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Universidade Estadual de

Santa Cruz

Reitora
Prof.ª Adélia Maria Carvalho de Melo Pinheiro

Vice-reitor
Prof. Evandro Sena Freire

Pró-reitor de Graduação
Prof. Elias Lins Guimarães

Diretor do Departamento de Letras e Artes


Prof. Isaías Francisco de Carvalho

Ministério da
Educação
Letras | Módulo 5 | Volume 7 | Semântica Parte II

1ª edição | Dezembro de 2015 | exemplares


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Projeto Gráfico e Diagramação


Diêgo Raniery Pereira dos Santos

Capa
Diêgo Raniery Pereira dos Santos

Impressão e acabamento
JM Gráfica e Editora

Ficha Catalográfica
S237 Santos, Raildes Pereira.
Semântica: parte 2 / Raildes Pereira Santos;
revisão Roberto Santos de Oliveira.– Ilhéus, BA:
Editus, 2015.
213 p. : il. (Letras – módulo 5 – volume 7)

Inclui referências.

1. Semântica. 2. Língua portuguesa – Semân-


tica. 3. Linguística. I. Titulo.

CDD 412
EAD . UAB|UESC
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Coordenação Adjunta UAB – UESC


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Letras Vernáculas (EaD)
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Elaboração de Conteúdo
Prof.ª Raildes Pereira Santos

Instrucional Design
Prof.ª Ma. Marileide dos Santos de Oliveira
Prof.ª Dr.ª Cláudia Celeste Lima Costa Menezes

Revisão
Prof. Me. Roberto Santos de Carvalho

Coordenação de Design
Prof. Esp. Diêgo Raniery Pereira dos Santos
DISCIPLINA

SEMÂNTICA

EMENTA
Significado e construção de sentido no português. Semântica em
diferentes teorias linguísticas. Semântica e outros níveis linguísticos.
A AUTORA
Professora Ma. Raildes Pereira Santos
Graduada em Letras e Direito, respectivamente, pela FESPI
- Federação das Escolas Superiores de Itabuna e UESC -
Universidade Estadual de Santa Cruz. Mestrado em Direito
pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialização
em Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Maceió. Atualmente, é Professora Assistente de Língua
Portuguesa do Departamento de Letras e Artes da UESC e
Professora da Faculdade de Tecnologia e Ciências de Itabuna.

e-mail: <raildes_pereira@uol.com.br>
APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA

A busca de significado é inerente à natureza humana. Em


nosso cotidiano, somos, constantemente, instados a dar significados
a palavras, sentenças, intenções, enunciados, discursos, textos,
acontecimentos etc. Se o significado é algo tão inevitável, é necessário,
então, que haja uma ciência que explique por que o homem é capaz de
compreender uma infinidade de sentenças em situações recorrentes,
ou mesmo, absolutamente, novas. Tradicionalmente, a Semântica
se define como ciência do significado das expressões linguísticas da
língua natural. E o que vem a ser significado? Essa pergunta suscitou
um amplo debate entre filósofos, lógicos, linguistas, dentre outros. As
respostas são tão variadas, quanto as teorias que tentaram explicá-lo.
À primeira vista, a Semântica é uma ciência de fronteiras fluidas,
pouco demarcadas. Podemos dizer que muitos desafios lhes são
postos. Inicialmente, focalizamos duas questões centrais: a primeira
diz respeito à delimitação do seu objeto de estudo, porquanto há
uma diversidade de manifestações linguísticas e extralinguísticas
suscetíveis de significações e os teóricos discutem se esse ramo da
Linguística deverá abarcá-los; a segunda consiste numa indefinição
terminológica do seu objeto de estudo. A Semântica se ocupa do
estudo do sentido, significado ou da significação, ou esses termos são
utilizados indistintamente?
Uma peculiaridade da Semântica é que, ante a impossibilidade de
dar todas as respostas que lhe são apresentadas, para descrever os fatos
linguísticos semânticos, ela, inegavelmente, deverá construir alianças
e aproximações teóricas com outras ciências que têm o significado
como objeto de estudo, a exemplo, do que ocorre com a sua filiação
à Pragmática, ciência que se ocupa, especialmente, do uso linguístico
e da intenção do enunciador em contextos discursivos. Portanto sua
natureza é, indiscutivelmente, multifacetária e interdisciplinar.
Desse amálgama, surgem as diversas abordagens como:
a Semântica Formal, a Semântica Estruturalista, a Semântica da
Enunciação, a Teoria dos Atos de Fala; a Semântica Argumentativa, a
Semântica Lexical, dentre outras. Isso implica, necessariamente, dizer
que a Semântica transborda seus próprios limites teóricos.
Por outro lado, ante o seu caráter interdisciplinar, essa ciência
do significado dialoga com outros saberes, especialmente, com a
Psicologia, a Filosofia da Linguagem e com a Lógica, além de outros
ramos da ciência, para explicar certos meandros do processo de
significação.
Um curso de Semântica deverá, não só aguçar a sua curiosidade
acerca de como os significados são produzidos, em contextos tão
variados, mas também deverá, em princípio, fornecer um instrumental
teórico-metodológico para subsidiar o futuro professor de Língua
Portuguesa no trato da produção do sentido em sala de aula. Por isso,
a disciplina buscou privilegiar diversos gêneros como literário, carta,
jornalístico, propagandístico, tirinha, charge, piada, anedota, crônica
e outras formas discursivas, numa tentativa de realçar a ideia de
que a significação ocorre em contextos sociocomunicativos bastante
variados. Em princípio, salientamos que não é tarefa fácil, mas, com
certeza, ao mesmo tempo é muito instigante e desafiadora.
A disciplina se propõe a mostrar as principais linhas teóricas do
tratamento do significado. O curso está estruturado em quatro unidades
de estudo. Na primeira, serão discutidos os conceitos básicos para o
estudo da Semântica e a sua filiação com a Pragmática; na segunda
e terceira, serão apresentadas algumas das principais abordagens da
Semântica e, na quarta, a ênfase recairá sobre a Semântica Lexical.
Dessa forma, convidamos você a percorrer essa trajetória em
busca de explicações teóricas, que possam nos ajudar a sermos
intérpretes mais argutos, para ampliarmos o nosso horizonte de
expectativa diante das possibilidades de significação de textos e do
mundo e melhoramos a nossa atuação enquanto profissionais que têm
a linguagem como foco de interesse.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 9

AULA 2 SEMÂNTICA ESTRUTURAL 19



1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 21
2 VALOR E SIGNIFICAÇÃO.................................................................................................. 27
3 TEORIA DOS CAMPOS...................................................................................................... 29
4 ATIVIDADES.......................................................................................................................... 32
5 RESUMINDO......................................................................................................................... 32
6 REFERÊNCIAS........................................................................................................................ 33

AULA 3 SEMÂNTICA DA ENUNCIAÇÃO 35



1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 37
2 ENUNCIAÇÃO E INSTÂNCIAS ENUNCIATIVAS............................................................. 38
3 AS MARCAS LINGUÍSTICAS DA ENUNCIAÇÃO............................................................ 45
3.1 A pessoa..................................................................................................................................... 45
3.2 O tempo..................................................................................................................................... 47
3. 3 O espaço.................................................................................................................................. 48
4 ATIVIDADES.......................................................................................................................... 49
5 RESUMINDO......................................................................................................................... 51
6 REFERÊNCIAS........................................................................................................................ 52

UNIDADE 3 55

AULA 1 ATOS DE FALA 57



1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 59
2 TIPOS DE ATOS DE FALA................................................................................................... 63
3 CONDIÇÕES DE FELICIDADE............................................................................................ 67
4 ATIVIDADES.......................................................................................................................... 69
5 RESUMINDO......................................................................................................................... 72
6 REFERÊNCIAS........................................................................................................................ 73
AULA 2 OS SENTIDOS IMPLÍCITOS 77

1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 79
2 MECANISMOS DE SIGNIFICAÇÃO IMPLÍCITA.............................................................. 85
2.1 Subentendidos............................................................................................................. 87
2.2 Pressupostos................................................................................................................. 90
2.2.1 Marcadores linguísticos de pressuposição....................................................................... 92
2.2.2 Pressuposição e acarretamento......................................................................................... 94
2.3 Implicaturas Conversacionais.................................................................................... 95
3 ATIVIDADES.......................................................................................................................... 97
4 RESUMINDO...................................................................................................................... 101
5 REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 102

AULA 3 SEMÂNTICA ARGUMENTATIVA 105

1 INTRODUÇÃO................................................................................................................... 107
2 AS VÁRIAS POSSIBILIDADES DE APRESENTAÇÃO DO ARGUMENTO.................. 109
3 ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA: A CONSTRUÇÃO DO SENTIDO NO DISCURSO....
115
3.1 Argumentação e retórica..................................................................................................... 118
3.2 Operadores argumentativos. O que são? Como funcionam no discurso?.................. 122
4 ATIVIDADES....................................................................................................................... 130
5 RESUMINDO...................................................................................................................... 134
6 REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 135

UNIDADE 4 139

AULA 1 O TRATAMENTO DO LÉXICO: AS RELAÇÕES DE SENTIDO 141



1 INTRODUÇÃO................................................................................................................... 143
2 LÉXICO, LEXICOLOGIA E LEXIAS................................................................................... 146
3 RELAÇÃO DE SENTIDO: CAMPOS SEMÂNTICOS E CAMPOS LEXICAIS............... 150
4 ATIVIDADES....................................................................................................................... 153
5 RESUMINDO...................................................................................................................... 155
6 REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 156

AULA 2 AMBIGUIDADE E VAGUEZA: EXCESSO DE SIGNIFICAÇÃO E IMPRECI-


SÃO SEMÂNTICA 159

1 INTRODUÇÃO................................................................................................................... 161
2 AMBIGUIDADE E DESAMBIGUIZAÇÃO........................................................................ 162
3 TIPOS DE AMBIGUIDADE................................................................................................ 164
3.1 Ambiguidade lexical............................................................................................... 164
3.1.1 Homonímia............................................................................................................ 166
3.1.2 Polissemia..................................................................................................... 167
3.2 Ambiguidade sintática............................................................................................ 168
3.3 Ambiguidade semântica......................................................................................... 169
3.4 Ambiguidade de escopo........................................................................................ 169
3.5 Ambiguidade decorrente do uso de gerúndio................................................... 170
4 PARONÍMIA....................................................................................................................... 171
5 ATIVIDADES....................................................................................................................... 172
6 RESUMINDO...................................................................................................................... 175
7 REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 176

AULA 3 OS NEXOS SEMÂNTICOS: EQUIVALÊNCIA E OPOSIÇÃO DE SIGNIFICA-


DOS 179

1 INTRODUÇÃO................................................................................................................... 181
2 SINONÍMIA........................................................................................................................ 183
2.1 Sinonímia e paráfrase............................................................................................ 187
3 ANTONÍMIA...................................................................................................................... 188
4 HIPONÍMIA E HIPERONÍMIA.......................................................................................... 192
5 ATIVIDADES....................................................................................................................... 194
6 RESUMINDO...................................................................................................................... 197
7 REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 197

AULA 4 DENOTAÇÃO E CONOTAÇÃO 201

1 INTRODUÇÃO................................................................................................................... 203
2 O SIGNIFICADO DAS PALAVRAS E ALTERAÇÕES SEMÂNTICAS........................... 204
3 SENTIDO INTENSIONAL E SENTIDO EXTENSIONAL................................................. 206
4 ATIVIDADES....................................................................................................................... 207
5 RESUMINDO...................................................................................................................... 210
6 REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 211

unidade
2
aula

SEMÂNTICA ESTRUTURAL

2
Unidade
Objetivos

Ao final dessa aula, você deverá ser capaz de:

• analisar as principais diretrizes teórico-metodológicas


do Estruturalismo;
• identificar as contribuições do Estruturalismo para o
estudo do significado;
• compreender a natureza do signo linguístico na
concepção de Ferdinand de Saussure;
• discutir a importância da teoria dos campos para o
ensino do léxico.

UESC Módulo 5 I Volume 7 19


Semântica - Parte II

20 Letras Vernáculas EAD


1 INTRODUÇÃO

Na aula anterior, você viu que a Semântica Formal estuda o


problema do significado a partir da relação existente entre as expressões
linguísticas e o mundo. Portanto, conhecer o significado de uma sentença
é conhecer as suas condições de verdade.
Nesta aula, você conhecerá como o Estruturalismo contribuiu
para o avanço da Semântica e, especialmente, para o estudo do léxico.

2
Além disso, refletirá sobre o papel do linguista Ferdinand de Saussure

Unidade
para o desenvolvimento da Linguística moderna.
Certamente, você aprendeu muito sobre a contribuição de Saussure
para a autonomia da Linguística enquanto ciência. Vamos analisar agora
quais as principais diretrizes abordadas por esse linguista para o estudo da
linguagem, que culminaram com o surgimento da Semântica Estrutural.
Inicialmente, é importante demarcar os contornos do que veio a se
denominar de Estruturalismo. O crescimento da Linguística, no período
entre 1920 e 1970, ocorreu com a disseminação das ideias de Ferdinand
de Saussure na Europa e Leonard Bloomfield nos Estados Unidos.
Na Europa, a obra que difunde essas ideias é o Curso de Linguística
Geral, publicado em 1916 pelos discípulos de
Ferdinand Saussure - Charles Bally e Albert
Sechehaye. O livro foi elaborado com base nos
registros feitos durante um Curso ministrado
por esse linguista, no período de 1906 a 1911,
na Universidade de Genebra. Inegavelmente,
essa obra constitui um dos pilares da ciência da
linguagem, principalmente, porque serviu para
conferir um estatuto científico à Linguística
e fincar as bases teórico-metodológicas do
Estruturalismo.
Saussure postulava a concepção de uma
ciência mais ampla que se ocupasse em estudar
o signo, a qual denominou Semiologia. No que
concerne aos aspectos semânticos, Saussure Figura 54
Fonte: http://www.fnac.pt/Curso-de-Linguistica-
Geral-Ferdinand-Saussure/a326727

UESC Módulo 5 I Volume 7 21


Semântica - Parte II

(1977) compreende que, sendo a língua um sistema de


signos por meio do qual expressamos ideias, a Semiologia
então, tem um lugar especial em sua teoria, conforme ele
mesmo sublinha em sua obra. Na perspectiva saussuriana,
a língua é vista como um sistema de signos. Dessa forma,
saiba mais
cabe à Linguística explicar o que torna a língua um sistema
Pode-se, então, conceber
uma ciência que estude a especial no conjunto dos fatos semiológicos.
vida dos signos no seio da
vida social; ela faria parte
da Psicologia social e, por Marques (1990, p. 43) destaca as diretrizes
consequinte, da Psicolo-
gia geral; chamá-la-emos propostas por Saussure para o tratamento da linguagem que
de Semiologia (do grego
semeion, ‘signo’). Ela nos
têm influência no estudo semântico-linguístico:
ensinará em que consis-
tem os signos e as leis que
A distinção entre língua ‘langue’ e fala
os regem. Como tal ciên-
cia não existe ainda, não ‘parole’, a conceituação de língua como
se pode dizer o que será; sistema de relações, a definição do plano
ela tem direito, porém, à da língua ‘langue’, a conceituação de língua
existência; seu lugar está
determinado de antemão.
como sistema de relações, a definição do
A Lingüística não é senão plano da língua ‘langue’ como objeto da
uma parte dessa ciência lingüística; as noções de signo lingüístico,
geral; as leis que a Se-
de significante e de significado; os
miologia descobrir serão
aplicáveis à Lingüística e
conceitos de significação e valor, de
esta se achará dessarte forma e substância; as perspectivas
vinculada a um domínio sincrônica e diacrônica do tratamento
bem definido no conjunto
dos fatos da língua; a visão de dois tipos
dos fatos humanos.
(SAUSSURE, Ferdinand de relações lingüísticas complementares,
de. Curso de Lingüística nos planos paradigmático ou associativo e
Geral. São Paulo: Cultrix, sintagmático ou combinatório.
1977, p. 24.).

A teoria Linguística de Saussure sofre nítidas


influências do Positivismo cientificista em voga na época.
Destarte, sua preocupação foi definir o escopo e o objeto de
estudo da Linguística e estabelecer as bases teóricas de suas
concepções acerca da língua, visando conferir uma feição
científica a esse novo ramo do saber. Uma das características
daquela época era a depuração do método, ou seja, separar o
objeto de cada ciência, para definir o seu alcance e escopo.
Saussure procurou definir o objeto da Linguística,
visando conferir-lhe autonomia em relação a outras ciências,
igualmente, interessadas em investigar a linguagem a

22 Letras Vernáculas EAD


exemplo da Psicologia, da Antropologia, da Filologia, da Gramática
normativa etc. Saussure (1977, p. 17) ressalta em sua obra que:

Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme


e heteróclita; a cavaleiro de diferentes domínios
ao mesmo tempo física, fisiológico e psíquica, ela
pertence além disso ao domínio individual e ao
domínio social.

Feito esse corte epistemológico, Saussure (1977) define que o

2
objeto de estudo da Linguística é a langue, isto é, a língua. Esse linguista

Unidade
concebe a língua como sendo social em sua essência e independente do
indivíduo. A língua constitui a parte social da linguagem, exterior ao
indivíduo que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não
existe senão em virtude de contato estabelecido entre os membros da
comunidade. O uso da língua pelo falante constitui a parole, ou seja, a
fala, a qual Saussure (1977, p. 22) caracteriza da seguinte maneira:
]

A fala é ao contrário, um ato individual de vontade


e inteligência, no qual convém distinguir: 1º, as
combinações pelas quais o falante realiza o código
da língua no propósito de exprimir seu pensamento
pessoal; 2º, o mecanismo psico-físico que lhe permite
exteriorizar essas combinações.

Saussure compreende que a língua possui uma natureza


distinta em relação à fala e por isso pode ser estudada separadamente.
Para esse linguista (1977, p. 23), “enquanto a linguagem é heterogênea,
a língua assim delimitada é de natureza homogênea”. Ao fazer a
distinção entre língua e fala, Saussure (1977, p. 22) salientava que
“separava-se ao mesmo tempo o que é social do que é individual; o
que é essencial do que é acessório e mais ou menos acidental.”.
A visão dicotômica do mestre genebrino acerca da relação
língua e fala despertou severas críticas de alguns linguistas, a exemplo
de Possenti (1997, p. 49), que destaca que, na perspectiva estruturalista,
“a língua equivale a um construto teórico necessariamente abstrato,
como tal é considerado homogêneo, não prevê variações no sistema.”.
Ainda de acordo com esse linguista:

UESC Módulo 5 I Volume 7 23


Semântica - Parte II

As teorias pagam seu preço às ideologias


a que se ligam. [..] O estruturalismo
exclui o papel do falante no sistema lin-
guístico, define a língua como meio de
comunicação o que implica que não
há interlocutores, mas emissores e re-
ceptores, codificadores e decodificadores
(POSSENTI, 1997, p. 49).

A concepção que Saussure imprimiu ao signo


linguístico tem sido um ponto de amplas discussões sobre
o significado. Para Saussure (1977, p. 80-81), o signo
linguístico é uma entidade que “une não uma coisa e uma
palavra, mas um conceito e uma imagem acústica.”. Todavia,
antevendo que esses termos poderiam causar imprecisões
terminológicas, propôs a substituição de conceito e imagem
acústica, respectivamente, por significado e significante.
O significante é a parte material do signo; enquanto
saiba mais
A langue é um objeto
que o significado é o conceito veiculado, a imagem mental
construído por abstração, evocada, seu conteúdo. Nessa perspectiva, o signo é uma
pelo linguista, a partir de
um conjunto de fatos. união de um conceito com uma imagem acústica. Saussure
A tarefa do lingüista é,
(1977, p. 80) afirma que “esse som não é material, físico,
então, reunir um núme-
ro bastante variado de mas trata-se da impressão psíquica dos sons, perceptível
mensagens produzidas
por usuários da língua (o quando pensamos numa palavra; é a representação que dele
corpus) e, depois, sem
nos dá testemunho de nossos sentidos.”.
qualquer preconceito ou
intenção normativa, fazer O signo linguístico é uma entidade psíquica de duas
um inventário das unida-
des distintivas dos vários
faces que são inseparáveis, pois não existe significante
níveis, classificá-las e sem significado, nem significado sem significante. Por
depreender suas regras
combinatórias. esse princípio, o significante mesa, por exemplo, não
(FIORIN, José Luiz. As as-
túcias da enunciação: as
evoca uma mesa particular, mas a ideia geral de mesa. O
categorias de pessoa, es- significado não consiste na realidade que ele aponta, mas a
paço e tempo. São Paulo:
ática, 2010. p. 28.). sua representação.

24 Letras Vernáculas EAD


Fonte: http://teresadientedeleon.
blogspot.com.br/2011/09/
caracteristicas-del-signo-
linguistico.html

2
Unidade
O signo linguístico, na perspectiva saussuriana, possui duas
características básicas: a arbitrariedade e a linearidade. O signo linguístico é
arbitrário à medida que ele não é motivado, ou seja, não há, necessariamente,
uma relação entre significante e significado. O laço que une o significante
ao significado é arbitrário, tendo em vista que a sequência de sons de uma
palavra não é igual em todas as línguas. Não há uma ligação natural entre o
nome e a coisa denominada. O significante mesa, por exemplo, é arbitrário,
pois não há uma ligação que permita a motivação entre significante e o
significado, por outro lado, numa outra língua, esse mesmo significante é
grafado de outro modo, a exemplo de table, que significa mesa em inglês.
Nessa perspectiva, o significado é produto de um acordo, de uma
convenção entre os membros de uma comunidade linguística, permeado
por certa cultura. Isso quer dizer que os signos existem em decorrência
de hábitos sociais objetivos e são convencionais, não-motivados, quanto
ao significado das sequências fônicas significantes, que não apresentam
qualquer vínculo natural com os elementos da realidade que evocam, (cf.
MARQUES, 1990, p. 44). Todavia o significado não é fruto de uma escolha
do falante.
Saussure (1977, p. 83) frisa que a palavra arbitrário “não deve dar
a idéia de que o significado dependa da livre escolha do que fala.”. À guisa
de ilustração, veja uma passagem do livro Alice no país do espelho, de Lewis
Carroll, no qual o personagem Humpty Dumpty tem a pretensão de criar
significados para as palavras ao seu modo. Naturalmente, isso somente é

UESC Módulo 5 I Volume 7 25


Semântica - Parte II

possível por se tratar de ficção.


atenção

A arbitrariedade do signo
não se aplica a todas as
- Bem, isso demonstra que há trezentos e sessenta e quatro dias por
linguagens, pois há lin-
ano em que você pode receber presentes de desaniversário.
guagens que têm signos
Certamente – concluiu Alice.
em que a relação entre
- É somente um em que você consegue receber presentes de aniversá-
significante e significado
rio, percebe? Esta é que é a glória!
é motivada. Por exemplo,
Não sei o que você quer dizer com “glória” – retorquiu Alice.
nas linguagens visuais. A
Humpty Dumpty sorriu com maior desprezo:
foto de uma passagem é
- É claro que você não pode saber, até que eu lhe explique. O que quis
um signo em que signifi-
dizer foi: esta afirmação é um argumento irretorquível.
cado e significante estão
- Mas “glória” não significa “um argumento irretorquível”’ - objetou
unidos pela semelhança.
Alice.
Nos símbolos, a relação
- Quando eu uso uma palavra - disse Humpty Dumpty em um tom de
entre o significante e o
grande sarcasmo -, ela significa exatamente o que eu quero que signi-
significado pode ser mo-
fique, nem mais nem menos.
tivada. Uma mulher com
- Mas a questão é -, disse Alice - se você tem o direito de fazer as pala-
olhos vendados e com
vras significarem para você coisas diferentes do que elas querem dizer
uma balança na mão
para outras pessoas!...
é o símbolo da justiça.
- A questão - afirmou Humpty Dumpty - quem é que manda aqui. Só
O significante lembra o
isso.
significado da justiça; a
equanimidade é lembrada (CARROL, Lewis. Alice no país do espelho. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 114.).
pelos dois pratos da ba-
lança que precisam estar
na mesma altura e pelos
A linearidade do significante constitui, também,
olhos vendados, que indi-
cam que o juiz distribui a um traço característico do signo linguístico. O signifi-
justiça sem olhar quem é
o demandante. A cruz é o cante possui natureza auditiva e se desenvolve na cadeia
símbolo do cristianismo. O
do tempo. Os signos se apresentam, obrigatoriamente,
significante lembra Cristo
e sua morte. A foice e o uns após outros, formando a cadeia da fala, cuja estru-
martelo cruzados são o
símbolo do comunismo. A
tura é linear.
foice lembra o campesina- A ideia de significado numa perspectiva concei-
to; o martelo, o operaria-
do; o cruzamento dos dois tualista ou mentalista exposta por Saussure, certamen-
indica a união das duas
classes.
te, suscitou várias objeções de teóricos. Janet Fodor
(FIORIN, José Luiz. Teoria apud Oliveira (2008, p. 61) frisa que:
dos signos. In: FIORIN,
José Luiz. (Org.). Intro- Equiparar significado a uma idéia (ou a um
dução à Linguística I: ob- conceito) é complicado, porque as idéias
jetos teóricos. 6. ed. São
são entidades obscuras e conceber as idéias
Paulo: Contexto, 2011. p.
62-63.).
como imagens mentais é demasiadamente
simplista, dado que não há correlação
estável entre a imagem e o significado das
expressões.

Sem dúvida, Saussure foi uma das grandes perso-


nalidades do século XX e ganhou notoriedade, também,
pelos estudos diacrônicos que empreendeu. Todavia, para

26 Letras Vernáculas EAD


explicar os fatos da língua, Saussure propõe que o linguista adote o ponto
de vista sincrônico, tendo em vista que para o falante a sucessão no tempo
não existe; ele se acha diante de um estado.
Com isso, ele rompe com a tradição histórica, considerando que a
Linguística antes, no tratamento dos fatos da língua, se preocupava em in-
vestigar as causas da mudança histórica, nos deslizamentos de pronúncia,
nas associações espontâneas e na analogia.

2 VALOR E SIGNIFICAÇÃO

2
Unidade
À ideia de signo como a união entre significante e significado Saus-
sure acresceu um dos conceitos cardeais da Semântica Estrutural, a saber, a
noção de valor linguístico. Na visão saussuriana, na língua só há diferenças
que residem na expressão e no conteúdo. São as diferenças que permitem
ao falante alcançar o significado. Disso decorre a concepção de língua co-
mo forma e não como substância.
O conceito de valor é uma decorrência da visão de que a linguagem
se organiza em torno de um sistema. Nessa perspectiva, Saussure postula
não apenas considerar o signo na sua composição, mas em seus contornos,
estabelecidos pelas relações com outros signos. Conforme Dubois et al.,
(1997, p. 609), “Chama-se valor lingüístico o sentido de uma unidade de-
finida pelas posições relativas dessa unidade no interior de um sistema lin-
güístico. O valor se opõe à significação definida pela referência no mundo
material (a substância).”.
O valor de um signo pode ser delimitado por aquilo que está em
seu entorno e depende da situação recíproca dos elementos da língua.
Saussure (1977, p. 134) analisa que os valores são constituídos por
dessemelhanças ou semelhanças. Para ele, “uma palavra pode ser trocada
por algo dessemelhante; uma idéia pode ser comparada com algo da
mesma natureza.”. Para esclarecer essas relações entre as palavras, Saussure
comparou as palavras carneiro da língua portuguesa e a palavra mouton
da língua francesa. Essas palavras têm a “mesma significação que o inglês
sheep, mas não o mesmo valor.”. Várias razões justificam essa diferença,
notadamente, porque “ao falar de uma porção de carne preparada e servida
à mesa, o inglês diz mutton [sic], e não sheep.”. Assim, Saussure diz que

UESC Módulo 5 I Volume 7 27


Semântica - Parte II

atenção a diferença de valor entre sheep e mouton [sic], ou carneiro


O valor provém da situa- se deve ao fato de que o primeiro tem ao seu lado uma
ção recíproca das peças
na língua, pois importa segunda palavra, o que não ocorre com a palavra francesa ou
menos o que existe de
portuguesa. De igual modo, as palavras exprimem ideias
conceito e de matéria fô-
nica num signo do que há que se avizinham e se limitam de forma recíproca. Dessa
em seu redor. A significa-
ção é, então, uma diferen- forma, Saussure (1977, p. 135) compreende que palavras
ça entre um signo e outro
sinônimas como recear, temer, terror etc “só têm valor
signo, pois o que existe
na língua são a produção próprio pela oposição.”.
e a interpretação de dife-
renças. No interior de uma
No que concerne às relações que juntam os termos
língua, as palavras que linguísticos, Saussure considerou dois planos da linguagem,
exprimem ideias próximas
delimitam-se umas às ou- a saber, o sintagmático e o associativo. Esses dois planos
tras. [...].
correspondem às formas de nossa atividade mental. O
(FIORIN, José Luiz. Teoria primeiro plano é o sintagma, ou eixo sintagmático, que
dos signos. In: FIORIN, José
Luiz. Introdução à Linguística diz respeito a uma relação na qual os termos estabelecem
I: objetos teóricos. São Paulo:
entre si, em função de seu encadeamento, relações baseadas
Contexto, 2012. p. 58).
na extensão. No âmbito linguístico, essas relações têm um
caráter linear. Em função desse caráter linear da língua, o
falante não pode pronunciar dois elementos ao mesmo
tempo. Assim, os elementos que compõem os sintagmas
ou termos como: reler, a cor azul, a maior montanha do
mundo, dentre outros, não podem ser pronunciados ao
mesmo tempo. O sintagma é composto de duas ou mais
unidades consecutivas. Na relação sintagmática, os termos
estão juntos in praesentia. Cada termo num sintagma só
adquire seu valor porque se opõe ao que precede ou ao que
segue.
O segundo plano diz respeito ao eixo associativo.
Saussure (1977, p. 143) observa que, “fora do discurso,
as palavras que oferecem algo de comum se associam na
memória e assim se formam grupos dentro dos quais imperam
relações muito diversas.”. Por exemplo, ensinamento pode
associar-se pelo sentido à educação, à aprendizagem; pelo
aspecto morfológico a ensino, ensinemos etc. Cada grupo
forma uma série mnemônica virtual a que Saussure (1977,
p. 143) denomina “tesouro da memória”, que constitui a

28 Letras Vernáculas EAD


língua de cada indivíduo.
Indiscutivelmente, a grande revolução que Ferdinand
de Saussure encetou na Linguística foi a sua contribuição
para autonomia dessa ciência, especialmente, porque
empreendeu estudos que evidenciaram que a língua pode ser
investigada sob o ponto de vista de sua estrutura.

3 TEORIA DOS CAMPOS

2
O surgimento do Estruturalismo, no século XX,

Unidade
exerceu influência sobre linguistas que viram um campo fértil
para o estudo do significado numa perspectiva sincrônica.
Todavia esses estudos se voltaram, especialmente, para o
aspecto vocabular, mediante o desenvolvimento de métodos saiba mais
para a análise do léxico. A ideia dos campos se-
mânticos, como estrutu-
Segundo Marques (1990, p. 48), esses estudos ras fechadas (J. trier), vai
tomando corpo como so-
ocorrem tanto do ponto de vista onomasiológico, quanto lução aos problemas que
do ponto de vista semasiológico, ou seja, “quer a partir de se apresentaram em tor-
no do objeto da semân-
um dado conceito para a análise dos elementos significativos tica, e com eles vinga a
idéia de limite, oposição,
que o representam, quer a partir de um dado significante
traço mínimo de significa-
para a análise dos elementos conceituais a que se vincula.”. ção, que abrirão o cami-
nho da nova semântica
A preocupação do estudo do léxico acarretou o estrutural: o significado

surgimento dos campos como ficou conhecida. Um dos de cada termo vincula-
se a um amplo setor do
primeiros teóricos a se ocupar da teoria dos campos foi J. vocabulário com valor no
mesmo sistema lingüísti-
Trier. Inicialmente, essa teoria foi cunhada de campo lexical co (parentesco, mobiliá-
e de campo semântico. A teoria dos campos teve início rio, profissões). O campo
semântico apresenta-se
com G. Ipsen em 1924, todavia foi sistematizada por J. como uma organização de
significados – dinamica-
Trier, no período entre 1931 a 1934. Essa concepção tem mente estruturada -, cada
como postulado a ideia de que o vocabulário de uma língua um dos quais se desen-
volve no âmbito permitido
se constitui de subconjuntos estruturados ou campos. pelos demais: atinge uma
forma individual ou parti-
Tamba-Mecz (2006, p. 29) comenta que para Trier “o campo
lhada, ou é simplesmente
semântico corresponde a uma unidade conceitual ou área um traço de significação.

nocional que permite definir as relações de sentido entre os (MASIP, Vicente. Semântica:

vocábulos que a recobrem. Trata-se de articular um campo curso-oficina sobre sentido e


referência. São Paulo: EPU,
conceitual a um campo lexical.”. 2003. 57.).

UESC Módulo 5 I Volume 7 29


Semântica - Parte II

Charles Bally preferiu desenvolver a ideia de campos associativos.


Conforme lembra Masip (2003, p. 57), Charles Bally concebe o campo
associativo como “uma espécie de halo que circunda o signo, cujas
franjas exteriores se confundem com o ambiente.”. Por exemplo, a
palavra “boi” possui três campos associativos, a saber, no primeiro, há
vocábulos como: vaca, touro, bezerro, chifres, ruminar, mugir etc; no
segundo: lavoura, arado, jugo, arreios etc; no terceiro: força, resistência,
trabalho, paciência, lentidão, peso, passividade etc.
De acordo com Guirraud (1986, p. 83), Trier “estuda as palavras
em relação ao setor conceitual do entendimento, e mostra que elas
constituem um conjunto estruturado, dentro do qual cada uma delas
está sob a dependência das outras.”.
O campo associativo pode ser ilustrado com o poema A Pesca,
de Affonso Romano de Sant’Anna. Veja que o encadeamento das ideias
ocorre com a associação de vocábulos que remetem aos elementos que
constituem o ato de pescar

A Pesca
O anil
O anzol
O azul
O silêncio
A agulha
Vertical
Mergulha

a água
a linha
a espuma
o tempo
a âncora
o peixe

a garganta
a âncora
o peixe

a boca
o arranco
o rasgão

aberta a água

30 Letras Vernáculas EAD


aberta a chapa
aberto o anzol
aquelíneo
ágilclaro
estabanado
o peixe
a areia
o sol

(SANT’ANNA, Affonso Romano de. A Pesca. In: ANTUNES, Irandé. Território das palavras. São Paulo:
Parábola Editorial, 2012. p. 116-117.).

2
Foi a partir desses estudos, que surgiu a teoria dos campos como

Unidade
é conhecida. O linguista Jost Trier se ocupou da sistematização dos
campos semânticos, tendo como foco principal o estudo do léxico. Essa
teoria deu lugar ao campo lexical e ao campo semântico. Todavia Trier
prefere utilizar os termos campo conceitual, campo linguístico e campo
lexical. A investigação dos campos linguísticos foi desenvolvida numa
perspectiva semasiológica. De acordo com Marques (1990, p. 48),

Numa perspectiva semasiológica, uma dada esfera con-


ceitual é representada por um conjunto de palavras que
constituem campos linguísticos, no interior dos quais
diversas palavras se estruturam e organizam de tal for-
ma, que cada conceito delimita os demais e é por eles
delimitado, num dado momento histórico.

Os estudos dos campos associativos deram lugar a vários trabalhos


que procuravam definir critérios para a descrição dos termos que se
avizinham e se estruturam. Tamba-Mecz (2006, p. 34) reflete que a
contribuição da linguística estruturalista reside em duas perspectivas:
de um modo “contribuiu para limitar o objeto da semântica ao léxico,
concebido como rede de relações de sentido auto-regulada”; de outro
modo, contribuiu para “evidenciar a dificuldade de encerrar em si mesmas
as estruturas lexicais, articuladas a conhecimentos extralinguísticos.”.
É sob esse panorama que as ideias de Saussure foram absorvidas
por muitos linguistas da época. Sua influência se fez sentir na profusão
de pesquisas que surgiram no século XX. Evidentemente, que suas
concepções linguísticas propiciaram muitas críticas, todavia esses estudos
lançaram as bases para a eclosão da Semântica Estrutural, de igual modo

UESC Módulo 5 I Volume 7 31


Semântica - Parte II

deram origem ao surgimento de outras vertentes da Semântica.


As questões a seguir visam contribuir para a fixação dos
conteúdos estudados nesta aula, além de propiciar a reflexão crítica.
Após respondê-las, participe das discussões com seus colegas, confronte
as respostas, esclareça suas dúvidas com o tutor. Depois entregue suas
respostas ao tutor.

ATIVIDADES

1) Saussure definiu a língua como objeto de investigação da


Linguística; qual a implicação disso para o estudo do significado?
2) Explique por que a relação entre significante e significado é
arbitrária.
3) Relacione as contribuições da Semântica Estrutural para o
estudo do significado.
4) O que você entendeu por valor linguístico?
5) Como se distingue valor linguístico de significação?
6) Por que se diz que a contribuição do Estruturalismo ocorreu
no âmbito do léxico? Justifique.
7) Como a teoria dos campos pode contribuir na produção do
significado? Justifique.

RESUMINDO

Nesta aula, você viu que:

• Ferdinand Saussure contribuiu com seus estudos não só para


conferir um estatuto científico à Linguística, mas também
influenciou vários teóricos;
• o Estruturalismo, ao privilegiar a língua como objeto de
estudo, deixou de levar em conta importantes aspectos do
significado, a exemplo das intenções do falante nas interações
verbais;
• o método de estudo do Estruturalismo é baseado na
perspectiva sincrônica;

32 Letras Vernáculas EAD


• a noção de valor linguístico desenvolvida por Ferdinand de
Saussure contribui para compreensão de sinônimos e antônimos;
• a influência do Estruturalismo se evidenciou mais no estudo do
léxico.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Irandé. Território das palavras. São Paulo: Parábola Editorial,


2012.

2
Unidade
BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. 13. ed. São Paulo: Cultrix,
2000.

DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário Enciclopédico


das Ciências da Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1998.

FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa,


espaço e tempo. São Paulo: ática, 2010.

FIORIN, José Luiz. (Org.). Introdução à Linguística I: objetos teóricos.


São Paulo: Contexto, 2012.

GUIRAUD, Pierre. A Semântica. São Paulo: DIFEL, 1986.

HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma Teoria da Linguagem. São


Paulo: Perspectiva, 2009.

LYONS, John. Linguagem e Lingüística: uma introdução. Rio de Janeiro:


LTC, 1987.

MARQUES, Maria Helena Duarte. Iniciação à Semântica. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1990.

MASIP, Vicente. Semântica: curso-oficina sobre sentido e referência. São


Paulo: EPU, 2003.

UESC Módulo 5 I Volume 7 33


Semântica - Parte II

MECZ-TAMBA, Irène. A Semântica. São Paulo: Parábola, 2006.

OLIVEIRA, Luciano Amaral. Manual de Semântica. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2008.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo:


Cultrix, 1977.

POSSENTI, Sírio. Gramática e Política, In: GERALDI, João Wanderley


(Org.). O texto na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Ática, 1997.

34 Letras Vernáculas EAD


3
aula

SEMÂNTICA DA
ENUNCIAÇÃO

2
Unidade
Objetivos
Ao final da aula, você deverá ser capaz de:

• analisar as características da enunciação;


• compreender as instâncias da enunciação;
• identificar como ocorre a subjetividade na linguagem;
• reconhecer as marcas linguísticas da enunciação.

UESC Módulo 5 I Volume 7 35


Semântica - Parte II

36 Letras Vernáculas EAD


1 INTRODUÇÃO

É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui


como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na
realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de
“ego” (Êmile Benveniste, 1991, p. 286).

Na aula passada, você viu que a Semântica Estrutural constituiu um

2
avanço para os estudos linguísticos, notadamente, para as investigações

Unidade
acerca do léxico. Tendo Ferdinand de Saussure como um dos teóricos mais
influentes desse ramo da ciência, uma de suas contribuições foi estabelecer
a distinção entre língua e fala. Ele evidenciou que a língua possui um caráter
social e a fala é a realização individual da língua. Todavia, ao instituir a
língua como objeto por excelência de estudo da Linguística, propiciou o
surgimento de diversas correntes teóricas que buscaram abarcar aquilo
que, aparentemente, foi alijado das reflexões sobre a linguagem, ou seja, o
sujeito, o contexto e a história.
Desse modo, filósofos e linguistas da Escola Analítica de Oxford
passaram a considerar, em suas investigações, o sujeito como centro
das reflexões acerca da linguagem. Dessas ideias, nasceu um construto
teórico que influenciou várias abordagens semânticas, dentre elas a Teoria
da Enunciação. Essa vertente da Semântica é conhecida também como
Linguística da Enunciação ou Linguística do Discurso.
Nesta aula, você refletirá sobre a importância da Semântica da
Enunciação para a descrição do significado. Para tanto, torna-se necessário
discutir o conceito de enunciação, as suas marcas no discurso e as instâncias
sobre as quais ela é erigida.
O estudo da enunciação pode ser atribuído a muitos teóricos que se
ocuparam dessa investigação, a exemplo de Charles Bally, Roman Jakobson,
Oswald Ducrot, Mikhail Bakhtin, dentre outros. Todavia Êmile Benveniste
desponta como um dos principais expoentes dessa teoria na França. Ele é
referenciado como o linguista da enunciação, tendo em vista que é um dos
maiores representantes dos estudos acerca dessa teoria. De acordo com
Flores e Teixeira (2005, p. 29), Êmile Benveniste “talvez seja o primeiro

UESC Módulo 5 I Volume 7 37


Semântica - Parte II

linguista, a partir do quadro saussuriano, a


desenvolver um modelo de análise da língua
especificamente voltado para a enunciação.”.
Durante muito tempo, a Linguística
de influência saussuriana se ocupou,
especialmente, do estudo da língua, em
detrimento da fala, instância em que reside
a produção do discurso. Diante desse
quadro epistemológico, Benveniste retém do
Estruturalismo noções como signo, estrutura
etc, porém sua teoria extrapola o pensamento
linguístico saussuriano, porquanto deu ênfase
ao caráter discursivo da linguagem, ou seja,
mostrou como ocorre a passagem da língua
para a fala, por intermédio da enunciação.
Esse deslocamento de olhar compõe um
Fonte: http://disoblio.blogspot.com.br/2009/12/
ancora-sul-dono-emile-benveniste-e.html quadro teórico no interior das reflexões de
Benveniste (1991, p. 245), a que ele próprio denominou em sua obra
Problemas de Linguística Geral de o homem na língua.

para refletir

É claro, portanto, o clima adverso com o qual se deparou Benveniste, quando da proposta de incluir os
estudos da enunciação e por eles os da subjetividade no objeto da lingüística, tendo por base o mesmo es-
truturalismo saussuriano. Pois, se de um lado, Benveniste mantém-se fiel ao pensamento de Saussure – na
justa medida em que conserva concepções caras ao saussurianismo, tais como estrutura, relação, signo -,
por outro apresenta meios de tratar da enunciação ou, como ele mesmo diria, do homem na língua. Esta é
a inovação de seu pensamento: supor sujeito e estrutura articulados.
(FLORES, Valdir do Nascimento; Teixeira, Marlene. Introdução à Lingüística da Enunciação. São Paulo: Contexto, 2005.
p.30.).

