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Pilati, Eloisa (a sair).

Teorias linguísticas e educação básica: proposta


congregadora. In: O apelo das árvores. Campinas: Pontes.

TEORIAS LINGUÍSTICAS E EDUCAÇÃO BÁSICA: PROPOSTA


CONGREGADORA

Eloisa Nascimento Silva Pilati (UnB)

1. Introdução

O debate sobre o ensino de gramática na educação básica está presente no cotidiano


de professores e linguistas brasileiros há décadas. Quando se fala em ensino, além de
questões teóricas, estão presentes, inexoravelmente, temas pedagógicos, políticos,
curriculares, sociais e ideológicos. Também não podem ser desconsideradas as
propriedades do objeto a ser ensinado. Por isso, não existem respostas ou soluções simples
para as demandas da realidade, principalmente no que se refere ao ensino de línguas.
Ciente da complexidade do tema, retomarei a questão do ensino de gramática na
educação básica com base em pesquisas que tenho desenvolvido há alguns anos sobre o
tema e que tentei sintetizar em Linguística, Gramática e Aprendizagem Ativa (2017).
Neste capítulo, sigo um percurso distinto do de 2017, porque naquela obra não me detive
nas reflexões que estavam muito além do método que eu queria discutir e apresentar.
Neste momento, me dedico a investigar, com mais profundidade, conceitos e
pressuposições linguísticas que fazem parte do cenário brasileiro e tento refinar pontos
específicos de meu trabalho anterior. Minha proposta central é a de que, não obstante as
inegáveis contribuições dos estudos linguísticos brasileiros para o ensino de língua
materna, ainda há lacunas relevantes nas propostas vigentes e que tais lacunas têm
prejudicado o ensino de gramática na educação básica, uma vez que causam problemas
conceituais e pedagógicos.
A primeira questão que pretendo discutir é a necessidade de levar às salas de aula
da educação básica (e à formação de professores) estudos e textos que possam evidenciar
e explicar o caráter multifacetado das línguas humanas. Este caráter heteróclito é
amplamente conhecido pelos linguistas desde que foi explicitado, por exemplo, por
Saussure, no início do século XX, quando a linguística passou a receber um status de
ciência independente. Desde essa época, pesquisas linguísticas têm feito recortes teórico-
metodológicos de acordo com a faceta que pretendem estudar, algo comum no trabalho
científico. Esse recorte é necessário e importante para o progresso da área, no entanto ele
traz consigo uma contradição, porque, muitas vezes, até por uma questão de hábito, passa-
se, acriticamente, a tomar a parte pelo todo. Devido às distintas visões de língua que
caracterizam os diferentes campos de pesquisa linguística, é comum encontrarmos
definições de língua vinculadas apenas ao conceito de gramática, ou apenas aos conceitos
de texto e discurso. Ao pensarmos em transposições didáticas entre linguística e educação
temos de fazer explicações prévias para que não haja compreensões parciais ou
equivocadas. Por exemplo, se em nossas explicações iniciais sobre os fenômenos
linguísticos levarmos os alunos a pensar que o conceito de língua é equivalente apenas ao
de gramática ou apenas ao de texto estaremos apresentando a eles visões incompletas do
fenômeno em estudo e prejudicaremos sua compreensão sobre o todo. Podemos estudar
os fenômenos linguísticos sob diferentes óticas na sala de aula, mas temos de deixar claro
para nossos alunos os limites dos conceitos, recortes e métodos utilizados. Em síntese,
apesar de a linguística reconhecer o caráter multifacetado das línguas, visões
fragmentadas são as que prevalecem nos materiais didáticos e nos documentos oficiais,
com raras exceções. Tal fragmentação tem trazido problemas pedagógicos, didáticos e
conceituais e tem prejudicado tanto a formação de professores quanto o processo de
ensino e de aprendizagem de língua.
A segunda lacuna – que, na verdade, é uma consequência da primeira – é que o
próprio sistema linguístico, componente fundamental do que entendemos por língua
atualmente, não tem sido abordado de forma clara e precisa nos documentos oficiais. Dois
aspectos principais não têm recebido muita atenção: i) a característica inata do
conhecimento linguístico, fruto de uma faculdade típica da espécie; e ii) as propriedades
estruturais mais básicas desse sistema, sua sintaxe, seu “sistema de valores”
(compreendido não como lista de regras e, sim, como um sistema simples, gerativo).
Pesquisas desenvolvidas em várias áreas do conhecimento, tais como a genética, as
neurociências, a biologia, a psicologia, reconhecem a existência de um saber linguístico
inato e todos esses saberes estão ficando de fora do debate na escola, pelo fato de o
inatismo linguístico não estar entre os temas presentes como deveria, nem na formação
de professores, nem nos documentos oficiais, consequentemente, nem na escola. Neste
capítulo, nomearemos essa capacidade cognitiva de “Faculdade da Linguagem” e
defenderemos que esta habilidade toma forma no mundo real dentro de um sistema
computacional, ao qual damos o nome de “sintaxe”, nos termos da Teoria Gerativa de
Noam Chomsky (1986).
Esses temas – sistema linguístico (no sentido de estrutura linguística, gramática),
inatismo e Faculdade da Linguagem, dimensões relacionadas a aspectos biológicos e
psicológicos das línguas – têm relevância para o ensino de língua materna, porque
contribuem para a compreensão do próprio objeto de estudo. Também são importantes
porque promovem autonomia e autoestima linguística ao alterarem a hierarquia existente
entre normas gramaticais e conhecimento linguístico. Quando se passa a compreender
nosso saber linguístico como algo inato, passa-se a entender o conhecimento linguístico
como algo que nos pertence, como componente biológico indispensável à compreensão
do próprio conceito de humano.
Quando passamos a conhecer a hipótese do inatismo linguístico, entendemos, por
exemplo, que as línguas humanas se desenvolvem por meio da interação entre uma
faculdade inata e os dados do ambiente social. A partir daí fica mais fácil compreender
por que os bebês aprendem a falar tão rápido e por que as crianças criam tantas palavras
novas usando as estruturas de sua língua. Com base nesses conhecimentos, também
podemos argumentar que, principalmente no caso do ensino de língua materna, grande
parte do conhecimento linguístico é interna ao falante, e as gramáticas, normativas ou
não, são apenas descrições parciais desse saber.
Para discutir com mais detalhes os temas mencionados acima, este capítulo está
organizado da seguinte forma. Na primeira seção, retomo o pensamento de Saussure,
fundador da linguística moderna, que postulou as bases para o pensamento linguístico
atual e as questões relativas ao objeto de estudo da linguística. Na segunda seção, faço
um breve histórico das contribuições dos estudos linguísticos para o ensino de gramática
e de língua portuguesa. Na terceira seção, apresento algumas questões legais sobre o
ensino de gramática e discuto certos problemas decorrentes de formulações parciais dos
conhecimentos linguísticos atuais. Na quarta seção, retomo a questão das lacunas
existentes no ensino de língua portuguesa e apresento sugestões no sentido de contribuir
para a solução do problema e finalizo com algumas considerações.

