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A Ciência Linguística:

conceitos básicos
Formação de Professores em letras - EAD

Cristiane Carneiro Capristano


(Organizadora)

A Ciência Linguística:
conceitos básicos

3
Maringá
2010
Coleção Formação de Professores em Letras - EAD

Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese


Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331
Revisão Gramatical: Manoel Messias Alves da Silva
Edição, Produção Editorial e Capa: Carlos Alexandre Venancio
Júnior Bianchi
Eliane Arruda

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

A ciência linguística: conceitos básicos / Cristiane Carneiro Capristano,


C569 organizadora. -- Maringá : Eduem, 2010.
118p. 21cm. (Formação de Professores em Letras – EAD; n. 3)

ISBN 978-85-7628-246-4

1. Linguística – Conceitos. 2. Ciência linguística - Estudo e ensino. I. Capristano,


Cristiane Carneiro, org.

CDD 21. ed. 410

Copyright © 2010 para o autor


Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo
mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos
reservados desta edição 2010 para Eduem.

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Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá


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87020-900 - Maringá - Paraná
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S umário

Sobre os autores > 5

Apresentação da coleção > 7


Apresentação do livro > 9

Capítulo 1
A ciência linguística: objeto, objetivos e métodos > 11
Cristiane Carneiro Capristano

Capítulo 2
Panorama dos estudos linguísticos > 33
Juliano Desiderato Antonio / Sonia Aparecida Lopes Benites

Capítulo 3
A visão saussuriana de linguagem > 61
Cristiane Carneiro Capristano / Dulce Elena Coelho Barros

Capítulo 4
As concepções de linguagem > 87
Sonia Aparecida Lopes Benites

Capítulo 5
Gramática e ensino > 99
Cristiane Carneiro Capristano / Dulce Elena Coelho Barros

3
5 Gramática
e ensino

Cristiane Carneiro Capristano / Dulce Elena Coelho Barros

Considerações iniciais
A reflexão que será esboçada neste capítulo terá como ponto de partida e de chegada
a relação entre gramática e ensino. Nosso principal objetivo é o de fazer alguns apon-
tamentos que possam permitir ao leitor reavaliar sua(s) própria(s) concepção(ções) de
gramática e, consequentemente, reexaminar seu posicionamento frente ao papel dos
fatos gramaticais no ensino de Língua Portuguesa.
Norteados por esse objetivo, primeiramente, fazemos referências a alguns fatos
históricos que levaram à constituição do corpo de conhecimentos que hoje está reu-
nido sob a denominação de gramática tradicional. Aliada a essa reflexão, tratamos,
também, da disparidade de noções que podem ser nomeadas pelo termo gramática,
focalizando diferenças entre as chamadas gramática normativa, gramática descritiva
e gramática internalizada. Destacamos, além disso, as implicações, para o ensino de
Língua Portuguesa, de assumirmos ou não a heterogeneidade conflituosa que carac-
teriza as manifestações linguísticas do português falado e escrito no Brasil. Para fina-
lizar nossas reflexões, tecemos alguns comentários a respeito da seguinte questão: É
preciso ensinar gramática na escola? Inspirados em Faraco (2006), Bagno (2002) e em
propostas contidas nos Parâmetros Curriculares Nacionais, indicamos a necessidade
de uma renovação do ensino gramatical que possibilite a subordinação dos tópicos
gramaticais ao trabalho com as práticas de fala e de escrita.

Origem e propósitos da gramática tradicional: dos gregos e romanos à


atualidade
Em capítulo anterior, procuramos chamar a atenção para o fato de que é na esco-
la, em especial nas aulas de Língua Portuguesa ou simplesmente de Português, que
entramos em contato com o conhecimento teórico sobre a nossa língua materna. Sa-
lientamos, também, que, apesar do desenvolvimento de inúmeras pesquisas sobre o
funcionamento e a organização das línguas em geral e do português brasileiro em

99
A Ciência Linguística: particular, as aulas de Língua Portuguesa têm se mantido ancoradas quase que exclu-
conceitos básicos
sivamente em uma visão normativa/prescritiva da língua(gem), herdada da chamada
gramática tradicional (doravante GT)1, que constitui a base epistemológica sobre a
qual, por exemplo, é produzida a maioria dos livros e de outros materiais didáticos
disponíveis no mercado editorial brasileiro. Dado o prestígio que a GT teve e ainda
tem para o ensino de Língua Portuguesa nas escolas, convém compreendermos um
pouco de sua natureza e de sua constituição.
O corpo de conhecimentos que hoje reunimos sob a denominação gramática tradi-
cional, como vimos no capítulo Panorama dos estudos linguísticos, tem sua origem na
Antiguidade Clássica, entre os gregos e os romanos. Os povos gregos e os romanos tive-
ram grande interesse a respeito dos fenômenos que caracterizam a linguagem humana.
Segundo Faraco (2006), as reflexões de gregos e romanos sobre a linguagem humana
emergiram de diferentes fontes e, por esta razão, “não é fácil resumir toda a grandeza de
seu pensamento, até porque as diferentes tradições foram se interpenetrando à medida
que os estudos foram se ampliando e se refinando” (FARACO, 2006, p. 16).
Mesmo diante dessa dificuldade, o autor reconhece duas grandes linhas em que
podemos encontrar os fundamentos do pensamento desses povos sobre a linguagem
humana: os estudos de retórica clássica, concentrados especialmente nas questões
que poderíamos chamar de estilísticas da língua(gem), e as reflexões filosóficas que
tiveram início como os filósofos gregos Platão e Aristóteles.
Assim, por um lado, os povos gregos e romanos “conheceram, principalmente ao
tempo da democracia ateniense e da república romana, momentos de grande eferves-
cência política e jurídica, marcados por debates públicos acirrados” (FARACO, 2006,
p. 16). As práticas jurídicas e políticas, consolidadas em debates de natureza retórico-
argumentativa, permitiram o florescimento de uma forma de conceber a língua(gem)
como a “arte de bem falar em público”, com propósitos de convencer e persuadir um
auditório particular. Nesse quadro, o que estava em jogo no estudo da língua(gem)
eram os dotes oratórios, as habilidades verbais do orador e o bom uso da palavra.
Por outro lado, paralela a essa forma de pensar a língua(gem), permeavam as ideias
linguísticas dos gregos, em especial, questões de natureza filosófica, como a de se

1 Neste capítulo, adotaremos a seguinte distinção, proposta por Bagno (2000, p. 15, grifos do
autor) “[...] a GT é a ‘alma’ de um ‘corpo’ chamado gramática normativa [ou prescritiva]. A GT
é o ‘espírito’, a ‘mentalidade’, a ‘doutrina’ (a ideologia) que dá alento, vigor e ex-sistentia ao ‘ser’,
ao ‘objeto’, à coisa material que podemos adquirir, manusear e submeter aos nossos sentidos,
chamada gramática normativa”. Para ele, “A GT, por consubstanciar uma ideologia, não tem
autor, ao contrário das gramáticas normativas, às quais podemos nos referir como ‘a gramática
do Celso Cunha’, ‘a gramática de Rocha Lima’, ‘a gramática de Cegalla’, etc.” (BAGNO, 2000,
p. 16, grifos do autor).

