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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)


Cláudia Aparecida Marliére de Lima – Reitora

Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS)


Profa. Dra. Margareth Diniz – Diretora

Departamento de Letras (DELET)


Profª. Drª. Eva Ucy Miranda Sá Soto – Chefe

Programa de Pós-Graduação em Letras


Prof. Dr. Clézio Roberto Gonçalves – Coordenador

Comissão Organizadora Profa. Ma. Dayse Garcia Miranda (UFOP)


Prof. Dr. Paulo Henrique A. Mendes (UFOP)
Prof. Dr. Alexandre Agnolon
Profa. Ma. Eliana S. Machado (UFOP/EEDB)
Profa. Dra. Anelise Fonseca Dutra
Prof. Dr. Sérgio Raimundo E. da Silva (UFOP)
Profa. Ma. Dayse Garcia Miranda
Profa. Dra. Elzira Divina Perpétua (UFOP)
Profa. Dra. Ivanete Bernardino Soares
Profa. Dra. Soélis T. do Prado Mendes (UFOP)
Prof. Dr. José Luiz Vila Real Gonçalves
Profa. Dra. Ivanete Bernardino Soares (UFOP)
Marcus Vinícius Pereira das Dores
Profa. Dra. Viviane A. A. da Costa Pereira (UFPR)
Profa. Dra. Mônica Gama – Coordenadora
Profa. Dra. Jânia Martins Ramos (UFMG)
Ricardo José Alves
Profa. Viviane de A. Soares (POSLETRAS)
Profa. Dra. Soélis Teixeira do Prado Mendes
Prof. Dr. José Luiz F. de Souza Júnior (UFOP)
Prof. Dr. William Augusto Menezes (UFOP)
Conselho Editorial
Prof. Dr. José Luiz V. R. Gonçalves (UFOP)
Profa. Dra. Adriana Silvia Marusso (UFOP)
Profa. Dra. Kassandra da Silva Muniz (UFOP)
Prof. Dr. Alexandre Agnolon (UFOP)
Profa. Dra. Leandra Batista Antunes (UFOP) Comissão Editorial
Profa. Dra. Ana Paula Antunes Rocha (UFOP) Alexandre Agnolon
Profa. Dra. Leina Cláudia Viana Jucá (UFOP) Ivanete Bernardino Soares
Profa. Dra. Anelise Fonseca Dutra (UFOP) José Luiz Vila Real Gonçalves
Profa. Dra. Maria Antonieta A. M. Cohen (UFMG)
Prof. Dr. Bernardo N. de Amorim (UFOP) Designer Gráfico
Prof. Dra. Maria da Luz P. de Cristo (UFES) Vitor da Costa Borysow
Profa. Dra. Cilza Carla Bignotto (UFOP)
Profa. Dra. Maria Clara Versiani Galery (UFOP) Financiadores/Apoio
Prof. Dr. Clézio Roberto Gonçalves (UFOP) UFOP/ DELET/POSLETRAS/CAPES/FAPEMIG
Profa. Dra. Mônica Gama (UFOP)

ISSN 2595-0932
“Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita
coisa”
Diante da multiplicação de informações, da rapidez das opiniões, de tantas
certezas e pouca curiosidade, fomos buscar no gosto de especular ideias de Riobaldo,
personagem de Grande Sertão: Veredas, a frase tema do evento: "Eu quase que nada
não sei. Mas desconfio de muita coisa": construção do conhecimento no campo das
Letras. Essa filosofia da dúvida, presente em toda a prosa rosiana, pode ser vista
como uma lição para o sujeito que não respeita mais o poder da desconfiança, da
quietude, de um certo engajamento para ouvir o silêncio do cotidiano que pode dizer
mais que os numerosos textos aos quais temos acesso de forma acelerada e
superficial.
Em Grande Sertão: Veredas, o narrador, Riobaldo, um sertanejo sem
escolarização, conversa com um senhor, um doutor “assisado e instruído”, que
entrevista o narrador acerca do sertão. Mas, ao contrário de outras narrativas,
Riobaldo constrói um diálogo-monológico em que só ele fala: o doutor é emudecido
e ele, o ex-jagunço, na velhice, é quem toma a voz e a vez da narrativa. Sua sabedoria
vem de seu gosto por “especular ideia”.
O constante questionamento da personagem lembra o espírito Socrático,
aquele que sabe que nada sabe e, o mais importante, que quer aprender. Parte-se,
então, da dúvida para alcançar (trata-se de fato de um procedimento) o conhecimento.
Superando a doxa, é preciso compreender os limites da própria ignorância,
removendo as ideias preconcebidas.
Como se sabe, o método socrático é o diálogo: assumindo que nada sabe,
questiona-se o outro e a si mesmo. Riobaldo, o que nada sabe diante do doutor da
cidade (“invejo é a instrução que o senhor tem”), deseja nada menos que “decifrar as
coisas que são importantes”, mostrando ao outro, aos poucos, que é seu interlocutor
quem precisa aprender o gosto de especular ideia (“o senhor pense outra vez, repense
o bem pensado”)1.

1
Rosa, J. G. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1956. Note-se que,
além da comemoração de 60 anos de publicação desse romance rosiano, em 2016 relembramos os 400 anos
da mítica morte que uniria Cervantes e Shakespeare. Essa tríade da dúvida, Riobaldo, Hamlet e Quixote
são homenageados em nossa identidade gráfica, em criação de Vitor Borysow a partir de uma segunda capa
de Grande Sertão: Veredas.
Espantar-se diante da realidade, atitude instauradora do pensamento
filosófico, está na base da prática que sustenta a busca pelo conhecimento acadêmico.
Para a compreensão dos fatos da língua, para a reflexão capaz de produzir
conhecimento e para o respeito à diversidade inerente ao outro para transmitir esses
saberes (objetivos da Universidade), criar o gosto por especular ideias é o impulso
necessário. Assim, esse é ponto de partida para pensarmos os estudos sobre a língua
portuguesa em seus diversos aspectos, o ensino de língua e de literatura, as línguas
estrangeiras, a tradução e as expressões literárias.

Profa. Dra. Mônica Gama


Sumário
BH dos anos dourados: a biografia de Roberto Drummond em Hilda
Furacão (Adriano Almeida RAMOS)..................................................................... 4
Professor formador ou professor “forma(ta)dor”? (Alessandra H. B.
FUKUMOTO) .................................................................................................................. 17
O entre-lugar como dispositivo de leitura: uma aproximação a Nick
Carter se divierte, mientras el lector es asesinado y yo agonizo de
Mario Levrero (Alexander V. Belivuk MORAES) ......................................... 30
“Voluntariar”: uma escolha lexical (Aline Lima PINHEIRO) ................. 43
Murilo Mendes: um poeta-crítico, um crítico-poeta (Aline Novais de
Almeida) .......................................................................................................................... 57
O xenofilismo no conto um homem célebre (Ângela Queiroz
ANTONINI & Aurora Cardoso de QUADROS) ............................................... 69
O caso Molloy-Kamenszain-Menard (Ariele Louise Barichello
CUNHA) ............................................................................................................................ 81
Nostalgia e Trauma: a formação do indivíduo burguês (Augusto
Mancim IMBRIANI) .................................................................................................... 95
A Poesia Crítica e o Ensaio Literário: Contaminações em Ana C. (Berenice
Ferreira da SILVA) ................................................................................................... 106
A comunidade de escritores e os escritores-críticos (Bianca Magela
MELO) ............................................................................................................................ 120
(In) tolerância e preconceito linguístico no ciberespaço (Brenda
Chauane Edlene PEREIRA & Valter Pereira ROMANO) ........................ 131
Edições semidiplomáticas e fac-símiles de manuscritos setecentistas
do arquivo histórico de Pitangui-MG como fontes de pesquisa para a
história e a linguística (Charles Aquino ISHIMOTO & Thaís Franco de
PAULA) .......................................................................................................................... 147
A crítica antilírica de João Cabral de Melo Neto (Cleonice Alves de
Castro ANTUNES) .................................................................................................... 163
O “quem” da memória: viagem ao labirinto do sertão rosiano (Edinília
Nascimento Cruz)..................................................................................................... 175
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
Pensamentos que cantam (Eduarda da SILVA) ........................................ 185
A variação lexical no discurso metalinguístico: o caso do “Diccionario da
Lingua Brasileira”, de Luiz Maria da Silva Pinto (Estefânia Cristina da Costa
MENDES) ...................................................................................................................... 196
As Memórias de Graciliano Ramos Que Se Misturam ÀS De Seus
Personagens (Gabriela Pacheco AMARAL)................................................. 212
Maternidade, lei e trabalho: a identidade cidadã da luta feminina
(Gerlice Teixeira ROSA) ........................................................................................ 224
A importância do professor no processo de aproximação entre aluno
e literatura na biblioteca escolar (Gisleine de Oliveira TENÓRIO) 237
Poesia: sua importância enquanto perspectiva (des)construtiva para
a aula de língua portuguesa (Glauber Mizumoto PIMENTEL).......... 251
O epílio das Geórgicas IV: epos et elegia et didascalice (Heloísa Maria
Moraes Moreira PENNA) ...................................................................................... 262
O lugar da Escuta em Meu tio o Iauaretê (Henrique Rocha de Souza
LIMA).............................................................................................................................. 274
O ensino de libras para estudantes ouvintes: uma reflexão acerca da
formação de professores de libras (Isabelle de Araujo Lima e
SOUZA) .......................................................................................................................... 287
Carmina maior imago sunt mea: a criação do mundo nas
Metamorphoses e nos Tristia, de Ovídio (Júlia Batista Castilho de
AVELLAR) .................................................................................................................... 302
Monitoramento lexical em cartas oitocentistas: uma análise
semântica dos pronomes tu e você (Juliana Sander DINIZ) ............... 315
Diadorim Trans ? Performance, Gê nero e Sexualidade em Grande
Sertão: Veredas (Laísa Marra de Paula Cunha BASTOS) ...................... 330
O letramento crítico em avaliação de língua inglesa produzida por
professores em formação inicial (Lílian Aparecida Vimieiro
PASCOAL)..................................................................................................................... 343
Erotodidática e Entrelaçamento Genérico na Construção do Magister
Amoris em Ovídio: Arte de Amar, Remédios do Amor e Cosméticos
para o Rosto da Mulher (Marice Aparecida GONÇALVES) .................. 360

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Proposta de uma história crítica da Crítica Textual no mundo
lusófono (Marinês de Jesus ROCHA & Marcello MOREIRA) .............. 372
As digressões no Cinegético de Grattius Faliscus (Matheus
TREVIZAM) ................................................................................................................. 386
Política sociolinguística, cultural e étnica na Guiné-Bissau e sua
contradição (Rachido DJAU & Malam DJAU) ............................................. 399
Os escólios de um panegírico seiscentista: notas de uma ou para uma
leitura? (Raeltom Santos MUNIZO & Marcello MOREIRA) ................. 415
A dubiedade da persona de Safo (Rafael Guimarães Tavares da
SILVA) ............................................................................................................................ 428
A construção narrativa do golpe: considerações sobre a formação de
sentido político-discursivo no processo de impeachment da
presidente Dilma Rousseff (Rodrigo Seixas Pereira BARBOSA) ..... 440
“Deus era a palavra e a palavra estava com Deus”: Um percurso
estético-filosófico em “O Recado do morro”, de João Guimarães Rosa
(Rodrigo Vieira Ávila de AGRELA) .................................................................. 453
Experiências didáticas em Estilística: contribuições para o ensino de
Língua Portuguesa (Rony Petterson Gomes do VALE)......................... 471
Linguagem positiva no ensino de inglês: análise das estratégias de
negociação de imagem na sala de aula (Shirlene Bemfica de
OLIVEIRA).................................................................................................................... 480
As (inter)relações de identidade, memória e exotopia na
autobiografia Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva (Túlio Sousa
VIEIRA) .......................................................................................................................... 498
Fotografia e memória: A reconstrução do passado em W ou memória
da infância, uma foto e duas irmãs (Viviane BITENCOURT) ............. 513
Maurice Blanchot, Maria Gabriela Llansole as metamorfoses do vivo
(Zenaide Tamires Costa SANTANA & Telma Borges da SILVA)....... 526

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BH DOS ANOS DOURADOS: A BIOGRAFIA DE
ROBERTO DRUMMOND EM HILDA FURACÃO

Adriano Almeida RAMOS


Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais

Resumo: Nossa pesquisa objetiva identificar no livro Hilda Furacão,


de Roberto Drummond, como o autor construiu o espaço liminar de
BH ao longo do romance e observar como se configura a narrativa
enquanto biografia. Nossas reflexões demonstram de modo
recorrente que existem diversas pesquisas acerca desse livro que
abordaram a construção da narrativa e suas variantes. Identificamos
a necessidade de explorar o assunto para contribuir com as
pesquisas relacionadas ao tema. Assim, buscaremos ao longo deste
trabalho colaborar com a análise literária por meio desse novo
ponto de vista, que diz respeito à literatura na memória e vice-versa.

Palavras-chave: Roberto Drummond; Hilda Furação; BH; biografia.

Roberto Drummond – autor ou personagem?

Roberto Drummond viveu entre os anos de 1939 e 2002.


Nasceu em Ferros, Minas Gerais. Foi jornalista, escritor contista e
autor de livros bem sucedidos, como A morte de Dj em Paris (1971)
e Sangue de Coca Cola (1980), que, de acordo com (MIRANDA, 1999,
p. 424), ―São produto e imagem literária de um período histórico
caracterizado pela obstrução e pelo estruturamento das vias de
expressão de meios individuais e sociais transformadores‖.
As narrativas de Drummond misturam ficção e realidade por
meio de suas personagens, tanto as fictícias quanto as reais, que
também estão presentes na cidade de Belo Horizonte, representada
pelo livro Hilda Furacão que fez muito sucesso de crítica e vendas.
Teve suas personagens imortalizadas na minissérie homônima,
produzida em 1998, pela rede Globo de Televisão, fato que
colaborou com sua divulgação e ajudou a popularizar a magia e o
mistério presentes na narrativa.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
BH dos anos dourados: a biografia de Roberto Drummond em Hilda Furacão

Estudos apontam que a ficção construída por Drummond


fornece material de análise aos mais variados temas, como a
psicologia, economia, história, cultura, geografia, religião, ética,
moral, tradicionalismo, homossexualidade e prostituição, dentre
outros. Mas o que torna ―Hilda Furacão‖ relevante para a literatura
brasileira é o fato de Roberto Drummond ter inserido todos esses
elementos em um mesmo lugar, a cidade de Belo Horizonte, imersa
em uma cultura tradicional, e ao mesmo tempo permeada pela
modernidade crescente e a iminência da Ditadura Militar.
A história que se passa no final dos anos 1950 e início dos
anos 1960 narra a vida da ―garota do maiô dourado‖ que seduzia os
homens à beira da piscina do Minas Tênis Clube, um dos mais
conhecidos locais da zona Sul de Belo Horizonte.
Hilda Gualtier biografada por Roberto Drummond, de acordo
com relatos de amigos e conhecidos, era bela e esse fato causava
disputa entre os milionários frequentadores do clube.
Segundo o narrador, o cenário deste romance é uma ―Belo
Horizonte cheirando a jasmim e gás lacrimogênio‖ (DRUMMOND,
1991, p. 34), pois o rompimento de uma suposta democracia e a
instalação do Golpe Militar de 1964 eram momentos delicados que
faziam parte da história da cidade, do país e refletiam as
transformações que estavam por vir, no Brasil.
Com tantas transformações se aproximando, Hilda Furacão
se muda para o ―Maravilhoso Hotel‖ e esse é um fato relevante, pois
as classes desfavorecidas, representadas pelos ladrões,
desempregados, operários, travestis, homossexuais e prostitutas se
misturavam com os homens da Zona Sul e os coronéis vindos do
interior.E nesse encontro, o contrapeso da balança desleal que a
sociedade apresenta é a protagonista. A personagem define o tempo
de cinco anos que passará na rua Guaicurus e neste período, ela luta
junto por aquelas classes como se fosse o ―advogado do diabo‖,
apelido dado pela personagem Dona Loló Ventura.
Essa narrativa tem caráter particular e relevante no que diz
respeito à Literatura Brasileira, pois de acordo com os estudos de
Calegari (2009),

[...] há, no romance, referências à crise brasileira, à


miséria de segmentos populacionais devido ao descaso
da elite, à troca de governos mal-sucedidos, a
movimentos estudantis e da juventude católica, à
participação comunista, à prisão de deputados, a
assassinato de trabalhadores e de gente ligada à igreja, à

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decretação de atos institucionais, ao exílio de pessoas


perseguidas.(CALEGARI, 2009, p. 101)

Essa linha de raciocínio demonstra que o espaço da cidade


de Belo Horizonte serviu como cenário para que assuntos como os
que foram mencionados pudessem ser discutidos ao longo do
tempo.

1. Características de espaço em “Hilda Furacão”

Para discorrermos a respeito desse assunto é relevante expor


a definição de espaço, pois de acordo com (MASSAUD MOISÉS, 1974,
p. 26) ―O espaço vincula-se estreitamente ao tempo. [...] E o narrador
se sente livre para o fazer, sem qualquer respeito às leis da
verossimilhança‖.Essa concepção retoma a ideia da verossimilhança,
a que nos referimos anteriormente. De acordo com Moisés (1974, p.
26), ―O lugar dos acontecimentos vincula-se intimamente ao
anterior: o romance caracteriza-se pela pluralidade geográfica‖.
Nossos objetivos conferem a necessidade de observar os
espaços frequentados pela protagonista de ―Hilda Furacão‖, sob
aspectos diferentes, com foco no espaço liminar, pois segundo
Gouveia (2013),

A movimentação natural e cíclica da qual o ser humano


e o espaço por ele habitado participam faz surgir, talvez
involuntariamente, o espaço humanizado em que cada
transformação diz respeito a ambos, ao mesmo tempo
em que não seria possível sem a existência dessa relação
dialética aí estabelecida naturalmente. (GOUVEIA, 2013,
p. 90)

Esse raciocínio nos lembra o fato de que a protagonista pode


ser analisada de muitas maneiras, seja por seu comportamento, pela
mudança ao deixar uma vida de luxo para se prostituir em uma
parte obscura da cidade de Belo Horizonte, pelo seu relacionamento
com um homem santo, pelos seus desejos mais íntimos que
poderiam se tornar realidade, como acontece no momento em que
decide recompensar quem encontrar o par de sapato perdido, mas,
além disso, essas ideias colaboram com nossas intenções ao analisar
aspectos da liminaridade presentes na personagem Hilda Furacão.

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BH dos anos dourados: a biografia de Roberto Drummond em Hilda Furacão

2. Memórias de Drummond

No contexto da obra, a capital mineira atravessava um


momento social que foi retratado pelo narrador, pois é mostrada a
mudança política pela qual o país passava, em que uma suposta
democratização declinava aos autoritarismos da Ditadura Militar.
A ação transcorre em um cenário de modernização, de
transição de uma sociedade rural e coronelista, para uma sociedade
urbana-industrial. Assim, quando ocorre o encontro desses setores
da sociedade, firma-se a modernidade em Belo Horizonte. Naquele
momento, estudantes, comerciantes, policiais e milionários estavam
imersos nasmudanças da sociedade e na geografia urbana. A
modernidade trouxe avanços, conquistas e desafios, pois a
ocorrência de mudanças no espaço geográfico no centro de BH, fez
com que a cidade não suportasse as multidõese assim surgem os
aglomerados.
Os espaços da cidade eram ocupados pelos diversos tipos de
indivíduos que a habitavam. Outrolugar relevante para essa
pesquisa é a Rua Guaicurus, local que abrigava os marginalizados da
época, como prostitutas, operários e desempregados, por exemplo.
Segundo as ideias propostas pela narrativa, aquele espaço era o
centro das atenções, onde ficavam os hotéis, bares pensões e até o
lendário ―Maravilhoso Hotel‖.
O Brasil sofria tempos políticos difíceis e a iminência da
Ditadura Militar se aproximava. Nesse cenário, a Literatura servia
como instrumento de denúncia e junto com tantas esferas da
sociedade que se uniram para opor-se ao regime, manifesta-se a
jornalística, por meio dos romances-reportagens, quetinha como
foco principal denunciar e mostrar a realidade nos textos literários.
Nessa perspectiva de acordo com (MIRANDA, 1999, p. 423), ―O
desejo de suprir a história pela palavra literária e de ampliar o
circuito da leitura resulta na assimilação da linguagem jornalística
que informa a maioria dos textos do período‖.
Assim, a vertente jornalística representada por Roberto
Drummond conseguiu abranger o momento histórico ultrapassando
as fronteiras de Belo Horizonte e mostrou a fase vivida pelo país, ao
abordar perseguições, presos políticos, a força das classes
dominantes e o sonho de liberdade, por exemplo. Isso demonstra o
Brasil em sua totalidade.
Nesse cenário, o livro é produzido e toma conta do

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imaginário popular da cidade, o que, atualmente pode nos


confundir, se tentarmos observar Hilda Furacão enquanto realidade
ou ficção, romance ou denúncia.Essa narrativa fornece, inclusive,
uma forma de mostrar o fascínio pela protagonista, o folclore
causado por sua história e a idealização do poder feminino que essa
personagem representa.
Segundo relatos do autor, a personagem Hilda Furacão
frequentava espaços reais da cidade de Belo Horizonte que foram
retratados com riqueza de detalhes. Porém, é necessário observar
dois aspectos relevantes a respeito desse assunto.
O primeiro deles é o espaço geográfico, bem representado
pelas ruas, casas de família, hotéis, bares, clubes, igrejas, quartos,
bordeis e boates.
O segundo aspecto é mostrado pela maneira como Hilda
Furacão se comporta em cada um desses espaços, o que chamamos
de espaço liminar, pois esse termo diz respeito à trajetória
percorrida pela protagonista. O percurso realizado por ela é
marcado por sua presença em lugares controversos, mas que
convergem em sua figura. Essa ideia é observada, por exemplo, no
fato de que uma moça de família se tornar uma prostituta famosa,
mostrando que essa personagem foi construída de modo
polivalente.
Porém, também deve ser considerado que o espaço liminar
lida com pessoas ambíguas, como afirma (TURNER, 1974, p. 119), ou
seja, a liminaridade é atributo de personagens, como Hilda Furacão,
não estão nem lá, nem cá, elas estão no meio. E no caso da
protagonista, apesar de se tornar a prostituta mais famosa de Belo
Horizonte, alguns princípios adquiridos no convívio familiar
permanecem durante esse período de sua vida, como o fato de ser,
fina, educada, além de sonhar com o casamento.
Tais afirmações nos remetem a ideia uma investigação:
Afinal, Roberto Drummond está descrevendo a BH dos anos
dourados em que ele viveu ou trata-se de mera ficção? Este
questionamento merece reflexão, pois autor e narrador se
convergem na narrativa.
Segundo Massaud Moisés,

A ficção romântica enquadra-se nesse tipo de


composição, em que as aventuras não raro o ficcionista
concede mais atenção que à análise dos caracteres,
análise essa que constitui o objetivo fundamental do
romance. (MOISÉS, 2006, p. 177)
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BH dos anos dourados: a biografia de Roberto Drummond em Hilda Furacão

Tal afirmativa estimula a ideia de que a análise do livro


―Hilda Furacão‖ pode ser realizada do ponto de vista de duas
perspectivas. Na primeira delas, examinamos a narrativa enquanto
biografia, que ao contaros encantos de uma mulher que pode ter
existido e a cidade de Belo Horizonte em plena ascensão da
indústria e da modernidade. Outra possibilidade é analisar o livro,
enquanto romance biográfico, que se ocupa das aventuras do
narrador à procura de Hilda para sua reportagem no jornal ―Folha
de Minas‖.

3. A Liminaridade e o espaço liminar em “Hilda Furacão”

Primeiramente, apresentamos a definição de liminaridade,


pois (Turner, 1974, p. 120) afirma ―esse é um termo considerado
como um tipo específico de ritual, o que poderia ser chamado de
rito de passagem‖. O estudioso considera que a liminaridade, então,
pode ser definida como mudança de condição ou lugar, ou seja, ao
longo da narrativa as personagens podem ter as trajetórias
modificadas conforme o percurso desenvolvido durante a história,
ora podem ocupar determinado espaço físico, psicológico, cultural,
filosófico, etc.
Em outros momentos, ocorre uma mudança de lugar no
espaço, e esse trânsito, ou a transitoriedade é que caracteriza a
liminaridade defendida por Turner (1974) e bem ilustrada pelas
palavras do narrador,

[...] uma fila começava na Rua Guaicurus, subia as


escadas do Maravilhoso Hotel, e chegava ao terceiro
andar, espremia-se pelo corredor e parava na porta do
mitológico quarto 304, e dos fundos, gêmeos 303; era lá
que Hilda Furacão fazia a loucura dos homens.
(DRUMMOND, 1991, p. 38)

As teorias mencionadas são aliadas às nossas expectativas,


uma vez que intencionamos apresentar a liminaridade em ―Hilda
Furacão‖. Esse pensamento pode ser ilustrado pela figura da
personagem Roberto Drummond que deixa Santana dos Ferros, sua
cidade natal, no interior, para viver em Belo Horizonte, uma cidade
moderna, industrializada e charmosa.
Considerando o conceito de liminaridade, essa personagem
está entre a cidade natal e a capital mineira, ou seja, está

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Adriano Almeida RAMOS

exatamente no meio entre uma e outra o que reforça o conceito


apresentado. Assim, se faz necessário realizar uma leitura acerca do
espaço liminar e para alcançar esse objetivo, discorreremos dos
espaços no livro.
O primeiro deles refere-se ao espaço geográfico representado
por Belo Horizonte ao atravessar um período compreendido entre o
final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Naquele momento, o
centro da cidade estava recheado por diversos tipos de pessoas,
desde os migrantes do interior, passando pelos operários, travestis,
prostitutas até os coronéis e milionários que ali se misturavam por
causa da figura de Hilda. O que significa dizer que a capital era um
ponto de convergência entre o meio rural e urbano, pois abrigava
pessoas desses diferentes ambientes e isso pode contribuir para
entendermos melhor a liminaridade presente no livro.
Nossos estudos apontam que aquele período ficou marcado
pelo início da industrialização na capital mineira e por essa razão
variadas classes sociais viviam na cidade. Segundo Calegari (2009),

Arrivistas, ambiciosos, ou apenas sonhadores, inúmeros


homens e mulheres, especialmente jovens, buscavam
um lugar ao sol na nova ordem capitalista que se forjava
no país. Muitos triunfavam no comércio, na indústria,
nos serviços. Outros, entretanto, fracassavam, em geral
devido à sua precária formação educacional, vindo, com
isso, a constituir núcleos marginalizados. (CALEGARI,
2009, p. 103)
Essa concepção exemplifica a agitação social pela qual
passava a cidade de Belo Horizonte nos propiciando examinar
outros tipos de espaço observados em meio a essa movimentação.
Outro espaço geográfico favorável à construção do social nesse livro
pode ser representado pelas ruas da capital mineira, ao indicar
lugares como a ―rua Curitiba‖, sede do ―A Folha de Minas‖, local
onde trabalhava Roberto Drummond; ―o quartel da polícia militar‖
no Bairro Santa Efigênia, no qual ―Drummond‖ ficou preso e ―O
Convento dos Dominicanos‖, no Bairro Mangabeiras, onde ―Frei
Malthus‖ vivia e no decorrer do romance, passaria por toda a
angústia representada pela dor de viver ou não seu amor com a
protagonista. É um local de autoflagelação em que o jovem santo
tentaria sair do pecado. Esses espaços demonstram uma
característica em comum, pois todos eles pertencem ao meio urbano
representado por Belo Horizonte e essa categoria em ―Hilda
Furacão‖ é expressiva.

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BH dos anos dourados: a biografia de Roberto Drummond em Hilda Furacão

Essa contradição entre modernidade e tradicionalismo


podem ser considerados espaços presentes em uma mesma Belo
Horizonte graças ao movimento que a cidade representa. Se de um
lado temos personagens ligados à tradição como, Dona Loló
Ventura, padres, namoradas e noivas de outro lado existem
personalidades, como ―Cintura Fina‖, travesti famosa e polêmica
que batia em policiais e ―Maria Tomba homem‖, que agredia os
homens, ou seja, essas duas personalidades representam temas
modernos de maneiras diferentes, pois ―Cintura Fina‖ era um
homem travestido em mulher, considerado um escândalo para os
padrões morais daquela época. Por sua vez, ―Maria Tomba Homem‖,
era uma homossexual que se comportava como homem. Suas
atitudes não condiziam com as mulheres da época, o que fez com
que ambos se tornassem personagens folclóricas da Zona Boêmia da
cidade.
Hilda Furacão se comporta de forma similar ao processo
mencionado, pois ela troca o conforto da ―Zona Sul‖ por um quarto
na rua ―Guaicurus‖, o que demonstra que a personagem não se
preocupa em se prender aos valores tradicionais que lhe foram
apresentados, mas que compartilha com alguns desses valores,
como o casamento, por exemplo.
Além disso, o conceito de liminaridade também está
presente na protagonista enquanto elemento intermediário entre o
―Minas Tênis Clube‖ e o ―Maravilhoso Hotel‖, pois enquanto um é
frequentado pela mais alta classe da sociedade, representada pelos
coronéis e homens nobres de Belo Horizonte, o outro serve como
local de trabalho para prostitutas e está localizado na parte mais
pobre da cidade, o que nos leva a pensar nas características de Hilda
Furacão enquanto representatividade mediana entre esses dois
espaços, pois ela os ocupa mas não pertence a nenhum deles.
Isso também ilustra que Belo Horizonte convivia com a
modernidade e tradição, pois enquanto o ―Minas Tênis Clube‖ pode
ser considerado com um local que representa a modernidade, os
jogos, a juventude e o requinte da cidade, o ―Maravilhoso Hotel‖
exemplifica a escória da sociedade, os desfavorecidos e pobres que
não contribuem para que a cidade seja moderna. Mas, essa é uma
visão superficial, pois ao realizarmos uma análise mais detalhada
percebemos que a imagem do ―Maravilhoso Hotel‖ é irônica porque
apesar de estar em uma localidade relativamente pobre, também é
frequentado pelos poderosos da cidade e do interior, o que mexe
com a economia da cidade e colabora para a industrialização da

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Adriano Almeida RAMOS

capital. Nesse sentido, aquele espaço era frequentado por todas as


classes sociais, desde que pagassem pela companhia da jovem
prostituta.

4. Biografia ou autobiografia?

Tento em vista os propósitos de nossa pesquisa, procuramos


delimitar o tema ―espaço liminar‖, presente no livro ―Hilda Furacão‖
e como intuito de tornar o tema escolhido mais próximo dos
nossosobjetivos, recorremos a estudos relacionados ao romance
autobiográfico, biográfico e ao espaço literário.
Nossas discussões indicam a necessidade de refletir acerca
do romance enquanto biografia. Para reforçar essa ideia, recorremos
aos estudos da literatura clássica. Uma vez que autores como
Brandão (2005) apontam a necessidade de investigação a respeito do
papel que o narrador exerce em uma obra. Para o estudioso,

O derradeiro enquadramento define-se, [...] por uma


ligeira referência ao próprio escritor: no livro de Antônio
Diógenes, em carta que ele escreve e assina com seu
nome [...] no final da obra, quando o autor, que
sintomaticamente evitara o uso de um prólogo, assina o
livro no breve epílogo anteriormente referido.
(BRANDÃO, 2005, p. 128.)

Essa perspectiva de enquadramento ilustra que o assunto


ligado à tentativa de diferenciar texto biográfico de autobiografia
vem sendo discutida desde a literatura clássica até a
contemporaneidade. Bakhtin (1997), por exemplo, mostra como esse
tema pode ser discutido se levarmos em consideração a Idade
Média. Segundo o autor,

[...] Vamos agora examinar a autobiografia, seu herói e


seu autor. Formas intermediáriasoriginais, marcadas de
contradições internas, que levam da confissão à
autobiografia, aparecem no fim da Idade Média (que
ignorava os valores biográficos) e no início
doRenascimento. (BAKHTIN, 1997, p. 164.)

Esse raciocínio é considerado por Faraco e Moura(1999, p.


403), que confirmam: ―Gênero até então raro em nossa literatura [...]

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 12


BH dos anos dourados: a biografia de Roberto Drummond em Hilda Furacão

emergiu com força na década de 70." Os autores se referem ao


romance biográfico para apresentar essa definição.
Por outro lado, para entendermos melhor o romance
autobiográfico, que se apresenta em―Hilda Furacão‖, recorremos aos
estudos de Sexto, pois o autor afirma,

O romance Hilda Furacão é uma obra autobiográfica, na


qual o autor fez o uso de recursos memorialistas e
intimistas, utilizou-se de um narrador-personagem,
portanto em primeira pessoa, realizou um apanhado dos
principais fatos de sua vida e, através da lembrança e do
instituto da saudade, privilegiou alguns fatos e deixou
outros à sombra, por fim criando uma personagem
fictícia que ultrapassou as páginas do livro e se
perpetuou no imaginário popular dos leitores
brasileiros. (SEXTO, 1997, p. 6)

Essa ideia mostra que, apesar de ser uma personagem


fictícia, Hilda Furacão tem traços da realidade, o que a torna
verossímil, e é relevante o fato de o estudioso considerar a narrativa
como uma autobiografia de Roberto Drummond que revela pelo uso
da memória do narrador-personagem, fatos que vão desde sua
própria infância em Santana dos Ferros até a vida adulta em Belo
Horizonte.
Seguindo pela mesma linha de pensamento, Leite (2005)
contribui com nossas reflexões, já que a autora faz considerações a
respeito do narrador-testemunha. Para ela,

O NARRADOR-TESTEMUNHA dá um passo adiante rumo


à apresentação do narrado sem a mediação ostensiva de
uma voz exterior. Ele narra em 1ª pessoa, mas é um ―eu‖
já interno à narrativa, que vive os acontecimentos aí
descritos como personagem secundário que pode
observar, desde de dentro, os acontecimentos, e,
portanto, dá-los ao leitor de modo mais direto, mais
verossímil. (LEITE, 2005, p. 37)

Essas reflexões colaboram com nossas expectativas, pois


buscamos demonstrar a narrativa de Drummond na perspectiva
autobiográfica. Por esse motivo, a verossimilhança torna-se aliada
dessa discussão. Para Faria e Ramos (2013, p. p. 1807), ―a obra do
poeta não consiste em contar o que aconteceu, mascoisas que
podiam acontecer, possíveis no ponto de vista da verossimilhança‖.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 13


Adriano Almeida RAMOS

Os estudos de Bakhtin (1997) acenam para a possibilidade de


diferenciação entre romance biográfico e texto biográfico, pois
enquanto o primeiro ocupa-se da reprodução do real e os
acontecimentos são narrados como um espelho da realidade; o
segundo centraliza-se na vida social e familiar, em comportamentos,
na guerra e em relações com amigos. Segundo o autor,

Entendo por biografia ou autobiografia (narrativa de


uma vida) uma forma tão imediataquanto possível, e que
me seja transcendente, mediante a qual posso objetivar
meu eu e minhavida num plano artístico. (BAKHTIN,
1997, p. 165)

Essas reflexões demonstram que Roberto Drummond deixou


margem para que seu livro fosse analisado sob pontos de vistas
diferentes pela concepção de biografia ou autobiografia, como
mencionado anteriormente. Para Sexto (2010, p. 13), ―a
autobiografia é [...] uma eventual coincidência entre a personagem e
o autor nela [...] o autor é elemento do todo artístico‖. O autor
utiliza os estudos de Bakhtin (2003) para mostrar as diferenças
entre os dois termos. Para ele, ―[...] na biografia, o autor está
próximo do protagonista, pode ter conhecido o biografado, ou ter
interesse em sua vida e realizado exaustiva pesquisa sobre a vida da
pessoa biografada‖.
A ideia colabora com as discussões mencionadas até aqui,
pois se analisarmos ―Hilda Furacão‖ enquanto autobiografia será
necessário examinar a construção da personagem ―Roberto
Drummond‖, enquanto autor que narra os principais
acontecimentos da própria vida. No entanto, se a leitura realizada
for pautada na biografia, pode ser feito um estudo acerca do modo
como o autor descreveu os acontecimentos na vida da protagonista
que pode ou não ser uma personagem real. Nesse sentido, o
romance fornece material para análise das duas perspectivas, o que
o torna ainda mais relevante, instigante e expressivo para a
literatura contemporânea brasileira.

Considerações finais

A leitura do livro nos permitiu identificar aspectos variados,


até então, carentes de análise e estudos. O que contribuiu para a
delimitação do tema proposto e os objetivos esperados pela

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 14


BH dos anos dourados: a biografia de Roberto Drummond em Hilda Furacão

pesquisa.
As reflexões realizadas mostraram que Roberto Drummond
eternizou a personagem ―Hilda Furacão‖ utilizando elementos que
causam fascínio, pois o autor se apropria de espaços, como a cidade
de Belo Horizonte e sua Zona Boêmia que tem representatividade
quanto à magia, ao mistério e a outras questões que fizeram do
livro uma obra, relevante para a literatura contemporânea.
Nesse sentido, ao realizarmos a análise, tentamos observar
as possibilidades que vão desde o título até a última linha do livro,
ou seja, utilizando a história do Brasil, especialmente o espaço
geográfico de BH como pano de fundo, Roberto Drummond
conseguiu discutir questões ligadas aos mais variados assuntos.
Como se não bastasse o amor entre uma prostituta, ex-moça de
família e um religioso; o autor ainda discutiu elementos do
cotidiano e que são atemporais como as disputas de classes, o
homossexualismo, a religião, a política, o romance, a cultura, além
das denúncias acerca da Ditadura Militar. Tudo isso, nos levou a
pensar nesse livro sob outra ótica, a do espaço liminar, pouco
observado por outros autores, até então.
Através dessa afirmação, identificamos a necessidade de
realizarmos a investigação sobre o assunto e percebemos que
outros autores falavam a respeito de liminaridade e apresentavam
definições possíveis para o termo, mas que não havia estudos nessa
perspectiva a respeito do livro escolhido para nossa análise.
Logo, nossos objetivos foram atingidos, mas enxergamos
novas possibilidades a partir da realização deste trabalho o qual
pode ser considerado como fator favorável para outras pesquisas
que possam ser realizadas a partir dele. Consideramos ainda, que
Hilda Furacão mexe com o imaginário popular porque o próprio
Roberto Drummond nunca confirmou se ela existiu na realidade,
mas levando em consideração os conceitos de verossimilhança,
nossos propósitos foram alcançados e o livro continuará em foco
por muitos anos. Nossa intenção não é esgotar o assunto, pelo
contrario, lançar outro olhar sobre o romance Hilda Furacão, o da
perspectiva biográfica e autobiográfica.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 15


Adriano Almeida RAMOS

Referências

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Cultural, 1978.364p.

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Fontes, 1997. 414p.

BRANDÃO, Jacyntho Lins. A invenção do romance. Brasília: Universidade de


Brasília, 2005.291p.

CALEGARI, Lisandro Carlos. Do social ao estético: notas sobre ―Hilda


Furacão‖, de Roberto Drummond. Recebido em 4 de agosto de 2009 /
Aprovado em 10 de dezembro de 2009. 15p. Universidade Regional
Integrada, Frederico Wesphalen, Brasil.

DRUMMOND, Roberto. Hilda Furacão. 12ª. ed. São Paulo: Siciliano, 1991,
298p.

FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto. Literatura brasileira. 10ª.


ed. São Paulo: Ática, 1999. 463p.

FARIA, Giane Cristina C. P. ; RAMOS, Adriano Almeida. ; FONSECA, Eliane G.


S. O uso das analogias no ensino de língua portuguesa à luz da teoria de
Vygotsky e Bakhtin. 2013 AnaisUFSJ. ISSN: 2318-4108. p. 1802-1808

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O Foco narrativo. 10ª ed. São Paulo: Ática.
2005.96p.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 20ª ed. São Paulo:Cultrix,


2006. 358p.

______. Dicionário de termos literários. p. 49, São Paulo: Cultrix, 1974.

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Paulo: Cultrix, 2013.

SEXTO, Tévie Alves da Silva. Hilda Furacão, um romance autobiográfico.


2010. 51p. Estudos literários – Universidade de Passo Fundo (UPF), Passo
Fundo-RS, 2010.

SILVA, Gustavo Noronha. Liminaridade e Communitas em Victor Turner.


Disponívelem:http://old. kov. eti.
br/cienciassociais/cienciassociais/ensaios/antropologia/liminaridade.pdf.
Acesso em: 07jun. 2015.

TURNER, Victor. Liminaridade e communitas, Petrópolis – RJ:Editora


Vozes,1974.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 16


PROFESSOR FORMADOR OU PROFESSOR
“FORMA(TA)DOR”?

Alessandra H. B. FUKUMOTO
USP

Resumo: Tomando como base a discussão de Coracini (2003) sobre


a abordagem reflexiva na formação do professor de língua e o que
ela chama de professor ―forma(ta)dor‖, discutiremos o atual
percurso de formação dos docentes de língua estrangeira (LE),
buscando colocar em discussão a utilidade do uso do Letramento
Crítico na sala de aula de LE, onde o professor assuma o papel de
agente de letramento, como uma possibilidade de oferecer novas
leituras de mundo e novos posicionamentos a partir da LE que
acabem por afetar e (re)posicionar as alunas e os alunos na própria
língua materna. Para tanto, reproporemos a questão: estamos nós,
docentes de LE, prontos para oferecer aos nossos alunos um
ambiente crítico e que estimule o exercício da cidadania?

Palavras-chave: Ensino de língua estrangeira; Letramento crítico;


Formação de professores.

O professor forma(ta)dor

É na década de 1990, segundo Coracini (2003), que o


interesse em um professor reflexivo (na abordagem reflexiva, ou
ensino reflexivo) começa a ganhar espaço. Com a expansão da
prática, sendo vista como uma das mais relevantes para a formação
(inicial ou continuada) de professores e sua aplicação cada vez mais
frequente nos percursos formadores, começam também as
tentativas de sistematização dessa prática reflexiva, levando a
utilizar exatamente os meios antes condenados por ela. Essas
tentativas de sistematização da reflexão, com modelos que sugerem
como, quando, onde ela deva ocorrer, acabam por inseri-la em um
―sistema‖ controlável, no qual a reflexão dos sujeitos envolvidos é
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 17
Alessandra H. B. FUKUMOTO

guiada. Coracini (2003) afirma que uma abordagem que pretende


desenvolver a criticidade não poderia propor modelos e atividades
controladas. Ainda segundo a autora, o que diferenciaria essa
prática das que a antecederam seriam as relações de poder que
antes eram bem explícitas e que passam a ser camufladas por uma
política da afetividade. Dizemos, por exemplo, que o ensino agora é
centrado no aluno, mas ainda é o professor quem detém o turno
conversacional pelo maior tempo na sala de aula, assim como ainda
é dele a voz que abre espaço para a fala dos estudantes. Nos
questionamos, portanto, se o processo formativo do professor de
línguas tem nos estimulado a ser críticos ou a ser bons aplicadores
de abordagens e metodologias. O que nós, professores de língua
estrangeira (doravante LE), fazemos quando vamos para a sala de
aula?
Coracini (2003) aponta a impossibilidade de se ser um
professor autônomo e emancipado. Isto ocorre primeiro pelo
próprio controle do Estado sobre os currículos escolares (que não
levam em conta as variantes regionais, por exemplo) e as avaliações
nacionais (como, por exemplo, o Enem) e, também, porque os
próprios professores formadores pensam a prática reflexiva dentro
do ―sistema controlável‖, direcionando o processo reflexivo desses
professores em formação (inicial ou continuada), ou seja, eles
próprios não estão refletindo sobre as suas práticas docentes.
Ainda conforme a autora, para que o processo de reflexão
crítica possa acontecer, é necessária a autonomia. E, para que haja
autonomia, é imprescindível o exercício do que ela chama de
―autoconhecimento de si‖.

Como, então, falar de autonomia, independência,


liberdade, se o professor continua na dependência direta
de outros para bem elaborar sua prática e construir
alunos críticos, segundo modelos preestabelecidos, mas
aceitos por todos como eficientes e ideais? (CORACINI,
2003:324).

Acreditamos que uma das formas de estimular o


autoconhecimento de si e a conscientização do professor em
formação – e também do professor já em exercício – é fazê-lo
entender seu papel no processo identitário do aluno. Isso inclui o
seu processo de formação como cidadão crítico-reflexivo. Quanto do
papel social dos professores (mais especificamente, os de LE) é
discutido dentro do nosso percurso de formação?
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
Professor formador ou professor “forma(ta)dor”?

A importância da LE e do professor de LE

A discussão sobre desvalorização docente não é nova, mas


faz-se cada vez mais necessária diante do cenário que se apresenta
atualmente, com uma reforma no ensino médio feita através de uma
Medida Provisória, por exemplo. Como docentes de LE, sofremos
ainda a desvalorização dentro do nosso ambiente de trabalho. A
língua estrangeira costuma ser vista como um complemento à grade
curricular, e, mesmo entre as pessoas do nosso meio, ainda se
valoriza o mito do ―falante nativo‖, do mesmo modo que ainda
existem escolas e institutos de LE que preferem contratar falantes
nativos a professores com ampla formação na área. Coracini (2003)
aponta a reprodução do estereótipo carregado nos dias atuais: o de
um professor desatualizado, acomodado, que busca receitas
prontas. Kleiman (2006) discute a necessidade de mudarmos as
representações do que é ser professor, a fim de podermos formar
professores que façam a diferença.
Acreditamos que muito dessa desvalorização decorre do fato
de que, mesmo entre os próprios professores de línguas
estrangeiras, pouco se fala sobre a importância de seu papel na sala
de aula. Pensando nisso, gostaríamos de levantar três pontos que
consideramos cruciais de serem trabalhados no processo de
formação dos professores de LE.
O primeiro ponto é a importância das línguas estrangeiras
como espaços de estímulo ao respeito ao outro e às diferenças.
Delors et al. (1998:98), no relatório para a Unesco sobre a educação
para o século XXI, afirmam que, dos quatro pilares para a educação
deste século, o pilar que representaria o desafio deste novo milênio
e sobre o qual deveríamos nos concentrar seria o pilar chamado
―aprender a viver juntos‖, que trata do respeito às diferenças. Ao
discutir a necessidade de trabalharmos o respeito ao outro e às
diferenças, os autores propõem que algumas disciplinas estão mais
aptas a lidar com esse desafio, por terem em suas bases outras
culturas, costumes e hábitos, o que abriria espaço para uma
compreensão mais abrangente do outro, oferecendo outras visões
de mundo e podendo modificar comportamentos. Entre as
disciplinas mais aptas a este trabalho, os autores citam as línguas e
literaturas estrangeiras.
O segundo ponto diz respeito ao fato de que precisamos ter
em mente que a LE abre um novo espaço de liberdade para o
estudante, onde ele pode tecer uma nova identidade e reposicionar-

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 19


Alessandra H. B. FUKUMOTO

se, ocupando novas posições de sujeito, inclusive, nas posições


antes instituídas na sua própria língua materna. Revuz (1998:220)
diz que, ―abrindo um novo espaço potencial para a expressão do
sujeito, a língua estrangeira vem questionar a relação que está
instaurada entre o sujeito e sua língua‖.
Não possuímos uma identidade una e indivisível. Temos
diferentes identidades para diferentes contextos sociais, ou seja,
assumimos diferentes posições de sujeito dependendo da situação
social em que nos encontramos. Na construção dessa nova
identidade que nos é permitida na LE, é fundamental que o
professor tenha consciência de seu papel ―interditor‖. Durante
nosso processo de aquisição de língua materna, temos ao nosso
redor os sujeitos ―interditores‖, que ajudarão a moldar a identidade
que se forma nessa língua. Quando alguém nos diz o que podemos
ou não dizer, o que é ―feio‖ ou não, o que é ofensivo, entre outros
controles de nossas falas, essas interdições moldam a identidade
que estamos estabelecendo nessa língua materna. Quando uma
pessoa decide estudar uma língua estrangeira, encontra diante de si
um campo livre para a formulação de uma nova identidade, que
pode ser diferente das identidades estabelecidas na língua materna.
Nesse momento, é o professor da LE que age como interditor,
dizendo o que ―se pode ou não‖ falar no outro idioma, o que é
ofensivo ou não etc. Dessa forma, se o professor não tem um
posicionamento crítico também em relação a essa língua-cultura
com a qual trabalha, ou se acredita que o ensino de língua se
resume ao ensino de estruturas gramaticais, pode estimular
preconceitos e perpetuar estereótipos dos mais diversos. Nesse
novo espaço de liberdade, podemos possibilitar aos estudantes o
contato com novos pontos de vista, novas maneiras de ver o mundo,
que podem, consequentemente, reposicioná-los dentro da própria
língua materna. Para que esse reposicionamento possa acontecer, é
necessário que se estimule a criticidade do aluno,
concomitantemente ao trabalho com essa ―nova maneira de ver o
mundo‖ propiciada pela LE. Por isso, uma aula que se concentre, por
exemplo, no binômio ―erro-correção‖, além de não explorar a
natureza social da linguagem, leva consigo o perigo de se aliar à
correção ideológica, como diz Assis-Petterson:

Tento com isso dizer que o apego à crença de que o erro


do outro deve ou pode ser ―corrigido‖, mesmo que
implicitamente no decorrer de ações comunicativas,

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Professor formador ou professor “forma(ta)dor”?

perigosamente se alia à correção ideológica, sem dúvida,


um tipo de correção indesejável que coloca a identidade
do falante em risco.(ASSIS-PETTERSON, 2009:161)

Um terceiro ponto que consideramos importante de ser


tratado no processo de formação docente é a necessidade de
encararmos o ensino de língua como uma questão política e de
entender a natureza e a função social da linguagem (Rajagopalan,
2009; Assis-Petterson, 2009). Acreditamos na língua como um
―instrumento de poder‖. E ela é nosso ―objeto de trabalho‖.
Precisamos ter consciência do poder da língua para que possamos
trabalhar com ela da forma mais crítica possível, pois sabemos que
não existe neutralidade, imparcialidade. Somos sujeitos de
linguagem, existimos pela e na língua. É fundamental que, como
docentes, possamos nos dar conta da importância do nosso papel
no processo de formação que desempenhamos com nossos
estudantes.
Ao aliarmos os três pontos, acreditamos que seja possível
aplicar a Pedagogia da Diferença proposta por Silva (2008). O autor
afirma que trabalhar com as diferenças não é estimular a tolerância
ao outro, mas sim o estímulo ao questionamento de como as
diferenças foram e são produzidas e de quais relações de poder as
estabelecem. Dessa forma, podemos questionar os discursos
hegemônicos que mantêm as diferenças e desestabilizá-los.

O papel do letramento crítico

Acreditamos que o Letramento Crítico seja uma das formas


mais proveitosas de explorar todo o potencial de uma sala de aula
de LE. Como explicam Jordão (2016) e Duboc (2016), o Letramento
Crítico (LC) não é uma metodologia de ensino, é uma perspectiva
educacional por meio da qual o aluno é visto como partícipe do
processo, numa co-construção de saberes.
O que propomos, portanto, é a adoção do que Kleiman
(2006) chama de ―agente de letramento‖. A autora diz que devemos
abandonar a ideia do professor como um mediador e que devemos
difundir o conceito de um professor que, ao ser agente de
letramento, entende seu grupo de estudantes como um grupo de
coautores da experiência. O professor, então, criaria as condições
necessárias para a emergência desses atores sociais, sem esquecer
que ele próprio é um ator social. Esse seria um ensino visando à

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 21


Alessandra H. B. FUKUMOTO

prática social.
O professor, no Letramento Crítico, segundo Jordão (2016),
constrói junto com o aluno e encara os conflitos como espaços
produtivos, oportunidades de construção de novos sentidos. A
autora diz que nós não ―somos‖, nós ―estamos posicionados‖.

Por onde começar?

Muitos professores se perguntam por onde começar esse


trabalho, já que são obrigados a utilizar materiais didáticos e seguir
um cronograma imposto pelas instituições em que trabalham.
Acreditamos que um dos meios de trabalhar o Letramento Crítico na
sala de aula é dentro do nosso próprio material didático:
questionando-o. Se nos propusermos a enxergá-lo de forma crítica e
instigarmos os estudantes a refletirem sobre os dados apresentados
no material, sobre quais são as relações (de poder) que estabelecem
a priorização da entrada de determinados elementos/assuntos no
livro didático em detrimento de outros e mesmo a forma como são
trabalhados, poderemos começar a abrir espaço para o estímulo da
criticidade. Para que isso possa acontecer, é necessário que
saibamos muito bem em qual ―território‖ estamos nos inserindo,
que sejamos reflexivamente críticos também.
Para estimular a reflexão crítica de nossos estudantes, não é
necessário fazer algo ―grandioso‖. A criticidade pode ser trabalhada
mesmo em elementos que possam parecer ―pequenos‖. Podemos
fazer isso quando colocamos perguntas sobre algo que o material
didático tem como ―certo‖ ou ―seguro‖, por exemplo. Ramalho
(2013), em análise a um livro didático de inglês para negócios
(LDIN), diz que ―O LDIN defende a concepção de que seu discurso é
livre de ideologia, neutro e imparcial, ou seja, um local onde
somente a verdade prevalece‖. É esse discurso adotado pelos
materiais didáticos que podemos e devemos questionar, e é esse
questionamento que abrirá espaço para a desestabilização de
discursos hegemônicos.
Traremos abaixo dois exemplos de atividades que podem ser
feitas com um livro didático de LE; neste caso, especificamente, com
um material de italiano LE.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Professor formador ou professor “forma(ta)dor”?

Figura 01
Na Figura 01, podemos ver um mapa da Itália, cercado de
fotos que as autoras selecionaram para uma etapa da unidade
didática (UD) que é intitulada ―Culturas em Confronto‖. A atividade
foi retirada da unidade inicial do primeiro livro de uma coleção de
três volumes de ensino de italiano como língua estrangeira chamada
Chiaro!,de Sarvognani e Bergero (2010), correspondente ao nível A1
– segundo o Quadro Comum Europeu (Concil of Europe, 2001).
Portanto, trata-se do material utilizado com alunos que estão
começando a estudar a língua estrangeira. O intuito dessa parte da
UD é o de fazer os alunos conversarem sobre o que conhecem da
cultura da LE e, ao mesmo tempo, compararem o que estão vendo
com os elementos de sua própria cultura, estabelecendo
semelhanças e diferenças. A primeira tarefa é a de associar as
imagens às regiões às quais possam se referir.
Na Figura 02, desenhamos as setas, como pedido aos

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 23


Alessandra H. B. FUKUMOTO

estudantes e com base nos dados disponibilizados pelo material


auxiliar do professor.

Figura 02
Podemos notar que, das onze imagens disponíveis na página,
seis delas se ligariam ao Norte. Se não estivermos conscientes dos
estereótipos e preconceitos que envolvem o norte e o sul da Itália e
do fato de que os materiais didáticos de língua italiana costumam
fazer seleção de conteúdos que mantêm essa diferenciação (que
costuma colocar o norte do país como mais atraente e mais
desenvolvido e as regiões do sul da Itália como ―exóticas‖), iremos
apenas levar adiante a estereotipização que acontece e não
abriremos espaço para o questionamento de quais relações de poder
levam a estabelecer essas representações. Podemos, portanto,
utilizar essa parte do material para começar a discutir esses
estereótipos e questionar a forma como são criados e difundidos.
Podemos, para tanto, utilizar a própria estereotipização que ocorre

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Professor formador ou professor “forma(ta)dor”?

no nosso país, pois temos a região sudeste, que habitualmente é


vista como a mais ―avançada‖ e que ―exotiza‖ o norte e o nordeste
brasileiros.
Outro exemplo que podemos dar é parte da décima unidade
do segundo volume da mesma coleção didática de Sarvognani e
Alberti (2012). Trata-se de uma atividade que discute as festividades
italianas. O primeiro exercício pedido aos estudantes é o de
localizar no calendário quais são as datas das festas mencionadas –
são festas nacionais italianas. Em seguida, as autoras pedem que os
estudantes digam quais delas também são celebradas no nosso país.
As festividades em questão são estas:

Por fim, as autoras perguntam também quais são as festas


importantes do nosso país que não são festas em comum com as
italianas. A atividade se encerraria aqui, mas podemos ir além.
Podemos perguntar aos estudantes quais destas festividades (e
também aquelas do nosso país) são ligadas à Igreja Católica. No
caso das festividades italianas, aquelas que aparecem abaixo
marcadas com negrito são as festas ligadas ao catolicismo:

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 25


Alessandra H. B. FUKUMOTO

Das 12 festas nacionais, apenas 4 delas não são ligadas ao


catolicismo. Poderíamos, neste momento, perguntar aos nossos
alunos se há alguém de outra religião e saber como essa pessoa se
sente vivendo em um país onde possivelmente as festas da sua
religião não são festas nacionais, embora ela tenha que se adequar
aos feriados nacionais que são baseados em uma outra religião que
não a sua. Podemos também perguntar o que os discentes acham de
um Estado que se diz laico, mas que tem como festas nacionais tais
festividades.
Esses são apenas dois exemplos dos questionamentos que
nosso próprio material didático pode nos trazer e que podem abrir
espaço para uma reflexão crítica sobre as próprias representações
tidas na língua materna e, consequentemente, fazer com que
assumamos novos posicionamentos.

Quem tem medo de ensino crítico?

Qual a importância do ensino crítico e para quem ele poderia


ser uma ameaça? Traremos abaixo uma citação que parece ser
perfeita para o atual momento em que vivemos:

Estas elites, assustadas, na proporção em que se


encontram na vigência de seu poder, tendem a fazer
silenciar as massas populares, domesticando-as com a
força das soluções paternalistas. Tendem a travar o
processo, de que decorre a emersão popular, com todas

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Professor formador ou professor “forma(ta)dor”?

as suas consequências.
[…]
E grande parte do povo, emergente mas desorganizado,
ingênuo e despreparado, com fortes índices de
analfabetismo e semianalfabetismo, passava a joguete
dos irracionalismos.
E a classe média, sempre em busca de ascensão e
privilégios, temendo naturalmente a sua proletarização,
ingênua e emocionalizada, via na emersão popular, no
mínimo, uma ameaça ao que lhe parecia sua paz. Daí
sua posição reacionária diante da emersão popular.
E quanto mais sentíamos que o processo brasileiro, no
jogo cada vez mais aprofundado de suas contradições,
marchava para posições irracionais e anunciava a
instalação de seu novo recuo, mais parecia a nós
imperiosa uma ampla ação educativa criticizadora.
(FREIRE, 2011:114-116)

A citação de Freire parece descrever o momento atual, mas


caracteriza o momento da chamada ―sociedade de transição‖,
quando o Brasil rumava em busca da democracia e foi freado pelo
Golpe Militar de 1964. No livro do qual este excerto foi retirado,
Educação como prática da liberdade, Freire descreve todo o
movimento que ocorreu com o intuito de frear a educação, para que
o homem não se ―humanificasse‖ (e, assim, continuasse em seu
estado de ―coisificação‖) e para que não houvesse a tomada da
consciência; desta forma, seria mais fácil manter o controle nas
mãos dos poucos privilegiados. Assim como naquele momento,
acreditamos que hoje faz-se necessária uma educação criticizadora.
Janks (2012) afirma que é fundamental para a educação que se use o
letramento crítico para questionar e desestabilizar os discursos
hegemônicos. A autora vê o engajamento crítico como fundamental
para os dias atuais. ―Enquanto o social constrói quem somos,
também construímos o social. Essa relação dialética é fluida e
dinâmica, criando possibilidades para a ação social e mudança‖
(Janks, 2012:151).
Dessa forma, acreditamos que a ação educativa criticizadora
a que se refere Freire seja fundamental para que consigamos rumar
ao que ele chama de democracia autêntica. Um ensino crítico só
pode ser uma ameaça aos poucos grupos privilegiados que temem
ver seu poder e privilégios acessíveis aos ―outros‖.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 27


Alessandra H. B. FUKUMOTO

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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 29


O ENTRE-LUGAR COMO DISPOSITIVO DE LEITURA:
UMA APROXIMAÇÃO A NICK CARTER SE DIVIERTE,
MIENTRAS EL LECTOR ES ASESINADO Y YO AGONIZO
DE MARIO LEVRERO

Alexander V. Belivuk MORAES


UFSC

Resumo: O presente trabalho tenta uma aproximação à noção de


entre lugar proposta por Silviano Santiago. Deste modo, procura se
articular uma cena de leitura para a nouvelleNick Carter se divierte,
mientras el lector es asesinado y yo agonizo (1973), do escritor
uruguaio Mario Levrero. Assim, apresentam se brevemente duas
leituras críticas previas ao texto, tidas como ―centralizadoras‖ numa
busca, genérica ou filosófica, de fontes ou influencias para a sua
interpretação, ao tempo que se tenta o contraste com alguns
operadores textuais utilizados por Santiago, como a noção de
suplemento ou a de transformação, que deslocam e põem em jogo as
idéias de origem ou original como pressupostos dados a priori para
a interpretação.

Palavras-chave: Mario Levrero; Literatura latino-americana; Silviano


Santiago; Entre-lugar; Transformação

Em entrevista com o escritor uruguaio Jorge Mario Varlotta


Levrero em 1994, perguntaram-lhe o que lhe sugeriam as mortes de
Juan Carlos Onetti e Armonia Sommers acontecidas naquele ano. Na
ocasião, o escritor respondeu que mesmo sem os considerar uma
―influencia directa‖ para a sua escritura, pois começou a escrever
―sin conocerlos‖, com as suas mortes poderia se dizer que foi como
se ele ―hubiera quedado huérfano‖(GANDOLFO, 2013, p. 117).
Esse tópico do escritor ―sem pais‖ que deve fazer um lugar
para si mesmo no vazio cultural duma geração sem referentes
―diretos‖, poderia nos servir como metáfora introdutória para este
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
O entre-lugar como dispositivo de leitura

trabalho que tenta montar uma cena de leitura para outro dos
tantos textos diversas vezes catalogados como ―inclasificáveis‖ do
autor. Trata se de Nick Carter se divierte, mientras el lector es
asesinado y yo agonizo (2009), nouvelle escrita em Montevidéu em
1973, e publicada originalmente em Buenos Aires em 1975 a cargo
de uma fugaz editora criada por amigos do escritor. Segundo
Corbellini (1992, p. 81) o relato teve ―escasa difusión y en general,
pasó inadvertido‖. No entanto, esse texto vai fazer parte da
consagração acadêmica do autor, e sua posterior canonização, com
sua reedição em 1992 pela editora Arca, acompanhada da
bibliografia completa do autor, levada a cabo por Pablo Rocca sob a
supervisão do próprio Levrero, além dum posfácio crítico a cargo de
Helena Corbellini.
Geralmente abordado como ―marginal‖ dentro da produção
do autor e lido como ―plágio‖ ou paródia do gênero policial ou da
série negra norte americana, o texto sofreu certo desdém em
comum por parte da crítica e do próprio escritor, por se tratar,
segundo suas palavras, de ―algo distinto‖ desencaixado ou não
assimilável ao resto da sua obra naquele momento (DE ROSSO,
2013, p. 142). Mesmo assim, acreditamos que esse texto encerra, ou
abre, uma possibilidade de leitura diversa, assim como poderia
marcar a posição da escritura de Levrero perante o contexto
literário, e político, daquele momento.
Brevemente, poderíamos caracterizar a nouvelle de Levrero
como um emaranhado intertextual de referencias diretas e obliquas
à narrativa policial, à cultura pop e televisiva, ou aos desenhos
animados, numa febril torrente de imagens repletas de truculência e
sarcasmo, narradas num tom austero e descritivo, correspondendo,
numa leitura ―fácil‖, com o melhor do comic, do folhetim ou da
novela de aventuras.
De fato, seja pelo nome escolhido para o personagem
principal1, pelas múltiplas referencias ao gênero policial, ou pela
constante digressão e alusão aos estereótipos da cultura de massas,
o relato permite ser lido em chave paródica. Dentro dessa

1
―Nick Carter‖ foi um personagem criado por John Russell Coryell em 1886,
com inúmeras mudanças e adaptações ao longo do século XX. Mais
informação disponível em:
http://www.britannica.com/EBchecked/topic/1870858/Nick-Carter. Acesso:
Out. 2016
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 31
Alexander V. Belivuk MORAES

perspectiva em contexto uruguaio, Alzugarat (2007) inscreve o texto


de Levrero dentro duma veta paródica que ―precede‖ ao gênero
policial em Uruguay, apontando ao mesmo tempo o papel do
escritor como bricoleur se referindo ao relato El asesinato de
Malcom X (1968) de Hiber Contreris:
Esa capacidad del bricolage de devorarlo todo, de
fagocitar tanto mitos griegos y toponimias occidentales
como cultura cinéfila e íconos del mundo de consumo,
ensancha potencialmente el concepto mismo de lo que
se entiende y acepta como literatura. Así, narrativas
hasta hace poco consideradas de segundo orden o
subgéneros, como era el caso de la novela policial,
aparecieron en su mira siguiendo los pasos de otro
bricoleur: Raymond Chandler. (ALZUGARAT, 2007, p.
104)

Partindo também duma perspectiva dos gêneros literários, e


tentando projetar um eixo paradigmático de leitura para o resto da
obra de Levrero, Ezequiel de Rosso (2013) adscreve a esse texto uma
importância ―central‖ dentro duma dinâmica de ―ciclos estilísticos‖
no autor, onde a narrativa policial cumpriria um papel determinante
para a articulação duma dicção pessoal. Assim, ao proclamar uma
―trilogía policial‖ em Levrero, o crítico argentino declara que ―no es
imposible imaginar que estas novelas (a diferencia de otras series y
ciclos) [sean] el espacio en el que la escritura de Levrero resuelve el
pasaje entre las diferentes cristalizaciones de su estilo‖ (DE ROSSO,
2013, p. 162). Detectando certo caráter intersticial da narrativa
policial no conjunto cronológico da obra, De Rosso propõe um
enfoque formal da escritura de Levrero que atingiria a totalidade da
sua produção, a partir de uma função ―transicional‖ que o gênero
policial exerceria de maneira persistente e contínua a modo de
―proyecto‖, desde o começo da sua escritura nos anos sessenta (DE
ROSSO, 2013, p. 162).
Mesmo assim, para De Rosso, Nick Carter... também dar-se-ia
a ler ―como una reelaboración de las formas marginales del género,
pero también como una intervención ligada a las formas en las
cuales se practica el policial en Uruguay‖ (DE ROSSO, 2013, p. 157).
Partindo da voz narrativa ―constantemente desdoblada‖ no texto, o
crítico destaca a ―reflexión‖ sobre as possibilidades de abertura para
o gênero policial na América Latina colocadas pelo mesmo nos anos
setenta. De fato, os saltos constantes da voz narrativa entre a
primeira pessoa do personagem e uma terceira ou segunda pessoa

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 32


O entre-lugar como dispositivo de leitura

do narrador que interpela, a modo de coro grego, tanto o


personagem quanto o leitor, provocam uma instabilidade de leitura,
que, junto à digressão lateral de uma trama ―abierta‖ o ―expandida‖
do policial, acabam tornando o texto um unheimlich do gênero. No
entanto, o critico argentino termina concluindo sobre os relatos
policiais em Levrero:
[…] esos textos pueden ser leídos como la zona en que
se negocia la relación de Levrero con espacios literarios
excepcionales para su literatura. En este sentido el
conjunto de referencias que traman estas novelas
permite diseñar una historia del relato policial que,
evitando los textos canónicos del policial de enigma(Poe,
Doyle, Christie), es, antes que nada, una serie de relatos
de aventuras (Sexton Blake, Nick Carter)
primordialmente norteamericanas que tiene su
culminación en el desarrollo de la serie negra. (DE
ROSSO, 2013, p. 161)

Deste modo, De Rosso privilegia um enfoque do texto como


parte duma totalidade a ser delimitada em relação a categorias
genéricas, pensando a obra como um ―signo geral‖ (BARTHES, 1988,
p. 74) que seria preciso ler a partir duma individualidade estilística,
onde o autor, como último dono e proprietário, estaria inserido
dentro de um processo de filiação que remeteria, por uma lógica
derivativa, a uma origem ―primordialmente norteamericana‖ de um
gênero literário.
Por outro lado, mas não muito distante dessa perspectiva
centralizadora de leitura, no mencionado posfácio já canônico da
nouvelle, a crítica e escritora uruguaia Helena Corbellini (1992)
colocaria a Nick Carter... dentro de uma terceira etapa do
desenvolvimento do gênero policial na Argentina, na qual se
procuraria ―mostrar la violencia social existente, combinando el
interes por el enigma con la denuncia de los males que enferman la
nación‖ (CORBELLINI, 1992, p. 81). Assim, escritores como Rodolfo
Walsh ou Eduardo Goligorsky são citados como exemplos desta
terceira etapa; no entanto, adverte a crítica uruguaia, essa temática
da denúncia social presente na Argentina deslocar-se-ia, em Levrero,
como el ―testimonio íntimo que desnuda la violencia anidada en el
yo‖ (CORBELLINI, 1992, p. 82). Para Corbellini (1992), e aproveitando
o nome com o qual aparece firmada a primeira edição do relato, o
escritor de contos e novelas que mergulham nos ―abismos
humanos‖ Mario Levrero, deixa sua máscara para se apresentar

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 33


Alexander V. Belivuk MORAES

como o pedestre Jorge Varlotta, ―ciudadano, periodista, vendedor de


libros, autor de innumerables crucigramas y consumidor de relatos
policiales‖(idem, p. 83), para funcionar como ―la conciencia, la voz
del yo y del superyo‖ (idem, p. 83), e atuar como demiurgo dum
personagem ou fantoche, que não seria mais do que outra ―máscara
que oculta con risas la tragédia interior del escritor‖ (idem, p. 83).
Centrada numa crise de identidade, ou do ―ego herido de soledad‖
(idem, p. 83) do escritor, em detrimento de todos os demais
elementos do texto, Corbellini não esconde certo tom existencialista
e trágico da sua leitura, de raízes fenomenológicas:

La soledad es ―el único enigma verdadero‖ y la


identidad, lo único que merece encontrarse. Todo lo
demás, las maravillosas o estúpidas deducciones, las
persecuciones desopilantes, la apariencia zoomórfica de
los delincuentes, son estallidos de balas de fogueo de la
artillería literaria policial.
Entonces el narrador apelante surge como una voz en
off para alertarnos, para que no nos maree el olor a
pólvora y podamos descubrir la tristeza clownesca que
agita a Nick y nos anima‖ (CORBELLINI, 1992, p. 84)

Regida por uma lógica dicotômica do dentro/fora ou do


profundo/superficial, a crítica optou por privilegiar a interioridade
duma ―voz de la consciência‖ como instancia anterior de
interpretação que comandaria, desde fora do texto, as estratégias de
escritura e de leitura.
Assim, dentro desta breve apresentação de algumas leituras
críticas ao texto de Levrero, pode se perceber certa inclinação à
análise do relato a partir da identificação de suas fontes ou
influencias, seja em chave paródica, genérica ou fenomenológica,
como forma de contornar ou dirigir a multiplicidade de elementos
para a leitura possibilitadas pelo mesmo. Numa tentativa ―policial‖
por decifrar seus enigmas e desvendar o funcionamento da sua
estrutura ―inclassificável‖, essas leituras procuram, de algum modo,
centralizar ou estabilizar o jogo relacional da significação em
dicotomias dadas a priori desde fora, ou, antes da leitura, reduzindo
a força polissêmica do texto. Dentro duma lógica que privilegia o
funcionamento dos elementos em busca duma solidariedade do
texto como um todo coerente em relação com um fora anterior que
condicionaria sua produção e recepção, essas leituras deixam
transparecer no fundo um sistema regido pelo caráter vicário ou

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 34


O entre-lugar como dispositivo de leitura

endividado do escritor, ou do texto, ―marginal‖.


Sem pretender desmerecer a validade de tais análises (nem a
indiscutível competência dos seus autores), gostaríamos de tomá-las
como pontos de partida para apontar, ou contrastar, outras
possibilidades de leitura do texto de Levrero, a partir das
aproximações ao escritor latino americano contemporâneo,
levantadas pelo escritor brasileiro Silviano Santiago ao longo da sua
produção ficcional e ensaística.
Para começar, gostaríamos de voltar sobre o caráter paródico
da nouvelle de Levrero, ou daquele do escritor como um bricoleur
que trabalharia sobre um conjunto fechado de elementos
identificáveis. Seguindo a Santiago (1978; 2002) em ambos os casos
persistiria ainda uma postura redutora, ao circunscrever o escritor
latino americano e sua produção dentro de uma ―tradición de la
ruptura‖ (via Octavio Paz), onde uma lógica da analogia (irônica,
critica ou vanguardista) estaria, ainda, ao serviço duma repetição de
o mesmo, governada pela presença da obra e da intenção do autor
como garantias de classificação. Ao constatar, junto com Paz, um
esgotamento da paródia como recurso esclerosado dentro da
―estética da ruptura‖ (SANTIAGO, 2002, p. 132), Santiago propõe,
apoiado em Jameson, uma ―estética do pastiche‖ (SANTIAGO, 2002,
p. 133) como recurso mais próximo da prática do escritor latino
americano e da sua posição paradoxal entre tradição e transgressão,
como coloca o crítico em A permanência do discurso da tradição no
modernismo:

E a estética da paródia [...] é a estética da ruptura. Nesta


você enxerga o passado de uma maneira irônica,
sarcástica, como se não quisesse endossá-lo, como se
tudo aquilo fosse razão para o seu desprezo.[...] A
paródia e mais e mais ruptura, o pastiche mais e mais
imitação, mas gerando formas de transgressão que não
são as canônicas da paródia.
[…] a paródia significa uma ruptura, um escárnio com
relação àquela estética que é dada como negativa. O
pastiche não rechaça o passado, num gesto de escárnio,
de desprezo, de ironia. O pastiche aceita o passado
como tal, e a obra de arte nada mais é do que
suplemento [...] (SANTIAGO, 2002, p. 132-134, grifo
nosso)

Apoiado num ―pensamento da diferença‖, promovido dentro


do debate estruturalista a finais dos anos sessenta por nomes como

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 35


Alexander V. Belivuk MORAES

Foucault, Deleuze, Lyotard ou Barthes, mas sobretudo, em Santiago,


marcado pela operação da desconstrução dos pressupostos
filosóficos ocidentais do franco argelino Jacques Derrida, o crítico
se serve desta ―lógica do suplemento‖ como estratégia de leitura e
de operação textual ao pensar o artista latino americano. Sem se
opor termo a termo com uma ―lógica do complemento‖ (assim como
o pastiche não se opõe à paródia), onde uma matriz binária e
dicotômica do pensamento garantiria as oposições plenas, Santiago
propõe o pastiche dentro duma lógica aberta, na qual nenhum dos
termos se apresente como exterior ou anterior ao outro, abalando,
num (im)puro movimento de contágio, as ideias de centro,
identidade ou presença sustentadas num sistema fechado a ser
sempre completado por um terceiro elemento exterior, que, por uma
lógica derivativa, tornar-se-ia a origem plena do significado ou da
verdade. Como consta no Glossário de Derrida (1976) supervisado
por Santiago:

Ao complemento Derrida opõe o suplemento. A um


outro, ausente e exterior, que venha se acrescentar a um
mesmo pleno, original e presente, ele propõe um outro
que já é sempre um mesmo diferido, que se inscreve em
sua margem; outro suplementar que, anterior ás
oposições clássicas, se dá como différance, sendo
impensável diante das dicotomias inerentes à lógica do
complemento. (SANTIAGO et al, 1976, p. 14)

Deste modo, perante um modelo mimético de leitura que


privilegia a presença do original em detrimento do ―plágio‖ ou da
cópia, Santiago tenta o incômodo lugar de um deslocamento
constante, onde a travessia do significante põe em jogo, ou em cena,
a irredutível pluralidade do texto, entendido como inter-texto ou
rede de significantes incapaz de ser remitida a um significado
original ou transcendental.
Assim, além de pensar a nouvelle de Levrero como ―plágio‖
ou paródia de um gênero determinado, gostaríamos, com Santiago,
de nos aproximar, pelas margens, duma lógica do processo, dos
intercâmbios porosos e ambivalentes entre escritura e leitura, entre
escritor e leitor, afim de melhor posicionar o gesto de escritura pelo
qual se inscreve a literatura de Levrero.
Neste sentido, ao tentar desestabilizar ou descentrar uma
lógica da identidade e da presença plena, sustentadas por uma
estrutura regida pelos princípios de arché e telos como ―significados

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 36


O entre-lugar como dispositivo de leitura

transcendentales‖ fora do jogo relacional, metafórico e metonímico


da linguagem, devemos abandonar as certezas absolutas e assumir
o vazio significante que permeia toda a relação de forças com a
linguagem, tornando a interpretação, ou compreensão total do
texto, uma tarefa do ―fracasso‖, de caráter sempre incompleto ou
fragmentário.
Desse modo, ao pensarmos a escritura como uma complexa
máquina textual que tece e entretece infinitas camadas de
significação a cada leitura, podemos tentar seguir, em travessia,
alguma das dobras do texto, pensado como disseminação da
pluralidade estereográfica (BARTHES, 1988, p. 74) do significante, a
fim de recobrar um pouco da sua potência irruptiva.
Com essas premissas provisórias, e a fim de continuar no
rastro dessa textualidade plural a partir de algum dos operadores
de leitura lançados por Santiago, citaremos o começo do ―Exordio‖
da nouvelle, onde Nick Carter performa a sua entrada em cena no
relato, e na escritura:

Agarrado de la soga, mis pies golpearon y rompieron el


enorme vidrio de la puerta-ventana del bungalow de
Lord Ponsonby; mi cuerpo atravesó esta puerta-ventana
y fui a aterrizar blandamente, a las cinco en punto de la
tarde, junto al sillón donde el Lord levantaba
ceremoniosamente su taza de té.
− ¡Cristo! – vociferó, dando un salto. Y luego, al
reconocerme −: ¿Es usted, Carter? ¿No tenía otra manera
de…?
Me dejé caer en el otro sillón. Mi taza de té estaba
servida. Me sentí un poco ridículo. Lord Ponsonby volvió
a sentarse; no había derramado una sola gota de su té.
Tinker, mi ayudante, se movió inquieto en el interior del
bolso de mano. Aflojé los cordones para que pudiera
asomar la cabeza y respirar con mayor comodidad.
−A veces no puedo contener mi exhibicionismo –
expliqué al Lord, levantando yo también la taza para
llevarla a mis labios −. Créame que lo siento.
−Vea Carter−dijo luego el Lord−, iré derechamente al
grano. Necesito sus servicios.
Asentí. Por detrás del Lord, mi imagen satisfecha se
reflejaba en un enorme y hermoso espejo que duplicaba
el salón. (LEVRERO, 2009, p. 11-12)

Essa breve cena inicial lança alguns elementos que podem

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 37


Alexander V. Belivuk MORAES

nos servir como mote para abordar uma leitura do relato. Para
começar, a entrada tarzânica do corpo da personagem que quebra
com os pés o vidro da ―puerta-ventana‖, para depois, como um
fantasma, ―aterrizar blandamente‖ e ―dejarse caer‖ no sofá dum
amplo salão aristocrático ―a las cinco en punto‖. Assim, essa cena
pode marcar a irrupção de Carter num ambiente pautado pela
tradição e o cerimonial, do qual também ele sabe tomar parte (ao
saborear o chá e pedir desculpas, civilizadamente, pelo seu
―exhibicionismo‖) junto do seu anfitrião e cliente Lord Ponsonby,
como o qual manterá relações comerciais (assim como o outro Lord
John Ponsonby, que no Século XIX manteve relações comerciais e
diplomáticas no Rio da Prata a favor da Inglaterra, e que terminaram
com a criação do Uruguay como ―Estado Tapón‖ entre os gigantes
de América) aceitando a investigação de ―ciertas amenazas‖ que
receberam alguns convidados importantes para o jantar no
―Castillo‖ da sua filha, e no qual se suspeita que ―algo está por
desencadenarse‖. A partir dessa esquiva apresentação duma
―intriga‖, o relato se dissemina em forma digressiva com as
peripécias de Carter tentando resolver outro ―asunto pendiente‖
com Watson, quem é ―la encarnación de la perversidad‖, e, que uniu
se aos ―monstruos marinos‖ para destruí-lo.
Apontando ao interesse dessa leitura em se aproximar de
algum dos operadores textuais de Santiago, essa primeira cena
apresenta a Tinker, o estranho ajudante de Carter, misto de
Odradek kafkiano com criança malformada, a quem o detetive
delega todo o trabalho ―sujo‖ e rotineiro, e que acabara sendo (por
outra dobra ―trágica‖ de peripécia e reconhecimento), seu próprio
filho, mas também o próprio Watson, ao se transformar, através de
bruscas mudanças de personalidade stevensonianas, numa figura
diabólica e ameaçante.
Essa personagem, em aparência menor, dispara outro dos
tópicos detectados pela crítica e espalhados ao longo do relato: o
duplo de caráter borgiano, representado pelo jogo de ―esconde-
esconde‖ entre Tinker/Watson e Carter, assim como pela alusão aos
espelhos, travestismos e disfarces que devolvem a figura de um
constante devir outro que atravessa o relato.
Mas, neste sentido, acompanhando mais de perto as
reflexões de Santiago no seu ensaio A ameaça do lobisomem (1998),
Santiago parece se afastar um tanto do desdobramento borgiano (o
qual, ainda, reativaria os binarismos excludentes entre norma e
desvio, entre Deus e Diabo, etc.) e nos permite arriscar a dizer que a

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 38


O entre-lugar como dispositivo de leitura

figura que predomina no relato e nas personagens de Levrero, seria,


mais do que a do duplo, a de uma transformação, pois:

[O que] está em jogo no processo de produção textual


não [é] mais a figura do desdobramento do um em dois,
ad infinitum, ou do acasalamento do dois em um, ad
infinitum, mas a figura da transformação.
Transformação [...] é a figura que traduz o puro
movimento sem direção fixa, é o movimento do devir
outro que é dado, não como o um que é conjunção de
dois, a priori morto, mas como ―confusión ignorante‖.
(SANTIAGO, 1998, p. 38)

Tentando ―desconstruir a ordem conceitual‖ aplicada por


Borges no seu Manual de Zoología Fantástica, onde o escritor
argentino exclui deliberadamente os seres (como o lobisomem) que
participariam duma transforming draught stevensoniana como
modo de existência, Santiago procura uma noção que lhe permita
inscrever esses seres excluídos por Borges do seu Manual num não-
lugar epistemológico, que escape à reativação infinita dos
dualismos platônicos, e os libere da jaula conceitual que os reduz a
uma mera ―confusión ignorante‖ como norma, negando-lhes a
possibilidade de se transfigurar ―num devir outro e paralelo,
suplementar.‖ (SANTIAGO, 1998, p. 39).
Continuando seu exercício crítico nos intercâmbios porosos
entre forças contraditórias, que, mais do que se anular mutuamente
participam duma relação dúplice de conivência e ―contágio‖,
Santiago recorre ao tratamento excludente dado à figura do
―lobisomem‖ em alguns relatos modernistas brasileiros, e, ao
mesmo tempo em que o detecta como uma ameaça ao privilégio
pela ―zoologia de Deus‖ no Manual de Borges, declara que tanto a
ameaça, quanto a exclusão e a sobrevivência do lobisomem ―marca
sempre a posse do Diabo sobre o ‗ser‘ e, por isso, o movimento do
ser humano em direção ao seu outro precisa ser exorcizado literária
e deliberadamente.‖ (SANTIAGO, 1998, p. 39). Ecoa aqui, aquela
frase: ―o plural é o Mal‖ (BARTHES, 1988, p. 75) que acompanha a
noção barthesiana de Texto como a realização do próprio plural
irredutível do sentido, pois o ―Texto não é coexistência de sentidos,
mas passagem, travessia: não pode, pois, depender de uma
interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma
disseminação.‖(BARTHES, 1988, p. 74).
Desse ponto de vista, e voltando ao estranho ajudante de

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 39


Alexander V. Belivuk MORAES

Carter como produto de uma constante transformação, poderíamos


dizer que Tinker/Watson põe em jogo a figura da escritura como
múltiplo, pois, além de ser aquele que (dentro da bolsa de mão, e
mediante um ―pequeño equipo‖) revele rolos fotográficos ou tenha a
mania de ―doblar y doblar‖ todos os papéis que caiam nas suas
mãos, até torná-los ―inútiles‖, será filho e servente de Carter, mas
também, seu arqui-inimigo e potencial ―parricida‖, Watson. Seguindo
esse modo plural de leitura, somos levados a pensar neste
personagem, menor ou subalterno dentro do relato, como
configurando o emblema de uma operação de escritura ―diabólica‖,
de uma máquina textual alimentada pelo (im)puro movimento do
significante como marca da sua diferença a respeito duma instância
de inscrição, realizando uma transgressão na tensão entre qualquer
significado atribuído a priori, na leitura, e seu constante
deslocamento dentro da cadeia sintática ou significante do relato.
Ainda acompanhando a Barthes (1988), pode-se afirmar
sobre o relato e os personagens de Levrero, que a sua instabilidade e
ambigüidade, se apresenta como a posta em cena da escritura como
jogo, onde a relação entre os significantes não se dá segundo ―uma
via orgânica de maturação, ou segundo uma via hermenêutica de
aprofundamento, mas antes segundo um movimento serial de
desligamentos, de cruzamentos, de variações‖ (BARTHES, 1988, p.
74), onde, ―a lógica que regula o Texto não é compreensiva [...] mas
metonímica: o trabalho das associações, das contigüidades, das
relações, coincide com uma libertação de energia simbólica‖
(BARTHES, idem.)
Deste modo, partindo dessa hipótese de leitura de
Tinker/Watson na nouvelle, poderíamos afirmar que a personagem
marca o gesto da escritura de Levrero como plural ou ―demoníaca‖,
ao desestabilizar quaisquer referência direta de significação fechada
a partir de pressupostos adjudicados a priori, e hierarquicamente,
como modelos privilegiados de interpretação. Assim, a nouvelle
poderia aparecer como a cenificação da tensão entre princípios tais
como origem, nome próprio e identidade quando confrontados com
a instância da escritura e a natureza textual e ficcional de toda
percepção, ou quando, o ―narrador pós-moderno sabe que o ―real‖ e
o ―autêntico‖ são construções de linguagem.‖ (SANTIAGO, 2002, p.
47)
Voltando á nossa metáfora inicial sobre o escritor uruguaio
como ―órfão‖ ou ―bastardo‖ em relação a um meio no qual parece
haver desaparecido toda referência cultural, ou nacional, imediata,

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 40


O entre-lugar como dispositivo de leitura

pensamos que o texto de Levrero pode se ler a partir desse gesto de


inscrição pela escritura, ambíguo e paradoxal, onde o jogo da
significação participa como elemento estruturante, se deslocando
entre um sistema de diferenças, irredutível em oposições binárias,
liberando infinitas possibilidades de leitura que potencializam sua
força produtora de sentido.
Para finalizar essa breve aproximação à nouvelle de Levrero
tentando alguns dos protocolos de leitura lançados por Santiago,
podemos dizer que o texto desloca e problematiza a questão da
origem e do original, ao jogar, através da digressão e do desvio, com
os signos provenientes duma cultura hegemônica, subvertendo e
contaminando as categorias tradicionais importadas da metrópole.
Como coloca Santiago em O entre lugar do discurso latino americano
(1978):

A maior contribuição da América Latina para a cultura


ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos
de unidade e de pureza: estes dois conceitos perdem o
contorno exato do seu significado, perdem seu peso
esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à
medida que o trabalho de contaminação dos latino-
americanos se afirma, se mostra mais e mais eficaz. A
America Latina institui seu lugar no mapa da civilização
ocidental graças ao movimento de desvio da norma,
ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e
imutáveis que os europeus exportavam para o Novo
Mundo. (SANTIAGO, 1978, p. 18)

Dupla inscrição, portanto, do escritor latino americano, pois,


mediante um gesto ambivalente de ―assimilação e agressividade‖, de
―falsa obediência‖ ao modelo instaurado, entre a fascinação pelo
signo estrangeiro e a necessidade de diferir, pela escritura, em outro
texto que virá a ser a sua afirmação e sua negação, configura-se a
sua condição híbrida, ou bífida, num entre lugar, onde a co-
existência paradoxal e não hierárquica dos contrários lhe permite
―criar pela destruição‖.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 41


Alexander V. Belivuk MORAES

Referências

ALZUGARAT, Alfredo. Trincheras de papel. Dictadura y literatura carcelária


en Uruaguay. Montevideo: Trilce, 2007.

BARTHES, Roland. Da obra ao texto. In: O rumor da língua. São Paulo:


Brasiliense, 1988. p. 71-78.

CORBELLINI, Helena. Serie negra en patchwork. Post-fácio. In: LEVRERO,


Mario. Nick Carter se divierte, mientras el lector es asesinado y yo agonizo.
Montevideo: Arca, 1992, pg. 81-86.

DE ROSSO, Ezequiel. Otra trilogía: las novelas policiales de Mario Levrero.


In: DE ROSSO, Ezequiel (Org.). La máquina de pensar en Mario: ensayos
sobre la obra de Levrero. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2013, pg. 141-163.

GANDOLFO, Elbio (Org.). Un silencio menos. Conversaciones con Mario


Levrero. Buenos Aires: Mansalva, 2013.

LEVRERO, Mario. Nick Carter se divierte, mientras el lector es asesinado y yo


agonizo. Montevideo: Mondadori, 2009.

SANTIAGO, Silviano. A ameaça do lobisomem. In: Revista brasileira de


literatura comparada.N° 4. Rio de Janeiro: Abralic, 1998.

_____ . (Sup. ). Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976.

_____ . Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

_____. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 42


“VOLUNTARIAR”: UMA ESCOLHA LEXICAL

Aline Lima PINHEIRO


UNIFESSPA

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar a seleção lexical


em imagens postadas na ―Fan Page‖ dos Voluntários Vale na rede
social Facebook. Entre as propriedades discursivas que são
relevantes para o estudo da persuasão, a seleção lexical é uma das
que está mais associada à construção de uma imagem positiva,
especificadamente do programa de voluntariado empresarial. A
análise será realizada com base nos princípios discursivos,
publicitários e midiáticos. Esses conteúdos léxicos podem ser
analisados, por exemplo, na publicidade, tendo em vista seu poder
de expandir os desejos de seu receptor/cliente, já que é um veículo
de comunicação que pode oferecer subsídios, por meio dos textos
verbais e não verbais pelos publicitários, com o intuito de vender
uma imagem positiva do produto, da empresa. A partir disso, o
presente trabalho se propõe a analisar as escolhas léxicas, com o
fim de construir uma imagem positiva do programa de voluntariado
empresarial.

Palavras-chave: Léxico; Propaganda; Voluntariado.

Introdução

O presente trabalho partiu da seguinte hipótese: o discurso


publicitário constrói-se por meio da palavra, que leva a descoberta
dos desejos e aspirações de um TU, que ela se propõe a realizar
(CARVALHO, 1996, p. 22). Assim, para se convencer o TU é
necessária uma escolha bastante minuciosa de palavras para atingir
seu principal objetivo comunicativo que é a imposição do seu
produto, portanto tal escolha de palavras não é arbitrária.
O léxico da língua pertence à comunidade daquela língua.
Seus usuários agem sobre sua estrutura simultaneamente ao

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Aline Lima PINHEIRO

movimento de suas práticas sociais e culturais. Assim, quando o


léxico é manifestado em discurso, sentidos vão sendo atribuídos às
unidades lexicais. Sobre a questão, BIDERMAN (1978:139) afirma
que:
Os membros dessa sociedade funcionam como sujeitos-
agentes, no processo de perpetuação e reelaboração
contínua do Léxico de sua língua. Nesse processo em
desenvolvimento, o Léxico se expande, se altera e, às
vezes, se contrai.

Falar de léxico é uma tarefa árdua, analisar a escolha lexical


mais ainda, porque ainda não há muita publicação acerca do
assunto, mas o léxico é citado em tudo, o que pode acabar nos
levando para outros caminhos.

1. Linguagem e seus usos

O termo linguagem conforme DUBOIS et al (2004, p. 387), ―é


a capacidade especifica à espécie humana de comunicar por meio de
um sistema de signos vocais (ou língua), que coloca em jogo uma
técnica corporal complexa e supõe a existência de uma função
simbólica e de centro nervosos geneticamente especializados. No
sentido mais corrente, língua é um instrumento de comunicação,
um sistema de signos vocais específicos aos membros de uma
mesma comunidade.
Dessa forma, COELHO (2006, p. 19), ao discutir alguns
aspectos e dimensões da linguagem, entende que a linguagem é ―[...]
uma faculdade de simbolização e procedimento comunicativo, com
a qual os homens dizem o mundo e se dizem uns aos outros [...]‖ e,
para completar, diz que ela permite um intercâmbio social mais
profundo das experiências vividas coletiva ou individualmente.
Nessa perspectiva, BORBA (2003, p. 2), considera que ―[...] a
linguagem é o mais eficiente instrumento de ação e interação social
de que o homem dispõe‖. Num plano mais filosófico, CASSIRER
(2001, p. 34) trata da filosofia das formas simbólicas e aborda que:

A diferenciação e a separação, as fixações de certos


momentos do conteúdo através da palavra não se
limitam a neles designar uma determinada qualidade
intelectual, mas, na verdade, lhes conferem esta
qualidade, em virtude da qual eles vêm a situar-se acima
do mero imediatismo das qualidades ditas sensíveis.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 44


“Voluntariar”: uma escolha lexical

Assim, a linguagem torna-se um instrumento espiritual


fundamental, graças ao qual realizamos a passagem do
mundo das meras sensações para o mundo da intuição e
da representação.

Portanto, entende-se que a linguagem é um instrumento


indispensável ao homem, visto que é através dela que transpõe suas
sensações do plano real para o plano da representação. A linguagem
é o meio pelo qual os sujeitos melhor se interagem socialmente e
compartilham suas experiências, ou seja, é a expressão do mundo
real e do universo que cerca o sujeito, bem como, está representada
nos signos linguísticos. BORBA (2003, p. 10), por sua vez, ressalva
que a linguagem, sendo uma atividade simbólica, opera com
elementos que representam a realidade, porém sem constituírem
eles a realidade em si mesma. Assim sendo, os símbolos linguísticos
representam a realidade, mas não a constitui.

2. Léxico

Segundo DUBOIS et al (2004, p. 364), ―como termo geral, a


palavra léxico designa o conjunto das unidades que formam a língua
de uma comunidade, de uma atividade humana, de um locutor,
etc.‖.
Por não estar devidamente diferenciado ou definido, o
conceito de léxico frequentemente é confundido. O léxico é utilizado
pela linguística textual a fim do melhor e mais adequado uso das
palavras da língua portuguesa.
O léxico de uma língua natural compõe-se de unidades
linguísticas denominadas unidades lexicais, que se organizam no
discurso, por meio de operações gramaticais, a fim de tornar o texto
uma unidade sociocomunicativa, isto é, dotada de sentido. A
expressão unidade lexical, estruturada pela combinação de
morfemas ligados por coesão interna, é observada por sob dois
critérios: a mobilidade de posição e a inseparabilidade de elemento.
Por mobilidade, entende a autora a possibilidade de permuta de
uma palavra por outras palavras da frase, opondo-se essa à sua.
É necessário saber que características o léxico possui para
ser o fator da língua em que o ambiente físico e social dos falantes
melhor se manifesta. Para essa abordagem faz-se a conceituação de
algumas das principais características que essa variável comporta
dentro da Linguística. O entendimento dessas foi fundamental para

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 45


Aline Lima PINHEIRO

elaboração da analise léxica deste trabalho. Sobre os estudos do


léxico, COELHO (2008, p. 14) alega que:

O léxico é um sistema de signos, ―[...] isto é, o inventário


das unidades significativas responsáveis pela
conceituação e representação do universo empírico
natural e do sociocultural produzido pela atividade dos
homens em sociedade, [...]‖ O léxico é, desta feita, um
inventário de signos linguísticos por meio dos quais o
homem se expressa e se comunica.

O léxico é considerado a área de estudos da linguagem que


mais amplamente espelha a realidade linguística, cultural, e social
de uma comunidade, uma vez que ele é constituído por palavra e,
somente, através dele é que se torna possível à transmissão de todo
conhecimento adquirido e acumulado ao longo da história de um
povo, nas mais variadas áreas do saber, de uma geração a outra.
―Assim sendo, a história de um povo, sua cultura, sua maneira de
viver, ver e sentir o mundo são documentados através das escolhas
lexicais que esse povo faz‖. OLIVEIRA, (2009, p. 45). SAPIR (1969, p.
45) ao estudar a relação entre língua e ambiente, ele observa que:

o léxico da língua é que mais nitidamente reflete o


ambiente físico e social dos falantes. O léxico completo
de uma língua pode se considerar, na verdade, como o
complexo inventário de todas as ideias, interesses e
ocupações que açambarcam a atenção da comunidade
[...].

O léxico é como um conjunto de subsistemas que permitem


a formação de campos semânticos e lexicais; um conjunto de traços
semânticos que permitem opor um signo ao outro; um conjunto de
signos cuja significação é equivalente com distribuição diferente;
um conjunto de signos que tomam o valor de suas relações
paradigmáticas e sintagmáticas com outros signos.

2.1 O léxico e a publicidade

Na construção dos anúncios publicitários, pontualmente, os


redatores procuram selecionar unidades léxicas apropriadas a
determinado produto e/ou serviço para objetivar uma venda a um
público selecionado. Essa construção textual deve ser cuidadosa e
tem como objetivo ampliar o desejo do consumidor, pois ―só se
pode seduzir alguém que já esteja disposto a ser seduzido‖

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 46


“Voluntariar”: uma escolha lexical

(LIPOVETSKY, 2000, p. 9). Para alcançar suas pretensões, segundo


CARRASCOZA (1999, p. 33):

[a] construção de uma mensagem é fruto de uma


cuidadosa pesquisa de palavras, vital na elaboração do
texto de propaganda impressa. Optar por este ou aquele
termo não é uma atitude arbitrária, mas sim ideológica‖.
E conclui que, na montagem do texto publicitário, ―as
palavras também são escolhidas a dedo, [...] de forma a
criar intimidade com o leitor, para assim simular um
diálogo [...].

Notamos, dessa maneira, é que, se o léxico é capaz de


rastrear a existência humana e sua história, podemos então admitir
que o arranjo da seleção léxica em publicidade também pode ser um
canal no qual podem ser descobertos comportamentos sociais. Isso
significa que, ao elaborar a mensagem, o publicitário leva em conta
o receptor ideal. Ele toma como base o que falta ao ser humano para
ser completo como pessoa - prestígio, amor, sucesso, lazer e vitória
- e, para alcançar seu objetivo, usa palavras adequadas que
despertem o desejo natural de felicidade e realização. De acordo
com GARBOGGINI (2005, p. 101):

A publicidade, enquanto linguagem plurissígnica,


reforça os padrões de comportamento estabelecidos
pela sociedade dominante ou idealizada, refletindo a
realidade e a refratando de forma idealizada para ser
atraente e fixar uma imagem positiva da marca. Somente
com uma ótima estratégia de marketing, composta por
propaganda, preço, produto e distribuição, cada
empresa poderá alcançar, realmente, seu público alvo,
convencendo-o a adotar seus produtos.

3. A escolha lexical

A escolha das palavras sempre teve importância vital para a


eficiência comunicativa. Muitos dos objetivos alcançados através da
comunicação decorrem das palavras escolhidas e empregadas pelo
falante. Tal seleção também se mostra fundamental na hora de
escrever um texto. Drummond comparou essa escolha a uma luta,
demonstrando quão árdua é a tarefa de selecionar os vocábulos a
serem utilizados pelo autor: ―Lutar com as palavras é a luta mais
vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã‖ (Drummond, 1992: 182).
Contudo, muitas vezes nos ocupamos da escolha lexical presente

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 47


Aline Lima PINHEIRO

em textos de cunho literário, deixando à parte o trabalho de seleção


vocabular realizado em textos publicitários ou de outra natureza.
A escolha lexical está relacionada à estruturação de textos.
Um texto é um tecido de ideias, isto é, uma rede de ideias: a uma
anterior é preciso somar uma nova (que a explica que se opõe a ela,
que mostra uma consequência etc.); a uma ideia expressa é preciso
acrescentar mais informações; ou seja, o conjunto de informações
precisa caminhar e ter uma relação tal, que o texto seja
manifestação de um raciocínio (de uma sequência de ideias). Para o
leitor, devem estar claros os laços. Que se estabelecem entre o que
se diz antes e o que se diz depois. Da primeira frase à última, deve
haver um encadeamento, uma coesão tal que se perceba o
desenvolvimento das ideias. A coesão (a amarração entre as ideias) é
fruto, entre outras características (escolha de conectivos, advérbios,
pronomes, elipse), da escolha vocabular. Optar por um sinônimo,
por uma palavra de sentido mais ou menos abrangente, optar por
um antônimo, fazer referência a uma ideia por meio de uma
metáfora são recursos de que o falante pode lançar mão para obter
coesão textual.

4. Análise

Antes de partirmos para análise individual das imagens,


preciso situar quanto uma análise geral das mesmas, para os
aspectos visuais e da linguagem não verbal. Todas elas levam na cor
de fundo as cores da bandeira brasileira: verde, amarelo, azul e
branco. Isso se deve ao fato de que quando a empresa citada mudou
seu nome fantasia de Companhia Vale do Rio Doce para Vale em
2008, na nova logomarca (anexo) leva as cores verde e amarelo,
trazendo uma imagem genuinamente brasileira, que é exatamente o
que a empresa queria. Com isso a fundação Vale teve que se
adequar também quanto sua imagem. Por isso trouxe as cores da
bandeira para construir também sua logo, como identidade
nacional. (anexo)
Veremos que em todas as postagens, as figuras, imagens são
construídas através de fios emaranhados, de linhas, sem início e
fim, para nos dar a ideia de infinito e continuidade. As linhas e/ou
fios nos remetem também à ideia de tecer, costurar, e os pontos
representam os comitês que entram em conexão uns com os outros
através das linhas e todos juntos formam várias figuras. Isso remete
à ideia de que a ideologia tem cor, tem ícones que, por vezes se
reúnem em torno de um projeto ―gráfico discursivo‖, como afirma
Brait (2005, P. 72), em uma análise de um anúncio publicitário da GE

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 48


“Voluntariar”: uma escolha lexical

Iluminação:

A primeira coisa que se deve considerar é que esse é um


enunciado verbo-visual e, portanto, imagens (cores,
figuras, lugar que ocupam no espaço enunciativo etc.) e
sequências verbais estão inteiramente articuladas,
interatuantes, a partir de um projeto ―gráfico‖, de um
projeto discursivo. Por essa razão para efeito de análise
e produção de sentidos, não podem ser ―separadas‖.

O corpus utilizado para a presente analise foram retirados


da rede social mencionada (Fan page Voluntários Vale, no
Facebook), no ano de 2013, durante os meses de janeiro a
dezembro.

4.1 Imagem 1

Esta primeira imagem foi postada dia 02 de agosto de 2013.


Após um bate-papo com o Presidente, o diretor-presidente da Vale,
Murilo Ferreira ao ser questionado ―Qual sua opinião e perspectivas
acerca do ―Programa Voluntários Vale‖. E o resumo da sua resposta
está no post, na imagem acima. Um olhar para linguagem não verbal
e notamos algumas relações. As linhas tecem uma arvore, é uma
copa grande, um tronco também robusto o que pretende nos
mostrar solidez, resistência, força e durabilidade. Não podemos
deixar de mencionar no projeto ―gráfico discursivo‖, a cor verde,
que não está sendo utilizada por acaso. Essa nos remete à ideia de
meio ambiente, uma imagem de que a empresa se preocupa com a
sustentabilidade e o meio ambiente, por isso também se vê a árvore
sobre o fundo verde. Preocupação com recursos naturais.
Ao falarmos ou escrevermos, fazemos uma escolha lexical e
gramatical da língua, buscando construir sentidos adequados às
situações comunicativas de que participamos. De acordo com
Carvalho (2002, p. 102) a língua é carregada de cultura em todos os
níveis. Mas é o termo, a expressão que carrega a maior carga

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 49


Aline Lima PINHEIRO

cultural, a cultura comportamental comum.


Na presente imagem notamos que os termos e expressões
escolhidos:COMPARTILHAMOS, PRATICAMOS, CRESCER E EVOLUIR
JUNTOS E FAZER ACONTECER, foram pensados e escolhidos,
possivelmente, deforma a enaltecer o programa sem descartar a
empresa, são todos que compartilham, praticam, crescem, evoluem e
fazem acontecer juntos. Vocábulos que casam perfeitamente com a
imagem: árvore. CRESCER, a árvore cresce, quando dá frutos, as
sementes dos frutos a COMPARTILHAM; quando cuidamos das
árvores PRATICAMOS uma ação: o cuidar e quando nos dispomos a
voluntariar FAZEMOS ACONTECER. Nas palavras do diretor
presidente, o favorecimento do programa está bem estabelecido e
sintetizado nos vocábulos mencionados e em dois adjetivos bem
destacados no início da resposta: FORTALECIMNETO e
HUMANIZAÇÃO das RELAÇÕES. Enaltecendo o envolvimento da
empresa, comunidade e empregados, no qual a linha se entrelaça. O
enunciador utiliza adjetivos que enaltecem o programa, atribuindo-
lhe valores específicos, COMO A VIDA EM PRIMEIRO LUGAR.
A seleção lexical parece ser ainda mais reveladora em relação
aos adjetivos, já que ao escolher este ou aquele adjetivo, o
enunciador deixa, no texto, marcas de sua subjetividade e
intencionalidade, o que vem retificar a afirmação de Charaudeau
(1992, p. 663) de que ―qualificar é tomar partido‖:
Dessa forma a empresa dissemina seus valores, e vende uma
imagem de que é uma empresa que se importa com a vida das
pessoas a começar por seus empregados, que são estimulados
também a fazerem o bem ao próximo, a dar valor à vida e contribuir
na sua competência para a comunidade, pois assim ele será
fortalecido e terá suas relações mais humanizadas; com isso,
ganham o empregado, a comunidade e a empresa. Sendo assim:

Os recursos linguísticos têm o poder de influenciar e


orientar as percepções e pensamentos, ou seja, o modo
de estar no mundo e vivê-lo, podendo permitir ou vetar
determinados conhecimentos e experiências, os termos
que dominamos e conhecemos constitui um ―patrimônio
intelectual‖, que se amplia de acordo com a intensidade
de nossa vivência, de modo a permitir uma compreensão
cada vez maior do mundo (no papel dos receptores) e
uma quantidade maior de matizes de significado (no
papel de emissores). Carvalho (2003, p. 19)

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 50


“Voluntariar”: uma escolha lexical

É esse patrimônio que permite o estabelecimento do sentido


de um termo, uma vez que a significação não é determinada
isoladamente, mas consequência de uma cadeia de relações
implícitas e explicitas que a linguagem tem a capacidade de nos
proporcionar. O que é explorado de forma inteligente pelas imagens
postadas na Fan Page Voluntários Vale nas suas publicações.

4.2 Imagem 2

Esta imagem foi postada no dia 23 de agosto de 2013. Sete


dias após a postagem anterior o que volta a reforçar a ideia de
sequência, neste caso semanal para falar dos benefícios do
programa. Nas imagens anteriores, ela mostra quem se beneficia
com o programa, e que benefícios terão os voluntários. Nesta
imagem traz os benefícios para empresa.
No projeto ―gráfico discursivo‖, podemos dizer que a escolha
da cor azul para o fundo da imagem permanece com o mesmo
objetivo, a meu ver, para nos transmitir uma serenidade, paz,
harmonia. A imagem são dois homens abraçados. Ela se adequa
perfeitamente à frase que está ao lado: TRABALHO EM EQUIPE.
Transmite através do sorriso no rosto, satisfação, felicidade, alegria,
leveza, e o abraço sela uma parceira.
Nesta imagem temos algo novo, uma palavra está em negrito,
propositalmente sabemos, para dar enfoque, e esse vocábulo é: OS
VOLUNTARIOS. Os benefícios listados nesta postagem: EXERCÍCIO
DA CIDADANIA, PARTICIPAÇÃO SOCIAL, DESENVOLVIMENTO DE
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 51
Aline Lima PINHEIRO

COMPETÊNCIAS, REALIZAÇÃO PESSOAL, são, pela publicidade,


benefícios para esse voluntario que é funcionário da empresa.
São considerados aspectos do léxico e as orientações
propostas por Van Dijk (2003) para a análise do discurso,
especialmente a escolha lexical como propriedade discursiva
diretamente relacionada à produção e divulgação de ideologias.
Ideologia essa, que a empresa quer propagar no programa de
voluntariado empresarial. A imagem de que é bom para você, para
empresa e para comunidade.

4.3 Imagem 3

Esta imagem foi postada no dia 15 de novembro de 2013,


para continuar falando dos benefícios de ser voluntário. Segue o
texto postado junto com a imagem: ―Ser voluntário na sua
comunidade cria oportunidades para aprender novas habilidades,
fazer amizades e vivenciar experiências diferentes, num processo em
que você muda o mundo e o mundo muda você. E ainda faz bem à
saúde! Pesquisas apontam que ser voluntário faz bem ao coração e
ao sistema imunológico, além de aumentar a expectativa de vida.‖.
―Portanto, não há motivo para não participar! Nas próximas
semanas, divulgaremos algumas ações programadas para o Dia V,
em várias cidades de diferentes estados. Fique atento e participe‖!
No projeto ―gráfico discursivo‖, a análise é assemelha-se à da

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 52


“Voluntariar”: uma escolha lexical

imagem anterior; a única diferença é a borboleta que mudou de


lugar, o que representa um movimento, uma mudança e sempre
para cima/para frente.
A escolha lexical do mote da campanha já foi analisada
anteriormente. Nesta imagem temos novos vocábulos: TEMPO,
TALENTO, ATENÇÃO, OPORTUNIDADE e MUDANÇA. Vamos ver o
texto todo: ―Quando a gente começa a levar um pouco do nosso
tempo, do talento ou da nossa atenção para quem precisa, também
leva uma oportunidade de mudança para a vida destas pessoas‖.
Quando a gente começa, quer dizer, vamos começar, vamos
participar; um pouco do nosso tempo, significa, não precisa de muito
tempo, pode ser um pouco (minutos, poucas horas); do talento ou da
atenção, significa, não precisa doar dinheiro, presentes, alimentos,
doe o seu talento (habilidades) seja nas artes, na segurança, na
capacitação, na culinária, etc. Se não tiver talento não tem problema,
você pode participar com sua atenção, seu carinho, seu cuidado, etc.
Para quem precisa, significa carência, pessoas carentes. Você
também leva oportunidade e mudança para a vida dessas pessoas; o
programa está dizendo isso: a responsabilidade é sua voluntario de
fazer a mudança e de levar a oportunidade a essas pessoas carentes.
Não podemos descartar que a imagem vem com um texto
com escolhas lexicais que tentam novamente persuadir o
empregado/voluntario do quão bom é ser voluntário dos benefícios,
de fazer parte desse programa. Veja: ―Ser voluntário na sua
comunidade cria oportunidades para aprender novas habilidades,
fazer amizades e vivenciar experiências diferentes, num processo em
que você muda o mundo e o mundo muda você.‖.
As escolhas dos vocábulos no texto reforçam como é
maravilhoso esse programa, porque o empregado aprende novas
habilidades, faz amizades, vivencia experiências diferentes, e nesse
processo, ENVOLVIMENTO, o voluntario se TRANSFORMA E
TRANSFORMA o mundo. As vantagens não acabam, no texto
completam dizendo: ―E ainda faz bem à saúde! Pesquisas apontam
que ser voluntário faz bem ao coração e ao sistema imunológico,
além de aumentar a expectativa de vida.‖. Nesse mundo
contemporâneo em que as pessoas têm uma vida corrida, e cada um
tem pouco tempo para cuidar da saúde, e cada vez mais se discute e
se fala da importância de ter hábitos saudáveis, o programa vem e
diz: E ainda faz bem à saúde! Mas se o empregado/voluntário não
estiver convencido de como é bom ser voluntário, ajudar o próximo,
o programa reforça com algo palpável: Pesquisas apontam que ser

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 53


Aline Lima PINHEIRO

voluntário faz bem ao coração e ao sistema imunológico, além de


aumentar a expectativa de vida. Quem não quer ter um sistema
imunológico saudável, um coração bom e quem não quer aumentar
sua expectativa de vida? Por isso o programa fecha com escolhas
sábias dos vocábulos: ―Portanto, não há motivo para não participar!
Nas próximas semanas, divulgaremos algumas ações programadas
para o Dia V, em várias cidades de diferentes estados. Fique atento e
participe‖! E agora? Diante de tantos benefícios mencionados ao
longo de 4 meses o empregado/voluntário não tem motivos para
não aderir ao programa, para não participar das ações. Xeque Mate!
O voluntário ainda pode escolher que ação participar e onde. Pois o
programa irá divulgar as ações que irão acontecer no dia 1/12/2013.

5. Considerações finais

Clara ou misteriosa, simples ou estudada, nacional ou


estrangeira, única ou com múltiplos sentidos, cada palavra possui
uma carga semântica, que pode ser abrandada ou salientada em seu
emprego, produzindo efeitos expressivos quando apreendidos pelo
interlocutor. Elas são capazes de suscitar nele as emoções e
julgamentos pretendidos por quem os produz. Desse modo, a
seleção lexical mostra-se extremamente relevante na argumentação
de textos publicitários, à medida que, bem executada, pode agir
sobre o empregado/voluntário, influenciando a sua adesão ao
programa de voluntariado empresarial.
Como analisado, a escolha vocabular não tem nada de
irrelevante nem é descompromissada em relação aos propósitos das
postagens. Cada vocábulo selecionado tem sua função e um objetivo
dentro do tecido textual. Usando à hipótese de um mapa semântico,
cada palavra escolhida nos remete a uma pista deixada por alguém
que deseja que encontremos o tesouro: o sentido (ou os muitos
sentidos) de um texto.
Percebemos em todas as imagens analisadas que as escolhas
dos vocábulos tinham como objetivo possível induzir e persuadir o
empregado/voluntários a aderir ao programa e assim desfrutar dos
benefícios que ele oferece, para o voluntário, para empresa e para a
comunidade.
A partir de escolhas lexicais destacadas na análise, este
trabalho busca oferecer sugestões de como as escolhas lexicais, as
escolhas de vocábulos podem contribuir para argumentação,

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 54


“Voluntariar”: uma escolha lexical

persuasão de propagandas, publicidades midiáticas, como também,


construir uma imagem positiva de determinado produto ou
empresa, a fim de promovê-lo por meio da escolha lexical,
considerando-a como o caminho de uma construção coerente e com
força persuasiva.

Referências

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computacional. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 56


MURILO MENDES: UM POETA-CRÍTICO, UM CRÍTICO-
POETA

Aline Novais de Almeida


CNPq/USP

Resumo: Pretende-se, neste trabalho, compreender a atividade


crítica praticada por Murilo Mendes (1901-1975). O poeta juiz-
forano deixou registrado em periódicos nacionais e internacionais
sua contribuição crítica, embora estes textos publicados não
reverberaram um grande impacto no cenário das letras brasileiras.
Por outro lado, as peças poéticas escritas ao longo da segunda
metade de sua carreira artística, as quais fundem o aspecto poético
ao crítico, como as que estão nos títulos Retratos-relâmpago – 1º
série (1973) e Retratos-relâmpago– 2º série (1980; 1994), são
representativas do pensamento reflexivo de Murilo Mendes, ou seja,
configuram o que se pode denominar de poesia crítica.

Palavras-chave: Murilo Mendes; Ismael Nery; Poeta-crítico;


Modernismo

Quando listamos os nomes dos críticos brasileiros,


relacionados às artes plásticas e à literatura, do século XX,
raramente encontra-se alguma menção a Murilo Mendes (1901-
1975). Os autores que comumente constituem o cenário da crítica
no Brasil desse período são: João Ribeiro, Manuel Bandeira, Ronald
de Carvalho, Martins de Almeida, Oswald de Andrade, Mário de
Andrade, Alceu Amoroso Lima (também conhecido pelo
pseudônimo de Tristão de Ataíde), Sérgio Milliet, Prudente de Morais
(neto), Sérgio Buarque de Holanda, Álvaro Lins, entre outros.
Nessa comunidade de críticos, identificam-se, entre os
participantes, aqueles que também desempenharam o exercício
ficcional, seja na poesia e/ou na prosa, escrevendo obras que
contabilizam, ao lado dos textos críticos, o seu patrimônio artístico
e intelectual. É comum entre os escritores e os poetas brasileiros

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Aline Novais de ALMEIDA

identificar a prática dessa dupla função, a literatura e a crítica.


Murilo Mendes, apesar de não inscrito no grupo dos escritores-
críticos, é uma dessas figuras que contribuiu para a construção do
campo literário brasileiro, não apenas pela sua incursão poética que
se materializa no ano de 1930, com o lançamento do livro de estreia
Poemas, mas, igualmente, pela frequente divulgação de artigos,
crônicas, resenhas, ensaios, que focalizam os seus contemporâneos
das artes e da literatura. Além disso, o poeta-crítico aplicou-se no
debate de outros temas como, por exemplo, o catolicismo, a política
e a preservação do patrimônio cultural brasileiro, difundindo na
imprensa o seu ponto de vista a respeito dessas questões que, por
vezes, movimentaram querelas.
No tocante às críticas dos contemporâneos, é necessário
sublinhar o ensaio que Murilo Mendes escreveu sobre o artista
Ismael Nery (1900-1934). A partir da publicação de textos que
saíram, semanalmente, entre os anos de 1948 a 1949, quase que
concomitantemente nos periódicos O Estado de S. Paulo e no
Suplemento ―Letras e Artes‖, do jornal carioca A Manhã, o crítico
traça um percurso artístico-intelectual do amigo que morrera
precocemente, vítima de tuberculose, aos 33 anos de idade. Sendo
Ismael Nery um artista excêntrico, justamente por ser
interdisciplinar e aglutinador de diversos saberes, as dezessete
crônicas publicadas nesses periódicos formam, na verdade, um
único ensaio, desvelando aspectos deste virtuose que não se conteve
em manipular, unicamente, os pincéis e as telas em sua trajetória,
ao contrário, esteve sempre numa completa deriva artística,
conforme elucida Murilo Mendes em uma das crônicas:

Era, por exemplo, um dançarino notável, tendo recusado


uma vez, em Roma, convite para trabalhar com o célebre
Volinini na sua troupe de bailados. Foi um dos primeiros
arquitetos modernos do Brasil, tendo feito uma vasta
série de projetos, muitos até sem assinatura [...]
construiu uma série de esculturas que desmanchava
uma após a outra. Pintava rapidamente e apagava logo;
debaixo dos quadros que deixou existem outros, pois
quando não apagava pintava por cima [...] Desenhava
com espantosa facilidade, improvisando a todo
momento, nas mesas de café, em qualquer pedaço de
papel que tivesse ao alcance da mão [...] Jogava os
desenhos no cesto [de lixo], de onde eu conseguia retirá-
los [...] tinha grandes qualidades de teatro e cenógrafo.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 58


Murilo Mendes: um poeta-crítico, um crítico-poeta

[...]
Ismael era poeta contumaz, e ninguém conheci mais
poeta do que ele1.

