dizer 93% dos brasileiros ou dizer nada menos que 93%
dos brasileiros. Dessa forma, aquele porcentual que, por si, já valeria enquanto prova,
ganha ainda mais força ao vir inserido pelo operador nada menos que.
Esse funcionamento de orientar para a totalidade ou para a negação da tota-
lidade também pode ser expresso pela utilização dos operadores quase e apenas.
Utilizando os dados do enunciado anterior, poderíamos dizer que nada menos que
93% dos brasileiros entre 25 e 34 anos corresponde à maioria das pessoas dessa idade.
Ou seja: quase todos os jovens adultos, e essa seria uma outra forma de argumentar
na mesma direção. Se o discurso se quisesse orientado para a negação de uma totali-
dade, o locutor poderia usar o apenas, como: apenas 7%... acreditam que não têm a
crescer funcional e emocionalmente e tampouco creem que os argumentos expressos
naqueles enunciados comparativos sejam relevantes. Porém, talvez assim, nesse caso
específico, a negação da totalidade não tivesse a mesma força, já que, ali, mostrar a
opinião da maioria parece surtir mais efeitos persuasivos.
O mesmo não ocorre no seguinte anúncio publicitário de cremes para tratamento

90
dos cabelos. Nesse tipo de publicidade, orientar para o pouco garante maior eficácia A argumentação
marcada na língua:
persuasiva ao produto anunciado, já que quem busca restauração para os seus cabelos os operadores
argumentativos
não quer, seguramente, ficar esperando tanto tempo para ver resultados:

Restauração total em apenas 4 aplicações.


Novos cremes de Tratamento Nutritivo Dove Theraphy. Restauram danos visí-
veis e invisíveis.
(Revista Moda Moldes, ano 1, n. 4)

Outra relação argumentativa instaurada nos textos é a que se vale de operadores


que introduzem argumentos alternativos, como: ou, ou então, quer... quer, seja...
seja (KOCH, 1998). Esses argumentos alternativos conduzem os enunciados que eles
inserem para conclusões diferentes ou opostas, como podemos ver neste anúncio
publicitário da concessionária Fiat Florença, argumentando em favor da loja:

Fonte: (Jornal Gazeta do Povo. Encarte Viver Bem, 12 nov. 2006)

Nesse texto, a orientação argumentativa sinaliza para a necessidade de se fazer uma


revisão de férias no veículo naquela concessionária, já que essa atitude provavelmente
evitaria que a pessoa ficasse parada na estrada por eventuais problemas no veículo. En-
tretanto, o argumento inserido pelo ou marca uma possibilidade, que soa cômica e até
“irônica”, de não se fazer a revisão: o usuário pode levar o anúncio, que contém o jogo
de diretas, para passar o tempo até que o eventual problema seja solucionado. Assim,
esse outro argumento direciona a conclusão no sentido de que, provavelmente, po-
dem acontecer problemas se a revisão não for realizada, o que vai atrapalhar a viagem.
A esses argumentos que todos nós vamos utilizando ao longo de nossos textos,
muitas vezes, são encadeadas justificativas ou explicações que funcionam como uma

91
A variação maneira de reafirmar nossos posicionamentos e assegurar maior eficácia a nosso dis-
linguística e o texto
na sala de aula curso e à orientação argumentativa que ele está assumindo. Operadores como porque,
pois e já que são alguns dos responsáveis por introduzir no discurso um ato de
justificativa ou explicação com relação ao que foi dito anteriormente.
Ao apresentar as razões e os motivos relacionados aos enunciados anteriores, o
locutor ultrapassa a relação lógica de causa e consequência entre duas proposições,
pois as explicações e justificativas que damos a nossos interlocutores nem sempre
são lógicas: elas podem ser, pelo contrário, altamente subjetivas, como no caso deste
conhecido verso de Gonzaguinha:

Espere por mim, morena. Espere que eu chego já.