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perguntarem: O que é a linguagem? Como ela funciona em termos da relação entre as Gramática e ensino

palavras e as coisas? Os signos linguísticos são motivados ou arbitrários?


Além dessas reflexões filosóficas, questões sobre a natureza lógica da linguagem
constituíam também foco de interesse dos filósofos gregos. Principalmente Aristóteles
e os estoicos (seguidores da doutrina segundo a qual o universo é corpóreo e gover-
nado por um logos – razão universal – que ordena todas as coisas) se ocuparam da
filosofia da linguagem, do ponto de vista da lógica, e suas reflexões impulsionaram os
estudos sobre as categorias gramaticais e a estrutura sintática das sentenças. Conforme
se lê em Faraco (2006, p. 16):

Pelo fato de a lógica incluir necessariamente uma discussão dos juízos, também
chamados de proposições (isto é, das unidades que entrarão nos processos
racionais de obter conclusões válidas); e como, para os lógicos gregos, as pro-
posições eram expressas por meio de sentenças da língua, eles tiveram que
elaborar uma análise da estrutura sintática das sentenças (a partir das duas
grandes funções proposicionais: sujeito e predicado) e das classes de palavras
que poderiam ocupar essas funções (em especial os substantivos e os verbos,
mas envolvendo também os adjetivos e pronomes), bem como dos diferentes
elementos lexicais com função de conectivos.

Nesse momento da histórica, desenvolve-se, também, duas perspectivas de enqua-


dramento dos fatos da língua(gem): a tendência anomalista e a tendência analogista.
A anomalia era defendida em geral por filósofos estoicos. Para esses, o princípio que
rege a língua(gem) é o da irregularidade, uma vez que a linguagem seria uma criação
perfeita e superior, que não poderia ser submetida a regras que pretendam dirigir sua
práxis ( VALENZA, 2007). Tais afirmações eram feitas com base, por exemplo, na falta
de congruência observada pelos estoicos entre a palavra e o pensamento (ou aquilo
que ela designa), fenômeno claramente observado por eles em palavras como córax
(corvo) que, gramaticalmente, é masculina, mas que serve de referente tanto para os
machos quanto para as fêmeas da espécie referida.
Um movimento de contraposição a essa forma de conceber a língua(gem) se desen-
volveu também no século III a.C., na cidade de Alexandria. Alguns estudiosos, os filó-
sofos alexandrinos, dedicaram-se a estudar a produção literária de seus autores consa-
grados. Esses estudos eram feitos a partir da restauração e comparação de manuscritos
antigos “com o objetivo de dar aos textos uma forma canônica” e pela análise e comen-
tário de textos valorizados pela cultura grega (FARACO, 2006, p. 16). Os filósofos alexan-
drinos opunham-se à forma como os filósofos estoicos compreendiam a língua(gem).
Para eles, a língua(gem) seria uma criação convencional, lógica e sistemática, cujo prin-
cípio condutor era a analogia: as regularidades a que a língua(gem) estava submetida,
regularidades que permitiam, por exemplo, a existência de paradigmas flexionais.

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A Ciência Linguística: As reflexões dos analogistas se faziam, sobretudo, com base no conceito de correto
conceitos básicos
e incorreto, medidos pela forma de expressão encontrada nas obras literárias. A ten-
dência niveladora da língua tem seu início nessa forma de abordagem da linguagem.
Segundo Faraco (2006, p. 17), os gregos alexandrinos percebiam em seus estudos que
“o grego clássico (que eles encontravam nos textos dos autores consagrados) era dife-
rente do grego que eles falavam (em boa parte porque havia entre os dois uma grande
distância no tempo)”. Ou seja, percebiam a existência da variação linguística e é justa-
mente por isso que eles “concentraram seus esforços na direção do estabelecimento
e do cultivo de um ideal de língua, isto é, de um determinado conjunto de fatos de
linguagem tidos como corretos” (FARACO, 2006, p. 17). Nesse processo, os filósofos
alexandrinos criaram a gramática como uma disciplina intelectual autônoma que se
concentrava no estudo da língua, com o objetivo principal de estabelecer padrões de
correção. Muito apropriadamente, Borba (1991, p. 15) nos traz o conceito de gramáti-
ca defendido pelo analogista Aristarco, a saber, como “conhecimento experimental do
que mais constantemente se acha nos poetas e prosadores”.
Entre os romanos, os estudos gramaticais se fizeram com base no modelo grego
e se estenderam aos preceitos alexandrinos de estudo da língua(gem). Isso se deu
primeiramente por fatores históricos, já que os romanos incorporaram a Grécia a seus
domínios territoriais (século II a.C.). A partir daí, a cultura grega passou a ser valoriza-
da e absorvida pelos romanos, que se dedicaram a aprender a língua grega, bem como
a estudar suas obras literárias. Mais tarde, ao incorporarem também Alexandria aos
seus domínios político-territoriais (século I a.C.), os romanos passam a contemplar
em suas reflexões linguísticas uma concepção normativa de linguagem, claramente
evidenciada na primeira gramática latina criada por Varrão, que segue os preceitos de
seu mestre Alexadrino Crates de Malos, definindo gramática como “a arte de escrever/
falar corretamente e entender os poetas”
A marca identitária dos romanos cultos da época era a de falar e escrever de acordo
com os padrões seguidos pelos grandes escritores e registrados nos dogmas gramati-
cais. Não podemos esquecer que, naquela época, “ser culto” estava diretamente rela-
cionado ao poder aquisitivo. Há, portanto, aí, uma relação direta entre conhecimento
do padrão culto da linguagem e a elite socioeconômica de que dela lança mão nas
suas práticas discursivas concretas. Conforme destaca Faraco (2006), “a gramática era
assunto para as elites masculinas, de quem se esperava o manejo versátil da língua e o
uso das formas tidas com corretas” (p. 18). É por razões práticas que nascem as cha-
madas gramáticas pedagógicas que tinham como objetivo auxiliar esse manejo versátil
da língua.
Esse processo histórico de fundamentação da gramática tradicional se estende à