2. A língua, objeto da linguística e objeto multifacetado

Sabemos que, desde a antiguidade clássica, filósofos gregos já se questionavam


sobre a natureza da linguagem e do pensamento. Apesar de as reflexões linguísticas
remontarem aos gregos, a linguística é uma ciência relativamente nova. Como se sabe,
foi a publicação do Curso de Linguística Geral, de Ferdinand Saussure, publicado em
1916, que inaugurou a linguística como ciência. Saussure é considerado o fundador da
linguística moderna por ter conseguido organizar e sistematizar os saberes de sua época,
dando forma ao “objeto de estudo da linguística”.
Em seu Curso, Saussure assume uma posição não preconceituosa acerca da matéria
que a ciência linguística irá estudar. Para o autor, interessam aos estudos científicos da
linguagem não apenas as formas consideradas belas e prestigiadas, mas as expressões
linguísticas de todos os povos.
Para Saussure, determinar o objeto de estudo da linguística é algo difícil pelo fato
de a linguagem ser multiforme e heteróclita, ou seja, por se constituir de elementos
variados. O autor ressalta que, no caso da linguística, pelo fato de estudarmos um objeto
complexo, “é o ponto de vista que cria o objeto”. O exemplo do autor é a palavra nu. Essa
palavra pode ser analisada sob três ou quatro pontos de vista distintos, dependendo da
maneira pela qual a palavra é considerada: como som; como expressão de uma ideia;
como correspondente ao latim nūdum...
A definição de língua de Saussure traz claramente uma visão multidimensional do
objeto. Vejamos:
[Língua] É ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e
um conjunto de convenções necessárias adotadas pelo corpo social para
permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Tomada em seu todo, a
linguagem é multiforme e heteróclita; a cavaleiro de diferentes domínios, ao
mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além disso ao domínio
individual e ao domínio social (SAUSSURE, 1994:17).

Vemos que o pai da linguística moderna já nos apresenta as diferentes facetas e


perspectivas dos estudos linguísticos: estrutural (conjunto de convenções), psíquica,
fisiológica, física, e pertencente tanto ao domínio individual quanto ao social.
Sobre a controvérsia de a língua ser algo adquirido ou convencional, Saussure
afirma que os linguistas estão longe de concordar nesse ponto, mas que “não é a
linguagem que é natural ao homem, mas a faculdade de constituir uma língua, vale dizer,
um sistema de signos distintos correspondentes a ideias distintas” (SAUSSURE,
1994:18). No entendimento de Saussure, haveria acima da língua uma “faculdade mais
geral” responsável por comandar os signos.
Não está entre os objetivos deste artigo discutir a fundo as ideias de Saussure, nem
as implicações do modelo teórico por ele proposto. O propósito de apresentar aspectos
pontuais do pensamento do autor é mostrar que, desde a fundação da ciência linguística,
houve o reconhecimento explícito do caráter multifacetado das línguas humanas.
Por ser um objeto de natureza multifacetada, os linguistas, cientistas que se dedicam
a estudar as línguas, desenvolvem estudos sob diferentes óticas. Seguindo a máxima de
Saussure, de que é o ponto de vista que cria o objeto, é possível investigar as línguas
humanas sob aspectos estruturais, psicológicos, físicos, sociais, discursivos,
experimentais, evolucionários, entre outros. Os diferentes modos de ver a língua
constituem as diferentes linhas de pesquisa atuais. Como exemplo de linhas de
investigação, temos a sociolinguística, a linguística textual, a linguística aplicada, a
análise do discurso, o gerativismo, a linguística histórica, a psicolinguística, a
neurolinguística, entre outras. Em cada uma dessas áreas, dependendo do tipo de relação
que se deseja estudar, faz-se um recorte metodológico.
Em síntese, esta seção, com base no pensamento de Saussure, apresentou alguns
conceitos fundadores da linguística como ciência, evidenciando o caráter heteróclito e
multifacetado do objeto em estudo. Não obstante os diversos recortes possíveis, é
consensual entender a Linguística como uma ciência que tem por objeto o estudo da
linguagem humana em seus aspectos estruturais – fonético, morfológico, sintático,
semântico –, sociais, biológicos e psicológicos.
Nas próximas seções, tentarei estabelecer uma relação entre ensino de língua
portuguesa, o pensamento de Saussure e intepretações e reflexões de alguns
pesquisadores brasileiros acerca de certos temas linguísticos.