2 ENUNCIAÇÃO E INSTÂNCIAS ENUNCIATIVAS

A Teoria da Enunciação tem como princípio a ideia de que,


na descrição dos significados dos enunciados, o semanticista deverá
levar em conta a enunciação, ou seja, o evento único e irrepetível
caracterizado como um acontecimento discursivo. A análise do
linguista deverá considerar, simultaneamente, as condições de produção

38 Letras Vernáculas EAD


do evento da fala. De acordo com Koch (1999, p. 13-14), “as condições
de produção (tempo, lugar, papéis representados pelos interlocutores,
imagens recíprocas, relações sociais, objetivos visados na interlocução)
são constitutivas do sentido do enunciado.”. De acordo com essa autora,
“a enunciação vai determinar a que título aquilo que se diz é dito.”. A
enunciação deixa marcas no enunciado que produz, pois apontam a
intencionalidade discursiva dos sujeitos.

Para ilustrar, vamos recordar a célebre frase “I

2
have a dream” (“Eu tenho um sonho”), pronunciada

Unidade
por Martin Luther King, no discurso em prol da
igualdade entre brancos e negros nos Estados Unidos,
proferido em agosto de 1963, o qual inscreveu o nome
desse ativista político para sempre na história das lutas
contra a desigualdade. As condições de produção
desse discurso tornaram-no singular na história. Do
ponto de vista da enunciação, por mais que essa frase
seja repetida em outros contextos, jamais produzirá o
mesmo efeito de sentido, pois os sujeitos são outros,
as perspectivas acerca dos seus ideais de liberdade Fonte: http://www.mlkonline.net/dream.
html

também mudaram, ou seja, a cena enunciativa mudou.

De outro modo, como compreender o filme


Tempos Modernos de Charlie Chaplin, por exemplo,
sem se ater para as características de uma sociedade
marcada pela Revolução Industrial, cuja consequência
era o visível aviltamento das condições do trabalhador
que serve de pano de fundo para o filme; ou sem se
reportar para os discursos que foram produzidos
acerca desse cenário econômico e social?

Vale ressaltar o pensamento de Fiorin e Platão
(1996, p. 17), segundo o qual “Todo texto tem um
caráter histórico, não no sentido de que narra fatos
históricos, mas de que revela os ideais e as concepções Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Tempos_Modernos

UESC Módulo 5 I Volume 7 39


Semântica - Parte II

de um grupo social numa determinada época.”. Portanto


o intérprete não pode desconsiderar essas condições
extralinguísticas que determinam a constituição do sentido.
atenção Diante do quadro apresentado, é necessário, então,
A produção lingüística pode dizer o que é enunciação. Enunciação é a apropriação da
ser considerada: seja como
uma seqüência de frases,
língua pelo sujeito com vista à produção do discurso. O ato
identificadas sem referên- de enunciar caracteriza-se pela função de dizer algo, fazer
cia a determinado apare-
cimento particular dessas um proferimento. Flores e Teixeira (2005, p. 35) ressaltam
frases (elas podem ser
que “enunciar é transformar individualmente a língua mera
ditas, ou transcritas com
escritas diferentes, ou im- virtualidade – em discurso. A semantização se dá nessa
pressas etc.); seja como
um ato no decorrer do qual passagem.”.
essas frases se atualizam,
Benveniste (1989, p. 82-83) diz que “a enunciação
assumidas por um locutor
particular, em circunstân- é este colocar em funcionamento a língua por um ato
cias especiais e temporais
precisas. Tal é a oposição
individual. É uma conversão individual da língua em
entre o ENUNCIADO e a discurso.”. Benveniste (1989, p. 83) afirma ainda que “antes
situação de discurso, al-
gumas vezes chamada de da enunciação a língua não é senão possibilidade da língua.
enunciação. Entretanto,
quando se fala, em Lin-
Depois da enunciação, a língua é efetuada em uma instância
güística, de ENUNCIAÇÃO, de discurso.”. A enunciação, portanto, é uma instância
toma-se esse termo em
sentido mais restrito: não em que o indivíduo se interpõe entre a língua e a fala para
se visa nem o fenômeno
produzir o seu discurso.
físico de emissão ou de
recepção da fala, que de- Como acontece essa transformação da língua em
pende da psicolingüística
ou de uma de suas subdi- discurso? A enunciação se caracteriza pela apropriação que
visões (...), nem as mo-
o sujeito faz da língua em um dado momento, num certo
dificações introduzidas no
sentido global do enuncia- lugar, instaurando-se como “eu” e, consequentemente,
do pela situação (...), mas
os elementos pertencentes
instaurando o outro como “tu”. O “eu” constitui a referência
ao código da língua e cujo em torno da qual se organizam as coordenadas de espaço
sentido no entanto depen-
de de fatores que variam e tempo da situação enunciativa. O “eu” se instaura na
de uma enunciação para
outra; por exemplo, eu, tu,
enunciação em oposição ao “tu”, isto é, a pessoa que fala e a
aqui, agora etc. Em outras pessoa com quem se fala.
palavras, o que a Lingüís-
tica retém é a marca do A língua dispõe de um conjunto de categorias
processo de enunciação no
linguísticas que servem para instaurar os elementos
enunciado.
constitutivos da enunciação. Trata-se da instância do ego (eu),
(DUCROT, Oswald; TODO-
ROV, Tzvetan. Dicionário En- hic (aqui), et nunc (e agora). Esses elementos constitutivos
ciclopédico das Ciências da
da enunciação correspondem, respectivamente, às categorias
Linguagem. São Paulo: Pers-
pectiva, 1998. p. 289.). de pessoas, lugar e tempo. Essas três categorias em torno

40 Letras Vernáculas EAD


das quais o discurso é constituído são chamadas de dêixis,
ou seja, são elementos linguísticos que compõem a cena
enunciativa, a saber, a pessoa, o tempo e o lugar. saiba mais
Quando apresentamos o estudo dos dêiticos na Justifica-se, assim, que
aula 2 da Unidade 1, você viu que a função da dêixis é o conceito de enunciação
seja ‘colocar em funciona-
apontar, é ancorar o discurso numa determinada situação mento a língua por um ato
individual de utilização’,
comunicativa. Esses elementos, então, têm uma função pois cada vez que o locu-
especial na enunciação, pois eles permitem que o falante os tor se apropria da língua
– produz um uso novo e
utilize para instituir o discurso.

2
como tal irrepetível. Essa
irrepetibilidade deve-se
A enunciação é um processo discursivo que pressupõe

Unidade
ao fato de que jamais
o enunciado. O enunciado é caracterizado pela manifestação tempo, espaço e pessoa –
categorias fundamentais
da enunciação, que é produzida a cada vez que se fala. em enunciação – podem

Benveniste (1989, p. 82) destaca que “é preciso ter cuidado ser perenizadas no uso da
língua. E isso é Benveniste
com a condição específica da enunciação: é ato mesmo de mesmo que explica, pois
‘a referência é parte inte-
produzir o enunciado, e não o texto do enunciado.”. Fica grante da enunciação’. A
evidenciada, então, a separação entre o ato da enunciação e clareza é total: referência
à enunciação – ato indivi-
o seu produto que é o discurso, ou enunciado. dual de utilização da lín-
gua no qual estão tempo/
Às vezes, o termo enunciado é utilizado como espaço/pessoa – e não ao
sinônimo de frase. Porém a frase é uma unidade linguística, mundo.

elaborada de acordo com o sistema da gramática, passível (FLORES, Valdir do Nasci-


mento; Teixeira, Marilene.
de infinitas realizações, ao passo que o termo enunciado
Introdução à Lingüística
é empregado para situações efetivas de interlocução. Por da Enunciação. São Paulo:
Contexto, 2005, p. 37.).
exemplo, “O dia hoje está frio” é uma frase elaborada de
acordo com as regras do português do Brasil. À medida
que essa frase for pronunciada em contextos diferentes
pelo mesmo sujeito ou sujeitos diferentes, obtém-se um
enunciado oriundo dessa frase. Dessa forma, uma mesma
frase poderá ser repetida uma infinidade de vezes e a cada
repetição tem-se um novo enunciado.
Fiorin (2011, p. 162) chama atenção de que “o
conjunto de marcas enunciativas colocadas no interior do
enunciado não é a enunciação propriamente dita, cujo modo
de existência é ser o pressuposto lógico do enunciado, mas é
a enunciação enunciada.”. Quando digo, por exemplo, O dia
está bonito, há a ocorrência de um enunciado. Porém, se digo

UESC Módulo 5 I Volume 7 41


Semântica - Parte II

Eu afirmo que o dia está bonito, enuncia-se no enunciado o


próprio ato de dizer. Dessa forma, segundo Fiorin (2011, p.
163), tem-se a enunciação enunciada.
Benveniste (1991, p. 286) afirma que “é na linguagem
e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito”. É
na situação comunicativa concreta que o homem se constitui
como “eu”. Portanto, a possibilidade de o locutor se propor
como sujeito de seu discurso se funda no exercício da
língua. Nesse prisma, a categoria de pessoa se institui como
a possibilidade de a linguagem se transformar em discurso.
No processo de enunciação, o locutor, ao instituir-se
como um eu, institui-se, necessariamente, um tu. Como isso
ocorre? O discurso pressupõe que ocorra num certo lugar
em determinado tempo, tendo como referência o sujeito.
De acordo com Fiorin (2011, p. 163), espaço e tempo estão
na dependência do eu, que neles se enuncia. A partir desses
dois elementos, organizam-se todas as relações espaciais e
saiba mais temporais. Por isso a enunciação é o lugar do eu, do aqui e
É preciso ter cuidado com do agora.
a condição específica da
enunciação: é ato mesmo A presença do sujeito no discurso se manifesta a
de produzir um enuncia-
partir de diferentes instâncias da enunciação. Fiorin (2011,
do, e não o texto do enun-
ciado, que é nosso objeto. p. 163) frisa que “há num texto, basicamente, três instâncias
Este ato é o fato do locu-
tor que mobiliza a língua enunciativas.”. A primeira instância é a do enunciador e do
por sua conta. A relação
enunciatário, ou seja, o eu que fala e o tu a quem o enunciador
locutor com a língua de-
termina os caracteres se dirige e que correspondem, respectivamente, “ao autor e
linguísticos da enuncia-
ção. Deve-se considerá-
ao leitor implícitos ou abstratos, ou seja, à imagem do autor
la como o fato do locutor, e a do leitor construídas pela obra.”.
que toma a língua por um
instrumento, e nos ca- A segunda escala da hierarquia enunciativa é
racteres linguísticos que
marcam esta relação.
evidenciada pela instalação do eu e do tu no discurso. De
acordo com Fiorin (2011, p. 163), são chamados narrador e
(BENVENISTE, Êmile. Pro-
blemas de Lingüística Ge- narratário. Esses podem “permanecer implícitos, como, por
ral II. Campinas, SP: Pon-
exemplo, quando se narra uma história em terceira pessoa.”.
tes, 1989, p. 82.).
O terceiro nível da hierarquia enunciativa instala-se,
de acordo com Fiorin (2011, p. 164), “quando o narrador dá
voz a uma personagem, em discurso direto.”. Nesse nível, o

42 Letras Vernáculas EAD


eu e o tu são designados de interlocutor e interlocutário.

Veja agora a ocorrência dessas instâncias enunciativas no texto a


seguir, Nós, os brasileiros, da cronista Lya Luft.

NÓS, OS BRASILEIROS

Uma editora europeia me pede que traduza poemas de autores estrangeiros sobre o
Brasil.

2
Como sempre, eles falam da floresta amazônica, uma floresta muito pouco real, aliás.
Um bosque poético, com “mulheres de corpos alvíssimos espreitando entre os troncos das ár-

Unidade
vores e olhos de serpentes hirtas acariciando esses corpos como dedos amorosos.” Não faltam
flores azuis, rios cristalinos e tigres mágicos.
Traduzo os poemas por dever de ofício, mas com uma secreta – e nunca realizada –
vontade de inserir ali um grãozinho de realidade.
Nas minhas idas (nem tantas) ao Exterior, onde convivi sobretudo com escritores ou
professores e estudantes universitários – portanto, gente razoavelmente culta -, fui surpreen-
dida com a profunda ignorância a respeito de quem, como e o que somos.
A senhora é brasileira? Comentaram espantados alunos de uma Universidade ameri-
cana famosa – Mas a senhora é loira!
Depois de ler num congresso de escritores em Amsterdã um trecho de um dos meus
romances traduzidos em inglês, ouvi de um senhor elegante, dono de um antiquário famoso,
que segurou comovido minhas duas mãos:
Que maravilha! Nunca imaginei que no Brasil houvesse pessoas cultas!
Pior ainda, no Canadá, alguém exclamou incrédulo:
Escritora Brasileira? Ué, mas no Brasil existem editoras?
A culminância foi a observação de uma crítica berlinense, num artigo sobre um ro-
mance meu editado por lá, acrescentando, a alguns elogios, a grave restrição: “porém não
parece livro brasileiro, pois não fala nem de plantas, nem de índios, nem de bichos.”
Diante dos três poemas sobre o Brasil, esquisitos para qualquer brasileiro, pensei
mais uma vez que esse desconhecimento não se dava apenas à natural (ou inatural) alienação
estrangeira quanto ao geograficamente fora de seus interesses, mas também é culpa nossa.
Pois o que mais exportamos de nós é o exótico e o folclórico.
Em uma feira de livros em Frankfurt, no espaço brasileiro, o que se via eram livros
(não muito bem arrumados), muita caipirinha na mesa, e televisões mostrando carnaval, fute-
bol, praias e... matos.
E eu, mulher essencialmente urbana, escritora das geografias interiores de meus
personagens neuróticos, me senti tão deslocada quanto um macaco em uma loja de cristais.
Mesmo que tentasse explicar, ninguém acreditaria que eu era tão brasileira quanto
qualquer negra de origem africana vendendo acarajé nas ruas de Salvador. Porque o Brasil é
tudo isso.
E nem a cor de meu cabelo e olhos, nem meu sobrenome, nem os livros que li na
infância, nem o idioma que falei naquele tempo, além do português, me fazem menos nascida
e vivida nesta terra de tão surpreendentes misturas: imensa, desaproveitada, instigante e (por
que ter medo da palavra?) maravilhosa.

(LUFT, Lya. NÓS, OS BRASILEIROS. In: ANTUNES, Irandé. Análise de Textos: fundamentos e
práticas. São Paulo: Parábola editora, 2010. p. 164-165.).

UESC Módulo 5 I Volume 7 43


Semântica - Parte II

A primeira instância da enunciação identificada no texto Nós, os


brasileiros diz respeito ao enunciador, isto é, o autor implícito do texto,
que é pressuposto pela própria existência do enunciado. Podemos dizer
que é o eu que diz “Uma editora europeia me pede que traduza poemas
de autores estrangeiros sobre o Brasil.”. O enunciatário é o tu a quem o
enunciador se dirige, ou seja, é o leitor implícito do texto.
A segunda instância da enunciação é constituída do eu e do
tu instalados no enunciado. Esse nível da hierarquia enunciativa diz
respeito ao narrador e narratário como, por exemplo, o trecho que diz:

Trecho 1: “E eu, mulher essencialmente urbana, escritora das


geografias interiores de meus personagens neuróticos, me senti tão deslocada
quanto um macaco em lojas de cristais.”

Trecho 2: “Como sempre, eles falam da floresta amazônica, uma


floresta muito pouco real, aliás. Um bosque poético com “mulheres de corpos
alvíssimos espreitando entre os troncos das árvores e olhos de serpentes
hirtas acariciando esses corpos como dedos amorosos.” Não faltam flores
azuis, rios cristalinos e tigres mágicos.”

A terceira instância enunciativa é representada pelo interlocutor
que é instalado no discurso quando o narrador dá voz a um personagem
em situação de discurso direto. Nesse caso, o eu e o tu desse nível são
chamados, respectivamente, de interlocutor e interlocutário. Veja o
trecho retirado do texto sob comento:

A senhora é brasileira? (Interlocutário).


Comentaram espantados alunos de uma Universidade americana
famosa (Interlocutor).
– Mas a senhora é loira! (Interlocutário).
Pior ainda, no Canadá, alguém exclamou incrédulo: (Interlocutor).
Escritora Brasileira? Ué, mas no Brasil existem editoras?
(Interlocutário).

44 Letras Vernáculas EAD


3 AS MARCAS LINGUÍSTICAS DA ENUNCIAÇÃO

3.1 A pessoa
Como você notou, a enunciação se caracteriza pela apropriação
que o sujeito faz da língua para produzir o seu discurso, ancorado num
determinado tempo e num certo lugar. A enunciação deixa suas marcas
linguísticas no discurso por intermédio das categorias de pessoa, tempo e
lugar. Saber como essas marcas linguísticas são instauradas na enunciação
e como elas se refletem no enunciado constitui uma tarefa essencial do

2
semanticista para a descrição do significado.

Unidade
Para explicar a instância da instauração da pessoa no discurso, se
faz necessário recorrer ao notável artigo de Benveniste (1999, p. 286-288),
intitulado “Da subjetividade na língua”, no qual esse linguista expõe que “a
subjetividade é a capacidade do locutor para se propor como sujeito.”. É o
“ego” que se diz ego, ou seja, é o eu que se diz eu. A subjetividade encontra
seu fundamento na categoria de pessoa. O eu se instala no discurso por
oposição ao tu. Benveniste (1991, p. 286-288) reflete que:

A linguagem só é possível porque cada locutor se


apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como
eu no seu discurso. Por isso, eu propõe outra pessoa,
aquela que, sendo embora exterior a “mim”, torna-
se o meu eco – ao qual digo tu e que me diz tu. É na
instância de discurso na qual eu designa o locutor que
este enuncia como “sujeito”. É verdade ao pé da letra
que o fundamento da subjetividade está no exercício da
língua.

A categoria de pessoa é fundamental para a passagem da língua


para o discurso. Todavia nem todas as pessoas desempenham o mesmo
papel no discurso. A 1ª e a 2ª pessoas se distinguem da 3ª por algumas
peculiaridades. Um traço relevante que serve para distinguir essas pessoas
é que o eu e o tu participam do discurso, enquanto ele se refere a pessoas
ou coisas no mundo extralinguístico apontado no discurso. Às vezes, a 3ª
pessoa funciona como um índice de impessoalidade, por exemplo, Faz dez
anos, Relampejou etc.
Outra distinção importante diz respeito ao fato de que o eu e o
tu são sempre reversíveis no evento discursivo. À medida que faço uso

UESC Módulo 5 I Volume 7 45


Semântica - Parte II

da palavra para interagir com o tu, no momento seguinte, quando ele


me responde passo a ser o tu e, assim, sucessivamente; enquanto que o
pronome ele não possui essa reversibilidade. Benveniste (1991) assinala
que os pronomes “eu” e “tu” possuem marca de pessoa; enquanto que o
pronome “ele” é privado dela. Fiorin (2011, p. 254) frisa que a categoria
de pessoa possui duas correlações:

Pessoalidade – em que se opõem pessoa (eu/tu) e não


pessoa (ele), ou seja, participantes da enunciação e
elementos da enunciação; a da subjetividade, em que
se contrapõem eu verso tu; a primeira pessoa é subje-
tiva e a segunda é pessoa não subjetiva.

Por outro lado, é o contexto da enunciação que explicita quem


são os participantes do ato enunciativo e quem participa dele. De
acordo com Fiorin (2011, p. 164), são “pessoas enunciativas aquelas
que participam do ato de comunicação, ou seja, o eu e o tu, e pessoa
enunciva é aquela que pertence ao domínio do enunciado, ou seja, ele.”
.O texto Poema tirado de uma notícia de jornal, de Manoel Bandeira,
‘ilustra esse papel que a 3ª pessoa tem no discurso, que não participa
do ato enunciativo, mas é referenciado como aquele a quem o texto
remete.

Poema tirado de uma notícia de jornal


Manuel Bandeira

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num
barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigues de Freitas e morreu afogado.

Disponível em: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=23178.


Acesso em: 13 out. 2013.

Há outras características, igualmente, salientes na análise


comparativa entre a 3ª pessoa, a 1ª e a 2ª como o fato de “ele” ser o
único pronome pessoal que admite plural por intermédio do acréscimo
do morfema s, além disso, possui a designação do gênero feminino, não
encontrada nas demais pessoas.

46 Letras Vernáculas EAD


3.2 O tempo
Toda vez que o indivíduo se apropria da língua para convertê-la em
discurso se instaura um novo tempo que é caracterizado como um “agora”.
É necessário, todavia, saber que há várias formas de abordá-lo numa situação
comunicativa. O tempo linguístico apresenta particularidades em relação
ao tempo cronológico e o tempo físico. Benveniste (1989, p. 74) ressalta
que “uma coisa é situar um acontecimento no tempo cronológico e outra é
inseri-lo no tempo da língua.”. Para esse linguista (1989, p. 71-73), o tempo
físico “é um contínuo uniforme, infinito e linear, segmentável à vontade.”.

2
Esse tempo pode ser marcado, por exemplo, pelo movimento dos astros,

Unidade
resultando, assim, a existência de dias, anos, meses, estações do ano etc.
O tempo cronológico se caracteriza por marcar os acontecimentos, é o
tempo do calendário. Pode ser expresso com sintagmas nominais como,
por exemplo, o nascimento de Cristo, dentre outros.
A singularidade do tempo linguístico reside no fato de que ele está
ligado ao exercício da fala, pois tem seu centro no presente da instância
da fala. A referência temporal que caracteriza o momento da enunciação é
designada de tempo da enunciação. O tempo presente assinala a contem-
poraneidade entre o proferimento e o momento da enunciação. Todavia,
como destaca Benveniste (1989, p. 74-75), o tempo presente, enquanto
função do discurso, não pode ser localizado em uma divisão particular de
tempo crônico, uma vez que ele admite todas as divisões e não se refere a
nenhuma em particular. Dessa forma, esse “agora é reinventado a cada vez
que um homem fala porque é, literalmente, um momento novo, ainda não
vivido.”.
Veja um trecho da letra da música Era Nova, de Gilberto Gil, a qual
ilustra a ideia de tempo da enunciação.

Novo tempo sempre se inaugura


A cada instante que você viver
O que foi já era, e não há era
Por mais nova que possa trazer de volta
O tempo que você perdeu, perdeu, não volta
Embora o mundo, o mundo, dê tanta volta
Embora olhar o mundo cause tanto medo
Ou talvez tanta revolta

Disponível em: http://letras.mus.br/gilberto-gil/556774/


Acesso em: 20 jan. 2013. Fonte: http://edgblogs.s3.amazonaws.
com/brunoastuto/files/2013/06/gil.jpg

UESC Módulo 5 I Volume 7 47


Semântica - Parte II

Portanto o agora constitui o tempo em que o enunciador se apropria


da língua para organizar o seu discurso. A temporalidade do enunciador é
o presente, momento em que o evento discursivo está sendo gerado.

3. 3 O espaço
O espaço linguístico se organiza, tendo em vista o lugar instituído
pelo do locutor no acontecimento discursivo, conhecido também como
o lugar do ego. Fiorin (2011, p. 174) nota que “o espaço linguístico não é
o espaço físico, analisado a partir das categorias geométricas, mas aquele
onde se desenrola a cena enunciativa.”. Os marcadores de espaço são
os pronomes demonstrativos e certos advérbios de lugar. O pronome
demonstrativo ancora o discurso em determinado espaço do espaço.
Parece consensual entre os linguistas que o pronome demonstrativo
poderá desempenhar uma função dêitica, isto é, aponta, mostra objetos no
acontecimento discursivo; e uma função anafórica, à medida que poderá
se referir a algo já dito, ou seja, retoma elementos do discurso. Na função
dêitica, os pronomes demonstrativos são usados para singularizar os seres
referenciados no discurso. Segundo Fiorin (2011, p. 175), “da mesma forma
que não se pode discursivizar sem temporalizar, também não se pode falar
do mundo sem singularizar os seres a que nos referimos.”.
Os pronomes este e esse se referem ao espaço da cena enunciativa;
enquanto aquele se refere a algo que está fora dessa cena. Convém destacar
que o pronome demonstrativo este, na função dêitica, é utilizado para indicar
o espaço do enunciador, indica que algo está próximo do eu; enquanto que
esse indica o espaço do enunciatário, é o que está perto do tu. Exemplos:
A) Este livro que está comigo é emprestado da biblioteca. Observe que ‘este’
aponta para um objeto próximo de quem fala; B) Quanto tempo você gastou
para elaborar esse texto que está com você? O pronome demonstrativo ‘esse’
foi empregado para indicar um objeto perto de com quem se fala, isto é, o
enunciatário; C) Aquele presente que dei ao Professor foi comprado em Paris.
Aquele se refere a um objeto fora da cena enunciativa.
Na função coesiva, os pronomes demonstrativos são utilizados como
um mecanismo de coesão textual para se referir a uma porção do discurso.
Exemplo, O estudante visitou a biblioteca da universidade. Essa visita foi
acompanhada de vários colegas. Fiorin (2011, p. 175) lembra que o pronome

48 Letras Vernáculas EAD


demonstrativo “este é empregado em função catafórica; para conhecer
Para ampliação dos seus
esse, em função anafórica, indicando o que acabou de ser
conhecimentos acerca da
dito e aquele, também em função anafórica, marcando o que Semântica da Enunciação,
sugerimos o Curso Livre
foi dito há algum tempo ou noutro contexto.”. Exemplos, de Enunciação ministrado

A) Este é o livro do qual lhe falei; B) Ganhei muitas joias, pelo Professor José Luiz
Fiorin.
porém não me interesso por essas coisas; C) Aquele livro
Disponível em:
que li no ano passado me despertou o gosto pela literatura www.youtube.com/
clássica. watch?v=RQzJaFYiqhc

Outro emprego do pronome demonstrativo, na fun-

2
ção coesiva, diz respeito à retomada de dois elementos no

Unidade
texto. Nesse caso, o pronome demonstrativo este serve para
retomar o que foi pronunciado por último; enquanto que
aquele se refere ao que foi dito anteriormente. Por exemplo,
Amélia estudou o romance Dom Casmurro e Tieta do Agreste
para fazer o vestibular. Aquele foi escrito por Machado de Assis
e este, por Jorge Amado.
Vimos que, por intermédio das categorias de pessoa,
de tempo e de lugar, o enunciador organiza a cena enuncia-
tiva, transformando a língua em discurso.

ATIVIDADES

As questões a seguir foram elaboradas com o objetivo de contribuir


para a assimilação dos assuntos estudados até aqui. Propomos que você ti-
re suas dúvidas com o tutor. Após respondê-las, você poderá discutir com
seus colegas no Seminário Integrador. Depois, reformule suas respostas,
caso seja necessário, e entregue-as ao tutor.

1- Como você distingue enunciação e enunciado?


2- Quais as instâncias da enunciação?
3- Quais os fatores extralinguísticos que influenciam na enunciação?
4- Discuta quais as marcas linguísticas da enunciação.
5- O que é subjetividade na perspectiva da Teoria da Enunciação?
6- Como se caracteriza o tempo linguístico?
7- Assista ao filme O Discurso do Rei e discuta, à luz da enunciação,
que fatores linguísticos e extralinguísticos contribuíram para que o rei

UESC Módulo 5 I Volume 7 49


Semântica - Parte II

fosse incapaz de se instituir como sujeito de sua


própria enunciação. O filme O Discurso do Rei
conta a história de um homem que se preparava
para ser o Rei Jorge VI, porém havia um obstáculo
na sua voz, que foi diagnosticado como gagueira e
isso o impedia de almejar um lugar na cena política
e social.

8 - A partir da leitura do texto Chega desse


Fonte: http://cinema.uol.com.br/noticias/
efe/2011/02/02/firth-diz-que-papel-em-o-discurso- Negócio, faça uma análise das marcas da enuncia-
do-rei-foi-o-mais-dificil-de-sua-carreira.htm
ção presentes nele, levando em consideração as catego-
rias de pessoa, tempo e lugar.

Chega desse negócio


Manifesto contra a moda de se falar mal do Brasil

João Ubaldo Ribeiro


Sim, o Brasil tem problemas medonhos e não é um exemplo de desenvolvimento e jus-
tiça social, mas, com perdão da má palavra, já ando de saco cheio desse negócio de tudo aqui
ser o pior do mundo, ninguém aqui prestar e nada aqui funcionar e sermos culpados de tudo
o que de ruim acontece na Terra. Saco cheiíssimo de sair do Brasil e enfrentar ares de supe-
rioridade e desprezo por parte da gringalhada, todos nos olhando como traficantes de cocaína,
assassinos de índios e crianças, corruptos natos e mais uma vasta coleção de outras coisas, a
depender do país e da platéia.
Tem muito brasileiro que, nessas ocasiões, bota o rabo entre as pernas, já vi muitos.
Eu não. Posso ter envergonhado a Pátria por escrever mal ou me comportar de forma pouco re-
comendável em coquetéis literários, mas, em matéria de reagir a dichotes, nunca envergonhei.
Não nego os problemas brasileiros, mas me recuso a aceitar que sejamos os únicos vilões e que
não se veja em nós nenhuma qualidade positiva, a não ser sambar, distribuir abraços e beijos a
todos e exibir os traseiros de nossas mulheres a quem solicitar. Aí eu dou um troco a eles.
- Um jornal noticiou que matam 200.000 crianças por ano no Brasil. Isso é uma bar-
baridade! O que o senhor tem a dizer sobre isso?
- Não sei o número certo, mas matam-se crianças no Brasil, é verdade. E concordo, é
uma barbaridade. Mesmo que fosse uma só criança, já seria demais. Entretanto, aqui mesmo
em seu país, não faz tanto tempo assim, esse número que o senhor citou talvez fosse uma esti-
mativa conservadora não por anos, mas por dia. Sei que o senhor é de uma geração pós-guerra,
não tem nada com isso, nada disso se reflete sobre seu povo e, se fomos cavoucar muito, é
capaz de vocês descobrirem que Hitler tinha uma avó alagoana e é por isso que deu naquilo. As
coisas não são tão simples e, a depender das circunstâncias, qualquer povo é capaz de matar
crianças e criancinhas, seja apertando botões de bombas, o que não fazemos no Brasil, seja
dando no gatilho mesmo, o que, como vocês, também fazemos no Brasil, só que em escala
muitíssimo mais modesta, nunca chegamos à perfeição de vocês.
- Como se explica o extermínio dos índios brasileiros? – pergunta um americano.
- Do mesmo jeito que o extermínio dos índios americanos. Por causa da ganância,
brutalidade, arrogância, ignorância, etc. que são encontradas em nossos povos. Devo dizer,
contudo, que ó exército brasileiro nunca saiu tocando corneta a cavalo para metralhar índios,
índias, indiazinhas em suas aldeias, nem enforcou índios, escalpelou índios (o costume de escal-

50 Letras Vernáculas EAD


pelar foi aprendido pelos índios de vocês), nem mandou cobertores contaminados por sarampo
e catapora de presente para índios.
- Como é que o senhor pode ser escritor, num país de analfabetos?
- Porque, ainda que mal e porcamente, é a única coisa que sei fazer. E porque todo
povo tem sua literatura. Me fazem muito essa pergunta, e fico pensando que, por sermos po-
bres, não temos direito a nossos romances, nossas fantasias, nossos artistas, o que parece es-
tar implícito na pergunta. Só podemos ter pintores de parede, bailarinos folclóricos, escultores
de cerâmica, redatores de relatórios, compositores de música didática e assim por diante, ou
seja, devemos ser mais pobres ainda. Mas, de minha parte, vou continuar escrevendo.
E tem muito, muito mais: não fomos nós quem devastou a bombas Hiroxima e Dres-
den, não fomos nós quem oprimiu a maior parte do globo terrestre, não fomos nós quem
massacrou hindus, árabes, judeus, muçulmanos, curdos, armênios, chineses, indonésios, vie-
tnamitas, zulus e uma lista que não acaba nunca, não somos nós quem queima quase todo o

2
combustível fóssil do planeta, não somos nós... Chega desse negócio, eu não sou bandido, nós
não somos bandidos, nós somos brasileiros, eles que vão se catar, enfurnados lá no frio escuro

Unidade
e triste deles.

RIBEIRO, João Ubaldo. Chega desse negócio. In: FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristóvão. Oficina de
Textos. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. 132-133.).

RESUMINDO

Nesta aula, você viu que:


• a enunciação se caracteriza pela situação concreta de fala;
• a subjetividade é a apropriação da língua pelo enunciador, para
transformá-la em discurso;
• há três instâncias enunciativas, a saber, enunciador e enunciatá-
rio, narrador e narratário, interlocutor e interlocutário;
• as marcas linguísticas da enunciação são ancoradas nas catego-
rias de pessoa, tempo e lugar;
• os pronomes pessoais não têm o mesmo estatuto na cena enun-
ciativa, pois Benveniste faz distinção entre pronomes de pessoa
e não-pessoa;
• o tempo linguístico é o presente e se distingue do tempo físico
e do cronológico.

leitura recomendada

Para complementar a aula Semântica da Enunciação, recomendamos a leitu-


ra dos textos: O Homem na Língua. In: BENVENISTE, Êmile. Problemas de
Linguística Geral I. 3. ed. Campinas, SP: Pontes, 1991, p. 247-314. O apare-
lho formal da enunciação. In: BENVENISTE, Êmile. Problemas de Linguística
Geral II. 3. ed. Campinas, SP: Pontes, 1989, p. 81-90.

UESC Módulo 5 I Volume 7 51


Semântica - Parte II

REFERÊNCIAS

BENVENISTE, Êmile. Problemas de Lingüística Geral I. 3. ed. Campinas,


SP: Pontes, 1991.

_______. Problemas de Lingüística Geral. II. Campinas, SP: Pontes, 1989.


CHIERCHIA, Gennaro. Semântica. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP,
2003.

DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário Enciclopédico


das Ciências da Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1998.

FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristóvão. Oficina de Textos. 8. ed.


Petrópolis,RJ: Vozes, 2010.

FIORIN, José Luiz. As Astúcias da Enunciação: as categorias de pessoa,


espaço e tempo. 2. ed. São Paulo: Ática, 2010.

_________. Introdução à linguística II. São Paulo: Ática, 2011.


FLORES, Valdir do Nascimento; Teixeira, Marilene. Introdução à
Lingüística da Enunciação. São Paulo: Contexto, 2005.

HURFORD, James R.; HEASLEY, Brendan. Curso de Semântica.


Canoas, RS: ULBRA, 2004.

ILARI, Rodolfo; GERALDI, João Wanderley. Semântica. São Paulo:


Ática, 2000.

KOCH, Ingedore Villaça. A inter-ação pela linguagem. São Paulo:


Contexto, 1992.

LYONS, John. Linguagem e Lingüística: uma introdução. Rio de Janeiro:


LTC, 1987.

52 Letras Vernáculas EAD


MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdução à
Lingüística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2001.

OLIVEIRA, Luciano Amaral. Manual de Semântica. Petrópolis, RJ: Vo-


zes, 2008.

2
Unidade

UESC Módulo 5 I Volume 7 53


Semântica - Parte II

54 Letras Vernáculas EAD



unidade
aula1
ATOS DE FALA

3
Unidade
Objetivos
Ao final dessa aula, você deverá ser capaz de:
• compreender como a linguagem poderá ser utilizada para causar
certos efeitos no interlocutor;
• analisar as características dos atos de fala locucionários, ilocucio-
nários e perlocucionários;
• identificar atos de fala diretos e indiretos;
• avaliar as condições de felicidade e de sinceridade dos atos de
fala.

UESC Módulo 5 I Volume 7 57


Semántica - Parte II

58 Letras Vernáculas EAD


1 INTRODUÇÃO

Na aula passada, que tratou da Semântica da Enunciação, você viu


que essa abordagem do significado perpassa pela análise do modo como
o indivíduo se apropria da língua, para organizar o seu discurso. E ao
fazê-lo deixa alguns rastros no enunciado que são as marcas linguísticas
de pessoas, tempo e lugar. Viu ainda que a descrição do significado, nessa
perspectiva, leva em consideração o contexto efetivo em que os enunciados
são produzidos numa dimensão espaço-temporal. Isso projetou o estudo
da linguagem para um viés que privilegia o uso social da linguagem. Dessa
forma, o semanticista passa a levar em conta não só o produto da fala,
mas o contexto em que as sentenças, os enunciados ou os discursos são
engendrados.
Nesta aula, você aprenderá que a análise linguística do significado
incluirá o componente da dinâmica social, ou seja, o conhecimento que o
falante precisa ter para se mover no grande tabuleiro social. Não basta que
o sujeito saiba interpretar uma sentença, um enunciado ou um texto, ele

3
precisará também conhecer certas convenções sociais consagradas pelo

Unidade
uso ou por regras preestabelecidas. Desde um simples telefonema, um ato
solene, até o início e a conclusão de uma negociação exigem conhecimento
de estruturas linguísticas mais ou menos ritualizadas para a eficácia
desses atos. O sujeito falante,
além do conhecimento
da gramática, precisa ter
competência comunicativa
para fazer perguntas,
agradecer, prometer algo,
iniciar e terminar uma
conversa telefônica, dar
ordens, fazer um pedido,
agradecer a alguém, dentre
Fonte: http://pekdek.com/como-fazer-o-pedido-de-casamento/
outras situações.
Ilari e Geraldi (2000, p. 71) lembram que “há uma infinidade de
situações ‘cerimoniais’ cujo desenrolar-se é pontilhado por verbalizações
de tipo específico.”. De fato, são exemplos típicos dessas situações, além

UESC Módulo 5 I Volume 7 59


Semántica - Parte II

de outros, as sessões de colação de grau se iniciam, geralmente, com


a declaração do presidente que profere a seguinte fórmula: “Declaro
aberta a sessão”; e se encerram com outra fórmula convencional do tipo
“Declaro encerrada a sessão.”. O padre, quando celebra o casamento,
para que o ato surta os efeitos esperados pela instituição religiosa,
comumente, há o proferimento da seguinte fórmula: “Eu vos declaro
marido e mulher”. Em todas essas situações, o locutor, ao proferir as
fórmulas consagradas pelo uso, constitui uma nova situação no estado
das pessoas implicadas nos acontecimentos discursivos. Por exemplo,
um chefe de Estado que declare guerra a uma nação inimiga poderá
transformar a busca da paz social em um conflito armado.
Agora, analise os efeitos sugeridos pelas sentenças a seguir:

1. Declaro aberta a sessão.


2. Juro dizer a verdade somente a verdade.
3. Eu prometo deixar de fumar.
4. Peço-lhe desculpas.
5. Eu te perdoo.
6. Eu discordo de suas opiniões.

O que há de peculiar nas sentenças acima? Uma análise a


partir da ótica de John L. Austin vai dizer que essas sentenças não são
utilizadas apenas para proferir coisas ou descrever estado de coisas,
mas, efetivamente, para fazer coisas. Essa constatação de que certas
ações humanas podem ser realizadas pela linguagem foi batizada de
atos de fala. Austin ficou intrigado com a maneira como a Linguística
concebia a comunicação humana como uma decorrência de declarações
verdadeiras ou falsas. Na perspectiva verifuncional, uma sentença como
O estádio de futebol está lotado descreve um estado de coisas e o falante
poderá verificar se ela é verdadeira ou falsa, no momento da enunciação.
Fiorin (2012, p. 170) comenta que Austin “vai mostrar que a
Linguística se deixava levar por uma ilusão descritiva, pois é preciso
distinguir dois tipos de afirmações: as que são descrições de estado
de coisas [...] e as que não são descrições de estado de coisas.”.
Dessa constatação decorre a distinção entre atos constatativos e atos

60 Letras Vernáculas EAD


performativos. Destarte, o ponto de partida das pesquisas de Austin é a
descoberta da oposição entre enunciados performativos e constatativos.
Os enunciados performativos descrevem uma determinada ação do seu
locutor e ao mesmo tempo realiza essa ação. Exemplo. Um namorado
que diante da namorada profira o seguinte enunciado: “Você quer casar
comigo?” Esse ato é típico de pedido de casamento. Eu proponho mudar o
dia da avaliação. Constitui o ato performativo de propor. Enquanto que o
ato constatativo é aquele que faz uma asserção, normalmente, apresenta a
feição de um enunciado declarativo. Veja os exemplos a seguir:

1. Estudei pouco para realizar a avaliação.


2. Não há ninguém como você.

De acordo com Ducrot e Todorov (1998, p. 304):

Uma expressão é chamada de constatativa quando tende


apenas a descrever um acontecimento. Ela é chamada de

3
performativa quando: 1) descreve uma certa ação de seu
locutor e quando 2) sua enunciação consegue realizar

Unidade
essa ação; dir-se-á pois que uma frase que começa por
“Eu te prometo que” é performativa, pois, ao empregá-
la, realiza-se o ato de prometer: não só diz-se mas, ao
fazê-lo, promete-se.

O enunciado A Presidenta do Brasil é Dilma é apenas uma constata-


ção. Porém o enunciado Eu prometo erradicar a pobreza no Brasil, constitui
um ato perlocucionário. Trata-se de uma promessa, pois ao empregar o
verbo performativo prometer no enunciado realizou o ato de prometer. E
mais o fato de ser dito pela Presidenta da República o ato será bem suce-
dido, ou conforme a terminologia adotada pela Teoria dos Atos de Fala,
o ato reúne as condições de felicidade, ou seja, o enunciado foi proferido
por quem tem a legitimidade, ou seja, por quem pode realizá-lo. Os atos
constatativos são avaliados quanto à verdade ou à falsidade, enquanto que
os atos performativos são analisados à luz das condições de felicidade ou
de sinceridade.
De acordo com Armengaud (2006, p. 98), a teoria clássica dos atos
de fala tem como pano de fundo a convicção de que “a unidade da co-

UESC Módulo 5 I Volume 7 61


Semántica - Parte II

municação humana não é nem a frase nem qualquer outra expressão. É a


realização (performance) de alguns tipos de ato.”.
A Teoria dos atos de fala foi concebida no âmbito da Filosofia da
Linguagem, especialmente, pelos filósofos da Escola Analítica de Oxford.
John L. Austin é o precursor da concepção de que “Todo dizer é um fa-
zer”. Seus estudos foram seguidos e ampliados por John Searle, Strawson
e outros que se dedicaram a investigar os diversos tipos de ações humanas
que são realizados por meio da linguagem.
Na obra Como Fazer Coisas Com Palavras,
publicada em 1962, Austin apresenta sua con-
cepção de atos de fala. O ponto de partida para
investigação dessa teoria é a conclusão de que a
linguagem não tem como finalidade somente a
constatação de fatos, mas permitir que os inter-
locutores realizem coisas a partir do uso de certos
signos linguísticos.