Ora, o fato de chegar já não é uma consequência lógica decorrente do esperar,


mas é uma razão que o locutor escolhe como válida para justificar o pedido da espera.
Dessa forma, os argumentos apresentados para explicar ou justificar são, portanto,
posicionamentos pessoais, e nem sempre configuram uma “transparente” relação de
causa e consequência.
Fato semelhante ocorre no relato abaixo, ouvido em uma delegacia. Nele, os argu-
mentos que são dados como razões para a mulher ter que deixar a casa aparecem inse-
ridos por um operador de explicação ou justificativa e constituem, também, elementos
bastante subjetivos:

Ele falou que eu tenho que sair de casa, porque não dá mais, porque não dá
certo e que ele ainda vai acabar fazendo besteira.

Ao encadear esses motivos como argumentos para a mulher ter que sair de casa,
cria-se, nessa relação de justificativas, uma escala com os argumentos: não dá mais,
não dá certo e ele vai acabar fazendo besteira. Nessa escala, o argumento decisivo
e mais forte fica marcado pelo operador ainda, que, como já abordamos, tem a
função de marcar um conteúdo pressuposto no discurso - se o homem ainda vai
fazer, é porque não o fez até aquele momento. E então podemos ler, nesse relato, a
possibilidade de o homem vir a fazer algo mais sério com a mulher, uma vez que esse
futuro discursivo, apontado pelo argumento mais forte, aparece linguisticamente
marcado por meio dos operadores explicativos que inserem no enunciado as razões
subjetivas que legitimariam aquele posicionamento. Esse movimento realizado na
linguagem procura levar o interlocutor a aceitar a validade daquela argumentação
e, inclusive, a pensar em uma provável conclusão para o enunciado: é preciso sair
de casa.
Por vezes, essas conclusões são marcadas no discurso por meio de operadores
92
A argumentação
como logo, portanto, pois, então, por conseguinte, em decorrência de, assim, con- marcada na língua:
os operadores
sequentemente, etc., responsáveis pela introdução de uma conclusão relativa a um argumentativos
ou vários enunciados anteriores, de modo a fechar um determinado movimento argu-
mentativo. Se continuássemos a sequência daquele enunciado anterior, poderíamos
concatenar-lhe uma conclusão (por exemplo) da seguinte forma:

Ele falou que eu tenho que sair de casa, porque não dá mais, porque não dá
certo e que ele ainda vai acabar fazendo besteira. Então eu preciso mesmo
sair.

Nesse caso, ao utilizarmos o mecanismo então (ou algum outro como portanto,
desse jeito, etc.) formamos como que uma espécie de síntese para o que vem sendo
abordado no enunciado, explicitando para ele uma conclusão, que manifesta sempre
um posicionamento do locutor.
Assim, torna-se possível, como salienta Guimarães (2001), observar os operadores
conclusivos apropriando-nos dos ensinamentos das gramáticas tradicionais de que as
conjunções conclusivas estabelecem uma relação entre orações, na qual a segunda
oração é conclusão da primeira, mas adaptando isso para o ponto de vista da Se-
mântica Argumentativa. Segundo o autor, essa modificação corresponde a considerar
que a relação de orientação argumentativa entre um conteúdo e outro é uma relação
construída na elaboração do discurso, independentemente das condições de verda-
de, ou seja, quando apresentamos um conteúdo como conclusão de outro, é na lin-
guagem que fazemos isso; são, portanto, construções de linguagem que expressam
posicionamento(s).
Observemos mais uma manifestação dessas relações conclusivas na superfície
textual. Para tanto, tomemos o seguinte texto, que realiza, por meio de uma relação
conclusiva marcada com o operador portanto, uma identificação do emprego com a
própria identidade humana:

Embora a história nos lembre que o trabalho é uma pena a ser cumprida, ao
longo dos anos o homem passou a ter uma relação muito estreita com a ativida-
de que lhe garante o pão de cada dia. Trabalhar não só dignifica, mas permite
que as pessoas se expressem através da profissão: o homem é o que ele faz.
Perder o emprego - e, portanto, a própria identidade - é tido como uma das ex-
periências mais traumáticas e estressantes que uma pessoa pode experimentar
(ALMEIDA, 2009).