Cabe ressaltar que as crônicas publicadas no jornal


paulistano e na revista carioca, posteriormente, foram reunidas no
livro Recordações de Ismael Nery, lançado em 1996. O título dado à
série é bastante pertinente, uma vez que se demarca um tom
ensaístico, entrecruzado pelo registro da narrativa memorialística. O
hibridismo da escritura muriliana deixa escapar que tal coletânea
não guarda apenas um estudo sobre a vida e a obra do artista
nascido em Belém do Pará, mas sim o testemunho de um homem
que rememora, pelo registro da crítica, sua própria vida artística,
isto é, formação, experiências, afetos compartilhados e, sobretudo, a
amizade de 13 anos com Ismael Nery.
O cruzamento de gêneros textuais feito por Murilo Mendes
não impediu que as suas crônicas obtivessem uma boa recepção
entre seus pares, ainda nos dias atuais, a obra Recordações de
Ismael Nery é considerada uma das mais relevantes referências
acerca do artista paraense. Afinal, um dos interesses do crítico era
não deixar que a contribuição (artística, filosófica e teológica)
ismaelita caísse no obscurecimento. Antes mesmo do lançamento
dessa série de textos, no mesmo ano da morte do amigo, em 1934,
Murilo escreveu para o mensário carioca Boletim de Ariel o texto
―Ismael Nery, poeta essencialista‖. No ano seguinte, em 1935,
recolheu poemas e pensamentos, em prosa, do autor, os quais
divulgou, respectivamente, nos periódicos cariocas A Ordem e n‘O
Jornal. No mais, o poeta-crítico organizou em 1935, na instituição
Pró-Arte, no Rio de Janeiro, uma exposição com as obras plásticas
de Ismael Nery.
Esse afã de Murilo Mendes em promover o legado artístico e
intelectual do amigo não era à toa. O poeta juiz-forano previa que se
não houvesse um esforço imediato, tanto de sua parte como de
outros que acompanharam a trajetória ismaelita, essa figura
singular poderia ser apagada da história das artes nacionais. Nesse
sentido, era necessário convocar os companheiros a escreverem
sobre aquele que os deixara de maneira extemporânea. Antes de

1
MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. 2º ed., São Paulo: EDUSP;
Editora Giordano, 1996, p. 28-29.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 59
Aline Novais de ALMEIDA

efetivar a exposição póstuma dos quadros e desenhos de Ismael


Nery, na Pró-Arte, notabiliza-se a solicitação de um texto sobre a
obra do artista paraense que Murilo Mendes demanda a Mário de
Andrade. Em carta de 26 de abril de 1934, Murilo pede ao escritor
paulista que visite a exposição e escreva algo a propósito:

[...] Em junho vou fazer no Rio uma grande exposição


dele, desejava que a visses para escreveres alguma coisa.
Quanto a mim, pelo fato de o ter conhecido muito, mal
posso escrever sobre ele. Ismael era a mais complexa
organização de artista e filósofo de que tenho tido
notícia. É relativamente fácil escrever sobre uns tantos
quadros ou sobre uma fase de desenhos – mas sobre o
―todo‖ Ismael, é quase impossível! Em todo o caso,
quero ver se escrevo a vida dele2.
No trecho dessa missiva, é possível constatar o chamamento
crítico que Murilo Mendes faz, o seu intuito era filiar importantes
nomes da crítica para escreverem sobre Ismael Nery. Como é sabido,
Mário de Andrade era um consagrado crítico de arte e literatura da
época, ou nas palavras de Murilo Mendes: ―[...] era mais uma grande
voz do Brasil que se pronunciava ante a indiferença dos cegos 3‖,
inclusive o autor de Macunaíma já havia escrito um texto
determinante sobre as obras plásticas ismaelitas, que saiu no Diário
Nacional, em 10 de abril de 1928. Ademais, a carta revela o desejo
que Murilo vislumbrava, já no ano de 1934, de escrever sobre a vida
do amigo. No entanto, como a morte de Ismael era algo muito
recente (falecera no dia 6 de abril), a consumação daquele ―todo‖
não aconteceria por ora, era preciso distanciar-se temporalmente
das lembranças, ou até mesmo superar o luto.
De todo modo, o plano de um estudo mais aprofundado
sobre a vida e a obra de Ismael Nery começou a se concretizar
somente em 1948, com a publicação do primeiro texto da coletânea
Recordações. Na contagem do tempo, entre o anúncio do projeto
escritural (1934) e a realização (1948), Murilo Mendes levou 14 anos
para apresentar, publicamente, a sua empreitada crítica. Ainda que

2
IEB-USP, Fundo Mário de Andrade, Série Correspondência Mário de
Andrade, MA-C-CPL4666.
3
MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. 2º ed., São Paulo: EDUSP;
Editora Giordano, 1996, p. 121.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 60
Murilo Mendes: um poeta-crítico, um crítico-poeta

tenha escrito textos mais curtos em periódicos, poemas-homenagem


e até divulgado o conjunto das obras ismaelitas em exposição, o
poeta-crítico tencionava elaborar, conforme se observa na carta a
Mário de Andrade, algo sobre o ―todo‖ de Ismael Nery, que só
alcançou com o lançamento da série.
Toda diligência empregada por Murilo Mendes contribuiu
para manutenção da biografia e da obra de Ismael Nery, ainda que o
artista tenha sido inserido, tardiamente, na história das artes
brasileiras. A revitalização desta figura sui generis é devedora do
empenho do crítico que, em suas Recordações, elenca a
problemática do apagamento que o amigo já sofria durante a vida:

Ismael Nery, mais do que ninguém, absorvido por uma


multiplicidade de problemas, pode passar quase
despercebido nesse vago Brasil dos 1920 a 1934. Assim
como passou por inculto devido à falta de biblioteca [...],
também não conseguiu se impor como filósofo, porque
não deixou um sistema escrito [...] Tão grande era sua
aversão à publicidade que nunca se preocupou com a
irradiação do seu sistema, de maneira extensa e
superficial, preferindo a concentração e a profundidade.
Muitas vezes o interpelei-o a respeito da transmissão de
suas ideias estéticas, filosóficas e religiosas. Dizia-lhe eu
que um homem da sua estatura era indispensável ao
mundo; que, sendo impossível aos seus amigos
divulgarem suas ideias, devido ao tom singular e pessoal
com que ele as apresentava, Ismael invariavelmente me
respondia que não havia nenhuma importância nisso; e –
textualmente – ―que suas ideias eram verdadeiras,
haveriam de se transmitir na sucessão das idades, não
importando que aparecessem com o nome dele ou de
outro4.‖

Conforme se verifica no relato, Ismael Nery possuía uma


personalidade extravagante diante da vida e das artes, o que
possivelmente cooperou para que houvesse uma resistência entre os
pares para compreendê-lo. No que concerne aos desenhos e aos
quadros ismaelitos, não obstante estejam nas mãos de instituições
de salvaguarda ou de colecionadores particulares, Murilo Mendes foi

4
Ibidem, p. 34-35.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 61
Aline Novais de ALMEIDA

o responsável pela conservação e preservação desse conjunto. Se


como poeta ou mesmo pensador Ismael não tinha o hábito de
registrar e divulgar as suas ideias e proposições, no âmbito das
artes plásticas se dava algo semelhante. Na coletânea Recordações,
mais uma vez, destaca-se a relação incômoda que o artista paraense
mantinha com a sua criação, tal fato o levava a lançar,
frequentemente, os seus trabalhos no cesto de lixo. Contudo, o
arguto crítico e amigo conseguiu, ao longo dos anos de convivência,
fazer alguns reparos, conforme ele mesmo narra: ―Não tinha em
casa nenhum quadro de sua autoria. Jogava os desenhos no cesto,
de onde eu conseguia retirá-los, ora com a ajuda de sua mulher – a
poetisa Adalgisa Nery – ora subornando as empregadas5.‖
Durante os 13 anos de convivência plena com Ismael Nery,
diversas composições foram salvas, porém, outras, talvez, tenham
se perdido para sempre. Toda a energia investida pelo crítico apenas
trouxe um resultado mais satisfatório, digamos assim, em 1965,
quando as obras plásticas ismaelitas foram expostas na VIII Bienal
de São Paulo, na sala especial Surrealista e Arte Fantástica, ao lado
de renomados artistas internacionais, como: Marcel Duchamp, Marc
Chagall, Joan Miró, Jean Arp, Man Ray, Paul Klee, Paul Delvaux, René
Magritte e Francis Picabia.
O conjunto das obras de Ismael Nery havia ficado em posse
de Murilo Mendes, que o repassou, nos anos de 1960, aos herdeiros,
os filhos, Ivan e Emmanuel, e a viúva, Adalgisa Nery. A respeito
disso, a curadora da exposição Ismael Nery, em busca da essência,
realizada em 2015, na Galeria de Arte Almeida e Dale, em São Paulo,
Denise Mattar, explica que a saída de Murilo Mendes do Brasil, no
decênio de 1950, por questões profissionais (ele era professor de
literatura e cultura brasileira na Itália), fez com que a obra do artista
paraense ficasse esquecida. De acordo com as suas palavras:

Com a viagem de Mendes ao exterior [...], a obra de Nery


ficou totalmente esquecida até a realização da sala
Surrealista e Arte Fantástica na VIII Bienal, em 1965. A
mostra coincidiu com o momento em que Adalgisa e os
filhos receberam de Mendes toda a obra de Nery e
começaram a vendê-la através de Maria Lacerda. Os
marchands Giuseppe Baccaro e Franco Terra Nova

5
Ibidem, p. 29.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 62
Murilo Mendes: um poeta-crítico, um crítico-poeta

compraram a maior parte das obras e a Petite Galerie


realizou, em 1966, a primeira retrospectiva do artista6.

Não parece justo imputar a Murilo Mendes o esquecimento


de Ismael Nery, afinal, segundo o que se apresentou até aqui, houve
por parte do crítico juiz-forano o interesse em revitalizar o legado
artístico e intelectual ismaelito, bem como salvaguardar desenhos e
quadros da destruição que geralmente era imposta pelo seu criador.
Em todo caso, de acordo ainda com a curadora Denise Mattar,
mesmo a distância temporal entre a morte do artista paraense e sua
primeira retrospectiva não impediu a valorização das peças no
mercado das artes, mas, por outro lado, muitos itens foram
adquiridos por colecionadores particulares:

Apesar de 32 anos terem se passado entre a morte e a


primeira retrospectiva, o impacto da obra no mercado
foi instantâneo: nos anos 70, as telas do artista já
alcançaram um preço excepcional. Essa conjunção de
fatores: longo esquecimento e súbita valorização fez
com que a obra de Nery ficasse concentrada quase que
exclusivamente em mãos de colecionadores
particulares7.

Após essa longa análise que se refere à construção crítica de


Murilo Mendes acerca do artista, filósofo e teólogo Ismael Nery,
percebe-se, portanto, que o trabalho desenvolvido pelo poeta-crítico
não se restringiu à publicação de uma série de crônicas ou à
organização de uma exposição póstuma. Confirma-se, desse modo, a
mobilização de todo um campo artístico para alçar a figura de
Ismael Nery ao posto que lhe era devido, isto é, o posto dos
representantes das artes nacionais. Nesse sentido, vale abordar,
brevemente, outras incursões do poeta-crítico.
Desde o aparecimento de Murilo Mendes no cenário das
letras brasileiras, a recepção dos seus livros foi assinada por
notáveis nomes, entre eles: Mário de Andrade, Manuel Bandeira,
Tristão de Ataíde. Como exemplo disso, percebe-se que o livro de

6
MATTAR, Denise. Ismael Nery – um mito. In: Catálogo da Exposição Ismael
Nery, em busca da essência. Curadoria Denise Mattar. São Paulo: Galeria de
Arte Almeida e Dale, 2015, p. 6.
7
Ibidem, p. 6.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 63
Aline Novais de ALMEIDA

estreia do poeta juiz-forano, Poemas, de 1930, sensibilizou o autor


de Macunaíma a escrever o ensaio ―A poesia em 30‖, publicado
primeiro na Revista Nova em 1931, e, posteriormente, integrado à
coletânea ensaística Aspectos da literatura brasileira, de 1943.
Antes da obra de estreia, Murilo havia publicado, nos anos de
1920, poemas nos periódicos modernistas Revista de Antropofagia e
Verde, entretanto, não desempenhou o papel de comentador dos
títulos dos companheiros que integravam o chamado ―primeiro
tempo modernista‖. O silêncio do autor juiz-forano é bastante
significativo, uma vez que ele escolhe não abordar, em textos
críticos, as obras que possuem nesse período uma postura de cunho
nacional.
O engajamento crítico de Murilo Mendes começa a se
desenhar, sobretudo, a partir dos anos de 1930, embora vivesse no
Rio de Janeiro desde o ano de 1921 e já houvesse esboçado uma
experiência jornalística ao escrever crônicas para o jornal A Tarde,
de sua cidade natal, a mineira Juiz de Fora. A fase heroica do
modernismo brasileiro (1922-1930) não foi a sua predileção, mesmo
que tenha escrito poemas e um livro que dialogam com o programa
modernista, como é o caso da obra satírica História do Brasil,
lançado em 1932, mas escrito nos anos de 1920. A propósito, é
imprescindível destacar que História do Brasil foi suprimida da
reunião poética de 19598, organizada pelo próprio poeta, fato este
que, talvez, explique as escolhas estéticas de Murilo Mendes. No
tocante à filiação muriliana ao modernismo brasileiro, a partir da
publicação de História do Brasil, Abgar Renault, no artigo ―Sobre
Murilo Mendes‖, faz a seguinte afirmação:

Apesar de haver surgido já quando o Modernismo


finalizava a sua luta de destruição, Murilo Mendes não
deixou de satirizar, no seu História do Brasil, o toque
nacionalista com que o Modernismo se inaugurava e
substituía o helenismo parnasiano por motivos
nacionais, tão falsos, a nosso ver, como os reflexos da
Grécia.9
A temporária adesão de Murilo Mendes às questões do

8
Refere-se à obra Poesias (1925-1955), publicada pela editora carioca José
Olympio em 1959.
9
RENAULT, Abgar apud FRIAS, Joana Matos. O erro de Hamlet: poesia e
dialética. Rio de Janeiro: 7 Letras; Juiz de Fora: Centro de Estudos Murilo
Mendes– UFJF, 2002, p. 24.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 64
Murilo Mendes: um poeta-crítico, um crítico-poeta

modernismo pode ter inserido o autor nesse lugar mais ―marginal‖


da literatura modernista. Apesar do reconhecimento artístico,
verificável até os dias de hoje, a figura muriliana ocupa um posto
mais limítrofe no quadro do modernismo ou, porque não dizer,
mais incômodo, prova disso é o apagamento do seu nome no grupo
dos críticos brasileiros. Tal constatação revela um aspecto
importante sobre esses críticos, principalmente os da primeira
metade do século XX: são sujeitos que trabalharam em prol do
movimento modernista, isto é, colaboraram com a consolidação e a
permanência do modernismo na história da literatura brasileira. A
estratégia muriliana de corroer, pelo silenciamento ou pela sátira, a
perspectiva nacionalista das artes e da cultura brasileira, um dos
pontos mais relevantes da agenda modernista, decerto não
legitimou a sua participação na comunidade dos críticos do período.
A constatação apresentada sobre a atitude muriliana frente
ao modernismo brasileiro, especificamente em relação à fase
heroica, deve ser considerada, por ora, como formulação de uma
hipótese que necessita ser mais bem aprofundada e exemplificada
por meio da análise e da interpretação das peças poéticas do autor.
Por outro lado, tal conjectura a respeito da presença-ausência de
Murilo Mendes no quadro da crítica de arte e literária possibilita
refletir de que maneira se concebe a sua atividade crítica. Como
observado anteriormente, o apagamento do seu nome no rol da
comunidade crítica não corresponde ao volume de artigos, resenhas,
prefácios, ensaios que ele assinou ao longo da sua carreira, inclusive
no âmbito internacional.
Além dessa coleção textual, publicada majoritariamente na
imprensa, o autor juiz-forano construiu, a partir dos anos de 1950,
um trabalho literário que tenta extrapolar os limites do gênero
lírico, o qual se configura como uma espécie de poesia-crítica. Os
títulos, embora escritos entre 1950 e 1960, foram publicados anos
depois, muitos até postumamente. De todo modo, trata-se de um
período de intensa experimentação poética, em que as obras
parecem defender uma escritura que consegue problematizar o
drama da linguagem, afinal, o poeta-crítico está completamente
afetado pelos efeitos das duas grandes guerras, ainda que as tenha
atravessado na periferia dos acontecimentos. A decepção com a
humanidade o impulsiona a buscar novas formas líricas e, por isso,
ele investe, sobremaneira, numa intensa subjetivação, o que o leva a
trazer para o tecido textual a memória e a reflexão. O poeta abre
mais espaço para o crítico, não para substituí-lo, mas para articular

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 65


Aline Novais de ALMEIDA

as duas práticas na composição poética. Convém sublinhar, por fim,


que é também nos anos de 1950 que Murilo Mendes se transfere
definitivamente para Europa, estabelecendo-se na Itália como
professor universitário de literatura e cultura brasileiras.
Para concluir a discussão apresentada, exemplifico esse
período do autoexílio italiano e de intenso trabalho literário e
professoral de Murilo Mendes com o poema intitulado ―Jorge de
Lima‖, de Retratos-relâmpago – 1ª série, lançado em 1973, último
livro publicado pelo autor em vida. Essa obra é tão exemplar para
pensar o desdobramento do poeta em crítico que traz na dedicatória
o nome de Antonio Candido de Mello Souza, ou seja, um dos mais
renomados da crítica literária brasileira. O volume pode ser
concebido como um álbum de retratos, dividido em três setores
distintos. O primeiro reúne o retrato de poetas e homens das letras,
o segundo, de pintores e artistas plásticos, e o terceiro, de músicos:

Jorge morreu. – Aonde!


As negras flores de Jorge. As negras Fulores de Jorge. As
negras – furores de Jorge. O Cristo poeta de Jorge. O
Cristo porta de Jorge. O Cristo poeta de Jorge. As
Antecristas de Jorge. Os puros calungas de Jorge. As
alagoas de Jorge. As vastas ôndeas de Jorge. Os
Mundáus de Jorge. As alamandas de Jorge. As alamedas
de Jorge. Os trilemas de Jorge. As geografias de Jorge.
As infâncias de Jorge. As eternidades de Jorge. Os
tempos multiplicados de Jorge. Os templos
multiplicados de Jorge. A leptologia de Jorge. O sufismo
de Jorge. A desmalícia de Jorge. As seringas de Jorge. O
Zozilhar de Jorge. As Miracelas de Jorge. As Miraterras
de Jorge. As celidônias de Jorge. As solidônias de Jorge.
E os guaiamuns de Jorge.

O monumento a Orfeu, de Orfeu10.

O poema ―Jorge de Lima‖ encontra-se no primeiro setor do


livro, embora pudesse ocupar a segunda seção, posto que Jorge de
Lima é um sujeito plural, pois sendo poeta, era também um exímio

MENDES, Murilo. ―Jorge de Lima‖. In: ______. Poesia completa e prosa.


10

Organização, preparação do texto e notas Luciana. S. Picchio. Rio de Janeiro:


Editora Nova Aguilar, 1994, p. 1236.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 66
Murilo Mendes: um poeta-crítico, um crítico-poeta

artista plástico, compôs quadros, desenhos e fotomontagens. Além


da relação com as artes, mantinha em pleno exercício a carreira
médica, e o seu local de trabalho o permitia conjugar as duas
atividades, era um consultório-ateliê. De certa forma, a peça poética
apresenta a pluralidade do amigo retratado, já que se notabilizam
os vários Jorges ao longo do texto. O autor escolhe destacar, talvez
para caber na divisão pensada para a obra, o perfil do poeta Jorge
de Lima. A partir do uso da figura metonímica, elenca-se, por
exemplo, os poemas ―Essa negra Fulô‖, ―Celidônia‖, ―Bendito
Calunga‖, ―Serra da Barriga‖, e as obras Poemas negros, Anunciação
e encontro de Mira-Celi, Tempo e eternidade, Invenção de Orfeu.
Além do desfile de poemas e livros do autor alagoano, pela
utilização do mesmo recurso poético, apontam-se características da
poesia e da biografia: a tematização do negro e da infância, o
refinamento e a sutileza escritural, a conversão católica, o
misticismo, o sincretismo religioso, a medicina como profissão
paralela, o regionalismo não localista e a tendência órfica.
O poema em prosa justapõe várias imagens pertencentes à
figura de Jorge de Lima, contudo, não pretende, simplesmente,
apresentar um agrupamento de traços do poeta. Pelo contrário,
almeja, por meio do movimento chamado descriptivo 11, noção
articulada por Philippe Hamon, construir uma descrição que mescle
uma faceta objetiva e subjetiva do objeto. O sujeito poético
seleciona do seu imaginário a sua experiência (leituras, conversas,
viagens, observações de objetos, pessoas, textos escritos) e a
transporta para a dimensão da palavra a partir de uma descrição
que não se pretende realista-objetiva, mas capaz de desvelar
sentidos inalcançáveis e projetar imagens que parecem elucidar uma
montagem, uma verdadeira fotomontagem.
Nesse sentido, escrever um retrato sobre Jorge de Lima não é
somente capturar os clichês já estabelecidos sobre a vida e a obra
do alagoano, é antes construir um outro modo de apresentá-lo,
recriar outras sensações que o autor de ―Essa negra Fulô‖ pôde
incitar no imaginário do poeta-crítico. Apesar do tom discursivo,
acentuado pelo poema em prosa, explode no texto uma rítmica
marcada pelas assonâncias e repetições, além, é claro, do nome

Sobre o movimento descriptivo, ver: HAMON, Philippe. Du descriptif. Paris:


11

Hachette Livre, 1993.


Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 67
Aline Novais de ALMEIDA

próprio ―Jorge‖, que se propaga do início ao fim do poema como um


eco. Decerto, Murilo Mendes circunscreve uma ―leptologia 12‖, ou
melhor, uma ―leptografia‖ (leptós, do grego, significa: descascado,
sem pele, fino, miúdo, delicado, delgado, estreito, fraco, leve,
refinado13) do sujeito que ele escolheu retratar, desfolhando, em
camadas, o artista Jorge de Lima. Nessa curta reflexão-relampejar, o
fiat lux é retomado, pois, é nesse clarão súbito, provido de descarga
elétrica, que se encontra a criação poética de Murilo Mendes.

Referências

FRIAS, Joana Matos. O erro de Hamlet: poesia e dialética. Rio de Janeiro: 7


Letras; Juiz de Fora: Centro de Estudos Murilo Mendes – UFJF, 2002.

IEB-USP, Fundo Mário de Andrade, Série Correspondência Mário de Andrade.

MATTAR, Denise. Ismael Nery – um mito. In: Catálogo da Exposição Ismael


Nery, em busca da essência. Curadoria Denise Mattar. São Paulo: Galeria de
Arte Almeida e Dale, 2015.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Organização, preparação do texto


e notas Luciana. S. Picchio. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.
______. Recordações de Ismael Nery. 2º ed., São Paulo: EDUSP; Editora
Giordano, 1996.

12
De acordo com o Dicionário Houaiss Eletrônico (2009-2013), leptologia
está relacionada à retórica, trata-se de um ―discurso refinado, sutil; discurso
minucioso, apurado‖.
13
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [online], 2008-2013. Disponível
em: https://www.priberam.pt/dlpo/lepto-. Acesso em 20 nov. 2017.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 68
O XENOFILISMO NO CONTO UM HOMEM CÉLEBRE

Ângela Queiroz ANTONINI


Aurora Cardoso de QUADROS
Unimontes

Resumo: No conto "Um Homem Célebre", Machado de Assis narra os


conflitos vividos pelo personagem Pestana, um músico que almeja
atingir a erudição da música clássica, na tentativa de aclamar-se
como os grandes eruditos europeus. Pestana parece representar um
pólo da obstinação pelo estrangeiro, o xenofilismo. Xenofilismo é o
excesso de simpatia por modas estrangeiras. Machado em sua crítica
―Instinto de Nacionalidade‖ (1873), nos apresenta, refletindo sobre a
literatura, a necessidade de uma ponderação entre atitudes
extremadas, uma das quais poderia ser exemplificada pelo conflito
de Pestana, em sua idealizada erudição. Este estudo aborda esse e
outros aspectos do referido conto.

Palavras-chave: Xenofilismo; ―Um homem célebre‖; Machado de


Assis.

O conto "Um homem célebre", de Machado de Assis, foi


publicado pela primeira vez em 1883. A narrativa conta a história de
um famoso compositor de polcas. O músico, de nome Pestana,
mesmo sendo reconhecido e festejado aonde vá, vive frustrado por
não conseguir compor música erudita. As árduas tentativas ao piano
não alcançam mais que imitações dos clássicos. Por outro lado, a
relação com a polca também é conflituosa. Por um lado, é dotado de
uma aptidão inata para compô-la, sendo fartos os momentos de
criação em que a polca flui naturalmente pelos dedos, os quais
deslizam no piano. Mas desqualifica e repudia o gênero buliçoso,
chegando a irritar-se por ouvir alguém, alegremente, assobiar uma
composição feita por ele mesmo. Vive então um grande
aborrecimento devido ao duplo dilema: não conseguir criar como os

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Ângela Queiroz ANTONINI& Aurora Cardoso de QUADROS

clássicos europeus, e ainda ter que compor polcas como meio de


sobrevivência. A fama que alcança só aumenta o aborrecimento,
pois ser conhecido devido à polca, ser solicitado para tocá-la, ter
que compor para sobreviver é um grande tormento. A ambição de
prestígio e requinte faz com que passe a vida buscando
obstinadamente se espelhar nos grandes compositores europeus,
sonhando com a celebridade póstuma, que o eternizaria.
Essa é a leitura que se faz da superfície do conto. Mas há
detalhes que podem ser auxiliares na ultrapassagem do mundo
natural e aprofundamento do universo das ideias. Começa pela
natureza da leitura de Machado de Assis, que consiste num terreno
complexo, de camadas repletas de sentidos implícitos. A história do
Pestana, certamente, está longe de ser um caso particular de
ambição e impotência. Pressentem-se no conto os sentidos da
angústia espiritual do ser, uma dependência cultural de raiz que se
refrata em muitas situações aparentemente cotidianas. Machado em
―Instinto de Nacionalidade‖ traz as questões nacionais que podemos
perceber refletidas em seu personagem, é através dessa leitura que
buscaremos salientar os pontos de xenofilismo abordados
implicitamente por ele:

Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma


literatura nascente, deve principalmente alimentar-se
dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não
estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a
empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de
tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do
seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos
remotos no tempo e no espaço. Um notável crítico da
França, analisando há tempos um escritor escocês,
Masson, com muito acerto dizia que do mesmo modo
que se podia ser bretão sem falar sempre do tojo, assim
Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e
explicava o dito acrescentando que havia nele um
scotticismo interior, diverso e melhor do que se fora
apenas superficial. (ASSIS, 1994)

Apresentamos dentro viés de frustração, o conceito de


―homem subterrâneo‖, o homem que passa a vida tentando algo que
não consegue alcançar, e se frustra no percurso da existência,
deixando a apatia sobressair suas capacidades. Como bem lembra
Augusto Meyer, citando o dilema apresentado por Brás Cubas: "O

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 70


O xenofilismo no conto um homem célebre

voluptuoso e esquisito é insular-se o homem no meio de um mar de


gestos e de palavras, de nervos, e paixões, decretar-se alheado,
inacessível, ausente..." (MACHADO, apud MEYER, 1986, p. 196). O
próprio personagem inspira a associação com o comportamento do
músico Pestana, de um Homem célebre:

Aí está o homem subterrâneo de Dostoiévski. Insular-se,


para ele, não significa acreditar na vida interior e nas
suas virtudes contemplativas, meditação, oração,
intuição do mistério individual, poesia da consciência
que procura reconhecer-se. É um movimento reflexo,
provocado pelo tédio de tudo, principalmente pelo ódio.
(MEYER, 1986, p. 196).

A sensação que se tem diante do conto é um olhar agudo


sobre os modos do homem, diante da cultura, do meio e da
contradição advinda de costumes alheios. E o que se apresenta
como aparentemente banal pode se revelar como índice de um
mundo absurdo. Na história de Pestana, observa-se a temática das
opções que o homem tem na vida. A obstinação do personagem em
ocupar uma posição de prestígio clássico europeu, a todo custo,
incorpora "o tema da perfeição, a aspiração ao ato completo, à obra
total" (CANDIDO, 1977, p. 27).
O relato inicia-se com o deslumbramento de uma senhora
por encontrar-se pessoalmente com ele, definindo, de antemão, a
celebridade do homem: "- Ah! o senhor é que é o Pestana? perguntou
Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. [...] Vexado,
aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele." (ASSIS 1999,
p.113) A antecipação do conflito já dá o contorno machadiano à
história. O entusiasmo da fã, em uma comemoração íntima, que
deveria agradar, aborrece o músico. O aborrecimento é,
posteriormente, explicado: ele não gostava de nada que o lembrasse
da música que repudiava. Diante desta frustração pessoal, se
esquivava de conviver com o fato e até de permanecer nos
ambientes em que era louvado pela sua polca. Talvez pelo fato de
compor polcas, Pestana inseriu-se mais do que queria na música
popular e possivelmente isso tenha atenuado sua angústia pela
incapacidade de atingir um patamar mais elevado. Sobre isso,
vejamos o que nos diz Vítor Manuel de Aguiar e Silva:
A comparação do acto criador, com o espelho que
reflecte a realidade, é comummente usada desde a
Renascença, e esta analogia revela bem o ideal mimético

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 71


Ângela Queiroz ANTONINI& Aurora Cardoso de QUADROS

assinalado à arte, embora geralmente nunca se defenda


o princípio em que a obra artística deve constituir uma
imagem exacta da realidade (SILVA, 1979, p. 145)

Pestana parece representar um polo da obstinação pelo


estrangeiro, o xenofilismo. Temos por xenofilismo o excesso de
simpatia por modas estrangeiras, algo que é notório em nós
brasileiros. Machado de Assis em sua crítica ―Instinto de
Nacionalidade‖ (1873), dez anos antes da escrita do conto em
questão, nos apresenta, refletindo sobre a literatura, a necessidade
de uma ponderação entre atitudes extremadas, uma das quais
poderia ser exemplificada pelo conflito de Pestana, em sua
idealizada erudição. Ao lutar cotidianamente e envergonhar-se de
compor a polca buliçosa, que animava salões de festa por todos os
cantos, ele rejeitava o outro pólo da dialética proposta por Machado,
que é a valorização do nacional.
Quando tratamos sobre o xenofilismo no conto em questão,
levamos em conta a necessidade do ego do personagem em voltar-se
apenas para aquilo que é de fora, para a valsa européia, por
exemplo. Sem levar em conta que poderia vir a consagrar-se como
um dos grandes compositores, tendo em sua obra o reflexo da
brasilidade, ―no Brasil as ideias estavam fora de centro, em relação
ao seu uso europeu‖. (SCHWARZ, 1992). Pestana vivia tentando
galgar um honroso patamar, aos moldes dos clássicos. De tudo
tentou. Buscava inspiração, por horas a fio, tocando composições de
Mozart, Beethoven, Bach, o que fazia com perfeição. Em frente ao
piano, havia um quadro de um padre (significativamente ventilado
como seu pai). O padre que lhe educara e transmitira o gosto
musical, salientando assim a dúvida que geraria sobre a figura do
sacerdote na vida do compositor. Ao lado do quadro do padre,
temos um pequeno altar composto por telas dos compositores
europeus, cuja obra Pestana executava com esmero.
A explicitação do alheamento de si espelha uma assertiva de
Candido sobre a obra de Machado e que pode estar implícito no
fato: ―Talvez possamos dizer que um dos problemas fundamentais
da sua obra é o da identidade. Quem sou eu? O que sou eu? Em que
medida eu só existo por meio dos outros? Eu sou mais autêntico
quando penso ou quando existo? Haverá mais de um em mim?‖
(CANDIDO), 1977, p. 23). Esse dilema existencial que tange
diretamente a identidade do ser talvez aponte para a causa do
incomodo rotineiro do músico, cuja causa real desconhece. Tanta

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 72


O xenofilismo no conto um homem célebre

veneração pelos clássicos e tanta facilidade para compor polcas. A


situação do indivíduo afigura-se como um caso particular, mas pode
ser associado ao contexto cultural de então, não em sua
individualidade aparente, mas como sátira social aguda. E, usando
as palavras de John Gledson, está ligado aos ―ideais ilusórios e
inatingíveis‖ (1991, p. 104), comuns na ficção machadiana. Pestana
se debate em elucubrações: "Por que não faria êle uma só que fosse
daquelas páginas imortais?" (ASSIS, 1999, p. 115).
Roberto Schwarz em sua obra ―Ao Vencedor as Batatas‖, traz
um ensaio no primeiro capítulo intitulado de ―As Ideias Fora do
Lugar‖, no qual reflete e pondera sobre as modas estrangeiras e a
doutrina liberal refletida em nosso país. Algo que notamos no
caráter patriarcal e burguês que o escritor refletia em seus contos,
em sua sociedade fluminense pela qual suas críticas eram
filigranadas. O sistema liberal trazia em suas sublinhas a suposta
―superioridade‖ das modas européias, fazendo com que as senhoras
e os senhores, tentassem ao máximo irem além da reprodução dos
costumes europeus, buscando igualar-se desde as suas roupas, aos
seus comportamentos e gostos.
Dentro do processo de composição do músico, às vezes
sente que iria brotar a música desejada. Corre ao piano, tentando
em vão. A ideia foge. Nessa luta agonizou a infertilidade clássica da
erudição e a impossível imortalidade. Pestana, de acordo com Silva
(1979) vê-se diante da incapacidade de compor músicas eruditas,
como um autor artífice. Ou seja, ele reproduzia com maestria aquilo
que admirava e se dispunha a tocar, porém sua figura de autor
inspirado ou possesso se dá apenas com os arrebatamentos
espontâneos que a criação de polcas lhe causava. Há um episódio
em que tenta compor a desejada música. Para tanto, treina seus
mestres ao piano. Muito esforço, mas nada conseguia, a não ser a
réplica inconsciente:

Se acaso uma ideia aparecia, definida e bela, era eco


apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e
que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se,
jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar
carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os
olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano. (ASSIS, 1999 p.
115-116)

À polca, ao contrário, não era necessário esforço algum; essa


brota naturalmente, como em um episódio um dia após tentativas
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 73
Ângela Queiroz ANTONINI& Aurora Cardoso de QUADROS

vãs da divina inspiração. Pode-se caracterizar a polca como a cor


local do Pestana, por mais que o gênero musical seja advindo da
Hungria, no Brasil foi de grande aceitação social, adentrando as
mais diversas classes, pelo embalo e pelo ritmo que agradava na sua
maneira dançante do mais abastado ao mais simplório cidadão
brasileiro.
Percebe-se no personagem a complexidade da natureza que,
de um lado, luta contra todos os elementos que possam associá-lo à
polca.O ato xenófilo da recusa da sua alma buliçosa se faz presente
fortemente nesses momentos. Em ―Instinto de Nacionalidade‖,
quando Machado trata da composição da poesia nacional, descreve
características do que Pestana faz com suas composições:

Acrescentarei que também não falta à poesia atual o


sentimento da harmonia exterior. Que precisa ela então?
Em que peca a geração presente? Falta-lhe um pouco mais
de correção e gosto; peca na intrepidez às vezes da
expressão, na impropriedade das imagens na obscuridade
do pensamento. A imaginação, que há deveras, não raro
desvaira e se perde, chegando à obscuridade [...] (ASSIS,
1994)

Quando Machado nos diz que ―a imaginação, que há deveras,


não raro se desvaira e se perde, chegando a obscuridade‖ nos faz
entender sobre o processo de criação pelo qual Pestana passava,
descrito por Silva (1979).
Era a vocação popular, que lhe chegava sem sofrimento:
''Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da
véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os
olhos de Mozart. Nenhum tédio. ―Vida, graça, novidade, escorriam-
lhe da alma como de uma fonte perene‖ (ASSIS, 1999 p. 116). A
natural inspiração que o envolve na composição da polca parece se
afigurar como o fator que favorece o sucesso popular. A graça, a
vida, a fluência, a leveza, nada o fazia se entregar à polca como
imanente e vital. Em frente ao piano em que compunha a polca, ao
contrário, os retratos dos ídolos europeus pioravam o remorso. Os
sentidos emergem numa densidade psicológica e filosófica, embora
se afigure cotidiana. Observa-se uma rede discursiva que suscita
questões relacionadas ao âmago do homem, com suas inclinações e
valores que "sob a forma branda é o problema da divisão do ser ou
do desdobramento da personalidade‖ (CANDIDO, 1977 p. 23)
A obsessiva luta para a realização do referido "ato total", da
perfeição, ironicamente subtrai o que Pestana poderia ter usufruído

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 74


O xenofilismo no conto um homem célebre

em vida, absolvendo-se do pecado de não lograr a realização


considerada sublime, como conseguia no gênero popular. A
obsessão mecaniza o homem, e o desejo transforma-se em desvario.
O alheamento torna-o absorto, aluado. Nos momentos do
instinto criativo, emerge do âmago inconsciente a polca. Segundo
Schwarz, analisando Memórias Póstumas, as ideias que
fundamentam a conduta humana trazem análises abstratas,
refletindo-se na própria escrita, mas também refletindo na postura
do personagem. O amalucamento de Pestana, embora diferente do
de Quincas Borba, talvez expresse do mesmo modo a "inserção
peculiar e pouco orgânica do intelectual brasileiro na cultura
oitocentista". (SCHWARZ, 1991. p. 148). Se a relação do homem
brasileiro com a cultura é pouco orgânica, não se pode dizer o
mesmo da obra machadiana. Pestana é um exemplo paradigmático
dos personagens, pois reflete uma certa organicidade na obra do
seu autor.
Em pestana, o desatino advém de um espírito vicioso que,
inclusive, mostra-se destituído de sentimento. Ele chega a se casar
com uma cantora, mesmo que tísica, vislumbrando seu dote musical:
"Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias,
profundas, inspiradas e trabalhadas". (ASSIS, 1999 p. 118) Além disso,
supõe que o celibato era a causa da .infertilidade artística. O fato
revela o antagonismo espiritual do homem que, deformado do valor
essencial para a união, presume beneficiar-se do matrimônio,
satisfazendo o anseio pessoal. Mesclam-se ambição e egoísmo. Os
projetos advindos do casamento são todos relacionados à sua
ambição. O sacrifício da tentativa do consórcio levava Pestana a crer
que a produção musical seria um bem coletivo. Ao perder o celibato
da carne, estaria indo além e quebrando assim o celibato da sua falta
de inspiração. Gledson pontua de forma clara sobre o egoísmo da
filosofia de Quincas Borba, que percebemos também presente nesse
ato:

Assinale-se que o argumento depende por inteiro da


premissa repetida de que todo homem é uma redução
na entidade maior, Humanitas; Uma vez admitido isso ,
os indivíduos podem, com justiça, ser sacrificados para
o progresso da coletividade. (GLEDSON, 1991, p. 144)

Mas a esposa, doente, falece. A ocasião da morte torna-se a


oportunidade para compor-lhe um Réquiem e tocar no primeiro
aniversário de morte. Nem isso conseguiu. Tentou até o último
momento finalizar a composição, mas, sem êxito, chega a data.
Revelando-lhe a fragilidade dos baixos sentimentos, revela o pesar,

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 75


Ângela Queiroz ANTONINI& Aurora Cardoso de QUADROS

em que misturam a perda da mulher e a do projeto que idealizara.


Outro dado observado no conto é a presença da ironia, que, no caso,
retrata bem a critica global implícita: "A fama do Pestana dera-lhe
definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas;
mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que
continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma‖.
(ASSIS, 1999 p. 121) Se no texto literário, a critica intitulada "A Nova
Geração", aconselha aos novos poetas que evitem o pedantismo.
Assevera que a imitação diminui as qualidades da arte e questiona o
complexo que faz os novos poetas brasileiros imitarem o europeu de
poesia, e deixarem Baudelaire e Vitor Hugo, por exemplo, falarem por
ele. Em um dos exemplos, diz Machado: "moço de vivo talento, que
dispõe de um verso cheio, vigoroso, e espontâneo, está arriscando as
suas qualidades nativas, com um estilo, que é já a puída
ornamentação de certa ordem de discursos do Velho Mundo". (ASSIS,
1959, p. 212)

O seu impulso natural criador, definido a partir dela,


torna-se tão atormentado que, certo dia: ―Passou o velho
matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve
idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que
viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e
tornou a casa." (ASSIS, 1999, p. 119).

O observador agudo que escreve sobre um homem, acaba


revelando faces sobre a existência humana, seus anseios, valores,
vaidades. A criação artística do Pestana, em vez de aprimorar os
sentimentos e emoções, acaba por revelar certas possibilidades de
mostrar a que vem. Ao lutar pela realização de prestigio, na
verdade, Pestana metaforiza um pedantismo social. E, mais que isso
parece revelar um olhar por trás, uma mão que o manipula para se
mostrar, mesmo que pela genialidade irônica e/ou pela instigante
dualidade. Aparentemente contesta-se a possibilidade da realização
artística pelo empenho cognitivo, pela técnica, para justificá-la pelo
impulso íntimo, natural. O talento demonstrado na composição
popular, que seria inato no compositor, revela-se de forma densa,
em contraposição à inaptidão para o virtuose da Europa.
Interessante é que, nos momentos de inspiração, em que ele
sente o dedo fervilhar e a criação da polca flui naturalmente são
descritos como de enlevo, revelando o sopro da graça e da inspiração.
Fato interessante, que talvez exprima o mais abstrato da psicologia
do personagem, pois o próprio Pestana se sente bem no momento da
realização artística da polca. Mas depois vem o remorso, diante dos
―santos‖ na parede. Percebe-se aí a luta contra a própria natureza.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 76


O xenofilismo no conto um homem célebre

O Ethos coloquial e suas implicações, que criam uma rede de


sentidos em torno da frustração do personagem, envolvem questões
artísticas, psíquicas e sociais. Mas, sob certo ângulo. Entende-se a
primazia do aspecto cultural. Na hierarquia ditada pela cultura
brasileira, ainda colonial, em que prevalece a ideia da importação
obrigatória da cultura européia, e em que o piano, instrumento de
alto gabarito, confere status de nobreza e erudição, compor música
popular é legitimar o espaço mundano da efemeridade, destituído de
requinte e sublimação,gerando assim um conflito entre erudição e
popularidade, sem levar em conta que, ao se fazer célebre,
consagrava-se como um dos maiores nomes da polca nacional.
Segundo Roberto Schwarz, Machado de Assis, entendendo os
equívocos do brasileiro ao querer importar a cultura e as ideias
européias:

Percebeu as ironias latentes na situação e tratou de


explorá-las sistematicamente onde os deslumbrados
enxergavam a redenção, ele tomava recuo e anotava a
existência de um problema específico. No contexto
brasileiro, a leitura e propagação das novas luzes
européias ocorria de modo particular, com ridículos
também particulares. (SCHWARZ, 1988, p. 144).

Mas a música erudita revela-se como completamente alheia ao


âmago do personagem. O que lhe é natural é repudiado. Mas, embora
lute contra o impulso, há momentos de deslizes, em que o dom
intimamente o envolve harmonicamente, como algo imanente. As
suas relações sociais tornam-se entediantes e ele se torna um sujeito
vexado. Queria construir uma imagem de si que não era natural.
Criando e enfatizando o autor artífice, é hábil em tocar aquilo que
sabe de cor, pois o idealiza e domina a técnica, mas não consegue
galgar a um nível considerado por ele como superior.
Ter que tolerar o que retumba e ecoa em sua mente cria o
tormento que se agrava pelo paradoxo de querer realizar o que não
possui, incorporar o que Mozart, Beethoven e outros incorporaram,
mas não consegue. A imortalidade vira obsessão. O resultado
qualitativo que consegue atingir e que emerge da alma, como o sopro
artístico, é a polca buliçosa. O espiritual contrapõe-se ao corpóreo.
Acreditando numa espécie de aberração entre produzir a polca e
produzir uma sinfonia, parece acreditar também numa oposição entre
universal e particular; erudito e popular; celestial e diabólico.
Também se associam as noções de ascensão e queda; culpa e
santidade; eterno e efêmero; salvação e condenação, xenofilia e
xenofobia. E o que supõe ser a sua libertação e ascensão social passa

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 77


Ângela Queiroz ANTONINI& Aurora Cardoso de QUADROS

a ser seu cativeiro, na medida em que o encarcera num delírio


alienante. Interessante se torna o alheamento mental de que é
possuído quando executa Mozart, por exemplo. Machado parece
antecipar a alienação marxista, no sentido de "consciência
deformada".
Assim, no conto "Um homem célebre", a representação do
genial Machado condensa os planos que se superpõem e que se
insinuam a todo o momento, levando o leitor a inquietar-se consigo
mesmo, com o outro e com o mundo. Busca-se entender o compósito
denso de significados, ante o qual, ao se aproximar, a impressão que
o labirinto machadiano propicia é, ao contrário do labirinto de
concreto, de ir acendendo caminhos e revezando-os em sentidos
cujos desvios se desenham pela ironia, pela veia filosofante, pela
visão aguda, pela crítica entre dentes. Caminhando além do conto,
talvez seja pertinente a conclusão com base no que Fábio Lucas
entende como "ideologia da dependência":

Enquanto a elite nacional simplesmente imita aquilo que


julga ―internacional‖, dando circulação voluntária ao
produto que é indício de sua submissão conformada,
morre a sua possibilidade de ser autêntica e de colocar-se
na vanguarda verdadeira. (LUCAS, 1985, p. 14)

Revela-se assim um posicionamento obtuso diante da


inclinação artística, um conservadorismo musical que faz do
protagonista um estereótipo ortodoxo e fanático. Tal ideia, baseada
na noção eugênica da arte européia, reflete a dependência cultural,
com a qual viriam romper a veia rebelde de personagens como
Chiquinha Gonzaga. Hoje, vê-se a tendência da libertação dos
modelos artísticos de importação e o Brasil pode presenciar a efetiva
exportação da arte (Romero Brito, por exemplo), para não falar em
mesclas originais entre o erudito e o popular. Exemplo radical de
inovação é o procedimento do maestro André Rieu, que orquestrou,
com os instrumentos mais consagrados pelos eruditos, composições
populares brasileiras, como o choro "Brasileirinho" (1947), do
compositor Waldir Azevedo e, radicalizando a ruptura com a tradição
clássica, executou recentemente a canção "Ai, se eu te pego‖,
consagrada pela interpretação de Michel Teló, o que escandalizou
muitos preciosistas pudicos. A melodia, ―buliçosa‖, deve ter
despertado a originalidade moderna do europeu erudito, criando
potencialmente, além da surpresa, o efeito estético de encantamento
e alegria. Aprofundando no tema, um iceberg seria pequeno para
tantos sentidos sociais. De passagem, lembre-se o que diz João Luiz
tafetá (2000), para quem, num projeto estético, já reside um projeto

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 78


O xenofilismo no conto um homem célebre

ideológico. E os modos de dizer, as seleções e escolhas feitas (e aqui


pode-se entender "de tocar" ou compor), representam os modos de
ser e de ver de um tempo.
Daí lembrar que os Pestanas do Brasil, na verdade, perderam a
grande oportunidade de se entregarem às suas inclinações autênticas,
vivendo-as, sendo e fazendo algo pelo essencial à alma do homem. Ao
reverenciar o externo e abominar o que lhe é próprio, o pedantismo
torna-se um mecânico repetidor, sem a introjeção necessária à
sublimação do espírito. Assim como Perrone-Moisés traz em seu texto
―Galofilia e Galofobia na Cultura Brasileira‖ refletindo sobre como
França influenciou na nossa cultura, principalmente a partir do século
XVIII. Ela ainda nos faz refletir sobre o sentido da nossa brasilidade
correlacionada com a America Latina, algo que era forte no fim da
vida de Pestana, no qual os processos de Independência começavam a
acontecer no Brasil, e pelos quais suas últimas polcas foram escritas:
―As relações pontuais de rejeição têm estado quase sempre ligadas à
busca da identidade nacional e à assunção de um projeto mais vasto,
um projeto pan-americanista ou latino-americanista‖ (PERRONE-
MOISÉS, 2007, p. 51).
Pestana perdeu a vida buscando a eternização. O espírito
resulta em um ente incapaz de amar e capaz de casar-se pela sede de
renome, numa espécie de "eugenia musical‖, na busca da purificação
artística como instrumento de sucesso pessoal. A polca, ritmo alegre,
dançante, "buliçoso", que lhe saía autêntico, como brotando da alma
parece ser aquilo que sustenta sua vida, mas que o mata. Viveu
pensando nos grandes europeus que, para alcançar, mirava as
estrelas distantes no céu, sem conseguir vê-las brilhar.
A sensação que fica do conto é a de todo escrito do escritor,
ou seja, daquele estilo genial, em que o aparentemente banal, na
verdade, apresenta-se como uma ponta de um iceberg a ser
descoberto. No plano subjacente da sua obra, o substrato parece
revelar em sua profundidade que ali residem as ideias e o
posicionamento sobre o essencial do ser e da vida. Também sobre o
homem em seu país. Mas não apenas a veia da psicologia ou da
filosofia ou a visão crítica e aguda dão o tom marcante ao conto. O
modo machadiano de escrever é o que maravilha a leitura e o que o
eterniza. E a chave talvez não esteja nas descobertas que se fazem
por um leitor maravilhado, mas, sim, nas suas dúvidas, no
questionamento insolúvel residentes na metáfora do iceberg
machadiano.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 79


Ângela Queiroz ANTONINI& Aurora Cardoso de QUADROS

Referências

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Paulo: Brasileira, 1959, p. 180-257.

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Duas Cidades, 1991.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 80


O CASO MOLLOY-KAMENSZAIN-MENARD

Ariele Louise Barichello CUNHA


UFSC

Resumo: a partir de ―Narrarse a sí misma-versificar a la otra (El caso


Molloy-Kamenszain)‖, capítulo de Una intimidad inofensiva (2016),
de Tamara Kamenszain, procura-se refletir sobre escrituras que
trabalham com ritmos intercambiantes, em movimentos de
singularidade e de apropriação. Dialogamos com o conto ―Pierre
Menard, autor do Quixote‖ (1939), de Jorge Luis Borges, ao assinalar
suas vozes narrativas, que flertam com o engano, confundem os
leitores porque se confundem muitas vezes, exigindo, portanto,
releituras, que fazem emergir não apenas dúvidas sobre os modos
de ler ou ouvir e, consequentemente, de produzir histórias, mas
também novas maneiras de ouvi-las e contá-las.

Palavras-chave: Molloy; Kamenszain; Menard.

No capítulo ―Epílogo íntimo‖ de Una intimidad inofensiva


(2016), Tamara Kamenszain fala de modo crítico sobre os livros O
eco de minha mãe (2011), de sua autoria, e sobre Desarticulaciones
(2010), de Sylvia Molloy. Nesses livros, elas escrevem sobre suas
experiências ao vivenciar com mãe e amiga, respectivamente, o
Alzheimer.
Molloy e Kamenszain decidem compartilhar entre si seus
textos, os de Sylvia em forma de diário, de anotações, e os de
Tamara como poemas. Em ―Epílogo íntimo‖, Tamara considera ―un
punto de inflexión‖ (KAMENSZAIN, 2016, p. 120) ter recebido de
Sylvia o texto ―La propriedad del lenguage‖, cujo título em
Desarticulaciones é publicado como ―De la propriedad en el
lenguage‖. Cito:

―¿Te conoce todavía?‖, me preguntan. ―¿Cómo sabés que


todavía te conoce?‖. Efectivamente no lo sé, pero

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Ariele Louise Barichello CUNHA

habitualmente respondo que sí, que sabe quién soy,


para evitar más expresiones de pena. Sospecho que si L.
no le dijera mi nombre, antes de pasarle el teléfono
cuando la llamo, o antes de abrirme la puerta cuando la
voy a visitar, sería una extraña para ella. De hecho, la
mención de mi nombre ha perdido su capacidad de
convocar, no le provee mucha información. La impulsa,
sí, a preguntarme por E. y por ―el gato‖, pero me consta
que no sabe quién es E. porque me ha preguntado por
ella en su presencia, cómo está tu compañerita. En
cuanto a la mención del ―gato‖ así, anónimo, es una
expresión más de sus buenos modales. O acaso un
lejano recuerdo de un arquetipo platónico, como si me
preguntara por la gatidad.
Ayer descubrí que me había vuelto aún menos yo para
ella. La llamé y a pesar de que L. le pasó el telefono
diciéndole quién llamaba me habló de tú – de tú y no de
vos – durante la conversación. Fue una conversación
cordial y eminentemente correcta en un español que
jamás hemos hablado. Sentí que había perdido algo más
de lo que quedaba de mí. (MOLLOY, 2010, p. 37).

Tamara elege a frase ―Ayer descubrí que me había vuelto aún


menos yo para ella‖ (MOLLOY, 2010, p. 36-37), de Sylvia, como
epígrafe de um dos poemas que estava escrevendo.

Ayer descubrí que me había vuelto


aún menos yo para ella
SYLVIA MOLLOY

Como mi madre que a veces me trata de usted


y yo me doy vuelta para ver quién soy,
la amiga de Sylvia que perdió el voseo
la desconoce hablándole de tú.
Correctas educadas casi pomposas
estas rehenes del Alzheimer
ponen a congelar la lengua materna
mientras nos despiden de su mundo sin palabras.
Sin embargo si te canto tu canción infantil
la neurona del idisch se posa dulce sobre tus labios
y todo lo que nunca entendí en ese idioma
lo repito con vos viejita, y me queda claro.
(KAMENSZAIN, 2012, p. 93).

Kamenszain conta, em ―Epílogo íntimo‖,que, imediatamente

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 82


O caso Molloy-Kamenszain-Menard

ao voltar a escrever o poema em que tomou a frase ―Ayer descubrí


que me había vuelto aún menos yo para ella‖, deparou-se narrando
o mesmo que Sylvia havia narrado.

Así es como, cuando Sylvia escribe ―Ayer descubrí que


me había vuelto aún menos yo para ella‖, me aporta el
tono justo para que yo, duplicando su gesto de
narradora, escuche lo que no quiero dejar de contar en
el poema. Y si poesía es ―invención de una historicidad
del sujeto donde afecto y concepto son inseparables‖,1
lo que encontré en la narrativa de Molloy no es otra cosa
que una marca poética útil para narrar. Esta paradoja
productiva, como se ve, ya no está tan relacionada con
experimentaciones híbridas como la prosa poética o el
microrrelato, sino con un trabajo que, integrando la
diferencia, aprovecha todo lo que sirve para seguir
haciendo lo suyo. Porque ese continuo que va de una
forma de lenguaje a una forma de vida y de una forma
de vida a una de lenguaje, y que Meschonnic llama
ritmo, atañe tanto a la poesía que no quiere resignar lo
que se comprometió a narrar como a la narrativa que se
deja escandir a golpes de subjetividad. (KAMENSZAIN,
2016, p. 122).

Em Una intimidad inofensiva, Tamara Kamenszain elege


alguns textos de escritores contemporâneos e os lê numa
proliferação de palavras que incluem: ―ritmo‖, ―razo‖, ―estar‖,
―continuar‖, ―êxtimo‖. Sobre Dantesco, o minilivro de Roberta
Iannamico, por exemplo, Tamara nos diz que o espírito que parece
guiar a travessia da poeta pode ser lido na citação de Walter
Benjamin com relação à atividade do flâneur: ―Salir cuando nada te
obliga, y seguir tu inspiración, como si el sólo hecho de torcer a
derecha o a izquierda fuera en sí mismo un acto esencialmente
poético.‖ (BENJAMIN apud KAMENSZAIN, 2016, p. 14). Escolho um
trecho de Iannamico para explicitar como a palavra ―ritmo‖ parece
estar na leitura de Tamara:

1
MESCHONNIC, Henri. Ética y política del traducir. Buenos Aires: Leviatán,
2009, p. 54 apud KAMENSZAIN, 2016, p. 122.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 83
Ariele Louise Barichello CUNHA

un águila mora
fue el primer ser que vi
planeaba en círculos
por encima mío
me asustaba un poco
su cercania
su vuelo rasante y su canto
y me di cuenta
que no se puede decir con letras
el canto de un pájaro
si quisiera escribirlo acá
no podría
tomé el ritmo de ese canto
para caminar
(IANNAMICO apud KAMENSZAIN, 2016, p. 15)

O ritmo é compreendido não como um produto mecânico da


imposição métrica, diz Tamara, mas como ―la particular inscripción
que cada sujeto hace de su historia.‖ (KAMENSZAIN, 2016, p. 15-16).
Essa ideia de ritmo é alimentada via Henry Meschonnic, em que
―ritmo‖ ―não é o som que se ouve, e sim o sujeito‖ (KAMENSZAIN,
2016, p. 15), e também via Giorgio Agamben, que, em Ideia da prosa
(1985), diz: ―é, sem mais, poesia aquele discurso no qual é possível
opor um limite métrico a um limite sintático [...], e prosa aquele
discurso no qual isto não é possível.‖ (AGAMBEN, 1999, p. 30).
Agamben está falando do enjambement como aquilo que assegura a
identidade da poesia em relação à prosa. Diz-nos o italiano:

O enjambement exibe uma não-coincidência e uma


desconexão entre o elemento métrico e o elemento
sintático, entre o ritmo sonoro e o sentido, como se,
contrariamente a um preconceito muito generalizado,
que vê nela o lugar de um encontro, de uma perfeita
consonância entre som e sentido, a poesia vivesse, pelo
contrário, apenas da sua íntima discórdia. O verso, no
próprio ato com o qual, quebrando o nexo sintático,
afirma a sua própria identidade, é, no entanto,
irresistivelmente atraído para lançar a ponte para o
verso seguinte, para atingir aquilo que rejeitou fora de
si: esboça uma figura de prosa, mas com um gesto que
atesta sua versatilidade. Neste mergulho de cabeça sobre
o abismo do sentido, a unidade puramente sonora do
verso transgride, com a sua medida, também a sua
identidade. O enjambement traz, assim, à luz o

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 84


O caso Molloy-Kamenszain-Menard
andamento originário, nem poético, nem prosaico, mas
por assim dizer, bustrofédito da poesia, o essencial
hibridismo de todo o discurso humano. A versura, que,
embora não referenciada nos tratados de métrica,
constitui o cerne do verso (e cuja manifestação é o
enjambement), é um gesto ambíguo que se orienta ao
mesmo tempo para duas direções opostas, para trás
(verso) e para diante (prosa). Esta suspensão, esta
sublime hesitação entre o sentido e o som, é a herança
poética que o pensamento deve levar até o fim.
(AGAMBEN, 1999, p. 32-33).

Agamben cita dois versos escritos no século XX por Sandro


Penna para demonstrar a confiança do poeta no ritmo da cesura:

Vou a caminho do rio num cavalo


que quando eu penso um pouco um pouco logo estaca.
(PENNA apud AGAMBEN, 1999, p. 34)

Para Agamben,
O cavalo que transporta o poeta é, segundo uma antiga
tradição exegética do Apocalipse de S. João, o elemento
sonoro e vocal da linguagem. Comentando o Apocalipse
19.11, onde se descreve o logos como um cavalo branco,
Orígenes explica que o cavalo é a voz, a palavra como
enunciado sonoro, que ‗corre com mais energia e
velocidade que qualquer ginete‘ e que só o logos torna
inteligível e clara. [...] O elemento que faz parar o lance
métrico da voz, a cesura do verso, é, para o poeta, o
pensamento. [...] Mas que se pensa afinal nesta cesura,
que faz estacar o cavalo do verso? Que coisa dá a ver
esta interrupção do transporte rítmico do poema? A isto
responde Hölderlin de maneira mais directa: ‗O
transporte trágico é, de fato, verdadeiramente vazio, e o
mais livre. Por isso, na sucessão rítmica das
representações, nas quais se evidencia o transporte,
torna-se necessário aquilo a que, no metro, se chama
cesura, a palavra pura, a interrupção antirrítmica, para
contrastar, no seu clímax, com a mudança incantatória
das representações, de modo a trazer à evidência, não já
a alternância da representação, mas a própria
representação.‘ O transporte rítmico, motor do lance do
verso, é vazio, é apenas transporte de si. E é esse vazio
que, enquanto palavra pura, a cesura – por um instante –
pensa, suspende, enquanto o cavalo da poesia para um
pouco. Como escreve em estilo latino Llull numa de suas

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 85


Ariele Louise Barichello CUNHA

peças: ‗Cavalgando o seu palafrém, ia à Corte para ser


armado cavaleiro e, enquanto ia andando, embalado
pelo andamento da cavalgadura, adormeceu. Mas, ao
chegar a uma fonte, o animal parou para beber; e o
escudeiro, que no sono sentiu que o cavalo já não se
movia, acordou de repente.‘ Aqui, o poeta adormecido
sobre o cavalo acorda e contempla por um instante a
inspiração que o transporta – e o que pensa é a sua voz,
e nada mais. (AGAMBEN, 1999, p. 34-36).

Lembro-me aqui das palavras de Raúl Antelo no curso


Arquifilologias,2 citando também Giorgio Agamben, em O fogo e o
relato, em que o filósofo fala da exigência como o sono do ato, a
dormição da vida; uma exigência que a vida vai aos poucos
explicando enquanto adentra cada vez mais e se complica ela
mesma cada vez mais; exigência que permanece, portanto,
inexplicável. Exigência é tempo e memória, nos diz Antelo.
Então, para Kamenszain, o ritmo está relacionado a um
modo barthesiano de atenção à escrita enquanto atenção à vida, e o
subtítulo ―los que escriben con lo que hay‖ está não apenas ligado à
leitura que ela faz dos escritos que elege em Una intimidad
inofensiva, como também, e talvez sobretudo, a sua maneira de
escrever, destacando-se, nesse caso, a experiência queela
compartilhacom a amiga e também escritora Sylvia Molloy.
Esse ―escrever com o que há‖ parece ter como destinatário
uma ―exigência‖, como diz Agamben em ―A quien se dirige la
poesía?‘ (2015), e por isso mesmo que o ―real‖ que perpassa a
escrita não se mantém, não ―é‖, e sim ―está‖. Cito Kamenszain:

Entonces, si es estar y no ser lo que define a estos


escritores de la intimidad-inofensiva-éxtima, queda claro
que en vez de bucear en las profundidades buscando
alguna respuesta metafísica con relación al ser, escribir
poesía consistiría ahora en el ejercicio de mantenerse
siempre a flote marcando un território a nivel del ―quién
soy‖, una expresión cuyos efectos de sintaxis dentro de
estos textos obligan a leerla más bien como un ―aquí
estoy‖. (KAMENSZAIN, 2016, p. 59).

2
O curso está em desenvolvimento neste segundo semestre de 2016 no
Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa
Catarina.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 86
O caso Molloy-Kamenszain-Menard

Este ―estar‖ é o que torna ficcional qualquer envolvimento


autobiográfico na escrita. Cito a própria Kamenszain citando
Agamben em Ideia da prosa:

La razo indica inmediatamente, en dirección de la


biografía del autor, una biografía, se entiende, inventada
a partir de la obra pero que el lector corre el riesgo de
tomar por buena [...] se genera así un espacio de lo
vivido que el narrador recoge como materia de su
cuento. (AGAMBEN apud KAMENSZAIN, 2016, p. 132).

Essa capacidade de ―desbarrancar‖ da direção esperada, diz


Tamara, inclusive da direção que o próprio escritor impõe a si, seria
como que uma política da própria arte, que precederia as políticas
dos artistas (KAMENSZAIN, 2016, p. 79).
Sylvia Molloy pergunta, em ―Identikit‖, ―¿Cómo dice yo el que
no recuerda, cuál es le lugar de su enunciación cuando se há
destejido la memoria?‖ (2010, p. 19). O apagamento de memórias e
de traços de identidade – como quando Sylvia nos conta das
preferências alimentares de ML., que detestava certos alimentos e
que agora come o que lhe servem, parecendo não se importar
absolutamente que seu alimento seja um dos pratos que mais
detestava – indica uma indiferença que remete à palavra ―qualquer‖,
que, por sua vez, leva-nos ao capítulo homônimo do livro A
comunidade que vem (1993), de Giorgio Agamben. Em ―Qualquer‖,
ele nos fala da enumeração escolástica dos transcendentais:
―quodlibet ens est unum, verum, bonum seu perfectum, seja qual for,
o ente é uno, verdadeiro, bom ou perfeito‖ (AGAMBEN, 1993, p. 11).
Diz Agamben que quodlibet étraduzido correntemente no sentido de
―qualquer um, indiferentemente‖, o que está correto. Mas, diz ele,
―quanto à forma, diz exatamente o contrário do latim‖, quodlibet ens
é ―o ser que, seja como for, não é indiferente‖, ou seja, ―ele contém,
desde logo, algo que remete para a vontade (libet), o ser qual-quer
estabelece uma relação original com o desejo.‖ (AGAMBEN, 1993, p.
11). Diz o filósofo italiano:

O Qualquer que está aqui em causa não supõe, na


verdade, a singularidade na sua indiferença em relação a
uma propriedade comum (a um conceito, por exemplo: o
ser vermelho, francês, muçulmano), mas apenas no seu
ser tal qual é. A singularidade liberta-se assim do falso
dilema que obriga o conhecimento a escolher entre o

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 87


Ariele Louise Barichello CUNHA

caráter inefável do indivíduo e a inteligibilidade do


universal. Já que o inteligível, segundo a bela expressão
de Gersonide, não é um universal nem um indivíduo
enquanto incluído numa série, mas ‗a singularidade
enquanto singularidade qualquer‘. Nesta, o ser-qual é
tomado independentemente das suas propriedades, que
identificam sua inclusão em determinado conjunto, em
determinada classe (os vermelhos, os franceses, os
muçulmanos) – e considera-se que ele não remete para
uma outra classe ou para a simples ausência genérica de
pertença, seja ela qual for, mas para o seu ser-tal, para a
própria pertença. Assim, o ser-tal, que fica
constantemente escondido na condição de pertença (há
um x tal que pertence a y) e que não é de modo nenhum
um predicado real, revela-se claramente: a singularidade
exposta como tal é qual-quer, isto é, amável.
Porque o amor nunca escolhe uma determinada
propriedade do amado (o ser-louro, pequeno, terno,
coxo), mas tão-pouco prescinde dela em nome de algo
insipidamente genérico (o amor universal): ele quer a
coisa com todos os seus predicados, o seu ser tal qual é.
Ele deseja o qual apenas enquanto tal – este é o seu
particular fetichismo. Assim, a singularidade qualquer (o
Amável) nunca é inteligência de algo, de determinada
qualidade ou essência, mas apenas inteligência de uma
inteligibilidade. (AGAMBEN, 1993, p. 11-12).

A palavra ―qualquer‖ aparece também ao final de ―Epílogo


íntimo‖, diz-nos Kamenszain: ―Al retirar las marcas específicas e
identitarias ocorre – según nos dice Florencia Garramuño – que el
arte inespecífico de hoy deja al desnudo el corazón común de una
situación, un afecto, un momento que puede valer para cualquiera‖.
(KAMENSZAIN, 2016, p. 138). E podemos aqui pensar nas escusas de
Jorge Luis Borges em Fervor de Buenos Aires (1923): ―A quien leyere:
Si las páginas de este libro consienten algún verso feliz, perdóneme
el lector la descortesia de haberlo usurpado yo, previamente.
Nuestras nadas poco difieren; es trivial y fortuita la circunstancia de
que seas tú el lector de estos ejercicios, y yo su redactor.‖ (BORGES,
2008, p. 16).
Em Las letras de Borges y otros ensayos (1999), Sylvia Molloy
diz que ―Tanto el cuerpo como el lector se han aprendido a olvidar
un ejercicio de reconocimiento que acaso los haría vivir – y leer – de
otro modo.‖ (MOLLOY, 1999, p. 13). A repetição que insensibiliza é
percebida por Molloy na repetição na linguagem, lemos em
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 88
O caso Molloy-Kamenszain-Menard

―Ocurrencias‖, texto de Desarticulaciones:

Las visitas son menos entretenidas, ya no está tan


ocurrente, le digo a una amiga, se la ve más apagada.
Como si estuviera perdiendo ya la respuesta rápida, la
capacidad de intervenir con un recuerdo intempestivo o
un disparate. Incluso repite salidas, digo, el ―estoy bien
porque te veo‖. ―¿Y vos no repetís las tuyas?‖, me dice
con razón.
También hay otra explicación, por supuesto. Que la
horrible originalidad de la enfermedad se está volviendo,
para mí, convencional, otro modo, ahora previsible, de
comunicarse. Yo misma entro en la enfermedad, en su
retórica, y nada me sorprende. Esto que tendría que ser,
probablemente, un consuelo, me perturba por alguna
razón. ¿Porque ya no voy a tener de qué escribir?
(MOLLOY, 2010, p. 68).

Essas leituras, ou releituras, que as escritoras fazem a cada


dia de suas queridas que a cada dia estão diferentes parecem-me
com o exercício proposto por Jorge Luis Borges no conto ―Pierre
Menard, autor do Quixote‖ (1939), cujo personagem Menard suscita
atenções sobretudo porque, segundo seu narrador, teria ele uma
obra ―invisível‖, que não consta em suas homenagens póstumas;
teria escrito ―o‖ Quixote. Dois capítulos e meio, em verdade, da obra
seiscentista escrita por Miguel de Cervantes, cujo texto e
personagem principal, Dom Quixote, já haviam sido também
apropriados por outro escritor da época, repudiado pelo narrador
de Dom Quixote na parte dois do livro, publicada em 1615, dez anos
depois da publicação da primeira parte e um ano antes da morte do
autor.
―Pierre Menard, autor do Quixote‖ – por meio da entrada de
diferentes vozes suspeitas na narrativa, das quais não se pode
afirmar nem que falam verdades nem que dizem falsidades;
mediante as manobras de linguagem como cópia, repetição,
ambiguidade, atribuição errônea e anacronia; e por intermédio do
estímulo à escuta/leitura do outro, via capítulos do Quixote escritos
por Menard – desloca autorias, sentidos e contextos, o que colabora
para a instabilidade dos lugares de poder que a literatura pode

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 89


Ariele Louise Barichello CUNHA

ocupar, porque fomenta a escuta de múltiplas leituras,3 sendo,


portanto, um modo de ―sair de Borges‖ a partir dele próprio. 4Sequer
Menard é mantido como algum símbolo de estabilidade nesse jogo,
pois ―Desgraciadamente, sólo un segundo Pierre Menard, invirtiendo
el trabajo del anterior, podría exhumar y resucitar esas Troyas...‖
(BORGES, 1984, p. 450, v. 1, grifo nosso), diz-nos o narrador do
conto.
Essas ações proporcionam mudanças não apenas nesses
lugares canônicos literários, mas também em qualquer outro lugar
de fala e escuta, pois lembremos que, segundo Derrida, ―[...] não é
preciso de câmeras, vídeos, máquinas de escrever, computadores.
Desde que a frase seja repetível, isto é, desde sua origem [...] então,
idealizável [...]‖ (DERRIDA, 2015, p. 51). E, ainda segundo o filósofo,

[...] existem tantas leituras quanto leitores e leitoras, e,


portanto, resta uma certa maneira de responder ao
texto, se se fala a língua dele, desde que certas
condições sejam preenchidas. Eis a exemplaridade
testemunhal. (DERRIDA, 2015, p. 103).

Finalizando, Pierre Menard escreve:

Pensar, analizar, inventar (me escribió también)


[escreveu Menard para o narrador] no son actos
anómalos, son la normal respiración de la inteligencia.
Glorificar el ocasional cumplimiento de esa función,
atesorar antiguos e ajenos pensamientos, recordar con
incrédulo estupor lo que el doctor universalis pensó, es
confesar nuestra languidez o nuestra barbarie. (BORGES,
2008, p. 538, v. 1, grifo do autor).

3
Cf. CUNHA, Ariele L. B. Quem é Pierre Menard? 2016. 38 f. (Monografia de
Conclusão do Curso de Letras, Língua Portuguesa e Literaturas) –
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em:
<https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/160020>. Acesso em: 12
nov. 2016.
4
Cf. LUDMER, Josefina. ¿Cómo salir de Borges? In: ROWE, W.; CANAPARO, C.;
LOUIS, A. (Ed.). Jorge Luis Borges.Intervenciones sobre pensamiento y
literatura. Buenos Aires: Paidós, 2000. p. 289-300. Disponível em:
<http://www.josefinaludmer.com/Josefina_Ludmer/articulos.html>. Acesso
em: 6 jan. 2016.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 90
O caso Molloy-Kamenszain-Menard

Mas, recordemos que Menard, segundo o narrador do conto,


tinha o ―hábito resignado o irónico de propagar ideas que eran el
estricto reverso de las preferidas por él.‖ (BORGES, 2008, p. 536, v.
1).
Paolo Virno, em Multidão e princípio de individuação (2009),
diz que ―o sujeito é sempre uma individuação parcial e incompleta,
consistente bem mais nos traços cambiantes de aspectos pré-
individuais e de aspectos efetivamente singulares‖ e ―a experiência
coletiva, longe de assinalar sua desintegração ou eclipse, persegue e
afina a individuação.‖ (VIRNO, 2009, p. 29). Esse pré-individual é
atualizado pelo autor da seguinte forma: primeiro, há ―a percepção
sensorial, a motricidade, o fundo biológico da espécie.‖, em seguida
―a língua histórico-natural de sua própria comunidade de
pertencimento‖ (que ―seria a base ou o âmbito no qual toma forma a
singularidade individuada‖)5 e, finalmente, ―a relação de produção
dominante.‖ (VIRNO, 2009, p. 31-32). Ele destaca que, para Vigotsky,
―o movimento real do processo de desenvolvimento do pensamento
da criança não se realiza do individual ao social, mas do social ao
individual.‖ (VIGOTSKY apud VIRNO, 2009, p. 31-32) e que, tanto
para Vigostky como para Simondon, ―a ‗individuação‘ (quer dizer, a
construção do Eu consciente) sobrevém no terreno linguístico, e não
no da percepção.‖ (VIRNO, 2009, p. 32). Para Virno, há um ponto
crucial nos trabalhos de Ernesto de Martino e Gilbert Simondon,
que:

[...] reside no fato de que a ontogênese, quer dizer, a


individuação, não está garantida de uma vez por todas:
pode regressar sobre seus passos, fragilizar-se, explodir.
O ―Eu penso‖, além do fato de que possua uma gênese
imprevisível é parcialmente retrátil, está transbordado
pelo que o supera. Para Martino, o pré-individual,
parece, às vezes, inundar a singularidade: esta última é
como aspirada no anonimato do ―se‖. Outras vezes, de
maneira oposta e simétrica, força-nos em vão a reduzir
todos os aspectos pré-individuais de nossa experiência à
singularidade pontual. (VIRNO, 2009, p. 34).

5
VIRNO, Paolo. Gramática da multidão, para uma análise das formas de vida
contemporâneas. Tradução de Leonardo Retamoso Palma. 2003. P. 45.
Disponível em: <http://www.c-e-m.org/wp-content/uploads/gramatica-da-
multidao.pdf>. Acesso em: 8 ago. 2016.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 91
Ariele Louise Barichello CUNHA

Virno completa: ―Para Simondon [...] a vida de grupo é o


momento de uma ulterior e mais complexa individuação. Longe de
ser regressiva, a singularidade burila-se e alcança seu apogeu no
atuar conjuntamente, na pluralidade de vozes; em uma palavra, na
esfera pública.‖ (VIRNO, 2009, p. 35).
Expor-se à consideração das outras, à ação política sem
garantias, à familiaridade com o possível e com o
imprevisto, à amizade e à inimizade, tudo isso alerta ao
indivíduo e lhe permite, em certa medida, apropriar-se
deste anônimo ―se‖ do qual provém, para transformar o
Gattungswesen, a ―existência genérica da espécie‖, em
uma biografia absolutamente particular. Ao contrário do
que sustentava Heidegger, é somente na esfera pública
que podemos passar do ―se‖ ao ―si mesmo‖. (VIRNO,
2009, p. 39).

Em entrevista para La Nación, publicada em 24 de julho de


2016, Tamara Kamenszain responde a perguntas e fala, sobretudo,
de Una intimidad inofensiva, lançado neste mesmo ano. Quem a
entrevista pergunta: ―Usa el adjetivo "gay" y no es casual: hay en el
libro, tanto en el rescate de Perlongher como en "la boluda" de
Fernanda Laguna, una perspectiva feminista.‖, ao que Tamara
responde:
Exactamente. Es femenino ese corrimiento, más allá de
quién lo ejerza. La intimidad es femenina, es un
concepto históricamente femenino. Fijate que, volviendo
a lo de mi generación, una de las críticas que me hacían
algunos de los integrantes de la revista Literal, que eran
mis amigos pero nunca me publicaron, era esta
tendencia hacia lo íntimo, que es evidentemente mi
tendencia natural, que no veo más que lo que tengo
delante, escribo con lo que hay. Eso ya estaba en mi
primer libro. Y alguno de los integrantes de Literal, con
esa cosa bien de esa época que era cierta obsesión
formalista o textualista, me dijo: "Lo que pasa es que a
lo que vos escribís se le ve mucho el verosímil". Así se
hablaba en esa época [se ríe]. A mí en el momento me
hizo gracia, pero igual me funcionó el superyo
masculino. Me puse recontra autocrítica de lo mío:
escribí un segundo libro que seguía siendo intimista, y
no lo publiqué nunca. Y mi tercero, que es mi segundo
libro de poemas, Los no, lo escribí en tercera persona. Y
es, de hecho, el libro que se sale más de mí. Lo quiero
mucho, igual, pero ahí hice un intento de forzar eso.6

6
Tamara Kamenszain em entrevista para La Nación, em 24 de julho de 2016.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 92
O caso Molloy-Kamenszain-Menard

Da expressão ―intimidade inofensiva‖, Tamara diz: ―No


ofender implica ofender: incluye ofender. [...] Es un gesto que
queriendo no escandalizar termina haciéndolo porque se espera
otra cosa de la literatura [...] Se espera una macropolítica más que
una micropolítica.‖

Referências

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Lisboa: Editorial Presença, 1993.

______. ¿A quién se dirige la poesía? Traducción de Gerardo Muñoz e Pablo


Domínguez Galbraith. Infrapolitical Descontruction Collective. 2015.
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Edições Cotovia, 1999.

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Buenos Aires: Emecé Editores, 1984.

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Ariele Louise Barichello CUNHA

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Acesso em: 8 ago. 2016.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 94


NOSTALGIA E TRAUMA: A FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO
BURGUÊS

Augusto Mancim IMBRIANI


UFLA

Resumo: Cunhado por teóricos alemães na segunda metade do


século XVIII, o Bildungsroman se fez linhagem literária de costumes
e educação burgueses europeus. Com isso, apontar-se-á a aplicação
do subgênero na literatura brasileira pela obra O Coruja, que se
enquadra no segmento de maneira bastante peculiar. Pretende-se
investigar a formação da personagem principal, com enfoque no
primeiro decênio de sua vida, que rende vestígios e traumas a partir
de suas próprias ausências, um mal domesticado indiferente às
manifestações socioculturais que o rodeiam. Por fim ganha espaço a
memória na formação de sua posterior aparente indiferença.

Palavras-chave: Bildungsroman; Memória coletiva; Memória


individual; Aluísio Azevedo; Estudos literários.

Introdução: o romance de formação e a identidade do sujeito

O gênero do romance, definido por Georg Lukács como a


grande épica, toma o lugar da epopeia na história da literatura das
narrativas, abrindo mão da escrita em versos e lançando mão da
escrita em prosa. Essa mudança tem um papel fundamental como
acontecimento pontual na sociedade alemã do final do século XVIII:
a epopeia, que levantava a figura do sujeito comum à altura do
campo de acontecimentos miraculosos, apresentando como peça-
chave da narrativa um herói ativo, dá lugar ao romance, narrativa na
qual o conceito de verossimilhança ganha tal peso capaz de inverter
a relação da humanidade com o mítico, trazendo o campo do
miraculoso ao cotidiano do mundo torto no qual vivemos, que
transforma o herói ativo da epopeia em mero protagonista, ou
personagem principal, anti-herói passivo no romance. Como

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Augusto Mancim IMBRIANI

ramificação do romance, surge na sociedade alemã do século XVIII,


com características específicas de romances históricos e urbanos, o
subgênero narrativo que mais tarde auxiliaria o gênero romanesco a
se tornar hegemônico perante os demais gêneros literários: o
romance de formação, que, devido à materialidade e ao caráter torto
de nosso plano, que pode ser percebido em alto relevo, traz consigo
turva imagem de uma desordem enfática e empática.
A essa altura, buscava-se a expressão artística do ―espírito
alemão‖, como o molde ideal de ser e viver frente ao contexto e à
construção do sujeito cuja experiência o legaria sua formação. No
âmbito literário, essa busca se encadeou no Bildungsroman, ou
romance de formação, que, em primeiro momento, foi concebido
como espécie de narrativa que apresentava o aperfeiçoamento do
indivíduo burguês na sociedade alemã do século dezoito, ―um
produto de circunstâncias políticas únicas e uma antítese dos
romances franceses e ingleses de realismo social‖ (MORGENSTERN,
2009, p. 647) com termo cunhado pelo filólogo Karl Morgenstern,
atribuição praticada na obra Os anos de aprendizado de Wilhelm
Meister, de Johann Wolfgang Von Goethe. A autora Debora Guedes
assim define:

Se na Alemanha da segunda metade do século XVIII, a


intelectualidade almejava a criação de uma literatura de
caráter nacional, onde fosse possível expressar em
forma de arte o ―espírito alemão‖, o Bildungsroman
(Bildung – formação e Roman – romance) aparece como
a representação desse desejo. Através de um
personagem jovem e de origem burguesa, na busca de
aperfeiçoamento pessoal e superação dos seus conflitos,
a obra romanesca integrar-se-ia ao contexto da produção
europeia. Vale ressaltar a função didática que assume
essa obra, pois contribui para a educação e formação de
quem a lê, outra preocupação dessa época. (CARLA;
GUEDES, [S.d.], p. 37)

As definições estabelecidas por Morgenstern partem de seus


estudos sobre as diferenças entre a epopeia clássica e o romance
burguês: aquela dá lugar a este na literatura ocidental, quando o
formato de escrita literária em prosa adquire consistência no meio
literário. Na narrativa, a personagem burguesa em formação inebria
o romance na busca por aperfeiçoamento pessoal, no convívio
sistemático com suas desordens e conflitos internos, a fim de
adquirir, no que se espera poder chamar de final, mesmo de mãos

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 96


Nostalgia e Trauma: a formação do indivíduo burguês

atadas pela indefinição, o bom manuseio de sua autonomia. Em


âmbito social, a produção desse tipo de romance reflete o contexto
sócio-político-cultural de cada país, trazendo uma personagem
jovem e de origem burguesa na busca por aperfeiçoamento pessoal,
social e profissional, atingindo a superação de seus conflitos
interiores, refletidos na personalidade do eu, conferindo à obra uma
turva imagem de desordem.
A partir de então, artistas como Goethe começam a
desenvolver esse gênero e dão um salto importantíssimo
na qualidade da ficção alemã. Os anos de aprendizado de
Wilhelm Meister (1795-1796) do escritor é o grande
exemplo desse romance que trazum personagem em
conflito entre o eu e o mundo. A progressão dessa
desordem interior é colocada em oposição aos ideais e a
estrutura socioeconômica de uma sociedade burguesa e
autoritária. (CARLA; GUEDES, [S.d.] pp. 37-38)

Nesse contexto, a lírica do conflito parte do eu para o outro,


traçando e demarcando desordens que possam, de forma
deliberada, fazer com que as formações se confundam: enquanto a
obra é narrada respeitando a estrutura formal de início, meio e fim,
pode-se estabelecer a experiência adquirida pelo indivíduo, o que
traz ao leitor a ideia de que a formação de vida se efetua
coordenadamente. Deve-se ressaltar, porém, o fato de a formação do
sujeito não surgir de maneira programada, se enquadrando na
simultaneidade biológica e natural do ser. A formação do sujeito se
dá pela recordação, e, como defende Aleida Assmann em sua obra
Espaços da Recordação, a recordação é individual e não pode ser
ensinada.

1. A memória pela recordação

Sua estrutura agrega ao seu conteúdo, em muitas das vezes,


o fluxo de consciência nostálgico, em tom autobiográfico, sendo
narrado ou em primeira pessoa, pela personagem principal, ou por
um terceiro, agregando à narração certo tom de objetividade de
quem nos fala, perante a personagem descrita. Nesse ponto, no qual
se insere a relação desse tipo de produção literária com o meio, se
faz necessário ressaltar a importância da verossimilhança para a
presente análise: a atribuição de especificidades à personagem por
estar circunscrita na realidade política e cultural do meio social no
qual se insere, conferindo ao gênero caráter moral. Tal caráter se

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 97


Augusto Mancim IMBRIANI

liga ao fato de o Bildungsroman estar atrelado ao cotidiano,


representado na narrativa por escritas em digressão, que faz com
que a reconstrução das lembranças do narrador conceba,
inevitavelmente, a memória individual e a coletiva como peças-chave
da formação do indivíduo, através de reconstruções de
acontecimentos traumáticos do passado e anseios sobre a incerteza
do futuro.
Tem-se, pois, a memória como fonte da formação do
indivíduo, à medida que coloca a personagem em uma posição de
constante juízo de valor envolta pelo eu enquanto sujeito, que, em
situações traumáticas, se encontra estrangeiro de si mesmo. Ilustra-
se, por trauma, um trecho da obra Lembrar, escrever, esquecer, de
Jeanne Marie Gagnebin, que se encontra no capítulo intitulado O
rastro e a cicatriz: metáforas da memória: ―O trauma é a ferida
aberta na alma, ou no corpo, por acontecimentos violentos,
recalcados ou não, mas que não conseguem ser elaborados
simbolicamente, em particular sob a forma de palavra, pelo sujeito.‖
(GAGNEBIN, 2006, p. 110). Nesse capítulo, a autora estabelece três
metáforas da memória: os já indicados, rastro e cicatriz, e ainda um
terceiro, a escrita, sobre a qual se deve refutar, quando a autora a
posiciona em um mesmo patamar que o rastro na questão
mnemônica de seu legado, a presença ou a ausência de sua
intencionalidade. Cito Gagnebin:

Agora a escrita não é mais um rastro privilegiado, mais


duradouro do que outras marcas da existência humana.
Ela é rastro, sim, mas no sentido preciso de um signo
ou, talvez melhor, de um sinal aleatório que foi deixado
sem intenção prévia, que não se inscreve em nenhum
sistema codificado de significações, que não possui,
portanto, referência linguística clara. Rastro que é fruto
do acaso, da negligência, às vezes da violência; deixado
por um animal que corre ou por um ladrão em fuga, ele
denuncia uma presença ausente — sem, no entanto,
prejulgar sua legibilidade. Como quem deixa rastros não
o faz com intenção de transmissão ou de significação, o
decifrar dos rastros também é marcado por essa não-
intencionalidade. (GAGNEBIN, 2006, p. 113)

Ser ou não intencional é o que será em breve essencial para


que a presente análise possa ser realizada enquanto pautada no
adestramento, tendo em vista a notoriedade das metáforas

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 98


Nostalgia e Trauma: a formação do indivíduo burguês

utilizadas pela autora no processo de formação do sujeito, ora


marcada pela ausência, ora marcada pela presença. Visa-se, nesse
ponto, identificar nos processos demarcados pelo ato de se
domesticar e ser domesticado, sua presença ausente e sua ausência
presente. A escrita, então, inscreve a memória em romances de
formação a partir da autobiografia, e demarca a espontaneidade –
ou não – do rastro, sensível no seu esquecimento e em sua não
criação.
Nesse contexto, aplica-se a memória como a fonte da
formação visada no gênero do Bildungsroman. Esse processo se
desencadearia a partir da recordação, tendo essa como uma técnica
mnemônica inata a ser desenvolvida, natural e involuntariamente,
pelo sujeito em sua transformação cultural e social, considerando a
constituição do presente por perspectivas do passado e
consolidando a formação do sujeito pela reconstituição de seus
vestígios, rastros e traumas. Aleida Assmann, em seu livro Espaços
da Recordação: formas e transformações da memória cultural,
estabelece um paralelo entre o decorar e o recordar, colocando
enfoque no caráter involuntário desse em detrimento daquele,
firmando a recordação como um ato individual e refutando a
possibilidade de ser ensinada por e para terceiros. Lê-se ensinar
como uma marca corporal conferida ou deixada deliberadamente
por um terceiro, os mesmos procedimentos intencionalmente
realizados no ato de adestrar.

2. O adestramento em Foucault

Michel Foucault divide sua obra Vigiar e punir em três


partes: Suplício, Punição e Disciplina, sendo, essa última, a seção
mais relevante para a presente análise, pois, nela, o autor discorre
sobre questões que espalham sua pertinência desde a folha em
branco que receberia a escritura do adestramento – o corpo,
representado na obra pelo subtítulo Os Corpos Dóceis – perpassando
pelos meios mais eficazes de se deixar as marcas da domesticação,
trazidos pelo autor como Os Recursos para o Bom Adestramento,
demarcando o segundo capítulo da seção da Disciplina, e
culminando no Panoptismo, o olho que tudo vê. Nesse segundo
capítulo dessa terceira parte, intitulado Os Recursos para o Bom
Adestramento, o autor nos aponta o que em sua visão seriam os três
recursos essenciais para que seu objeto, seu instrumento, o sujeito,
seja bem domesticado. São eles: a vigilância hierárquica, a sanção

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 99


Augusto Mancim IMBRIANI

normalizadora e o exame, que, cada qual a seu modo, inserem no


processo inicial da formação do indivíduo caracteres peculiares
cujas marcas, vestígios, rastros e traumas serão posteriormente
recordados por ele, passivo nesse processo, fazendo com que sua
autonomia se entrelace à disciplina outrora imposta. Esse
entrelaçamento apresenta, então, produto de neutralização, ou seja,
a disciplina é refutada pela autonomia, enquanto essa é limitada por
aquela. Cito Foucault:

[...] O poder disciplinar é com efeito um poder que, em


vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior
―adestrar‖; ou sem dúvida adestrar para retirar e se
apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças
para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e
utilizá-las num todo. Em vez de dobrar uniformemente e
por massa tudo o que lhe está submetido, separa,
analisa, diferencia, leva seus processos de decomposição
até às singularidades necessárias e suficientes.
―Adestra‖ as multidões confusas, móveis, inúteis de
corpos e forças para uma multiplicidade de elementos
individuais – pequenas células separadas, autonomias
orgânicas, identidades e continuidades genéticas,
segmentos combinatórios. [...] (FOUCAULT, 1987, p. 143)
Multidões adestradas coercitivamente apresentam rastros
que foram deixados transbordados de violência, e, até os dias
atuais, não se pode dizer que as gotas que saem dessa torneira
foram totalmente esgotadas. Tem-se, a partir do adestramento em
massa, um movimento que vai do macro para o micro, deixando
suas marcas e vestígios da memória coletiva à memória individual.
O que caracteriza esse movimento é o ato de recordar e a
individualidade por ele apresentada. Cada indivíduo dessa massa
possui sua autonomia e recebe o adestramento de maneira
particular, o que faz com que, no momento da recordação, as
perspectivas individuais do passado constituam também percepções
individuais do presente. No período seguinte o autor dá
continuidade à essa ideia demarcando a não cicatrização dessas
feridas e sua condição permanente:

[...] A disciplina ―fabrica‖ indivíduos; ela é a técnica


específica de um poder que toma os indivíduos ao
mesmo tempo como objetos e como instrumentos de
seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de
seu próprio excesso, pode se fiar em seu superpoderio; é
um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 100


Nostalgia e Trauma: a formação do indivíduo burguês

de uma economia calculada, mas permanente. Humildes


modalidades, procedimentos menores, se os
compararmos aos rituais majestosos da soberania ou
aos grandes aparelhos do Estado. E são eles justamente
que vão pouco a pouco invadir essas formas maiores,
modificar-lhes os mecanismos e impor-lhes seus
processos. [...] (FOUCAULT, 1987, p. 143)

Nesse contexto, considera-se permanente o rastro que não


pode ser apagado, o trauma não superado, a escrita definitiva, a
tatuagem. A tatuagem marca o local do corpo de modo que ele
nunca se faça o mesmo, ainda que provocada sua ausência. Assim, o
adestramento apresentado por Foucault visa, no processo de
formação do ser, ter como legado do uso dessas ferramentas, o
sujeito disciplinado.

3. O mau adestramento em O Coruja

Aluísio Azevedo escreve sua obra em estrutura folhetinesca,


o que alguns críticos consideram parâmetro de inferioridade com
relação a outros romances dos seus, como O Cortiço, de 1890, e O
Mulato, de 1881. No romance, cujo narrador adquire autonomia em
seu papel por não se tratar de um personagem, o leitor adquire
contato com a estória de Teobaldo e André, cuja alcunha dá nome
ao título da obra. O primeiro, filho único de um Barão do estado de
Minas Gerais, e o segundo, órfão de pai e mãe e, até ser renegado,
criado na casa de um padre por pura piedade, estabelecem entre si,
desde a infância, relação antitética no tangente às suas
personalidades e mutualística no tangente às suas necessidades.
Teobaldo vivia de sua aparência e suas clássicas boas maneiras,
tendo como cartão de visita e como marca quando visto o seu
caráter belo, enquanto André, o Coruja, vivia de renúncias, tendo
como recepção e legado, quando visto, sua feição grotesca e a
própria renúncia de seu ser por terceiros. Não que se tratasse de
uma personagem desagradável em suas atitudes, mas, como o
próprio narrador nos apresenta, por se tratar de um ser torto,
desengraçado, repugnante e eufemisticamente peculiar. O Coruja
renuncia suas vontades e necessidades, mas nunca ao trabalho e à
bondade que lhe é inata. Tal qualidade nunca conseguiria
neutralizar o impacto de ser visto, e, nessas circunstâncias, o único
que lhe estende a mão a fim de apresentar a amizade é Teobaldo.
André, o Coruja, vem de uma infância conturbada: órfão
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 101
Augusto Mancim IMBRIANI

ainda criança, é acolhido por um padre que por pouco tempo


sustenta deliberada tolerância para com seu adotado, até que o
manda para um colégio interno – local e período essenciais para a
pretendida análise da formação dupla e cruzada das personagens
principais do romance –, e é nesse ponto da narrativa que se deve
focar para que seja aplicado o presente estudo, quando o motorista
do internato busca André e assume falha tentativa de aproximação.
A cena pode ser ilustrada pelo seguinte trecho do romance, descrito
pelo narrador logo após o diálogo, quase monólogo, entre o
motorista e o menino lacônico:

Em todo ele nada havia que não fosse vulgar. A


expressão predominante em sua fisionomia era
desconfiança, nos seus gestos retraídos, na sua estranha
maneira de esconder o rosto e jogar com os ombros,
quando andava, transparecia alguma coisa de um urso
velho e mal domesticado.
Não obstante, quem lhe surpreendesse o olhar em certas
ocasiões descobriria aí um inesperado brilho de inefável
doçura, onde a resignação e o sofrimento transluziam,
como a luz do sol por entre um nevoeiro espesso.
(AZEVEDO, 2008, p. 23)

Sua expressão era de desconfiança, pois nunca antes havia


confiado. A confiança em seu processo de formação, ainda em
andamento, havia sido tão ausente, até então, quanto o sofrimento e
a resignação se fizeram presentes.
Pode-se prosseguir considerando a ausência tão fundamental
para a formação de André quanto a presença para a de Teobaldo,
que, como descreve o narrador quando apresenta ao leitor a
personagem enquanto criança, ressalta que esse apresentava
―altivez natural e adquirida por educação‖ (AZEVEDO, 2008, p. 35).
Pois, se a altivez era natural, inata, seria ela adquirida ou
desenvolvida a partir da educação? No decorrer do processo de
desenvolvimento do indivíduo, na busca pelo bom uso de sua
autonomia, em determinado momento, se encara a tentativa de
provocar o adestramento desse por um terceiro, com o intuito de
podar seus vértices para que seja enquadrado nos moldes
preestabelecidos pelo meio. Em determinado momento da narrativa,
o, ainda garoto, Coruja, se encontra passivo desse estágio do ato de
domesticar:

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 102


Nostalgia e Trauma: a formação do indivíduo burguês

Dir-se-ia que nascera encascado em grossa armadura de


indiferença, contra a qual se despedaçavam as várias
manifestações do meio em que vivia, sem que elas
jamais conseguissem lhe corromper o ânimo. A tudo e a
todos parecia estranho, como se naquele coração, ainda
tão novo, já não houvesse uma só fibra intacta.
(AZEVEDO, 2008, p. 29)

Nesse sentido, pode-se, então, atentar para o fato de que, no


já citado estágio de adestramento na formação do sujeito, o garoto
André já apresentava as fibras do coração adulteradas, marcadas e
cicatrizadas.
André e Teobaldo crescem juntos, esse adulado e aquele mal
tratado. A família de Teobaldo acolhe o órfão torto como um
segundo filho, e na recepção de Santa, a mãe do belo garoto,
percebe-se, tal qual Drummond, a flor que rompe o concreto:
―Depois de sua mãe ninguém mais o beijara. E Santa, sem saber,
acabava de abrir no coração do desgraçado um sulco luminoso, que
penetrava até as suas mais fundas reminiscências da infância.‖
(AZEVEDO, 2008, p. 53).
E com essa amizade, pautada no contraste, ambas as
personagens principais desse romance de formação seguem o
trânsito, que parte da inocência da infância, perpassando pela
inquietude da adolescência, pela hipocrisia da idade adulta, até
chegar à nostalgia da velhice. Seguindo com essa relação
mutualística, durante toda a vida carregam consigo sentimento
recíproco de dívida. Nessa amizade antitética, em cada momento da
vida cada um representa um polo do imã: ora negativo, ora positivo,
mas sempre se atraindo, mesmo que o meio tente o contrário.

Considerações finais

Admitindo a memória como fonte da formação do sujeito,


mais especificamente o ato de recordar, tendo como produto a
constituição do presente a partir de perspectivas do passado, deve-
se, portanto, considerar suas dimensões individual e coletiva.
Enquanto nessa a formação coletiva se dá pela apropriação,
sistematização e transmissão da identidade cultural, representando
uma espécie de adestramento social a partir do meio no qual se
inserem os sujeitos, naquela a formação individual se dá pela
recordação, identificação de experiências e sistematização das
mesmas pelo sujeito em processo de autodefinição. Aleida Assmann
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 103
Augusto Mancim IMBRIANI

(2011) estabelece, metafórica e sutilmente, o ato de recordar como


sendo um descongelamento de vivências que já haviam sido
congeladas em nosso cérebro. A partir daí, o sujeito se insere num
contexto de fixação do aprendizado experimentado, estranhado e
apropriado. Ao recordar, passa por um processo de sistematização
do que fora outrora internalizado, absorvido do meio. Pode-se,
assim, estabelecer um paralelo entre as formações individual e
coletiva de André, o Coruja, e Teobaldo: em tom memorialístico,
suas formações, em ambos os âmbitos, dão as mãos. Na ausência de
vivências que sejam subordinadas ao processo de adestramento do
indivíduo, levantado por Michel Foucault, o processo pode
apresentar vácuos entre seus recursos. O Coruja já não mais se
encaixava no grupo de corpos dóceis a serem domesticados, fato
marcado não pela presença de adestradores, mas pela sua ausência.
O sujeito a ser domesticado demanda atenção, principalmente em
seu processo inicial de formação. Em caso de ausência, ou vazio,
não há vigilância hierárquica que exija qualquer sanção
normalizadora para que seja aplicado um exame que ateste seu
adestramento.

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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 105


A POESIA CRÍTICA E O ENSAIO LITERÁRIO:
CONTAMINAÇÕES EM ANA C.

Berenice Ferreira da SILVA


UFSC

Resumo: Este trabalho propõe uma reflexão acerca do exercício de


criação e crítica literária em alguns textos de Ana Cristina César, os
quais se compõem a partir de diversas vozes, mobilizando, assim, o
uso de suas leituras e da tradição literária.

Palavras-chave: Ana Cristina César; Literatura brasileira; Crítica e


Poesia.

Durante uma aula inaugural ministrada no curso de Pós-


Graduação em Literatura da UFSC, em 1990, Ricardo Piglia fala sobre
―o tipo de relação que se pode estabelecer entre a prática de
literatura e a reflexão sobre a literatura‖ (PIGLIA, 1996, p. 47). Para
Piglia, o exercício do escritor, que é também um leitor, envolve o uso
que este faz de outros textos: ―a gente lê para escrever e, portanto,
começa a ver nos outros textos as marcas daquilo que a gente quer
fazer‖ (Idem).
Em sua tese de doutorado, defendida também em 1990, a
professora Maria Lúcia de Barros Camargo afirma que ―Ana Cristina
Cesar exerceu o tríplice ofício: poesia, tradução e crítica. Três
atividades mutuamente iluminadoras e fecundantes, três atividades
originárias de um único e mesmo ato: o ato de ler‖ (CAMARGO,
2003, p. 49). Por sua vez, no ―perfil biográfico‖ que escreve sobre a
poeta, Ítalo Moriconi afirma que ―Ana manteve sempre uma relação
reflexiva com sua própria poesia. Ela não foi simplesmente mais
uma fazedora de versos. Foi uma poeta-que-pensa. Uma poeta-
crítica‖ (MORICONI, 1996, p. 13).
A reflexão que se quer ensaiar aqui, partindo das
observações expostas acima,leva em conta, portanto,a relação entre
o ―ato de ler‖ e o ―uso‖ dessas leituras na escritura de Ana Cristina
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
A Poesia Crítica e o Ensaio Literário: Contaminações em Ana C.

César, visto que tanto em seus poemas quanto em seus textos


crítico-acadêmicos – embora essa delimitação seja impossível –
percebe-se, com bastante frequência, a tematização do exercício
literário, ou seja, há um pensamento sobre os modos de ler e
escrever a literatura que está em discussão e que afeta a dicção
poética de Ana C. Isso pode ser observado em diversos textos, como
em seu ―livrinho‖ Correspondência Completa (1979) bem como nos
ensaios ―Literatura e mulher: essa palavra de luxo‖ (1979) e
―Riocorrente, depois de Eva e Adão...‖ (1982), os quais nos
interessam aqui.1
Ressalte-se: a tentativa de delimitar ou separar a produção
poética e crítica não é o que está em questão aqui, pois, como em
diversos outros casos da literatura, na escritura de Ana C. ―os
limites entre o texto literário e o texto crítico-ensaístico são tocados,
numa aproximação entre os gêneros que é, também, a crítica da
forma do ensaio e da legitimidade do discurso acadêmico‖
(CAMARGO, 2003, p. 64). Sobre essa aproximação ou
―contaminação‖ entre gêneros, Jacques Derrida, em 1979, coloca a
questão no ensaio ―La loi du genre‖: ―¿Y si fuera imposible? ¿No
mezclarlos géneros? ¿Y si hallaran alojados en el corazón de la ley
misma, una ley de impureza o un principio de contaminación?‖
(DERRIDA, 1980, p. 3).2 E é a partir dessa noção de ―contaminação‖
que se propõe a presente leitura.

A poesia crítica

Em seu segundo livro publicado, Correspondência Completa,


Ana C. sugere, pela via poética, um pensamento sobre os modos de
ler a literatura. Nesse texto, o leitor é incluído na cena da escritura,
personificado nas figuras de ―Gil e Mary‖:

1
Escritos no Rio reúne uma coleção de ensaios e resenhas publicados por
Ana C. em jornais e revistas durante a década de 70 e inícios de 80, e
integra também a edição publicada pela Editora Ática, em 1999, intitulada
Crítica e Tradução, referência utilizada aqui.
2
Texto original: ―La loi du genre‖, en Glyph, 7, Baltimore, Johns Hopkins
University Press, 1980. Traducción para la cátedra de Teoria y Análisis
Literario ―C‖ de Ariel Schettini. Disponível em:
http://docslide.com.br/documents/102170682-derrida-jacques-la-ley-del-
generopdf.html. Acesso em 20/12/2016.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 107
Berenice Ferreira da SILVA
Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lê
para desvendar mistérios e faz perguntas capciosas,
pensando que cada verso oculta sintomas, segredos
biográficos. (...) Já Mary me lê toda como literatura pura,
e não entende as referências diretas (CESAR, 2013, p.
50).

Esse texto, como coloca Maria Lúcia, é ―um híbrido de ficção


e teoria, de poema travestido em carta (...), que bem pode ser lida
como um poema em prosa, ou um ‗proema‘‖ (CAMARGO, 2005, p.
116), concordando com Silviano Santiago3, para quem o destinatário,
―Mydear‖, é o leitor ―singular e anônimo‖, para o qual há duas
exigências nesta ―carta-poema‖: não reduzir o texto a uma única
leitura ou a um único sentido/interpretação, e não ler a poesia só
como vida ou literatura. Ou seja, nem Gil nem Mary: o destinatário
da carta-poema, ou o leitor (de Ana C.), deve estar atento às
contaminações entre realidade e ficção, entre poesia e crítica. ―Gil
está sempre jurando ou me fazendo jurar‖ (CESAR, 2013, p. 50), e
quem jura, jura dizer a verdade. Mas o sujeito do poema alerta:
―Não fui totalmente sincera‖ (Ibidem, p. 48).
Levando um pouco além a discussão sobre a continuidade
entre realidade e ficção na escritura de Ana C., afirma Marcos Siscar:
[...] o poema é crítico não somente quando rompe com o
individualismo da experiência biográfica do real, não
somente quando reintroduz o ―relaxo‖ da experiência
contra o ―capricho‖ da tradição (para retomar as
palavras de Leminski), mas sobretudo quando evidencia
sua desconfiança em relação ao espírito de continuidade
com o real, de maneira mais ampla. Quando chama para
dentro do poema – de um modo que não é simplesmente
teatral, no sentido da ilusão produzida, mas dramático,
no sentido da intensidade – a cumplicidade ou a
irritação de um outro. Ou seja, quando introduz uma
ambivalência provocante, uma brecha que esvazia a
oposição e a hierarquia entre vida e poesia (SISCAR,
2011, p. 25).

Vale lembrar que quem assina essa carta-poema não é Ana


Cristina César, mas Júlia, o que retoma a ideia do espaço literário

3
SANTIAGO, Silviano. ―Singular e anônimo‖. Nas malhas da letra: ensaios.
Rio de Janeiro: Rocco, 2002. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo
em 1984.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 108
A Poesia Crítica e o Ensaio Literário: Contaminações em Ana C.

como um lugar de encenação de subjetividades, discussão já


bastante desenvolvida em sua fortuna crítica. A lembrança dessa
questão aqui é no sentido de uma vez mais destacar a escolha (e a
mescla) dos gêneros utilizados por Ana C. – de maneira nada
inocente – e a maneira como a poeta expõe ou sugere (―de viés‖),
pela via literária, suas reflexões sobre a literatura.
Nesse sentido, vem à memória o caso João Cabral de Melo
Neto, cuja produção literária também é atravessada por uma
dicção/vontade crítica, a exemplo do livro Poesia Crítica (1982), em
cuja nota inicial o escritor afirma que a antologia em questão não
pretende ser ―uma arte poética sistemática ou um sistema crítico‖, e
que

[...] a insistência nesses temas da criação poética não são


a reiteração de verdades a que o autor teria chegado,
mas apenas a conseqüência de uma permanente
meditação sobre o ofício de criar.
Talvez possa parecer estranho que passados tantos anos
de seus primeiros poemas, o autor continue se
interrogando e discutindo consigo mesmo sobre um
ofício que já deveria ter aprendido e dominado (NETO,
1982, p. v).4

E, de certa forma, esse movimento reflexivo pode ser


observado também nos textos de Ana C. Ainda que nem sempre
explícita, há uma ―meditação sobre o ofício de criar‖, e esta é
afetada por suas leituras, as quais entram em ―uso‖ no seu método
de composição poética:
Passei a tarde toda na gráfica. O coronel implicou outra
vez com as ideias mirabolantes da programação. Mas
isso é que é bom. Escrever é a parte que chateia, fico
com dor nas costas e remorso de vampiro. Vou fazer um
curso secreto de artes gráficas. Inventar o livro antes do
texto. Inventar o texto para caber no livro. O livro é
anterior. O prazer é anterior, boboca (CESAR, 2013, p.
49).

Neste trecho da carta-poema, percebe-se um interesse do

4
―Meditação sobre o ofício de criar‖ é título de um dos ensaios de Silviano
Santiago, publicado no livro Nas malhas da letra (2002). Lê-se na nota à
segunda edição deste: ―criação e crítica são intercambiáveis‖.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 109
Berenice Ferreira da SILVA

sujeito do poema pela leitura (objetificada no livro), além da


―confissão‖ – novamente de viés e nada inocente – do ―remorso de
vampiro‖, sugerindo o uso dessas leituras (de outros textos) em sua
escritura, o que discutiremos adiante.

O ensaio literário

Ao analisar os ensaios ―Literatura e mulher: essa palavra de


luxo‖ (1979) e ―Riocorrente, depois de Eva e Adão...‖ (1982) –
posteriormente, faço referência a estes apenas como ―primeiro
ensaio‖ e ―segundo ensaio‖ –, Maria Lúcia o faz a partir de uma
―Leitura do feminino‖, outro tema recorrente na poesia de Ana
Cristina César.
No primeiro ensaio (ou resenha), há onze partes enumeradas
que, em sua maioria, são recortes de outras falas. Porém, isso não
aparece no texto na forma acadêmica usual, através de citações.
Apenas ao final, quando se depara com a lista de nomes que
figuram na ―Dramatis personae‖, o leitor se dá conta dessa
―colagem‖ de vozes (masculinas e femininas), todas mobilizadas
num jogo de diálogos e contradições. Na parte final do ensaio há
uma ―Errata‖, onde surge outra voz que é atribuída à ―Sylvia
Riverrun‖,5 sem maiores explicações de quem seja essa ―persona‖.
Por sua vez, no segundo ensaio, que aparece publicado três
anos depois, Sylvia Riverrun retorna ao texto, mas, dessa vez, Ana
Cristina a apresenta, entre aspas, como ―‗a brazilianista Sylvia
Riverrun, da Universidade do Texas‘. Especialista em literatura de
mulher, ex-militante feminista...‖ (CESAR, 1999, p. 244), incluindo
outras informações acadêmicas e profissionais sobre a suposta
crítica literária. Para a professora Maria Lúcia, Sylvia Riverrun

5
―Sylvia‖ pode ser uma referência a Sylvia Plath, de quem Ana C. era leitora;
―Riverrun‖ é uma palavra-valise de James Joyce e inicia seu último romance,
Finnegans Wake, conforme Ana C. explica na nota de rodapé do ensaio. Vale
lembrar que este recurso de linguagem, a palavra-valise, é também
recorrente no texto de Guimarães Rosa que, por sua vez, inspirou Glauber
Rocha a escrever seu único romance publicado, intitulado Riverão
Sussuarana, o qual faz ecoar uma vez mais o texto de Joyce. Sobre este, no
artigo ―Guimarães Rocha (ou Glauber Rosa)‖, publicado em 2008 (Revista
Outra Travessia n. 7), o professor Jair Tadeu da Fonseca faz uma excelente
análise das referências de leitura presentes no texto de Glauber.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 110
A Poesia Crítica e o Ensaio Literário: Contaminações em Ana C.

[...] se trata de uma sutil ficção. Uma personagem de


Ana Cristina, talvez uma de suas máscaras, que
transporta o ensaio para outra dimensão: impregnado
pela invenção, pela criação, não apenas problematiza e
corrói o ensaio como forma, como gênero, mas também
as relações entre ficção e realidade, entre arte e vida. E
não mais falando desses temas, mas tramando o tema
na tecedura do texto, nessa borgeana falsa atribuição
(CAMARGO, 2003, p. 70).

A ―invenção‖ de Sylvia Riverrun passa, talvez, por algo que é


da ordem do político na dicção de Ana C., isto é, o questionamento
em relação a uma tradição literária centrada em figuras
masculinas6. Porém, sua poética se constrói também com essas
figuras, ainda que se perceba um apelo ao feminino: ―posso ouvir
minha voz feminina: estou cansada de ser homem‖ (CESAR, 2013,
p. 32). Nesse sentido, ao se referir a um dos livros de Angela Melim,
no segundo ensaio, Ana C. aponta alguns elementos que parecem
ecoar em sua própria dicção poética: ―O texto de uma escritora que
costuma trabalhar com ‗mulher‘, usar ‗mulher‘ como um tema que
determina um tom, como questão (pendente)‖ (CESAR, 1999, p. 243
– grifos meus). E a ―questão pendente‖ se desdobra: ―Escrita de
mulher: uma charada sem resposta? Só as perguntas são
possíveis?‖ (Ibidem, p. 244).
Ao analisar o primeiro ensaio de Ana C., Ana Cláudia Viegas
afirma:
As divergências entre os pontos de vista apresentados
descentralizam a discussão [―literatura e mulher‖], de
modo que não se pretende alcançar conclusões
definitivas. A verdade não é uma substância a ser
descoberta, mas um jogo de forças em permanente
tensão (VIEGAS, 1998, p. 81).

Afinal, ―Não quero ficar panfletária‖ (CESAR, 1999, p. 225),

6
Italo Moriconi também comenta essa questão: ―Como posicionar-se
enquanto intelectual mulher numa cultura da produção e transmissão do
saber cujos rituais, afetos e costumes se organizam atavicamente pelos
parâmetros da colaboração e rivalidade entre machos? Virando homem
também? (...) Renunciando a ser voz ativa, abrindo mão de sua capacidade
de liderança para preservar o próprio destino de mulher?‖ (MORICONI,
1996, p. 70).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 111
Berenice Ferreira da SILVA

diz uma das vozes (seria a voz de Ana?). Não obstante, o


questionamento retorna no final do segundo ensaio:
[...] como fechar, convenientemente, o problema do
feminino no texto literário – deslindando-o inclusive da
palavra mulher? Onde ancorar esse conceito? Não seria
melhor deixá-lo à deriva, errante conforme nos sopra o
que há de feminino na linguagem? (Ibidem, p. 248).

E é assim, errante, em questão e em tensão, que essa ―voz


feminina‖ sussurra, para além dos dois ensaios, em diversos outros
textos de Ana C.
Mas voltemos a essa ―justaposição de vozes em diálogo
[que] ganha uma força radical‖ (VIEGAS, 1998, p. 81) nesses ensaios
de Ana Cristina César. Segundo Maria Lúcia, ―Os disfarces, as
máscaras, as personas atuam em toda a produção textual de Ana
Cristina, produzindo contaminações mútuas, hibridizações de
vozes, de gêneros textuais, de prosa e de verso‖ (CAMARGO, 2005,
p. 113). Nesse sentido, surgem alguns questionamentos: por que
Ana C. cria uma ―persona‖ crítica? Por que não compromete sua
própria assinatura, seu nome próprio, nesse texto crítico? Uma
maneira de desdobrar essas questões, já que tentar respondê-las
seria imprudente, é pensar a atividade do escritor enquanto leitor e
crítico, isso porque, enquanto leitor, o crítico estabelece suas
referências de leitura, filia-se a uma tradição. E diante de textos
como estes dois ensaios, percebe-se uma tensão em relação à
tradição literária.
Retomemos Piglia:
O escritor não busca ler toda a literatura mas quer
armar uma espécie de rede com a qual ele constrói sua
ficção literária (...) É uma leitura situada. O escritor
coloca-se numa posição, lê a partir desse lugar, e daí em
diante, estabelece cortes, separações, enfrentamentos. O
escritor não lê de um modo harmônico, tendendo a unir
os escritores numa espécie de totalidade; porém, ele
estabelece, de imediato, relações de luta e de tensão
(PIGLIA, 1996, p. 47-48).

Observa-se aí, portanto, a contaminação entre a crítica e a


criação literária – retomando Derrida, uma ―división interna del
rasgo, impureza, corrupción, contaminación, descomposición,
perversión, deformación, cancerización – inclusive –, proliferación
generosa, degeneración‖ (DERRIDA, 1980, p. 4), pois Ana C. tensiona

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 112


A Poesia Crítica e o Ensaio Literário: Contaminações em Ana C.

o discurso crítico levando-o ao limite: ao questionar o lugar do


feminino na literatura ela o faz usando outras vozes, inventando
uma ―personagem‖ (uma autoridade feminina), e isso envolve,
também, um tensionamento da tradição, pois trata-se de (re)criar a
história –uma história marcada pela contradição, pela criação, pela
ficção. ―A primeira vez que escrevi sobre literatura de mulher
curiosamente não falei por mim nem de mim diretamente. Usei
diversas personas que se contradiziam entre si‖ (CESAR, 1999, p.
243), afirma Ana C. no segundo ensaio referindo-se ao primeiro.
Porém, o segundo ensaio também está contaminado pela aparição
da ―penetra‖ Sylvia Riverrun.
Isso se relaciona com o que propõe Piglia acerca da ―ex-
tradição‖, isto é, o ―procedimento de uso, esquecimento, adaptação,
tradução, apropriação, plágio, invenção de uma tradição‖ (PIGLIA,
1996, p. 52), porque Sylvia é uma personagem criada a partir de
restos:
A tradição tem a estrutura de um sonho: restos perdidos
que reaparecem, máscaras incertas que encerram rostos
queridos. Escrever é uma tentativa inútil de esquecer o
que está escrito (nisto nunca seremos suficientemente
borgeanos). Por isso, na literatura, os roubos são como
lembranças: nunca suficientemente deliberados, nunca
inocentes demais. As relações de propriedade estão
excluídas da linguagem: podemos usar todas as palavras
como se fossem nossas, obrigá-las a dizer o que
queremos dizer, sob a condição de saber que outros,
nesse mesmo momento, talvez as estejam usando do
mesmo modo. (...) A essência da literatura consiste na
ilusão de transformar a linguagem em bem pessoal. A
relação entre memória e tradição pode ser vista como
uma passagem à propriedade e como um modo de tratar
a literatura já escrita com a mesma lógica que tratamos
a linguagem. Tudo é de todos, a palavra é coletiva e
anônima(Ibidem, p. 51).

Para Süssekind, entretanto,


Como voz, e não propriamente como personagem, auto-
retrato, emblema geracional ou figura com máscaras ou
contornos fixos, é que se define o sujeito nos textos de
Ana Cristina Cesar. E como colagem de falas, sucessão

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 113


Berenice Ferreira da SILVA
de tons, ritmos, conversas, que se singulariza sua forma
de composição poética (SÜSSEKIND, 2007, p. 12-13).7

E é nesse tom que se dá a composição desses dois ensaios,


afinal, são diversas vozes que conversam (e se contradizem) entre
si nessa ―colagem de falas‖ ora ―copiadas‖, ora inventadas.

Contaminações

As contaminações nos textos observados anteriormente


aparecem desde os gêneros utilizados (poesia crítica e ensaio
literário) até a dicção mesma, a partir do diálogo entre diversas
vozes. Segundo Derrida, ―El principio del género es inclasificable‖
(DERRIDA, 1980, p. 7), ou seja, não parece relevante
diferenciar/delimitar poesia e ensaio nesse contexto, visto que ―un
texto no perteneceria a ningún género. Todo texto participa de uno
o varios géneros, no hay texto sin género, siempre hay género y
géneros, pero esta participación no es jamás una pertenencia‖
(Ibidem, p. 10). A questão da contaminação entre gêneros
(literários), portanto, parece resolvida.
Por outro lado, a partir de leituras como a de Flora
Süssekind, na sua importante análise sobre os cadernos e
rascunhos de Ana C. em Até segunda ordem não me risque nada, é
possível afirmar que a busca por uma dicção própria e a elaboração
de um pensamento crítico sobre o exercício literário são afetadas
pela experiência da leitura e da tradução, atividades ―fecundantes‖
no trabalho de Ana Cristina César. Para Süssekind, trata-se,
portanto, de ―técnicas literárias‖, pois não são apenas os poemas e
prosas curtas que se apresentam como ―conversações‖: ―O seu
movimento em direção a uma dicção própria também parece passar
por uma série de diálogos propositadamente explícitos com
técnicas literárias diversas‖ (SÜSSEKIND, 2007, p. 9), e estas
aparecem também nos ensaios comentados anteriormente. Flora
observa ainda que ―A incorporação de recursos típicos da tradução
no processo de composição poética tornava-se, pois, metódico‖
(Ibidem, p. 58).
Em outros termos, Maria Lúcia vê na poética de Ana C. o

Vale lembrar que este ensaio data de 1989, como explica a autora na Nota
7

prévia da edição aqui utilizada.


Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 114
A Poesia Crítica e o Ensaio Literário: Contaminações em Ana C.

texto como palimpsesto: ―Constatação da impossibilidade do ‗novo‘,


da inexistência da originalidade absoluta. Novo será o modo de
desentranhar a própria palavra tecida na palavra alheia. Novo será o
modo de ler‖ (CAMARGO, 2003, p. 144). Ou seja, as citações, os
roubos, as vozes, fazem parte de um método de composição, os
quais têm relação (também) com o exercício de leitura e tradução,
como bem destaca Flora Süssekind ao analisar a forma como alguns
poemas se apresentam (escolha de determinados sinais de
pontuação, pessoas do discurso, etc.). A dicção voltada à
interlocução, ou a escrita como ―arte da conversação‖, como fala, ―é
um dos traços mais característicos da escrita de Ana Cristina Cesar,
cujo eco, insistente, se repete, com variações, de um livro a outro‖
(SÜSSEKIND, 2007, p. 13).
Em análises posteriores, como na de Marcos Siscar, a figura
do interlocutor se confirma: ―o texto traz à tona o sujeito em sua
relação com a figura de um outro‖ (SISCAR, 2011, p. 22); no caso da
carta-poema, o leitor ―singular e anônimo‖, com quem o sujeito do
poema quer ―conversar‖, para retomar a expressão de Flora
Süssekind. Por sua vez, Marta Peixoto afirma:

Em aspecto já bastante estudado de sua obra, seus


poemas incorporam, como método básico de
composição, as palavras de outros escritores. Ana
Cristina segue à risca o conselho célebre de T. S. Eliot –
os poetas devem antes roubar que pedir emprestado.
Seus textos, com força centrípeta, assimilam alusões e
citações de fontes múltiplas, estabelecendo uma espécie
de diálogo semi-escondido com vários escritores,
brasileiros, americanos, europeus. Estes roubos ou
empréstimos nem sempre se autodesignam como tais
pelas vias tradicionais da citação e atribuição. As
palavras alheias muitas vezes se acomodam em seus
textos de forma discreta ou secreta, sem aspas
(PEIXOTO, 2003, p. 278).

Para Flora, ―Não se trata, porém, de flagrar ladroagens, mas


de registrar algumas aproximações, exercícios pictográficos e
reescrituras em meio aos quais Ana Cristina foi forjando um
método poético particular‖ (SÜSSEKIND, 2007, p. 33), pois o que se
percebe no texto da poeta é um ―processo de adensamento crítico
por que parecia estar passando o seu método de escrita no início da
década de 80‖ (Ibidem, p. 8), o que ―revela um constante exercício

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 115


Berenice Ferreira da SILVA

de aproximação a uma das vertentes mais marcadas da poesia


moderna: a do monólogo dramático, a de textos que se apoiam
simultaneamente numa forma teatralizada de composição e num
efeito lírico‖ (Ibidem, p. 13).
A leitura pelo viés do exibicionismo e da performance é
bastante relacionada à poesia de Ana C., porém, a sugestão de Flora
à tentativa de definir a dicção poética de Ana Cristina é que ―se vá
além de sua forma peculiar de apropriação da coloquialidade da
poesia brasileira dos anos 70 ou dos seus diálogos explícitos com os
autores estrangeiros que estuda por meio da tradução‖, pois, ao
analisar seus cadernos e rascunhos, Süssekind observa que ―em
meio ao exercício simultâneo de várias possibilidades discursivas
(poema-minuto, fragmento, carta, diário), Ana Cristina Cesar opta,
do ponto de vista de seu processo mais geral de composição, por
essa poesia-em-vozes‖ (Ibidem, p. 31).
Cabe dizer que o interlocutor do texto de Ana C. não é
necessariamente ―pessoal‖ (como o leitor ―singular e anônimo‖,
destinatário de Correspondência Completa), já que o interlocutor
dessa ―poesia-em-vozes‖ pode ser o texto mesmo, seja ele da
própria Ana C. ou outros textos que ela lê e traduz – além do
diálogo com outras formas de arte, como o desenho, cuja relação é
também observada por Flora. Trata-se, portanto, também nos seus
dois ensaios, do ―choque entre textos‖, conforme Maria Lúcia
observa: ―assim como na poesia, Ana se volta tanto sobre falas
alheias, como sobre outras de suas falas já ecoadas, num
movimento do texto sobre o texto, num choque entre textos‖
(CAMARGO, 2003, p. 65).
Uma conclusão possível é que a escritura de Ana C. está
contaminada pelo uso que a poeta faz de suas leituras (pelo ato de
ler e/ou traduzir). Contudo, outras contaminações são possíveis a
partir do contato dessa escritura com o leitor. Seja o discurso
poético ou o discurso crítico, considerando que os limites entre eles
são indiscerníveis8, resta ao leitor mobilizar os sentidos do texto,

8
A produção acadêmica, crítica e de tradução de Ana C. encontra-se
delimitada na edição póstuma intitulada Crítica e Tradução (ver nota 1).
Além disso, para fins de economia de palavras, tratamos de identificar aqui
os textos como ―ensaio‖ e/ou ―poema‖, mas vale lembrar que, na análise
que faz em ―La loi du genre‖, Jacques Derrida não trata o texto de Maurice
Blanchot pelo gênero (relato), mas opta por referir-se a ele pelo seu ―nome
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 116
A Poesia Crítica e o Ensaio Literário: Contaminações em Ana C.

colocá-los em uso, por meio do ato da leitura, a fim de manter os


sentidos em movimento. Afinal, com Flora, entendemos ―a escrita
como experiência de deslocamento, translado, deriva‖(SÜSSEKIND,
2007, p. 58), concordando com Derrida, quando afirma que o texto
pode se dar na ―borda‖, cujos lados internos e externos podem
fazer surgir novas bordas. Isso remete uma vez mais a João Cabral
de Melo Neto, e a um dos poemas que compõem a antologia Poesia
Crítica:

A lição de pintura

Quadro nenhum está acabado,


disse certo pintor;
se pode sem fim continuá-lo,
primeiro, ao além de outro quadro

que, feito a partir de tal forma,


tem na tela, oculta, uma porta
que dá a um corredor
que leva a outra e a muitas outras.

(NETO, 1982, p. 8)

Assim é o movimento da linguagem; assim é o movimento da


poesia: uma porta que leva a outra e a muitas outras portas. No caso
de João Cabral, o uso da poesia para discutir a criação do poema. No
caso de Ana C., o uso do discurso crítico e poético (mesclados) para
discutir modos de ler e escrever a literatura, mobilizando a tradição
literária. Com isso, podemos concluir que na cena da escritura de
Ana C. ―Tudo pode ser matéria de poesia‖ (CESAR, 1999, p. 165). Ao
leitor de Ana C., resta a tarefa de ler com ―disposição poética‖, para
retomar Gombrowicz e Borges via Piglia, ou seja, a busca por uma
leitura que vá além de uma taxonomia. Seguindo essa proposição,
Piglia afirma que ―No hay una esencia de los textos ni de los
géneros, sólo hay modos de leer‖, pois ―La literatura es un modo de
leer, ese modo de leer es histórico y es social, y se modifica‖
(PIGLIA, 2007, p. 24).
Nesse sentido, a sugestão de Flora Süssekind soa pertinente:

próprio‖, neste caso, o título do texto mesmo: ―La folie du jour‖ (DERRIDA,
1980, p. 11). Como escapar das classificações?
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 117
Berenice Ferreira da SILVA

além de uma leitura que observe apenas as marcas de vida e a


expressão subjetiva ((auto)biografia; escritas de si) no texto de Ana
C., é preciso ir em busca dos ―rastros‖ dessa ―poesia-em-vozes‖.
Nessa busca, o risco do fracasso existe, como afirma a voz do
poema: ―Leiam se forem capazes‖ (CESAR, 2013, p. 309), mas
arriscar-se na leitura também é sinônimo de prazer, e o prazer, ―o
prazer é anterior, boboca‖ (Ibidem, p. 49).

Referências

CAMARGO, Maria Lúcia de Barros. Atrás dos olhos pardos. Uma leitura da
poesia de Ana Cristina César. Chapecó: Argos, 2003.

______. ―Confissões, ficções: notas sobre correspondências e proemas‖ in


Crítica e Ficção. Florianópolis: Nelic, 2005.

CÉSAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

______. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999.

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MORICONI, Italo. Ana Cristina César. O sangue de uma poeta. Rio de


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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 118


A Poesia Crítica e o Ensaio Literário: Contaminações em Ana C.

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SANTIAGO, Silviano. ―Singular e anônimo‖. Nas malhas da letra: ensaios. Rio


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7Letras, 2007.

VIEGAS, Ana Cláudia Coutinho. Bliss & blue. Segredos de Ana C. São Paulo:
Annablume, 1998.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 119


A COMUNIDADE DE ESCRITORES E OS ESCRITORES-
CRÍTICOS

Bianca Magela MELO


UFMG

Resumo: O artigo propõe um olhar para escritores-críticos


contemporâneos, a partir de crítica e contracrítica publicadas no
site do escritor brasileiro Ronaldo Bressane. Discute-se a interação
entre autores e se o exemplo acompanhado se configura em debate
público mediante razões conforme conceito de esfera pública
proposto por Jürgen Habermas.

Palavras-chave: Escritores-críticos; Esfera pública; comunidade de


escritores

Sendo prática comum na literatura brasileira a presença de


escritores que se desdobram como críticos, a atividade pode ser
vista sob mais de um aspecto. Um deles é a possibilidade de fazer
leituras mais ―íntimas‖ ou próximas da obra alheia, uma vez que o
crítico conhece bem o ofício e ainda pode se aproveitar do trabalho
de juízo e avaliação sobre a obra do outro para seu próprio
trabalho, no que seria estendido o campo da autoria e a reflexão
sobre ele. Este trabalho propõe uma interrogação sobre outro
aspecto envolvendo os escritores-críticos: a interação entre os
autores que fazem a critica do presente da literatura. Houve
indicações, como pretendo mostrar, de que, para além do autor-
leitor e da obra do outro em questão, é também muito importante a
relação de pessoalidade que os autores mantêm entre si.
Entre os escritores brasileiros contemporâneos, muitos são
os que têm blogs ou sites sobre literatura. Em tais espaços são
divulgados textos autorais, mas também informações de interesse
do meio e comentários sobre trabalhos de colegas. Proponho
abordar tais sites como exemplos de espaços públicos de discussão
sobre literatura e, portanto, exemplos de esfera pública segundo o
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
A comunidade de escritores e os escritores-críticos

conceito de Jürgen Habermas1. Por esta acepção, a crítica literária


publicada em espaços abertos, acessíveis a um público amplo e de
forma livre, seria o exercício máximo de discussão pública perante
razões para o tema literatura. Parte-se aqui de sua definição
genérica do que seria a esfera pública.

A esfera pública burguesa pode ser entendida, antes de


mais nada, como a esfera de pessoas privadas que se
reúnem em um público. Elas reivindicam imediatamente
a esfera pública, regulamentada pela autoridade, contra
o próprio poder público, de modo a debater com ele as
regras universais das relações vigentes na esfera da
circulação de mercadorias e do trabalho social –
essencialmente privatizada, mas publicamente relevante.
O médium desse debate político é peculiar e sem
precedente histórico: a discussão pública mediante
razões.2

Habermas tem em vista um tipo ideal da esfera pública


burguesa a partir dos contextos históricos dos desenvolvimentos
inglês, francês e alemão no século XVIII e início do século XIX e já aí
aparece como utópico o modelo de discussões livres mediante
razões em face, principalmente da indústria cultural e do Estado de
bem-estar social – que passa a administrar a vida privada e o bem-
estar dos cidadãos. O cerne do conceito de um espaço aberto de
encontro de pessoas privadas opinando e construindo criticamente
posições e leituras tem sua validade para pensar uma movimentação
não coincidente com o doméstico, nem com o público ligado ao
Estado.
Como escreveu Denilson Luís Werle, na apresentação do livro
de Habermas, a noção de esfera pública se faz importante ainda na
atualidade por dar elementos para tentar explicar sob que condições
se formam, nas sociedades modernas, ―arenas ou espaços públicos
de discussão crítica e racional sobre questões comuns, conduzidos
por pessoas privadas dispostas a assumir que o melhor argumento é
a única fonte legítima para validar nossos juízos‖3.

1
In Mudança Estrutural da Esfera Pública, 2011.
2
HABERMAS, Jürgen, Mudança estrutural na esfera pública, São Paulo, Ed
Unesp, 2011, p. 135.
3
Ibidem, p. 17
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 121
Bianca Magela MELO

No século XVIII surgiu a profissão de juiz de arte


(Kunstrichter), como nos expõe Habermas, termo que engloba o
crítico de teatro, músico e literatura, tendo como exemplo mais
significativo da época, Diderot. São apresentados como
―mandatários do povo‖, quer dizer, aquele que recomenda e indica,
e também como educadores. Mas sempre o fazem porque ―não
conhecem nenhuma autoridade além do argumento‖ 4. Na raiz da
prática da critica artística está a necessidade da argumentação, daí
poder-se-ia dizer que é uma atividade muito relacionada à esfera
pública, considerando-a como um espaço de relações discursivas
construída de forma mais livre do que em ligação com o Estado, por
exemplo.
Atualmente, uma fonte de movimentação de informações
importante, inclusive sobre literatura, é a internet. Buscando
observar como se dá a citada interação entre autores, partimos da
busca de críticas de outros escritores publicadas na internet sobre a
obra do contemporâneo Lourenço Mutarelli5. A busca resultou em
recorrências de críticas em diferentes sites, boa parte escritos por
jovens escritores e/ou cronistas e em profusão tão grande que o
mapeamento desviaria nosso foco. Todas tinham o mesmo tom
positivo e argumentos sobre o autor que se repetiam, como o fato
de ele ser experimentador e polivalente (quadrinista, roteirista,
escritor e ator).
O tom crítico e a discussão sobre literatura, que nos
interessa aqui, só foram localizados em um site que partiu de uma
crítica negativa e que usaremos como exemplo. Os desdobramentos
da discussão serão o alvo da reflexão a partir daqui justamente
porque encontramos o que pode ser uma ilustração de debate sobre
literatura em esfera pública. O escritor Ronaldo Bressane publicou
em seu site6 o texto ―Pecado de Pécora‖ em defesa de Lourenço
Mutarelli, cujo livro A arte de produzir efeito sem causa havia sido
avaliado negativamente pelo crítico Alcir Pécora em crítica
publicada na Folha de São Paulo em 02 de agosto de 2008.
O livro tem como protagonista Júnior, 43 anos, sujeito

4
Ibidem, p. 159.
5
A escolha do nome do autor se deu, primeiro por ser o autor de interesse
para a tese a ser redigida; e também porque focar um só autor serviu como
um filtro diante da infinidade de informações disponíveis na internet.
6
https://ronaldobressane.com.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 122
A comunidade de escritores e os escritores-críticos

desinteressado pelo mundo, em parte devido a recentes frustrações.


Quando Júnior começa a receber pacotes sem remetente com
mensagens cifradas, sua mente perde aceleradamente o vínculo com
outros estímulos. O conteúdo misterioso dos pacotes torna-se seu
objetivo e obra de vida. A fixação é tamanha que a linguagem não
consegue dar conta daquilo e o personagem (e o narrador) deixam
de falar e dão lugar a diagramas rabiscados nas páginas. Junior
esquece o nome dos objetos e perde a capacidade de articular
frases. O alheamento passa a ausência e perda de discernimento
sobre si próprio.
A crítica no jornal começa com uma sinopse do livro
ressaltando pontos julgados inexpressivos do enredo e segue com
juízos: ―Se isso pareceu bobo, esperem para saber o motivo da
brusca mudança e depressão de Júnior: o pobre descobrira que sua
mulher havia dormido com o amiguinho do filho (...)‖. Entre outras
apreciações, Alcir Pécora afirmou que o livro lembra um ―gibi sem
desenhos‖ com enredo inexpressivo. Em determinado momento ele
diz: ―se alguém deixasse de lado o livro, não seria eu a condená-lo
por impaciência.‖ Uma crítica ácida finalizada com ―Avaliação:
ruim‖. Acessada hoje, não conseguimos ver no site do jornal a lista
de comentários. O próprio Lourenço Mutarelli comentou a recepção
à critica em entrevista7 dois anos depois: ―Aquela crítica me travou.
Eu estava no meu primeiro bloqueio criativo quando li, e não
consegui escrever mais nada por um tempo.‖
Pois a crítica da crítica feita pelo escritor Ronaldo Bressane é
que gerou o debate. O texto se inicia assim: ―Poucas vezes vi uma
crítica tão preguiçosa‖8. Bressane enumera os elementos de
composição de uma crítica (―abordar elementos como tom,
perspectiva da narrativa, parâmetros da linguagem, condução,
ritmo, léxico, drama, visão de mundo, psicologia, humor, atmosfera
etc. etc.‖) censurando Pécora por não ter feito a ―lição de casa‖. O
debate empolga, apesar de Bressane, na tentativa de manter uma
comunicação coloquial usar adjetivos como ―bosta‖ e ―merda‖ para
a crítica.

7
Publicada no jornal O Diário do Norte do Paraná e no blog do jornalista
Alexandre Gaioto em 24/05/2010. Disponível em
http://alexandregaioto.blogspot.com.br/2010/05/cafe-com-mutarelli.html.
8
Todos as citações podem ser encontradas no citado site do escritor em
texto com nome ―Pecado de Pécora, de 04/08/2008.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 123
Bianca Magela MELO

O mestre da Unicamp preferiu a modorrenta orelhada


escrita nas coxas numa rede ao cair da tarde, certamente
pra mandar no dia seguinte, junto da nota fiscal de R$
500 [o cachê de uma resenha de jornal], e pronto, tá
pago o supermercado do mês. Leu o livro com má
vontade e escreveu qualquer coisa como se o contasse
pro neto de 8 anos – inclusive dando a extrema
mancada de contar o livro inteiro, do começo ao fim.

A discussão gerou 24 comentários de 16 pessoas diferentes.


Discutiram-se: os critérios usados pelo crítico, a qualificação dele, a
possibilidade de haver excesso de produção, a dificuldade de julgar
um gênero por si como menor, o real conhecimento do que se
escreve pela crítica e uma predisposição ao ataque da literatura
contemporânea por parte do crítico. Assuntos relevantes
relacionados à literatura foram levantados. Finalmente, pareceu, foi
localizado um debate mediante razões sobre literatura na esfera
pública.
Há autores, como Fernando Perlatto (2012), para quem há
elementos a sustentar uma esfera pública significativa no Brasil.
Segundo ele, a maior parte das teorizações questiona a efetividade
da nossa arena pública, mas levariam em conta paradigmas
clássicos de sociedade civil – europeus – e por isso apenas
reconhecem como exemplo de força de participação neste espaço no
Brasil o período de redemocratização. Faltaria tomar em conta o
fundo histórico e a peculiaridade do país. Perlatto reclama a
legitimidade de formas de associação e organização que acabam
coordenando discursos públicos problematizadores de elementos
da ordem vigente. O autor considera a existência da esfera pública
em camadas, uma seletiva, com mais visibilidade e outra
subalterna9, onde estão setores populares e não incluídos de alguma
forma no debate ―oficial‖.

As formas de organização no Brasil seguiram menos o


modelo classista dos padrões europeus, e os discursos

9
A diferenciação dessas camadas da esfera pública não será contemplada
aqui. Perlatto faz as considerações em conformidade com FRASER (2014)
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 124
A comunidade de escritores e os escritores-críticos

mobilizados na esfera pública não adotaram


necessariamente padrões ―críticos racionais‖ centrados
na dinâmica dos interesses, mas assumiram, pelo
contrário, mecanismos mais expressivistas,
carnavalescos e lúdicos, muito mais ancorados na
emoção, nos sentimentos, no humor, na ironia e na
paródia do que nas palavras de ordem prontas e bem
formuladas.10

Em ―Desmobilizados e desorganizados?‖11 Perlatto cita


―discursos ocultos‖ construídos pelos setores populares por meio
dos quais, eles buscaram romper a aparente homogeneidade da fala
oficial. O artigo é uma resposta a outro escrito por um
correspondente internacional do jornal El país, caracterizando o
povo brasileiro como passivo, em vista de manifestações em curso
em muitos outros países naquele momento, especialmente na
Espanha. Na tentativa de defender o Brasil de um rótulo proposto
por um estrangeiro, ele acabou dando exemplos não tão pertinentes
para o tamanho do problema. ―Ir para as ruas em época de carnaval,
observar a organização dos blocos e das escolas de samba e dizer
que o povo brasileiro não se organiza é uma enorme contradição.‖12
De todo modo, vamos considerar que Fernando Perlatto
reforça nos dois textos uma compreensão valorativa das formas de
associação livre (religiosas, festivas, esportivas etc.), se referindo a
um embate existente (entre formas com mais visibilidade e aquelas
menos notadas), mas não levado à arena pela via da racionalidade.
Ao contrário, o contraste se dá com a performance do público não
oficial em espaço público, minando, muitas vezes silenciosamente, o
discurso mais convencional. A perspectiva de um embate não
verbalizado, das tensões colocadas já, desde sempre, parece-nos
mais interessante do que considerar o jogo a partir da suposta
igualdade de vozes dos participantes e neste ponto acompanhamos
o teórico.
No entanto, como estamos tratando de literatura, não
poderíamos dizer que posturas associativas ou festivas somente

10
PERLATTO, Fernando. Habermas, a esfera pública e o Brasil. Revista
Estudos Políticos. Vol. 01, n. 04, p. 86.
11
In Revista Pitacos, 2012.
12
In Revista Pitacos, 2012, p. 1.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 125
Bianca Magela MELO

signifiquem de antemão um posicionamento ou indiquem uma


discussão pública sobre o assunto. Fernando Perlatto afirmou que
nossa esfera pública é mais carnavalesca e ―ancorada à emoção‖ do
que ligada a padrões crítico-racionais. É difícil considerar outro
modo de levar a literatura para a arena a não ser pelo embate de
ideias. Se o foco é a literatura (e não apenas questões periféricas a
ela) não poderemos abandonar o argumento de debate mediante
razões.
Temos um exemplo de debate sobre literatura e vamos olhar
novamente para ele, agora tentando problematizar algumas
questões. A primeira é sobre o local em que a crítica circula, o blog
de um escritor; e o segundo diz respeito às pessoas que opinaram.
Ronaldo Bressane se coloca como representante dos escritores e dá
indicações de que o crítico, ―um dos poucos que lêem o que se
produz em literatura contemporânea‖, não está junto deles. ―Os
acadêmicos não vivem reclamando que os jornalistas ocuparam seu
espaço na crítica? Porra, e quando têm a chance de publicar
mandam uma merda dessas?‖
Nos comentários, uma amiga dele, também escritora, Cecília
Giannette lembra um seminário assistido recentemente no qual
Alcir Pécora recomendou aos escritores e aspirantes presentes ler
mais e escrever menos, que faltariam leitores, entre outros
argumentos que não é o caso reproduzir. A resposta do responsável
pelo site de novo leva a pensar lugares separados para a produção
literária e para a crítica. ―(...) acho que não há críticos à altura da
oferta de leitura. E concordo num ponto com o Pécora: existem cada
vez menos leitores… mas isso também não seria um problema da
crítica, que não atiça o debate nem o apetite?‖ Só três comentaristas
se posicionaram ―do lado‖ de Pécora. Um deles usou as expressões
―Freelance Freestyle‖ para se referir ao blogueiro e teve resposta
nervosa: foi chamado de ―burro‖ pelo geral do comentário. A
posição de Bressane, parece-nos, está resumida em uma de suas
respostas aos comentadores: ―Existe sim uma forte literatura
brasileira contemporânea nesses anos de 90 a 10; porém, falta a sua
contrapartida na crítica.‖
A esta altura talvez caiba perguntar o quão abertos são os
sites e blogs. Se o Facebook é uma rede, apesar de pública, mais
fechada, na qual se tem a possibilidade de abrir suas informações
apenas para os ―amigos‖ que você aceitou como tal, nos blogs/sites,
YouTube e similares isso não ocorre. Qualquer um pode chegar ao
endereço eletrônico diretamente ou por meio de busca de assuntos

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 126


A comunidade de escritores e os escritores-críticos

no Google ou via outro site. E, no entanto, os sites que vimos são


tratados como ―casas‖ dos donos. Está aberto para qualquer
interessado, mas, olhando bem, não está tão aberto para
participações. Qual seria então esse lugar tão aberto? Os jornais
sabemos que não é, a começar pela escolha do que será publicado,
pelo caminho até virar pauta (assessoria de imprensa, editoras com
maior poder de divulgar os autores, como a Companhia das Letras
que publica atualmente Lourenço Mutarelli), e um pouco porque
também sabemos que os jornais podem mediar os comentários.
Entre os comentadores na discussão que estamos
acompanhando, os que não sintonizaram com a expectativa do blog
foram rebatidos pelo próprio blogueiro ou por outras pessoas
envolvidas com a obra do autor, como um pesquisador da literatura
de Lourenço Mutarelli. Do que foi possível identificar, três
comentaristas mantinham páginas similares de assuntos culturais e
dois eram escritores. O nome de conhecidos com opinião próxima é
citado. Bressane no final do seu texto afirma ser amigo do ―Muta‖, o
que não teria sido o único motivo para ter ficado ―puto‖. A própria
esposa do escritor escreveu um comentário em agradecimento ao
amigo, assinando ―Lu‖.
A rede na qual vemos envolvidos os personagens da
pendenga crítica, ainda que, nestes poucos exemplos, lembra o que
Fernando Perlatto afirmou sobre mobilizações entre pares que
levam à reunião de pessoas em torno grupos identitários para
sustentar manifestações da esfera pública, como manifestações
culturais e movimentos religiosos13. Ainda que nem sempre sejam
do mesmo círculo de amizades, os blogueiros e ou escritores
envolvidos reconhecem-se como compadres e isso possibilita-lhes
criar, conjuntamente, um discurso a favor deles próprios. Mas
curiosamente, a articulação dos públicos alternativos (em princípio,
escritores livres no seu fazer e pensar) identificados e em ação no
exemplo empírico se mostrou mais negativa do que positiva para o
debate público, pois personalizou a discussão, impedindo o avanço
da análise do tema, a literatura em si. Há aí um conflito a ser
pensado.
Do lado do crítico, também notamos repetição de uma ideia
em vários fóruns, como entrevistas e textos, a exemplo de bate-

13
PERLATTO, 2012a, notas, p. 94
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 127
Bianca Magela MELO

papo14 no qual Alcir Pécora declarou ler tudo de literatura brasileira


contemporânea que lhe cai nas mãos: ―conheço mais o que aparece
nas grandes editores e acho tudo ruim‖. Parte do incômodo dos
escritores é com o que parece uma implicância prévia dele. Mesmo
sentindo uma postura programada de crítico polemista a priori que,
afinal, usa grandes jornais para fazer circular suas ideias (o que
sempre pode ser motivo de suspeita), consideramos sua percepção
sobre a recepção da crítica pelos escritores.
No referido bate-papo Pécora argumentou que os escritores
brasileiros contemporâneos, de forma geral, têm deficiência de
formação e, consequentemente, na técnica, e eles substituiriam o
que não têm por ―uma espécie de autópsia da cordialidade‖, o que o
crítico vê nas dedicatórias de um autor a outro, nas menções de
amizade, na exibição dos prêmios recebidos.

Esse universo da amizade é muito mais nocivo do que


possa parecer porque é a renúncia do lugar de crítica. E
acho que a crítica é a coisa mais deslocada de todos os
lugares porque você promove a literatura, você quer
falar sobre isso, mas ao mesmo tempo a crítica sobre
isso é muito controlada. Você tem que proteger porque
ele é novo, tem que proteger porque é nacional ou
porque você convive com ele em alguns lugares. Não há
nada mais inconveniente do que crítica.15

A expressão cordialidade remete a Sérgio Buarque de


Holanda16, que descreveu a dificuldade do gestor público e também
da população do país distinguirem os domínios do privado e do
público. Falta, diz ele, a ordenação impessoal que caracteriza a vida
no Estado moderno. A capacidade do povo brasileiro de efetivar os
debates na esfera pública estaria comprometida por excesso de
pessoalidade. Cordialidade, nesta acepção, não é sinônimo da
bondade, mas é tudo que nasce do coração, procede da esfera do

14
Realizado em abril de 2011 pelo Instituto Moreira Sales e revista Serrote,
disponível em vimeo.com/21932405. Até a data pesquisada, 07/07/2016, o
primeiro bloco da entrevista (são 4) havia sido assistido por 5.558 pessoas
nos sites YouTube, vimeo e UOL.
15
Transcrição de trecho do bate-papo realizado pelo Instituto Moreira Sales
16
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raizes do Brasil. São Paulo, Ed Companhia
das Letras, 1995.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 128
A comunidade de escritores e os escritores-críticos

íntimo, familiar e privado, incluindo a inimizade, ou seja, de novo a


pessoalidade em lugar dos argumentos.

No ―homem cordial‖, a vida em sociedade é, de certo


modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente
em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio
em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de
expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada
vez mais, à parcela social, periférica, que nos brasileiros
– como no bom americano – tende a ser a que mais
importa. Ela é antes um viver nos outros. 17

Em breves conclusões, pode-se argumentar que a


pessoalidade e o ―viver nos outros‖ sejam ainda atuais para pensar a
atividade pública de parte dos escritores que se dedicam às obras
dos seus contemporâneos. E a intuição é que não a vida pública de
um autor, mas a performance dele no debate público não está
separado do seu fazer literário. Aí nos perguntamos se essa
comunidade de escritores permite que sejam feitos textos de fato
críticos sobre outros autores. Já não seria questão de ter ou não
espaço e de ter ou não pessoas olhando para a literatura e querendo
falar dela.
Não se pode dizer que o debate público sobre literatura
morreu. O exemplo levantado parte de um livro e dele surge uma
critica e, a partir daí, um debate comentado e replicado, exposto em
espaço aberto. Pareceu-nos que o debate indiretamente disse muito
sobre o meio literário brasileiro. Talvez seria válido, com mais
exemplos, tentar caracterizar melhor o tipo de interação existente
entre crítica e escritores. Não conseguiremos responder se a
literatura foi a principal contemplada no debate. O exemplo de
discussão que acompanhamos também permite interrogar sobre o
interesse da literatura para o debate da sociedade em geral, uma vez
que os escritores se apresentam com armas para defender algo que
precisaria de defesa, a literatura.

17
Ibidem p. 147
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 129
Bianca Magela MELO

Referências

FRASER, Nancy et al. Transnationalizing the Public Sphere. Cambridge UK,


Malden MA: Polity Press, 2014.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. São Paulo, Ed


Unesp, 2011

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo, Ed Companhia


das Letras, 1995.

PÉCORA, Alcir. Literatura de Mutarelli fica à altura de história trash. Folha


de São Paulo, caderno Ilustríssima, p 20, 23 de fevereiro de 2014

PERLATTO, Fernando. Habermas, a esfera pública e o Brasil. In Revista


Estudos Políticos, vol. 01, número 4, p 78-94, 2012(a)

PERLATTO, Fernando. Desmobilizados e desorganizados? Revista Pittacos.


Vol. ref. a 05 março, 2012. Disponível em [https://revistapittacosdotorg.
wordpress.com/2012/ 03/05/desmobilizados-e-desorganizados]. Acesso
em 11/11/2016.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 130


(IN) TOLERÂNCIA E PRECONCEITO LINGUÍSTICO NO
CIBERESPAÇO

Brenda Chauane Edlene PEREIRA


FEPI
Valter Pereira ROMANO
UFLA

Resumo: O presente artigo visa a verificar como a intolerância e o


preconceito linguístico se dão nos comentários dos usuários do
ciberespaço e observar a ocorrência do monitoramento da
linguagem neste ambiente. Para tanto, realizou-se a seleção de três
matérias que foram publicadas na internet: ―A língua que a gente
fala‖; ―Caipira conserva formas antigas da Língua Portuguesa‖ e ―Em
bronca, Caetano Veloso dá aula sobre como usar a crase e faz
sucesso na web‖. Dessas três publicações foram analisados treze
comentários com foco para a discussão sobre o preconceito, a
intolerância e a tolerância linguística. Como pressupostos teóricos,
utilizam-se, primordialmente, os da sociolinguística.

Palavras-chave: Intolerância na linguagem; Preconceito linguístico;


Ciberespaço.

Abstract: This article‘s aim is to verify how intolerance and


linguistic discriminations are given in the comments of cyberspace
users and observe the monitoring of language in this environment
of social interaction. Therefore, there was a selection of three
articles that were published on the Internet: ―A língua que a gente
fala‖; ―Caipira conserva formas antigas da Língua Portuguesa‖ and
―Em bronca, Caetano Veloso gives lessons on how to use
the crase and it is a success on the web."From these three
publications thirteen comments focused for discussion on
prejudice, intolerance and linguistic tolerance were analyzed. As
theoretical assumptions, it is used primarily in sociolinguistic.

Keywords:Language Intolerance; Linguistic Prejudice; Cyberspace.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Brenda Chauane Edlene PEREIRA&Valter Pereira ROMANO

Introdução

O presente artigo apresenta uma síntese de um Trabalho de


Conclusão de Curso, defendido em 2015 no Centro Universitário de
Itajubá – MG, cujo objetivo principal foi discutir, sob o aporte
teórico da teoria da variação linguística, o preconceito e a
tolerância/intolerância linguística no ambiente virtual, ou seja, na
internet. Para tanto utilizou-se, primordialmente, os estudos de
Bagno (2007) e Leite (2008), dentre outros.
A internet tem possibilitado a ampliação da cultura da
sociedade, criando um lugar de interação social, um verdadeiro
arranjo de relações que se dá pela interação de homem-máquina/
máquina-máquina/ máquina-homem, o que comumente se tem
chamado de ciberespaço. Assim, ―a partir das telas dos
computadores, que servem de plataforma e via de acesso ao
ciberespaço, é possível experimentar formas de viver e conviver
nesse novo espaço‖ (NICOLACI DA COSTA; PIMENTEL, 2011, p. 7), o
que tem aproximado as pessoas e servido de meio para interação
social, mas, consequentemente, faz o usuário se sentir ‗autorizado‘
para emitir opiniões e juízos de valores acerca de determinado
assunto.
Em se tratando de língua, posicionamentos diversos fazem-
se presentes no ciberespaço, pois como falantes de língua
portuguesa, as pessoas sentem-se autorizadas a exporem suas
opiniões, o que, na maioria dos casos, revela a falta de
discernimento a respeito da variação linguística e gera o preconceito
e/ou a intolerância linguística.
Este trabalho objetiva discutir a intolerância e o preconceito
linguístico na internet, pautando-se em comentários de usuários do
ciberespaço publicados em três sites, a saber: Portal G1, Uol
Educação e Folha Uol. As matérias veiculadas nestes sites, que
compreendem o período de março a junho de 2015, tratam dos usos
linguísticos, seja sob a perspectiva da variação linguística seja sob o
ponto de vista normativo.
Os pressupostos teóricos que orientam o desenvolvimento
do trabalho, fundamentalmente, estão pautados em Leite (2008) e
Bagno (2007), além de outros autores que tratam do tema nos
artigos científicos selecionados e resenhados no estudo.
Esta pesquisa justifica-se pela necessidade de fazer uma
reflexão que aborde a conscientização acerca da intolerância e o
preconceito linguístico de forma que contribua com os estudos

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 132


(In) tolerância e preconceito linguístico no ciberespaço

sobre esse tema. Desse modo, o artigo está dividido em três seções.
A primeira apresenta uma caracterização do ciberespaço, a segunda,
a discussão sobre preconceito e (in)tolorância linguísticas, segue-se
a essa seção a terceira, que apresenta a descrição e análise do
corpus selecionado, e por fim, apresentam-se considerações finais,
seguidas das referências bibliográficas.

Caracterizando o ciberespaço como local de interação social

Os processos de comunicação e informação estão,


atualmente, ganhando força pelos meios digitais, tais como websites
e aplicativos de celulares como Whatsapp, snapchat, facebook,
twitter, instaram e blogs. Nesse sentido, o ciberespaço é um lugar de
interação social.
O ciberespaço funciona por meio da conexão em rede, como
uma grande teia que se constrói sem bordas e sem ponto central.
Nesse arranjo a comunicação eletrônica move-se na velocidade da
luz, em tempo real. Assim, os usuários estão conectados por uma
rede mundial que pode interferir em sua cultura mesmo sendo uma
realidade multidirecional e artificial que se incorpora a uma rede
global que deriva, em parte, do mundo natural e físico. De acordo
com Costa e Souza (2006, p. 87), ―vemos a tela, mas não
visualizamos a quantidade de informações, de comandos,
expressões e códigos que estão por trás‖.
Segundo Santaella (2004, p. 38) ―isso quer dizer que a
mesma tecnologia básica pode ser usada para transmitir todas as
formas de comunicação‖. Desse modo, a internet é um meio de
comunicação que permite às pessoas se aproximarem virtualmente
possibilitando que elas se expressem e interajam.
A interação no ciberespaço se dá pelos diversos tipos de
websites e aplicativos de celulares que contribuem para uma
comunicação mais dinâmica e eficiente. No entanto, na mesma
medida em que a internet facilita a interação social ela também
pode obscurecer o limite da liberdade de expressão de cada usuário
e trazer à tona o preconceito e a intolerância linguística, revelados
de forma patente em comentários de sites, posts, twittes, mensagens
de celular, entre outros.

Preconceito e intolerância linguística

O preconceito e a intolerância linguística ainda não têm o


mesmo impacto na opinião pública como dispõe as outras formas
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 133
Brenda Chauane Edlene PEREIRA&Valter Pereira ROMANO

de preconceito e intolerância. Porém todas elas são prejudiciais às


―vitimas‖, pois a linguagem é algo que caracteriza a individualidade
de cada ser humano. Segundo Leite (2008, p. 13) ―não é exagero,
portanto, dizer que uma crítica à linguagem do outro é uma arma
que fere tanto quanto todas as armas‖. Para melhor esclarecer essa
afirmação é fundamental fazer algumas distinções a respeito do
preconceito e da intolerância na linguagem.
Contrários ao pensamento comum, os termos preconceito e
intolerância não são sinônimos. De acordo com Leite (2008),
preconceito é o sentimento ou pensamento que pode levar o
indivíduo à intolerância. Já esta conduz à postura explícita de não
aceitação a qualquer opinião que seja distinta, isto se dá por meio
de atitudes e comportamentos de agressividade ou de violência.
Quando um indivíduo é intolerante à linguagem do outro, o
comportamento apresentado por ele não é silencioso e calmo;
diferente do preconceito que pode nunca se manifestar
publicamente.

o preconceito não surge exclusivamente de uma


dicotomia, pode ser uma rejeição, um ―não-querer‖, um
―não-gostar‖ sem razão, amorfos, e pode até mesmo não
se manifestar; a intolerância, por sua vez, nasce
necessariamente de julgamentos, de contrários, e se
manifesta discursivamente. É resultado da crítica e do
julgamento de idéias, valores, opiniões e práticas (LEITE,
2008, p. 22).

Pautando-se em dicionários filosóficos, Leite (2008) afirma


que para Voltaire o preconceito é um conceito sem juízo. No
entanto, não é possível encontrar o significado de intolerância, por
isso, é necessário recorrer à definição de tolerância e tentar
entender que intolerância é a falta de tolerância.
Assim, ainda segundo Voltaire, afirma Leite (2008) que a
tolerância carrega o sentido de aceitação das inúmeras diversidades
como crenças e opiniões, principalmente, religiosas e políticas.
Sendo uma dádiva e uma vantagem que somente os seres humanos
possuem, porém, nem todos as utilizam.
Marcondes (2004) complementa esse raciocínio afirmando
que

Em Bobbio, o autor após diferenciar o significado


histórico e geral de tolerância, diz que diferentes

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 134


(In) tolerância e preconceito linguístico no ciberespaço

―verdades‖ religiosas devem ser toleradas, sem que


adeptos das várias religiões ―abram mão‖ de suas
doutrinas, porém, diferenças raciais, étnicas, entre
outras, devem ser aceitas e respeitadas, não apenas
toleradas. (MARCONDES, 2004, p. 3)

A intolerância linguística traz à tona discursos sobre a


verdade (ou verdades) e, também, sobre a
concordância/discordância acerca destas verdades que se opõem
entre si. Já o preconceito linguístico não gera um discurso
acusatório a respeito do outro, apesar de igualmente ser a não
aceitação das diferenças. Nesse sentido, Leite (2008, p. 22), citando
Bobbio, define que ―o preconceito, portanto, não tem origem na
crítica, mas na tradição, no costume ou na autoridade. Pode o
preconceito redundar em uma discriminação, mas não se manifesta
discursivamente sobre argumentos que visam a sustentar
‗verdades‘‖ (BOBBIO, 1992 apud LEITE, 2008, p. 22).
A intolerância e o preconceito linguístico possuem como
base os processos políticos e sociais. Por isso, é costumeiro observar
as associações entre língua e inteligência/falta de inteligência,
competência/incompetência, beleza/feiúra, sucesso/insucesso. Isso
prova que o preconceito exclui as minorias que usam as variações
linguísticas e que também fazem parte de uma classe econômica
inferior. Sendo assim, esta minoria é marginalizada, uma vez que ―o
preconceito revela desconhecimento de algo, pois sendo ele
ignorância dos fatos, no caso da sociolinguística é o
desconhecimento das variedades da língua e que estas são
fenômenos presentes e visíveis nas manifestações da linguagem‖.
(OLIVEIRA, 2012, p. 6)
O preconceito linguístico também é um preconceito social,
pois muitos dos indivíduos falantes da variante não padrão não
tiveram acesso à educação sistematizada das escolas e pertencem a
uma classe social estigmatizada e desprestigiada, do mesmo modo,
a língua falada por essas pessoas são consideradas feias e erradas.
No entanto, de acordo com Bagno (2007), a língua utilizada
pelas pessoas de classe baixa é apenas diferente da ensinada na
escola, enquanto alguém de uma classe social elevada dizer algo
gramaticalmente ―errado‖ ou vulgar, pode-se ―fingir que não foi
percebido‖. Desse modo, entende-se que o problema não está
naquilo que se fala, mas, sim quem fala. Existem também
preconceitos linguísticos em relação a algumas regiões por
possuírem características peculiares como: Ceará, Minas Gerais e

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 135


Brenda Chauane Edlene PEREIRA&Valter Pereira ROMANO

Pernambuco.
Leite (2008) reforçando essa afirmação explica que

Isso quer dizer que, se se tiver uma ideia favorável de


uma pessoa, tudo o que ela fizer ou disser pode ser
aceito, mesmo se o que disser ou fizer for errado, falso
ou impreciso. Inversamente, se se tiver uma ideia
desfavorável sobre alguém, tudo o que ela disser ou
fizer pode ser rejeitado, mesmo se disser verdades ou se
se fizer comportar corretamente. (LEITE, 2008, p. 27)

Desse modo, o preconceito só irá se cumprir se houver a


incompatibilidade entre a pessoa e seus atos, e vice e versa. É
necessário, contudo, observar que existe tanto preconceito quanto
intolerância positiva e negativa.
O preconceito pode ser confundido com a definição negativa
de tolerância, no sentido de passividade com o que não é aceitável
ou correto. A intolerância com sentido positivo possui a carga
semântica de severidade e firmeza, assim, com a interpretação
positiva tanto a tolerância quanto a intolerância não provoca atos
que agridam a integridade física das pessoas. Entretanto, ―sob o
ponto de vista da integridade moral e ética da sociedade, violentos,
os de preconceito também não o são‖ (LEITE, 2008, p. 28).
Já o preconceito positivo acontece quando as características
boas da pessoa sempre são colocadas em primeiro lugar
independente de seus atos serem ou não corretos. De qualquer
modo, consoante Leite (2008), o preconceito e a intolerância devem
sempre ser combatidos.

Descrição e análise do corpus

Considerando-se os objetivos do trabalho, são analisados


comentários publicados na internet referentes a três matérias
divulgadas pela mídia digital, a saber:
A primeira matéria refere-se à série do Jornal Hoje intitulada
―A língua que a gente fala‖, exibida pela emissora Rede Globo de
Televisão e posteriormente publicada website do telejornal1.
A segunda matéria intitula-se ―Caipira conserva formas

Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2015/03/serie-


1

do-jornal-hoje-fala-sobre-lingua-coloquial-falada-nas-ruas.html>
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 136
(In) tolerância e preconceito linguístico no ciberespaço

antigas da Língua Portuguesa‖ foi veiculada na página do site UOL


EDUCAÇÃO2;
A terceira e última matéria, cujos comentários são aqui
analisados, refere-se à reportagem da Folha UOL, na qual o cantor
Caetano Veloso aborda um tema gramatical relacionado ao uso
indicativo de crase3.
Com base nessas três matérias divulgadas na internet 4 foram
analisados os comentários que apresentam preconceito, intolerância
e tolerância linguística.

Série “A língua que a gente fala”: contextualização

A série ―A língua que a gente fala‖, de Ana Zimmerman, foi


apresentada no Jornal Hoje da Rede Globo de Televisão no período
de 16 a 20 de março de 2015 e publicada no website do telejornal. A
série dividida em seis episódios trata da língua falada pelos
brasileiros em diferentes contextos de uso evidenciando, inclusive, o
posicionamento de renomados linguistas acerca da temática.
Análise dos comentários
A série na internet gerou quatorze comentáriosdurante o
período16 de março de 2015 a 30 de março de 2015, que foi o
recorte temporal considerado neste estudo. Nesses comentários,
observa-se a presença de um comentário preconceituoso, um
intolerante e doze abordagens tolerantes em relação ao conteúdo da
série.
No comentário a seguir (Figura 1), pode-se observar que o
leitor, sob o pseudônimo Roberto Castro, faz um comentário
preconceituoso ao colocar o Brasil como ―pobre‖ por haver
variações linguísticas. No entanto, ele não acusa determinado
indivíduo ou região por existir essas variações e ainda se inclui ao
dizer que os brasileiros estão ficando isolados do restante do
mundo. Desse modo, o preconceito desse leitor apóia-se em um

2
Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/noticias/2015/03/27/caipira-
conserva-formas-antigas-da-lingua-portuguesa-afirma-pesquisadora.htm>
3
Disponível em:
<http://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2015/06/1646555-em-bronca-
caetano-veloso-da-aula-sobre-como-usar-a-crase-e-faz-sucesso-na-web-
assista.shtml?cmpid=facefolha>
4
Para análise são selecionados os comentários postados no período de 16 de
março de 2015 a 23 de junho de 2015.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 137
Brenda Chauane Edlene PEREIRA&Valter Pereira ROMANO

sentimento e ideia cultural de que a língua brasileira está perdendo


sua origem e valor em comparação à inglesa e à espanhola.

Fig. 1 – Comentário preconceituoso (Fonte: Portal G1)

No comentário apresentado na Figura 2, verifica-seque o


leitor Roberto Castro (mesmo pseudônimo do comentário anterior)
inicia seu comentário com a conjunção ―nem‖, sugerindo que não há
uma língua própria do Brasil. No entanto, apesar de não haver uma
uniformidade ou homogeneidade linguística no Brasil, bem como
em qualquer outro país, o português falado pelos brasileiros,
independentemente da região, segue a mesma estrutura gramatical,
desse modo tem-se uma língua nacional e, dentro dela, as variações
linguísticas.

Fig. 2 – Comentário intolerante (Fonte: Portal G1)

Ainda sobre o comentário de Castro (Figura 2), o leitor


justifica-se como conhecedor sobre uma variação linguística,
mencionando que é casado com uma mineira, para ter autoridade
em dizer que ―sofre‖ quando entra em contato com esta variação.
Este tipo de comentário pode ser considerado como intolerante por
haver da parte desse indivíduo uma dificuldade em se manter
exposto à variação.
É interessante observar que a reação dos internautas frente
aos comentários de Castro (Figuras 1 e 2) foi negativa, indicado pelo
polegar apontado para baixo, ou seja, os leitores da matéria e dos
comentários dela decorrentes reprovam posicionamentos como os
que estão expressos nas figuras supramencionadas, o que evidencia

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 138


(In) tolerância e preconceito linguístico no ciberespaço

julgamentos de valor frente a posicionamentos preconceituosos e


intolerantes.
A seguir, no comentário feito pela leitora que se identifica
pelo pseudônimo Esther Fernanda (Figura 3), pode-se observar a
presença de tolerância linguística, pois esta leitora coloca de modo
claro sua opinião positiva a respeito da importância de explicar e
ensinar esse tema nas mídias.

Fig. 3 - Comentário tolerante (Fonte: Portal G1)

De acordo com Esther, muitas pessoas não entendem a


existência da variação linguística. Essa falta de conhecimento dos
indivíduos se dá, segundo Bagno (2007), devido ao fato de que o
ensino de língua portuguesa no Brasil ainda está voltado para
gramática normativa, não levando em consideração a língua
intrínseco. Dessa forma, o comentário de Esther apresenta uma
aceitação não passiva, mas, sim, positiva em relação ao ―diferente‖.
Posicionamento este que é ratificado por quatro leitores que
aprovam tal comentário.

Reportagem “Caipira conserva formas antigas da Língua


Portuguesa, afirma pesquisadora”

A matéria ―Caipira conserva formas antigas da Língua


Portuguesa, afirma pesquisadora‖, de Izabelle Mundim, foi
publicada na página da Uol Educação no dia 27 de março de 2015. A
matéria é iniciada com uma pequena introdução elaborada pela
jornalista que posteriormente expõe as quatro perguntas feitas à
pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, Soraia Reolon
Pereira.
Análise dos comentários

A matéria teve três comentários no período entre 27 de


março de 2015 a 05 de abril de 2015. Nesses comentários, constata-
se a presença de dois comentários intolerantes e um tolerante. A
Figura 6 ilustra um desses comentários.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 139
Brenda Chauane Edlene PEREIRA&Valter Pereira ROMANO

Fig. 4 – Comentário intolerante (Fonte: Uol Educação)

Nesse comentário, pode-se observar que o leitor, cujo


pseudônimo é ―Saciperê‖, possui posição intolerante perante a
matéria e as explicações feitas pela pesquisadora Soraia Reolon
Pereira. A intolerância nesse caso é evidenciada pelo uso da figura
de linguagem ironia, que mostra um descontentamento para com os
usuários das variantes citadas na matéria. Essa ironia é formada
pela sequência de palavras colocas entre aspas que retrata uma
clara falta de entendimento por parte deste leitor com o que foi
explicado durante a entrevista. Além disso, ao dizer ironicamente
que se deve ―respeitá a linguage‖, na realidade, ele quer passar a
ideia de que essas variantes não merecem respeito algum.
Logo após, Saciperê faz uso da palavra ―petista‖ no meio do
nome oficial da instituição que patrocinou a pesquisa de Pereira, o
termo ―petista‖ está sendo empregado no sentido de que a
pesquisadora é participante do movimento de esquerda, ou seja, ela
é contrária às questões consideradas pelo usuáriocomo corretas e
apoia a igualdade e o uso das variantes linguísticas na língua falada,
visto que, o Partido dos Trabalhadores integra um dos maiores e
mais importantes movimentos de esquerda da América Latina que
apoia a igualdade e não a elite como dominadora.
Esse comentário acima deu origem a uma resposta. No
entanto, essa resposta possui uma perspectiva tolerante à matéria e
faz uma crítica ao leitor ―Saciperê‖ (Figura 4):

Fig. 5 – Comentário tolerante (Fonte : Uol Educação)

No comentário do usuário, que se identifica com um


pseudônimo de Miguel Linhares (figura 5), foi produzida uma crítica

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 140


(In) tolerância e preconceito linguístico no ciberespaço

ao comentário intolerante de Saciperê. Nessa crítica, Linhares afirma


que o comentário de Saciperê foi construído com base apenas na
manchete. Desse modo, falta conhecimento para tal comentário
intolerante. Por isso, Linhares se mostra tolerante de modo positivo
para com as variantes linguísticas expostas na matéria ao defender
as explicações dadas pela pesquisadora durante a entrevista e ao
repreender a atitude intolerante.
Em seguida, o comentário de Linhares (figura 5) deu origem à
outra resposta que possui um caráter intolerante (Figura 6).

Fig. 6 – Comentário Intolerante (Fonte: Uol Educação)

Esse comentário, feito como resposta a Linhares, é


intolerante por caracterizar as pessoas que defendem as variantes
linguísticas como ―burros‖, utilizando-se da estrutura sintática "Lá
vem...‖ como forma de satirizar o comentário anterior. O usuário,
cujo pseudônimo é Luis_Von, não aceita o que diverge com o que ele
considera verdade.
As atitudes desses dois comentários intolerantes revelam a
diferença entre o preconceito linguístico e a própria intolerância na
linguagem. Esses comentários não são apenas preconceituosos,
passam a ser intolerantes, pois há um ponto de vista radical sobre o
tema abordado. Observa-se que a pesquisadora (especialista no
assunto) trouxe uma visão científica e esclarecedora a respeito de
um assunto importante, respaldando-se em pesquisas acadêmicas
desenvolvidas no âmbito da Fundação Casa de Rui Barbosa que,
inclusive, teve como presidente um dos mais importantes
gramáticos brasileiros, Evanildo Bechara.
Embora esta fundação seja associada à Academia Brasileira
de Letras, em geral, os usuários cujos comentários são intolerantes
descartam todo conhecimento e embasamento cientifico que a
pesquisadora contém e crítica o estudo da especialista, o que,
segundo Possenti (2008), tal fato não ocorre com especialistas de
outras áreas como genéticos ou biólogos.
Por que este evento ocorre com os linguistas e não se
cumpre da mesma maneira com profissionais de ramos diferentes?
Por que especialistas de outras áreas têm mais respeito e
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 141
Brenda Chauane Edlene PEREIRA&Valter Pereira ROMANO

credibilidade ao tratar de sua especialidade do que um linguista ao


tratar de seu objeto de estudo, a língua? Será que este episódio se
dá devido à má formação de professores e a um ensino de língua
portuguesa problemático e equivocado? É importante que haja uma
preocupação com estes questionamentos, pois isto gera a
intolerância linguística.

Reportagem “Em bronca, Caetano Veloso dá aula sobre como usar


crase e faz sucesso na web; assista”

A matéria publicada em 23 de junho de 2015 na página


virtual Folha Uol refere-se ao vídeo publicado pelo cantor baiano
Caetano Veloso em sua página no Facebook. Esse vídeo foi postado
pelo cantor em um momento de indignação por haver um equívoco
no uso do acento indicativo de crase em sua página do facebook,
vale lembrar que esse equívoco foi produzido pela equipe do cantor
que cuida de suas redes sociais.

Análise dos comentários

A matéria gerou onze comentários dos quais quatro são


tolerantes, quatro são preconceituosos e três são intolerantes em
relação às variantes linguísticas e, por extensão, às pessoas que não
dominam o uso indicativo de crase. Para este artigo, foram
selecionados dois comentários preconceituosos, dois intolerantes e
um tolerante.
Na Figura 7, observa-se o comentário de um usuário que se
denomina Said, que considera o povo brasileiro iletrado e diz que os
índices de proficiência na língua materna são baixos. Esse tipo de
comentário é preconceituoso, pois segundo Bagno (2007), todo
falante nativo domina a língua materna antes mesmo de frequentar
as aulas de português.
Esse comentário ilustra o segundo mito de Bagno (2007),
evidenciando o complexo de inferioridade que os brasileiros
possuem, e mostra o pensamento de que somente alguns
―iluminados‖ sabem português.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 142


(In) tolerância e preconceito linguístico no ciberespaço

Fig. 7 – Comentário preconceituoso (Fonte: Portal F5)

No comentário (figura 8), o usuário ―armagedom‖ apóia a


atitude de Caetano em dar a bronca pelo equívoco no uso da crase,
considerando as variantes linguísticas de forma depreciativa,
verdadeiras ―barbaridades‖. De acordo com o dicionário Priberam, a
palavra ―barbaridade‖ significa atrocidade, ausência de civilização,
atraso, ignorância, incivilidade, erro grosseiro e tolice, ou seja, as
variantes linguística, para esse usuário, são formas grosseiras face
às letras das músicas de Caetano que são ―verdadeiras aulas de
português‖, posicionamento este apoiado por quatro leitores.

Fig. 8 – Comentário intolerante (Fonte: Portal F5)

Logo após mencionar que as variantes linguísticas


encontradas ―por aí‖ são ―barbaridades‖, armagedom faz um juízo
de valor dizendo que as pessoas, ao escreverem fazendo uso das
variantes linguísticas, não pensam antes de construir suas frases,
posteriormente armagedom denomina as variantes como bobagens.
Desse modo, o comentário (figura 8) é intolerante, pois considera
não só as variantes linguísticas de forma depreciativa, mas também
os usuários que, por extensão, são tolos e ignorantes.
Já o comentário apresentado na Figura 9, feito pelo usuário
Dante, possui uma postura tolerante, ao contrariar o
posicionamento dos outros usuários e principalmente ao de Caetano

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 143


Brenda Chauane Edlene PEREIRA&Valter Pereira ROMANO

Veloso. Dante lamenta a atitude do cantor, deixa clara sua aceitação


em relação às variantes linguísticas e explica que na realidade os
linguistas defendem a diversidade da língua e o ensino da língua
portuguesa para que o indivíduo consiga transitar por todas as
variantes linguísticas com naturalidade.

Fig. 9 – Comentário tolerante (Fonte: Portal F5)

O comentário acima deixa explícito que a postura dos


linguistas é de mostrar que a língua é viva e sujeita a mudanças, por
isso é um erro defender uma língua homogênea. Desse modo, falas
como de armagedom (Figura 8) não correspondem à realidade, pois
não será a correção de ―pessoas influentes‖, consideradas
iluminadas por alguns sujeitos, que terá o direito de implantar seus
conceitos de certo e errado na fala dos indivíduos, isto só salienta
uma atitude intolerante ou preconceituosa.

Considerações finais

Neste trabalho, refletiu-se sobre o preconceito, intolerância e


tolerância linguística no ciberespaço. Com base nos estudos de Leite
(2008) e Bagno (2007), certificou-se que o preconceito, a intolerância
e a tolerância são termos que possuem diferentes significados e são
empregados por indivíduos com pontos de vista distintos e que o
preconceito e a intolerância são formados em diferentes níveis de
não aceitação das variantes linguísticas; isso se dá pela falta de
conhecimento do assunto e pelas crenças linguísticas enraizadas
nos indivíduos por motivos históricos e socioculturais, o que
fomenta comentários baseados no senso comum. Constatou-se
ainda que o preconceito e a intolerância não são linguísticos, mas
sim, sociais.
Com esta pesquisa, pôde-se analisar que a intolerância e o
preconceito linguístico ocorrem também por meio de comentários
em postagens de matérias sérias elaboradas por linguistas

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 144


(In) tolerância e preconceito linguístico no ciberespaço

(especialistas sobre o assunto) que tentam esclarecer aspectos


importantes acerca das variantes linguísticas. Estes comentários são
construídos com a intenção de ofender, coagir e ironizar os usuários
e os linguistas. Os usuários do ciberespaço que possuem uma
postura intolerante ou preconceituosa não observam que é
importante transitar pelas modalidades da língua portuguesa, pois
em cada situação do dia a dia é necessário admitir uma postura
linguística. Nesse sentido, o uso das variantes linguísticas também é
relevante para haver pleno entendimento em um diálogo.
Para realizar esta reflexão, foram selecionados treze
comentários publicados durante 2015 em postagens de matérias
jornalísticas na internet. No entanto para este artigo foi interessante
apresentar apenas nove comentários dos treze selecionados
inicialmente no trabalho original de conclusão de curso. Desses
treze comentários, verificou-se que cinco são tolerantes, cinco são
intolerantes e três são preconceituosos. Neste artigo são
apresentados três tolerantes, quatro são intolerantes e dois são
preconceituosos. Nesse sentido, pode-se observar que apesar de
haver um número significativo de pessoas que aceitam de modo
positivo as variantes linguísticas, ainda há uma grande parcela dos
usuários do ciberespaço que não as aceita como algo natural e
legítimo em todas as línguas. Além disso, observa-se que os
usuários que produzem comentários preconceituosos e intolerantes
também cometem desvios em relação á variante padrão da língua
sem se darem conta disso.
Para finalizar, é de suma importância que haja um maior
esclarecimento acerca do uso das variantes linguísticas nas escolas e
pelos diferentes tipos de mídias sociais. Todavia, apesar da
imprensa televisiva já estar aberta a tornar esse assunto de
conhecimento de todos, é necessário que essa questão seja
discutida em mais espaços, para, assim, se ter uma nação consciente
da língua que fala e escreve, diminuindo o sentimento de
inferioridade linguística do brasileiro, que, por vezes, se sente
estrangeiro em seu próprio país.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 145


Brenda Chauane Edlene PEREIRA&Valter Pereira ROMANO

Referências

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. São Paulo:


Loyola, 2007.

COSTA, Marco Aurelio Borges ; SOUZA, Carlos Henrique Medeiros de.


Abordagens antropológicas do ciberespaço e da cibercultura. RJ: Tempo
Brasil, 2006 p. 85-94.

LEITE, Marli Quadros. Preconceito e Intolerância na Linguagem. São Paulo:


Contexto, 2008.

MARCONDES, Iara Lucia. Metalinguagem e Intolerância Linguística. Letra


Magna: Revista eletrônica de divulgação científica em língua portuguesa,
lingüística e literatura. Ano 01, n. 1, 2004, p. 1-11.

NICOLACI DA COSTA, Ana Maria; PIMENTEL, Mariano. Sistemas


colaborativos para uma nova sociedade um novo ser humano. In.:
PIMENTEL, M.; FUKS, H. Sistemas colaborativos. Rio de Janeiro: Elsevier,
2011, p. 3-15.

OLIVEIRA, Levi José de. Preconceito Linguístico e Intolerância em espaços


virtuais. In.: 4º SIMPÓSIO HIPERTEXTO E TECNOLOGIA NA EDUCAÇÃO;
COMUNIDADES E APRENDIZAGEM EM REDE. UFPE: Anais..., 2012, p. 1– 18.

POSSENTI, Sírio. Como água e óleo. Língua Portuguesa, v. 32, p. 46-48, 2008.

SANTAELLA, Lucia. Navegar no ciberespaço: O perfil cognitivo do leitor


imersivo. São Paulo: Paulus, 2004.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 146


EDIÇÕES SEMIDIPLOMÁTICAS E FAC-SÍMILES DE
MANUSCRITOS SETECENTISTAS DO ARQUIVO
HISTÓRICO DE PITANGUI-MG COMO FONTES DE
PESQUISA PARA A HISTÓRIA E A LINGUÍSTICA

Charles Aquino ISHIMOTO


Thaís Franco de PAULA
UEMG

Resumo: Este trabalho objetiva apresentar o projeto ―Edição


semidiplomática e fac-similar de textos mineiros setecentistas do
Arquivo Histórico de Pitangui – MG para constituição de corpora‖,
desenvolvido na UEMG - Divinópolis. Tal projeto seguiu as normas
de transcrição de documentos manuscritos e impressos do Projeto
para a história do português brasileiro (PPHPP) e discute-se aqui a
escolha e os benefícios dessas normas para a transcrição de
documentos para trabalhos em diferentes áreas do conhecimento.
Apresenta-se ainda a edição fac-similar e semidiplomática de um
dos documentos que representa o trabalho realizado e o acervo:
uma Ação de Alma datada de 1720.

Palavras-chave: Edição semidiplomática e fac-similar; Pitangui-MG;


Século XVIII; Normas de transcrição; Gramaticalização.

Introdução

Os manuscritos de séculos anteriores são ricos instrumentos


de visita ao passado, à história social, cultural e linguística de
determinada época. Acreditando nisso, o projeto ―Edição
semidiplomática e fac-similar de textos mineiros setecentistas do
Arquivo Histórico de Pitangui – MG para constituição de corpora‖,
desenvolvido na UEMG – Divinópolis e aqui apresentado buscou
valorizar o registro escrito de uma importante região mineira no
século XVIII, a sétima vila do ouro, Pitangui. Compreende-se o

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Charles Aquino ISHIMOTO& Thaís Franco de PAULA

registro escrito de uma comunidade como um importante


patrimônio cultural, material, que expressa a história e a memória
de um povo. O estudo do registro escrito de determinada região, em
determinada época, permite compreender características da
dinâmica do grupo de indivíduos de determinada localidade, além
de sinalizar aspectos históricos, sociais, culturais, religiosos,
ideológicos e linguísticos dessa região. Nesse sentido, o trabalho
desenvolvido pelo projeto voltou-se para a edição fac-similar e
semidiplomática de documentos produzidos na região de Pitangui-
MG, no século XVIII, já organizados no Arquivo Histórico de Pitangui
por uma equipe da FUNEDI/UEMG1. Por meio desse tipo de edição, o
projeto dedicou-se, portanto, a um modo de preservação e
divulgação de manuscritos do século XVIII para futuras pesquisas
acerca da história e também do patrimônio linguístico de um
importante foco de mineração aurífera das Minas Gerais
setecentistas, a Vila de Pitangui, hoje Pitangui, cidade do centro
oeste mineiro que fica a 125 quilômetros da capital mineira.
Neste trabalho, na primeira seção, apresentaremos uma
contextualização histórica de Pitangui, evidenciando sua
importância histórica nas Minas Gerais. Na segunda seção,
discutiremos a escolha das normas de transcrição, que beneficiam o
trabalho de pesquisadores não só da História, mas também dos
Estudos Linguísticos. Mostraremos que as normas geralmente
utilizadas pelos historiadores – as Normas técnicas de transcrição e
edição de documentos manuscritos (1993, in BERWANGER; LEAL,
2008) (doravante NTTEDM (1993)) não deixam flagrar alguns
fenômenos linguísticos, como a Gramaticalização. Na seção três
discorreremos sobre o fenômeno da gramaticalização, trazendo
exemplos da gramaticalização do sufixo –mente, retirados de um
dos documentos transcritos pelo projeto: uma Ação de Alma datada
de 1720. Em seguida apresentaremos esse tipo de documento e a
edição feita pelo projeto. Por fim, as considerações finais são
apresentadas.

Fundação Educacional de Divinópolis até 2014, quando é estadualizada e


1

passa a ser Universidade Do Estado de Minas Gerais – Unidade Divinópolis.


Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 148
Edições semidiplomáticas e fac-símiles de manuscritos setecentistas

1. Pitangui – Uma breve contextualização histórica

Conforme Catão et al. (2011), a Vila de Pitangui foi um


importante foco de mineração aurífera no século XVIII e o núcleo
urbano de maior expressividade a oeste de Minas Gerais. Pertencia à
Comarca de Sabará, e seu termo abrangia grande parte do que hoje
se chama Oeste mineiro. Durante o século XVIII, foi ―um importante
foco de mineração aurífera, porta de entrada para o sertão oeste,
passagem obrigatória para muitos que se dirigiam às minas de
Goiás‖ (CATÃO, 2011, p. 10). Uma grande parte dos sertões a oeste
de Minas Gerais era uma região formada por desconhecidas matas
fechadas, com quilombos, gentios e aventureiros que buscavam
refúgio nas desconhecidas e despovoadas habitações que iam
surgindo. Segundo nos diz Catão et al. (2011) ―não se sabe com
precisão o momento em que se fizeram os achados auríferos no
Pitangui. Provavelmente ocorreram na primeira década de 1700. A
Vila foi erigida em 9 de junho de 1715 pelo então governador D.
Brás Baltazar‖ (p. 11), e a partir dessa data, Pitangui, durante o
século XVIII, se torna um importante centro de mineração aurífera,
ocupando um papel administrativo muito importante para toda
região. Ainda conforme Catão et al. (2011), as vilas,
administrativamente, detinham importante papel, e entre as
instituições obrigatoriamente existentes em todas as vilas estavam
as Câmaras.

As Câmaras, diferentemente do que ocorre nos nossos


dias, possuíam fortes atribuições judiciárias e
administrativas, que regulavam a vida política,
econômica e social de toda a população reunida em sua
jurisdição ou termo, que durante o período colonial
abrangia uma imensa região. Uma grande parcela dos
documentos que hoje compõem o acervo do Arquivo
Histórico de Pitangui é de natureza judiciária e foram
produzidos no âmbito da Câmara da Vila de Pitangui.
(CATÃO et al., 2011, p. 11-12).

O Arquivo Histórico de Pitangui se constitui de documentos


valiosos desse riquíssimo repertório de natureza judiciária
provenientes da Câmara da Vila de Pitangui nos séculos XVIII, XIX e
XX e revela a história dessa importante região para o
desenvolvimento social e econômico do Oeste mineiro.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 149


Charles Aquino ISHIMOTO& Thaís Franco de PAULA

2. A importância dos manuscritos setecentistas para a Linguística

A importância da Vila de Pitangui para o cenário econômico


das Minas do século XVIII é indiscutível, bem como a importância de
se desenvolver um trabalho que preserve os documentos dessa
região e torne-os metodologicamente acessíveis também para as
pesquisas linguísticas como pretende discutir este trabalho. Os
manuscritos de sincronias anteriores são ricas fontes para se
estudar vários aspectos da história, inclusive a história da língua
portuguesa. Eles ajudam os linguistas a entender as mudanças
ocorridas na língua. Como a leitura de manuscritos, sobretudo dos
manuscritos do século XVIII, não é uma tarefa tão simples para
muitos, o trabalho dos editores contribui para maior acessibilidade
ao patrimônio linguístico de determinada época e para preservar
esse patrimônio linguístico, de inegável valor cultural, da
deterioração causada pelo tempo.
Em relação à edição semidiplomática para as pesquisas
linguísticas, os textos setecentistas mineiros têm trazido grandes
revelações sobre o português brasileiro. Coelho e Paula (2011)
atestaram com base na colocação dos clíticos pronominais de textos
escritos na região de Ouro Preto, no século XVIII, que a sintaxe de
colocação mineira desse século já exibia traços semelhantes ao da
sintaxe atual, tal como a preferência pela próclise e a recusa pela
mesóclise. Diante desse resultado as autoras passaram a cogitar a
hipótese de que a constituição de uma gramática nacional pode ter
tido sua gênese em uma sincronia anterior ao século XIX, como era
proposto até então pelos estudos linguísticos (Conferir TARALLO
(1993), PAGOTTO (1992)). Trabalhos como o de Coelho (2013) e o de
Bittencourt (2014) em textos setecentistas da região de Diamantina
corroboraram essa hipótese. Entende-se, portanto, que textos
setecentistas de mais uma importante região mineira do século
XVIII, a Vila de Pitangui, pode corroborar para a verificação, em
pesquisas futuras, da hipótese aventada, mas para isso o trabalho
de transcrição tem que ser metodologicamente pensado para
atender os estudos linguísticos. Da região da Vila de Pitangui,
muitos manuscritos já foram transcritos por historiadores (cf.
CATÃO, 2011; BARBOSA, 2015), contudo, atendendo ao objetivo de
apenas se entender o contexto histórico (o que lhes basta para suas
pesquisas), as transcrições não mantêm transparentes todos os
aspectos linguísticos do texto. Neste trabalho advogamos a favor da
cooperação entre historiadores e linguistas, uma vez que estes

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 150


Edições semidiplomáticas e fac-símiles de manuscritos setecentistas

poderiam hoje, no Brasil, contar com um acervo maior de corpora


para pesquisas se houvesse o uso de uma norma comum entre as
áreas da ciência que precisam lançar mão da transcrição de textos
manuscritos. Advoga-se a favor das normas de transcrição de
documentos manuscritos e impressos do Projeto para a história do
português brasileiro (doravante PPHPB), uma vez que elas
beneficiam também os estudos linguísticos conforme
demonstraremos a seguir. É importante salientar que este trabalho
não é uma crítica às NTTEDM (1993) geralmente utilizada pelos
historiadores, mas traz o desejo de se propor uma unificação de
normas de modo que, metodologicamente, as transcrições feitas
pelos historiadores também possam ser aproveitadas pela
linguística histórica. Consideramos que a cooperação para o bem
das ciências é sempre positiva.

3. As normas de transcrição

Para a edição semidiplomática que será também utilizada


para pesquisas linguísticas, é necessária uma transcrição muito fiel.
Conforme discutido por Vasconcelos (2004),
somente uma transcrição extremamente fidedigna e
cuidadosa pode deixar transparente todos os traços
linguísticos possíveis de serem analisados nos originais
manuscritos. Dessa forma, tanto o êxito do trabalho
quanto a solidez dos resultados certamente estão
condicionados à qualidade da edição dos textos [...].
(VASCONCELOS, 2004, p. 1)

Diante disso, o projeto aqui apresentado elegeu as normas


de transcrição utilizadas pelo PHPB (MATTOS E SILVA, 2001) por
considerá-las metodologicamente favoráveis também para o
trabalho dos historiadores e para a análise necessária aos linguistas.
Essas normas para transcrição de documentos manuscritos foram
atualizadas no último Congresso do PHPB, realizado em 2010, na
UFPB. Essas normas, as quais são apresentadas abaixo, foram
também utilizadas em outras pesquisas sobre o português mineiro
do século XVIII (Conferir DUCHOWNY& COELHO (2013)). Ressalta-se
que, assim como no trabalho de Duchowny e Coelho (2013) com os
textos de Diamantina, com os textos de Pitangui, houve a
necessidade de se fazerem pequenas alterações em algumas
normas, bem como de não se aplicarem outras, devido às
particularidades do corpus editado.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 151
Charles Aquino ISHIMOTO& Thaís Franco de PAULA

1. A transcrição foi conservadora.


2. As abreviaturas foram desenvolvidas, marcando-se –
em itálico – as letras omitidas pelo copista. Para o
desenvolvimento dessas abreviaturas, tomou-se como
parâmetro o Vocabulário Ortográfico da Língua
Portuguesa.
3. Não se estabeleceu fronteira de palavras que vinham
escritas juntas, nem se introduziu hífen ou apóstrofo
onde não havia.
4. A pontuação original foi mantida. [...]
5. A acentuação original foi mantida. Os sinais de
separação de sílaba ou de linha também foram
preservados como no original.
6. Respeitou-se o emprego de maiúsculas e de
minúsculas como se apresentam no original. [...]
7. Os alógrafos contextuais <∫> e <s>, <ʅ> e <r> e <℮> e
<e> foram uniformizados, respectivamente, em <s>, <r>
e <e>.
8. Inserções do escriba, para não conferir à mancha
gráfica um aspecto demasiado denso, obedeceram aos
seguintes critérios:
a) Se feitas na entrelinha do documento original,
entraram na edição em alinhamento normal e entre os
sinais: <>; <↑>, se na entrelinha superior; <↓>, se na
entrelinha inferior. Casos de palavra(s) riscada(s) abaixo
da inserção foram mencionados ou, conforme sua
legibilidade, transcritos em nota de rodapé.
b) Se feitas nas margens superior, lateral ou inferior,
entraram na edição entre os sinais <>, na localização
indicada. Quando se julgou necessário, fez-se, em nota
de rodapé, a devida descrição da direção de escritura ou
de quaisquer outras especificidades.
c) Se feitas nas margens dos documentos, mas eram
intervenções muito longas, que dificultariam o
entendimento do texto principal, foram indicadas ao
final, fazendo-se referência à sua localização.
Supressões feitas pelo escriba no original foram
tachadas. No caso de repetição que o escriba não
suprimiu, o editor o fez, indicando-a entre colchetes
duplos.
9. Intervenções de terceiros no documento original
foram indicadas em nota de rodapé, informando-se a
localização.
10. Intervenções do editor foram raríssimas, permitidas
apenas em caso de extrema necessidade, desde que
elucidativas a ponto de não deixarem margem à dúvida.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 152


Edições semidiplomáticas e fac-símiles de manuscritos setecentistas

Quando ocorreram, estão entre colchetes. Quando houve


dúvida sobre a decifração de alguma letra, parte de ou
vocábulo inteiro, bem como no desenvolvimento de
alguma abreviatura, o elemento alvo da dificuldade foi
posto entre colchetes e em itálico.
11. Letra(s) ou palavra(s) não legíveis por deterioração
ou por rasura sofreram intervenção do editor com a
indicação entre colchetes, conforme o caso: [.] para
letras, [ilegível] para vocábulos e [ilegível + n linhas]
para a extensão de trechos maiores. Casos em que o
editor julgou extremamente necessário foram
justificados em nota, indicando-se a causa da
ilegibilidade: corroído, furo, borrão, rasura, etc.
12. Letra(s) ou palavra(s) simplesmente não decifradas,
sem deterioração do suporte, também sofreram
intervenção do editor com a indicação entre colchetes,
conforme o caso: [?] para letras, [inint.] para vocábulos e
[inint. + n linhas] para a extensão de trechos maiores.
13. A indicação do número do fólio, bem como de seus
respectivos lados, foi feita entre colchetes, centralizada
à margem superior.
14. A divisão das linhas e os parágrafos do documento
original foram preservados.
15. Na edição, as linhas foram numeradas de cinco em
cinco a partir da quinta. Essa numeração está indicada à
margem direita da mancha, à esquerda do leitor e foi
feita de maneira contínua por documento.
16. Os sinais públicos, diferentemente das assinaturas e
rubricas simples, foram sublinhados e indicados entre
colchetes.
17. Informações consideradas significativas sobre a
diagramação ou sobre o layout do texto aparecem em
nota de rodapé.

A edição semidiplomática feita pelo projeto aqui


apresentado foi feita levando-se em consideração essas normas
previstas pelo PPHPB. A edição semidiplomática tem o objetivo de
apresentar o texto do manuscrito original de forma melhorada,
facilitando a leitura do manuscrito original para os pesquisadores.
Para isso é feita a transcrição tipográfica e o desdobramento de
abreviaturas. Uma vez que a edição semidiplomática também
objetiva manter o texto transcrito do manuscrito o mais fiel possível
ao original, mantêm-se as características da escrita: mantêm-se as
linhas conforme apresentadas no original, não há o estabelecimento

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 153


Charles Aquino ISHIMOTO& Thaís Franco de PAULA

de fronteiras de palavras, a acentuação, a pontuação e as demais


características paleográficas são mantidas. A interferência do editor
no texto é mínima com o intuito de manter a transcrição o mais
semelhante possível do que foi escrito originalmente. No projeto a
edição semidiplomática foi acompanhada da edição fac-similar:
aquela que apresenta o manuscrito original por meio da
apresentação fotográfica desse documento. Assim, o grau de
interferência no documento é zero. O fato de as normas do Projeto
Para História do Português Brasileiro preverem a manutenção das
características originais da escrita são importantes para os estudos
linguísticos, pois muitas pistas gráficas são pistas de fenômenos
linguísticos como a variação e a mudança na língua. As NTTEDM
(1993) preveem, por exemplo a separação de palavras grafadas
unidas indevidamente e a união de sílabas ou letras grafadas
separadamente, mas de forma indevida:

1. GRAFIA
Quanto à grafia seguir-se-ão os seguintes critérios:
1.1 Serão separadas as palavras grafadas unidas
indevidamente e serão unidas as sílabas ou letras
grafadas separadamente, mas de forma indevida.
Excetuam-se as uniões dos pronomes proclíticos [...]
mesoclíticos e enclíticos às formas verbais de que
dependem. (NORMAS TÉCNICAS PARA TRANSCRIÇÃO E
EDIÇÃO DE DOCUMENTOS MANUSCRITOS, 1993, in
BERWANGER; LEAL, 2008, p. 97-104, grifos nossos).

Contudo, o que é indevido para as normas de escrita de hoje,


pode ter sido, em algum estágio da história da língua, uma etapa de
um processo de mudança pela qual a língua passou para se chegar à
forma em que se encontra hoje. Para ilustrar o que estamos falando,
apresentamos um exemplo2 da transcrição do vocábulo

2
Esse exemplo foi retirado do Caderno de Paleografia, número 1, organizado
pela Oficina de Paleografia da UFMG, que desenvolve um trabalho sério e
comprometido em busca de subsídios para a leitura de fontes manuscritas
pertinentes à História luso-brasileira. Assim como outros historiadores no
Brasil, os colaboradores desse Caderno de Paleografia lançam mão das
Normas Técnicas de Transcrição e Edição de Documentos Manuscritos,
conforme a reformulação feita em 1993 durante o II Encontro Nacional de
Normatização Paleográfica e de Ensino de Paleografia, realizado em São
Paulo.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 154
Edições semidiplomáticas e fac-símiles de manuscritos setecentistas

―alternativamente‖ e em seguida o trecho do manuscrito original.

É possível verificar no manuscrito acima que a forma -mente


não se apresenta unida a ―altenativa‖. Os estudos linguísticos
relacionados ao fenômeno da gramaticalização evidenciam que essa
separação é um estágio da gramaticalização dos advérbios formados
em –mente na língua portuguesa. (Cf. Cohen, 2010). Conforme
apresentaremos a seguir, a coesão ou não entre itens é um
indicativo do grau de gramaticalização de um item. Um linguista
não poderia aproveitar o trabalho de transcrição apresentado no
exemplo acima feito com base nas NTPTEDM (1993), pois ela
camufla essa realidade linguística. Na seção seguinte faremos uma
breve explanação sobre a Gramaticalização, sobre a
gramaticalização do sufixo –mente no português e apresentaremos
alguns exemplos da gramaticalização de –mente retirados de uma
Ação de Almas, de 1720, transcrita pelo projeto ―Edição
semidiplomática e fac-similar de textos mineiros setecentistas do

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 155


Charles Aquino ISHIMOTO& Thaís Franco de PAULA

Arquivo Histórico de Pitangui – MG para constituição de corpora‖.

4. O fenômeno da gramaticalização e a gramaticalização do sufixo


-mente

A gramaticalização é entendida como um processo


diacrônico em que itens lexicais passam a assumir funções
gramaticais na língua (cf. HEINE, 2003; VITRAL E RAMOS, 2006). Os
itens lexicais são entidades que fazem referência a dados do mundo
real; nomeiam entidades, qualidades e ações, como o substantivo
―mente‖, que designa a ―parte incorpórea, inteligente ou sensível do
ser humano; espírito, pensamento, entendimento‖ (HOUAISS, 2001,
p. 1126). Por meio do esvaziamento semântico, os itens lexicais
podem passar a itens gramaticais. Os itens gramaticais não têm um
referente no mundo real; eles têm a função de manifestar noções
gramaticais, como o sufixo –mente, que auxilia na formação de
advérbios com a noção de modo/ maneira. Por ser um processo
diacrônico, para que um processo de gramaticalização seja
detectado, é preciso lidar com dados de pelo menos duas sincronias,
por isso a importância de se lidar com dados de séculos anteriores,
a importância da transcrição de manuscritos e a importância de
―que os documentos escritos forneçam pistas gráficas do que se
processava na fala, admitindo que os mesmos representam, bem ou
mal, o que se falava‖ (COHEN, 2010, p. 58). Assim, se a transcrição
segue as NTTEDM (1993), não serve para análise do fenômeno da
gramaticalização, pois altera a pista gráfica do texto original, uma
vez que ela prevê a separação das palavras grafadas unidas
indevidamente e a união de sílabas ou letras grafadas
separadamente. Isso é o que aconteceu no exemplo em (1) em que o
até então item lexical ―mente‖ (ainda autônomo sintaticamente), no
século XVIII, é unido a ―alternativa‖. Hoje, no contexto da
transcrição apresentada em (1), ―mente‖ já funciona como um sufixo
formador de advérbio e colabora na significação de ―de modo
alternativo‖, mas em ―alternativa mente‖, no século XVIII, indicava
uma das etapas do processo de gramaticalização desse substantivo
em sufixo. Esse aspecto de união ou separação de itens está
relacionado ao que a literatura chama de coesão. A literatura afirma
que quanto maior o grau de gramaticalização de uma construção,
maior a sua coesão, o que está relacionado ao Parâmetro da
Conexidade, proposto por Lehmann (2002 [1982]).
Em relação à gramaticalização de –mente, Cohen nos diz que

por se conhecer a história do português e por se


conhecer principalmente o latim, gênese do português, é
que uma origem no ablativo singular latino mente do
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 156
Edições semidiplomáticas e fac-símiles de manuscritos setecentistas
substantivo feminino da 3ª declinação mens, mentis
pode ser proposta para o sufixo. Esse ablativo teria tido
um uso modal, desacompanhado de preposição, e se
dizia, portanto, sana mente, ‗com a mente sã‘. O ablativo
mente, sempre posposto a um adjetivo, ter-se-ia
cliticizado, se incorporando encliticamente ao núcleo
precedente, perdendo sua independência fônica e
mórfica, criando em português um instrumento
gramatical, um sufixo. (COHEN, 2010, p. 59-60).

Em análise no século XVIII, período com o qual o projeto


aqui apresentado se propôs a trabalhar, Cohen (2010) encontrou 14
ocorrências das formas em mente, sendo 10 abreviadas e 04 não
abreviadas. Essa autora propôs então uma escala de coesão dos
advérbios modais em -mente que vai de um nível menos coeso a um
nível mais coeso, o que transcreveremos aqui:

Tabela 1: Escala de coesão dos advérbios modais em –mente.


-coeso -coeso +coeso +coeso
Não- Quebra de Quebra Não Cliticizada Cliticizada
cliticizada linha não de linha cliticizada não abreviada abreviada
e não- abreviada abreviada abreviada
abreviada
Mor mente emfalivel juntamte
mte
Actual/mte actual mte actualmte
So/mente somte
Particular/mente circular m genericamte
te
individual ferquen/temente
mte
difuza mte
I II III IV V VI
Fonte: Cohen (2010, p. 67).

Para a autora a forma não cliticizada e não abreviada, como


mor mente, daria uma pista da forma original latina não-cliticizada e
está no extremo –coeso. Já a forma +coesa é aquela em que o item é
cliticizado e abreviado, como em juntamte.
Na Ação de Alma aqui analisada por nós, encontramos sete
(7) ocorrências. Duas (2) dessas ocorrências estão no nível I de
coesão apresentado por Cohen (2010), como ver dadeira mente:

Quatro (4) ocorrências estão no nível máximo de coesão,


como finalmte:

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 157


Charles Aquino ISHIMOTO& Thaís Franco de PAULA

E uma (1) ocorrência encontra-se em um nível ainda menos


coeso do que o primeiro –coeso encontrado por Cohen (2010). Nesse
último caso, tanto o adjetivo quanto a forma -mente encontram-se
abreviados, o que evidencia a autonomia de cada uma dessas
formas, conforme se verifica em simplesmente (sim pl mt.):

Assim, os dados de Pitangui-MG apresentam a ainda variação


de mente gramaticalizado e não gramaticalizado, sendo mais
frequente a forma +coesa, o que indica que o processo de
gramaticalização nessa região também tendia a estar mais avançado.
Os dados de mais uma região evidenciam uma nova forma no
processo de gramaticalização de mente, aquela em que tanto o
adjetivo quanto o sufixo encontram-se abreviados, o que corrobora
a importância da análise do maior número de documentos possíveis,
do maior número de regiões possíveis já que, assim, a Linguística
pode descrever com mais propriedade os fenômenos do português
brasileiro.
Apresentaremos a seguir uma breve descrição deste
documento que é bem típico do Arquivo Histórico de Pitangui, a
Ação de Alma. Em seguida, apresentaremos a transcrição do
primeiro fólio de uma Ação de Alma datada de 1720. O documento
completo não é apresentado aqui devido à limitação do espaço
disponibilizado para este trabalho, mas pode ser encontrado no site
do projeto ―Edição semidiplomática e fac-similar de textos mineiros
setecentistas do Arquivo Histórico de Pitangui – MG para
constituição de corpora‖, disponível em
www.documentosdepitangui.com.br.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 158


Edições semidiplomáticas e fac-símiles de manuscritos setecentistas

5. Ações de Alma

As Ações de Alma surgem com a ausência de moeda no


Brasil colonial. Eram processos sumaríssimos presididos pelo Juiz
para a solução de problemas entre devedor e credor e o poder da
palavra prevalecia na decisão do julgamento. (cf. ISHIMOTO,
MOURA, PIRES e AZEVEDO, 2014).

5.1 Ação de Alma de 1720

Ação de alma
Autor: Joseph Rodrigues Lima; Réu: Capitão Manoel Lopes Castello
Branco
Manuscrito

Localização: Arquivo Histórico de Pitangui. Caixa 185 – Documento


001. Rua Martinho Campos, 174, Centro, Pitangui, MG.
Data: 1720.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 159


Charles Aquino ISHIMOTO& Thaís Franco de PAULA

[fól. 1r]

<A Jozeph [Roiz] Lima><Reo Manoel Lopes Cas


<1720> telobranco>

1[4]4> Autuaçam de açam dalma entre


10>3partes os a Sima nome ados,
05 Procurador do Autor Domingos Maciel
Aranha
<10>4Procurador do Reo Pedro de <1720↑>
Goiz
Es criv amManoel Cabral
10 Deça
Anno donascimento de
NossoSenhor Jesu C hristo
de mil sette centos evinte anos
[a]os trezedias do mes de Agos
15 to do d itto anno nestaVilla de
NossaSenho ra daPi edade do Pi
t angui e em publica audiencia
que nopasso doConselho dela
aosfeitos e partesfari a o juiz
20 ordinario oSarg entoMor Francis
codoRegoBarrosnella pello
advogado do auditorio Domin
gos Maciel Aranha pRocurador
quemostrou [ser] do Autor Joseph
25 Rodrigues Lima foi ditto que da[?]
m tencao[?] do ditto SeuCusto jui[ilegível]5
epara aquella [prezente] audiencia
E vinha citado oReo Manoel

Considerações finais

Este trabalho apresentou o projeto ―Edição semidiplomática


e fac-similar de textos mineiros setecentistas do Arquivo Histórico

3
Há neste local o número 10 entre um círculo. O punho é outro e
aparentemente de época posterior pela semelhança da tinta com a tinta das
canetas atuais.
4
Idem nota 1.
5
Corroído
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 160
Edições semidiplomáticas e fac-símiles de manuscritos setecentistas

de Pitangui – MG para constituição de corpora‖, desenvolvido na


UEMG – Divinópolis e pretendeu mostrar como a unificação da
escolha por linguistas e historiadores pelas normas do PPHPB
poderia beneficiar os estudos de linguística histórica, uma vez que
há um grande volume de transcrição feita pelos historiadores, mas a
norma geralmente usada por eles não permite a identificação de
alguns fenômenos linguísticos como a Gramaticalização. O trabalho
apresentou exemplos em que a transcrição seguindo as NTPTETM
(1993) omitem o processo de gramaticalização do substantivo
―mente‖ em sufixo marcador de advérbio –mente. Por fim
apresentaram-se alguns exemplos da gramaticalização de –mente
em uma Ação de Almas de 1720 transcrita pelo projeto ―Edição
semidiplomática e fac-similar de textos mineiros setecentistas do
Arquivo Histórico de Pitangui – MG para constituição de corpora‖.
Espera-se que as reflexões e evidencias aqui apresentada gere uma
cooperação entre as áreas que lidam com o trabalho de transcrição
de manuscritos.

Referências

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Acesso em 27 jan. 2015.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 162


A CRÍTICA ANTILÍRICA DE JOÃO CABRAL DE MELO
NETO

Cleonice Alves de Castro ANTUNES


UFV

Resumo: João Cabral de Melo Neto é um poeta que constantemente


adota o gênero para discorrer a respeito de outros artistas,
produzindo uma poesia avessa ao lirismo, e rechaçando-o de todas
as maneiras. Através do estudo do percurso da lírica (FRIEDRICH,
1978; HAMBURGER, 2006; MOISÉS, 2012) e do acervo de entrevistas
do autor (MAMEDE, 1987; ATHAYDE, 1998) buscou-se compreender
a perspectiva crítica que Cabral tem da lírica, com foco em seus
textos em prosa, e destaque para ―Poesia e Composição‖ (1952).
Observa-se a partir desse estudo que o principal fator que afasta
Cabral da poesia subjetiva é a sua incomunicabilidade.

Palavras-chave: Crítica literária; Lírica; João Cabral de Melo Neto,


Poesia Crítica

Quando João Cabral de Melo Neto fala de sua obra, faz


questão de afastar-se de uma poesia que chama de lírica, mas esse
conceito não é tão bem delimitado quanto possa parecer.
Aristóteles, na Poética, fazia questão de ressaltar que, para que um
texto fosse ou não considerado poesia, não estava em questão a sua
forma, mas aquilo que o autor elege para ser imitado. O poeta não
deve narrar fatos reais, mas sim fatos possíveis, trabalhando com a
mimésis e a verossimilhança. Massaud Moisés recorda a origem do
termo:

A palavra poesia vem do Grego poèsis, de poien: criar,


no sentido de imaginar. […] O mundo subjetivo e o
objetivo aderem-se, embricam-se, formando uma só
entidade, subjetivo-objetiva, com a forçosa
predominância do primeiro. Diante disso, podemos
concluir que a poesia seria a comunicação, a expressão
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
Cleonice Alves de Castro ANTUNES

do 'eu'. […] A palavra exprimiria o esforço do próprio


'eu' para comunicar-se como objeto. (MOISÉS, 2012, p.
66-68, grifo do autor)
Essa classificação, que tanto destaca a presença do ―eu‖,
tende para a definição de lírica, que Aristóteles ainda não inclui em
seus textos, a despeito de Safo e Alceu já produzirem na época.
Assim, partindo de uma perspectiva clássica, não se tem a
diversidade de obras necessária para a análise do gênero poético.
Após o filósofo grego, poucos se debruçaram tão
atentamente sobre a definição dos gêneros literários. Os registros
de produções a esse respeito na Idade Média são escassos e, a partir
do Renascimento, observou-se mais a produção de artes poéticas
que cumpriam o propósito de manuais de técnicas de escrita, do
que textos críticos a seu respeito. Filósofos como Hagel e Croce, no
âmbito da arte, discutem o tema da poesia, mas sem encontrarem
respostas definitivas ao problema dos seus limites. (MOISÉS, 2012)
Na linguística, Jakobson chega a conclusões que incluem
tanto forma quanto o conteúdo do texto. Os jingles publicitários ou
as leis medievais versificadas, mesmo que façam uso de técnicas
comuns às poéticas, não atribuem à poeticidade o papel essencial
que ela tem na poesia. O vocábulo poético extrapola a sua função de
ferramenta para a reprodução da realidade, pela sua natureza não-
denotativa. Uma palavra é poética porque provê o maior potencial
de sentido do texto naquela situação. (MOISÉS, 2012)
Sempre oposta à poesia, a prosa trataria então dos temas
externos ao autor, de natureza menos abstrata. Quanto à sua forma,
são os ritmos cotidianos e não rigidamente metrificados que ela
segue. Ocorre entretanto que, desde a implementação do verso livre,
o ritmo tem se distanciado de parte da poesia. Alferi, no ensaio
―Rumo à prosa‖, instiga o pensamento de que não só toda a
literatura veio da prosa, na tentativa de demonstrar o real, mas
também que a ela tende a tornar. Para Octavio Paz (2009), de modo
complementar, ―as obras do tempo que nasce não estarão regidas
pela idéia da sucessão linear e sim pela idéia da combinação:
conjunção, dispersão e reunião de linguagens, espaços e tempos‖
(PAZ, 2009, p. 137). Hoje, prosa se aproxima de poesia, e vice versa.
A questão do sujeito no poema tem sido sempre um ponto
que torna a distinção entre poesia e prosa mais complexa. O foco na
presença ou não do ―eu‖ na poesia acaba por levá-la também a um
conflito interno, entre a definição geral de poesia e a de poesia
lírica, em particular. A lírica “enraíza-se na revelação e

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 164


A crítica antilírica de João Cabral de Melo Neto

aprofundamento do próprio eu, na imposição do ritmo, da


tonalidade, das dimensões, enfim, desse mesmo eu, a toda a
realidade‖ (SILVA, 1963, p. 227-228, grifo do autor).
A nova ruptura entre os gêneros literários, que já não eram
claros, começa mesmo quando passa a ser questionada a definição
de realidade na literatura. Para Michael Hamburger (2007) ela advém
da transformação do real pela imaginação, não na expressão de
sentimentos sinceros. Essas novas possibilidades poéticas,
conforme Friedrich, começam com Baudelaire que inicia ―A
despersonalização da lírica moderna […] a palavra lírica já não
nasce da unidade de poesia e pessoa empírica‖ (FRIEDRICH, 1978, p.
36). Agora, ―São os sentimentos do eu empírico que a poesia dilata,
complementa ou até substitui por sentimentos fictícios, mas pelo
único fato de que o eu empírico não é todo o eu, limitado que está
em sua concha de convenções, hábitos e circunstâncias.‖
(HAMBURGER, 2007, p. 206).
Os juízos com relação a essa mudança diferem. Para
Friedrich, na modernidade:

a cognição de poesia acolhe sua difícil ou impossível


compreensibilidade como uma primeira característica de
sua vontade estilística […] arrogou-se a liberdade de
dizer sem limites e sem consideração tudo aquilo que
lhe sugeria uma fantasia imperiosa, uma intimidade
estendida ao inconsciente e o jogo com uma
transcendência vazia. (FRIEDRICH, 1978, p. 19-20).

Para Hamburger, a libertação romântica apenas permitiu aos


autores que explorassem suas percepções de modo mais
abrangente, sem seguir os modelos prévios. Após um primeiro
momento mais radical, a poesia moderna tem seus impulsos de
expressão realocados e seus temas de razão social são evidentes e
inegáveis. O que Hamburger discute como ―antipoesia‖ é:

uma forma extrema do 'imitativo baixo', austeramente


dedicada a expressar as 'coisas do mundo como são' [...]
é antipoético se nossa norma for a poesia romântico-
simbolista, e a sua aspiração 'à condição de música', no
entanto, nossa compreensão da poesia moderna estará
incompleta e inadequada se esquecermos que todo
movimento em direção à arte pura, autotélica e absoluta
ou hermética surgiu de um desacordo com as 'coisas do
mundo como são' (HAMBURGER, 2007, p. 369-370, grifo
do autor)

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 165


Cleonice Alves de Castro ANTUNES

Quando o resultado final do poema não é fruto somente de


alguma preocupação com a arte, mas com a realidade, o autor não o
exclui os seus semelhantes do processo interpretativo. No caso de
João Cabral de Melo Neto, há um afastamento exatamente da sua
poesia da lírica tradicionalmente considerada―a expressão máxima
da subjetividade vaga e concentrada, [que] arrima-se naturalmente à
música." (MOISÉS, 1967, p. 77). O autor constantemente reforça sua
posição de ―antilírico‖, descrevendo essa modalidade de escrita em
termos bastante similares aos de Hamburger (2007), destacando a
importância da comunicatibilidade:

Um prejuízo dessa visão excessiva de subjetivismo é o


fato de o poeta, a partir do momento em que se torna
exclusivamente lírico, passa a falar só dele próprio.
Onde está a poesia que fala das coisas? Não se vê mais!
Agora, o poeta só fala das suas angústias! Só que eu não
sei qual é a angústia de cada um! Falar da angústia é
algo muito vago, pode ter um significado para mim e
outro muito diferente para você... Agora, se eu falar de
uma uma maçã ou de uma laranja, são coisas concretas,
objetos à partida iguais para mim e para você. Aí nossa
comunicação pode se estabelecer. (MELO NETO, 1985,
apud ATHAYDE, 1998, p. 55)

É essa obstinação de João Cabral em excluir ao máximo sua


presença da escrita, e o seu recorrente louvor à racionalidade, que
fazem com que, por toda a sua obra, o autor trace um percurso de
autocrítica. Ele busca sempre tornar-se mais distante do texto, e
espera assim ser lido. Para se perceber brevemente essa autocrítica,
pode-se observar o que o João Cabral fala a respeito de suas obras
primeiras obras. Seu livro de estreia, Pedra do sono, que reúne
textos de 1940 e 1941, foi publicado com intuito de servir como
laboratório das suas primeiras vontades de alhear-se lirismo, já
contendo o vocabulário das ciências exatas tão comumente
associado ao autor.

Começava a acreditar que a emoção poética não é uma


emoção essencialmente diversa da que nos comunica
qualquer trabalho intelectual. É, assim, uma emoção
semelhante à de qualquer ciência exata. Apenas o
material do poeta - a palavra - tem por trás de si uma
realidade própria, que o poeta não pode anular, como na
expressão matemática. (MELO NETO, 1946, apud
ATHAYDE, 1998, p. 99)
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 166
A crítica antilírica de João Cabral de Melo Neto

Apesar dessa afirmação, e de dizer que o livro foi


―laboriosamente construído‖ (ibdem), na mesma entrevista consta
sua insatisfação com a obra: ―meu principal traço é o racionalismo, e
foi isso que me fez abandonar a atmosfera noturna e irreal de Pedra
do sono‖(ibdem, p. 100). Buscando sempre maior racionalidade,
sobre O Engenheiro, que contém textos de 1942 a 1945, ressalta
que:

é um livro marcado pela idéia de que um poema pode


ser feito apenas com um trabalho de exploração de
comportamento das palavras associadas: isto é, através
de um trabalho puramente intelectual e voluntário. De
um trabalho de experimentação. (MELO NETO, 1946,
apud ATHAYDE, 1998, p. 102)

Em 1946, João Cabral publica Psicologia da composição, e


suas observações a respeito do texto, nos anos seguintes, apontam
cada vez mais para uma poética do extremo no não-eu: "Em
Psicologia da composição levei esse sentido lógico [de O engenheiro]
às suas últimas consequências" (MELO NETO, 1953, apud ATHAYDE,
p. 102). Também afirma, permitindo recordar a diferenciação entre
poesia e prosa: "[Meus livros,] eu os acho claríssimos. Poderia fazer
cada poema meu, sobretudo em Psicologia da composição, uma
tradução em prosa" (MELO NETO, 1946, apud ATHAYDE, 1998, p.
102). Essa autorrevisão crítica quanto ao lirismo continuará a se
repetir ao longo da bibliografia do escritor.
Da desconfiança da lírica, e do desejo de comunicar o
exterior, como era suposto ser a característica mais exclusiva da
prosa, surgiu parte do receio de João Cabral quanto a ideia de se
tornar poeta. Por conta da sua aparente inadequação, só vem de fato
a se considerar capaz de escrever poesia quando tem contato com a
obra de Drummond, que lhe surpreendeu com ―a dicção áspera,
cortada e prosaica, que contrastava com a dicção fluente que muitos
associam à poesia; foi a antipoesia discursiva; foi, nos primeiros
livros, a construção do poema mais para a vista do que para o
ouvido" (MELO NETO apud SARAIVA, 2014, p. 73). Até então, João
Cabral tinha desejo de ser crítico e, na perspectiva tradicional
―analisar (criticar) e construir (criar) são operações inconciliáveis‖
(PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 89).
Cabral começa a produzir, assim, uma poesia que se
preocupa com o descrever e analisar de um objeto, uma realidade
fora de si: uma ―antipoesia discursiva‖. É interessante ressaltar
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 167
Cleonice Alves de Castro ANTUNES

outra influência ligada a esta abordagem da poesia enquanto


construção para ser vista, que o próprio autor diz ter tido absoluta
relevância na sua formação: o arquiteto Le Corbusier. Afirma: "o
livro decisivo para a minha carreira de escritor foi escrito por um
arquiteto" (MELO NETO in CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA,
1996, p. 29).
Entretanto, na realidade, João Cabral não está isolado nessa
posição de resistência à poesia tradicional. Foi entre os teóricos
românticos alemães que surgiu primeiramente a ideia de que o
poeta é o melhor crítico. Essa crítica autoral continha em si um
problema, entretanto, já que era necessariamente parcial e
tendenciosa à pratica de cada autor. Os aspectos que os poetas
selecionam para elogiar em outrem, são características que
procuram exaltar porque também presentes nas suas poesias
(PERRONE-MOISÉS, 2005). Não coincidentemente, um pouco desse
fenômeno também poderá ser observado na crítica de João Cabral.
João Cabral de Melo Neto esforça-se, porém, por ser autor de
uma crítica – em poesia ou em prosa – rigorosa, objetiva,
distanciada e racional.

A crítica que insiste em empregar um padrão da


julgamento é incapaz de apreciar mais do que um
pequeníssimo setor das obras que se publicam - aquele
em que esse padrões possam ter alguma validade. E a
crítica que não se quer submeter a nenhum tem que
renunciar qualquer tentativa de julgamento. Tem de
limitar-se ao critério de sua sensibilidade, e a sua
sensibilidade é também uma pequena zona, capaz de
apreender o que a atinge, mas incapaz de raciocinar
claramente sobre o que foi capaz de atingi-la. (MELO
NETO, 1994, p. 724)

Quando sua crítica é em forma de poesia, necessita


naturalmente da comunhão entre significados e significantes do
textos, em linguagem exata, mas potencializada. João Alexandre
Barbosa, nos Cadernos de Literatura Brasileira (1996), comenta que
há na poesia cabralina uma ―lucidez que faz da linguagem a própria
imitação do objeto a ser nomeado‖ (p. 81). Essa imitação do objeto,
na sua poesia crítica, transfere-se em uma espécie imitação do
artista eleito como seu motivador:

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 168


A crítica antilírica de João Cabral de Melo Neto

Aqui se vê o modo preciso como Cabral critica. Sem ir


contra, como um pernóstico invejoso, ou a favor, como
um discípulo que adula, ele caminha lado a lado com
seus escolhidos. Tenta reproduzir o caminho eleito pelo
artista-objeto, percorrê-lo outra vez, e dele retirar tudo
aquilo que a perspectiva próxima (e não-crítica) deixa
escapar de melhor: a clareza do método. Olhar que, na
maioria das vezes, escapa ao próprio artista em questão.
(CASTELLO, 2005, p. 160)

Assim, o texto de João Cabral que é, como já comentado,


tanto poético quanto crítico, imita com frequência as formas dos
artistas sobre os quais discorre. O poeta esforça-se por manter uma
linguagem objetiva, que está contudo ancorada em todos os
preceitos formais de um poema. O tipo de crítica feita por João
Cabral poderia se enquadrar no que Perrone-Moisés chama de
―discurso crítico-inventivo‖:

Ao fazer de sua especificidade seu referente e seu


objetivo, a literatura se torna a exploração crítica da
linguagem. Ao mesmo tempo, à medida que a crítica
assume a escritura, o texto criticado se torna pré-texto
para uma nova aventura de linguagem, o discurso sobre
o texto se torna, ele próprio, texto. (PERRONE-MOISÉS,
2005, p. XIII)

Ao erigir outros artistas como pré-texto para seus poemas,


João Cabral de Melo Neto também pratica uma espécie de elogio,
focando em aspectos positivos que não são necessariamente
tratados na crítica tradicional. Mesmo que o crítico João Cabral não
se manifeste exaltado, seja de maneira positiva ou negativa, a
própria escolha de outros criadores como tema de criação já
demonstra o valor dos textos que lhe servem de motivo. ―Esse tipo
de avaliação, nascido da e na prática da escritura, é totalmente
diverso do tipo de avaliação exercido pela crítica tradicional,
baseada num quadro de valores prévios‖ (ibdem, p. 57). Assim, a
―crítica-escritura‖ produzida por Cabral é rica porque na sua prática
ela não não se preocupa em limitar o outro texto, falando sobre e
acima dele em uma posição hierárquica, o que há é uma relação de
igualdade.
A condição de poeta de João Cabral de Mello Neto não deixa
de existir quando ele escreve teoria e crítica literária. Suas
experiências de escrita e leitura certamente estão presentes nas suas
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 169
Cleonice Alves de Castro ANTUNES

produções, e um dos temas que o ocupa, essencialmente poético, na


acepção aristotélica, é a inspiração. Esse é ponto que motiva ―Poesia
e Composição‖, há muito discutido pelos poetas. Vitor Manuel de
Aguiar e Silva o resume bem:

por um lado, o autor possesso, por outro, o autor


artífice. Aquele, criando num estado de agitação e de
êxtase, como possuído por forças estranhas e
irreprimíveis, em revolta contra cânones e preceitos;
este, criando num estado de lucidez, de equilíbrio, de
disciplina mental, realizando a sua obra através de um
vigilante esforço e da voluntária aceitação de regras, e
nela depondo uma íntima e harmoniosa medida. (SILVA;
1973, p. 160, grifo do autor)

Se há dúvidas de que é a última perspectiva que tem o maior


alinhamento de João Cabral, basta a leitura de algumas das suas
entrevistas. Em um diálogo publicado na edição em sua homenagem
dos Cadernos de Literatura Brasileira, diz:

Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa.


Isso eu aprendi com Le Corbusier. A poesia é uma
composição. Quando digo composição, quero dizer uma
coisa construída, planejada - de fora para dentro. […] Eu
só entendo o poético nesse sentido. Vou fazer uma
poesia de tal extensão, com tais elementos, coisas que
eu vou colocando como se fossem tijolos. E por isso que
eu posso passar anos fazendo um poema: porque existe
planejamento. (MELO NETO in CADERNOS DE
LITERATURA BRASILEIRA, 1996, p. 21)

Em ―Poesia e Composição‖, João Cabral começa a tratar do


problema da necessidade da inspiração a partir de um ponto de
vista da neutralidade. Recordando que o fazer poético é um ato
solitário, que os autores não querem revelar, Cabral explica o
mistério por trás da composição poética, e o porquê do seu segredo.
Para ele, os autores possessos não sabem o método pelo qual
escrevem, recebendo a inspiração poética por surpresa, e apenas
transcrevendo-a. Como consequência, não haveria muito o que
dizerem sobre seu processo de composição, uma vez que ele mal
existiria. Quanto aos autores artífices, esses têm uma produção tão
técnica e forçosa, resultado de tentativas falhas e repetições, que
não seria de interesse do leitor conhecê-la e, principalmente, teriam

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 170


A crítica antilírica de João Cabral de Melo Neto

pudor em revelá-la.
No mesmo texto diz que, para os autores inspirados, essa
experiência única da inspiração tem que ser diretamente transposta
para o poema. Como resultado, seu trabalho artístico, em termos de
estrutura, seria muito superficial. Uma vez que o poeta se limita
apenas a efetuar pequenos retoques no que já lhe veio pronto, o
poema que surge é pouco orgânico, de pouca existência objetiva
enquanto obra de arte. O autor não se preocupa em comunicar uma
experiência que possa ser compartilhada pelos leitores, ele e seus
sentimentos são o centro do próprio texto.
João Cabral de Melo Neto explica o porquê da crescente
tendência a esse tipo de escrita, relacionando-a com a tomada de
liberdade de composição conquistada após o romantismo, já
previamente comentada. Assim, afirma:

O autor de hoje trabalha à sua maneira, à maneira que


ele considera mais conveniente à sua expressão pessoal.
[…] Em nosso tempo, como não existe um pensamento
estético universal, as tendência pessoais procuram se
afirmar, todo poderosas, e a polarização entre as idéias
de inspiração e trabalho se acentua. Como a expressão
pessoal está em primeiro lugar, não só tudo que possa
coibi-la deve ser combatido, como principalmente, tudo
o que possa fazê-la menos absolutamente pessoal.
(MELO NETO, 1994, p. 724-726)

Quando o artista se impõe um poema, por outro lado,


haveria o esforço continuado para a criação. O escritor se depara
com problemas de escritura, autodetermina suas formas, tem gosto
por colocar o intelecto à frente do sentimento. Há nos ―autores
artífices‖ uma técnica muito diferente daquela que pode se
manifestar nos ―autores possesso‖: estes, se limitam com frequência
a constituir um estilo repetitivo e empobrecido no qual
simplesmente enquadram suas inspirações, aqueles, são poetas de
verdadeira arte maior.
João Cabral de Mello Neto, entretanto, também tem
considerações menos positivas para fazer a respeito da poesia
técnica. Ele ressalta que "a preponderância absoluta dada ao ato de
fazer termina por erigir a elaboração em fim de si mesma. O
trabalho se converte em exercício, isto é, numa atividade que vale
por si, independentemente de seus resultados‖ (ibdem, p. 735). A
obra poética, desse modo, perderia não em valor artístico, mas em

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 171


Cleonice Alves de Castro ANTUNES

importância, em um perspectiva mais social. Isso, entretanto,


apenas se o poeta não utilizar sua clareza de pensamento para a
escolha de um motivo que perdure. Bem selecionado seu tema, o
objeto-poema tem toda a possibilidade de sobreviver à existência e
memória do autor, uma vez que é desligado dele.
Ao fim, contudo, esse contraste, que se inicia neutro, acaba
por se tornar favorável aos artistas que trabalham a partir de um
tema previamente definido, com estrutura e conteúdo
cuidadosamente estudados, como o faz o próprio Cabral. Mesmo em
entrevistas posteriores, o autor tende a começar suas considerações
como ―o poeta inspirado tem defeitos que o esforçado não tem, e
vice-versa‖ (MELO NETO, 1973, apud MAMEDE, 1987, p. 145), mas
encerrá-las taxativamente ―com o esforço, pode-se aperfeiçoar
sempre uma obra, independente da inspiração‖ (ibdem).
Não se pode negar que nessa bipartição entre inspiração e
esforço há também a luta histórica entre a poesia em que
permanece ou não o ―eu‖, entre a lírica e antilírica cabralina, e a
partir daí essa preferência do poeta também se explica. Para o autor
"o que há no fundo dessa atitude [inspirada] é o desprezo pela
atividade intelectual, essa desconfiança da razão do homem, essa
idéia de que o homem apenas saiba quebrar as coisas superiores
que lhe são dadas e que nada pode por si mesmo." (MELO NETO,
1994, p. 731)
A rigorosidade de escrita, que Cabral observava que estava
por se tornar fora de moda, não impede que o artista crie e inove.
Os comodismos da escrita lírica espontânea empobrecem
tecnicamente a poesia. Acreditando estarem manifestando seus
próprios sentimentos, os autores acabam por escrever sem
consciência do real. O sentimentalismo se associa ao senso comum,
e o espontâneo às respostas fáceis e automáticas.
Essa poesia não é composta tão facilmente quanto aquela
inspirada, mas, a despeito da sua dificuldade, cumpre mais
amplamente a função poética do se expressar à medida que se
exprime. João Cabral faz uma crítica explícita ao princípio da
liberdade formal absoluta, sem que o leitor tenha qualquer espécie
de contrato de leitura no qual se apoiará:

É evidente que numa literatura como a de hoje, que


parece haver substituído a preocupação de comunicar
pela preocupação de exprimir-se, anulando, do momento
da composição, a contraparte do autor na relação

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 172


A crítica antilírica de João Cabral de Melo Neto

literária, que é o leitor e sua necessidade, a existência de


uma teoria da composição é inconcebível. (MELO NETO,
1994, p. 714)

Para Cabral, dominada por experiências subjetivas, a poesia


lírica não consegue se comunicar. O rigor da regra impulsiona o
autor a pensar para além de si, ―é então profundamente funcional e
visa assegurar a existência de condições sem as quais o poema não
poderia cumprir sua utilidade" (MELO NETO, 1994, p. 737). O
esforço que o poeta exige do seu leitor na interpretação do texto,
análogo ao esforço que teve no momento de produção, é o que o
levará a construir, também, a sua parte na mensagem.

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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 174


O “QUEM” DA MEMÓRIA: VIAGEM AO LABIRINTO DO
SERTÃO ROSIANO

Edinília Nascimento Cruz


UFMG

Resumo: Propomos neste trabalho analisar a viagem emblemática


do vaqueiro Grivo, na novela ―Cara-de-Bronze‖, em Corpo de baile
(1956), de Guimarães Rosa. Nessa narrativa, o universo ficcional se
duplica ao entrelaçar das duas narrativas, a externa, do cotidiano da
fazenda, e a interna, o relato da viagem. Busca-se aqui evidenciar
aspectos da memória compartilhada e espelhada das personagens
Grivo e Cara-de-Bronze na construção discursiva do texto. A
proposta deste estudo é discutir o entrelaçar da memória e os
artifícios do exímio narrador-vaqueiro na inverossímil busca do
―quem das coisas‖, que irá resgatar do limbo da morte o Velho
fazendeiro. A viagem ocorre em via de mão dupla, tanto no plano
físico como no simbólico. Através da narrativa da viagem e dos
registros da memória que envolvemos dilemas do passado do velho
fazendeiro, a personagem viaja como se estivesse perdida no
labirinto da memória. Grivo, numa longa travessia, entre a memória
e o esquecimento, busca tecer a narrativa, ―a viagem da viagem‖,
entrelaçando elementos do sertão real e imaginário. Na composição
textual, vários quadros memorialísticos surgem interligados ao
relato, partindo-se da hipótese de que nessa novela a ―memória
individual e coletiva‖ se conflui num ir e vir constante entre o
lembrar e o esquecer. Essas duas forças surgem como distintas e
complementares. Por intermédio de Mnemosyne, o vaqueiro-poeta
resgata do domínio de lesmosynee do reino do esquecimento as
memórias de Cara-de-Bronze e, com elas, o poder fundamental da
poesia ―oculto sob montanhas de cinza‖, revelando, assim, um
―novo pedaço de infinito‖. Para tratar das reflexões teóricas acerca
da temática da memória e dos processos de narração, a análise será
amparada nas proposições de Walter Benjamin, Maurice Halbwachs
e Pierre Nora.