Uma característica importante, na obra


de Austin Como Fazer Coisas Com Palavras, é a
constatação de que a linguagem não tem em mira
tanto a constatação de fatos, quanto a que possa-
mos fazer coisas com a própria palavra. Huisman
Fonte: http://www.elbuscon.es/images/
(2002, p. 66) comenta a obra de Austin, ressal-
portadas/9788475091419.jpg
tando que “a importância dos enunciados perfor-
mativos, que não são afirmações verdadeiras ou falsas nem contra-sensos,
mas enunciações que visam a realizar uma ação: apostar, batizar um barco,
casar-se...”. No dizer desse autor, Austin considera que, na realidade, to-
dos os enunciados são de certa maneira performativos.
Austin apresentou uma lista extensa dos atos de fala como: afirmar,
fazer uma pergunta, dar uma ordem, prometer, descrever, desculpar-se,
agradecer, criticar, acusar, felicitar, sugerir, ameaçar, suplicar, desafiar, au-
torizar.
Desse modo, à medida que o falante faz um proferimento está sus-
cetível de realizar um ou vários atos de fala.

62 Letras Vernáculas EAD


2 TIPOS DE ATOS DE FALA

Os atos de fala catalogados por Austin são classificados em três


tipos, a saber: atos locucionários, ilocucionários e perlocucionários.

ATOS DA FALA

LOCUCIONÁRIO ILOCUCIONÁRIO PERLOCUCIONÁRIO

Dizer algo com conteúdo É a ação que o falante Ato de causar um efeito
informacional realiza quando faz um no ouvinte
proferimento

saiba mais
O ato locucionário ou locutivo consiste na produção

3
Ato locucionário: a enuncia-
de um enunciado de acordo com as regras da língua, isto ção de uma sentença com

Unidade
sentido e referência deter-
é, resultante de uma articulação e combinação de sons e o minadas; ato ilocucionário: o
estabelecimento de ligações sintáticas entre as palavras e as ato de fazer uma declaração,
oferta, promessa, etc. ao
noções pretendidas pelo falante. É o ato linguístico de dizer enunciar uma sentença, em
virtude da força convencio-
algo. O falante o realiza apenas pelo fato de enunciar uma nal associada a ela (ou à sua
frase. São exemplos de atos locucionários, dentre outros: paráfrase performativo explí-
cita); ato perlocucionário: o
ato de causar efeitos no pú-
blico por meio de enunciação
1. O cachorro está solto na varanda.
da sentença, sendo tais efei-
2. Está fazendo frio. tos contingentes às circuns-
tâncias da enunciação.
3. Os acadêmicos de Letras são estudiosos.
4. O gato dorme sobre o tapete. (LEVINSON, Stephen C.
Pragmática. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2007. p. 300.).

O ato ilocucionário ou ilocutivo é aquele que se re-


aliza na língua. Esse ato possibilita uma transformação na
relação entre os interlocutores. O falante realiza o ato de
autorizar ao dizer Eu o autorizo a entregar o trabalho ama-
nhã. A raiz etimológica do vocábulo ilocucionário vem do
latim in = dentro, e locutio = discurso. O ato ilocucionário
é o que se faz quando se fala.

UESC Módulo 5 I Volume 7 63


Semántica - Parte II

Esse ato linguístico consiste na expressão da


intencionalidade do falante que ao proferi-lo realiza a ação
a que se propõe, a qual poderá ser uma pergunta, uma
ameaça, uma ordem, uma promessa etc.
Por intermédio dele, o locutor é capaz de
distinguir uma promessa de uma ordem,
de um desejo, de uma pergunta, ou de um
juramento etc.

Segundo Ducrot e Todorov (1998,


p. 304), Austin apresenta três critérios para
situar o ato ilocucionário:

É um ato realizado na própria fala e


não uma conseqüência (desejada ou
Fonte: http://farm8.staticflickr.com/7149/6574739709_
00ce3dc78b_o.jpg (Pormenor da capa do álbum ‘Division
não) da fala. Por esse motivo, ele pode
Bell’, dos Pink Floyd (1994) sempre – segundo critério - ser parafra-
seado e explicitado por uma fórmula
performativa (“Eu te pergunto se...”, “Eu
te ordeno que ...”, “Eu te aconselho
saiba mais
a...”). Enfim, o ato ilocucionário é sempre
O ato ilocucionário (ou sim- convencional.
plesmente a ilocução) rea-
lizado por um falante que
faz um enunciado é o ato O aspecto convencional do ato ilocucionário implica
visto em termos de signifi-
cância do enunciado dentro o falante conhecer certos ritos e convenções sociais, papéis
de um sistema convencio-
desempenhados pelos interlocutores, dentre outros. O
nal de interação social. Ilo-
cuções são atos definidos ato ilocucional, geralmente, depende do contexto da
por convenções sociais,
atos tais como abordar, enunciação. Um mesmo ato poderá ser compreendido de
acusar, admitir, desculpar-
diferentes formas. Isso porque o contexto da enunciação é
se, desafiar, reclamar, dar
pêsames, cumprimentar, preponderante para a compreensão dos atos de fala.
recusar, dar permissão,
dar passagem, saudar,
despedir-se, caçoar, no- Ato perlocucionário ou perlocutivo consiste no
mear, oferecer, elogiar, dar
passagem, prometer, pro- proferimento ou enunciado destinado a exercer certos
por casamento, protestar,
recomendar, render-se,
efeitos sobre o interlocutor como: persuadir, ofender,
agradecer, brindar. agradar, dentre outros.
(HURFORD, James R.;
HEASLEY, Brendan. Curso Conforme Hurford; Heasley (2004, p. 329), “ato
de Semântica. Canoas, RS:
perlocucionário (ou simplesmente perlocução) é realizado
Ed. ULBRA, 2004. p. 331.).
por um falante ao enunciar algo e é o ato de causar certo

64 Letras Vernáculas EAD


efeito no ouvinte e em outras pessoas.“ Esses autores explicam ainda
que “a perlocução de um enunciado é causar uma mudança, talvez não-
intencional, por meio do enunciado (do latim per ‘através, por meio de’.”.
O efeito pretendido pelo falante poderá ser alcançado ou não. Por
exemplo, um cientista, que se proponha a convencer uma comunidade
médica acerca de certos benefícios de um medicamento descoberto para
cura de uma doença, poderá não alcançar esse resultado. Alguém que
ameace outrem poderá não alcançar o intento, por diversas circunstâncias.
De acordo com Armengaud
(2006, p. 100), “os atos perlocucionários
são mais propriamente caracterizados
em termos de efeitos perlocucionários,
os efeitos produzidos por nossas
sentenças em nossos alocutários.”
.Constituem atos perlocucionários:
ficar emocionado, persuadido,
convencido, intimidado. Sendo que os

3
atos perlocucionários correspondentes

Unidade
são: emocionar, persuadir, convencer e
intimidar.
Fonte: http://elmisa.deviantart.com/art/Emocionado-
excited-75473835

Os atos perlocucionários são realizados com os verbos performativos


que, empregados nas sentenças na primeira pessoa, podem fazer com que
o enunciado contido na sentença seja performativo.
Por exemplo, os verbos prometer, perdoar,
condenar, autorizar, desculpar, dentre outros.
Nem todo ato performativo é realizado com
o verbo na primeira pessoa. Por exemplo, quando
um motorista lê numa placa a expressão Animal na
pista compreende que se trata de uma advertência.
Do mesmo modo a palavra Frágil numa embalagem
tem um efeito performativo, embora não tenha a
presença do verbo que indica esse tipo de ação.
Fonte: http://www.soh2.com.br/wp-content/
uploads/etiqueta-fragil.jpg

UESC Módulo 5 I Volume 7 65


Semántica - Parte II

Koch (1992, p. 20) destaca importante distinção entre os atos


ilocucionários e perlocucionários, “nos primeiros, ao contrário dos
segundos, a força ilocucionária poderia sempre ser explicada por meio
de um performativo.”. Para essa autora, quando se deseja convencer,
assustar ou agradar alguém, não basta dizer ‘eu (te) convenço’, ‘eu
(te) assusto’, ‘eu (te) agrado’ – a persuasão, o temor, a satisfação vão
decorrer (ou não) daquilo que é dito e da maneira como é dito.
De outro modo, vale destacar ainda que o ato perlocucionário
nem sempre atinge os seus efeitos; enquanto que o ato ilocucionário
realiza a ação que nomeia tão somente pelo fato de ser proferido.
Não há ato de fala isolado. Todo ato de fala é, ao mesmo tempo,
locucionário, ilocucionário e perlocucionário, caso contrário não seria
ato de fala. Por exemplo, quando alguém profere a frase Eu te perdoo, há
o ato de dizer que está presente nos elementos que constituem a frase.
Portanto, é um ato locutivo. A presença da forma verbal “perdoo” indica
que se trata de um ato ilocucional. Esse ato está inserido num contexto
da enunciação. Quando se enuncia essa frase, o resultado pode ser o
perdão ao interlocutor. Nessa situação, o ato é perlocucional. É notório
que nas interações por meio da língua, o enunciado proferido pelo
falante é dotado de certa força que produzirá no ouvinte determinado
efeito, mesmo que não seja o que o locutor visava.
Finalmente, é interessante notar que, muitas vezes, os atos
ilocucionais são expressos de forma indireta. Trata-se dos atos de fala
indiretos que foram investigados, notadamente, por John Searle.
Os atos de fala indiretos constituem uma categoria especial. Eles são
usados, especialmente, para expressar cortesia, polidez ou mesmo
ironia, dentre outros. Por exemplo, numa sala de aula, o professor de
Semântica observa que os alunos estão conversando, no momento da
aula e diz: “Fico muito feliz se vocês prestarem atenção na aula.”. O
enunciado quer dizer, exatamente, o que está dizendo, porém contém
um pedido implícito de silêncio. É comum a ocorrência desse tipo de
ato em uma mesa, por exemplo, onde estejam servindo uma refeição e
alguém, querendo ser polido diga: “Você, pode me passar o sal?”. Por
que esse ato é indireto? Ele é indireto, porque não está explicitado
com a fórmula performativa que corresponde ao ato de pedir. Ora, em

66 Letras Vernáculas EAD


várias situações, esses atos indiretos se fazem necessários, para atender a
diferentes intenções comunicativas, especialmente, para abrandar o tom
daquilo que é dito ou solicitado.

3 CONDIÇÕES DE FELICIDADE

Nem todo proferimento realizado pelo locutor está apto a surtir


os efeitos pretendidos, isto é, apto à concretização de um ato de fala. Os
atos de fala devem reunir algumas circunstâncias como o contexto, o lugar
social ocupado pelo interlocutor que envolve autoridade, legitimidade,
dentre outros aspectos, para que eles sejam bem sucedidos. Por sua vez,
há atos que se revestem de certas condições especiais, pois são altamente
institucionalizados.
Por exemplo, um enunciado cujo teor seja Declaro encerrada a aula,
para ter efeito, deverá ser proferido pelo professor que esteja ministrando
a aula. Caso contrário, o proferimento será considerado um blefe, uma

3
ironia, um insulto. Veja outro exemplo: Suponha que uma turma de

Unidade
formandos do curso de Psicologia de uma determinada Universidade,
desejando homenagear um professor, convida-o para uma cerimônia de
colação de grau, que será realizada pelos próprios alunos, sem a presença
do Reitor ou de seu representante legal, na qual o professor homenageado,
a pedido dos alunos, presidirá a cerimônia de colação de grau. O professor
homenageado aceita colar o grau dos discentes e profere a seguinte fórmula:
“Confiro grau de Psicólogo a fulano de tal.”. Ora, esse ato, apesar de ser
ilocucionário, não reúne as condições necessárias para a sua realização,
pois o seu proferimento pressupõe a uma autoridade acadêmica e em sua
falta a quem a autoridade designar.
Suponha agora que um padre destituído das funções eclesiásticas
pela igreja celebre um casamento, no qual profira a expressão: “Eu vos
declaro marido e mulher”. Há uma transgressão, neste ato, que impede
que ele tenha os efeitos próprios de uma cerimônia de casamento, pois o
padre está proibido de exercer essas funções. À luz dos dogmas da igreja
católica, o casamento realizado nessas condições não teve efeito.
Austin investigou as condições necessárias para que um ato de fala

UESC Módulo 5 I Volume 7 67


Semántica - Parte II

seja bem sucedido a que denominou de condições de felicidade. Trata-se


de circunstâncias da enunciação que permitem que um ato de fala seja
concretamente realizado.
Levinson (2007, p. 290-291) frisa que Austin distinguiu três
categorias principais de condições de felicidade:

A.(i) Deve existir um procedimento convencional


que tenha um efeito convencional.
(ii) As circunstâncias e as pessoas devem ser adequa-
das, conforme especificado no procedimento.
B.O procedimento deve ser executado (i) correta-
mente e (ii) completamente.
C.Muitas vezes, (i) as pessoas devem ter os pensa-
mentos, sentimentos e intenções requeridos confor-
me especificado no procedimento, e (ii) se a conduta
conseqüente é especificada, então, as partes relevantes
devem ater-se a essa conduta.

Para Hurford e Heasley (2000, p. 339), “as condições de felici-


dade de um ato ilocucionário são condições que devem ser satisfeitas na
situação em que o ato é realizado a fim de ser realizado apropriadamen-
te, ou de maneira feliz”.

saiba mais

As principais condições de sucesso de um performativo são: A enunciação de certas


palavras em determinadas circunstâncias têm, por convenção, um determinado efeito. Por-
tanto, as pessoas e as circunstâncias devem ser aquelas convenientes para a realização do
enunciado em questão. Por exemplo, se um faxineiro e não o presidente da Câmara diz Declaro
aberta a sessão, o performativo não se realiza, porque o faxineiro não é a pessoa que pode
executar a ação de abrir a sessão; por outro lado, se o presidente declara aberta a sessão
sozinho no seu gabinete, o performativo não se realiza, porque não está sendo executado nas
circunstâncias apropriadas para sua realização.
A enunciação dever ser executada corretamente pelos participantes. O uso da fór-
mula incorreta torna nulo o performativo. Assim, no batismo, é preciso usar a fórmula correta,
para que o performativo se realize. Se o padre diz Eu te perdoo em lugar de Eu te batizo, o
batismo não ocorre.
A enunciação dever ser realizada integralmente pelos participantes. Assim, quando
um performativo exige outro para ser realizado, é necessário que os dois sejam realizados para
que haja sucesso. Por exemplo, quando alguém diz Aposto dez reais como vai chover, para que
o ato de apostar tenha sucesso, é preciso que o outro aceite a aposta, enunciando a aceitação.

(FIORIN, José Luiz (Org.) Introdução à Linguística I: objetos teóricos. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2012. p.
171.).

68 Letras Vernáculas EAD


O ato ilocucionário deverá conter ainda as condições de sincerida-
de. Trata-se de condições que devem ser satisfeitas para o ato ser realizado
sinceramente, mas ausentes essas condições o ato não deixa de ser reali-
zado, como, por exemplo, o ato de alguém prometer algo que não tem a
intenção de cumprir. Suponha uma situação em que alguém diga: Quero
manifestar meus sinceros agradecimentos, sem que esse seja o sentimento de
fato. Entretanto esse aspecto foge a uma descrição linguística mais acura-
da, pois nem sempre há como saber se alguém está blefando ou dizendo a
verdade.

ATIVIDADES

As questões a seguir visam contribuir para a fixação dos conteúdos


estudados nesta aula. Após respondê-las, é recomendável que você discuta
com seus colegas no Seminário Integrador. Esclareça suas dúvidas com o
tutor. Depois entregue suas respostas ao tutor.

3
1- O que você compreendeu dos atos constatativos e dos atos per-

Unidade
locucionários?
2- Como você distingue ato ilocucionário de ato perlocucionário?
3- Explique quais os atos de fala presentes nas sentenças a seguir:
a) Perigo na estrada.
b) Somente agora pude participar da reunião.
c) Dou por encerrada a sessão de colação de grau.
d) Por favor, passe a salada.
e) Se você estudar mais, terá êxito na vida.
4- Suponha que você será homenageado (a) em uma cerimônia de
colação de grau como Amigo (a) da Turma. Para demonstrar a sua grati-
dão, faça um cartão dirigido à turma, agradecendo o convite. Não se es-
queça de utilizar o ato de fala adequado.
5- O que você entendeu por atos de fala indiretos?
6- Por que é importante saber as condições de felicidade dos atos
linguísticos? Justifique.
Dê as condições de felicidade para cada ato ilocucionário a seguir.
a) Autorizar;

UESC Módulo 5 I Volume 7 69


Semántica - Parte II

b) Concordar;
c) Desculpar-se;
d) Jurar;
e) Perdoar;
f) Presidir uma assembleia;
g) Prometer;
h) Propor;
i) Protestar;
j) Repreender.

7- Leia a seguir a íntegra da carta de demissão de Steve Jobs como


CEO da Apple e aponte quais os atos de fala presentes nesse texto:

“Ao Conselho de Administração da Apple e à Comunidade Apple,

Eu sempre disse que se chegasse um dia em que não pudesse mais cumprir as minhas obri-
gações e expectativas como CEO da Apple, eu seria o primeiro a deixar vocês sabendo disso.
Infelizmente, este dia chegou.
Com isto, eu renuncio como CEO da Apple. Eu gostaria de servir, se o Conselho entender que
assim caiba, como Chairman do Conselho, diretor e empregado da Apple.
No que diz respeito ao meu sucessor, eu recomendo vigorosamente que nós executemos nosso
plano de sucessão com a nomeação de Tim Cook como CEO da Apple.
Eu acredito que os dias mais brilhantes e inovativos da Apple estão no porvir. Eu espe-
ro observar e contribuir para este sucesso em um novo papel.
Eu fiz alguns dos melhores amigos da minha vida na Apple, e eu gostaria de agradecê-
los por todos estes anos de trabalho ao lado de vocês.
Steve”

Disponível em: http://revistaalfa.abril.com.br/tecnologia/tecnologia/leia-a-carta-de-demissao-


de-steve-jobs/Acesso em: 30 nov. 2012.

8 - O texto a seguir é um manual de boas maneiras publicado


pela caixa econômica. Comente a ocorrência de atos de fala diretos e
indiretos.

Cumprimentos

Em situações formais os norte-americanos costumam se cumprimentar com um


aperto de mãos firme e rápido ou com um aceno de cabeça acompanhado de uma sauda-
ção verbal. Já em ocasiões informais beijos na bochecha são aceitáveis entre mulheres e
pessoas de sexo oposto, desde que os envolvidos se conheçam bem. Se encontrar alguém
conhecido na rua quando estiver acompanhado, é educado apresentar seu acompanhan-
te. Cumprimente a todos em um grupo, pois saudar apenas os conhecidos é considerado
grosseiro.

70 Letras Vernáculas EAD


Conversas

Nos EUA procure ficar a uma distância mínima de 33 cm (a distância aproximada de um


braço esticado) quando conver-
sar com outras pessoas. O con-
tato visual é muito valorizado
por eles. Como no Brasil, de-
vem-se evitar temas polêmicos
como política e religião quando
não se conhece bem as pessoas
envolvidas. Também não con-
vém criticar o “american way
of life”, pois muitos norte-ame-
ricanos podem se sentir ofen-
didos. Se você estiver em um
grupo que está conversando em
inglês, não é educado falar em
outra língua mais do que duas
ou três frases. Se receber um
elogio, simplesmente agradeça.
Negá-lo para parecer modesto Fonte: http://www.materiaincognita.com.br/a-repercussao-do-
manual-de-etiqueta-para-turistas-nos-eua/#axzz2VMcz8h00
no Brasil, mas não nos EUA.

Traje

Mantenha suas roupas e sapatos sempre limpos e arrumados. Em ambiente formal, o dress

3
code comum para homens é terno e gravata e, para mulheres, tailleur com meia-calça e sapatos
altos. Mas convém que você pesquise um pouco como as pessoas se vestem no local para onde vai.

Unidade
Comportamento à mesa

Procure sentar-se ereto e não apoie cotovelos e antebraços à mesa. Para alcançar um
prato que está distante, peça educadamente para alguém mais próximo dele trazê-lo até você. E só
comece a comer quando todos estiverem comendo ou, ainda, quando quem o convidou autorizar.

Em restaurantes

Nos EUA, fazer contato visual com o garçom, com um aceno da cabeça, normalmente é
suficiente para chamar sua atenção. Em ambientes muito cheios, pode-se chamar o garçom educa-
damente com um “excuse me, waiter” ou erguer o dedo indicador com um aceno de cabeça. Se o
serviço for bom, deixe uma gorjeta de 15% do valor da conta.

Fumo

Antes de acender um cigarro, pergunte a quem estiver por perto se é permitido fumar naquele lugar
ou, ainda, se as pessoas à sua volta se importam, e prepare-se para a possibilidade de ouvir um
“sim”.

Em festas

Ao ser convidado para um evento na casa de alguém, é de bom tom perguntar ao anfitrião se ele
deseja que você leve alguma coisa. Se ele disser que não, leve assim mesmo um vinho ou alguma
sobremesa. Se o evento for uma festa de comemoração de aniversário, aposentadoria ou formatura,
mesmo que lhe digam que não é necessário dar presentes, leve uma lembrancinha acompanhada
de um cartão. Na dúvida, pergunte qual será o traje do evento. Se for sua primeira visita, leve um
presente ao anfitrião, como flores ou um vinho. Em casos de casamento pergunte pela “bridal regis-
try”, a lista de presentes. A tolerância para atrasos a festas é de uma ou duas horas após o horário

UESC Módulo 5 I Volume 7 71


Semántica - Parte II

combinado. Também é recomendável não prolongar muito a visita.

Títulos honoríficos e nomes

Nos EUA é comum chamar as pessoas pelo primeiro nome. No entanto, até que a pessoa
o autorize a tratá-la assim, chame-a pelo sobrenome precedido por um título honorífico (Mr. para
homens e Mrs. para mulheres).

Empregados

Não é educado chamar um empregado com gestos grosseiros ou falando alto. Estalar os
dedos ou assobiar é inaceitável. O correto é se aproximar dele ou acenar e dirigir-lhe a palavra edu-
cadamente. Seja cortês. Dizer “por favor”, “com licença” e “obrigado” só vai somar pontos para você.

Disponível em: http://vidaeestilo.terra.com.br/turismo/internacional/america/caixa-publica-guia-de-etiqueta-


para-brasileiros-nos-eua,f12eceafd294c310VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html
Acesso em: 08 abr. 2013.

RESUMINDO

Nesta aula, você viu que:

• John Austin foi o pioneiro no estudo dos atos de fala;


• os atos constatativos descrevem um estado de coisas e, portan-
to, têm natureza distinta dos atos performativos;
• os atos de fala são locucionários, ilocucionários e perlocucio-
nários;
• os atos de fala são realizados mediante certas convenções so-
ciais e de acordo com os papéis que os sujeitos desempenham
na sociedade;
• certos verbos empregados na 1ª pessoa produzem os atos per-
formativos, porém é possível que eles ocorram sem um verbo
performativo;
• os atos ilocucionários podem ser expressos indiretamente,
atendendo, às vezes, a uma necessidade de polidez linguística;
• os atos de fala, para serem bem sucedidos, precisam reunir as
condições de felicidade ou de sinceridade.

72 Letras Vernáculas EAD


REFERÊNCIAS

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DUCROT, Oswald. Princípios de Semântica Linguística: dizer e não


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Unidade
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MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdução


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74 Letras Vernáculas EAD


3
Unidade

UESC Módulo 5 I Volume 7 75


Semántica - Parte II

76 Letras Vernáculas EAD


aula 2
OS SENTIDOS IMPLÍCITOS

3
Unidade
Objetivos
Ao final da aula, você deverá ser capaz de:

• analisar os efeitos dos conteúdos implícitos advindos do enunciado


e do contexto da comunicação;
• compreender os subentendidos e pressupostos como formas de
sentidos implícitos;
• identificar os marcadores linguísticos de pressuposição;
• distinguir pressuposição de acarretamento;
• reconhecer a implicatura conversacional.

UESC Módulo 5 I Volume 7 77


Semántica - Parte II

78 Letras Vernáculas EAD


1 INTRODUÇÃO

Em uma sociedade como a nossa, conhece-


mos, é certo, procedimentos de exclusão. O
mais evidente, o mais familiar também, é a
interdição. Sabe-se bem que não se tem o di-
reito de dizer tudo, que não se pode falar de
tudo em qualquer circunstância, que qualquer
um, enfim, não pode falar de qualquer coisa
(Michel Foucault, 1996. p. 9.).

Nas aulas anteriores, que trataram da Pragmática,


da Semântica da Enunciação e dos Atos de Fala, você pôde
refletir acerca do movimento desencadeado no interior da
Linguística por teóricos que não aceitaram a linguagem como
um mero instrumento de comunicação. Os textos espelham as
intenções do seu produtor. Os sujeitos utilizam a linguagem
não só para informar, mas para prometer, interrogar, batizar,
jurar, aconselhar, persuadir, dentre tantos outros propósitos.

3
Logo o uso da linguagem, para atingir determinado fim, pode

Unidade
ser investigado pelo viés da Teoria dos Atos de Fala. Afinal,
aprendemos com Austin Como fazer coisas com palavras.
Nesta aula, daremos continuidade aos estudos referentes
às intenções linguísticas que permeiam certos acontecimentos
discursivos, porém sob outra perspectiva, a de que os sujeitos,
às vezes, têm necessidade de orientar o seu discurso para uma
perspectiva opaca do significado, o que implica dizer que nem
todos os conteúdos são expressos de maneira explícita. Esse
mecanismo de implicitação da linguagem tem sido utilizado
em diversos gêneros textuais como charges, piadas, anedotas,
propaganda, tirinhas, literatura etc. Os conteúdos implícitos
num texto podem ser usados para variadas finalidades. Podem
ser usados, por exemplo, em títulos de manchetes, filmes em
que se deseja despertar a curiosidade do expectador, ou mesmo
como uma estratégia de antecipação de sentidos.
Veja a propaganda a seguir:

UESC Módulo 5 I Volume 7 79


Semántica - Parte II

Fonte: http://www.cidademarketing.com.br/2009/sysfotos/imagensexibicao/
noticias/2012/junho2012/gillette.jpg

A ideia que está implícita na propaganda é a de que, se usar a marca


Gillette, poderá vencer a luta. Essa ideia é reforçada por meio da imagem
de Vitor Belfort, famoso lutador brasileiro.
Veja ainda o título do filme “Se beber, não case”. Ele é bastante su-
gestivo e leva quem lê a desejar assisti-lo. O conectivo ‘se’ funciona como
um marcador de pressuposição e constitui uma circunstância condicional.
Os sentidos implícitos no enunciado apontam que o interlocutor bebe e
que ele vai se casar. O filme “Se beber, não
case” narra a história de três amigos que vão a
Las Vegas para uma festa de despedida de sol-
teiro de casamento, na qual eles bebem bas-
tante e o noivo desaparece a pouco mais de 40
horas da realização da cerimônia. Para encon-
trá-lo, os amigos empreendem uma viagem de
volta para reconstituir os acontecimentos da
noite anterior. Porém o maior desafio é o de
se lembrarem do que aconteceu, uma vez que
estão de ressaca. A trama se desenrola com a
procura desse noivo que desaparece às véspe-
ras do casamento.
Dessa forma, o título do filme espelha
uma estratégia de significados implícitos co-
Fonte: http://geeksforthewin.blogspot.com.
mo forma de atrair espectadores.
br/2011/04/se-beber-nao-case.html

80 Letras Vernáculas EAD


Se, na situação comunicativa, a clareza na exposição
saiba mais
das ideias prepondera sobre as demais qualidades do texto,
As mensagens lingüísti-
por que os sentidos não literais são tão importantes em cas comportam às vezes
certos acontecimentos discursivos? Certamente, você foi implícitos que não podem
ser previstos com base
já interpelado, em algum momento, com indagações do apenas no sentido literal.
Importantíssimos para a
seguinte teor: com que direito você diz isso? Ou então, já
interpretação final da men-
ouviu alguém dizer: ‘não coloque palavras na minha boca’; sagem, esses implícitos só
podem ser descobertos por
ou ainda ‘eu não quis dizer isso’. Certamente que, em todas um trabalho de conjectura

essas situações, os sentidos implícitos figuram como a feito a partir de uma ava-
liação global da situação
estratégia mais adequada para produção do sentido visado. comunicativa, em que o
ouvinte procura recuperar
Esses procedimentos podem assumir feições e as intenções do falante.
propósitos muito diversificados. Foucault (1996), por Mensagens que compor-
tam esse tipo de implícito
exemplo, designou essa falta de transparência na linguagem são sempre interpretadas
como ‘indiretas’ e obrigam,
de interdição ao direito de o sujeito produzir o seu próprio tipicamente, o ouvinte a
discurso. São procedimentos de interdição a que todos os perguntar: ‘O que foi que
ele quis dizer com isso?’,
membros de uma sociedade estão sujeitos. De fato, mesmo ‘Aonde ele quer chegar?’
etc.
numa sociedade democrática como a nossa, paira sobre a

3
circulação dos discursos certos silenciamentos advindos de (ILARI, João Rodolfo. Introdu-

Unidade
ção à Semântica: brincando
vários fatores de ordem. com a gramática. São Paulo:

A falta de transparência dos sentidos e a descrença Contexto, 2004.p. 92.).

no sentido literal levaram linguistas e filósofos a romperem


com o modo mecanicista como a Linguística tradicional
tratou as manifestações discursivas. Em decorrência dessa
mudança de olhar acerca da produção dos significados
explícitos e implícitos, acrescentou aos estudos semânticos
a investigação sobre o uso social da linguagem.
Ducrot foi um dos primeiros linguistas a estudar os
implícitos da linguagem. Na obra denominada Princípios de
Semântica Linguística – dizer e não dizer, publicada em 1972,
o autor desenvolve argumentos que contestam a concepção
de língua enquanto um simples meio de comunicação,
conforme foi preconizado pela Linguística tradicional.
De acordo com sua teoria, nas relações intersubjetivas,
o discurso pode assumir o caráter de uma ordem,
interrogação, promessa, permissão, dentre outros. Ducrot

UESC Módulo 5 I Volume 7 81


Semántica - Parte II

(1972, p.12) constata que:

A língua então, não é mais apenas o lugar onde os indiví-


duos se encontram; ela impõe também, a esse encontro
formas bem determinadas. Não é mais somente condi-
ção de vida social, mas um modo de vida social. Ela perde
sua inocência.

Nesse aspecto, Ducrot (1972, p.12) deixa de lado a concepção de


Saussure de língua como código que serve de comunicação, pois, no seu
entender, “a língua é considerada como um jogo, ou melhor, como um
estabelecimento das regras de um jogo, e de um jogo que se confunde com
a existência cotidiana.”. Essa objeção tem como base o fato de que, para se
admitir que as línguas naturais sejam códigos destinados à transmissão da
informação entre os indivíduos, seria aceitar que os conteúdos expressos
sejam explanados de maneira literal.
Ducrot (1972, p. 13) observa que, “muitas vezes, temos a necessidade
de, ao mesmo tempo, dizer certas coisas e de poder fazer como se não
as tivéssemos dito; de dizê-las, mas de tal forma que possamos recusar
a responsabilidade de tê-las dito.”. Dessa forma, a língua pode ser vista
como o lugar tanto das significações explícitas pelos enunciados, como o
lugar das significações implícitas.
Afinal, quem já não ouviu a expressão Para quem sabe ler, um
pingo é letra, ou ainda Para bom entendedor, meia palavra basta. Essas
situações mostram que, intuitivamente, os interlocutores sabem que há
uma incompletude na forma de dizer algo. Esse vazio deixado no texto
intencional ou não, poderá ser preenchido pelo ouvinte a partir dos
elementos linguísticos ou contextuais envolvidos na situação comunicativa.
Os sentidos implícitos são decorrentes de muitos fatores como:
situacionais, culturais, éticos, psicológicos, convencionais, cognitivos,
dentre outros. Por outro lado, o produtor do texto conta com certos
conhecimentos do seu interlocutor, ou seja, há uma parcela do conhecimento
que é compartilhada e isso é levado em conta no momento da produção e
recepção do texto. Logo se torna necessário que, na produção dos sentidos
implícitos, o leitor ou ouvinte estabeleçam uma relação de inferência. A
inferência, para Koch e Travaglia (1992, p. 65) “é a operação pela qual,
utilizando seu conhecimento de mundo, o receptor (leitor/ouvinte)

82 Letras Vernáculas EAD


de um texto estabelece uma relação não explícita entre
dois elementos [...] deste texto que ele busca
compreender e interpretar.”.
À guisa de ilustração, considere a capa da
Veja, que traz como manchete “Comer certo”.
Em seguida, apresenta os seguintes enunciados:
1. “O que fazia mal agora faz bem”; 2. “Por que as
dietas falham.”. Certamente que o produtor da
matéria conta com alguns conhecimentos prévios
do leitor, como o de que algumas dietas fazem
restrições a certos alimentos que, seguramente,
serão tratados nessa matéria jornalística, e o de
que o leitor tem conhecimento de outras dietas
etc. Enfim, para compreender a reportagem, o
Fonte: http://veja.abril.com.br/idade/
leitor deverá recorrer ao conhecimento prévio exclusivo/210307/imagens/capa380.jpg

acerca do que já leu ou conhece acerca de dietas. saiba mais

3
Quase todos os textos que
lemos ou ouvimos exigem
O que leva, então, o sujeito a produzir sentidos

Unidade
que façamos uma série de
implícitos? Na ótica de Ducrot (1972, p. 12-13), uma das inferências para podermos
compreendê-los integral-
causas que justificam os implícitos diz respeito ao fato de mente. Se assim não fos-
se, nossos textos teriam de
que há em toda coletividade, até nas visivelmente liberais ser excessivamente longos
ou livres, um conjunto inegociável de tabus linguísticos para poderem explicitar
tudo o que queremos co-
que ocorre não apenas no nível do léxico. De igual modo municar. Na verdade não
é assim: todo texto asse-
há “temas inteiros que são proibidos e protegidos por
melha-se a um iceberg – o
uma espécie de lei do silêncio (há formas de atividade, que fica à tona, isto é, o
que é explicitado no texto é
sentimentos, acontecimentos, de que não se fala)”. Além apenas uma pequena parte

disso, há para cada locutor, de modo particular, informações daquilo que fica submerso,
ou seja, implicitado. Com-
que não lhe compete dar, não por ser objeto de proibição, pete, portanto, ao receptor
ser capaz de atingir os di-
“mas porque o ato de dá-las constituiria uma atitude versos níveis de implícito,
considerada repreensível”. se quiser alcançar uma
compreensão mais profun-
Todavia, às vezes, há temas proibidos que precisam ser da do texto que ouve ou lê.

ditos, ou, pelo menos que haja uma forte razão para serem (KOCH, Ingedore Villaça;
ditos. Mas, ao proferi-los o sujeito se resguarda por meio de TRAVAGLIA, Luiz Carlos.
A coerência textual. 4. ed.
mecanismos linguísticos. Nesse caso, Ducrot (1972, p.14) São Paulo: Contexto,
1992, p. 65.).
afirma que “torna-se necessário ter à disposição modos

UESC Módulo 5 I Volume 7 83


Semántica - Parte II

implícitos de expressão, que permitem deixar entender sem acarretar a


responsabilidade de ter dito.”.
Fiorin (2012, p. 181) lembra que “para que alguém perceba os
conteúdos implícitos, eles precisam estar marcados, seja no enunciado,
seja na situação de comunicação”. Como são constituídos os sentidos
implícitos? Considere as duas sentenças seguintes:

1- O fotógrafo tirou as fotos das mulheres que são bonitas.


2- O fotógrafo tirou as fotos das mulheres, que são bonitas.

As duas sentenças têm o mesmo sentido? A sentença ‘que são


bonitas’ implica os mesmos pressupostos em ambos enunciados? Explique
por quê.
A oração ‘que são bonitas’ é uma adjetiva restritiva. O que está
implícito é que apenas as mulheres bonitas foram fotografadas. A falta de
vírgula entre a oração principal e a adjetiva restritiva leva a essa conclusão.
Na sentença 2, está implícito que todas as mulheres bonitas foram
fotografadas. A vírgula deixa implícito que a informação se refere a todo
o conjunto de elementos da frase. As orações adjetivas funcionam como
marcadores linguísticos de pressuposição. O uso ou a omissão da vírgula
permite essas leituras que acabamos de fazer.
Agora, considere a tirinha de Mafalda a seguir:

A tirinha de Mafalda
mostra que a professora
solicita uma palavra que
comece com a letra ‘p’.
Mafalda fica preocupada de
Manolito pronunciar uma certa
palavra que, aos olhos dela,
é um palavrão. Quando ele
pronuncia a palavra “política”,
Mafalda fica surpresa pela
coragem de o colega proferir
a palavra “política” que ela a
Disponível em: http://atualidadesdatv.blogspot.com.
br/2011/05/mafalda.html. Acesso em: 18 dez. 2012
considera um palavrão. O que

84 Letras Vernáculas EAD


está implícito na fala de Mafalda? Além da referência feita à palavra
“política” como palavrão, ela está grafada entre aspas. Na situação
discursiva, esse implícito poderá remeter à ideia de desgaste, de descrença
que a política representa na atual conjuntura do país. No entanto isso
não foi verbalizado, apenas foi deixado entrever no diálogo.
Outra causa que justifica o uso dos implícitos na ótica de Ducrot
(1972, p. 14) seria o fato de que “toda afirmação explicitada torna-se,
por isso mesmo, um tema de discussões possíveis. Tudo que é dito pode
ser contradito”. O falante ao expor uma ideia está sujeito a objeções,
confrontos ou refutações dos interlocutores. É por isso que o falante, às
vezes, apela para meios mais sutis e menos comprometedores ou ainda
busca o recurso da polidez linguística para expressar as suas ideias.

2 MECANISMOS DE SIGNIFICAÇÃO IMPLÍCITA

Os implícitos são constituídos por meio do uso de algumas


estratégias comunicativas. Eles não se manifestam do mesmo modo

3
em todas as situações de fala. Ducrot (1972, p. 15) identificou três

Unidade
categorias de implícitos, a saber: implícito do enunciado; implícito
fundado na enunciação denominado de subentendido; e, finalmente,
pressuposição.
De acordo com Ducrot (1972), o implícito do enunciado
constitui um procedimento cuja ocorrência se dá da seguinte forma:
para deixar de entender os fatos que não queremos
assinalar, de modo explícito, apresentamos, em seu
lugar, outros fatos que podem aparecer como a
causa ou a consequência necessárias dos primeiros.
Por exemplo, dizemos que, na Argentina, vimos
muitos brasileiros, para falarmos, indiretamente,
que visitamos aquele país.
O mecanismo de implícito no enunciado é
muito utilizado em textos propagandísticos. Veja,
na propaganda a seguir, como isso ocorre.

Disponível em: http://portaldoprofessor.mec.gov.


br/index.html. Acesso em: 25 nov. 2012

UESC Módulo 5 I Volume 7 85


Semántica - Parte II

O enunciado Dicas Capricho do Boticário para uma vida + feliz, que


é dirigido ao público feminino, sugere, que ao adquirir todos os produtos
anunciados, o destinatário deverá usá-los para obter a felicidade.
O funcionamento dos implícitos do enunciado pode ser verificado
ainda, no exemplo a seguir, que foi apresentado por Ilari (2004, p. 97), em
que ele indaga como o falante interpretaria esta sequência de perguntas (de
um juiz) e respostas (de um acusado) registrada durante uma audiência no
tribunal?”

Pergunta: A senhora passou alguma vez a noite com este homem em N. Iorque?
Resposta: Eu me recuso a responder a essa pergunta!
Pergunta: A senhora passou alguma vez a noite com este homem em
Chicago?
Resposta: Eu me recuso a responder a essa pergunta!
Pergunta: A senhora passou alguma vez a noite com este homem em
Miami?
Resposta: Não!

Ora, ao se recusar a responder às perguntas anteriores, e a última,


negar com veemência, a Senhora interrogada deixa implícito que as demais
perguntas são afirmativas. E por que não disse isso, então? Porque, ao não
dizer, ela não se compromete. E poderá objetar qualquer tipo de inferência
que possa responsabilizá-la pelo que está sendo perguntado.
O humor da piada reside no fato de que as perguntas a que a
interrogada se recusa a responder deixam entrever que são afirmativas e,
portanto, a recusa de revelar aquilo que de fato ocorreu.
Os programas humorísticos trabalham muito com essa estratégia de
inferência textual. Quem não se lembra do bordão “Prefiro não comentar”,
dito pela personagem Copélia (Arlete Sales), no programa Toma lá, dá cá,
exibido pela TV Globo, que se tornou inesquecível? O humor do bordão
é extraído a partir das narrativas que a aludida personagem relatava acerca
das suas experiências amorosas e criava uma expectativa para anunciar o
desfecho dos casos, pois insinuava que ocorriam situações inexprimíveis.
O humor era, exatamente, esse suspense que causava no telespectador.
Nas situações analisadas, os procedimentos de implicitação se
estruturam na organização interna dos enunciados. De acordo com Ducrot
(1977, p. 16), esse tipo de implícito resume-se em:

86 Letras Vernáculas EAD


Deixar não-expressa uma afirmação necessária para a
completude ou para a coerência do enunciado, afirmação
à qual a sua própria ausência confere uma presença de
um tipo particular: a proposição implícita é assinalada – e
apenas assinalada – por uma lacuna no encadeamento das
proposições explícitas. Ela tem uma existência indiscu-
tível, já que a própria lacuna é indiscutível, mas tal exis-
tência permanece sempre oficiosa - e objeto possível de
desmentido – na medida em que só o destinatário, e não
o locutor, é chamado para preencher a lacuna.

Os sentidos que são produzidos derivados do implícito do enun-


ciado podem suscitar possíveis desmentidos ou interpelações, consideran-
do que o preenchimento das lacunas deixadas no discurso não é realizado
pelo locutor e sim pelo destinatário.