Nesse texto, retoma-se uma perspectiva do trabalho enquanto elemento essencial


para a vida humana, exaltando para essa atividade o fato de ela tornar o homem digno e,
além disso, o de permitir que as pessoas expressem sua essência por meio da profissão:

93
A variação Trabalhar não só dignifica, mas permite que as pessoas se expressem através da profissão.
linguística e o texto
na sala de aula Depois de realizar essa definição do trabalho, a orientação argumentativa assumida
pelo texto explicita a relação entre trabalho e identidade, colocando essa conclusão,
inclusive, em lugar de ênfase, com pontuação diferenciada:

Perder o emprego - e, portanto, a própria identidade - é tido como uma das ex-
periências mais traumáticas e estressantes que uma pessoa pode experimentar.

Desse modo, é por uma marca na língua, no caso o operador conclusivo, que se
constrói uma intrínseca relação entre o emprego e a identidade nesse discurso. E essa
relação é construção de linguagem que se dá independentemente das condições de
verdade, como afirmara Guimarães (2001).
Há ainda uma outra relação argumentativa bastante frequente e relevante para nos-
so estudo: são as que marcam a oposição no discurso, instaurada por operadores que
contrapõem argumentos orientados para conclusões contrárias, ou também chamados
operadores de contrajunção, e que pertencem à área semântica da oposição. Essa área
semântica agrupa o que tradicionalmente se chama de conjunções adversativas (mas,
porém, contudo, todavia, entretanto, no entanto, etc.) e concessivas (embora, ainda
que, mesmo que, apesar de, etc.).
Tais operadores argumentativos aparecem no discurso para imprimir-lhe outra
orientação argumentativa, visto que os conteúdos introduzidos por esses operadores
necessariamente se opõem a elementos semânticos explícitos ou implícitos em outros
enunciados. Se o discurso está prosseguindo em uma determinada orientação argu-
mentativa, ao utilizar um desses operadores, o locutor (re)direciona seu discurso para
uma conclusão contrária àquela esperada pelo interlocutor.
Tanto os operadores do grupo representado pelo mas quanto os representados pelo
embora têm essa mesma finalidade de relacionar elementos semânticos de orientações
argumentativas contrárias. Entretanto, a estratégia discursiva instaurada pela utilização
de um ou outro é diferente, conforme foi demonstrado por Guimarães (2001). Como
explica o autor, o mas é o elemento que cria a surpresa, pois primeiro faz vir à mente
do interlocutor uma determinada conclusão para, em seguida, introduzir o argumento
decisivo que vai refutar a ideia inicial. Desse modo, a orientação argumentativa que
permanece é a do segmento introduzido pelo mas. Com a utilização do articulador em-
bora, temos a estratégia da antecipação: o locutor anuncia e antecipa que a conclusão
autorizada pelo argumento introduzido pelo operador, apesar de válida, será refutada;
o argumento decisivo é aquele que não vem introduzido pelo operador e é esta a orien-
tação argumentativa que prevalece. Tomemos por exemplo estes enunciados:

94
O desconto que você está me oferecendo parece bom, mas não vou ficar com A argumentação
esse produto. marcada na língua:
os operadores
argumentativos
Embora o desconto que você esteja me oferecendo pareça bom, não vou ficar
com este produto.