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Idade Média. Nessa época, os estudos gramaticais se faziam relacionados ao papel Gramática e ensino

que a língua latina desempenhava na religião, nas artes, nas ciências, na filosofia e na
educação. Ao consolidar-se como língua de prestígio, sendo, inclusive, adotada pelo
Cristianismo, irradiou-se pela Europa, veiculada nas obras dos primeiros humanistas e
em meio às primeiras universidades que se criavam. No entanto, quando o Latim passa
a ser reconfigurado rumo às línguas românicas, mantém-se como tradição, na moda-
lidade da língua escrita, a permanência da sua forma clássica de expressão, ou seja,
o latim clássico. Sendo assim, pode-se dizer que o idioma dos romanos se estiliza,
transformando-se num instrumento literário.
Nesse contexto, passam a conviver duas formas de expressão da língua latina, a
saber, a literária (sermo urbanus) e a popular (sermo vulgaris). O eruditismo medie-
val encarava o latim clássico como forma logicamente normal da linguagem humana,
desconsiderando o fato de que a mesma não refletia a vida trepidante experimentada
pelo povo da época e as transformações pelas quais passava. É justamente essa doutri-
na, sustentada na rigidez e na artificialidade do latim clássico, que servirá de base para
a composição das chamadas gramáticas gerais que surgiram a partir do século XVII.
Dentre as gramáticas gerais, também chamadas racionais, a Grammaire Générale
et Raisonnée de Port Royal (1660) costuma ser a mais citada na literatura linguística
corrente. Essa gramática, elaborada pelos franceses Lancelot e Arnaud, propunha pen-
sar a língua em sua generalidade. Ela postula a existência de um conjunto de princí-
pios, ou axiomas, relativos a todas as línguas.
Essa forma de refletir sobre a linguagem, que se desenvolve durante os séculos XVII
e XVIII, advém de Aristóteles e considera a linguagem humana enquanto fenômeno
decorrente das “leis do pensamento”. Marcada, portanto, por princípios racionais e
lógicos, que funcionam de acordo com esquemas lógicos universais, e erigindo à luz
de uma concepção de linguagem como forma de representação do pensamento huma-
no, exige dos escritores/falantes clareza e precisão no uso da linguagem. Regida pela
lógica, esse tipo de gramática prevê a separação do que é válido daquilo que não o é,
ou seja, do que é certo ou errado em termos da expressão linguística do pensamento.
Apenas no final do século XV e no início do século XVI que começaram a sur-
gir gramáticas das chamadas línguas vernáculas – português, francês, castelhano, etc.
Segundo Faraco (2006, p. 19), essas gramáticas surgem da necessidade “[...] de se
sistematizar uma descrição dessas línguas e de registrar uma referência normativa que
atendesse aos objetivos de unificação linguística trazidos pela criação dos novos Esta-
dos unificados”.
As primeiras gramáticas do português foram elaboradas a partir de 1536. Entre es-
sas gramáticas, a mais famosa é a de João de Barros (publicada em 1540) – cf. Faraco,

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A Ciência Linguística: (2006, p. 19) A proposta, tanto das gramáticas do português quanto das gramáticas de
conceitos básicos
outras línguas conhecidas como “vulgares”, era a de contribuir para fixar um padrão de
língua. Esse padrão foi estabelecido tendo em vista as descrições e as prescrições das
antigas gramáticas latinas e gregas, ou seja, “[...] essas obras tentaram encontrar, nas
línguas vivas da época, as mesmas categorias gramaticais descritas pelos respeitados
gramáticos da Grécia e de Roma” (BAGNO, 2002, p. 18).
Como salienta Bagno (2002), os gramáticos das línguas vernaculares abdicaram
do exame e da descrição cuidadosa dessas línguas para tentar apenas enquadrá-las
num modelo gramatical já pronto, insistindo em encontrar nelas “as mesmas classes
de palavras, os mesmos tempos verbais, as mesmas funções sintáticas que existiam no
latim clássico” (p. 19). Obviamente, um dos problemas dessa tarefa reside no fato de
nem sempre ser possível estabelecer uma correlação entre a organização gramatical
do latim clássico e a organização das chamadas línguas vulgares – em Bagno (2002),
o leitor poderá encontrar vários exemplos da contradição entre a descrição gramatical
tradicional e o que de fato ocorre com certos fenômenos da Língua Portuguesa.
Dos apontamentos feitos até aqui, supomos que tenha sido possível observar que a
constituição do saber gramatical tradicional esteve fortemente ligada a uma concepção
normativista de língua(gem). Ao longo de sua história, o saber gramatical tradicional
permaneceu sempre a serviço do bem falar e do bem escrever, elegeu como parâmetro
fundamental a distinção entre o certo e o errado e excluiu de seu escopo fatos que dão
à língua(gem) seu caráter multifacetado – como os fatos de variação linguística dos
quais já tratamos sucintamente em outros momentos deste livro.

As gramáticas normativas
O termo gramática costuma ser entendido, muitas vezes, apenas como um con-
junto de regras expressas em uma obra a que se denomina normativa, que tem sua
fundamentação no saber gramatical tradicional cuja constituição histórica – que se fez
em mais de vinte e três séculos de tradição – tentamos indicar na seção anterior. Esse
tipo de gramática, como veremos, não é a única a se propor a explicar mecanismos de
uso da língua. Essas gramáticas expõem noções e regras com base na ideia de que as
mesmas devem ser utilizadas seguindo-se os preceitos daquilo que é entendido como
sendo o bem escrever dos autores consagrados como bons escritores. À luz dessa
concepção, passa-se também a exigir das manifestações linguísticas de natureza oral
a mesma correção e formalidade pertinentes, na grande maioria das vezes, apenas às
manifestações linguísticas de natureza escrita.
Esse tipo de gramática é dita normativa justamente por tornar oficial algumas regras
e leis que devem ser seguidas sob pena de se incorrer a supostos desvios, sinuosidades,

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irregularidades ou alterações da língua. Nesse passo, a modalidade de linguagem que Gramática e ensino

passa a ter status consagrado no uso é a modalidade chamada padrão ou culta.