2.1 Subentendidos

O subentendido diz respeito ao implícito fundado na enunciação.

3
De acordo com Fiorin (2012, p. 184), “os subentendidos são informações

Unidade
veiculadas por um dado enunciado, cuja atualização depende da situação
comunicativa”. Assim, a produção do sentido está contextualizada nas si-
tuações concretas de fala. Por outro lado, o uso da palavra está condiciona-
do a algumas regras inerentes à produção dos discursos. É certo que não se
pode falar de tudo, nem dizer tudo a qualquer pessoa. Até mesmo aquele
que produz o discurso deverá saber de que lugar fala, para refletir sobre a
pertinência e implicação de seu proferimento. Ducrot (1977) salienta que
o ato de tomar a palavra não é um ato livre nem gratuito. Não é livre, no
sentido de que certas condições devem ser satisfeitas, para que se tenha o
direito de falar; não é gratuito no sentido de que toda fala deve ter uma
motivação, um escopo.
Como funciona, então, o subentendido do discurso?
O estudo de caso a seguir ajudará na compreensão dos processos
de implicitação no texto. Suponha que um funcionário de uma grande
empresa tenha planejado sua carreira para alcançar um lugar de chefia. Para
tanto, se esforça para ser criativo e produtivo; além disso, é considerado um
líder por seus colegas de trabalho, pois todos o admiram. Ocorre que ele

UESC Módulo 5 I Volume 7 87


Semántica - Parte II

já trabalha na empresa há sete anos, recebe elogios pelo seu desempenho,


porém não obteve a sonhada promoção. Em contraposição, colegas de
trabalho que não têm o mesmo desempenho que ele obtiveram promoção
com menos tempo na empresa. Um dia, o aludido funcionário pergunta
ao chefe imediato: “A empresa possui critérios de promoção de seus
funcionários?” O chefe responde que a empresa está se reestruturando e
não está prevista promoção agora.
O que está subentendido na pergunta do funcionário é que a
empresa não possui critérios claros de promoção e que não valoriza o
esforço de seus empregados. Por outro lado, a resposta do chefe imediato
deixa entrever que o funcionário está pedindo uma promoção. Esse pedido
fica evidenciado pelo uso de um ato de fala indireto.
O sentido, nesse caso, é construído pelo ouvinte; portanto a
conclusão a que chegou o chefe é da responsabilidade dele. Nesse embate
discursivo, o funcionário pode se esconder no sentido literal do enunciado
e negar que tenha dito o que o chefe depreendeu de seu proferimento.
Nesse caso, cabe aquela expressão Não ponha palavras em minha boca.

Fonte: http://cdn.mundodastribos.com/267433-grafico-mulher.jpg

Conforme explanado anteriormente, os sentidos subentendidos,


constituídos no ato da enunciação, são aqueles que surgem a partir da
análise do contexto concreto de fala. A compreensão ocorre perguntando-
se por que o enunciador disse o que disse, e quando se considera tais razões
como parte integrante do que foi dito. O subentendido é uma forma de
sugerir algo, sem que isso seja dito literalmente. Portanto é uma estratégia
utilizada pelo falante para não se comprometer com as interpretações

88 Letras Vernáculas EAD


possíveis.
Platão e Fiorin (1996, p. 310) salientam que “os subentendidos são
insinuações não marcadas numa frase ou num conjunto de frases”. Nesse
caso, a produção do sentido fica a cargo do ouvinte.
Por exemplo, um professor, na sala de aula, sentindo muito frio,
desejando desligar o ar condicionado que está ligado no grau máximo, diz
que a sala está muito fria. O contexto da enunciação permite inferir que ele
está pedindo para desligá-lo.
Para ilustrar o subentendido, leia a tirinha a seguir e explique
o sentido que está implícito na fala de Helga no segundo quadrinho. É
possível depreender concepção de casamento a partir da fala de Helga?

3
Unidade
Disponível em: www.aprendaproduzir.blogspot.com. Acesso em: 15 dez. 2012

Veja ainda o efeito de sentido causado pela informação implícita


contida na tirinha a seguir:

O que você acha que causou o humor na tirinha?


Os implícitos constituem o lugar de o locutor se proteger de
possíveis acusações contra ele acerca do que foi dito. Ducrot (1977, p.
20) considera que o problema do implícito “é saber como se pode dizer
alguma coisa sem, contudo aceitar a responsabilidade de tê-la dito, o
que, com outras palavras, significa beneficiar-se da eficácia da fala e da

UESC Módulo 5 I Volume 7 89


Semántica - Parte II

inocência do silêncio”.
Ducrot (1977, p. 142-143) salienta que há duas características
do subentendido que podem ser apresentadas da seguinte forma: a
primeira “é a sua dependência em relação ao contexto, sua instabilidade.”.
Consequentemente, a constituição dos sentidos subentendidos varia de
acordo com o contexto e com o ouvinte implicado na situação de fala. A
segunda característica é o fato de sempre existir, para qualquer enunciado,
um ‘sentido literal’ do qual os seus subentendidos eventuais ficam
excluídos. Esses aparecem, portanto, como acrescidos.
Suponhamos que um político tenha enriquecido ilicitamente e seus
filhos, em uma discussão na escola, ouvem de um colega a seguinte frase
“Meu pai não enriqueceu de maneira ilícita”. Ao que o filho do político
responde: “Você está dizendo que o meu pai é corrupto?” O locutor poderá,
para se livrar da responsabilidade, utilizar fórmulas textuais como: “Não
foi isso que eu quis dizer”. “Não ponha palavras na minha boca.” E deixar
para o ouvinte a responsabilidade da interpretação. Uma particularidade
das mensagens subentendidas é a inevitável vantagem de possibilitar ao
falante poder sempre ser retratado.

2.2 Pressupostos

A noção de pressuposição ocupa um lugar central na teoria dos


implícitos linguísticos. Ducrot (1977, p. 77) destaca essa forma de implícito
como tendo um papel proeminente - talvez o mais importante “na grande
comédia da fala”. Esse linguista sustenta que:

Assim como afirmar não é dizer que se quer fazer saber,


mas fazer saber, realizar o ato de informar, desempenhar
o papel de quem informa – pressupor não é dizer o que
o ouvinte sabe ou o que se pensa que ele sabe ou deve-
ria saber, mas situar o diálogo na hipótese de que ele já
soubesse; é desempenhar o papel de alguém de quem o
ouvinte sabe que...

Como funciona a pressuposição? Para mostrar como ocorre o pres-
suposto, considere o seguinte enunciado: “Concluí o estudo universitário,
mas consegui emprego na área de minha formação”. As duas sentenças,

90 Letras Vernáculas EAD


isoladamente, contêm uma informação explícita, portanto trata-se do con-
teúdo posto:
a) Concluí estudo universitário.
b) Consegui emprego na área de minha formação.

Nesse caso, quando as orações se juntaram, surgiu uma informa-


ção implícita. A mensagem implícita decorre da junção das duas orações,
mediante o operador argumentativo “mas”, que indica oposição a uma
ideia. Dessa forma, a sentença “Concluí o curso universitário”, constitui o
conteúdo posto, isto é, informação literal; enquanto que a sentença, “mas
consegui emprego na área de minha formação”, contém a ideia pressupos-
ta de que o ensino universitário não prepara para a atuação no mercado de
trabalho. O que leva o ouvinte a essa conclusão? A conjunção “mas”, que
funciona como operador argumentativo de oposição, isto é, liga dois pen-
samentos contrários, prevalecendo a ideia que está na parte do enunciado
no qual está inserida essa conjunção.
Para ilustrar um pouco mais, considere a situação a seguir. Conta-

3
se que, certa vez, num determinado curso de graduação, havia um aluno

Unidade
que fazia muitas perguntas, e algumas eram consideradas pelo professor
da disciplina muito óbvias. Um dia, após explanar o assunto, o professor
concedeu a palavra para que todos os discentes pudessem fazer perguntas.
Porém antes indagou ao estudante questionador se tinha alguma dúvida e
ele respondeu que não. Dessa forma, o professor concluiu: “Se até mesmo
fulano de tal entendeu o assunto, significa que todos entenderam.”. Aque-
le comentário teve uma repercussão negativa na sala de aula; pois, a partir
daquele dia, ninguém mais foi estimulado a perguntar. O que significa que
a mensagem pressuposta todos a entenderam. Veja que, nesse exemplo,
duas expressões foram preponderantes para caracterizar o implícito: a cir-
cunstância condicional “se” e “até mesmo” que permitem as inferências,
ou seja, as leituras possíveis.
Para Platão e Fiorin (1996, p. 307), “pressupostos são idéias não
expressas de maneira explícita, que decorrem logicamente do sentido de
certas palavras ou expressões contidas na frase”.
Os pressupostos se ancoram nas expressões linguísticas para pro-
duzir significações implícitas.

UESC Módulo 5 I Volume 7 91


Semántica - Parte II

2.2.1 Marcadores linguísticos de pressuposição

Como você observou, há palavras que possuem significados pré-


estabelecidos na língua que permitem a veiculação de informações não
literais e de significados implícitos que não dependem das situações
comunicativas concretas. A presença desses elementos, no enunciado, é
o que permite distinguir os significados pressupostos do conteúdo posto,
que é o significado literal.
A língua portuguesa dispõe de um repertório imenso de palavras
que, por si mesmas, veiculam significações implícitas, independentemente
das situações em que forem utilizadas. Essas palavras são conhecidas como
marcadores de pressuposição.
Os pressupostos são informações implícitas veiculadas pelo
enunciado, por meio do léxico. Certas palavras e expressões se caracterizam
por veicularem informações implícitas nos enunciados em que estão
inseridos. É o que ocorre, por exemplo, com os verbos elocutivos que
denotam continuação, permanência ou mudança de estado como: continuar,
cessar, parar, começar a, tornar-se, transformar-se etc. Na sentença, O
Brasil continua se preparando para sediar a Copa do Mundo, a informação
pressuposta é que a preparação para sediar a Copa do Mundo já se iniciou.
Veja outro exemplo, O artista se tornou a pessoa mais influente na campanha
contra a exploração de
trabalho infantil. O sentido
que está implícito é o de que
há outras pessoas influentes,
porém “o artista” se destaca.
Certos advérbios,
que exprimem circunstâncias
de tempo, de negação etc.
Observe, atentamente, a
peça publicitária a seguir.

Fonte: http://vinoblok.com.br/wp-content/uploads/2012/03/338
0153015_67d523e2b9.jpg

92 Letras Vernáculas EAD


O enunciado Não deixe a dengue estragar o seu verão traz como
informações implícitas a ideia de que há ocorrência de dengue e que ela
já estragou o verão antes. Certos pronomes como os interrogativos, os
possessivos e os indefinidos são produtores de significações implícitas.
Veja os exemplos: Quem apagou o recado que estava na lousa? A presença
do pronome interrogativo na sentença produz os seguintes sentidos, a
saber, havia um recado na lousa e alguém o apagou. Considere a sentença
Quantos livros os alunos leram nas férias? A informação implícita é a de
que os alunos leram livros nas férias. Veja ainda a sentença Todos os amigos
de Pedro foram ao aniversário dele. O sentido que está implícito é o de
que Pedro tem amigos e que ele comemorou o próprio aniversário. Quem
concluiu a elaboração do artigo científico? A informação implícita é a que
havia alguém elaborando um artigo científico.
Certos prefixos como re, des, en, in, são produtores de implícitos.
Por exemplo, na sentença O Chefe de Estado reafirmou que o país vai
crescer. Pressupõe que o Chefe de Estado já havia afirmado isso antes. A
sentença O jornalista desfez o mal-entendido, pressupõe que houve um

3
mal-entendido.

Unidade
Algumas circunstâncias de tempo, de comparação, de finalidade
etc, são produtoras de significações implícitas. A sentença Os alunos
não concluíram a resenha ainda pressupõe que
os alunos já deveriam ter concluído a resenha,
considerando que o operador argumentativo
‘ainda’, nesse caso, indica excesso temporal.
Agora, aplicando os seus conhecimentos
sobre os sentidos implícitos, como você
interpreta a manchete de capa da Revista Veja,
publicada em 20/02/2013, chamada O sacrifício
de Bento XVI para salvar a igreja.

Sendo os subentendidos e os pressupostos


dois modos de produzir significados implícitos,
como distingui-los? É possível depreender que há
traços que distinguem os significados não literais.
Fonte: http://1.bp.blogspot.com/-xbT1vuTWBao/
Uma distinção capital entre esses implícitos é que USItHCTEbCI/AAAAAAAAAHw/r1b0jEb6gyo/
s1600/capa1n_veja.jpg

UESC Módulo 5 I Volume 7 93


Semántica - Parte II

os subentendidos são produzidos no contexto da enunciação,


isto é, em situações discursivas concretas, o ouvinte alcança
saiba mais
o significado por meio de inferência; enquanto que os
A diferença entre pres-
suposto e subentendido pressupostos são veiculados com o suporte dos marcadores
é que aquele é uma in-
linguísticos de pressuposição. Uma informação pressuposta
formação indiscutível, ou
apresentada como tal, não poderá ser negada, diferente dos subentendidos que
tanto para o falante quan-
to para o ouvinte, pois de- poderão ser contestados ou contraditos. De acordo com
corre necessariamente do
Illari (2004, p. 85), “uma informação é pressuposta quando
sentido de um marcador
linguístico, enquanto este ela se mantém mesmo que neguemos a sentença que veicula”.
é de responsabilidade do
ouvinte. O pressuposto
Se um aluno disser que o professor hoje chegou cedo,
pode ser contestado, mas pressupõe que ele chegava tarde. Assim, a sentença acima
é formulado para não o
ser. Já o subentendido pressupõe o conteúdo veiculado, e dessa forma, podemos
é construído, para que o
falante, caso seja interpe-
imaginar que em outros dias o professor se atrasa.
lado, possa, apegando-se
ao sentido literal das pa-
lavras, negar que tinha 2.2.2 Pressuposição e acarretamento
dito o que efetivamente
quis dizer.
Como você viu, a pressuposição é uma forma de
(FIORIN, José Luiz.
(Org.). Introdução ao Es- implícito cuja produção do significado constitui uma
tudo de Linguística I: ob-
decorrência lógica de um elemento linguístico presente no
jetos teóricos. 6. ed. São
Paulo: Contexto, 2012. enunciado.
184.).
Os sentidos implícitos estão relacionados ao
fenômeno linguístico denominado de acarretamento. A
noção de acarretamento decorre da relação entre sentenças,
na qual a verdade de uma sentença resulta na verdade de
outra. Por isso se diz que o acarretamento não resiste a uma
negação. Quando dizemos, por exemplo, Os professores
de Letras foram graduados no último mês, acarreta que
eles eram alunos de uma instituição de ensino superior e
cursavam Letras. Veja outros exemplos: Márcia cuida de
gatos, cachorros e papagaios, acarreta que Márcia cuida de
alguns animais; Mariana torce para o São Paulo, acarreta que
Mariana torce por um time de futebol.
O acarretamento é extraído da relação entre
sentenças, por meio da expressão linguística. Essa forma
de significação consiste em verificar que a verdade de uma

94 Letras Vernáculas EAD


sentença implica a verdade da outra. Cançado (2005, p.
atenção
30) afirma “que o acarretamento consiste numa relação
Temos acarretamento
assimétrica na qual uma sentença contém outra, mas não toda vez que a verdade
necessariamente a segunda contém a primeira”. de uma sentença impli-
ca a verdade de outra,
Essa autora procura discernir que, para constituirmos simplesmente pela signi-
ficação de suas palavras.
os acarretamentos de uma sentença, devemos retirar todas Geralmente, os acarreta-
as informações que foram acrescentadas a partir das nossas mentos resultam do uso
de palavras de sentido es-
experiências e do nosso conhecimento de mundo e deixar pecífico; assim, se disser-

apenas o que está explicitado pelos itens lexicais, isto mos que Tico é um par-
dal, poderemos concluir
é, “o acarretamento é uma propriedade que nos mostra que ele é um pássaro, um
vertebrado, um ser vivo
exatamente o que está sendo veiculado por determinada etc. (Ou: basta ser um

sentença, nada além”. pardal para ser um pássa-


ro, basta ser um pássaro
O acarretamento é conhecido também como para ser um ser vivo etc).

implicação, uma vez que aquilo que o falante afirma numa (ILARI, Rodolfo. Introdu-
sentença depende, necessariamente, da verdade de outra. ção à Semântica: brincan-
do com a gramática. São
Por exemplo, quando afirmamos que Maria votou na última Paulo: Contexto, 2004. p.
85).
eleição para Presidente da República, implica admitir que

3
Maria exerceu o direito de votar.

Unidade
2.3 Implicaturas Conversacionais

O estudo dos implícitos inclui uma modalidade


peculiar que é a implicatura conversacional. Esse componente
semântico constitui uma maneira bastante original e sutil de
o locutor não se comprometer com o que diz. A implicatura
conversacional ou discursiva é engendrada por meio de
sugestão ou de insinuação. Para compreender a implicatura
conversacional, é necessário recorrer ao que Paul Grice
denominou de princípio da cooperação que, na sua ótica
,permeia a comunicação de modo geral. Trata-se de um
princípio basilar que norteia a comunicação humana.
Dessa forma, os interlocutores quando se propõem a
participar de interações verbais o fazem, buscando cooperar
para que transcorra de forma adequada. Esse princípio Paul
Grice explicita por meio de quatro máximas, conforme

UESC Módulo 5 I Volume 7 95


Semántica - Parte II

expõe Koch (1992, p. 27-28):

1. Máxima da Quantidade: ‘não diga nem mais nem


menos do que o necessário’. O locutor já conta com certo
conhecimento do alocutário, não há necessidade de dizer
aquilo que ele já sabe. O excesso de informações pode
levar a outras implicações ou efeitos não pretendidos.
2. Máxima da Qualidade: ‘diga coisas para as quais
tem evidência adequada: não diga o que sabe não ser
verdadeiro’.
3. Máxima da Relação (Relevância): ‘diga somente o que
é relevante’.
4. Máxima do modo: ‘seja claro e conciso; evite a
obscuridade, a prolixidade etc.’

Se todas essas máximas devem ser observadas na comunicação


cotidiana, o que produz, então, os sentidos implícitos? Uma explicação
possível para essa forma de significar consiste na ruptura intencional de
uma das máximas pelo locutor, cabendo ao ouvinte avaliar as razões por
que o falante a infringiu. Caberá ao interlocutor produzir o sentido com
os dados advindos do contexto discursivo. Para ilustrar como isso ocorre,
Grice apresentou um exemplo que se tornou clássico nos estudos do
significado. Conforme comenta Koch (1992, p. 28), o exemplo explicado
por Grice consiste na seguinte situação: um professor solicita a um colega
de outra instituição que envie referência acerca da capacidade intelectual de
um ex-aluno dele, que é candidato a uma vaga de assistente na universidade
em que trabalha, tendo obtido a seguinte resposta: ‘Tem boa caligrafia e
não costuma chegar atrasado’. Ora, a resposta poderá ser interpretada
partindo-se da premissa de que, se o colega transgrediu a máxima da
relevância, é porque preferiu omitir informações que seriam relevantes.
Subentende-se que o candidato não está apto para exercer o cargo.
Esse tipo de insinuação que ocorre no discurso é denominado por
Grice de implicatura conversacional. Para produzir o sentido, no caso em
comento, é necessário levar em conta o contexto. Veja que as informações
apresentadas não são negativas ou desabonadoras, porém elas dizem
menos do que deveriam. De acordo com Armengaud (2006, p. 87), “a
implicatura não faz parte das expressões utilizadas. A implicatura depende
estreitamente do contexto tomado em sentido amplo, em presença

96 Letras Vernáculas EAD


de uma finalidade”. As expressões ‘boa caligrafia’ e ‘não
atenção
costuma chegar atrasado’ não significam professor inábil ou
A implicatura não tem vín-
medíocre, porém ao omitir informações que são necessárias culo nem com os valores de
verdade, nem com a forma
para uma carta de apresentação, e, por outro lado, tratando- linguística. Ela não é nem
se de alguém que conhece como um texto desse tipo deva lógica no sentido estrito,
nem linguística. É discur-
ser elaborado, permite-se a inferência de que o professor siva e contextual. Reside
naquilo que é ‘pensado’ a
preferiu não se comprometer com as possíveis informações partir, ao mesmo tempo, do
negativas acerca do ex-aluno. que é dito e da situação em
que é dito, situação que não
Portanto, considerando os postulados de Grice, os é a do falante apenas, mas
a situação comum a dois (ou
interlocutores, na produção de sentido, agem de forma
vários) interlocutores.
cooperativa, ou seja, eles se esforçam para produzir juntos
(ARMENGAUD, Françoise. A
uma comunicação eficaz e o fazem por meio das máximas Pragmática. São Paulo: Pa-

conversacionais. rábola Editora, 2006. p.88.).

ATIVIDADES

3
As questões a seguir visam contribuir para a fixação

Unidade
dos conteúdos estudados nesta aula. Após respondê-las,
é recomendável que você discuta com seus colegas no
Seminário Integrador. Esclareça suas dúvidas com o tutor.
Depois, se for necessário, reformule suas respostas e,
quando concluí-las, entregue-as ao tutor.

1) Leia a tirinha de Mafalda e interprete a informação


que está implícita. Trata-se de pressuposição ou de
subentendido? Justifique sua resposta.

Disponível em: http://www.fotolog.com.br/sinestesica/23394117/


Acesso em: 20 set. 2013

UESC Módulo 5 I Volume 7 97


Semántica - Parte II

2) Muitos artistas, no período da Ditadura Militar, privados da liber-


dade de pensamento e de expressão, utilizaram largamente os implícitos e
subentendidos da linguagem para expressar sentimentos e opiniões críti-
cas. Com base nos seus conhecimentos de significados implícitos, analise
a música Cálice, composta por Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil.
Procure ouvi-la e busque informações sobre o momento de composição
da letra dessa música.

Cálice

Chico Buarque e Gilberto Gil

Pai, afasta de mim esse cálice


Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga


Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado


Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

De muito gorda a porca já não anda


De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Talvez o mundo não seja pequeno


Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado

98 Letras Vernáculas EAD


Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça

Disponível em: http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.


asp?pg=calice_73.htm
Acesso em: 23 mar. 2013.

3) Leia o texto a seguir e comente os mecanismos de produção de


significados implícitos que foram utilizados pelo autor.

Um texto que merece reflexão

Vejam só a que ponto chegamos. Agora ele está querendo ser Presidente... Não se en-
xerga? A começar pelos ancestrais, que não são coisa que se recomende. Há fortes bo-
atos descender de uma mulher de costumes frouxos e suscetível a amores proibidos. O
pai, ao que parece, não conseguia se fixar em emprego algum, e alguns chegam mesmo

3
a descrevê-lo como tendo uma alma de vagabundo. É certo que não seria nunca esco-
lhido como “Operário Padrão”. E que dizer do lugar onde nasceu? Estado dos mais atra-

Unidade
sados, sotaque típico, crescido em meio à rudeza dos que não se refinaram para as lides
públicas. Podem imaginar o seu comportamento num banquete? Seria vergonhoso...
Cotovelos sobre a mesa, empurrando a comida com o dedão, falando de boca cheia...
Seria um vexame nacional. Acresce o fato de não haver nem mesmo terminado o curso
primário, sua educação formal se restringindo a ler, escrever e fazer as quatro opera-
ções. Como trabalhador braçal, excelente. Na verdade, ali é o seu lugar. Como acontece
com as pessoas que trabalham muito com o corpo e pouco com a cabeça, seu corpo se
desenvolveu de forma invejável. Testemunhas oculares relatam mesmo que, em certa
ocasião, não vacilou em se valer dos músculos para dobrar um grupo de adversários.
Mas, o que assusta mesmo, é o seu radicalismo em relação às questões do trabalho, es-
pecialmente o campo. Pois não é da iniciativa e do capital dos patrões que vem a riqueza
do País? E agora, este matuto quer colocar o carro na frente dos bois... Se a sua política
agrária for colocada em prática, é certo que vamos ter uma convulsão social no País. O
nosso sistema de produção vai ser desmantelado, com imprevisíveis conseqüências para
a economia. Mas, pior do que isto, serão as conseqüências sociais. No final, parece que
os empregados tomarão conta de tudo e aos patrões não restará outra alternativa que
deixar o País... “Love it or leave it...”
Podem guardar seus sorrisos e sua raiva, porque isto que escrevi não é sobre quem vo-
cês estão pensando. É sobre Abraham Lincoln. E o que eu disse sobre a sua vida pode ser
encontrado na Enciclopédia Britânica, para quem quiser conferir. Imaginei como é que a
conversa rolaria nas rodinhas das UDRs e KKKs da época, ante a insólita possibilidade de
que um ex-lenhador sem curso primário viesse a ser o Presidente do País. Como se sabe,
Lincoln foi eleito, escravos foram libertados, houve uma enorme convulsão social, pois
os donos de escravos se recusaram a aceitar a liberdade dos negros, e aqueles que não
se ajustaram cumpriram a sua promessa: emigraram. Para onde? Muitos para o Brasil.
E foi assim que nasceram as cidades de Santa Bárbara do Oeste e Americana. Por que o
Brasil? Porque, se não podiam ter escravos lá, poderiam continuar a ter escravos aqui.
Nunca imaginei que esta seria uma boa razão pra se optar pelo Brasil: para se continuar
a ter escravos.

UESC Módulo 5 I Volume 7 99


Semántica - Parte II

Mas os tempos mudaram. Mudaram? Parece que ainda hoje o mesmo horror existe ante
a possibilidade de que um operário venha a ser Presidente do País. E as conversas que
rolam por aqui não devem ser muito diferentes das que rolam por lá. Parece que a História
está cheia de situações parecidas – e é só por isto que podemos aprender dela. Quem
sabe a memória do ex-lenhador que se candidatou a Presidente dos Estados Unidos pode-
nos ajudar a colocar em perspectiva este fato insólito de um operário que se candidata à
Presidência do Brasil.

(ALVES, Ruben. Um texto que merece reflexão. In: PRESTES, Maria Luci de Mesquita. Lei-
tura e Reescritura de Textos: subsídios teóricos e práticos para o seu ensino. São Paulo:
Respel, 1999. p.185).

4) Em que consistem os pressupostos e subentendidos?


5) Qual a relação entre pressuposto e acarretamento?
6) Como você distingue inferência de implicação?
7) Como você distingue pressuposto e subentendido?

8) (Provão, Letras, 2005) Considere as sequências 1, 2 e 3 e o fenômeno da


pressuposição:
1. Marta deixou de fumar/ Marta continua fumando
2. Marta começou a trabalhar/ Marta passou a trabalhar
3. Lamento que Jorge tenha sido demitido

É correto afirmar que:

(A)tenha sido é o marcador de pressuposição do fragmento 3.


(B) em 2, o conteúdo pressuposto é introduzido pelo verbo trabalhar.
(C) lamento é o marcador de pressuposição do fragmento 3.
(D) Em 1, o conteúdo pressuposto é introduzido pelo verbo fumar.
(E) demitido é o marcador de pressuposição do fragmento 3.

Disponível em: http://portal.inep.gov.br/enc-provao


Acesso em: 10 mar. 2012.

9)(ENADE, Letras, 2011 - Adaptação). Segundo Grice, são quatro as máximas


conversacionais que regem o comportamento comunicativo dos falantes em uma in-
teração verbal: a máxima da qualidade, a máxima da quantidade, a máxima da relevân-
cia e a máxima do modo. Essas máximas podem ser explicadas, em poucas palavras,
da seguinte forma:

100 Letras Vernáculas EAD


a) Máxima de qualidade: a contribuição conversacional do falan-
te deve ser a mais verdadeira possível.
b) Máxima de quantidade: a contribuição conversacional do fa-
lante deve ser tão informativa quanto necessária.
c) Máxima de relevância: a contribuição conversacional do falan-
te deve ser pertinente em relação ao objeto da conversa.
d) Máxima de modo: a contribuição conversacional do falante
deve ser ordenada, clara e breve.

Máximas conversacionais. In: Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011. Disponível
em:<www.infopedia.pt>.Acesso em: 31 ago. 2011(com adaptações).

Considerando que o texto acima tem caráter unicamente moti-


vador, redija um texto dissertativo acerca de duas das quatro máximas
conversacionais de Grice. Em seu texto, apresente exemplos em que:
a) as máximas sejam atendidas;
b) as máximas sejam violadas.

Disponível no site: http://portal.inep.gov.br/web/guest/provas-e-gabaritos-2011 Acesso em: 20 mar.

3
2012.

Unidade
leitura recomendada

Para complementar esta aula, recomendo a leitura do livro As formas do


silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas, SP: Editora da UNI-
CAMP, 2007.

RESUMINDO

Nesta aula, você viu que:

• nem toda informação no discurso é veiculada literalmente;


• os mecanismos de produção de significação implícita são os
subentendidos e os pressupostos;
• os subentendidos são informações implícitas que dependem
de fatores contextuais; enquanto que os pressupostos são
informações veiculadas no conteúdo dos enunciados, por

UESC Módulo 5 I Volume 7 101


Semántica - Parte II

meio de fatores linguísticos que são chamados de marcadores


de pressuposição;
• os acarretamentos surgem da relação entre sentenças, na qual a
verdade de uma implica a verdade da outra;
• as implicaturas conversacionais são insinuações que ocorrem
no discurso, que não advêm da significação das expressões
linguísticas, mas decorrem dos conhecimentos prévios do
interlocutor;
• as implicaturas decorrem da transgressão de uma máxima
conversacional, de acordo com Grice.

REFERÊNCIAS

ARMENGAUD, Françoise. A Pragmática. São Paulo: Parábola Editora,


2006.

CANÇADO, Márcia. Manual de Semântica: noções básicas. Belo


Horizonte: Editora UFMG, 2005.

CHIERCHIA, Gennaro. Semântica. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP,


2003.

DUCROT, Oswald. Princípios de Semântica Lingüística: dizer e não


dizer. São Paulo: Cultrix, 1977.

______. O Dizer e o Dito. Campinas, SP: Pontes, 1987.

DUCROT; TODOROV, Tzvetan. Dicionário Enciclopédico das


Ciências da Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1998.

FIORIN, José Luiz. (Org.). Introdução ao Estudo de Linguística I.


Objetos. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2012.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 2, ed. São Paulo: Edições


Loyola, 1996.

102 Letras Vernáculas EAD


HURFORD, James R.; HEASLEY, Brendan. Curso de Semântica.
Canoas, RS: ULBRA, 2004.

ILARI, Rodolfo e GERALDI, João Wanderley. Semântica. São Paulo:


Ática, 2000.

ILARI, Rodolfo. Introdução à Semântica: brincando com a gramática.


São Paulo: Contexto, 2004.

KOCH, Ingedore G. Villaça. O texto e a Constituição dos Sentidos.


São Paulo: Cortez, 1997.

KOCH, Ingedore G. Villaça. A inter-ação pela linguagem. São Paulo:


Contexto, 1992.

______. Argumentação e Linguagem. São Paulo: Cortez, 1999.


OLIVEIRA, Luciano Amaral. Manual de Semântica. Petrópolis, RJ:

3
Vozes, 2008.

Unidade
______. Argumentação e Linguagem. São Paulo: Cortez, 1999.
ORLANDI, Eni Puccineli. As formas do discurso: no movimento dos
sentidos. 6. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.

PECHÊUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do


óbvio. 2. ed. tradução de Eni Pulccinelli Orlandi et al. Campinas, SP:
Editora da UNICAMP, 1995.

VOGT, Carlos. O Intervalo Semântico. 2. ed. São Paulo: Ateliê


Editorial; Campinas: Editora da UNICAMP, 2009.

ZANDWAIS, Ana. Estratégias de leitura: como decodificar sentidos


não-literais na linguagem verbal. Porto Alegre: Sagra, 1990.

UESC Módulo 5 I Volume 7 103


Semántica - Parte II

104 Letras Vernáculas EAD


3
aula

SEMÂNTICA ARGUMENTATIVA

3
Unidade
Objetivos
Ao final da aula, você deverá ser capaz de:

• compreender as estratégias de formulação de argumentos;


• avaliar a função do auditório em discursos persuasivos ou
convincentes;
• identificar as formas de argumentação na língua;
• analisar o funcionamento dos operadores argumentativos no
texto;
• empregar os operadores argumentativos na produção de texto;
• reconhecer classe argumentativa e escala argumentativa.

UESC Módulo 5 I Volume 7 105


Semántica - Parte II

106 Letras Vernáculas EAD



1 INTRODUÇÃO

Se a linguagem falasse apenas à razão e constituísse,


assim, uma ação sobre o entendimento dos homens,
então ela seria apenas comunicação. Mas, ao mesmo
tempo em que ela desprende o conjunto de relações
necessárias da razão, ela também articula o conjunto
de relações necessárias da existência. E, neste sentido,
o seu traço fundamental é a argumentatividade, a re-
tórica, porque é este traço que a apresenta, não como
uma marca de diferença entre o homem e a natureza,
mas como marca de diferença entre o eu e o outro,
entre subjetividades cujo espaço de vida é a história.
(Carlos Vogt, 2009, p.169).

Certamente, você já vivenciou situações nas quais alguém


tentou persuadi-lo ou convencê-lo acerca de um ponto de vista ou ain-
da dissuadi-lo de uma ideia. De outro modo, você também já tentou

3
influenciar alguém acerca de uma tese, opinião, uma tomada de decisão

Unidade
ou de uma escolha, ou mesmo refutou argumentos. Em todas essas hi-
póteses, a linguagem foi usada para causar um efeito de sentido no inter-
locutor a partir de uma intencionalidade. Possivelmente, algumas dessas
experiências foram bem sucedidas e outras nem tanto. Sem dúvida, um
fator que contribui para o êxito da argumentação consiste na escolha da
estratégia adequada para influenciar o interlocutor. O domínio dessas
competências concerne ao âmbito da Semântica Argumentativa.
Indiscutivelmente, a argumentação está presente em nosso co-
tidiano, especialmente, em textos argumentativos propriamente ditos,
injuntivos, deliberativos, também em textos dissertativos; e em vários
gêneros discursivos como a propaganda, o discurso político, o discurso
religioso, dentre outros. É utilizado ainda em tirinhas, cartum, charges e,
sobretudo, está presente também no espaço da sala de aula.
Veja, na tirinha a seguir, a estratégia argumentativa utilizada. Há
um diálogo, entre Mafalda e a amiga Susanita, a qual diz que ‘quando
crescer quer ter muitos vestidos; ao passo que Mafalda diz que ‘quer ter
muita cultura’. Diante desse impasse, Susanita apresenta um argumen-
to forte que sustenta sua tese inicial, ou seja, ela pergunta a Mafalda se

UESC Módulo 5 I Volume 7 107


Semántica - Parte II

ela sair na rua sem cultura a Polícia a


prende, Mafalda responde que não.
Em seguida, Susanita diz: “Experi-
menta sair sem vestido.” Ainda que
Mafalda não aceite a ideia de que
roupas são mais importantes que
cultura, na situação discursiva, ela,
aparentemente, contrariada é con-
vencida a aderir à tese de Susanita ao
concluir: “É triste bater em alguém
que tem razão.”.
As interações sociais ocorrem
na linguagem e pela linguagem,
mediante um jogo discursivo, no
qual os sujeitos interagem, visando
Disponível em: http://www.snpcultura.org/pai_da_mafalda_
fez_80_anos.html Acesso em: 30 nov. 2012.
direcionar o sentido dos enunciados
que são proferidos para os fins a que visam alcançar. O locutor, ao se inserir
no discurso, poderá pretender, por exemplo, influenciar o ouvinte a entrar
num jogo argumentativo e aderir a sua tese. Ele utiliza a linguagem para
emocionar, intimidar, julgar, convencer, persuadir, avaliar, influenciar, ou
emitir juízo de valor, dentre outras finalidades.
Portanto, uma questão
a ser enfrentada pela Semântica
diz respeito à argumentatividade
e ao modo como os discursos
são produzidos nas relações
intersubjetivas para obtenção de um
fim pretendido pelo locutor.
Nesta aula, você aprenderá a
importância da argumentação e da
retórica como saberes necessários
para articular o discurso persuasivo
ou convincente. Para tanto, estudará Fonte: http://dannypedagoga.blogspot.com.br/

algumas estratégias de formulação de argumentos, sobretudo, aprenderá


os mecanismos de utilização dos operadores argumentativos.

108 Letras Vernáculas EAD


2 AS VÁRIAS POSSIBILIDADES DE APRESENTAÇÃO DO
ARGUMENTO

Há muitas formas de produzir um argumento. A escolha de uma


estratégia argumentativa dependerá do estilo de seu produtor, da situação
que está sendo apresentada e, claro, do conhecimento que o enunciador
tem das técnicas existentes e do escopo da argumentação. Para ilustrar o
funcionamento da argumentação, no discurso, considere os textos a seguir:

TEXTO 01
O Rei está nu


Um rei encomendou ao seu
alfaiate uma roupa tão leve
que ele não sentisse o conta-
to dela com sua pele.
Uma vez que não é possível
alguém vestir algo e não sen-
tir o seu contato com a pele
(a não ser que tenha proble-

3
ma de tato), o alfaiate ficou
num dilema: não sabia se di-

Unidade
zia isso ao seu Rei ou se fica-
va calado, pois o Rei poderia
interpretar a sua colocação
como uma declaração da sua
própria incompetência, o que
poderia concorrer para o Rei
mandar substituí-lo. (Ou,
Fonte: http://4.bp.blogspot.com/-68fE6F287jk/UNr6HqqylhI/
quem sabe, até decaptá-lo!). AAAAAAAAFe4/lEagujrwwYg/s1600/rei-nu.png

Conversando com os assessores do Rei, no entanto, descobriu que havia uma alternati-
va. Bastava fazer de conta que estava lhe entregando a encomenda quando na verdade
não estaria entregando nada. Dessa forma, ao vestir “nada” o Rei não sentiria qualquer
contato com o corpo. Tudo funcionaria se os assessores, criados e as pessoas da corte
elogiassem a “nova roupa” do Rei.
E funcionou. Logo se via um Rei pelado andando pelo palácio e recebendo rasgados
elogios que tornavam seu ego cada vez mais inflamado.
Um dia, no entanto, o Rei resolveu apresentar sua maravilhosa indumentária “feita de
nada” para todos os seus súditos a fim de angariar ainda mais elogios.
Seus assessores providenciaram a devida preparação, dizendo aos súditos do reino o
que esses deveriam ver e dizer.
No dia combinado, sai o Rei em desfile por seu reino completamente pelado.
Ao passar por uma estrada, no entanto, ouviu uma criança (que não havia comparecido
às reuniões preparatórias) dizer: “O Rei está nu”.
Isso gerou comoção com toda a comitiva real. A criança logo foi recolhida e calada pelos
pais. E o Rei percebeu quão tolo ele tinha sido, criando uma armadilha pela qual ele

próprio foi capturado, por não atentar para a compatibilidade.


(O Rei está nu. In: ALMEIDA JUNIOR, Sebastião de. Negociação: técnica e arte. Rio de janeiro:
Qualitymark, 2005).

UESC Módulo 5 I Volume 7 109


Semántica - Parte II

O Rei está nu constitui um texto argumentativo, persuasivo que


utiliza a técnica da fabulação. A palavra fábula é de origem latina e serve
para designar um tipo de narrativa ficcional. A fábula, de acordo com
Houaiss (2004, p. 1297), é uma “narração popular ou artística de fatos
puramente imaginados; a fabulação é uma versão romanceada de uma série
de fatos”. A fábula evidencia o aspecto contraditório entre o discurso e
as ações. Por isso o fabulista a utiliza como uma estratégia para mascarar
seus propósitos, visando ocultar suas reais intenções, para transformar o
significado daquilo que ele apresenta.
Trata-se de um texto figurativo, pois há predominância de termos
concretos como roupa, alfaiate, pele, palácio, rei, criança etc. Tudo isso
confere ao texto o caráter de verossimilhança, ou seja, aquilo que se institui
como verdade a partir de sua própria lógica. De acordo com Platão e Fiorin
(1996, p. 89), “os textos figurativos produzem um efeito de realidade e, por
isso, representam o mundo, criam uma imagem do mundo, com seus seres,
seus acontecimentos etc.”. Para compreendê-los, é necessário interpretar
as figuras para saber o que está no plano da significação.
O texto O Rei está nu é organizado com o encadeamento das
informações que levam o interlocutor a concluir o raciocínio proposto
pelo enunciador que tem o objetivo de angariar adesão à sua tese. O
argumento utilizado é a exposição ao ridículo. Como isso ocorre? Os
argumentos foram encadeados com o objetivo de construir um efeito de
ridicularização, causando a zombaria, o escárnio e o riso, para levar o leitor
a concluir que o poder real não está acima da lógica. Isso é perceptível na
expressão extraída do texto: “Uma vez que não é possível alguém vestir
algo e não sentir o seu contato com a pele (a não ser que tenha problema
de tato)”.
Para que o texto tenha esse efeito, inicialmente, o argumentador
apresenta uma tese, que é diferente daquela que ele pretende defender,
como supostamente verdadeira. Logo em seguida, apresenta os aspectos
contraditórios, visando demonstrar que a tese não é aceitável. Os
argumentos levam à desqualificação das ideias do Rei, por conseguinte, a
própria figura da Majestade a partir da desconstrução do aspecto simbólico,
como força, poder, autoridade etc, ao utilizar uma estratégia que expõe ao
leitor a incompatibilidade entre a exigência do Rei e a realidade.

110 Letras Vernáculas EAD


Como o súdito não podia dissuadir o Rei, isto é, demovê-lo
da ideia de que é incompatível com a realidade a exigência de alguém
usar algo sobre a pele e não sentir, preferiu fazer de conta que essa
indumentária existia e que o Rei, de fato, estava vestido com esse tipo de
roupa. Nesse texto, há também uma forte presença de ironia. A ironia
advém das estratégias utilizadas para assegurar a farsa. As pessoas, ao
elogiarem o Rei, expressavam o contrário do que viam e pensavam.
Os argumentos formam uma teia discursiva, à medida que os
elementos linguísticos presentes no texto têm um papel fundamental,
pois apontam o sentido para a direção pretendida pelo argumentador.
Do ponto de vista da microestrutura, são relevantes os termos coesivos,
pois direcionam as ideias expostas ao longo do texto e realçam o seu
caráter argumentativo. Nele são destacados os seguintes operadores
argumentativos: “pois”, “como”, “ou”, “no entanto”, “logo”, “uma vez
que”, dentre outros. Eles contribuem para estabelecer o tom do texto,
que é o de provocar o riso.
Essa abordagem argumentativa dá ênfase à adequação entre

3
forma e conteúdo, para construir a verossimilhança, concorrendo para

Unidade
a coerência na organização do texto. O sentido é construído a partir de
inferências. Os argumentos recebem uma designação, de acordo com a
técnica argumentativa que foi utilizada, que, no caso em tela, trata-se de
exposição ao ridículo ou argumento pelo ridículo.
atenção

O ridículo é aquilo que merece ser sancionado pelo riso, aquilo que E. Dupréel, em sua
excelente análise, qualificou de ‘riso de exclusão’. Este é a sanção da transgressão de uma regra
aceita, uma forma de condenar um comportamento excêntrico, que não se julga bastante grave ou
perigoso para reprimi-lo com meios mais violentos.
Uma afirmação é ridícula quando entra em conflito, sem justificação, com uma opinião
aceita. Fica de imediato ridículo aquele que peca contra a lógica ou se engana no enunciado dos
fatos, contanto que não o considerem um alienado ou um ser que nenhum ato pode desqualificar,
por não gozar do menor crédito.
[...]
Normalmente, o ridículo está vinculado ao fato de uma regra, ter sido transgredida ou
combatida de um modo inconsciente, por ignorância seja da própria regra seja das conseqüências
desastrosas de uma tese ou de um comportamento.
[...]
O ridículo é a sanção contra a obcecação e só se manifesta para aqueles a quem essa ob-
cecação não dá margem a dúvidas.