Há oposições semânticas marcadas em ambos os enunciados, mas a estratégia ar-


gumentativa utilizada em cada um deles é diferente. No primeiro, a possibilidade de
ficar com o produto é inicialmente mantida para depois ser refutada; já no segundo, a
refutação dessa possibilidade ocorre logo na apresentação do enunciado.
Um fato que é necessário notar é que esses operadores que marcam as oposições
semânticas não opõem necessariamente segmentos de discurso (conteúdos) que se-
jam contrários um ao outro, mas sim conclusões contrárias às quais chegamos por
meio de cada um dos segmentos. Pensemos em um enunciado bastante corriqueiro:

Está tudo pronto para nosso passeio, mas o tempo está pra chuva.

Em um enunciado (clássico) como esse, não há uma oposição entre os conteúdos


A (estar tudo pronto para o passeio) e B (o tempo estar para chuva). O que existe é
uma oposição entre as conclusões para as quais esses conteúdos apontam. Assim, a
conclusão sugerida pelo primeiro segmento (A) é a de que devemos sair, ao passo que
a conclusão sinalizada pelo segundo segmento (B) é a de que não devemos sair. Essa
última é a conclusão que prevalece ao utilizarmos esse conjunto A, mas B. Ou seja, no
enunciado anterior, a utilização do mas argumenta no sentido de que não devemos
sair. Poderíamos, inclusive, acrescentar-lhe explicitamente essa conclusão:

Está tudo pronto para nosso passeio, mas o tempo está pra chuva. Assim, acho
que não devemos sair.

Podemos ainda produzir, com esses mesmos conteúdos A e B, um enunciado que


aponte para uma outra direção argumentativa. Se afirmarmos que o tempo está pra
chuva, mas está tudo pronto para nosso passeio, teremos uma argumentação em
favor da conclusão apontada pelo segmento está tudo pronto para nosso passeio, ou
seja: a de que devemos ir. Assim, podemos dizer que, no discurso, prevalece a orienta-
ção argumentativa da conclusão apontada pelo segmento que aparece logo depois de
mas. Como esclarece Cabral (2010), o mas marca a oposição entre duas conclusões
possíveis (neste caso, sair e não sair) e argumenta em favor daquela que, na construção
do período, encontra-se à direita do mas.
Essa particularidade de uso do mas implica uma outra, conforme nos aponta Ca-
bral (2010, p. 18): “há certas restrições impostas pela língua para o uso de mas, isto

95
A variação é, depois de mas não podemos dizer qualquer coisa, ou corremos o risco de tornar
linguística e o texto
na sala de aula nosso discurso gramaticalmente incoerente”. Desse modo, não poderíamos dizer:

Está tudo pronto para nosso passeio, mas o tempo está pra chuva. Acho que
devemos ir.

Se assim ocorresse, nosso ouvinte provavelmente nos questionaria a respeito de


nossa opinião e da coerência de nosso enunciado.
Vejamos ainda um último exemplo dessa relação de contraposição de ideias neste
fragmento de uma reportagem sobre a memória humana:

A memória ajuda a definir quem somos. Na verdade, nada é mais essencial para
a identidade de uma pessoa do que o conjunto de experiências armazenadas
em sua mente. E a facilidade com que ela acessa esse arquivo é vital para que
se possa interpretar o que está a sua volta e tomar decisões. Cada vez que a me-
mória decai, e conforme a idade isso ocorre em maior ou menor grau, perde-se
um pouco da interação com o mundo. Mas a ciência vem avançando no conhe-
cimento dos mecanismos da memória e de como fazer para preservá-la
(SCHELP, 2010, p. 79).