Palavras-chave: Corpo de baile; memória; espaço; Guimarães Rosa.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Edinília Nascimento CRUZ

1. O “quem” da memória na viagem ao Riacho do Vento

É consenso entre os críticos que o valor fundamental da


metáfora da travessia adquire relevância na obra de Guimarães
Rosa. A travessia de Riobaldo em Grande sertão: veredas é
notadamente a mais discutida. No entanto, em Corpo de Baile, 1 cada
novela evidencia uma situação em que a viagem constitui um
recurso primordial para se explorar as potencialidades dessa
travessia, tanto no plano físico-espacial quanto existencial-
simbólico.
Para esta apresentação, faremos uma análise da viagem de
Grivo, na novela ―Cara-de-Bronze‖, em que os registros da viagem
ocorrem pelo viés da memória e pelo artifício artístico, apontando
para um percurso não-convencional legitimado pela contingência
simbólica da palavra. Nessa narrativa, o ato de viajar e o viajante
fundem-se na própria busca da poesia e do fazer poético. Nesta
perspectiva, a travessia é ponte para a linguagem, é o sentido que se
produz entre a palavra e o vazio em que o texto se coloca. A viagem
funciona como ―uma travessia para a memória‖, um mecanismo
para construção do passado de Cara-de-Bronze e evidencia uma
tensão entre o real (o vivido) e o simbólico (o imaginado). Nesse
sentido, ―a viagem-travessia que se transvive na lembrança, constitui
o saldo imponderável das ações, que a memória e a imaginação
juntas recriam‖, para usar a formulação de Benedito Nunes (NUNES,
1969, p. 174).
Grivo parte a pedido do seu patrão Cara-de-Bronze para uma
longa e difícil viagem que, após muita especulação, se resume na
busca ―do quem das coisas‖. 2 A narrativa é cifrada e labiríntica e os

1
Corpo de baile é um livro composto por sete novelas, publicado em 1956
em duas partes. Na segunda edição de 1960, vem ao público em volume
único e, a partir da 3ª edição, por motivos editoriais, passou a ser publicado
em três volumes com títulos diferentes, assim distribuídos1: Manuelzão e
Miguilim (1964), composto por ―Campo geral‖ e ―Uma estória de amor‖; No
Urubùquaquá, no Pinhém (1965), com ―O recado do morro‖, ―Cara-de-
Bronze‖ e ―A estória de Lélio e Lina‖ e Noites do sertão (1965), que traz as
novelas ―Dão-Lalalão‖ e ―Buriti‖.
2
Guimarães Rosa, em carta para seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, traz
um resumo para a novela: ―'O Cara-de-Bronze'‖ era do Maranhão (os
campos-gerais, paisagem e formação geográfica típica, vão de Minas Gerais
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 176
O “quem” da memória: viagem ao labirinto do sertão rosiano

fragmentos da memória, registros da viagem, surgem como fios que


se cruzam e, com as indagações dos vaqueiros, compõem uma
densa tessitura, uma ―rede com varandas de labirinto...‖, que se
arma no labirinto do sertão e da memória (ROSA, 2006, p. 626).
A viagem de Grivo à terra natal e ao passado de Cara-de-
Bronze abre-se no Urubùquaquá, nos gerais rosianos, nos lugares e
na paisagem do sertão mineiro, mas logo se desloca para a memória
das paisagens, para o inverossímil, onde a fabulação redesenha
outros percursos, realizando uma travessia-poética em busca do
―quem da memória‖. De acordo com Marli Fantini, ―Durante suas
idas-e-vindas, o Grivo vai inventariando uma infinita gama de
singularidades culturais, lingüísticas, visuais e sonoras que ele,
enquanto tradutor-transculturador, desoculta, pondo em nova
circulação‖ (FANTINI, 2008, p. 159), a fabulação do relato
mimetizada pelo vaqueiro poeta.
São duas narrativas entrecortadas − a do relato de Grivo ao
fazendeiro e a outra que se faz a partir da elaboração coletiva dos
vaqueiros. "Eram dias de dezembro, em meia-manhã, com chuva em
nuvens, dependuradas no ar para cair. [...] Reinava lá o azonzo de
alguma coisa, trem importante a suceder. Da varanda, alguém
tocava alta viola‖ (ROSA, 2006, p. 560). Após o retorno de Grivo, os
vaqueiros reunidos na varanda da fazenda, no intervalo do trabalho,
especulam sobre o que havia motivado a viagem: ―É. Eu sei que ele
foi para buscar alguma coisa. Só não sei o que é. [...] Há de ser
alguma coisa de que o Velho carecia, por demais, antes de morrer.
Os dias dele estão no fim-e-fim‖ (ROSA, 2006, p. 571). A princípio, a
conversa em torno do episódio da viagem não passa de
especulações, ―Iô Jesuino Filósio: E ninguém sabe aonde esse Grivo

até lá, ininterruptamente). Mocinho, fugira de lá, pensando que tivesse


matado o pai. [...] Veio, fixou-se, concentrou-se na ambição e no trabalho,
ficou fazendeiro, poderoso e rico. Triste, fechado, exilado, imobilizado pela
paralisia (que é a exteriorização de uma como que ―paralisia da alma‖),
parece misterioso, e é; porém, seu coração, na última velhice, estalava.
Então, sem se explicar, examinou seus vaqueiros — para ver qual teria mais
viva e ―apreensora‖ sensibilidade para captar a poesia das paisagens e
lugares. E mandou-o à sua terra, para, depois, poder ouvir, dele, trazidas
por ele, por esse especialíssimo intermediário, todas as belezas e poesias de
lá. O Cara-de-Bronze, pois, mandou o Grivo... buscar Poesia. Que tal?‖
(ROSA, 2003, p. 93/94).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 177
Edinília Nascimento CRUZ

foi? Não se tem idéia? O vaqueiro Adino: É de ver... De certo, danado


de longe. O vaqueiro Cicica: Saiu daqui, escoteiro, faz dois anos. Em
tempo-das-águas. Moimeichêgo: Tão lonjão foi?‖ (ROSA, 2006, p.
569).
Diversos elementos dão a noção de que o fato de saber
muito pouco sobre o lugar aonde foi o Grivo é o ponto de partida
para levantar várias questões acerca da viagem misteriosa do
vaqueiro. No entanto, diante dessa imprecisão, quanto mais tentam
saber, o que conseguem é o compartilhamento da dúvida e do não-
saber. A viagem é, nessa novela, um procedimento narrativo que se
desdobra e vai se expandindo até chegar ao ponto máximo,
convertendo-se na ―Demanda da Palavra e da Criação Poética‖
(NUNES, 1969, p. 179). Benedito Nunes esclarece que em ―Cara-de-
Bronze‖ a viagem encontra o seu ponto máximo da travessia ao
transformar o sertão na própria poesia. Embora trazendo
referências espaciais, não se situa em nenhum lugar específico ."Um
vaqueiro tinha chegado, de torna-viagem. De uma viagem quase sem
expedição, sem prazos, não se precisava bem aonde, tão extenso é o
Alto Sertão‖ (ROSA, 2006, p. 588). Sob o efeito da curiosidade, a
mensagem captada pelos vaqueiros acerca da viagem vai se
significando, sobretudo, quando o Grivo passa a narrar a eles a sua
jornada. Inicialmente, concentra-se em descrever o percurso, os
cenários naturais, alargando a imagem dos lugares percorridos, ―—
Eu vos conto, por miúdo. Desde daqui saí, do Urubùquaquá,
conforme o comum — em direitura. Andei os dias naturais. Fui.
Vim-me encostando para um chapadão feio enorme. Lá ninguém
mora lá — Virou dessas travessias‖ (ROSA, 2006, p. 502, 503, 504).
Apesar dos referenciais geográficos, Grivo pouco esclareceu sobre o
percurso da viagem. Os caminhos são difíceis de serem percorridos
e localizados. As dificuldades enfrentadas ao atravessar a região são
intensificadas, dadas a extensão e a indefinição de seus limites.
Cara-de-Bronze envia Grivo à terra natal que, ao retornar,
relata o que viu por lá. Nesse plano, a viagem do Velho, que se dá
por meio do relato da viagem de Grivo, o liga a outros caminhos. Na
novela não temos a veracidade dos fatos. O relato de Grivo a Cara-
de-Bronze é feito secretamente, sem testemunha. A viagem dura
dois anos, e é o relato do vaqueiro poeta, ao retornar, que reacende
o passado de Cara-de-Bronze. Esse narrador ―dotado de sabedoria‖
atinge o inverossímil, e estabelece-se um jogo de espelhos em que
real e irreal se misturam. Na tentativa de dizer o indizível, Grivo,
diante do fazendeiro exilado e da materialidade do mundo em

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 178


O “quem” da memória: viagem ao labirinto do sertão rosiano

decadência, recria o que viu com contornos mágicos:

Ele, o Velho, me perguntou: – ―Você viu e aprendeu


como é tudo, por lá?‖ – perguntou, com muita cordura.
Eu disse: – ―Nhor vi.‖ Aí, ele quis: – ―Como é a rede de
moça – que moça noiva recebe, quando se casa?‖ E eu
disse: – ―É uma rede grande, branca, com varandas de
labirintos...‖
[...]
Mainarte: Jogou a rede que não tem fios.
GRIVO: Não sei. Eu quero viagem dessa viagem... (ROSA,
2006, p. 626).

A metáfora é bastante significativa para se discutir o próprio


processo de construção do relato. Sua simbologia opera no sentido
de tornar lógico, trazer para o plano real aquilo que se passa no
reino da elaboração intersubjetiva do Grivo. Neste sentido, a rede
textual, labiríntica, do início da narrativa ganha forma nos
entrelaçados das vozes enunciativas. Memória e narrativa são
tensionadas por meio dos diferentes discursos dos vaqueiros que se
cruzam ao especular sobre os mistérios que envolvem o fazendeiro.
É por meio das especulações que o leitor fica sabendo sobre o
suposto objetivo da viagem: ―Há de ser alguma coisa de que o Velho
carecia, por demais, antes de morrer. Os dias dele estão no fim-e-
fim..." (ROSA, 2006, p. 571).
A história do passado de Cara-de-Bronze é tecida pelos
relatos dos vaqueiros constituindo uma rede de interações. O
fazendeiro, no fim da vida, surge imobilizado, isolado em um quarto
escuro, emudecido e requer um plano para resgatar acontecimentos
passados. Não tendo condições de fazê-lo sozinho, elabora uma
seleção para escolher o vaqueiro que fosse capaz de lhe mostrar as
paisagens e os lugares por meio de construções da linguagem. Cara-
de-Bronze ―estava mudado. Não requeria relatos da campeação, do
revirado na lida [...] Mudara. Agora ele indagava engraçadas bobéias,
como estivesse caducável‖ (ROSA, 2006, p. 592). Acreditava em
mentiras, ―mesmo sabendo que mentira é‖, pedia-lhes, para efeito
de contemplação, os nomes das coisas desimportantes: ―—A rosação
das roseiras. O ensol do sol nas pedras e folhas. O coqueiro
coqueirando. As sombras do vermelho no branqueado do azul. A
baba de boi da aranha. [...]. Luaral. As estrelas‖ (ROSA, 2006, p. 592,
593).
No texto, Grivo se coloca na condição do narrador, conforme

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 179


Edinília Nascimento CRUZ

modelo proposto por Walter Benjamim, ou seja, centrado na


tradição oral. O vaqueiro faz uma viagem física à terra natal de
Cara-de-Bronze, mas é no plano da memória, no simbólico, que o
passado do velho arquitetado pelo viajante é revitalizado. Esse
narrador não está preocupado em trazer o ―‗puro em si‘ da coisa
narrada como uma informação ou um relatório."[...] Assim se
imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na
argila do vaso‖ (BENJAMIN, 1994, p. 205). É a partir da tentativa de
resgatar o tecido memorialístico do fazendeiro que o vaqueiro
adquire experiência, sabedoria para formular seu relato. Grivo foi o
escolhido por Cara-de-Bronze por ser aquele que sabia ―ver o que no
comum não se vê‖ (ROSA, 2006, p. 598). Era, portanto, o mediador
sábio. 3
Grivo é um contador de história. O relato é construído a
partir da tradição oral. A narração a que temos acesso é permeada
de simbolismo nas descrições dos lugares percorridos e das
experiências vivenciadas."– Eu estava cumprindo lei. De ver, ouvir e
sentir. E escolher. Seus olhos não se cansavam. E, de escondido de
dentro do mato, o Sacizinho o viu passar. O Saci se disse: – ‗Li-u-li-u-
li! Já também vou, faz tempos que careço duma viagem...‘‖ (ROSA,
2006, p. 588). O misticismo, o fantástico ganha força, os vaqueiros
querem saber mais, interrogam-no e cada resposta é
fantasiadamente elaborada, mantendo o espectador ativo. Há
reflexibilidade e compartilhamento. "Só estava seguindo, em serviço
do Cara-de-Bronze? Estava bebendo sua viagem‖ (ROSA, 2006, p.
616).
Podemos dizer que, ao reconstruir a viagem de Cara-de-
Bronze, duas forças surgem como distintas e complementares, uma
(Léthe, lesmosyne), pelo viés do ―esquecimento ocultamento, noite,
trevas. A outra vem da revelação (alethéa, epifania), surge com
poder fundamental de ―trazer à presença o não presente‖
(TORRANO, 1995 p. 23), iluminar a palavra, esculpi-la. Walter
Benjamin, no texto ―O Narrador‖, faz referência à deusa da memória
e à aproximação entre poesia e memória. Segundo o crítico,

3
Grivo aparece na novela ―Campo geral‖ como o menino amigo de Miguilim
que já manifestava o dom de contar histórias ."O Grivo contava uma
história comprida, diferente de todas, a gente ficava logo gostando daquele
menino das palavras sozinhas‖ (ROSA, 2006, p. 82).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 180
O “quem” da memória: viagem ao labirinto do sertão rosiano

―Mnemosyne, a deusa da reminiscência, era para os gregos a musa


da poesia épica‖ (BENJAMIN, 1994, p. 211). Dessa forma, a
rememoração, ―musa do romance‖, atua no âmbito do individual, e
a memória, ―musa da narrativa épica‖, no âmbito do coletivo
(BENJAMIN, 1994, p. 211).
Maurice Blanchot nos diz que a ―memória é esquecimento‖.
Há um abismo entre o fato vivido e o fato lembrado. Se
considerarmos assim, podemos entender que seriam abertos
descaminhos da memória, uma memória dúbia, ou a invenção de
outras memórias. "A essência da memória é, portanto, o
esquecimento, do qual se deve beber para morrer‖ (BLANCHOT,
1969, p. 460). Quando chegou ao Urubùquaquá, nos ―Gerais do ô e
do ão‖ (ROSA, 2006, p. 559), Cara-de-Bronze enterra seu passado. O
cavalo que usou para fazer a viagem morre, não restando nada mais
além de uma rede ."Parecia fugido de todas as partes. Homem moço,
que o mundo produziu e botou aqui. Quando apareceu, morreu
debaixo dele o cavalinho que tinha, em termos de duras viagens‖.
(ROSA, 2006, p. 573). Enquanto espera a morte, o Velho fazendeiro
recorre às memórias para se manter vivo. Mas não se trata das
memórias vividas, mas as memórias recriadas por alguém escolhido
criteriosamente por ele para executar o plano de busca interminável
que parecia dominar a vida do protagonista. O passado de Cara-de-
Bronze é um território ambíguo do qual o leitor só tem
conhecimento por meio de suposições. Teria ele matado o pai e
fugido? Teria ele abandonado uma noiva? Sofre de remorso? Não se
sabe ao certo, não é isso que importa no enredo da estória.
Guimarães Rosa em seus textos resgata o sertão arcaico e,
consequentemente, as relações entre os grupos e as tradições
culturais desses povos. A memória se reflete tanto nas relações
individuais como nos grupos. Essas articulações ganham ênfase e
reconfiguram as tradições. Conforme Pierre Nora, ―A memória é a
vida, [e] está em permanente evolução, aberta à dialética da
lembrança e do esquecimento‖ (NORA, 1981, p. 9). Podemos dizer
que tempo e espaço são sustentáculos nos quais o homem se agarra
em busca de marcas, arquivos que revitalizem os registros da
memória. A vida próspera que o velho fazendeiro conquistou no
Urubùquaquá definhava diante da voracidade da doença que
paralisava sua vida:

Homem, morgado da morte, com culpas em aberto, em


malavento malaventurado. Que culpa seria essa? O que

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 181


Edinília Nascimento CRUZ

de fato precisava para aliviar suas inquietações? Enricou.


Que é que adiantava? De agora, ele estava ali, olhando
no espelho da velhice [...] Tudo um frio. Mas frio e
molhado se cercam com paina. Oé, o Cara-de-Bronze
tinha uma gota-d‘água dentro do seu coração (ROSA,
2006, p. 591).

A narrativa desata o fio da vida de Cara-de-Bronze. As


lembranças do passado de quando chegou a Urubùquaquá são
trazidas pela memória dos vaqueiros que traçam coletivamente a
trajetória do jovem sonhador ao Velho melancólico:

Iô Jesuino Filósio: ―De donde é que o Velho é? Donde


veio?
O vaqueiro Cicica: Compadre Tadeu sabe.
O vaqueiro Tadeu: Sei que não sei, de nunca. O que ouvi
foi Sigulim, primo meu, e de outros, que viram os
começos dele aqui.
[...]
Bem-vir, mal-vir, ele possuía uma rede [...]
Ele era para espantos. Endividado de ambição,
endoidecido de querer ir arriba. A gente pode colher
mesmo antes de semear: ele queria sopensar que tudo
era dele... (ROSA, 2006, p. 573).

Em tom profético, ficamos conhecendo sobre o passado do


fazendeiro. As perguntas e curiosidades dos vaqueiros são
evidenciadas, mas nem todas as indagações vêm seguidas de
respostas, há lacunas que se abrem a partir desses
questionamentos. O fazendeiro, apesar do silenciamento, robustez,
melancolia e aspereza, precisava se manter vivo pela palavra. A
imagem caleidoscópica que os vaqueiros fazem de Cara-de-Bronze é
enigmática e vai desde sua aparência física, relação com o próprio
nome, até a solidão e reclusão. "[...] como é que ele é, o Cara-de-
Bronze? [...] é um velho, baçoso escuro, com cara de bronze mesmo,
uê!‖ (ROSA, 2006, p. 574, 575). "Ele não ri quase nunca... [...] – Ele
parece uma pessôa que já faleceu há que anos‖ (ROSA, 2006, p.
577). Há um entrelaçamento entre imagem, memória e lembrança e,
de acordo com os apontamentos de Halbwachs, a lembrança é
reconhecimento e reconstrução. No caso da novela, não se trata de
uma reconstrução linear, mas um resgate dos acontecimentos de
acordo com os interesses e especulações de cada vaqueiro, mas que
ganha sentido a partir do compartilhamento, partes articuladas

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 182


O “quem” da memória: viagem ao labirinto do sertão rosiano

entre si.
A rememoração sobre o passado do Velho domina o discurso
mítico-poético dos vaqueiros. Os diálogos transcorrem por meio de
fragmentos, como uma rede que vai sendo tecida coletivamente. O
discurso, a palavra, a decodificação trazem à tona as imagens e
impressões que habitam o rico acervo do imaginário sertanejo.
O velho fazendeiro, depois do acúmulo de anos de trabalho e
bens materiais, busca para si bens simbólicos, e é nesse tempo do
ócio que negocia as trocas necessárias para experimentar coisas
novas. Está em busca da poesia, o que não pôde fazer enquanto
jovem e ocupado, no entanto não há como o fazer sozinho e precisa
de um intermediário, o Grivo. É sob o signo da busca, da procura
que se desenrola toda a narrativa. A memória se refaz pela
linguagem compartilhada, pela escuta do relato, por meio da
enunciação, e permite ao protagonista Cara-de-Bronze a
reconstrução e a consolidação de sua vida.

O vaqueiro Mainarte: Dentro do coração do senhor tinha


uma coisa lá dentro – dos enormes...
O vaqueiro José Uéua: No coração a gente tem é coisas
igual ao que nem nunca em mão não se pode ter
pertencente: as nuvens, as estrelas, as pessoas que já
morreram, a beleza da cara das mulheres... A gente tem
de ir é feito um burrinho que fareja as neblinas? (ROSA,
2006, p. 576).

É ―mergulhando na fonte‖ da tradição popular oral,


―atravessando o espumoso de um grande rio‖, (ROSA, 1965, p. 618),
que Grivo finalmente encontra o encanto dessa poesia oral arcaica.
Grivo é um contador de estória. O relato é construído a partir da
tradição oral. A narração a que temos acesso é permeada de
simbolismo nas descrições dos lugares percorridos e das
experiências vivenciadas. "Só estava seguindo, em serviço do Cara-
de-Bronze? Estava bebendo sua viagem‖. (ROSA, 2006, p. 616).
A imagem de Cara-de-Bronze inserido no reino da morte é
transformada pela mediação da palavra trazida por Grivo. Conclui-
se que a linguagem traduzida, renovada, a escuta atenta dos
vaqueiros, fazem com que Urubùquaquá finalmente se ilumine
colocando em cena a vida, a vigília simbolizada por alethéia,
memória. A lembrança da viagem de Grivo convertida em poesia
retira de cena a imagem da morte, lethé, esquecimento, na qual vivia
o velho fazendeiro impotente, isolado em seu quarto. Na novela

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 183


Edinília Nascimento CRUZ

analisada temos a tentativa de Cara-de-Bronze de alargar a vida


triste recorrendo às memórias inventadas de Grivo. Os relatos da
memória, dos lugares percorridos e das experiências vividas
tornam-se componentes significativos na base estruturadora do
texto.

Referências

BLANCHOT, Maurice. L‘entretieninfini. Paris: Gallimard, 1969.

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai


Leskov. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

FANTINI, Marli. Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens. São Paulo:


SENAC; Cotia: Ateliê, 2008.

HALBWACHS, Maurice. Memória individual e memória coletiva. In: _______. A


Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares, Projeto


História. São Paulo: PUC, n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1991.

ROSA, João Guimarães. Corpo de Baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
2 v.

TORRANO, Jaa. O mundo como função de musas. In. : HESÍODO. A


Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 1995.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 184


PENSAMENTOS QUE CANTAM

Eduarda da SILVA
UFSC

Resumo: Poeta que conheceu o ―capitalismo em sua fase


computadorizada‖, Leminski habitou um espaço entre a poesia e a
prosa (romanesca e ensaística) experimentais, como ele mesmo
caracterizava, e desenvolveu uma poética do in-utensílio. A
consciência de que escrever literatura o inseria num domínio
específico, fez com que a atividade de crítica literária fosse mais
uma necessidade que uma opção. Nessa comunicação, procurei
expor uma leitura possível da função de tal atividade dentro da obra
do autor.

Palavras-chave: Paulo Leminski. Escritor-crítico. Crítica literária.


História literária.

O caráter inevitável que a atividade de crítica adquiriu na


obra do escritor curitibano deixou marcas nos seus escritos, como é
o caso do hibridismo: a ocorrência simultânea do poético e da
reflexão crítica em todos os gêneros em que Leminski se expressou.
Ele exercitou o raciocínio crítico, seu ―pensamento assistemático‖
(LEMINSKI, 1988, p. 284), em poemas, cartas, ensaios, biografias e
romances, deixando por todos os lados vestígios das leituras que
fez e que o impeliram ao trabalho, isto é, que serviram como
―modelo na organização de sua própria escrita‖ (SANTIAGO, 2000,
p. 20). Na coletânea mais completa de sua produção declaradamente
crítica, os Ensaios e anseios crípticos (editada pela Unicamp, em
2012), ele mesmo aponta a falta de ―homogeneidade teórica‖
(LEMINSKI, 2012, p. 18) dessa reunião de escritos. Em seus ensaios,
verdadeiros ―textos-ninjas‖, Leminski constrói uma escrita acessível,
didática e, ao mesmo tempo, crivada de referências. Diante disso, da
fragmentação e da assistematicidade, abordar suas reflexões
procurando identificar o que faz parte de discussões datadas e
aquilo que ainda é produtivo hoje é uma atitude profícua. Do

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Eduarda da SILVA

mesmo modo como o é realizar essa mesma operação,


reconhecendo em seu pensamento selvagem uma ―lógica
imaginativa‖ (VALERY, 1991, p. 163) conscientemente construída,
que possibilite o mapeamento de uma coerência interna dessas
reflexões (propositalmente?) dispersas. Tais atitudes orientaram o
desenvolvimento desta proposta de tema para discussão.
A ideia para o título desta comunicação, ―Pensamentos que
cantam‖, veio de um ensaio do Leminski que se chama ―Quando
cantam os pensamentos‖. Nesse ensaio, Leminski aponta para a
musicalidade existente na entonação de sentenças interrogativas.
Para explicar do que se trata, ele compara sentenças declarativas e
interrogativas. Na comparação, a dúvida acerca da realidade
(expressa através de perguntas) é atribuída à existência de uma
consciência; e, de acordo com a hipótese que guia o ensaio, quando
são utilizadas sentenças afirmativas, ao contrário, seria como se a
―realidade‖ dispensasse a existência anterior da consciência
humana, isso quer dizer, em outras palavras, que: ―É essa
capacidade de formular perguntas que funda o mundo humano. [...]
No perguntar, está o específico humano. E essa especificidade está
codificada materialmente, musicalmente, no aparato da língua.‖
(LEMINSKI, 2012, p. 81). Ele diz ainda que ―A interrogação [...] é o
próprio fundamento do diálogo, o reconhecimento da diferença
entre o eu, que eu sou, e o outro que o outro é, separados e
próximos pela prática da linguagem, hiato e poente.‖ (LEMINSKI,
2012, p. 83). Foi a partir dessa ideia de fundação, tanto da pergunta
como origem da consciência humana quanto do diálogo como a
instituição da diferença entre o ―eu‖ e o ―outro‖ – levando em conta,
claro, o papel imprescindível da linguagem em ambos os processos
–, que relacionei as proposições desse ensaio brevíssimo ao
exercício da crítica.
Costumo chamar de ensaio, o que Leminski declarou preferir
denominar ―texto-ninja‖. E esse é o hábito de muitos que estudam a
obra do poeta, provavelmente por conta do título dado ao livro que
reúne alguns de seus textos de reflexão crítica: Ensaios e Anseios
Crípticos. ―Ensaio‖, no entanto, parece ser uma denominação não
menos adequada para o gênero em que se expressa o perguntar de
Leminski, principalmente se considerarmos Montaigne, um dos
precursores do gênero, nomeado seu criador. Para pensar essa
relação, destaco duas observações feitas por Auerbach na
apresentação dos Ensaios de Montaigne: a primeira diz respeito à
peculiaridade do gênero, situado entre o artístico e o didático; a
segunda diz respeito à gênese de um ―novo tipo de homem‖ que se
fez possível a partir dessa forma discursiva.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 186


Pensamentos que cantam

De acordo com Auerbach (2003, p. 12), as reflexões de


Montaigne

Não são de um gênero propriamente artístico, pois não


se trata de poesia, e o objeto é muito próximo e
concreto para que o efeito possa permanecer puramente
estético. Mas seu caráter também não é apenas didático,
uma vez que conservam sua validade ainda que se tenha
uma opinião diversa.
Esse mesmo movimento pode ser apontado nos textos de
Leminski, verdadeiros protótipos experimentais de gênero textual:
brevíssimos, saturados de informação, coloquiais, eruditos,
criativos. São, geralmente, instantes de informação condensada,
moldados por duas obsessões: ―a fixação doentia na ideia de
inovação e a (não menos doentia) angústia quanto à comunicação‖
(LEMINSKI, 2012, p. 18). ―Inovação‖ e ―comunicação‖ são vocábulos
frequentes nas reflexões de Leminski sobre o fazer literário. Em
uma carta a Régis Bonvicino, em 1979, ele deixa isso explícito ao
escrever assim: ―quero ser claro. quero ser comunicação. banal –
NUNCA! óbvio – JAMAIS!‖(LEMINSKI, 1999, p. 149). Em Leminski, o
novo não é hermético, ele se abre à compreensão, à leitura e à
interpretação. Essa busca pelo novo e por comunicar é matéria para
criação e para reflexão, e a reflexão é também exercício de escrita e,
portanto, criação.
De um lado o ser do texto, de outro o ser daquele que
escreve. ―A pessoa de Montaigne‖, segundo Auerbach (2003, p. 22),
―prestava-se a criar um novo tipo de homem: em lugar do cristão
crente, cético ou rebelde, o honnête homme que observa todos os
preceitos e abandona as coisas a si mesmas.‖ Aproximar essa figura
da figura leminskiana parece também oferecer subsídios para
considerar sua postura de escritor-crítico. Em ―Poesia: a paixão da
linguagem‖, um texto apresentado durante um curso livre oferecido
pela Funarte em 1985, Leminski definiu a si mesmo dizendo:

Não sou professor, não sou nenhum teórico, sou um


artista, um poeta que procurava refletir sobre o que fez,
mas nunca deixei que esse meu tesão por refletir sobre
o que eu faço prevalecesse. Não sou teórico no sentido
que a universidade entende. Sou uma espécie de
pensador selvagem, assim, no sentido em que se fala de
capitalismo selvagem, não pode ser canalizado por
programas, por roteiros, tem que ser mais ou menos nos
caminhos da paixão. (LEMINSKI, 1988, p. 284, grifo
nosso)

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 187


Eduarda da SILVA

Nos caminhos da paixão. ―Estar em viagem, a caminho – esse


é o sentimento que jamais deve tê-lo abandonado, e desse terreno
nascem as palavras que resumem toda a sua obra: Não pinto o ser,
pinto a passagem.‖, acabo de citar Auerbach (2003, p. 17) sobre
Montaigne. Pensar o estatuto do ensaio enquanto gênero, aponta
caminhos que permitem (ou permitiram a mim, pelo menos) a
circulação por entre as reflexões críticas do poeta curitibano de
forma mais produtiva. Explico: quando me propus pensar o escritor-
crítico Leminski, tinha, apesar de todas as ressalvas que uma
incursão ao ―pensamento‖ de um escritor requer, isto é, apesar de
entender que os índices possíveis de serem apreendidos nos ensaios
provavelmente levassem a inúmeras conclusões – todas legítimas
por mais contraditórias que pudessem parecer –, eu tinha a intenção
de separar as reflexões que permaneceram em sua obra como
norteadoras de sua escrita daquelas que estariam à margem de uma
espécie de projeto de obra total. Como se fosse possível delimitar
uma linha mais ou menos definida de uma poética.
Pensar a atividade da crítica como o pintar a passagem, por
outro lado, é reconhecer que cada texto-ninja é um fragmento de
algo inacabado, uma fotografia tirada de algo em movimento, um
recorte que apenas indica aquilo de que pode fazer parte. Não é
possível reconstruir o todo nem mesmo a partir da junção de todos
os fragmentos existentes. Não existe todo, ele é inapreensível. 1
Ao tratar do ―Ensaio como forma‖, Theodor Adorno, assim
como Auerbach, situa o gênero entre a expressão artística e as
atividades do conhecimento. Adorno afirma:

Em vez de alcançar algo cientificamente ou criar


artisticamente alguma coisa, seus esforços [os esforços
de quem escreve um ensaio] ainda espelham a
disponibilidade de quem, como uma criança, não tem
vergonha de se entusiasmar com o que os outros já
fizeram. O ensaio reflete o que é amado e odiado, em
vez de conceber o espírito como uma criação a partir do
nada, segundo o modelo de uma irrestrita moral do
trabalho. Felicidade e jogo lhe são essenciais. [...] Seus
preceitos não são construídos a partir de um princípio
primeiro, nem convergem para um fim último.
(ADORNO, 2003, p. 16)

1
Essa atitude de leitura parece estar de acordo com a postura de escritor-
crítico depreendida em Leminski, conforme apontado mais adiante.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 188
Pensamentos que cantam

Leminski escreve sobre literatura, história, cultura,


linguagem. Nem de longe aborda assuntos inéditos, deixa-se
surpreender pelas estratégias elaboradas por outros antes dele e as
exalta. Leminski escreve sobre o que lê, sobre aquilo que o afeta,
aquilo que lhe causa afecção e afeição. Se retomarmos a já batida
etimologia, ler (do latim legere) é também
escolher/selecionar/eleger. Na sua atividade de crítica, elege
autores, obras, procedimentos.
No que diz respeito aos objetos de inquirição de Leminski,
Maria Esther Maciel, em um texto de 2004, ―Nos ritmos da matéria‖,
comenta:

O presente sempre foi a matéria-prima da poesia de


Paulo Leminski. Não um presente em que se elidem
passado e futuro, mas um ponto móvel de confluências
temporais. Onde a memória do mundo se inscreve e se
dissolve, em interseção com o registro imediato da vida
cotidiana. Onde tradições e dicções distintas se
encontram, se negam e se afirmam em pluralidade.
(MACIEL, 2004, p. 171)

Essa pluralidade foi reconhecida também em sua atividade


como crítico pelo próprio Leminski num dos textos que abrem a
coletânea mais recente de seus ensaios; nessa espécie de introdução,
ele afirma: ―Não me interessou mostrar apenas um estágio
determinado de homogeneidade teórica. Preferi apresentar, no
espaçotempo de um só livro, o panorama de um pensamento
mudando.‖ (LEMINSKI, 2012, p. 18). Há um perceptível desapego por
qualquer noção de progresso, aperfeiçoamento ou noção afim.
Apesar disso, a postura adotada por Leminski ao assumir-se
como crítico reconhece alguns tópicos recorrentes, como é o caso da
―ideia de inovação‖, da ―angústia quanto à comunicação‖ e do
―conflito [ou a passagem] entre uma visão utilitária e uma visão
inutilitária da arte e do fazer poético‖ (LEMINSKI, 2012, p. 18). Mas
tal postura declara-se descomprometida com a construção de uma
totalidade ou de uma síntese uniforme. Isto é, reconhece esses
tópicos como algo residual que o acompanha enquanto preocupação
e está a todo momento ainda a se definir.
A hipótese de leitura que proponho considera que a crítica,
para Leminski, é uma maneira de fazer história literária. É uma
forma de procurar entender a que pontos sua própria produção está
conectada. De que forma seu discurso poético recupera, ou
reverbera, sobrevivências do passado, ao mesmo tempo que

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 189


Eduarda da SILVA

constrói um futuro e questiona a própria permanência. E, claro,


penso discurso poético não apenas como os textos declaradamente
literários de Leminski, as concepções de literatura e de linguagem
literária são também discurso poético, nesse caso.
O sentido de recuperação pelo afeto, mencionado
anteriormente, marcou toda a escrita deste texto apresentado ao
grupo temático. Talvez porque título do volume de textos de crítica
seja extremamente provocativo: Ensaios e anseios crípticos. É uma
junção de vocábulos que coloca em questão o conteúdo reunido sob
esses signos: tais textos são, primeiro, ―ensaios‖, treinos, isto é,
experimentos ou textos literários/científicos sobre assuntos
diversos; são, em segundo lugar, ―anseios‖, estados de aflição de um
escritor desejoso; e são, terceiro, ―crípticos‖, possuem sentidos
ocultos, criptografados, ou provêm de criptas, foram exumados
(recuperados) e podem ser encontrados novamente a circular entre
os vivos.
Um texto específico ficou ecoando durante estas reflexões: o
ensaio intitulado ―Information Retrieval: a recuperação da
informação‖. Principalmente quando se assinala o compromisso de
Leminski com inovação e comunicação em sua atividade criativa e
reflexiva.
Com as linhas quebradas antes do fim da página,
―Information retrieval‖ tem a aparência de um poema e de uma lista.
A maneira como está escrito imprime velocidade no ritmo de leitura.
Dá também ideia de sequência e progressão, ao mesmo tempo que
semanticamente percebe-se a manutenção do assunto. Como tema,
traz o aparente paradoxo de uma preocupação da vanguarda (nesse
caso, os criadores da poesia concreta no Brasil) com o passado.
Aborda conceitos de criação, crítica e tradução como campos de
atuação da vanguarda no processo de recuperação da informação e
produção de informação nova. Defende a ideia de que a vanguarda
não é incompatível com o passado.

querem prova maior que a vanguarda informada


NÃO se incompatibiliza com o já-feito
ao contrário
tem melhores condições
de descobrir neles
o que têm de perene
de permanentemente NOVO?
A recuperação da informação
pode exercer o papel
de produção da informação nova (LEMINSKI, 2012, p.
360)
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 190
Pensamentos que cantam

E essa é a ideia central: uma vanguarda artística, para


cumprir seu compromisso com o novo e o futuro, preocupa-se com
o passado. Uma justificativa é apontada: a informação nova só é
possível:
só é reconhecível
contra um pano de fundo de REDUNDÂNCIAS
repetições
diluições
explicações
aumento de quantidade
no fino da informação nova
diminuição no teor da inovação (LEMINSKI, 2012, p. 364)

A informação nova só existe e só pode ser assimilada a partir


da redundância. Para produzir a redundância: recupera-se
informação, retoma-se o passado, (re)avaliando-o (através de
ensaios), colocando-o novamente em circulação (através de
traduções).
A concepção de um processo constante transforma o ensaio.
―Pintar a passagem‖. O exercício da crítica é a música do
pensamento: é a interrogação. É a instituição do diálogo entre o
poeta e o percurso em que ele se inscreve. É o reconhecimento da
impossibilidade da repetição e ao mesmo tempo a consciência de
que existe algo que sobrevive, permanece, influencia, interfere
naquilo que constitui matéria-prima da poesia; algo que é
proveniente do que é lido, vivido e experienciado. O exercício da
crítica, além de ser interrogação, busca por individualidade e
reconhecimento de alteridade, é o abandono das coisas a si mesmas,
é uma busca pela compreensão expandida, uma compreensão que
não se fecha, que não acomoda aquilo em que se demora o
pensamento a um repertório conhecido. É sempre a tentativa de
estender mais esse repertório, é criação.
Quer dizer, ao ler os ensaios de Leminski, vejo um trabalho
de investigação da história literária cujo objetivo não é construir
uma cronologia, nem selecionar e classificar monumentos e heróis
literários. O trabalho de crítica, para Leminski, e a sua postura
diante de seus textos reunidos, demonstra isso: ele não visa
estabelecer uma noção de progresso de seu pensamento, de
amadurecimento, de melhoramento, de evolução. Seus ensaios são
uma mostra de que a verdade sempre escapa, reconhecem que a
atividade de crítico é necessária porque esse presente que constitui
matéria-prima para sua criação está em constante atualização.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 191


Eduarda da SILVA

Uma imagem para ilustrar esse entendimento poderia ser a


criada por Leminski nesse mesmo ensaio; 2 a certa altura, ele coloca
no papel dois sintagmas: ―cadeia de markoff‖, ―série estocástica‖.
Para dizer que a vanguarda – os verdadeiros inventores3 – realizam
um movimento de ―aproximações (contemporâneas) / a um possível
(passado)‖. A imagem da cadeia de Markov traz um conceito
matemático para pensar uma atitude diante do fazer artístico e
poético que foi considerada produtiva pelo poeta. Na teoria das
probabilidades, uma cadeia de Markov é um conjunto de variáveis
aleatórias que representam a evolução de um sistema de valores
com o tempo. O que acontece em uma série estocástica é a
indeterminação do modo de evolução do sistema que ela compõe,
isso significa que o conhecimento da condição inicial de tal sistema
não garante que seja possível prever as direções nas quais o
processo pode evoluir, pois elas são várias, poder-se-ia dizer que
infinitas.
A inserção desses sintagmas no texto de Leminski torna
possível uma analogia: a vanguarda4 é o resultado de uma série
estocástica, e sua produção, o conjunto de sua obra (seus estudos
críticos, traduções e obras literárias), nada mais que a realização de
uma combinação de fatores dentre tantas outras possíveis. A criação
artística, a produção de material novo, seria, na verdade, sempre
uma reaparição do passado. Não existe nada que se produza no
presente que possa caracterizá-lo como uma progressão, no sentido
de um melhoramento, da ―cadeia produtiva‖ da arte.
A defesa do trabalho executado pelos concretos dentro do
contexto da literatura brasileira que Leminski elabora nesse texto
aproxima o escritor curitibano da compreensão de Benjamin do que
é uma apresentação crítica da história. 5 Tal relação pode ser
entendida ao compararmos dois excertos:

2
O ―Information Retrieval‖.
3
Denominação utilizada por Leminski com clara referência a Ezra Pound.
4
E/ou um sistema de valor vigente.
5
O conceito de apresentação crítica da história a que me refiro é o que
aparece no livro Passagens, de Walter Benjamin, um arquivo composto por
4234 fragmentos. Oexcerto aqui reproduzido faz parte da seção ―N [Teoria
do Conhecimento, Teoria do Progresso]‖ – particularmente importante para
se pensar a conceituação de ―imagem dialética‖. As ―imagens‖ mencionadas
seriam os objetos históricos, construídos por meio dessa apresentação
crítica.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 192
Pensamentos que cantam

O índice histórico das imagens diz, pois, não apenas que


elas pertencem a uma determinada época, mas,
sobretudo, que elas só se tornam legíveis numa
determinada época. E atingir essa ―legibilidade‖ constitui
um determinado ponto crítico específico do movimento
em seu interior. Todo presente é determinado por
aquelas imagens que lhe são sincrônicas: cada agora é
um agora de determinada cognoscibilidade. (BENJAMIN,
2008, p. 504)

a maior parte
só gosta do que já conhece

também faz parte desta tarefa


de gerar redundância
aumentar o território de legibilidade
ampliar o número de leitores
tornar compreensíveis
coisas até então incompreensíveis (LEMINSKI, 2012, p.
364)

O ponto em comum desses dois excertos diz respeito à


concepção de legibilidade como elemento constituidor de realidade.
Para Benjamin, da história geral; para Leminski, da literatura. Assim
como o trabalho do historiador é associado à rememoração no texto
benjaminiano, Leminski vê na crítica literária produzida pelos
concretos uma contribuição para a ―MEMÓRIA NACIONAL‖
(LEMINSKI, 2012, p. 366).
A esse elogio da ―re-avaliação‖ (dos escritos do passado) e da
recuperação da informação por meio da atribuição de legibilidade a
determinados textos (ou tradução) relaciono a proposta
metodológica de Benjamin para a escrita de seu livro, a qual poderia
ser assim descrita: abandonar a tendência às dicotomias –
principalmente no que se refere à divisão em aspectos positivos e
negativos para a caracterização de determinada época – e promover
uma ―apocatástase histórica‖6 (BENJAMIN, 2008, p. 501). Em outras
palavras, quando encaradas como o compromisso ―[d]os
verdadeiros inventores‖ de cada época, ―re-avaliação‖, repescagem,

6
A nota ao texto benjaminiano define a expressão ―apocatástase‖ como ―a
admissão de todas as almas no Paraíso‖.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 193
Eduarda da SILVA

recuperação, ―re-descoberta‖ são também parte daquilo que constrói


um paideuma, cujo conceito, conforme Leminski (2012, p. 361),
―envolve a noção de uma tradição viva / de produção nova‖, que
ocorre continuamente ao longo dos séculos. Levado ao limite, esse
movimento resultaria na construção de legibilidade para tudo o que
já foi escrito ou, de modo análogo à expressão utilizada por
Benjamin, em uma apocatástase literária.
Esse limite hipotético, no entanto – assim como o conceito
matemático, jamais alcançável7 – não é o mesmo que a assimilação
acrítica de tudo o que já foi escrito, mas sempre ―O CORTE PARA
ACHAR O FILÃO‖ (LEMINSKI, 2012, p. 361). Num movimento de
renovação (atualização):

esse processo de ―recuperação da informação‖


àlarecherche de
fundando um PAIDEUMA
(linhagem de radicalidades)
guarda semelhanças
com o conceito cibernético
de ―feed-back‖ (= retro-alimentação)

―feed-back‖
é o contra-efeito
do efeito sobre a causa
a reação
aretro-ação (LEMINSKI, p. 362)

Para Leminski: ―é sempre o futuro / que faz o passado‖


(LEMINSKI, 2012, p. 363). É a crítica de cada época – e
individualmente cada escritor-crítico – que vai determinar o
―território cultural‖ sobre o qual estabelecerá suas bases. Nisso, o
caráter imprescindível da atividade crítica.

7
Cf. A definição de ―limite‖ encontrada no dicionário Aulete ―Mat. Valor fixo
do qual uma grandeza variável se pode aproximar sucessivamente, sem
jamais o igualar‖.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 194
Pensamentos que cantam

Referências

ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: ______. Notas de literatura I.


Tradução e apresentação de Jorge de Almeida. São Paulo: Editora 34, 2003.
p. 15-45.

AUERBACH, Erich. O escritor Montaigne. In: MONTAIGNE, Michel de. Os


ensaios: uma seleção. Organização de M. A. Screech. Tradução e notas de
Rosa Freire d‘Aguiar. São Paulo: Companhia da Letras/PenguinGroup, 2010.
p. 9-22.

BENJAMIN, Walter.N [Teoria do Conhecimento, Teoria do Progresso]. In:


______.Passagens. Organizaçãode WilliBolle. Tradução de Irene Aron et al.
Belo Horizonte/São Paulo: UFMG/Imprensa Oficial, 2008. p. 499-530.

LEMINSKI, Paulo. Teses, tesões. In: ______. Ensaios e anseios crípticos.


Campinas: Editora Unicamp, 2012. p. 15-18.

______.Informationretrieval: a recuperação da informação. In: ______.Ensaios


e anseios crípticos. Campinas: Editora Unicamp, 2012. p. 359-368.

______. Poesia: a paixão da linguagem. In: NOVAES, Adauto (Org.). Os


sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 283-306.

LEMINSKI, Paulo. [Carta 51]. In: BONVICINO, Regis (Org.). Envie meu
dicionário: cartas e alguma crítica. São Paulo: Editora 34, 1999. p. 148-149.

SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In:_____.


Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 9-26.

VALERY, Paul. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. In: ______.


Variedades.Organização e introdução João Alexandre Barbosa. Tradução
Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1991.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 195


A VARIAÇÃO LEXICAL NO DISCURSO
METALINGUÍSTICO: O CASO DO “DICCIONARIO DA
LINGUA BRASILEIRA”, DE LUIZ MARIA DA SILVA
PINTO

Estefânia Cristina da Costa MENDES


UFOP

Resumo: Considerando a importância do discurso metalinguístico


para a investigação da variação lexical, este artigo mostra alguns
resultados de breve análise desse fenômeno no ―Diccionario da
Lingua Brasileira‖, de Luiz Maria da Silva Pinto. Esse dicionário foi
supostamente escrito, editado e impresso no Brasil, mais
precisamente em Ouro Preto-MG, em 1832. Elencaram-se,
principalmente, possíveis exemplos de variação diacrônica e
diastrática, ratificando que os dicionários podem ser base de dados
fundamental para o reconhecimento da memória histórica da língua.
Esses dados mostram-se relevantes tanto para a historiografia do
discurso metalinguístico no que diz respeito à variação lexical
quanto para a história do léxico.

Palavras-chave: Variação lexical; Discurso metalinguístico;


Diccionario da Lingua Brasileira.

1. O discurso metalinguístico e a variação linguística

A palavra1 ―dicionário‖, segundo Cunha (2007, p. 263), tem

1
Neste trabalho, não entraremos na discussão das diferenças entre
―palavras‖, ―termos‖, ―itens lexicais‖ etc. Optaremos, no entanto, com mais
frequência, pelo uso de ―lexia‖ – forma mais simples, genérica e sem muitas
complicações semânticas – para nos referirmos à unidade linguística que
compõe o léxico de uma língua.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
A variação lexical no discurso metalinguístico

sua origem provavelmente do francês dictionnaire, derivado do


latim medieval dictiōnārĭum, de dictĭo-ōnis, ou seja, livro de
dictiones, ―livro de expressões e palavras‖. O dicionário é visto
geralmente como um objeto de consulta, como uma obra de
referência à disposição dos leitores nos momentos de dúvida e de
desejo de saber.
Nunes (2006) aponta que
por consistir em um espaço imaginário de certitude,
sustentado pela acumulação e pela repetição, [...]
constitui um rico material para análise dos modos de
dizer de uma sociedade e os discursos em circulação em
certas conjunturas históricas. Nele as significações não
são aquelas que se singularizam em um texto tomado
isoladamente, mas sim as que se sedimentam e que se
apresentam traços significativos de uma época. (NUNES,
2006, p. 11)

Dessa forma, o dicionário alcança o estatuto de um código


normativo que define parâmetros orientadores dos usos lexicais.
Segundo Krieger et al. (2006), o dicionário de língua – a mais
prototípica das obras lexicográficas – constitui-se no único lugar
que reúne, de modo sistemático, o conjunto dos itens lexicais
criados e utilizados por uma comunidade linguística, permitindo
que ela reconheça-se em sua história e em sua cultura. Além de se
constituir em espelho da memória social da língua, o dicionário
desempenha o papel de legitimar o léxico2.
Biderman (2001) caracteriza o léxico de uma língua natural
como patrimônio vocabular de uma dada comunidade linguística ao
longo da sua história. As mudanças sociais, culturais, técnico-
científicas entre outras acarretam alterações nos usos vocabulares.
Além de receber neologismos, de poder resgatar termos para
voltarem à circulação com a mesma e com diferentes denotações, o
léxico de uma língua ainda pode ter palavras marginalizadas, outras
que entram em desuso ou que desaparecem. A criatividade lexical

2
Embora seja marcado pelo lugar da certeza, fonte na qual as dúvidas
podem ser sanadas, o dicionário deve ser reconhecido também como um
instrumento em funcionamento, sujeito a transformações, deslocamentos, e
até falhas na produção dos sentidos. Os sentidos podem mudar com o
passar do tempo, provocando diferentes reações.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 197
Estefânia Cristina da Costa MENDES

dos falantes possibilita que eles criem e recriem de acordo com suas
necessidades sociointeracionais.
Sendo assim, espera-se que nos dicionários encontremos
marcas de variação linguística, uma vez que as obras lexicográficas
convertem-se num importante testemunho da constituição histórica
do léxico, bem como da identidade linguístico-cultural das
comunidades, conforme Krieger et al. (2006).
Embora a variação linguística só tenha ganhado maior
destaque por meio dos estudos desenvolvidos por Labov, no início
da década de 60 do século passado, não se pode negar que o
fenômeno tenha passado despercebido até então.
Gonçalves (2007), por exemplo, mostra, no âmbito da
(meta)lexicologia e da (meta)lexicografia, que a variação lexical
configura-se como tema recorrente no discurso metalinguístico do
século XVIII. Segundo a autora,

Se até meados do século a variação surgia aos olhos dos


setecentistas como factor perturbador da
homogeneidade inerente à normalização e codificação
linguísticas, já no último quartel do século, a variação
diacrónica passava a ser vista como elemento
favorecedor da decadência linguística, porquanto as
mudanças e a proliferação de usos haviam acarretado
para a língua muitas palavras e construções prejudiciais
à sua vernaculidade e pureza. (GONÇALVES, 2007, p. 67-
68)

Compartilhando o reconhecimento da importância do


discurso metalinguístico para a investigação da variação lexical,
propusemos investigar esse fenômeno no ―Diccionario da Lingua
Brasileira‖, de Luiz Maria da Silva Pinto, obra sobre a qual
discorremos na próxima seção.

2. O Diccionario da Lingua Brasileira (DLB)

A Lexicografia é conhecida como a ciência dos dicionários.


Biderman (2001) relata que essa, assim como a Lexicologia, é uma
atividade antiga e tradicional, iniciando-se nos princípios dos
tempos modernos. A autora ressalta que, embora tivesse
precursores nos glossários latinos medievais, essas obras não
passavam de listas de palavras explicativas para auxiliar o leitor de
textos da antiguidade clássica e da Bíblia na sua interpretação.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 198


A variação lexical no discurso metalinguístico

Biderman (2001) aponta como início da Lexicografia os séculos XVI e


XVII, com a elaboração dos primeiros dicionários monolíngues e
bilíngues (latim e uma língua moderna). O ―Vocabulario Portuguez e
Latino‖, de Raphael Bluteau (1712-1728)3, e o ―Diccionario da Lingua
Portugueza‖, de Antonio de Moraes Silva (1789)4, são citados por ela
como os primeiros dicionários em língua portuguesa dignos do
nome.
Murakawa (2012) reforça a importância das obras de Bluteau
e Moraes:

Para quem se dedica à metalexicografia portuguesa é


imprescindível o conhecimento das obras lexicográficas
produzidas por esses dois dicionaristas, pois elas
fornecem um importante material sobre o estado da
língua em outras épocas, em seus aspectos fonético,
fonológico, morfológico, sintático e semântico. Para
além disso, apresentam uma prática lexicográfica que se
transmitiu aos dicionaristas dos séculos subsequentes.
(MURAKAWA, 2012, p. 315)

No século XIX, surge o ―Diccionario da Lingua Brasileira‖


(DLB), obra lexicográfica supostamente escrita, editada e impressa
no Brasil. Isso ocorreu na Antiga Vila Rica, atual Ouro Preto – MG,

3
Segundo Biderman (2003), o dicionário bilíngue produzido por Bluteau
privilegia o português e deixa o latim em segundo plano, sendo uma obra
com características enciclopédicas, composta por 10 volumes – sendo dois
suplementos compostos por verbetes novos e também por informações
adicionais a verbetes existentes – com informações sobre as coisas e o
mundo, incluindo as abonações.
4
Considerado pelos lexicógrafos uma obra fundadora da lexicografia de
língua portuguesa, serviu de base para a confecção de outros dicionários
em Portugal e no Brasil. Nessa obra, inicia-se a inserção de palavras
tipicamente brasileiras, embora essa prática fosse ainda distante da
realidade da época. Firmou-se como importante referência no século XIX e
até no XX. Moraes Silva tomou por base o ―Vocabulario Portuguez e
Latino‖,de Raphael Bluteau,e resumiu os oito volumes daquele a apenas
dois, mantendo a orientação de seu antecessor de exaltar os grandes
autores de língua portuguesa. A obra teve oito reedições ainda no século
XIX. Moraes só insere seu nome como autor do dicionário na edição de
1813, já que a primeira, de 1789, seria apenas um resumo do ―Vocabulario
Portuguez e Latino‖ de Bluteau.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 199
Estefânia Cristina da Costa MENDES

em 1832, na ―Typographia de Silva‖, pertencente ao autor, Luiz


Maria da Silva Pinto.
Sobre o DLB, Hallewell (2005) expõe:

O primeiro livro que sabemos ter sido impresso em


Ouro Preto, após 1807, foi uma coleção das Leis do
Imperio do Brasil, publicada em 1833, por um impressor
chamado Silva. No entanto, o Atlas Cultural do Brasil
(dirigido por Arthur Cezar Ferreira Reis, Brasília,
Fename, 1972) cita a impressão, em 1832, do DLB, por
Luiz Maria da Silva Pinto. (HALLEWELL, 2005, p. 129)

Além do DLB, a Typographia de Silva também publicou


documentos oficiais do Governo.
Silva Pinto nasceu em Pilar de Goiás, em 15 de março de
1775 e faleceu em 20 de dezembro de 1869, na antiga Vila Rica,
hoje Ouro Preto, aos 94 anos de idade.
De acordo com a Academia Goiana de Letras, o autor, após
passar a infância em sua terra natal, seguiu com a mãe e a irmã para
Vila Rica, onde foi batizado por Tomás Antônio Gonzaga. Além de
se dedicar a vários cargos políticos durante sua vida, Silva Pinto
também trabalhou com a arte de imprimir.
O DLB é um dicionário monolíngue, portátil, criado com a
proposta de facilitar o manuseio e de garantir um preço mais
acessível. Podemos extrair essas informações no prefácio do
dicionário. O próprio Silva Pinto reconheceu a raridade de
dicionários no nosso idioma, embora houvesse outras edições, como
a de Antonio de Moraes Silva. Nunes (2006) ratifica Silva Pinto
quando ressalta que este tipo de obra é relativamente recente na
nossa cultura:

[...] os dicionários monolíngues que visam ao


aprendizado da língua materna são relativamente
recentes, datando do século XVI, momento em que se
formam os estados nacionais. Foram necessários,
portanto, muitos séculos para se chegar à concepção
moderna do dicionário como instrumento que se utiliza
para (re) conhecer a própria língua. (NUNES, 2006, p. 12)

O DLB é um dicionário semasiológico, ou seja, parte do


significante para se chegar ao significado ou a um conceito. Na
organização dos verbetes, Silva Pinto insere ao lado de cada entrada

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 200


A variação lexical no discurso metalinguístico

a classe gramatical a que pertence a lexia; em seguida, acrescenta a


definição de forma mais objetiva se compararmos com autores
anteriores como Moraes Silva, no seu ―Diccionario da Lingua
Portugueza‖. Silva Pinto praticamente não utiliza exemplos para
ilustrar as definições como alguns autores faziam e ainda fazem.
Registra os diferentes níveis de linguagem especificando
quando é vulgar, baixo, plebeu, familiar, palavra antiquada etc. No
entanto, o dicionarista não justifica o emprego dessa nomenclatura;
não deixa claro o que considera um termo antiquado, por exemplo.
Essas especificações, porém, podem se configurar como indícios da
variação diastrática, como veremos na seção 3.2, revelando, assim,
sua funcionalidade.
Silva Pinto identifica ainda terminologias científicas5 da área
jurídica, da médica, da militar, entre outras, mas podemos observar
que não há um rigor metodológico no emprego desses recursos, fato
compreensível, no entanto, uma vez que a ciência lexicográfica não
havia se consolidado nessa época6.
3. A variação lexical no DLB

Evidentemente, o DLB não é capaz de fornecer um quadro


completo dos problemas suscitados pelo fenômeno da variação. Isso
pode ser justificado por meio da citação de Gonçalves (2007) a
seguir:

em Setecentos a produção metalinguística pauta-se toda


ela pelo desígnio normativista, porque, ainda quando
aparenta descrever os usos em toda a sua variedade,
seja ela diatópica, diastrática ou diafásica, sempre os
dados linguísticos são submetidos ao crivo que os

5
Botelho (2011) e Costa (2014), por exemplo, analisaram a terminologia
náutica e a terminologia de ourivesaria, respectivamente, no DLB.
6
Segundo Heinrich (2007), a elaboração de um dicionário resultava de um
labor árduo e demorado, exigindo muito conhecimento da língua: cada
autor descrevia e registrava o léxico de acordo com sua ciência e
informação. A fase teórica da Lexicografia, continua a autora, foi
impulsionada no século XX, devido ao advento da Linguística. Em torno dos
anos 60, surge a Lexicografia Teórica, categorizada como um ramo da
Linguística Aplicada, fato que fez com que o fazer lexicográfico ganhasse
em qualidade ao se orientar por um paradigma teórico-metodológico
pertinente para o propósito desse fazer.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 201
Estefânia Cristina da Costa MENDES

classifica, hierarquiza, circunscreve, repudia ou aprova


em função das condições de uso geral ou particular,
social ou cultural, sincrónico ou diacrónico.
(GONÇALVES, 2007, p. 52)

Embora enfoque o contexto do estudo das obras


setecentistas, pode-se dizer que essa afirmação é válida também
para outras conjunturas, inclusive para a do século XIX, quando o
DLB, obra analisada neste trabalho, foi publicado. A própria escolha
das lexias que comporão o dicionário não é um ato isento; também,
muito do que será retratado ali carrega opiniões e valores,
individuais ou coletivos, misturados às definições. Na seção 3.3, é
possível identificar um exemplo claro disso por meio da definição
dada por Silva Pinto a ―ateísmo‖.
No entanto, ainda segundo Gonçalves (2007), ―graças a esse
tipo de exercício taxinómico tem-se hoje uma percepção da
dinâmica em curso, tanto no próprio sistema lexical quanto na
construção do discurso metalinguístico acerca do léxico‖
(GONÇALVES, 2007, p. 52). Sendo assim, as obras lexicográficas
suscitam, sim, interesse sociolinguístico. No DLB isso fica evidente,
entre outros fatores, pelo fato de as soluções gráficas e a
organização do texto dadas pelo dicionarista garantirem vários
dados sobre a diversificação da língua portuguesa no Brasil.
São vários os dados arrolados do DLB que permitem
caracterizar o discurso sobre a variação lexical no século XIX; entre
eles, destacaremos o eixo diacrônico e o eixo social.

3.1 Eixo diacrônico (palavras antigas e antiquadas)

Integrada na discussão da variação em geral, aponta


Gonçalves (2007), a questão das palavras antigas ou antiquadas
(arcaísmos) revela a consciência e a formalização paulatina das
diferenças sociolinguísticas no plano lexical, consideradas tanto
sincrônica como diacronicamente. Citando duas obras lexicográficas
de referência do século XVIII para elucidar as lexias ―antigo‖,
―antiquado‖ e ―arcaísmo‖, Gonçalves (2007) expõe definições de
Bluteau: ―‗antigo‘ era sinónimo de ‗velho‘ (BLUTEAU, 1712, p. 404),
enquanto que ‗antiquado‘ era perifrasticamente definido como
‗cousa, que já naõ está em uso‘, fazendo ainda menção às ‗palavras
antiquadas‘ (BLUTEAU, 1712, p. 410)‖ (GONÇALVES, 2007, p. 48).
Ainda, nas palavras de Gonçalves (2007, p. 48), para Moraes Silva

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 202


A variação lexical no discurso metalinguístico

―‗antigo‘ como antónimo de ‗moderno, recente, novo‘; ‗antiquado‘ e


o verbo ‗antiquar‘ eram ali equivalentes de ‗pòr em desuso‘, ‗cahir
em desuso‘ (SILVA, 1789, p. 89)‖.
Dos dois lexicógrafos, segundo a autora (2007, p. 48), apenas
o segundo regista ―arcaísmo‖, ―definido como ‗antigualha nas
palavras, ou frazes desusadas‘, ilustradas nos exemplos ‗affeito,
adur, outri, alhur, ende‘ (SILVA, 1789, p. 108) e, do mesmo modo, só
Moraes Silva recorre à marcação lexicográfica da informação
diacrónica por meio das abreviaturas ‗ant.‘ e ‗antiq.‘ (GONÇALVES,
2007, p. 48)‖.
Ao consultarmos o DLB, verificamos que, para Silva Pinto,
―antigo‖ também era sinônimo de ―velho‖ (SILVA PINTO, 1832, p.
92); não há entrada para ―antiquado‖, mas para ―antiquar‖ e
―antiquar-se‖, significando ―pòr em desuso‖, ―cahir em desuso‖
(SILVA PINTO, 1832, p. 93), mesma definição de Silva. Finalmente,
―arcaísmo‖ é definido como ―antigualha nas palavras, ou expressões
desusadas‖ (SILVA PINTO, 1832, p. 103), praticamente a mesma
definição dada por Moraes Silva.
Assim como Moraes Silva (1789), Silva Pinto (1832) recorre à
marcação lexicográfica da informação diacrônica por meio das
abreviaturas ―antiq.‖, ―T. antiquado‖; além disso, o autor do DLB
sinaliza com um ―*‖ as palavras que em sua ótica também são
antiquadas. A classificação ―desusado‖ também identifica esses
termos.
O Quadro 1 abaixo é composto por lexias7 consideradas
antiquadas (arcaísmos) por Silva Pinto.

7
A coleta desses itens lexicais foi feita aleatoriamente, objetivando apenas
ilustrar cada caso aqui analisado.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 203
Estefânia Cristina da Costa MENDES

Quadro1 – Exemplos de lexias antiquadas (arcaísmos) do DLB


LEXIAS ACEPÇÃO8
s. m. antiq. Aspecto. Asperamente, adv. com aspereza.
*Aspeito
(p. 113)
v. a. Metter çapatos, meias, calções, luvas a si, ou a
alguem. Dar calçado. Por calce.
Calçar
Fazer pavimento de pedra. V. n. Ter-se em conta. (T.
antiquado) Ganhar. (p. 184)
Adnanar v a. Despachar na alfandega. Desusado. (p. 32)
s. m. desusado. Reprehnsão merecida por alguem. (p.
Blasmo
156)
Extravagantemente adv. De hum modo extravagante, desusado. (p. 498)
por Enfeitar, e Affectar.
*Affeitar
Affeito por Affecto. (p. 36)
adj. Sem cabello. Incarnação, Incarnar. Melhor que
*Incapillato
encarnação, etc. (p. 604)
He o mesmo que dizer delle, della, deles, dellas, disso.
*Ende
(p. 417)
*Salvante Como adv. Excepto. (p. 961)

*Trufar v. n. por gracejar. (p. 1074)

8
Neste trabalho, apesar de termos uma fonte impressa, tomamos como base
as Normas para Transcrição de Documentos Manuscritos para a História do
Português do Brasil, propostas por Cambraia, Cunha e Megale durante o ―II
Seminário para a História do Português Brasileiro‖, realizado em Campos do
Jordão-SP, no período de 10 a 16 de maio de 1998. A utilização desse
expediente garantiu maior fidedignidade e cientificidade ao transcrevermos
os verbetes. Optamos pela edição diplomática, pois ela permite a
conservação do estado de língua da época, dado importante para o nosso
estudo. Neste tipo de edição, as abreviaturas não precisam ser
desenvolvidas. Cambraia (2005), ao comentar sobre os tipos de edição de
manuscritos, informa-nos que a edição fac-similar, apresenta grau zero de
mediação, uma vez que reproduz um testemunho por meio de meios
mecânicos; a edição diplomática apresenta, por parte do editor, um grau
baixo de mediação; já a edição paleográfica, também conhecida por
semidiplomática, possui grau médio de mediação, na qual objetiva-se maior
apreensão por parte do leitor; e, finalmente, a edição interpretativa, ou
atualizada, é o grau máximo de mediação admissível.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 204
A variação lexical no discurso metalinguístico

No DLB é possível ainda encontrar expressões reveladoras


seja do uso vigente, seja da possível transição da sincronia para a
diacronia, tais como ―pouco usado‖, ―menos usado‖, ―quasi
desusada‖, ―mais usado‖, como pode ser verificado nos cinco
primeiros exemplos do Quadro 2.Ainda percebemos essa relação
temporal por meio de palavras como ―antigamente‖, ―os antigos‖,
―hoje‖ etc., presentes nos cinco últimos exemplos.

Quadro 2 – Exemplos de expressões reveladoras de uma possível


transição da sincronia para a diacronia presentes nas acepções de
lexias que compõem o DLB

LEXIAS ACEPÇÃO

Hodierno adj. De hoje. Pouco usado. (p. 583)

s. f. O mesmo e menos usado que Escuridade.


Escureza
(p. 454)
v. n. irregular [...] Na primeira pessoa do
Caber
Indicatico Caiba, quasi desusada [...]. (p. 176)
s. f. Fidelidade (Este he hoje o mais usado.). (p.
Fieldade
517)
s. m. pen. Br. Mais usado, outros dizem
Carbunculo carbunclo, e cabrunculo. (T. Medico) casta de
tumor. Pedra preciosa. (p. 201)
s. m. O que guia a carreta. Entre os antigos era o
Carreteiro que governava os carros de pelejar na guerra.
(p. 207)
s. f. Garaganta. Neste sentido é antigo. A parte
Gorja
mais estreita da quilha do navio. (p. 564)
s. m. Antigamente era o que hoje dizemos
Requeredor Requerente, Requeredor dos rendeiros, Cobrador
das reudas, que estes pagavão. (p. 927)
s. f. plur. Calçado antigo de mulheres. Da se
Sandalias
hoje este nome ao calçado dos Bispos, quando
se revestem para celebrar de Pontifical. (p. 963)
Arrelequim s. m. Bobo de comedia. Hoje dizem Arlequim.
(p. 108)

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 205


Estefânia Cristina da Costa MENDES

3.2 Eixo social

Assim como podem se achar pistas da variação diacrônica


nos verbetes do DLB, a variação social, ou diastrática, também pode
ser evidenciada. Esta reflete diferentes características sociais dos
falantes, podendo ser condicionada, entre outros, pelo grau de
escolaridade, pelo nível socioeconômico, pelo sexo/gênero e pela
faixa etária.
A variação diastrática pode ser percebida no DLB por meio
das marcações familiar, vulgar, plebeu e termo baixo, feitas por Silva
Pinto; todavia, como dito anteriormente, não há um rigor
metodológico no emprego desses recursos.

Quadro 3 – Exemplos de variação diastrática no DLB


LEXIA ACEPÇÃO

Caraça s. f. (T. familiar) Mulher feia. Bebado. (p. 200)

adj. Duplices no plur. Officio duplex he aquelle, em que se


Duplex dobrão as Antifonas. No estilo familiar, dizemos dia duplex
para significar aquelle em que há ignarias de mais à meza,
ou se faz festa. Antigamente se dizia dos Conventos, em
que moravão Religiosos e Religiosas. (p. 389).
Familiarmente dizemos n' hum santiamen, isto he, n' hum
Santiamen
instante. (p. 964)

Gana s. f. (T. vulgar) Vontade de. Fome (p. 551)

Empandinado adj. (T. vulgar) Que tem a pança cheia. (p. 403)

Engra s. f. (T. plebeo) Ângulo. (p. 422)

Mangona s. f. (T. plebeo). Preguiça. (p. 692)

Pança
s. f. (T. baixo) Barriga. (p. 782)

Calmorrar v. a. (T. baixo) Espancar. (p. 187)

Capoeiro Adj. (T. baixo) que furta gallinhas. (p. 199)

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 206


A variação lexical no discurso metalinguístico

Embora defina ―gíria‖ – ―Giria s. f. V Gira. Circullocução


affectada‖ (p. 561) –, Silva Pinto não marca lexia alguma como tal.

3.3 A variação lexical no DLB: outras possibilidades

Além dos casos mencionados anteriormente, em que é


possível observar possíveis exemplos de variação diacrônica e
diastrática, muitos outros aspectos dos verbetes que compõem o
DLB podem ser comentados.
Coelho (2012) aponta que, apesar de estar aparentemente
afastado dos projetos literários e linguísticos que animaram o
século XIX, o DLB oferece rico registro de variantes do português
que se usavam àquela época no país. Ela ainda expõe que,
curiosamente, parece ter sido decisivo para esse registro o fato de o
autor ocupar-se da tipografia, já que é das soluções gráficas e da
organização de seu texto que emergem dados sobre a diversificação
da língua portuguesa no Brasil. Um exemplo disso é o uso de
asteriscos que Silva Pinto faz para marcar os termos considerados
antiquados, como pode ser visto no Quadro 1.
Outros aspectos ainda podem ser elencados, como exemplos
de variação fonética: ―Oiro s. m V. ouro‖ (p. 761). Podem-se
perceber, também, algumas opiniões e valores misturados às
definições, especialmente quando a lexia se refere ao universo
religioso: ―Atheismo s. m. Seita absurda dos que negão a existência
de Deos‖ (p. 120). Há também verbetes indicando valores e
expectativas quanto ao bom uso da língua, como em: ―Tussir,
melhor que Tossir‖ (p. 1077).
Vale ainda mencionar a questão ortográfica. Como se sabe,
no século XIX, não havia ainda uma padronização. Um bom exemplo
disso é a recomendação dada pelo autor quando chegamos à letra Y:
―Os vocabulos que se encontrarem com Y procurem-se com I ou
com Hi, ou com Hy‖(p. 1113).
Segundo Coelho (2012), O DLB não reivindica, explicitamente,
autonomia para o português falado na América tampouco faz
menção direta a qualquer nível de emancipaçãodo ―idioma
brasileiro‖. A autora ainda ressalta que o dicionário de Silva Pinto
não procura registrar exclusividades, isto é, um léxico somente
empregado no Brasil.
Os brasileirismos, como aponta Nunes (2006), formam uma
memória das palavras brasileiras. Ainda, segundo ele, ―[...] esse
conjunto permite diferenciar o português brasileiro do português

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 207


Estefânia Cristina da Costa MENDES

europeu no contexto de defesa da língua nacional‖ (NUNES, 2006, p.


26).
Algumas singularidades do Brasil podem ser percebidas por
meio de alguns vocábulos: ―Maribondo s. m. Espécie de vespa no
Brasil que morde‖ (p. 698); ―Cajà s. m. cajàs no plur. He uma fruta
do Brasil bem parecida com huma ameixa amarela‖ (p. 182).
Por outro lado, é notória a grande quantidade de vocábulos
referentes ao português de Portugal. Vejamos dois exemplos:
―Tambeira s. f. Em Portugal, a madrinha da noiva‖ (p. 1027); ―Oxeo,
(com ò aberto) Palavra, de que usão os Transmontanos em Portugal
para espantar a caça para fazer fugir as gallinhas, etc.‖ (p. 774).
Os exemplos de variação linguística e de outras curiosidades
não se esgotam aqui, o que reforça a importância de se utilizar essa
e outras obras lexicográficas como fontes históricas de identificação
do nosso léxico.

Considerações finais

O dicionário é um verdadeiro tesouro lexical da cultura. Ele


deve se relacionar com a norma social vigente, num dado recorte
sócio-temporal. Sendo assim, o dicionarista é o porta-voz do seu
grupo, uma vez que registra a linguagem que é aceita, valorizada e
prestigiada pelos parceiros idiomáticos da sua época. Conforme
Biderman (2001, p. 132), ―os dicionários recolhem o tesouro lexical
da língua num dado momento da história de um grupo social‖.
Esse ―tesouro lexical‖, como se viu, pode conter, em certa
medida, dados sobre a diversificação da língua. Essa variação pode
ser perceptível, por exemplo, por meio das soluções gráficas e da
organização da obra das pelo autor. Na breve análise do DBL aqui
exposta, isso ficou evidente.
Neste estudo, destacamos o eixo diacrônico e o eixo social da
variação lexical no DLB. O primeiro eixo, conforme Gonçalvez
(2007), revela, por meio das palavras antigas ou antiquadas
(arcaísmos), a consciência e a formalização paulatina das diferenças
sociolinguísticas no plano lexical, consideradas tanto sincrônica
como diacronicamente; já o segundo eixo reflete diferentes
características sociais dos falantes, podendo ser condicionada, entre
outros, pelo grau de escolaridade, pelo nível socioeconômico, pelo
sexo/gênero e pela faixa etária.
Abreviaturas como ―antiq.‖, ―T. antiquado‖; além do ―*‖ e da
caracterização ―desusado‖, são marcações feitas por Silva Pinto para

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 208


A variação lexical no discurso metalinguístico

identificar as palavras que em sua ótica são antiquadas. A variação


diastrática pôde ser percebida no DLB por meio das marcações
familiar, vulgar, plebeu e termo baixo.
A coleta dos exemplos usados aqui foi feita aleatoriamente,
objetivando apenas ilustrar cada caso analisado. Sugere-se que ela
possa ser ampliada e os dados cotejados a outros selecionados de
obras lexicográficas de séculos distintos, podendo-se verificar se as
lexias eram dicionarizadas em obras anteriores ao DLB e se ainda o
são, além de investigar se elas mantêm ou não suas acepções, por
exemplo.
A partir dessa breve análise do ―Diccionario da Lingua
Brasileira‖, em que se elencaram, principalmente, possíveis
exemplos de variação diacrônica e diastrática, constata-se que os
dicionários podem ser base de dados fundamental para o
reconhecimento da memória histórica da língua. Esses dados
mostram-se relevantes tanto para a historiografia do discurso
metalinguístico no que diz respeito à variação lexical quanto para a
história do léxico.
Gonçalves (2007) expõe que ainda é preciso analisar outras
obras lexicográficas visando a um correto e completo conhecimento
das ideias e do discurso metalinguístico acerca do português. E
fontes de pesquisa não nos faltam!

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Estefânia Cristina da Costa MENDES

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Typographia de Silva, 1832.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 211


AS MEMÓRIAS DE GRACILIANO RAMOS QUE SE
MISTURAM ÀS DE SEUS PERSONAGENS

Gabriela Pacheco AMARAL


UFMG

Resumo: O objetivo deste trabalho será o de analisar as memórias


de vida do autor Graciliano Ramos narradas em Infância (1945) e
identificar como elas estão presentes em outras obras do autor.
Iremos, pois, analisar alguns momentos da vida narrados por G.
Ramos que se repetem de maneira similar – seja de menor ou maior
grau- com os seus personagens nas obras de Angústia e Vidas Secas.
Para isso, iremos utilizar de alguns conceitos sobre memória
advindos da Análise do Discurso.

Palavras-chave: Memórias; Graciliano Ramos; Infância; Vidas Secas;


Angústia.

Introdução

Graciliano Ramos nasceu em Alagoas, no ano de 1892, em


um período de transição da política brasileira, visto que, nessa
época, a República tinha sido proclamada somente há três anos, em
1889. A situação do Brasil era o resultado de muitas crises
econômicas, disputas políticas o que gerava muitas incertezas para
o futuro dos brasileiros. Com o surgimento dessa nova forma de
governo, desencadeou-se uma descentralização econômica e
financeira que foi propícia para a imersão do capitalismo no país,
beneficiando principalmente as oligarquias cafeeiras.
Na terra natal de G. Ramos, o Nordeste, a economia estava
centrada na cana-de-açúcar. Era ainda uma região muito pobre,
castigada pela estiagem. Com o tempo, houve um declínio da
economia canavieira que, por consequência, alterou a base de ordem
política e social: de um lado, dominavam os coronéis do algodão e
da pecuária; de outro, o Estado oligárquico se tornava o agente e a
forma de estrutura do poder (MORAES, 1992, p. 8).
O pai do romancista, Sebastião Ramos de Oliveira, estava
bem distante do império dos canaviais. Ele era um senhor do
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
As memórias de Graciliano Ramos

engenho arruinado que mantinha uma loja de tecidos.


Posteriormente, deixou o ramo do comércio para começar a
trabalhar com a criação de gado e comprou uma fazenda, onde foi
morar com a família. Veio, no entanto, a seca e, com ela, várias
mortes dos animais da propriedade. Então, a solução encontrada
pelo patriarca foi abandonar a fazenda e voltar para o comércio.
Tendo em vista o que foi dito, podemos perceber como se
deu o contexto social e histórico que envolveu Graciliano Ramos:
cheio de crises, incertezas, secas, mortes. Situações essas que
podem talvez ter contribuído para que o autor adotasse um estilo
literário pleno de posicionamento ideológico em seus romances,
pois, como bem postula Brunacci (2008, p. 27), ―O escritor é, antes
de tudo, um ser social‖.
O posicionamento de Ramos pode ser percebido devido a
algumas pistas deixadas no fio do discurso e do estilo por ele
adotados. Notamos que ele aborda em seus romances questões de
desigualdade social, injustiças e pessimismo quanto ao país. Ele não
se vale de uma linguagem rebuscada, prefere poucas palavras que
representam a realidade da sociedade e, por isso, tem preferência
pelo realismo literário. Preferência essa que ele justifica em suas
próprias palavras:

O realismo rompendo a trama falsa do idealismo,


descreve a vida tal qual é, sem ilusões nem mentiras.
Antes a nudez forte da verdade que o manto diáfano da
fantasia [...]. Mas, que querem? A parte boa da sociedade
quase não existe. De resto, é bom a gente acostumar-se
logo com as misérias da vida (RAMOS, apud MORAES,
1992, p. 23)1.

Já em suas primeiras obras, o escritor mostra seu


posicionamento ideológico em seus escritos. Aos doze anos, quando
fazia parte da fundação do jornal infantil Dilúculo, nele estreia como
escritor com o conto ―Pequeno Mendigo‖. O protagonista principal e
a temática do conto já deixam perceber qual seria o viés ideológico e
literário deste. O que, convenhamos, trata-se de uma abordagem

1
Trecho de entrevista de Graciliano Ramos a Denis de Moraes. Título da
obra que onde ela vai aparecer: O velho Graça: uma biografia de Graciliano
Ramos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 213
Gabriela Pacheco AMARAL

literária um pouco incomum para a faixa etária do autor, mas que,


de qualquer forma, já mostra a sensibilidade da visão de mundo do
pequeno escritor para as desigualdades sociais e financeiras da
população de sua cidade.
A abordagem de Ramos em seus romances irá assim
abranger as questões sociais, levantando aspectos das condições de
vida dos brasileiros no campo e na cidade. Por conseguinte, seus
escritos são permeados por uma ideologia pessimista que retrato o
subdesenvolvimento da nação. Além de aspectos sociais, Ramos
também retrata os aspectos psicológicos dos personagens. Podemos
considerar a possibilidade de a sociedade e o contexto terem
exercido certa influência na forma de comunicação e no convívio
entre os personagens. A partir dessa consideração, acreditamos que
o meio social impacta na forma como essas figuras criam uma
imagem de si. Um de nossos pressupostos é que tanto o vínculo
social quanto o linguístico são sistematizados no romance de modo
a proporcionar uma visão da identidade discursiva dos personagens.
Em relação aos romances que Ramos produziu em 1930,
Antonio Candido (2006a, p. 130) argumenta que são obras que
apresentam uma forma de pesquisa social e humana. Ainda nesse
aspecto, o estudioso afirma que os romancistas desse período
seguem uma tradição naturalista, com um conhecimento sobre a
sociologia e a política. Desse modo, a literatura passa a assumir uma
harmonia com os estudos sociais. Vale ressaltar que esse raciocínio
não visa postergar as peculiaridades dos textos literários, mas, sim,
observar uma entre tantas outras dimensões de leituras.

1. A memória na Análise do Discurso

A noção de memória na Análise do Discurso já estava


presente desde os estudos sobre o interdiscurso proposto por
Pêcheux. Já que, o interdiscurso representa algo que já foi dito antes
e em outro lugar, desse modo, conforme Orlandi, o interdiscurso é
uma memória discursiva no sujeito (ORLANDI, 2001, p. 31).
Com esse pressuposto de que o interdiscurso consiste em já
ditos evocados por outros discursos, somos levados a lembrar dos
estudos de Bakhtin (2002) sobre o dialogismo. De acordo com este
autor, todo enunciado comporta em si outros discursos, outras
vozes, outros pontos de vistas que são transpassados e são
enunciados em diferentes situações e em diferentes épocas. Toda
essa multiplicidade de discursos estaria na memória do sujeito.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 214


As memórias de Graciliano Ramos

Nesse sentido, a memória discursiva opera de forma dialógica entre


o interior e o exterior do sujeito. Pois, o indivíduo em seu meio
social estará em contato com as múltiplas vozes que são proferidas
por outros sujeitos. Será aí, então, nessa interação que as vozes
podem ser internalizadas na memória do indivíduo.
Para o sociólogo Maurice Halbwachs (2006), o sujeito é
dotado tanto de uma memória individual quanto de uma memória
coletiva. De acordo com o mesmo, na memória coletiva estarão
presentes as memórias individuais do sujeito. Ou seja, na lembrança
mais íntima do sujeito haverá pontos de referência que são externos
a ele. Nessa perspectiva, o individual na memória do sujeito estará
nas sensações, nas emoções e nos sentimentos desse sujeito quanto
ao momento relembrado. (HALBWACHS, 2006, p. 36).
Compreendemos que a noção de memória de Halbwachs se
assemelha com alguns postulados da Análise do Discurso,
principalmente com as questões do dialogismo de Bakhtin e a
heterogeneidade enunciativa de Authier-Revuz. Já que para
Halbwachs, a memória individual não pode ser considerada
exclusivamente em uma ótica individual, visto que sempre no
âmago do sujeito haverá vozes vindas de outros sujeitos, trata-se
de:

É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é


necessário que outros homens estejam lá, que se
distingam materialmente de nós: porque temos sempre
conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não
se confundem (HALBWACHS, 2006, p. 16).

Ricouer (2007)considera a existência da memória individual


do sujeito, mas prefere adotar outros sintagmas: olhar interior para
a memória individual e olhar exterior para a memória coletiva. Dessa
forma, o filósofo trabalha com a subjetividade do sujeito e com a
coletividade. Outros autores, como Le Goff (2003) também
trabalham com a noção de memória coletiva. Para este, a sociedade
é aflorada por memórias coletivas que podem influenciar
diretamente na identidade individual ou/ e na identidade coletiva.
Nos estudos de Moirand (2008), nos deparamos com a
inserção da noção de cognição nos estudos sobre a memória. Assim,
o indivíduo ao se deparar com certos enunciados poderá fazer uma
atividade cognitiva de alusão a outros discursos, e, por
consequência estará acionando a memória. Similar a Moirand,

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 215


Gabriela Pacheco AMARAL

Paveau (2005)também trabalha com a questão na cognição da


memória ao apresentar três dimensões: a recognição, os laços de
memória e as emoções. Nesse sentido, o sujeito faria uma
reconstrução cognitiva de uma lembrança que estaria indissociável
aos imaginários sociais de crença e às emoções por ele vivida na
recordação de um objeto.

2. Algumas nuances das memórias de Graciliano Ramos nos seus


romances

O ato de narrar, de contar histórias é uma prática discursiva


que ocorre, provavelmente, desde que o homem passou a viver em
sociedade. Isso porque podemos compreender que o sujeito tem a
necessidade de compartilhar suas experiências vividas com o outro,
seja na euforia de um filho, ao contar como foi o primeiro dia de
aula, seja na vontade de compartilhar ou justificar para alguém o
motivo de o sujeito sentir angústia, tristeza, alegria, raiva. O fato é
que a atividade de narrar está presente no cotidiano das pessoas.
Em algumas situações, porém, o fato narrado não pode ser
considerado totalmente verídico, pois é natural que, por vezes, a
ficção, ou recursos desta entrem neste relato.
Dito isso, deparamo-nos, portanto, com a concepção de
contar entre a ficção e a realidade. De acordo com Charaudeau
(2014, p. 154), o ato de contar alguma história corresponde a uma
atividade que faz surgir um universo contado. Nesse universo se
misturam os discursos que remetem ao reflexo fiel da história
passada, com discursos de uma realidade ficcional criada no
delinear da narrativa.
Nessa perspectiva, na medida em que o escritor tem um
projeto de escritura, seja de um romance, ou de um conto, pode
haver alguns traços da memória do autor implícitos ou explícitos no
fio discursivo, que deixam transparecer o contexto social e histórico
contemporâneo, bem como suas posições ideológicas. Charaudeau
(2014, p. 189) considera que, de um modo geral, as narrativas
apresentam marcas discursivas que acusam a presença e a
intervenção do autor como indivíduo. Essa presença tende a remeter
a um efeito de verismo, ou uma intenção de compartilhar um
posicionamento ou uma memória.
Para Bastos (2008, p. 11), as obras de escritores como
Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Carlos
Drummond de Andrade e Murilo Rubião permitem que os leitores

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 216


As memórias de Graciliano Ramos

tenham conhecimento da história de uma maneira que difere da


maneira oficial, da história dos livros didáticos, dos artigos, que, em
sua maioria, apresentam-na de forma linear. Já com a literatura, a
história é contada em uma relação dialética entre o exterior e o
interior do sujeito. Temos acesso, portanto, ao seu contexto social,
como também temos acesso ao seu íntimo. Percebemos assim quais
eram as ideologias, as formações discursivas que estavam presentes
nos grupos das sociedades, a partir da visão de mundo do escritor.
Ainda para o autor supracitado, a história que é contada no
romance se mistura — em maior ou menor grau — com a história e
a memória individual e coletiva do próprio escritor. ―Entre a voz do
personagem e a do escritor (e seu narrador) há defasagens [...]‖, mas
―[...] que não se esqueça que personagem e escritor não são os
mesmos, embora se aproximem e se toquem‖ (BASTOS, 2008, p. 13).
Ramos demonstra ter a consciência de que pode, sim, haver
um pouco de suas memórias de vida e de seus sentimentos na
criação dos seus personagens, já que, em um jantar de homenagem
para o próprio, em outubro de 1942, diz:

[...] Ninguém dirá que sou vaidoso referindo-me a esses


três indivíduos, porque não sou Paulo Honório, não sou
Luiz da Silva, não sou Fabiano. [...] É possível que eu
tenha semelhança com eles e que haja, utilizando os
recursos duma arte capenga adquirida em Palmeiras dos
Índios, conseguindo animá-los (RAMOS in BRUNACCI,
2008, p. 15).

Nessa declaração estamos diante de uma polifonia interna,


ou um desdobramento de ‗eus‖ de Ramos em três de seus
personagens: Paulo Honório, do romance São Bernardo; Luiz da
Silva, do romance Angústia; Fabiano, do romance Vidas Secas.
Estamos diante de três negativas presentes em seu discurso. O autor
nega que seja os protagonistas, porém, se o romancista fez essas
negativas é porque, em algum dado momento, houve a afirmação de
que ele seria um retrato triplicado desses três protagonistas. Essa
afirmação pode existir tanto externamente, quanto internamente
nos pensamentos do autor. Graciliano declara que sim, que é
possível que haja alguns traços de seu ―eu‖, nesses protagonistas.
Vale lembrar também que Ramos na época em que formulou o
enunciado acima transcrito, já tinha escrito outros romances, como
Caetés (1947), Alexandre e outros heróis (1962), Viventes de Alagoas
(1962) entre outros. No entanto, a comparação só ocorre com esses
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 217
Gabriela Pacheco AMARAL

três personagens: Paulo Honório, Luiz da Silva e Fabiano.


Anos depois, em uma carta datada de 23 de novembro de
1949, para Marli Ramos, na qual faz um pequeno tutorial de como
escrever, ele expõe:

As caboclas da nossa terra são meio selvagens, quase


inteiramente selvagens. Como pode você adivinhar o que
se passa na alma delas? Você não bate bilros nem lava
roupa. Só conseguimos deitar no papel os nossos
sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além
disso não há nada. As nossas personagens são pedaços
de nós mesmos, só podemos expor o que somos. E você
não é Mariana, não é da classe dela. Fique na sua classe,
apresente-se como é, nua, sem ocultar nada. Arte é isso.
[...] Em Mariana você mostrou umas coisinhas suas. Mas,
- repito – você não é Mariana. [...] A sua personagem
deve ser você mesma (RAMOS, 1980, p. 197).

Nesse discurso, inferimos que o romancista assume que os


personagens são desdobramentos de alguns ―eus‖ dos escritores.
Ou, melhor dizendo, uma parte, um ―eu‖ dentre os diversos ―eus‖
que existem neles, escritores.
Pensemos dessa forma: diversos ―eus‖ constituem o
romancista, e o todo (Graciliano Ramos mais seu desdobramento em
sujeito-enunciador) é feito de partes (os múltiplos ―eus‖; as
múltiplas vozes); por conseguinte, o todo é feito de partes e em
cada parte há um todo2.
A partir dessas considerações, podemos perceber que os três
protagonistas citados acima podem sem compreendidos como
partes de Graciliano Ramos, e que em cada parte há um todo dele. O
todo de Graciliano Ramos, pois, será compreendido como sua
memória, seu posicionamento ideológico, sua visão de mundo, suas
experiências de vida. Fato é que não podemos afirmar que os

2
Essa ideia fractal da identidade foi por nós desenvolvida a partir da
inspiração que o poema de Gregório de Matos nos suscitou quando lemos
estes versos: ―O todo sem a parte não é todo. //A parte sem o todo não é
parte, //Mas se a parte o faz todo, sendo parte,//Não se diga, que é parte,
sendo todo. //Em todo o Sacramento está Deus todo.//E todo assiste inteiro
em qualquer parte,//E feito em parte todo em toda a parte,//Em qualquer
parte sempre fica o todo.‖
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 218
As memórias de Graciliano Ramos

protagonistas são o romancista, mas, sim, que há partes de


Graciliano Ramos no todo que constitui os personagens.
São Bernardo é um romance autobiográfico, no qual Paulo
Honório, um fazendeiro que apresenta uma personalidade
dominadora, pois mantém em si um sentimento de propriedade em
relação às pessoas ao seu redor, conta sua vida. É um personagem
que não se importa com o bem-estar dos outros, só faz aquilo que é
benéfico tendo em vista algo em troca, como, por exemplo,
implantar uma escola em sua fazenda somente porque terá retorno
financeiro do governo. Ele pratica atos de violência com os
empregados, não se importa com a mortalidade infantil na fazenda,
nem com o seu próprio filho. Podemos considerar que o
protagonista tem uma identidade que é o alvo da crítica de G.
Ramos e que se baseia em características que o autor repudia de
alguns sujeitos da sociedade.
Angústia é um romance o qual temos a autobiografia de Luís
da Silva, um funcionário público que escreve artigos para um jornal.
Ele resolve escrever sua vida depois que mata seu rival, Julião
Tavares, que seduziu sua namorada, engravidando-a e, depois,
abandonando-a. O personagem Luís da Silva é tomado por um
extremo negativismo, não gosta de si mesmo, não gosta de seus
escritos, não gosta dos outros. Muitos empréstimos da vida de
Ramos são dados a esse protagonista, principalmente os narrados
em Infância, como o início da alfabetização, as agressões sofridas
pelo pai, o trabalho como escritor de artigos em jornais3, a visão
negativa do mundo, o repúdio pelos seus escritos, a prisão política e
o ódio à burguesia. Para Candido (2006b, 55-62), há muito em Luís
da Silva do que foi reprimido em Graciliano Ramos. Ressaltemos
ainda que, nesse caso, será a ficção que explicará muito do ―eu‖ do
romancista.
Em Vidas secas, o romance é escrito na terceira pessoa e,
dessa vez, o protagonista será um retirante nordestino que busca
manter a sobrevivência em um meio seco, agressivo e opressor. O
protagonista, Fabiano, apresenta também algumas características do
romancista, como a timidez, a prisão injusta e o desejo de se
comunicar com os outros. Porém, Fabiano passa a vida toda sem

3
Graciliano Ramos trabalhou em diversos jornais como: Jornal de Alagoas,
no Correio da Manhã, A Tarde e o Século, Paraíba do Sol, etc.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 219
Gabriela Pacheco AMARAL

saber escrever, ou mesmo sem saber se comunicar e se expressar


adequadamente; mas tal desejo existia, podemos dizer, de forma
latente, em Ramos, na sua infância. E o sentimento de não se
expressar como o desejava deve tê-lo influenciado mais tarde ao
escrever o personagem nomeado Fabiano. Conforme podemos
perceber em sua autobiografia, G. Ramos almejava falar bem como
os meninos vizinhos. Em suas palavras, ele relata que só aprendeu a
ler aos onze anos. Essa aproximação entre personagem e escritor é
sentida por Ramos, já que em uma carta enviada para Antônio
Candido, em 12 de novembro de 1945, ele diz:

Com base onde as nossas opiniões coincidem é no


julgamento de Angústia. Sempre achei absurdos os
elogios concedidos a este livro, e alguns, verdadeiros
disparates, me exasperaram, pois nunca tive semelhança
com Dostoievski nem com outros gigantes. O que sou é
uma espécie de Fabiano, e seria Fabiano completo se a
seca houvesse destruído a minha gente, como V. muito
bem reconhece (RAMOS, 1945, apud CANDIDO, 2006b,
p. 10).

Os livros São Bernardo, Angústia e Vidas secas, deixam-nos


perceber que os três personagens principais têm uma relação
estreita com a linguagem e a escrita. O primeiro relata, como já foi
dito, a autobiografia de Paulo Honório; este personagem, aliás, no
início do romance, comenta as dificuldades que existem para se
escrever um livro. No segundo, o protagonista Luís da Silva é
escritor de um jornal. No terceiro, Fabiano não escreve, mas, no
enredo do romance, demonstra seu desejo de se expressar e de
escrever conforme os padrões cultos da língua. Desse modo,
inferimos que os três personagens carregam em sua criação um
pouco do ―eu‖ e da vida de G. Ramos, pois o romancista foi um
escritor de jornal e escritor literário. Ademais, como narrado em sua
autobiografia (Infância) em sua meninice, ele tinha dificuldades de
falar com outros.
Além desses aspectos, diversos outros podem ser
comparados se tivermos como base a narrativa de vida, Infância,
com os demais livros. Com o intuito de elucidar tal aspecto,
podemos nos atentar a um fato narrado, no qual o romancista relata
sobre uma certa curiosidade que tinha a respeito da palavra
―inferno‖: ele questionava muito sua mãe a respeito da existência de
tal lugar, perguntando se ela tinha certeza de que ele existia e se ela

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 220


As memórias de Graciliano Ramos

já tinha ido lá. Decerto, esses questionamentos ocasionaram


violências físicas para o jovem escritor. De maneira
aproximadamente igual, o mesmo episódio é abordado no capítulo
―O menino mais velho‖ do romance Vidas secas, no qual o
personagem, que não tem nome na trama narrativa e é citado
apenas como ―o menino mais velho‖, ouve a mãe falar a palavra
―inferno‖ e passa a questioná-la sobre tal lugar, inclusive
perguntando se ela já tinha visto o tal lugar. O desfecho ocorre de
maneira similar à narrativa de vida do escritor. Nesse sentido,
notamos como a ideologia cética adotada na vida do escritor
nordestino se desdobra em seus personagens, não somente em
relação ao caso citado acima, mas também nos casos dos
personagens Paulo Honório e Luís da Silva, que não acreditam
veementemente nos dogmas da igreja.
Em Angústia, o protagonista tem características que
remetem à vida do romancista (a que foi narrada em Infância), como
o fato de ambos terem sido agredidos pelos pais durante o processo
de alfabetização; ambos terem se escolarizado depois de 8 ou 9
anos; ambos se sentirem aprisionados na sociedade e ambos
estarem presos em virtude da ideologia política.
Da mesma maneira que dados biográficos do escritor são
legados aos seus personagens, assim também o são os
posicionamentos ideológicos. Graciliano demonstra grande
insatisfação pela injustiça à qual os seres humanos são submetidos.
Em sua autobiografia, Infância, o autor relata que, em uma ocasião,
fora acusado de ter pegado e escondido o cinto de seu pai, o que
não procedia. Ele, no entanto, não deu ouvidos a seu filho, nem
sequer perguntou para o menino se ele o tinha pegado, dando-lhe
diversas surras. A consequência de tantas agressões, sem motivos,
impingidas tanto por seu pai, como também por sua mãe, originou
uma descrença na justiça, que transparece em suas próprias
palavras:

As minhas primeiras relações com a justiça foram


dolorosas e deixaram-me funda impressão [...] Situações
deste gênero constituíram as maiores torturas da minha
infância, e as consequências delas me acompanharam
[...] Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça.
(RAMOS, 2008, p. 28-32).

Como vimos, Ramos foi preso sem que houvesse nenhuma


prova concreta de sua ―culpabilidade‖. Memória similar é abordada
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 221
Gabriela Pacheco AMARAL

em Angústia, quando o protagonista relata um caso em que um pai


retirante, por problemas financeiros, foi morar com a filha de
quatro anos na rua. Um dia, algumas pessoas viram a menina
deitada com as pernas abertas e manchas vermelhas em suas partes
íntimas e o pai em frente dela. As pessoas não o questionaram,
prontamente lhe deram uma surra e chamaram a polícia, que o
espancou e o interrogou. O pai assumiu que estuprou a filha e foi
preso. Depois de muitos anos, um exame foi feito e nele foi
detectado que a filha não havia sido violentada. As manchas
vermelhas que se assemelhavam ao sangue eram, na verdade, uma
mistura de ervas que o pai aprendeu a fazer no sertão para curar
um tipo de doença que costumava acometer mulheres.

Considerações Finais

Ao refletir sobre as memórias de Graciliano Ramos que se


repetem em algumas de suas obras, podemos considerar que trata-
se de um jogo complexo entre o criador e suas criaturas, já que, de
alguma forma, estarão nelas presentes uma parte dele.
Dito isso, compreendemos como o ato de contar sua própria
história navega entre a ficção e a realidade, pois não teremos como
avaliar se a autobiografia de G. Ramos foi influenciada pela ficção
dos romances, ou se os romances foram influenciados pelas
memórias da realidade vivida pelo autor. Certo é que estamos diante
de um caso de polifonia de memórias ocorrendo em suas obras: a
voz que conta a vida do escritor se mistura às memórias de seus
personagens.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance.


5ªed. São Paulo: Hucitec, 2002.

BASTOS, Hermenegildo. Prefácio. In: BRUNACCI, Maria Izabel. Graciliano


Ramos: um escritor personagem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

BRUNACCI, Maria Izabel. Graciliano Ramos: um escritor personagem. Belo

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 222


As memórias de Graciliano Ramos

Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre


azul, 2006a.

_______. Ficção e Confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. 3 ed. Rio de


Janeiro: Ouro sobre azul, 2006b.

CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. 2 ed. São


Paulo: Contexto, 2014. Nº 1 -2, 1992, p. 26-31.

HALBWACHES, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

LE GOFF, J. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.

MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1992.

MOIRAND, S. Discours, mempories et contexts: à propôs du fonctionnement


de l‘ allusion dans l apresse. In: Estudos da lingua(gem). Vitoria da
Conquista, V. 6, n. 1, p. 7 -46, 2008.

PAVEAU, M. A. Retrouver la mémoire. Parcours épistémologique et


historique. Université de Paris, 13, Villetaneuse, 2005.
http://www.discurso.ufrgs.br/sead/simposios.html. Acesso em Setembro de
2016.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 3


ed. Campinas, SP: Pontes, 2001.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 114ª ed. Rio de Janeiro: Record, [1938]
2010.

_______. Infância. 41ª ed. Rio de Janeiro: Record, [1945] 2008.

_______. Angústia. 64ª ed. Rio, São Paulo: Record, [1936] 2009.
RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora
da UNICAMP, 2007.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 223


MATERNIDADE, LEI E TRABALHO: A IDENTIDADE
CIDADÃ DA LUTA FEMININA

Gerlice Teixeira ROSA


Faculdade Ciências da Vida

Resumo: Este trabalho pretende discutir a construção da identidade


feminina sob a perspectiva do jornal Fêmea, produzido pelo Centro
Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), sediado em Brasília.
Para cumprir o objetivo de verificar noções de identidade e
representação feminina, fizemos o uso de conceitos advindos da
Análise do Discurso, tais como os de Amossy e Charaudeau. Em
busca de reaver seus direitos e garantir seu cumprimento, notamos
o discurso de Fêmea construído a partir da formação da identidade
feminina baseada na imagem de cidadã, capaz de buscar seus
direitos e, acima de tudo, sua representatividade junto ao Congresso
Nacional.

Palavras-chave: Fêmea. Identidade. Discurso feminista.


Representação.

Apresentação

O presente estudo busca propor uma discussão a respeito da


representação feminina e da construção de sua identidade feita
através da mídia feminista, mais especificamente do jornal Fêmea.
Caracteristicamente feminista, o periódico aborda temáticas de
gêneros e de minorias étnicas. A preocupação da pesquisa foi
revelar de que modo o jornal constrói a imagem da mulher e como
as temáticas por ele publicadas se organizam para reafirmar (ou
não) o pensamento defendido pelas editoras de Fêmea.
Ressaltamos a necessidade de se discutir questões de
representação e construção de imagens da mulher, especialmente na
imprensa, uma vez que a imagem feminina foi, por vezes, esquecida
ou silenciada durante a história brasileira. Retomamos o

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Maternidade, lei e trabalho: a identidade cidadã da luta feminina

pensamento de Grossi, que defende uma nova configuração dessas


relações e suas construções identitárias. Segundo ela, ―observa-se
uma preocupação mais recente que tem buscado compreender como
se constroem identidades a partir das relações que as mulheres
estabelecem com outras mulheres, seja em conventos, em bordéis,
vizinhas ou empregadas (GROSSI, 1994, p. 340/341). Sob essa ótica,
torna-se necessário o estudo dessas relações também na imprensa,
espaço em que as mulheres buscam representatividade e a
encontram por meio de publicações independentes, como é o caso
de Fêmea.
Ainda referente a esse universo midiático, cumpre destacar a
mise en scène construída em torno dos sujeitos envolvidos, ou seja,
as instâncias de produção e recepção do discurso. Em um contrato
jornalístico, a finalidade da instância de produção é dar
informações, informar o público a respeito de algo. Todo o discurso
da mídia será pautado, portanto, nessa finalidade discursiva.
Comungamos com Charaudeau (2009) e nomeamos de visada esse
objetivo de qualquer produção discursiva. Portanto, compreende-se
que em Fêmea, há uma visada informativa (que não exclui a
existência de outras visadas no discurso construído). É possível que
uma notícia, além de informar, possa emocionar, como é o caso de
temas mais subjetivos e comportamentais. Importa-nos esclarecer
que em um primeiro momento a notícia tem como atividade central
a necessidade de informação. Junto a essa, outras demandas podem
surgir e redefinir o sentido da mesma.
Tendo a visada informativa como pressuposto, cabe-nos
analisar e discutir as ―personagens‖ envolvidas neste contrato. O
jornalista (como informante) e o público (como informado) já
estabelecem dois núcleos distintos na situação enunciativa: o de
produção e o de recepção. Na instância de produção, é necessário
considerar a hierarquia própria do meio. Jornalistas estão
submetidos ao pensamento de seus editores, que
consequentemente, é definido por diretores e chefes de redação.
Acima dessas hierarquias definidas por cargos na imprensa, está a
linha editorial, pensamento que deve nortear todas as ações do
discurso jornalístico. Desse modo, a escolha dos gêneros, dos
temas, recursos e estratégias jornalísticas são pensadas a partir da

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 225


Gerlice Teixeira ROSA

definição da linha editorial daquele veículo de comunicação1.


Por outro lado, na instância de recepção estão destinatários
ideais do discurso (conforme Charaudeau), mas também estão os
sujeitos reais, aqueles que de fato entram em contato com a notícia,
no caso da imprensa. Cabe aqui retomar o princípio charaudiano da
alteridade que estabelece ser o parceiro Eu responsável por
produzir seu discurso para o outro. Sendo assim, toda a organização
discursiva é pensada de acordo com o sujeito destinatário do
discurso, ou como chamamos no ambiente jornalístico, o público
alvo.
Amossy (2008, p. 32) também estabelece que ―cada discurso
comporta sua própria situação de enunciação e realiza uma
verbalização singular da tese ou do ponto de vista proposto ao
auditório. Ele depende ainda de uma estrutura de troca global na
qual se realiza a ação de persuasão‖. Desse modo, trazendo os
conceitos para o ambiente jornalístico, podemos apreender que para
a troca linguageira entre jornalista e leitor acontecer, é preciso que
toda a estrutura do discurso esteja organizada para tal. Para melhor
explicar, podemos pensar na preparação de um espetáculo musical.
Antes da orquestra entrar em cena e colocar os instrumentos para
funcionar, é preciso preparar o ambiente, organizar os assentos
para os músicos, afinar os instrumentos, preparar o espaço para
receber o público, etc. Todo esse estágio de preparação organiza e
possibilita o desenvolvimento do espetáculo musical. Assim
também ocorre com a produção discursiva da imprensa. A estrutura
jornalística, a definição dos papéis sociais de cada instância, a
materialização do discurso e o planejamento da proposta midiática
permitem que a mise en scène se estabeleça e toda a organização
discursiva produza efeitos nos sujeitos envolvidos, tanto
produtores quanto receptores.
Dito isso, caminhamos para a verificação desses elementos
principais na construção discursiva de Fêmea. Faremos, pois, a
apresentação do periódico e a sequente discussão a respeito de sua
materialidade, para em seguida apontar elementos discursivos

1
Encontra-se aqui a brecha para o desenvolvimento do jornalismo
especializado, sobre o qual discutiremos mais adiante. A necessidade de
especificar sobremaneira a linha editorial estimula grupos produtores de
notícias a delimitar seu trabalho com assuntos tematizados.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 226
Maternidade, lei e trabalho: a identidade cidadã da luta feminina

observados a partir da análise discursiva das cinco primeiras


edições de Fêmea.

1. Sobre o jornal Fêmea

A primeira edição do jornal Fêmea foi publicada em maio de


1992, em Brasília (DF), sob a coordenação de um grupo de cinco
mulheres, envolvidas com questões feministas e ligadas ao
Congresso Nacional. Assim reunidas, essas mulheres formaram o
supracitado centro (CFEMEA). Uma das primeiras ações do grupo foi
a criação e veiculação do jornal Fêmea, cujo primeiro exemplar foi
produzido artesanalmente, ainda em uma folha de papel A4, na
sede da ONG.
O cabeçalho do jornal traz juntamente com os dados básicos
de especificação de um periódico (nome, ano, localização e número)
o símbolo do sexo feminino, que acompanha o nome do jornal
(Fêmea). Percebe-se a associação direta do jornal com o projeto de
lei Direitos da mulher na Lei e na Vida2.
Para melhor compreender a proposta do periódico, faremos
a descrição de capa e outras características significativas que podem
ser percebidos em um primeiro contato com Fêmea, para em
seguida fazermos uma análise mais aprofundada de seu conteúdo
discursivo, conforme vemos a seguir.

2
O Programa institucional Direitos da Mulher na Lei e na Vida, formulado
em 1992 conta com três frentes: monitoramento das proposições
legislativas incluindo acompanhamento orçamentário, e assessoria a
parlamentares com atenção especial à Bancada Feminina; articulação com o
Movimento de Mulheres e entidades afins – articulação com as organizações
do movimento de mulheres e construção de parcerias e alianças visando à
promoção e defesa dos direitos e da cidadania das mulheres, especialmente
no âmbito do Legislativo; Comunicação Política sobre Direitos das Mulheres e
Equidade/Igualdade de Gênero – realização de estudos, democratização de
informações e difusão de opiniões, através do Jornal Fêmea e de outras
publicações próprias, de site institucional, e de assessoria de imprensa
junto a jornais, revistas, e emissoras e programas de rádio e de televisão.
Fonte:http://bibliotecadigital.abong.org.br/bitstream/handle/11465/267/C
FEMEA_cidadania_mulheres_legislativo_federal.pdf?sequence=1&isAllowed=
y.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 227
Gerlice Teixeira ROSA

Fig. 1 – Capa do jornal Fêmea, de maio de 1992

(Fonte: Fêmea, 1992, p. 1)

Para complementar a compreensão sobre o jornal, voltamos


à fala da líder feminista em questão. Ela afirma que havia o
interesse das precursoras do jornal em identificar com clareza que
se tratava de uma produção de mulheres, com conteúdo ―não
mulherista‖. Para a representante do CFEMEA, a categorização
―mulheristas‖ refere-se a temas preconceituosamente classificados
como sendo femininos e, portanto, tratados superficialmente.
Dentre eles, destacam-se as categorias: beleza, culinária,
comportamento e futilidades.
Fêmea, como é fácil de se notar, queria fugir desse
paradigma mas, ao mesmo tempo, identificar-se como um periódico
de interesse das mulheres. Portanto, o nome Fêmea foi pensado
como identificação do universo feminino, juntamente com o
símbolo da mulher – imagem que metaforiza a deusa Vênus
segurando um espelho. Outra forma utilizada pelas editoras para
especificar seu discurso aparece ainda no cabeçalho com a definição
do vínculo estabelecido entre as produtoras do jornal e o CFEMEA.
Lê-se na capa do jornal, logo abaixo do título Fêmea:
________________________________________________
CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria
Projeto direitos da mulher na Lei e na Vida
Caixa Postal 153.061 – 709 10 – Brasília/D

Se retomarmos o contrato midiático (Charaudeau)


estabelecido entre as duas instâncias (produção e recepção),
percebemos – a partir do produto discursivo – que o público
destinatário (parece) interessar-se por política e legislação e deseja
acompanhar o andamento das ações no Congresso sobre legislação
e violência (que envolve as mulheres). Ou ainda, o jornal (enquanto
instância produtora de conteúdos e veiculadora de discursos)

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 228


Maternidade, lei e trabalho: a identidade cidadã da luta feminina

pretende motivar esse tema em seus leitores e o faz por meio da


publicação de tais assuntos.

2. O eu revelado em nós

Para este estudo, analisamos as cinco primeiras edições do


jornal, especialmente os temas tratados e a maneira como as
editoras se referem às mulheres, com o intuito de verificar a
construção identitária formada a partir desta narrativa jornalística.
Após leitura e fichamento dos jornais em questão,
identificamos os itens lexicais selecionados para identificar a
mulher brasileira, sob a perspectiva de Fêmea. Tomamos as palavras
de Charaudeau para nos auxiliar na compreensão da seleção lexical
e suas implicações para o discurso. Segundo o linguista,

[...] o sujeito enunciador emprega diferentes palavras,


escolhendo-as em suas memórias: a discursiva, aquela
que se refere às situações de comunicação por ele
vividas ou pressentidas e a memória dos signos da
língua, na qual vai ou deve se comunicar
(CHARAUDEAU, 2004, p. 19-20).

Desse modo, compreendemos que as palavras usadas no


jornal são, pois, carregadas de sentido, marcadas historicamente
por elementos sociais, representacionais e reveladores da própria
maneira como os sujeitos percebem e contam o mundo ao seu
redor.
De modo geral, encontramos os referentes mais usados no
jornal: cidadã, mulher (brasileira), as referências coletivas (equipe,
organização, entidades de mulheres) e as profissionais. Os referentes
utilizados apenas uma vez mostram uma imagem pouco valorizada
pelo grupo editorial. Listamo-los na sequência: companheiras, donas
de casa, estudantes, pesquisadoras, operárias, mulheres
negras/lésbicas, mulher casada, meninas escravizadas.
Os referentes coletivos aparecem, geralmente, nos momentos
em que se faz uma convocação (chamamento) ou quando se exalta a
atuação de determinado grupo em prol de um benefício para as
mulheres. Vejamos um exemplo. No primeiro exemplar publicado
por Fêmea, há uma nota explicativa sobre o Projeto Direitos da
Mulher na Lei e na Vida. No texto, destacamos dois momentos
principais em que as referências coletivas de mulher são
apresentadas:
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 229
Gerlice Teixeira ROSA

Com o objetivo de eliminar as discriminações à mulher


na legislação e promover as articulações necessárias
entre as organizações de mulheres e o Congresso
Nacional, foi lançado, no mês de março, o Projeto
DIREITOS DA MULHER NA LEI E NA VIDA. É propósito do
Projeto manter os movimentos de mulheres
sistematicamente informados sobre as proposições
relativas às questões da mulher em tramitação na
Câmara e no Senado (Fêmea, 1992, n. 1, p. 2, grifos
nossos).

A partir da fala do grupo editorial, certificamo-nos sobre o


público destinatário da publicação, elemento essencial para
compreendermos melhor o contrato que se estabelece entre os
sujeitos participantes de tal interação discursiva mediada. O jornal
destina-se aos grupos de mulheres que se interessam pela
reivindicação de seus direitos. As editoras falam em organizações de
mulheres e movimentos de mulheres, o que nos remete à
coletividade, a uma identidade projetada de um grupo. Amossy
(2010, p. 159) auxilia-nos na compreensão de tal organização
discursiva. Segundo ela,

Não se trata, portanto, de uma simples adição de


indivíduos, mas de um alargamento do nível inicial que
constitui o eu, de uma abertura em direção ao outro que
o pronome plural engloba na constituição de uma nova
entidade3.

Nesse sentido, notamos em Fêmea um grupo organizado de


mulheres (CFEMEA) que fala para outros grupos de mulheres
interessadas em saber sobre seus direitos. A perspectiva de
alargamento do eu (explorada por Amossy, 2010) é facilmente
percebida na relação dialogal estabelecida entre os grupos. Logo no
primeiro editorial publicado, CFEMEA encerra seu discurso com uma
interação direta com os leitores: ―Aguardamos sua contribuição‖

3
Tradução nossa de: ―Il ne s‘agit donc pas d‘une simple addition d‘individus,
mais d‘un élargissement du noyau initial que constitue le moi, d‘une
ouverture vers l‘autre que le pronom pluriel englobe dans la constitution
d‘une nouvelle entité‖ (AMOSSY, 2010, p. 159).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 230
Maternidade, lei e trabalho: a identidade cidadã da luta feminina

(FEMEA, 1992, n. 1, p. 2, grifo nosso). O pronome possessivo na


terceira pessoa insere o interlocutor no discurso produzido pelo
jornal. A partir dessa interação construída, espera-se, portanto, que
os leitores participem enviando contribuições para a seção Opinião
(conforme solicitado no editorial) e também se envolvam pelas
questões assinaladas pelo jornal (as que serão pautadas pelo
Congresso Nacional e que dizem respeito à mulher).
Podemos extrair do discurso a ideia de que Fêmea, por ser
um periódico feminista, importa-se com as outras representações de
mulher, além das construídas e sustentadas pelo senso comum (e,
especialmente, pela sociedade machista). Essa conclusão também se
referencia pela pequena recorrência do termo mãe carregado de
afetividade e bastante pathemico. O apelo à maternidade se dá,
portanto, em torno das leis que protegem a mulher grávida e a
beneficiam. Podemos conferir tal posicionamento discursivo a partir
do seguinte excerto: ―A discriminação à mulher grávida é um
assunto preocupante, que já vem sendo trabalhado por alguns
parlamentares‖ (Fêmea, 1992, n. 1, p. 4). A partir dessa frase,
constrói-se uma sequência discursiva que evidencia os projetos de
lei com essa pauta em trâmite no congresso nacional e prioriza a
ação da equipe CFEMEA em torno dessa reivindicação.
O termo (cidadã) é utilizado ainda pelo seu contraponto. A
compreensão dada à noção de mulher como cidadã é contestada a
partir do artigo de Márcia Turcato (assessora da Senadora Eva Blay)
sobre a descriminalização do aborto. A assessora questiona a noção
de cidadania feminina, uma vez que elas (as mulheres) não são
capazes de decidir sobre o seu próprio corpo, em função da
criminalização do aborto. A jornalista afirma: ―Apesar do esforço
organizado e do ânimo cada vez maior existente entre nós
mulheres, somos ainda cidadãs incompletas‖ (Fêmea, 1993, n. 5, p.
7).
Essa compreensão da mulher cidadã surge no jornal Fêmea
como fruto do incentivo à participação da mulher na política e da
visão da lei como instrumento de garantia dos direitos femininos.
Emerge, pois, do discurso a mulher cidadã, integrante de um Estado
e, em decorrência disso, capaz de usufruir de direitos que garantam
sua integridade.
Diante dos elementos acima discutidos, retomamos a
reflexão de Machado (2012, p. 190), ao afirmar que ―[...] todos os
enunciados, ou atos de linguagem ou ainda atos comunicativos,
jogados na arena discursiva, não são aleatórios: eles têm uma razão

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 231


Gerlice Teixeira ROSA

de ser‖. Nesse sentido, em Fêmea, a seleção lexical feita tem também


sua razão de ser para produzir a narrativa jornalística adequada às
pretensões do periódico, à imagem desejada pelas editoras para
publicizar a figura feminina no Brasil.
A seguir, discutiremos em que medida a definição dos temas
também é capaz d contribuir para que a mulher fale de si mesma,
ou seja, enquanto instância de produção capaz de ter voz e propor
uma representação da mulher também através das temáticas
pautadas em suas publicações.

3. Temas e suas implicações no discurso

De forma pontual, pudemos verificar que os temas mais


recorrentes nas cinco edições foram os seguintes: maternidade,
violência, legislação, mercado de trabalho e política.Desse modo, nos
foi possível tirar algumas conclusões a respeito do destinatário
almejado por esse veículo de comunicação e, em certa medida, da
própria representação da mulher assumida pelo grupo editorial.
A análise dos temas do jornal mostra que política e
legislação são temas recorrentes em praticamente todas as suas
cinco primeiras edições. Se retomarmos os critérios elencados por
Wolf (2003) na definição do que é notícia, a proximidade é definida
como critério de noticiabilidade. Da mesma forma que em Mulherio,
aqui a proximidade temática é destaque. São publicadas notícias que
fazem referência aos temas de interesse das mulheres, de forma
particular, pautas discutidas no Congresso Nacional e que
pretendem beneficiar a mulher em aspectos sociais e políticos.
Desde o primeiro exemplar o tema legislação aparece
estampado nas capas do jornal em foco. As manchetes chamam a
atenção do leitor: Atuação dos Parlamentares na Legislação sobre a
Mulher, Congresso volta a discutir projetos de saúde, Mulheres
discutem proposta de reformulação do Código Penal, CPI constata
esterilização indiscriminada de mulheres, CPI quer modificar código
penal. Os títulos colocam em cena a atuação das mulheres junto ao
Congresso Nacional, suas ações em favor da reivindicação de seus
direitos e o processo de alteração das leis para que se tornem
favoráveis à mulher brasileira.
Interessante é observar a maneira como tal tema se organiza
no periódico. Há momentos em que a legislação aparece
reproduzida no jornal tal como foi apresentada no Congresso; em
outros momentos, ela surge com uma análise e avaliação de suas

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 232


Maternidade, lei e trabalho: a identidade cidadã da luta feminina

implicações ou de suas motivações iniciais.


Diretamente ligada à legislação, a participação das mulheres
na política é evidenciada em todas as edições analisadas. Esses dois
temas estão intrinsecamente relacionados e, podemos arriscar a
dizer, que um reflete o outro. À medida que o jornal coloca em cena
a participação da mulher no Congresso Nacional, na alteração das
leis, ele faz emergir o tema política e, consequentemente, a imagem
da mulher que se interessa por tal assunto. Os desmembramentos
do tema são diversos, desde o movimento das mulheres a favor do
impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, divulgado
através da publicação do ―Manifesto à nação‖, com a lista de grupos
de mulheres que apoiaram a ação de retirada de Collor do poder até
a atuação de parlamentares na busca pelos direitos da mulher.
Todos esses assuntos evidenciam a temática do Brasil na década de
1990.
A questão do mercado de trabalho é tematizada com
frequência em Fêmea. Os desmembramentos do tema são
diversificados: direitos da mulher no mercado de trabalho,
igualdade salarial, licença maternidade, direitos da trabalhadora
rural, qualificação profissional e discriminação no trabalho. Desse
discurso, recortamos a importância dada à participação das
mulheres na luta por seus direitos. Ao noticiar os projetos de lei
relacionados à discriminação da mulher no mercado de trabalho, as
editoras de Fêmea fazem um chamamento direto:

O substitutivo se encontra na pauta de votação da


Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal. É
importante que as mulheres de todo país mandem
telegramas e mensagens aos senadores pedindo a
aprovação desta matéria. (Fêmea, 1992, n. 1, p. 4).

O jornal dá destaque ao substitutivo proposto pelo senador


Wilson Martins e elaborado a partir de discussões realizadas pelo
próprio CFEMEA junto à Comissão de Trabalho da Câmara.
Podemos pensar em um esquema de construção do mundo,
na perspectiva do discurso mediado de Fêmea. O CFEMEA,
responsável pela publicação do jornal, é duplamente intermediário.
De um lado, o grupo busca assessorar deputados e representantes
políticos em suas ações no Congresso Nacional, para se adequarem
às necessidades da mulher brasileira. De outro, faz a divulgação de
suas próprias ações no jornal Fêmea, visto como instrumento de

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 233


Gerlice Teixeira ROSA

articulação entre os grupos de mulheres e de publicização de ideias,


pensamentos e propostas a favor dos mesmos.
Ainda na perspectiva da compreensão da coletividade no
jornal, destacamos o CFEMEA (enquanto grupo organizado de
mulheres) que é por vezes citado e evidenciado nas publicações. Em
praticamente todas as edições analisadas, as ações do centro
feminista são projetadas com ênfase. Os verbos relacionados ao
sujeito CFEMEA implicam sempre ação, atitude, movimento, tais
como: ressaltou, elaborou, realizou.
Verificamos no trecho seguinte: ―O centro feminista de estudos e
assessoria elaborou uma relação dos projetos sobre planejamento
familiar que estão tramitando na Câmara dos Deputados, para
enviar aos movimentos de mulheres (...)‖ (Fêmea, 1992, n. 4, p. 7,
grifo nosso). No trecho selecionado, o CFEMEA é destacado pela sua
importância na publicização dos projetos que transitam no
Congresso. A ação laboriosa de relacionar os projetos referentes à
mulher é creditada à organização feminista.
Em outro momento, o jornal lança nota sob o título CFEMEA
repudia racismo. O verbo com forte carga semântica no título é
sustentado pela força discursiva da sequência da notícia.

O Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA)


protesta contra a nota racista publicada na Coluna de
Marcone Formiga, do jornal Correio Braziliense, sobre a
Deputada Benedita da Silva (PT-RJ)‖ (FEMEA, 1992, n. 3,
p. 8, grifo nosso).