3. Contribuições dos estudos linguísticos para a educação em língua materna

Conforme mostramos na seção anterior, a linguística moderna se constitui como


ciência em 1916, com a publicação do Curso de Linguística Geral. No Brasil, a linguística
foi implementada como disciplina dos cursos de Letras em 1962, ou seja, mais de
quarenta anos depois. Desde então, os estudos linguísticos têm contribuído
constantemente para a compreensão dos fenômenos do português do Brasil, da Língua
Brasileira de Sinais e das línguas indígenas presentes em nosso território.
As relações entre ensino de língua materna, gramática e linguística também têm
sido alvo de pesquisas e debates nas últimas décadas. Um dos temas que mobilizou os
linguistas brasileiros foi o combate a posturas puristas em relação à gramática a ser
ensinada nas escolas. Devido a aspectos relacionados à colonização do Brasil e à
legislação que obrigou a colônia a falar o português, era comum no país o ensino de uma
variedade linguística similar à variedade usada por escritores portugueses do século XIX,
tal como ainda se pode observar em muitas gramáticas. Essa postura taxava formas de
uso tipicamente brasileiras como incorretas e preconizava que se usasse nas escolas
exclusivamente a gramática portuguesa, com mesóclises, pronomes oblíquos átonos,
sujeitos nulos etc. Além disso, havia uma postura claramente preconceituosa em relação
ao fenômeno da variação linguística.
Vale dizer que a questão da norma apresenta vários avanços, mas ainda não foi
superada no país. Não há, por exemplo, um reconhecimento oficial do que se entenda por
“norma culta urbana brasileira”, mas, ao mesmo tempo, há inúmeras pesquisas e trabalhos
dedicados ao tema. As gramáticas pedagógicas têm aberto algum espaço para o estudo de
temas relacionados à variação linguística e às propriedades da gramática do português
brasileiro.
Mattos e Silva (2001) relata algumas das contribuições que os estudos linguísticos
deram para o ensino de língua portuguesa no sentido de modificar concepções incorretas
acerca do conceito de “norma” linguística.
Segundo a autora, a relação entre os compêndios gramaticais e a manutenção de
uma norma a ser seguida é muito antiga. Dionísio da Trácia, ao formular a gramática
helenística, já tinha entre seus objetivos o de fixar a língua que escritores da época usavam
para, assim, cultivar sua pureza.
A autora afirma que, somente no século XX, com os estudos estruturalistas, se
rompe com a precedência da língua escrita sobre a língua falada. Menciona ainda como
exemplo o estudo de Coseriu (1976), no qual o conceito de língua passa a ser
compreendido sob duas óticas: i) uma instituição social, com elementos não funcionais,
e ii) um sistema abstrato de oposições funcionais.
Coseriu propõe uma teoria triádica em que coexistem três conceitos: sistema, norma
e fala. Para Mattos e Silva (2001:21), o conceito de norma pretende captar o fato de que
aspectos sociais influenciam aspectos linguísticos. São aspectos, “normais”, repetidos na
fala das comunidades.
Para a autora, o estudo de Coseriu abriu caminho para que a língua passasse a ser
concebida como fenômeno histórico, o que estava excluído da proposta abstrata da
dicotomia saussureana. Considerando esse novo ponto de vista, a atestada
heterogeneidade dialetal brasileira devia ser levada em consideração na escola, que ainda
persegue um ideal normativo tradicional, desconsiderando muitas e variadas falas e
normas que chegam à escola.
Como um exemplo concreto das contribuições da linguística brasileira para a
compreensão da “norma brasileira”, Mattos e Silva (2001) cita o projeto NURC, liderado
por Ataliba Castilho, que reuniu professores de várias universidades brasileiras para
investigar a realidade oral da norma culta dos brasileiros e que tinha entre seus objetivos
o de “conhecer as normas tradicionais que estão vivas e quais as superadas a fim de não
sobrecarregar o ensino com fatos linguísticos superados”1.
Faraco (2008) também discute a questão da norma e do ensino de língua materna.
O autor, que se propõe a “desatar alguns nós” do ensino de língua materna no Brasil,
afirma que é necessário que apresentemos definições mais precisas sobre certos conceitos
linguísticos e reconheçamos “nossa cara linguística, delimitemos nossa norma culta
efetiva e que passemos a dar referências consistentes e seguras aos falantes em geral e ao
ensino de português em particular” (2008:29).
Em relação ao conceito de norma linguística, o autor também adota os preceitos de
Coseriu e conceitua norma como “determinado conjunto de fenômenos linguísticos que
são correntes, costumeiros, habituais numa dada comunidade de fala” (FARACO,
2008:32).
Para o autor, o conceito de norma não perde sua vitalidade quando transposto para
outros quadros teóricos. Sob a ótica gerativista, norma pode corresponder ao conceito de
gramática; sob a ótica variacionista, é produtivo equiparar norma à variedade. Para o
autor, numa comunidade estratificada como a brasileira, haverá inúmeras normas
linguísticas, como, por exemplo, as normas das comunidades rurais, as normas de grupos
juvenis urbanos, de periferias urbanas.
Faraco (2008) reconhece a face estrutural da norma. Para o autor, o fato de toda
norma apresentar uma organização estrutural deixa sem fundamento empírico certos

1
“O Projeto NURC, como passou a ser chamado, no Brasil, teve, desde o seu início, em 1970, o objetivo
de caracterizar a modalidade culta da língua falada em cinco centros urbanos, adotando-se, para isso,
critérios rigorosos que assegurassem o controle de variáveis e permitissem o confronto de dados, critérios
esses já estabelecidas para o espanhol. Este Projeto visa ao estudo da fala culta, média, habitual, através de
uma documentação sonora capaz de fornecer dados precisos sobre a nossa língua, respeitadas as diferenças
culturais de cada região. Procurou-se, desde o início, deixar claro que não se tratava de estudar uma norma
imposta segundo critérios externos de correção e de valoração subjetiva, mas sim de estudar uma
pluralidade de normas objetivamente comprovadas no uso oral - entendendo-se norma no sentido coseriano,
o que se disse e tradicionalmente se diz na comunidade considerada, admitindo variações externas, sociais
ou regionais, e internas, combinatórias e distribucionais. Seguiu uma linha teórico-metodológica apoiada
em princípios da sociolinguística quantitativa laboviana e da fonética experimental, fazendo uso de
programas computacionais de variação linguística (VARBRUL) e de análise acústica (ILS, CLS e
CECIL).” (Fonte: http://www.nurcrj.letras.ufrj.br)
discursos existentes no senso comum de que os analfabetos e os falantes de variedades
do chamado português popular falam “sem gramática”.
No que se refere às questões existentes entre ensino de gramática e normas, o autor
defende o seguinte:
A crítica à gramatiquice e ao normativismo não significa, como pensam alguns
desavisados, o abandono da reflexão gramatical e do ensino da norma
culta/comum/standard, refletir sobre a estrutura da língua e sobre seu
funcionamento social é atividade auxiliar para o domínio da fala e da escrita.
E conhecer a norma culta/comum/standard é parte integrante do
amadurecimento das nossas competências linguísticas e culturais em especial
às que estão relacionadas à cultura escrita. O lema aqui pode ser: “reflexão
gramatical sem gramatiquice e estudo da norma culta/comum/standard sem
normativismo” (FARACO, 2008:160).2