Nesse texto, primeiramente são listados conteúdos que situam a memória como
algo importante para a vida humana, construindo uma classe argumentativa para de-
fender a necessidade de se manter a memória em atividade o máximo de tempo como
fonte de energia vital. Em seguida, o locutor apresenta um conteúdo A que constata
que cada vez que a memória decai [...], perde-se um pouco da interação com o mun-
do. Se nada mais fosse articulado a esse fragmento, a orientação argumentativa do
texto tenderia a seguir esse posicionamento e o futuro discursivo que esperaríamos,
enquanto leitores, poderia ser o de que o texto trataria a respeito de como as pessoas
perdem a memória com o passar do tempo. Entretanto, aparece um outro conteúdo
B inserido pelo operador mas: Mas a ciência vem avançando no conhecimento dos
mecanismos da memória e de como fazer para preservá-la. Com isso, modifica-se
a orientação argumentativa do texto e o que passamos a esperar dele é que trate a
respeito de conteúdos relacionados a esse último tópico, inserido pelo operador mas.
Dessa forma, podemos dizer que a orientação argumentativa que prevalece é aquela
evocada pelo segmento inserido pelo mas, ainda que inicialmente seja dado crédito à
validade do argumento anterior.
Poderíamos pensar assim tal relação argumentativa: com o primeiro segmento (A)
seríamos levados a concluir que não há o que fazer para melhorar os aspectos relacio-
nados à memória e ao que ela representa para o homem. Porém, ao inserir um novo
segmento (B), por meio do operador mas, concluímos que é possível melhorar aque-

96
les mesmos aspectos relativos à memória e à interação que ela nos proporciona com o A argumentação
marcada na língua:
mundo, conclusão que se firma e que será desenvolvida e defendida ao longo do texto. os operadores
argumentativos
Dessa forma, compreender a orientação argumentativa assumida pelos enunciados
auxilia muito nos processos de leitura e de escrita, uma vez que os sentidos vão sendo
construídos em função do direcionamento que as estratégias argumentativas, marca-
das na língua, conferem ao texto.
Nesse trajeto que aqui fizemos para pensar a argumentação, é certo que não foi
possível abordar todos os tipos de operadores e de relações argumentativas; haveria
ainda outros caminhos a percorrer. No entanto, outra certeza que fica é a de que não
podemos perder de vista a relevância desses recursos linguísticos para as situações de
uso da língua, pois eles nos permitem sinalizar, gradativamente, a orientação argumen-
tativa assumida pelo discurso nas interações que se dão por meio da linguagem.

3 UMA TENTATIVA DE CONCLUIR ESSAS QUESTÕES...


Como abordamos ao longo desse texto, reiteramos que, quando elaboramos nos-
sos discursos, podemos realçar, por meio de estratégias argumentativas, determinados
aspectos em detrimento de outros e atribuir valores de verdade àquilo que parecer
mais conveniente à situação específica de uso da linguagem. Para fazer isso, deixamos
em nossos enunciados algumas marcas linguísticas, como os operadores argumen-
tativos, que indicam ao interlocutor a conclusão para onde esse discurso deve ser
encaminhado.
Assim, utilizar correta e coerentemente os operadores assegura ao texto uma maior
eficácia persuasiva, na medida em que tal uso possibilita a estruturação argumentativa,
a progressão e construção de sentidos no texto. No tocante à leitura, ao nos deparar-
mos com tais marcas, podemos compreender o trabalho argumentativo ali construído
para elaborar sentidos para aquele texto. Portanto, pensar a respeito dos mecanismos
que marcam a argumentação nos auxilia na construção de sentidos nos processo de
leitura e de escrita. Sentidos que são indicados segundo a direção que a argumentação
vai conferindo à estruturação textual.
Enfim, é por fatores como esses que o usuário da língua deve ser conscientizado a
respeito de tais marcas e refletir sobre elas, de modo que se possa ir além de aspectos
puramente ortográficos ou gramaticais, e pensá-las em termos de estruturas que esta-
belecem relações argumentativas entre os enunciados nas mais diversas manifestações
de uso da língua na interação.

97
A variação
linguística e o texto
na sala de aula
Referências

ALMEIDA, Cristina. Escrever pode ajudar a encontrar um novo emprego. São


Paulo: Abril Cultural, 2009. Disponível em: <http://vocesa.abril.com.br/informado/
aberto/ar_397257.shtml>. Acesso em: 30 jun. 2009.

BRITO, Luiz A. de. A utopia em Canudos. Revista Missões, [S.l.], p. 5, dez. 2009.