A prescrição do conjunto de regras que formam as chamadas gramáticas norma-
tivas ou prescritivas nasce de fatores não propriamente linguísticos, como já foi dito
anteriormente, partem, pois, de princípios relativos à linguagem escrita e costumam
desprezar características próprias da linguagem oral. Sendo assim, eliminam formas
e usos que não se coadunam com seu papel prescritivo ou normativo. Para Travaglia
(1996, p. 226), essa concepção de gramática, ao ignorar fatores constitutivos da lin-
guagem oral, tomando por base fatores não estritamente linguísticos, acaba por criar
preconceitos de toda espécie, por basear-se em parâmetros, segundo ele, muitas ve-
zes, equivocados. O estudioso destaca alguns deles, a saber, purismo e vernaculidade,
classe social de prestígio (econômico, cultural, político), autoridade (gramáticos, bons
escritores), lógica e história.
Note-se que paira sobre essa concepção de gramática a falsa ideia de que a natureza
dialógica da linguagem pode ser desprezada, posto que o papel constitutivo das for-
mas de interação, estabelecidas entre aqueles que se manifestam em situações concre-
tas de uso da língua, é visto como um elemento que não interfere no uso do código.
Vemos, portanto, aqui, que essa concepção de gramática não se faz alheia à concepção
de linguagem como um mero instrumento de comunicação, da qual tratamos em
capítulo precedente. É o caráter instrumental do código que está em jogo nesse modo
de visualizar a gramática de uma língua.
Essa forma, portanto, de conceber a gramática e, consequentemente, a concep-
ção de linguagem que dela decorre, faz crer ser suficiente para que a comunicação
se efetive no conhecimento do código/da língua tal como ele/ela vem apresentado/a
nos manuais didáticos de que dispomos: conjunto de regras que devem ser seguidas.
Compreende-se daí que a competência linguística do falante/escritor se constrói com
base na sua capacidade de adquirir domínio desse conjunto de regras capazes de pro-
duzirem efeitos sobre o emprego da variedade padrão (escrita e/ou oral) da língua.
No entanto, parece ser consenso que o domínio dessas regras de prescrição pelo
falante/escritor, ou seja, que a aquisição desse tipo de competência linguística nem
sempre é garantia de promoção de uma competência comunicativa ou discursiva, pos-
to que o falar/escrever extrapola os limites do código. As necessidades comunicativas
dos falantes, quando consideradas sob o ponto de vista dos seus intentos argumen-
tativos ou persuasivos, não raro os obrigam a desconsiderar fatos relativos à normati-
vização linguística tal como prevista pelas gramáticas normativas e recorrer a formas
linguísticas mais adequadas ao agir comunicativo, ao contexto de uso, às imagens que
os falantes constroem de si e dos seus interlocutores nas práticas discursivas em que se

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A Ciência Linguística: encontram mutuamente inseridos. Todos esses fatores, não raro, os obrigam a lançar
conceitos básicos
mão de variantes não padrão da língua em foco, as quais, como nos é sabido, costumam
ser vistas com certo estigma pelos ferrenhos defensores das gramáticas normativas.
Além disso, o ensino de Língua Portuguesa que se fundamenta nessa forma de
conceber a gramática de uma língua acaba por cobrar dos sujeitos conhecimentos
sobre isso que não apresentam relevância ou grande valia no desenvolvimento de uma
melhor competência no uso da linguagem: o aluno tem que saber, por exemplo, fazer
análise sintática e decorar longas listas usadas na classificação das classes de palavras e
de categorias gramaticais. Esses conhecimentos não são suficientes para levar alguém
a se tornar necessariamente um escritor/falante melhor, haja vista que uma coisa é
saber falar sobre a língua, outra coisa é saber usá-la de forma eficaz. O uso eficiente da
língua envolve, entre outras coisas, nossa capacidade de lançar mão de um conjunto
de regras que acionamos ao nos manifestarmos frente às diferentes circunstâncias da
comunicação humana.
O advento da Linguística como disciplina científica, com as características que, nos
capítulos anteriores, procuramos elencar, trouxe à cena outras formas de conceber a
gramática de uma língua. Na seção seguinte, nos deteremos na explicitação de duas
dessas formas: as chamadas gramáticas descritiva e internalizada.

Concepções de gramática: descritiva e internalizada


Contrapondo-se à visão de gramática que demos destaque na seção anterior, os
linguistas procuram desenvolver uma teoria gramatical cuja preocupação é descrever
e/ou explicar as línguas tais como elas são faladas e escritas. Interessa-os, portanto,
o conjunto de regras efetivamente utilizadas pelos falantes e escreventes. Esse tipo
de gramática é denominado gramática descritiva porque se ocupa em fazer uma des-
crição da estrutura e do funcionamento da língua, levando em conta forma e função
na linguagem. A gramática descritiva, que tem por objetivo fazer o levantamento dos
fenômenos linguísticos, tal como eles se manifestam no momento da descrição, não
prescreve normas ou define padrões em termos de julgamentos de correto ou incor-
reto, também não busca atender aos usos e seleções esperados de uma pessoa culta.
Interessa-lhe, pois, documentar uma língua de modo a nos levar a adquirir conhe-
cimento sobre o seu funcionamento, a sua estrutura ou configuração formal que a
caracteriza num dado momento. Por isso a gramática descritiva é também chamada de
sincrônica.
Cabe aqui ressaltar o fato de que o estudo descritivo das línguas já fazia parte da
agenda das investigações do alemão Anton Marty, no princípio do século XX (1908).
Esse estudioso assegurava haver, ao lado das leis históricas, as leis descritivas. No

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entanto, é com Ferdinand de Saussure, que dividiu a Linguística em diacrônica e sin- Gramática e ensino

crônica, conforme já comentamos neste livro, que se lança luz, de modo mais efetivo,
sobre esse modo de pensar a língua. Por linguística sincrônica, Saussure entende a
gramática descritiva, cientificamente conduzida, isto é, de maneira sistemática, objeti-
va e coerente.
A Linguística, tal como foi proposta por Saussure, se sustenta e se desenvolve,
em um primeiro momento, em torno da busca em determinar os princípios e as ca-
racterísticas que regulam a estrutura das línguas. Cabe à Linguística sincrônica geral,
conforme assegura Saussure, estabelecer os princípios fundamentais de todo sistema
idiossincrônico de uma língua. O termo idiossincrônico, que é considerado sinônimo
de gramática descritiva por Hjelmslev, deve ser entendido como aquilo que interessa
à descrição dos sistemas linguísticos, dado um estado de língua, considerando-se a
natureza das relações que se estabelecem entre as formas que os constituem. Nessa
perspectiva, cabe às gramáticas descritivas fazer o levantamento dos elementos consti-
tutivos da estrutura linguística e mostrar o seu funcionamento operacional.
Contrariamente à primeira concepção de gramática aqui apresentada, que parte do
princípio de que a língua constitui, conforme preconiza Possenti (1999, p. 64-65), um
conjunto de regras que devem ser seguidas, sob pena de incorrer-se no “erro”, a se-
gunda concepção de gramática vê a língua como conjunto de regras que são seguidas.
Nesta última perspectiva, que é adotada principalmente pelos linguistas partidários
das teorias estruturalistas, estudar a língua equivale a debruçar-se sobre um conjunto
de regras efetivamente utilizadas pelos falantes nas suas práticas enunciativas concre-
tas. Sendo assim, compreende-se daí a possibilidade de se incluir nessa concepção de
gramática o fato de que as línguas mudam, afetando, assim, as suas regras de funciona-
mento, enquanto as gramáticas normativas insistem em retratar regras que os falantes
deixaram de aplicar ou muito pouco lançam mão. No dizer de Franchi (1991 apud
TRAVAGLIA, 1996 p. 27), uma gramática descritiva nos revela

[...] um sistema de noções mediante as quais se descrevem os fatos de uma


língua, permitindo associar a cada expressão dessa língua uma descrição estru-
tural e estabelecer suas regras de uso, de modo a separar o que é gramatical do
que não é gramatical.