As ações de repudiar e protestar delineiam o caráter ousado,


militante e categórico do jornal, atestado já no editorial de sua
primeira publicação, onde se lê:

Para uma ação ágil e integrada das organizações de


mulheres visando uma legislação não discriminatória
precisamos fortalecer nossa articulação em todo o país.
O FÊMEA é um instrumento do Projeto DIREITOS DA
MULHER NA LEI E NA VIDA para isto (Fêmea, 1992, n. 1,
p. 2).

Sendo assim, o jornal apresenta sua capacidade de ser


instrumento na realização do projeto do CFEMEA: tornar conhecidos
os projetos relacionados à mulher, em trâmite no Congresso
Nacional e incentivar a participação das mesmas na defesa dos seus
interesses.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 234
Maternidade, lei e trabalho: a identidade cidadã da luta feminina

Breves Considerações

As reflexões empreendidas auxiliam-nos a retomar a imagem


da mulher e as narrativas por elas estabelecidas. Sabemos que por
séculos a mulher busca sua emancipação, visibilidade,
reconhecimento no mercado de trabalho, em Fêmea, porém, a
mulher surge como aquela que avalia os direitos até o momento
alcançados e pretende ampliá-los, adaptá-los, registrá-los
(seguramente) a partir da legislação brasileira.
A análise das edições do jornal levou-nos a verificar que são
temas recorrentes: maternidade, violência, legislação, mercado de
trabalho e política. Tal observação apresenta algumas conclusões a
respeito do destinatário almejado por esse veículo de comunicação
e, em certa medida, da própria representação da mulher assumida
pelo grupo editorial.
Fruto do incentivo à participação da mulher na política e da
visão da lei como instrumento de garantia dos direitos femininos,
emerge do discurso a mulher cidadã, integrante de um Estado e, em
decorrência disso, capaz de usufruir de direitos que garantam sua
integridade.

Referências

AMOSSY, Ruth. La présentation de soi – ethos et identité verbale.França:


Presses Universitaires de France, 2010.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2007.

______. Identidade social e identidade discursiva, o fundamento da


competência comunicacional, In: PIETROLUONGO, M. (Org.) O trabalho da
tradução. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009, p. 309-326., 2009, consultado
em 15 de junho de 2015, no site de Patrick Charaudeau - Livres, articles,
publications.
URL: http://www.patrick-charaudeau.com/Identidade-social-e-
identidade.html

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 235


Gerlice Teixeira ROSA

______. Visadas discursivas, gêneros situacionais e construção textual. In:


MACHADO, I. L. e MELLO, R. (org.) Gêneros e reflexões em análise do
discurso. Belo Horizonte, Nad/Fale-UFMG, 2004, p. 13-41.

FEMEA, Brasília: CFEMEA, 1992.

GROSSI, M. P. Em busca de Outros e Outras: Gênero, Identidade e


Representação. In: ANTELO, R (org). Identidade &
Representação.Florianópolis: UFSC, 1994, p. 335-347.

MACHADO, I. L. Algumas reflexões sobre elementos de base e estratégias da


Análise do Discurso. Revista de Estudos da Linguagem. Belo Horizonte,
2012, v. 20, n. 1, p. 187-207.

WOLF, Mauro. Teorias da comunicação de massa. São Paulo: Martins Fontes:


2003.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 236


A IMPORTÂNCIA DO PROFESSOR NO PROCESSO DE
APROXIMAÇÃO ENTRE ALUNO E LITERATURA NA
BIBLIOTECA ESCOLAR

Gisleine de Oliveira TENÓRIO


UEL

Resumo: Este artigo reflete sobre a importância de se formar


leitores literários e as práticas de leitura na escola, apresentando
biblioteca e bibliotecário como parceiros do Professor regente na
formação de leitores. Abordou-se leitura como aprimoramento da
formação humana, desenvolvendo cidadãos críticos, realizou-se
pesquisa bibliográfica documental em livros teóricos e documentos
oficiais para verificar como a formação do leitor deve ser realizada
na escola, apontar o valor da Literatura na formação humana e
realçar o significado da mediação de leitura na formação do leitor. O
professor deve utilizar biblioteca e seu gestor para desenvolver a
leitura, contribuindo para o amadurecimento literário.

Palavras-chave: Leitor; Literatura; Ensino; Biblioteca.

Introdução

O conceito de leitura pode ser considerado amplo. Este


trabalho baseia-se na ideia de que leitura não é o simples fato de
identificar as letras do alfabeto, mas dar sentido a um texto como
afirma Paulo Freire ―A leitura do mundo precede a leitura da
palavra‖ (FREIRE, 1989, p. 9).
Percebe-se que um indivíduo em fase de alfabetização
consegue nomear objetos comuns de seu cotidiano, compreende
uma conversa, uma ação, um gesto, mas quando se trata da escrita –
ato de decodificar a palavra – primeiramente inicia-se identificando
as letras que compõem as palavras já utilizadas em seu cotidiano e
depois é que consegue estabelecer uma relação entre objeto,

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Gisleine de Oliveira TENÓRIO

significado e palavra escrita.


Ler não é somente identificar e compreender a palavra
escrita isoladamente, mas é a leitura do texto como afirma
Foucambert (1998, p. 103) ―não separa a compreensão da
identificação, a expectativa da sua verificação, e esta operação única
é muito mais rápida, por ser de outra natureza, que a soma de duas
operações sucessivas.‖
Por isso, quando lemos estabelecemos diversas relações
entre situações já vivenciadas, conceitos estabelecidos
anteriormente, permitindo que o indivíduo construa seu
conhecimento e exerça a imaginação. Para Martins (1990, p. 20),
leitura ―significa uma conquista de autonomia, permite a ampliação
dos horizontes‖, sendo também ―a ponte para o acesso educacional
eficiente, proporcionando a formação integral do indivíduo‖
(MARTINS, 1990, p. 25).
É essa ponte que o educador deve fazer, apresentando uma
autonomia que deve ser constante para o educando, desde o início
de sua formação leitora, para que ele utilize as leituras como meio
de descoberta do mundo que o cerca, tornando-se livre.
De acordo com Bordini e Aguiar (1993, p. 10):

A ampliação de conhecimento que aí decorre permite-


lhe compreender melhor o presente e seu papel como
sujeito histórico. O acesso aos mais variados textos,
informativos e literários, proporciona, assim, a tessitura
de um universo de informações sobre a humanidade e o
mundo que gera vínculos entre o leitor e os outros
homens. A socialização do indivíduo, se faz, para além
dos contatos pessoais, também através da leitura,
quando ele se defronta com produções significativas
provenientes de outros indivíduos, por meio do código
comum da linguagem escrita.

Cabe aos educadores aproximarem os educandos da


linguagem escrita, permeando as leituras no cotidiano escolar,
destinar um momento para leitura de livros, incentivá-los a
folhearem as páginas, pois essa influência permite desenvolverem e
adquirirem hábitos culturais que auxiliam no seu desenvolvimento.

1. Importância da leitura transformadora

O homem é um ser em constante evolução. Foram diversas

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 238


A importância do professor no processo de aproximação

as transformações ocorridas; primeiramente biológicas e, depois,


anatômicas, que se apoiavam no nascimento da vida em sociedade.

Começavam a produzir-se, sob a influência do


desenvolvimento do trabalho e da comunicação pela
linguagem que ele – o homem -suscitava, modificações
da constituição anatômica do homem, do seu cérebro,
dos seus órgãos dos sentidos, da sua mão e dos órgãos
da linguagem; em resumo, o seu desenvolvimento
biológico tornava-se dependente do desenvolvimento da
produção. Mas a produção é desde o início um processo
social que se desenvolve segundo as suas leis objetivas
próprias, leis sócio-históricas. A biologia pôs-se,
portanto, a ―inscrever‖ na estrutura anatômica do
homem a ―história‖ nascente da sociedade humana.
(LEONTIEV, 1978, p. 262)

Após o surgimento da espécie homo sapiens, o homem


inicia uma fase de desenvolvimento que é muito mais sócio-histórica
do que anatômica. É a partir dessas mudanças sociais que o homem
adquiriu comportamentos, conjuntos de ideias, símbolos e práticas
sociais, que foram aprendidos de geração em geração na vida em
sociedade. Isso recebeu o nome de cultura. Para Taylor (1817)
―tomando em seu amplo sentido etnográfico [cultura]é este todo
complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis,
costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo
homem como membro de uma sociedade‖ (apud LARAIA, 2006).
A cultura é algo cumulativo que resulta na adaptação do
homem aos diferentes ambientes a partir de conhecimentos e
experiências acumulados ao longo das gerações que o antecederam,
as quais apresentam inovações e invenções nos meios naturais em
que vivemos.
Um homem sem cultura equipara-se a um animal, não
possui linguagem e nem pensamentos externados (LEONTIEV, 1978).
Dessa forma, só é possível adquirir a cultura, se ela for transmitida
de geração para geração, isto se dá mediante a comunicação.
Em nós, seres humanos, a comunicação se dá pela
linguagem. Para Leontiev (1978) ―a aquisição da linguagem não é
outra coisa senão o processo de apropriação das operações de
palavras que são fixadas historicamente nas suas significações‖. A
partir desse processo de interação pela linguagem é que se adquire
a cultura humana.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 239


Gisleine de Oliveira TENÓRIO

Para Vygotsky (1993, p. 104),

uma palavra sem significado é um som vazio; o


significado, portanto, é um critério da ―palavra‖, seu
componente indispensável. [...] do ponto de vista da
psicologia, o significado poderia ser visto como uma
generalização ou um conceito. E como as generalizações
ou os conceitos são inegavelmente atos de pensamento,
podemos considerar o significado como um fenômeno
do pensamento.

Na concepção de Bakthin e Vygotsky, a linguagem é o que


possibilita a interação social, fornecendo o sentido das coisas e tem
papel essencial na formação do caráter e do pensamento do
indivíduo. Oliveira afirma que, para Vygotsky, "a principal função da
linguagem é a de intercâmbio social: é para se comunicar com seus
semelhantes que o homem cria e utiliza os sistemas de linguagens"
(1993, p. 42).
A linguagem adquire grande importância nas relações
sociais, principalmente quando se analisa a escola, pois trata-se a
educação como prática intimamente ligada às relações entre as
classes. Essa deve ser vista como meio de interação e mediação
sendo o aluno capaz de fazer essas relações na sua construção do
significado da linguagem e do seu discurso, esta teoria é o
sociointeracionismo.
Para Bakthin ―a enunciação é o produto da interação de
dois indivíduos socialmente organizados‖ (BAKHTIN, 1992, p. 112),
assim, a linguagem é vista como um fenômeno social e parte
inseparável da comunicação verbal, sendo determinado pelas
relações que faz com a realidade.
Daí surge a importância que as práticas de leitura e escrita
têm em nossa sociedade. É por meio delas que aprimoramos a
formação humana, propiciando o desenvolvimento de cidadãos
críticos e conscientes de seus atos.
A dificuldade em localizar informações dentro de um texto
é gerada pela insuficiência do convívio com o mundo da escrita e
suas convenções próprias, resultando em dificuldades de ascensão
profissional e de desenvolvimento da autoestima a ponto de não
conseguir ser autônomo na sociedade e no grupo em que vive.
Nesse contexto, Martins (2003, p. 30-31) caracteriza leitura
como ―um processo de compreensão de expressões formais e
simbólicas, não importando por meio de que linguagem‖. Ler deve

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 240


A importância do professor no processo de aproximação

ser mais do que apenas decodificar palavras, uma prática a qual


podemos compreender o que está escrito, questionar e filtrar as
informações. Ser leitor é, antes de tudo, levantar questões e
apontamentos a respeito daquilo que nos é passado.

A leitura crítica é condição para a educação libertadora,


é condição para a verdadeira ação cultural que deve ser
implementada nas escolas. A explicitação desse tipo de
leitura, que está longe de ser mecânica, isto é, não-
geradora de novos significados, será feita através da
caracterização de exigências com o qual o leitor crítico
se defronta, ou seja, constatar, coletar e transformar.
(SILVA, 2005, p. 51)

O espaço em que se aprende a ler é a escola e é mediante


ela que se pode desenvolver o hábito da leitura e a leitura crítica das
crianças e adolescentes. Vygotsky prioriza o meio cultural e as
relações sociais no desenvolvimento do indivíduo, destacando a
ideia de que o conhecimento seja adquirido mediante as
experiências vividas e acumuladas, essas são transmitidas por um
elemento mediador. Vygotsky trabalha explícita e constantemente
com a ideia de reconstrução, de reelaboração, por parte do
indivíduo, dos significados que lhe são transmitidos pelo grupo
cultural. (OLIVEIRA, 1993, p. 30)
Entende-se que a leitura, na concepção vygotskyana, é uma
construção de sentido do leitor e sua interação com o texto lido,
também que a partir do grupo social o qual está inserido é possível
ampliar a capacidade leitora.

2. A leitura no ambiente escolar

A maioria dos educadores vê a necessidade dos alunos


criarem um hábito de leitura, mas para desenvolver esse hábito
existe a necessidade de se entender como acontece a leitura dentro
da escola. Para obter uma leitura crítica, é necessário dispor aos
alunos a possibilidade de escolha. Os alunos, desde pequenos
devem ter o direito de escolher os livros que têm interesse, fato esse
que muitas vezes fica prejudicado pelo uso de apostilas e materiais
didáticos.
Os livros didáticos, no Brasil, foram criados para facilitar o
processo de ensino e para complementar os livros clássicos
trabalhados em sala. O processo para produção de livros didáticos

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 241


Gisleine de Oliveira TENÓRIO

iniciou-se em 1929, durante o governo de Getúlio Vargas, mas só em


1938 foi criada a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD)
mediante o Decreto-Lei nº 1.006, de 30/12/38 e, ao longo das
décadas, sofreu adaptações. Em 1985 foi elaborado o Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), por meio desse, o governo
permite que o professor escolha o livro mais adequado aos seus
alunos e ao projeto político-pedagógico da escola, mesmo assim o
professor não deve se ater apenas a utilizar o livro didático, pois
limita as atividades. Para Ilari (1985, p. 47)

A maioria dos livros didáticos, sobretudo de primeiro


grau, organizam suas lições em torno de textos curtos
que são tomados como pretexto para introduzir
questões de várias ordens: lexicais, gramaticais, etc.
Alguns elementos de vocabulário são então incluídos na
lição para assegurar uma compreensão pelo menos
literal do texto; umas tantas palavras, supostamente
aquelas que o aluno desconhece [...] sinônimas naquele
texto.

Nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua


Portuguesa (BRASIL, 1997), que orientam os currículos do Ensino
Fundamental e Médio, há enfoque no ensino da leitura, -
principalmente no capítulo ―Os conteúdos de Língua Portuguesa no
Ensino Fundamental‖ –como um dos tópicos de ensino da disciplina
de Língua Portuguesa, mas não apresenta um projeto pedagógico
definido e viável que contribui para o desenvolvimento do ensino da
leitura. Assim, professores até sabem o que deve ser feito, mas não
sabem como fazê-lo.
Por não entender qual a melhor forma de se trabalhar a
leitura na escola, há a ideia de que o aluno deve fazer a leitura de
livros para que haja uma prova sobre o conteúdo do mesmo.

A idéia de que temos que fazer alguma coisa com o livro


após tê-lo lido levou muita gente, apesar de bem
intencionada, a criar um dos vícios pedagógicos mais
difíceis de ser removidos ou alterados: aplicação de
prova sobre o texto literário lido. Essa mesma prova tem
afugentado, calma, metódica, cotidiana e infalivelmente,
milhares de crianças e jovens do prazer da leitura.
(GARCIA, 1992, p. 52)

Muitos professores se tornam reféns do livro didático, em


Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 242
A importância do professor no processo de aproximação

que imaginam encontrar todo o saber necessário para sua prática


pedagógica e utilizam o texto literário como um pretexto, isso não
ocorre apenas nas disciplinas de Língua Portuguesa, mas em todas
as disciplinas do currículo. Muitas vezes, os livros apresentam
excertos de textos que estão descontextualizados com a realidade
do aluno e isto compromete a coerência e a coesão dos mesmos.
O professor, ao apresentar a leitura, centra-se somente na
decodificação da escrita, sendo essa uma habilidade mecânica a qual
serve de pretexto apenas para atividades de interpretação e
gramática que não instigam a reflexão crítica do aluno sobre o que
leu. Além disso, os textos que compõem o livro ficam
desatualizados, pois até serem destinados à escola há o processo de
elaboração, produção e entrega do material, sem considerar o tempo
em que ele é utilizado em sala de aula. Essa prática é muito comum
na realidade escolar, resultando em alunos que não gostam ou, pior,
não sabem ler um texto.

O texto não é pretexto para nada. Ou melhor, não deve


ser. Um texto existe apenas na medida em que se
constitui ponto de encontro entre dois sujeitos: o que
escreve e o que lê; escritor e leitor, reunidos pelo ato
radicalmente solitário da leitura, contrapartida do
igualmente solitário ato da escritura.(LAJOLO, 1986, p.
52)

Esses materiais utilizados apresentam,geralmente, uma


leitura limitada, que não estimula a elaboração dainterpretação
própria do aluno e se constituem de exercícios de reprodução,
limitando a análise e reflexão. ―Àsvezes uma simples leitura basta.
Nem tudo o que se lê precisa ser discutido, comentado,
interpretado. Esse é o outro erro que se vê eventualmente em livros
didáticos. A leitura às vezes é como uma música que se quer ouvir e
não dançar‖ (CAGLIARI, 2005, p. 181).
Deste modo, a função do livro didático fica limitada,
considerando que a sala de aula é constituída de alunos que
apresentam diversidade cultural e, por isso, o professor precisa
adequar esse recurso para asala de aula ou a determinada ocasião
de ensino, a fim de valorizar aspectos primordiais na aprendizagem
acompanhar o processo de leitura dos alunos, respeitando a
evolução da aprendizagem e estimulando outras formas para ler
textos diversos.
A aproximação do aluno com o texto, principalmente o
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 243
Gisleine de Oliveira TENÓRIO

literário, não deve partir da obrigatoriedade, ele deve ter autonomia


para escolher suas leituras e rebelar-se contra uma leitura que não
tem afinidade.
É necessário que a escola brasileira seja um lugar que
propague a leitura por fruição e não apenas aquela obrigatória, e
que os alunos possam ter acesso fácil a obras diversificadas, sem
restringir a leitura a textos do livro didático ou leituras voltadas
para algum tipo de avaliação subsequente. Para Zilberman (2003, p.
16)

[...] a sala de aula é um espaço privilegiado para o


desenvolvimento do gosto pela leitura, assim como um
campo importante para o intercâmbio da cultura
literária, não podendo ser ignorada, muito menos
desmentida sua utilidade. Por isso, o educador deve
adotar uma postura criativa que estimule o
desenvolvimento integral da criança.

O professor deve oferecer possibilidades para que o aluno


se torne um leitor competente, despertando as estratégias de leitura
do aluno que podem ser divididas em:estratégias de seleção,
estratégias de antecipação, estratégias de inferência, estratégias de
verificação. Para Solé (1998), há diversos objetivos a serem
alcançados quando lemos:para obter uma informação precisa; para
seguir instruções; para obter uma informação de caráter geral; para
aprender; para revisar um escrito próprio; por prazer; para
comunicar um texto a um auditório; para praticar a leitura em voz
alta; para verificar o que se compreendeu. Para que essas estratégias
de leitura sejam aplicadas e para atingir esses objetivos, é preciso
que os educadores insiram os alunos em atividades que
desenvolvam e aprimorem tais estratégias para que essas leituras
sejam significativas aos alunos e que se sintam capazes de realizar a
leitura de forma eficaz.
Vygotsky trabalha com a concepção de que o
desenvolvimento humano acontece não em decorrência de fatores
isolados que amadurecem, tampouco de fatores ambientais os quais
atuam no organismo para estabelecer seu comportamento. Mas por
meio de trocas recíprocas, entre o indivíduo e o meio, que permeiam
durante toda sua vida. Enfim, o desenvolvimento dos alunos se dá
mediante a aprendizagem obtida pela mediação entre educador e
educando, ampliando os conhecimentos do aprendiz. É interessante
entender como se dá o processo de mediação para esse autor, nessa
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 244
A importância do professor no processo de aproximação

concepção, o mediador deve fazer o educando avançar em sua


capacidade de compreensão a partir de conhecimentos já
consolidados.
Para tanto, esse autor, criou a Zona Proximal de
Desenvolvimento que refere-se a ação que o educador faz para
ampliar os conhecimentos consolidados do educando, concebida
como Zona De Desenvolvimento Real. Assim, busca-se a autonomia
da atuação dos sujeitos e obtém-se a cooperação na construção do
conhecimento. Assim, o individuo pode internalizar o conhecimento
e tornar-se detentor do saber, aplicando-o em suas relações sociais.
No ensino básico, a aproximação livro-leitor deve ter um
mediador, sendo esse o professor que deve entender que a leitura
de um texto literária difere da leitura do texto da apostila ou do
livro didático, bem como a maneira de se trabalhar a literatura.
A literatura deve ser demonstrada como um momento de
reflexão a cerca da leitura realizada, em que os alunos e professor
podem trocar opiniões sobre o texto lido, tirar conclusões e levantar
apontamentos sobre as leituras feitas, e possibilitar uma
aprendizagem sólida sobre o conteúdo, mas sem a obrigatoriedade
de se avaliar a prática da leitura.
Para Zilberman (1985, p. 20)

[...] a proposta de que a leitura seja reintroduzida na


sala de aula significa o resgate de sua função primordial,
buscando, sobretudo a recuperação do contato do aluno
com a obra de ficção. Pois é deste intercâmbio,
respeitando-se o convívio individualizado que se
estabelece entre o texto e o leitor, que emerge a
possibilidade de um conhecimento do real, ampliando
os limites – até físicos, já que a escola se constrói como
espaço à parte – a que o ensino submete.

Para que essa ressignificação da leitura na escola aconteça


é importante que a biblioteca seja uma aliada, pois é a partir dela,
do profissional responsável e da disponibilidade do acervo que se
consegue motivar os alunos a serem independentes e autônomos
em suas leituras.
Para atingir esse objetivo é preciso que o educador da
biblioteca se envolva com a comunidade escolar, estabelecendo
parcerias com os professores desenvolvendo propostas para
formação do leitor e promoção da leitura e acesso à cultura. Silva
(2003, p. 91-92) fala sobre a importância dessa parceria:

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 245


Gisleine de Oliveira TENÓRIO

Quando os dois (professor e bibliotecário), atuando


juntos, construírem boas estradas para que o leitor
efetivamente dialogue assiduamente com esse "mestre
dos mestres‖ [livro], ou seja, com aquele que por si só
ensina sem a intermediação de mais ninguém, então
resultará desse processo a inserção da criança e do
jovem num outro patamar socioeducacional, qual seja o
patamar da independência e autonomia em leitura.

As atividades desenvolvidas devem aproximar o aluno-


leitor e o texto e para isso é crucial conhecer a comunidade escolar e
propiciar atividades que estimulem a leitura ―livre‖, desprendida da
cobrança de leitura para aquisição de conteúdos ou normas
gramaticais.
O educador, seja o regente ou bibliotecário, deve
compreender a importância da literatura na formação humana a fim
de contribuir positivamente nesse processo. Para que a mediação
seja eficiente, é necessário, também, entender o nível de leitura do
educando, considerando as leituras que cada educando faz e está
apto a fazer, aprimorando seuprocesso de desenvolvimento real e
proximal no que se refere à leitura.
Nesse caso não só a sala de aula, mas principalmente, a
biblioteca deve despertar o gosto pela leitura, sendo parte
integrante do processo educativo conforme afirma o Manifesto da
UNESCO sobre a biblioteca escolar. Esse gênero de biblioteca:

[...] proporciona informação e ideias fundamentais para


sermos bem sucedidos na sociedade actual, baseada na
informação e no conhecimento. A biblioteca escolar
desenvolve nos estudantes competências para a
aprendizagem ao longo da vida e desenvolve a
imaginação, permitindo-lhes tornarem-se cidadãos
responsáveis. (UNESCO, 2013)

A biblioteca escolar não deve ser apenas um local onde se


armazena, organiza e se empresta livros, também não basta ter um
acervo atualizado e ser bem localizada, mas precisa ter um
profissional que favoreça o encontro entre o livro e o leitor.
O educador da biblioteca ―deve apresentar qualidades que
o possibilite promover de fato a leitura para que os valores e
conhecimento de nossa sociedade cheguem até as crianças‖

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 246


A importância do professor no processo de aproximação

(BORTOLIN; MARTINS, 2006, p. 35). Garcia (1992, p. 68)


complementa que o educador da biblioteca escolar deve ser ―uma
pessoa com formação pedagógica, capaz de conhecer livros e
leitores, seus interesses; um leitor que, sobretudo, goste
profissionalmente de livros e leitura‖. Logo, observamos que o
profissional-leitor compreende a importância da leitura para a
formação humana e intrinsecamente desperta o gosto pela leitura
em seus alunos, desenvolvendo ações para o estímulo dessa prática.
Cabe reforçar que esse educador pode ou não ter formação
acadêmica específica em biblioteconomia, mas que as características
acima são inerentes à formação do profissional.
Silva (1991) acredita na parceria entre o profissional da
biblioteca escolar e professor quando se trata de leitura, cada um
em uma função específica, o primeiro deve priorizar as condições
para que a criança aprenda a ler e o segundo deve estar integrado ao
professor, cooperando para que a criança desenvolva suas
capacidades de leitura, e pratique em sua vida o ler para aprender.
Com os adolescentes, os educadores devem estar atentos
às preferências literárias de cada leitor, procurar estratégias para
satisfazê-las. Para formar leitores é importante dispensar as leituras
impostas, respeitando as opiniões e o gosto dos mesmos. Não se
deve obrigar e cobrar leituras, pois isso faz com que o sujeito se
afaste ainda mais da leitura.

Conclusão

Mesmo com todo esse avanço em prol da leitura e


letramento, o sistema ainda é falho quando, em uma universidade,
no curso de Letras, não se disponibiliza matérias que abordem
especificamente o tema Leitura e estratégias para cativar os
adolescentes ao universo literário, bem como trabalhar as
dificuldades de leitura e produção de textos. Afinal, o professor
regente deve ser o primeiro a incentivar o hábito de leitura nos
alunos e fazer com que eles descubram o espaço da biblioteca,
quebrando as primeiras barreiras que possam existir entre o aluno e
o livro: a decodificação e interpretação de textos.
Ao estimular a reflexão acerca dos textos lidos, sejam eles
literários ou não, o professor propicia a aquisição de cultura escrita
pelos alunos. Essa deve ser complementada sempre com outras
leituras além das disponíveis nos livros didáticos ou materiais
pedagógicos, é por isso que o educador da biblioteca torna-se um

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 247


Gisleine de Oliveira TENÓRIO

parceiro nesse momento, auxiliando os professores a indicarem


leituras aos alunos, desenvolvendo propostas de promoção à leitura
e formação do leitor.
O educador da biblioteca é um aliado do educador regente
e, portanto, caberá a ele receber bem os usuários, auxiliando-os,
sugerindo leituras diversas, e fornecendo meios para que o usuário
se torne um leitor autônomo. Essa autonomia deve ser despertada
em todos os alunos, não importa com qual idade ele tenha tido
contato com os livros, para que a proximidade com os livros seja a
mais prazerosa possível.
Para que isso ocorra de maneira eficaz, é necessário
atentar-se a todos os fatores que interferem nas estratégias de se
formar um leitor, o ambiente deve ser o primeiro a propiciar a
qualidade no fomento à leitura: bem arejado, com um mobiliário
adequado às idades que frequentam o espaço, o acervo deve ser
diversificado priorizando o contato do aluno com o livro, é
importante ter uma rotina estabelecida para que todos os alunos
usufruam da biblioteca, conhecendo seu acervo e participando de
atividades dentro da biblioteca para se familiarizar com o espaço e
suas regras de convivência, por isso a importância de se planejar
atividades periodicamente para serem realizadas com êxito.
Também é fundamental que a escola tenha educadores
capacitados e que entendam a importância de ser leitor desde o
início da formação escolar proporcionando um contato maior e
valorizando as atividades de leitura promovidas na escola e
biblioteca para que a leitura seja uma constante no cotidiano dos
alunos. Uma biblioteca bem equipada e profissionais capacitados
conseguirão atingir o objetivo de mediar a leitura na escola de
forma eficaz e formar leitores críticos e que possam motivar outras
pessoas a serem leitores.

Referências

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BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, vera Teixeira de. Literatura: a formação

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 248


A importância do professor no processo de aproximação

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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 249


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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 250


POESIA: SUA IMPORTÂNCIA ENQUANTO
PERSPECTIVA (DES)CONSTRUTIVA PARA A AULA DE
LÍNGUA PORTUGUESA

Glauber Mizumoto PIMENTEL


UERJ

Resumo: Inicialmente, este trabalho tem como diretriz a seguinte


questão: em que sentido a poesia é fundamental no processo de
ensino da língua portuguesa para os alunos do ensino médio?
Tendo em vista, a poesia como um apelo primordial e, até mesmo,
fundador do ser humano em sua existência para com a linguagem,
objetiva-se, aqui, traçarmos alguns pontos que possam salientar a
importância deste caráter essencial da linguagem em comparação a
uma perspectiva de ensino que, normalmente, prioriza a leitura de
poesia e, assim, a própria criação literária como meros articuladores
comunicativos de uma língua.

Palavras-chave: Linguagem; Língua portuguesa; Poesia; Ensino.

Palavras iniciais

Ao perguntarmos sobre a importância da poesia para o


ensino de língua portuguesa, somos, então, impelidos a considerar
três pontos cruciais para que possamos avaliar tal relevância.
Primeiramente, devemos pensar sobre o valor que as instituições
pedagógicas dão ao caráter comunicativo para com o ensino de
línguas. No segundo momento, temos em contrapartida, porém, em
perspectiva simétrica, ao valor tradicionalmente atribuído ao caráter
comunicativo para com o ensino de línguas, a relação fundamental
entre poesia e o apelo primordial da linguagem. Num terceiro
momento, devemos, assim, pensar em como nos dispor a este apelo
primordial da linguagem, tendo a sala de aula de língua portuguesa
como um habitar do poético.
Sem desconsiderar uma ou outra metodologia – mas que, em
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
Glauber Mizumoto PIMENTEL

grande parte, se pauta na utilização de poemas como ilustradores


deste caráter comunicativo da língua – focaremos, assim, não,
necessariamente, numa proposta pedagógica, mas, sim, em algumas
possibilidades que refletem a devida relevância da poesia no que diz
respeito à sua essência constitutiva enquanto linguagem, e como
devemos (re)dimensioná-la no processo educacional, pensando,
assim, nas suas implicações filosóficas, políticas e sociais. Pois, além
do seu apelo comunicativo, a língua não só se dá pela "autoridade
da asserção" e/ou pelo "gregarismo da repetição", para falarmos
com Roland Barthes, mas, também, pela sua "trapaça salutar, essa
esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do
poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem
[...]‖ (BARTHES, 1980), conforme o célebre semiólogo bem apontou,
ao abordar sobre a dimensão potencial da literatura, na sua
histórica Aula inaugural, no Colégio de França em 1977.
Num plano geral, tentaremos, pois, situar/comparar as
possíveis sugestões a serem aqui apresentadas em relação ao que se
tem trabalhado como prática pedagógica do ensino de língua
portuguesa no que concerne à literatura – em específico, a poesia.

1. O caráter comunicativo do ensino de línguas

Normalmente, o ensino de língua portuguesa está focado nos


aspectos comunicativos da linguagem, ou seja, a língua é valorizada
no seu caráter utilitário para atender as demandas dos indivíduos
para com um grupo de pessoas, uma comunidade, a sociedade, de
uma forma em geral. Mesmo que tenhamos avançado no campo
teórico e, de certa forma, na práxis, também, no que diz respeito ao
ensino de línguas no Brasil, ainda, assim, refletimos o ensino de
língua, aqui, em especial, a língua portuguesa, sob uma perspectiva
linguística – que tem a comunicação como base para as ações (PCNs,
2000), e, não, uma perspectiva que aborde a língua, essencialmente,
enquanto reflexão da própria linguagem – como base fundamental
do pensamento. Isso fica muito evidente, ao lermos o documento
oficial proposto pelo Ministério da Educação que nos oferece
diretrizes para o ensino de língua portuguesa, nesse caso, em
especial, o ensino médio:

O desenvolvimento da competência linguística do aluno


no Ensino Médio[...]não está pautado na exclusividade do
domínio técnico de uso da língua legitimada pela norma

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 252


Poesia: sua importância enquanto perspectiva (des)construtiva

padrão, mas, principalmente, no saber utilizar a língua,


em situações subjetivas e/ou objetivas que exijam graus
de distanciamento e reflexão sobre contextos e estatutos
de interlocutores – a competência comunicativa vista
pelo prisma da referência do valor social e simbólico da
atividade linguística e dos inúmeros discursos
concorrentes[...] (PCNs, 2000)
Para tal competência comunicativa, precisamos rever o
princípio orientador para os estudos de linguagem ainda proposto
por Saussure em seu Curso Geral de Linguística. Temos, assim, duas
partes: ―[...] uma, essencial, tem por objeto a língua, que é social em
sua essência e independe do individuo, esse estudo é unicamente
psíquico; outra, secundária, tem por objeto a parte individual da
linguagem, vale dizer, a fala, inclusive a fonação e é psicofísica [...]‖
(SAUSSURE, 1995). Temos com essa resposta, a clássica dicotomia
entre langue e parole que permeou boa parte das discussões
linguísticas após os estudos desse grande mestre da linguística
moderna. Sob essa perspectiva, podemos observar que a língua
(langue) é um produto social, enquanto, a fala (parole) é um produto
individual. Nesse caso, a língua ―[...] não constitui uma função do
falante [...] não supõe jamais premeditação, e a reflexão nela
intervém somente para a atividade de classificação‖, já a fala é

um ato individual de vontade e inteligência no qual


convém distinguir: primeiro, as combinações pelas quais
os falantes realizam o código da língua no propósito de
exprimir seu pensamento pessoal; segundo, o
mecanismo psicofísico que lhe permite exteriorizar
essas combinações. (SAUSSURE, 1995)

A concepção sistêmica da linguagem faz com que


consideremos a língua, principalmente, no seu plano combinatório e
previsível, pois o falante deve corresponder, nesse caso, ao código
(pré-estabelecido) da sua língua nativa com a intenção de expressar
seu pensamento pessoal dentro de um contexto e estatuto de
interlocutores. É importante também observarmos que a reflexão do
uso da língua aqui não está atrelada a uma expectativa normativa da
gramática, mas, sim, a uma expectativa da competência
comunicativa da linguagem. Até porque, a ―antiga‖ querela entre os
gramáticos normativos e os linguistas tem rendido, relativamente,
bons resultados para o desenvolvimento dos estudos linguísticos,
de uma forma geral, e que, assim, muito tem contribuído para o

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 253


Glauber Mizumoto PIMENTEL

ensino de língua portuguesa. A nossa questão aqui diz respeito à


relação primordial entre a linguagem e a poesia, ou melhor, a poiesis
no seu sentido de construção inaugural do pensamento, e como essa
questão afeta essencialmente o processo de ensino e aprendizado
de línguas, no nosso caso, em especial, a língua portuguesa. Ou seja,
tratar a linguagem, em seu caráter comunicativo, nesse caso, é
apenas uma parte – não menos importante – da reflexão sobre a
língua. Por outro lado, compreender também a importância da
poesia como uma via da linguagem – que falaremos, melhor, mais
adiante – é uma possibilidade de atentarmos ao apelo primordial ao
que nos diz e conclama a existência do humano. Como Lyons
salientou no seu famoso Linguagem e Linguística, perguntar ―o que
é linguagem?‖ tem o mesmo valor significativo da pergunta ―o que é
a vida?‖ (LYONS, 1987), apesar de ele chamar nossa atenção para
que enfoquemos tais perguntas, sob uma perspectiva cientifica, ou
seja, linguística, privilegiando, assim, menos o seu valor filosófico
do que as suas implicações cotidianas a suscitarem e encaminharem
questões a serem abordadas por este campo de pesquisa. Tratar a
linguagem, sob uma perspectiva mais filosófica, trazendo essa
abordagem para o ensino de línguas no ensino médio, seria, então,
algo inusitado pelo fato da disciplina de língua portuguesa estar, a
priori, muito mais comprometida com os conceitos científicos da
língua do que com a filosofia, a poesia, e com a própria literatura,
de uma forma geral. Temos, então, um outro ponto a ser
considerado em relação ao caráter comunicativo da língua: o
tratamento secundário, para não dizer desprivilegiado, em relação
aos estudos sobre arte e filosofia em nosso processo educacional.
Há ainda uma dissociação, talvez agora um pouco mais velada, entre
a disciplina de língua portuguesa e suas literaturas. Ora, ao
tratarmos a poesia como uma categoria específica da linguagem -
nesse caso, uma categoria artística - estamos, apenas,
correspondendo a uma condição social na qual a arte tem um posto
secundário no que diz respeito à formação de uma sociedade. Pois
ao pensarmos numa estrutura social moldada nos preceitos da
república ideal de Platão, veremos que, desde a origem desta
proposta ideal, a poesia foi colocada à margem:

- Refletindo, bem, das muitas excelências que percebo na


organização de nossa cidade nenhuma há que me agrade
mais do que a regra relativa à Poesia.
- Que regra é essa? – perguntou Glaúcon.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 254


Poesia: sua importância enquanto perspectiva (des)construtiva

- A rejeição da poesia imitativa, que de modo algum


deve ser admitida; vejo-o agora com muito mais clareza,
depois de termos analisado as diversas partes da alma.
(PLATÃO – Ed. EDIOURO)

Apesar dos diálogos de Platão terem sido alvo de muitas


críticas, ao longo da história do pensamento ocidental, que é, de
certa forma, fundado pela filosofia platônica, faz-se necessário,
entretanto, considerarmos a relevância que este filósofo ainda
exerce sobre a concepção sistêmica em que se pauta toda a cultura
ocidental. Podemos perceber isso com relativa clareza, ao
considerarmos a perspectiva mais atualizada em relação ao ensino
de literatura proposta pelas Orientações Curriculares para o Ensino
Médio:

Embora concordemos com o fato de que a Literatura


seja um modo discursivo entre vários (o jornalístico, o
científico, o coloquial, etc.), o discurso literário decorre,
diferentemente dos outros, de um modo de construção
que vai além das elaborações linguísticas usuais, porque
de todos os modos discursivos é o menos pragmático, o
que menos visa a aplicações práticas. Uma de suas
marcas é sua condição limítrofe, que outros denominam
transgressão, que garante ao participante do jogo da
leitura literária o exercício da liberdade, e que pode levar
a limites extremos as possibilidades da língua.

Nesse caso, as Orientações Curriculares para o Ensino Médio,


ao demarcarem a especificidade da disciplina de literatura por assim
desenvolver a fruição estética, assumindo, então, a função de um
letramento literário, acabam, assim, por reforçar o isolamento
constitutivo desta disciplina para com o ensino de língua
portuguesa pelo fato desta não se prestar, a priori, a uma concepção
mais pragmática da língua. Tal afastamento somente demonstra que
não há ainda uma consideração mais abrangente, em termos
educacionais e, até mesmo, linguísticos, em relação à poesia
enquanto fator essencial da linguagem. Pois é nesta condição
limítrofe – conforme apresentada na citação – que o falante está
sempre a se lançar não só no jogo da leitura literária, mas, também
e principalmente, no jogo da linguagem como um todo.
Compreender que a linguagem é um jogo no qual o ser
humano está inserido não como um mero e suposto ―domador‖,

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 255


Glauber Mizumoto PIMENTEL

mas, sim, como um articulador atencioso desta soberana – que é a


linguagem em si - encontramos, assim, na poiesis, o estatuto
legítimo de ponto de partida para tal jogada. Ressalta-se que o
presente trabalho não tem a intenção de privilegiar uma abordagem
poética no ensino de língua portuguesa. Entretanto, reivindica-se,
aqui, sim, um olhar, em perspectiva mais simétrica, entre o ensino,
os estudos de língua portuguesa e a poesia – enquanto sentido
essencial da linguagem e, mesmo, como categoria literária de grande
importância para se aprender e ensinar uma língua.

2. A poesia e o apelo primordial da linguagem

Conforme já mencionada anteriormente, de acordo com John


LYONS (1987), ―[...] A pergunta "O que é a linguagem?" é comparável
– e alguns diriam quase tão profunda quanto – a "O que é a vida?
[...]‖. Esta passagem – retirada logo no início do primeiro capítulo do
seu célebre Linguagem e Linguística – nos chama atenção para uma
questão essencial que acaba não sendo o foco primordial da
linguística: O que é linguagem? Isto fica salientado pelo fato de
Lyons, por conta da passagem citada, fazer uma breve observação
da pergunta ―o que é a vida?‖, dizendo que esta ―[...] não é o tipo de
pergunta que um biólogo tenha constantemente diante de si em seu
trabalho cotidiano‖. O próprio linguista aponta a natureza filosófica
da pergunta, confirmando que, ―[...] assim como outros cientistas, o
biólogo normalmente está por demais imerso nos detalhes de algum
problema específico para poder pesar as implicações de questões
tão gerais [...]‖ (LYONS, 1987). Ora, se é a linguagem a essência de
toda possibilidade de reflexão dela própria e, assim, das suas
supostas alteridades, como passar ao largo dela mesma –
principalmente, enquanto questão – ao tratarmos da sua relação
com o ensino de línguas?
Tendo em vista as considerações apresentadas por Lyons a
respeito do caráter científico da disciplina de linguística,
entendendo que esta se afasta, assim, de questões tão gerais, ou,
melhor dizendo, filosóficas, pelo fato dos cientistas estarem
focados nos detalhes de algum problema específico, com o intuito
de encontrarem resposta para tais problemas, valem, aqui, as
palavras do ensaio O que quer dizer pensar? em que Heidegger traça
uma diferença essencial entre ciência e pensamento:

Que a ciência, porém, não possa pensar, isso não é uma


deficiência e sim uma vantagem. Somente esta vantagem
assegura à ciência a possibilidade de, segundo o modo

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 256


Poesia: sua importância enquanto perspectiva (des)construtiva

de pesquisa, introduzir-se num determinado domínio de


observação e aí instalar-se. A ciência não pensa. Esta é
uma declaração que escandaliza a representação
habitual[...] A relação entre pensamento e ciência só se
mostra autêntica e frutífera quando se torna visível o
abismo que há entre as ciências e o pensamento – na
verdade, quando este abismo se revela intransponível
(HEIDEGGER, 2002)

Levando-se em conta a passagem heideggeriana supracitada,


considerando, como visto anteriormente, a linguagem enquanto a
essência de toda possibilidade de reflexão dela própria e, assim, das
suas supostas alteridades, ou seja, a linguagem enquanto estatuto
fundamental do pensamento, faz-se necessário, pois, avaliarmos a
poesia como um apelo primordial da linguagem – conforme o tópico
proposto por esta segunda parte do trabalho. A poesia, nesse caso,
não é só concebida como uma categoria literária, mas, sim,
principalmente, como um ato de reflexão/construção da e pela
linguagem. Pois tendo a linguagem enquanto pensamento, devemos,
nesse caso, admitirmos o valor essencial da palavra poesia – para
assim alcançarmos etimologicamente a palavra poiesis, que nos diz
de um fazer, um construir, em consonância com o apelo primordial
da linguagem, como bem nos propõe a seguinte passagem de
Heidegger:
O co-responder, em que o homem escuta propriamente
o apelo da linguagem, é a saga que fala no elemento da
poesia. Quanto mais poético um poeta, mais livre, ou
seja, mais aberto e preparado para acolher o inesperado
é o seu dizer; com maior pureza ele entrega o que diz ao
parecer daquele que o escuta com maior dedicação, e
maior distância que separa o seu dizer da simples
proposição [...] (HEIDEGGER, 2002)

Considerando que não é habitual a declaração ―[...] A ciência


não pensa [...]‖, conforme sentenciada anteriormente por Heidegger,
devemos, pois, lembrar que a relação entre poesia, linguagem, e
pensamento fundadas, instancialmente, num preparar-se para
―acolher o inesperado‖, é também, nesse caso, um medir-se
extraordinário não necessariamente por uma relação do humano
para com o novo, mas, principalmente, para com o inaugural do que
nos cabe a nos dispor ao que escutamos da linguagem, ou melhor, o
que a linguagem diz para e por nós em seu vigor de essência, assim,
sendo, em seu vigor de pensamento. Portanto, realmente, ao nos
perguntarmos o que é a linguagem, seremos, então, compelidos a

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 257


Glauber Mizumoto PIMENTEL

reforçarmos a questão: o que é a vida? – conforme bem apontou


Lyons, na sua diferenciação entre filosofia e ciência, entre linguística
e linguagem ou para pontuarmos melhor a nossa questão, entre a
sala de aula de língua portuguesa e o ensino de poesia.

3. Sala de aula: poesia como uma via (des)construtiva da e para a


linguagem (uma leitura do “eutro”)

Além do seu apelo comunicativo, a língua não só se dá pela


autoridade da asserção e/ou pelo gregarismo da repetição, para
falarmos com Roland Barthes, mas, também, pela ―[...] sua trapaça
salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a
língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente
da linguagem [...]‖( BARTHES, 1980 ).Ao abordar sobre a dimensão
potencial da literatura, Barthes, então, nos chama a atenção para
esta trapaça salutar que nos permite ouvir a língua fora do poder.
Portanto, ao redimensionarmos este potencial literário, que se dá
com a poiesis, numa perspectiva (des)construtiva que acolha suas
implicações filosóficas, sociais e políticas, temos, assim, uma
maneira de re-avaliarmos a presença da poesia no processo de
ensino de língua portuguesa. Nesse caso, menos que polemizarmos
os valores significativos que cada disciplina tem a nos oferecer, no
processo educacional, mas, sim, re-significar esses mesmos valores,
trazendo-os para junto do apelo que a linguagem nos conclama,
ficamos, assim, com a seguinte questão: até que ponto damos a
devida importância à poesia enquanto apelo primordial da
linguagem?
Para realçarmos o apelo da pergunta anterior, e para que
assim possamos, menos do que responder a tal pergunta, mas, sim,
elaborarmos uma via de vivência do poético, aqui, em específico na
sala de aula de língua portuguesa, vale aqui então uma leitura do
poema ―eutro‖ de Arnaldo Antunes como uma possibilidade
correspondente à esta vivência. Primeiramente, pois, leiamos o
poema:

Intruso entre intrusos intraduzo

o me smo
me
me
me

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 258


Poesia: sua importância enquanto perspectiva (des)construtiva

no me io
yo
i
je
do eu tro (ANTUNES, 2010)

Sobre o poema, inicialmente, é importante observarmos o


processo – quase que antropofágico e telegráfico, à moda de Oswald
de Andrade - em que o poema destroça o eu a brincar assim com a
variação deste sujeito através de possibilidades, principalmente,
fonológicas e visuais que trazem, assim, a configuração de um nós
pautada num eu e um ―eutro‖. Ressalta-se aqui que a performance
lírica deste poema pouco se importa em informar sobre o estado de
espírito do poeta, mas, sim, há, através do propósito da
metalinguagem poética, um esquartejamento do sujeito, para
falarmos com Deleuze, que enquanto poiesis e enquanto linguagem,
―destrói o senso comum como designação de identidades fixas‖
(DELEUZE, 2003). ―eutro‖ – poema que abre o livro ―n.d.a.‖ – como
uma síntese, já traz, assim, uma série de indagações que tangem
não só o livro em questão, mas, também, toda trajetória poética de
Arnaldo Antunes. Este poeta que não é brasileiro, nem estrangeiro,
este poeta que não é de São Paulo, nem do Brasil, este poeta que
nenhuma pátria pariu, está sempre no limiar da linguagem pondo a
palavra à prova da sua ―expressão linguística objetivada‖. (ADORNO,
2008)
Das várias questões provocadas pelo poema, algumas, como
dito anteriormente, de cunho fonológico - como por exemplo as
repetições pronominais que confluem com
a possibilidade de leitura do verso ―no me io‖ que, nesse caso, pode
ser lido tanto como um sintagma verbal como um sintagma
adverbial - outras suscitadas pela visualidade do poema deste poeta
direta e assumidamente influenciado pelos concretistas paulistas,
mais os estrangeirismos suscitados pela repetição do pronome ―eu‖
em francês, espanhol e inglês, o aluno do ensino médio, entretanto,
tende a trazer a seguinte questão à baila quando este poema é
discutido na sala de aula de língua portuguesa: que ―eutro‖ é este?
Ora, perguntar que ―eutro‖ é este, é, pois, perguntar de si
próprio e perguntar do si próprio é, assim, o ponto de partida a
abrir a clareira existencial somente propiciada pela linguagem, pois
só é a linguagem que ―[...] fixa os limites( por exemplo o momento
que começa o demasiado), mas é ela também que ultrapassa os

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 259


Glauber Mizumoto PIMENTEL

limites e os restitui à equivalência infinita de um devir ilimitado‖


(DELEUZE, 2003). Pensar a linguagem, assim, é dar voz às
possibilidades de reflexão que o ser humano pode acessar através
da reflexão da sua própria língua. A poesia, nesse caso, torna-se um
manancial essencial para adentrarmos neste habitar existencial.
Nesse caso, mais do que comunicar e/ou manipular a língua(gem),
consideremos o aspecto soberano do que a linguagem diz ao
humano, ou, melhor, ao pensar a linguagem como o habitar
essencial do humano, percebemos que a poesia: ―[...]enquanto
medição propriamente dita da dimensão do habitar, [...] é um
construir em sentido inaugural. É a poesia que permite ao homem
habitar sua essência. A poesia deixa habitar em sentido originário.
[...] A poesia constrói a essência do habitar. ‖ (HEIDEGGER, 2002)
A palavra assim como na poesia de Arnaldo Antunes, mas,
como também em qualquer condição em que a linguagem se
instaura plena como poiesis, assume, assim, um caráter tão
esquemático e material quanto versátil e dinâmico, e, ao mesmo
tempo, tão técnico e conceitual quanto lírico a, assim,
elucidar/questionar a existência humana, as coisas e/ou apenas
sinalizar - revitalizando através das margens da língua - o próprio
processo em que ela, a língua, e a palavra se realizam -
potencialmente - como poiesis. Consideremos, pois, o conceito de
poiesis, conforme Antunes (2006) afirma, o ―espaço criativo- como
um espaço de potência diante do mundo‖. Essa potência
transformadora - grifo do próprio poeta – (ANTUNES, 2006)talvez
encontre na sua poesia, o refúgio, ou melhor, a sintonia elementar
para a dissonância essencial própria da linguagem em relação ao
conceito comum de que esta está, fundamentalmente, a serviço de
comunicar e expressar.

Notas finais

Ao redimensionarmos o potencial literário, que se dá com a


poiesis, numa perspectiva (des)construtiva que acolha suas
implicações filosóficas, sociais e políticas, temos, assim, uma
maneira de re-avaliarmos a presença da poesia no processo de
ensino de língua portuguesa. A leitura de um poema como ―eutro‖
numa sala de aula de língua portuguesa, não só reflete as
possibilidades de pensarmos a língua portuguesa em sua dinâmica
de língua em potencial transformação como também nos faz avaliar
criticamente a corriqueira dissociação entre o ensino de literaturas e

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 260


Poesia: sua importância enquanto perspectiva (des)construtiva

línguas. Nesse caso, continuamos com a seguinte questão: até que


ponto nós damos a devida importância à poesia enquanto apelo
primordial da linguagem? Ou para nós, professores de língua
portuguesa, até que ponto deixamos, se deixamos, o poético habitar
a nossa sala de aula? Tais questões, quando acolhidas, talvez,
trarão, enquanto acolhidas, não respostas, porém, o cuidado
essencial que a linguagem nos conclama enquanto viva ao ser.

Referências

ADORNO, Theodor W. Teoria Estética Edições 70, Portugal: 2008.

ANTUNES, Arnaldo. Como é que chama o nome disso: Antologia. São Paulo:
Publifolha, 2006.

ANTUNES, Arnaldo. n.d.a. São Paulo: Iluminuras, 2010.

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Editora Cultrix, 1980.

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. 4ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências 2ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

LYONS, John. Linguagem e Linguística – Uma Introdução São Paulo: Ed. Ltc,
1987.

ORIENTAÇÕES CURRICALARES PARA O ENSINO MÉDIO. In:


(http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf)
(2000)

PCN – Língua Portuguesa (Ensino Médio). In:


http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/14_24.pdf(2000)

PLATÃO. Diálogos III A República Rio de Janeiro:Ed. EDIOURO, 1981.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Editora


Cultrix, 1995.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 261


O EPÍLIO DAS GEÓRGICAS IV: EPOS ET ELEGIA ET
DIDASCALICE

Heloísa Maria Moraes Moreira PENNA


UFMG

Resumo: Esse artigo trata do epílio das Geórgicas IV (vv. 315-558),


inserido no contexto didático da obra, reconhecendo nele, como
miniatura épica, as potencialidades de sua filiação: por sua
polifonia, o epílio traz em si a marca da variedade genérica, pondo
em realce a questão antiga de que tipo de poema seria as Geórgicas.
Partindo da voz instrutivo-ritual da ninfa Cirene sobre a bugonia,
essa narrativa enreda-se pela façanha épica da voz encomiástica do
vate marinho Proteu, produz sofrimento pela voz elegíaca do cantor
Orfeu e de sua amada Eurídice e, completando um ciclo, volta à voz
instrutivo-ritual sobre a bugonia.

Palavras-chave:Geórgicas IV; Epílio; Polifonia; Voz didática; Voz


épica; Voz elegíaca

Introdução

Que tipo de poema são as Geórgicas? Essa questão, levantada


e debatida por muitos estudiosos da obra virgiliana1, desde a
declaração de Sêneca2, de que Virgílio tinha em mente encantar os
leitores e não instruir fazendeiros, advém, certamente, conforme

1
Para Wilkinson (1966, p. 74) as Geórgicas são pseudodidáticas, primeiro
poema descritivo da literatura.
2
Lúcio Aneu Sêneca, epístola 86, parágrafo 14, ao citar um verso das
Geórgicas II: ut ait Vergilius noster, qui non quid verissime sed quid
decentissime diceretur aspexit, nec agricolas docere voluit sed legentes
delectare.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
O epílio das Geórgicas IV: epos et elegia et didascalice

afirmam Körte et Händell, 1973 (pp. 223-4) da opção do poeta 3 de


tratar, em versos hexâmetros, um tema árido e difícil, para elevação
da exposição didática por meio do estilo poético. Acrescido a isso se
tem a já reconhecida abrangência de formas da poesia didática,
exatamente por sua filiação com a épica. Pode-se dizer com Toohey,
1996, (pp. 6-7) que a poesia didática apresenta certa elasticidade
que lhe permite acomodar, dentro de si, uma variedade de gêneros,
derivada de sua multíplice intencionalidade.
Dentro do contexto didático das Geórgicas IV, como etiologia
para a bugonia, o poeta Virgílio criou uma pequena narrativa épica
das façanhas de Aristeu e, inserido nela, o mito trágico de Orfeu (vv.
315-558). Esse epos ou epílio, como a obra em que se encontra, traz
em si a marca da variedade genérica, pondo novamente em realce a
questão inicial do trabalho, já levantada por Gale (2000, p. 56), de
como classificar as Geórgicas. O entrelaçamento textual dos painéis
mitológicos, ora analisados, revela-nos rica polifonia: a narrativa é
emoldurada por uma voz instrutivo-ritual, enreda-se pela façanha
épica da voz encomiástica, produz sofrimento pela voz elegíaca e
volta à voz didática.
Pode-se afirmar, portanto, que o epílio das Geórgicas IV que
ocupa praticamente a metade do livro das abelhas4 reúne, em sua
engenhosa composição5, elementos de três gêneros poéticos: o
épico, o elegíaco e o didático. Essa mescla de gêneros, de gosto
alexandrino, faz realçar, no autor das Geórgicas, sua veia douta de
poeta e filólogo. E, como estudioso das diversas experiências
poéticas, Virgílio presta tributo, no episódio de Aristeu, a, pelo
menos, dois poetas de sua admiração: Homero e Cornélio Galo 6,

3
Hesíodo foi o primeiro autor desse gênero, denominado desde Aristóteles
de poesia épica - Körte et Händell (1973, p. 223).
4
Grimal (1992, p. 163-4) diz que a longa estória lembra as narrativas
populares, desde o romance grego até as mil e uma noites, e ocupa 241
versos dos 565 do canto inteiro, ou seja, perto de 43%.
5
Gordon Williams (1968) define epílio, tendo em vista a quarta Geórgica,
como uma pequena épica cuja característica é contar uma história dentro
da outra.
6
Cornélio Galo, poeta elegíaco e amigo de Virgílio. Segundo o gramático
Sérvio, em seus comentários ao livro IV das Geórgicas, a segunda parte
deste livro teve de ser mudada: em lugar do elogio a Galo, que estaria
originalmente nesse livro, Virgílio escreveu o episódio de Orfeu. Isto
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 263
Heloísa Maria Moraes Moreira PENNA

segundo Lee (1996, p. 124), acrescendo-se a essa galeria de autores


referenciados, dentre outros, o poeta Hesíodo, precursor da poesia
didática e Calímaco, criador das bases do epílio7.

1. Do epílio e sua dimensão metapoética

Ao analisarmos a narrativa (vv. 315-558) vislumbra-se a


criação de um ciclo que se inicia após a descrição da arte da
bugonia, se realiza no protagonismo alternado de Aristeu, Cirene,
Proteu e Orfeu e finaliza com nova descrição da bugonia – eventos
que confinam vida e morte. Nesse epílio, a harmonia e o contraste
poético se personificam no heroísmo de Aristeu, na acentuada
infelicidade de Orfeu e no equilíbrio tranquilizador de Cirene. O
significado do epílio então, além do consagrado às obras clássicas
de gosto neotérico, de longa e instrutiva digressão mitológica, atinge
também uma dimensão metapoética. O poeta exercita aí sua
habilidade de oscilar os tons heroicos (aventura de Aristeu),
elegíacos (sofrimento de Orfeu) e de disciplina instrucional
(ensinamentos de Cirene).
Atrai-me o pensamento de que o poeta nos deu outros sinais
desse trabalho de costura dos três gêneros citados, além das
mudanças de tom expressas pela seleção semântica e formal dos
vocábulos, pela obediência às convenções estruturais dos gêneros,
dos recursos métricos do hexâmetro e do manejo dos sons. Parece
haver uma significação nos contrastes paisagísticos e climáticos
para marcar essa separação: o insuportável calor do litoral de
Proteu, cenário do embate com Aristeu expresso pelas palavras
rapidus, torrens, sitiens (v. 425), ardebat, igneus (v. 426), hauserat,
arebant, siccis (v. 427), radii, tepefacta, coquebant8 (v 428); o
excessivo frio e total isolamento do ambiente do lamento

aconteceu, segundo ele, em razão do ódio de Augusto a uma possível


traição política de Galo (Seruius, 1986, p. 20, nota 1); prefeito do Egito, Galo
se matou para escapar ao processo iminente. A tese dessa substituição já
foi amplamente contestada. No entanto, reconhecem-se prováveis alusões,
na narrativa de Orfeu, à poesia elegíaca de Galo. Cf. Hardie (1998, p. 46) e
Lee (1996, p. 124).
7
Cf. Rodrigues Júnior (2001) que desenvolve uma interessante discussão
sobre a classificação do epílio como gênero literário.
8
Cf. Thomas in Virgil, 1997, p. 222, nota 425-8.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 264
O epílio das Geórgicas IV: epos et elegia et didascalice

apaixonado de Orfeu, pelos sintagmas rupe sub aeria, deserti, (v.


508), gelidis sub antris (v. 509), solus, Hyperboreas glacies, Tanaim
niualem (v. 517), pruinis (v. 518) e a suave amenidade dos locais de
Cirene, propício aos ensinamentos e rituais, pelas expressões uitreis
sedilibus (v. 350), limina diuom (v. 358), domum genitricis, umida
regna (v. 363), lucos sonantes (v. 364), liquidos fontis (v. 376),
mantelia (v. 377), epulis, mensas (v. 378), pocula, arae (v. 379).
Em tom épico e seguindo de perto os modelos
homéricos9estão a abertura do epílio in medias res, a narrativa da
aventura do herói Aristeu em busca de um grandioso objetivo e a
enumeração de suas excepcionais qualidades; de tom elegíaco é o
tocante relato sobre Orfeu e seu amor eterno por Eurídice, seu
sofrimento pela dupla perda e sua morte por amor (a tópica elegíaca
se vê, por exemplo, na concepção do amor como loucura: furor, v.
495); de tom didático são as instruções de Cirene a seu filho
Aristeu, sábios conselhos que o levam a dominar Proteu e a praticar
a bugonia. Essa narrativa épica de pequenas dimensões, de
influência helenística, conforme definição de Körte e Händell (1973,
p. 86) para o epílio, caracteriza-se pela forte musicalidade com
forma e conteúdo artisticamente alinhados com as diferentes
maneiras narrativas. Virgílio faz música com os nomes gregos dos
rios e das ninfas, brinca com o excesso de sibilantes, explora a
riqueza melódica das vogais, tempera o texto com a força sonora
das consoantes. Além disso, percebe-se o cuidado do poeta com o
arranjo pictórico do verso, harmonizando sentido, posicionamento e
volume das palavras; com o ordenamento rítmico-semântico dos pés
datílicos e espondaicos; com a significação do encadeamento
provocado pelas sinalefas e com as possíveis sugestões provocadas
pela coincidência ou divergência do acento rítmico e prosódico.

1.1 Aristeu e Proteu: o epos nas Geórgicas

Aristeu é apresentado, nas Geórgicas IV, como um magister


Arcadius (v. 283) um pastor (v. 317), e um deus capaz de revelar a
arte da bugonia: ―Que deus, ó musas, nos concedeu esse saber,

Hardie (1998, p. 46) relaciona os trechos comprovadores dessa


9

proximidade: a queixa de Aquiles à sua mãe Tétis, na Ilíada I, 345-427 e


XVIII, 22-137; a consulta de Menelau a Proteu, na Odisseia IV, 351-572.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 265
Heloísa Maria Moraes Moreira PENNA

quem é ele?‖ (Qui deus hanc, Musae, quis nobis extulit artem? - v.
315). Essa pergunta, endereçada às musas, é tipicamente épica -
verificada na primeira linha da Odisseia e na Eneida IX, vv. 77-78
―Que deus, Musas, tão cruéis incêndios, dos teucros,/ afastou?
Quem desviou tanto fogo dos navios?‖ (Quis deus, o Musae, tam
saeva incendia Teucris/ avertit? tantos ratibus quis depulit ignis) É
com ela que o narrador geórgico introduz o epílio na épica didática.
Mas como Aristeu se transforma em um verdadeiro deus,
benfeitor da humanidade? Há uma evolução em sua história, uma
transformação de pastor em divindade. Ele, como personagem
épico, vive uma bem sucedida jornada heroica10. A ele são propostos
quatro desafios, e, a cada superação, a conquista de um degrau em
direção às alturas (como César Otaviano, com seus feitos heroicos,
―projetava sua subida ao Olimpo‖, na conclusão do livro, uiam
adfectat Olympo v. 562).
Como primeira prova tem-se uma catábase, viagem física e
espiritual permitida somente aos eleitos dos deuses. Aristeu
penetra, então, no mundo subaquático das ninfas fluviais. Uma
catábase especialíssima, pois não ao tenebroso palácio de
Ditis/Hades e sim ao cristalino e translúcido palácio de Cirene.
Outros heróis, como Teseu11, também desceram ao fundo das águas
com a permissão de suas genitoras.
A segunda prova é o domínio das forças naturais – de
desordem e destruição, nas palavras de Miles (1980, p. 267) e
sobrenaturais - representadas por Proteu, a astuta divindade
marinha. Além disso, como Eneias, Aristeu deve ―aprender sobre o
passado e o futuro‖ 12 e Proteu é o vate indicado para essas
revelações (quae sint, quae fuerint, quae mox uentura trahantur v.
393).
A terceira é um desdobramento da segunda. Ao capturar o
deus marinho, Aristeu vivencia, pela narrativa dramatizada de
Proteu, uma verdadeira catarse - a segunda, segundo Thibodeau
(2011, p. 197) que aponta, como primeira, a descida ao maravilhoso
mundo de Cirene envolvendo água e fogo (os rios e o presságio das

10
Sobre a figura de Proteu e Aristeu como modelos épicos, cf. Morgan, 1999,
p. 150.
11
A mãe de Teseu era a ninfa marinha Anfitrite. Cf. Miles, 1980, pp. 263-4.
12
Putnam, 1979, p. 287
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 266
O epílio das Geórgicas IV: epos et elegia et didascalice

chamas). Pela canção de Proteu, Aristeu praticamente desce com


Orfeu ao palácio de Ditis, acompanha a subida dos amantes,
vivencia o erro trágico de Orfeu, respira a atmosfera gelada da
desesperança do poeta, assiste o sparagmos da vítima das bacantes
e ouve o desesperado grito da gélida língua do cantor, ―Eurídice, ah,
infeliz Eurídice!‖ Apelo vindo de uma cabeça violentamente
separada do corpo.
Por fim, a prova final para a consagração do herói: o prêmio
da bugonia. Aristeu, para se purificar do pecado das mortes de
Eurídice e Orfeu, cumpre um ritual sagrado de oferendas fúnebres.
Só após isso, tem o direito de recuperar seu enxame com a visão
plena do renascimento das abelhas.
Aristeu é, sem dúvida, um herói épico em busca da
imortalidade. Mas um herói redefinido, conforme propõe Miles
(1986, p. 289), limitado pelo poder da natureza e centrado no
entendimento de suas leis. Certamente uma antecipação do herói
Eneias (para muitos, referência a Otávio) com sua acentuada
obediência e dependência de sua mãe, sua divina ascendência, sua
persistência em recuperar suas abelhas vista como ―simbolismo da
refundação de Roma‖ 13 e sua insegurança de como agir. Como
Eneias/Otávio ele é um fundador 14 e guia dos paruos Quirites,
metaforizados pelas abelhas.15. Albrecht (1997, p. 644) admite
existir em Eneias, além do herói épico primitivo, um herói
augustano, representante da humanitas e da clementia. Esse ―novo‖
herói alexandrino, embora afinado com os traços do antigo epos,
apresenta permanente fragilidade e incerteza, a exemplo de Jasão,
―constantemente tomado pela insegurança‖ 16. Farrell (1991, p. 107)
identifica em Aristeu e Cirene a técnica virgiliana da somatória de
características épicas (tão empregada depois na Eneida), o que ouso
chamar de contaminatio de caracteres. E essa contaminatio estende-
se também aos episódios, extraídos de duas obras, Ilíada e Odisseia,
para a composição virgiliana. Segundo Farrell, Aristeu é Aquiles
quando se queixa, na cabeceira do rio Peneu, à sua mãe, e, é
consolado por ela. O mesmo fez Aquiles à sua mãe Tétis, por duas

13
Para comparações mais aprofundadas entre Aristeu e Otávio cf. Gale,
2000, p. 52.
14
Cf. Griffin, 2008, p. 239.
15
Cf. Rodrigues Júnior (2001, p. 217).
16
Cf. Rodrigues Júnior (2001, p. 217).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 267
Heloísa Maria Moraes Moreira PENNA

vezes, na Ilíada (Il., I, 345-427 e XVIII, 22-137); Aristeu é Menelau,


quando domina o deus marinho Proteu; a mesma façanha praticou o
marido de Helena, na Odisseia (Od. IV, 383-570); Cirene, por sua vez,
identifica-se com Tétis, na Ilíada, e com Eidotea, na Odisseia, por seu
papel protetor de seus pupilos.

1.2 Orfeu e Eurídice: a tradição elegíaca em Virgílio

Cairns (1989, pp. 129-50) faz um detalhado estudo das


fontes para a construção da personagem Dido, em sua paixão por
Eneias. Ele conclui que a tradição elegíaca erótica romana, na
especial figura de Cornélio Galo, forneceu a Virgílio as principais
características da rainha de Cartago tais como, devoção total ao
amado, medo constante da rejeição, crença na aparência das
situações e amor para além da morte. Outras duas tópicas elegíacas
podem se juntar a essas: amor como loucura e queixa de
infidelidade. Após a perda de Eneias, Dido experimentou aqueles
sintomas típicos do amante abandonado: voz embargada, insônia, o
andar sem rumo, o choro convulsivo, a esperança no sobrenatural e
a solução do suicídio.
Parece razoável dizer que, antes de Dido, Virgílio já fizera de
Orfeu, nas Geórgicas IV, o protótipo do amante elegíaco, em sua
devoção cega por Eurídice, na concepção do amor como loucura, no
pavor de sua perda, no amor intenso que o fez desafiar a morte, na
falsa esperança do retorno da amada à vida. Orfeu que, na tradição,
fora retratado como um mestre da cosmogonia, metempsicose e de
doutrinas místicas, é focalizado, nas Geórgicas IV, como mestre do
encantamento poético, com capacidade de sensibilizar a natureza,
os espíritos e os deuses do submundo17. Orfeu, como um sacerdos,
um mago capaz de movimentar objetos inanimados, usa seus
poderes na tentativa de reverter a sorte de Eurídice. Esse é também,
segundo Cairns, um topos da elegia romana, contemporânea de
Virgílio18, que desenvolve o motivo do mago, com poderes sobre o
universo e o amor. Virgílio também o evoca na Eneida, em que a
persona trágico-elegíaca Dido, embora falsamente, confessa à irmã
sua intenção de apelar para um sacerdote (sacerdos Massylae gentis)

17
Thibodeau, 2011, p. 197.
18
Para mais detalhes cf. Cairns (2006, pp. 144-6).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 268
O epílio das Geórgicas IV: epos et elegia et didascalice

que, dentre outras façanhas, é capaz de libertar mentes livrando-as


das paixões (soluere mentes [...] duras emmittere curas) e de mover
árvores (descendere montibus ornos19).
Cairns (2006, p. 146), na sequência de seu estudo sobre
―Dido e a tradição elegíaca‖ aponta no discurso de adeus da rainha
(propempticon), forte tom elegíaco. Já antes de Dido, Virgílio
apresentara, nas Geórgicas IV, o propempticon de Eurídice, após o
súbito impedimento do seu retorno. O discurso de adeus da esposa
duplamente roubada (rapta bis coniuge, 504) tem forte tom elegíaco,
mas diferentemente do de Dido, sem rancor. E Eneias, como Orfeu,
paralisado de medo (linquens multa metu cunctantem et multa
parantem/ dicere... vv. 390-1) e de dor (multa gemens dicere, v. 395),
nada mais conseguiu dizer. No entanto, diferentemente de Eneias,
personagem épico, que se mostra, após o encontro final com Dido,
disposto a superar a perda, porque premeditada, e prosseguir sua
jornada de refundação de Troia, Orfeu, personagem elegíaco, não
tem outro objetivo a não ser se unir à sua amada. Após a despedida
de Eurídice, o poeta insiste ainda em adentrar o Hades: o texto
sugere um apelo ao porteiro (paraclausityron - outro topos elegíaco),
na menção à negativa do guardião do Orco (nec portitor Orci) em
deixá-lo atravessar novamente o pântano (amplius obiectam passus
transire paludem v. 503).
A peripécia de Orfeu no submundo e a definitiva perda da
esposa acabam por sentenciá-lo à dupla morte na terra - a
emocional e a física. Conte20 identifica, na atitude autodestrutiva de
Orfeu, o mesmo paradoxo encontrado na poesia elegíaca: ela, que
deveria ser fonte de consolo para o poeta (solans aegrum... amorem
v. 464), acaba por agravar seu sofrimento (flesses ibi et gelidis haec
euoluisse sub antris v. 509) e levá-lo à total alienação (nulla Venus,
non ulli animum hymenaei v. 516). Essa aproximação com a poesia
elegíaca é proposta também por Hardie (1988, p. 46), ao afirmar que
as afinidades de gênero da narrativa de Orfeu e Eurídice são com a
tragédia e a elegia antes que com a épica e cita o símile do rouxinol
(IV, 511-15) como um aition do lamento elegíaco. Além do mais, de
acordo com Morgan (1999, p. 152), a convenção elegíaca por
excelência dita que a vida sem o (a) amado(a) equivale à morte e que

19
Cf. Eneida IV, 478-91.
20
Cf. Conte, 1984, p. 45 e ss.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 269
Heloísa Maria Moraes Moreira PENNA

essa falta resulta, naturalmente, na morte do amante.


Nos 74 versos dedicados ao cantor de Eurídice (do verso 454
– magna luis comissa: tibi has miserabilis Orpheus – ao verso 528 –
Eurydicen toto referebant flumine ripae) a subjetividade do estilo
contrasta com a objetividade e solenidade dos trechos propriamente
épicos e didáticos do poema: ―poesia e amor estão estreitamente
ligados aqui‖ 21. O trecho elegíaco está eivado de elipses e
assimetrias que provocam, no leitor, o vazio e a incerteza subjetiva
dos acontecimentos. Para realçar esse tom subjetivo e emocional da
parte elegíaca do poema, o poeta trabalha, de maneira especial, na
composição de dois versos, os 465-6, em que o narrador Proteu,
intensificando o pathos do relato, dirige-se, de súbito a Eurídice,
tomando para si a voz elegíaca de Orfeu. O vate de Netuno, em
―perfeita identificação22‖ com a súplica do amante faz ecoar, por
quatro vezes o pronome te, no início de cada hemistíquio dos dois
versos e mais duas vezes embutido em palavras: te, dulcis coniunx,
/te solo in litore secum, // te veniente die, /te decedente canebat.

1.3 Cirene: magistra bugoniae

Numa quebra de ilusão dramática, após longo relato do mito


de Orfeu, Proteu, o cantor da tragédia órfica, desaparece nas águas e
deixa o espaço para a retomada da persona didática de Cirene.
A moldura do epílio se fecha, como seu ciclo metapoético. A
voz instrutiva prevalece e percebe-se a natureza etiológica dos
mitos de Aristeu e de Orfeu. Nesse encerramento do epílio, ficou
com Cirene o papel de mestra da bugonia e com Aristeu o papel de
aluno e executor do processo. Cirene é uma espécie de mestre de
cerimônia que conhece a fundo o passo a passo do ritual, o modus
orandi. Após a fuga de Proteu, ela aconselha e tranquiliza seu filho
Aristeu. Instrui o jovem sobre como preparar as oferendas fúnebres
- desagravos a Orfeu e Eurídice – para, por fim, testemunhar o
milagre do nascimento de um enxame, dictu mirabile monstrum. Seu
discurso didático se traduz pelo conteúdo do que é ensinado e pelo
modo de ensinar. Sua linguagem é formular e prática, como convém
ao texto instrutivo. Segundo Gale (2000, p. 55) Cirene dá instruções

21
Gale, 2000, p. 53.
22
Expressão de Tosi, 2000, p. 45.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 270
O epílio das Geórgicas IV: epos et elegia et didascalice

em um plano e estilo metódicos (businesslike) e os contrastes entre


os personagens do epílio (Cirene e Proteu; Orfeu e Aristeu) têm
dimensão metapoética, exatamente o principal recorte de minha
análise do epílio.
Batstone (2000, p. 129) indica três itens que não podem
faltar ao texto didático: o estabelecimento do assunto, a invocação e
o destinatário. Cirene, em seu discurso instrutivo a Aristeu, cumpre
essas formalidades: primeiro dirige-se ao temeroso filho, ―Filho, já
podes deixar de lado suas preocupações‖ (Nate, licet tristis animo
deponere curas - v. 531); em seguida lhe revela a causa da perda das
abelhas, ―foram as ninfas que a provocaram‖ (... Nymphae, /[...]
exitium misere apibus - vv. 532 e 534); diz o que fazer, ―tu, súplice,
oferece sacrifício, pedindo paz e venera as dóceis napeias‖ (... tu
munera suplex tende, petens pacem, et facilis uenerare Napaeas - vv.
534-5); e, por fim, o como fazer, ―mas, antes, qual o modo do orar,
direi, seguindo o rito‖ (sed modus orandi quis sit, prius ordine dicam
(v. 537). Com a invocação ao Oceano, pai de todas as coisas e as
ninfas, suas irmãs, (Oceano libemus, ait. Simul ipsa precatur/
Oceanumque patrem rerum nymphasque sorores - vv. 381-2) há o
cumprimento das formalidades didáticas propostas.
Quando a voz de Cirene instrui o filho, ouve-se, de fato, a
voz didática com sua expressão declarativa (Toohey, 1996, p. 15),
em que se busca o sentido denotativo, exato do texto. E para que o
evento aconteça, conforme ―manda‖ o ritual – tanto para Aristeu,
destinatário figurativo do epílio, quanto para Mecenas, destinatário
formal das Geórgicas IV (... hanc etiam, Maecenas, adspice partem, v.
2) e para os leitores, receptores finais da obra literária - o autor da
obra didática serve-se dos recursos didático-pedagógicos,
exemplificados exaustivamente pela repetição simétrica, pelos
refrãos, por curtas orações e justaposições.

Considerações Finais

Ao posicionar o epílio de Aristeu no final das Geórgicas IV,


encerrando o livro com o renascimento das abelhas, seguida da
sphragis confrontando o trabalho do poeta e o do estadista, Virgílio
reafirma, como legado da literatura, não só o poder de imortalidade
da obra como também o de renovação da vida. A pequena épica de
Aristeu com muitos dos elementos antecipatórios da grande épica
virgiliana, além de encerrar magistralmente as Geórgicas, introduz a
Eneida que, mais tarde, Propércio anunciará, como obra maior que a

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 271


Heloísa Maria Moraes Moreira PENNA

Ilíada: Cedite, Romani scriptores, cedite, Grai! Nescio quid maius


nascitur Iliade (2, 34, 65-66). E o epílio das Geórgicas IV, como
componente estrutural de uma obra didática, foi construído com
arte e engenho e cumpriu o que Horácio, anos mais tarde, em sua
―Epístola aos Pisões‖ (vv. 333-4), definiu como desejo dos poetas:
Aut prodesse uolunt aut delectare poetae/ aut simul et iucunda et
idonea dicere uitae (os poetas querem ser úteis ou agradar/ ou ainda
dizer palavras doces e profícuas à vida).

Referências

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hasta Boecio. Volumen I. Versión castellana por los doctors Dulce Estefanía
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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 273


O LUGAR DA ESCUTA EM MEU TIO O IAUARETÊ

Henrique Rocha de Souza LIMA


USP

Resumo: Este artigo apresenta uma leitura crítica da tradição de


comentários que se estabeleceu em torno do conto ―Meu tio o
Iauaratê‖ (1961) de João Guimarães Rosa. A manobra aqui realizada
consiste na crítica de uma leitura teleológica do texto em favor de
um deslocamento radical daquilo que seria o ponto problemático e
central deste, sobretudo no que diz respeito ao tratamento artístico
da linguagem. Assim, o ―interlocutor virtual‖, cuja fala não se
encontra redigida, vem para o foco da leitura. Minha hipótese é a de
que a célebre transformação em jaguar não é representada nem
mimetizada pelo texto, mas situada mediante a construção de um
espaço, em cuja questão central é a Escuta.

Palavras-chave: Guimarães Rosa; Iauaretê; Individuação;


Perspectivismo; Escuta.

O sangue dos humanos é o


cauim do Jaguar exatamente
como minha irmã é a esposa
de meu cunhado, e pelas
mesmas razões.
Eduardo Viveiros de Castro

―Eu - Onça!‖
João Guimarães Rosa

Introdução

A fortuna crítica de Meu Tio o Iauaretê atualmente gravita


em torno da produção de dois autores: Haroldo de Campos e
Eduardo Viveiros de Castro. As referências a Haroldo de Campos
remetem ao artigo ―A linguagem do Iauaretê‖ (CAMPOS, 2006: 57-
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
O lugar da escuta em Meu tio o Iauaretê

64), e as referências a Viveiros de Castro baseiam-se na formulação


de um pensamento ontológico orientado no ethos e no conceito de
ponto de vista (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Em linhas gerais, o
comentário de Campos consiste em apontar no texto a existência do
que ele chama de um procedimento de ―tupinização da linguagem‖
acompanhado de um ―procedimento isomórfico‖ mediante o qual o
próprio plano expressivo do texto teria sido capaz de expressar uma
metamorfose em jaguar que se passa em conteúdo.
No comentário de Campos, ―tupinização‖ e isomorfismo
andam em conjunto e pressupõem-se reciprocamente. No entanto,
elas carregam uma tese a qual penso merecer, antes da aceitação
inconteste que se tornou padrão, uma suspeita e um esforço crítico.
A leitura de Campos opera segundo a ideia de uma progressão
teleológica segundo a qual toda a elaboração isomórfica que
atravessa o texto seria orientada em direção a um ―clímax
metamórfico‖ (CAMPOS, 2006: 61). O tal ―Clímax‖ teria sua
realização prática no último parágrafo do texto, onde, aos olhos de
Campos, estaria em jogo a culminação do referido processo
metamórfico.
Ora, esta orientação teleológica me parece contestável. Como
veremos na primeira seção deste artigo, o suposto ponto culminante
da transformação pode ser suspenso em favor de uma
reconsideração da modalidade de enunciação segundo a qual a fala
do personagem se realiza. A hipótese aqui é a de a ideia de ―clímax
metamórfico‖ oferece uma falsa pista à leitura do processo
metamórfico que ocorre no texto. Mediante a noção de ―discurso
quase-direto‖ (VOLOSHINOV, 1993: 141-159), podemos constatar
que tal processo ocorre ao longo de todo o texto. Esta perspectiva
traz uma nova luz sobre a legibilidade do conto, pois ela torna
possível uma reconsideração radical do status do personagem
principal e de quem é ou quais são as instâncias que experimentam
a transformação trans-específica.

1. Problemática literária

Seria, então, necessária uma explicitação de como funciona


esta categoria de ―discurso quase-direto‖ e de em que sentido ela
torna possível uma reconsideração radical da legibilidade deste
texto. Antes de passar a este exame, é preciso considerar, ainda, que
a pressuposição de que haja uma orientação teleológica dirigida a
um clímax metamórfico parece ser baseada apenas na necessidade

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 275


Henrique Rocha de Souza LIMA

de justificação da presença de um procedimento isomórfico pelo


qual o nível da expressão viria a concretizar materialmente o
conteúdo do texto. Ora, esta tese baseia-se numa suposta relação
mimética entre as sílabas grafadas no último parágrafo do texto e
vocalizações de onça. Toda a aceitação desta leitura teleológica
baseia-se, quando não numa relação de mimese, naquilo que
Campos chamou de ―um grau de aproximação estocástica‖
(CAMPOS, 2006: 62) que o texto teria operado entre o português e o
tupi, e pela qual o transformação em onça teria sido ―presentada,
presentificada pelo texto‖ (Campos, 2006: 61). Assim, teríamos uma
mimese da transformação em onça mediante uma ―corrosão‖ da
sintaxe do português pela intervenção do nheengatu (Campos, 2006:
62-63).
Ora, se o leitor não aceita a tese de uma relação mimética
entre verbo e vocalizações de onça como chave de leitura do texto, o
que lhe resta a examinar neste sentido seria este ―grau de
aproximação estocástica‖, noção que embora passe a impressão da
existência de uma elaboração racional complexa, ainda recai sobre o
procedimento de mimese, como se este fosse o núcleo de
sofisticação que o texto desempenha em termos de trabalho com a
linguagem. A fixação do comentário sobre a ideia de um momento
da transformação é evidente:

A transfiguração se dá isomorficamente, no momento


em que a linguagem se desarticula, se quebra em
resíduos fônicos, que soam como um rugido e como um
estertor (pois nesse exato instante se percebe que o
interlocutor virtual também toma consciência da
metamorfose e, para escapar de virar pasto de onça, está
disparando contra o homem-iauaretê o revólver que sua
suspicácia mantivera engatilhado durante toda a
conversa. (CAMPOS, 2006: 62).

Embora a fixação pela vinculação do tema da transformação


a um momento culminante seja um fato que a passagem também se
encarrega de deixar evidente, ela apresenta também, embora apenas
de passagem, o que me parece ser o ponto central do modo como
este texto posiciona o tema da metamorfose em onça, a saber, o
―interlocutor virtual‖ (Campos, 2006: 63). Defendo aqui a tese de
que este texto de Rosa foi composto sim mediante uma organização
racional estrita, mas esta não se baseia sobre uma relação mimética,
tampouco sobre a emulação de ―um grau de aproximação

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 276


O lugar da escuta em Meu tio o Iauaretê

estocástica‖ mediante a qual algumas sílabas e letras recorrentes


viriam a materializar isomorficamente o tema central do conto.
Esta imagem que se faz do que seria o tema central do texto
me parece equivocada, pois não acredito que o texto se configure
como a estrita fala de um onceiro, o qual viria a se transformar em
onça apenas ao fim do conto. Contra esta interpretação, argumento
que a fala do enunciador está situada ao longo de todo o texto numa
zona de indistinção na qual nós, leitores, não podemos saber com
precisão quem é o dono daquela voz. Em outras palavras: todo o
texto coloca em jogo uma contínua oscilação entre as posições - ou
os pontos de vista (Viveiros de Castro, 2002: 373) - de humano e
jaguar, e a realidade desta oscilação é tornada sensível e legível se
abordarmos o texto sob a ótica da categoria de discurso quase-
direto, tal como fora concebida por Vladmir Voloshinov (1993)
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, originalmente
publicado em 1929, Voloshinov dedica um capítulo ao estudo do
discurso quase-direto, tal como este foi elaborado nas línguas
francesa, alemã e russa (VOLOSHINOV, 1993: 141-159). Sem
adentrar aqui os detalhes históricos elencados pelo autor no que diz
respeito ao processo histórico de configuração desta modalidade de
enunciação, é possível considerar como sendo um ―ponto de virada
nas vicissitudes sociais da enunciação‖ (VOLOSHINOV, 1993: 158) a
possibilidade de inscrição, no discurso de um narrador, da
dimensão de uma zona de indiscernibilidade na qual se apresenta
um discurso cujo sujeito de enunciação não pode ser localizado
com precisão, e que só se pode constituir como um outro, na
medida em que não se constitui enquanto enunciado pertencente a
um ―eu‖ (VOLOSHINOV, 1993:147). Assim concebido, o discurso
quase-direto diz de uma modalidade de enunciação que expressa
um hiato entre uma fala e o sujeito que fala, e insere neste hiato a
dimensão da ambiguidade, da incerteza, da oscilação do ponto de
vista que se expressa numa determinada fala. Na medida em que se
situa na possibilidade de separação entre o próprio ―eu‖ de um
narrador e as figuras da fantasia que falam através de sua voz
(VOLOSHINOV, 1993: 150), pode-se dizer que o discurso quase-
direto abre, na expressão linguística, a dimensão do inconsciente
como instância enunciadora. Trata-se de um conceito que diz da
capacidade linguística de posicionar diferentes figuras da alteridade
(o inconsciente, o não-humano, etc.) como o sujeito de enunciação.
Cumpre lembrar aqui esta modalidade de enunciação fora
conceituada também no campo da filosofia do cinema sob o título

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 277


Henrique Rocha de Souza LIMA

―ato de fala em discurso indireto livre‖. Gilles Deleuze se dedicou a


este tema em Cinema 2: a Imagem-Tempo, onde o conceito de
imagem cinematográfica não se encerra no campo do visível, e
estende-se a um extracampo preenchido pelo som. A tese de
Deleuze é a de que, a partir do cinema sonoro a imagem
cinematográfica se constituiu para além do visível, razão pela qual
ela passou a colocar de maneira indelével o problema de sua
legibilidade. A partir do momento em que se compõe de elementos
que não se encerram no campo da visibilidade, a imagem
cinematográfica constitui-se enquanto dispositivo de investigação
de modelos mentais e, por esta via, do âmbito do inconsciente.
Assim, toda imagem é entendida como uma materialidade a ser ―lida
e vista‖ (DELEUZE, 1985: 290), e cuja legibilidade depende, uma
leitura de camadas de significação que se dispõem num espaço
suplementar, ele mesmo não-visível na imagem.
O tratamento deleuziano do problema da legibilidade da
imagem pressupõe como componente da imagem um espaço não
manifesto na concretude visual da imagem, mas que participa
ativamente como componente desta. É deste ponto de vista que
proponho abordar aquele que ficou o tempo todo impensado na
fortuna crítica de Meu tio o iauaretê: o ―interlocutor virtual‖.

2. Problemática antropológica: a força do hábito

Antes de passar à consideração direta deste espaço ocupado


pelo ―interlocutor virtual‖, consideremos a aclimatação que o
antropólogo Eduardo Viveiros de Castro oferece para a problemática
da individuação trans-específica mediante sua avaliação do papel
que o hábito desempenha na constituição daquilo que vem a ser um
―ponto de vista‖, base de uma ontologia relacional que vale a pena
ser vista de perto.
Consideremos o par conceitual que expressa o núcleo da
originalidade do pensamento de Viveiros de Castro: as noções de
perspectivismo e multiculturalismo (VIVEIROS DE CASTRO, 2002:
347-399). O autor argumenta que o modelo epistemológico oficial
do ocidente se difere do modelo ameríndio, sobretudo do ponto de
vista dos personagens conceituais segundo os quais a ideia de
conhecimento ganha seu valor. O pensador privado difere-se do
xamã, sobretudo no modo como estes personagens colocam em
jogo o conceito de relação social.
Viveiros de Castro é cuidadoso em especificar

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 278


O lugar da escuta em Meu tio o Iauaretê

epistemologicamente sua proposta, mediante as teses segundo as


quais o perspectivismo não é um relativismo, mas um
multinaturalismo (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 379), e o
perspectivismo não é um relativismo, mas um relacionalismo
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 382). Seu percurso argumentativo
consiste em apontar o relativismo como um modelo baseado na
pressuposição da existência de uma natureza exterior aos pontos de
vista, e da existência fatídica de múltiplos pontos de vista, de modo
que nenhum deles seja capaz de oferecer uma representação
verdadeira da natureza, e, portanto, que pontos de vista são
igualmente válidos. Deste modo, o relativismo corresponde
diretamente a um multiculturalismo, modelo contra o qual o autor
apresenta o que ele chama de ―perspectivismo ameríndio‖, o qual,
por sua vez, não pressupõe uma incapacidade da representação com
relação a uma natureza exterior às representações, mas o total
engajamento da noção de ponto de vista no conceito mesmo de
natureza. Esta diferença entre os modelos passa pela distinção
básica entre as noções de perspectiva e representação. É neste ponto
que a noção de corpo entra para desempenhar um papel decisivo:
―uma perspectiva não é uma representação porque as
representações são propriedades do espírito, mas o ponto de vista
está no corpo‖ (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 380). Mas esta frase só
é compreensível se explicitar-se o que é e como funciona o que este
autor chama de ―ponto de vista‖, ―corpo‖ e ―espírito‖.
A noção de ponto de vista depende do conceito de ―alma‖
(ou ―espírito‖), e é a partir deste que aquela ganha sua significação
conceitual. A definição do que é o ―espírito‖ na cosmologia
ameríndia expressa um pensamento que é não exatamente ―pós‖,
mas trans-estruturalista, porque se faz através do conceito de
estrutura, e para além dele. Viveiros de Castro qualifica o conceito
ameríndio de espírito como uma estrutura formal que se divide em
posições, através das quais se distribuem as relações. O estatuto do
espírito é o de algo que se articula sempre de maneira relacional
com diferentes tipos de outro, de modo que este só se configura a
partir da relação. Para descrever estas relações, o autor apresenta
uma descrição topológica na qual estas relações aparecem
distribuídas de acordo com três posições elementares: 1) há uma
posição do semelhante, isto é, de um coletivo do qual o ―eu‖
pertence; 2) há uma posição da presa, o outro que ―eu‖ predo; e 3)
há um lugar do predador, o outro que me destrói. O desenho é
básico, mas o que o torna complexo é o fato de ser estendido a

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 279


Henrique Rocha de Souza LIMA

todos os seres vivos, inclusive a entidades metafísicas, como uma


divindade ou o espírito de um morto (VIVEIROS DE CASTRO, 2002:
347-399). Esta é a grande questão do conceito de ponto de vista:
qualquer entidade capaz de percepção e agência enxerga a si mesmo
e os outros de maneira análoga à qual os humanos enxergam a si
mesmos, isto é, como um ser que tem seus semelhantes, uma
variedade de outros que são alimento, e uma variedade os outros
que são ameaça ou veneno. A posição do ponto de vista é cambiável,
ela desliza num espectro das formas de vida. Trata-se de uma
estrutura relacional que perpassa a variedade de formas de vida
como um gradiente, mas sempre prevendo as posições do eu e do
outro, de modo que este ―eu‖ só se constitui na relação com o outro.
A partir deste desenho estrutural, o autor conclui que o ponto de
vista faz o sujeito, e só há sujeito enquanto ponto de vista (VIVEIROS
DE CASTRO, 2002: 373).
A inteligibilidade deste sistema estrutural torna-se mais clara
a partir do ―experimento mental‖ proposto pelo autor, no qual esta
problemática é ―traduzida‖ nos termos de uma filosofia da
linguagem. O ―pano de fundo‖ desta discussão é um mito estudado
por Renard-Casevitz , no qual ―os protagonistas humanos visitam
diversas aldeias habitadas por gentes estranhas que chamam ‗peixe‘,
‗cutia‘, ou ‗arara‘ (comida humana) às cobras‖ (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002: 382-383). Trata-se, portanto, de seres que qualificam
como ―comida‖ aquilo que não é qualificado como tal pelo grupo ao
qual pertence o enunciador. O fato de que aquilo que para mim é
―cobra‖ (leia-se, veneno), para o outro é ―peixe‖ (leia-se, alimento)
indica uma estrutura na qual uma coisa ganha seu sentido na
relação e em função da posição que ela ocupa com relação a um
ponto de vista, formando um jogo analógico que vale ser lido nas
palavras do autor:

Façamos um experimento mental. Os termos de


parentesco são relatores, ou operadores lógicos abertos;
eles pertencem àquela classe de nomes que definem
algo em termos de suas relações com outra coisas (...). Já
conceitos como ‗peixe‘ ou ‗árvore‘, por outro lado, são
substantivos ‗próprios‘, fechados ou bem circunscritos,
aplicando-se a um objeto em virtude de suas
propriedades autossubsistentes e autônomas. Ora, o que
parece ocorrer no perspectivismo indígena é que
substâncias nomeadas como ‗peixe‘, ‗cobra‘, ‗rede‘ ou
‗canoa‘ são usados como se fossem relatores, algo entre

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 280


O lugar da escuta em Meu tio o Iauaretê

o nome e o pronome, o substantivo e o dêitico (...).


Alguém é um pai apenas porque existe outrem de quem
ele é o pai: a paternidade é uma relação, ao passo que a
peixidade ou a serpentidade é uma propriedade
intrínseca dos peixes e cobras. O que sucede no
perspectivismo, entretanto, é que algo também só é
peixe porque existe alguém de quem este algo é o peixe.
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 383-384)

Do mesmo modo, este ―peixe‖ pode ser o ―jaguar‖ de um


peixe menor, de uma minhoca ou outros seres. Chegamos ao ponto
central da leitura que nos interessa aqui: o ―jaguar‖, além de ser um
substantivo que nomeia um tipo natural, é também o designador de
uma posição, é um termo relator ou um operador lógico aberto. Do
status de operador lógico que um substantivo passa a ganhar, o
autor passa ao papel desempenhado pelo corpo:

A diferença entre os pontos de vista - e um ponto de


vista não é senão diferença - não está na alma. Esta,
formalmente idêntica através das espécies, só enxerga a
mesma coisa em toda parte; a diferença deve, então, ser
dada pela especificidade dos corpos.

Que toda a atenção seja dada a esta noção de especificidade


dos corpos: ―o que estou chamando de corpo (...) não é sinônimo de
fisiologia distintiva ou de anatomia característica; é um conjunto de
maneiras ou modos de ser que constituem um habitus‖ (VIVEIROS
DE CASTRO, 2002: 380). Não é, portanto, a caracterização fisiológica
que define um corpo, mas a economia relacional da qual ele
participa.

Não estou me referindo a diferenças de fisiologia (...),


mas aos afetos, afecções ou capacidades que
singularizam cada corpo: o que ele come, como se move,
como se comunica, onde vive, se é gregário ou
solitário… A morfologia corporal é signo poderoso
dessas diferenças de afecção, embora possa ser
enganadora, pois uma figura de humano, por exemplo,
pode estar ocultando uma afecção jaguar (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002: 380).

O exemplo da passagem acima parece descrever exatamente


o que se passa em Meu Tio o Iauaratê, quando afirma a morfologia

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 281


Henrique Rocha de Souza LIMA

corporal como um ―signo poderoso‖ de um tipo de individuação,


mas um signo que pode incutir em erro, pode ser enganador, pois a
morfologia não garante o corpo.

Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade


substancial dos organismos, há esse plano central que é
o corpo como feixe de afecções e capacidades, e que é a
origem das perspectivas. Longe do essencialismo
espiritual do relativismo, o perspectivismo é um
maneirismo corporal (Viveiros de Castro, 2002: 380).

Ora, é precisamente um caso deste maneirismo corporal que


parece estar apresentado em Meu tio o iauaretê. O caso de um corpo
que morfologicamente é uma coisa, mas efetivamente – em função
de seus hábitos – é outra.

3. Problemática da legibilidade

A certa altura de Meu tio o iauaretê, o enunciador da fala


pergunta ao seu interlocutor se acaso ele não teria ali no meio de
suas coisas um espelho: ―Mecê tem aquilo - espelhim, será? Eu
queria ver a minha cara...‖. Esta passagem ajuda a dimensionar o
contexto material no qual vive o falante, bem como oferece a
percepção de um intervalo ou de uma distância entre este falante e
um indivíduo médio inserido em nossa formação cultural do mundo
globalizado e assistido por uma variedade de gadgets. O texto
inteiro deste conto de Rosa não faz uma só menção a dispositivos
de gravação, reprodução ou transmissão de som ou de imagem. O
falante não tem sequer um relógio - Quero relógio nenhum não (...)
Pra quê que eu quero relógio? Não careço…‖ -, o que dirá, então, de
aparelhos como radio, gravador de som e telefone. Esta ausência, no
entanto, não pode passar despercebida, pois ela marca uma das
dimensões mais significativas da experiência do falante: a dimensão
da audibilidade.
A dimensão da audibilidade é significativa para a
compreensão deste personagem, justamente porque ela informa
muito a respeito de seu habitus. Uma leitura atenta poderá perceber
que o discurso do personagem descreve com grande frequência
situações, movimentos e seres através de sons. A dimensão da
audibilidade e do som é, aliás, uma das vias principais pelas quais a
personagem expressa sua identificação com o jaguar. Observe, por
exemplo, a descrição dada pelo falante de como funciona o aparelho
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 282
O lugar da escuta em Meu tio o Iauaretê

sensorial do jaguar quando em situação de caça: ―Rastrear, onça não


rastreia. Ela não tem faro bom, não é cachorro. Ela caça é com os
ouvidos. Boi soprou no sono, quebrou um capinzinho: daí a meia
légua onça sabe…‖. Uma passagem como esta ressoa diretamente
aquela em que o narrador expressa sua dimensão de aprendizado,
mais precisamente daquilo que ele aprendeu durante sua vida a
partir de suas relações sociais:

Onça, elas também sabem de muita coisa. Têm coisas


que ela vê, e a gente vê não, não pode. Ih! tanta coisa…
Gosto de saber muita coisa não, cabeça minha pega a
doer. Sei só o que onça sabe. Mas, isso, eu sei, tudo.
Aprendi.

Ambas, tanto a afirmação de que ―onça caça é com os


ouvidos‖, quanto ―só sei o que onça sabe‖, convergem para a
afirmação crucial ―eu sei entender no escuro‖:

Tem candieiro não, luz nenhuma. Sopro o fogo. Faz mal


não, rancho não pega fogo, tou olhando olholho.
Foguinho debaixo da rede é bom: bonito, alumeia,
esquenta. Aqui tem graveto, araçá, lenha voa. Pra mim
só, não carece, eu sei entender no escuro. Enxergo
dentro dos matos.

Considere a expressão ―eu sei entender no escuro‖ sob o


ponto de vista das ressonâncias etimológicas nele implicadas. O
verbo latim intendere divide-se nas acepções de 1) ter a intenção de
fazer algo; 2) compreender, apreender, entender algo; 3) escutar,
perceber pela audição. Esta última acepção, que remete à atividade
da audição, embora não tenha se instalado na língua portuguesa,
encontra-se presente de modo efetivo nos verbos intendere na
língua Italiana, e entendre na francesa. Deste modo, a expressão ―eu
sei entender no escuro‖ pode ser entendida como ―compreendo no
escuro‖, e o que compreendo, compreendo através da escuta. Assim,
pela atividade auditiva constitui o ponto de vista deste sujeito que
vê pela escuta, e assim, se habitua enquanto jaguar, este ponto de
vista que ―caça com os ouvidos‖.
Neste sentido, é possível uma apreensão conjunta das
diversas imagens, no texto, de orelhas em estado de alerta, seja em
função da caça, seja em função do medo. Assim, a expressão ―eu sei
entender no escuro‖ torna-se legível como sendo o núcleo de um

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 283


Henrique Rocha de Souza LIMA

ponto de vista, condensando em si a articulação entre o pronome


reflexivo ―eu‖ em relação a um modo de acesso ao real (―entender‖)
delimitado de modo específico em termos de aclimatação ética, ou
seja, dehabitus. Se o ponto de vista cria o sujeito (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002: 373), e este é função do corpo concebido como
composto de ações e afecções constituídas no hábito, só nos resta
compreender que este sujeito que fala, o faz a partir do ponto de
vista de onça, e não como sugerem as interpretações feitas na
esteira de Campos, segundo a qual haveria uma culminação
localizável com precisão do momento da individuação como Onça. O
que parece se passar, antes, é uma contínua oscilação entre os
pontos de vista humano e jaguar, na qual não se consegue precisar
exatamente quem fala em diversos momentos do conto. A dimensão
do ethos se inscreve de modo decisivo no corpo, como dimensão
performativa. Assim, a formulação sintética ―Eu - Onça!‖,
apresentada não apenas uma vez no texto, tem um valor que não é
metafórico, mas literal.
Portanto, Meu tio o iauaretê coloca em jogo o problema da
legibilidade remete a uma ontologia baseada no hábito, na qual os
hábitos de escuta desempenham um papel primordial. Esta parece
ser a chave de leitura que permite apreender aquilo que ficou
restando: o interlocutor virtual, aquele que soube escutar, na fala do
outro, a onça latente. Observe que não estamos descartando aqui a
ideia de metamorfose em jaguar como chave de leitura do texto. O
que estamos descartando é apenas a ideia de que esta metamorfose
seja vivenciada por aquele que fala. Se há uma metamorfose em
jaguar no texto, esta é vivenciada não pelo narrador, mas pelo
ouvinte.
Quem se metamorfoseia em onça é o ―interlocutor virtual‖
que, ao perceber no outro uma diferença de potencial em nível ético,
precisa ele mesmo variar seu status ético para poder salvaguardar
sua condição de ser vivo. O conatus do interlocutor virtual o leva a
se tornar o jaguardo outro, ou o onceiro da onça, em todo caso:
aquele que mata. O que temos com a teoria perspectivista é uma
espécie de perspectiva inversa na qual o que é dado a perceber é o
lugar do interlocutor virtual, e sua posição enquanto elemento
diferencial e diferenciante.
O falante, que afirmara repetidas vezes seu parentesco com
jaguar, finalmente fala a partir do medo, isto é, aquilo que não
caracteriza a onça:―(...) mecê é bom, faz isso comigo não, me mata
não... Eu – Macuncozo... Faz isso não, faz não... Nhenhenhém...

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 284


O lugar da escuta em Meu tio o Iauaretê

Heeé!...‖. Na cena final o falante passa, não de humano a jaguar, mas


de jaguar a humano, enquanto o interlocutor virtual passa de
humano a jaguar.
Portanto, no final temos, não mais o ―Eu-Onça!‖, mas ―Eu-
Macuncozo‖, enquanto aquele que chegara ali humano, montado a
cavalo, foi levado a afirmar-se, na relação, como o onceiro daquela
onça, ou como a onça do humano. Em todo caso, aquele ―não-
humano‖ que age por predação. Uma reviravolta total de
perspectivas.

Conclusão

Em todas as leituras que a fortuna crítica de Meu tio o


Iauaretê deixou até então, nenhuma cuidou desta transformação
que se passa nessa ―casa vazia‖ criada por Rosa como espaço onde
se desempenha a diferenciação. Este lugar, não escrito, mas
performado pelo texto funciona como espaço constituinte deste
enquanto um componente de seu campo de sentido. Assim, Rosa
faz da escuta, este veículo primordial da narratividade, o espaço
onde se passa uma transformação. Em vez de representar este
espaço, Rosa apenas o constrói. Em vez de grafar em texto a
transformação referida, Rosa cria as condições para que o leitor a
experimente, para que o leitor preencha este espaço, se inscreva
nele, e nele escute esta fala que, paradoxalmente é o relato empírico
de um jaguar.
Neste sentido, Meu tio o iauaretê é uma grande obra de arte
que escava nossos hábitos de escuta, e que cria condições para uma
escuta possível, exterior ao horizonte da escuta hipermediada por
gadgets. Meu tio o Iauaretê é uma ode a este dispositivo primordial
da literatura - a escuta -, performada em sintonia com
procedimentos poéticos contemporâneos os mais refinados: a
criação de uma casa vazia como espaço diferenciante (DELEUZE,
2006: 237-243) e de uma problemática zona de indiscernibilidade
entre o artista e o etnógrafo (FOSTER, 2014). O problema da
legibilidade em Meu tio o iauaretê é um problema de escuta, este
problema narrativo, literário, ontológico e intelectual primordial.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 285


Henrique Rocha de Souza LIMA

Referências

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva,


2006.

DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos, edição preparada por David
Lapoujade. São Paulo: Iluminuras, 2006.
_________. Cinema 2: a Imagem-Tempo. São Paulo: Brasiliense, 2009.

FOSTER, Hal. O retorno do real: a vanguarda no final do século XX, Tradução


de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

ROSA, João Guimarães. Estas estórias. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1976.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da Alma Selvagem. São


Paulo: Cosac Naify, 2002.

VOLOSHINOV, V. N. Marxism and the philosophy of language. Tradução para


o inglês:Ladislav Matejka e I. R. Titunik. Cambridge: Harvard University
Press, 1993.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 286


O ENSINO DE LIBRAS PARA ESTUDANTES OUVINTES:
UMA REFLEXÃO ACERCA DA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES DE LIBRAS

Isabelle de Araujo Lima e SOUZA


UFV

Resumo: Este trabalho visa discorrer sobre a formação de


professores de LIBRAS, assim procuramos relacionar as teorias da
Linguistica Aplicada (LA) com as ações dos professores do Curso de
Extensão em Língua Brasileira de Sinais (CELIB) da Universidade
Federal de Viçosa (UFV). Para tanto, adotamos como metodologia a
pesquisa-ação, e fizemos uma observação participante do grupo de
estudos, o qual visava capacitar os professores do CELIB e formar
futuros professores. Assim, notamos uma mudança nas ações dos
licenciandos, que são professores bolsistas, e percebemos que a
transformação da/na ação docente ocorre no tempo individual de
cada um.

Palavras-chave: Linguística Aplica; LIBRAS; Formação de


professores; CELIB; Ensino e aprendizagem

Introdução

A Língua Brasileira de Sinais pode ser considerada como uma


língua natural Surda, por possuir uma morfologia, uma fonologia e
uma sintaxe própria, que configuram as línguas espaciais visuais
(GESSER, 2009). Além disso, tanto a norma gramatical quanto o
conteúdo da mensagem são construídos e elucidados de acordo com
as especificidades culturais das pessoas surdas. Como já
mencionado por Diniz (2003), o uso da Língua de Sinais não é um
atraso do processo cognitivo das pessoas surdas, mas uma língua
que possui uma complexidade linguística tal qual as línguas orais.
O estudo linguístico das línguas espaciais visuais teve início
com Stokoe, na década de 1960. A partir desse estudioso, que se

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Isabelle de Araujo Lima e SOUZA

dedicou à gramática da Língua de Sinais Americana – ASL, um


conjunto de concepções foi desmistificado: a respeito da
universalidade da Língua de Sinais, a naturalidade linguística, a
complexidade gramatical, além de apontar para as variações de
acordo com a cultura de cada população.
A partir disto demarcaram-se três unidades mínimas
formadoras da fonologia do Sinal, sendo estas: Locação - L,
Configuração de Mão - CM e Movimento - M. Posterior aos estudos
de Stokoe houve avanços nos estudos linguísticos, autores como
Klima e Bellugue, na década de 1970, acresceram mais duas
unidades mínimas: Orientação-OR e Expressões Não Manuais-ENM
(QUADROS; KARNOPP, 2004). A estrutura fonológica dos sinais é,
portanto, composta atualmente por cinco unidades mínimas:
Configuração de Mão, Locação, Movimento, Orientação e Expressões
não-manuais. Sabendo disso, a Libras não se trata, então, de uma
pantomima ou de uma mímica (GESSER, 2009), e sim de uma língua
natural.
No Brasil, o reconhecimento da LIBRAS enquanto língua
oficial só ocorreu em 2002 com a lei nº. 10.436, além disso, foi
garantido o direito do surdo ter acesso ao ensino através da sua
língua materna. Em dezembro de 2005 foi promulgado o decreto nº
5626, que torna a disciplina de LIBRAS obrigatória para todos os
cursos de licenciatura, fonoaudiologia e pedagogia. A partir deste
momento começou a surgir uma demanda de profissionais
capacitados para atuarem como intérpretes de LIBRAS, também
houve a necessidade de formar professores de LIBRAS aptos para
ensinarem a língua para os surdos (L1) e para os ouvintes (L2).
Tendo em vista esta demanda, foi necessário criar um curso
de graduação pensando na formação de futuros professores da
língua de sinais. Em 2007 foi criado em Santa Catarina o primeiro
curso de licenciatura em Letras/LIBRAS na modalidade de ensino a
distância, a partir deste momento começaram a despontar
pesquisas cujo objeto é a LIBRAS e/ou sujeitos usuários da língua
de sinais (GEDIEL, 2010). Posteriormente criou-se o curso presencial
na modalidade licenciatura e na modalidade bacharelado. O
primeiro pensando na formação de professores de LIBRAS e o
segundo para formar intérpretes.
Acredito que assim como já existem pesquisas na área de
formação de professores de língua materna e estrangeira, é
necessário se pensar acerca da formação de professores de língua
de sinais, como torná-lo um profissional capaz de refletir sobre/na
sua prática. Sabendo-se disso procuramos discorrer acerca da
experiência docente no Curso de Extensão em Língua Brasileira de

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 288


O ensino de libras para estudantes ouvintes

Sinais (CELIB), da Universidade Federal de Viçosa (UFV), o período


descrito neste trabalho foi de março de 2016 a agosto de 2016.
Logo, o trabalho está organizado da seguinte maneira: 2. Formação
de Professores, em que discorro sobre os pressupostos teóricos que
embasaram este trabalho; 3. O CELIB e a formação de futuros
professores de LIBRAS, seção em que abordo como ocorreu a
transformação na ação dos professores bolsistas, 4. Conclusão, em
que finalizo a discussão proposta neste trabalho.
1. Formação de professores

Nesta secção disserto sobre como o conceito professor


reflexivo trabalhado por Zeichner (2001); Pimenta (2012); Gimenez
(2013); Mateus (2002) e Gimenez e Pereira (2007), e então discorro
sobre a Língua Brasileira de sinais e a formação de futuros
professores de LIBRAS.

1.1 Professor Reflexivo: contribuições teóricas para a formação de


professores de línguas

O conceito de professor reflexivo surgiu nos anos 80 como


uma resposta ao modelo de educação bancária que se tinha, ou seja,
importava que os professores fossem capazes de refletir sobre a sua
prática docente e não apenas serem meros expositores de um
conteúdo. Assim, começou-se a se pensar no processo de formação
dos professores, este deveria ser baseado na epistemologia da
prática, levando o profissional a pensar sobre as demandas e
necessidades locais, logo a valorização do conhecimento da prática
docente foi um dos elementos chaves neste movimento.
Vários países aderiram a este movimento, pois ele coadunava
com o período de (re)democratização que o mundo estava
vivenciando. Apesar da tendência de se pensar a educação de modo
reflexivo, Zeichner (2001) aponta os impactos negativos deste novo
modelo para a educação. Um deles seria a individualização da figura
do professor, separando-o do contexto mais amplo como a
economia, a política e a sociedade, logo ele seria a figura central da
educação. Zeichner (2001) aponta que esse isolamento do indivíduo
professor leva ao ―teacher burnout‖ ou ao ―teacher stress‖, pois
fazem com que os professores percebam os problemas escolares
como se fosse responsabilidade deles.
O isolamento da figura do professor de um contexto social
mais amplo levou a uma corrida pela busca da especialização, e a

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 289


Isabelle de Araujo Lima e SOUZA

formação contínua desses profissionais, gerando uma


mercantilização da educação. Novas escolas foram abertas para
atender a essa demanda crescente dos professores, mas sem
necessariamente pensar na qualidade de sua formação. Tanto a
comercialização da educação como a individualização do professor
são apontados por Zeichner (2001) como aspectos negativos do
movimento da educação reflexiva.
Tendo-se essa problemática da educação reflexiva Zeichner
(2001) propõe que a reflexão do professor não deve ser um fim em
si mesmo, isto não faz da sociedade um ambiente melhor, além
disto, todos os professores são reflexivos resta saber sobre o que
eles refletem e como eles o fazem. De acordo com Zeichner (2001)
os professores precisam saber como o conteúdo de sua matéria
pode contribuir com os estudantes, além disso, é preciso considerar
o conhecimento que eles já possuem antes de entrar em sala de
aula, e também o que eles já sabem fazer, para depois pensar em
como contribuir com o processo de aprendizagem do estudante.
Pimenta (2012) também faz uma proposta para sanar
algumas das lacunas deixadas pelo movimento da educação
reflexiva, para a autora seria de extrema importância relacionar a
prática docente e a teoria, aproximando as universidades e a
educação básica. De acordo com Pimenta a importância do saber
fazer da escola local abriria espaço para a articulação entre a
formação inicial e contínua, principalmente através de estágios.
Deste modo, Zeichner (2001) e Pimenta (2012) nos levam a acreditar
que o conceito de professor reflexivo deve ser pensado de uma
forma contínua começando nos anos iniciais da formação de
professores, e deve compreender um diálogo entre futuros-
professores, professores em serviço, universidade e escola.
Gimenez (2013) coloca que falar sobre a formação de
professor é considerá-lo como professor aprendiz, ou seja, aquele
disposto a fazer uma mediação no processo de ensino-
aprendizagem, considerando o contexto em que atua. Além disso,
formar professor é torná-lo hábil para tomar decisões relativas à sua
prática, além disso, a formação de professores, segundo Gimenez
(2013), é um projeto político e social.
Alguns dos pressupostos colocados por Gimenez (2013)
fazem referência aos currículos dos cursos de licenciatura, os quais
muitas vezes não fornecem disciplinas que auxiliem na formação do
professor reflexivo. Uma das principais contribuições da L. A. é
pensar a linguagem em seu contexto de uso real, e isso foi extrema

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 290


O ensino de libras para estudantes ouvintes

importância para se refletir acerca da prática docente do ensino de


línguas, dando maior atenção para as práticas em sala de aula e não
apenas a teorias linguísticas.
Assim como Gimenez (2013), Mateus (2002) acredita que há
uma correlação entre os formadores de professores e os professores
da educação básica. Para Mateus (2002) vivemos em um mundo
globalizado e multifacetado, este apresenta demandas que são
contemporâneas, partindo-se desta ideia Mateus (2002) argumenta
que a academia tem a responsabilidade de formar profissionais que
estejam aptos a ―aprender a aprender‖. O professor contemporâneo
deve ser um agente transformador do contexto em que atua, para
tanto é preciso que ele possa refletir, questionar, criar, inventar
metodologias, e seja pronto a abandonar ideias quando estas não
forem mais úteis.
Ou seja, o professor precisa ter atributos de pesquisador
para levar os estudantes a refletirem sobre suas práticas e ações
cotidianas, Mateus (2002) ressalta que o professor que copia ensina
o aluno a copiar, entretanto o professor que pesquisa instiga os
seus alunos a questionarem sobre o mundo. Assim, Mateus (2002)
vê a necessidade de desenvolver pesquisas nos cursos de
licenciatura, a fim de estimular os futuros professores a (re)criarem
constantemente conhecimentos coerentes com as necessidades
contemporâneas.
Visto a necessidade de um maior diálogo entre as
universidades e as escolas Gimenez e Pereira (2007) compreendem o
estágio como uma atividade colaborativa entre professores
formadores, futuros professores e professores colaboradores. As
autoras apontam que os estágios oferecidos pela maioria das
instituições não contribuem muitas vezes para o processo de
formação reflexiva dos futuros professores. Em contraposição a este
modelo de estágio, Gimenez e Pereira (2007) argumentam a favor do
estágio colaborativo que seja capaz de aproximar universidades e a
comunidade escolar.
Assim, a formação um professor a fim de que este venha a se
tornar reflexivo e ser um profissional autocrítico é também uma
responsabilidade dos cursos de formação de professores, que
podem fornecer disciplinas que contemplem a correlação entre
teoria e a prática, e sejam capazes de ensinar o profissional a ser
pesquisador de sua prática. Deste modo, é possível afirmar que um
currículo bem estruturado e o organizado, capaz estabelecer o
diálogo entre a teoria e a prática, podem fornecer os instrumentos

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 291


Isabelle de Araujo Lima e SOUZA

necessários para a formação de um professor reflexivo e crítico.

1.2 Formação de Professores de Línguas

De acordo com Kfouri-Kaneoya (2004) ser um professor


reflexivo implica causar transformações na vida dos estudantes e no
contexto em que atua. Ao transpor este conceito para o ensino de
língua estrangeira ela acredita que na sala de aula de língua
estrangeira, tal atividade pressupõe, portanto, relações entre
pensamento e ações voltadas a interesses humanos e sociais e um
comprometimento com a conscientização, sem limites temporais.
Assim, Kfouri-Kaneoya (2004) compreende que a formação de um
professor de línguas (trans)formador é um ciclo contínuo
envolvendo uma relação entre a teoria e a prática, onde o professor
é capaz de (re)pensar acerca da sua prática procurando um
aperfeiçoamento profissional.
Pensar acerca de um professor de línguas reflexivo e crítico
importa em refletir acerca das concepções envolvendo as teorias da
linguagem e de aprendizagem de línguas. Segundo Castro (2002)
para ser um professor capaz de refletir na/sobre sua prática é
preciso pensar no ensino de línguas através de uma abordagem
mais sociointeracionaista, capaz de aproximar a teoria da linguagem
a realidade dos estudantes, trabalhando a língua a partir de uma
situação real do cotidiano do aluno. Assim, é necessário pensar a
língua através de uma maneira mais dialógica e menos funcional e
estruturalista, a fim de provocar (trans)formações na realidade a
partir do uso e compartilhamento da língua.
Gimenez e Cristóvão (2004) colocam que para se pensar a
formação de professores que sejam mais ativos, capazes de
refletirem sobre sua prática, críticos e sejam agentes
multiplicadores é preciso pensar na estrutura e organização dos
currículos de licenciatura em Letras. Elas pontuam como os
currículos de graduação podem representar barreiras ou construir
pontes.
Gimenez e Cristóvão (2004) utilizam a metáfora construir
barreiras, porque um currículo construído com base na separação
entre disciplinas de conteúdo e disciplinas práticas não fornecem
instrumentos para que o professor possa se tornar agente de sua
formação e seja capaz de provocar mudanças no contexto em que
atua. Por outro lado, currículos que incentivam a prática contínua,
distribuindo as matérias de formação e prática pedagógica desde os

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 292


O ensino de libras para estudantes ouvintes

períodos iniciais podem criar pontes entre o contexto escolar, a


comunidade escolar, os alunos-professores e o centro de formação
de futuros professores. Além disto, as autoras acreditam na
necessidade de incentivar a formação de professor-pesquisador,
para que este seja capaz de investigar a sua própria prática docente,
incentivando os alunos a fazerem o mesmo.
Para completar uma formação construtora de ponte Gimenez
e Cristóvão (2004) argumentam sobre a necessidade de incluir
disciplinas de caráter mais interdisciplinar, visando a ―sintonia com
a realidade educacional e que permitam extrapolar situações
concretas para promover inovações‖ (GIMENEZ; CRISTÓVÃO, 2004,
p. 91). No quadro desta disciplina estariam aquelas referentes ao
uso de tecnologias, ao ensino de línguas para diferentes etnias, e
também as práticas inclusivas no ensino regular. Em linhas gerais,
um professor capaz de promover mudanças e (trans)formação é
aquele capaz de refletir e agir de forma autônoma sobre o contexto
em que ele vivencia e experiência.
Embora Kfouri-Kaneoya (2004); Gimenez e Cristovao (2004);
Castro (2002) não tenham falado sobre o a formação do professor
de língua de sinais, é possível transpor a contribuição deles no
campo de formação de língua estrangeira para a formação de
professores de língua de sinais como L1 e/ou L2, tendo em vista que
esta é ainda uma área recente no Brasil e nos estudos em Linguística
Aplicada.