(PERELMAN,Chaïm;OLBRECHTS-TYTECA, Lucie.Tratado da Argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins


Fontes, 1996. p. 233-234.).

UESC Módulo 5 I Volume 7 111


Semántica - Parte II

TEXTO

Mar Português
Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal


São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor. Fonte: http://charlezine.com.br/wp-content/
Deus ao mar o perigo deu, uploads/2012/06/caravela.jpg
Mas nele é que espelhou o céu.

Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/fpesso03.html


Acesso em: 30 nov. 2012.

O texto Mar Português é um poema escrito por Fernando Pessoa


que exalta as grandes conquistas de Portugal. É um texto persuasivo, pois,
ao mesmo tempo em que narra o lado doloroso e trágico dessas conquistas,
apresenta a glória alcançada. Dessa forma, o argumento que sobressai no
texto é o da superação. Esse tipo de argumento funciona no texto como
um encorajamento, para o interlocutor querer ir mais longe, superando
sempre os obstáculos. Como esse argumento é construído?
Nos cinco primeiros versos do poema, há um encadeamento de
situações que o argumentador receia que elas sejam apresentadas pelo
interlocutor como desfavoráveis. Em seguida, há uma transição de um
ponto de vista para outro, pela presença dos seguintes versos: “Para que
fosses nosso, ó mar!”/ “Valeu a pena?”/ “Tudo vale a pena se a alma não é
pequena.”.
Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 328) frisam que no argumento
da superação, o argumentador se propõe a “defender um comportamento
que os ouvintes ficariam tentados a criticar, mas que será situado no
prolongamento daquilo que eles aprovam e admiram [...]”.
O enunciador pergunta: “Valeu a pena?” e conclui: “Tudo vale a pe-
na se a alma não é pequena.”. A produção do significado, visando atingir a

112 Letras Vernáculas EAD


superação, é ratificada nos seguintes versos: “Quem quer passar do Bo-
jador”/ “Tem que passar além da dor.”. Conforme salientam Perelman e
Olbrechts-Tyteca (1996, p. 327):

Os argumentos de superação insistem na possibilidade


de ir mais longe num certo sentido, sem que se entreveja
um limite nessa direção, e isso com um crescimento
contínuo de valor. O que vale não é realizar certo
objetivo, alcançar certa etapa, mas continuar, superar,
transcender, no sentido indicado por dois ou vários
pontos de referência.

A articulação do efeito do sentido é garantida pela inserção


do operador argumentativo de condição “se”, o qual representa o
encadeamento discursivo que aponta para a direção da superação.
Como no discurso argumentativo as teses são passíveis de
refutação, Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 329) ressaltam que
esse tipo de argumento pode ser refutado com a “constatação de que

3
é impossível ir indefinidamente na direção preconizada, seja porque se

Unidade
chega a um absoluto, seja porque se chega a uma incompatibilidade.”.
É evidente que o campo da argumentação é o lugar fértil para
os debates, contradições e refutações, por isso os argumentos são,
notadamente, avaliados como fortes ou fracos e não verdadeiros ou
falsos.

TEXTO 3
Argumento
Paulinho da Viola

Tá legal!
Tá legal, eu aceito o argumento,
Mas não me altere o samba tanto assim,
Olha que a rapaziada está sentindo a falta
De um cavaco, de um pandeiro e de um tamborim.

Tá legal!
Sem preconceito, sem mania de passado,
Sem querer ficar do lado de quem não quer navegar,
Faça como o velho marinheiro
Que, durante o nevoeiro, leva o
Barco devagar. Fonte: http://www3.vitrola.com.br/
fotoProduto/gr/46311103328.jpg

(VIOLA, Paulinho da. Argumento. In: ALMEIDA JÚNIOR, Sebastião de.


Negociação: técnica e arte. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2005.).

UESC Módulo 5 I Volume 7 113


Semántica - Parte II

O texto Argumento é uma letra de música de autoria do cantor


Paulinho da Viola. O texto, como o título evidencia, é, essencialmente,
argumentativo e persuasivo, organizado em torno de um argumento
principal para onde os demais argumentos convergem. No plano da
estratégia discursiva, o texto se estrutura em torno de dois operadores
argumentativos principais, “Mas” e “como”. Veja como isso acontece.
Primeiro o enunciador apresenta uma concordância parcial que leva,
inicialmente, o ouvinte a entender que ele aderiu a sua tese, conforme
podemos observar: “Tá legal eu aceito o argumento”. Em seguida, apresenta
as ideias contrárias que podemos entrever com a expressão: “Mas não me
altere o samba tanto assim.”.
O operador argumentativo “mas” realça a intenção discursiva do
enunciador, pois ele busca demover a intenção daqueles que querem alterar
o samba. Observe que o operador argumentativo de oposição “mas”
estabelece uma relação entre duas ideias contrárias, para uma conclusão,
prevalecendo o argumento contido na sentença que se inicia com esse
operador de oposição.
De acordo com Guimarães, citado por Ingedore (1992, p. 36),
o operador argumentativo “mas” é utilizado como uma ‘estratégia de
suspense’, uma vez que faz com que venha à mente do interlocutor certa
conclusão, para depois introduzir o argumento que irá levar à conclusão
que realmente se pretende. A partir desse ponto de vista, vários outros
argumentos são desencadeados na direção pretendida pelo enunciador.
O operador argumentativo de comparação, presente no texto,
também exerce um papel persuasivo à medida que o enunciador direciona
o interlocutor para a conclusão que ele considera como a que deverá
prevalecer. É o que podemos observar com os versos “Faça como o velho
marinheiro” / “Que, durante o nevoeiro, leva o barco devagar.”.
Como foi visto, não há apenas uma estratégia de produção e de
recepção do texto argumentativo. Há muitas formas de organizar o
discurso argumentativo. Poderá ocorrer a ênfase em uma ou em outra
estratégia argumentativa.
A Semântica Argumentativa, sob a influência de Oswald Ducrot, dá
ênfase à investigação dos significados que são decorrentes da inserção dos
operadores argumentativos, no discurso, conforme estudaremos adiante.

114 Letras Vernáculas EAD


3 ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA: A CONSTRUÇÃO DO
SENTIDO NO DISCURSO

O surgimento da Semântica Argumentativa


ocorreu na França, por volta de 1970, tendo como
marco inicial, os estudos do linguista Oswald
Ducrot sobre os operadores argumentativos, que
foram publicados em 1972.
Quando tratamos dos implícitos, tivemos
oportunidade de examinar a importância desse
teórico para os estudos semânticos. No Brasil,
importantes contribuições despontam no âmbito
dessa vertente da Semântica. É oportuno lembrar
a importância das obras: Texto e Argumentação de
Eduardo Guimarães, a Inter-ação pela Linguagem;
Argumentação e Linguagem, ambas de Ingedore
Villaça Koch, e, especialmente, Intervalo Fonte: http://www.colihue.com.ar/

3
autores/fichaAutor?authorId=406
Semântico, de Carlos Vogt, publicada em 1977.

Unidade
A Semântica Argumentativa constitui um modelo teórico que
se aproxima da Pragmática, da Semântica da Enunciação, da Teoria dos
Atos de Fala, dentre outras. Essas abordagens já foram estudadas nas
aulas anteriores. Portanto, sugerimos que você revisite o assunto para
melhor compreensão desta aula.
Essa vertente teórica tem como pressuposto a ideia de que os
sujeitos fazem uso da linguagem, direcionado-a para uma intenção
discursiva. O falante tenta convencer ou persuadir o seu interlocutor
de uma ideia e o faz a partir de um jogo argumentativo. O cerne dessa
teoria se pauta na concepção de que no jogo discursivo, os enunciados
são utilizados para persuadir ou convencer o ouvinte a aderir uma tese.
Para Ducrot apud Oliveira (2001, p. 28),

a linguagem é um jogo de argumentação enredado em


si mesmo; não falamos sobre o mundo, falamos para
construir um mundo e a partir dele tentar convencer
nosso interlocutor da nossa verdade, verdade criada
pelas e nas interações. A verdade deixa de ser um atri-
buto do mundo e passa a ser relativa à comunidade

UESC Módulo 5 I Volume 7 115


Semántica - Parte II

que se forma na argumentação.

Nessa linha de pensamento, acentua Koch (1999, p. 19)


que a interação social por intermédio da língua caracteriza-se,
fundamentalmente, pela argumentatividade; o homem constantemente
avalia, julga, critica, isto é, forma juízos de valor. Além disso, frisa Koch
(1999, p.19), o falante:

[..] por meio do discurso – ação verbal dotada de


intencionalidade – tenta influir sobre o comportamento
do outro ou fazer com que compartilhe determinadas
de suas opiniões. É por esta razão conclui que se pode
afirmar que o ato de argumentar, isto é, de orientar
o discurso no sentido de determinadas conclusões,
constitui ato lingüístico fundamental, pois a todo e
qualquer discurso subjaz uma ideologia, na acepção
mais ampla do termo. A neutralidade é apenas um
mito; o discurso que se pretende “neutro”, ingênuo,
contém também uma ideologia – a da sua própria
objetividade.

Como surgiu, então, na


Linguística, o ponto de vista
argumentativo? É importante frisar
que a argumentação é objeto de
especulação desde a antiguidade
grega, especialmente, quanto aos
estudos empreendidos por Aristóteles
que favoreceram o florescimento da
Retórica. No âmbito da Linguística,
é atribuída a Osvald Ducrot uma das
Fonte: http://oblogderedacao.blogspot.com.br/2012/05/
primeiras reflexões acerca da utilização
argumento-contra-argumento.html
da linguagem para a busca de adesão.
Ducrot (1981, p. 178) observa que “muitos atos de enunciação têm uma
função argumentativa, que eles objetivam levar o destinatário a certa
conclusão, ou dela desviá-lo.”.
Essa linha da Semântica é conhecida também como Teoria da
Argumentação na Língua, pois se funda na ideia de que a argumentação

116 Letras Vernáculas EAD


é inserida na própria língua, pois o locutor ao se apropriar da língua para
produzir o argumento deixa marcas na própria estrutura do enunciado.
Portanto, frisa Ducrot (1981, p.178) que:

O valor argumentativo de uma frase não é somente uma


conseqüência das informações por ela trazidas, mas a
frase pode comportar diversos morfemas, expressões
ou termos que, além de seu conteúdo informativo,
servem para dar uma orientação argumentativa ao
enunciado, a conduzir o destinatário em tal ou qual
direção.

O argumento é caracterizado como um elemento linguístico


que visa provocar a adesão do interlocutor para a tese exposta pelo
locutor ou mesmo um ponto de vista. Nessa vertente do significado, é
fundamental a concepção de orientação argumentativa dos enunciados
para o efeito esperado. Para você entender como isso acontece, considere
os seguintes enunciados:

3
Unidade
1- A festa de lançamento do livro de Maria foi boa.
2- Até o presidente da Academia Brasileira de Letras compareceu
à festa de lançamento do livro de Maria.

No enunciado o 1, é possível que a intenção do locutor seja


apenas a de dar uma informação; enquanto o enunciado 2 não tem
o mesmo caráter. A inserção do operador argumentativo “até” sugere
que o locutor quis valorizar a importância de Maria, pois até alguém
dessa envergadura compareceu. Nesse caso, o operador argumentativo
direcionou o argumento para certa conclusão, além de valorizá-lo,
conferindo-lhe força persuasiva.
De acordo com Plantin (2008, p. 32), “a argumentação é
reconstruída em um plano exclusivamente linguístico, de acordo com
o programa estruturalista em linguística.”. Para esse autor “quando o
indivíduo produz um enunciado, já é possível exclusivamente sobre
essa base, predizer o que ele vai dizer em seguida.”. Plantin (2008, p.
32) finaliza dizendo que “o estudo da argumentação é o estudo das
capacidades projetivas dos enunciados, da expectativa criada por sua

UESC Módulo 5 I Volume 7 117


Semántica - Parte II

atenção enunciação.” Considere os enunciados a seguir:


A teoria da argumentação
na língua é uma teoria da 1- O nadador treinou muito, logo será campeão.
significação. Ela rejeita
concepções da significação 2- Os estudantes se preparam muito para a avaliação,
como adequação ao real,
portanto obterão bons resultados.
sejam por teorias de ins-
piração lógica (condições 3- A roupa é muita bonita, mas está muito caro.
de verdade) ou analógica
(protótipos), em proveito
de uma concepção quase Nas sentenças 1, 2 e 3, os operadores argumentativos
espacial do sentido como
direção linguística: o que de conclusão e de oposição, respectivamente, direcionaram
um enunciado “quer dizer”
é a conclusão para a qual
os enunciados para certa conclusão. Dessa forma, o estudo
ele está orientado. da argumentação se pauta pela observação da capacidade
Do mesmo modo, ‘o va-
lor argumentativo de uma que o falante tem de produzir enunciados direcionados para
palavra é, por definição, a
orientação que essa pala-
determinado fim ou para uma determinada conclusão. Por
vra dá ao discurso’ (Ducrot, outro lado, os argumentos precisam ser interpretados, para
1990,51). A orientação ar-
gumentativa de um termo que alcancem seus efeitos.
corresponde a seu sentido.
Muitos teóricos têm insistido na observação de que,
[...]
Essa teoria se opõe às te- numa abordagem argumentativa da linguagem, as condições
orias práticas e às práticas
antigas ou neoclássicas da
de verdade de uma sentença não têm tanta relevância para a
argumentação. Para a re- produção do significado.
tórica, a competência ar-
gumentativa não é uma
competência semântica da
língua (no sentido saussu-
3.1 Argumentação e retórica
riano), mas uma técnica es-
pecializada do planejamen-
to lógico-discursivo, uma A argumentação tem suas raízes na disciplina clássica
competência da fala, de
múltiplas dimensões (emo-
Retórica, que é conhecida como a arte de persuadir pela
cional, objetal, relacional). utilização do discurso. Esse saber fornece as técnicas para
Não basta saber falar para
saber argumentar são ne- a busca de adesão no discurso. A Retórica, afirma Meyer
cessários competências e
(1998, p. 17), é definida como “a arte de bem falar, de mostrar
um aprendizado específi-
cos. eloqüência diante de um público para ganhar a sua causa.
(PLANTINI, Christian. A Isto vai da persuasão à vontade de agradar.”. De acordo
Argumentação: história,
teorias, perspectivas. São ainda com esse autor, “para os antigos, a retórica englobava
Paulo: Parábola, 2008. p. 33-
36.). tanto a arte de bem falar – ou eloqüência – como o estudo
do discurso ou as técnicas de persuasão e até mesmo de
manipulação.”.
O bem dizer diz respeito à expressividade e o estilo.
Assim, Quintiliano apud Meyer (1998, p.17) enfatiza que:

118 Letras Vernáculas EAD


Aquilo que melhor caracteriza [a retórica] é ter sido
definida como a ciência do bem-dizer, porque isso abrange
simultaneamente todas as perfeições do discurso e a própria
moralidade do orador, uma vez que não se pode falar
verdadeiramente se não formos homem de bem.

Dessa forma, a Retórica é uma arte


que utiliza recursos discursivos, visando
provocar a adesão do interlocutor,
mediante o uso de meios persuasivos ou
lógicos. Essa arte como é conhecida teve
início na Grécia, especialmente, na Sicília
no século V a.C., a qual desenvolveu,
sobretudo, a arte da eloqüência que os
oradores utilizavam em praça pública,
para defender as causas mais difíceis que, Fonte: http://liceu-aristotelico.blogspot.com.br/

geralmente, versavam sobre disputas de propriedade.

3
No auge de seu desenvolvimento, principalmente, na Idade Média e

Unidade
no Renascimento, essa arte constituía um saber obrigatório nos currículos
escolares, formando o trivium composto de: Retórica, Gramática e Lógica.
Essa tríade deu lugar ao que se chamava de artes liberais. Posteriormente,
a Retórica sofreu ataques por parte daqueles que viam nesse saber a arte de
enganar. A Retórica passou a ser conhecida como sinônimo de recursos de
ornato do discurso e ganhou certo tom pejorativo. Ela foi deslegitimada, pois
foi considerada como disciplina não científica e, portanto, foi eliminada dos
currículos universitários.
Na atualidade, é possível dizer que a Retórica está em plena ascensão.
Com o advento da afirmação dos ideais da democracia, especialmente, no
mundo ocidental, a Retórica cada vez mais tem desempenhado um papel
proeminente no discurso persuasivo. O discurso retórico está presente tanto
nos gêneros orais quanto nos escritos, a exemplo de jornais, de televisão, de
propaganda, de discussões nos espaços da sala de aula, de discurso político,
de discurso religioso etc. Para Meyer (1998, p. 11), o emprego da Retórica
se faz necessário, tendo em vista que: “A imagem tem o dever de agradar ou
chocar, de seduzir ou convencer. É preciso vender e ser eleito, encantar ou
muito simplesmente divertir aqueles cuja atenção nos interessa captar”.

UESC Módulo 5 I Volume 7 119


Semántica - Parte II

saiba mais A reabilitação da


O surgimento da Retórica Retórica ocorreu, sobretudo,
foi atestado pela primeira
vez no século V a.C., na
após a Segunda Guerra
Sicília; relata uma lenda Mundial, notadamente, a
que nessa mesma época
Hierão, tirano de Siracusa, partir dos estudos encetados
havia, por um refinamen-
to de crueldade, proibido
pelo jusfilósofo Chaim
a seus súditos o uso da Perelman que, juntamente,
palavra. Tornado-se assim
conscientes da importân- com Olbrechts-Tyteca,
cia da palavra, os sicilianos
publicou a obra Tratado
(Córax, Tísias) teriam cria-
do a Retórica. Começa-se a de Argumentação: a Nova
estudar a linguagem, não
na qualidade de ‘língua’
Retórica que constituiu um
(como se aprende uma lín- importante marco teórico
gua estrangeira), mas na
qualidade de ‘discurso’. A da retomada dos estudos da
eloqüência torna-se, nas
democracias da época,
argumentação. Fonte: http://mlb-s2-p.mlstatic.com/
tratado-da-argumentaco-a-nova-
uma arma necessária; daí, retorica-cham-perelman-14022-
MLB203698255_2778-O.jpg
provavelmente a idéia de
‘ensinar a fala’. Em seus
primórdios, a Retórica é
acima de tudo uma técnica
Chaim Perelman foi uma das personalidades
que deve permitir a quem mais influentes do século XX, no campo da Teoria da
a possua atingir, dentro de
uma situação discursiva, Argumentação e da Retórica. O seu ponto de partida está
o alvo desejado; ela tem,
apoiado no pensamento de Aristóteles, todavia buscou
portanto um caráter prag-
mático: convencer o inter- imprimir uma adequação para o contexto dessa época.
locutor da justeza de uma
causa.
Perelman (1997, p. 77) designou esse estudo de a Nova
(DUCROT, Oswald; TODOROV,
Retórica. Uma das principais contribuições desse teórico
Tzvetan. Dicionário Enciclopédico
das Ciências da Linguagem. São
foi estabelecer uma distinção entre Lógica e Retórica.
Paulo: Perspectiva, 1998. p.79.). Ressaltando que, ao passo que na Lógica “sempre se raciocina
no interior de um dado sistema que, se supõe aceito, numa
argumentação Retórica, tudo sempre pode ser questionado;
sempre se pode retirar a adesão.” Em Lógica, a argumentação
é coerciva, não há coerção em Retórica.
Dessa forma, Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p.1-
4) definem Retórica como “estudo das técnicas discursivas
que permitem provocar a adesão ou aumentar a adesão dos
espíritos às teses que apresentamos ao seu assentimento”.
Nessa perspectiva, o domínio da argumentação é o do
“verossímil, do plausível, do provável, na medida em que

120 Letras Vernáculas EAD


este último escapa às certezas do cálculo”.
A Nova Retórica revisita algumas noções que caracterizam o
escopo da argumentação. O intuito da Retórica é obter a adesão de um
determinado auditório. Assim, o auditório particular não se caracteriza
como um discurso que visa um ouvinte em particular, mas antes como
um conjunto daqueles a quem o locutor está empenhado em persuadir,
em um certo lugar e em um tempo determinado. Enquanto que auditório
universal é aquele que visa angariar adesão do ouvinte em qualquer
tempo e lugar.
Para caracterizar o modo como o discurso é articulado, para obter
a adesão às teses que são apresentadas, Perelman e Olbrechts-Tyteca
(1996) discernem persuasão de convencimento, a partir da concepção de
auditório universal e particular. Para esses teóricos, o ato de convencer
se dirige unicamente à razão mediante um raciocínio estritamente lógico
e por meio de provas objetivas e evidências; visa atingir um auditório
universal, pretende alcançar a adesão de qualquer ser dotado de razão. O
auditório universal é demonstrativo e, portanto, atemporal. Enquanto

3
que o ato de persuadir busca atingir o sentimento do interlocutor, pois

Unidade
apela para a emoção, a paixão de um auditório particular; os argumentos
são plausíveis ou verossímeis. A argumentação persuasiva é aquela
que visa atingir, exclusivamente, um auditório particular, isto é, está
direcionada a um público específico.
Para analisar como esse efeito do sentido ocorre, considere a
propaganda a seguir:

Fonte: http://portaldoprofessor.
mec.gov.br/storage/discovirtual/
aulas/9293/imagens/
propaganda5.jpg

UESC Módulo 5 I Volume 7 121


Semántica - Parte II

A propaganda aborda acerca dos malefícios do cigarro; é destinada


a um público específico, formado de pessoas que fumam. Visa persuadir,
uma vez que apela para emoção, tendo em vista a imagem desfigurada de
um fumante que assusta à primeira vista. A propaganda espera que o efeito
causado no auditório particular o iniba a fumar.
Por outro lado, para atingir os efeitos do sentido proposto pelo
locutor, a Retórica dispõe de meios persuasivos afetivos e racionais. Os
meios persuasivos afetivos são o ethos, que é o caráter do orador, ou seja, a
imagem que ele deseja imprimir diante de um auditório. É a forma como o
orador se projeta no discurso. Enquanto que o pathos constitui a tendência
e o desejo do auditório que deverá ser captado pelo locutor. Já o logos
consiste no aspecto racional do discurso.

Fonte: http://www.wbuzz.com.br/site/wp-content/
uploads/2014/03/dialogo-clientes.jpg

3.2 Operadores argumentativos. O que são?


Como funcionam no discurso?

Como você pôde notar, a argumentatividade está inscrita na própria


língua. Quando o locutor se propõe a produzir um enunciado, com a
finalidade de orientar o leitor ou ouvinte para determinada conclusão,
levando-o a aderir às teses apresentadas, ele o faz utilizando certos
elementos da língua que são denominados de operadores argumentativos
ou discursivos. Eles são conhecidos, na gramática tradicional, como
conectores ou elementos de coesão.

122 Letras Vernáculas EAD


O termo operador argumentativo
foi cunhado por Ducrot, considerado o
criador da Semântica Argumentativa.
Esse termo, afirma Koch (1992, p. 30),
serve para “designar certos elementos
da gramática de uma língua que têm
por função indicar (‘mostrar’) a
força argumentativa dos enunciados,
a direção (sentido) que apontam.”.
Trata-se de marcadores argumentativos
que contribuem para realçar as
ideias direcionadas para determinada
conclusão.
O uso da linguagem na função
argumentativa impõe ao locutor
conhecer quais os mecanismos de
que dispõe a língua, para evidenciar a

3
Fonte: https://lenguayliteanaozores.wordpress.
força argumentativa dos enunciados com/2010/10/24/marcadores-del-discurso-bachillerato/

Unidade
direcionados, para a obtenção de determinados efeitos de sentido, ou seja,
para uma direção argumentativa. Guimarães (1987, p. 25), retomando
Ducrot e Anscombre, explica como os operadores argumentativos
funcionam no discurso:
Orientar argumentativamente com um enunciado X é apresentar
seu conteúdo A como devendo conduzir o interlocutor a concluir
C (também um conteúdo). Ou seja, orientar argumentativamente
é dar A como uma razão para se crer em C. Neste sentido, orientar
argumentativamente é apresentar A como sendo o que se considera
como devendo fazer o interlocutor concluir C. O que leva à conclusão
é o próprio A. Ou seja, é tomado como uma regularidade do sentido
do enunciado a representação de sua enunciação como orientada
argumentativamente.
A argumentatividade é considerada como um mecanismo
linguístico que busca conferir ao discurso certo efeito de sentido àquilo
que se diz e a forma como o diz. De outro modo, os argumentos nem
sempre estão numa relação simétrica nos enunciados, ou seja, eles nem

UESC Módulo 5 I Volume 7 123


Semántica - Parte II

sempre apresentam igual peso. Quanto mais os argumentos


são orientados, assimetricamente, nos enunciados, mais
acentuam a força que eles imprimem ao discurso. Por isso,
ARGUMENTAÇÃO
os argumentos, inicialmente, são classificados pelo peso em
é a operação semânti-
fracos (baldos) ou fortes.
co-discursiva em que o
sentido de uma entidade Quando abordamos que os enunciados podem ser
linguística é construído a
partir da interdependên- orientados argumentativamente, o que isso quer dizer?
cia entre os dois segmen-
Responder a essa indagação equivale a dizer como os
tos do encadeamento ar-
gumentativo. Argumento operadores argumentativos funcionam no texto. É o próprio
é o segmento do enuncia-
do que orienta para uma
Ducrot (1981, p. 178-181) quem explica o funcionamento
conclusão. dos operadores argumentativos. Para tanto, apresentou
FLORES, Valdir et al. Di- duas noções básicas, a saber: a de classe argumentativa e a de
cionário de Linguística da
Enunciação. São Paulo:
escala argumentativa.
Contexto, 2009. p. 50- Uma classe argumentativa é constituída de vários
51.).
enunciados com argumentos diferentes, visando levar o
ouvinte a uma mesma conclusão e que Ducrot convencionou
a chamar de “conclusão R”. De acordo com Ducrot (1981, p.
180), “a noção de classe argumentativa é totalmente relativa
a uma conclusão particular e a um locutor determinado.”.

Considere as seguintes situações argumentativas:

Situação 1 - Argumentos de igual peso


A peça teatral foi um sucesso e os atores comemoraram.
(conclusão R)

Agora, considere os seguintes argumentos:

arg.1 - Os ingressos se esgotaram rapidamente.


arg.2 - O público aplaudiu o espetáculo de pé.
arg.3 - A renda superou as expectativas do elenco.

Veja que os três argumentos têm o mesmo peso e são


usados para a conclusão R. Esquematizando-os, teríamos:

124 Letras Vernáculas EAD


A peça teatral foi
um sucesso.

Os ingressos O público A renda


se esgotaram aplaudiu o superou as
rapidamente. espetáculo de expectativas
pé. do elenco.

Casovocê quisesse juntar os enunciados, que operador argu-


mentativo usaria, uma vez que todos têm igual peso?

Situação 2 - Argumentos de igual peso


Agora, considere os seguintes argumentos:

3
O jogo de futebol foi muito bom.

Unidade
(conclusão R)

arg.1 - Não houve suspensão de jogadores.


arg.2 - Os titulares marcaram gols.
arg.3 - Não choveu no estádio.

Uma maneira de articular esses argumentos no texto seria a se-


guinte: O jogo de futebol foi muito bom, pois não houve suspensão de
jogadores; além disso, os titulares marcaram gols e não choveu no es-
tádio. Observe que todos os operadores argumentativos apontam para
uma mesma conclusão e apresentam igual relevância, ou seja, os enun-
ciados são direcionados para a formação de uma classe argumentativa.
Outra noção, igualmente, relevante é a de escala argumentativa,
a qual consiste na junção de dois ou mais enunciados de uma mesma
classe argumentativa, estabelecendo-se uma relação de gradação de for-
ça crescente direcionados para uma mesma conclusão. Numa escala ar-
gumentativa, os argumentos transitam numa hierarquia de importância
do mais forte para o mais fraco ou vice versa. Ilari e Geraldi (2000, p.

UESC Módulo 5 I Volume 7 125


Semántica - Parte II

87) definem escala argumentativa como “hierarquia entre enunciados que


apóiam uma conclusão, estabelecida com base numa avaliação pelo falante
da força desse peso.”.
Para análise do funcionamento de uma escala argumentativa,
considere as seguintes situações argumentativas:

Situação 1 – Argumento mais forte


O bullying na escola é prejudicial ao desenvolvimento cognitivo da
criança.
(conclusão R)
Agora, pense nos seguintes argumentos:

arg. 1 - A criança não presta atenção às aulas.


arg. 2 - A criança tira notas baixas.
arg. 3 - A criança perde o interesse em frequentar a escola.
(argumento + forte)

Numa escala argumentativa, os argumentos, geralmente, são repre-


sentados graficamente da seguinte forma:
O bullying na escola é prejudicial ao desenvolvimento cognitivo da
criança.
(conclusão R)

p’’ - A criança perde o interesse em frequentar a escola.


(argumento + forte)
p’ - A criança não presta atenção às aulas.
p - A criança tira notas baixas.

Observe que todos os argumentos são usados para levar à conclu-


são R, porém é possível optar por um argumento mais forte. Como ficaria
se você resolvesse juntar todos os enunciados, dando ênfase ao argumento
mais forte? Qual o operador argumentativo que você utilizaria para enca-
dear os enunciados? Veja como seria uma forma de organizar esses enun-
ciados: O bullying na escola é prejudicial ao desenvolvimento afetivo da
criança, pois a criança não presta atenção às aulas, tira notas baixas e, além

126 Letras Vernáculas EAD


do mais, perde o interesse em frequentar a escola.
Veja que os argumentos foram encadeados, para que o ouvinte
chegasse à conclusão de que O bullying na escola é prejudicial ao
desenvolvimento cognitivo da criança. Todos os argumentos foram,
estrategicamente, direcionados para a conclusão R. Como o locutor
pretendia dar ênfase a um argumento, tornando-o mais forte, utilizou
o operador argumentativo “além do mais”. Observe que a introdução
desse operador argumentativo, no enunciado, produziu um feito
definitivo, para que o ouvinte chegasse à conclusão pretendida pelo
locutor, todavia, aparentemente, é um argumento a mais, algo quase
que dispensável, mas que produz a força necessária que, provavelmente,
levará o ouvinte a se convencer dos malefícios dessa prática odiosa na
escola.

Situação 2 – Argumento mais forte

O jantar de aniversário do político foi um sucesso.

3
(conclusão R)

Unidade
p” - O Presidente da República se fez presente.
p’ - O Ministro da Educação compareceu.
p - Havia muitas autoridades presentes.

Pense e responda. Se você fosse juntar os enunciados, estabelecendo


uma hierarquia entre os argumentos, como ficaria o texto? Veja que
uma maneira de iniciar a escrita do texto seria identificar o operador
argumentativo que valorizasse a ideia mais forte. Então, os enunciados
poderiam ser articulados da seguinte forma: O jantar de aniversário do
político foi um sucesso, havia muitas autoridades presentes, o Ministro
da Educação compareceu, até mesmo o Presidente da República se fez
presente.
Veja que a inserção do operador argumentativo “até mesmo”
conferiu relevo à ideia mais importante, para a conclusão direcionada
pelo locutor que, nesse caso, foi demonstrar a importância do político
que comemorou o aniversário.

UESC Módulo 5 I Volume 7 127


Semántica - Parte II

Após a abordagem sobre o funcionamento dos operadores


argumentativos, vamos analisar o papel de alguns operadores na orientação
discursiva. Há operadores argumentativos que estabelecem hierarquia entre
os enunciados, numa determinada escala argumentativa. Os operadores
argumentativos que apontam para o argumento mais forte são: mesmo,
até, até mesmo, inclusive, dentre outros. Considere o seguinte exemplo: O
Brasil sediou a XXVIII Jornada Mundial da Juventude ocorrida em julho
de 2013. O evento contou com a presença de várias autoridades da Igreja
Católica, inclusive teve a participação do Papa Francisco.
Há, também, operadores argumentativos que funcionam para
introduzir um argumento, ficando implícita a existência de uma escala
em relação a outros argumentos mais fortes. São exemplos desse tipo de
operador: ao menos, pelo menos, no mínimo etc. Veja como ocorre o seu
funcionamento na sentença: O jogador buscava ascensão na carreira. Ele
almejava, no mínimo, ser campeão da Copa das Américas.
Certos operadores argumentativos funcionam para somar
argumentos a favor de uma mesma conclusão. Nesse caso, eles fazem parte
de uma mesma classe argumentativa. Essa noção é dada pelos operadores
argumentativos: e, também, ainda, nem, não só... mas também, tanto...
como, além de..., além disso..., a par de ..., dentre outros. Veja um exemplo:
Ana é a melhor aluna da sala: leu todos os livros indicados, obteve dez em
todas as disciplinas, além do que, produziu cinco artigos científicos em um
único semestre.
Os argumentos orientados para conclusões contrárias são inseridos,
no enunciado, por intermédio dos operadores que indicam contraposição.
São exemplos: mas (contudo, porém, todavia, não obstante, no entanto
etc.), embora (ainda que, posto que, por mais que, apesar de etc.). Ducrot
(1981) considera que o conectivo “mas” é o operador argumentativo por
excelência. Seu funcionamento no texto, de acordo com Koch (1992, p.
35), ocorre da seguinte maneira: “o locutor introduz em seu discurso um
argumento possível para a conclusão R; logo em seguida, opõe-lhe um
argumento decisivo para a conclusão contrária não R”. Ora, o argumento
mais forte se encontra, no enunciado introduzido pelo operador “mas”.
Considere o exemplo a seguir: Julieta adquiriu todos os livros do Curso
de Letras, mas não gosta de estudar. O argumento encadeado por “mas”

128 Letras Vernáculas EAD


aponta para a conclusão de que Julieta não gosta de estudar, desfazendo-
se a ideia anterior.
Conquanto do ponto de vista da produção do significado
os operadores argumentativos “mas” e “embora” apresentem um
funcionamento semelhante, no texto, considerando que ambos apontam
para conclusões contrárias, o que os diferenciam são as estratégias
empregadas. O operador argumentativo “mas” cria uma estratégia de
‘suspense’ no dizer de Guimarães apud Koch (1992, p. 36-37), pois
o locutor “faz com que venha à mente do interlocutor a conclusão
R, para depois introduzir o argumento que irá levar à conclusão”;
ao passo que ao empregar “embora” o locutor utiliza a estratégia de
antecipação, isto é, ele antecipa um argumento provável, para uma
determinada conclusão, que será anulado por outro argumento, o
qual será direcionado para uma conclusão oposta. Veja como ocorre a
estratégia da antecipação no enunciado a seguir: Embora Julieta tenha
adquirido todos os livros do Curso de Letras, ela não gosta de estudar.
Na oração introduzida pelo operador argumentativo “embora” ocorre a

3
antecipação do argumento que será anulado, ou seja, o locutor anuncia

Unidade
que o argumento introduzido por esse operador argumentativo não
terá validade, pois a ideia que prevalece é a de que Julieta não gosta de
estudar. Afinal, de que adianta um estudante adquirir tantos livros se
não gosta de estudar?
Como você pode constatar, há repertório de palavras na língua
que permitem que os argumentos sejam formulados de modo a
direcionar a conclusão pretendida pelo locutor. Por isso, essa vertente é
designada de Argumentação na Língua.
Sem dúvida, a Semântica Argumentativa apresenta várias facetas.
No âmbito desse estudo, foram expostos dois modos possíveis para
o tratamento da argumentação. Foi apresentada uma abordagem que
se volta para os mecanismos envolvidos na formulação do discurso
retórico, para que o discurso tenha os efeitos persuasivos buscados
pelo locutor, para angariar a adesão do ouvinte às suas teses. Esse
direcionamento discursivo se ocupa dos meios persuasivos afetivos -
ethos e pathos – e meios racionais – logos. Como foi visto, o expoente
dessa vertente teórica é Chaim Perelman, legítimo representante da

UESC Módulo 5 I Volume 7 129


Semántica - Parte II

reabilitação da Retórica.
A partir de 1970, a Linguística dá importante passo em direção aos
novos contornos do estudo da argumentação. Oswald Ducrot desponta
como importante teórico que introduziu a noção de operadores argumen-
tativos. As obras que marcaram esse momento são Provar e Dizer, publi-
cada em 1972; Princípios de Semântica Linguística: dizer e não dizer, publi-
cada em 1973, além da obra A argumentação na língua, de Owald Ducrot
e Anscombre.
Essas duas abordagens se complementam, uma vez que a Retórica
e a Teoria da Argumentação, de modo geral, enfatizam o efeito dos
discursos persuasivos, bem como a delimitação do âmbito da persuasão
e do convencimento, a partir da definição de auditório. À Teoria da
Argumentação na Língua ou Semântica Linguística, como também é
conhecida, cabe a investigação acerca dos mecanismos para a formulação
de argumentos direcionados para determinada conclusão e a escolha dos
operadores argumentativos adequados para a construção de uma classe
argumentativa ou de uma escala argumentativa.

ATIVIDADES

As questões a seguir visam contribuir para fixar os conteúdos que


foram abordados nesta aula. Após respondê-las, sugerimos que confronte
suas respostas com as dos colegas no Seminário Integrador e esclareça as
dúvidas com o tutor. Depois, reformule suas respostas, caso considere
necessário, e entregue-as ao tutor.

1) Selecione cinco propagandas de televisão, revista ou rádio e


identifique as estratégias empregadas para persuadir ou convencer.

2) A distinção entre persuadir e convencer realizada pelo filósofo


Chaïm Perelman é questionada por Olivier Reboul (2000, p. XV), que
afirma o seguinte:

Alguns distinguem rigorosamente “persuadir” de “con-


vencer”, consistindo este último não em fazer crer, mas

130 Letras Vernáculas EAD


em fazer compreender. A nosso ver essa distinção re-
pousa sobre uma filosofia – até mesmo uma ideologia
– excessivamente dualista, visto que opõe no homem
o ser de crença e sentimento ao ser de inteligência e
razão, e postula ademais que o segundo pode afirmar-
se sem o primeiro, ou mesmo contra o primeiro. Até a
segunda ordem, renunciaremos a esta distinção entre
convencer e persuadir.

Com base na citação de Olivier Reboul, redija um texto argu-


mentativo posicionando-se acerca da questão.

3) Assista ao Filme Persuasão ou Amistad e comente as estraté-


gias argumentativas utilizadas.

A retórica ou arte de bem falar não é muito prestigiada atualmente. Na sua origem (que
remonta ao século V a. C.), consistia num conjunto de técnicas destinadas a regrar a or-
ganização do discurso, segundo os objetivos a serem atingidos. Era um meio de chegar
ao domínio da linguagem verbal. Além disso, a abordagem de tais técnicas levava a estu-

3
dar a linguagem e seus componentes e a fazer disso um objeto de ciência. Infelizmente,
a retórica confundiu rapidamente seus fins e seus meios. Reduziu-se a uma técnica de

Unidade
ornamentação do discurso, exagerando as sutilezas nas distinções de figuras. Depois de
ter sido objeto de ensino prático da linguagem e das ciências, contribuiu para esclerosar a
eloquência e sufocar o discurso verbal pela multiplicidade de regras e figuras: não tardou
a apagar-se e se tornar sinônima de afetação ou de declamação falsa. Mas, de alguns anos
para cá, vem ela reconquistando seu lugar de honra. Assim, reeditam-se na França velhos
tratados do século XVIII (Dumarsais) e do século XIX (Fontanier). Volta-se a estudar as
figuras, sobretudo no domínio poético.

(VANOYE, Francis. Usos da linguagem: problemas e técnicas na produção oral e escrita. 7. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1987. p. 47.).

4) Leia o texto a seguir, e elabore um parágrafo dissertativo, fa-


lando da importância da Retórica nos diversos gêneros textuais.

Os Usos da Casimira Inglesa

Moacyr Scliar

Estou lhe escrevendo, Matilda, para lhe transmitir aquilo que a contrariedade (para não
falar em indignação) me impediu de dizer de viva voz. Note, é a primeira vez que isso acontece
em nossos trinta e cinco anos de casados, mas é a primeira vez que pode também ser a última.
Não é ameaça. É constatação. Estou profundamente magoado com a sua atitude e não sei se me
recuperarei.