Os critérios de análise seguidos são de natureza linguística, formal e objetiva. Para


Travaglia (1996, p. 27), saber gramática, nessa perspectiva, significa “ser capaz de dis-
tinguir, nas expressões de uma língua, as categorias, as funções e as relações que en-
tram em sua construção, descrevendo como é sua estrutura interna e avaliando sua
gramaticalidade”.

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A Ciência Linguística: Assim, nesse tipo de gramática, não entra em jogo juízo de valor, mas, sim, de gra-
conceitos básicos
maticalidade. Vejamos alguns exemplos que possam ilustrar essa afirmação:

1. Os ladrões compraram passagens aéreas com desconto pela internet.


2. * Os compraram aéreas passagens com pela ladrões desconto internet.
3. Os ladrão compró passage aérea com desconto pela internet.
4. *Os passage compró aérea ladrão com pela internet desconto.

Qualquer falante do português brasileiro atual saberá indicar que apenas os enun-
ciados em 1 e 3 são expressões possíveis em português. Usando a terminologia lin-
guística, os enunciados 2 e 4 são agramaticais, ou seja, não correspondem a nenhum
sistema de regras previsto pelas variedades linguísticas que constituem o português
brasileiro. A diferença entre os enunciados 1 e 2 reside no sistema de regras (a gra-
mática, portanto!) que os determina2. A título de exemplificação, a gramática que
orienta a construção do enunciado 1 supõe uma marcação de plural redundante (Os
ladrões compraram passagens aéreas com desconto pela internet.), ao passo que a
gramática que orienta a construção do enunciado 2 supõe uma marcação de plural
não redundante, marcação essa que deve ser feita no primeiro elemento do enunciado
(Os ladrão[ø] compró[ø] passage[ø] aérea[ø] com desconto pela internet). Notar que,
no enunciado 2, há, sem dúvida, regras que determinam a marcação de plural eviden-
ciadas pelo fato de não podermos fazer outro tipo de marcação que não seja aquela
que descrevemos anteriormente.
Seguindo os passos de Possenti (1999, p. 69), encontramos uma outra forma de
conceber a gramática, que leva em conta o conjunto de regras que o falante domina.
Ela não se opõe à gramática descritiva; é, antes, seu objeto precípuo. Podemos afirmar
que, quando pensamos na gramática internalizada, passamos a considerar, sobretudo,
o conhecimento efetivo de língua pelo falante, que lhe permite, por exemplo, criar
um número infinito de frases e julgar sua gramaticalidade no sentido da gramática
descritiva. Importa, portanto, aqui, a capacidade que um falante tem de identificar
sequências linguísticas como pertencentes a sua língua, produzi-las sistematicamente
e interpretá-las à luz de um contexto de fala específico.
Esse modo de pensar a gramática, por conceber a língua como um conjunto de

2 Obviamente, não podemos deixar de reconhecer, também, que os enunciados em 1 e 2, embo-


ra sejam realizações possíveis do português brasileiro, tem status diferentes: apenas o enunciado
em 1 tem prestígio e é aceito pelas gramáticas normativas. O enunciado em 4 constitui o que
poderíamos chamar de uma variante estigmatizada, considerada, pelo senso comum e pelas
gramáticas normativas, como errada e falha.

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variedades, considera os fatos de linguagem como adequados ou não à situação de Gramática e ensino

interação comunicativa de que o falante/escritor participa. Sendo assim, nessa concep-


ção de gramática, também não há erro linguístico, tal como se vê nas gramáticas de
cunho normativo. Além disso, é importante destacar que

[...] o usuário da língua precisa saber (e sabe) muito mais do que apenas as
regras de construção de frases para ter uma competência comunicativa e que
faz parte da gramática da [sua] língua [...] Importa, pois, registrar, reafirmar e
destacar aqui que a gramática internalizada é a que constitui não só a compe-
tência gramatical do usuário, mas também a competência textual e sua compe-
tência discursiva e, portanto, a que possibilita sua competência comunicativa
(TRAVAGLIA, 1996, p. 30).

Ou seja, do ponto de vista assumido por Travaglia, a gramática internalizada pelos


falantes ao longo da sua exposição aos fatos de língua, além de afetar a sua competência
gramatical ou linguística, incide também sobre as outras competências implicadas nas
práticas discursivas de que participam, a saber, as competências textual e discursiva.

Ensino de gramática e variação linguística

[...] Outras vozes falam e escrevem hoje no Brasil. E não há como não ouvi-las.
(MATTOS e SILVA, 2006, p. 65).

Nos capítulos anteriores, procuramos colocar em evidência, dentre outros fatos,


que o desenvolvimento da pesquisa linguística, ao longo do século XX e nestes anos
iniciais do século XXI, tem permitido a análise, a descrição e a interpretação do fe-
nômeno linguístico sob variados pontos de vista ou, ainda, à luz de diferentes con-
tribuições das áreas do saber em que a Linguística atual se desdobra, tais como a Psi-
colinguística, a Análise da Conversação, a Pragmática, a Sociolinguística, a Semântica,
a Sintaxe, a Fonética, a Fonologia etc. Como vimos, o ponto de vista exclusivamente
descritivo que norteou principalmente as primeiras reflexões da ciência Linguística no
início do século XX hoje cedeu espaço para outras formas de conceber o fenômeno
linguístico que passaram a considerar não só o sistema linguístico e sua natureza for-
mal e objetiva, mas, também, por exemplo, o sujeito e as condições que determinam
suas manifestações linguísticas orais e escritas.
Convém destacar, entretanto, que as contribuições dessas diferentes áreas do saber
para a compreensão do fenômeno linguístico têm, muitas vezes, passado ao largo dos
muros escolares. Segundo Bagno,

[...] quando se sai da esfera acadêmico-científica e se entra na sala de aula da


grande maioria das escolas brasileiras, o que ainda se encontra é uma prática

109
A Ciência Linguística: pedagógica de ensino de língua que revela pouca ou nenhuma influência de
conceitos básicos todas as novas perspectivas de abordagem do fenômeno da linguagem – apesar
de estarem presentes, já faz algum tempo, até mesmo em diretrizes oficiais de
educação, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (BAGNO, 2002, p. 14).