2. O CELIB e a formação de futuros professores de LIBRAS

As teorias relacionadas a formação de professores de línguas


reflexivos motivaram os professores bolsistas1 do CELIB a repensar
a sua prática docente, refletindo sobre como elas poderiam ser
aplicadas ao contexto local, haja vista que não há um curso de
Letras/LIBRAS. Assim, não é possível cursar disciplinas de formação
linguística, nem estágios supervisionados, e a formação pedagógica
de todos os cursos de licenciatura da UFV acontece via
departamento de educação. Nesta seção, abordarei como que os

1
Utilizo o termo professor bolsista, pois trata-se um projeto de extensão da
universidade, logo os estudantes de diversas licenciaturas que tem
conhecimento da língua são selecionados para ensinarem LIBRAS a
comunidade viçosense.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 293
Isabelle de Araujo Lima e SOUZA

professores bolsistas utilizam meios disponíveis para transformar


as suas ações, fazendo com que a sua prática docente fosse mais
reflexiva e crítica.

2.1 Procedimento metodológicos

Os resultados apresentados nesse trabalho derivam dos


dados coletados em uma pesquisa-ação. Assim, membros do CELIB
criaram um grupo de estudos, cujo objetivo era estudar teorias
relativas à prática docente, formar novos professores bolsistas do
curso e relacionar a teoria com a prática pedagógica.
O trabalho é realizado com auxílio do método de pesquisa-
ação, em que, de acordo com Miranda e Resende (2006):

(...) a própria investigação se converteria em ação, em


intervenção social, possibilitando ao pesquisador uma
atuação efetiva sobre a realidade estudada. Reflexão e
prática, ação e pensamento, polos antes contrapostos,
agora seriam acolhidos em uma modalidade de pesquisa
que considera a intervenção social na prática como seu
princípio e seu fim último. (MIRANDA; RESENDE, 2006,
p. 1)

A pesquisa-ação é uma metodologia que tem por objetivo a


intervenção social através da criação de metodologias ativas, para
tanto pode-se combinar diferentes métodos para a coleta e análise
de dados. O pesquisador deve juntamente com os participantes da
pesquisa identificar quais são as dificuldades sociais, para
proporem uma solução, intervindo para a melhora social.
Assim, sendo a solução do problema proposta de forma
conjunta, os sujeitos pesquisados participam como coautores de
todas as etapas da pesquisa ação. Para se obter a eficácia da
pesquisa é necessário desenvolvê-la de uma maneira dialógica.
Então conforme forem aparecendo os problemas, todos os sujeitos
envolvidos pensarão nas melhores ações a serem desenvolvidas
para melhorar o ambiente (TRIPP, 2005).
A pesquisa ação possibilita uma relação dialógica entre os
sujeitos envolvidos e a proposição de tecnologias sociais. Essa
metodologia de pesquisa difere-se dos outros métodos de pesquisa,
pois a grande maioria destes desenvolve um problema de pesquisa,
traçam hipóteses e as verificam, e não necessariamente trazem uma
contribuição prática ao ambiente ou aos sujeitos pesquisados.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 294


O ensino de libras para estudantes ouvintes

Conforme colocado por Tripp (2005) e Miranda e Resende (2006), a


pesquisa-ação visa investigar a realidade de determinados atores
sociais, com o intuito de trazer contribuições à realidade local, por
meio da perspectiva e diálogo com os participantes.
No trabalho em questão procuramos realizar uma
observação participante do grupo de estudo, a fim de identificarmos
as transformações das ações dos professores bolsistas que atuavam
no CELIB. A fim de analisar o desenvolvimento do grupo de estudos,
a fim de avaliar quais foram as transformações e reflexões na/sobre
a prática docente do ensino de LIBRAS, os membros do grupo
passaram a desenvolver observações participante e construíram
diários dos encontros. A partir dos dados gerados pelas observações
participantes e das impressões que constavam nos diários de
campo, é que desenvolvi a análise de dados deste trabalho.
Como ressalta Tripp (2005), a pesquisa ação pode estar
aliada a outras metodologias de pesquisa. Desse modo, o uso da
observação participante e do grupo de estudos mostraram-se
recursos metodológicos adequados. Conforme participávamos das
discussões no grupo de estudos, tecíamos a nossa reflexão, e
registrávamos a nossa impressão no caderno de notas. O caderno de
notas é um recurso metodológico que possibilita o pesquisador
registrar suas impressões no momento em que está em campo.
Assim, as ações desenvolvidas pelos sujeitos, sua fala, e sua
performance são registradas no caderno do pesquisador
(MALINOWISK, 1976). Dessa maneira, fizemos anotações para
posteriormente compartilhamos as nossas impressões com os
participantes do grupo de estudo.

2.2 O CELIB e (transform)ações das práticas dos professores

O CELIB configura-se como um projeto de ensino, pesquisa e


extensão, está vinculado ao Programa de Ensino de Línguas
(PRELIN), da Universidade Federal de Viçosa. O PRELIN abarca outros
cursos de línguas estrangeiras o Curso de Extensão em Inglês
(CELIN), Curso de Extensão em Francês (CELIF), Curso de Extensão
em Espanhol (CELES).
O CELIB foi criado em 2010 pela professora de LIBRAS da
Universidade Federal de Viçosa, diferentemente do demais cursos,
este foi criado sem que houvesse um curso de Letras/LIBRAS na
universidade. Em todos os outros há o curso com habilitação dupla,
em que o licenciando pode optar por fazer o Português e mais uma

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 295


Isabelle de Araujo Lima e SOUZA

língua estrangeira, podendo ser o inglês, francês ou espanhol.


Embora não tivesse um curso de licenciatura para formar futuros
professores de LIBRAS, havia uma demanda crescente, tanto da
comunidade acadêmica quanto dos moradores da cidade, para
aprenderem a se comunicarem com os surdos. Sabendo-se disso foi
necessário a criação do projeto de extensão.
Desta maneira, os estudantes que atuam no projeto como
professores bolsistas de LIBRAS, são estudantes de licenciatura que
tem conhecimento da língua. Assim, a formação linguística e
pedagógica ocorre por meio de grupos de estudos e em reuniões
semanais como a coordenadora pedagógica.
No primeiro semestre de 2016, os estudantes que atuavam
como professores bolsistas no projeto perceberam a necessidade de
reformular a estrutura do ensino abordada no curso. Pois, eles
perceberam que o ensino focado em vocabulário, em que eram
ensinados sinais fora do seu contexto de uso, tornava o ensino
enfadonho e os alunos não conseguiam se comunicar com os surdos
em situações reais de uso da língua. Assim, os próprios professores
bolsistas decidiram criar um grupo de estudos, pensando discutir
textos que auxiliassem na reflexão sobre a prática docente do
ensino de LIBRAS.
O grupo de estudos foi divido em dois módulos: I) Formação
reflexiva do professor de línguas e II) Gêneros e ensino de línguas.
Pois, seguindo os preceitos de Schön (1992), compreendemos que o
professor de línguas deve ser capaz de refletir na/sobre a sua
prática docente, sendo um mediador capaz de fornecer ferramentas
para que os estudantes possam se tornar sujeito ativos no processo
de ensino e aprendizagem.
Ao ter em vista essa percepção do ensino, seguimos a teoria
Bakthiana, a qual afirma que os seres humanos se comunicam por
meio de gêneros, sendo estes infinitos e relativamente estáveis,
sensíveis ao contexto social, cultural e histórico. Imbuídos dessas
duas abordagens teóricas os professores bolsistas, compreenderam
que se os sujeitos se comunicam por meio de gêneros, para que eles
conseguissem se comunicar com os surdos no cotidiano era
necessário que o ensino também ocorresse por meio de gêneros
autênticos. Para isso, era preciso que os professores adotassem uma
abordagem mais sócio interacionista, assim o ensino deveria
aproximar-se da realidade dos educandos.
Nas reuniões os participantes procuravam levar exemplos de
como era feito o ensino de LIBRAS até o momento, procuravam

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 296


O ensino de libras para estudantes ouvintes

discutir planos de aula, materiais que estavam utilizando em sala de


aula e metodologias de ensino, a fim de relacionar a teoria discutida
com a prática docente. Essas discussões fizeram com que os
professores desenvolvessem maior sensibilidade para/na prática
docente, e com que eles criticassem as suas próprias ações
enquanto educadores de línguas.
Através das discussões no grupo de estudos foi possível
perceber que antes de fazermos as reflexões sobre a ação docente,
muitos professores pautavam a prática de ensino e aprendizagem
da LIBRAS ensinando sinais, itens lexicais, nos níveis básicos. Ao
chegar aos níveis intermediários inseriam-se outros elementos
linguísticos como classificadores e expressões não manuais. Quando
os professores bolsistas levavam essas experiências para o grupo de
estudos, eles (des)construíam as suas práticas pedagógicas,
pensando novas formas de ensino e aprendizagem da LIBRAS. Pois,
o ensino de itens lexicais isolados do contexto de uso real da língua
não conseguia fornecer instrumentos para que o educando pudesse
conversar com surdos em uma situação cotidiana.
Desse modo, eles mesmos compreenderam que o ensino de
uma segunda língua, a qual é pautada na memorização, e que o
ensino da língua alvo é feito por meio da língua materna, não
fornece ferramentas para que os estudantes de LIBRAS sejam
autônomos sobre o processo de ensino e aprendizagem. Além do
mais, quando estes estudantes eram expostos a situações reais de
uso da língua, eles tinham dificuldades em se comunicar com os
surdos, e de expressar sentenças mais complexas, que exigiam o uso
de classificadores e de espaço sub-rogados.
Assim, conforme as reuniões se desenvolviam os estudantes
que participavam do grupo de estudos, dentre eles: estudantes que
já atuavam no projeto, e estudantes que desejavam ingressar como
professores de LIBRAS no CELIB, foram transformando a percepção
que tinham acerca sobre o ensino e aprendizagem de LIBRAS
enquanto segunda língua. Eles passaram a levar depoimentos dos
surdos sinalizando, utilizar vídeos do youtube produzidos pelos
surdos, a estimular a interação em sala de aula para que os
estudantes formulassem sentenças em LIBRAS.
Os vídeos produzidos por surdos e postados no youtube se
mostraram uma ferramenta adequada para o ensino, pois
consideramos um gênero autentico por meio do qual os estudantes
podem ter contato com falantes nativos da língua. Além disso, os
professores bolsistas passaram a dar aula só em LIBRAS desde os

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 297


Isabelle de Araujo Lima e SOUZA

módulos iniciais, a fim de estimular o contato com a língua, e fazer


com que os estudantes percebessem a língua em uso.
Essas foram algumas transformações das ações da prática
docente, através das reflexões sobre a prática pedagógica os
membros do grupo de estudos perceberam a ineficiência de se
ensinar a língua alvo pela língua materna, pois essa metodologia de
ensino de língua não é capaz de formar pessoas para se
comunicarem em uma situação de uso real da língua. As reflexões
sobre a prática docente ajudaram os professores bolsistas a
refletirem na sua prática pedagógica, então eles passaram a
reformular as aulas abandonando práticas antigas como trabalhar
memorização dos sinais, ensinar a língua alvo pela língua materna,
usar os slides e imagens como o único suporte da aula. Com isso
pode-se dizer que houve a transformação da prática docente desses
professores bolsistas, que passaram a pensar em aulas pautadas
mais nas situações reais de uso da língua.
É importante ressaltar que, como afirma Barcelos (2007), a
transformação da/na prática docente ocorre através de um
processo, e este varia de acordo com experiências de ensino, com as
crenças e com a cultura de cada educador. Logo, mesmo com as
discussões existem questões que são subjetivas, desse modo cada
participante do grupo teve o seu tempo para refletir e transformar
as suas ações.
De modo geral é possível afirmar que o grupo de estudos se
configurou como um espaço para a formação de futuros professores
de LIBRAS, além de ser um momento em que os professores
bolsistas poderiam refletir sobre a prática docente, e a partir das
discussões gerar soluções para os problemas encontrados na
atuação em sala de aula. Através das discussões os professores
bolsistas passaram a transformar a percepção que tinham acerca
dos métodos e metodologias de ensino de línguas, também
passaram a utilizar ferramentas pedagógicas que aproximassem o
educando da língua e da cultura surda.

Conclusão

No presente trabalho procuramos discorrer acerca da


formação de professores de LIBRAS dentro do CELIB. Para tanto,
trouxemos como perspectiva teórica autores que discorrem acerca
da formação reflexiva e crítica de professores de línguas adicionais,
tendo em vista que abordamos o ensino de LIBRAS para ouvintes.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 298


O ensino de libras para estudantes ouvintes

Como a LIBRAS é uma língua, que teve o seu reconhecimento


enquanto língua oficial recentemente, e o curso o seu espaço no
meio acadêmico possui menos de dez anos, são poucos os estudos
que abordam a formação de professores de LIBRAS. Por tanto,
recorremos aos estudos na área de LA, que abarcavam a formação
de professores de línguas estrangeiras.
Feito esse percurso teórico, tentamos apresentar as
transformações na prática docente dos professores bolsistas do
CELIB, que passaram a adotar uma postura mais reflexiva sobre/na
sua atuação em sala de aula. A partir dessa experiência notamos
ainda que as transformações não ocorreram da mesma forma e ao
mesmo tempo para todos, pois as mudanças dependem não apenas
de estímulos exteriores, mas de questões que também são
subjetivas ao indivíduo.
Neste trabalho pontuei algumas ações adotadas pelo CELIB,
mas ressalto a importância de projetos de ensino, pesquisa e
extensão na área de LIBRAS que abarquem o ensino e a
aprendizagem da língua como uma segunda língua para ouvintes.
Pois, trata-se de uma língua de modalidade espacial visual a ser
ensinada para um grupo de pessoas acostumado com línguas de
modalidade oral auditiva. Assim, coloco os inúmeros desafios do
ensino de LIBRAS para ouvintes, e acredito que a LA enquanto uma
área de conhecimento que visa a compreender a língua e a
linguagem em diferentes situações tem muito a contribuir com o
ensino das línguas de sinais. Por fim, coloco a importância de se
pensar em novos métodos e metodologias de ensino da LIBRAS que
não foquem apenas na memorização de itens lexicais.

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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 299
Isabelle de Araujo Lima e SOUZA
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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 301


CARMINA MAIOR IMAGO SUNT MEA: A CRIAÇÃO DO
MUNDO NAS METAMORPHOSES E NOS TRISTIA, DE
OVÍDIO

Júlia Batista Castilho de AVELLAR


UFMG

Resumo: Este trabalho investiga o caráter visual e ecfrástico das


Metamorphoses, de Ovídio, a partir de uma leitura metapoética do
episódio inicial do poema: a descrição da criação do mundo
(Metamorphoses 1.5-75). Paralelamente, são destacadas as
considerações do eu-poético em Tristia 1.7, elegia de exílio em que
Ovídio comenta a posteriori sobre os versos das Metamorphoses,
caracterizando-os com os mesmos adjetivos (rude e crescens) antes
aplicados ao caos no relato da criação do mundo.

Palavras-chave: Ovídio; Metamorphoses; Tristia;Metapoesia; Écfrase.

Introdução

Afinidades entre representação verbal e visual perpassam as


obras da Antiguidade e suscitam reflexões acerca das relações entre
poesia e artes visuais, evidenciando um potencial interdisciplinar
inerente aos textos clássicos. Já Simônides de Ceos afirmara que a
pintura é poesia silenciosa, enquanto a poesia é pintura que fala, e
Horácio aproximara as duas artes em seu célebre ut pictura poesis
(Ad Pisones 361).1 A literatura clássica conta ainda com célebres
exemplos de ekphraseis, nos quais, a partir da descrição de uma
obra de arte, histórias inteiras eram contadas: Ariadne e Teseu na

1
Esses e outros exemplos de aproximação entre narrativas verbais e visuais
são apresentados por Winkler (2009, p. 22-23), que também aborda a
proximidade entre os atos de ―ler‖ e ―ver‖ na Antiguidade (2009, p. 24).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
Carminamaior imago sunt mea

tapeçaria do poema 64 de Catulo, o quadro narrando a história de


Dáfnis e Cloé no romance de Longo.2
De fato, a ekphrasis levanta questões sobre as associações
entre texto e imagem e do poder da palavra em evocar e criar
imagens. Segundo Hardie (2002, p. 173), ―a ekphrasis literária
incorpora uma dupla estrutura de presença ausente‖, pois, por um
lado, ―explora o poder das artes visuais de criar ilusões de
presença‖ e, por outro, ao comparar artistas visuais e verbais, ―testa
os poderes de enargeia3 de um escritor ao criar uma ilusão textual
de imagens visuais‖. Portanto, assim como uma obra de arte gera a
ilusão de presença do objeto que reproduz, os objetos descritos em
um texto, por meio da ekphrasis, são trazidos para diante dos olhos
do leitor, num efeito de ilusão de realidade. Com isso, o texto verbal
adquire qualidades visuais e aproxima-se da obra de arte que
descreve.
Ora, a visualidade é traço marcante da poesia ovidiana e,
especialmente, das Metamorphoses. Segundo Rosati (apud HARDIE,
2002, p. 173), o poema caracteriza-se por uma poética da
espetacularidade, que demanda constantemente ao leitor visualizar
os eventos maravilhosos narrados. Ademais, nota-se uma
coincidência entre a linguagem ovidiana de assistir aos eventos
narrados e a linguagem usada na ekphrasis.
Diante disso, este trabalho busca investigar os elementos
visuais presentes no episódio inicial das Metamorphoses,a criação
do mundo (1.5-75), os quais aproximam a cosmogonia ovidiana da
descrição de uma obra de arte, pela incorporação de recursos
típicos da ekphrasis. Assim, a descrição da criação do mundo é,
metapoeticamente, equiparada à própria criação do poema. Depois,
serão analisados os comentários que o eu-poético Nasão faz a

2
Há ainda descrições de obras de arte inseridas em narrativas mais longas,
como as pinturas da Guerra de Troia no templo de Juno, em Cartago,
observadas por Eneias na Eneida de Virgílio (1.441-493) e a descrição dos
escudos de Eneias (VIRGÍLIO, Eneida 8.617-731) e de Aquiles (HOMERO,
Ilíada 18.478-608).
3
O termo ―enargeia, ‗vivacidade‘ (em latim, euidentia, illustratio), é definido
por Dionísio de Halicarnasso (Sobre Lísias, 7) como ‗o poder de trazer o que
é dito para diante dos sentidos‘, de modo que o público ‗associe-se às
personagens trazidas pelo orador como se elas estivessem presentes‘‖
(HARDIE, 2002, p. 5).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 303
Júlia Batista Castilho de AVELLAR

posteriori, em Tristia 1.7,sobre suas Metamorphoses, os quais


sugerem paralelos entre o fazer poético e a criação do mundo. E
mais: nas Metamorphoses, a cosmogonia é descrita como imagem
artística; nos Tristia, os próprios versos narrando as transformações
dos seres são considerados uma imagem do poeta exilado, cuja sina
metamorfoseou-se diante de sua expulsão de Roma.

A criação artística do mundo

O breve proêmio das Metamorphoses apresenta o assunto


principal do poema – as transformações dos seres – e insere os
eventos narrados em grandiosa extensão temporal: dos princípios
do mundo até a época do poeta.4 Já nos versos iniciais, fica sugerida
a aproximação do poema a uma obra artística, aspecto que se
manifestará, programaticamente, na descrição do primeiro episódio
e perpassará os relatos de metamorfoses. Com efeito, a escrita do
poema, inspirada pelos deuses, é referida pelo verbo deducite (―fiai‖,
v. 4), que introduz uma metáfora do fazer poético como tecelagem. 5
Assim, as Metamorphoses são aproximadas de uma tapeçaria, o que
encontrará ressonâncias ao longo do poema no aspecto visual dos
episódios e nos paralelos entre ekphrasis e metamorfose.6
Após o proêmio, é apresentado o relato da criação do mundo,
à maneira de uma narrativa etiológica. Holzberg (2002, p. 119)
esclarece que, diferentemente dos Aitia de Calímaco, que explicam

4
OVÍDIO, Metamorphoses 1.1-4: In noua fert animus mutatas dicere formas/
corpora; di, coeptis, nam uos mutastis et illas,/ adspirate meis primaque ab
origine mundi/ad mea perpetuum deducite tempora carmen! – ―O ânimo
impele a cantar as formas mudadas em novos/ corpos; ó deuses, pois
também vós as mudastes,/ inspirai minha empresa e, desde a origem
primeira/ do mundo até meus tempos, contínuo poema fiai!‖ (trad. nossa).
O texto-base em latim para nossas traduções das Metamorphoses foi aquele
estabelecido por Lafaye (2011).
5
Segundo Sharrock (1994, p. 143-144), essa metáfora têxtil destaca
características como leveza, delicadeza e zelo na produção dos versos,
atributos tipicamente calimaquianos.
6
Segundo Hardie (2002, p. 177), as Metamorphoses possuem apenas três
ekphraseis: a descrição das portas do Palácio do Sol (2.1-18), das tapeçarias
de Minerva e Aracne (6.70-128) e dos relevos de uma cratera dada a Eneias
pelo rei Ânio (13.685-701). Essa escassez é contrabalanceada pelos
inúmeros episódios com reflexões sobre as relações entre palavra e imagem
e pelo próprio aspecto visual dos relatos de metamorfoses.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 304
Carminamaior imago sunt mea

fenômenos culturais, a cosmogonia ovidiana fornece explicações


etiológicas de processos naturais. Porém, apesar do conteúdo
aparentemente físico e filosófico, segundo Wheeler (1995, p. 97-98), o
grande modelo7 para a estruturação da descrição ovidiana seria o
escudo de Aquiles (HOMERO, Ilíada 18.478-608), que, já na
Antiguidade, fora interpretado por críticos de Homero como uma
alegoria filosófica à criação do universo por um demiurgo.
A ekphrasis homérica inicia-se com a referência a uma
divisão tripartite do mundo (terra, mar e firmamento), seguida pela
menção do sol e da lua, e termina com a imagem do oceano
circundando a terra.8 Os versos sobre a criação do mundo nas
Metamorphoses, ao apresentar aquilo que ainda não existia na
situação inicial, possuem estrutura semelhante:

Ante mare et terras et quod tegit omnia caelum


unus erat toto naturae uultus in orbe,
quem dixere chaos, rudis indigestaque moles
nec quicquam nisi pondus iners congestaque eodem
non bene iunctarum discordia semina rerum.
Nullus adhuc mundo praebebat lumina Titan,
nec noua crescendo reparabat cornua Phoebe,
nec circumfuso pendebat in aere tellus
ponderibus librata suis, nec bracchia longo
margine terrarum porrexerat Amphitrite.
(OVÍDIO, Metamorphoses 1.5-14, grifos nossos).

7
Embora destaque o modelo homérico do escudo de Aquiles, Wheeler (1995,
p. 96 e p. 99-103) também comenta sobre os paralelos da criação do mundo
nas Metamorphoses com outros relatos cosmogônicos, como o canto de
Orfeu nas Argonáuticas de Apolônio de Rodes (1.496-502); o canto de Iopas
na Eneida de Virgílio (1.742-746); a descrição lucreciana do estado inicial
das coisas no De rerum natura (5.416-563); o canto de Sileno, na sexta
bucólica de Virgílio (6.31-40). Ele opta pela predominância do modelo
homérico por tais descrições proporem um tipo de cosmogonia
evolucionista, enquanto nas Metamorphoses Ovídio apresenta uma versão
divina da criação do mundo, que aproxima o criador de um artífice.
8
HOMERO, Ilíada, 18.483-485 e 607-608: ―Nela o ferreiro engenhoso
insculpiu a ampla terra e o mar vasto,/ o firmamento, o sol claro e
incansável, a lua redonda/ e as numerosas estrelas, que servem ao céu de
coroa. [...] Plasma, por fim, na orla extrema do escudo de bela feitura/ a
poderosa corrente do oceano, que a terra circunda.‖ (trad. C. A. Nunes,
2001, p. 425 e 429).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 305
Júlia Batista Castilho de AVELLAR

Antes do mar, das terras e do céu que tudo cobre,


uno era o aspecto da natureza em todo o orbe,
o qual chamaram caos, massa rude e confusa,
nada senão um peso inerte e, acumuladas num mesmo
lugar,
as sementes discordantes das coisas não bem formadas.
Nenhum Titã oferecia ainda luz ao orbe,
nem Febe nova, crescendo, restaurava os cornos,
nem a terra estava suspensa no ar circundante,
equilibrada no próprio peso, nem pela longa margem
das terras Anfitrite estendera seus braços. (trad. nossa)

Como no escudo de Aquiles, também na cosmogonia


ovidiana observa-se uma divisão tripartite do mundo, em mar, terras
e céu (v. 5) –, à qual se segue a menção ao sol (Titan, v. 10) e à lua
(Phoebe, v. 15). Igualmente, o trecho finaliza com a referência ao
oceano (Amphitrite, v. 14), que ainda não circundava as terras
(WHEELER, 1995, p. 99). Essa primeira aproximação com o escudo de
Aquiles contribui para sinalizar, no poema ovidiano, a estrutura
ecfrástica do relato da criação do mundo e, especialmente, sua
semelhança com a feitura de uma obra artística.
O processo de criação principia com o caos, anterior a
tudo.9Na definição ovidiana, ele consistia em uma ―massa rude e
confusa‖ (rudis indigestaque moles, v. 7) e um ―peso inerte‖ (pondus
iners, v. 8). Tais caracterizações apontam para o estado grosseiro das
coisas nos primórdios: rudis diz respeito a algo que não foi trabalhado,
enquanto iners apresenta dupla interpretação – pode-se tratar tanto de
algo inerte e inativo, quanto de algo sem arte.10 Além da rudeza e falta

9
Também em Hesíodo, o elemento primordial era o Caos: ―Sim bem primeiro
nasceu Caos, depois também/ Terra de amplo seio, de todos sede
irresvalável sempre,/ dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, e
Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,/ e Eros: o mais belo
entre os Deuses imortais.‖ (Teogonia, 116-20, trad. J. Torrano, 2012, p. 109).
Entretanto, seu sentido é distinto do ovidiano: era ―uma fenda no abismo
‗hiante‘‖ (BURKERT, 1986, p. 53), uma ―abertura infinita‖ (NIETO, 2000, p. 27).
10
Iners é formado a partir de in-ars. Considerando-se que ars designa uma
habilidade adquirida pelo estudo ou pela prática, ou então um
conhecimento técnico, e que se opõe a natura (―habilidade natural‖) e a
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 306
Carminamaior imago sunt mea

de acabamento, outro traço marcante do caos ovidiano é a extrema


instabilidade, já que ele reunia em si as ―sementes discordantes das
coisas‖ (v. 8-9) e elementos que se opunham (v. 17-20). Em meio a essa
confusão de limites, embora o aspecto da natureza fosse uno (v. 6 e
18), tal unidade guardava um conflito entre suas partes opostas – frio e
quente, úmido e seco, mole e duro, leve e pesado (v. 19-20).11 Ou seja, o
estado inicial do mundo era uma desordem que precisava ser polida e
burilada, que necessitava de algo ou alguém para lhe dar forma.
A feitura do mundo, portanto, será executada pela figura de um
―deus e melhor natureza‖ (deus et melior natura, v. 21), que termina
com o conflito (litem, v. 21), separa as partes do mundo, ordena os
quatro elementos:

Hanc deus et melior litem natura diremit;


nam caelo terras et terris abscidit undas
et liquidum spisso secreuit ab aere caelum.
Quae postquam euoluit caecoque exemit aceruo,
dissociata locis concordi pace ligauit.
Ignea conuexi uis et sine pondere caeli
emicuit summaque locum sibi fecit in arce.
Proximus est aer illi leuitate locoque;
densior his tellus elementaque grandia traxit
et pressa est grauitate sua; circumfluus umor
ultima possedit solidumque coercuit orbem.
(OVÍDIO, Metamorphoses 1.21-31, grifos nossos).
A esta luta, um deus e uma melhor natureza pôs fim;
separou do céu as terras, as terras das águas
e do espesso ar discerniu o límpido céu.
Depois de os apartar e libertar da massa tenebrosa,

ingenium (―qualidades naturais‖, ―talento nato‖), iners pode definir-se como


algo sem habilidade (ERNOUT & MEILLET, 1951, p. 86-7).
11
OVÍDIO, Metamorphoses 1.15-20, grifos nossos: Vtque erat et tellus illic et
pontus et aer,/ sic erat instabilis tellus, innabilis unda,/ lucis egens aer; nulli
sua forma manebat/ obstabatque aliis aliud, quia corpore in uno/ frigida
pugnabant calidis, umentia siccis,/ mollia cum duris, sine pondere habentia
pondus. – ―Assim como ali estavam a terra, o oceano e o ar,/ instável era a
terra, inavegável a água,/ de luz, privado o ar; nada mantinha sua forma,/ e
opunham-se uns aos outros, pois em um só corpo/ o frio combatia o
quente, o úmido, o seco,/ o mole, o duro, o sem peso, o que tinha peso.
(trad. nossa)
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 307
Júlia Batista Castilho de AVELLAR

uniu as coisas dissociadas aos seus lugares com paz


harmônica.
A força ígnea e sem peso do curvo céu
irrompeu e instalou-se na altura suprema.
Sucede-lhe o ar, pela leveza e lugar;
mais densa que eles, a terra atraiu os grandes elementos
e comprimiu-se com o próprio peso; o líquido circundante
ocupou as bordas e cingiu o sólido orbe. (trad. nossa)

Nessa separação inicial, os elementos são distribuídos segundo


seu peso. A terra, mais densa (densior, v. 29), ficou abaixo de tudo,
enquanto o fogo, sem peso (sine pondere, v. 26), ocupou a altura
suprema. Assim, a descrição estabelece relações espaciais entre os
eventos apresentados: ―o demiurgo divide e dispõe os conteúdos do
caos de uma maneira sequencial que corresponde a seu ponto de vista‖
(WHEELER, 1995, p. 104). A organização espacial e a linearização de
eventos estão fortemente vinculados à focalização do observador (no
caso, o demiurgo-artista) e constituem elementos característicos de
ekphrasis.12
Portanto, é o deus mencionado que dá forma a cada uma das
partes do mundo. Observa-se que ele permanece como uma figura não
identificada e indeterminada (quisquis fuit ille deus, ―quem quer que
tenha sido aquele deus‖, v. 32) e é referido como ―artífice do mundo‖
(mundi fabricator, v. 57).13 Segundo Holzberg (2002, p. 119), a criação
do universo nas Metamorphoses é apresentada como a passagem de
um estado inicial caótico para um estado ordenado, resultante da
atividade de um criador que modela a massa crua e amorfa do caos
num sistema cuidadosamente organizado. Nessa perspectiva, a
ordenação do mundo nas Metamorfoses fundamenta-se em uma

12
Para uma discussão sobre focalização e linearização na poesia e artes
visuais, ver Fowler (1991, p. 29-31).
13
Esse último aspecto aproxima a cosmogonia ovidiana do modelo cosmogônico
tecnomórfico, que, segundo Burkert (1986, p. 51-52), caracteriza-se pela
introdução de um ―criador‖ à maneira de um artesão, capaz de construir o que
lhe apetece. O estudioso distingue três modelos cosmogônicos: aquele
baseado na geração e sequência de gerações, configurando cadeias de
estirpes; o modelo tecnomórfico, exemplificado pelo deus-oleiro Ptah; e
aquele em que a fundação ocorre por meio da execução de sacrifícios, como
no Rigveda e na Edda, com a formação do mundo a partir do corpo
esquartejado de um gigante.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 308
Carminamaior imago sunt mea

harmonia artística, na medida em que o universo é apresentado como


uma obra de arte. Por isso, Holzberg (2002, p. 120) afirma que a
cosmogonia ovidiana soa como um tratado teórico sobre arte e
considera a criação do universo como evento fundador na história da
cultura, sendo o criador uma espécie de primeiro artista.
À maneira de um escultor, ele aglomerou a terra em um grande
globo (magni speciem glomerauit in orbis, v. 35) e ordenou que, com a
ação de rápidos ventos, os mares se enchessem e circundassem as
margens da terra (iussit et,v. 37). Acrescentou também fontes, pântanos
imensos e lagos (fontes et stagna inmensa lacusque, v. 38) e ordenou
que surgissem planícies, vales, florestas e montanhas (iussit et,v. 43).
Em seguida, dividiu a terra em cinco zonas: uma tórrida, duas gélidas e
duas que, temperadas, são habitáveis (v. 48-51). Acima das terras e
águas colocou o ar, mais leve que elas e mais pesado que o fogo. Lá, o
deus ordenou residirem as névoas e nuvens (iussit et,v. 55), os trovões
e os ventos causadores de raios e relâmpagos (tonitrua, cum fulminibus
facientes fulgora uentos, v. 55-6). Por fim, nas alturas extremas,
posicionou o éter, límpido e sem peso (liquidum et grauitate carentem,
v. 67), onde começaram a cintilar as estrelas (v. 67-71). Depois disso, os
animais passaram a povoar o mundo: os astros e deuses ocuparam o
espaço celeste; os peixes brilhantes, as águas; as feras, a terra; e os
pássaros, o ar (v. 72-75).
Segundo Wheeler (1995, p. 107), a repetição como recurso para
marcar a introdução de novas cenas na descrição de um objeto
artístico é um procedimento tipicamente ecfrástico. Assim, na
cosmogonia ovidiana, a repetição de iussit et (v. 37, 43, 55) serve para
introduzir, respectivamente, as cenas com a descrição das águas, das
terras e do ar, de modo a retomar a divisão tripartite inicialmente
apresentada. Ademais, para o estudioso (1995, p. 107), essa expressão
seria equivalente às repetições de et fecit, bastante frequentes em
ekphraseis.
Outra estratégia ecfrástica mencionada por Wheeler (1995, p.
108)é a definição das bordas da composição, seus detalhes e
referências à parte central. Nas Metamorfoses, isso ocorre pela
definição da posição dos quatro elementos com base em seu peso, de
modo a se constituir, para os eventos que se seguem, uma moldura
limitada pelo fogo e pela terra. Há ainda a descrição dos traços de cada
região criada, e a menção da criação de cinco zonas terrestres. Outro
procedimento ecfrástico é a enumeração, recurso retórico para a
enargeia, que contribui para a vivacidade do texto (WHEELER, 1995, p.
109-110). Nas Metamorfoses, são enumerados os conteúdos de cada

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 309


Júlia Batista Castilho de AVELLAR

região do mundo formada, o que coloca a obra diante dos olhos do


leitor e confere visualidade aos eventos descritos.
Portanto, essa descrição da criação do mundo à maneira de
uma ekphrasis a aproxima de uma obra de arte. Isso fica ainda
reforçado pelo paralelo da cosmogonia ovidiana com a ekphrasis
presente no início do segundo livro das Metamorphoses (2.1-18).
Segundo Hardie (2002, p. 177), nas cenas cósmicas nas portas do
palácio do Sol, ―o artista Vulcano representou, em forma visual
estática, o universo que o leitor viu ser claramente delineado pelo
demiurgo no início dos tempos e no início da própria narrativa
verbal‖. Nesse sentido, a cosmogonia ovidiana adquire valor
metapoético, na medida em que a criação do mundo equipara-se à
feitura do próprio poema e, desse modo, suscita reflexões sobre o
fazer artístico. Fowler (1991, p. 33), inclusive, afirma que cenas de
ekphrasis são frequentemente tomadas como paradigmáticas para a
interpretação da arte, tanto literária quanto visual. Wheeler (1995, p.
117), por sua vez, aproxima o demiurgo artista (deus et melior natura)
da figura do poeta e considera que o ―verdadeiro‖ assunto da
cosmogonia ovidiana poderia ser a própria criação literária das
Metamorphoses.

Metamorphoses metapoéticas: o mundo caótico do poeta exilado

A interpretação da cosmogonia ovidiana nas Metamorphoses


sob uma perspectiva metapoética fica sugerida pelo tipo de relação
geralmente estabelecida entre um texto narrativo e uma passagem
ecfrástica. Conforme esclarece Hardie (2002, p. 174), a ekphrasis num
poema narrativo sugere uma analogia entre a obra de arte descrita no
texto e a obra de arte verbal constituída pelo próprio texto, na qual a
ekphrasis é emoldurada. Entretanto, mais que isso, tal leitura ainda é
reforçada pelos comentários que o eu-poético Nasão faz acerca das
Metamorphoses. Na elegia 1.7 dos Tristia, Nasão, exilado em Tomos e
distante de Roma, relê e reinterpreta sua grande obra anterior. Ele faz
comentários negativos sobre a qualidade poética do poema e propõe o
acréscimo de uma epígrafe para justificar os defeitos da obra:

Hos quoque sex uersus, in prima fronte libelli


si praeponendos esse putabis, habe:
‗Orba parente suo quicumque uolumina tangis,
his saltem uestra detur in urbe locus;
quoque magis faueas, haec non sunt edita ab ipso,
sed quasi de domini funere rapta sui.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 310


Carminamaior imago sunt mea
Quicquid in his igitur uitii rude carmen habebit,
emendaturus, si licuisset, eram.‘
(OVÍDIO, Tristia 1.7.33-40, grifo nosso)14

Guarda também estes seis versos, se os julgares dignos


de serem antepostos no frontispício do livrinho:
―Quem quer que sejas, que tocas volumes órfãos de pai,
ao menos lhes dês asilo em tua cidade;
para melhor os acolher, não foram publicados pelo
próprio amo,
mas como se roubados de seu funeral.
Qualquer defeito, então, que o rude poema possuir,
se fosse permitido, eu haveria de corrigir‖. (trad.
nossa)

É bastante curioso que, ao asseverar a incompletude e a falta


de polimento das Metamorphoses, o eu-poético dos Tristia utilize
precisamente o adjetivo rudis, tanto na epígrafe acima citada quanto
em outro verso desta elegia: ―ou porque o poema incompleto e rude
ainda estava‖ – uel quod adhuc crescens et rude carmen erat
(OVÍDIO, Tristia 1.7.22, trad. e grifos nossos). O adjetivo rude
(―grosseiro‖, ―não trabalhado‖) aponta exatamente para o contrário
do ideal do poeta doctus, escrupuloso na revisão de seus versos,
dotado de ars e possuidor de saber. Assim, ao ser atribuído ao
poema ovidiano, rudis enfatiza a falta de polimento e reparo dos
versos, que teriam sido impossibilitados pela expulsão do poeta de
Roma e sua condenação ao exílio. Sem a última revisão, 15 as
Metamorphoses permaneceram incompletas.
Mais do que isso, rudis alude aos versos iniciais do próprio
poema a que se refere. Conforme vimos, o estado inicial das coisas,
o caos, fora descrito na cosmogonia ovidiana como uma ―massa
rude e confusa‖ (rudis indigestaque moles, Metamorphoses 1.7), um
―peso inerte‖ (pondus iners, Metamorphoses 1.8). O emprego do
mesmo adjetivo rudis aproxima o fazer artístico do demiurgo e do

14
O texto-base latino para nossas traduções dos Tristia foi o estabelecido
por André (2008).
15
OVÍDIO, Tristia, 1.7.27-30: Nec tamen illa legi poterunt patienter ab ullo,/
nesciet his summam si quis abesse manum;/ ablatum mediis opus est
incudibus illud/ defuit et scriptis ultima lima meis. – ―Não poderão, porém,
ser lidos sem queixas por ninguém,/ se se desconhecer faltar-lhes a última
demão;/ a obra foi-me arrebatada em meio à bigorna,/ aos meus escritos
faltou a derradeira lima‖ (trad. nossa).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 311
Júlia Batista Castilho de AVELLAR

poeta: o estado primordial do mundo era amorfo e desordenado e


precisava ser modelado pela ação do criador artista, assim como o
poeta escrupuloso deve polir seus versos e lhes dar forma. No
entanto, segundo os comentários do eu-poético dos Tristia, a
realização artística do poema permaneceu incompleta, em seu
estado inicial de desordem, por ser um rude carmen. Assim, numa
leitura metapoética, pode-se pensar que a criação do mundo não se
efetuou, e que prevaleceu a situação de caos inicial, imagem que
representa bem a incompletude da criação (as Metamorfoses como
obra incompleta) e o caráter instável e metamórfico do poema, ao
narrar histórias sobre transformações de seres.
O estado de caos desordenado, tanto no âmbito da
cosmogonia, quanto no da criação poética, tem como
correspondente a situação do próprio poeta exilado em Tomos, às
margens do Mar Negro. Logo no início da elegia 1.7, Nasão afirma
que seu melhor retrato são seus poemas narrando as
transformações dos homens, desditosa obra que o desterro do amo
interrompeu. – [...] sed carmina maior imago/ sunt mea quae mando
qualiacumque legas,/ carmina mutatas hominum dicentia formas,/
infelix domini quod fuga rupit opus (OVÍDIO, Tristia 1.7.11-14).
A correspondência instaura-se pelo fato de a sina de Nasão
ter sofrido uma transformação digna de ser narrada em seus versos
sobre metamorfoses: antes poeta célebre em Roma, Nasão torna-se,
com a reviravolta da fortuna, poeta exilado. Com efeito, nas
circunstâncias hostis e instáveis do local de exílio, o eu-poético, sem
condições adequadas para a produção de poemas, em diversos
momentos afirma ter perdido sua habilidade e talento poéticos, 16
metamorfoseando-se em um poeta que poderíamos caracterizar
como ―rude‖. Essa imagem de fracasso poético é, segundo Nasão, o
retrato equivalente aos versos não polidos nem revisados das
Metamorphoses, metaforicamente compreendidos como a massa

16
A título de exemplo: OVÍDIO, Tristia, 5.1.27-28: Non haec ingenio, non haec
componimus arte:/ materia est propriis ingeniosa malis. – ―Não as compus
com engenho, tampouco com arte:/ a matéria se engendra nos meus males.‖
(trad. nossa); e OVÍDIO, Tristia, 3.14.33-36: Ingenium fregere meum mala
cuius et ante/ fons infecundus paruaque uena fuit./ Sed quaecumque fuit,
nullo exercente refugit/ et longo periit arida facta situ. – ―Os males secaram
meu engenho, que mesmo antes/ era fonte infecunda e fina veia./ Mas,
qualquer que tenha sido, se esvaiu sem a prática/ e findou, de longa inação
ressequido.‖ (trad. nossa). Para detalhes acerca da máscara de fracasso
poético adotada por Nasão nos Tristia, ver Avellar (2015, p. 74-94).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 312
Carminamaior imago sunt mea

amorfa do caos, o mundo antes de ser modelado.


Porém, apesar das avaliações negativas que Nasão faz de sua
obra, ele próprio as desmente e mina, ainda que por meio de sutil
ironia, evidenciando que se trata apenas de uma ―pose‖ de fracasso
poético. Na verdade, o paralelo entre criação do mundo e criação
poética equipara o poeta ao mundi fabricator, o ―deus‖ ou ―melhor
natureza‖ capazes de ordenar o universo. Nessa perspectiva, a
depreciação do eu-poético dos Tristia acerca das Metamorfoses
revela-se, ironicamente, uma autoafirmação de sua capacidade
criadora: Nasão pretensiosamente apresenta-se, numa leitura
metapoética, como criador do mundo e também como criador de
uma nova poética e uma nova forma de compreender a poesia.

Referências

AVELLAR, Júlia Batista Castilho de. As Metamorfoses do Eu e do Texto: o jogo


ficcional nos Tristia de Ovídio, 2015, 320 f. (Mestrado em Estudos
Literários/Literaturas Clássicas e Medievais) Faculdade de Letras, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

BURKERT, Walter. Mito e mitologia. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira.


Coimbra: Faculdade de Letras, 1986.

CATULLE. Poésies.Texte établi par G. Lafaye. Paris: Les Belles Lettres, 1949.

ERNOUT, Alfred & MEILLET, Antoine. Dictionnaire étymologique de la langue


latine:histoire des mots. Paris: Klincksieck, 1951.

FOWLER, Don. Narrate and describe: the problem of ‗ekphrasis‘. The Journal of
Roman studies, Cambridge, v. 81, p. 25-35, 1991.

HARDIE, Philip. Ovid‘s poetics of illusion. Cambridge: Cambridge University


Press, 2002.

HESÍODO. Teogonia. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2012.

HOLZBERG, Niklas. Ovid: The poet and his work. Ithaca/London: Cornell
University Press, 2002.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 313


Júlia Batista Castilho de AVELLAR

HOMERO. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

HORACE. Épitres. Texte établi et traduit par F. Villeneuve. Paris: Les Belles
Lettres, 1955.

LONGUS, XENOPHON OF EPHESUS. Daphnis and Chloe. Anthia and


Habrocomes. Edited and translated by J. Henderson. Loeb Classical Library
69. Cambridge: Harvard University Press, 2009.

NIETO, Roxana. La aurora del pensamiento griego: las cosmogonías


prefilosóficas de Hesíodo, Alcmán, Ferecides, Epiménides, Museo y la
Teogonía órfica antigua. Madri: Trotta, 2000.

OVIDE. Les Métamorphoses. Texte établi par G. Lafaye. Émendé, présenté et


traduit par O. Sers. Paris: Les Belles Lettres, 2011.

OVIDE. Tristes. Texte établi et traduit par J. André. Paris: Les Belles Lettres,
2008.

SHARROCK, Alison. Seduction and repetition in Ovid‘s ‗Ars Amatoria‘ 2.


Oxford: Clarendon Press, 1994.

VIRGÍLIO. Eneida. Trad. Carlos Alberto Nunes. Organização, apresentação e


notas de João A. Oliva Neto. São Paulo: Editora 34, 2014.

WHEELER, Stephen. ‗Imago mundi‘: another view of the creation in Ovid‘s


Metamorphoses. American Journal of Philology, Baltimore, v. 116, n. 1, p. 95-
121, 1995.

WINKLER, Martin. Cinema and classical texts: Apollo‘s new light. New York:
Cambridge University Press, 2009.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 314


MONITORAMENTO LEXICAL EM CARTAS
OITOCENTISTAS: UMA ANÁLISE SEMÂNTICA DOS
PRONOMES TU E VOCÊ

Juliana Sander DINIZ


UFMG

Resumo: Dando continuidade a pesquisas anteriores (LOPES, 2008;


LOPES E MARCOTULIO, 2011; RUMEU, 2013), que verificaram, no
século XIX, a concorrência entre os pronomes tu e você; buscou-se
analisar dez cartas do mesmo missivista à sua filha, observando a
escolha pronominal relacionada ao campo semântico das missivas.
Por meio do monitoramento de palavras de campos lexicais opostos
informalidade/proximidade e formalidade/distanciamento,
hipotetiza-se que itens associados ao primeiro par de lexemas
ocorreriam em consonância com o tu de intimidade; enquanto
aqueles ligados ao segundo par se associariam ao pronome você,
como estratégia de polidez. Foi usado o programa AntConc
(Windows 3.2.4).

Palavras-chave: Monitoramento lexical; Alternância tu/você; Cartas


oitocentistas.

Considerações iniciais

É sabido que pesquisas anteriores (LOPES, 2008; LOPES E


MARCOTULIO, 2011; RUMEU, 2013) atestaram a concorrência entre
os pronomes de tratamento tu e você, em fins do século XIX.
Segundo Rumeu (2013, p. 19), ―a língua portuguesa herdou do latim
um sistema dual de referência à segunda pessoa do discurso‖,
sendo o pronome tu utilizado no plano da intimidade, enquanto
você, devido a uma motivação sociopragmática, apontaria para um
maior distanciamento.
A fim de dar continuidade a tal investigação, ainda que sob
outra perspectiva (a semântico-lexical), este estudo se propôs a
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
Juliana Sander DINIZ

mapear as escolhas lexicais de dez cartas oitocentistas, escritas por


um mesmo missivista (João Pedreira do Couto Ferraz) à sua filha,
buscando verificar se a variação das escolhas pronominais (tu e
você) apresentaria algum tipo de relação no âmbito semântico com
seus respectivos conteúdos e itens lexicais elegidos pelo missivista.
Com base nessa questão, assume-se como ponto de partida a
hipótese de que a opção pelo você-sujeito exclusivo é socialmente
motivada (cf. discutido por RUMEU (2013) e por LOPES E
MARCOTULIO (2011), à luz de BROWN E LEVINSON (1987), BROWN E
GILMAN (1960)) e que tal condicionamento socio-pragmático
também se deixaria evidenciar pela seriedade dos assuntos, tais
como negócios e doenças e, portanto, resultado das escolhas
lexicais assumidas nas missivas. Por outro lado, em missivas de tu-
exclusivo, teríamos o reduto da intimidade, conforme previsto por
Brown e Gilman em relação à dinâmica tu e vous do francês calcada
na expressão da hierarquização das relações sociais.

1. Uma breve revisão da literatura: a concorrência entre as formas


tu e você no português brasileiro

Segundo LOPES (2008), os usos dos pronomes tratamentais


tu e você começaram a divergir a partir de meados do século XVIII.
Nesse período, atesta-se maior produtividade da forma vulgar você
em relações assimétricas, ou seja, em situações comunicativas nas
quais os interlocutores encaixam-se em uma hierarquia, sendo um
pertencente a uma posição social superior, enquanto o outro
encontra-se em posição inferior. Já a partir do século XIX, no Brasil,
a concorrência passaria a ser maior entre tu e você em relações
solidárias mais íntimas.
Uma análise desses pronomes à luz da sociopragmática
também foi feita por LOPES e MARCOTULIO (2011), com base na
Teoria da Polidez (BROWN E LEVINSON, 1987, apud LOPES E
MARCOTULIO, 2011), na qual a interação social seria sempre um
lugar de risco para seus participantes. Desse modo, a harmonia do
processo interativo seria garantida tão somente por meio de
estratégias de polidez, como afirmam os autores:
A forma pronominal você pode ter mantido algum valor
de cortesia, formalidade, distanciamento ou
indiretividade própria da expressão primitiva Vossa
Mercê. Nesse sentido, o seu emprego no lugar do
tratamento direto tu poderia ser uma estratégia de
polidez/cortesia que funciona pragmaticamente como

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 316


Monitoramento lexical em cartas oitocentistas

um recurso mitigador que minimizaria um determinado


ato, preservando as faces dos participantes da interação.
(BROWN; LEVINSON, 1987, apud LOPES; MARCOTULIO,
2011, p. 4)

A complexidade dos usos tratamentais foi verificada por


Rumeu (2013), que destacou não apenas o valor semântico-social
das formas de tratamento, mas também os valores individuais que
lhes podem ser atribuídos nas distintas situações de comunicação.
Desse modo, acredita-se que o mapeamento lexical a ser feito neste
estudo, com base nas missivas de um só escrevente ambicionaria
revelar também a manifestação da concorrência entre tu e você no
âmbito individual. Assim, crê-se que as escolhas lexicais feitas pelo
missivista em cada caso tenham sido também influenciadas por
estratégias de polidez ou intimidade, tal qual os pronomes; sendo o
controle lexical uma maneira de tentar adentrar no complexo
terreno cognitivo do escrevente, a fim de respaldar a semântica da
intimidade do tu, bem como a semântica dos usos pragmaticamente
motivados do você.

2. Metodologia

As dez cartas selecionadas para o estudo em questão foram


coletadas a partir da amostra da família carioca Pedreira Ferraz-
Magalhães, editada e publicada por Rumeu (2013). Segundo a
autora:

Acredita-se que as cartas produzidas pelas famílias


Pedreira Ferraz e Castro Magalhães, representantes de
uma amostra criteriosamente organizada, possa
subsidiar os estudos sociolinguísticos acerca da
produção escrita de brasileiros letrados que viveram em
fins do século XIX e na primeira metade do século XX.
(RUMEU, 2013, p. 80)

A fim de analisar a alternância no uso pronominal de tu e


você (com realização plena, ou nula) no âmbito individual, optou-se
por considerar, nesta pesquisa, apenas as missivas de João Pedreira
do Couto Ferraz, o patriarca da família, nascido em 10 de agosto de
1826, no Rio de Janeiro. Além disso, buscando ajustar ainda mais o
foco da análise, dentre as cartas do patriarca, foram selecionadas
apenas aquelas destinadas à sua filha, Zélia Pedreira de Abreu

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 317


Juliana Sander DINIZ

Magalhães. Desse modo a variação entre as formas tu e você poderá


ser diretamente relacionada a diferentes situações comunicativas, e
não ao fato de existirem diferentes interlocutores.
Assim, estabeleceram-se, como procedimentos
metodológicos, primeiramente, a atestação do subsistema de cada
missiva (atestação de sujeito tu exclusivo, você exclusivo, ou misto –
quando as cartas apresentarem ambas manifestações, com
realização plena ou não)1; analisando, em seguida, o conteúdo de
cada uma das 10 cartas de Dr. Pedreira para sua filha Zélia (cf.
RUMEU, 2013), visando a destacar em cada uma das descrições do
assunto das missivas os itens lexicais que poderiam resumi-las.
O estudo tem sua sequência por meio de um mapeamento de
itens lexicais presentes nas cartas, a fim de verificar quais seriam os
lexemas mais recorrentes em cada subsistema, segundo a forma de
realização do sujeito pronominal. Tal controle foi realizado por
meio do Programa AntConc (versão para Windows 3.2.4) de
Laurence Anthony (Universidade de Waseda, Japão). Os itens foram
escolhidos com base na teoria dos campos lexicais2, de modo que
buscou-se monitorar, majoritariamente, palavras pertencentes ao
mesmo campo semântico dos conteúdos das missivas. Além disso,
foi também controlada a ocorrência de nomes próprios dos
integrantes da família, assim como de apelidos; com base na
hipótese aqui formulada de que o caso dos hipocorísticos3 seria

1
Terminologia adotada por Lopes e Cavalcante (2011) para a classificação
dos tipos de sujeito encontrados nas cartas dos séculos XIX e XX, analisadas
em sua pesquisa acerca da expansão do você-sujeito e retenção do clítico-te.
2
―A teoria do campo lexical de Eugenio Coseriu propõe uma análise
estrutural do vocabulário, determinando o campo lexical dentro de
estruturas lexemáticas onde os lexemas constituem um sistema de
oposições. Essa teoria do campo lexical vem desde F. de Saussure,
demonstrando que a língua é uma estrutura onde as palavras formam
sistemas relacionados entre si. Ferdinand Saussure no Curso de Linguística
Geral (SAUSSURE, 1970, p. 142-7) escreveu sobre a rede de associações que
se desenvolvem em torno de uma palavra, e afirma que: ‗Um termo dado é
como o centro de uma constelação, o ponto para o qual convergem outros
termos coordenados cuja soma é indefinida‘. (SAUSSURRE, 1970, p. 146)‖
(ABBADE, 2011)
3
Rocha Lima (2003) denomina hipocorísticos como uma ―alteração, nascida
em âmbito familiar, do prenome ou nome próprio individual: Fafá (Fabiana),
Filó (Filomena), Gegê (Getúlio), etc.‖ (cf. LUCINI, 2010)
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 318
Monitoramento lexical em cartas oitocentistas

verificado apenas em contextos íntimos.


Por fim, correlacionam-se os itens lexicais mais recorrentes
em cada subsistema e os seus conteúdos; fazendo um cruzamento
entre tais itens, o campo lexical destacado na descrição dos
assuntos das missivas – encontrada na edição de Rumeu (2013) – e o
tipo de sujeito da carta (tu exclusivo, você exclusivo ou tu~você
exclusivo). Busca-se assim, verificar a hipótese apresentada na
introdução do presente trabalho, na qual o uso do pronome tu viria
em associação a uma semântica de proximidade, enquanto a
semântica do distanciamento seria revelada por meio do emprego
do você.

3. Análise e discussão dos resultados

3.1 Um estudo inicial: delineandoo monitoramentodo fenômeno

Primeiramente, correlacionou-se o conteúdo da missiva à


referência ao sujeito de 2ª pessoa (tu, você, você~tu) em cada um
dos dez casos analisados (tabela abaixo); destacando em negrito e
sublinhado alguns itens lexicais presentes na descrição dos
conteúdos das cartas4que poderiam resumir a ideia geral das cartas.
Cabe assinalar que, das dez missivas consideradas, sete
apresentaram tu como sujeito exclusivo, duas apresentaram sujeito
misto, e apenas uma revelou o pronome você como sujeito
exclusivo.

4
Nas edições fac-similares das missivas, feitas por Rumeu (2013), a autora
apresenta um cabeçalho que antecede cada carta, contendo as seguintes
informações: local e data, fonte, autor, local e data de nascimento,
nacionalidade, naturalidade, referência, idade (na ocasião da escritura da
carta) e conteúdo.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 319
Juliana Sander DINIZ

Cartas de Dr. Pedreira a sua filha Zélia (Intervalo de 19 anos – 1877 a


1896)
Nº Local e data Conteúdo (cf. RUMEU, 2013) Sujeito
01 Rio de ―Carta de João Pedreira do Couto Ferraz a Tu
Janeiro, filha Zélia comentando sobre a viagem
05/02/1877 realizada e mostrando-lhe de desejo ir ao
Pinheiro (Petrópolis) visitar a família.‖
02 Rio de ―Carta de João Pedreira do Couto Ferraz a Misto
Janeiro, sua Filha Zélia acerca do envio da (Tu e
07/02/1877 encomenda por ela solicitada, transmitindo- você)
lhe as suas notícias e pedindo-lhe notícias
de seus familiares na Fazenda Santa Fé.‖
03 Rio de ―Carta de João Pedreira do Couto Ferraz a Tu
Janeiro, sua filha Zélia comentando sobre o seu
11/08/1877 cansaço diante de suas atividades
profissionais.‖
04 Rio de ―Carta de João Pedreira do Couto Ferraz a Tu
Janeiro, sua Filha Zélia relatando-lhe seu sentimento
08/11/1878 de saudade da convivência familiar.‖
05 Rio de ―Carta de João Pedreira do Couto Ferraz a Misto
Janeiro, sua Filha Zélia relatando-lhe o seu (Tu e
16/07/1879 abatimento para retomar os trabalhos no você)
Tribunal por ter perdido um amigo.‖
06 Rio de ―Carta de João Pedreira do Couto Ferraz em Tu
Janeiro, louvor a família constituída pela filha Zélia,
04/10/1879 pelo genro Jerônimo e pelas filhas Maria
Elisa e Maria Rosa.‖
07 Rio de ―Carta de João Pedreira do Couto Ferraz a Tu
Janeiro, sua filha Zélia agradecendo a Deus por sua
30/08/1885 filha já ter passado pelo mês do resguardo e
transmitindo-lhe notícias sobre a saúde dos
familiares.‖
08 Rio de ―Carta de João Pedreira do Couto Ferraz a Você
Janeiro, sua filha Zélia relatando-lhe as
20/05/1886 responsabilidades e afazeres profissionais
que o cercam, principalmente, em relação à
reconstrução de um prédio na Tijuca.‖
09 Rio de ―Carta de João Pedreira do Couto Ferraz a Tu
Janeiro, sua filha Zélia relatando-lhe a sua decisão
23/06/1893 por visitá-la em Petrópolis.‖
10 Rio de ―Carta de João Pedreira do Couto Ferraz a Tu
Janeiro, sua filha Zélia comentando sobre o
11/08/1896 tratamento médico concedido as crianças
da família.‖

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 320


Monitoramento lexical em cartas oitocentistas

Uma leitura inicial da tabela acima já evidencia a relação


entre os conteúdos das missivas e seus pronomes tratamentais de
preferência. Nota-se que as cartas 02, 05 e 08 tratam,
respectivamente, do envio de uma encomenda, do abatimento para a
retomada de trabalhos no Tribunal e de responsabilidades e
afazeres profissionais; estando todas relacionadas, de certa forma, a
um campo lexical ligado ao trabalho e negócios. Uma vez que essas
três cartas, que apresentam conteúdo ligado a assuntos mais
―sérios‖, possuem sujeito misto ou você exclusivo, essa análise
puramente conteudista já apontaria para a comprovação da teoria
de que o sujeito você seria usado como estratégia de distanciamento
e polidez, enquanto o tu marcaria intimidade. No entanto, é preciso
fomentar o presente estudo em dados mais concretos, motivo pelo
qual, é dado seguimento ao monitoramento dos itens lexicais
presentes nas missivas.
Com base nos termos destacados na tabela, foi feita a eleição
dos tokens5 a serem monitorados com o auxílio do Programa
AntConc; sendo eles ligados à noção de oposição entre os campos
lexicais de informalidade/ proximidade e formalidade/
distanciamento; e pensados a partir das palavras negritadas acima.
Com relação à ideia de informalidade/ proximidade, listaram-se os
seguintes tokens: AMIG*, FAMILI*, SENTIMENT*, SAUDADE*,
NOTICIA*, VISIT*, BEIJ*, ABRA*6; sendo as expressões buscadas com
o asterisco, a fim de se considerar formas flexionadas e derivadas.
Além disso, foram também buscados os tokens: *INHO/ *INHA,
visando a encontrar todas as palavras flexionadas no diminutivo,
acreditando-se que tais formas seriam também ligadas ao campo
lexical da informalidade/ proximidade.
Já os tokens monitorados, associados a formalidade e
distanciamento foram os seguintes: PREZAD*/PRESAD*, TRABALH*,
TRIBUNAL, DOEN*; por estarem ligados a contextos mais ―sérios‖.
Além disso, foram também controlados os nomes de alguns
dos familiares de João Pedreira do Couto Ferraz, sendo eles: ZELIA

5
Terminologia referente à forma como cada item lexical é pesquisado no
Programa AntConc (cf. LUZ, CAMBRAIA E GONTIJO, 2015)
6
Formas grafadas de maneira idêntica àquelas utilizadas na pesquisa no
Programa AntConc, sendo colocadas em caixa alta, apenas a título de
facilitação da busca – uma vez que sem a adição de códigos específicos, o
programa não difere caracteres maiúsculos e minúsculos.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 321
Juliana Sander DINIZ

(filha e destinatário das missivas), JERONIMO (genro), MARIA ELIZA


(neta), MARIA ROSA, MARIA ROZA7 ou ROSINHA (neta), JOSE LUIS
(filho), MIMI e MINA (netas); crendo-se que seriam utilizados de
maneira diferente, sendo os hipocorísticos preferenciais nas cartas
com sujeito tu.

3.2 O que revelou o monitoramento?

Os itens lexicais controlados revelaram diferentes


disposições nas cartas analisadas; alguns foram majoritariamente
encontrados nas cartas de sujeito tu exclusivo, enquanto outros
prevaleceram nas cartas mistas ou de sujeito você exclusivo. Os
tokens que se manifestaram de maneira semelhante; ou seja, que
tiveram sua ocorrência registrada em quantidades significativas nos
três tipos de cartas (proporcionalmente às quantidades de missivas
relativas a cada tipo) não se mostraram relevantes para o presente
estudo. Esses tokens, que não serão detalhadamente analisados, são:
AMIG* (26 hits8; sendo 15 em cartas de tu, 6 em cartas mistas e 5 na
carta de você); FAMILI* (9 hits; sendo 6 em cartas de tu, 2 em cartas
mistas e 1 na carta de você); TRIBUNAL (3hits; sendo 2 em cartas de
tu e 1 em carta mista); DOEN* (2 hits; sendo 1 em carta de tu e 1 em
carta mista).
Quanto aos outros tokens buscados, analisar-se-á,
primeiramente, aqueles que se mostraram representativos nas
cartas de sujeito misto, ou você exclusivo:

7
As duas grafias foram atestadas nas cartas, sendo ambas buscadas no
programa; no entanto, não há diferença semântica entre os antropônimos.
8
Ao serem identificados nas amostras pelo Programa AntConc, os lexemas
aparecem sob a nomenclatura inglesa ―hits‖.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 322
Monitoramento lexical em cartas oitocentistas
Token Nº de Exemplos
monitorado ocorrências em
cada subsistema9
PREZAD*/ 2T 2M 1V ―Minha presadissima Filha e amiga (...)‖ (Dr.
PRESAD* Pedreira, Rio de Janeiro, 07/02/1877 – Carta
mista)
―Minha mui presada Zelia extremada Filha
(...)‖ (Dr, Pedreira, Rio de Janeiro,
16/07/1879 – Carta mista)
―Minha muito boa e presada Filha (...)‖ (Dr.
Pedreira, Rio de Janeiro, 20/05/1886 – Você
exclusivo)
―Minha prezada Filha e amiga (...)‖ (Dr,
Pedreira, Rio de Janeiro, 04/10/1879 – Tu
exclusivo)
TRABALH* 3T 0M 3V ―(...) tanto trabalho que tenho em mãos
dentro e fóra do Tribunal‖ (Dr. Pedreira, Rio
de Janeiro, 05/02/1877 – Tu exclusivo)
―e para que não interrompesses o trabalho
mimoso de tuas letras‖ (Dr. Pedreira, Rio de
Janeiro, 04/10/1879 – Tu exclusivo)
―Privo me do prazer de escrever
mentalmente com a minhaa Zélia, por mais
tempo, receiozo de que essa pequena
applicação de corpo e espirito me tire o
sonno como aconteceu na noite passada;
tanto mais quando trabalhei‖ (Dr. Pedreira,
Rio de Janeiro, 30/08/1885 – Tu exclusivo)
―Os salesianos teem um grave inconveniente
- são em demasia morosos nos seus
trabalhos typographicos e exigem pela
pouca sufficiencia dos Compositores e
revisores muitas e repetidas provas em
ordem oque otrabalho seria sofrível‖(Dr.
Pedreira, Rio de Janeiro, 20/05/1886 – Você
exclusivo)
―Ajustei por 200$000 no maximo a
impressão.
Desejo acabar o movimento de Trabalho, de
modo que fique prompto, antes da partida
do Nosso Amigo seu Pae oSenhor Fernando
de Castro e este possa levar alguns
exemplares para offerecer as crianças d‘
além mar.‖(Dr. Pedreira, Rio de Janeiro,
20/05/1886 – Você exclusivo)

9
T (Sujeito tu exclusivo), M (sujeito misto tu~você), V (sujeito você
exclusivo)

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 323


Juliana Sander DINIZ

Conforme salientado nos exemplos da tabela acima, a


palavra ―prezada‖ (e suas variantes ―presada‖ e ―presadissima‖) se
mostrou presente em 100% das missivas de referência ao
interlocutor mista, ou seja, ora por tu, ora por você, ou em missivas
de você exclusivo, se comparada a uma proporção baixíssima de
ocorrências, nas cartas de tu exclusivo (apenas duas ocorrências em
sete cartas); que, por sua vez, é interpretado como o pronome cujo
uso está circunscrito ao domínio da intimidade (cf. RUMEU, 2013).
Logo, considera-se que a escolha lexical dessa palavra, que é
frequentemente empregada no cabeçalho de textos do gênero
―missiva culta‖, ter ocorrido em consonância com a escolha de
realização do sujeito pronominal você, apontaria para uma
estratégia de polidez por parte do escrevente.
Já a análise do token TRABALH* revelou um interessante
comportamento do item lexical em relação aos determinados
contextos em que fora empregado. É possível notar que, por mais
que tenha aparecido três vezes em cartas de sujeito tu exclusivo, a
palavra ―trabalho‖ (ou o verbo flexionado ―trabalhei‖) aparece
apenas no primeiro exemplo com o sentido de ―trabalho
profissional, ocupação‖; enquanto, nos dois outros exemplos, o
termo se refere ao ―trabalho de escrever uma carta‖. Já nas três
ocorrências atestadas nas missivas com sujeito você exclusivo, a
palavra ―trabalho‖ possui o primeiro sentido aqui considerado.
Assim, nota-se uma correlação entre o emprego do campo lexical de
―trabalho‖, como profissão e ocupação ligado ao uso do pronome
você, possivelmente, por se tratar de um assunto de maior
formalidade, o que parece corroborar a hipótese do uso
sociopragmaticamente motivado do pronome você, em contextos de
maior formalidade.
Partindo agora para os resultados dos tokens que se
mostraram representativos nas cartas de sujeito tu exclusivo, é
interessante adiantar que muitos deles haviam sido anteriormente
relacionados à ideia de informalidade/ proximidade.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 324


Monitoramento lexical em cartas oitocentistas
Token Nº de Exemplos
monitorado ocorrências em
cada
subsistema10
SENTIMENT* 8T 0M 0V ―...assim não por falta de sentimentos e
affectos que se alliviam um pouco‖ (Dr.
Pedreira, Rio de Janeiro, 05/02/1877 – Tu
exclusivo)
―eve o espelho fiel de tua alma reflectindo a
bondade e ternura de sentimentos.‖ (Dr.
Pedreira, Rio de Janeiro, 30/08/1885 – Tu
exclusivo)
SAUDADE* 4T 1M 0V ―Acceite o coração e a benção saudades, e a
expressão de profunda amizade‖ (Dr.
Pedreira, Rio de Janeiro, 07/02/1877 – Carta
mista)
―Tenho sentido saudades da innocentinha
Maria Eliza.‖(Dr. Pedreira, Rio de Janeiro,
11/08/1877 – Tu exclusivo)
NOTICIA* 3T 0M 0V ―Tive noticias de todos as Famílias dos teus
Tios...‖ (Dr. Pedreira, Rio de Janeiro,
05/02/1877 – Tu exclusivo)
VISIT* 1T 0M 0V ―Amanhã tua mãe quer ir visitar a Miná.‖(Dr.
Pedreira, Rio de Janeiro, 11/08/1896 – Tu
exclusivo)
BEIJ* 5T 0M 0V ―Acabando tu de ler essa carta dê beijos em
ambos por mim‖ (Dr. Pedreira, Rio de
Janeiro, 08/11/1878 – Tu exclusivo)
―vae recebendo abraços beijos affagos para
ti‖ (Dr. Pedreira, Rio de Janeiro, 04/10/1879
– Tu exclusivo)
ABRA* 12 1M 0V ―de profunda amizade de teu Pae
T extremoso/ e abraço‖ (Dr. Pedreira, Rio de
Janeiro, 07/02/1877 – Carta mista)
―e dê um abraço em teu marido que eu
mando‖ (Dr. Pedreira, Rio de Janeiro,
08/11/1878 – Tu exclusivo)
―vae recebendo abraços beijos affagos para
ti‖ (Dr. Pedreira, Rio de Janeiro, 04/10/1879
– Tu exclusivo)
*INHO/ 12 1M 0V ―A tua afilhadinha tambem deve ser
*INHA T contida...‖ (Dr. Pedreira, Rio de Janeiro,
05/02/1877 – Tu exclusivo)
―Tenho sentido saudades da innocentinha
Maria Eliza.‖(Dr. Pedreira, Rio de Janeiro,

10
Idem a 9
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 325
Juliana Sander DINIZ
11/08/1877 – Tu exclusivo)
―ou recem mandada por mim a caixinha de
encomendas‖ (Dr. Pedreira, Rio de Janeiro,
16/07/1879 – Carta mista)
ZELIA 6T 1M 0V ―Parando aqui, minha Zelia tenho ainda o
coração cheio de lembranças‖ (Dr. Pedreira,
Rio de Janeiro, 11/08/1877 – Tu exclusivo)
―Zelia, queridissima filha e minha amiga do
coração‖ (Dr. Pedreira, Rio de Janeiro,
30/08/1885 – Tu exclusivo)
―Minha mui presada Zelia extremada Filha
(...)‖ (Dr, Pedreira, Rio de Janeiro,
16/07/1879 – Carta mista)
JERONIMO 2T 0M 0V ―e tenho ainda de escrever ao teu excellente
Jeronimo teu esposo‖ (Dr. Pedreira, Rio de
Janeiro, 11/08/1877 – Tu exclusivo)
MARIA 4T 0M 0V ――Tenho sentido saudades da inocentinha
ELIZA Maria Eliza.‖(Dr. Pedreira, Rio de Janeiro,
11/08/1877 – Tu exclusivo)
MARIA 3T 0M 0V ―tanto ella como a Rosinha Maria vão
ROSA/ passando muito bem‖(Dr. Pedreira, Rio de
MARIA Janeiro, 08/11/1878 – Tu exclusivo)
ROZA/
ROSINHA
(hipocorístic
o)
JOSE LUIS 2T 1M 0V ―e o Jose Luis [inint.] [inint.]sarampo pallido
e magro‖ (Dr. Pedreira, Rio de Janeiro,
16/07/1879 – Carta mista)
―Jose Luis fará exame de Philosophia‖ (Dr.
Pedreira, Rio de Janeiro, 04/10/1879 – Tu
exclusivo)
MIMI 4T 1M 0V ―beija a tua mãe e abrace a Mimi e Mina‖ (Dr.
(hipocorístic Pedreira, Rio de Janeiro, 30/08/1885 – Tu
o) exclusivo)
―A Mimi está boa e prossegue nos estudos
de canto e piano.‖(Dr. Pedreira, Rio de
Janeiro, 16/07/1879 – Carta mista)
MINA 2T 1M 1V ―beija a tua mãe e abrace a Mimi e Mina‖ (Dr.
(hipocorístic Pedreira, Rio de Janeiro, 30/08/1885 – Tu
o) exclusivo)
―A Miná não apresenta aquelles syntomas de
vermes‖ (Dr. Pedreira, Rio de Janeiro,
16/07/1879 – Carta mista)
―A Miná que deixa de ser criança no corpo,
antecepadanete, razão do desequilíbrio
organico e da anemia com o excesso do
systhema adipso, está em uso de banhos de
mar.‖(Dr. Pedreira, Rio de Janeiro,
20/05/1886 – Você exclusivo)

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 326


Monitoramento lexical em cartas oitocentistas

Com relação aos tokens SENTIMENT*, SAUDADE*, NOTICIA*,


VISIT*, BEIJ* e ABRA*, nota-se que todos foram encontrados quase
que categoricamente em missivas com sujeito tu exclusivo (somente
as palavras ―saudades‖ e ―abraço‖ apresentaram uma ocorrência
cada, em carta mista). Logo, é possível observar que os itens ligados
ao campo lexical da informalidade/ proximidade foram realmente
correlacionados à realização do sujeito pronominal tu,
corroborando a hipótese do uso de tal forma pronominal em
contexto de intimidade.
Já as formas *INHO/ *INHA, representativas de todas as
palavras flexionadas no diminutivo, apresentaram 12 hits em cartas
com sujeito tu e 1 hit em carta mista; contribuindo também para a
associação do pronome em questão a um contexto de proximidade,
onde caberia, portanto, empregar palavras flexionadas dessa
maneira.
Finalmente, a análise do monitoramento dos nomes próprios
de parentes do missivista revela um emprego majoritário dos
mesmos em cartas de tu exclusivo, tanto no caso dos hipocorísticos,
como dos demais antropônimos; com poucas ocorrências em cartas
mistas – o que era esperado apenas para os apelidos –, evidenciando
a relação semântica de ambos ao campo da proximidade. Nota-se
que o emprego de nomes próprios em cartas mistas geralmente
acompanha o assunto ―doença‖ do indivíduo em questão, como nos
casos de José Luis e Miná. Essa última referência apresenta uma
ocorrência na carta de você exclusivo, ao se tratar da anemia da
menina, o que estaria também relacionado ao assunto ―doença‖;
classificado na hipótese do presente artigo como tema de maior
seriedade, propiciador da recorrência à estratégia da polidez por
parte do escrevente, por meio do uso do pronome você.

Considerações finais

O monitoramento dos itens lexicais presentes nas dez cartas


do informante João Pedreira do Couto Ferraz revelou-se eficaz ao
evidenciar que enquanto os itens ligados ao campo lexical de
informalidade/ proximidade manifestaram-se majoritariamente nas
cartas com sujeito tu exclusivo, os itens ligados ao campo semântico
oposto apresentaram ocorrência categórica ou majoritária em cartas
de você exclusivo.
Desse modo, retornando à análise inicial acerca do conteúdo
das missivas, nota-se que, ao escrever para sua filha Zélia tratando

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 327


Juliana Sander DINIZ

de assuntos de cunho mais sério, como negócios, trabalho ou


doenças, Pedreira realmente parecia optar – mesmo que
inconscientemente – por escolhas lexicais e pronominais que
impusessem certa distância na situação de comunicação,
supostamente, a fim de minimizar para sua filha certos efeitos
proporcionados pelo conteúdo de sua escrita. Em contrapartida, nas
cartas que versavam sobre assuntos familiares, visitas, viagens,
saudades, dentre outros conteúdos que puderam ser também
associados ao campo lexical da informalidade/ proximidade;
prevaleceu o sujeito tu, revelando maior intimidade.
É importante ressaltar que o presente estudo, por se basear
em uma amostra ainda reduzida, pôde comprovar a hipótese
formulada apenas para esta pesquisa à qual foi proposta. A fim de
consubstanciar tal hipótese de emprego dos pronomes em
associação a campos semânticos (tu~proximidade,
você~distanciamento), assim como a verificação de sua
comprovação, seria necessária a ampliação da análise de dados
considerando a amostra total de cartas editadas por Rumeu (2013)
ser bem mais ampla (trata-se de 170 cartas editadas), de modo a dar
a este estudo maior relevância e representatividade.

Referências

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http://www.filologia.org.br/xv_cnlf/tomo_2/105.pdf. Acesso em 13 de
junho de 2016.

LOPES, Célia Regina dos Santos. Retratos da variação entre "você" e "tu" no
português do Brasil: sincronia e diacronia. In: RONCARATI, Claudia;
ABRAÇADO, Jussara. (Org.). Português Brasileiro II - contato lingüístico,
heterogeneidade e história. 1 ed. Niterói: EDUFF, 2008, v. 2, p. 55-71.

__________ . & CAVALCANTE, Sílvia Regina de Oliveira.A cronologia do


voceamento no português brasileiro: expansão de você-sujeito e retenção do
clítico-te. Revista Linguística, 2011, v. 25, p. 30-65.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 328


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___________ . & MARCOTULIO, Leonardo Lennertz. ―O tratamento a Rui


Barbosa‖. In: CALLOU, Dinah; BARBOSA, Afranio. (Org.). A norma brasileira
em construção: cartas a Rui Barbosa (1866 a 1899). 1 ed. Rio de Janeiro:
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LUCINI, Luciana. Hipocorização sob a perspectiva variacionista. Porto alegre,


2010.

LUZ, César; CAMBRAIA, César Nardelli; GONTIJO, Eliane Dias.


Monitoramento de terminologia na mídia: O Programa Mais Médicos.
Tradterm, São Paulo, 2015, v. 25, p. 199-233.

RUMEU, Márcia Cristina de Brito. Língua e sociedade: a história do pronome


‗Você‘ no português brasileiro, 1ª ed. Rio de Janeiro: Ítaca (FAPERJ). 2013.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 329


DIADORIM TRANS? PERFORMANCE, GÊNERO E
SEXUALIDADE EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Laísa Marra de Paula Cunha BASTOS


UFMG

Resumo: O trabalho problematiza questões de gênero e sexualidade


em Grande Sertão: Veredas, argumentando em favor não apenas da
possibilidade de leitura homoerótica da obra de Guimarães Rosa,
mas também da interpretação de Diadorim enquanto personagem
que confunde essas categorias (gênero e sexualidade) a partir de
uma performance trans e de uma afetividade homosseuxal.
Argumenta-se que o corpo nu de Diadorim não pode ser lido
enquanto confissão de sua verdadeira identidade de gênero, haja
vista que nesse momento da narrativa o corpo está morto e a
personagem já não pode disputar com o narrador sobre a
interpretação de sua identidade.

Palavras-chave:Grande Sertão: Veredas; Identidade de gênero;


Homoerotismo.

O exercício a que se propõe este estudo não está no sentido


de conceituar sertão, no entanto é relevante destacar algumas
características a ele atribuídas, haja vista a influência que teve,
nesse contexto, seu entendimento em relação às problemáticas de
identidade nacional, regional e de gênero. Dessa forma, a pergunta
que se pretende discutir neste trabalho delineia-se da seguinte
forma: como são performatizadas as categorias de gênero sexual no
sertão, lugar onde imperaria a violência e a ordem do mais forte,
pois "sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus
mesmo, quando vier, que venha armado!" (ROSA, 1976, p. 17-18)? E,
mais especificamente, como pensar o gênero e a sexualidade de
Diadorim em um romance marcado pela ambiguidade (GALVÃO,
1986)?
Por performance de gênero refiro-me ao conceito de Judith
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
Diadorim trans? performance, gênero e sexualidade

Butler (2013), feminista crítica da naturalização tanto do gênero,


como do sexo biológico, para quem:

[...] atos, gestos e desejo produzem o efeito de um


núcleo ou substância interna, mas o produzem na
superfície do corpo, por meio do jogo de ausências
significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o
princípio organizador da identidade como causa. Esses
atos, gestos e atuações, entendidos em termos gerais,
são performativos, no sentido de que a essência ou
identidade que por outro lado pretendem expressar são
fabricações manufaturadas e sustentadas por signos
corpóreos e outros meios discursivos. O fato de o corpo
gênero ser marcado pelo performativo sugere que ele
não tem status ontológico separados dos vários que
constituem sua realidade. (2013, p. 194, grifos do
original).

Butler (2013) argumenta que a identidade de gênero não está


dada a priori pelo corpo, não havendo, portando gênero verdadeiro
ou falso. O fato de alguém fabricar (consciente e/ou
inconscientemente) uma expressão corporal, linguística
culturalmente relacionada a um gênero pode, ou não, significar
identificação psicológica. A autora utiliza-se bastante dos exemplos
das identidades travestidas (travestis, buch1etc.), pois elas
performatizam ao extremo linguagem, gestos e vestimentas
culturalmente relacionadas a um determinado sexo, chegando a
uma paródia capaz de expor a artificialidade desses construtos
sociais dicotômicos (mulher/homem). O gênero seria um "'ato', por
assim dizer, que tanto é intencional como performativo, onde
'performativo' sugere uma construção dramática e contingente de
sentido" (BUTLER, 2013, p. 199, grifos do original).
No Grande Sertão: Veredas2, de Guimarães Rosa (1976), o
sertão é acionado não apenas como cenário, mas, principalmente,
como "forma de pensamento" (BOLLIE, 2004, p. 47-90) de onde
emergem as várias problemáticas de seu narrador Riobaldo.

1
O termo não é traduzido nas edições em português, mas pode-se dizer,
resumidamente, que ele designa mulheres que performatizam o gênero
masculino.
2
Será utilizada a abreviação GSV para indicar Grande Sertão: Veredas.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 331
Brenda Chauane Edlene PEREIRA&Valter Pereira ROMANO

Problemáticas estas de cunho metafísico, literárias, e também de


gênero –, já que um dos leitmotivs apontados pelo personagem-
narrador para contar a história de sua vida situa-se em Diadorim,
por quem nutre durante boa parte da narrativa um desejo
homoerótico (SILVA, 2008).
Entende-se que o patriarcalismo e falocentrismo não são
exclusividades do sertão, sendo as performances de gênero
rigidamente fixadas em todo território nacional. Entretanto,
diferentemente do litoral, o sertão fora visto pelos contemporâneos
de Euclides da Cunha como local tão isolado que era capaz de
manter conservadas tradições e costumes brasileiros. O sertão era
visto, portanto, como o lugar do Brasil verdadeiro:

A empreitada [de construção da nação e da identidade


nacional] implicou em construir uma imagem do bom
sertão, do sertanejo rude, porém forte, lugares e gentes
depositários da verdadeira nacionalidade brasileira, por
oposição ao litoral contaminado de 'europeismos'.
(ALENCAR, 1973, p. 247).

Segundo Albuquerque (2000), Gilberto Freyre desgostava-se


com a situação do sertão nordestino naquela virada de século (XIX-
XX), pois percebia nela uma perda de virilidade:

Só agora a influência da cidade, do mundo moderno,


parecia trazer à tona uma série de seres estranhos que
não se enquadravam nesta natural bipartição fundada
sobre o sexo. Os lugares bem demarcados entre homem
e mulher começavam a ser contestados, a prevalência do
masculino, sua dominação, começavam a ter que ser
respostas em novas bases, o devir-mulher parecia
ameaçar seres como o moleque Ricardo [do romance O
moleque Ricardo, de José Lins do Rego, publicado em
1935] que, uma vez fora do engenho, se vê confrontado
com uma nova possibilidade de identidade de gênero,
com novo modelo de subjetividade, o do ser
homossexual. (ALBUQUERQUE, 2000, p. 30).

A imagem do cabra macho inscreve-se, pois, nessa tentativa


de localização dos valores genuinamente brasileiros no sertão, uma
vez que lugar incorruptível pelas práticas negativas da
modernidade. Sob essa ótica, destaca-se a honra como central no
contorno das relações humanas no sertão. Além da importância

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 332


Diadorim trans? performance, gênero e sexualidade

dada à palavra, podemos inferir que o conceito de honra perpassa


as práticas de gênero e sexualidade nas sociedades sertanejas.

Reinaldo e Riobaldo, uma rima, mas não uma solução

A partir do supracitado, as performances de gênero no


sertão de Grande Sertão: Veredas são analisadas aqui sobretudo em
contraponto com a lógica da honra sertaneja. Para adentrar tal
discussão, considere-se um episódio exemplar do romance, no qual
a macheza de Reinaldo/Diadorim é questionada por dois jagunços
que vinham de outro grupo e que se juntavam provisoriamente ao
de Riobaldo: "Mas Diadorim sendo tão galante moço, as feições tão
finas caprichadas. Um ou dois, dos homens, não achavam nele jeito
de macheza [...]." (ROSA, 1976, p. 123). O desenrolar dessa situação
se dá com provocações de um desses jagunços, que se refere a
Diadorim como "o delicado" e improvisa uma dança cheia trejeitos.
Diadorim responde com um "sopapo", um chute tão forte que
derruba o homem no chão, pressionando, logo em seguida, um
punhal em sua garganta. Contudo, percebendo que não seria
honroso matar o homem sem dar-lhe chance de revidar: "Diadorim
mandou o Fancho se levantasse: que puxasse também da faca,
viesse melhor se desempenhar" (ROSA, 1976, p. 124). Essa cena está
em concordância com o que aponta Renato da Silva Dias (2009)
sobre as ações cabíveis em casos desonra: "Isso [o código simbólico]
significa que, o menor sinal de desonra ou infâmia feita ao sertanejo
ou à sua família devia ter resposta pronta e imediata, sendo a
querela resolvida à faca ou à bala [...]" (2009, p. 37).
O episódio mencionado não termina em morte, pois os
homens modificam o tom do discurso: "Mas o Fancho-Bode se riu,
amistoso safado, como tudo tivesse constado só duma brincadeira: –
'Oxente! Homem tu é [...]'" (ROSA, 1976, p. 124). Chama atenção, no
entanto, que Riobaldo ressinta o fato de tal forma que pense em
vingar a desonra um dia, mesmo que seja através de sua terceira ou
quarta geração. Afinal, Riobaldo comenta que os homens (ou talvez
apenas um) morreram em tiroteio e que os outros jagunços
atribuíram a ele a autoria do assassinato, o que ele nega em fala
ambígua3.

3
A fala inicia-se com: "Sempre disse ao senhor, atiro bem. E esses dois
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 333
Brenda Chauane Edlene PEREIRA&Valter Pereira ROMANO

Como defendido por Barros (1988), vinculada à honra estão


rígidos parâmetros no que concerne à sexualidade feminina.
Entretanto, de maneiras diferentes, as normas sexuais também
estendem-se aos homens. Riobaldo, tentando esclarecer ao seu
ouvinte o caráter da amizade com Diadorim "defende-se": "homem
muito homem que fui, e homem por mulheres! – nunca tive
inclinação pra aos vícios desencontrados. Repilo o que, o sem
preceito." (ROSA, 1976, p. 114). Logo em seguida, contudo, o
personagem narra seus sentimentos por Diadorim:

Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o


senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa-feita. Era ele
estar perto de mim, e eu perdia meu sossego. Era ele
estar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não
entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não.
Eu mesmo entender não queria. Acho que. Aquela
meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de
sempre. E em mim a vontade de chegar todo próximo,
quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos
braços, que às vezes adivinhei insensatamente –
tentação dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava.
(ROSA, 1976, p. 114, grifo nosso).

Segundo perspectiva de Riobaldo, o gênero deve ser


reforçado através da sexualidade, configurando-se como anormal
qualquer experiência fora da heteronormatividade. Em outras
palavras, Riobaldo entende que o gênero masculino é determinado
pela prática heterossexual. O personagem vê-se como jagunço,
sendo jagunço alguém homem muito homem, e, portanto, não
consegue relacionar seu gênero ao desejo por alguém do mesmo
sexo:

Nesse contexto aparentemente militar, por imitação,


Riobaldo constantemente questiona a si próprio, pois a

homens, Fancho-Bode e Fulorêncio, bateram a bota no primeiro fogo que se


teve com uma patrulha de Zé Bebelo." (ROSA, 1974, p. 124). Depois, há a
negativa do assassinato, seguida de: "Agora, com uma coisa, eu concordo: se
eles não tivessem morrido no começo, iam passar o resto do tempo todo me
tocaiando, mais Diadorim, para com a gente aprontarem, em ocasião,
alguma traição ou maldade." (Idem, ibidem, p. 125).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 334
Diadorim trans? performance, gênero e sexualidade

posição que ocupa, o lugar de onde fala com os


companheiros da mesma sina produzem discursos
homofóbicos que castram qualquer idéia que possa, por
parte de um dos sujeitos envolvidos nesse contexto
sociocultural, lembrar o estereótipo feminino, uma vez
que ser jagunço é, como demonstra Albuquerque Júnior
(2003), ―cabra macho, sim senhor‖ e este não pode, pela
lógica que rege a cultura do jagunço, permitir que
nenhum traço ou marca feminina interfira na confiança
que os demais membros do bando têm naquele que é
instrumento de equilíbrio na estrutura interna do
grupamento. (SILVA, 2008, p. 215).

Assim, Riobaldo busca respostas que situam-se em um


território tão desconhecido quanto seu desejo: feitiço, coisa feita,
tentação. Ao imaginar que sua situação não era natural, o narrador
realoca-a na esfera do sobrenatural, retirando de si toda agência do
desejo homoerótico. Ao ansiar pelo corpo do amigo, Riobaldo age
com insensatez, pois coloca em perigo seu lugar natural no gênero
masculino. A resposta que Riobaldo encontra, tanto nessa quanto
em outras partes, é simplesmente a negação, pois assim ele
(re)negaria "o que é motivo de negação de sua masculinidade,
ameaça a sua virilidade, rebaixamento de sua moral de jagunço"
(SILVA, 2008 p. 216). Silva, analisando o desejo homoerótico em
GSV, assim exprime-se:

Talvez a novidade dessa obra rosiana, no que tange ao


aspecto do exercício da sexualidade e das práticas de
gênero adotadas no conjunto de jagunços, resida
também [...] no fato de exibir um jagunço em meio a
uma aparente crise cultural, quando diante do amor por
outro homem (por quem nutre desejo, de quem
constantemente se lembra e tem ciúmes) e por quem,
por outro lado, não encontra a realização de seu desejo,
motivado pelo sentimento cultural de castração, de
repressão, de negação de um valor que é, assim,
interpretado como negativo e, se ratificado, visto como
transgressor. Essa transgressão acontece praticamente
da posição interna do sujeito, uma vez que, mesmo
deixando os demais do bando perceberem o tratamento
dele para com Reinaldo, sofre por dentro, angustia-se
sozinho, reclama um desejo interno, envergonhando-se
por senti-lo e por não poder torná-lo público, porque
feio, inválido, inaceitável, sem nenhuma possibilidade de

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 335


Brenda Chauane Edlene PEREIRA&Valter Pereira ROMANO

tolerância por parte daqueles com os quais também se


identifica no grupo de pertença. (SILVA, 2008, p. 217).

Apesar de a crítica, no geral, não dar tanto destaque à


relação homoafetiva entre Riobaldo e Diadorim, defende-se não ser
exagero sublinhar o fato de que um dos romances mais canônicos
da literatura brasileira dispensa quase que a totalidade de suas
páginas à narração de uma inédita história de amor: "'Reinaldo...
Riobaldo...' – de repente ele [Diadorim] deixou isto em dizer: – '...
Dão par, os nomes de nós dois'". (ROSA, 1976, p. 112). São muitas as
partes de GSV que ajudam a compor a tradição literária sobre o
tema da impossibilidade de concretização amorosa, sem que, no
entanto, tudo resuma-se ao amor heterossexual. É claro que, com a
leitura do texto, descobre-se que Reinaldo é Maria Deodorina e isso
tem importantes implicações textuais, segundo o total da obra.
Discutiremos essa questão mais à frente, por ora, basta que se
concorde que, até a parte final do romance, o leitor está diante da
problemática de um jagunço em conflito, pois concorda com o
consolidado código de honra que repudia a homossexualidade, ao
mesmo tempo em que nutre fortes sentimentos por outro homem:
"Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de amor
mesmo amor, mal encoberto em amizade" (idem, ibidem, p. 220,
grifo nosso).
A força da heteronormatividade é tão expressiva no sertão
de GSV que nem mesmo o corajoso Riobaldo pode confrontá-la, sob
castigo de perder seu único bem naquele momento, sua honra:

De que jeito eu podia amar um homem, meu de


natureza igual, macho em suas roupas e suas armas,
espalhado rústico em suas ações?! Me franzi. Ele tinha a
culpa? Eu tinha a culpa? Eu era o chefe. O sertão não
tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor
bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos
governa... Aquilo eu repeli? (ROSA, 1976, p. 374).

Sendo o sertão um lugar sem janelas nem portas, onde,


portanto, é onipresente o código de honra sexual, não há solução
para o impasse em que se encontra Riobaldo. Se ao menos Diadorim
tivesse uma irmã (ROSA, 1976, p. 140), ou se ele passasse por
debaixo de um arco-íris, como sonhou Riobaldo (Idem, ibidem, p.
41). Mas não sendo nada disso possível, Diadorim configura-se
como um eterno e inquestionável repelível: "Um homem é um

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 336


Diadorim trans? performance, gênero e sexualidade

homem, no que não vê e no que consome. Ah, não. Otacília, eu não


merecia. Diadorim era um impossível." (Idem, ibidem, p. 371).
Se dentro da lógica binária masculino-feminino, o gênero
deve reafirmar-se pelo comportamento (heteros)sexual, a quebra
dessa regra levaria à perda do status de homem de Riobaldo, o que
configura-se como uma não-opção a esse chefe de jagunços,
orgulhoso de sua própria macheza.
Como mencionado, no final do romance, Riobaldo conta ao
leitor que Diadorim era uma mulher (ROSA, 1976, p. 454), o que
obriga a analisar a personagem Reinaldo/Diadorim/Maria Deodorina
em retrospectiva. Contanto sua vida in medias res, o narrador
guarda o segredo de Diadorim para o final, mas, utilizando-se da
estratégia de verossimilhança, não deixa de apontar pistas acerca do
sexo do amigo em outros momentos da narrativa (lembre-se que
Diadorim tomava banho e cuidava de seus ferimentos longe das
vistas de outros). Daí, portanto, que Diadorim fora mulher todo o
tempo, excluindo-se a sugestão de homossexualidade e libertando
Riobaldo de qualquer culpa nesse sentido.

Diadorim: donzela guerreira ou guerreira donzela

A crítica literária tem analisado Diadorim principalmente


através do mito da donzela guerreira, o qual pode ser encontrado
em narrativas como a de Palas Atena, Parvati, Iansã, Joana D'arc etc.
(GALVÃO, 1981). Segundo Serra (1997, p. 212), o mito seria uma
manifestação do arquétipo do andrógino, um ser perfeito,
masculino e feminino ao mesmo tempo. A personagem Diadorim
pode ser compreendida segundo essa ideia, pois a donzela guerreira
é:

Filha única ou mais velha, raramente a mais nova, de pai


sem filhos homens, corta os cabelos, enverga trajes
masculinos, abdica das fraquezas femininas – faceirice,
esquivança, medo –, aperta os seios e as ancas, trata
seus ferimentos em segredo assim como se banha
escondida. Costuma ser descoberta quando, ferida, seu
corpo é desvendado; e guerreia; e morre. (GALVÃO,
1981, p. 9).

Concorda-se que a construção da personagem Diadorim


dialoga com o mito da donzela guerreira, mas isso não resolve o
problema. Primeiro porque, como aponta Passos (2000), Diadorim

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 337


Brenda Chauane Edlene PEREIRA&Valter Pereira ROMANO

não se veste de homem para salvar/vingar o pai. Na verdade, a


personagem apresenta-se no masculino desde a infância-
adolescência, quando Riobaldo conhece o Menino, e será Diadorim
quem inspirará Riobaldo a ir à jagunçagem, não o contrário.
Também é Diadorim quem nunca vacila na coragem e na
determinação da guerra, mesmo quando Riobaldo sugere que eles
fujam do bando (PASSOS, 2000, p. 157-156).
Nunca saberemos por que Diadorim se apresenta como
homem. Seria apenas um disfarce, como sugere o mito da donzela
guerreira? Trata-se de uma identificação psico-social da personagem
com o gênero masculino? Sabemos contudo que é assim que ele se
apresenta enquanto personagem viva. Se, como afirmou Simone de
Beauvoir, uma mulher não nasce mulher, torna-se, podemos
conjecturar que Diadorim torna-se homem a partir de sua
performatividade masculina.
Também não sabemos precisar a razão pela qual Diadorim
entra para o jaguncismo (ainda que se possa deduzir que seu pai
serviu-lhe de inspiração). O que está claro na narrativa é que
Diadorim sabia desde a adolescência que ele precisaria ser diferente
– "Sou diferente de todo mundo. Meu pai disse que eu careço de ser
diferente, muito diferente..." (ROSA, 1976, p. 86) –, que seu destino
não seria o das mulheres do sertão; nem o de Otacília, reclusa e
protegida em uma casa, e nem o de Nhorinhá, independente de um
homem enquanto dependente de vários. Diadorim, na contramão,
ocupa um espaço exclusivamente masculino e hostil às mulheres
(não por causa da guerra em si, mas pela objetivação sexual que os
jagunços faziam das mulheres).
Ao longo de GSV, são muitos os momentos em que Diadorim
demonstra bravura, força e sensibilidade – sem que tenhamos que
relacionar essas características a um gênero ou a outro –, no
entanto, é no final que a personagem poderia tornar-se herói.
Depois de páginas e mais páginas em busca do Hermógenes, o
clímax se dá na Fazenda dos Tucanos, onde tem lugar o combate
final. Lá, o bando dos Hermógenes e o bando de Urutu-Branco lutam
até a morte. Nesse contexto, no momento final e mais decisivo da
empreitada, Diadorim e Hermógenes vão resolver na faca, na luta
corpo a corpo, o resultado daquela guerra. É o momento mais
esperado da narrativa até então. Eis que Diadorim mata
Hermógenes, vinga Joca Ramiro e torna-se o responsável heróico
pela vitória da guerra, dando, para isso, a própria vida. Entretanto,
"ela não sai em posição de destaque como vencedora ou como

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 338


Diadorim trans? performance, gênero e sexualidade

heroína. O fato de ter morrido enquanto matava o Hermógenes é


apagado no deslumbramento de seu corpo feito cadáver." (TIBURI,
2013, p. 193).
Marcia Tiburi (2013) chama atenção, em seu texto, para o
fato de que Diadorim só aparece narrativa enquanto mulher quando
já está morta. A autora analisa o par mulher/morta como um topos
da literatura, argumentando que:

Em outras palavras, não é, no caso de Diadorim, apenas


uma mulher que é morta, mas, como precisamos ver,
que alguém de quem não sabemos que seja mulher até o
fim da leitura, só é mulher quando morta, ou seja,
simultaneamente mulher e morta (2013, P. 197).

Segundo argumenta Tiburi e também outras feministas, tais


como Sherry B. Ortner (1996), uma personagem feminina que ousa
transgredir o espaço reservado a seu gênero é sempre castigada.
Ortner (1996), estudando as personagens femininas dos contos de
fadas dos irmãos Grimm, percebe que, ao contrário do que ela
mesma esperava, elas não são inicialmente descritas como fracas ou
passivas. O que ocorre é que a agência dessas mulheres é desfeita
durante a narrativa, e elas precisam pagar por suas ações até que
sejam colocadas em seus devidos lugares de mulheres inertes:

For all of the female protagonists, on the other hand


[different from the male protagonists], passage almost
exclusively involves the renunciation of agency. Agentic
girls, girls who seize the action too much, even for
altruistic reasons, are punished in one of two ways.
(ORTNER, 1996, p. 9)4

Sob essa perspectiva, entende-se que Diadorim não tem


espaço na narrativa de GSV enquanto mulher. Primeiramente,
porque performatiza o gênero masculino. Depois, porque seu ato
heroico, de matar o Hermógenes, é praticamente anulado na

4
"Para todas as protagonistas femininas, ao contrário [do que acontece aos
protagonistas masculinas], o rito de passagem quase sempre envolve a
renúncia da agência. Moças-agentes, moças que buscam ação em demasia,
mesmo que por razões altruístas, são punidas de uma forma ou de outra."
[Tradução livre].
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 339
Brenda Chauane Edlene PEREIRA&Valter Pereira ROMANO

narrativa, que cede todo destaque à revelação de seu corpo de


mulher. Assim, ao invés de ganhar notoriedade por sua valentia,
esta é obliterada e o espaço conquistado na jagunçagem lhe é
tomado no momento final. É como se Diadorim estivesse apenas
travestida de jagunço, sendo sua condição de donzela a face
verdadeira:

Que sua aparição convoca ao cancelamento de qualquer


pergunta como se uma resposta estivesse
dogmaticamente em cena na equação que une
morte/nudez/verdade: podemos assumir que um
significante novo – o corpo de uma mulher morta –
trouxe-nos um outro significado – o que era homem era
falso e o que é mulher é verdadeiro [...] (TIBURI, 2013, p.
198)

Assim, o final de GSV é mais demonstrativo do status


patriarcal da tradição literária e da sociedade sertaneja do que
revelador do gênero de Diadorim ou da sexualidade de Riobaldo.
Isso acontece porque a narrativa de Riobaldo é subjetiva, com toda a
ambiguidade característica da primeira pessoa. Diadorim não fala, é
falado(a) por. Como afirma Judith Butler, "se o gênero são os
significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, não se pode
dizer que ele decorra de um sexo desta ou daquela maneira." (2013,
p. 24).
Defendo, portanto, que a aparente domesticação das
transgressões de gênero e sexualidade, dada ao final da narrativa, é
causada pela confiança depositada no narrador, que reorganiza sua
vida através da memória narrada. O problema em se confiar nesse
narrador é equivalente ao de se confiar no narrador-personagem
Bentinho, de Dom Casmurro, como portador da verdade sobre a
conduta de Capitu. Lembremos que até a década de 1960,
anteriormente ao trabalho de Helen Caldwell (2002), a crítica via
como ponto pacífico algo que hoje nos parece totalmente
enigmático: Capitu traiu ou não traiu? Da mesma forma, acredito
que seja impossível aceitar como única a interpretação que Riobaldo
dá ao gênero e sexualidade de Diadorim, como mulher
heterossexual.
Isto porque a leitura desse romance tão ambíguo não nos
permite conhecer com certeza se Diadorim era uma mulher
travestida, à moda do arquétipo da donzela guerreira, estando
portanto resolvido o desejo do casal dentro da lógica heterossexual,
ou se Diadorim era um homem transgênero, alguém que,

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 340


Diadorim trans? performance, gênero e sexualidade

independente do sexo biológico, se veria como um homem,


partilhando com Riobaldo a confusão de desejar uma pessoa que se
percebe do mesmo gênero. Em outras palavras, se pensarmos em
Diadorim como um homem trans também ele nutriria pelo amigo
um desejo homoafetivo, irreconciável com a imagem que tem de si
mesmo com um "jagunço muito macho". Sob essa perspectiva, como
pode a crítica, a exemplo do personagem Riobaldo, afirmar com
exatidão o gênero de Diadorim? Esse é um problema que Riobaldo
resolve para si, mas que Guimarães Rosa não resolve para nós,
leitores.

Referências

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identidade de gênero no Nordeste. Territórios e Fronteiras. Cuiabá, v. 1, n. 1,
p. 25-40, jul./dez., 2000.

ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. A (re)descoberta do sertão. Estudos:


Revista da Universidade Católica de Goiás. Goiânia, v. 1, n. 1, p. 241-270.
1973.

BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Antropologia da Honra: uma análise


das guerras sertanejas. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 29, n.
½, p. 160-168. 1998.

BOLLE, Willi. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo:


Duas Cidades; Ed. 34, 2004. (Coleção Espírito Crítico).

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


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CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: Um estudo de


Dom Casmurro. Trad. Fábio Fonseca de Melo. Cotia: Atelie Editorial, 2002‬. ‬

DIAS, Renato da Silva. História, cultura e sertão. In BARBOSA, Carla Cristina


(Org.), Sertão: identidade e religiosidade. Montes Claros: Ed. Unimontes,
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GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso: um estudo sobre a


ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. 2 ed. São Paulo: Ed. Perspectiva,
1986.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 341


Brenda Chauane Edlene PEREIRA&Valter Pereira ROMANO
___________. A frequentação da donzela-guerriera. In Gatos de outro saco:
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ORTNER, Sherry B. Making Gender: the politics and erotics of culture.


Boston: Beacon Press, 1996.

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ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 11 ed. Rio de Janeiro, J.


Olympio, 1976.

SERRA, Tania. O mito do andrógino e o da donzela guerreira na literatura


épica: um projeto de pesquisa. Revista Universa. Brasília, v. 5, n. 2, p. 211-
219. jun., 1997.

SILVA. Antonio de Pádua da. Desejo homoerótico em Grande Sertão:


Veredas. Revista Anpoll. v. 1, n. 24, p. 201-226. 2008.

TIBURI, Marcia. Diadorim: biopolítica e gênero na metafísica do Sertão.


Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 21, n. 1. p. 191-207, jan./abr.,
2013.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 342


O LETRAMENTO CRÍTICO EM AVALIAÇÃO DE LÍNGUA
INGLESA PRODUZIDA POR PROFESSORES EM
FORMAÇÃO INICIAL

Lílian Aparecida Vimieiro PASCOAL


UFMG

Resumo: Este trabalho explora uma avaliação escrita que foi


produzida por professores em formação inicial, por meio de uma
análise interpretativa. Com o objetivo de observar a possibilidade de
utilização do Letramento Crítico em avaliações de Língua Inglesa, a
análise é feita à luz das teorias dessa perspectiva. Os resultados nos
mostram que existem indícios de um trabalho pela perspectiva do
LC na avaliação em questão.

Palavras-chave: Letramento crítico; Avaliação; Formação inicial;


Ensino de línguas.

Introdução

O presente artigo caracteriza-se como uma análise prévia de


minha pesquisa de Mestrado, por meio de uma análise interpretativa
de uma avaliação1 de língua inglesa. A avaliação foi produzida por
professores em formação inicial e será aqui analisada pela
perspectiva do Letramento Crítico (doravante LC). Esses professores
são alunos do curso de Letras, da Universidade Federal de Minas
Gerais, que foram contratados como bolsistas do Centro de
Extensão da mesma universidade, para ministrar aulas de língua
inglesa. Além das aulas oferecidas a toda a comunidade belo-
horizontina, os professores produzem, em grupos, avaliações

Esclareço que, para tal fim, foram concedidas as devidas permissões pelos
1

professores produtores das avaliações.


Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
Lílian Aparecida Vimieiro PASCOAL

escritas que são revisadas pelos supervisores, e, posteriormente,


aplicadas em suas turmas. Elas devem ser produzidas de acordo
com a metodologia de ensino denominada Abordagem
Comunicativa2.
Como destacado por Mattos e Valério (2010), o LC reconhece
a língua como um instrumento para a reconstrução social e visa o
desenvolvimento da consciência crítica por meio de um diálogo que
suscita a crítica social. Além disso, encontramos em Monte Mor
(2013) que, de acordo com as teorias do LC, os discursos em
práticas sociais são permeados por ideologias e que pela presença
das relações de poder, a linguagem é de natureza política, assim, a
autora destaca que na literatura da área, atividades escolares que
envolvem leitura foram as primeiras a serem investigadas por
estudiosos do LC. Dado que estamos tratando de ensino de línguas,
é substancial reconhecer tais aspectos da língua, da linguagem e de
práticas sociais considerando tal contexto. As avaliações reúnem
produções e compreensões escritas no modo verbal3, fazem parte
das atividades escolares que envolvem a leitura em seu
desenvolvimento, e devem, a meu ver, ser analisadas a partir das
mesmas teorias.
Primeiramente, faço uma breve introdução sobre o
Letramento Crítico, atualmente visto ―como uma proposta renovada
para o ensino de linguagens‖ (MONTE MOR, 2013, p.40). Em seguida,
apresento algumas considerações sobre avaliação nas práticas
educacionais, que são pertinentes ao considerarmos que no
contexto analisado a língua é, ao mesmo tempo, objeto e
instrumento de medida (BACHMAN, 1990). Dando continuidade, a
análise interpretativa da avaliação é iniciada com base na literatura
da área; são divididas as seções da análise seguindo as seções da
própria avaliação, que são: compreensão escrita, compreensão oral
uso da língua e produção escrita.

1. Letramento crítico

No Brasil, as Orientações Curriculares para o Ensino Médio


(OCEM) introduziram alguns conceitos importantes que têm por

2
Cf. Larsen-Freeman, 1986; Nunan, 1989; Mattos e Valério, 2010.
3
Kress e van Leeuwen (2006)
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 344
O letramento crítico em avaliação de língua inglesa

finalidade uma formação cidadã na educação básica, dentre eles, o


conceito de LC. Produzido a partir de pesquisas e levantamentos
feitos com base em relatos de alunos e professores, tal documento é
direcionado a (e foi distribuído para) professores e escolas, com o
propósito de instigar a reflexão sobre as variáveis por ele discutidas
(tais como cidadania, letramentos e inclusão, entre outras) e
possibilitar, com isso, o início de uma investigação mais profunda a
cargo dos profissionais que julguem pertinente (BRASIL, 2006),
devido à impossibilidade de esgotamento dos assuntos tratados e às
especificidades dos contextos locais desses profissionais. Por estar
presente em documentos oficiais, presume-se a relevância da
presença do LC nos cursos de licenciatura e nas práticas dos
professores (em formação inicial, continuada e ou em serviço).
Conforme destacado por Cervetti, Pardales e Damico (2001),
as teorias do LC são fundamentadas em diferentes concepções,
como as do educador brasileiro Paulo Freire, o pós-estruturalismo e
a teoria crítica social. Assim, tendo em vista essas concepções, o LC
evidencia a necessidade de um trabalho, que, por entender a língua
como ferramenta para reconstrução social e o ensino como uma
instância que deve se preocupar com justiça e igualdade social, ele
permite a preparação de leitores para explorar formas de
representações ideológicas nos textos 4 e oportuniza uma leitura
crítica que aceite ou resista a essas representações (CERVETTI;
PARDALES; DAMICO, 2001). Essa preparação fará com que os
leitores recebam textos de maneira mais crítica, questionem as
relações de poder e as representações que são feitas pelos autores.
Por ser uma perspectiva educacional (JORDÃO, 2013), o LC
não se configura em um método e/ou técnica de ensino, mas sim
uma ―postura ou atitude filosófica‖ (DUBOC, 2014, p. 8). Logo, não
existem estratégias rígidas a serem tomadas por todos os
professores que utilizam essa perspectiva no ensino. Existem,
contudo, indicações com relação às necessidades de se formar
sujeitos conscientes dos usos da linguagem em perspectivas sociais
(STREET, 2003), e de se propiciar o desenvolvimento de cidadãos
com senso crítico, para que possam ser sujeitos analisadores,
questionadores e contestadores das relações de poder que existem à
sua volta (MATTOS, 2014a).
Um professor que opte pela perspectiva do LC não trabalha

4
Neste trabalho utilizamos ―textos‖ como ―[...] qualquer instância de
comunicação em qualquer modo ou em qualquer combinação de modos
[...]‖ (KRESS, 2003, p. 48, tradução minha).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 345
Lílian Aparecida Vimieiro PASCOAL

com a exploração apenas da norma culta da língua, da cultura


padronizada ou da homogeneidade, pois ela é vista como um dos
sistemas a serviço de uma educação para a cidadania, não como
―alternativa única‖ (MATTOS; VALÉRIO, 2010, p. 142). Jordão (2013)
aponta que o conhecimento, para o LC, é ―incompleto, deslizante,
múltiplo e relativo‖ (p.81). Ou seja, consideram-se diferentes formas
de saber, de falar e de representar. Os falantes se encontram em um
processo contínuo de construção de sentido através das negociações
de significados.
A outra variável central da pesquisa em questão é a
avaliação, o que passamos a discutir na próxima seção.

2. Avaliação

A avaliação se encontra presente em diversas etapas da vida


do aluno e do professor, por ser componente intrínseco do processo
educacional (GRILLO, LIMA; 2010). Passamos por provas e testes
durante os anos da educação básica, em seus diversos propósitos
(diagnóstico, medição da aprendizagem, aprovação/reprovação,
dentre outros). Aqueles que decidem por fazer cursos de graduação,
no processo de entrada no ensino superior, são submetidos a mais
uma avaliação; e, durante o ensino superior, possivelmente
completam em cada disciplina cursada, um número de avaliações
que, de alguma forma, determinam seu sucesso acadêmico.
Seja na educação básica, ou em cursos livres de línguas
estrangeiras, a avaliação ocupa um lugar que pode ser considerado
de destaque, pois está presente em práticas para promoção do
aluno, de conquista de vagas em cursos, de acompanhamento do
desenvolvimento do aluno e do sucesso das escolas brasileiras,
dentre outros (LUCKESI, 2008; MICCOLI, 2006; CANAN; PAIVA,
2016). Porém, como afirma Scaramucci (2006), são utilizadas
avaliações ―dissociadas das questões de ensino, planejamento,
metodologias e materiais didáticos‖ (p.51), assim, acreditamos na
importância de estudos que discutam e analisem as práticas
avaliativas no contexto educacional, em suas modalidades de larga
escala e de sala de aula.
Segundo Haydt (2011), quando são propostos objetivos para
o ensino-aprendizagem que requerem ―mudança e aquisição de
comportamentos motores, cognitivos, afetivos e sociais [...], o ato de
avaliar consiste em verificar se [esses objetivos] estão sendo
realmente atingidos e em que grau se dá essa consecução‖ (p. 216).
Em uma prática que tome como guia o LC, as avaliações precisam

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 346


O letramento crítico em avaliação de língua inglesa

ser consonantes com essa perspectiva, precisam propor situações e


questões em que se problematize e instigue uma leitura crítica do
mundo e das palavras, e que, além disso, se preocupe em não
beneficiar apenas uma visão, a visão do autor ou visões que excluem
indivíduos e suas realidades.
E é em busca dessa consonância entre avaliações e a
abordagem do Letramento Crítico utilizada que analisamos a
avaliação na próxima seção e subseções.

3. Metodologia

Esta avaliação escrita é dividida em quatro seções, que são a


compreensão escrita, compreensão oral, uso da língua e produção
escrita. Abaixo, analisaremos o que propõe cada questão,
relacionando as propostas às teorias do LC.

3.1. Compreensão escrita

Na seção de compreensão escrita, são utilizadas três


questões, todas explorando o tema sexismo benevolente 5. O tema é
apresentado em forma de um artigo de opinião publicado em um
blog, e as características do gênero são mantidas. Assim, ela
possibilita a compreensão e o acesso às práticas sociais desse
gênero, apresenta e explora características socioculturais e
linguísticas da forma, do conteúdo e das escolhas léxico-gramaticais
da produção do texto (Dell‘Isola, 2009).
A primeira questão é apresentada logo após o texto. Ela
explora o vocabulário da temática, ou seja, palavras que pertencem
ao campo semântico do tema da proposta, por meio de um exercício
de correspondência, em que são apresentadas duas colunas. Em
uma delas, são apresentadas algumas palavras e expressões

5
O sexismo benevolente acontece, por exemplo, por meio de ações, vindas
de mulheres ou homens, que exaltem atitudes protetoras e estereótipos
afetivos dirigido às mulheres, são ―sentimentos e condutas positivas em
relação à mulher (como, por exemplo, a afirmação de que ‗o homem não
pode viver sem a mulher‘)‖ (FERREIRA, 2004, p.121), pois ―ao se apoiar em
crenças sobre a inferioridade feminina, típicas da ideologia patriarcal, serve
apenas para justificar o poder masculino e reforçar, desse modo as
desigualdades de gênero‖ (ibid, 2004, p. 122).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 347
Lílian Aparecida Vimieiro PASCOAL

retiradas do texto, e, na outra, sinônimos ou definições para as


mesmas.

Figura 1–Primeira questão de Reading

Podemos notar uma preocupação com o reconhecimento de


elementos lexicais e seus usos, por meio da dimensão operacional
do letramento6. Nessa dimensão, acontece a apropriação linguística,
que se dará pela utilização do sistema linguístico para a construção
de significados (SNYDER, 2000). Essa dimensão é importante pelo
fato de que é por meio da língua e de seus elementos que se
realizam as interações e interpretações de falantes com
modalidades escritas (MATTOS, 2013), para interpretar e
compreender uma mensagem ou um texto escrito é necessário o
domínio do sistema linguístico. Ademais, são empregados aqui o
conhecimento da palavra e a aplicação desse conhecimento, ao
analisar as opções de construção de significado. Em consonância
com Freire (1985)7, isso acontece dentro do tema da seção e do
contexto autêntico trabalhado na questão, relacionando o léxico
com as realidades dos alunos e o contexto social vivenciado na
sociedade atualmente (em situações globais e locais).
Na segunda questão, busca-se a interpretação de frases com
as ideias gerais do texto, por meio de uma questão de verdadeiro ou
falso. Aqui são exibidas paráfrases verdadeiras ou falsas, de acordo

6
Conforme os postulados de Lankshear, Snyder e Green (2000, apud
MATTOS, 2013).
7
―O que é importante para Freire é que ‗a pessoa que está aprendendo as
palavras seja concomitantemente engajada em uma análise crítica da
estrutura social na qual os homens existem‘‖ (CERVETTI; PARDALES;
DAMICO, 2001, n. p., tradução minha)
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 348
O letramento crítico em avaliação de língua inglesa
com o texto, sobre o sexismo benevolente, estereótipos femininos e
masculinos, para que o aluno possa observá-las e julgá-las como
verdadeiras ou falsas. Apesar de não haver um desenvolvimento
sobre as vozes silenciadas (como as vozes da comunidade LGBT8),
que seria uma reflexão relevante para o LC, podemos notar uma
tentativa de evidenciar e compreender o nível de complexidade do
problema ressaltado no texto, que, segundo McLaughlin e De Voogd
(2004) é um dos princípios do LC. Ao explorar as definições de
termos relacionados ao tema, a questão propõe entender a
complexidade do tópico abordado, suas vinculações a outros
assuntos e sua proporção. Além disso, notamos o trabalho com a
perspectiva de homens e mulheres, possibilitando a descoberta de
diferentes crenças e posições propostas pelo texto, que seria uma
aplicação de outro princípio do LC, de acordo com a proposta de
Mclaughlin e De Voogd (2004).

Figura 2– Segunda questão de Reading

Na terceira questão de compreensão escrita, pede-se que o


aluno retire do texto informações específicas. Essas informações são
baseadas em estímulos dados pelo autor, como algumas
considerações sobre o que pode ser feito caso o leitor passe por
situações em que presencie atitudes sexistas, e como alguns
exemplos dados no texto. Procura-se entender, com essa questão, a
situação abordada no texto, porém, as questões abertas dão aos
alunos espaço para serem leitores participativos, para expressar a
leitura que fizeram ―além do texto, dentro texto e em torno do
texto‖ (MCLAUGHLIN; DE VOOGD, 2004, p. 21, tradução minha).