UESC Módulo 5 I Volume 7 131


Semántica - Parte II

Tudo por causa de sua teimosia. Você insiste, contra todas as minhas ponderações, em dar a
seu pai um corte de casemira inglesa como presente de aniversário. Eu já sei o que você vai me dizer:
é seu pai, você gosta dele, quer homenageá-lo. Mas com casemira, Matilda. Com casemira inglesa,
Matilda. Que horror, Matilda.
Raciocinemos, Matilda. Casemira inglesa, você sabe o que é isso? A lã dos melhores ovinos,
Matilda. A tecnologia de um país que, afinal, deu ao mundo a Revolução Industrial. O trabalho de com-
petentes operários. E sobretudo tradição, a qualidade. Esse é o tecido que está em questão, Matilda.
A casemira inglesa.
Há muitos aspectos nesse problema, mas quero deixar de lado tudo o que me parece me-
nos significativo, inclusive o preço. Sim, o preço. Você sabe que sou homem de poucas posses e que
um corte de tecido importado custaria bastante, mas vamos admitir que isso seja secundário, vamos
omitir esse detalhe; fixemo-nos na própria casemira inglesa, Matilda. E da casemira eliminemos aquilo
que possa entre nós gerar controvérsia – por exemplo, a conveniência de dar a um homem que sem-
pre se vestiu mal, que não dá a mínima importância já não digo à elegância, mas à limpeza, algo tão
sofisticado, tão distinto. Não, não vamos discutir isso, não vamos discutir a sofisticação de casemira.
Vamos abordar outro tópico.
A duração.
Sabe quanto tempo pode durar a casemira inglesa, Matilda?
Muito tempo, Matilda. Muito tempo. Disse-me o vendedor – porque tomei o cuidado de co-
lher essas informações, não estou polemizando pelo prazer de polemizar, estou querendo que você
raciocine comigo – que um paletó de casemira inglesa, bem cuidado e ao abrigo de traças (e como há
traças na casa de seu pai, Matilda, como há traças lá), pode durar anos, décadas, séculos, talvez (ele
falou em roupas guardadas desde o século XVII, mas talvez haja exagero nisso, vendedor é vendedor,
mesmo que esteja vendendo um fino artigo, como é o caso).
Isso, a casemira inglesa. Agora, seu pai.
Ele está fazendo noventa anos. É uma idade respeitável, e não são muitos os que chegam
lá, mas – quanto tempo ele pode ainda viver? Sim, todos nós desejamos que ele chegue ao centená-
rio, mas, francamente, Matilda, você acredita nisso? A gente fala em cem anos porque é um número
redondo, é um espaço de tempo expressivo, um século, mas quantos centenários há no mundo? E
as chances de seu pai ser um deles... Aquela tosse, a falta de ar... Não sei, não. Mas mesmo que ele
viva dez anos, mesmo que ele viva vinte anos, a casemira sem dúvida durará mais. Aí, depois que o
sepultarmos, depois que voltarmos do cemitério, depois que recebermos os pêsames dos parentes, e
dos amigos, e dos conhecidos, teremos de decidir o que fazer com as coisas dele, que são poucas e
sem valor – à exceção de um casaco confeccionado com o corte de casemira que você pretende lhe dar.
Você, em lágrimas, dirá que não quer discutir o assunto, mas eu terei de insistir, até para o seu bem,
Matilda; os mortos são mortos, os vivos precisam continuar a viver, eu direi. Algumas hipóteses serão
levantadas. Vender? Você dirá que não; seu pai, o velho fazendeiro, verdade que arruinado, despreza
coisas como comprar e vender, ele acha que ser lojista, como eu, é a suprema degradação. Dar? A
quem? A um pobre? Mas não, ele sempre detestou pobres, Matilda, você lembra a frase característica
de seu pai: tem de matar esses vagabundos.
Essas hipóteses todas estando esgotadas, você se voltará para mim e me pedirá, naquela sua
voz súplice: fique com o casaco. E eu terei de dizer que não, Matilda. Em primeiro lugar, eu sou muito
maior que seu pai, coisa que ele sempre fazia questão de me lembrar, chamando-me de gordo porco,
você lembra? Você achava graça, dizia que era brincadeira, mas eu sabia que no fundo ele estava fa-
lando sério. Gordo porco, Matilda. Ouvi isso durante trinta e dois anos. Mas mesmo que o casaco me
servisse, Matilda, eu não usaria. Você sabe que isso seria a capitulação final, Matilda. Você sabe que
com isso eu estaria renunciando para sempre à minha dignidade.
O casaco ficaria pendurado em nosso roupeiro, Matilda. Ficaria pendurado muito tempo lá.
A não ser, Matilda, que seu pai dure mais tempo que o casaco. Não apenas isso é impossível, como
remete a uma outra interrogação: e o seguro de vida dele, Matilda? E as jóias de sua mãe, que ele
guarda debaixo do colchão? Quanto tempo ainda terei de esperar?
Estou partindo, Matilda. Deixo o meu endereço. Como você vê, estou indo para longe, para
uma pequena praia da Bahia. Trópico, Matilda. Lá ninguém usa casemira.

(SCLIAR, Moacyr. Os Usos da Camira Ingleza. In: RODRIGUEZ, Víctor Gabriel. Argumentação Jurídica:
técnicas de persuasão e lógica informal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 34-36.).

132 Letras Vernáculas EAD


5) Leia
o texto Os Usos da Casimira In-
glesa de Moacyr Scliar e faça um levantamento
de, pelo menos, dez operadores argumentati-
vos e explique o direcionamento que eles apon-
tam no texto.
6) Comente as estratégias persuasivas
utilizadas no cartaz publicitário ao lado.
7) Do ponto de vista semântico, expli-
que qual a função dos operadores argumentati-
vos de oposição presentes no texto A Galinha
Reivindicativa, e qual a orientação discursiva
veiculada por esses marcadores linguísticos em
direção à conclusão pretendida pelo locutor. Fonte: http://convencaodeleitores.blogspot.
com.br/

A Galinha Reivindicativa

Em certo dia de

3
data incerta, um galo ve-
lho e uma galinha nova

Unidade
encontraram-se no fundo
de um quintal e, entre uma
bicada e outra, trocaram
impressões sobre como um
mundo estava mudado. O
galo, porém, fez questão
de frisar que sempre vivera
bem, tivera muitas galinhas
em sua vida sentimental e
agora, velho e cansado, es-
perava calmamente os fins
de seus dias.
- Ainda bem que você está
satisfeito – disse a galinha.
Fonte: http://www.baixaki.com.br/imagens/wpapers/chicken_run_011800.jpg
- E tem razão de estar, pois
é galo. Mas eu, galinha, fêmea da espécie, posso estar satisfeita? Não posso. Todo dia pôr ovos, todo
semestre chocar ovos, criar pintos, isso é vida? Mas agora a coisa vai mudar. Pode estar certo de que
vou levar uma vida de galo, livre e feliz. Há já seis meses que não choco e há uma semana que não
ponho ovo. A patroa se quiser arranje outra para esses ofícios. Comigo, não violão!
O velho galo ia ponderar filosoficamente que galo é galo e galinha é galinha e que cada um
tem sua função específica na vida, quando a cozinheira, sorrateiramente, passou a mão no pescoço
da doidivanas e saiu com ela esperneando, dizendo bem alto: “A patroa tem razão: galinha que não
choca nem põe ovo só serve mesmo pra panela”.
Moral: Um trabalho por jornada mantém a faca afastada.

(FERNANDES, MILLÔR. Fábulas, Fabulosas In: ANTUNES, Irandé. Lutar com as palavras: coesão e
coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. 161-162.).

UESC Módulo 5 I Volume 7 133


Literatura, Imaginário, História e Cultura

8) Leia o texto a seguir e faça uma síntese das ideias principais.

A teoria da Argumentação na Língua é uma teoria semântica linguística, uma


proposta de explicação do sentido produzido pela linguagem por meio de conceitos criados
a partir de certas decisões. Essas decisões não são ingênuas, ao contrário, elas olham a
linguagem a partir de um ponto de vista que, conforme a expressão utilizada por Saussure,
cria o objeto a ser estudado. O objeto criado pelo ponto de vista da Teoria da Argumen-
tação é o do sentido produzido por um locutor ao empregar a língua. É em Platão e em
Saussure e Benveniste que Ducrot fundamenta seu olhar sobre o uso da linguagem. Re-
sulta dessa posição teórica firmada que língua e fala não se separam, que uma linguística
da língua é impossível se não for também uma linguística da fala. Encontramos, em de-
corrência, também a afirmação da autonomia da ordem linguística. O apoio a essa decisão
tomada como lugar de observação da linguagem levou à escolha da proposta linguística de
Saussure, fundamentada em Platão, [...].
É preciso que fique claro, entretanto, que o valor, buscado no Curso de linguísti-
ca geral sofreu, pelo olhar de Ducrot, um alargamento em relação ao que se lê na teoria
saussuriana: a esse conceito foram integrados aspectos enunciativos trazidos da Teoria da
Enunciação de Êmile Benveniste, também modificados e vistos sob outro prisma, para a
explicação do emprego da língua.
Sabemos que a Teoria da Argumentação na Língua tem um lugar na história que
se desenvolve – é difícil apontar exatamente a data de seu início – provavelmente desde
1960, quando Ducrot adotou o conceito de valor, trazido da alteridade de Platão. Desde
então, o filósofo Ducrot, tornado linguista pela leitura do Curso de linguística geral, nunca
mais abandonou o estudo da linguagem, e continua a desenvolver sua pesquisa constan-
temente até os dias de hoje. Esse é um trabalho que encontrou suas bases na filosofia
clássica, necessária para a compreensão do sentido no emprego da língua.
No entanto, muito ainda resta a dizer e a fazer a partir desse olhar. A complexi-
dade da linguagem, a busca de explicação para a pluralidade de sentidos que o discurso
constrói quando o locutor se apropria da língua, como escreve Benveniste, continua desa-
fiando quantos tenham coragem de tentar desvendar seus mistérios.

(BARBISAN, Leci Borges. O SENTIDO NO DISCURSO: O OLHAR DA TEORIA DA ARGUMEN-


TAÇÃO NA LÍNGUA. In: FANTI, Maria da Glória di; BARBISAN, Leci Borges. (Org.). Enuncia-
ção e discurso: tramas de sentido. São Paulo: Contexto, 2012. p. 150-151.).

RESUMINDO

Nesta aula, você viu que:

• há várias maneiras de apresentar o argumento no texto;


• os estudos da argumentação remontam à Grécia antiga;
• a Retórica foi aos poucos desaparecendo dos currículos esco-
lares, pois era considerada como um conjunto de técnicas para
ornamentação dos discursos eloquentes;
• Chaim Perelman foi um dos teóricos a restabelecer os estudos
da argumentação e instituir a Nova Retórica;

134 Letras EAD


História e Literatura

• no campo da Semântica Argumentativa, Oswald Ducrot


introduziu na Linguística os estudos dos operadores
argumenativos e propôs o estudo de argumentação na língua,
isto é, a argumentatividade está inserida na própria língua;
• os operadores argumentativos são elementos que apontam o
discurso para uma determinda conclusão;
• a classe argumentativa agrupa argumentos direcionados para
uma mesma conclusão;
• a escala argumentativa é a ocorrência de uma junção de
enunciados de uma mesma classe argumentativa, na qual é
estabelecida uma relação de gradação de força crescente
apontada para uma mesma direção.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA JÚNIOR, Sebastião de. Negociação: técnica e arte. Rio de


Janeiro: Qualitymark, 2005.

CANÇADO, Márcia. Manual de Semântica: noções básicas. Belo


Horizonte: Editora UFMG, 2005.

CITELLI, Adilson. Linguagem e Persuasão. 4. ed. São Paulo: Ática,


1989.
4
Unidade
DUCROT, Oswald. Princípios de Semântica Lingüística: dizer e não
dizer. São Paulo: Cultrix, 1972.

______. Provar e dizer: leis lógicas e leis argumentativas. São Paulo:


Global, 1981.

______. O Dizer e o Dito. Campinas, SP: Pontes, 1987.


DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário Enciclopédico
das Ciências da Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1998.

UESC Módulo 6 I Volume 3 135


Literatura, Imaginário, História e Cultura

FLORES, Valdir et al. Dicionário de Linguística da Enunciação. São


Paulo: Contexto, 2009.

ILARI, Rodolfo; Geraldi, João Wanderley. Semântica. São Paulo: Ática,


2000.

OLIVEIRA, Roberta Pires de. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES,


Anna Christina (Orgs.). Introdução à Linguística: domínios e fronteiras.
São Paulo: Cortez, 2001.

PERELMAN, Chaïm;OLBRECHTS-TYTECA,Lucie.Tratado da
Argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

PERELMAN, Chaïm. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 1997.


_______. O Império retórico: retórica e argumentação. Lisboa: ASA,
1999.

PLANTIN, Christian. A Argumentação: história, teorias, perspectivas.


São Paulo: Parábola, 2008.

REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. São Paulo: Martins Fontes,


2000.

VANOYE, Francis. Usos da Linguagem: problemas e técnicas na produção


oral e escrita. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

VOGT, Carlos. O Intervalo Semântico. 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial;


Campinas: Editora da UNICAMP, 2009.

136 Letras EAD


História e Literatura

4
Unidade

UESC Módulo 6 I Volume 3 137


Literatura, Imaginário, História e Cultura

138 Letras EAD


História e Literatura


unidade

4
Unidade

UESC Módulo 6 I Volume 3 139


Literatura, Imaginário, História e Cultura

140 Letras EAD


História e Literatura

1
aula

O TRATAMENTO DO LÉXICO:
AS RELAÇÕES DE SENTIDO

Objetivos
Ao final desta aula, você deverá ser capaz de:

• reconhecer as características do léxico;


• compreender a relação entre léxico, lexia e vocabulário;
• avaliar os nexos semânticos estabelecidos pelo léxico;
• analisar a produção do significado decorrente dos campos 4
Unidade
semânticos e lexicais.

UESC Módulo 6 I Volume 3 141


Literatura, Imaginário, História e Cultura

142 Letras EAD


História e Literatura

1 INTRODUÇÃO

O léxico não é um conjunto de etiquetas com


que se marca, com que se nomeia ou rotula as coi-
sas ao nosso redor (Irandé Antunes, 2012, p. 30).

Nas aulas anteriores, você estudou as várias concepções de


significado, assim como teve a oportunidade de compreender um pouco
mais acerca desse componente linguístico objeto de várias abordagens
semânticas. Das teorias abordadas, sem pretensão de esgotar o assunto,
podemos destacar algumas que são fundamentais para o ensino da
língua.
A Semântica Histórica assinalou a importância de se conhecer a
trajetória dos estudos sobre o significado em Linguística, especialmente,
o seu desenvolvimento no Brasil. Essa vertente linguística mostrou as
raízes históricas de um arcabouço teórico que veio a ser denominado de
Semântica.
A Semântica Estrutural trouxe relevantes contribuições para
o estudo do léxico, sobretudo, no que tange aos nexos semânticos
provenientes dos campos semânticos e dos campos lexicais. A Semântica
Formal compreendeu que o problema do significado está relacionado
às condições de verdade das expressões linguísticas, enquanto que
a Semântica da Enunciação mostrou como o homem se insere na
linguagem para organizar o discurso, considerando as categorias de

4
pessoa, de tempo e de lugar.
Unidade
A Semântica Argumentativa, desenvolvida principalmente a
partir das investigações acerca dos operadores argumentativos encetadas
por Oswald Ducrot, dentre outros, na década de 70, contribuiu para o
estudo do significado numa perspectiva discursiva.
Há que se destacar ainda a relevância da Teoria dos Atos de Fala
para a descrição do significado, a partir dos trabalhos de filósofos da
Escola Analítica de Oxford, tendo como expoentes John Austin, John
Searle e Strawson, dentre outros, que concebiam a linguagem como
uma forma de ação.
Dentre as várias possibilidades de investigar o significado, uma

UESC Módulo 6 I Volume 3 143


Literatura, Imaginário, História e Cultura

delas diz respeito à Semântica Lexical. Nesta Unidade, o foco recairá sobre
essa vertente da ciência do significado. Essa abordagem constitui uma parte
da Semântica Estruturalista. É relevante notar que, no tratamento do léxico,
serão considerados ainda os referenciais teóricos estudados anteriormente,
uma vez que os fenômenos linguísticos não surgem em situações isoladas,
mas em situações concretas de fala, em que a palavra poderá apresentar um
sentido a depender do contexto em que está inserida. E, como vimos, cada
vertente da Semântica se ocupou de uma particularidade do significado.
Por isso uma abordagem não exclui a outra, pelo contrário, esses estudos
se complementam.
O ensino da língua, numa perspectiva tradicional, dedica pouco
tempo ao estudo da Semântica, e, quando o faz, geralmente, privilegia as
relações de sentidos surgidas das propriedades linguísticas representadas
pela antonímia, denotação e conotação, sinonímia, paronímia, homonímia
e polissemia, como se a Semântica fosse circunscrita apenas a essas
ocorrências.
A esta altura dos estudos, você deve ter verificado que a Semântica
pode ser vista numa dimensão mais ampla que envolve o discurso, a
enunciação, o texto, o léxico, o morfema etc. É sobre o léxico que nos
debruçaremos nesta última parte de nossos estudos. Essa vertente
linguística se ocupa, fundamentalmente, dos significados que emanam das
palavras nas relações estabelecidas umas com as outras.
Tradicionalmente, a Semântica é caracterizada como a ciência que
se volta para a análise do significado das palavras. Todavia, em que medida
as palavras devem ser consideradas numa descrição semântica? A ideia de
que o significado de uma palavra pode ser analisado fora de um contexto
efetivo de uso da linguagem se mostrou pouco frutífera. O âmbito da
Semântica Linguística é o das línguas naturais e, como foi mostrado, uma
característica desse tipo de linguagem é a sua textura aberta, propiciando
a ocorrência de polissemia, de imprecisão, de ambiguidade etc. A palavra
possui muitas facetas, isoladamente, ela pouco significa.

Veja a tirinha de Chico Bento a seguir:

144 Letras EAD


História e Literatura

O item lexical “ela” acarreta um mal-


entendido na comunicação. Chico Bento,
percebendo que a cachorra “Porpeta” está cheia
de pulga, pede que Zé não a deixe entrar em casa.
Não obstante, Zé entende que é a casa de Chico
Bento que está cheia de pulga e proíbe o animal de
entrar na mencionada casa.
Veja outro exemplo, só que agora, para
mostrar como uma mesma expressão linguística
pode acarretar significados tão diferentes, a
depender do uso da pontuação. Sabendo da
importância que a vírgula pode assumir num
texto, quando a ABI - Associação Brasileira
de Imprensa fez 100 anos, veiculou um cartaz
publicitário muito interessante. Veja no texto a
seguir, a sequência de frases que vai mudando de
significado, a partir do uso da pontuação.

Disponível em: http://aepdp.blogspot.com.br/


4
Unidade
Acesso em: 05 nov. 2012.

Fonte: http://tudibao.com.br/blog/wp-content/
uploads/2010/05/virgula_abi.jpg

UESC Módulo 6 I Volume 3 145


Literatura, Imaginário, História e Cultura

Inicialmente, precisamos demarcar que a Semântica Lexical se


ocupa dos fenômenos linguísticos como sinonímia, antonímia, polissemia,
paronímia, homonímia, vagueza, ambiguidade, campo semântico, campo
lexical, hipônimo, hiperônimo, conotação e denotação, dentre outros.
Não obstante, tais fenômenos não são estudados isoladamente, isto é, fora
de uma situação comunicativa ou de uma interação verbal. Por isso Faraco
e Tezza (2010, p. 47) esclarecem que “as palavras só ganham significado no
momento mesmo em que acontecem. Só assim saímos do ‘sinal de código’,
do ‘valor dicionário’, para a vida real do significado”.
Lyons (1987, p. 6) chama atenção de que deverá haver distinção
entre significado lexical e significado da sentença, “há um consenso no
sentido de que não se pode dar conta de um sem dar conta do outro.”. Para
ele, “o significado de uma sentença depende do significado de seus lexemas
constituintes [...]; e o significado de alguns, senão de todos dependerá do
significado da sentença em que aparecem.”.
O significado das palavras, então, depende das relações que são
estabelecidas não só nas sentenças, mas no âmbito dos morfemas, textos
etc, uma vez que elas possuem forma e sentido.
Inicialmente, é interessante frisar que para o estudo do léxico, é
necessário o domínio de algumas terminologias próprias desse ramo da
Semântica, como: léxico, lexias, lexicologia, vocabulário etc.

2 LÉXICO, LEXICOLOGIA E LEXIAS

Certamente, você já ouviu expressões como: Palavra de Rei


não volta atrás; Dou a minha palavra; Você não tem palavra; Meça suas
palavras etc. O falante de uma língua possui um conhecimento ainda que,
intuitivamente, da importância das palavras para a expressão de nossas
ideias nas interações sociais. Essa peculiaridade da língua de possuir um
repertório de palavras que serve, inclusive, para estabelecer e caracterizar a
identidade de um povo, concerne ao estudo do léxico. O léxico constitui
um inventário de palavras de uma língua à disposição do falante para
atender às suas necessidades de comunicação.
O léxico constitui um sistema aberto, pois espelha a dinâmica
social, cultural, política, econômica etc. À medida que as palavras passam

146 Letras EAD


História e Literatura

por evolução, muitas envelhecem e caem em desuso, isto é,


passam por um processo de “deslexicalização”, dando lugar,
por exemplo, ao fenômeno chamado arcaísmo, que ocorre
em palavras como “teúda” e “manteúda”, cujo registro é
evidenciado, largamente, na obra de Jorge Amado.
saiba mais
Algumas palavras aparecem de uma forma
Léxico é o conjunto das pa-
espontânea, acompanhando, por exemplo, mudanças em lavras de uma língua, tam-
bém chamadas de lexias.
algumas áreas específicas, como a que ocorre com a rápida As lexias são unidades de

evolução tecnológica, surgindo, dessa forma, palavras, como características complexas


cuja organização enuncia-
“tuitar”, “blogar”, “mouse”, “e-mail” etc. Algumas nascem tiva é interdependente, ou
seja, a sua textualização no
em decorrência de anseios sociais, a exemplo da palavra tempo e no espaço obedece
“homoafetivo” que, recentemente, foi lexicalizada, que, em a certas combinações. Em-
bora possa parecer um con-
certa medida, está substituindo a palavra homossexual. As junto finito, o léxico de cada
uma das línguas é tão rico
palavras podem mudar ou também ganhar novos contornos e dinâmico que mesmo o
e significados, para atender às necessidades do falante nas melhor dos lexicólogos não
seria capaz de enumerá-lo.
interações sociais. Isto ocorre porque dele faz
parte a totalidade das pala-
O léxico, como propõe Marcuschi apud Antunes
vras, desde as preposições,
(2012, p. 28), ‘não pode ser pensado à margem da cognição conjunções ou interjeições,
até os neologismos, regio-
social.’ Ressalta ainda esse linguista que o léxico ‘é o nível da nalismos, passando pelas

realização linguística tido como o mais instável, irregular e terminologias, pelas gírias,
expressões idiomáticas e
até certo ponto incontrolável’. palavrões.

(HENRIQUES, Cláudio Ce-


Às vezes, o léxico é confundido com vocabulário, zar. Léxico e Semântica:
estudos produtivos sobre
porém trata-se de categorias diferentes. Para Dubois et al. palavra e significação. Rio
de Janeiro: Elsevier, 2011.
(1997, p. 364):
4
p. 13).
Unidade

O termo léxico é reservado à língua, o ter-


mo vocabulário ao discurso. As unidades
do léxico são os lexemas, enquanto que as
unidades do discurso são vocábulos e as
palavras (...). O vocabulário de um texto,
de um enunciado qualquer da performan-
ce é, desde então, apenas uma amostra do
léxico do locutor ou, conforme a perspec-
tiva adotada, do léxico da comunidade lin-
guística considerada.

UESC Módulo 6 I Volume 3 147


Literatura, Imaginário, História e Cultura

Podemos dizer, então, que o vocabulário é ativo,


pois está vinculado ao uso do falante e caracteriza-se por
pertencer a uma área específica de conhecimento. Por
isso podemos falar em vocabulário jurídico, vocabulário
da culinária baiana, vocabulário da medicina etc.
A sistematização do léxico é realizada pela
ciência denominada Lexicologia. O conjunto de
palavras do léxico está organizado em ordem alfabética,
com indicação de seu significado nos verbetes, em
dicionários, que trazem o registro das palavras de uma
língua. Todavia, dado ao imensurável acervo de palavras
Fonte: http://www.
ambito-juridico.com.br/ de uma língua, o dicionário nem sempre consegue
upload/noticias/23470_
DicionarioHouaiss.jpg catalogar todas as palavras e nem todos os empregos
possíveis que elas apresentam.

saiba mais

Lexicologia é uma discipli-


na que estuda o léxico e a
sua organização a partir de
pontos de vista diversos.
Cada palavra remete a par-
ticularidades diversas rela-
cionadas ao período histó-
rico ou à região geográfica
em que ocorre, à sua reali-
zação fonética, aos morfe-
mas que a compõem, à sua
distribuição sintagmática,
ao seu uso social e cultural,
político e institucional. Des-
se modo, cabe à Lexicolo-
gia dizer cientificamente
em seus variados níveis o
que diz o Léxico, ou seja, a
sua significação. Ao lexicó- Fonte: http://multieverso.blogspot.com.br/p/semantica.html

logo, especialista da área,


incumbe levar a termo essa As lexias ou unidades lexicais servem de base ao
tarefa tão complexa sobre
uma ou mais línguas. estudo do significado do léxico ou das palavras. No verbete
(Cláudio Cezar. Léxico e
que trata de Lexia do Dicionário de Linguística (DUBOIS
Semântica: estudos produ- et al.1997, p. 361), Bernard Pottier define lexia como “a
tivos sobre palavra
e significação. Rio de Janei- unidade de comportamento léxico. Opõe-se a morfema,
ro: Elsevier, 2011. p. 13.).
menor signo lingüístico, e a palavra, unidade mínima
construída. É, portanto, a unidade funcional significativa do

148 Letras EAD


História e Literatura

discurso.”. As lexias ou unidades lexicais são divididas em:

1. Simples – formada de uma palavra: estudante, livro, romance,


homem.

2. Derivadas – resultante dos processos de formação de palavras


existentes na língua: enriquecer, informal, trabalhador etc.

3. Composta – formada de duas ou mais palavras: minicurso,


extraescolar, coautor, pseudoprofessor etc.

4. Complexas – formada de expressões estereotipadas de uma


língua: pé frio, a cavalo, a pé, mula sem cabeça etc.

Outra forma de lexia complexa bastante produtiva de significados


é representada pelos provérbios que pertencem à fraseologia da língua.
Afinal, quem não conhece expressões como: Em terra de sapos, de
cócoras como ele; Mais vale um pássaro na mão do que dois voando; Filho
de peixe, peixinho é; etc. Os provérbios, muito utilizados no cotidiano,
condensam aspectos da sabedoria popular.

VOCÊ SABE A ORIGEM DE ALGUNS DITOS POPULARES?

Mal e porcamente
De início, usa-se mal e parcamente, para indicar que algo fora feito de modo deficiente, sem

4
o necessário capricho ou bom acabamento. Com o tempo, o adjetivo parco (poupado, muito
simples), não muito conhecido, cedeu lugar à palavra porco, normalmente associada à ideia de
Unidade
coisa suja, imunda, grosseira.

Não bater prego sem estopa.


Tem o sentido de ‘não fazer nada para outros sem mira em interesse futuro’. Originalmente,
era não bater prego sem escopo. De cunho erudito, portanto ignorado pelo homem do povo, o
vocábulo escopo (alvo, intenção, objetivo) foi substituído por outro mais familiar, estopa, que
por sinal torna a expressão destituída de sentido, pois, em se tratando de bater pregos, nada
mais inútil do que estopa...

De cabo a rabo.
Significando de uma extremidade a outra, de ponta a ponta, do princípio ao fim, a expressão
derivou-se da Cidade do Cabo a Rabá, ou seja, ir da Cidade do Cabo, ponto extremo do sul da
África, à cidade de Rabá, capital de Marrocos, ao norte desse Continente. A Cidade de Cabo,
aliás, foi ponto de passagem de grandes navegadores, como Bartolomeu Dias, 1488, e Vasco
da Gama, em 1497.

UESC Módulo 6 I Volume 3 149


Literatura, Imaginário, História e Cultura

Ser sopa no mel.


Primitivamente, era ser açúcar no mel, isto é, ao doce, seguir-se o ainda mais doce, expressão
usada quando se desejava dizer que a uma situação favorável sobreveio outra ainda melhor.
Deturpou-se, provavelmente, por confusão auditiva, tornado-se ininteligível a expressão à luz
da lógica, dado que, misturado o mel à sopa, ou vice versa, uma coisa estraga a outra...

Cor de burro quando foge.


A frase originou-se de corra de burro quando foge, para dar a entender que o asno, quando foge
impetuosamente de algum perigo, a todos atropela. Pela audição imperfeita do ouvinte, ou pelo
açodamento em pronunciar as palavras, subtraindo sílabas, apocopou-se o a de corra, o que
acarretou a alteração de sentido. Transformando o verbo (corra) em substantivo (cor), o povo
passou a usar a expressão como designativa de uma cor ‘indefinida, esquisita, inqualificável
entre as conhecidas’, o que torna de difícil compreensão o significado, pois é inconcebível um
burro mudar de cor simplesmente por estar fugindo de alguma coisa...

Cuspido e escarrado.
A nosso juízo, é uma desfiguração de esculpido em Carrara, usada para indicar pessoas de fisio-
nomias extremamente parecidas, ou com notável semelhança física (sósias, menecmas). Como
o termo esculpido (talhado a cinzelou escopro) não é muito familiar à gente iletrada, foi logo
trocado por um mais conhecido: cuspido; ora, seguindo-se-lhe outro ainda mais estranho – em
Carrara (cidade da Itália, célebre pela excelência de seus mármores) -, a nova troca, agora por
escarrado (já atraído pela ideia de cuspido...), foi consequência praticamente inevitável.
Há quem também considere como expressão original esculpido e encarnado, ou seja, tal qual se
o rosto e o espírito de alguém estivessem entranhados no rosto ou no corpo de outrem.

(XAVIER, Ronaldo Caldeira. Português no Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p.156-158.).

3 RELAÇÃO DE SENTIDO: CAMPOS SEMÂNTICOS E CAMPOS


LEXICAIS

O tratamento do léxico à luz da Semântica impõe a busca de um


caminho que indique princípios sob os quais o semanticista deva se orientar,
para a constituição do significado. Afinal, as palavras são analisadas
isoladamente ou fazendo parte de esferas conceituais? Como estabelecer
os nexos de significados? Desde Ferdinand Saussure, a Linguística
Estruturalista tem se apoiado na ideia de associações. A metáfora
empregada por Saussure (1977, p. 142), para explicar as associações que
as palavras mantêm entre si, sugere que cada uma delas é como se fosse
o centro de uma constelação, “o ponto para onde convergem outros
termos coordenados cuja soma é indefinida”. Nessa perspectiva, uma
palavra poderá motivar várias associações em vários níveis, a exemplo de
associações semânticas, fonológicos, morfológicos, ortográficas etc.
A Semântica Lexical se ocupa, dessa forma, dentre outros

150 Letras EAD


História e Literatura

aspectos, da associação de palavras. Alguns linguistas passaram a estudar as


diversas associações que a palavra pode evocar. Não há uma uniformidade
terminológica no tratamento desse tema. Nessa abordagem, vamos tomar
como base a classificação de Vanoye que ressaltou algumas peculiaridades
dos campos semânticos e dos campos lexicais.

Campo Semântico, de acordo com Vanoye (1987, p. 34), “é o conjunto


das significações assumidas por uma palavra num certo enunciado.”. Um
texto poderá apresentar vários campos semânticos. Esse autor explica a
metodologia utilizada para levantar o campo semântico de um texto:

Após determinar a época de uso da palavra, faz-se o


levantamento de todos os exemplos, tomando-se o
cuidado de não separar a palavra do seu contexto, e
estuda-se o material assim obtido. Os enunciados sob
análise podem ser mais ou menos longos. [...] Seja qual
for o caso, procurar-se-á definir os empregos da palavra e
fazer o levantamento dos termos aos quais esta se associa
ou se opõe. Deduzir-se-á, então, o sentido da palavra no
enunciado.

Quanto ao campo lexical, de acordo com Vanoye (1987, p. 34):

É o conjunto de palavras empregadas para designar,


qualificar, caracterizar, significar uma noção, uma
atividade, uma técnica, uma pessoa. A partir de um texto
ou de um conjunto de textos, faz-se o levantamento de
todas as palavras ligadas a uma noção, estudando-se
depois o material obtido. Pelo reagrupamento de palavras 4
Unidade
(opostas, sinônimos, associados, etc.), obtém-se uma
definição bastante precisa da noção dentro do texto
considerado. Este tipo de pesquisa é essencialmente fértil
no domínio estético, pois os autores geralmente dão às
palavras singulares, desconhecidos [...].

Para ilustrar o conceito de campo lexical, Vanoy (1997, p. 34-35)


utiliza o trecho a seguir da obra O Mulato de Aluísio Azevedo.

UESC Módulo 6 I Volume 3 151


Literatura, Imaginário, História e Cultura

Recendia por toda a catedral um aroma agreste de pitangueira e trevo cheiroso.


Pela porta da sacristia lobrigavam-se de relance padrecas apressados, que iam e vinham
na carreira, vestindo as suas sobrepelizes dos dias de cerimônia. Havia na multidão um
rumor impaciente de platéia de teatro. O sacristão, cuidando dos pertences da missa,
andava de um para o outro lado, ativo como um contra-regra quando o pano de boca vai
subir.

CAMPO LEXICAL catedral, sacristia, sobrepelizes, cerimônia, sacristão, missa,


DA LITURGIA padre, altar, salmos, cônego, acólito, turíbulo, incenso;

Teatral: plateia, teatro, pano de boca, deixa, orquestra, sinfonia,


espetáculo, entrar em cena, papel, artista, público, atores,
CAMPO LEXICAL
sucesso;
DE ESPETÁCULO
Circense: deus de mágica, galões e lantejoulas, rei de feira,
nuvem de incenso;

CAMPO LEXICALDE
padreca, fanhosa, desafinava, frenéticas, cara, velho (artista).
PALAVRAS DE
CARGA PEJORATIVA

Afinal, à deixa fanhosa de um padre muito magro que aos pés do altar desafi-
nava uns salmos de ocasião, a orquestra tocou a sinfonia e começou o espetáculo. Cor-
reu logo o surdo rumor dos corpos que se ajoelhavam; todas as vistas convergiram para
a porta da sacristia; fez-se um sussurro de curiosidade, em que se destacavam ligeiras
tosses e espirros, e o cônego Diogo apareceu, como se entrasse em cena, radiante,
altivo, senhor do seu papel e acompanhado de acólito que dava voltas frenéticas a um
turíbulo de metal branco.
E o velho artista, entre uma nuvem de incenso, que nem um deus de mágica, e
coberto de galões e lantejoulas, como rei de feira, lançou, do alto da sua solenidade, um
olhar curioso e rápido sobre o público, irradiando-lhe na cara esse vitorioso sorriso dos
grandes atores nunca traídos pelo sucesso.


Nesse trecho, o autor destaca três campos lexicais que estão inter-
relacionados, contribuindo para o sentido do texto.

A conclusão a que o autor chegou é que os campos lexicais


interpenetram-se na descrição. A palavra cerimônia, por exemplo, pode ser
incluída no campo lexical de liturgia, mas as comparações que o enunciador
tece acerca desse vocábulo o torna um sinônimo de espetáculo.
A associação desses campos lexicais, segundo Vanoy (1997, p. 35),
“faz daquele espetáculo o equivalente a um espetáculo de má-qualidade”. O
campo lexical de igreja, por sua vez, “é espelhado, via comparação e metáfora,

152 Letras EAD


História e Literatura

no campo lexical do espetáculo.”. Vanoy (1997, p. 35) analisa que o


“sacristão é um contrarregra, os fiéis são uma platéia impaciente.”. Por
essa ótica, no último parágrafo, o espetáculo é caracterizado como
circense. O que leva a essa constatação são as palavras do universo do
circo como: galões e lantejoulas; o cônego, um rei de feira. E, por fim,
Vanoy (1997, p. 35) observa que, por meio do texto todo, “os elementos
do conjunto de carga pejorativa fazem a ligação mais concreta entre as
idéias de cerimônia – espetáculo – e espetáculo barato”.
A análise apresentada dos nexos semânticos estabelecidos por
intermédio da associação das palavras contribui para determinar a
produção do significado do texto do ponto de vista da sua coerência.

ATIVIDADES

As questões a seguir visam ajudar a fixar o conteúdo estudado


nesta aula. Após solucioná-las, é interessante esclarecer as dúvidas
com o tutor. Caso seja necessário, reformule suas respostas e depois
entregue-as ao tutor.
1) O que caracteriza o léxico?
2) Qual a relação entre léxico e vocabulário?
3) Qual a importância das lexias para a descrição do significado?
4) É possível estabelecer uma distinção entre campo semântico e
campo lexical? Justifique.

A seguir será apresentado um trecho do Romance São Jorge dos 4


Unidade
Ilhéus, de Jorge Amado. Nele o autor faz uma descrição primorosa do
cenário que compõe uma roça de cacau. O narrador relaciona o amarelo
do cacau ao ouro como um signo de riqueza e isso é feito a partir do
levantamento dos elementos que compõem essa paisagem rural. Para
obter esse efeito descritivo, o narrador utilizou a técnica de agrupamento
de palavras que contribuem para associar o amarelo do cacau à ideia
de ouro e, consequentemente, à conquista da riqueza. No trecho em
destaque, é possível identificar a existência de campo associativo ou
campo semântico? Justifique sua resposta com elementos do próprio
texto.

UESC Módulo 6 I Volume 3 153


Literatura, Imaginário, História e Cultura

A sombra das roças é macia e


doce, é como uma carícia. Os ca-
caueiros se fecham em folhas gran-
des que o sol amarelece. Os galhos
se procuram e se abraçam no ar,
parecem uma única árvore subindo
e descendo o morro, a sombra de
topázio se sucedendo por centenas
e centenas de metros. Tudo nas
roças de cacau é em tonalidades
amarelas, onde, por vezes, o verde
rebenta violento. De um amarelo
aloirado são as minúsculas formi-
gas pixixicas que cobrem as folhas
dos cacaueiros e destroem a praga
que ameaça o fruto. De um amare-
lo desmaiado se vestem as flores e
as folhas novas que o sol pontilha
de amarelo queimado. Amarelos
Fonte: http://tvrsul.com.br/radio/wp-content/uploads/2014/05/Cacau.jpg são os frutos precoces que peca-
ram ao calor demasiado. Os frutos maduros lembram lâmpadas de oiro de catedrais
antigas, fulgem com um brilho resplandecente aos raios do sol, que penetram a sombra
das roças. Uma cobra amarela – uma papa-pinto – acalenta o sol na picada aberta pelos
pés dos lavradores. E até a terra, barro que o verão transformou em poeira, tem um
vago tom amarelo, que se prende e colore as pernas nuas dos negros e dos mulatos que
trabalham na poda dos cacaueiros.
Dos cocos maduros se derrama uma luz doirada e incerta que ilumina suavemente
pequenos ângulos das roças. O sol que se filtra através das folhas desenha no ar colunas
amarelas de poeira, que sobem para os galhos e se perdem além, por cima das folhas
mais altas. Os juparás, macacos plantadores de cacau, pulam de galho em galho, numa
algazarra, sujando o oiro dos cacaueiros com o seu amarelo fosco e sujo. A papa-pinto
desperta, estira seu dorso cor de gema de ovo, parece uma vara de metal que fosse
flexível. Seus olhos amarelos de cobiça fitam os macacos que passam, bando buliçoso e
alegre. Caem gotas de sol através dos cacaueiros. Vão rebentar em raios no chão, quan-
do batem nas poças de água lhe dão um colorido de rosa-chá. Como se houvesse uma
chuva de topázio caindo do céu, virando pétalas de rosa-chá no chão de poeira ardente.
Há todos os tons amarelos na tranquilidade da manhã nas roças de cacau.
E, quando corre uma leve brisa, todo aquele mar de amarelo se balança, as tonali-
dades se confundem, criam um amarelo novo, o amarelo das roças de cacau, ah! o mais
belo do mundo! Um amarelo como só os grapiúnas veem nos dias de verão do paradeiro.
Não há palavras para descrevê-lo, não há imagem para compará-lo, um amarelo sem
comparação, o amarelo das roças de cacau!

(AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. 18. ed. São Paulo: Campanha das Letras,
2010.p.120-121.).

Leia o texto O Boateiro e identifique quais os tipos de relações


5)
semânticas são estabelecidas nele. Você identifica a presença de campos se-
mânticos ou de campos lexicais? Caso haja uma dessas ocorrências, como
o narrador estabeleceu essas relações de significados?

154 Letras EAD


História e Literatura

O Boateiro

Diz que era um sujeito tão boateiro que chegava


a arrepiar. Onde houvesse um grupinho, ele
estava na conversa e, em pouco tempo, estava
informando: “Já prenderam o novo Presidente”,
“Na Bahia os comunistas incendiando as igrejas”,
“Mataram agorinha um cardeal”, enfim, essas
bossas. O boateiro encheu tanto que um coronel
resolveu dar-lhe uma lição. Mandou prender o
sujeito e, no quartel, levou-o até um paredão,
colocou o pelotão de fuzilamento na frente,
vendou-lhe os olhos e berrou:
- Fogooooo !!! Fonte: http://www.sindaport.com.br/

Ouviu-se aquele barulho de tiros, e o boateiro caiu desmaiado.


Sim, caiu desmaiado, porque o coronel queria apenas dar-lhe um susto. Quando o boateiro
acordou na enfermaria do quartel, o coronel falou para ele:
- Olhe, seu pilantra, isto foi apenas para lhe dar uma lição. Fique espalhando mais boato
idiota por aí, que eu lhe mando prender outra vez e aí não vou fuzilar com bala de festim,
não.
Daí soltou o cara que saiu meio escaldado pela rua e logo na primeira esquina encontrou
uns conhecidos.
- Quais são as novidades? – perguntaram os conhecidos.
O boateiro olhou pros lados, tomou ar de cumplicidade e disse baixinho:
- O nosso exército está completamente sem munição.

(PRETA, Stanislaw Ponte. O Boateiro. In: ANTUNES, Irandé. Análise de Textos: fundamentos
e práticas. São Paulo: Parábola, 2010, p. 195-196.).

RESUMINDO

4
Nesta aula, você viu que:
Unidade

• a Lexicologia é um conjunto de palavras que compõem uma


língua;
• a língua permite uma série de associações que levam ao
surgimento de campos lexicais e de campos semânticos;
• o léxico deve ser estudado em situação contextualizada;
• vários fatores influenciam na evolução e alteração do léxico.

UESC Módulo 6 I Volume 3 155


Literatura, Imaginário, História e Cultura

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. 18. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010.

ANDRADE, Maria Margarida de; MEDEIROS, João Bosco. Comunicação


em Língua Portuguesa: para cursos de jornalismo, propaganda e letras.
São Paulo: Atlas, 2004.

ANTUNES, Irandé. O território das palavras. São Paulo: Parábola, 2012.

CANÇADO, Márcio. Manual de Semântica: noções básicas. Belo


Horizonte: Editora da UFMG, 2005.

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4
Unidade

UESC Módulo 6 I Volume 3 157


Literatura, Imaginário, História e Cultura

158 Letras EAD


História e Literatura

aula 2
AMBIGUIDADE E VAGUEZA:
EXCESSO DE SIGNIFICAÇÃO
E IMPRECISÃO SEMÂNTICA

Objetivos
Ao final desta aula, você deverá ser capaz de:

• analisar os efeitos do excesso de significação e da imprecisão


semântica no discurso;
• identificar os fatores que causam a ambiguidade e a vagueza na

4
linguagem;
• reconhecer a polissemia e a homonímia como fatores produtores Unidade
de ambiguidade;
• diferenciar homonímia, paronímia e polissemia;
• compreender os mecanismos de desambiguização.