Em outras palavras, é inegável que os professores têm tido acesso a princípios


teóricos desenvolvidos no âmbito das pesquisas em Linguística, principalmente pela
difusão das diretrizes oficiais para o ensino de Língua Portuguesa – que já incorporam
alguns desses princípios. Entretanto, as mudanças que deveriam ser provocadas pelo
acesso aos conhecimentos científicos a respeito do fenômeno linguístico têm atingido
muito timidamente a dinâmica das aulas de Língua Portuguesa no que concerne espe-
cialmente ao ensino e à aprendizagem de tópicos gramaticais3.
Mencionamos acima e em capítulos anteriores que, nas escolas brasileiras, as aulas
de Língua Portuguesa, com raras exceções, são guiadas pelos preceitos difundidos
pela GT, cuja preocupação principal, como também já vimos, é exclusivamente a de
estabelecer como deve ser a língua. Nesse sentido, de modo geral, a escola tem feito
“[...] tábula rasa do saber linguístico diferenciado que os indivíduos possuem, em
nome de levá-los a dominar o padrão culto idealizado” (MATTOS e SILVA, 2004, p. 29),
padrão que, em geral, só é alcançado por “alguns daqueles que já vêm das camadas
socioculturais em que esse padrão é a base da comunicação cotidiana [...]”(MATTOS
e SILVA, 2004, p. 29). Essa afirmação faz eco com o desabafo da personagem abaixo:

Entrei numa lida muito dificultosa. Martírio sem fim o não entender nadinha
do que vinha nos livros e do que o mestre Frederico falava. Estranheza colosso
me cegava e me punha tonto. Acho bem que foi desse tempo o mal que me
acompanha até hoje de ser recanteado e meio mocorongo. Com os meus, em
casa, conversava por trinta, tinha ladineza e entendimento. Na rua e na escola –
nada; era completamente afrásico. As pessoas eram bichos do outro mundo que
temperavam um palavreado grego de tudo (BERNADES, 1969, p. 18-20 apud
BORTONI-RICARDO, 2006a, p. 13-14).

3 Não podemos ignorar que algumas mudanças decorrentes da divulgação dos PCNs – e, so-
bretudo, dos debates que seguiram essa divulgação – já se fazem presentes em muitas escolas
brasileiras. A título de exemplificação, a proposição dos PCNs de que o texto seja eleito como
unidade de ensino tem transformado muitas aulas de Língua Portuguesa. Várias escolas e vários
professores têm se esforçado para oferecer oportunidades para que seus alunos se tornem ca-
pazes de “interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como
cidadão[s], de produzir textos eficazes nas mais variadas situações” PCNs (BRASIL, 1998, p.
21). Convém destacar, entretanto, que essa transformação, positiva em muitos aspectos, tem,
pelo menos, um inconveniente: o privilégio ao texto tem, muitas vezes, sido acompanhado pelo
abandono do ensino dos tópicos gramaticais, atitude que está na contramão do que é sugerido,
por exemplo, pelos PCNs.

110
Muitos sujeitos que hoje frequentam as escolas de ensino fundamental e médio Gramática e ensino

que se espalham ao longo do território nacional têm certamente a mesma dificuldade


descrita pela personagem do relato acima. Isso decorre do fato de a escola, infeliz-
mente, ainda assumir como sua principal tarefa impor uma única norma linguística,
fundada exclusivamente em preceitos da GT, como se ela constituísse a norma comum
a todos os brasileiros, que, de norte a sul do país, falariam uma mesma e única língua,
dissociada de fatores como idade, origem geográfica, situação socioeconômica, grau
de escolaridade, etc. Essa postura, entretanto, está diametralmente em oposição às
contribuições advindas, por exemplo, da Sociolinguística.
Como vimos em capítulo anterior, a Linguística viu florescer, a partir da década de
60, um volume grande de pesquisas no âmbito dos chamados estudos sociolinguísti-
cos. As pesquisas sociolinguísticas feitas sobre as variedades brasileiras do português
têm permitido, dentre outros fatos, questionar fortemente o mito da homogeneida-
de do português falado no Brasil. Elas têm colocado em evidência que o português
brasileiro apresenta um alto grau de diversidade e de variabilidade, que deriva tanto
da extensão territorial do Brasil – responsável pela presença de diferenças regionais,
bastante conhecidas e observadas, por exemplo, no reconhecimento de um “falar”
pernambucano em oposição a um “falar” paulista –, quanto das diferenças socioeco-
nômicas que emergem do fato de nosso país estar entre aqueles com pior distribuição
de renda em todo o mundo.
Essas pesquisas também têm salientado que a diversidade e a variabilidade não
são nefastas, mas inerentes às línguas e à língua portuguesa. Longe de evidenciarem,
portanto, um problema para a constituição de nossa língua, são antes fatos que condi-
cionam e permitem sua existência.
Além do reconhecimento e o estudo das diferenças diatópicas (referentes aos modos
diversos que a língua portuguesa assume em decorrência de mudanças no espaço) e dias-
tráticas (referentes aos modos diversos que a língua portuguesa assume em decorrência
do status do falante e de suas condições socioeconômicas), as pesquisas sociolinguísticas
têm apontado, também, a existência de uma enorme distância entre a norma idealizada
pela tradição gramatical e as normas que poderíamos chamar de reais: normas linguísti-
cas que caracterizam o português falado no Brasil e que são utilizadas quotidianamente
pelos seus mais de 190 milhões de falantes. Nas palavras de Mattos e Silva,

Parece já haver um razoável consenso, sobretudo nas gerações mais jovens,


em torno do fato de a norma codificada na tradição gramatical de origem por-
tuguesa, e fundada, sobretudo, na literatura de épocas passadas, não ser mais
do que algo idealizado, ultrapassado já, e que nada, ou quase nada tem a ver
com a norma ou as normas lingüísticas em realização, que se entrecruzam na
comunicação quotidiana com a dialetação diatópica e diastrática de milhões de
brasileiros (MATTOS e SILVA, 1988, p. 28)

111
A Ciência Linguística: Ou seja, nenhuma das normas linguísticas que, atualmente, estão na base das inúme-
conceitos básicos
ras práticas de linguagem dos falantes do português brasileiro corresponde, em sua tota-
lidade, ao ideal proposto pela GT e cristalizado, como vimos, nas chamadas gramáticas
normativas. Em capítulo anterior, apresentamos evidências dessa discrepância quando
comentamos o desacordo existente entre a descrição do paradigma verbal feito com base
no ideário da GT e o que chamamos de paradigma “mais real”, aquele que corresponde-
ria, mais de perto, às possibilidades de conjugação verbal que guiam as práticas linguís-
ticas dos falantes brasileiros. Vejamos, a seguir, mais um exemplo desse desacordo, para
que possamos tornar ainda mais precisas as afirmações que vimos fazendo – o exemplo
e a análise que seguem foram recolhidas de Mattos e Silva (2004, p. 145):

a) Eu conheço a Maria há muitos anos.


b) Eu conheço ela há muitos anos.
c) Eu conheço [ø] há muitos anos.
d) Eu a conheço há muitos anos.