CABRAL, Ana Lúcia Tinoco. A força das palavras: dizer e argumentar. São Paulo:
Contexto, 2010.

CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo.


2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

DUCROT, Oswald. As escalas argumentativas. In: DUCROT, O.; BARBAULT, M. C.;


DEPRESLE, J. Provar e dizer. São Paulo: Global, 1981.

GUIMARÃES, Eduardo. Os limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo


da linguagem. 3. ed. Campinas, SP: Pontes, 2005.

______. Texto e argumentação: um estudo de conjunções do português. 2. ed.


Campinas, SP: Pontes, 2001.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. A inter-ação pela linguagem. 4. ed. São Paulo:
Contexto, 1998.

______. Argumentação e linguagem. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1999.

______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.

MARINHO, Luiz Alberto. Todos querem ter 25. Revista Vida Simples, [S.l.], n. 87, p.
87, dez. 2009.

SCHELP, Diogo. A conquista da memória. Revista Veja, 13 jan. 2010, p. 79.

VOGT, C. Linguagem, pragmática e ideologia. 2. ed. aum. São Paulo: Hucitec,


1989.

98
A argumentação
marcada na língua:
os operadores
Proposta de Atividade argumentativos

1) Nos fragmentos abaixo, suprima o ponto final e estabeleça entre os enunciados o tipo de re-
lação que lhe parecer compatível, usando, para isso, os operadores. Informe ainda o tipo de
relação argumentativa que você estabeleceu entre os enunciados. Talvez seja necessário fazer
adaptações gramaticais:
a) A maneira de construir a argumentação nas produções textuais escritas é um fator de suma
importância. O texto atinge seu objetivo principal de persuadir o leitor. O texto exerce
influência sobre aquele que o lê.
b) Criançada, vamos ajudar no combate à dengue! Procure no quintal se há alguma vasilha,
pneus velhos ou garrafas com resto de água. Jogue-os fora. Sem água parada, o mosquito
vai embora. Ele vai tarde!
Não à Dengue. Tenha esse compromisso diário.
(Adaptado de: O Diário do Norte do Paraná, 28/2/2010, C9)
2) Identifique, nos textos abaixo, os operadores argumentativos. Em seguida, comente sobre o
funcionamento argumentativo desses operadores, ou seja, diga como eles atuam na construção
de sentido desses textos, que argumentos eles relacionam, para que conclusões eles direcio-
nam os enunciados.
Texto 1:
Crimes digitais
Os Crimes Digitais, também chamados de Crimes Cibernéticos ou Crimes de
Alta Tecnologia, são as condutas criminosas cometidas com o uso das tecnologias
de informação e comunicação, e também os crimes nos quais o objeto da ação
criminosa é o próprio sistema informático.
Crimes contra a honra, como calúnia, injúria e difamação são crimes há muito
previstos pelo Código Penal, mas que, quando cometidos por meio da Internet,
causam danos muito maiores. Por outro lado, junto com o surgimento dos compu-
tadores e das redes, surgiram os crimes específicos desse ambiente, como a difusão
de vírus de computadores e o acesso a sistemas informáticos sem autorização.
Esse tipo de delito pode ser cometido através das fronteiras nacionais, e ainda
são de difícil identificação dos autores. Assim, o combate aos crimes digitais de-
manda alterações nas legislações penais e acordos internacionais, a fim de dotar as
autoridades policiais e judiciais de instrumentos adequados à velocidade e comple-
xidade técnica dos crimes de alta tecnologia.

Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/fiquePorDentro/temasanteriores/


crimes_virtuais>. Acesso em: 11 ago. 2009.

Texto 2:
“Quando clientes, fornecedores, funcionários e parceiros trabalham juntos, os
resultados aparecem. Inclusive na forma de prêmios.”
(Propaganda do Banco Real. Exame, 21/12/2005)

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A variação
linguística e o texto
na sala de aula
Anotações

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