A proposta do autor para o ensino de gramática é a de que se levem em conta os


estudos gramaticais, de forma contextualizada e funcional (subordinados às atividades
que visam ao domínio das práticas da fala e escrita). O autor acrescenta que o estudo dos
conteúdos gramaticais “deve ser feito de modo a destacar a flexibilidade estrutural da
língua e a consequente riqueza expressiva à disposição dos falantes: nenhuma língua é
um conjunto rígido de expressões” (FARACO, 2008:162).
Quanto aos aspectos socio-históricos, o autor afirma:

Será preciso também compreender sua realidade sociocultural e histórica, i. e., a


língua como um conjunto múltiplo e entrecruzado de variedades geográficas, sociais,
estilísticas, de registros e de gêneros textuais e discursivos. Isso implica entender a
língua como diretamente correlacionada com a vida e a história dos diferentes grupos
sociais que a utilizam. Implica também desenvolver crítica aos preconceitos
linguísticos (que estão ainda tão arraigados entre nós no Brasil), estimulando práticas
positivas diante das diferenças e contribuindo assim para a reconstrução do nosso
imaginário nacional (FARACO 2008:162).

Como se percebe pela breve exposição feita nesta seção, os estudos linguísticos
brasileiros têm se dedicado a discutir as intrincadas relações existentes entre norma,
ensino e escola. No percurso apresentado acima, evidencia-se a tarefa dos linguistas no
sentido de desvincular o estudo gramatical feito na educação básica dos antigos preceitos
que entendiam gramáticas como meros repositórios de modelos eruditos e literários,
modelos do bem falar e do bem escrever. Num país como o Brasil, a língua oficial é a do
colonizador português; mas depois de 500 anos de miscigenação, já não se usa a norma
linguística de Portugal. Os linguistas se esforçam para apresentar para a sociedade
brasileira um quadro que represente as suas próprias variedades “standard, culta ou
padrão”, evidenciando as relações intrínsecas entre língua e sociedade e contribuindo para
a adoção de atitudes não preconceituosas em relação à variação linguística.
Ao mesmo tempo em que a riqueza das variedades linguísticas se constitui como
um rico tema de pesquisas, colocam-se novas questões para o ensino de gramática, entre

2
As definições de norma culta e norma padrão de Faraco são as seguintes:
“Variedades cultas são, em geral, variedades que ocorrem em usos mais monitorados da língua por
segmentos sociais urbanos, posicionados do meio para cima na hierarquia econômica e em consequência
com amplo acesso aos bens culturais em especial à educação forma e à cultura escrita” (FARACO,
2008:173); “Norma padrão: é um construto idealizado (não é um dialeto ou um conjunto de dialetos como
é a norma culta, mas uma codificação taxonômica de formas tomadas como um modelo linguístico ideal).
[...] Em geral, a fixação de certo padrão responde a um projeto político que visa impor uma certa
uniformidade onde a heterogeneidade é sentida como negativa” (FARACO, 2008:174).

elas: qual norma deve se ensinar na escola? Em outras palavras, considerando-se a
dimensão territorial do país e as diversas variantes linguísticas atestadas, qual variedade
adotaremos como norma? Ou adotaremos várias normas? Neste capítulo, não me deterei
nas respostas a essas questões, e as deixarei como sugestões para debates e pesquisas
futuras.

4. Mudanças na legislação e permanência do ensino de gramática nos moldes


tradicionais

Na seção anterior, vimos algumas das contribuições dos estudos linguísticos para
o ensino de língua materna. Nesta seção, veremos algumas mudanças de legislação que
foram fruto desses estudos e discussões.
Faraco (2008:186) nos explica que, já na década de 70, três fatores contribuíram
para que houvesse mais críticas ao ensino de gramática: o primeiro era a consolidação da
linguística como matéria universitária. Os linguistas negavam o estatuto de cientificidade
às categorias e aos conceitos das chamadas gramáticas tradicionais. O segundo fator foi
denominado como “euforia da era da comunicação”. Instalava-se à época, no Brasil, a
primeira rede nacional de televisão. O terceiro fator era o pensamento pedagógico
tecnicista que era promovido pelo governo militar, em que se buscavam resultados
imediatos e, para isso, não se devia perder tempo com o estudo de temas “supérfluos”,
tais como os estudados pela educação humanística tradicional.

Desaparece, então, do novo ensino básico de oito anos a disciplina língua


portuguesa, substituída por uma área que não inocentemente se chamava
“comunicação e expressão”. Em seus fundamentos conceituais defendia-se
uma pseudomodernização dos temas e dos procedimentos de ensino com
ênfase na eficácia imediata da comunicação. [...]
Em consequência boa parte dos livros didáticos deixou de incluir a gramática
que cedeu lugar a conceitos oriundos da teoria da comunicação. Reduziu-se
neles também o espaço da literatura a que cedeu lugar aos códigos visuais e às
histórias em quadrinhos. (FARACO, 2008:186)

Acho importante salientar dois aspectos trazidos por Faraco em relação ao ensino
de gramática. O primeiro é a crítica às gramáticas tradicionais, devido ao seu caráter não
científico. Considero essa crítica relevante, mas saliento que ainda hoje os livros didáticos
usados amplamente no país se baseiam nos mesmos conceitos e definições problemáticas
das gramáticas tradicionais. O segundo aspecto é a relação entre uma ideologia tecnicista
da educação e a retirada de temas humanísticos das escolas brasileiras, tais como a
literatura e a gramática. Essa forma de pensar sobre educação linguística, como bem
ressalta Faraco, se iniciou no regime militar, mas, como demonstrarei a seguir, foi
consolidada, por exemplo, nos Parâmetros Curriculares Nacionais, publicados no final
da década de 90, e ainda está presente, mantida e confirmada na Base Nacional Curricular
Comum de 2018.
Vejamos agora como contribuições de determinadas áreas dos estudos linguísticos
influenciaram os documentos oficiais formulados para direcionar o ensino de língua
portuguesa no Brasil. Analisemos inicialmente a definição de língua apresentada nos
Parâmetros Curriculares Nacionais:
[...] língua é um sistema de signos histórico e social que possibilita ao homem
significar o mundo e a realidade. Assim, aprendê-la é aprender não só as
palavras, mas também os seus significados culturais e, com eles, os modos
pelos quais as pessoas do seu meio social entendem e interpretam a realidade
e a si mesmas. (PCNs, 2000:22)