Acrônimo de
8
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e
Transgêneros.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 349
Lílian Aparecida Vimieiro PASCOAL

Figura 3 - Terceira questão de Reading

3.2. Compreensão oral

O tema da seção sobre compreensão oral é a mudança na


vida de mulheres iraquianas depois da chegada do Estado Islâmico.
O material explora um texto audiovisual do gênero entrevista.
Na questão que inicia a seção, são feitos exercícios em que os
alunos devem escolher, dentre duas palavras ou expressões, a opção
correta para completar as lacunas nas frases, de acordo com a
entrevista. As frases contêm informações condensadas e similares
às que foram ditas na entrevista, e dizem respeito aos pontos
específicos que mudaram para a entrevistada, a partir da chegada
do estado islâmico em sua comunidade. A proposta da seção
explora um gênero que mostra a heterogeneidade da língua e as
diferentes práticas sociais e discursivas em uma cultura diferente da
cultura dos alunos brasileiros, como enfatiza a abordagem do LC
(JORDÃO; FOGAÇA, 2007).

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 350


O letramento crítico em avaliação de língua inglesa

Figura 4– Primeira questão de Listening

Na segunda questão, pede-se que os alunos completem as


frases, que estão parcialmente redigidas, de acordo com o que
ouvem e veem. Eles devem notar a explicação dada sobre dois
pontos importantes da situação apresentada pela entrevistada: a)
sobre a dificuldade de se encontrar meninas para jogar, devido à
situação do país; e b) sobre a aplicação de um projeto, que visa
empoderar mulheres por meio do basquete, em campos de
refugiados, e identificar dois sujeitos importantes para a realização
do projeto citado pela entrevistada, que seriam os pais das
adolescentes e os administradores dos campos de refugiados.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 351


Lílian Aparecida Vimieiro PASCOAL

Figura 5– Segunda questão de Listening

As questões da presente seção exploram problemas


sociopolíticos explicitados pela entrevista e as relações de poder
entre pessoas (MCLAUGHLIN; DE VOOGD, 2004). A seção também
contribui para a prática avaliativa na perspectiva do LC, ao passo
que explora outra perspectiva, diferente da que foi discutida nas
propostas de compreensão escrita. Possibilita, com isso, uma
compreensão de novas maneiras de perceber o ―outro‖ (MONTE
MOR, 2013, p.42), em outras palavras, uma reflexão sobre o que
acontece em outros lugares do mundo, com outras pessoas e em
outro contexto sociopolítico.
3.3. Uso da língua

A seção sobre uso da língua continua abordando a temática


do sexismo, porém com um diferencial, pois concentra as atenções,
direta e indiretamente, no sexismo que atinge os homens.
Na primeira questão, apresenta-se uma resposta de um
usuário do site www.quora.com, que permite que perguntas sejam
feitas pelos usuários do site e diferentes usuários tenham acesso
para lê-las e respondê-las. As características e o layout do gênero
utilizado são mantidas. Nessa questão, explorada por meio de um
exercício de preenchimento de lacunas, é apresentada uma resposta
dada por um usuário que conta os motivos de quase nunca chorar,
por ser um homem. Os alunos devem escolher entre dois verbos
disponíveis para cada espaço, fazendo as modificações que acharem
necessárias, por meio do desenvolvimento da leitura da resposta e
adequações gramaticais.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 352


O letramento crítico em avaliação de língua inglesa

Figura 6– Recorte da Primeira questão de Uso da Língua


A questão acima descrita e apresentada foca em um assunto
que pode ser uma ruptura com concepções, que o autor considera
comuns, de que o homem não chora ou não deveria chorar,
explorando mais uma perspectiva na avaliação, um terceiro ponto
de vista para a reflexão que foi feita até agora – além do ponto de
vista de uma mulher que relata o sexismo benevolente no trabalho e
o de uma mulher que relata o sexismo no Iraque, agora os alunos
têm contato com o de um homem que relata o sexismo que se sofre
desde criança. Ao se analisar um mesmo ponto de vista por
diferentes perspectivas, o aluno é desafiado a ampliar seu
entendimento e pode fazer com que ele, em situações futuras,
consiga questionar e problematizar o tema que agora conhecerá um
pouco mais, o que seria um dos princípios do LC (MCLAUGHLIN; DE
VOOGD, 2004).
Os alunos deverão prestar atenção nas dependências de
conteúdo (BROWN, 2004) para construir significado no texto, pois
suas escolhas, além de demonstrar adequação e compreensão,
podem demonstrar como se deram as construções de significado
quanto às relações de poder compartilhadas e exemplificadas pelo
autor. Ou seja, as opções oferecidas podem dar diferentes

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 353


Lílian Aparecida Vimieiro PASCOAL

significados, mudando, portanto, a mensagem.


Na segunda questão sobre uso da língua, há um diálogo
informal entre um casal decidindo que opções de receitas podem
oferecer às visitas que estão esperando. A tarefa dos alunos é
escolher um dos pronomes indefinidos para completar o diálogo. As
funções entre o casal são, aparentemente, igualitárias, ou seja, não
há indícios de sexismo benevolente entre o casal. A questão
beneficia-se da ausência de sexismo na divisão de tarefas, e, apesar
de não oferecer uma perspectiva diferente como nos exercícios
anteriores, ela apresenta um momento para reflexão sobre as
ideologias e os papeis que são atribuídos pela sociedade a homens e
mulheres em relacionamentos. A linguagem aqui, ―não comunica
ideias e valores, mas sim cria ideias e valores‖ (MATTOS, 2014b) 9,
neste caso, a linguagem é utilizada para observação e criação de
valores de igualdade entre os indivíduos envolvidos. O texto se
torna um provocador implícito para a próxima questão, de produção
escrita.

3.4. Produção escrita

Por meio de uma questão única, a seção pede que os alunos


escrevam um relato, para o site ―Everyday Sexism Project‖10, sobre
uma experiência própria, ou de conhecidos, em que lhes tenham
pedido para fazer algo por ser necessariamente homem ou mulher,
retomando, assim, o tópico de sexismo e sexismo benevolente. O
relato dos alunos tem como objetivo contribuir para o projeto, que
visa apoiar vítimas do sexismo, fazer com que essas pessoas sejam
ouvidas e conscientizar a sociedade sobre a existência dessa prática
e as formas que pode tomar.
Os alunos têm, tendo em vista o assunto refletido durante a
avaliação, uma oportunidade de criar uma transformação, uma ação
positiva que contribua para uma sociedade mais justa
(MCLAUGHLIN; DE VOOGD, 2004). Essa transformação seria, neste
caso, uma ação pelo compartilhamento de informações em uma
comunidade que foi fundada para ser um amparo às vítimas de
sexismo, e uma fonte de referência para governos e instituições que

9
LIMA, 2006
10
https://everydaysexism.com/
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 354
O letramento crítico em avaliação de língua inglesa

queiram combater o sexismo. Através da produção escrita


autêntica11, os alunos contribuem para um projeto que, ao reunir
experiências similares, socializa os relatos e mostra ao mundo que o
sexismo existe. Eles estão, no momento da escrita, utilizando a
língua em um exercício de tentativa de reconstrução social, de
emancipação e de busca por justiça social, como proposto por Paulo
Freire (1970)12.
Mattos e Valério (2013) ressaltam que os textos, para o LC,
precisam ser vinculados a um contexto, para que consideremos a
língua como prática social, já que o contexto deixa mais nítidas as
relações de poder por ela expressas, as ideologias ―e as regras
socioculturais, discursivas e linguísticas de diferentes substratos
sociais em diversas situações‖ (p. 145). A contextualização dos
textos é feita nos enunciados das questões, visto que se enquadra
na abordagem comunicativa do ensino de línguas, e nas conexões
feitas pelos alunos com a sociedade em que vivem.
A avaliação em questão satisfaz, também, a alguns dos
princípios dos ciclos do LC, sintetizados por Bishop (2014), já que:
a) estimula o conhecimento e as habilidades dos alunos para serem
atores sociais saindo de seu lugar-comum, pois são apresentados
textos que promovem a reflexão sobre ações e as informações
relatadas; b) analisa os múltiplos pontos de vista, explicitados nos
parágrafos anteriores deste trabalho; e, por último, c) ressalta as
realidades sociopolíticas nos contextos dos alunos, ao pedir-lhes a
produção de um relato que reflita sobre experiências próprias ou de
conhecidos.

Conclusão

Como tentativa de identificar características da perspectiva


do (LC) na avaliação analisada, foram feitas, aqui, algumas
considerações sobre as questões dessa avaliação, à luz de teorias
sobre o LC.
Por ser uma avaliação escrita, ela exige uma certa brevidade
(temporal e espacial) e, ao mesmo tempo, permite o uso de um

11
Neste trabalho, consideramos como um texto autêntico, segundo Nunan
(1989), aquele que é possível de acontecer no mundo real.
12
CERVETTI; PARDALES; DAMICO, 2001.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 355
Lílian Aparecida Vimieiro PASCOAL

número limitado de modalidades de expressão dos sistemas


linguístico-culturais. Dito isso, é possível dizer que a avaliação em
questão apresenta um repertório da diversidade cultural e
linguística, manifestada no uso da língua, que é uma das
considerações feitas pelo trabalho com o LC, como apontam Mattos
e Valério (2013). Ao longo da avaliação, são apresentados um artigo
publicado em um site especializado na temática de empregos; uma
entrevista gravada e produzida por uma revista estadunidense, com
entrevistadas iraquianas; uma resposta em um fórum online
informal, dada por um estudante de psicologia; uma conversa
informal entre um casal; e uma produção de um relato de
experiência para um site que reúne experiências de vítimas do
sexismo. Essa diversidade de gêneros, esferas culturais e usos da
língua é importante ao passo que contribui para inserir os alunos
socialmente e promover o acesso a essas práticas, como apontado
por Marcuschi (2008).
Acreditamos que de acordo com as teorias do LC aqui
descritas e observadas, a avaliação deve ser considerada como mais
um momento de aprendizagem, um momento que faz parte desse
processo como um todo, ou seja, o de não caracterizar a avaliação
como um fim em si mesma. Ressaltamos ainda que a avaliação é um
momento de aprendizagem não só para o aluno, mas também para
o professor, que pode considerar essa prática como uma fonte de
dados sobre os alunos, sobre sua prática docente e sobre o
andamento de seu planejamento (HAYDT, 2011).
A presente análise piloto mostra que na avaliação analisada
há indícios de um trabalho com o LC, isto é, que é possível utilizá-lo
em avaliações escritas. McLaughlin e De Voogd (2004), afirmam que
não há necessidade de nos engajarmos nas dimensões do LC em
sequência ou em conjunto, pois o fato de nos envolvermos em uma
delas, significa que já estamos engajados no LC – porém, é
interessante ressaltar que neste trabalho foi possível levantar mais
de uma particularidade da abordagem. Por conseguinte, ao fazê-lo, é
crucial que tenhamos tenacidade, pois, ainda segundo os
pesquisadores, para ensinarmos aos nossos alunos como ser
criticamente letrados, nós devemos, antes, o ser; devemos
desenvolver em nós mesmos, constantemente, um processo que
inclui ―repertórios teóricos, pedagógicos e de pesquisa‖ (p. 33).

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 356


O letramento crítico em avaliação de língua inglesa

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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 359


EROTODIDÁTICA E ENTRELAÇAMENTO GENÉRICO NA
CONSTRUÇÃO DO MAGISTER AMORIS EM OVÍDIO:
ARTE DE AMAR, REMÉDIOS DO AMOR E COSMÉTICOS
PARA O ROSTO DA MULHER

Marice Aparecida GONÇALVES


UFOP

Resumo: Nosso trabalho é pautado nas três obras de caráter


preceptivo do poeta romano Ovídio: Arte de Amar, Remédios do
Amor e Cosméticos para o Rosto da Mulher. Nelas, há recorrência de
uma persona que embasa todo o discurso elegíaco de caráter
didático do poeta sulmonense: o magister amoris. A seguir
discutiremos acerca da construção da persona do magister amoris
que, muito embora tópica importante da elegia romana de um modo
geral, é levada às últimas consequências por Ovídio.

Palavras-chave: Ovídio; Erotodidática; Elegia; Entrelaçamento


genérico; Magister amoris.

Durante a época alexandrina, foi comum a circulação de


tratados eróticos que prescreviam práticas amorosas. Na Roma,
profundamente helenizada, não era diferente: manuais amorosos
tanto gregos quanto latinos eram bastante conhecidos. Infelizmente,
porém, nenhum deles nos chegou – somente em fragmentos, como
se verá. Estes tratados foram compostos em prosa e alguns
possuíam ilustrações1. Em poesia elegíaca, a erotodídaxis ganhou
forma, entre os romanos, a partir da construção de uma persona
poética, detentor da experiência amorosa, assumindo, por isso, o
papel de praeceptoramoris (―preceptor do amor‖).

1
Cf. Suetônio, Vida de Tibério, 43.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
Erotodidática e entrelaçamento genérico na construção do Magister Amoris

Embora fragmentários, a tradição costuma atribuir a autoria


dos tratados sobre a arte amorosa a duas mulheres do século IV
a.C.: Filênis e Elefantine2– esta, a propósito, mencionada no excerto
que citamos, em nota, da Vida de Tibério, de Suetônio. Por serem
tratados, muito provavelmente inseriam-se como subgênero
deliberativo (já que prescreviam uma matéria, certa ―arte‖, portanto
aconselhavam, ensinavam algo). De certo, além da poesia didática
antiga, composta em hexâmetros, logo, subespécie de épos, cujos
exemplos são relativamente numerosos na Antiguidade3, é provável
que os tratados amorosos compostos na área helenística tenham
influenciado a confecção de seu congênere em verso em Roma,
como é o caso da Arte de Amar de Ovídio (que radicaliza a figura do
magister amoris elegíaco), já que, como nos parece claro, tais
tratados eróticos também circularam em latim, talvez até em
tradução. Nesse sentido, como nos aponta Oliva Neto, não só o
testemunho dos autores antigos que comprovariam a existência
dessas mulheres tratadistas, mas principalmente a descoberta
relativamente recente de fragmentos de suas obras, obrigam-nos a
uma verdadeira revisão da ―erotodidática na poesia‖, incluindo-se aí,
pois, a própria Arte de Ovídio:

2
A respeito do histórico da atribuição da alcunha de tratadistas à Filênis e
Elefantine, o texto de Alexandre Agnolon, acompanhado de um testemunho
retirado da Suda, podem nos auxiliar na compreensão da tradição
erotodidática, tanto tratadística quanto poética: ―A Suda, léxico bizantino
do século IX d.C., também menciona Filênis como tratadista, mas desta vez
nossa Filênis não está sozinha, o que pode demonstrar que, entre os
antigos, já houvesse um cânone erótico a ser emulado, uma tradição
corrente erotodidática que em Roma, por exemplo, refunde na ars ovidiana
e também nos epigramas da Antologia Grega, ainda que de maneira mais
tênue. Cf. AGNOLON, 2013, p. 57.
2
Somente à guisa de exemplos temos boa parte da poesia hesiódica
(principalmente, Os Trabalhos e os Dias) considerada como arché da poesia
didática ou didascálica, que será, por sua vez, modelo fundamental para os
poetas didáticos alexandrinos, a partir do século III a.C.; destacam-se, ainda,
Arato de Sólio (III – II a.C.), com seus Phainómena – vertido em latim por
Cícero, de cuja tradução hexamétrica nos chegou infelizmente fragmentos –
, o poema agrário de Virgílio, as Geórgicas, e as Astronômicas, de Manílio (I
d.C.), que tem como modelo o poema mencionado de Arato.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 361
Marice Aparecida GONÇALVES

Coincidentemente, sobre a técnica erótica, a Antologia


Palatina (7, 345 e 450), Luciano de Samósata (Diálogo
das Meretrizes, 6, 1), Clemente de Alexandria
(Protréptico, 4, 61, 2-3) e a própria Priapéia Latina
(poema 63) mencionam certa mulher, Filênide, como
autora de manual erótico. Outra mulher, Elefântida, é
indicada como autora de manual erótico ilustrado na
Priapéia Latina (4), em Marcial (12, 43) e em Suetônio
(43, 2). De Filênide e Elefantida não possuímos os
próprios textos, só a apreciação de seu nome por
aqueles autores e por algumas notícias, até que se
descobriram três fragmentos dessa prosadora, nascida
em Samos no século IV a.C., que, diferentemente do que
afirmavam os poetas que a mencionavam na Antologia
Palatina e Marcial, não era poetisa, mas tratadista,
autora de um PeríAphrodisíon (Sobre os Prazeres
Amorosos). A descoberta do fragmento prova, primeiro,
que Filênide, em grego e em latim, não é um nudum
nomen, por mais que mera utilização de seu nome possa
ter servido para rubricar matéria amorosa alhures na
Antologia Palatina e em Marcial. Quanto ao problema da
composição poética, a descoberta evidencia também o
tratado de Filênide, como techneerotiké (técnica erótica,
arte amatória), isto é, como subgênero do discurso
retórico deliberativo, influi efetivamente no poema Arte
de Amar (Ars Amatória), de Ovídio, obrigando a rever
teoricamente a erotodidática na poesia, sobretudo na
elegia, pois mostra que ela não resulta de agudeza
poética que teria possibilitado a invenção e a
composição no interior da elegia de extenso poema,
exemplar, como a Arte de Amar, de Ovídio, e ainda
vários poemas que acionam o subgênero, mas comprova
que é resultado da aplicação elegíaca, lírica, iâmbica, etc.
de preceptiva erótica que já havia sido tratada
epiditicamente em texto retórico, ou seja, antes e fora
do âmbito da elegia e de toda poesia4.

Por isso, seu nome é sempre ligado ao universo amoroso e se


tornou tópica recorrente na poesia amorosa helenística. Segundo
Alexandre Agnolon, ―Filênis parece constituir, no âmbito da epi-
gramática, um tópos, quase que a imagem mesma da tópica

4
OLIVA NETO, 2006, p. 136-137.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 362
Erotodidática e entrelaçamento genérico na construção do Magister Amoris

erótica5‖. O que podemos constatar com o seguinte epigrama de


Posidipo (III a.C.):

Μήμεδόκειπιθανῶςἀπατᾶνδακρύοισι, Φιλαινί.
οἶδα·φιλεῖςγὰρὅλωςοὐδέναμεῖζονἐμοῦ,
τοῦτονὅσονπαρ' ἐμοὶκέκλισαιχρόνον·εἰδ' ἕτερόςσε
εἶχε, φιλεῖνἂνἔφηςμεῖζονἐκεῖνονἐμοῦ.

Pensas, Filênis, que me engana teu queixume?


Sei que dizes amar-me, mais ninguém,
porém, se estás nos braços de um outro qualquer,
sei que dizes amá-lo, mais ninguém6.

Cumpre notar, no epigrama acima, a apóstrofe a certa


mulher de nome Filênis, o nome é, provavelmente, alusão à
tratadista grega. Sua simples menção já nos remete ao universo
amoroso, por isso, ser exposto logo no primeiro verso, expõe de
imediato ao leitor com que tipo de poema irá se deparar. Não é à toa
a possibilidade de se compreender que o epigrama representa aqui
Filênis não como tratadista, mas como cortesã, a despeito dessa
diferença, um pouco jocosa até, a personagem não deixa de possuir
conhecimentos nas práticas amorosas. O poema como um todo trata
de uma tópica que, posteriormente, será recorrente na elegia
romana: a fidelidade feminina. A mulher não é confiável – até
porque, no universo elegíaco romano, a puella, em que pese ser
letrada e refinada, também é uma cortesã, sua representação,
portanto, distancia-se da matrona ou da jovem aristocrática
destinada ao casamento e à perpetuação da domus romana –, diz o
que o amante quer ouvir naquele momento, mas, logo que ele vira
as costas, diz o mesmo ao rival. Os seguintes versos da Ars nos
permitem perceber a apropriação da tópica da fidelidade feminina:

Sedmeliusnescissefuit: sine furta tegantur,


Ne fugiat ficto fassusab ore pudor.
Quo magis, o iuvenes, deprendereparcitevestras:
Peccent, peccantes verba dedisseputent.

Mas seria melhor não saber de nada: que os crimes

AGNOLON, 2013, p. 52.


5

Antologia Palatina, V, 186. Tradução em versos de Alexandre Agnolon.


6

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 363


Marice Aparecida GONÇALVES

oculte,
para não fugir o falso pudor de sua fala.
Por mais ainda, ó jovens, evitai surpreender com
sobressaltos vossas amadas;
que pequem; e, quando pecam, que pensem ter vos
dado a conhecer o segredo7.

Nesses versos, Ovídio aconselha aos jovens a deixarem-se enganar


pelas amantes, em cujo rosto está estampada a traição. E o jovem
amante deve evitar surpreender a amada, pois deve deixar que ela
pense ter contado o segredo, a descoberta da traição estimularia
outros adultérios: as partes envolvidas já não terão mais nada a
perder e podem usufruir igualmente do seu quinhão de alegrias
adquiridas, ou seja, ao perdoar ou negligenciar a traição da amante,
o jovem adquire o direito de traí-la sem ser cobrado por isso. Estes
versos são importantes também para introduzir outro topos
importante da poesia elegíaca, o magister amoris. É ele o
responsável pelo discurso elegíaco, que mobiliza todos os topoi
retórico-poéticos para a construção e mobilização dos afetos de
todas as personagens do discurso, incluindo a si mesmo, e a
benevolência da audiência.
O magister amoris, no âmbito da erotodídaxis, é a persona
poética criada pelo autor paramobilizar os afetos da audiência e
criar um ethospoético próprio, que dá credibilidade ao discurso. O
amor elegíaco pode possuir diversas formas que variam desde a
servidão amorosa (seruitiumamoris) à realização completa do desejo
do amante, por isso, pode-se pensar que o ethos do eu-elegíaco em
poesia pode ser variável de acordo com o nível de emoção que está
sendo estimulado. Deste modo, as ações das personagens
envolvidas tendem a ser decorosas com a matéria do discurso,
criando uma fides, que determina todas as ações. Aristotelicamente,
o ethos do orador deve angariar a credibilidade da audiência por
meio do discurso, ou seja, por meio do logos. Como é possível
perceber no excerto abaixo:

Persuade-se pelo caráter quando o discurso é proferido


de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser
digno de fé (...). É, porém, necessário que esta confiança

7
Ovid. Ars. II, 555-558. Tradução de minha lavra.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 364
Erotodidática e entrelaçamento genérico na construção do Magister Amoris

seja resultado do discurso e não de uma opinião prévia


sobre o caráter do orador; pois não se deve considerar
sem importância para a persuasão a probidade do que
fala8.

Assim, Aristóteles aproxima o papel do orador ao papel do


poeta e do esforço mimético, na medida em que o ethos, para o
estagirita, é ―criação‖ discursiva, pois o logos o forja. Isso importa
para pensar a persona poética, pois ela não necessariamente deve
coincidir com a pessoa do poeta, deve apenas estabelecer uma
relação de confiança com a audiência, por meio da fides.
Porém, comparando o ethosaristotélico ao conciliarede
Cícero, notamos que há duas diferenças cruciais, que são exploradas
por Ovídio na construção do ethosdo magister amoris: em
Aristóteles, o ethos do orador (e do poeta), como vimos, deve ser
fruto unicamente do discurso; ao passo que, em Cícero, há a
contemplação da vida pregressa do orador, no caso das elegias de
Ovídio, do passado da persona poética, passado esse, compilado nos
Amores; deste modo, seu caráter não é apenas forjado, é
amplificado pelo discurso, o que, de um lado, epiditicamente
amplifica a fama do próprio poeta. Vejamos o que nos diz Cícero a
respeito do conciliare:

Ualetigiturmultum ad uincendumprobari mores et


instituta et facta et uitameorum, quiagent causas, et
eorum, pro quibus, et item improbariaduersariorum,
animosqueeorum, apud quosagetur,
conciliariquammaxime ad beneuolentiam cum erga
oratoremtum erga illum, pro quo dicetorator.
Conciliantur autem animi dignitatehominis, rebus gestis,
existimationeuitae; quaefaciliusornaripossunt, si modo
sunt, quam fingi, si nulla sunt.

Tem muita força, então, para a vitória, que se aprovem o


caráter, os costumes, os feitos e a vida dos que

8
διὰμὲνοὖντοῦἤθους, ὅτανοὕτωλεχθῇὁλόγοςὥστεἀξιόπιστονποιῆσαιτὸνλέγοντα· (...)
οὐγάρ, ὥσπερἔνιοιτῶντεχνολογούντων,
<οὐ>τίθεμενἐντῇτέχνῃκαὶτὴνἐπιείκειαντοῦλέγοντος, ὡςοὐδὲνσυμβαλλομένηνπρὸςτὸ
πιθα-νόν, ἀλλὰσχεδὸνὡςεἰπεῖνκυριωτάτηνἔχειπίστιντὸἦθος.
Reth. 1, 1356 a, 5-14. Tradução Manuel Alexandre Júnior.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 365
Marice Aparecida GONÇALVES

defendem as causas e daqueles em favor de quem as


defendem, e, do mesmo modo, que se desaprovem os
adversários, bem como que se conduzam os ânimos
daqueles perante os quais se discursa à benevolência
tanto em relação ao orador como em ralação ao que é
definido pelo orador. Cativam-se os ânimos pela
dignidade do homem, pelos seus feitos, por sua
reputação; pode-se orná-los com maior facilidade, se
todavia existem, do que forjá-los, se absolutamente
não existem9.

Além disso, podemos articular a passagem acima com a ideia


de auctoritas e digntas em Roma: Ovídio, como os outros elegíacos,
utiliza a fama e a experiência precedente do poeta amator
justamente para autorizá-lo a oferecer o conselho amoroso, isso
ocorre porque o passado serve para lhe dar autoridade como
magister amoris. Ciceronicamente, o poeta elegíaco ―amplifica‖ seu
caráter, sua persona, pois remete o leitor à sua experiência
pregressa nos assuntos amorosos, no caso, à obra (Amores)e,
consequentemente, à fama do poeta, que se julga conhecido e
famoso. Mas, ainda assim, não deixa de ser a persona forjada, pois o
que está em evidência não é o poeta ele mesmo, pessoa histórica,
mas a projeção do poeta, construído, forjado, levando em
consideração as características do gênero elegíaco. No que concerne
ao éthos, a elegia (a obra preceptiva de Ovídio é exemplo máximo
disso) une os dois conceitos de formação do caráter do orador.
Os versos 557 e 558 (citados acima) nos permitem também
perceber o tom deliberativo, ou seja, de aconselhamento da elegia
ovidiana. A matéria deliberativa é própria da retórica ou da poesia
épica, em sua porção didática. O uso do aconselhamento na elegia é
o principal ponto onde é possível perceber a confluência genérica,
que, pode ser aqui entendida como a apropriação de alguns topoi
típicos de outros gêneros. Outro fator de ―entrelaçamento‖ genérico
importante nos poemas de Ovídio é o estilo poético, leve, sutil e
breve, e que, quando pensamos na influência da poesia épica, pode
ter sido inspirado em Hesíodo, que foi considerado um grande
modelo pelos poetas elegíacos – e helenísticos também –, por
compor de modo leve, quase bucólico, um epos:

9
Cícero, De Oratore, II, 182, 2-6. Tradução Adriano Scatolin. Grifo nosso.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 366
Erotodidática e entrelaçamento genérico na construção do Magister Amoris

Μουσάων῾Ελικωνιάδωνἀρχώμεθ' ἀείδειν,
αἵθ' ῾Ελικῶνοςἔχουσινὄροςμέγατεζάθεόντε,
καίτεπερὶκρήνηνἰοειδέαπόσσ' ἁπαλοῖσιν
ὀρχεῦνταικαὶβωμὸνἐρισθενέοςΚρονίωνος·
καίτελοεσσάμεναιτέρεναχρόαΠερμησσοῖο
ἠ' ῞Ιππουκρήνηςἠ' ᾿Ολμειοῦζαθέοιο
ἀκροτάτῳ῾Ελικῶνιχοροὺςἐνεποιήσαντο,
καλοὺςἱμερόεντας, ἐπερρώσαντοδὲ ποσσίν

Pelas Musas heliconíades comecemos a cantar.


Elas têm grande e divino o monte Hélicon,
em volta da fonte violácea com pés suaves
dançam e do altar do bem forte filho de Crono.
Banharam a tenra pele no Permesso
ou na fonte do Cavalo ou no Olmio divino
e irrompendo com os pés fizeram coros
belos ardentes no ápice do Hélicon10.

Carlos Ascenso André, em nota ao texto ovidiano faz a


seguinte ressalva quanto a importância da poesia de Hesíodo para
os poetas posteriores:

A noção de ordenar a vida e a natureza através de


normas sociais, práticas religiosas – fazer a coisa certa
na hora certa – era central para a tratadística didática. O
próprio título da obra de Hesíodo, Os trabalhos e os dias,
a encarnava, e ela é recorrente ao longo de toda
Geórgica de Virgílio. Vários estudiosos salientaram que
estes versos, com sua alusão a agricultura, navegação e
narrativas sobre astros, são fundamentalmente
paródicos. Há ecos de Hesíodo, Virgílio e mesmo de
Arato. Mas a verdadeira brincadeira – para qual o leitor
foi alertado por essa pedra de toque – é a aplicação
frívola de uma forma didática séria a táticas de sedução.
Assim como é melhor evitar semear ou navegar em
certas estações, argumenta Ovídio (339-402), há dias que
são de mau agouro para perseguir mulheres11.

10
Teogonia, 1-8. Tradução deJaaTorrano.
11
ANDRÉ, 2011, p. 496.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 367
Marice Aparecida GONÇALVES

O proêmio da Teogonia pode ser relacionado, dentre outros,


aos seguintes versos dos Amores:

Statvetus et multos incaedua silva per annos;


credibileestilli numen inesse loco.
fonssacer in mediospeluncaquepumicependens,
et latere exomnidulcequeruntur aves.
Hic ego dum spatiortectusnemoralibusumbris—
quodmea, quaerebam, Musa moveret opus.

Existe um bosque, já velho e que não sofreu cortes


durante muitos anos;
é possível que um deus habite esse lugar;
possui no meio uma fonte sagrada e uma gruta, com
pontas agudas e [suspensas do teto,]
e por toda parte se fazem sentir doces queixumes
dos pássaros.
Enquanto aí me passeio, sob a proteção das sombras do
bosque
(buscava eu minha Musa, para inspirar a minha
obra)12.

A cena descreve um bosque, que aparentemente já foi


habitado por homens, mas que está isolado quando o poeta o visita,
a natureza é quase rústica. O intuito do vate, ao buscar lugar tão
isolado, verdadeiro locusamoenus (é notável a cena pastoril), é
encontrar sua Musa, a Elegia. A descrição do bosque, em particular,
é extremamente importante, pois alude a uma cena que deve ser
previamente reconhecida pela audiência: o proêmio de Hesíodo,
naTeogonia, citado acima.
Vários índices são análogos no poema latino. O primeiro é o
cenário, o alto de um monte, onde dançam em volta de uma fonte. O
segundo, nos dois casos, é que o vate vai ao encontro de sua Musa
para que seja inspirado a cantar; neste momento, Ovídio eleva a
Elegia ao mesmo patamar das filhas de Zeus, ou seja, ao de senhora
de um gênero específico. É a Musa quem dá a Hesíodo matéria para
cantar; mas a Musa do Ovídio o presenteia com inspiração, ou seja, a
matéria cantada por ele não é imposta.
Outro modelo importante para a compreensão do
entrelaçamento genérico na poesia ovidiana foi Calímaco:

12
Ovid. Am. III-1, 7-10. Tradução Carlos Ascenso André.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 368
Erotodidática e entrelaçamento genérico na construção do Magister Amoris

Para a Elegia Erótica Romana, Calímaco, já no século III


a.C, é, ao que parece, o mais importante. Poeta e
gramático grego, de acordo com o Suda produziu cerca
de 800 trabalhos, dos quais apenas 6 hinos, 64
epigramas e alguns fragmentos chegaram até nós.
Erudito e mais conhecido por seus poemas curtos e
epigramas, Calímaco principalmente rejeitava a Épica e
idealizava uma poesia breve, preocupada com o estilo.
Um de seus versos mais conhecidos é o
―μεγάβιβλίονμεγάκακόν‖, "megabiblion, megakakon", que
ataca a poesia longa, seguidora de moldes antigos. De
acordo com MILLER (2002), seu poema Aitia, uma elegia
didática que conta uma série de narrativas de origens de
costumes locais, era conhecido por Ovídio e seus
colegas como modelo maior para a poesia escrita na
tradição neotérica13.

Uma das principais características que aproxima a poesia de


Calímaco da elegia é sua relação com a ironia, seus poemas
dispensam estabelecer uma relação clara com o seu pensamento;
deixa a cargo do leitor entender as sutilezas entre o dito literal e as
insinuações contidas no texto. Segundo Veyne, Calímaco fundou a
independência da significação literal, o texto não precisa ser um
espelho da realidade, está no limite, ―uma escritura que não se basta
uma vez que não exprime nada‖14. Neste sentido, o texto de
Calímaco rompe com a ideia aristotélica de que o gênero a que
pertence o texto deve ser intimamente relacionado ao ethos do seu
autor. Esta ideia frutifica na elegia romana, e leva ao surgimento da
persona poética que autoriza a criação de toda elegia, o magister
amoris, pois é ele quem faz esta ponte entre a criação do ethosdo
auctor e o gênero poético, para que, deste modo, as relações
poéticas se tornem claras à audiência.
Outros temas recorrentes tanto na poesia de Calímaco
quanto na elegia romana são os mitos e a religião. Assim como na
poesia romana, o uso destes artifícios embasa a produção poética,
ajudando a dar credibilidade ao dito poético. Os mitos e a religião,
já na época de Calímaco, eram tidos como lendas, mas ainda
angariavam credibilidade ao discurso em virtude de sua autoridade

13
LOPES, 2010, p. 20.
14
VEYNE, 1985, p. 35.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 369
Marice Aparecida GONÇALVES

ancestral; além disso, o conhecimento dos mitos e tradições


religiosas eram um meio de demonstrar a extrema erudição do
poeta, principalmente quando eram pouco disseminados para o
grande público, ou, quando extremamente conhecidos, eram
abordados de forma inovadora pelos poetas.
Calímaco é muito importante para a poesia ovidiana por
outro importante motivo: sua crítica aos preceitos retóricos e
poéticos realizada nos Telquines. Nesse texto, Calímaco se defende
dos Telquines, críticos invejosos que não conseguem compor por
falta de técnica, e que repudiam o fato de ele nunca ter escrito
poesia épica. Os principais tópicos do fragmento que Ovídio
assimila são: a busca de uma matéria não tratada, no caso da
ArsAmatoria, este ponto foi reestruturado como uma codificação da
matéria amorosa; a elocução deveria ser breve, grandiosa e humilde;
e, principalmente, a recusa da continuidade e unidade aristotélicas –
veremos, no capítulo seguinte como esta recusa se dá.

Conclusão

O objetivo principal de nossa pesquisa será demonstrar que


o verdadeiro entrelaçamento genérico presente nas obras de Ovídio
a que nos referimos – a saber: A Arte de Amar, Os Remédios do
Amor e Os Cosméticos para o Rosto da Mulher – é fundamental para
a existência, em discurso elegíaco, de uma verdadeira preceptiva
erótico-amorosa em versos, êmula quer da tratadística erótica, por
assim dizer, ―teórica‖ existente desde o século IV a.C., quer da
poesia didática, de base helenística. Se, de um lado, o referido
entrelaçamento é essencial para se pensar em nova subespécie
elegíaca em Ovídio, de outro, parece-nos evidente, é também
estratégia, em dimensão retórica, de amplificação do topos do
magister amoris. Além disso, nossa pesquisa, talvez como aspecto
subsidiário, mas não menos importante, tentará demonstrar
também que a obra didática ovidiana pode ainda ser compreendida
como verdadeira poética do gênero elegíaco. Em outras palavras, as
obras de Ovídio a que nos referimos, parece-nos, servem a dois
propósitos: ensinar a amar e ensinar, ao poeta neófito, a compor
elegia, o que converte, portanto, a obra ovidiana em verdadeira
poética elegíaca composta em versos.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 370


Erotodidática e entrelaçamento genérico na construção do Magister Amoris

Referências

AGNOLON, Alexandre. Filênis, de Belle de Jour à Alcoviteira: matéria erótica


na antologia grega. Revista Clássica: São Paulo, v. 26, nº 1, p, 51-66, 2013.

ARISTÓTELES, Retórica. Tradução e notas Manuel Alexandre Júnior. Edição:


Imprensa Nacional-Casa da Moeda: fevereiro de 2005.

HESÍODO. Teogonia. Tradução e Estudo de JaaTorrano. São Paulo: Iluminura


LTDA, 1995.

LOPES, Cecília Gonçalves. Confluência genérica na Elegia Erótica de Ovídio


ou a Elegia Erótica em elevação. 2010-02-19. 161. Dissertação – USP.
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas 2010-03-05. Suporte
digital: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8143/tde-03032010-
133009/pt-br.php, acesso: 29/12/2014.

MARTINS, Paulo. Elegia Romana: Construção e Efeito. São Paulo: Humanitas,


2009.

OLIVA NETO, João Angelo. (2006). Falo no Jardim: Priapéia Grega, Priapéia
Latina. Tradução do Grego e do Latim, Ensaios Introdutórios, Notas e
Iconografia de João Angelo Oliva Neto. Cotia-SP: Ateliê Editorial/ Campinas,
SP: Editora da Unicamp.

OVÍDIO. Amores e Arte de Amar. Tradução, introdução e notas Carlos


Ascenso André; prefácio e apêndices Peter Green. São Paulo:
PenguinClassics Companhia das Letras, 2011.

__________. Os Remédios do Amor e Os Cosméticos Para o Rosto da Mulher.


Tradução Antônio da Silveira Mendonça. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.

__________. MOZLEY, J. H. Volume II:Artof Love. Cosmetics. Remedies for


Love. Ibis. Walnuttree. SeaFishing. Consolation. Cambridge, Mass: 1962.

SCATOLIN, Adriano. A invenção no Do Orador de Cícero: um estudo à luz de


Ad Familiares, I, 9, 23. Tese de doutorado inédita. São Paulo: FFLCH/USP,
2009.

VEYNE, Paul. Elegia Erótica Romana. São Paulo: Editora Brasiliense: 1985.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 371


PROPOSTA DE UMA HISTÓRIA CRÍTICA DA CRÍTICA
TEXTUAL NO MUNDO LUSÓFONO

Marinês de Jesus ROCHA


Marcello MOREIRA
UESB

Resumo: Este estudo visa a analisar, por meio de uma história


crítica da filologia, o modo como as modificações no campo
historiográfico deveriam representar alterações também nos
métodos filológicos, já que a filologia trata basicamente da
historicidade dos discursos ditos literários. Aqui, propondo a crítica
da possibilidade de subsunção de toda e qualquer tradição textual a
um único método filológico, propomos a partir de Blanke (2006),
―Para uma nova história da historiografia‖, como se pode
empreender a escrita de uma história da filologia a partir do século
XIX, em Portugal e no Brasil, ao historicizar métodos e teorias.

Palavras-chave: Edição crítica; Lachmannismo; Historiografia.

Introdução

Um pesquisador que se proponha examinar os


desdobramentos da crítica textual em Portugal e no Brasil, ao longo
dos últimos cem anos, se deparará com a repetição incessante de
alguns lugares comuns críticos que determinam os meios pelos
quais o filólogo se propõe fixar o texto literário que edita conforme
ao último desejo autoral ou conforme ao que mais se aproxima dele.
A permanência de lugares comuns críticos - ―que são nada mais são
do que as definições de crítica textual e dos procedimentos que
levam a bom termo o labor editorial‖ (ROCHA, 2016, p. 10) - deve-se
ao fato de que as definições de crítica textual e dos fins a que ela
visa, encontrados em manuais de filologia portugueses e brasileiros,
são sempre os mesmos, o que parece evidenciar uma ausência de
crítica que incida sobre o próprio campo disciplinar, como já o
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
Proposta de uma história crítica da Crítica Textual no mundo lusófono

demonstraram importantes estudiosos1. Sendo assim, a manutenção


de um método crítico em filologia, que se nos apresenta como de
validade universal e indiferente aos estudos históricos que se
seguiram ao momento de sua emergência, e que são importantes em
disciplinas históricas, como o é a filologia, que se propõem
considerar a historicidade da própria prática de escrita da história,
de seus métodos e teorias, parece-nos impróprio do ponto de vista
teórico. Há estudos que expõem como conceitos e categorias
filológicos derivados dos escritos de Karl Lachamann, centrais no
método que leva o seu nome e que ainda se pratica no Brasil, são
historicamente impróprios e muita vez ―anacrônicos‖; basta pensar
na proposta central da filologia lachmanniana, de restituição ou
recuperação do texto reputadamente autoral, genuíno, mesmo
quando o texto a ser restituído ou recuperado foi produzido em
tempo e local em que a noção de ―genuinidade‖ não era cogitada e
não tinha a menor relevância cultural2. Pode-se é claro perguntar
como ―pode um método de investigação e de geração de
conhecimento durar sem praticamente alterações por mais de um
século?‖ (MOREIRA, 2012, p. 6). E, se se afirma que o método vale
para todas as tradições textuais, independentemente do tempo e
local de sua produção, isso não parece significar que os conceitos e
categorias críticos que operacionalizam o método são de caráter
transistórico, como ―autoria‖ e ―genuinidade‖? (MOREIRA, 2012, p.
6).
A crítica textual que podemos conhecer por intermédio de
manuais, livros, artigos, separatas etc., no caso português e
brasileiro, assentada em procedimentos metodológicos que não são

1
Dentre os importantes estudiosos que tratam dessa temática estão Moreira
(2011) e Hansen & Moreira (2013): MOREIRA, Marcello. Critica Textualis in
Caelum Revocata? Uma Proposta de Edição e Estudo da Tradição de
Gregório de Matos e Guerra. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2011./ HANSEN, João Adolfo & MOREIRA, Marcello. Para que Todos
entendais: Poesia Atribuída a Gregório de Matos e Guerra: Letrados,
Manuscritura, Retórica, autoria, obra e público na Bahia dos séculos XVII e
XVIII, Volume 5 /João Adolfo Hansen, Marcello Moreira. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2013.
2
MOREIRA, Marcello. Reflexão inicial para a produção de uma edição crítica
da lírica de Luís de Camões. Convergência Lusíada n. 27, janeiro - junho de
2012, p. 5-10.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 373
Marinês de Jesus ROCHA & Marcello MOREIRA

objeto de crítica desde o século XIX, aparenta estar desvinculada


das reflexões historiográficas que ocorreram desde que houve a
sistematização do modo como se deve proceder para se fixar o texto
de uma "obra literária", ou seja, o texto autoral genuíno. Essa
contraditória separação entre a crítica textual e a reflexão sobre a
historicidade das tradições textuais é matéria de estudo de Moreira
(2011a) e de Hansen & Moreira (2013), cujas considerações
evidenciam o quão extenso, complexo e múltiplo é o caminho
percorrido pela historiografia ao voltar-se para si mesma em
diferentes períodos e examinar os seus procedimentos, conceitos e
métodos.
Nesse sentido, ao propor uma ―história problema‖, por
exemplo, historiadores da Escola dos Annales, que mudaram
significativamente o campo historiográfico, ao propor pesquisas que
foram muito além do político e do econômico, relacionando aos
domínios da história ―todas as atividades humanas‖ (BURKE, 1992,
p. 7), e, por isso, priorizando, de forma inédita, ―a colaboração com
outras disciplinas, tais como a geografia, a sociologia, a psicologia, a
economia, a linguística, a antropologia social, e tantas outras‖
(BURKE, 1992, p. 7-8), acabaram por apresentar demandas novas à
filologia, como a historicização de categorias centrais desta
disciplina, como "autoria", "obra", "público", conquanto a filologia no
Brasil seja refratária a discussões de seus axiomas.
O surgimento da história cultural e as transformações pelas
quais ela passou também não impactaram a filologia em Portugal e
no Brasil, como deveriam ter impactado, disciplina que lida com
textos os mais diversos, cujos meios de ―produção, recepção e
transmissão‖ (MOREIRA, 2011a) se diversificam no tempo e no
espaço e que são por esse mesmo motivo objeto privilegiado de uma
história de tipo cultural, como o demonstrou a história do livro e da
leitura e a bibliografia material e histórica. A ―preocupação com o
simbólico e suas interpretações‖ (BURKE, 2005, p. 10), por exemplo,
poderia levar os estudiosos de crítica textual à produção de exame
diferenciado do texto que investigam, se o seu ponto de partida não
estivesse já pronto e determinado, se os meios para produzir a sua
reflexão não estivessem dados e se os filólogos não estivessem já
amoldados aos mesmos meios para se chegar a um sentido único
que visam a "restituir", aquele intentado por esse deus absconditus,
o autor.
Os resultados de pesquisa que modificam os conhecimentos
históricos e permitem novas reflexões sobre os domínios da história

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 374


Proposta de uma história crítica da Crítica Textual no mundo lusófono

deveriam afetar o modo como os procedimentos crítico-filológicos


são entendidos e praticados e implicar mudança no campo da crítica
textual; no entanto, ainda são indispensáveis, para a maioria dos
filólogos brasileiros, os lugares comuns lachmannianos da operação
filológica, que prescreve o fim da atividade filológica como a
―restituição‖ do texto genuíno, conforme a ―última vontade do
autor‖. A ausência de autorreflexão no campo da crítica textual e as
contradições que estão implicadas na manutenção de um método
filológico em muitos pontos já superados pela deriva histórica da
História, no caso português e brasileiro, são evidenciadas por
Hansen & Moreira (2013):

Diferentemente da história e demais ciências humanas, a


filologia tem descurado de investigar seus pressupostos,
códigos e procedimentos, parecendo não se dar conta de
que também eles têm sua história. Não se pode, a
despeito de ela ser uma disciplina histórica, afirmar que
tenha projetado investigar sua própria historicidade,
propondo-se a fazer uma metafilologia num
empreendimento análogo ao da escrita de uma
metahistória, que tem por objetivo especificar, analisar,
teorizar e criticar os códigos e convenções da
historiografia. Como a filologia e a crítica textual
desempenham papel fundamental na construção do
passado, pois são formas de mediação histórica, a
análise crítica das condições institucionais e teórico-
metodológicas de sua produção é indispensável para
compreender seu papel de mediação (HANSEN &
MOREIRA, 2013, p. 12).

I. Condições e possibilidades de uma escrita da história crítica da


filologia portuguesa e brasileira

Escrever uma história crítica da filologia implica reconhecer


que alguns métodos, conceitos, categorias e procedimentos
metodológicos podem ter sua validade questionada e até mesmo
comprometida, ao se realizar uma reflexão metateórica, fruto da
historicização da filologia, que demonstre a impropriedade histórica
de métodos, categorias, conceitos e procedimentos frente a objetos
lhes são refratários e aos quais só podem ser aplicados por meio de
sobredeterminação. Em seu texto, Blanke (2016) trata de dez tipos
de história da historiografia, alguns dos quais são relevantes para a
nossa proposta de estudo da filologia. A história pode ser escrita de
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 375
Marinês de Jesus ROCHA & Marcello MOREIRA

forma crítica sob diversas perspectivas, sendo diferenciados os seus


objetivos e os resultados de cada uma delas. Há, por exemplo, uma
―história dos historiadores‖, composta a partir de aspectos
relacionados à vida dos indivíduos, sendo o modo mais corriqueiro
de escrita da historiografia:

Provavelmente, a forma de trabalho mais comum na


história da historiografia é o retrato pessoal. Em
monografias ou em ensaios historiadores proeminentes
são identificados e arrolados. Biografias intelectuais são
traçadas, a produção teórica de cada um é avaliada,
assim como a recepção de suas obras. [...] Esse trabalhos
tratam da vida e obra de um historiador ou então lidam
com problemas individuais. Dependendo do status do
historiador em foco, tais obras frequentemente
ultrapassam o tratamento de sua personalidade. [...]
(BLANKE, 2006, p. 29/ grifos do autor).

Conforme o modo de estudo acima proposto, existe um tipo


de reflexão histórica produzida a partir da escrita da vida dos
historiadores, o que, de algum modo, em nosso trabalho,
objetivamos fazer, ao escrevermos uma história dos filólogos, em
que se demonstre as relações entre homens e instituições
acadêmicas, e também entre homens de saber, tanto em nível
geracional quanto em nível inter-geracional. A produção de uma
história dos autores de estudos filológicos visa a investigar se há
coesão nos interesses e resultados de pesquisa dos filólogos
portugueses e brasileiros entre fins do século XIX, tempo de
emergência do campo filológico, e meados do século XX, tempo em
que o paradigma filológico lachmanniano consolida-se e enrijece.
É possível também que se escreva em história da
historiografia aquela que toma como matéria as obras históricas:

O segundo tipo poderia ser apresentado a partir da


fórmula ―história da historiografia como história da
obra‖. Nesse caso, a história da matéria é contada como
a história de um gênero literário particular. Essa é,
provavelmente, a forma mais comum da descrição geral.
À parte dos trabalhos de Wegele, Fueter, Below and
Srbik, gostaria de referir-me ao texto de Ritter, no qual o
próprio título (―um estudo das obras mais
proeminentes‖) apresenta esse programa. Com relação à
defesa de H. White de uma interpretação tropológica da

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 376


Proposta de uma história crítica da Crítica Textual no mundo lusófono

história da historiografia no seu Metahistória: a


imaginação histórica na Europa do século XIX, esse tipo
não focaliza questões de literatura ou poética, mas
discute temas, modelos de interpretação e métodos de
história usando ―grandes obras‖ como material.
Questões de história das instituições são apenas
tocadas, mas não aprofundadas. (BLANKE, 2006, p. 29-
30/ grifos autorias).

Uma história das obras do campo filológico, com ênfase em


crítica textual e ecdótica, torna-se pertinente na demonstração da
matéria e do modo como cada filólogo trata o conteúdo do ponto de
vista de uma filologia e de uma crítica textual de base
lachamnninana, uma vez que é possível decompor cada obra e
depreender os conceitos e categorias críticas que direcionam um
estudo e podem ser relacionados à formação de um determinado
filólogo.
Já no ―Balanço geral‖, a reflexão sobre a história é produzida
por meio de divisão dos historiadores em ―campos específicos‖, de
modo que são ―graduados‖ em determinadas áreas:

O terceiro tipo é composto por livros – textos que


contêm visões panorâmicas do estado das pesquisas
com intenção de graduar historiadores ou classificá-los
em campos específicos, de tal forma que só em um
sentido estrito podem ser considerados história da
historiografia. Tais quadros frequentemente tratam
apenas do estado atual da pesquisa e esforçam-se por
produzir uma lista bibliográfica completa. [...] (BLANKE,
2006, p. 30).

Ao transpormos essa proposta para o âmbito da filologia, é


possível perceber que, na escrita de uma história dessa área de
estudo, de algum modo, há classificação dos filólogos e da
bibliografia dos aderentes do método de Lachmann e, sendo assim,
produzimos um ―balanço geral‖, segundo o conceito de Blanke
(2006), uma vez que tais estudos e referências bibliográficas são
graduados em ―campos específicos‖.
Para que um historiador produza uma ―história da
disciplina‖, é fundamental o estudo dos vínculos institucionais, para
que se depreenda a disciplinaridade da história. Blanke (2006)
afirma que ―o quarto tipo aborda a disciplinaridade da história (na
perspectiva de suas instituições). Trabalhos sobre o
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 377
Marinês de Jesus ROCHA & Marcello MOREIRA

desenvolvimento de instituições individuais compreendem um tipo


separado no interior da historia da historiografia. Esse tipo unifica
diferentes áreas temáticas‖ (BLANKE, 2006, p. 30). A história da
filologia que visamos a escrever é, em grande medida, uma história
da disciplina, compreendida como campo de saber universitário,
acadêmico, que tem seus praticantes, seus mestres, seus alunos, que
é ensinada por meio de aulas ministradas em cursos de graduação,
mestrado e doutorado; desse conjunto de instituições e homens de
saber depende a inteligência do modo como o método de crítica
textual lachmanniano se difundiu, se consolidou e se tornou
hegemônico no mundo lusófono.
A ―história dos métodos‖ compreende a decomposição e
exposição de um método e seus desenvolvimentos, pelo historiador,
atividade incomum em forma de monografia, no contexto da
história da historiografia:

A história dos métodos históricos na forma monográfica


tem sido uma atividade rara. No entanto, muitas vezes
ela é encaminhada em obras que possuem outros
objetivos, como no livro de Ritter, História da
Historiografia, ou no de H. Bresslau, História da
Monumenta Germaniae Historica. Tais obras podem ser
interpretadas como um tipo específico de história da
historiografia. O texto de J. Wach, História da
compreensão hermenêutica, pertence a esse tipo, assim
como a avaliação e J. Goldfriedrich da doutrina
historicista a respeito da importância das ideias
históricas. (BLANKE, 2006, p. 30-31).
O quinto tipo de história da historiografia, a história dos
métodos, conforme a exposição do excerto acima, é, sobretudo, o
tipo de história que visamos a escrever em nosso trabalho. A
história da reificação do método de crítica textual formulado por
Lachmann no século XIX e o modo como se tornou inquestionável
no mundo lusófono é, sobretudo, a matéria da tese que objetivamos
escrever.
Há ainda um outro modo de escrever historiografia, a ―história
das ideias históricas‖, que se pauta no estudo verificação de
―tendências da história intelectual‖. Nesse caso, o historiador visa a
analisar algumas das formas de pensamento histórico:

O foco do sexto tipo de história da historiografia não é o


método, nem um tema específico ou modelo de

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 378


Proposta de uma história crítica da Crítica Textual no mundo lusófono

interpretação, mas sim tendências da história


intelectual. Tais obras não possuem relação necessária
com a história como matéria acadêmica.
Frequentemente, elas tratam de estruturas do
pensamento histórico como parte da herança cultural. O
exemplo mais famoso é a obra tardia de F. Meinecke, A
origem do historicismo, que expõe a gênese das ideias de
desenvolvimento e individualidade, assim como a
origem do historicismo (entendido como tópico da
história da filosofia e como weltanschauung) e trata do
progresso triunfante e da síntese desses dois conceitos
teórico [...] (BLANKE, 2006, p. 31).

No caso da escrita da filologia, observando-se a relação entre


esta disciplina e a historiografia, há o problema fundamental da
divergência entre o método praticado costumeiramente em Portugal
e Brasil e a historicidade dos objetos que se busca interpretar por
meio do método. Para os historiadores, é possível compor ainda
uma história da historiografia cujo foco seja ―as funções do
pensamento histórico‖, em que o mais importante é realizar uma
reflexão dos efeitos dos produtos da historiografia:

Uma área separada da história da historiografia é a


análise das funções sociais da historiografia. Há uma
série de trabalhos que tratam dessa questão [...] No
entanto, na maior parte das vezes, tal tema é tratado no
contexto de problemas mais amplos. Não só
historiadores produzem essas obras [...] (BLANKE, 2006,
p. 31-32).

Nesse sentido, podemos nos perguntar: quais as funções


sociais da filologia? Tal questionamento faz sentido quando
pensamos que a filologia de cunho lachmanniano opera o
reducionismo das lições, reducionismo baseado na crença da relação
entre ―unidade de expressão e unidade de sujeito‖ (MOREIRA,
2011a), o que pode ser considerado um prejuízo histórico, devido
ao empobrecimento das tradições textuais, ao reduzir-se a
multiplicidade de variantes textuais à unidade de lição fixada pelo
filólogo.
É importante destacarmos o último modo de compor uma
história da historiografia, a ―história da historiografia teoricamente
orientada‖, que constitui um tipo de autorreflexão, no momento em
que o exame recai sobre os seus próprios estatutos e

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 379


Marinês de Jesus ROCHA & Marcello MOREIRA

desenvolvimentos:

O último tipo independente de história da historiografia


é caracterizado pela tentativa de captar o
desenvolvimento da disciplina no interior de sua
reflexão metateórica. Poder-se-ia ver a história
meramente como um caso especial da ―história dos
problemas‖, assim como caracterizados anteriormente,
mas isso, em minha opinião, não seria suficiente.
Exatamente porque a reflexão metateórica é distinta da
prática historiográfica – costuma-se afirmar que ela se
caracteriza por um excedente utópico – é que ela abre,
como diretriz de uma história da disciplina,
possibilidades de reconstrução de realidades passadas
da história como atividade profissionalmente
estruturada. (BLANKE, 2006, p. 32).

Quando pensamos na história da filologia em relação ao


último ponto explicitado no excerto acima, é possível refletirmos
sobre o modo como a filologia, desde que houve a sistematização do
método de crítica textual lachmanniano, em grande medida, deixou
de produzir reflexões a respeito do estatuto dos conceitos aplicados
na produção das edições, deixando ao mesmo tempo de haver
pensamento crítico em relação ao próprio método. Em
contrapartida, há uma importante função da história da
historiografia que se relaciona ao exame dos ―padrões científicos‖. É
importante afirmamos que ao produzir uma história de autores de
estudos crítico-filológicos, é necessária a realização de um exame
dos padrões da ideologia e de uma análise de sua adequação.

II. A função da crítica textual

A produção da história da historiografia está relacionada a


duas importantes funções distintas e contrárias: uma afirmativa e a
outra crítica. A primeira está vinculada ao interesse de manutenção
da ―ideologia‖, de tal modo que não há demonstração de mudanças
e transformações na história:

(1) A afirmação da ideologia oficial é um importante,


senão o mais importante, aspecto da reconstrução da
história. Um exemplo seria o das atividades acadêmicas
no assim chamado socialismo real, assim como ele se
desenvolve na RDA. O elemento afirmativo é influente

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 380


Proposta de uma história crítica da Crítica Textual no mundo lusófono

em várias publicações que se apresentam como não


possuindo um caráter ideológico. [...] No texto
panorâmico de Below, Historiografia Alemã, e desde as
guerras de libertação até os dias atuais, todos os dados
são conectados em função de uma tradição. A história
da historiografia de Below é essencialmente uma
polêmica política: ele luta contra o liberalismo, contra o
iluminismo e contra a institucionalização da Sociologia
como disciplina independente. Ele advoga uma visão
estatística da história e uma forma romântica de
pensamento. Below identifica as posições que ele
apaixonadamente defende como aquelas que teriam sido
provadas cientificamente. A história da disciplina é
apresentada como a sobrevivência do mais preparado,
como uma derivação histórico-historiográfica, isto é,
uma determinada posição político-científica ganha as
garantias da tradição assim como o seguro de
explicações paradigmáticas e sistemáticas que
mutuamente se apoiam. [...] (BLANKE, 2006, p. 32-33/
grifos do autor).

A produção de história da historiografia cujo objetivo é


manter a tradição e a ideologia se diversifica nos inúmeros
exemplos apresentados por Blanke (2006) no âmbito da
historiografia alemã e demonstra como essa tendência é forte em
muitos contextos historiográficos que respondem a uma
necessidade de manutenção de um dado sistema ideológico. Para
nós, é possível identificar a primeira função, em consonância com a
exposição do excerto acima, ao papel desenvolvido pelo
lachmannismo e neolachamannismo no âmbito da história da
filologia: os retornos à história da filologia produzidos até os dias
de hoje, pelos aderentes ao método de Lachmann, visam sempre a
mostrar o modo como, passo a passo, é possível produzir
explicações, comentários e edições críticas dos textos os mais
diversos em todos os tempos, sempre de uma mesma maneira, e
como todos esses trabalhos filológicos são a validação de um
truísmo, o da validade transistórica de um procedimento crítico. Por
isso, estudiosos que se filiam ao método produzem a afirmação de
uma ideologia ou crença, oriunda da circularidade da argumentação
e da demonstração da validade metodológica, como bem o
demonstrou Moreira (2011a). O empreendimento histórico dos
lachmannianos e neolachmannianos pode ser entendido como
parcial, por se pautar, por exemplo, na transistorização da restitutio

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 381


Marinês de Jesus ROCHA & Marcello MOREIRA

textus, e por crerem que categorias como "autor", dentre outras, não
sofrem variação no tempo e no espaço. Moreira (2011b) fala da
manutenção do paradigma lachmanniano, demonstrando o modo
como a ausência de mudanças nas finalidades do trabalho filológico
se relaciona à falta de reflexões historiográficas no âmbito da
filologia.
Há, no entanto, um outro caminho para entender a história
da historiografia que permite pensar criticamente a manutenção da
ideologia dominante e os objetivos a que se presta uma
historiografia voltada para a tradição:

Diante disso, parece que uma atitude cética com relação


à ideia de afirmação é essencial. Na verdade, certa dose
de rebeldia parece ser parte indispensável de uma
postura contemporânea com relação à história da
historiografia. Qualquer posição teórica que quer
sobreviver requer tradições positivas. A parte do
criticismo das tradições, o esforço predominante é de
mostrar que historiadores caídos no esquecimento são,
na verdade, antecipadores de uma concepção de história
que em vários momentos se apresenta como tendo um
caráter exclusivamente progressivo. [...] (BLANKE, 2006,
p. 33-34).

Contrariamente a uma postura semelhante à descrita no


excerto acima, a filologia lachmanniana parece ter mantido, por um
período significativo de tempo, os objetivos relacionados à
restituição do texto autoral, sem se desvincular das finalidades
iniciais ―de construção de representações coesivas e identitárias‖
(MOREIRA, 2011), que a animou no século XIX:

[...] Para a filologia do século XIX, cuja preocupação


central era resgatar os monumentos literários da
nacionalidade em que esta se tornava manifesta em seu
continuo devir, a ideia de autoria era também ela
central, pois representava, sob a rubrica da
―genialidade‖, o ápice da criatividade de uma
coletividade que se estruturava na forma do moderno
Estado-nação. Capital simbólico, em seu conjunto, de
uma coletividade que então se organizava, coube a
filologia do século XIX a tarefa de brunir esses
monumentos para que se nos mostrassem em seu
―prístino esplendor‖, aquele do que se supunha ser a
parole autoral original. Função política de construção de
representações coesivas e identitárias, a filologia, por

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 382


Proposta de uma história crítica da Crítica Textual no mundo lusófono
meio do trabalho de restituição que se propôs,
―denotou‖ ―o seu lugar e importância na vida cotidiana,
seu papel na vida pública e os interesses que
determinam seu processo cognitivo como fatores
decisivos para sua forma‖, historicamente situada no
século XIX, mas que perdurou século XX adentro.
(MOREIRA, 2011, p. 41/ grifos do autor).
Os princípios críticos do lachmannismo são repetidos nos
manuais de crítica textual e ecdótica publicados em Portugal e no
Brasil, que tornam eficaz a autoridade de seus lugares comuns
críticos, e que também tornam o estudo crítico da história dessa
disciplina um processo ―impensável‖ para a maioria dos seus
adeptos.
Um pensamento contrário ao da afirmação da ideologia dá
origem à segunda função da historiografia: a função crítica. Sendo
assim, é imprescindível que haja sobre a afirmação da tradição um
olhar reflexivo do historiador, que o leve a perceber as motivações
ocultas da necessidade de que a história seja escrita sempre de uma
mesma forma:

O oposto exato do conceito de afirmação é o esforço de


escrever a história da historiografia com intenção de
criticar princípios ideológicos: o objetivo é superar
criticamente visões de mundo e posições políticas. Essa
é a intenção do historiador do stalinismo tardio W.
Berthold em seu livro ―[...] Passar Fome e Obedecer‖, no
qual ele impiedosamente critica o papel social de G.
Ritter: Ritter é apresentado como ideólogo e militarista
da OTAN. (BLANKE, 2006, p. 34/ grifos do autor).

Há dentre as possibilidades que o historiador tem de agir


criticamente, produzir estudos historiográficos que se insiram no
grupo daqueles contrários à afirmação da ideologia, ao produzirem
um outro tipo de tradição, aquela dos que são ―heréticos‖, pois eles
dão origem a uma sequência de novas contribuições que
desnaturalizam uma determinada posição oficial.

Considerações finais

A história da filologia brasileira e portuguesa que se quer


escrever, desde os primeiros filólogos, como Carolina Michaelis de
Vasconcellos e Leite de Vasconcellos, pode principiar pela análise e
crítica de lugares comuns críticos do lachmannismo e

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 383


Marinês de Jesus ROCHA & Marcello MOREIRA

neolachmanismo, que são apropriados de forma incessante por


muitos pesquisadores. A partir de contribuições como as de Blanke
(2006), é possível pensar uma história crítica da filologia, que, por
analogia com a história da historiografia, conjugue as possibilidades
que os diversos tipos de história da historiografia representam, e
que permitem discutir a validade dos conceitos críticos e categorias
lachmannianos e neolachmannianos.

Referências

BLANKE, Horst Walter. ―Para uma nova historia da historiografia‖. In:


MALERBA, Jurandir (Org.). A História Escrita: Teoria e história da
historiografia. São Paulo: Contexto, 2006, pp. 27-64.

BURKE, Peter. A Revolução Francesa da Historiografia: A Escola dos Annales


(1929-1989). São Paulo: UNESP, 1992.

______. O que é a história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005.

HANSEN, João Adolfo & MOREIRA, Marcello. Para que Todos entendais:
Poesia Atribuída a Gregório de Matos e Guerra: Letrados, Manuscritura,
Retórica, autoria, obra e público na Bahia dos séculos XVII e XVIII - Vol. 5.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

MOREIRA, Marcello. Critica Textualis in Caelum Revocata? Uma Proposta de


Edição e Estudo da Tradição de Gregório de Matos e Guerra. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2011a.

______. Edição Crítica Da Écloga Piscatória De Santa Rita Durão (Ou Um


Pequeno ensaio Filológico). Cultura - Revista de História e Teoria das Ideias.
Lisboa, Vol. 28/ 2011b. Disponível em: https://cultura.revues.org/160.
Acesso em: 21/09/2016

______. Reflexão inicial para a produção de uma edição crítica da lírica de


Luís de Camões. Convergência Lusíada n. 27, janeiro - junho de 2012, p. 5-
10. Disponível em:

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 384


Proposta de uma história crítica da Crítica Textual no mundo lusófono

http://www.realgabinete.com.br/revistaconvergencia/pdf/1101.pdf. Acesso
em: 21/09/2016

ROCHA, Marinês de Jesus. Crítica Textual Neolachamanniana e Memória


Disciplinar – Os Lugares comuns Críticos da Filologia Brasileira. Berlim:
Novas Edições Acadêmicas, 2016.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 385


AS DIGRESSÕES NO CINEGÉTICO DE GRATTIUS
FALISCUS

Matheus TREVIZAM
UFMG

Resumo: Nesta exposição, depois de oferecer informações sobre a


pertença de uma obra como o Cinegético, de Grattius Faliscus, a
duas tradições literárias antigas – a das obras de conteúdo geral
sobre a caça e a da poesia didática –, focalizamo-nos no aspecto dos
excursos desse poema. Três seriam as passagens que se encaixam
como digressões no Cinegético, situando-se elas entre v. 95-107, v.
307-327 e v. 427-464. A partir desse mapeamento prévio de um
corpus, passou-se a fazer comentários sobre a tessitura poética e a
relação de cada excurso com o entorno textual de sua escrita, no
Cinegético.

Palavras-chave: Poesia didática; Grattius Faliscus; Caça; Digressão.

Introdução: vinculações temáticas e de gênero do Cinegético de


Grattius Faliscus

Falando no Cinegético de Grattius Faliscus, autor romano dos


tempos do imperador Augusto, podemos situar essa produção em
mais de uma tradição compositiva. De início, então, referimo-nos ao
fato de que a escrita de obras antigas, em grego e latim, cujo
assunto seja as técnicas de caça não constitui algo isolado: assim,
além de Grattius e do escritor ateniense de que passamos a tratar
logo abaixo, temos ainda notícia da feitura de textos cinegéticos, na
Antiguidade, ao menos através dos trabalhos de Opiano de
Anazarbo (em grego) – séc. II d.C. – e de Nemesiano de Cartago (em
latim) – séc. III d.C.
Já Xenofonte ateniense, escritor do séc. V a.C., compusera
uma obra homônima sobre esse tema técnico, a qual por vezes se
tem descrito como um texto de sua juventude (ANDERSON, 1974, p.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
As digressões no Cinegético de Grattius Faliscus

183). Nesse Cinegético grego, vários temas clássicos, em obras


dedicadas a desenvolver conteúdos sobre a caça, já estão presentes:
entre eles, poderíamos mencionar os preceitos relativos aos
cuidados com os cães; os tipos de redes de utilidade na captura de
animais silvestres;1 o rastro deixado por esses mesmos animais; a
perseguição às lebres etc.
Quanto aos homens, nesse Cinegético, pode-se dizer que
sempre hão de caçar a pé – não a cavalo;2 que se servem de lanças
como armas de ataque aos javalis, conforme retratado em mais de
um vaso grego; que devem fitar os olhos das presas, averiguando as
direções aonde intentam fugir; que necessitam saber escapar diante
da queda acidental em presença de um javali e como salvar um
amigo, em circunstâncias idênticas (ANDERSON, 1974, p. 184).
Inegáveis semelhanças temáticas à parte, entre o Cinegético
de Xenofonte e o de Grattius Faliscus, convém ter em mente que a
estruturação literária da segunda obra não se identifica com a de
um tratado, tendo, antes, raízes fincadas em uma tipologia poética
iniciada com Os trabalhos e os dias de Hesíodo (séc. VIII-VII a.C.). O
Cinegético de Grattius, então, foi escrito como um pequeno poema
didático a conter, do modo (incompleto) como agora se nos
apresenta, 541 versos. Isso significa que, além de o texto se
direcionar para seu exterior de maneira ―professoral‖ – o que pode
ser notado, inclusive, pelo emprego de formas verbais imperativas
de segunda pessoa –,3 ele ainda inclui o tratamento sistemático e
razoavelmente técnico do assunto escolhido (a caça) – MOYA, 2007,
p. 465/TOOHEY, 2004, p. 241 –, compõe-se do início ao fim por
meio do metro hexâmetro datílico, apresenta várias digressões ao
longo de sua tessitura e deve ter contado, quando ainda inteiro em
sua extensão, com razoável quantia adicional de versos,4 pois a

1
Estes mesmos tópicos técnicos (cães e redes) se encontram abordados, no
Cinegético de Grattius, respectivamente entre v. 150-496; v. 38-74.
2
O poema didático de que nos ocupamos, porém, trata dos equinos, nele
considerados instrumentos de valia para os caçadores, entre v. 497-441.
3
GRATTIUS, Cynegeticon 468-469: At tu praecipitem qua spes est proxima
labem/ aggredere– ―Tu, porém, por onde os prospectos são os mais
prováveis, a furiosa pestilência ataca‖ (trad. M. Trevizam).
4
Peter Toohey (2010, p. 4) aventa a extensão máxima inicial, para os poemas
didáticos antigos, de mais ou menos oitocentos versos, mas, ao menos,
quatrocentos.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 387
Matheus TREVIZAM

abordagem do último assunto do poema, a equinocultura, restringe-


se agora apenas a mencionar algumas raças da espécie envolvida,
não os tratos cabíveis.
Dentre todos os traços acima elencados para a vinculação
desse Cinegético à tipologia didática, interessa-nos, na sequência,
destacar o aspecto relacionado às digressões entremeadas por
Grattius em sua obra, comentando aspectos como a tessitura
poética ou significativa dos excertos escolhidos e sua relação com o
entorno ―pedagógico‖ no qual se encontram.
Composição e encaixe das digressões no Cinegético

Segundo a divisão de partes do Cinegético apresentada pela


edição espanhola da obra, feita sob a responsabilidade de José A. C.
Rodríguez (1984, p. 15), haveria ao todo três digressões na obra
inteira. Elas seriam um excurso sobre Dércilo, suposto ―descobridor‖
das técnicas cinegéticas, o qual se encontra entre v. 95-107; depois,
outro excurso sobre o luxo, conectando-se ao tema do modo de
criação das ninhadas caninas (e situando-se entre v. 307-327);
finalmente, a derradeira digressão do Cinegético corresponde, para
Rodríguez, ao excurso sobre certa gruta de Vulcano situada na
Sicília, estendendo-se de v. 427 a 464.
Quanto à digressão atinente ao nome de Dércilo, um
primeiro dado de importância diz respeito a ser essa personagem,
talvez, a mesma que se nomeia, nas Geórgicas virgilianas, ―Aristeu‖,
filho de Apolo e da ninfa Cirene.5 Ora, naquele contexto, víamos que
se tratava de uma espécie de criador de abelhas mítico, o qual,
depois de súbito interesse por Eurídice, a esposa de Orfeu, decidiu
persegui-la pelos campos; a moça, então, para esquivar-se da
―captura‖ erótica por ele, saiu a correr em fuga, disso tendo advindo
o acidente de ela pisar sobre uma víbora mortal, fazendo-a morrer
na flor da juventude (IV, 457-459).
Na segunda parte do relato do mito de Aristeu, nas mesmas
Geórgicas IV (v. 530-559), esse apicultor, já bem informado sobre o
motivo atinente à perda de todos os seus enxames – tratava-se de
uma vingança dos manes de Orfeu e Eurídice, segundo explicações

5
Cf. nota a v. 102, na edição espanhola do Cinegético citada (RODRÍGUEZ,
1984, p. 24); cf. também nota ad locum no comentário ao Cinegético escrito
por Verdière (1964b, p. 242).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 388
As digressões no Cinegético de Grattius Faliscus

do deus marinho Proteu –, decide-se por adotar, sob a orientação de


sua mãe, um conjunto de práticas expiatórias, nas quais divisamos,
etiologicamente, as origens da técnica da bugonia, como referida em
IV, 315-316:

Quis deus hanc, Musae, quis nobis extudit artem? 315


Vnde noua ingressus hominum experientia cepit ?6

De acordo com Pierre Grimal (1963, p. 51), além de honrado


na Arcádia pela ―descoberta‖ da apicultura, Aristeu também recebia
um culto na região africana da Líbia, por ali ter introduzido,
segundo a lenda, a cultura da planta denominada silphium, de
emprego como condimento e remédio, na Antiguidade. O mesmo
lexicógrafo (GRIMAL, 1963, p. 51), ainda, explica que esses e outros
saberes – incluindo a descoberta da viticultura, da produção do leite
de ovelhas ordenhadas e das redes de caça – tradicionalmente
atribuídos à personagem de Aristeu, ou, como o chama o Cinegético,
―Dércilo‖, advêm de ter sido, conforme contam as lendas a envolver
o seu nome, educado pelo centauro Quíron,7 de grande sabedoria,
pelas Musas de Ftia, na Tessália, e pelas ninfas.
Apesar, como se nota pelo teor de nossas palavras, da
conservação da face de Aristeu/Dércilo como heuretés e benfazejo
civilizador dos homens, quando cotejamos as caracterizações
apresentadas para ele nas Geórgicas e no Cinegético de Grattius, é
preciso notar, ainda comparativamente, que a segunda digressão
envolvida assume traços bem peculiares. Desse modo, longe de
constituir uma complexa narrativa – ademais entrelaçada, no quarto
livro geórgico, à história dos amores vãos de Orfeu e Eurídice, com
ela constituindo um delicado epýllion –, o excurso compreendido
nesse poema de caça desvia-se para o âmbito de um breve elogio a
Dércilo: sobre ele, com efeito, diz o autor tratar-se de alguém
―afortunado‖ (felix), por primeiro ter sido o descobridor, pelo
―empenho‖ (industria), de tamanhas técnicas (as da caça) – v. 95-96;
de um deus ou ―mente próxima dos deuses‖ (proxima diuos mens),

6
VIRGÍLIO, Geórgicas IV, 315-316: ―Qual deus, Musas, qual, forjou-nos esta
técnica? Donde essa nova iniciativa adentrou o mundo humano?‖ (trad. M.
Trevizam)
7
Esse centauro também surge como ―mestre‖ de Aquiles em OVÍDIO, Ars
amatoria I, 11-12.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 389
Matheus TREVIZAM

que ―dirigiu grandiosamente seu penetrante olhar às sombras


escuras e banhou de luz o povo ignorante‖ (in caecas aciem quae
magna tenebras/ egit et ignarum perfudit lumine uulgus) – v. 97-98;
de um ―ancião arcádio‖ (Arcadium...senem) visto antes de todos por
Mênalo, seu ―instigador‖ (auctor), e por Amiclas lacedemônia ―a
estender redes por vales não habituados‖ (per non adsuetas
metantem retia ualles) – v. 102; daquele a comportar-se do modo
―mais justo‖ (iustior) e o ―mais respeitador dos deuses‖ (diuom
obseruantior) – v. 103-104; de alguém instruído pela ―deusa das
espessuras‖ /Diana (dea nemorum) nos primeiros campos,
dignando-se ela a inscrevê-lo como autor de uma ―importante obra‖
(operi... magno) – v. 105-106; daquele destinado a ―ir-se e difundir
suas técnicas entre os povos‖ (adire suas et pandere gentibus artes)
– v. 107.
Um elemento que se destaca nesse elogio de Dércilo em
Cinegético é, obviamente, a ênfase no ineditismo de várias de suas
realizações, podendo-se documentar, no texto, através de palavras
como o adjetivo primum – v. 95 e v. 101 – e o mesmo vocábulo
flexionado no caso ablativo – primis, v. 105 –, sempre em referência
a tal face dessa personagem. Também se evidenciam as honrosas
ligações de Dércilo com o sagrado, aventadas já na pergunta sobre
sua identidade a preencher v. 96-98 – a qual aponta, quiçá, para sua
filiação e natureza superior à do comum dos mortais –,8 mas de
novo postas em cena na súplica a Diana (v. 99), para que a
responda,9 e ao dizer o poeta que a deusa o ―instruiu nos primeiros
campos‖ (primisfinxit in aruis, v. 105), como dissemos,
provavelmente a respeito das caçadas.
Outro traço em relevo nessa caracterização, a saber, as
―exacerbadas‖ virtudes de Dércilo, pode ser divisado pelo próprio
emprego de dois adjetivos no grau comparativo, postos em versos
contíguos (v. 103-104) e com referência a tal personagem. Esses
adjetivos, ainda, encaixam-se em versos de mais de um modo

8
GRATTIUS, Cynegeticon 96-98: (...) deus ille an proxima diuos/ mens fuit, in
caecas aciem quae magna tenebras/ egit et ignarum perfudit lumine uulgus?
– ―(...) foi ele um deus ou mente próxima dos deuses, que dirigiu
grandiosamente seu penetrante olhar às sombras escuras e banhou de luz o
povo ignorante?‖ (trad. M. Trevizam)
9
GRATTIUS, Cynegeticon 99: Dic age, Pierio, fas est, Diana, ministro. – ―Fala,
eia – é lícito, Diana –, a um servidor das Musas‖ (trad. M. Trevizam).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 390
As digressões no Cinegético de Grattius Faliscus

caracterizados por delicada musicalidade reiterativa, pois se


constroem com marcada aliteração em ―t‖ (com oito ocorrências no
par) e assonância em ―i‖ (com oito ocorrências), com a repetição do
advérbio haut (―não‖) em seus inícios, com a retomada de algo dos
sons de Dercylon (v. 103) na palavra diuom (v. 104) etc.
Quando nos colocamos, a respeito da primeira digressão
acima considerada, a questão de como ela se insere no entorno
compositivo do poema didático em pauta, deve-se dizer que foi
posta entre o tópico técnico dos laços e armadilhas (v. 89-94) e
aquele sobre a feitura dos venábulos e lanças (v. 108-126). Ora,
como se disse acima, sendo Dércilo o heuretés das técnicas a
envolverem as caçadas, nada mais natural que a inserção de um
excerto sobre essa personagem em uma parte do Cinegético na qual
alguns artefatos indispensáveis para a captura de animais são
discutidos e didaticamente apresentados ao público. Afinal, assim
se consegue, sem introduzir dados temáticos ―estranhos‖, propiciar
efeito da variação, por um instante desviando a atenção do público
de preceitos para confeccionar lanças e afins ao oferecimento de
informações pertinentes, pois que passam a torná-lo ciente das
origens (míticas) da atividade humana pela qual veio a interessar-se.
A digressão seguinte, situada entre v. 307-327, apesar de se
encontrar imbricada no assunto periférico do modo de criar as
ninhadas de cães de caça, conforme vimos, acaba preenchendo com
assuntos de natureza moral a maior parte da seção em que se acha.
De fato, sobre a criação dos filhotes da espécie canina, as poucas
informações oferecidas pelos versos do Cinegético quase se
restringem, nesse contexto, a recomendar que se lhes deem leite e
―meras papas‖ (facili... maza).
Em contrapartida, transpondo o foco preceituador desses
pequenos animais para os seres humanos, já em v. 310 o autor do
Cinegético passa a advertir da inutilidade, ou melhor, dos perigos do
luxus10 também no tocante à nossa própria espécie. Assim, o
magister de caça e, neste ponto, de moral, lembra que ―coisa alguma
devora mais os sentidos humanos, se a razão não a tolhe e obsta
aos vícios insinuantes‖ (humanos non est magis altera sensus/ tollit
ni ratio et uitiis adeuntibus obstat) – v. 310-311; que ―tal é o
malefício responsável pela ruína dos reis de Faros/do Egito,

10
―Suntuosidade‖, ―intemperança‖, ―inação‖, ―vida afeminada‖ etc.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 391
Matheus TREVIZAM

enquanto bebem vinhos antigos em taças de gemas e colhem o


Ganges produtor de nardo,11 servindo a seus vícios‖ (haec illa est
Pharios quae fregit noxia reges,/ dum seruata cauis potant Mareotica
gemmis/ nardiferumque metunt Gangen uitiisque ministrant) – v.
312-314; que esse também foi o caminho de ruína da Lídia, sob o
aquemênida Ciro, ―embora fosse rica e dourada pelos veios de seu
rio‖ (diues eras <ac> fluminis aurea uenis) – v. 316; que também a
Grécia, para não lhe restar nada a possuir, ―enquanto reúne as
técnicas que o luxo inventou e segue com loucura a culpa
estrangeira, muito e muitas vezes faltou à dignidade dos ancestrais‖
(luxuriae fictas dum colligis artes/ et sequeris demens alienam (...)
culpam,/ o quantum et quotiens decoris frustrata paterni) – v. 318-
320.
Esses males, no entanto, de acordo com tipos de pensamento
amiúde expressos pela poesia didática romana, não afligiram os
romanos de outros tempos:

Mas de que tipo, quão frugal a mesa dos nossos


Camilos!12 Como te vestias, depois de tantos triunfos,
Serrano!13 Assim esses, por sua natureza e índole de
antiga bravura, impuseram Roma como capital do
mundo, e por eles foi elevada aos céus a bravura,
alargando-se às mais altas honras.14
Na passagem das Laudes Italiae – Geórgicas II, 143-176 –,
assim, Virgílio já elogiava, ao lado da fartura natural da terra em
jogo, de suas belas cidades, de sua localização geográfica
privilegiada, de seus rios e lagos e de suas minas de prata e cobre, a
bravura e a pujança bélica de muitos dos filhos da península: esses

11
Segundo nota ad locum de José A. C. Rodríguez (1984, p. 34), retirava-se
do nardo do Indo uma essência de uso opcional para perfumar os vinhos.
12
M. Fúrio Camilo, aqui aludido retoricamente no plural, foi o conquistador
de Veii e salvou Roma depois do desastre de Ália; sua proverbial pobreza
encontra-se documentada em Horácio (Odes I, XII, 42 et seq.).
13
C. Atílio Régulo Serrano foi cônsul em 257 e 250 a.C. Teria deixado os
trabalhos agrícolas para encarregar-se de comandos militares, como conta
Virgílio (Eneida VI, 845).
14
GRATTIUS, Cynegeticon 326-330: At qualis nostris, quam simplex mensa
Camillis!/ Qui tibi cultus erat post tot, Serrane, triumphos!/ Ergo illi ex
habituuirtutisque indole priscae/ imposuere orbi Romam caput, actaque ab
illis/ ad caelum uirtus summosque tetendit honores (trad. M. Trevizam).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 392
As digressões no Cinegético de Grattius Faliscus

seriam, de acordo com a listagem presente em II, 167-170, os


marsos, a ―juventude sabélica‖ (pubem Sabellam – v. 167), o ―lígure
habituado a sofrer‖ (assuetum malo Ligurem – v. 168), os ―volscos
armados de dardos‖ (Volscos uerutos, v. 168), os Décios, os Mários,
os ―grandes Camilos‖ (magnos Camilos – v. 169), os ―Cipiões duros
na guerra‖ (Scipiadas duros bello – v. 170) e ―César, o maior‖
(maxime Caesar – v. 170).15
É, contudo, na longa passagem do elogio do campo(II, 458-
540), a qual constitui uma espécie de fecho de ouro desse segundo
livro geórgico, que encontramos maiores analogias com o processo
estruturador dos raciocínios na digressão do Cinegético tratada
aqui. De acordo com as análises elaboradas por Alessandro
Barchiesi (1982, p. 67-68) para o trecho virgiliano sob consideração,
evidencia-se nele que o mantuano desejou fazer o louvor da vida
camponesa, sobretudo, contrapondo-lhe em negativo vários males
citadinos:16 entre esses, poderíamos citar o afluxo descomunal e
doentio de clientes às casas dos ricos, a cada manhã (v. 461-462); a
cobiça por bens de consumo de preço elevado, como os batentes
incrustados com casco de tartaruga (v. 463), os bronzes efireus (v.
464) etc. A tais
males e formas de desassossego, de imediato, contrapõem-se em
Geórgicas II benefícios modestos, mas facilmente acessíveis aos
camponeses e isentos de riscos de qualquer natureza, a exemplo de
um ―plácido descanso‖ (secura quies – v. 467), de uma ―vida
ignorante do engano‖ (necia fallere uita – v. 467) e ―rica em muitos
recursos‖ (diues opum uariarum – v. 468), dos ―lagos vivos‖ (uiui
lacus – v. 469), dos ―vales frescos‖ (frigida Tempe – v. 469), dos
―mugidos dos bois‖ (mugitus boum – v. 470), dos ―sonos suaves sob
uma árvore‖ (molles sub arbori somnos – v. 470), entre outros.17

15
―César‖ em geral se refere, nas Geórgicas – exceto em I, 466 –, a Otaviano
Augusto, não a Caio Júlio César.
16
Cf. também BARCHIESI, 1982, p. 56: ―L‘opposizione tra città e campagna è
fissata anzitutto (vv. 458-474) nei suoi termini più generali, come una sorta
di opposizione privativa. Ai bisogni non naturali soddisfatti dal lusso dalla
città, risponde la campagna come luogo che appaga i bisogni naturali della
vita, e insieme fornisce le basi di un‘esistenza frugale e pia‖.
17
Em Geórgicas II, 495 et seq. de novo se inicia uma seção, no mesmo
excurso, em que se contrapõem em negativo os males urbanos (v. 495-512)
às alegrias descomplicadas dos camponeses (v. 513-531).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 393
Matheus TREVIZAM

Desse modo, cremos que, na digressão referente à moral


cabível para a rotina dos caçadores e de seus auxiliares irracionais
(os cães), Grattius tenha operado uma espécie de fusão de ideias
dispersas em dois pontos distintos do livro II das Geórgicas, pois,
por um lado – à maneira do procedimento de Virgílio em v. 143-176
–, prefere claramente atribuir maior virtude aos próprios itálicos, em
geral; por outro, de acordo com um princípio estruturador de
enorme importância na passagem virgiliana do elogio do campo –
Geórgicas II, 458-540 –, o autor do Cinegético também contrapôs na
mesma digressão, contrastivamente, as vantagens de um modo de
ser (o dos indivíduos ―locais‖) aos excessos encontrados, desta feita,
não nas cidades, mas sim entre vários povos estrangeiros (egípcios,
lídios e gregos).
Um aspecto essencial a ser destacado sobre esse excurso do
Cinegético diz respeito a que ele parece encaixar-se bem, mais do
que no entorno imediato no qual o poeta o situou,18 em certo pano
de fundo ―abstrato‖ a perpassar o todo da obra. Mais de um
comentador (TOOHEY, 2010, p. 198-199; VERDIÈRE, 1964a, p. 62),
assim, tem chamado a atenção para um ponto como a difundida
valorização da razão nesse ―espécime‖ da tipologia didática, como
se, inclusive, tal característica de sábios humanos (ou dos deuses)
pudesse ser alinhada com a atividade da caça, mas se distinguisse
do mero estado da natureza e de alguns traços psíquicos
negativamente avaliados (uiolentia, furor, gosto pela luxuria).19
Lembremo-nos de que, em v. 311 da digressão aqui considerada,
Grattius enfatizara justo a necessidade de a razão tolher o luxus
(―suntuosidade‖) e obstar aos vícios insinuantes.
A derradeira digressão do Cinegético sobre a qual, aqui,
vamo-nos propor a discorrer refere-se, dissemos, à passagem da
gruta de Vulcano – v. 427 a 464 –, situada pelo poeta em algum
ponto inominado da Sicília. Depois de um trecho apenas descritivo –
v. 430-434 –, o qual contribui para atribuir ao local em pauta
colorações de mistério, com suas imagens de ―sinuosidades (da

18
Veja-se nota a v. 327 na edição espanhola do Cinegético (RODRÍGUEZ,
1984, p. 35): ―A pesar de esta precisión final del poeta, el excurso
moralizante sobre el lujo, tradicional por lo demás, parece inadecuado si se
piensa que ha sido motivado por el consejo de una comida sencilla para los
cachorros‖.
19
―Excesso‖, ―fausto‖, ―luxo‖, ―dissolução‖ etc.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 394
As digressões no Cinegético de Grattius Faliscus

gruta) abauladas para dentro‖ (caui/ introrsum reditus) – v. 430-431;


―altas muralhas de uma negra mata a fechar o entorno‖ (circum
atrae moenia siluae/ alta premunt) – v. 431-432; ―rios que irrompem
de gargantas semiqueimadas‖ (rupti ambustis faucibus amnes) – v.
432; e ―charcos parados, umedecidos por veios e óleo vivo‖ (stagna
sedent uenis oleoque madentia uiuo) – v. 434, Grattius passa a
abordar o comportamento dos fiéis nesse sítio sagrado.
Esses homens se dirigem para lá, a saber, a fim de buscarem
a cura para animais enfermos, postos sob sua guarda (v. 435-436).
Então, fazem preces a Vulcano – habitante efetivo de tais paragens,
segundo a crença dos fiéis –, pelas quais lhe rogam o alívio dos
males de que padecem, confrontados com a peste em seus
―rebanhos de gado‖ (pecuaria – v. 435). Além das súplicas
verbalmente endereçadas ao deus, também integram a espécie de
rito que nos é apresentado nesse contexto os gestos de oferecer
―rico incenso‖ (pinguia... tura – v. 441-442) sobre o altar e de
cumulá-lo com ―ramos férteis‖ (ramis felicibus – v. 442).
―Depois disso, das cavernas em frente e do peito rompido do
monte, vem (Vulcano) a retumbar com os Austros, e ele próprio
resplandece, em abundante rio de fogo‖ (aduersis specibus ruptoque
e pectore montis/ uenit ouans Austris et multo flumine flammae/
emicat ipse – v. 444-446). Então, o ―sacerdote‖ (sacerdos – v. 446)
convida a se afastarem do lugar santo todos aqueles culpados de
um ―crime‖ (scelus – v. 449), ou apenas desejosos de agir mal. Entre
os atos ilícitos mencionados por Grattius como indignos da
presença de Vulcano e de seu recinto, podemos citar o desacato a
um suplicante (v. 451), os atentados contra a vida dos irmãos ou de
um bom amigo, por dinheiro (v. 452-453), e o ultraje aos deuses
pátrios (v. 453).
Desse modo, os implicados em atos dessa natureza, caso
ousem vir ao lugar de culto em pauta, só têm a esperar a ira
vingadora do deus (v. 454-456). O mesmo não há de passar-se, avisa-
nos o poeta didático, com os homens de intenções puras, já que a
esses caberão o ―auxílio‖ (auxilium – v. 460) e os ―dons de Vulcano‖
(Vulcania... dona – v. 460). Segundo Toohey (2010, p. 199), nesse
ponto do Cinegético, a ratio – aqui manifesta sob a forma da
devoção aos deuses – surge associada à ideia de controle sobre o
mundo, de modo que aqueles dotados de princípios para agir com
sabedoria conseguem contornar até as piores dificuldades.
Importa neste ponto esclarecer que, apesar das eventuais
tentativas de vincular alguns dizeres desse poema didático ao

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 395


Matheus TREVIZAM

epicurismo (VERDIÈRE, 1964a, p. 61-62), a forma de razão


preconizada por seu autor não se encaixa, inteiramente, nos ditames
da maneira de compreender o mundo associável a tal escola de
pensamento.20 Sabemos então que, para os epicuristas, os deuses
eram alheios a quaisquer preces, sacrifícios e ritos identificados
com as manifestações religiosas tradicionais dos antigos (HADOT,
1999, p. 180-181). Dessa forma, longe de propiciar contato com os
deuses em sua mais pura manifestação – a de entes independentes e
felizes, porque isentos dos limites e medos humanos –, a religião,
tradicionalmente definida, constituía algo vão para Lucrécio e devia
ser alijada da experiência vital.21 Entretanto a ratio, como se
encontra no Cinegético de Grattius, não implica, segundo Francisca
Moya, ―em que a ciência elimine nem, sequer, supere a religião, pois
está ligada à divindade. Diana, afirma Grattius, foi a que se dignou a
proteger a humanidade, livrando-a do medo das feras, tarefa em que
colaboraram deidades relacionadas com a natureza, como Pã, Cibele,
Silvano etc. Assim, com o impulso da proteção divina, pretende
Grattius ensinar técnicas de auxílio ao homem‖.22
Sobre o encaixe desta digressão na sequência do poema
didático tratado, notamos que ela se põe entre um trecho de
abordagem geral de várias enfermidades caninas – v. 344-426 –,
como a raiva e a sarna, e outro no qual preceitos afins a conselhos
veterinários e doenças continuam a ser oferecidos – v. 465-479.
Desse modo, nada há de ―artificial‖ em Grattius ter escolhido
justamente essa parte do Cinegético para entremear a digressão

20
Verdière (1964a, p. 66 et seq.), por outro lado, aventa a hipótese de
vinculações entre Grattius Faliscus e as doutrinas de Posidônio de Apameia
– séc. II-I a.C. –, o criador do estoicismo.
21
LUCRÉCIO, De rerum natura I, 78-79: Quare religio pedibus subiecta
uicissim/ obteritur, nos exaequat uictoria caelo. – ―Por isso a religião –
sujeita aos pés – é, por sua vez, esmagada, igualando-nos ao céu a vitória‖
(trad. M. Trevizam).
22
MOYA, 2007, p. 465: ―(...) que la ciencia elimine ni supere siquiera la
religión, ya que ella está ligada a la divinidad. Diana, afirma Gratio, fue la
que se dignó proteger a la humanidad, librándola del miedo a las fieras,
tarea en la que colaboraron deidades relacionadas con la naturaleza, como
Pan, Cibeles, Silvano etc. Así, con el impulso de la protección divina,
pretende Gratio enseñar técnicas que ayudan al hombre‖ (trad. M.
Trevizam).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 396
As digressões no Cinegético de Grattius Faliscus

referente à gruta de Vulcano ―médico‖, pois, assim, varia-se do foco


preceituador e técnico para mecanismos descritivos (do lugar
sagrado em pauta, dos ritos envolvidos...) e para algumas
concessões à religião romana, com óbvios efeitos de ―alargamento
de horizontes‖ diante do público.

Conclusão sucinta

O conjunto das digressões apresentadas para o Cinegético,


sejam elas referentes a Dércilo, o descobridor da caça, aos avisos
contra todos os excessos na vida material ou à gruta siciliana do
deus do fogo, portanto, apesar de ―quebrar‖ a rígida sucessão dos
preceitos técnicos mais cerrados, não deixa de ser muito instrutivo
ou, até, de concentrar em suas linhas aspectos filosófico-morais de
grande importância para a obra (a religiosidade, o valor do empenho
pessoal, a frugalidade, o caminho nas sendas da razão...). Nesse
sentido, também parecem valer para esse poema as advertências de
Alessandro Barchiesi (1982, p. 43), ao pronunciar-se sobre os
excursos das Geórgicas não como meros ―desvios do caminho‖, mas
sim à maneira de pontos de concentração de alguns de seus temas
mais instigantes.

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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 398


POLÍTICA SOCIOLINGUÍSTICA, CULTURAL E ÉTNICA
NA GUINÉ-BISSAU E SUA CONTRADIÇÃO

Rachido DJAU
Malam DJAU
UFPR

Resumo: O presente trabalho visa relatar e compreender questões


relacionadas com a situação sociolinguística, cultural e étnica
presente na Guiné-Bissau e sua implicação na identidade do sujeito
guineense. O país conta com mais de duas dezenas de grupos
étnicos e são faladas cerca 20 línguas étnicos tribais - realidade
extremamente complexa, desencadeando problemas de ordens
diversas para o país (em especial para política e planejamento
linguística do mesmo). No período imediatamente pós-guerra de
libertação nacional, a situação do país agravou-se mais devido à
imposição da língua Portuguesa como oficial em detrimento do
Crioulo (a mais falada) e das demais.

Palavras-chave: Sociolinguística; Política linguística; Preconceito


linguístico; Educação e Identidade.

Abstract: This paper aims to report and understand issues related


to the sociolinguistic, cultural and ethnic situation present in Guinea
Bissau and its implication in the identity of the Guinean subject. The
country has more than two dozen ethnic groups and is spoken in
about 20 ethnic tribal languages - an extremely complex reality,
triggering problems of various orders for the country (especially for
language policy and planning). In the period immediately after the
war of national liberation, the situation of the country was further
aggravated by the imposition of the Portuguese language as an
official to the detriment of the Crioulo (the most talked about) and
the others.

Keywords: Sociolinguistics; Language policy; Linguistic prejudice;


Education and Identity.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Rachido DJAU & Malam DJAU

Introdução - Diversidade sociolinguística, cultural e étnica da


Guiné-Bissau

A Guiné-Bissau é um país situado na costa ocidental da África


com área total de 36.125 km² (COUTO e EMBALÓ, 2010, p. 28), e
conta com uma população estimada ―um milhão e quinhentos mil
habitantes‖ (COUTO e EMBALÓ, 2010, p. 28). ―O país foi colônia de
Portugal desde século XV até proclamar unilateralmente a sua
independência, em 24 de setembro de 1973, reconhecida
internacionalmente, mas com exceção da metrópole lusitana. Tal
reconhecimento por parte de Portugal só veio em 10 de setembro de
1974‖ (EMBALÓ, 2008, p. 101).
No período colonial, a Guiné-Bissau contava com diversidade
sociolinguística, cultural e étnica bastante acentuada e complexa,
gerando contradições internas que impossibilitaram em princípio a
efetiva unidade nacional e a emancipação imediata da nação
guineense sob o jugo colonial ou imperialista.
Após independência, por determinação do Estado, a língua
portuguesa ―falada por cerca de 10% da população guineense‖
(AUGEL, 1998, p. 69) configura-se como língua oficial, ensinada nas
escolas de prestígio; enquanto que o Crioulo e as línguas étnico-
tribais ―faladas por cerca de 90% da população‖ (AUGEL, 1998, p. 69)
são consideradas línguas menos prestigiadas e sem ―qualquer‖
representação oficial do Estado.
No entanto, logo após proclamação da independência, em
decorrência do ressurgimento dessa diversidade e das contradições
internas que o país apresentava, houve necessidade de estabelecer
um projeto político com ênfase na autonomia soberana e construção
de um ideal nacional, porém a consolidação desse projeto se limitou
no plano teórico justamente porque estavam em cena duas
possibilidades centrais e antagônicas de linha política a ser
implantada – incorporação ou imposição da língua do colonizador
(língua portuguesa) como língua oficial e afirmação da identidade
sociolinguística cultural e étnica da nação.
Com a determinação da língua portuguesa como língua oficial
e de prestígio em detrimento do Crioulo e das línguas étnico-tribais,
a situação do país se tornou ainda mais problemática e insolúvel
evidenciado na proposta de avaliação do desempenho geral das
escolas realizada durante mesa redonda em setembro de 1990 no
INDE (Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação) que tinha
como problema central – o uso ou não do Crioulo nas escolas, ou

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 400


Política sociolinguística, cultural e étnica na Guiné-Bissau e sua contradição

seja, as vantagens e as limitações da utilização do Crioulo como


língua de ensino. Essa situação estende-se até os dias atuais, com
debates ainda insolúveis para os atores sociais, políticos,
principalmente para os linguistas.
Assim, percebe-se que a coexistência dessas línguas e a
determinação do Estado sobre suas práticas interferem diretamente
na construção da identidade do sujeito guineense, gerando
interferências/impasses na construção das políticas e planejamento
público para o desenvolvimento da educação e da Nação em geral.

I. Fundamentação teórica

A fundamentação teórico-metodológica deste trabalho


baseia-se na gestão do plurilinguismo em Sociolinguística – uma
introdução crítica do linguista Louis Jean Calvet (2002). Na sua
abordagem, Calvet distingue duas formas de gestão de
plurilinguismo: in vivo e in vitro.
A primeira forma caracteriza-se pela inexistência da
intervenção do Estado, dos atores sociais e linguistas/técnicos
especializados na resolução dos problemas de comunicação, isto é,
o modo pelo qual os sujeitos ou os grupos falantes resolvem seus
problemas linguísticos sem necessidade de recorrer a qualquer tipo
de política e planejamento linguístico oficial do Estado no seu
quotidiano; na segunda forma, a resolução dos problemas
sociolinguísticos está atrelada à intervenção normativa e
manipuladora direta ou indireta do Estado, dos atores sociais e dos
linguistas na comunicação dos falantes.
A situação sociolinguística, cultural e étnica da Guiné-Bissau
envolve pessoas e grupos falantes divergentes entre si que buscam
afirmação de suas identidades particulares e ao mesmo tempo se
encontram engajados numa mesma luta – a da unificação em prol
da identidade nacional. Desse modo, em decorrência da luta de
libertação nacional sob o jugo colonial (1963-1974) e com objetivo
da formação do Estado-Nação independente, a questão da
identidade nacional se sobrepõe às identidades particulares. A
problemática dicotômica entre o particular e a unidade do Estado
nacional ficou assim amenizada, como salienta (SANTOS, 1989, p.
195, apud COUTO e EMBALÓ, 2010, p. 38): ―A formação da nação a
partir de uma população étnica, cultural e socialmente heterogênea,
passa pela substituição de laços de solidariedade de grupo por laços
de solidariedade nacionais‖. (SANTOS, 1989, p. 195).

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 401


Rachido DJAU & Malam DJAU

Nessa perspectiva, o crioulo da Guiné-Bissau (desde seu


estágio inicial - Pidgin) representa importância crucial na prática
social, cultural e étnica dos guineenses, visto que ele é a íngua
veicular ou franca (falada por cerca de 90% da população guineense)
que serve como elemento congregante da diversidade linguística e
étnica nacional, fazendo do país uma comunidade de fala. É através
dele que os diferentes grupos étnicos que compõem a população
guineense se comunicam. ―O Crioulo tornou-se um elemento de
unidade, portador da mensagem política do PAIGC (partido da
independência da Guiné e Cabo Verde) e, mais tarde, o detentor
sociolinguístico do conceito da independência‖ (LOPES, 1987, p. 230-
231).
O Crioulo é meio de comunicação que permite não só
aproximação entre grupos étnicos, mas também desencadeia
unificação de esforços indispensáveis à eficiência do programa
nacional, economizando assim os problemas da comunicação sem
necessidade da intervenção normativa do Estado.

Os cerca de trinta povos da Guiné começaram a sentir-se


um só povo que, por exigência de luta unitária, escolheu
uma língua, o Criol, a língua que nasceu com a
colonização, mas que se transformou em ‗língua de
libertação (BICARI, 1981, p. 5).

No período imediatamente pós-independência, na tentativa


de abrir horizonte comunicacional mais amplo e aproximar a língua
dos guineenses com o universo científico, tomando em conta a
participação do país no cenário internacional (facilidade de sua
relação com o mundo exterior), os dirigentes políticos
(principalmente o líder do movimento de libertação, ―pai‖ da nação
Guiné-Bissau, Amílcar Cabral) não só decidiram abertamente pela
adoção/imposição do Português como língua oficial da Guiné-
Bissau, mas também advogaram (sem qualquer fundamento
linguístico) que o Crioulo serve apenas como ponte ou meio para se
aprender língua portuguesa e não poderia expressar os saberes
cientificamente construídos.
Dessa forma, as línguas étnico-tribais foram deixadas para
terceiro plano. ―O português (língua) é uma das melhores coisas que
os tugas nos deixaram‖ (CABRAL, 1990, p. 59) e ―muitos camaradas,
com sentido oportunista, querem ir para frente com Crioulo. Nós
vamos fazer isso, mas depois de estudarmos bem. Agora a nossa

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 402


Política sociolinguística, cultural e étnica na Guiné-Bissau e sua contradição

língua para escrever é o português‖ (CABRAL, 1990, p. 61). Com


isso, a língua portuguesa passou a ser ensinada nas escolas, usada
nas instituições públicas do Estado e nos fóruns internacionais.
Desse modo, o Crioulo e as línguas étnico-tribais passaram a
ser estigmatizadas (definidas pelo colonizador como dialetos
pobres, insignificantes), ―banidas‖ em certas ocasiões nos espaços
administrativos e classificadas como línguas menos prestigiadas,
colocando em xeque a (re) afirmação da identidade, do sentimento
nacionalista do sujeito guineense, como afirma Coracini (2003, p.
153), ―inscrever-se numa segunda língua é re-significar‖,
consequentemente contribuindo para reprodução da
lógica/ideologia colonial e o agravamento do problema
sociolinguístico, cultural e étnico no país. ―Em síntese, quer se trata
de Crioulo nativizado, quer se trate de Crioulo aportuguesado, a
única solução para Guiné-Bissau qua nação e comunidade de fala
homogênea é o Crioulo. Qualquer outra solução seria
contraproducente.‖ (COUTO e EMBALÓ, 2010, p. 232). Fato também
observado por Paulo Freire durante sua visita ao país.
No trabalho em conjunto com atores políticos no processo
de reconstrução nacional, o autor comenta:

Na verdade, o processo de libertação de um povo não se


dá, em termos profundos e autênticos, se esse povo não
reconquista sua palavra, o direito de dizê-la, de
―pronunciar‖ e de ―nomear‖ o mundo. Dizer a palavra
enquanto ter voz na transformação e recriação de sua
sociedade: dizer a palavra enquanto libertar consigo sua
língua da supremacia da língua dominante do
colonizador (FREIRE, 1977, p. 145)

Apesar dessa imposição (uso do português como língua


oficial e ainda com maior prestígio em detrimento dos demais), o
Crioulo e as línguas étnicas continuam sendo as línguas que
expressam melhor a realidade concreta, sociolinguística, histórica,
étnica e cultural da nação e dos guineenses.
Desse modo, a língua portuguesa representa assim algo
sinônimo à ―língua estrangeira‖, - segunda língua -, (até a terceira
e/ou quarta língua na maioria dos casos para os guineenses) devido
ao seu distanciamento com realidade do sujeito guineense e do país.
Esse distanciamento pode ser observado com maior evidência no
processo de ensino/aprendizagem.
O sistema educativo da Guiné-Bissau (desde a primeira à 11ª

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 403


Rachido DJAU & Malam DJAU

classe) caracteriza-se pela transplantação ou reprodução da lógica


colonial – antidemocrática, restritiva, linear, monista, excludente,
normativa, reduzida à prática mecânica da escrita e leitura,
descontextualizada, e principalmente ―[...] pela negação de tudo o
que fosse representação mais autêntica da forma de ser dos
nacionais: sua história, sua cultura, sua língua‖ (FREIRE, 1977, p.
21). Assim, fica evidente a dissociação entre língua e cultura– típico
da abordagem tradicional que opera com linguagem puramente
formal (sem expressividade à vida humana e social). ―O
normativismo é, como procuramos demonstrar neste texto, uma
atitude excludente, por operar com uma concepção maniqueísta e
pétrea da língua‖ (FARACO, 1997, p. 59).
A obra intitulada Discurso na vida e discurso na arte de
Bakhtin/Volochinov (com reflexão filosófica antiformalista) possui
uma definição relevante dentro do percurso teórico deste trabalho.
Nela, discute-se a questão da palavra, dos enunciados, da linguagem
e, com maior ênfase nos fatores extralinguísticos inerentes a eles.
Assim, conforme o autor:

Todas as palavras e outras similares, qualquer que seja


critério que as rege (ético, cognitivo, político ou outro)
levam em considerações muito mais do que aquilo que
está incluído dentro dos fatores estritamente verbais
(linguísticos) do enunciado. Juntamente com os verbais,
elas também abrangem a situações extraverbais.
(BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 1926, p. 4-5).

Nessa perspectiva, as palavras/enunciados estão carregadas


de significações ideológicas, de valores culturais, sociais e
históricas.
Portanto, em vez da abordagem tradicional/estrutural
(vigente na Guiné até os dias atuais) que não leva ―[...] em conta a
noção de sujeito em nenhuma instância, o que pressuponha um
sujeito passivo, vazio, recipiente que precisa ser preenchido pelo
conhecimento transmitido pelo professor‖ (CORACINI, 2003, p.
140), é imprescindível dar ênfase na abordagem comunicativa
(fundamentada no princípio pragmático-funcional) no processo de
ensino/aprendizagem que enfatiza contextualização dos discursos,
comunicação nas mais diversas situações (não de causa e efeito,
típico da lógica binária e ou da polarização diglóssica), questões da
sociolinguística e ou da variação linguística ―por estes envolverem
complexas questões identitárias e de valores socioculturais que os
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 404
Política sociolinguística, cultural e étnica na Guiné-Bissau e sua contradição

falantes parecem se mostrarem mais sensíveis, externando, muitas


vezes, atitudes e juízos de alta virulência‖ (FARACO, 2008, p. 165),
das reflexões calcadas no paradigma intercultural e das propostas
do letramento crítico.

II. Configuração sociolinguística da Guiné-Bissau

Conforme foi exposto da introdução, algumas dessas línguas


são de famílias diferentes, outras poderiam ser classificadas como
variedades linguísticas ou ―dialetos‖ de uma mesma língua (por
apresentarem algumas semelhanças fonológicas). Além disso, com a
modernidade e/ou globalização, os países africanos passaram a se
inter-relacionar, permitindo assim a fusão de tradições culturais.
Dessa forma, as línguas (francês, inglês e árabe) se fazem presentes
na Guiné devido às intensas relações que mantem com os vizinhos
circundantes. Estas línguas coabitam com Crioulo, português
(língua) e suas variedades (Crioulo aportuguesado, Crioulo
tradicional/baseletal, Crioulo nativisado, português acrioulado e
português lusitano), isto é, elas convivem simultaneamente e
oscilando uma com outra no quotidiano dos guineenses.
Dessa forma, segundo os dados estatísticos da década 70, o
gráfico1 da realidade sociolinguísticadas principais línguas étnicas
da Guiné-Bissau apresenta o seguinte:

1
COUTO, Hildo Honório e EMBALÓ, Filomena. Literatura, língua e cultura na
Guiné-Bissau. Revista brasileira de Estudos Crioulos e Similares, N° 20,
2010, p. 28-29 (Brasília).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 405
Rachido DJAU & Malam DJAU

Gráfico I - Percentual das línguas étnicas do país


Beafada Fulepe Bijagó Nalu
1% 2% 1% 0% Mancanha
Papel 1%
6%
Manjaco
11%
Fula
34%
Mandinga
15%
Balanta
29%

Fula Balanta Mandinga Manjaco Papel


Fulepe Beafada Bijagó Mancanha Nalu

(Fonte: Honório & Embaló (2010). Elaborado pelos autores)

Já em 1991, com base em recenseamento, o país apresenta o


seguinte gráfico2 demolinguístico:

Gráfico II - Recenseamento dos grupos étnicos em 1991


30% Fula Balanta
25%
20% Mandinga
15% Outros
ManjacosPapeis
10% Bramanes
Beafadas
5%
0%

(Fonte: Honório & Embaló (2010). Elaborado e modificado pelos autores.)

Por outro lado, em 2002, segundo os dados3 coletados por

2
Idem.
3
Gordon, Raymond, G., Jr. (ed.), 2005. Etnologue: Languages of the World,
fifteenth edition. Dallas, tex.SILInternational. Apud COUTO, Hildo Honório e
EMBALÓ, Filomena. Literatura, língua e cultura na Guiné-Bissau. Revista
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 406
Política sociolinguística, cultural e étnica na Guiné-Bissau e sua contradição

etnólogos Gordon, Raymond, G., Jr, a situação para uma população


estimada de 1. 200.000 habitantes seriam:

Quadro I - Falantes dos grupos étnicos na Guiné-Bissau em


2002
Grupos % N. /Falantes
étnicos
Fula 20,4% 245 130
Balanta 30, 5% 367 000
Mandinga 12,9% 154 200
Manjaco 14,1% 170 230
Papeis 10,4% 125 550
Felupe 1,8% 22 000
Beafada 3,4% 41 420
Bijagó 2,3% 27 575
Mancanha 3,4% 40 855
Nalu 0,6% 850
(Fonte: Raymond, G. (2005). Modificado pelos autores.)

Assim, quanto sua distribuição religiosa, o país apresenta o


seguintes gráficos4.

Gráfico III - Distribuição religiosa na Guiné-Bissau em 1993

50% 46%
36%

13%
0% 2% 3%
Muçulmanos Animistas Católicos Outros Cristões Outros
(Fonte: Onofre (1993). Elaborado pelos autores)

brasileira de Estudos Crioulos e Similares, N° 20, 2010, p. 28-29 (Brasília).


Online version: http://www.etnologue.com/.
4
Onofre dos santos, um sorriso para a democracia da Guiné-Bissau, Lisboa:
PAC, 1996. & ROSA (1993), A literatura na Guiné-Bissau. Suplemento de
Lusorama. Apud COUTO, Hildo Honório e EMBALÓ, Filomena. Literatura,
língua e cultura na Guiné-Bissau. Revista brasileira de Estudos Crioulos e
Similares, N° 20, 2010, p. 28-29 (Brasília).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 407
Rachido DJAU & Malam DJAU

Gráfico IV - Distribuição religiosa na Guiné-Bissau em 1993


50%
45%
40%
30% 30%
25%
20% Religiões
10%
0%
MUÇULMANOS ANIMISTAS CRISTÕES

(Fonte: Onofre, Rosa (1993), modificado e elaborado pelos autores.)

Portanto, os quadros acima revelam a diversidade


sociolinguística, cultural e étnica que o país apresenta. Os dados
variam de acordo com as mudanças ocorridas no espaço e no
tempo, considerando que a cultura pode ser concebida como uma
teia complexa e dinâmica de significados e não simplesmente uma
substancia de x e y. Nos termos de Laraia, ―qualquer sistema
cultural está num contínuo processo de modificação‖ (LARAIA,
2008, p. 96).

III. Conflitos decorrentes dessa coexistência

Como referencial teórico para análise de conflitos em


sociedades, a categoria de análise conflito em Simmel (1983) possui
importância significativa dentro do percurso desta discussão. Na
sua abordagem, Simmel distingue duas formas de conflito:
intragrupal e intergrupal. Na primeira, o autor percebe que o
conflito entre os grupos será mais intenso quando as partes
integrantes tiveram algo em comum e forem próximas umas das
outras. Já na segunda forma, o conflito intergrupal, os laços e a
coesão no interior do grupo são reforçados quando estes
confrontam com uma ameaça vinda do exterior, procurando assim
manter a sua integridade e identidade (Simmel, 1983).
Nessa perspectiva, a realidade sociolinguística e cultural do
país envolve grupos étnicos divergentes entre si, onde cada um com
suas línguas, políticas, tradição, costumes, valorização, identidade,
constituindo assim fator central da dificuldade para uma união
efetiva em prol de um ideal nacional. ―Aliás essa diversidade étnica
faz com que a preocupação com a unidade nacional fosse uma

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 408


Política sociolinguística, cultural e étnica na Guiné-Bissau e sua contradição

constante‖ (COUTO e EMBALÓ, 2010, p. 47).


Assim, as oposições entre os grupos étnicos se apresentam
de forma expressiva e acentuada não apenas em questões
linguísticas, mas principalmente nos costumes e ou tradições
baseadas em princípios religiosos, passando pelas questões
políticas, colocando obstáculos nos domínios sociais ou na
representação social (pensamento pelo qual o sujeito relaciona-se
com um objeto, uma pessoa, uma coisa, um evento material,
psíquico ou social, um fenômeno natural, imaginário ou mítico, uma
ideia, uma teoria, etc.) dos guineenses.―O contato entre línguas não
produz apenas interferências, alternâncias e estratégias. Ele gera
sobretudo um problema de comunicação social‖ (CALVET, 2002, p.
51).
Na obra intitulada ―Identidade, Etnia e Estrutura social‖,
Oliveira (1976) discute a questão da identidade contrastiva e
enfatiza como um grupo se define diante dos outros. Assim,
conforme o autor:

A identidade contrastiva parece se constituir na essência


da identidade étnica, i.e., à base da qual esta se define.
Implica a afirmação do nós diante dos outros. Quando
uma pessoa ou grupo se afirmam como tais, o fazem
como meio de diferenciação em relação a alguma pessoa
ou um grupo com que se defrontam. É uma identidade
que surge por oposição. Ela não se afirma isoladamente.
No caso da identidade étnica ela se afirma ―negando‖ a
outra identidade, ―etnocentricamente‖ por ela
visualizada (OLIVEIRA, 1976, p. 5).

A tentativa de se inserir nos cargos de maior


representatividade na esfera estatal do país e a concentração do
poder nas mãos de um determinado grupo étnico condicionaram as
causas imediatas da Guerra Civil de 1998 e está ocasionou um
processo intenso de ingerências dos grupos étnicos nas instituições
políticas e militar nos anos subsequentes até hoje.

IV. Relação entre o português e o crioulo dos guineenses

Em qualquer comunidade de fala, a interação entre falantes


sempre se dá de algum modo. No caso da Guiné-Bissau, apesar das
interferências decorrentes das relações entre as línguas ali
presentes e divergência linguística dos três estágios de variedade de

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 409


Rachido DJAU & Malam DJAU

crioulo (aportuguesado, tradicional, nativizado), português e as


línguas étnico-tribais que compõem a realidade do pequeno
território da republica da Guiné-Bissau, a interação entre os grupos
falantes ocorre por conta da relação histórica entre crioulo e o
português (crioulo baseada em português) e as semelhanças
fonológicas entre algumas línguas étnico-tribais.
Segundo Gunter (1973), Ferraz (1974, 1979) e outros
crioulistas, o contato linguístico no processo do povoamento da ilha
São Tomé teve como consequência o aparecimento, em primeiro
lugar de um pidgin, e depois, de uma única língua crioula de base
lexical portuguesa que mais tarde deu quatro crioulos distintos.
Assim, segundo Couto e Embaló (2010) o crioulo
aportuguesado contém muitos empréstimos lexicais do português e,
às vezes até as expressões inteiras nessas línguas (COUTO e
EMBALÓ, 2010, p. 35). Dessa forma, a comunicação entre dois
falantes (do português e do crioulo) torna-se parcialmente ou
relativamente compreensiva, permitindo compreender a relação
entre as duas línguas.
O crioulo torna-se ainda cada vez mais aportuguesado tendo
em vista a crescente índice de alfabetização do sujeito guineense,
isto é, quanto maior for o grau da alfabetização/escolaridade do
sujeito guineense maior será o seu contato com a língua portuguesa,
já que esta é a língua do ensino. Assim, a escola constitui o
ambiente fundamental para disseminação da língua portuguesa.
Bortoni e Ricardo salientam de que ―As pessoas agem conforme, em
grande medida, o seu contexto social, ou seja, conforme o meio em
que vive e as interações que estabelece com outras pessoas e, isso,
obviamente influência nos usos da língua‖ (BORTONI e RICARDO,
2004, p. 48).
Dessa forma, a língua portuguesa também tende a propagar-
se cada vez mais junto com o crioulo, estabelecendo assim relação
direta entre ambas. Apesar da existência de outras possibilidades de
comunicação entre os guineenses baseados nas relações ou não
entre as línguas étnico-tribais, o Crioulo e o português oscilam entre
si política e socialmente, quase que simultaneamente, justamente
por interinfluencia entre ambas. Conforme Couto e Embaló (2010)

Em primeiro lugar, se déssemos preeminência ao crioulo


aportuguesado, a descrição ficaria muito sobrecarregada
por ser ele um crioulo muito parecido com o português.
Com efeito, as fronteiras entre ele e o português não são

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 410


Política sociolinguística, cultural e étnica na Guiné-Bissau e sua contradição

delimitadas, trata-se de um continuum. Sobretudo no


nível lexical e às vezes até no nível morfológico,
teríamos quase que o próprio português (COUTO e
EMBALÓ, 2010, p. 43).