Nesses exemplos, estão em jogo as formas de expressão do objeto direto anafórico


de terceira pessoa. Dos exemplos apresentados, a estrutura em (d) – em que o objeto
direto anafórico é expresso pelo uso do chamado clítico acusativo – é a única, em
geral, prevista pelas gramáticas normativas. Assim, as estruturas em (a), (b) e (c), res-
pectivamente expressas por um sintagma nominal, por um pronome (“ele acusativo”)
e por um objeto nulo, não são geralmente exploradas por essas mesmas gramáticas,
nem mesmo nas aulas de Português. Notar que a estrutura em (b) é, também, “vee-
mentemente condenada por todos os gramáticos como ‘erro’ dos mais cabeludos”
(BAGNO, 2002, p. 49), uma vez que, para gramáticos e gramáticas, esse pronome so-
mente poderia ser usado ocupando a posição de sujeito do enunciado.
Entretanto, segundo Mattos e Silva (2004), pesquisas – tanto aquelas guiadas pela
perspectiva gerativista quanto aquelas guiadas pelo arcabouço teórico desenvolvido
pela Sociolinguística – têm mostrado que todas as estruturas acima aparecem, embo-
ra de formas diferenciadas, nas manifestações linguísticas dos falantes e escreventes
brasileiros de níveis socioeconômicos e de graus de escolaridade variados. Além disso,
a autora afirma que os dados obtidos pelas pesquisas gerativistas e sociolinguísticas
apontam para “a perda do clítico acusativo e o desprestígio social de ele acusativo”.
Esses fatos, por sua vez, têm aberto caminho para a disseminação do uso do chamado
objeto nulo e do sintagma nominal pleno (MATTOS e SILVA, 2004, p. 145). Recupe-
rando dados de pesquisas de Duarte e Tarallo (1988 apud MATTOS e SILVA, 2004, p.
145) e de Corrêa (1991 apud MATTOS e SILVA, 2004, p. 145) sobre os fatores que

112
determinam a preferência ou desprestígio das formas acima, a autora se permite supor, Gramática e ensino

“com certa margem de segurança”, que:

[...] nos extremos do continuum dialetal brasileiro, a partir dos dados urbanos
de informantes de escolaridade mais baixa e mais alta acima relatados, a situa-
ção se direcionará para a ausência dos clíticos de 3ª pessoa nos dialetos rurais
de não escolarizados, já que os clíticos são adquiridos na escola, em taxa baixa,
como vimos, e se direcionam para um frequência mais alta, nos indivíduos de
escolaridade máxima (MATTOS e SILVA, 2004, p. 147).

Devemos notar que as taxas “mais altas” as quais a autora faz referência são 10,7%
na fala de universitários e 85,7% na escrita desses mesmos sujeitos – dados obtidos
por meio da pesquisa de Corrêa (1991 apud MATTOS e SILVA, 2004, p. 145). Assim, a
estrutura privilegiada pelas gramáticas normativas é a menos usada pelos falantes do
português (escolarizados ou não, residentes em zonas rurais ou urbanas) e seu uso
está em coocorrência e concorrência com outras estruturas. Ademais, essa estrutura
fica quase que exclusivamente limitada aos usos mais formais da escrita4.
A prerrogativa dada à norma ideal veiculada pelas gramáticas normativas e, muitas
vezes, transposta acriticamente nos manuais didáticos – norma que, em vários de seus
aspectos constitutivos, não encontra paralelo nos usos reais que são feitos da língua
–, tem consequências para o ensino de Português. Quando elegemos o ensino dessa
norma ideal como objetivo precípuo das aulas de Língua Portuguesa, deixamos, dentre
outros fatos, de reconhecer o potencial expressivo dos antecedentes linguísticos de
nossos alunos e não ofertamos possibilidades sólidas de acesso a e de incorporação
da norma culta real.
A alteração dessa realidade pressupõe a aceitação das diferenças nos modos de
inserção dos sujeitos nas práticas linguísticas, suas diferentes e, muitas vezes, diver-
gentes “formas de dizer”. Pressupõe, também, a necessidade de reconhecer que essas
formas divergentes de dizer servem a propósitos distintos e, obviamente, são recebidas
de maneira diferenciada pela sociedade:

[...] algumas conferem prestígio ao falante, aumentando-lhe a credibilidade


e o poder de persuasão; outras contribuem para formar-lhe uma imagem ne-
gativa, diminuindo-lhe as oportunidades. Há que se ter em conta ainda que
essas reações dependem das circunstâncias que cercam a interação (BORTONI-
RICARDO, 2006b, p. 15).

4 O leitor interessado no aprofundamento da discussão acima esboçada pode consultar o traba-


lho de Mattos e Silva (2004) e, também, a discussão feita por Bagno (2002, p. 99-121).

113
A Ciência Linguística: Em síntese, podemos afirmar que a escola e seus professores não podem ignorar
conceitos básicos
que outras vozes falam e escrevem hoje no Brasil. Vozes que, juntas, constituem “um
conjunto múltiplo e entrecruzado de variedades geográficas, sociais, estilísticas, de
registros e de gêneros textuais e discursivos” (FARACO, 2006, p. 26). Acolher essa
pluralidade de vozes e fazer dela o objeto da aula de Português talvez seja a saída para
que, de fato, possamos atender ao objetivo de garantir aos sujeitos do ensino “acesso
aos saberes linguísticos, necessários para o exercício da cidadania, direito inalienável
de todos” (BRASIL, 1998, p. 21).

Considerações finais: é preciso ensinar gramática na escola?


As considerações feitas até aqui podem ter levado o leitor a questionar a necessida-
de de se ensinar gramática na escola. Uma vez que salientamos que as gramáticas nor-
mativas – que, em geral, sustentam o estudo dos tópicos gramaticais nas aulas de Lín-
gua Portuguesa – fundamentam-se numa visão unicamente prescritiva da língua(gem)
e inspiram-se em normas muitas vezes em desuso e arcaicas, seria, ainda, necessário
ensinar gramática na escola?
O leitor convencido pelas reflexões que vimos fazendo poderá posicionar-se assu-
mindo a necessidade de substituição das gramáticas normativas pelas contribuições
advindas do corpo de conhecimentos elaborado nas últimas décadas pela Linguística.
Entretanto, esse posicionamento é, também, complicado, uma vez que

[...] Qual das muitas escolas teóricas da Lingüística vamos escolher para guiar
nosso trabalho em sala de aula? O estruturalismo saussuriano, a glossemática
de Hjelmlev, a tagmêmica de Pike, o gerativismo de Chomsky, o funcionalismo
do círculo lingüístico de Praga, a teoria das valências de Tesnière (para citar
apenas algumas das escolas mais conhecidas? (BAGNO, 2002, p. 65).