Em relação as orientações metodológicas, vemos:

O caráter sociointeracionista da linguagem verbal aponta para uma opção


metodológica de verificação do saber linguístico do aluno, com ponto de
partida para a decisão daquilo que será desenvolvido, tendo como referência o
valor da linguagem nas diferentes esferas sociais.
A unidade básica da linguagem verbal é o texto, compreendido como a fala e
o discurso que se produz, e a função comunicativa, o principal eixo de sua
atualização e a razão de ser do ato linguístico.
O aluno deve ser considerado como produtor de textos, aquele que pode ser
entendido pelos textos que produz e que o constituem como ser humano. O
texto só existe na sociedade e é o produto de uma história social e cultural. [...]
O homem visto como um texto que constrói textos. (PCNS, 2000:18)

Sobre as práticas pedagógicas:

Essa concepção destaca a natureza social e interativa da linguagem, em


contraposição às concepções tradicionais deslocadas do uso social. [...] Os
conteúdos tradicionais de ensino de língua, ou seja, a nomenclatura
gramatical e a história da literatura, são deslocados para um segundo plano.
O estudo da gramática passa a ser uma estratégia para a
compreensão/interpretação/produção de textos e a literatura integra-se à área
da leitura. (PCNs, 2000:18, grifo nosso)

Percebe-se nitidamente, no texto oficial, a influência dos estudos linguísticos


sociointeracionistas e a visão dos fenômenos linguísticos como eminentemente sociais.
Desde a definição de língua como “um sistema de signos histórico e social”, passando
pelas metodologias que consideram o “texto como unidade básica da linguagem verbal”,
atesta-se também a mudança de planos proposta para a nomenclatura gramatical e a
literatura como elementos que se colocam em planos subalternos em relação ao texto.
Não obstante as propostas feitas pelos PCNs, Faraco (2008:187) observa que o
ensino de gramática, de uma forma geral, continuou a ser feito regularmente nas escolas
sem que houvesse esforço para renovação ou crítica, sendo muitas vezes justificado “pelo
fato de ser conteúdo cobrado nos exames de acesso ao ensino superior”, argumento
adotado até os dias de hoje, em que muitos vestibulares e provas oficiais alteraram suas
formas de avaliação, privilegiando a compreensão e a produção de texto.

É certamente merecedora de análise aprofundada essa situação que, criada na


década de 70, persiste incólume até hoje, ou seja, a falta de comunicação entre
os sucessivos documentos oficiais que ora subtraem a gramática da
programação escolar ora a colocam em posição apenas acessória e a efetiva
prática pedagógica que a mantém em posição de destaque na escola.
(FARACO, 2008:187)

É muito intrigante a colocação feita por Faraco (2008). Na verdade, as opções em


relação à gramática parecem estar em dois extremos de um continuum: ou o ensino se
mantém normativo como nos moldes da década de 70, com definições de fenômenos
linguísticos bastante similares às das gramáticas tradicionais e com métodos baseados na
memorização e em atividades pouco reflexivas, ou as questões gramaticais passam a ser
temas quase proibidos nas aulas de língua portuguesa, com a presença dependente da
ocorrência ou não do fenômeno no texto analisado na sala de aula.
No caso da opção pela manutenção das aulas de gramática, o que se vê nos
materiais de consulta (gramáticas pedagógicas ou materiais didáticos) são os mesmos
conceitos linguísticos veiculados nas gramáticas tradicionais clássicas, apresentados de
forma mais resumida e colorida, exemplificados por meio de pequenos textos,
propagandas e tirinhas. Nesses casos, a diferença não está no conteúdo principal, mas
apenas na forma, não são mais usados como exemplos trechos de obras literárias e há um
esboço de uma metodologia dedutiva.
De acordo com a segunda opção, temas gramaticais são quase proibidos. Nos
casos extremos, argumenta-se que o ensino de gramática ou “não serve para nada”, ou é
um conteúdo que “não cai nos vestibulares”, ou que “língua é texto” e “gramática é apenas
um fato cultural e não merece lugar na escola, a não ser para o desenvolvimento do
espírito científico”. As discussões gramaticais somente irão ocorrer caso tenham sido
usadas num texto específico. Parece não haver lugar na aula de língua portuguesa, por
exemplo, para a sistematização de conceitos gramaticais e os temas gramaticais ficam
limitados à sua ocorrência em textos escritos e a certos gêneros.
Buscando contribuir com uma renovação nos estudos de gramática para a
educação básica e se propondo a rever problemas e conceitos incorretos ou inadequados
do ensino de gramática, Lobato (2014) aponta um novo caminho a ser trilhado:

Os Parâmetros Curriculares Nacionais decretaram o fim do ensino gramatical


tal qual é praticado atualmente no Brasil. No entanto, isso não significa uma
eliminação do ensino gramatical. A visão de gramática no ensino gramatical
atual é errônea, e é preciso, sim, a presença da gramática no ensino, mas sob
uma nova percepção. Caso se aceite essa posição, tem de haver uma difusão
geral dessa mudança de perspectiva sobre o que se entende por gramática e
ensino gramatical. Isto é, cada professor de ensino fundamental e médio tem
de assimilar o conceito de gramática como entidade biológica. (LOBATO,
2014:21)