UESC Módulo 6 I Volume 3 159


Literatura, Imaginário, História e Cultura

160 Letras EAD


História e Literatura

1 INTRODUÇÃO

Na aula passada, você viu como alguns mecanismos de associação


de palavras contribuem para a produção do significado. Nesta aula, o
foco será o estudo de fatores que contribuem para que a expressão do
pensamento acarrete um sentido não intencionado pelo falante. Você
conhecerá ainda mecanismos linguísticos para evitar o mal-entendido.
É certo, porém, que nem sempre o falante consegue dar o sentido
exato do que pretende dizer. Isso porque a língua natural, por vezes,
tem excesso de significação ou indefinição semântica. Quantas vezes
você não recorreu a um dicionário ou ao contexto da fala para precisar
termos que parecem vagos e imprecisos?
Salientamos que a atribuição de sentido a uma palavra, a uma
frase, ou a um texto constitui uma das tarefas mais difíceis no âmbito das
línguas naturais. Uma expressão, absolutamente clara, poderá deixar de
ser, quando é empregada em situações reais. Nesse caso, poderá ocorrer
um excesso de significação, caracterizando a ambiguidade, ou a falta de
um elemento definidor para precisar os termos, surgindo uma hipótese
de vagueza. Essas propriedades semânticas constituem o caráter
iniludível da linguagem e deverão ser explicados pelo semanticista.
A ambiguidade é um fenômeno linguístico que
pode se manifestar de várias maneiras. Veja a seguinte
manchete que foi publicada, no Jornal da Tarde de
São Paulo, de 9 de dezembro de 1994, por ocasião
da morte do cantor e compositor Tom Jobim: “O
BRASIL PERDE O TOM.”. 4
Unidade

O item lexical “Tom” leva a dois significados, a


saber: O Brasil perdeu o cantor Tom Jobim e o Brasil
perdeu o tom referente à nota musical.
Algumas palavras apresentam uma referência
imprecisa que tornam necessários elementos
contextuais para a constituição do sentido. Isso
acontece, por exemplo, com o termo multidão,
intelectual, calvo, dentre outros. Quantas pessoas são
Fonte: http://www.pontodevista.jor.br/

UESC Módulo 6 I Volume 3 161


Literatura, Imaginário, História e Cultura

necessárias para que se caracterize uma multidão, qual a quantidade de


conhecimento que uma pessoa deverá ter para ser considerada intelectual?
Qual o mínimo de fios de cabelo que alguém deve possuir para ser
considerado calvo? Essas circunstâncias identificadas na linguagem,
próprias da língua natural, são denominadas vagueza. Destarte, essas
palavras são dependentes de uma definição esclarecedora para a sua
aplicação a situações práticas. De acordo com Chierchia (2003, p. 68),
a vagueza se caracteriza como “incerteza dos limites de uma classe ou
quantidade associada a uma expressão”.
Dessa forma, a ambiguidade e a vagueza são manifestações da
língua natural que impõem ao semanticista empreender uma análise detida
acerca das causas que levam a essa ocorrência e os efeitos de sentido delas
decorrentes.

2 AMBIGUIDADE E DESAMBIGUIZAÇÃO

Ambiguidade é a possibilidade que a sentença tem de apresentar


mais de um significado. Ilari (2005, p. 9) propõe um teste para saber se
uma sentença tem mais de um sentido, o qual consiste em elaborar duas
reformulações, inventando em seguida uma situação em que a primeira
reformulação seja verdadeira e a segunda falsa ou inaplicável. Para tanto,
toma como exemplo uma manchete publicada no jornal (FSP, 17.10.1996),
“Os ladrões inovam no ataque a mulheres em carros”. Ele propõe a primeira
reformulação: ‘Os ladrões descobrem novas maneiras de atacar mulheres
motoristas’; e a segunda reformulação: ‘Ladrões que atacam de carro
descobrem novas maneiras de atacar mulheres’. A situação teste, segundo
o autor, consiste em contextualizar a frase em 1940, quando as mulheres
não dirigiam. Nesse caso, a primeira reformulação não se aplicaria, então,
a segunda poderia ser verdadeira. Dessa forma, ele conclui que a manchete
é ambígua.
Como identificar o fenômeno da ambiguidade? A ambiguidade se
instala na comunicação verbal, quando uma palavra possui mais de um
significado ou diversos referentes. Para ilustrar, considere as sentenças a
seguir e veja os significados que a palavra casa assume em cada uma.

162 Letras EAD


História e Literatura

1. A casa da educação promove a inclusão social.

2. A casa legislativa acolheu o projeto de lei.

3. A casa da moeda pertence à União.

4. O ladrão arrombou a casa, enquanto os moradores dormiam.

Fica evidenciado que a palavra casa não tem o mesmo significado


em todas as sentenças. Portanto o seu emprego depende do contexto em
que a sentença está sendo empregada. Na sentença 1, casa é empregada
com o significado de escola ou instituição de ensino superior a depender
do contexto. Na sentença 2, a palavra casa pode significar a Câmara
dos Deputados, Congresso Nacional ou Assembleia Legislativa. Na
sentença 3, o termo casa está empregado no sentido de uma instituição
pública responsável pela emissão de moeda brasileira. Finalmente, na
sentença 4, a palavra casa está empregada no sentido de lar.
Ainda para ilustrar a ambiguidade, leia a tirinha a seguir, pense
rápido e responda: O que leva o primeiro quadrinho a ser ambíguo?

4
Unidade

Disponível em: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/index.html. Acesso em: 10 set. 2013

A leitura do 1º quadrinho sugere um protesto contra o Rei,


tendo em vista a expressão “Abaixo o Rei”. Essa ideia se desfaz com a
interpretação do 2º quadrinho, que explica os motivos pelos quais foi
feita essa referência ao Rei.
Para eliminar a ambiguidade, a língua dispõe do mecanismo
conhecido como desambiguização, que consiste na reestruturação

UESC Módulo 6 I Volume 3 163


Literatura, Imaginário, História e Cultura

das sentenças, visando determinar o seu significado. De acordo com o


Dicionário de Linguística (DUBOIS et al. 2004, p. 174), a desambiguização
ocorre da seguinte forma:

Uma frase é ambígua (quando ela comporta duas aná-


lises estruturais diferentes tendo dois sentidos diferen-
tes), pode-se proceder à sua desambigüização usando em
seu lugar frases sinônimas não-ambíguas. Assim, para
desambigüizar uma frase como O magistrado julga as
crianças suspeitas, ver-se-á se é possível fazer as substi-
tuições seguintes: (1) O magistrado julga as crianças: as
crianças são suspeitas; (2) O magistrado julga algo: as
crianças são suspeitas.

É possível compreender, então, que para realizar o processo de


desambiguização, é necessário desmembrar as frases e reescrevê-las,
visando à obtenção de um sentido que atenda aos propósitos do falante.

3 TIPOS DE AMBIGUIDADE

A ambiguidade é um fenômeno semântico que surge, geralmente,


quando uma palavra está associada a mais de um significado. Vários fatores
poderão gerar a ambiguidade. Veja algumas formas como ela se apresenta.

3.1 Ambiguidade lexical


Ocorre a ambiguidade lexical, quando uma palavra apresenta diversos
significados não relacionados entre si. Esse fenômeno tem estreita relação
com a polissemia. Para análise
dos efeitos da ambiguidade no
discurso, veja a propaganda a
seguir, que explora esse recurso,
para conferir vários significados
à palavra “saia”: “Use saia” que
significa, no Brasil, peça do
vestuário feminino; “Saia de dia”
e “Saia de noite”, está relacionado
também ao verbo sair e “Saia de
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/rs/

164 Letras EAD


História e Literatura

si”, a palavra “saia” está sendo usada com o significado de afastar-se.

Examine agora alguns empregos da palavra “salto”. Na sentença


A atriz admirou o salto que ficou para a história. A palavra salto pode estar
relacionada a sapato, mas poderá também se referir a salto a distância ou
ainda salto no sentido de ascensão social.
Para ilustrar ainda mais a ambiguidade lexical, Henriques (2011, p.
89) cita fragmentos de uma crônica de Carlos Drummond de Andrade,
intitulada ‘Assalto’, que mostra de forma humorística a duplicidade de
sentido causado não só pelo item lexical, mas também pelo contexto do
acontecimento discursivo que envolveu elementos como a entonação de
algumas sequências frasais, acarretando, dessa forma, o mal-entendido.
Veja, então, o trecho da aludida crônica:

Na feira, a gorda senhora


protestou a altos brados contra o pre-
ço do chuchu:
- Isto é um assalto!
Houve um rebuliço. Os que
estavam perto fugiram. Alguém, cor-
rendo, foi chamar o guarda. Um minu-
to depois, a rua inteira, atravancada,
mas provida de admirável serviço de
comunicação espontânea, sabia que
se estava perpetrando um assalto ao
banco. Mas que banco? Havia banco
naquela rua? Evidentemente que sim,
pois do contrário como poderia ser as-
saltado?
- Um assalto! Um assalto!

4
- a senhora continuava a exclamar,
e quem não tinha escutado escutou, Fonte: http://3.bp.blogspot.com/-L06xPbj_j1M/TwP8_VxgDQI/
AAAAAAABtKk/wrgz4Ktdj5E/s1600/feira%2Blivre.jpg Unidade
multiplicando a notícia.
Aquela voz subindo do mar de barracas e legumes como a própria sirena policial, documentan-
do por seu uivo a ocorrência grave, que fatalmente se estaria consumando ali na claridade do dia, sem
que ninguém pudesse evitá-la.
[...]
Barracas derrubadas assinalavam o ímpeto da convulsão coletiva. Era preciso abrir caminho
a todo custo. No rumo do assalto, para ver, no rumo contrário, para escapar. Os grupos divergentes
chocavam-se, e às vezes trocavam de direção: quem fugia dava marcha à ré, quem queria espiar era
arrastado pela massa oposta. Os edifícios de apartamentos tinham fechado suas portas, logo que o
primeiro foi invadido por pessoas que pretendiam, ao mesmo tempo, salvar o pêlo e contemplar lá de
cima. Janelas e balcões apinhados de moradores, que gritavam:
- Pega! Pega! Correu para lá!
- Olha ela ali!
- Eles entraram na Kombi ali adiante!
- É um mascarado! Não, são dois mascarados!

UESC Módulo 6 I Volume 3 165


Literatura, Imaginário, História e Cultura

Ouviu-se nitidamente o pipocar de uma metralhadora, a pequena distância. Foi um


deitar no chão geral e, como não havia espaço, uns caiam por cima dos outros. Cessou o
ruído. Voltou. Que assalto era esse, dilatado no tempo, repetido, confuso?
- Olha o diabo daquele escurinho tocando matraca! E a gente com dor de barriga,
pensando que era metralhadora!
Caíram em cima do garoto que soverteu na multidão. A senhora gorda apareceu,
muito vermelha, protestando sempre:
- É um assalto! Chuchu por aquele preço é um verdadeiro assalto!

A ambiguidade lexical poderá decorrer de dois fenômenos


linguísticos, a saber: a homonímia e a polissemia.

3.1.1 Homonímia

Como você observou, a homonímia é um fenômeno linguístico


que contribui para o surgimento da ambiguidade. O termo homonímia é
originado do grego de homónymos que significa o que tem o mesmo nome.
Na homonímia, as palavras implicadas apresentam uma coincidência
gráfica ou fônica entre elas, porém os significados são distintos.
De acordo com Dubois et al. (1997, p. 326), “homonímia é a
identidade fônica (homofonia) ou a identidade gráfica (homografia), de
dois morfemas que não têm o mesmo sentido, de um modo geral.”. Os
homônimos que possuem a mesma grafia são denominados homógrafos.
Veja a ocorrência do vocábulo “rio” nos exemplos a seguir: Paulo riu muito
durante a apresentação da peça teatral, enquanto isso o rio transbordava
devido à água que caiu da chuva.
Veja outros exemplos de palavras homônimas: As expressões Santo
de casa não faz milagres e Em casa de ferreiro espeto de pau são dois provérbios
que se aplicam a Tadeu, pois ele estava doente, ficou são, porém não pediu
ajuda ao pai que é médico, confiou muito mais em São Judas Tadeu, que
é o santo de sua devoção. Observe que, nos exemplos explicitados, os
vocábulos ‘rio’ e ‘riu’ têm uma identidade fônica, portanto caracterizam
a ocorrência de homônima homófona, enquanto que os registros do
vocábulo ‘são’ nos demais exemplos, podemos verificar identidade de
significantes, mas os significados são diferentes. Nesse caso, há ocorrência
de homônimos homógrafos.

166 Letras EAD


História e Literatura

Como você analisa a ocorrência dos vocábulos


que apresentam certa coincidência nas sentenças a seguir?
Durante a sessão de autógrafos, a livraria disponibilizou POLISSEMIA

vários exemplares do livro na seção de Literatura Brasileira. Quando se utiliza o termo


Posteriormente, o escritor assinou o contrato de cessão de polissemia, o critério de
definição muda do signi-
direitos autorais. Observe que a palavra ‘sessão’ indica a ficante para o significado.
Assim, as palavras po-
duração de tempo de um evento ou de uma reunião, a palavra
lissêmicas, que possuem
‘seção’ indica setor, divisão em compartimentos e ‘cessão’ é mais de um significado
para um mesmo signifi-
o ato de ceder ou transferir algo. Nesse caso, os vocábulos cante, opõem-se às pala-

são homônimos homófonos. vras monossêmicas, que


possuem apenas um. Na
polissemia, a um único
significante correspondem
3.1.2 Polissemia vários significados: por
exemplo, ao significante
vela correspondem os sig-
A polissemia resulta da existência de vários nificados “objeto para ilu-
minação formado de um
significados para a mesma palavra, isto é, constitui uma pavio constituído de fios
variedade de significação atribuída a uma palavra. Essa entrelaçadas, recober-
to de cera ou estearina”,
pluralidade de significados se manifesta, sobretudo, quando “peça que causa a ignição
dos motores”; “pano que,
a palavra está descontextualizada, por isso poderá acarretar
com o vento, impele as
também a ambiguidade. O Dicionário de Linguística e embarcações” etc.
A polissemia e a monosse-
Gramática de Mattoso Câmara Jr (2009, p. 241) assinala que mia estão relacionadas ao

polissemia é uma “propriedade da significação linguística de uso discursivo que se faz


de uma mesma palavra.
abarcar toda uma gama de significações, que se definem e Em geral, são os vocabu-
lários técnicos que, por
precisam dentro de um contexto.”. Veja os significados que meio de definições cons-
estão relacionados ao vocábulo pena: truídas em seus discur-
sos, operam modificações

4
sêmicas que transformam
palavras polissêmicas em Unidade
monossêmicas.

(PENAFORTE, Antônio Vi-


cente Seraphim; LOPES,
Ivã Carlos. Semântica
Lexical, In: FIORIN, José
Luiz. Org. Introdução à
Linguística II: princípios
de análise. São Paulo:
Contexto, 2001. p. 131.).

UESC Módulo 6 I Volume 3 167


Literatura, Imaginário, História e Cultura

A polissemia, às vezes, se confunde com a homonímia, porém há


traços diferenciadores desses dois fenômenos linguísticos. Na homonímia,
há duas ou mais palavras com identidade fônica ou gráfica, porém cada
palavra possui um significado diferente; ao passo que, na polissemia, um
único vocábulo possui dois ou mais significados. Cançado (2005, p. 65)
chama atenção que tanto a polissemia quanto a homonímia “lidam com
vários sentidos para uma mesma palavra fonológica, entretanto, polissemia
ocorre quando os possíveis sentidos da palavra ambígua têm alguma
relação entre si.”. Ela ilustra com a palavra rede, por exemplo, que poderá
significar rede de deitar, rede elétrica, rede de computadores etc.

saiba mais

Para distinguir uma palavra polissêmica de uma homônima, utiliza-se a etimologia. No caso
da homonímia, a diferença de significação é decorrência de etimologias diferentes, que con-
vergem para uma forma vocabular. Dubois et al. (1988:326) ensinam que há dois critérios
para distinguir a homonímia da polissemia: (a) diacrônico, para o qual são homônimas ape-
nas as formas convergentes da gramática histórica. Exemplo, o adjetivo sanctum deu são
em português, que também é adjetivo (santo: são José). O adjetivo sanum deu são (sadio);
o verbo latino sunt deu são (verbo ser). Embora seja esse critério discutível em alguns ca-
sos, em geral ele se manifesta válido. Acrescente-se que na homonímia os significados não
se associam, não pertencem à mesma área semântica; distribuem-se em contexto e classe
gramatical diferentes; (b) sincrônico, que considera homônimas as palavras fonologicamen-
te iguais, mas que não conseguem associar-se em um mesmo campo semântico. Exemplo
clássico: cabo acidente geográfico, e cabo, posto militar [...]. São homônimas as palavras
fonologicamente iguais que pertencem a diferentes classes gramaticais. Exemplos: o subs-
tantivo amo (pessoa respeitável na família, o dono da casa) e a forma verbal (eu) amo; ou
canto (substantivo) e (eu) canto (verbo). Dubois et al. (1988:472) alertam para o fato de
que o critério etimológico nem sempre funciona na distinção de homonímia e polissemia.

(ANDRADE, Maria Margarida de; MEDEIROS, João Bosco. Comunicação em Língua Portugue-
sa: para cursos de jornalismo, propaganda e letras. São Paulo: Atlas, 2004. p. 251.).

3.2 Ambiguidade sintática

A ambiguidade sintática ou estrutural ocorre no nível da sentença


e não do léxico. De acordo com Chierchia (2003, p. 63), “tem a ver com o
fato de que há várias maneiras de subdividir uma mesma sentença em sin-
tagma.”. Esse tipo de ambiguidade pode ser visto nos exemplos a seguir:

1. Juiz julgou o réu inocente.


2. A gerente da empresa avaliou o candidato inapto para o cargo.

168 Letras EAD


História e Literatura

Na sentença 1, o juiz julgou que o réu era inocente ou julgou o


réu que era inocente? Na sentença 2, o gerente avaliou o candidato que
era inapto para o cargo, ou avaliou que o candidato era inapto para o
cargo?

3.3 Ambiguidade semântica

A ambiguidade semântica, conforme ensina Chierchia (2003, p.


64-68), não possui natureza sintática nem lexical. Ela se refere “ao fato
de que os pronomes podem ter diversos antecedentes.”. Considere as
seguintes sentenças:
1. O técnico do time de futebol não ficou satisfeito com o seu
desempenho.
2. Maria pediu autorização a sua mãe para viajar.
3. O jogador comprou o uniforme do time com seu dinheiro.

O que possibilita mais de uma interpretação às expressões


linguísticas é a disposição do pronome possessivo ‘sua’ nas sentenças.
Na sentença 1, é possível indagar se o técnico ficou satisfeito com o
desempenho dele mesmo ou com o desempenho do time? Na sentença
2, Maria pediu autorização à mãe dela, ou pediu autorização à mãe de
um interlocutor? Na sentença 3, o jogador comprou o uniforme do
time com o próprio dinheiro ou comprou o uniforme com o dinheiro
do time?

3.4 Ambiguidade de escopo


4
Unidade

A ambiguidade de escopo trata de uma porção de conteúdo em


uma expressão linguística que é atingida por uma operação semântica.
Considere que Pedro tenha dito a seguinte frase: Estou com vontade
novamente de ir a Paris. E que Marcos tenha lhe feito a seguinte
pergunta:
- Você já foi a Paris? Eu não sabia.
Pedro responde:
- Eu não disse que já fui a Paris, eu disse que estou com vontade

UESC Módulo 6 I Volume 3 169


Literatura, Imaginário, História e Cultura

novamente.
O vocábulo ‘novamente’ é um fator de ambiguidade, pois afeta um
conjunto de conteúdos e gera duas interpretações numa mesma sentença,
a saber: Pedro está novamente com vontade de ir a Paris e Pedro já foi a
Paris e está com vontade de ir novamente.
De acordo com Cançado (2005, p. 71), a ambiguidade de escopo
“é a maneira de organizar a relação de distribuição entre as palavras que
expressam uma quantificação que gera a ambigüidade”. Veja as sentenças
a seguir:
1. Todos os jogadores do Flamengo possuem uma mansão.
2. Todo homem ama uma mulher.

Na sentença 1, há duas interpretações possíveis: A) Cada jogador


do Flamengo possui uma mansão; B) Todos os jogadores juntos possuem
uma única mansão. Na sentença 2, há também duas interpretações
possíveis: A) Todo homem ama uma única mulher; B) Cada homem ama
uma mulher diferente. Dessa forma, a ambiguidade de escopo envolve a
noção de distribuição coletiva ou individual.
Cançado (2005, p. 71) lembra que há distinção entre ambiguidade
sintática gerada pela estrutura da sentença e ambiguidade de escopo. Na
ambiguidade sintática, a sentença pode ser reorganizada em diferentes
estruturas lineares; enquanto que, na ambiguidade de escopo, não há
“duas formas lineares de organizar a sentença, mas se têm duas estruturas
subjacentes (ou formas lógicas) distintas”, na qual uma possui a ideia de
distribuição coletiva e a outra, de distribuição individual.

3.5 Ambiguidade decorrente do uso de gerúndio

Há certas construções de sentenças com o emprego de verbos


no gerúndio que podem originar ambiguidade. Geralmente, são orações
reduzidas do gerúndio que podem deixar entrever obscuridade devido à
ambiguidade que é gerada por essas construções sintáticas. Considere a
sentença: Paulo encontrou Maria, passeando no jardim. A sentença expressa
pode ser convertida em:
a) Paulo encontrou Maria, quando ela passeava no jardim.

170 Letras EAD


História e Literatura

b) Paulo estava passeando no jardim e encontrou Maria.

Diante das observações acerca de fatores que ocasionam a


ambiguidade, fica evidenciado que os fenômenos linguísticos não podem
ser analisados fora de uma situação concreta da língua. Além disso, a análise
semântica deverá levar em conta a estrutura sintática da sentença.

4 PARONÍMIA

Paronímia é a ocorrência de palavras que apresentam semelhança


gráfica ou fonética, todavia os significados são diferentes, pois elas não
pertencem ao mesmo campo ideológico. Esse vocábulo é de origem grega
parónymos e significa nome parecido com outros.
Essa afinidade entre as palavras pode gerar equívoco ou suscitar
situações inusitadas. Imagine, por exemplo, a sentença O juiz absorveu o
réu, em lugar de O juiz absolveu o réu, certamente, ocorreria um embaraço
para o magistrado que a proferisse.
Veja agora, no cartaz a seguir, o que o emprego inadequado de uma
palavra pode gerar.

4
Unidade

Disponível em: http://revistaabsurda.com/


Acesso em: 22 abr. 2013.

Certamente, causou estranheza aos clientes desse estabelecimento


comercial, uma vez que o cartaz publicitário informa que “Todos os produtos
desta mesa contém glúteos em sua composição!” Ora, nesse caso, a palavra
adequada seria glúten que se refere a uma substância extraída de cereais,

UESC Módulo 6 I Volume 3 171


Literatura, Imaginário, História e Cultura

em vez de glúteos que se refere a nádegas. Agora é com você, sabendo


o significado das duas palavras, será que, de fato, o pão contém o que o
anúncio afirma existir?
A título de exemplo, apresentamos algumas palavras que se
assemelham no plano gráfico ou fonético.

Acento (inflexão da voz) Assento (base)


Apressar (dar pressa a) Apreçar (marcar o preço de)
Comprimento (extensão) Cumprimento (saudação)
Descriminar (isentar de crime) Discriminar (diferenciar)
Emergir (vir à tona) Imergir (mergulhar)
Eminente (excelente) Iminente (pendente)
Ignaro (inculto, ignorante) Ignavo (preguiçoso, indolente)
Mandato Mandado (ordem)
(procuração, representação)
Ratificar (confirmar) Retificar (corrigir)
Sesta (hora do descanso) Sexta (redução de dia da sema-
na; numeral ordinal etc)
Tráfego (trânsito) Tráfico (comércio ilegal)
Vultoso (de grande vulto) Vultuoso (inchado)

Para não confundir o emprego das palavras parônimas, a


recomendação é recorrer ao contexto e ao dicionário, uma vez que não é
possível, em princípio, o falante conhecer todo o inventário das palavras
parônimas.

ATIVIDADES

As questões a seguir visam contribuir para fixar os conteúdos


estudados nesta aula. Sugerimos que, após respondê-las, confrontem
com as respostas dos colegas no Seminário Integrador e esclareça as su-
as dúvidas com o tutor. Caso considere necessário, refaça as respostas,
e após as correções entregue a versão final ao tutor.

1) Na crônica intitulada Pontos, o autor Luiz Fernando Verís-

172 Letras EAD


História e Literatura

simo organiza o texto a partir dos vários empregos da palavra ponto.


Produza um texto, abordando a relação de polissemia e homonímia e
explore outros aspectos do significado do léxico que considere perti-
nente à abordagem desse texto.

PONTOS

No início era um ponto. Ponto de partida. O ponto onde a tangente toca a


circunferência, e faz-se a vida. Ponto pacífico.
O círculo é a timidez do ponto. A linha é o ponto desvairado. O travessão é o
ponto-ante-ponto, a primeira exploração embevecida, a infância. Ligando as palavras.
Nasceu num ponto qualquer o mapa. Sua mãe levou pontos depois do parto. A linha reta
é o caminho mais chato entre o parto e o ponto final, preferiu o ziguezague. Teve uma
vida pontilhada, os pontos que caíam nos exames, os pontos que subiam na Bolsa, os
pontos de macumba, os pontapés. Mas sempre foi pontual.
O ponto é uma vírgula sem rabo.
A vírgula não é como o ponto e vírgula ponto e vírgula [sic] a vírgula qualquer um usa,
mas o ponto e vírgula requer prática e discernimento vírgula modéstia à parte ponto.
Nova linha. Fez ponto em frente à casa da namorada, uma circunferência
com vários pontos positivos, como a sua mãe apontada acima. Não dormiu no ponto,
acabou convidado para entrar quando estava a ponto de desistir, pontificou sobre vários
pontos, não demora já era apontado como íntimo da casa, jogava cartas (pontinho) com
a família, parecia um pontífice, não despontou. Casaram. Tinham muitos pontos em
comum.
O sexo! Ponto de exclamação. Querida, estou a ponto de... não! Cuidado. Ponto
fraco. A tangente toca a circunferência. Outro ponto no mapa. Parto. Pontos.
Tiveram muitos pontos em comum. Os outros caçoavam: que pontaria! Discordavam
num ponto: a pílula.
Zig-zag-zig-zag. Os ponteiros andando. Um dia, no futebol – jogava na ponta
– sentiu umas pontadas. Coração. O ponto-chave.
O médico insistiu num ponto: pára.
Mas como? Chagara a um ponto em que não podia parar, era um ponto
projetado no espaço, a vida é um ponto com raiva, parar como? A que ponto? Saiu
encurvado. Como um ponto de interrogação.
Só uma solução, dois pontos: os 13 pontos na loteria. Senão era um ponto morto. A linha
reta no eletro, outro ponto pacífico, o ponto no infinito onde as paralelas, a distância

4
mais curta entre, cheguei a um ponto em que, meu Deus... três pontinhos.
Jogou o que tinha num ponto de bicho e o que não tinha num ponto lotérico. Não deu Unidade
ponto.
Em casa a circunferência e os sete pontinhos. Resolveu pingar os pontos nos is.
Melhor deixar uma viúva no ponto.
De um ponto de ônibus mergulhou, de ponta-cabeça, na ponta de um táxi, ou de um
ponto de táxi na ponta de um ônibus, é um ponto discutível.
Entregou os pontos.

(VERÍSSIMO, Luiz Fernando. O Popular. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973, p. 97-8, in
SILVEIRA, Martins Dileta: ZILBERKNOP. Português Instrumental. 22. ed. Porto Alegre:
Sagra Luzzatto, 2001. p. 43-44.).

UESC Módulo 6 I Volume 3 173


Literatura, Imaginário, História e Cultura

2) Leia o texto O testamento e comente os vários significados de-


correntes das intencionalidades discursivas.

O TESTAMENTO

Um homem rico, sem filhos, sentindo-se morrer, pediu papel e caneta e escreveu
assim:
“Deixo meus bens à minha irmã não a meu sobrinho jamais será paga a conta do
mecânico e nada aos pobres”
- Não teve tempo de pontuar – morreu.
Eram quatro concorrentes. Chegou o sobrinho e fez estas pontuações numa có-
pia do bilhete:
“Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho. Jamais será paga a conta
do mecânico. Nada aos pobres.”
A irmã do morto chegou em seguida com outra cópia do testamento e pontuou
assim:
“Deixo meus bens à minha irmã. Não a meu sobrinho. Jamais será paga a conta
do mecânico. Nada aos pobres.”
Apareceu o mecânico, pediu uma cópia do original e fez estas pontuações:
“Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais! Será paga a conta do
mecânico. Nada aos pobres.”
Um juiz estudava o caso, quando chegaram os pobres da cidade. Um deles, mais
sabido, tomou outra cópia do testamento e pontuou deste modo:
“Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais! Será paga a
conta do mecânico? Nada! Aos pobres!”.

Testamento in: PETRI, Maria José Constantino. Manual de Linguagem Jurídica. São Paulo:
Saraiva p. 205-206.

3) Como
você distingue homonímia de polissemia?
4) Considerando a manchete Quanto vale uma coroa, que foi
publicada na Revista Veja, edição 2.253 – ano 45 – nº4 de 25 de janeiro de
2012, comente o efeito de sentido provocado pelo item lexical “coroa” do
ponto de vista da Semântica. Sua resposta deverá considerar os aspectos
estudados nesta aula.

Fonte: http://veja.abril.com.br/

174 Letras EAD


História e Literatura

5)Leia a tirinha a seguir e explique o que confere o efeito de humor.

Disponível em: http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/l00003.htm


Acesso em: 20 out. 2012.

6) Considere as seguintes sentenças:


1) Os alunos leram dois romances.
2) O Reitor da Faculdade deu um notebook para todos
os alunos.
3) Todos os alunos ganharam uma viagem.
4) Temendo retaliação do chefe, o empregado obedecia a
todas as ordens.
5) Desejando ser aprovado no concurso público, Paulo
estudava com afinco.

Essas sentenças apresentam mais de uma interpretação? Se a res-


posta for afirmativa, trata-se de que tipo de ambiguidade?

RESUMINDO 4
Unidade

Nesta aula, você viu que:

• as palavras podem apresentar excesso de significação ou


indefinição, gerando, respectivamente, a ambiguidade e a
vagueza;
• as palavras podem apresentar semelhanças na estrutura
fonológica ou gráfica, originando o fenômeno da paronímia
ou da homonímia;
• vários fatores contribuem para gerar a ambiguidade, como

UESC Módulo 6 I Volume 3 175


Literatura, Imaginário, História e Cultura

a disposição de palavras na sentença, a estrutura sintática, a


homonímia, a polissemia etc;
• a desambiguização é um mecanismo linguístico utilizado
para reformulação da sentença para obtenção do significado
pretendido pelo falante.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Maria Margarida de; MEDEIROS, João Bosco. Comunicação


em Língua Portuguesa: para cursos de jornalismo, propaganda e letras.
São Paulo: Atlas, 2004.

CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. Dicionário de Linguística e Gramática:


referente à língua portuguesa. 27. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

CANÇADO, Márcio. Manual de Semântica: noções básicas. Belo


Horizonte: Editora da UFMG, 2005.

CHIERCHIA, Gennaro. Semântica. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP,


2003.

DUBOIS, Jane et al. Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1997.

FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristóvão. Oficina de Textos. 8. ed.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

GARCIA, Othon M. Comunicação em Prosa Moderna. 19. ed. Rio de


Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2000.

HENRIQUES, Cláudio Cezar. Léxico e Semântica: estudos produtivos


sobre palavra e significação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

HURFORD, James R.; HEASLEY, Brendan. Curso de Semântica.


Canoas, RS: Ed. ULBRA, 2004.

176 Letras EAD


História e Literatura

ILARI, Rodolfo; GERALDI, João Wanderley. Semântica. São Paulo:


Ática, 2000.

ILARI, Rodolfo. Introdução à Semântica: brincando com a gramática.


São Paulo: Contexto, 2004.

ILARI, Rodolfo. Introdução ao estudo do léxico: brincando com as


palavras. São Paulo: Contexto, 2005.

LYONS, John. Linguagem e Lingüística: uma introdução. Rio de


Janeiro: LTC, 1987.

Martins Dileta: ZILBERKNOP. Português Instrumental. 22. ed. Porto


Alegre: Sagra Luzzatto, 2001.

OLIVEIRA, Luciano Amaral. Manual de Semântica. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2008.

PENAFORTE, Antônio Vicente Seraphim; LOPES, Ivã Carlos.


Semântica Lexical, In: FIORIN, José Luiz. Org. Introdução à
Linguística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2011.p. 111-
135

VANOYE, Francis. Usos da Linguagem: problemas e técnicas na


produção oral e escrita. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
4
Unidade

UESC Módulo 6 I Volume 3 177


Literatura, Imaginário, História e Cultura

178 Letras EAD


História e Literatura

aula 3
OS NEXOS SEMÂNTICOS:
EQUIVALÊNCIA E OPOSIÇÃO
DE SIGNIFICADOS

Objetivos
Ao final desta aula, você deverá ser capaz de:

• analisar os nexos semânticos decorrentes do uso de uma palavra e


de seu sinônimo ou de seu antônimo;
• reconhecer os principais mecanismos de produção de paráfrases;
• compreender as relações semânticas resultantes das disposições
hierárquicas das palavras. 4
Unidade

UESC Módulo 6 I Volume 3 179


Literatura, Imaginário, História e Cultura

180 Letras EAD


História e Literatura

1 INTRODUÇÃO
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria
(João Cabral de Melo Neto, 1975)

Poderíamos iniciar esta aula com a seguinte pergunta: Quando


as palavras se unem umas às outras que tipos de relações podem surgir?
É possível haver uma semelhança total de sentidos entre sinônimos? E
quanto aos antônimos, há uma oposição absoluta entre eles?
Quando escrevemos, as palavras são como faróis que iluminam e
dão corpo às nossas ideias. Medimos cada palavra, calculamos, pesamos até
chegarmos à conclusão de inseri-las ou não em nosso discurso. Nem sempre
acertamos com a escolha, é verdade. Às vezes, uma palavra empregada de
modo inadequado poderá acarretar mal-entendido e gerar consequências
impensadas e não pretendidas pelo falante. De outro modo, quando bem
empregadas, poderão suavizar, acalmar, dignificar e até mesmo mudar o
curso de uma história. É preciso, no entanto, atentarmos que as escolhas
são feitas mediante alguns critérios.
Em princípio, quando comparamos os efeitos das palavras no
discurso, poderemos verificar, por exemplo, que elas servem para exprimir
pensamentos idênticos, equivalentes ou opostos. Esses mecanismos de 4
Unidade

produção do significado são denominados, respectivamente, de sinonímia


ou antonímia, conforme as relações que são estabelecidas por essas
propriedades linguísticas.
As palavras estão inseridas numa situação comunicativa; a sua
utilização num contexto ou em outro acarreta mudança de sentido. Por
exemplo, podemos dizer que as palavras olhar e ver; ver e enxergar; escutar
e ouvir; dar e conceder; entender e compreender têm o mesmo sentido?
Os vocábulos apresentam matizes que o falante deverá levar em conta ao
empregá-las adequadamente. Intuitivamente, o falante sabe disso, pois é

UESC Módulo 6 I Volume 3 181


Literatura, Imaginário, História e Cultura

capaz de produzir sentenças como: Ele não é feio, é horroroso; A atriz


não é bonita, é bela. Como podemos afirmar, por exemplo, que O
homem olhou e não viu o perigo que estava em sua frente?
Os semanticistas encontram dificuldade acerca de uma delimitação
do alcance da sinonímia. O que é sinônimo? Essa pergunta colocada no
âmbito da Semântica, ainda hoje tem desafiado os estudiosos. Há alguns
autores que explicam como enfrentar a questão, sugerindo ao falante a
utilização de mecanismo de substituição. Conforme Oliveira (2008, p.
78), “A maneira mais óbvia de se fazer isso é o teste da substituição de
um sinônimo por outro em contextos diferentes.” Porém nem sempre
esse método é suficiente, tendo em vista que o contexto e a cultura, nos
quais os acontecimentos discursivos estão inseridos, podem modificar o
significado das expressões linguísticas. Por exemplo, as palavras “novo”
e “jovem” são sinônimas. Podemos dizer o café é novo, mas é possível
dizermos que o café é jovem? Viana citado por Andrade e Medeiros
(2004, p. 254) faz uma análise cuidadosa acerca da escolha das palavras.

Veja-se também a diferença que há entre chorar,


prantear e carpir. Qualquer destas palavras encerra a
mesma ideia geral de verter lágrimas, mas em graus
e circunstâncias diversas. Podemos dizer: chorar de
alegria, mas seria grave impropriedade dizer carpir de
alegria, ou mesmo prantear de alegria [...]. Por chorar,
entende-se lágrimas, em silêncio. Pode-se chorar de
dor, de alegria, de tristeza. Prantear é chorar ruidosa-
mente, com lamentos. Carpir significa chorar a morte
de alguém, desgrenhando as faces e soltando gritos
lúgubres.

Leia o poema Catar Feijão de João Cabral de Melo Neto, no qual


ele ilustra o ofício do poeta e o dilema na escolha das palavras.

CATAR FEIJÃO
João Cabral de Melo Neto

Catar feijão se limita com escrever:


joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:

182 Letras EAD


História e Literatura

pois para catar esse feijão, soprar nele,


e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.

Disponível em: http://www.academia.org.br


Acesso em: 15 jun. 2012.

Fonte: http://2.bp.blogspot.com/-L3c4OkRAhPg/T-YvVgiO4VI/
AAAAAAAAMWc/cjisqiaUQV0/s1600/feij%25C3%25A3o1.jpg

Como vimos, não é tarefa fácil, nem mesmo para o poeta, encontrar
a palavra adequada que traduza o seu pensamento, para conferir o efeito
pretendido à sua poesia, como não é fácil para os semanticistas ou lexicó-
logos explicar os nexos semânticos decorrentes das palavras no texto.

2 SINONÍMIA

Nas primeiras aulas, apresentamos a você as dificuldades que os se-


manticistas enfrentam no trato da delimitação do conceito de significado
em Semântica. Essa complexidade é saliente, por exemplo, quando preci-
samos conceituar sinônimo.
A fim de tornar a nossa abordagem mais fácil, vamos, inicialmente, 4
Unidade

separar sinônimo lexical, que ocorre no nível do léxico, ou seja, aquele que
surge da relação estabelecida entre as palavras e sinônimo sentencial, que
ocorre entre as sentenças, recebendo a denominação de paráfrase.
O sinônimo pode ser visto como a propriedade que tem a palavra
de substituir outra sem que mude o sentido daquilo que se quer expressar.
Ilari (2005, p.169) conceitua sinônimo como “palavras de sentido próxi-
mo, que se prestam, ocasionalmente, para descrever as mesmas coisas e as
mesmas situações.”.

UESC Módulo 6 I Volume 3 183


Literatura, Imaginário, História e Cultura

Oliveira (2008, p. 78), citando Ullmann, traz impor-


atenção
tante discussão que contribui para elucidar o debate.
Sinonímia é a relação en-
tre dois predicados que
têm o mesmo sentido.
[...] É perfeitamente verdade que a
Em grande parte dos absoluta sinonímia vem contra o nosso
dialetos do português, modo habitual de considerar a linguagem.
teimoso e obstinado são
Quando vemos palavras diferentes,
sinônimos. Em grande
parte dos dialetos do por- supomos que deve haver também alguma
tuguês, ladrão e bandido diferença no sentido, e, na vasta maioria
são sinônimos. Em gran- dos casos, há de facto uma distinção,
de parte dos dialetos,
mercúrio e água metálica
muito embora ela possa ser difícil de
são sinônimos. formular. Muito poucas palavras são
Exemplos de sinonímias completamente sinônimas no sentido de
perfeitas são difíceis de
serem permutáveis em qualquer contexto,
serem encontradas, tal-
vez porque não faz sen-
sem a mais leve alteração do significado
tido haver predicados objectivo, do tom sentimental ou do valor
com sentidos exatamen- evocativo.
te iguais. Note que nos-
sa definição de sinoní-
mia requer identidade
É consensual, que não há sinônimos perfeitos.
de sentido. Essa é uma
definição mais objetiva Em vez disso, é usual a compreensão de que poderá haver
do que aquelas apresen-
tadas algumas vezes: às entre as palavras uma equivalência de sentidos numa série
vezes, sinonímia é defini-
sinonímica. Pode ocorrer que, numa série sinonímica, uma
da como semelhança de
significado, uma definição palavra seja mais abrangente que outra, a exemplo do que
que é mais vaga do que
a nossa. O preço que nós
podemos observar com as palavras transporte, que é mais
pagamos pela nossa é ampla em relação à bicicleta que é mais específica.
que poucos exemplos de
sinonímia, assim definida, Andrade e Medeiros (2004, p. 252) frisam que “dois
podem ser encontrados.
ou mais significados cobrem o mesmo conteúdo, mas só
(HURFORD, James R; podem ser considerados sinônimos perfeitos (totais) se
HEASLEY, Brendan. Cur-
so de Semântica. Cano- puderem ser comutáveis entre si em diversos contextos,
as, RS: ULBRA, 2004. p.
apresentando o mesmo conteúdo significativo, quer afetivo,
140.).
quer referencial.”.
Para a compreensão da complexidade que envolve
os nexos que possibilitam o uso de uma palavra e de seu
sinônimo, Ilari e Geraldi (2000, p. 43-46) traçam alguns
parâmetros que podem orientar o estudioso na compreensão
da sinonímia. De acordo com esses autores, podemos refletir
que, “para duas expressões serem sinônimas, não basta que
tenham a mesma extensão”, ou seja, a mesma denotação.
Para elucidar essa afirmativa, os aludidos autores citam uma

184 Letras EAD


História e Literatura

lenda popular, segundo a qual, certa vez o rei dos animais determinou que
cortassem a cabeça de todos os bichos de boca grande. Nessa ocasião, a partir
dos critérios estabelecidos, perderam a vida o sapo, a rã, o hipopótamo e o
jacaré. Observa que se o rei dos animais tivesse mandado matar os bichos
que passam parte do dia em terra firme, e parte do dia no charco, as vítimas
seriam exatamente as mesmas; mas a expressão ‘bichos de boca grande’ e a
expressão ‘bichos que passam parte do dia em terra firme e parte do dia no
charco’ não são sinônimas. Há sentenças que aparentemente têm o mesmo
sentido, mas que o emprego, em situações reais, revelam que não se trata
de identidade de sentido. Vejamos os seguintes exemplos:

a) Todos os alunos do Curso de Le-


tras gostam de ler romances.
b) Todos os estudantes de Letras
gostam de ler romances.