Para Bagno (2002), o problema em assumir uma dessas tendências reside no fato
de que, como toda ciência, a Linguística e suas diferentes áreas de conhecimento estão
em constante movimento: as teorias linguísticas são reformuladas ou abandonadas em
favor de outras formas de conceber, descrever e interpretar o fenômeno linguístico.
Deparamo-nos, então, com um impasse “[...] não ensinar Gramática Tradicional (por-
que não científica) nem ensinar as teorias mais recentes (porque sempre inconclusas
e provisórias)” (BAGNO, 2002, p. 65). Para a dissolução desse impasse, o autor propõe
que escolas e professores deveriam

[...] desenvolver a prática da leitura e da escrita, da releitura e da reescrita, da


re-releitura e da re-reescrita, sem a necessidade de decorar nomenclaturas (se-
jam elas as tradicionais ou as de alguma teoria moderna) nem de empreender
exercícios mal formulados e incongruentes de análise e descrição mecânica dos

114
fatos gramaticais, exercícios baseados em definições imprecisas e em métodos Gramática e ensino
mais do que questionáveis [...] (BAGNO, 2002, p. 65).

Essa proposta coaduna-se com aquela que vemos delineada nos PCNs. Neles, há
também uma crítica à forma descontextualizada por meio da qual os tópicos grama-
ticais têm sido ensinados nas aulas de Língua Portuguesa. Essa crítica incide tanto no
fato de os tópicos gramaticais serem, com raras exceções, abordados por meio de uma
metalinguagem às vezes inacessível ao aluno, quanto na constatação da forte presença
de exercícios de reconhecimento e de memorização de nomenclaturas que pouco ou
nada contribuem para a formação de produtores eficientes de textos falados e escritos
e para a constituição de ouvintes e leitores mais preparados para as demandas dos
processos de leitura e de escuta.
Para os PCNs, é no interior das situações de produção e de interpretação de tex-
tos falados e escritos que os conhecimentos sobre os aspectos gramaticais deveriam
fazer sentido. Ou seja, seriam, por um lado, nos momentos em que o falante ou o
escrevente monitora sua produção oral ou escrita (para garantir a sua adequação, sua
coerência, sua coesão e sua correção) e, por outro lado, nos momentos em que o leitor
ou o ouvinte esforça-se para atribuir sentidos para o texto que lê ou escuta, que os
conhecimentos sobre os aspectos gramaticais ganhariam utilidade.
Assume-se, portanto, que o conhecimento dos fatos atinentes à organização foné-
tica, fonológica, morfológica, sintática e semântica da língua (sua gramática, portanto)
devem ser ofertados à medida que se tornarem necessários para que os alunos façam
reflexões sobre o funcionamento dos textos que produzem, que escutam e que leem.
A adoção dessa postura implica uma alteração nos conteúdos gramaticais a serem en-
sinados, já que não há mais possibilidade deles se limitarem “[...] às imposições de
organização clássica de conteúdos na gramática escolar”(PCNs) (BRASIL, 1998, p. 29).
Quando subordinados às práticas de fala e de escrita, os tópicos gramaticais não mais
corresponderão aos fatos gramaticais tal como descritos nas gramáticas normativas.
Nesse sentido, alunos e professores terão que recorrer a outras fontes, inclusive ao seu
conhecimento intuitivo da gramática da (sua) língua.
É possível afirmar, então, que a questão que formulamos anteriormente, consti-
tui, na verdade, uma falsa questão – como já observado nos próprios PCNs. Antu-
nes (2003), Possenti (2001) e Faraco (2006), chamam a atenção para o fato de que
o problema central do ensino de Português não é saber se devemos ou não ensinar
gramática (FARACO, 2006, p. 21), mas, sim, o de atentarmos para o fato de que é
preciso oferecer aos nossos alunos condições para eles se familiarizarem com aquelas
práticas sociais de linguagem, orais e/ou escritas, relevantes para sua efetiva inserção

115
A Ciência Linguística: sociocultural. Nesse sentido, é, pois, tarefa fundamental a reflexão sobre a língua, seu
conceitos básicos
funcionamento em termos linguísticos e sociais e, obviamente, como vimos defenden-
do até aqui, reflexão a partir de uma perspectiva não normativista, que não reduza o
fenômeno linguístico a uma única e idealizada forma de manifestação.

Referências

ANTUNES, I. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial,


2003.

BAGNO, M. Português ou brasileiro? um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola


Editorial, 2002.

______. Dramática da Língua Portuguesa: tradição gramatical, mídia e exclusão


social. São Paulo: Loyola, 2000.

BORBA, F. S. Introdução aos estudos linguísticos. Campinas, SP: Pontes, 1991.

BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna. São Paulo: Parábola


Editorial, 2006a.

________. Nóis cheguemos na escola. E agora? São Paulo: Parábola Editorial,


2006b.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:


terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília, DF: MEC/
SEF, 1998.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:


1ª a 4ª série: Língua Portuguesa.. Brasília, DF: MEC/SEF, 1997.

FARACO, C. A. Ensinar x não ensinar gramática: ainda cabe esta questão?


Calidoscópio, São Leopoldo, RS, v. 4, n. 1, p. 15-26, 2006.

116
MATTOS e SILVA, R. V. O português são dois: novas fronteiras, velhos problemas. Gramática e ensino

São Paulo: Parábola, 2004.

______. Diversidade e unidade: a aventura linguística do Português. Revista Icalp,


Lisboa, n. 12/13, p. 12-27, 1988.

POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de


Letras, 1999.

TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática


no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996.

VALENZA, G. M. O embate analogia x anomalia no De Lingua Latina de Varrão.


Revista X (Online), v. 1, p. 93-108, 2007. Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/
ojs2/index.php/revistax/issue/current>. Acesso em: 13 out. 2009.

Proposta de Atividades

1) (Adaptada de questão do ENC/2003, disponível em http://www.inep.gov.br/download/


enc/2003/provas/Prova-Let-Tipo1.pdf, acesso em 10/10/2009) Considere os textos abaixo,
que tratam de questões relativas aos pronomes pessoais:

Texto I
No Português Brasileiro, usa-se geralmente o pronome oblíquo antes do verbo
(próclise). O Português Europeu, por sua vez, apresenta-se como uma variante
mais enclítica, sendo uma exceção habitual as frases na negativa. Já a mesóclise,
possível nos tempos simples do futuro no Português Europeu, é pouco utilizada
no Português Brasileiro, com exceção de contextos litúrgicos nos quais o padrão
bíblico, que privilegia essa colocação pronominal, é adotado.

Texto II
Colocação dos pronomes átonos com formas verbais finitas
1. A posição normal dos pronomes átonos é depois do verbo (ênclise). Entre-
tanto, motivos particulares de eufonia ou de ênfase podem concorrer para a
deslocação do pronome.
2. É obrigatória a próclise:
(a) nas orações negativas;

117
A Ciência Linguística: (b) nas orações exclamativas, começadas por palavras exclamativas, bem
conceitos básicos
como nas orações optativas;
(c) nas orações subordinadas.

As observações sobre pronomes pessoais contidas nos textos acima evidenciam duas dife-
rentes concepções de gramática. Identifique e caracterize cada uma delas.

Anotações

118

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