Lobato (2014) defende que, para substituir a ideia de gramática como “manual”
externo ao indivíduo, passemos a entender gramática como entidade biológica, tal como
apresentado na Teoria Gerativa proposta por Noam Chomsky (1986, 2006, entre muitos
outros).
Noam Chomsky defende a hipótese de que seres humanos possuem uma
capacidade biológica, que lhes permite desenvolver a gramática de uma língua,
denominada Faculdade da Linguagem. Uma língua é o resultado da união de fatores
genéticos, uma predisposição característica da espécie, e de fatores do meio ambiente, ou
seja, a língua a que a criança é exposta durante a infância.
A Faculdade da Linguagem é entendida como um órgão biológico análogo aos
sistemas imunológico e digestivo, por exemplo. Esse “órgão” é composto basicamente de
um sistema computacional e de pelo menos um sistema sensório-motor e um sistema
conceptual-intensional.
Entre os argumentos elencados a favor da Faculdade da Linguagem, citamos os
seguintes, facilmente verificáveis na realidade empírica: todas as comunidades humanas
falam e as fases de aquisição de uma língua por crianças são relativamente uniformes
dentro da espécie.
É importante frisar que Chomsky fez um recorte no seu campo de pesquisa. Sua
teoria se propõe a investigar o funcionamento das línguas pelo ponto de vista internalista,
mental e não social. Por ser uma teoria que coloca entre seus objetivos principais o estudo
da organização das línguas humanas sob a ótica internalista e por entender que uma língua
se estrutura basicamente por meio desse sistema computacional, a teoria tem muito a
contribuir com uma visão dos fenômenos sintáticos guiada por critérios científicos e sobre
o saber inconsciente do falante, os processos de aquisição, além de questões neurológicas
e linguísticas, entre outros temas que ficam fora do escopo de estudos que pretendem
investigar, por exemplo, as relações entre textos e sociedade. Como argumentei na seção
anterior, não há problema nenhum em se fazer recortes ao estudar um objeto
cientificamente. As línguas humanas são objetos que podem ser analisados sob dimensões
muito distintas, e nossa ciência, criada há pouco mais de 100 anos, faz uso desse tipo de
opção metodológica.
Lucchesi (2014) traz uma reflexão importante sobre as variadas dimensões das
línguas humanas: i) a dimensão sociohistórica, alvo do estudo da Sociolinguística
Variacionista, que se preocupa em investigar os processos de variação e mudança
relacionados à estrutura linguística, e ii) a dimensão psíquico-biológica, estudada pela
corrente teórica da Gramática Gerativa, que tem a Faculdade da Linguagem como alvo
de estudo. Vejamos as ponderações do autor:

O fenômeno da linguagem humana se apresenta em duas dimensões


complementares e aparentemente inconciliáveis. Em sua dimensão psíquico-
biológica, a linguagem se apresenta como um sistema mental através do qual
os seres humanos transformam seus pensamentos em frases. Acredita-se que
tal sistema seja, em sua essência, o mesmo desde os primeiros Homo sapiens.
Sendo parte do patrimônio genético da espécie humana, está contido na
programação inata que possibilita a toda criança se tornar falante de uma língua
natural, não obstante a pobreza dos estímulos que recebe para isso (Chomsky,
1986). Em sua dimensão sociohistórica, o fenômeno linguístico se apresenta
como criação coletiva, refletindo as relações e a cultura de cada agrupamento
humano. Nessa condição, cada língua viva está em permanente estado de
mudança e as transformações que ela sofre resultam nas mudanças sociais e
culturais que se operam no âmbito da comunidade que a usa (Lucchesi, 2004).
[...] Abarcar essas duas dimensões do fenômeno linguístico, em uma mesma
teoria, ainda é um desafio que se coloca no horizonte da linguística.
(LUCCHESI, 2014:274)

Lucchesi (2014) apresenta o desafio a ser superado: uma ciência linguística que
contemple as duas facetas das línguas humanas. A reflexão do autor se faz no campo de
programas de pesquisa científica em que a resolução de problemas é sempre guiada por
hipóteses e princípios teórico-metodológicos. No estágio científico em que estamos, as
questões parecem ser inconciliáveis, mas, independentemente de questões teóricas, o fato
real é que seres humanos são biologicamente aparelhados para adquirir e desenvolver
uma língua, que é expressa por meio de um dado sistema organizado e que reflete as
relações sociais de um dado grupo. Essa realidade linguística não pode ficar de fora do
ensino de línguas.

5. Delineando uma proposta que evidencie o caráter multifacetado das línguas


humanas

Como visto nas seções anteriores, principalmente no que se refere aos documentos
legais, a visão sociointeracionista é explicitamente preferida. Já a perspectiva que defende
a dimensão biológica e psicológica das línguas está quase apagada das formulações
teórico-metodológicas. A adoção deste viés parcial é prejudicial ao ensino de língua
portuguesa na escola, porque duas dimensões básicas da constituição das línguas humanas
não podem ser conhecidas em sua plenitude pelos alunos: o saber linguístico como uma
habilidade inata, típica da espécie, e a forma que esse saber toma para ser realizado, sua
constituição sintática estrutural. Não há como se compreender o funcionamento de um
objeto multifacetado, por meio da análise de apenas algumas de suas faces.
Numa tentativa de organizar as ideias e conceitos discutidos nas seções anteriores
de forma mais didática e visual, elaborei a seguinte representação, que busca colocar
juntas as diferentes dimensões das línguas humanas:

Figura 1: Elementos constitutivos das línguas humanas: social-cultural, linguístico-estrutural, biológico e


psicológico.

A imagem acima traz quatro dimensões básicas das línguas humanas, numa
perspectiva congregadora e não parcial, tal como tenho defendido neste capítulo. Sermos
dotados de uma capacidade da linguagem é algo que nos caracteriza como Homo sapiens,
numa perspectiva biológica (apesar de sabermos que os Neandertais também possuíam
pensamento simbólico complexo)3. Essa faculdade humana possui uma dimensão
biológica, típica da espécie; uma dimensão estrutural (fonológica, morfológica, sintática
e semântica), cujas formas, estruturas compartilhadas, são usadas por nossa espécie para
expressar seu pensamento simbólico. Há também uma dimensão social e cultural, a qual
também é típica da espécie e que se relaciona aos usos linguísticos que fazemos em uma
sociedade cada dia mais complexa.
Considerando o fato de que a vertente social e cultural tem recebido maior
destaque nos documentos oficiais e na formação de professores, listo, a seguir, uma série
de argumentos a favor da inclusão e da valorização dos aspectos psicológicos e biológicos
das línguas para contribuir para a construção de uma visão multifacetada dos fenômenos
linguísticos.
O caráter multifacetado das línguas é base epistemológica da linguística moderna
e foi reconhecido desde que a linguística foi instituída como ciência. Apresentar uma
visão unidimensional de um fenômeno multidimensional negligencia, portanto, a
episteme do próprio campo do saber.