Essas sentenças não têm o mesmo


sentido; pois, no âmbito de uma Instituição
de Ensino Superior, aluno se refere àquele
que está devidamente matriculado, ao passo
que estudante poderá ser, por exemplo,
alguém que se interesse em assistir às
aulas, mas que não preencheu os requisitos
exigidos para fazer parte do corpo discente
do Curso. 4
Unidade
Fonte: http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/
Podemos concluir que as frases “a” album/images/Leitura%20-%20Renoir.jpg
e “b” têm referência idêntica, ou seja, a mesma extensão, mas não têm o
mesmo significado. Ilari e Geraldi (2000, p. 43) frisam que, “para que duas
expressões sejam sinônimas, não basta que denotem o mesmo conjunto de
objetos (pessoas, animais, coisas); exige-se, além do mais, que os denotem
por alusão a uma mesma propriedade.”.
Saber o que é identidade de sentido é outra preocupação dos
semanticistas. Ilari e Geraldi (2000, p. 44) definem que “para que duas
palavras sejam sinônimas é preciso que façam, em todos os seus empregos,

UESC Módulo 6 I Volume 3 185


Literatura, Imaginário, História e Cultura

a mesma contribuição ao sentido da frase.”. Duas sentenças têm o


mesmo sentido, quando puderem ser referidas ao mesmo conjunto de
fatos, têm de ser ambas verdadeiras ou ambos falsas.
Os aludidos teóricos concluem que “duas palavras são sinônimas
sempre que podem ser substituídas no contexto de qualquer frase sem
que a frase passe de falsa a verdadeira, ou vice versa.”. Os autores tomam
como exemplo as palavras “calvo” e “careca” que, em princípio, têm
identidade de sentido.”.

a) Todo careca sonha descer uma ladeira de bicicleta com os


cabelos ao vento.
b) Todo calvo sonha descer uma ladeira de bicicleta com os
cabelos ao vento.

Nas frases acima, podemos dizer que as palavras ‘calvo’ e ‘careca’


mantêm o mesmo sentido da frase. Porém poderá ocorrer que, em
determinado contexto, essas mesmas palavras não tenham o mesmo
sentido. Ilari e Geraldi (2000, p. 45) apresentam situações hipotéticas
em que o emprego dessas palavras poderá acarretar mudança de sentido.

a) O Argemiro não se irrita quando o chamam de calvo, mas não


suporta ser chamado de careca.
b) O Argemiro não se irrita quando o chamam de careca, mas
não suporta ser chamado de calvo.

Dessa forma, fica evidenciado nas reflexões apresentadas que o


contexto é fator importante na constituição do sentido, especialmente
a sinonímia, uma vez que as palavras mudam de acordo com a situação
discursiva em que são empregadas. É por isso que a sinonímia é
considerada um fenômeno gradual. Para Enéas Martins de Barros apud
Andrade e Medeiros (2004, p. 253):

As palavras sempre se diferenciam no seu emprego.


Ora uma tem maior extensão que outra, ora uma é
mais harmoniosa que outra, enfim, entre duas palavras
de sentido semelhante sempre há uma marca que as
diferencia, de tal modo que o conceito de igualdade

186 Letras EAD


História e Literatura

está sempre prejudicado. Podemos, sim, dizer que há pa-


lavras que pertencem à mesma área semântica.

Essas nuanças que as palavras espelham, em situação de uso, podem
ser perceptíveis em várias situações em que a produção do significado não
dá ênfase apenas às ideias expressas pelas palavras, mas sobretudo para
conferir um aspecto afetivo à comunicação, ou mesmo para imprimir uma
polidez linguística àquilo que se diz.
Hodiernamente, os eufemismos são preferíveis em certas situações
de trato social. É o que ocorre, por exemplo, com as expressões ‘velho’
que em certo momento foi substituída por ‘idoso’ e, atualmente, deu lugar
à expressão ‘melhor idade’. Do mesmo modo, a palavra ‘gordo’ em certas
situações foi substituída por ‘obeso’ que é um termo mais científico ou
‘fofinho’ que é mais afetivo.

2.1 Sinonímia e paráfrase

Outra importante abordagem do estudo da sinonímia diz respeito


à ocorrência de semelhança de sentido entre sentenças. Veja os exemplos
a seguir:

a) O estudante integralizou a carga horária do Curso de Letras.


b) O estudante concluiu o Curso de Letras.

Um estudante que solicita ao colegiado de Curso uma declaração


de que está apto para colar grau, poderá receber um documento no qual 4
Unidade
contemple a frase “a” ou “b”, pois as expressões concluir um curso e
integralizá-lo, no contexto acadêmico, são uma paráfrase, tendo em vista a
semelhança de sentido.
É interessante notar que, de modo geral, o falante, independente
do grau de instrução, tem condições de perceber se duas sentenças são
idênticas. Mas o que leva o falante ter a percepção de estar diante de duas
sentenças idênticas ou similares? As respostas são muito variadas. Uma
resposta possível é que o falante distingue sentenças com um conhecimento
intuitivo. Trata-se de um conhecimento linguístico e gramatical que faz
parte do falar de uma língua.

UESC Módulo 6 I Volume 3 187


Literatura, Imaginário, História e Cultura

As sentenças que apresentam semelhança de significado são


denominadas paráfrases, ou seja, a propriedade que tem a língua de
permitir que o falante possa construir sentenças que sejam capazes de
comunicar ideias semelhantes com a inserção de palavras ou construções
sintáticas sinônimas. Considere as sentenças abaixo e avalie o grau de
relação existente entre elas.

a) O Flamengo vendeu o jogador.


b) O jogador foi vendido pelo Flamengo.
c) Os alunos de Letras encenaram uma peça baseada no Romance
de Jorge Amado.
d) Uma peça com base num romance de Jorge Amado foi
encenada pelos alunos de Letras.
e) Ronaldinho fez um gol na partida.
f) Ronaldinho marcou um gol.
g) Maria é gorda.
h) Maria não é magra.

Nas hipóteses acima, as sentenças são paráfrases e poderão


ser agrupadas em três pares. Os dois primeiros pares são marcados
pela semelhança de sentido entre os pares (a) + (b) e (c) + (d) a
equivalência entre esses pares se dá em decorrência do emprego da voz
ativa e da voz passiva. O par seguinte representado pelas sentenças (e)
+ (f) apresenta semelhança e, portanto, constitui paráfrase, porque
empregam as palavras ‘fez’ e ‘marcar’ que, na linguagem do futebol, têm
ideias correlatas.
A paráfrase se apresenta também no par (g), (h) mediante o
emprego de lítote que consiste na afirmação de uma ideia por meio da
negação de seu oposto.

3 ANTONÍMIA
Da relação de sentido entre palavras e frases poderá surgir uma
contradição, o que se denomina de antonímia. Os antônimos são nexos
semânticos fundados em oposição de significados que são realizados
por meio do léxico. Quem não se lembra da famosa dupla do cinema O

188 Letras EAD


História e Literatura

gordo e o magro? saiba mais

Vale ressaltar que não há uma oposição absoluta Se a sinonímia for definida
entre antônimos. Isso porque a antonímia não significa uma como identidade de signi-
ficado, poderemos dizer
que os lexemas são com-
pletamente sinônimos (em
certa faixa de contextos)
se, e somente se, tive-
rem o mesmo significado
descritivo, expressivo e
social (na faixa de contex-
tos em questão). Poderão
ser descritos como abso-
lutamente sinônimos se,
e somente se, tiverem a
mesma distribuição e fo-
rem completamente sinô-
nimos em todos os seus
significados e contextos
de ocorrência. Geralmen-
te se reconhece que uma
sinonímia completa entre
lexemas é relativamente
rara nas línguas naturais e
que a sinonímia absoluta,
tal como foi aqui definida,
é praticamente inexisten-
te.
Fonte: http://alrocha-antenacultural.com.br/ Com efeito, a sinonímia
absoluta está provavel-
mente restrita a um vo-
simples oposição de palavras, uma vez que essa propriedade cabulário altamente espe-
da linguagem poderá apresentar escala para assinalar as cializado que é puramente
descritivo. Um exemplo
contradições que são estabelecidas entre palavras e ideias. típico é o de ‘caecitis’ [ce-

Por exemplo, o falante compreende que o vocábulo quente, cite]: ’typhlitis’ [tiflite]
(ambos significando ‘infla-
em determinado contexto, se opõe a frio, porém é necessário mação do ceco’).

4
considerar ainda algumas gradações no par quente/frio, (LYONS, John. Linguagem Unidade
como: tórrido, cálido, tépido, morno ou gélido, gelado etc. e Lingüística: uma intro-
dução. Rio de Janeiro:
Porém há certas palavras que estabelecem uma oposição LTC, 1987. p.111-112.).

direta com outras, a exemplo dos vocábulos morto e vivo.


Geralmente, a antonímia leva em conta alguns tipos de
oposição encontrados na língua que são classificados como
antonímia binária ou complementar, conversa, gradativa.
De acordo com Hurford e Heasley (2004, p.157),
antônimos binários “são predicados que vêm em pares e
esgotam todas as possibilidades relevantes entre eles. Se
um predicado é aplicável, então o outro não pode ser e

UESC Módulo 6 I Volume 3 189


Literatura, Imaginário, História e Cultura

vice-versa.”. Os pares morto/vivo; verdadeiro/falso; dormir/acordar


constituem exemplos de antonímia binária, pois não há como admitir
uma possibilidade sem excluir a outra. Por exemplo, Elvis Presley está
morto, ele não pode estar vivo.
Outro tipo de antonímia é a conversa, também conhecida como
inversa. Esse tipo de oposição ocorre quando um vocábulo expõe
a relação entre duas coisas ou pessoas e outro vocábulo descreve,
igualmente, essa relação, porém em uma ordem inversa. Significa dizer
que duas sentenças podem expressar a mesma ideia de forma diferente,
havendo, necessariamente, uma implicação entre elas. Por exemplo, Se
Mário é aluno de Carlos, implica dizer que Carlos é Professor de Mário.
Outro exemplo, Se Maria obteve a maior nota da sala, implica dizer que
as notas dos demais alunos estão abaixo da nota de Maria.
Já a antonímia gradativa ocorre quando duas palavras estão
em uma relação oposta em uma escala contínua de valores. Uma
escala poderá variar de acordo com o contexto em que as palavras são
empregadas. Por exemplo, bonito e feio são antônimos graduais, pois
estão numa escala de valores que podem ser nomeados como formoso,
belo, horrível etc. Dessa forma, se uma pessoa não é bonita não implica
dizer que seja feia. Há uma escala gradativa entre bonito e feio, uma
vez que há várias formas de manifestação da beleza e, a depender do
contexto, uma pessoa bonita pode não ser considerada assim. Por
exemplo, alguém considerado bonito poderá não satisfazer os padrões
de beleza estabelecidos em um concurso de beleza. A expressão O café
não está quente não implica dizer que ele esteja frio, pois há uma escala
como morno etc.
Portanto certos antônimos estão sujeitos a um critério de
gradação, portanto a produção do significado depende da situação
comunicativa ou do ponto de vista discursivo. É o que ocorre, por
exemplo, nos pares novo/velho; alto/baixo; grande/pequeno, gordo/
magro. O que vai determinar a relação de contradição é o contexto.
Uma pessoa pode ser considerada baixa em um contexto e alta em
outro. Por exemplo, um adolescente de 13 anos com 1,7 m de altura
é relativamente alto, porém um jogador de basquete com essa altura já
não é considerado alto.

190 Letras EAD


História e Literatura

A antonímia poderá se manifestar ainda como uma relação de


contradição entre sentenças. Hurford e Heasley (2004, p.164) frisam que
“uma proposição é contraditória de uma outra proposição se é impossível
para ambas serem ao mesmo tempo verdadeiras nas mesmas circunstâncias”.
Trata-se de uma relação excludente, uma vez que uma sentença contradiz a
outra, ou seja, o conteúdo expresso em uma sentença é incompatível com
o seu oposto. Por exemplo, a sentença Carlos é casado é uma contradição
de Carlos é solteiro.
Em diversas épocas, a Literatura tem explorado a antonímia como
um recurso estilístico. Essa contradição pode ser notada na música “Sonho
Impossível”, versão de Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra.

Sonhar

Mas um sonho impossível


Lutar
Quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender
Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
É minha lei, é minha questão
Virar esse mundo
Cravar esse chão
Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer

4
Por um pouco de paz
E amanhã, se esse chão que eu beijei Unidade
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirar
E morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão

Disponível em: http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=sonhoimp_72.


htm
Acesso em: 26 out. 2013.

UESC Módulo 6 I Volume 3 191


Literatura, Imaginário, História e Cultura

Como você pôde notar, a consulta ao dicionário para verificar


o antônimo das palavras nem sempre vai ajudar na constituição de um
sentido correlato ou oposto. O falante deverá recorrer a certas variáveis
na escolha da palavra adequada para expressar seu pensamento.

4 HIPONÍMIA E HIPERONÍMIA

As relações ocorridas no léxico podem advir, ainda, de uma
hierarquia em que o sentido de um termo esteja incluído no sentido de
outro. Desse modo, de acordo com Pietroforte e Lopes (2011, p. 128):

A hiperonímia e a hiponímia são fenômenos derivados


das disposições hierárquicas de classificações próprias
do sistema lexical. Há significados que pelo seu domí-
nio semântico, englobam outros significados menos
abrangentes.

O item lexical ‘continente’, por exemplo, possui um significado


mais abrangente em relação a país, que por sua vez é mais abrangente que
região e com esta sequência poderá se formar uma série de palavras que
compreende um item lexical mais amplo até chegar ao mais específico.

País

Região

Estado
Continente

Cidade

Rua

Casa

192 Letras EAD


História e Literatura

A hiperonímia está representada pela palavra ‘Continente’, que


possui significado mais abrangente; enquanto que a palavra casa é uma
hiponímia, pois apresenta um significado mais específico.
Podemos dizer ainda que a hiponímia constitui um fenômeno
linguístico pelo qual, diante de uma relação de equivalência estabelecida
entre as palavras, uma apresenta um sentido que está incluído no sentido
de outra. Por exemplo, quando um estudante diz que elaborou um artigo
científico, o termo ‘artigo científico’ por ser mais específico está incluído
numa categoria mais abrangente que é a de texto acadêmico. Portanto ‘artigo
científico’ é hipônimo, enquanto que ‘texto acadêmico’ é hiperônimo.
Cançado (2005, p. 28) frisa que a “hiponímia é uma relação
linguística que estrutura o léxico das línguas em classes.”. Ela comenta que
“pastor alemão pertence à classe dos cachorros, que, por sua vez, pertence
à classe dos animais; rosas são flores que, por sua vez, são vegetais.”. Os
itens lexicais ‘rosa’ e ‘pastor alemão’ constituem exemplos de hiponímia.
Os vocábulos hiperônimo e hipônimo pertencem a uma mesma
família ideológica em que designam, respectivamente, gênero e espécie.
A relação entre o hipônimo e o hiperônimo não é simétrica. Por
exemplo, a noção de moradia está incluída na noção de mansão. Toda
mansão é uma moradia, mas nem toda moradia é uma mansão. Dessa
forma, a relação estabelecida aponta um termo mais específico e um mais
geral.
Agora, leia a tirinha a seguir e veja a relação de hierarquia que existe
entre o item lexical ‘gado’ que possui um significado mais amplo do que o
vocábulo ‘boi’ que é mais específico.
4
Unidade

Disponível em: http://andreerichcomunicao.blogspot.com.br/


Acesso em: 10 dez. 2012.

UESC Módulo 6 I Volume 3 193


Literatura, Imaginário, História e Cultura

A noção de hipônimo e de hiperônimo é fundamental, pois


permite ao falante escolher termos mais genéricos ou mais específicos
para inseri-los nos textos. Esses termos são importantes fatores de
coesão textual, pois o uso adequado das palavras poderá conferir mais
clareza e objetividade ao texto.

ATIVIDADES

As questões a seguir visam contribuir para a fixação dos


conteúdos estudados nesta aula. Após respondê-las, é recomendável
que você discuta com seus colegas no Seminário Integrador. Esclareça
suas dúvidas com o tutor. Depois, se for necessário, reformule suas
respostas e, quando concluí-las, entregue-as ao tutor.

1) Identifique, no trecho da canção O Quereres de Caetano


Veloso, as contradições semânticas e explique como ocorre a produção
do significado no texto.

O Quereres
Caetano Veloso

Onde queres revólver, sou coqueiro


E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas no chão minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão

Onde queres família, sou maluco


E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês

Ah, bruta flor do querer...


Ah, bruta flor, bruta flor!

VELOSO, Caetano. O Quereres de Caetano Veloso.


Disponível em: http://letras.mus.br/caetano-veloso/44758/
Acesso em: 30 nov. 2012.

194 Letras EAD


História e Literatura

2) Leia a seguir a crônica Meu Ideal Seria Escrever... de Rubem


Braga, a partir do estudo de sinônimos, escolha dois parágrafos e faça
uma paráfrase.
Meu Ideal Seria Escrever...
Rubem Braga

Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente
naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse
a chorar e dissesse -- “ai meu Deus, que história mais engraçada!”. E então a contasse para
a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem
ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que
minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida
de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso,
e depois repetisse para si própria -- “mas essa história é mesmo muito engraçada!”.

Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a
mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela
minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher.
Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela
também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir
mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e
reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse
-- e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem
seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha
história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na
calçada e lhes dissesse -- “por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender
ninguém!” . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e
seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse
atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago
-- mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto
surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito
sábio e muito velho dissesse: “Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em

4
toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter
sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos Unidade
ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser
uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina”.

E quando todos me perguntassem -- “mas de onde é que você tirou essa


história?” -- eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na
rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal
começara a contar assim: “Ontem ouvi um sujeito contar uma história...”.

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história


em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre
está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.

BRAGA, Rubem. Meu Ideal Seria Escrever... Disponível em: http://www.releituras.com/rubembraga_


meuideal.asp
Acesso em: 21 abr. 2013.

UESC Módulo 6 I Volume 3 195


Literatura, Imaginário, História e Cultura

3) Com base no conhecimento de hiperônimos e hipônimos, procure


identificar as relações de hierarquia presentes na letra da música Família.
Família
Titãs

Família! Família!
Papai, mamãe, titia
Família! Família!
Almoça junto todo dia
Nunca perde essa mania...
Mas quando a filha
Quer fugir de casa
Precisa descolar um ganha-pão
Filha de família se não casa
Papai, mamãe
Não dão nem um tostão...
Família êh! Família ah!
Família! oh! êh! êh! êh!
Família êh! Família ah!
Família!...
Família! Família!
Vovô, vovó, sobrinha
Família! Família!
Janta junto todo dia Fonte: http://museuvirtualsemanaartemoderna.arteblog.com.br/9585/A-
FAMILIA-TARSILA-DO-AMARAL/
Nunca perde essa mania...
Mas quando o nenêm
Fica doente
Uô! Uô!
Procura uma farmácia de plantão
O choro do nenêm é estridente
Uô! Uô!
Assim não dá pra ver televisão...
Família êh! Família ah!
Família! oh! êh! êh! êh!
Família êh! Família ah!
Família! hiá! hiá! hiá!...
Família! Família!
Cachorro, gato, galinha
Família! Família!
Vive junto todo dia
Nunca perde essa mania...
A mãe morre de medo de barata
Uô! Uô!
O pai vive com medo de ladrão
Jogaram inseticida pela casa
Uô! Uô!
Botaram cadeado no portão...
Família êh! Família ah!
Família!
Família êh! Familia ah!
Família! oh! êh! êh! êh!
Família êh! Família ah!
Família! hiá! hiá! hiá!...

Disponível em: http://letras.mus.br/titas/48973/


Acesso em: 10 abr. 2013.

196 Letras EAD


História e Literatura

RESUMINDO

Nesta aula, você viu que:

• os nexos estabelecidos entre palavras e sentenças podem


decorrer de equivalência, de oposição, hierarquia, dentre outros;
• há um consenso de que não há plena semelhança de sentido
entre sinônimos, do mesmo modo que não há absoluta oposição
entre antônimos;
• a produção do significado oriundo das relações de equivalência
ou de oposição decorre do contexto, considerando que as
palavras possuem gradações e tons que mudam conforme a
situação discursiva em que estão sendo empregadas;
• a hiperonímia e a hiponímia decorrem da hierarquia das palavras
que pertencem a um mesmo campo de sentido em que um termo
é mais abrangente em relação a outro mais específico.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Maria Margarida de; MEDEIROS, João Bosco. Comuni-


cação em Língua Portuguesa: para cursos de jornalismo, propaganda e 4
Unidade
letras. São Paulo: Atlas, 2004.

ANTUNES, Irandé. Análise de Textos: fundamentos e práticas. São Pau-


lo: Parábola Editorial, 2010.

_______. O território das palavras: o estudo do léxico em sala de aula. São


Paulo: Parábola Editorial, 2012.

CANÇADO, Márcia. Manual de Semântica: noções básicas e exercícios.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

UESC Módulo 6 I Volume 3 197


Literatura, Imaginário, História e Cultura

CHIERCHIA, Gennaro. Semântica. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP,


2003.

HENRIQUES, Claudio Cezar. Léxico e Semântica: estudos


produtivos sobre palavra e significação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

HURFORD, James R.; HEASLEY, Brendan. Curso de Semântica.


Canoas, RS: ULBRA, 2004.

ILARI, Rodolfo; GERALDI, João Wanderley. Semântica. São Paulo:


Ática, 2000.

ILARI, Rodolfo. Introdução à Semântica: brincando com a gramática.


São Paulo: Contexto, 2004.

______. Introdução ao Estudo do Léxico: brincando com as palavras.


São Paulo: Contexto, 2005.

LYONS, John. Linguagem e Lingüística: uma introdução. Rio de


Janeiro: LTC, 1987.

OLIVEIRA, Luciano Amaral. Manual de Semântica. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2008.

PRESTES, Maria Luci de Mesquita. Leitura e Reescritura de Textos:


subsídios teóricos e práticos para o seu ensino. São Paulo: Respel, 1999.

PIETROFORTE, Antonio Vicente Seraphim; LOPES, Ivã Carlos.


A Semântica lexical. In: Fiorin, José Luiz. (Org.) Introdução à
Linguística II: princípios de análise. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2011.

198 Letras EAD


História e Literatura

4
Unidade

UESC Módulo 6 I Volume 3 199


Literatura, Imaginário, História e Cultura

200 Letras EAD


História e Literatura

4
aula

DENOTAÇÃO E
CONOTAÇÃO

Objetivos
Ao final desta aula, você deverá ser capaz de:

• identificar as alterações semânticas decorrentes do emprego das


palavras e expressões linguísticas nos diversos contextos;
• compreender os processos de denotação e de conotação da lin-

4
guagem;
• conhecer os principais mecanismos de produção dos significados Unidade
conotativos;
• avaliar a relação de sentido intensional e extensional.

UESC Módulo 6 I Volume 3 201


Literatura, Imaginário, História e Cultura

202 Letras EAD


História e Literatura

1 INTRODUÇÃO

As palavras têm cor, o cheiro, o gosto da terra em que circulam,


da casa em que habitam. O dicionário é apenas o espaço onde elas
esperam que as apanhemos para levá-las até nossas moradas.
(Irandé Antunes, 2012, p. 47.).

Na aula anterior, você analisou os nexos semânticos decorrentes de equivalência


e de oposição de sentidos que podem ser estabelecidos entre palavras e sentenças.
Nesta aula, vamos avançar um pouco mais no estudo do léxico, para estudarmos os
eixos da linguagem direcionados para a denotação e a conotação.
No campo da denotação, um dos conceitos mais recorrentes é o de que se trata
do significado comum aos falantes da língua portuguesa, é o elemento estável, não
subjetivo e que pode ser analisado fora do discurso. Na sentença, Os alunos de Letras
da EAD estão compreendendo Semântica, podemos dizer que, nesta sentença, ‘alunos’
é uma palavra denotativa e o sentido encontrado nos dicionários aponta uma família
ideológica como: discípulo, estudante, discente, acadêmico, aprendiz, universitário,
educando, escolar, graduando, dentre outros.
A despeito de a denotação conferir à palavra um significado que permite a sua
análise fora de um contexto, ou seja, reconhecido por uma comunidade linguística, o
significado emerge de uma rede de relações estabelecidas nos enunciados. Vejam as
sentenças seguintes:

1. A academia revela talentos para os negócios.


2. A academia desenvolve hábitos de qualidade de vida.
3. A academia de cinema premiou os melhores filmes. 4
Unidade

O termo ‘academia’ a despeito de ser denotativo, em cada sentença, possui


significados diferentes. Na sentença 1, ‘academia’ tem o sentido de Instituição de
Ensino Superior; na sentença 2, ‘academia’ é o lugar onde se pratica exercícios físicos
e na sentença 3, ‘academia’ pertence ao segmento da indústria cinematográfica.
Mesmo nesses casos, a denotação estabelece um sentido que é objeto de consenso na
comunidade linguística.
A conotação exprime significados que beiram aspectos afetivos, emocionais
etc. Trata-se de uma significação particular para um indivíduo ou uma comunidade. Os
significados que não são alcançados, de forma imediata, são denominados de conotação.

UESC Módulo 6 I Volume 3 203


Literatura, Imaginário, História e Cultura

Por isso, essa propriedade da linguagem, de acordo Dubois


et al. (1997, p.170), é considerada como ‘gaveta do sapateiro
DENOTAÇÃO ou quarto de depósito, em que se deposita tudo o que
provém da intenção e não da significação de uma unidade.’.
é definida como tudo o que,
no sentido de um termo, é Na sentença, Pedro é uma águia para os negócios, a
o objeto de um consenso
na comunidade lingüística. palavra ‘águia’ tem um sentido conotativo. Nesse caso, a
Assim, vermelho denota
palavra está sendo empregada com a noção de similaridade,
uma cor precisa, definível
em termos de comprimen- uma vez que a águia é o símbolo da precisão e é conhecida
tos de onda, para a comu-
nidade de fala portuguesa.
pelos grandes voos que consegue alçar etc. A similaridade
A conotação é, assim, o constitui um dos meios utilizados para a obtenção do
que a significação tem de
particular para um indiví- sentido conotativo.
duo ou para um dado grupo
no interior da comunidade;
Como distinguir, então, denotação de conotação?
por exemplo, a conotação Garcia (2000, p. 178-179) frisa que a “denotação é o
política de vermelho não
será idêntica para toda a elemento estável da significação de uma palavra, elemento
comunidade lusofone. Tal
não subjetivo e analisável fora do discurso (= contexto),
definição da conotação não
deixa de suscitar proble- ao passo que a conotação é constituída pelos elementos
mas: se a associação de
vermelho e perigo é uma subjetivos, que variam segundo o contexto.”. Dessa forma,
conotação (pelo fato de
a denotação diz respeito aos significados referenciais,
que não participa da deno-
tação do termo), notar-se- enquanto que a conotação está relacionada com fatores
á, entretanto, que esse va-
lor é reconhecido por todo
subjetivos, afetivos e contextuais.
falante do português. Medeiros e Andrade (2004, p. 248) salientam que a
(DUBOIS, Jean et. al. Di- conotação “é a parte do significado das palavras utilizadas
cionário de Lingüística. São
Paulo: Cultrix, 1997, p.
para as expansões emocionais; é capaz de sugestionar,
142.). despertar emoções, persuadir, implicando, como isso,
subjetividade da expressão.”.

2 O SIGNIFICADO DAS PALAVRAS E


ALTERAÇÕES SEMÂNTICAS

As línguas naturais são produtivas em significações


subjetivas, realçando, dessa forma, o seu caráter polissêmico,
vago e ambíguo. Isso se deve, em parte, ao fato de não haver
uma relação direta entre significante e significado. Os signos
se expandem, ganham novos contornos, para satisfazer às
necessidades afetivas, subjetivas e contextuais, acarretando

204 Letras EAD


História e Literatura

as alterações semânticas. No cotidiano, é comum o uso de expressões


como: morrer de fome; matar a sede; botar a boca no mundo; cara de
paisagem etc.
A Revista Veja, por exemplo,
na edição nº. 2143, de 16 de dezem-
bro de 2009, traz na capa a frase “Es-
tamos devorando o Planeta”, associa-
da a uma imagem que indica que o
planeta está sendo consumido. Nes-
se exemplo, ocorreu uma migração
do signo de um campo denotativo
para um campo conotativo. O ter-
mo ‘devorando’ associado à imagem
de degustação estabelece um senti-
do no campo conotativo que indica
destruição. Disponível em: http://veja.abril.com.br/
Acesso em: 09 jun. 2012.

A conotação se manifesta por meio de dois processos principais, a


saber, a metáfora e a metonímia. De acordo com Fiorin (2012, p. 66), “a
metáfora é o acréscimo de um significado a outro, quando entre eles existe
uma relação de semelhança, de intersecção.”. Para ilustrar a ocorrência do
processo metafórico, leia o texto Declaração de Amor, de Clarice Lispector.

DECLARAÇÃO DE AMOR
Clarice Lispector

Esta é uma confissão: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, 4
Unidade
como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de ter sutile-
zas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam
transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa
é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das
coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo.
Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta
como imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada
num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope.
Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E este
desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos dar
para sempre uma herança da língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do
túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida.
Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma
língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega.
Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que
língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda

UESC Módulo 6 I Volume 3 205


Literatura, Imaginário, História e Cultura

e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever
em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem
do português fosse virgem e límpida.

(Declaração de Amor, in AQUINO, Renato. Redação para concursos: teoria e testes. 13. ed.
Niterói, RJ: Impetus, 2011, p. 406.).

Observe que o enunciador atribui ações humanas à língua


portuguesa, pois confere a um sujeito inanimado ações que são próprias
de seres animados, conforme mostra o trecho seguinte: “[...] a sua
tendência é a de ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé
contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de
sentimento e de alerteza”. “Às vezes ela reage diante de um pensamento
mais complicado. Às vezes se assusta como imprevisível de uma frase”.
A metonímia, por sua vez, de acordo com Fiorin (2012, p. 66),
consiste num “acréscimo de um significado a outro, quando entre eles
há uma relação de contiguidade, de coexistência, de interdependência.”.
Há muitas formas de metonímia. Algumas já foram tão assimiladas
que o falante já perdeu a noção de se tratar de uma linguagem figurada.
Ela poderá surgir, por exemplo, a partir da relação do efeito pela causa
como ganhar o pão com o suor do rosto. O vocábulo ‘pão’ está sendo
igualado a alimento. Outras vezes, origina-se da relação do autor pela
obra, conforme podemos observar na expressão Li Machado de Assis. A
metonímia poderá está relacionada ao continente pelo conteúdo, por
exemplo, Comi um prato de salada etc.

3 SENTIDO INTENSIONAL E SENTIDO EXTENSIONAL

Como você viu, não é possível um dicionário recobrir todos os


significados de uma palavra, tendo em vista as diversas situações con-
textuais em que um termo pode ser empregado. Essa profusão de sen-
tidos pode ser englobada em dois planos da linguagem: a denotação e
a conotação. O valor conotativo e o valor denotativo de uma palavra
foram cunhados por Hayakawa, respectivamente, de sentido intensio-
nal (grafado com s) e sentido extensional. Como mostra Othon Garcia
(2000, p.181-182), Hayakawa distingue essas duas propriedades linguís-
ticas com um exemplo bastante elucidativo: “anjos velam à noite junto

206 Letras EAD


História e Literatura

ao meu leito”. Essa expressão só tem sentido intensional, pois não nos
é possível movê-los, tocá-los, fotografá-los, o que não significa que não
existam, mas apenas não se pode provar sua existência. A existência dessas
propriedades linguísticas acarreta discussões infindáveis, pois nenhum dos
interlocutores chegará a uma conclusão satisfatória.
De outra forma, de acordo com Hayakawa, apud Garcia (2000,
p.182), “quando alguém diz que esta sala tem quinze metros de compri-
mento, não haverá margem para disputas estéreis: basta alguém pegar a
fita métrica e medi-la.”. Nessa hipótese, trata-se de sentido extensional.
Hayakawa apud Garcia (2000, p.182) comenta os efeitos dos traços distin-
tivos entre sentido extensional e sentido intensional:

Quando as declarações têm sentido intensional, a dis-


cussão pode prosseguir indefinidamente, daí resultando
conflitos inconciliáveis. Entre indivíduos, pode provocar
a ruptura de laços de amizade; na sociedade, ocasiona a
formação de grupos antagônicos; entre as nações, pode
agravar tão seriamente as tensões já existentes, que se
criam obstáculos à solução pacífica dos desentendimen-
tos.

Sem sombras de dúvidas, uma maneira de conferir precisão ao sig-


nificado das palavras é o emprego da linguagem referencial ou denotati-
va, porém o falante tem necessidade de expressar certas ideias e emoções
cujos termos ou arranjos linguísticos nem sempre estão recobertos pela
denotação; nesse caso se evidencia o uso de uma linguagem conotativa.

4
Saber se mover nas tramas do sentido constitui uma particularidade da
Unidade
competência semântica do falante.

ATIVIDADES

As questões a seguir visam contribuir para a fixação dos conteúdos


estudados nesta aula. Após respondê-las, é recomendável que você discuta
com seus colegas no Seminário Integrador. Esclareça suas dúvidas com
o tutor. Depois, se for necessário, reformule suas respostas, e quando
concluí-las, entregue-as ao tutor.

UESC Módulo 6 I Volume 3 207


Literatura, Imaginário, História e Cultura

1) O texto Como ser brasileiro em Lisboa sem dar (muito) na vista


mostra as alterações de sentido das palavras decorrentes do contexto em
que elas são empregadas. Comente fatores que, possivelmente, influenciam
essas mudanças semânticas.

Como ser brasileiro em Lisboa sem dar (muito) na vista

Sim, eu sei que não será culpa sua, mas, se você desembarcar em Lisboa sem um
domínio do idioma, poderá ver-se de repente em águas de bacalhau. Está vendo? Você
começou a não entender. O fato é que, como dizia Mark Twain a respeito da Inglaterra
e dos Estados Unidos, também Portugal e Brasil são dois países separados pela mesma
língua. Se não acredita, veja só esses exemplos. [...].
Um casal de brasileiro, amigo meu, alugou um carro e seguia tranqüilamente pela estrada
Lisboa-Porto, quando deu de cara com um aviso: “Cuidado com as bernas”. Eles ficaram
assustados – que diabo seria Berna? Alguns metros à frente, outro aviso: “Cuidado com
as bernas”. Não resistiram: pararam no primeiro posto de gasolina, perguntaram o que
era uma berna e só respiraram tranqüilos quando souberam que berna era o acostamento.
Você poderá ter alguns probleminhas se entrar numa loja de roupas desconhecendo
certas sutilezas da língua. Por exemplo, não adianta pedir para ver os ternos – peça para
ver os fatos. Paletó é casaco. Meias são peúgas. Suéter é camisola – mas não se assuste,
porque calcinhas femininas são cuecas. (Não é uma delícia?) Pelo mesmo motivo, as
fraldas de crianças são chamadas cuequinhas de bebé. Atenção também para os nomes
de certas utilidades caseiras. Não adianta falar em esparadrapo – deve-se dizer pensos.
Pasta de dente é dentífrico. Ventilador é ventoinha. E no caso gravíssimo de você ter de
tomar uma injeção na nádega, desculpe, mas eu não posso dizer porque é feio.
As maiores gafes de brasileiros em Lisboa acontecem (onde mais?) nos restaurantes,
claro. Não adianta perguntar ao gerente do hotel onde se pode beliscar alguma coisa,
porque ele achará que você está a fim de sair aplicando beliscões pela rua. Pergunte-lhe
onde se pode petiscar. Os sanduíches são particularmente enganadores: um sanduíche
de filé é chamado de prego; cachorros-quentes são simplesmente cachorros. E não se
esqueça: um cafezinho é uma bica; uma média é um galão e um chope é um imperial. E,
pelo amor de Deus, não vá se chocar quando você tentar furar uma fila e alguém gritar
lá de trás: “O gajo está a furar a bicha!” Você não sabia, mas em Portugal chama-se fila
de bicha. E não ria.
Ah, que maravilha o futebol em Portugal! Um goleiro é um guarda-redes. Só
isso e mais nada. Os jogadores do Benfica usam camisola encarnada, ou seja, camisa
vermelha. Gol é golo. Bola é esférico. Pênalti é pênalti. Se um jogador se contunde
em campo, o locutor diz que ele se aleijou, mesmo que se recupere com uma simples
massagem. Gramado é relvado, muito mais poético não é? [...]
Para se entender as crianças em Portugal, pedagogia não basta. É preciso traçar também
uma outra lingüística. Para começar, não se diz crianças, mas miúdos. (Não confundir
com miúdos de galinha, que lá são chamados de miudezas. Os miúdos da galinha
portuguesa são os pintos.) Quando um guri inferniza a vida do pai, este não o ameaça
com a tradicional “Dou-lhe uma coça”, mas com “Dou-te uma tareia!”, ou então com o
violentíssimo “Eu chegou-te a roupa à pele!”.
Um sujeito preguiçoso é um mandrião. Um indivíduo truculento é um matulão. Um tipo
cabeludo é um gadelhudo. Quando não se gosta de alguém, diz-se: “Não gramo aquele
gajo”. Quando alguém fala mal de você e você não liga, deve dizer: “Estou-me nas tintas”,
ou então: “Estou-me marimbando” [...] Um homem bonito, que as brasileiras chamariam
de pão, é chamado pelas portuguesas de pessegão. É uma garota de fechar o comércio
é, não sei por quê, um borrachinho.

208 Letras EAD


História e Literatura

Mas o meu pior equívoco em Portugal foi quando pifou a descarga da privada do meu
quarto de hotel e eu telefonei para a portaria: “Podem me mandar um bombeiro para
consertar a descarga da privada?” O homem não entendeu uma única palavra. Eu devia
ter dito: “Ó pá, manda um canalizador para reparar o autoclisma da retrete.”

(CASTRO, Ruy. Como ser brasileiro... Viaje bem. Revista de Bordo da VASP, 8(3),
1979. In: PRESTES, Maria Luci de Mesquita. Leitura e (Re) escrita de textos: sub-
sídios teóricos e práticos para o seu ensino. São Paulo: Respel, 1999. p. 203-204).

2) Leia o poema Rios sem discurso a seguir e procure responder à


atividade proposta:

Rios sem discurso


João Cabral de Melo Neto

Quando um rio corta, corta-se de vez


o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
Fonte: http://www.revistabula.com/449-os-10-melhores-
e mais: porque assim estancada, muda, poemas-de-joao-cabral-de-melo-neto/
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.
O curso de um rio, seu discurso-rio,

4
Chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água Unidade
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate”

(MELO NETO, João Cabral de. Rios sem discurso. In: ANDRADE, Maria Margarida
de; MEDEIROS, João Bosco. Comunicação em Língua Portuguesa: para cursos de
jornalismo, propaganda e letras. São Paulo: Atlas, 2004. p. 237-238.).

UESC Módulo 6 I Volume 3 209


Literatura, Imaginário, História e Cultura

Explique a ocorrência do processo de conotação e o seu


funcionamento na produção do significado do texto, a partir do seguinte
roteiro:

a) Aponte os sentidos intensionais e extensionais em torno dos


lexemas “rio” e “discurso”.
b) Explique o papel da transferência de signo na construção do
sentido do texto.
c) Como pode ser determinado o processo de conotação
que funciona na expansão de signos centrais deste texto como “rio”,
“discurso”, “dicionário” etc?
d) Quais os campos semânticos principais que dirigem o sentido
do texto? Justifique.
e) O texto deverá conter: (1) Uma introdução contendo
uma explicação geral do tema da análise o de seus objetivos; (2) um
desenvolvimento, apresentando a análise das questões acima; (3) uma
conclusão, contendo alguma observação que você julgar relevante, em
função da análise desenvolvida.

RESUMINDO

Nesta aula, você viu que:

• os dicionários não podem abarcar todos os significados de-


correntes do emprego das palavras em variados contextos,
por isso as línguas naturais são produtivas de alterações se-
mânticas, para atender às necessidades de expressão dos fa-
lantes;
• os diversos sentidos das palavras são organizados em dois
planos: denotativo ou conotativo;
• a metáfora e a metonímia são os principais mecanismos pro-
dutivos de significação conotativa;
• os significados oriundos de processos de denotação ou de co-
notação não prescindem da análise do significado no contex-

210 Letras EAD


História e Literatura

to em que elas são empregadas;


• a denotação e a conotação são designadas também, respectiva-
mente, como sentido extensional e sentido intensional.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Maria Margarida de; MEDEIROS, João Bosco. Comunicação


em Língua Portuguesa: para cursos de jornalismo, propaganda e letras.
São Paulo: Atlas, 2004.

ANTUNES, Irandé. Território das palavras: estudo do léxico em sala de


aula. São Paulo: Parábola, 2012.

AQUINO, Renato. Redação para concursos: teoria e testes. 13. ed.


Niterói, RJ: Impetus, 2011.

CANÇADO, Márcia. Manual de Semântica: noções básicas e exercícios.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

CHIERCHIA, Gennaro. Semântica. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP,


2003.

DUBOIS, Jean et. al. Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1997.

4
FIORIN, José Luiz; SAVIOLI, Francisco Platão. Para entender o texto:
Unidade

leitura e redação. São Paulo: Ática. 1999.

GARCIA, M. Othon. Comunicação em Prosa Moderna: aprenda a


escrever, aprendendo a pensar. 19. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2000.

ILARI, Rodolfo; GERALDI, João Wanderley. Semântica. São Paulo:


Ática, 2000.

UESC Módulo 6 I Volume 3 211


Literatura, Imaginário, História e Cultura

ILARI, Rodolfo. Introdução à Semântica: brincando com a gramática.


São Paulo: Contexto, 2004.

LYONS, John. Linguagem e Lingüística: uma introdução. Rio de


Janeiro: LTC, 1987.

OLIVEIRA, Luciano Amaral. Manual de Semântica. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2008.

PRESTES, Maria Luci de Mesquita. Leitura e Reescritura de Textos:


subsídios teóricos e práticos para o seu ensino. São Paulo: Respel, 1999.

212 Letras EAD


História e Literatura

4
Unidade

UESC Módulo 6 I Volume 3 213

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