3
Ver, por exemplo, a matéria publicada na Revista Sapiens:
https://www.sapiens.org/archaeology/neanderthal-art-discovery/. Acesso em 01 de junho de 2018.
A dimensão psíquico-biológica das línguas possibilita o diálogo entre a escola e
os avanços científicos. Atualmente há inúmeras descobertas e trabalhos científicos que
confirmam a dimensão psíquico-biológica das línguas humanas4. Ao desconsideramos o
componente biológico das línguas humanas, privamos nossos alunos de conhecimentos
relevantes acerca de sua natureza humana e de descobertas da ciência contemporânea.
Além disso, conhecer a base psíquica-biológica e gramatical das línguas humanas:
– Facilita estudos interdisciplinares. O pensamento simbólico e a linguagem
caracterizam nossa espécie, sob o ponto de vista evolutivo, como Homo sapiens. Entender
as línguas humanas sob a perspectiva biológica propicia estudos interdisciplinares entre
línguas, história, biologia, sociologia, entre outros.
– Contribui para o combate ao preconceito linguístico. O saber linguístico e o
pensamento complexo colocam todos os seres humanos em um mesmo patamar.
Independentemente de fatores econômicos, sociais e culturais, todos os seres humanos
adquirem uma língua em etapas bastante uniformes, não importando o tipo de sociedade
em que vivam. Caem por terra afirmações preconceituosas, tais como a de língua mais ou
menos evoluída, mais fácil ou mais difícil, já que todas as línguas humanas são o produto
de uma capacidade compartilhada pela espécie.
A concordância nominal pode servir de exemplo para ilustrar de que forma a
compreensão das configurações estruturais de uma língua, vistas sob a ótica da Teoria
Gerativa, pode contribuir para estudos sobre variação linguística e para o combate a
preconceitos linguísticos. No Brasil, há um grande preconceito com relação ao uso de
variedades linguísticas em que a marca de concordância nominal está presente apenas no
elemento mais à esquerda, tal como em os menino, esses menino bonito. Muitas pessoas
acham que quem usa essas formas não sabe português, não sabe falar, não conhece a
“gramática” da língua. Esse tipo de pensamento é preconceituoso e infundado. Brasileiros
que usam essas formas linguísticas estão marcando a concordância plural na língua de
uma forma diferente, mais econômica, por assim dizer. Mas não é correto pressupor que
quem usa esse tipo de construção “não sabe português” ou que essa variedade linguística
apresente algum problema. Uma simples comparação com o inglês revela que há línguas
que podem inserir marcas de plural em apenas um dos elementos do Sintagma Nominal.
No inglês, língua que tem bastante prestígio social nos dias de hoje, usam-se formas
como: the boy, the boys, cuja tradução literal em português seria “o menino” e “o
meninos”, pois o artigo definido “the” não apresenta flexão de plural e mantém sempre a
mesma forma, quer esteja presente em um sintagma com um nome no singular (the boy),
quer esteja em um sintagma com um nome no plural (the boys). No sistema linguístico
do inglês, a marca de plural não está no artigo e, sim, no substantivo. No português não
padrão, ao contrário do inglês, a marca da flexão se apresenta apenas no artigo, tal como
em o menino, os menino. Ou seja, apesar de as variedades linguísticas em questão
apresentarem flexão de plural apenas em um dos elementos do sintagma – apenas no
artigo no caso do português não padrão, apenas no nome no caso do inglês –, o inglês é
considerado uma língua de prestígio, ao passo que o português coloquial ou popular é
considerado uma variedade linguística sem prestígio. Em síntese, a partir de uma
argumentação comparativa acerca dos diferentes padrões de concordância das línguas,
podemos argumentar com nossos alunos que tanto a variação linguística quanto a
apresentação de diferentes padrões de concordância são propriedades naturais das línguas
e que as ideias preconceituosas em relação a línguas “melhores” ou “piores”, “feias” ou
“bonitas” advêm de preconceitos relacionados a questões de caráter social.

4
Sobre o tema, ver, por exemplo, o artigo seguinte e as referências nele citadas: Hauser, Chomsky and
Fitch. “The Faculty of Language: What Is It, Who Has It, and How Did It Evolve?” Science 298, 1569
(2002).
– Valoriza os saberes dos próprios estudantes e de suas comunidades. A
informação acerca do vasto conhecimento que os falantes têm sobre a gramática de sua
língua também é importante para que se passe a valorizar as intuições linguísticas dos
falantes, o seu conhecimento prévio, para contribuir com a autoestima linguística e o
empoderamento dos falantes como sujeitos dotados de conhecimentos linguísticos por
natureza.
Quando partimos de uma concepção inatista das línguas humanas e da
compreensão da organização estrutural e sistemática desse saber, somos capazes de
perceber e de valorizar o conhecimento linguístico prévio do aluno e de sua comunidade.
Por exemplo, falantes do português brasileiro, quando usam formas como “Os menino
vai”, “Os meus cabelo”, demonstram um enorme conhecimento sobre a língua
portuguesa. Sabem o significado de vários itens lexicais, dominam a ordem interna dos
sintagmas nominais [artigo (+ pronome possessivo) + nome] e dos sintagmas verbais
[sujeito + verbo], não usam, por exemplo, [meus os cabelos] ou [Vai menino os], possuem
conhecimentos sobre o uso do plural dentro dessa variedade linguística sobre os
morfemas que designam plural na língua, usam tais orações dentro dos contextos
pragmáticos adequados etc. O único aspecto da variedade padrão que os falantes estão
desconsiderando é a concordância. Conforme argumentado acima em cada uma das
construções linguísticas apresentadas, há inúmeros aspectos que demonstram o
conhecimento dos falantes sobre sua língua materna. Esse saber tem de ser valorizado e
levado em consideração pelos educadores, assim como os aspectos que estão em
desacordo com a norma padrão podem ser apontados, apresentados e explicados de forma
pontual e objetiva aos estudantes, para que eles tomem consciência das diferentes
variedades de sua língua.
– Facilita a compreensão da própria língua. Os estudos linguísticos atuais, de
base gerativista, têm condições de apresentar os fenômenos linguísticos por meio de
definições mais claras e de critérios mais objetivos e completos. Esses estudos podem ser
úteis para levar os estudantes à compreensão do sistema linguístico de forma mais simples
e intuitiva, porque partem da compreensão de línguas como sistemas. Essa perspectiva de
ensino é capaz de auxiliar o aluno a refletir sobre os valores que organizam o sistema de
sua própria língua, usando sua intuição linguística.
– Colabora com o ensino de línguas. Sob o ponto de vista pedagógico,
conhecimentos gramaticais são relevantes para auxiliar os alunos em tarefas relacionadas
à produção e à análise de textos. A língua se organiza em estruturas linguísticas, em um
sistema linguístico; portanto, entender o funcionamento básico do sistema da sua própria
língua é importante para que se possa manipular os recursos linguísticos com mais
consciência e autonomia.
Para exemplificar de que forma a Teoria Gerativa pode contribuir com os dois
aspectos acima mencionados, iremos analisar a seguir o passo a passo de uma
representação arbórea básica. Apresentarei, de forma sintética, algumas contribuições que
uma reflexão que parta de pressupostos gerativistas que pode dar tanto para o ensino de
sintaxe da oração quanto para as práticas de produção e interpretação de textos.
Sob a ótica gerativista, uma oração com predicado verbal é representada da
seguinte maneira:

I – Inserção do verbo
Verbo
   |
vetou
II – Seleção dos complementos verbais

III – Seleção do sujeito (quando houver)

IV – Acréscimo dos adjuntos (quando houver)

Traduzindo a representação arbórea acima em palavras, temos: em estruturas de


predicado verbal, o verbo é o primeiro elemento da oração; a partir da inserção do verbo,
esse irá selecionar seus argumentos, pois é o predicador na oração. O verbo irá determinar
o número de argumentos da oração e o tipo sintático e semântico desses argumentos. Cada
verbo da língua possui um conjunto de informações ou, como dizemos na Teoria, um
feixe de traços, que o caracteriza sintática e semanticamente. No caso em discussão,
devido ao feixe de traços que carrega, o verbo vetar seleciona dois argumentos de tipo
nominal – [a lei] e [o presidente] –, os quais não poderiam ser elementos preposicionados,
como no exemplo a seguir: *Ao presidente vetou da Lei. Ao apresentar a oração
ressaltando aspectos de sua organização interna, podemos tornar os falantes mais
conscientes de, no mínimo, dois aspectos relacionados a seu conhecimento sintático: i)
conhecimentos sobre a formação da oração – o falante da língua sabe como os verbos da
sua língua se organizam, quais feixes de traços cada verbo carrega e com que tipo de
elementos esse verbo irá se relacionar –; e ii) os efeitos semânticos e sintáticos
decorrentes das escolhas lexicais feitas em todos os níveis da oração, desde a seleção do
verbo até a seleção dos demais elementos que comporão a oração. Desenvolver a
consciência dos falantes de uma língua acerca da importância dos efeitos semânticos,
sintáticos e discursivos das escolhas lexicais é muito importante. No exemplo acima, ao
usarmos o verbo “vetar”, estamos fazendo uma escolha lexical e essa escolha traz
consequências para os diferentes níveis de organização da oração, bem como gera
diferentes resultados discursivos. Analisemos construções formadas com outros verbos:
(1) a. O presidente vetou a lei a favor dos agrotóxicos.
b. O presidente proibiu a lei a favor dos agrotóxicos.
c. O presidente baniu a lei a favor dos agrotóxicos.
d. O presidente interditou a lei a favor dos agrotóxicos.
e. O presidente suspendeu a lei a favor dos agrotóxicos.

Podemos perceber que o uso de diferentes verbos traz diferentes efeitos de sentido
para as orações. Imaginemos um contexto em que toda a população do país é contra o uso
de agrotóxicos e o presidente opta por barrar a lei que favoreceria o uso ostensivo desses
produtos e que estejamos em um jornal escrevendo uma manchete. Qual oração seria a
melhor opção caso se desejasse beneficiar a imagem do presidente? Qual seria a opção
que passaria uma imagem de neutralidade para o jornal? Qual seria a opção que colocaria
o presidente como “o salvador da pátria”? Que opção nos passaria uma sensação de
situação transitória, que pode ser revertida? Com certeza os termos escolhidos causarão
diferentes impressões nos leitores. Esse tipo de reflexão pode auxiliar alunos na tomada
de consciência tanto de seus saberes gramaticais quanto dos usos e efeitos semânticos e
discursivos das diferentes formas linguísticas.
Enfim, neste artigo trouxe argumentos a favor de que sejam levados para a sala de
aula, de forma mais organizada e explícita, aspectos da dimensão estrutural, psíquica e
biológica das línguas humanas, além dos conhecimentos relacionados à dimensão textual
e social, que também são de suma importância para a formação de cidadãos conscientes
e com visão crítica da realidade. Por meio da apresentação das várias dimensões das
línguas humanas, poderemos preencher as lacunas apontadas no início deste capítulo –
desconhecimento acerca das múltiplas dimensões das línguas humanas, do saber
linguístico inato e do caráter sistemático do conhecimento gramatical.

6. Considerações finais

Neste capítulo, argumentei a favor da apresentação e maior evidenciação do caráter


multifacetado das línguas humanas tanto na formação de professores quanto nas aulas de
língua portuguesa na educação básica. Qualifiquei a proposta como “congregadora”
porque defendi que, além dos conhecimentos relacionados à dimensão textual e social,
sejam levados para a sala de aula aspectos da dimensão estrutural, psíquica e biológica
das línguas humanas.
Nós, que aprendemos com Paulo Freire que a prática educativa é necessariamente
uma prática política que se alimenta do horizonte da transformação da sociedade,
precisamos entender que cada uma de nossas escolhas, do terreno teórico às ferramentas
metodológicas, constitui ação política sobre nossa sociedade, ação que sempre traz
consequências ao conjunto da comunidade. Nos termos de uma educação emancipadora,
capaz de propor como norte a transformação social efetiva, considero essencial a
complexificação da visão sobre os objetos de estudo, visando a uma compreensão dos
fenômenos que seja capaz de abarcar a multiplicidade de suas determinações na realidade.
No caso específico do inatismo, considero que a escolha política por sonegar aos
alunos a oportunidade de compreender a linguagem como algo que lhes pertence como
componente biológico indispensável à compreensão do conceito de humano é uma
escolha pela mutilação de sua humanidade. Entendo que a luta por uma educação
emancipadora, urgente no contexto brasileiro contemporâneo, não pode desconsiderar
oportunidades de tornar cada vez mais rica a experiência do conhecimento sob pena de
nós, educadores, figurarmos como protagonistas na sonegação do direito básico a uma
educação rica e humanista em sentido amplo.
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