E mais ainda, ―a opinião mais generalizada é de que o


crioulo, numa perfeita continuidade, se assemelhará cada vez mais à
língua portuguesa, e dentro de poucos anos o crioulo atual morrerá‖
(SCANTAMBURLO, 1981, p. 15 apud COUTO e EMBALÓ, 2010, p. 56).

V. Problemas no processo de ensino/aprendizagem do país

Os problemas inerentes à diversidade sociolinguística,


cultural e étnico presente no país não restringem apenas no dia-a-
dia dos guineenses, mas também ela perpassa em todos os
domínios sociais (em casa, na escola, no cotidiano, nas instituições
políticas do estado, etc.). Este problema apresenta-se com maior
evidencia e de maneira acentuada no processo de
ensino/aprendizagem.
Nas escolas, universidades e em outras instituições afins, o
crioulo e as línguas étnico-tribais não têm ―importância
significativa‖ sob o ponto de vista da ideologia política estatal, mas
o seu uso exerce importância comunicacional como forma de
mediação entre os guineenses e outras línguas presentes no país.
A imposição da língua portuguesa no país decorrente do
processo colonial complicou mais ainda o quadro sociolinguístico
da Guiné e o processo de ensino/aprendizagem ficou assim
descontextualizado com a realidade concreta dos educandos em
favor da lógica colonial. Dessa forma, os guineenses oscilam entre
dois universos culturais distintos – o que gera constante construção
e reconstrução ou arranjos e rearranjos, deslocando sua identidade.
Nesse sentido, a transição entre duas culturas condiciona a ―perda
da identidade‖ dos guineenses decorrente do conflito e choque
cultural.

[...] choque entre a língua da maioria das crianças e o


modelo artificial de língua cultuado pela educação de
linguística tradicional; choque entre a fala do professor
e a norma escolar; entre a norma escolar e a norma real;
entre a fala do professor e a fala dos alunos (FARACO,
1997, p. 37).

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 411


Rachido DJAU & Malam DJAU

Assim, é plausível dizer que o processo do


ensino/aprendizagem se dá com dificuldades, visto que a
implementação da língua portuguesa na escola não reflete a prática
social dos guineenses. Durante sua presença no país em questão,
Paulo Freire, comenta que ―a língua portuguesa não tem nada a ver
com a prática social. Na sua experiência cotidiana, não há um só
momento sequer, em que a língua portuguesa se faça necessária‖
(FREIRE, 1977, p. 25).
O processo de ensino/aprendizagem no país caracteriza-se
por prática mecânica onde o aprendizado ocorre basicamente por
viés da decoreba e sem senso crítico e nem reflexões da realidade
concreta dos educandos.
A obra Conceito de educação de Álvaro Pinto Tavares (1994)
discute definição da educação e sua característica. Na sua
abordagem, o autor menciona diferentes características da
educação. Na perspectiva histórica e antropológica, Pinto concebe
educação como um fenômeno cultural.

Não somente os conhecimentos, experiências, usos,


crenças, valores, etc. a transmitir ao indivíduo, mas
também os métodos utilizados pela totalidade social
para exercer sua ação educativa são parte do fundo
cultural da comunidade e dependem do grau do seu
desenvolvimento (PINTO, 1994, p. 31).

Considerações finais

Portanto, é imprescindível discorrer sobre desafios


resultantes da política públicas pedagógicas vigentes no país a fim
de formular propostas para solucioná-los (encontrar resultados
positivos em consonância com a realidade concreta dos guineenses),
promovendo assim política e planejamento linguística inclusiva que
promove participação de todos e diminuindo os preconceitos
presentes de forma implícita/explicita nas relações sociais.
Por decisão meramente política de estabelecer a língua
portuguesa como língua oficial do país, a sua situação agravou-se
mais, desencadeando conflitos, preconceitos linguístico, criando
hierarquia de status (fixação de lugares hierárquicos definidos nas
relações sociais), excluindo os que não são alfabetizados em língua
portuguesa, não a dominam, e principalmente apagando as
diferenças e ou diversidades presentes no país.
A proposta de ensino/aprendizagem relativo a problema
sociolinguístico, cultural e étnico que o país apresenta não leva em

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 412


Política sociolinguística, cultural e étnica na Guiné-Bissau e sua contradição

conta a abordagem comunicativa e os princípios da lógica


intercultural. Assim, as relações passam a ser rotuladas,
verticalizadas, polarizadas e, em última instancia, a língua passa a
ser concebida como discurso e não como um código neutro ou
entidade homogênea.

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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 414


OS ESCÓLIOS DE UM PANEGÍRICO SEISCENTISTA:
NOTAS DE UMA OU PARA UMA LEITURA?

Raeltom Santos MUNIZO


Marcello MOREIRA
UESB

Resumo: O objetivo deste artigo é estabelecer uma discussão acerca


dos escólios de um panegírico produzido, provavelmente, em
meados do século XVII, e que foi atribuído ao fidalgo Manoel
Botelho de Oliveira. Os escólios são notas breves e objetivas
dispostas nas laterais do texto ao qual remetem. Nosso intento é
discutir o aspecto e a função dessas anotações marginais, tendo em
vista que elas evidenciam um tipo de leitura efetuada, assim como
certa intenção do comentador em esclarecer e guiar o leitor ao
prescrever uma determinada leitura, que ele julga decorosa ao
sentido latente do poema.

Palavras-chave: Escólios; Panegírico; Leituras.

Introdução

O presente artigo objetiva levantar algumas considerações


acerca dos escólios ao ―Panegírico ao Marquês de Marialva‖, poema
impresso em Música do Parnaso (1705), conjuntamente com outros,
também atribuídos a Manuel Botelho de Oliveira. Para tanto,
primeiramente discorreremos sobre o gênero ―panegírico‖, a fim de
entender sua especificidade, para somente então nos atermos a uma
reflexão sobre a função dos escólios que margeiam as estrofes do
poema, quando então levantaremos algumas hipóteses sobre os
escólios serem aparentemente ―históricos‖ e ―veritativos‖ com o
objetivo de incrementar a fides da poesia laudatória.
Como se sabe, os escólios são anotações ou comentários
breves, dispostos nas margens do texto ao qual remetem. As notas
escoliais desse panegírico seiscentista, dispostas nas laterais das
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
Raeltom S. MUNIZO & Marcello MOREIRA

estrofes por elas comentadas, evidenciam que este poema não era
de fácil compreensão, já que, no momento em que se decidiu
imprimi-lo, deliberou-se por produzir uma replicação em tom
pedestre de cada seção anotada, que servia de protocolo de leitura
ao texto poético, bastante ornamentado, e cuja elocução atendia ao
costume cortesão de acúmulo de tropos e figuras, sobretudo
metáforas, ao gosto gongórico dominante em Portugal no século
XVII, como deixam ver os muitos poemas reunidos, por exemplo, na
Fênix Renascida e no Postilhão de Apolo.
Pode-se resumir nossa proposta de análise nas questões que
seguem: Os escólios ao poema são protocolos para uma leitura
conveniente do poema? Por que os escólios têm tom pedestre? Qual
a relação entre o tom pedestre dos escólios e os gêneros didáticos e
informativos que ele mimetiza em sua elocução? O tom pedestre
dos escólios contribui para incrementar seu caráter histórico-
informativo, o que, por seu turno, amplifica a fides do poema?

Algumas considerações sobre o panegírico

Antes propriamente de analisar os escólios ao ―Panegírico ao


Marquês de Marialva‖, levaremos a termo uma breve apresentação
do que se entendia no século XVII por panegírico. Tal gênero era um
tipo de discurso de caráter laudatório ou uma oração exornativa,
pertencente ao gênero retórico demonstrativo.
O panegírico, além de ser discurso laudatório, como o
dissemos, também é doutrinário, regido por convenções retórico-
poéticas, no qual se figuram caracteres agentes (drontes) que obram
ações virtuosas em prol do bem comum de sua pátria. Esses
caracteres que agenciam feitos ilustres se caracterizam, do ponto de
vista da tipologia caracterial proposta por Aristóteles em sua
Poética, como sendo melhores do que somos 1. Tais ações e virtudes,

1
Os tipos figurados como melhores do que somos são os deuses, os
semideuses, os príncipes e os heróis, por isso, eles são dignos de louvor e
honra. Há também aqueles que são tidos como piores do que somos e há os
iguais ao que somos. Ao estudar, por exemplo, a poesia e prosa dos séculos
XVI e XVII, é fundamental que se tenha em mente as seguintes ponderações
aristotélicas, as quais elucidam, de certo modo, essa tipologia: ―[...] os
imitadores imitam homens que praticam alguma ação, e estes,
necessariamente, são indivíduos de elevada ou de baixa índole (porque a
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 416
Os escólios de um panegírico seiscentista

matéria da imitação, são ajuizadas pelo poeta como exemplares, e


são, por conseguinte, objeto de emulação por parte do público a que
se destinam. Observe-se o argumento que o autor do Panegírico do
Rei Dom João III apresenta ao público, em que estabelece a utilidade
desse gênero de poema, composto, em seu caso, para celebrar as
virtudes cardeais e as empresas do rei D. João III:

Não sem causa, muito alto e muito poderoso Rei e


Senhor, costumavam nos tempos antigos louvar os
excelentes homens em sua presença, por que dando
louvor justo e manifesto ao grande merecimento das
pessoas, assi os presentes, como os que viessem depois,
tomassem exemplo e fizessem tais obras, com que
merecessem o mesmo louvor; e pera o nome dos tais ser
mais celebrado, soíam nas mores festas e ajuntamentos
do povo publicar os tais louvores, que por esta razão
chamaram "panegírico", que quer dizer "ajuntamento".
(BARROS, 1943, p. 1)

O gênero panegirical era composto, como se pode


depreender do excerto, com a finalidade de ser proferido em
público, mas não para um auditório qualquer, pois os códigos de
condutas exemplificados na obra prescrevem ou indicam um tipo de
público que os reconheçam na récita do discurso e os atualizem em
sua própria performance como gente de corte. O reconhecimento
desses códigos pelo auditório/leitor é de suma importância, pois é
através desse ato que o poema se torna eficaz e útil, no que diz
respeito à doutrinação do público que o recepciona. Por exemplo,

o Panegírico de D. João III, do ilustre viseense João de


Barros, parece ter sido proferido diante do rei a quando
da ida do monarca a Évora, no verão de 1533, para
visitar as obras do aqueduto daquela cidade, que estava
a ser restaurado. [...] As obras do aqueduto de Évora

variedade dos caracteres só se encontra nestas diferenças [e, quanto ao


caráter, todos os homens se distinguem pelo vício ou pela virtude]),
necessariamente também sucederá que os poetas imitam homens melhores,
piores ou iguais a nós, como o fazem os pintores: Polignoto representava os
homens superiores; Pauson, inferiores; Dionísio representava-os
semelhantes a nós. [...]‖ (ARISTÓTELES, 1973, p. 444).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 417
Raeltom S. MUNIZO & Marcello MOREIRA

começaram em 1532 e prolongaram-se até 1536.


(COUTO, 2009, p. 41)

Com relação ao ―Panegírico ao Marquês de Marialva‖, o qual


se encaixa na definição retórica do gênero panegirical como
discurso por meio do qual ―[...] celebramos toda a vida de uma
pessoa‖ (ALCAÇAR, 1750, p. 42)2, não temos informação de que ele
tenha sido pronunciado por Manuel Botelho de Oliveira (1636 -
1711)3 perante aquele a que se destinava esse louvor, no caso, Dom
Antônio Luís de Menezes (1596?-1675), durante uma determinada
ocasião festiva. Esse texto panegirical não nos oferece uma certeza
de sua socialização performática no reino, uma vez que

[...] o registro textual não basta [...] para dar-nos uma


medida exata de aspectos respeitantes à historicidade
da socialização desse gênero poético e de sua fruição na
sociedade [...] [portuguesa] seiscentista e setecentista, já
que o registro preserva a letra, mas não [...] a voz, nem
muito menos o engajamento dramático do corpo no ato
performático. (HANSEN e MOREIRA, 2013, p. 283).

Sabe-se que os poemas reunidos no livro de Manuel Botelho

2
O gênero panegírico apresenta variações, no que diz respeito a sua
definição efetuada pelos tratados de retórica e poética. A definição
instituída no tratado de retórica do Bartolomeu Alcáçar é aquela que
discorre por toda a vida do encomiado, desde o nascimento até a morte ou
até o momento em que este se encontra vivo. Logo, esse panegírico
atribuído a Manuel Botelho de Oliveira absorveu tópicas ou loci utilizados
por outros gêneros poéticos exornativos que louvam determinadas etapas
da vida de pessoas ilustres. Mas, por outro lado, há também aquelas
definições do gênero panegirical como um encômio de certas ações insignes
do caractere agente ou como um elogio dos valores predicativos de alguém.
3
―O poeta Manuel Botelho de Oliveira nasceu em 1636, na Bahia, e aí faleceu
em 05 de janeiro de 1711, aos 75 anos de idade. Segundo Barbosa Machado,
em sua Biblioteca Lusitana (publicada entre 1741 e 1758), Manuel Botelho
estudou Jurisprudência Cesária na Universidade de Coimbra, e mais tarde
exercitou em sua pátria, ―com muito crédito‖, a Advocacia de Causas
Forenses; exerceu também o cargo de vereador do Senado e capitão-mor.
Quanto a suas obras, Barbosa Machado menciona somente a publicação, em
1705, do volume de poesias Musica do Parnaso, dividida em quatro coros de
rimas. [...]‖ (MUHANA, 2011, p. 35).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 418
Os escólios de um panegírico seiscentista

de Oliveira, impresso em Portugal em 1705, circulavam em


manuscritos de vária natureza, como folhas volantes, codicilos e
livros de mão poéticos, na cidade da Bahia e também no Reino, e é
de supor que, como muitos dos poemas de Música do Parnaso,
encontrados em manuscritos da segunda metade do século XVII,
também o ―Panegírico ao Marquês de Marialva‖deva ter tido larga
recepção em âmbito escribal antes de sua impressão. Há chances de
ele ter sido composto em um período no qual o Marquês de Marialva
ainda estava vivo, pois um dos usos civis do gênero panegírico era
servir de petição ao poeta que o compunha, inserindo-o em redes
clientelares da corte portuguesa. Outra questão importante com
relação a esse poema é o fato de que na seção ―Coro de Rimas
Portuguesas‖, de Música do Parnaso, os escólios somente estão
presentes no poema panegirical que ora discutimos, ou seja,
nenhum dos outros poemas reunidos nessa seção da obra
compilatória apresenta escólios.
Frente ao que até aqui escrevemos, podemos principiar a
refinar nossa discussão do panegírico e de seus escólios,
perguntando-nos – sem que possamos por ora responder a todas
essas questões – se estes não serviriam por seu tom pedestre para
auxiliar o poeta a memorizar a longa sequência estrófica de que se
compõe o poema, já que, na medida em que margeiam todas as
estrofes da composição, seriam uma espécie de lista de coisas da
invenção que cumpriria ao poeta recordar em sua ordem precisa a
cada nova récita ou proferição pública. Uma das características da
poesia dos séculos XVI e XVII no Império Português, como nos
informam Hansen e Moreira (2013), é sua instabilidade textual, pois
as coisas da invenção podem ganhar novas roupagens por um
remanejamento constante do texto; se é preciso saber de que falar e
em que ordem falar, pode-se falar do que se tem de falar, na ordem
em que se tem de falar, mas de muitas maneiras concorrentes. Os
escólios seriam, desse modo, como as notas em que se baseava o
orador para compor ―de repente‖ seu sermão diante de seu
auditório, fonte de memória e ordem das matérias? Supomos que
sim. Essas anotações breves, dispostas sistematicamente nas
margens das estrofes, poderiam servir de apoio para guiar e lembrar
o orador da ordem dos argumentos de cada estrofe. Isso, no caso,
caracteriza-se como um dos fatores que conferem marcas de
oralidade ao texto, pois, a despeito de sua elaborada elocução, ele
era destinado à récita e os escólios, dentre outras funções, remetia
ao enraizamento da poesia na voz (Moreira, 2011). Por outro lado, se

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 419


Raeltom S. MUNIZO & Marcello MOREIRA

pensarmos que os escólios são mecanismos textuais produzidos


pelo artífice ou outra pessoa qualificada como parte de um texto
que será impresso, poderíamos supor então que tais dispositivos
paratextuais se caracterizam como protocolos que ajuízam e
preveem tipo(s) de leitura(s)? Se um escólio circunscreve a matéria
da estrofe que margeia, discriminando-lhe o sentido, pode-se dizer
que, ao lê-lo, ao escólio, e ao aderir ao juízo nele contido sobre o
poema que li ou que ainda lerei, ou que relerei a partir dele, o
escólio sem sombra de dúvida dirige a recepção, sendo, nesse
sentido, apenas mais um tipo de didascália, como aquelas que
foram exaustivamente analisadas por Hansen e Moreira (2013).

Os escólios e suas relações textuais

Os escólios são anotações breves e objetivas dispostas,


normalmente, nas margens de textos. Essas notas se caracterizam
como paratextos, cuja função é esclarecer o leitor sobre a matéria e
os argumentos presentes no texto comentado por elas.

Na introdução de seu Seuils [Limiares], Gérard Genette


define o paratexto como um ―vestíbulo‖, uma ―orla‖, ou
uma ―zona não só de transição, mas também de
transação: um lugar privilegiado de pragmática e
estratégia, de influência sobre o público[...] que [...] está
a serviço de uma recepção melhor para o texto e uma
leitura mais pertinente do mesmo‖[...]. (CHARTIER, 2014,
p. 235).

Com relação aos escólios do ―Panegírico ao Marquês de


Marialva‖, nota-se que praticamente todas as estrofes vêm com
comentários em margem. Aliás, somente três, dentre as trinta e
quatro estrofes em oitava que o compõem, não possuem escólios ou
comentários. Os seus comentários escoliais são estrategicamente
objetivos, diretos e breves, por isso, eles oferecem informações
fundamentais ao leitor, para que este efetue uma análise mais
decorosa ou pertinente das estrofes acompanhadas por tais notas.
Eles são breves e objetivos, decerto, porque a largura da margem
determina o espaço vertical no qual eles devem ser inscritos, e,
também, devido ao fato de eles situarem-se numa zona de remissão
e aproximação das estrofes, estas também delimitam o espaço
horizontal para a inscrição dessas notas. Logo, o artífice delas deve
produzi-las dentro desse espaço em que lhe é permitido inscrevê-
las.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 420


Os escólios de um panegírico seiscentista

O paratexto é remissivo, mas isso não implica que ele aluda,


por exemplo, somente às estrofes ou a uma única estância do
poema panegirical. Uma questão interessante e diretamente ligada a
isso, é o fato de que em nenhuma das estrofes desse panegírico
menciona-se o nome próprio do encomiado, no caso, D. Antônio
Luís de Menezes, ou seu sobrenome, ou seu título nobiliárquico: 3º
Conde de Cantanhede e/ou 1º Marquês de Marialva. Como
poderíamos então saber se tal panegírico tem como matéria o
Marquês de Marialva e não outro herói lusitano que atuou na Guerra
da Restauração? Essa resposta nos é dada pelos paratextos a tal
panegírico, a saber, os escólios e outro tipo de paratexto ou
protocolo de leitura conhecido como didascália e que tem uma
posição e função similar aos títulos. A referenciação ao caractere
agente e à sua função política no Estado lusitano não se dá de modo
individual e isoladamente, mas sim pela relação entre esses dois
tipos de paratextos e na inter-relação entre eles e as estrofes do
poema. Portanto, para se operar uma leitura profícua desse texto, é
necessário efetuar uma analise na qual se conjugue suas unidades
paratextuais e seu corpo estrófico.
As didascálias, normalmente, são elaboradas para a
organização ou disposição dos textos no interior de códices, por
isso, elas eram produzidas e anexadas àqueles poemas reunidos
para serem impressos, por exemplo, no século XVII, num momento
posterior à circulação desses textos em folhas volantes. Isso implica
que aqueles mecanismos intituladores dos poemas coligidos em
Música do Parnaso conferem a estes um status de texto impresso. As
didascálias, segundo (MOREIRA, 2003), podem vincular-se a outras
unidades paratextuais que as ecoam, complementam, transformam.
Nesse sentido, sua função coparticipa da função desempenhada
pelos dispositivos escoliais do poema panegirical a D. Antônio Luís
de Menezes, o 1º Marquês de Marialva. Portanto, ―[...] existem fortes
elos entre as partes ligadas com o processo de publicação e aquelas
que são dirigidas ao leitor, seja ele quem for. [...]‖ (CHARTIER, 2014,
p. 256). Para exemplificar, tomemos como base a seguinte didascália
do panegírico aqui abordado, e, também, a segunda estrofe do
poema, com seus respectivos escólios:

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 421


Raeltom S. MUNIZO & Marcello MOREIRA

(1) PANEGYRICO/ AO/ EXCELLENTISSIMO SENHOR/ MARQUEZ DE


MARIALVA,/ Conde de Cantanhede, no tem-/po em que governava
as Armas/ de Portugal./ OYTAVAS.

II.
(2) Sua genealo- Vòs Ramo illustre de hũa excelsa planta,
gia. Que em fecunda virtude ennobrecida,
Entre os Troncos mais altos se levanta,
Grande na estirpe, no valor crescida:
Donde descen Tam nobre sempre, que em nobresa tanta,
dem os Mene- Com agoa naõ, com sangue foy nacida,
zes. Da Infanta Heroyca; dando em tempos
muytos,
De espadas folhas, de vittorias fruytos.

Nota-se que a didascália, item (1), elenca, entre outras


informações, os títulos nobiliárquicos do encomiado do panegírico,
assim como também sua função enquanto general das ―Armas de
Portugal‖. Já no item (2), percebe-se que na estrutura estrófica não
se menciona o nome próprio do encomiado e nem seus títulos
políticos e nobiliárquicos, os quais, também, caracterizam-no.
Ademais, o escólio ―Sua genealogia‖, que também é a primeira nota
ao poema, por si só não nos evidencia quem é o caractere agente
referido nos quatro primeiros versos dessa estrofe e, tampouco, sua
estirpe. Contudo, ao estabelecermos uma relação desse escólio com
o que lhe é subsequente, ―Donde descendem os Menezes‖, e com o
título do poema, conseguimos depreender, de certo modo, qual é o
varão que o poema toma como matéria e sua família. Portanto, o
decoro dos escólios também se estabelece por meio de suas
correlações e inter-relações com os demais elementos textuais que
constituem o panegírico, a exemplo da didascália que, por sua vez,
fixa ―[...] o caráter de complementaridade das unidades estróficas
umas em relação às outras [...]‖ (MOREIRA, 2011, p. 345).

Os escólios: dispositivos textuais de uma leitura e para uma


leitura

Os escólios, como já foi posto, caracterizam-se como notas


breves, claras e marginais aos textos, cuja função é esclarecer e

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 422


Os escólios de um panegírico seiscentista

convencer o leitor acerca dos argumentos levantados na obra.


Enquanto comentários de uma leitura, podemos pensar que
aquele que compôs os escólios do ―Panegírico ao Marquês de
Marialva‖, os produziu tendo em vista que tal obra durará muito
tempo e que, por isso, faz-se necessário criar dispositivos de
interpretação do poema, para que o leitor de uma posteridade
longínqua estabeleça uma leitura decorosa da obra. Se dificilmente
podemos afirmar exatamente quem os formulou, hipoteticamente
podemos pensar como provável autor ou artífice dessas anotações o
―autor‖ do panegírico, ou ainda o editor da obra na qual ele está
inserido, ou outra pessoa qualificada. Como se sabe, vários poemas
produzidos no século XVII circulavam primeiramente em folhas
volantes, para depois serem reunidos e editados em compilações ou
códices vários. Isso implica que esse panegírico atribuído a Manuel
Botelho de Oliveira, talvez, poderia ter circulado em folhas volantes,
anteriormente a sua incursão em Música do Parnaso. Supondo que
ele não tenha sido composto por Manuel Botelho de Oliveira e que
foi obra recolhida entre as do poeta após sua circulação anônima na
cidade da Bahia, podemos pensar que nessa circulação o panegírico
poderia ter sofrido várias modificações e acréscimos à medida que
as folhas volantes eram reproduzidas para serem guardadas ou para
alcançarem maior público. Sendo assim, podemos supor ainda que
os escólios contidos nesse panegírico poderiam, de certo modo, ter
sido produzidos e inseridos por alguém nas folhas volantes, nas
quais esse encômio ao Marquês de Marialva fora inscrito. E que,
hipoteticamente, o editor e/ou o suposto autor, no momento da
recolha desse panegírico em uma obra miscelânea impressa, julgou
tais notas marginais decorosas à obra, e, por isso, resolveu-se
mantê-las como parte do panegírico. Mas de qualquer forma, os
escólios devem ser abordados como parte orgânica do poema
panegirical. Por exemplo,

[...] Michel Fishbane mostrou, em um livro notável, [M.


Fishbane. Biblical interpretation in ancient Israel. Oxford,
1985.] como os escribas, assim como os autores,
incorporaram comentários valiosos diretamente no texto
da Bíblia hebraica. Breves notas explicativas sobre
palavras e frases incomuns tornaram-se partes
orgânicas dos textos que elas esclareciam; os livros
subsequentes citaram e comentaram os anteriores;
algumas vezes deliberadamente, outras
inadvertidamente, as Escrituras se tornaram seus

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 423


Raeltom S. MUNIZO & Marcello MOREIRA

próprios intérpretes. Até mesmo comentários


posteriores – como os assim chamados Glosa de
Accursio, comentador medieval do Corpus iuris romano -
, com o tempo, acabaram por ser vistos como partes dos
textos que explicavam [...].(GRAFTON, 1998, p. 35).

Os escólios são feitos a partir de uma leitura, a qual se julga


inerente e decorosa ao sentido do texto. Por terem sido cunhados
por meio de uma interpretação das estrofes que as considera
integrantes de uma unidade genérica superior, o panegírico, os
escólios integram em si os preceitos retóricos do gênero que estão
evidentes nas estrofes; isto é, ao tentar extrair a informação basilar
das estrofes do panegírico, tais notas ou breves comentários acabam
selecionando os fundamentos retórico-poéticos que constituem o
gênero estância a estância. Um bom exemplo nos é dados pelos
escólios da segunda estrofe do ―Panegírico ao Marquês de Marialva‖:
―Sua genealogia‖ e ―Donde descendem os Menezes‖, ambos
transcritos em seção anterior do presente artigo. Essas notas
evidenciam um dos loci ou princípio retórico empregado nesse tipo
de discurso panegirical, a saber, o louvor da nobre genealogia do
encomiado; e isso é um artifício ou lugar-comum de amplificação do
nobre valor do caractere agente. Pelo fato de tais anotações terem
sido produzidas com base naquilo de que se fala nas estrofes do
próprio poema e também na didascália, à medida que se explica ou
esclarece o poema, os escólios também são amplificados por ele, em
regime de perfeita circularidade. Seu funcionamento, então, obedece
ao funcionamento das demais partes do panegírico. Nesse sentido,
os comentários escoliais devem ser entendidos, assim como, por
exemplo, os discursos preambulares (proêmios, cartas ao leitor,
dedicatórias, didascálias etc.) enquanto ―[...] ―obra de ficção‖ na
medida precisa em que se constituem como componentes do todo
da obra, compondo [assim] sua verossimilhança [...]‖ (CARVALHO,
2009, p. 12). Se os escólios integram a obra participando de sua
ficcionalidade e verossimilhança, por outro lado, por seu tom
pedestre e fortemente informativo, aproximam-se de gêneros
didático-informativos, do gênero histórico etc., o que lhes parece
facultar a capacidade de incrementar a fides do poema. Nesse
sentido, o caráter fortemente informativo dos escólios apenas
replicaria no panegírico o argumento histórico do poema heroico, já
que sua função é análoga.
Essas notas escoliais, também, são elementos reguladores de

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 424


Os escólios de um panegírico seiscentista

uma leitura, por isso evidenciam que aquele que as produziu prevê
um tipo de leitura que poderia divergir desse sentido ―latente‖do
poema ajuizado nelas. Ou seja, um tipo de leitor, por exemplo,
―moderno‖ ou muito posterior ao seu tempo, o qual pode não
conseguir identificar os argumentos ou códigos de condutas
postulados na obra. Nesse sentido, podemos pensar que as notas
escoliais

[...]funcionam como intermediárias entre um texto


considerado de valor eterno e um leitor moderno cujos
horizontes são obrigatoriamente limitados pelas
necessidades e pelos interesses[...], [pois] os leitores
humanos precisam de comentários apenas porque suas
necessidades e seus interesses estreitos podem desviá-
los. (GRAFTON, 1998, p. 39)

Essas anotações marginais almejam uma leitura inter e


correlativa, porque alguns escólios do panegírico fazem remissão a
outros escólios, logo, também aludem a outras estrofes, conquanto
não as margeiem. Eis abaixo um exemplo para demonstrar essa
correlação e inter-relação dos escólios:

(3) VIII.
Quando a Patria Sugeyta se rendia Restauraçam
de Portugal
Do Castelhano Imperio à força crua,
em que teve
Oh como infelizmente se affligia, grande parte
Fúnebre, triste, desmayada, nua! o Senhor
Depois izenta da violência ímpia, Marquez.
Despindo as dores da tristeza sua,
Acclamouse no ardor de vossa espada
Festiva, alegre, valerosa, ornada.

IX.
Descingindo da fronte bellicosa
As verdes folhas da Arvore funesta,
Dourando a nuvem d‘ansia lastimosa, Ao mesmo.
O pranto serenou da màgoa infesta:
Adornada escarlata generosa,
Entre a voz popular da heroyca festa
Juntou, prevendo o forte, & fausto agouro,
Na mão a espada, na cabeça o louro.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 425


Raeltom S. MUNIZO & Marcello MOREIRA

Basicamente, a estrofe VIII se refere à triste situação de


Portugal durante o período em que estava sob o domínio da
monarquia castelhana e a mudança operada pela espada do Marquês
de Marialva, que livrou o reino lusitano dessa ―força crua‖ de
Castela, e, com isso, o tornou alegre e festivo. O seu respectivo
escólio também nos evidencia isso, mas de maneira objetiva e breve.
A estrofe IX também aborda, assim como a estância anterior, a
aclamação da festividade dos lusitanos após terem sido libertos do
jugo castelhano. Já o escólio da estrofe IX, ―Ao mesmo‖, evidencia-
nos uma retomada da colocação exposta no escólio da estrofe VIII.
Esse procedimento de correlação entre as notas escoliais prevê que
o leitor faça uma leitura que considere a informação do escólio da
primeira estrofe supracitada também como protocolo para a leitura
da nona estrofe. A leitura prescrita pelo escólio ―Restauraçam de
Portugal em que teve grande parte o Senhor Marquez‖ também se
caracteriza como inter-relativa, uma vez que pressupõe que o leitor
estabeleça uma relação entre esse escólio com a didascália do
poema, a fim de reconhecer quem é este ―Senhor Marquez‖,
referendado na nota, e, decerto, na estrofe. Nesse caso, esses
escólios ajuízam uma leitura que articule uma correlação e uma
inter-relação entre as unidades que compõem esse panegírico.

Considerações finais

Os escólios do ―Panegírico ao Marquês de Marialva‖,


atribuído a Manuel Botelho de Oliveira, portanto, são anotações
marginais que evidenciam um tipo de leitura e também ajuízam um
tipo de leitura.
Eles também se caracterizam como elementos paratextuais,
logo, a sua leitura deve ser efetuada de modo relativo às estrofes às
quais estão ligados, e inter-relativo a outros elementos constitutivos
do poema, a exemplo da didascália. A leitura dessas notas também
deve ser correlativa, uma vez que o significado de um escólio
também é partilhado por outro escólio.
As notas escoliais, portanto, são comentários ou anotações
marginais que se caracterizam como uma leitura a serviço de uma
leitura.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 426


Os escólios de um panegírico seiscentista

Referências

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ORAÇOENS,/QUE PERTENCEMAO GENERO/EXORNATIVO. Lisboa, Manoel
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1973. Coleção: Os Pensadores.

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CARVALHO, M. S. F. de. Preambulares do livro seiscentista em Portugal e no


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CHARTIER, R. ―Paratextos e preliminares‖. In: A mão do autor e a mente do


editor. São Paulo: Editora UNESP, 2014, pp. 235-257.

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GRAFTON, A. As origens trágicas da erudição: pequeno tratado sobre as


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HANSEN, J. A.; MOREIRA, M. Para que todos entendais: poesia atribuída a


Gregório de Matos e Guerra: letrados, manuscritura, retórica, autoria, obra e
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MOREIRA, M. Critica Textualis in Caelum Revocata?: Uma proposta de edição


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MOREIRA, M. Ut Pictura Poesis: Análise bibliográfico-textual de dois membros


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OLIVEIRA, Manuel Botelho de. Música do Parnasso. Lisboa, Miguel Manescal,


1705.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 427


A DUBIEDADE DA PERSONA DE SAFO

Rafael Guimarães Tavares da SILVA


UFMG

Resumo: Partindo de uma reflexão sobre os motivos para que ainda


existam estudos clássicos hoje, avanço uma série de considerações
sobre uma ideia de ―clássico‖ e suas desastrosas implicações sociais,
pedagógicas e econômicas. Na sequência, proponho apontar
alternativas a esse modelo ―clássico‖ – argumentando pela
necessidade de uma reconsideração da forma como se lida com a
tradição – e desenvolvo uma dessas alternativas: retomando o
famoso fr. 31 de Safo, faço uma leitura crítica de sua tradição e
recepção, sugerindo uma série de desdobramentos práticos e
teóricos para a reflexão contemporânea (ou ainda, a partir dela).

Palavras-chave: Estudos de gênero; Estudos clássicos; Safo; Poética


clássica; Recepção.

Gostaria de começar com uma pergunta de ordem mais geral


e que se faz premente diante de nossas conjunturas políticas atuais:
por que estudar as clássicas?
A remissão é evidentemente ao texto de Italo Calvino,
originalmente publicado como artigo em 19811 e retomado como
título de um livro em 1995, Perché leggere i classici?. Nesse texto o
autor empregava um método argumentativo ―clássico‖ (ainda que
seja preciso indagar em profundidade o que está implicado por este
adjetivo ―clássico‖): Calvino propunha uma série de definições
daquilo que poderia ser chamado de uma obra ―clássica‖ e tecia
certas considerações e desdobramentos a partir daí. O

1
O título desse artigo era ―Italiani, vi esorto ai classici‖ e foi publicado em
L‘Espresso, no dia 28 de junho de 1981, p. 58-68.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
A dubiedade da persona de Safo

procedimento aparentemente tão tradicional, contudo, não o era de


forma absoluta, na medida em que suas definições eram
desenvolvidas a partir de suas próprias experiências de leitura e
tinham um sabor pessoal e contemporâneo. Nesse sentido, o frescor
e o caráter inusitado das próprias definições davam nova vida ao
método ―clássico‖ empregado pela argumentação do autor.
Não tenho o talento literário de Italo Calvino. Pretendo me
valer de procedimento análogo ao seu, mas ao invés de propor
minhas próprias definições de ―clássico‖, recorrerei a uma série de
autores ―clássicos‖, dicionários – esperando sair desse
procedimento tautológico tradicional com alguns apontamentos que
me permitam investigar ainda um caso ―clássico‖ do proceder dessa
tradição (na leitura de um poema especialmente famoso de Safo, o
fr. 31).
Começo com uma primeira definição básica e
contemporânea:

CLÁSSICO. [Do lat. classicu] Adj. 1. Relativo à arte, à


literatura ou à cultura dos antigos gregos e romanos. 2.
Que segue, em matéria de artes, letras, cultura, o padrão
desses povos. [...] 4. Cujo valor foi posto à prova do
tempo; tradicional; antigo: Às tendências modernas
preferem as formas clássicas da arte e da literatura. 5.
Que segue os cânones preestabelecidos; acorde com
eles. (FERREIRA, 1999, p. 484).

Trata-se de uma definição classificatória fundamentada na


procedência ou na precedência de certa cultura – de base greco-
romana – e tem toda a aparência de ser uma definição que apenas
constata uma relação de fato. Seja essa relação de origem, seja ela
de poder, ―clássico‖ afirma algum tipo de relação com a antiguidade
greco-romana.
Retomo aqui uma segunda definição:

CLÁSSICO, adj. (Gram.) Essa palavra se diz apenas dos


autores que são explicados nos colégios; as palavras e os
modos de falar desses autores servem de modelo aos
jovens. Dá-se particularmente esse nome aos autores
que viveram no tempo da república e àqueles que foram

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 429


Rafael Guimarães Tavares da SILVA

contemporâneos ou quase de Augusto [...]. (DIDEROT;


D‘ALEMBERT, 1751, p. 507)2

A definição da famosa Encyclopédie tem um caráter


descritivo e potencialmente pragmático. Segundo o que fica dito,
―clássico‖ é uma palavra basicamente empregada para remeter aos
autores lidos e estudados nos colégios (isto é, nas classes). Essa
relação entre o estudo em classe e a aquisição de um estatuto
―clássico‖ por determinados autores já estava, de certo modo,
pressuposta por uma das definições do Dicionário Aurélio – na
medida em que para sobreviver ―à prova do tempo‖ uma presença
constante, desde as primeiras etapas da educação, pode ter um
papel fundamental (como de fato teve, em inúmeros casos) –, mas
na definição da Encyclopédie tem-se a leve sugestão de que uma
tautologia possa subjazer ao entendimento de ―clássico‖: ―clássico‖
é aquilo que está presente nas classes. A quem cabe a escolha do
que há de estar nessas classes é algo que será preciso ainda
questionar.
Para isso, passo à terceira e última definição:

CLÁSSICO (adj.) circa 1610, ―da mais alta classe,


aprovado como um modelo‖ do francês classique (sec.
XVII), do latim classicus ―relacionado às (mais altas)
classes do povo romano‖, daí, ―superior‖, de classis.
Originalmente em inglês, ―da primeira classe‖; com o
significado de ―pertencente a autores tradicionais da
antiguidade greco-romana‖ é atestado desde circa 1620.
(HARPER, 2016)3

2
Tradução minha. No original: « CLASSIQUE, adj. (Gramm.) Ce mot ne se dit
que des auteurs que l‘on explique dans les colléges; les mots & les façons de
parler de ces auteurs servent de modele aux jeunes gens. On donne
particulierement ce nom aux auteurs qui ont vécu du tems de la république,
& ceux qui ont été contemporains ou presque contemporains d‘Auguste [...]
» (DIDEROT; D‘ALEMBERT, 1751, p. 507).
3
Tradução minha. No original: ―classic (adj.) 1610s, "of the highest class;
approved as a model," from French classique (17c.), from Latin classicus
"relating to the (highest) classes of the Roman people," hence, "superior,"
from classis (see class). Originally in English, "of the first class;" meaning
"belonging to standard authors of Greek and Roman antiquity" is attested
from 1620s.‖ (HARPER, 2016).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 430
A dubiedade da persona de Safo

Essa definição – de base etimológica e voltada para o


desenvolvimento do adjetivo de mesmo radical em inglês – já
apresenta uma nuance que ultrapassa aquilo que se poderia julgar
meramente descritivo e pragmático. Se seu emprego tem a
pretensão de descrever, ou constatar, uma característica – na
medida em que remete ao que é ―da mais alta classe‖ –, por outro
lado, comporta uma dimensão prescritiva. Quando define ―clássico‖
como aquilo que é ―aprovado como modelo‖ envolve a noção de que
algo deva ser de certa forma. Trata-se, portanto, não apenas de uma
definição descritiva, mas também judicativa, ou seja, que sentencia
a partir de um determinado valor. Que esse valor tenha relação com
―as (mais altas) classes‖ mencionadas pelo verbete é algo que os
parênteses não conseguem escamotear.
Seria possível remontar ainda à definição do adjetivo
classicus, derivado do substantivo classis, em latim, e mostrar sua
relação com ―chamado ou convocação‖, em seguida, com ―o grupo
dos que são chamados ao combate‖ e finalmente com ―o grupo dos
cidadãos pertencentes à primeira das classes criadas por Sérvio
Túlio.‖ (ERNOUT; MEILLET, 1951, p. 223) – Mas não é preciso voltar
tanto no tempo e revisitar essas relações que sugeririam uma leitura
nietzscheana da cultura, à moda de sua Genealogia da moral.
Prefiro restringir-me a sugerir uma tessitura entre os pontos vistos
até aqui: clássico – antiguidade greco-romana – classe de aula –
classes altas. As relações entre esses pontos dispostos assim, quase
soltos, podem parecer de grande evidência para a maioria das
pessoas hoje e de uma pungência amarga justamente para aquelas
que se sentem excluídas do legado dessa ―antiguidade greco-
romana‖ e, por consequência, de tudo aquilo que vem sob a etiqueta
de ―clássico‖.
Isso parece fazer parte das razões não apenas para um
questionamento contemporâneo cada vez mais frequente do valor
dos ―clássicos‖ – dos autores e de suas obras -, mas também para
uma enorme perda do interesse pelas línguas em que muitas dessas
obras estão escritas: o grego e o latim. E outras acusações poderiam
ser somadas a um possível processo aberto contra o estudo das
clássicas hoje: para além de seu emprego ideológico (mais
estritamente ―de classe‖), seu papel na fundamentação de
identidades nacionais que levaram a uma série de desmandos ao

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 431


Rafael Guimarães Tavares da SILVA

longo da história (tal como no caso do cesarismo napoleônico e do


cesarismo fascista, além do filo-helenismo germânico)4, sua
influência sobre concepções acerca de democracia e república (não
excludentes da mão-de-obra escrava, por exemplo), de questões de
gênero, comportamento sexual, entre outros. Mas essas seriam
razões suficientes para se condenar o estudo das clássicas sem
direito a uma apelação ou recurso?
Exemplos históricos precisos sugerem que uma abordagem
dicotômica da questão pode levar a imensos riscos ao se condenar
toda uma tradição e romper completamente com ela. Riscos tão
grandes quanto (ou ainda maiores que) os problemas envolvidos por
uma abordagem tradicional do estudo das clássicas. Movimentos de
rompimento drástico com essa tradição humanística – de base
―clássica‖ – frequentemente descambam para o irracionalismo, a
violência e a recusa dos valores por meio da destruição simples
daquilo que é sumariamente julgado como ―errado‖ (o erro muitas
vezes consistindo apenas em diferenças pontuais)5. Assim sendo,
haveria uma forma alternativa para se proceder com relação a isso?
Admitir o emprego distorcido das ―clássicas‖ para
imposturas culturais é importante, mas não é porque acontecem
incêndios que se deve banir o uso do fogo. É preciso antes
desenvolver as maneiras mais interessantes de empregá-lo de forma
responsável e efetivamente empregá-lo assim, afinal, a iluminação
de ambientes, o aquecimento dos corpos, o cozimento de alimentos,
a fabricação de instrumentos seriam alguns dos benefícios perdidos
se ele fosse condenado sumariamente. É preciso evocar o papel das
―clássicas‖ para a constituição de vários campos epistemológicos,
tanto os mais tradicionais quanto os contemporâneos (desde a física
quântica até a genética e a sociologia), além de sua renovada
influência – ainda que por contraste – em inúmeras discussões em
andamento hoje. Para ficar num único exemplo: os estudos de

4
Para informações básicas – e sugestões bibliográficas – acerca desses
processos de apropriação cultural, cf. HARTOG, 2003, p. 155-186.
5
Em matéria artística, tais características se manifestaram de forma
exemplar no futurismo italiano. Os manifestos e a poesia de Marinetti são
especialmente extremistas (cf. TELES, 1973, p. 59-77).
Contemporaneamente, a atuação de grupos radicais – no Brasil e fora dele –
reforçam a relação entre rompimento com a história, recusa da tradição,
intolerância cultural, violência e irracionalismo.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 432
A dubiedade da persona de Safo

Nietzsche, tão pautados em sua formação filológica, estão na base


tanto da teoria freudiana do inconsciente quanto da crítica
foucaultiana aos discursos de poder6. Imensas são as influências
desse debate, hoje felizmente clássico, na luta antimanicomial, na
descriminalização do homossexualismo, na reconsideração do
sistema penal e carcerário, entre outros. Seria possível citar
inúmeros casos comparáveis (contemporâneos, modernos,
medievais e antigos): Simone de Beauvoir, em seu Le Deuxième Sexe,
faz longas análises das imagens e dos mitos construídos
culturalmente, admitindo esse retorno aos ―clássicos‖ como um
procedimento inevitável; Marx escreve uma dissertação de
doutorado sobre a diferença entre a filosofia natural de Demócrito e
a de Epicuro; Darwin; Kant; Rousseau; Montesquieu; Newton; Galileu;
etc... E a lista poderia se prolongar ad infinitum.
O procedimento de muitos desses autores com relação aos
―clássicos‖ – o que envolve também, consequentemente, um
posicionamento para com as ―clássicas‖ – parece envolver uma
leitura da tradição, mas uma leitura crítica. Para compreender a si
mesmos, para compreender a própria cultura e – desse modo,
compreender também os outros e suas culturas –, eles se voltam a
um estudo profundo daquilo que os constitui: sua história, sua
cultura, seus valores, suas projeções, suas imposturas e tudo aquilo
que forem capazes de discernir a partir de seu próprio ponto de
vista. Esse trabalho de discernimento oferece algumas das
ferramentas possíveis – entre inúmeras outras, passíveis de serem
desenvolvidas por outras vias – a um questionamento radical de
muitas das consequências que apontei como presentes nas relações
implicadas pelos seguintes pontos: clássico – antiguidade greco-
romana – classe de aula – classes altas. Talvez a partir dessa
perspectiva crítica seja possível desenvolver novas considerações e
propor alternativas ao estado de crise presente: alternativas
axiológicas, culturais, pedagógicas e econômicas.
Com esse intuito pretendo retomar um caso emblemático da
literatura clássica – de matriz helênica arcaica – em seus

6
Isso sem mencionar que os dois autores têm trabalhos específicos sobre
textos e assuntos relacionados diretamente à antiguidade clássica, como se
vê na Interpretação dos sonhos, no Complexo de Édipo e em Totem e Tabu –
de Freud -, ou na História da sexualidade e na Coragem da Verdade – de
Foucault.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 433
Rafael Guimarães Tavares da SILVA

desdobramentos culturais, hermenêuticos e de história da recepção.


Trata-se do célebre fr. 31 de Safo. As duas principais leituras para
esse poema encontram seu ponto de inflexão no pronome relativo
τό [isso], do quinto verso, que com seu valor demonstrativo parece
ter uma abertura larga o bastante para compreender dois referentes
diversos igualmente possíveis – a depender da interpretação dada à
totalidade do poema -, ainda que não sejam compossíveis (ou seja,
possíveis ambos ao mesmo tempo).
É preciso conferir o poema em sua íntegra para delinear em
seguida as tendências gerais da questão:

Parece-me ser par dos deuses ele,


o homem, que oposto a ti
senta e de perto tua doce
fala escuta,

e tua risada atraente. Isso, certo,


no peito atordoa meu coração;
pois quando te vejo por um instante, então
falar não posso mais,

mas se quebra minha língua, e ligeiro


fogo de pronto corre sob minha pele,
e nada veem meus olhos, e
zumbem meus ouvidos,

e água escorre de mim, e um tremor


de todo me toma, e mais verde que a relva
estou, e bem perto de estar morta
pareço eu mesma. (trad. Giuliana Ragusa)7

A primeira interpretação – que tem menos aceitação hoje em


dia desde críticas desenvolvidas ao longo das últimas décadas –,

7
Para a tradução, cf. SAFO DE LESBOS, 2011, p. 105-106. Em grego:
φαίνεταίμοικῆνοςἴσοςθέοισιν/ ἔμμεν' ὤνηρ, ὄττιςἐνάντιόςτοι/ ἰσδάνεικαὶ
πλάσιονἆδυφωνεί-/ σαςὐπακούει// καὶγελαίσαςἰμέροεν, τόμ' ἦμὰν/
καρδίανἐνστήθεσινἐπτόαισεν·/ ὠςγὰρἔςσ' ἴδωβρόχε', ὤςμεφώναί-/ σ' οὐδ' ἒνἔτ'
ἴκει,// ἀλλάκὰμμὲνγλῶσσα†ἔαγε†, λέπτον/ δ' αὔτικαχρῷ πῦρὐπαδεδρόμηκεν,/
ὀππάτεσσιδ' οὐδ' ἒνὄρημμ', ἐπιρρόμ-/ βεισιδ' ἄκουαι,// κὰδ' δέἴδρωςκακχέεται,
τρόμοςδὲ/ παῖσανἄγρει, χλωροτέραδὲ ποίας/ ἔμμι, τεθνάκηνδ' ὀλίγω 'πιδεύης/
φαίνομ' ἔμ' αὔτᾳ.// ἀλλὰ πὰντόλματον, ἐπεὶ †καὶ πένητα†...
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 434
A dubiedade da persona de Safo

apesar de seu prestígio tradicional, é a que vê no pronome τό [isso] a


intimidade com que um homem real escuta a doce fala e a risada
atraente da garota amada pela narradora8. Esse fato real seria a
causa para um ataque de ciúmes cujo quadro clínico – descrito nas
estrofes seguintes – daria detalhes exagerados justamente para
sugerir o exagero dos sentimentos dessa narradora.
A segunda interpretação do fr. 31, cada vez mais aceita hoje
em dia (embora já existisse desde a antiguidade)9 sugere que o
pronome τό [isso] estaria se referindo ao pensamento de que
quando a narradora por ventura estivesse numa posição comparável
à daquele homem, ou seja, próxima da doce fala e da risada atraente
da garota amada, não conseguiria manter a mesma indiferença que
ele – indiferença evocada justamente com uma expressão homérica,
―ísos théoisin [par dos deuses]‖ –, mas sofreria conforme a descrição
patológica das estrofes seguintes deixam ver. A figura ―daquele
homem‖ na estrofe inicial, portanto, desempenharia apenas um
papel de contraste (RACE, 1983, p. 97).
Para simplificar, é possível compreender as leituras que se
orientam pela primeira interpretação como relacionadas ao ciúme
da narradora, enquanto as que se orientam pela segunda como
relacionadas à sua paixão. A ideia do ciúme tem encontrado
resistência na bibliografia recente sobre o assunto, pois
supervaloriza a figura masculina – figura ausente nas estrofes que
se seguem à primeira. Eu me alinho a tal crítica e compreendo esse
poema como uma projeção – imaginativa – realizada pela narradora
a fim de ressaltar a profundidade de sua paixão. Com essa leitura,
―aquele homem‖ é colocado em seu devido lugar, por meio de uma
interpretação que nem ignora sua menção na primeira estrofe, nem
a supervaloriza –
como nas propostas que fariam dele a razão principal da
existência do poema. Graças aos estudos de gênero, as
interpretações de muitos dos poemas de Safo – e de demais artistas
– se veem cada vez mais livres de certas suposições falocêntricas
características de uma cultura eminentemente masculina10.

8
As concordâncias da primeira pessoa com adjetivos e particípios no
feminino indicam claramente que se trata de uma persona feminina.
9
Conforme Lidov (1993, p. 527).
10
Para uma crítica às abordagens sexistas que Page e Devereux haviam
oferecido em suas leituras do fr. 31 de Safo, cf. LEFKOWITZ, 1996, p. 29-32.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 435
Rafael Guimarães Tavares da SILVA

Ainda que a interpretação do poema não esteja encerrada, é


certo que prefiro interpretar seus versos finais como a descrição
exagerada de sintomas virtuais que afetariam a narradora se ela
fosse posta à prova da mesma forma que ―aquele homem‖. É preciso
notar que, além dos argumentos e paralelos já traçados para se
defender essa ideia, o tópos retórico em que a indiferença de uma
pessoa não afetada pela beleza da pessoa amada é comparada à
afecção hiperbólica daquele que ama adquiriu uma importância
considerável entre poetas líricos posteriores quando cantam o amor
(como Íbico e Píndaro, por exemplo) (RACE, 1983, p. 98).
Outro argumento importante, sem formulação explícita
dentre a bibliografia consultada, poderia ser proposto a partir de
uma constatação comum entre estudiosos do poema: um dos
sintomas patológicos mais perigosos para um poeta de tradição oral
(tal como é o caso de Safo) é o silêncio. Se a poeta consegue resistir
e lançar um poema que a perpetua para além de toda e qualquer
morte da voz é porque os sintomas patológicos descritos por ela
são apenas virtuais (ou seja, imaginados). Ainda que se possa
admitir a sugestão de que o emprego do termo ―ἔαγε [se quebra]‖
reproduza uma perturbação na voz da poeta (por meio do emprego
de um hiato) (O‘HIGGINS, 1990, p. 159), é certo que a descrição
exagerada dessa afecção profunda é meramente fantasiosa. Do
contrário, a potência com que as palavras desse poema são
articuladas e emitidas contradiria a profundidade da afecção
sugerida, diminuindo assim seu impacto poético.
É de se notar o intrincado jogo proposto por essa poesia a
partir de conjugações do verbo φαίνομαι [aparecer], numa estrutura
anelar: esse verbo aparece conjugado na terceira pessoa do singular
no primeiro verso, φαίνεταί [parece], ligado à figura ―daquele
homem‖ e é retomado na primeira pessoa do singular no v. 16,
φαίνομαι [pareço], ligado portanto à figura da narradora. A mudança
de sentido por que passa o radical desse verbo nos séculos
seguintes sugere que as considerações desse poema – desde a
presença ―daquele homem‖ até a manifestação dos sintomas
patológicos – seriam produto da phantasía [fantasia; imaginação]
dessa poeta (LEFKOWITZ, 1996, p. 33).
Além disso, seria possível apontar o jogo estabelecido por
Safo com o vocabulário homérico – predominante em sua tradição
poética helênica. A posição dúbia dessa poeta – inserida no seio de
uma cultura falocêntrica, ainda que ela própria fosse originária de
uma cultura alternativa – é o que torna sua poesia tão múltipla e

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 436


A dubiedade da persona de Safo

rica. É como se, tendo que dominar a linguagem empregada por


aqueles que prevalecem na sociedade – ou seja, a linguagem
masculina típica dos poemas homéricos –, Safo também pudesse
desenvolver uma linguagem própria – restrita ao universo feminino,
apartado no interior daquela sociedade – e se valesse dele para
compor uma obra multifacetada (WINKLER, 1995, p. 95). Nesse
sentido, ela ocupa um entre-lugar delicado, mas profundamente
instigante, na medida em que pode empregar os mesmos recursos
―clássicos‖ – acrescidos de recursos desenvolvidos a partir de outras
fontes – a fim de exprimir não apenas os anseios daqueles que
prevalecem socialmente, mas, aparentando fazê-lo (por meio do
recurso à linguagem prestigiada pela sociedade), pode também
arruiná-lo por dentro e de forma dificilmente detectável (na medida
em que apenas de certa perspectiva – normalmente pouco atraente
para aqueles que têm precedência social – suas estratégias poderiam
ser efetivamente compreendidas).
Safo ocupa um lugar único e exemplar na história da poesia
―clássica‖ e de sua recepção, igualmente ―clássica‖. Acredito que
esse retorno às leituras de seu fr. 31, com um esboço daquilo que é
possível propor quando certos pressupostos culturais são (pelo
menos parcialmente) colocados de lado, possa indicar uma das vias
possíveis de acesso aos estudos clássicos de forma renovada. Talvez
não seja possível se livrar totalmente de tais pressupostos, mas
atentar para as imposturas mencionadas no começo deste texto é
certamente uma das maneiras de se despertar a atenção para isso.
Em todo caso, acredito ter demonstrado que há mais de um modo
de retornar aos textos ―clássicos‖ e de relê-los à luz do tempo
presente (e, quem sabe?, do tempo futuro), a fim de esboçar
alternativas à crise presente – crise que tem relações profundas com
a herança de um passado marcado por violência, silêncio e revolta
velada.

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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 439


A CONSTRUÇÃO NARRATIVA DO GOLPE:
CONSIDERAÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO DE SENTIDO
POLÍTICO-DISCURSIVO NO PROCESSO DE
IMPEACHMENT DA PRESIDENTE DILMA ROUSSEFF

Rodrigo Seixas Pereira BARBOSA


UFMG

Resumo: O termo narrativa tem sido frequente para designar o


processo de construção discursiva em torno do impeachment da
presidente Dilma Rousseff, em que, de um lado, considera-se o ato
legítimo, de outro, um golpe. Lançam-se, assim, a construir, cada
um, narrativas políticas que revelam a formatação e estrutura do
modo de organização cognitivo e argumentativo que esses grupos
possuem, através de uma construção metafórica com fortes efeitos
retóricos. Objetivo aqui, portanto, o fazer considerações acerca
deste fenômeno, trazendo ao diálogo alguns autores da retórica, da
análise do discurso, da cognição e da comunicação.

Palavras-chave: Narrativa; Golpe; Retórica; Cognição; Política.

Introdução

No último ano, o Brasil viveu um período de intenso fervor


político, motivado tanto pelos resultados e consequências das
investigações da Polícia Federal, na operação Lava-Jato ― que
envolveu diversos políticos de partidos importantes do cenário
nacional ―, como também pelo desenrolar do processo de
impedimento da então Presidente da República, Dilma Rousseff,
acusada de cometer crime de responsabilidade.
Hoje, nos primeiros meses do ano de 2017, após confirmado
o afastamento da presidente por processo de impeachment, fica um
pouco mais possível fazer uma análise objetiva de alguns
fenômenos linguístico-discursivos que me chamaram a atenção

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


A construção narrativa do golpe

durante todo esse processo jurídico-político, mas também midiático,


tão marcante para o ano de 2016. Um desses processos, o qual
tratarei aqui em linhas breves, é sobre a reconstrução narrativa de
fatos políticos e de alguns conceitos circulantes no campo político e
social em questão, que revelam uma organização especialmente
narrativa não só do discurso como também do próprio pensamento
humano.
É o conceito de narrativa, a propósito, que nos interessa
problematizar neste ensaio e que tem aparecido, no atual cenário
brasileiro, como objeto central de toda uma disputa simbólico-
política. As expressões ―narrativa do impeachment‖ ou ―narrativa do
golpe‖, por exemplo, apareceram com frequência nos meios
midiáticos, sobretudo em editoriais de jornais de referência (como O
Globo, O Estado de São Paulo, por exemplo) ou em revistas de
artigos de opinião (como Carta Capital), imbuídas de valor positivo
ou negativo, a depender da posição ideológica dos seus autores.
Ademais, havendo, nesse sentido, óticas distintas para a
apropriação axiológica do processo de impeachment, natural é que
tenha se instituído aí uma polêmica em torno da disputa sobre qual
narrativa corresponde com a realidade.
Parece-me necessário adiantar que compreendo a narrativa
para além do tipo discursivo da literatura ou, pontualmente, sobre
obras de ficção. Narrativa, aqui, transcende a ficção para se ocupar
também com a realidade, com a factualidade, tornando-se mesmo
difícil identificar em que medida são fictícias e em que medida são
factuais as ―narrativas‖ em questão. Podemos, a propósito,
identificar tal fenômeno presente nas escritas narrativas
historiográficas, comumente carregadas de reconstrução subjetiva
do historiador, o que põe em questão não mais o viés fictício da
construção narrativa, mas antes o seu viés de perspectiva.
Ricoeur (2007) considera a instituição temporal ― um dos
constituintes narrativos ― o fator preponderante nesse tipo de
fenômeno. Ele indica que a revisitação do passado no presente é, na
verdade, uma reefetuação, a saber, uma ―reapropriação‖ do passado
pelo próprio historiador, ―reapropriação‖ esta que se institui através
de uma construção metafórica do sentido. Em outras palavras, tal
reefetuação seria, com efeito, uma reconstrução da realidade
passada no presente, valendo-se do poder metafórico da linguagem
e do pensamento para transportar sentidos e valores.
Considero, não obstante, que a ―reapropriação‖ da história, a
reconstrução dos fatos, a reefetuação de memórias se manifestam

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 441


Rodrigo Seixas Pereira BARBOSA

igualmente, por exemplo, em discursos políticos os mais variados,


como pronunciamentos presidenciais, propagandas partidárias,
cartas abertas com cunho político e, sobretudo, nas construções
narrativas midiáticas sobre fatos políticos. Nesse caso, em especial,
percebo uma construção narrativa com interesses ainda mais
retóricos, na medida em que os autores midiáticos buscam recriar
mundos, reconstituir sentidos através de uma reorganização dos
fatos sociais. Retórica e narrativa se aproximam, assim, com comum
finalidade persuasiva, mas a disposição narrativa de organização do
discurso nos revela ainda muito para além disso: revela-nos uma
constituição cognitiva específica no ato argumentativo e discursivo,
revela-nos a própria estrutura de organização mental.

1. O Homo narrans e o Homo rhetoricus

Primeiramente, quando se fala em ―narrativa‖, é preciso


explicar o que se apreende do termo e para o que se pretende valer
desse conceito. Este ensaio não se trata de uma obra específica de
narratologia e tampouco me interessa perpassar por todos os
conceitos e características da narrativa desde sua identificação
enquanto um macrogênero textual e discursivo ou, ainda menos, na
sua aplicação crítica em estudos de literatura e obras literárias.
Desperta-me o interesse, na verdade, sobre o fenômeno retórico-
discursivo de construção de realidades e que é regido pela
organização narrativa. Isso permite dizer que as ―verdades‖ no
mundo social são cada vez mais marcadas pela natureza narrativa
da enunciação. Isso não significa dizer que estamos vivenciando um
enfraquecimento da argumentação objetiva, de característica
informativa e dissertativa, na construção de realidades pelos meios
midiáticos, mas sim que a própria construção narrativa da realidade
social está cada vez mais argumentativa, cada vez mais retórica.
Aqui, valho-me da contribuição da linguista Ruth Amossy (2005)
para afirmar que tais textos midiáticos (normalmente
argumentativos e referenciais) concedem à narrativa um nível
argumentativo cada vez mais tendente a uma orientação
argumentativa propriamente dita do que a apenas uma dimensão,
conforme lhe é convencionalmente determinado. A narração é, por
conseguinte, também retórica.
Isso fica ainda mais evidente quando Rabatel (2016, p. 24)
afirma que o Homo narrans é ―aquele que é capaz de se colocar no
lugar do outro, até mesmo de vários outros, antitéticos ou

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 442


A construção narrativa do golpe

complementares, capaz de entrar nos raciocínios uns dos outros, de


fazê-los dialogar‖. Ora, aqui fica patente a relação que o linguista
faz com a essência intersubjetiva e a capacidade empática que o
Homo narrans possui, duas características inerentes ao próprio
fenômeno retórico. Em outras palavras, a intersubjetividade inerente
ao processo discursivo exige que a empatia seja prática sine qua non
para a efetivação da persuasão e dos acordos na arena social. A
capacidade narrativa de reagrupamento das vozes múltiplas da
sociedade é, de fato, também uma capacidade retórica,
indispensáveis para a consolidação dos corpos políticos e sociais.
Retórica e narração, siamesas como o são o Homo narrans e
o Homo rhetoricus ajudam a compor, assim, o homem social, o
homem que diz no mundo, que comunica suas verdades e que
argumenta suas posições, o sujeito da enunciação. A narração é
talvez a própria essência comunicativa do ser humano. Quanto a
isso, Luiz Gonzaga Motta afirma que

Quando narramos algo, estamos nos produzindo e nos


constituindo, construindo nossa moral, nossas leis,
nossos costumes, nossos valores morais e políticos,
nossas crenças e religiões, nossos mitos pessoais e
coletivos, nossas instituições. Aquilo que incluímos ou
excluímos de nossas narrações depende da imagem
moral que queremos construir e repassar. Através das
narrativas, recobrimos nossas vidas de significação. Elas
reiteram e confirmam o canônico, nomeiam e explicam o
desviante, legitimam e estabilizam o mundo. Na
narrativa, imitamos a vida. Na vida, imitamos a
narrativa. (MOTTA, 2013, p. 18-19).

A afirmativa acima do professor de comunicação da UNB é


crucial para o que entendo como narrativa: uma construção de
mundos de sentido em detrimento de outros. A seleção do que se
informa como verdade é, inclusive, uma característica
eminentemente retórica e ideológica, em que se busca persuadir o
interlocutor apresentando-lhe mundos possíveis de significação.
Sabe-se, no entanto, que, apesar de ser a retórica uma
construção de sentidos possíveis (e não necessários, tal como na
lógica), tais narrativas tendem a estabelecer relações de sentidos
hegemônicos. Ocorre que elas almejam produzir efeitos de sentido
persuasivos que estabeleçam, no espíritodos interlocutores
pretendidos, uma relação de necessidade, ou seja, de condição única

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 443


Rodrigo Seixas Pereira BARBOSA

para que algo seja dado como verdade. A ideologia, nesse ponto,
assume seu papel de simplificadora das realidades do mundo,
porquanto tende a apresentá-lo através de apenas uma perspectiva
hermenêutica.
Além disso, a narrativa é retórica também pela
performatividade que ela exige dos seus atores e autores no ato de
enunciação. Performance aqui admite dois sentidos. O primeiro,
com efeito, porquanto o ato enunciativo pode ser comparado a um
teatro, na medida em que se trata de processos simbólicos de
representação. Os atores linguageiros, assim como nos afirma
Charaudeau (2008), não apenas representam a fala/escrita com
artimanhas e estratégias retóricas, estilísticas precisas ou com
oratórias magníficas (logos), mas também, já representam a si
mesmos e aos outros pela construção de identidades no discurso
(ethos), na representação de emoções para comover e persuadir o
seu espectador (pathos).
O segundo sentido diz respeito ao caráter da enunciação
como um ato em si, em que os enunciadores visam a agir sobre seus
enunciatários, objetivando fazê-los mudar de estado, de posição, de
ideia, de emoção, de razão. Não à toa, Fiorin (2005) afirma que todo
ato de enunciação é uma performance e toda teoria narrativa é,
antes de mais nada, uma teoria da ação.
Outra importante característica da retórica e da narrativa
está no encontro que ambas têm com a enunciação, uma vez que
ambas entendem a interação como uma coconstrução, ou seja, os
sentidos são construídos pela intersubjetividade e pelos vínculos
sociais e psicológicos que se estabelecem entre os interactantes.
Considero, nesse quesito, as contribuições de Bakhtin (2012) mais
do que importantes. Considerado como um dos primeiros teóricos
da enunciação (apesar de não ter assim se denominado) por uns e
também um analista de discurso avant-la-lettre por outros, o
filósofo russo entendia a interação e a interatividade, intrínseca e
extrínseca ao enunciado, como constituintes do ato enunciativo.
Para ele, a enunciação é tanto dialógica na natureza do próprio
enunciado (intrínseca), pois o enunciado se relaciona, interage com
outros enunciados anteriores e posteriores como um ato responsivo
fundamental; como também é a enunciação dialógica (extrínseca)
porque é sempre uma interação com o outro, com uma alteridade
constitutiva do discurso e que, portanto, apenas faz sentido
levando-se em conta os enquadramentos comunicacionais e
socioculturais que regulamentam o dizer. Dessa forma, a enunciação

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 444


A construção narrativa do golpe

é retórica porquanto é sempre um ato de alguma dimensão


argumentativa, pois se estabelece como resposta a um outro, uma
(re)ação ao/sobre outro. É, logo, também narrativa, na medida em
que elas se desenvolvem por relações de coconstrução de sentido e
pela interação entre os coatores, personagens que se
interrelacionam em um dialogismo profundo na história e sem fim
peremptório. O Homo narrans é assim também um Homo rhetoricus,
faces componentes do homem político e social.

2. A construção retórica e narrativa de realidades no mundo

A realidade é uma construção. O que entendemos como


verdadeiro e tudo o que se constitui automaticamente falso por
oposição é também apenas uma construção. Isso não significa dizer
que tudo é relativo e que não existem verdades, mas sim que, em
mundo plural, vasto e heterogêneo como o nosso, a posição que
admite apenas uma verdade, absoluta, dos fatos sociais é, no
mínimo, perspectivista. A prova que a perspectiva é razoável ou não,
em comparação a outras perspectivas, é a grande empreitada
retórica da qual os interactantes lançam mão. As realidades são,
assim, discursos, construções contingentes de sentido.
A propósito, para Charaudeau (2008), o que se procura
reivindicar em uma narrativa é justamente o verdadeiro, o que me
permite inferir que, ao se narrar um fato ou uma história como
verdadeira, automaticamente se apaga outras possíveis versões da
mesma história. Por assim dizer, a narrativa política poderia ser
entendida como uma organização discursiva em que se processam
os acontecimentos sócio-políticos de maneira estratégica a definir
uma trama hegemônica do verdadeiro sentido dos fatos, atuais e
históricos.
Ainda segundo Charaudeau (2008, p. 157), o modo narrativo
―leva-nos a descobrir um mundo que é construído no desenrolar de
uma sucessão de ações que se influenciam umas às outras e se
transformam num encadeamento progressivo‖. Isto significa dizer
que os sentidos dentro de uma narrativa são construídos no
desenrolar do próprio processo narrativo. Não são concebidos,
dessa forma, apenas como imutáveis já-dados pela história, mas
como uma ―realidade‖ que se modifica de acordo com a apropriação
que se faz dela.
Paveau (2013, p. 94) afirma igualmente que ―os discursos são
tanto imagens da realidade quanto construções dessa mesma

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 445


Rodrigo Seixas Pereira BARBOSA

realidade, são maneiras de fazer mundos‖. Fiorin (2005), quanto a


isso, lembra-nos que assumimos pelo discurso a posição de deuses,
porquanto temos o poder de, pela linguagem e, mais
especificamente, pela narratividade da linguagem, construir e criar
mundos.
O ato de criação de mundos, a propósito, é também um ato
cognitivo porque a criação sucede à organização mental que cada
indivíduo faz do mundo, como ele lê o mundo e a realidade através
de sua inscrição dóxica. Em outras palavras, o sujeito, apesar de
portador de individualidade, é atravessado por determinadas
representações sociais que formatam o seu pensamento de dado
modo e não de outro. Por assim dizer, os estudos de cognição social
afirmam que o homem organiza e apresenta o mundo de acordo a
determinados modelos mentais, os quais prefiro chamar de lógicas
cognitivas, que são consequentemente, lógicas argumentativas, na
medida em que o ato cognitivo e o ato argumentativo são
interdependentes.
A narrativa, em um plano mais holístico, fornece a primeira
dessas lógicas cognitivas, uma macrológica organizadora do
pensamento e do discurso. Pensamos e apreendemos a realidade do
mundo através de uma lógica narrativa. Para Motta,

o cânon organizador da experiência é narrativo, mais


que conceitual. Ao ordenar suas ideias em pensamentos
coerentes em busca de significados, os sujeitos
encadeiam as relações possíveis na forma cronológica
ou causal, estabelecendo provisoriamente um antes e
um depois, um antecedente e um consequente, uma
causa e uma consequência, até chegar ao senso comum
partilhado (MOTTA, 2013, p. 31).

A lógica da narrativa, doravante narratividade, possibilita o


surgimento de uma estrutura discursiva na qual os sujeitos
disputam entre si pela hegemonia da verdade e do sentido último
das coisas. Destarte, a narratividade favorece o aparecimento de
narrativas de sentido, modos narrativos de organizar o discurso
para que uma versão dos fatos seja acreditada como a verdadeira
em detrimento da outra.
Nesse processo, frequentemente característico pelo tom
erístico das disputas ideológicas, mesmo o direito de uso de certas
palavras e conceitos são objeto de disputas, como que se a

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 446


A construção narrativa do golpe

legitimidade de uso de tais palavras e conceitos se estabelecessem


como prêmio final em uma arena de batalha semântica.
A partir dessa perspectiva, tenho observado a ocorrência de
disputa pelo uso de dois termos dentro do contexto do
impedimento: o próprio uso do termo narrativa, conforme já
apresentamos (narrativa do impeachment, ou narrativa do golpe) e
o próprio termo golpe.
Veremos, nas últimas seções, que tais termos ganham
sentidos distintos a depender da lógica argumentativa e
sociocultural que fundamentam as posições, e que, inclusive, apenas
em uma narrativa política de reconstrução da realidade social, pela
sua própria característica metafórica, é que podemos discernir os
efeitos, quase catárticos, de sentidos possíveis e que explicam a
forte natureza retórica de tal fenômeno.

3. A estrutura narrativa e metafórica da cognição e a construção


do sentido

Afirmei anteriormente que o ato cognitivo é responsável por


seleção e organização dos elementos do mundo para que façam
sentido à nossa razão. Pessoas diferentes podem depreender
sentidos diferentes de um mesmo fato social, por exemplo,
possivelmente porque suas cognições são estruturadas de maneiras
distintas. Isso se dá, em alguns casos, por processos neurológicos
que não vêm aqui ao caso (mesmo por falta de ferramentas
possíveis para aprofundamento), mas, na maioria das vezes, isso se
dá pela formação sociocultural do indivíduo.
Uma vez que formatados mediante determinada lógica
sociocultural e não outra, passamos a organizar o mundo a partir de
chaves de leitura apropriadas à nossa inscrição, ao nosso
pertencimento, em coadunação com as representações sociais que
nos atravessam e constituem a nossa identidade no seio social.
Passamos, assim, a narrar o mundo de acordo a uma determinada
lógica sociocultural. Conforme Motta, a narrativa ajuda o ―homem e
as coletividades a se situarem no mundo e na história‖ (MOTTA,
2013, p. 70). Ainda segundo o autor, ela [a narrativa]

põe naturalmente os acontecimentos em perspectiva,


une pontos, ordena antecedentes e consequentes,
relaciona coisas, cria o passado, o presente e o futuro,
encaixa significados parciais em sucessões temporais,

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 447


Rodrigo Seixas Pereira BARBOSA

explicações e significações estáveis (MOTTA, 2013, p.


71).

Tal configuração narrativa se revela no nosso próprio modo


de pensar. Pensamos o mundo de maneira organizada através de um
script de sentido, pois precisamos de uma lógica narrativa para que
o enredo ganhe coerência. Por essa razão, compreendemos o mundo
através de uma relação profunda com o tempo, o espaço e com as
pessoas, personagens de uma verdadeira trama cognitiva.
A narrativa imita a vida como a vida imita a narrativa. Esta
imitação, chamada pelos gregos clássicos de mimesis, é justamente a
reconstrução da realidade pelo ―narrador‖. Para Ricoeur (2000), a
mimese narrativa é uma metáfora da realidade, ―refere-se à
realidade não para copiá-la, mas para lhe outorgar uma nova leitura,
um novo significado‖ (MOTTA, 2013, p. 72).
Ora, uma vez que tanto a estrutura cognitiva como a
estrutura discursiva em questão são narrativas e metafóricas, e que
todo esse processo possui intensa relação com a configuração
retórica do discurso, entendo que seja perfeitamente possível
observar tais fenômenos em textos midiáticos que tratem de uma
reconstrução de fatos sociais e políticos. Por essa razão, escolhi dois
textos, apenas como ilustração — mas que podem ser consultados a
posteriori — que nos permitam verificar tal fenômeno na prática. É
preciso reforçar que este escrito se trata de um breve ensaio, fruto
de uma apresentação e discussão do tema neste congresso da UFOP,
de maneira que não me delongarei, e nem teria espaço, para uma
análise mais profunda de todas as implicações possíveis desses
fenômenos em variados e distintos textos de corpus. Proponho
apenas essa breve verificação como apoio para o argumento que
aqui faço presente.

4. A narrativa política do impeachment: dois lados da mesma


“história”.

A narrativa política é marcada pela disputa ideológica. Uma


vez que narramos para fazer prevalecer nossos valores, nossas
perspectivas, nossos modos de ver o mundo, narramos dentro de
um enquadramento ideológico determinado. Conforme disse
anteriormente, os nossos pensamentos são formatados por uma
dada inscrição dóxica que nos disponibiliza formas possíveis de ler e
olhar o mundo, que formata nossos modos de argumentar. As

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 448


A construção narrativa do golpe

lógicas argumentativas presentes na narratividade constitutiva do


ato de cognição humana são passíveis de serem identificadas nas
marcas enunciativas deixadas pelos sujeitos do discurso. Como bem
pontua Motta (2013, p. 11), ―na impossibilidade de se observar o ato
em si, estudam-se então as marcas da enunciação presentes no texto
[...], pois é através da linguagem que os homens se constituem
cognitivamente como sujeitos [...]‖.
Pois bem, de um lado da polêmica acerca do impeachment,
temos um grupo favorável ao processo e, de outro, um grupo
contra. Enquanto que os favoráveis ao processo consideram
legítimo, democrático, constitucional e mesmo necessário para a
então situação político-econômica brasileira, os contrários, de
maneira bastante intensa, consideram o processo como um golpe.
Entre disputas conceituais acerca da validade de uso do conceito
golpe¸ narrativas foram se construindo, de ambos os lados, para
sedimentar ou rechaçar a ideia de que o impeachment foi golpe. Os
fatos passaram, assim, a serem recontados, narrados por diferentes
instâncias jornalística e midiáticas, cada um levando em conta,
como não poderia ser diferente, a sua perspectiva ideológica.
Conforme disse, a narração é um eterno retorno a si mesmo, em que
o ―narrador‖ reconstrói a realidade histórica com seus valores e
através de sua própria chave de leitura cognitiva do mundo.
Em uma carta aberta com o título Carta aberta a Dilma
Rousseff, escrita em sua revista Carta Capital, o editor Mino Carta
inicia seu texto afirmando que o segundo mandato da presidente
Dilma Rousseff havia sido interrompido ―ignominiosamente pela
manobra golpista urdida à sombra da casa-grande‖ revela, de
pronto, a inscrição dóxica à qual o autor se filia. Trata-se,
obviamente, de um sujeito engajado com a causa progressista
brasileira, militante de um partido de esquerda e editor de uma das
principais revistas representantes do pensamento progressista no
Brasil. Para ele, e para tantos outros atravessados pela mesma
ideologia, o impedimento foi um golpe praticado pela ―casa-grande‖,
ou seja, pela elite branca e conservadora, que oprime e se aproveita
de uma classe prejudicada e escravizada. A relação metafórica dos
fatos, nesse trecho narrativo inicial, revela como se organiza a
estrutura retórico-discursiva em questão. Trata-se de uma
reefetuação de uma realidade passada, através de uma apropriação
de memórias de tempos da escravatura, para que haja um
deslocamento dos sentidos e dos efeitos patêmicos possíveis de
serem causados com tal estratégia retórica. A mesma lógica se

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 449


Rodrigo Seixas Pereira BARBOSA

repete quando, posteriormente, Mino Carta passa a comparar o


processo de impedimento atual com o golpe de 64, na tentativa de
transportar o mesmo sentido de uma identidade ditatorial nos fatos
da época para os fatos atuais.
A trama parece bem instituída, com personagens claros
(elite, povo, escravos, senhores, golpeada presidente Dilma
Rousseff, golpista Temer), e o enredo é alimentado por lógicas
argumentativas bastante patentes (lógica maniqueísta, lógica do
ressentimento), que se caracterizam pela existência sempre de dois
lados opostos na história, em que um representa o bem e o outro o
mal, e que o lado do bem é sempre vítima da opressão do lado do
mal.
Por outro lado, a estratégia do lado oposto dessa polêmica é
justamente o de quebrar com a validade metafórica de transposição
do sentido. O editorial de O Globo, do dia 29/08/2016, com o nome
Visão delirante, assim como já patente no título, tenta provocar no
leitor uma ideia de que a presidente Dilma Rousseff e todos os seus
apoiadores estão loucos e presos em suas próprias narrativas sem
sentido, e que suas visões deliram a todo instante. Em certo
momento, o autor [O Globo] começa a descontruir os argumentos
dos governistas e apoiadores de que o impeachment seria golpe
através de uma construção narrativa em que a grande estratégia
parece ser a de comprovar quão ridícula e delirante é a narrativa do
golpe. Em certo momento, o jornal afirma que ―o pronunciamento
da presidente afastada visa também a reforçar uma ‗narrativa‘ pela
qual, aprovado, o impeachment terá sido uma conspiração das
‗elites‘ feita sob o ‗silêncio cúmplice da mídia‘. Trata-se de um
delírio conveniente, para encobrir o desrespeito, comprovado de
forma sólida, da Constituição e da Lei de Responsabilidade‖. É
possível compreender aqui que o tom assumido pelo jornal é de
desdém para com a estratégia retórico-discursiva dos contrários ao
impeachment, almejando, a todo momento, descontruir a narrativa
do golpe.
A partir disso e elegendo o Jornal O Globo como um possível
representante desse grupo social e ideológico, pontuo que a leitura
cognitiva dos sujeitos que entendem o processo de impeachment
como legítimo revela a inexistência, por exemplo, das lógicas
argumentativas maniqueísta e do ressentimento em sua estrutura,
pelo próprio tom de desdém com o qual o jornal lhes identifica. Por
outro lado, da mesma forma, entendendo Carta Capital como
possível representante do grupo contrário ao processo de

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 450


A construção narrativa do golpe

impeachment, afirmo que tais lógicas supramencionadas são


estruturas cognitivas frequentes no modo com o qual tais grupos
organizam suas realidades.

Considerações finais

A proposta deste ensaio, conforme já pontuada, não foi a de


comprovar cientificamente os argumentos que avanço, nem a de
analisar profundamente os textos de corpus que cito. Trouxe tais
textos como apoio para exemplificar um fenômeno que considero
importante para os atuais estudos retórico-discursivos, e também
políticos, na medida em que apontam para uma pouco explorada
abordagem do discurso político: a abordagem retórica e cognitiva,
que enxerga na narrativa, a estrutura organizacional do sentido por
meio, sobretudo, da relação metafórica.
Ser ou não ser golpe. Quanto a isso, não me cabe responder
ou opinar, mesmo porque a resposta não deixa de ser um produto
discursivo de um pertencimento dóxico específico. Tratar-se-ia,
mesmo no caso deste analista que aqui escreve, de apenas uma
perspectiva sobre os fatos políticos em questão, uma forma de
leitura da realidade, uma disposição cognitiva específica e
estruturada. Seria talvez, e em última instância, de mais uma
reapropriação da realidade, através de uma narrativa (ensaística que
seja) ocultada em vestes científicas de objetividade e
imparcialidade. Interessa-me nada disso, mas apenas a possibilidade
de apresentar uma forma crítica de análise dos fatos sociais, uma
forma mais profunda de reconhecimento das estruturas retóricas e
cognitivas que constituem o processo narrativo de apresentação das
―realidades‖ políticas e sociais.

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______. A metáfora viva. Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola,
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Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 452


“DEUS ERA A PALAVRA E A PALAVRA ESTAVA COM
DEUS”: UM PERCURSO ESTÉTICO-FILOSÓFICO EM “O
RECADO DO MORRO”, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Rodrigo Vieira Ávila de AGRELA


UFMG/UEMG

Resumo: A intenção deste trabalho é abrir uma discussão sobre a


obra roseana à luz das teorias filosóficas e literárias surgidas antes
e durante o movimento romântico. Para este percurso estético-
filosófico, destacaremos o texto literário ―O recado do morro‖, de
Corpo de Baile (1956).

Palavras-chave: Guimarães Rosa; Corpo de Baile; Romantismo;


Parábase; Ironia romântica.

Resumen: trabajo tiene como intención, abrir una discusión sobre la


obra roseana a la luz de las teorías filosóficas y literarias surgidas
antes y durante el movimiento romántico. Para este recorrido
estético-filosófico, se destaca en el presente trabajo, el texto literario
―O recado do morro‖ de Corpo de Baile (1956).

Palabras-clave: Guimarães Rosa. Corpo de Baile. Romanticismo.


Parábasis. Ironía romántica

Naquela época os
habitantes de Tebas
estavam alarmados com
a Esfinge, que vinha
devorando os tebanos,
incapazes de decifrar os
enigmas propostos pelo
monstro, pondo em
perigo a cidade toda.
(Édipo Rei, Sófocles)
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
Rodrigo Vieira Ávila de AGRELA

– Que que disse? Del-rei,


ô, demo! Má-hora, esse
Morro, ásparo, só se é de
satanaz, ho! Pois-olhe-
que, vir gritar recado
assim, que ninguém não
pediu: é de tremer as
peles... Por mim, não
encomendei aviso, nem
quero ser favoroso... Del-
rei, del-rei, que eu cá é
que não arrecebo dessas
conversas, pelo
similhante! Destino,
quem marca é Deus,
seus Apóstolos! E que
toque de caixa? É festa?
Só se for morte de
alguém... Morte à
traição, foi que ele
Morro disse. Com a
caveira, de noite, feito
História Sagrada, del-
rei, del-rei!...
(―O recado do Morro‖,
Guimarães Rosa)

O pensamento quer se
tornar ação; o verbo,
carne. E milagre! Tal
como o deus da Bíblia,
basta que o homem
exprima seu pensamento
para que o mundo tome
forma, para que se faça
luz ou treva, para que
as águas se separem da
terra firme ou mesmo
para que surjam feras
selvagens. O mundo é a
rubrica da palavra.
(Heinrich Heine)

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 454


“Deus era a palavra e a palavra estava com Deus”

Entre o ingênuo e o sentimental

O resgate do elo entre homem e natureza foi um dos


empreendimentos de ―O Recado do Morro‖ como resultado de uma
cisão inacabada do mundo moderno. Essa cisão pode ser pensada a
partir da relação problemática entre natureza e cultura, nos termos
do livro Poesia ingênua e sentimental (1800), de Friedrich Schiller. A
proposta desse trabalho é traçar algumas reflexões sobre o texto ―O
recado do morro‖ à luz das teorias estéticas do início da
modernidade literária, considerando a crítica de arte romântica
como um instrumento de percepção de uma fusão – ou terceira
possibilidade – entre as formas clássicas e modernas de uma teoria
progressiva da arte, ou nas palavras de Friedrich Schlegel, no
famoso fragmento 116, de uma poesia universal progressiva infinita
(SCHLEGEL, 1997, p. 64-65). Vale ressaltar que o tema é tratado aqui
por nós do mesmo modo como Lacoue-Labarthe e Nancy, ou seja,
pensando no Romantismo como um projeto teórico que inaugura o
absoluto da literatura tanto como poesia e como poiesis (LACOUE-
LABARTHE; NANCY, 2012, p. 33) Além do mais, acredita-se que a
Ironia romântica – esclarecendo que o termo faz parte de uma
reflexão metacrítica e, por isso, não datada – é capaz de produzir o
paradoxo, produzir infinitos pontos de esclarecimento sempre que à
obra de arte o expectador retorna.
As estórias de Corpo de baile estão localizadas em um Sertão
ausente de instituições e de lei; mas esse mundo sertanejo passa
por transformações e mudanças sugeridas pela penetração de
elementos que representam a modernidade. Sua cosmovisão é o
distanciamento entre a natureza e o homem, uma ruptura da
totalidade essencial da vida, conforme A teoria do romance, de
Georg Lukács.
A teoria do romance, de Georg Lukács, foi esboçada nos anos
de 1914-1915 e só mais tarde publicada em forma de periódico, em
1916, – Revista de estética e de história geral da arte – e em 1920
como livro. Segundo o prefácio do autor, o livro surgiu a partir da
eclosão da guerra de 1914: ―o efeito que a aclamação da guerra pela
social-democracia exercera sobre a inteligência de esquerda‖
(LUKÁCS, 2010, p. 07). O livro pode ser considerado um dos mais
importantes escritos da sua fase inicial. Nele o autor desenvolve
cuidadosamente o conceito de épica como resultado da integração
do indivíduo na comunidade, em que não havia uma separação entre
as possíveis aventuras do herói e a história da comunidade, sendo o

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 455


Rodrigo Vieira Ávila de AGRELA

indivíduo ficcional inseparável daquela: ―O herói da epopeia nunca


é, a rigor, um indivíduo. Desde sempre se considerou traço essencial
da epopeia que seu objeto não é um destino pessoal, mas o de uma
comunidade‖ (LUKÁCS, 2010, p. 67).
A teoria do romance esboçada por Lukács remete às teorias
de uma crítica de arte surgida no primeiro Romantismo Alemão –
Frühromantik –, e tendo como principais expoentes de uma teoria
da literatura, da história, da filosofia e da crítica os autores
Friedrich Schlegel e Friedrich Schiller, autores alemães que se
ocuparam com a antinomia clássico/moderno presente até os
nossos dias. O húngaro pareceu realizar a teoria que Schlegel
desejou um dia fazer:
Se viesse à luz o que sugeri como exemplo, eu me
animaria a tentar uma teoria do romance, que fosse uma
teoria no sentido original da palavra: uma visão
espiritual do objeto, de todo o coração serena e alegre
[...] Semelhante teoria do romance teria de ser, ela
mesma, um romance que reproduzisse fantasticamente
cada nota eterna da fantasia e que de novo gerasse o
caos do mundo dos cavaleiros andantes (SCHLEGEL,
1994, p. 68).

A relação dos antigos com a natureza era completamente


distinta da dos modernos. Os gregos tinham como suporte o desejo
pelo conhecimento de sua realidade mais expressiva; por outro lado,
os modernos criaram um afastamento entre o homem e a natureza,
o que despertou a tentativa de forjar uma arte tão acabada quanto a
do passado. Contudo, segundo os primeiros românticos, o núcleo da
poesia moderna não seria mais oriundo do mundo da totalidade do
ser, ou melhor, a arte moderna não seria uma representação do
mundo grego, pelo contrário: a arte moderna agora tem sua
essencialidade formada a partir da subjetividade do sujeito e do
artista. A mitologia dos antigos seria uma forma de expressão de
um presente almejando um salto para o futuro. Diante dessa
reelaboração das formas antigas na modernidade ocidental, nascem
duas maneiras de se relacionar com a natureza: ser natureza ou
buscar a natureza (SCHILLER, 1991, p. 60). Esses dois polos
pertenceriam ao mundo dos sentidos e ao mundo das ideias, que
correspondem, respectivamente, ao poeta ingênuo e ao poeta
sentimental.
Para Friedrich Schiller, a poesia ingênua revela uma relação
harmônica com o natural. Essa mesma relação, espontânea em si

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 456


“Deus era a palavra e a palavra estava com Deus”

mesma, mostra que a obra do poeta ingênuo não é artificial


(SCHILLER, 1991, p. 57). A essa espontaneidade do poeta antigo se
opõe o poeta sentimental, ou moderno. Este produz uma poesia
construída por meio da racionalidade, sendo a beleza apenas como
resultado da consciência e do trabalho que transformaram a
natureza em ideia. O poeta sentimental tem sua experiência por
meio da ruptura entre o homem e a natureza.

Vemos, então, na natureza irracional apenas uma irmã


mais feliz que permaneceu no lar materno, de onde, no
excesso de nossa liberdade, precipitamo-nos no
desconhecido. Com doloroso anseio, desejamos para lá
voltar tão logo começamos a experimentar os tormentos
da cultura e a ouvir, nos país longínquo da arte, a
comovente voz materna. Enquanto meros filhos da
natureza, fomos felizes e perfeitos; tornamo-nos livres,
e perdemos as duas coisas. Surge daí uma dupla
nostalgia, e bastante desigual, em relação à natureza:
uma nostalgia de sua felicidade e uma nostalgia de sua
perfeição. O homem sensível só lamenta a perda da
primeira; apenas o homem moral pode entristecer-se
pela perda da segunda (SCHILLER, 1991, p. 53).

Essa relação de retorno a um mundo panteísta, segundo


Schlegel (1994), foi responsável por fundar uma nova mitologia,
sendo a expressão poética a forma de conhecimento da realidade
mais profunda. Essas ideias surgiram com grande força na
Alemanha e propagaram-se na corrente literária da época, o
Romantismo. Para René Wellek (1963), há na literatura alemã uma
unidade fundamental:

É a tentativa de criar uma nova arte diferente da do


século XVII. Esta nova perspectiva dá ênfase à totalidade
das forças do homem, não somente à razão e
sentimento, mas à intuição, ‗intuição intelectual‘, a
imaginação. É um ressurgimento do neoplatonismo, um
panteísmo (quaisquer que sejam suas concessões à
ortodoxia), um monismo que chegou a umaidentificação
de Deus e do mundo, da alma e do corpo, do sujeito e do
objeto (WELLEK, 1963, p. 149, grifos nossos).

Nesse contexto histórico-filosófico, os membros do primeiro


Romantismo se ocuparam em perscrutar e discutir a possibilidade

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 457


Rodrigo Vieira Ávila de AGRELA

de surgimento de uma nova arte. Apesar de ser acolhida de acordo


com as características do país em que se instala e, principalmente,
de acordo com a língua. Para os membros de Jena1, faltava-lhes uma
mitologia, tal como os antigos. Daí a necessidade de uma criação
original. Esse processo de invenção não seria de qualquer forma: a
nova mitologia deveria surgir do mais íntimo do espírito, deveria ser
―uma expressão hieroglífica da natureza circundante‖ (SCHLEGEL,
1994, p. 54). Nessa ―sinfilosofia‖ schleguiana – a filosofia em
simpósio – os românticos representados no livro mostram o desejo
obsessivo dos românticos pela linguagem primeva, ou primitiva.
Goethe, que encabeçou o Sturm und Drang e influenciou o
movimento romântico, principalmente Friedrich Schlegel – apesar
das diferenças entre eles –, tentou criar novos mitos na sua
literatura, ilustrando poeticamente a relação Deus e mundo, pois
para ele a base de toda a existência é ver Deus na natureza e a
natureza em Deus – concepção inspirada por Spinoza. O que torna a
poesia a responsável por conservar o ideal das coisas, seja do
homem ou da natureza – é o mais íntimo mistério da arte e da
ciência. Como afirma o personagem Lothario, do livro Conversa
sobre poesia (1994), ―todos os jogos sagrados da arte são apenas
simulacros distantes do jogo infinito do mundo, da eterna obra de
arte que se forma a si mesma‖ (SCHLEGEL, 1994, p. 58). Os
românticos desejavam unir arte e natureza, fazendo do poema a
criação de um todo cósmico e sendo o poeta o responsável por criar
seu próprio painel e sua própria linguagem – ―A linguagem luta para
se tornar natureza‖ (WELLEK, 1963, p. 193). Schlegel chama de
―intuição simbólica‖ o meio pelo qual a mitologia deveria
transformar a natureza sensível e psicológica em infinito e absoluto:
―E o que é toda bela mitologia senão uma expressão hieroglífica da
natureza circundante nesta transfiguração de fantasia e amor?‖
(SCHLEGEL, 1994, p. 54). Para ele, a mitologia é uma obra de arte da
natureza – o mais elevado é configurado em seu seio e o princípio
de toda poesia é superar a razão. Friedrich considera o homem
como parte integrante de um todo. Dentro dele é possível encontrar
―o poema único da divindade‖. Devido a isso, somos todos capazes

1
Primeiro grupo romântico que surgiu na Alemanha, em 1799. Chamado de
Jenaer Romantik ou Romantismo de Jena, dele participaram Novalis, os
irmãos August Schlegel e Friedrich Schlegel, Schelling, entre outros. Os
membros de Jena tinham como principais interesses o estudo da história e
da crítica literárias e a reflexão filosófica. O grupo encerrou-se em 1801.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 458
“Deus era a palavra e a palavra estava com Deus”

de perceber as manifestações artísticas, uma vez que na nossa


interioridade também há uma centelha do que há no poeta e no
artista.

O Morro da Garça e a Ironia romântica

―O Recado do Morro‖, uma das sete novelas de Corpo de


Baile (1956), trata da viagem de uma comitiva que sai de
Cordisburgo em direção ao norte de Minas, passando pelo Morro da
Garça e chegando aos Gerais. A comitiva de cinco homens viajava
com o objetivo de levar o naturalista dinamarquês Seu Alquiste – ou
Olquiste – a ―conhecer o mundo novo das américas‖, conforme
afirma, em palestra, José Miguel Wisnik. ―Debaixo de ordem‖
(GUIMARÃES ROSA, 1976, p. 05) estava Pedro Orósio – o Pê-boi –, o
guiador, ―moço, a nuca bem feita, graúda membradura [...] nem lhe
faltavam cinco centímetros para ter um talhe gigante‖; seu Alquiste,
o estrangeiro que explorava a região, ―com raro cabelim barba-de-
milho e cara de barata descascada‖ (GUIMARÃES ROSA, 1976, p. 05);
frei Sinfrão, de quem se desconhecia a origem, mas se sabia que
falava bem a língua da gente; seu Jujuca do Açude, fazendeiro de
gado; e Ivo, que, neste instante da narrativa, mantinha com Pedro
Orósio uma amizade estremecida por conta de uma mocinha.
Aparentemente, Pedro Orósio é o protagonista da novela, já que o
Morro da Garça envia para ele um recado fatal, cujo significado só
será decifrado por ele no final da narrativa. Orósio é o herói que
desconhece o seu destino. Como afirma Prado Junior, em ―O Destino
decifrado: Linguagem e existência em Guimarães Rosa‖ (1985):

O talhe desmesurado, a evidente contestação da norma,


indicam algo de excepcional: um destino invulgar. O
herói, a figura privilegiada, é aquela que, mesmo à mais
rápida inspeção, revela ao olhar de outrem uma
duplicidade essencial em seus gestos. Talvez o próprio
herói o ignore (haver uma estória só é possível porque o
herói pode passar do não-saber ao saber; a estória é a
história do auto-reconhecimento do herói enquanto
herói), mas sua existência projeta para além de si
mesmo uma sombra, algo como uma supraexistência do
limbo insuspeitado que dá a verdade da primeira,
quotidiana e prosaica. Atrás do acontecimento ou da
idiossincrasia, é visível uma figura, uma lei que os
governa e que os reconduz à universalidade (PRADO
JUNIOR, 1985, p. 213-214, grifos do autor).

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 459


Rodrigo Vieira Ávila de AGRELA

Contudo, ele não é o herói essencial do mundo dos antigos,


onde não havia uma nítida separação entre o mundo dos deuses e
dos homens; Orósio é um tipo de herói problemático, ele tem em si
um descompasso entre exterioridade e interioridade. Seu exterior se
apresenta nitidamente: conseguimos delinear a sua fisionomia
possante, além de ser um guiador que conhece os horizontes desse
vasto Sertão: ―o céu não tinha fim, e as serras se estiravam, sob o
esbaldado azul e enormes nuvens oceanosas‖ (GUIMARÃES ROSA,
1976, p. 13). Por viver em um mundo aparentemente objetivo, em
sua primeira aparição, não conseguimos apreender a sua
interioridade, mas, à medida que a excursão prossegue, nota-se que
ele possui um espírito inquieto, talvez fruto dos seus complexos
estados de ânimos sugeridos na narrativa. No capítulo ―Culturas
Fechadas‖, d‘A teoria do romance, diz Lukács:

[...] totalidade, como prius formador de todo fenômeno


individual, significa que algo fechado que pode ser
perfeito; perfeito porque nele tudo ocorre, nada é
excluído e nada remete a algo exterior mais elevado;
perfeito porque nele tudo amadurece até a própria
perfeição e, alcançando-se, submete-se ao vínculo.
Totalidade do ser só é possível quando tudo é
homogêneo, antes de ser envolvido em formas; quando
as formas não são uma coerção, mas somente a
conscientização, a vinda à tona de tudo quanto
dormitava como vaga aspiração no interior daquilo a
que se devia dar forma; quando o saber é virtude e a
virtude, felicidade; quando a beleza põe em evidencia o
sentido do mundo. (LUKÁCS, 2010, p. 31)

A totalidade seria a atmosfera onde não haveria a penetração


de elementos contingenciais que pudessem interferir na substância
essencial, nela tudo ocorreria com consciência da perfeição.
Diferente do mundo antigo e estrelado, na modernidade do conto de
Guimarães Rosa, percebe-se que a narrativa conta com a
participação de diversos elementos internos e externos, das
divagações de Pedro ou do surgimento dos profetas da linguagem,
os recadeiros, ou, ainda, da possibilidade de mudança empreendida
na narrativa graças ao trânsito e aos deslocamentos ininterruptos da
comitiva, como da eminência do encontro com o primeiro recadeiro,
o Gorgulho:

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 460


“Deus era a palavra e a palavra estava com Deus”

E assim seguiam, de um ponto a um ponto, por brancas


estradas calcáreas, como por uma linha vã, uma linha
geodésica. Mais ou menos como a gente vive. Lugares.
Ali, o caminho esfola em espiral uma laranja: ou é a
trilha escalando contornadamente o morro, como um
laço jogado em animal. Queriam subir, e ver. O mundo
disforme, de posse das nuvens, seus grandes vazios.
Mas, com brevidade, desciam outra vez. Saíram a onde a
estrada é reta, bom estirão. Até que, a pouco trecho,
enxergavam, adiante uma pessoa caminhando
(GUIMARÃES ROSA, 1976, p. 13).

Por isso mesmo, Pedro Orósio não é capaz de codificar a


mensagem transmitida pelos recadeiros por sua incompreensão e
negação da subjetividade e do lugar do discurso dos loucos. Pedro
―é inconsciente de sua heroicidade: e essa inconsciência nada mais é
do que a outra face de sua ignorância da seriedade de Gorgulho, de
que seu discurso se reporta a uma estrutura objetiva: a duplicidade
do herói é, aqui, a sua ingenuidade‖ (PRADO JUNIOR, 1985, p. 217,
grifos do autor). Ainda que herói com destino invulgar e
destinatário de um informe recado, Pedro Orósio divide o
protagonismo da novela com o próprio recado; este também
atravessado pela mudança das vozes subjetivas dos recadeiros, pela
substância mítica de uma nova visão do antigo e de uma reação
contra o esclarecimento.
A certa altura da viagem, a comitiva encontra Gorgulho – o
Malaquias – um louco que primeiro acusa o recebimento de um
recado enviado pelo Morro da Garça. É aí que começa a trama
central da estória. O personagem transmite o recado à comitiva, mas
é assimilado por Zaquias, seu irmão, também louco. Do mesmo
modo, o recado é repassado a mais cinco personagens: os recadeiros
Joãozezim, uma criança; Guegue, um bobo; Nomidome, um fanático
religioso; Colertor, outro louco; e, finalmente, Laudelim, um artista
que transforma a mensagem em uma canção popular. São os sete
recadeiros que também movimentam a narrativa até que seja
possível Pedro Orósio compreender a mensagem de morte do
recado. É importante ressaltar o lugar marginalizado dos recadeiros:
o louco, a criança e o artista. Por meio desse artifício, Guimarães
Rosa confere novos significados sempre que ao seu texto
retornamos, criando um projeto de desconstrução da linguagem
numa espécie tensão entre o real e o ideal, fundindo o erudito e o
popular, o universal e o local, o antigo e o moderno, o natural e o

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 461


Rodrigo Vieira Ávila de AGRELA

cultural. Na correspondência a Bizarri, Guimarães Rosa (2003) faz


um breve resumo da novela ao tradutor:

―O Recado do Morro‖ é a história de uma canção a


formar-se. Uma revelação, captada, não pelo interessado
e destinatário, mas por um marginal da razão, e
veiculada e aumentada por outros seres não-reflexivos,
não escravos ainda do intelecto: um menino, dois fracos
de mente, dois alucinados – e, enfim, por um ARTISTA;
que, na síntese artística, plasma-a em CANÇÃO, do
mesmo modo perfazendo, plena, a revelação inicial
(GUIMARÃES ROSA, 2003, p. 92, grifos do autor).

A produção de variados sentidos é uma característica da


obra de Guimarães Rosa presente na novela quando pensamos na
quantidade de elementos postos na narrativa, a qual vai se
desenrolando e ganhando complexidade, produzindo conflitos e
aprofundando os estados de alma das personagens. Cada recadeiro,
por exemplo, assimila a mensagem de forma diferente,
contribuindo, de alguma maneira, para o tom dos recados
transmitidos e para a estrutura mesma do recado. Para Antonio
Candido, Rosa é parte de uma terceira fase do regionalismo – o
transregionalismo ou surregionalismo:

No momento em que a crítica pensava mais ou menos


isso, surge um homem fechado hermeticamente dentro
do universo do sertão, com uma exuberância verbal
extraordinária, com aquilo que é considerado ruim da
tradição brasileira, que era a exuberância verbal
extraordinária, com aquilo que é considerado ruim da
tradição brasileira, que era a exuberância da linguagem,
com aquilo que era considerado perigoso, que era o
pitoresco. Ele parte de tudo isso e consegue fazer uma
coisa inteiramente nova, consegue fazer uma ficção,
como eu disse, de tipo universal, com todos os grandes
problemas do homem (CANDIDO apud HANSEN, 2012, p.
122, grifos nossos).

As criações artísticas de Rosa nos possibilitam transitar


veredas desconhecidas não porque sejam novidades ou apresentem
outros significados dentro do texto roseano, mas, sobretudo,
porque há um engenho com a linguagem, empreendido por um
projeto de desconstrução, pois o autor nos sugere pensar de outro

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 462


“Deus era a palavra e a palavra estava com Deus”

lugar que não o hegemônico. Há uma terceira possibilidade que


questiona noções pré-estabelecidas da cultura ocidental; no caso da
narrativa, ele pousa em um terreno sinuoso os postulados da razão,
uma vez que esta é, frequentemente, colocada num perspectiva
positiva, o de um suposto caminho confiável, o da verdade – e
também o do poder. Acreditamos que seu projeto literário pode
estar resumido nas seguintes palavras – e não livre de
complexidade: ―Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só‖
(LORENZ, 1991). Guimarães Rosa consegue encontrar expressão para
aquilo que nunca foi expresso, atribuindo aos seus conteúdos uma
forma e, portanto, demolindo as formas fechadas e quebrando,
constantemente, com a imutabilidade dos gêneros artísticos. Falar
de imutabilidade do gênero é se referir a criação artística como um
constante vir-a-ser na produção de infinitos gêneros literários; como
afirmavam os primeiros românticos, haveria de existir novos
gêneros literários para cada época.
Roberto Acízelo, no texto ―Teoria da Literatura‖ (1992),
afirma que o Romantismo, com sua camada de ideologias literárias,
abriu caminho para uma ―reflexão fora dos patrões retóricos-
poéticos, ao conceber o discurso literário não como resultante de
operações de linguagem rigidamente descodificadas, mas como
apreensão de ‗representações sensíveis‘ que se opõem às
‗representações distintas‘, conteúdos de discursos não literários‖
(SOUZA, 1992, p. 373). E por isso mesmo, o Romantismo, extrapolou
os círculos literários e tornou-se uma ―gnosiologia‖, um aporte de
investigação da natureza do conhecimento na tentativa de forjar
formas capazes de conciliar arte e natureza, linguagem e realidade
(WELLEK, 1963, p. 194). Cito como exemplo a correspondência ao
seu tradutor italiano, na qual o autor de Sagarana refere-se às cinco
primeiras narrativas por novelas, mas insere dois sumários
diferentes em Corpo de baile. No primeiro sumário, no início do
primeiro volume, as narrativas estão referidas por poemas; no
último, no final do segundo, por romances (gerais) e contos
(parábase). Chamamos atenção aqui para a parábase. São parábases
os textos ―Uma estória de amor‖, ―O Recado do Morro‖ e ―Cara-de-
bronze‖.
A parábase é um termo da tradição literária que remonta ao
antigo teatro grego, mais especificamente as comédias de
Aristófanes, comediógrafo grego, considerado o grande
representante do teatro antigo. Em suas peças o coro dialoga com os
personagens da comédia, direcionando o seu discurso para o

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 463


Rodrigo Vieira Ávila de AGRELA

público. Nessa intervenção, o coro trata de perspectivas políticas,


apresenta seus lamentos, seus clamores ou mesmo seus
sentimentos em relação a algum fato ou alguém. Nesse sentido, a
atuação do coro estaria ligada ao ponto de vista do autor. Friedrich
Schlegel incorpora a parábase à ironia romântica por acreditar nessa
visão de um autor autorreflexivo dentro da obra de arte; essa
ruptura na encenação seria compreendida pelo alemão como um
―vir à cena‖ do artista a partir de sua obra. Por isso, compreende a
ironia romântica como uma ―parábase permanente‖, que para os
românticos deveria ocorrer como uma contínua reflexão na obra de
arte.
É possível olhar a obra de Guimarães Rosa quando
consideramos que oscila entre o real e o ideal, o histórico e o mítico;
ou nas palavras de João Adolfo Hansen (2012, p. 121), o autor de
Sagarana relativiza, parodia e esvazia as verdades das diversas
matérias sociais que compõem o seu texto. Há aqui, portanto, uma
questão muito importante e que foi colocada por Rosa em carta ao
padre João Batista:

Sobre o Recado do Morro, que mais poderei acrescentar?


Em arte, não vale a intenção, e, assim, o autor nem tem o
direito de ―explicar‖ uma estória sua já publicada. Só
posso achar que não estarão talvez de todo errados os
comentadores e críticos que viram naquela noveleta,
principalmente, a afirmação do primado da intuição, da
inspiração (e da revelação, não menos), sobre as
operações e conceituações da lógica e as conclusões da
inteligência reflexiva (GUIMARÃES ROSA, 1963, grifos
nossos).

É desse processo que se ocupa a ironia romântica quando


consideramos que o artista é capaz de refletir e de criar,
simultaneamente. ―O Recado do Morro‖ é uma parábase, porque
acompanhamos a viagem de uma mensagem até se tornar uma
canção popular. Cada vez que se manifesta nos recadeiros, a
mensagem parece ganhar mais conteúdo e varia o seu tom de
acordo com a personalidade do seu transmissor. ―O Recado do
Morro‖ é uma parábase, já que a vida é material para o texto de
Guimarães Rosa. O trabalho que o autor mineiro engendra com a
linguagem é uma espécie de artesanato do estilo, em que a forma
não tem mais o mesmo valor do pensamento. A forma é o próprio
pensamento e, portanto, pode-se extraí-lo do artista acerca de sua

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 464


“Deus era a palavra e a palavra estava com Deus”

obra. Como o próprio Rosa afirma ―o caráter do homem é seu estilo,


sua linguagem. Isto certamente vai parecer doutrinário; entretanto é
uma simples verdade da vida‖ (LORENZ, 1991). A ironia romântica
surge nesse texto pela importância concedida à linguagem; nela há a
problematização entre matéria e forma, revelando a impossibilidade
de comunicação total. Para que a vida se torne linguagem, o artista
precisa, segundo Schlegel, ter três fundamentais atitudes: a
autocriação, o autoaniquilamento e a autolimitação, conforme revela
o fragmento 37,

Para poder escrever bem sobre um objeto, é preciso já


não se interessar por ele; o pensamento que se deve
exprimir com lucidez já tem de estar totalmente
afastado, já não ocupar propriamente alguém. Enquanto
o artista inventa e está entusiasmado, se acha, ao menos
para a comunicação, num estado iliberal. Pretenderá
dizer tudo, o que é uma falsa tendência de gênios jovens
ou um justo preconceito de escrevinhadores velhos.
Com isso, desconhecerá o valor e a dignidade da
autolimitação, que é porém, tanto para o artista quanto
para o homem, aquilo que há de primeiro e último, o
mais necessário e o mais elevado. O mais necessário:
pois em toda parte em que alguém não limita a si
mesmo, é o mundo que o limita, tornando-se, com isso,
um escravo. O mais elevado: pois só se pode limitar a si
próprio nos pontos e lados em que se tem força infinita,
autocriação e auto-aniquilamento (SCHLEGEL, 1997, p.
25, grifos nossos).

A autocriação representaria o momento da revelação da obra


de arte, e o autoaniquilamento, a reflexão e a autocrítica que o
artista é capaz de fazer sobre sua obra, assim como a consciência
do processo de criação. Diferentemente, a autolimitação é o
distanciamento que o autor deve ter para poder desenvolver
artisticamente; ou nas palavras de Guimarães Rosa:

A personalidade do escritor, ao escrever, é sempre seu


maior obstáculo, já que deve trabalhar como cientista e
segundo as leis da ciência; ela o faz perder seu
equilíbrio, torna-o subjetivo quando deveria buscar a
objetividade. A personalidade, é preciso encarcerá-la no
momento de escrever (LORENZ, 1991).

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 465


Rodrigo Vieira Ávila de AGRELA

A problemática relação entre a razão e o sentimento foi


amplamente discutida pelos filósofos do período do Romantismo,
principalmente, entre os idealistas alemães. Percebe-se que o
processo de criação artística não se revela de maneira muito
simples. Dentro do processo de criação há a coexistência de ideias
novas, oriundas da revolução libertadora desse projeto artístico, ou
melhor, da inspiração e imaginação; e também de ideias clássicas,
oriundas da nostalgia pelo antigo. As perspectivas da tradição
antiga interessam suficientemente aos modernos, uma vez que,
notadamente, eles nunca abandonaram por completo a herança
clássica. Sobre o assunto, Guimarães Rosa afirma que é

um escritor que cultiva a ideia antiga, porém sempre


moderna, de que o som e o sentido de uma palavra
pertencem um ao outro. Vão juntos. A música da língua
deve expressar o que a lógica da língua nos obriga a
crer. Nesta Babel espiritual de valores em que hoje
vivemos, cada autor deve criar seu próprio léxico, e não
lhe sobra nenhum alternativa; do contrário,
simplesmente não pode cumprir sua missão (LORENZ,
1991, grifos nossos).

Em um texto denominado Über die Unverständlichkeit [Sobre


a ininteligibilidade] (1800), Schlegel indica que a incompreensão é
muitas vezes parte integrante de qualquer texto literário, e mesmo
de toda comunicação humana; também relaciona a hermenêutica
como outro aspecto da crítica literária e considera a filosofia como
capaz de desestruturar sistemas rígidos de compreensão. De outro
modo, a ironia romântica combate também a ideia de nitidez da
linguagem imposta pela retórica clássica. Para efeito de
esclarecimento, o conceito de ironia romântica seria familiar ao de
anacronismo, e, por isso, há o abandono da eucronia, ou seja, ―em
fazer história de uma arte sob o [...]ângulo conveniente do ‗artista e
seu tempo‘‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 26), conforme Georg Didi-
Huberman em Diante do tempo: História da arte e anacronismo das
imagens (2015). Parte-se, então, para conceber a arte sob o ―ângulo
da memória, de suas manifestações do tempo, quando descobrimos,
antes, um artista anacrônico, um ‗artista contra seu tempo‘‖ (DIDI-
HUBERMAN, 2015, p. 26).
Em Guimarães Rosa, o recado incorpora o mistério da
linguagem e sua transformação material ao longo dos eventos pelos
quais a comitiva atravessa e da transmissão do recado entre os

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 466


“Deus era a palavra e a palavra estava com Deus”

recadeiros. O próprio Morro da Garça é o lugar de problematização


da linguagem. Basta lembrar o seu formato escaleno e piramidal,
testemunha das desconfianças da comitiva, do ensimesmamento de
Pedro Orósio, da temeridade mística e lunática de Gorgulho.

Mas ele respondia às perguntas, sempre depois de


matutar seu pouco, retorcendo o nariz e bufando fraco.
[...] em cada momento, espiava, de revés, para o Morro
da Garça, posto lá, a nordeste, testemunho. Belo como
uma palavra. De uma feita, o Gorgulho levou os olhos a
ele, abertamente, e outra vez se benzeu, tirado o chapéu;
depois, expediu um esconjuro, com a mão canhota. Frei
Sinfrão recomendava a seo Alquiste que agora deixasse
de tomar notas na caderneta (GUIMARÃES ROSA, 1976,
17).

O Morro da Garça grita e avisa coisas que metem medo em


Gorgulho. Frei Sinfrão, na dúvida sobre ter ou não ter acontecido
algo, explica que ―Essas serras gemem, rocam, às vezes, com
retumbo de longe trovão, o chão treme, se sacode. Serão
descarregamentos subterrâneos, o desabar profundo de camadas
calcáreas, como nos terremotos de Bom-Sucesso‖ (ROSA, 1976, P.
15). Dessas inúmeras conjecturas sobre o Morro e seu recado, a
narrativa se desdobra sob uma linguagem poética capaz de produzir
uma substância mítica que se metamorfoseia à medida que o recado
ganha a materialidade cósmica dos sertões e o falar dos recadeiros.
Guimarães empreende um retorno ao mito de Édipo e a esfinge,
amálgama à narrativa o mistério do ―decifra-me ou devoro-te‖; mas,
agora, Pedro Orósio é responsável pelo seu destino e cabe a ele
decifrar esse enigma. É justamente nessa tensão entre o real e o
ideal que a figura enigmática do Morro da Garça pode representar
um ponto de ironia na qual se revelam mecanismos de sentidos
empreendidos na própria linguagem. Da falta do esclarecimento, da
impossibilidade de uma única narrativa ou, ainda, da problemática
ontológica da comunicação incompleta do homem por meio da sua
linguagem, ―O recado do Morro‖ estetiza o mundo do sertão.

Palavras finais

Guimarães Rosa em entrevista concedida a Günter Lorenz,


em 1965, fala sobre sua forte relação com a literatura alemã,
abordando alguns dados relevantes para o avanço da nossa

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 467


Rodrigo Vieira Ávila de AGRELA

discussão. Rosa reconhece a influência de alguns autores alemães,


principalmente de Goethe quando afirma que o autor ―era [...] um
moralista, um homem que vivia a língua e pensava no infinito. Acho
que Goethe foi [...] o único grande poeta da literatura mundial que
não escrevia para o dia, mas para o infinito. Era um sertanejo‖
(LORENZ. 1991). Para o escritor mineiro, no sertão fala-se a língua
do autor de Os sofrimentos do jovem Werther, porque considera o
sertão o lugar da eternidade, onde exterior e interior estão em
(aparente) conformidade. Como afirma Rosa

Conheço bastante bem a literatura alemã. [...] Amo


Goethe, admiro e venero Thomas Mann, Robert Musil,
Franz Kafka, a musicalidade de pensamento de Rilke, a
importância monstruosa, espantosa de Freud. Todos
estes autores me impressionaram e me influenciaram
muito intensamente, sem dúvida. [...] A língua é o
espelho da existência, mas também da alma. Eu não
duvido: certamente também na Alemanha os autores
jovens querem melhorar o mundo; certamente suas
intenções são honestas e boas. Mas não o conseguirão,
pois todos eles juntos não terão a importância que uma
única frase de Goethe tem para o destino do homem,
para seu futuro. Somente renovando a língua é que se
pode renovar o mundo. Devemos conservar o sentido da
vida, devolver-lhe esse sentido, vivendo com a língua.
Deus era a palavra e a palavra estava com Deus. [...] A
língua serve para expressar ideias, mas a linguagem
corrente expressa apenas clichês e não ideias; por isso
está morta, e o que está morto não pode engendrar
ideias (LORENZ, 1991, grifos nossos).

Rosa elegeu Goethe como grande escritor e leu Hegel,


Herder, Hoffman, Novalis, Schiller, Schelling, nomes presentes em
sua biblioteca particular, conforme. A leitura de Grandes Sertão:
Veredas (1956) ou do próprio conto ―O recado do morro‖ é capaz de
nos levar para Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795),
para a construção do caráter e do homem Wilhelm Meister; ou, em
outras palavras, parece que Riobaldo e Pedro Orósio, mesmo
Miguilin ou Miguel de ―Buriti‖, estão a caminho rumo à sabedoria da
vida, da constituição do caráter.
A intenção deste trabalho é abrir uma discussão sobre a obra
roseana à luz das teorias filosóficas e literárias, surgidas a partir do
primeiro Romantismo alemão, responsáveis por abrir o caminho dos

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 468


“Deus era a palavra e a palavra estava com Deus”

estudos diacrônicos de literatura. Livros como A conversa sobre a


poesia, de Schlegel, são responsáveis por apresentar discussões
sobre o fazer poético, sobre o desempenho do artista e da obra de
arte. Da consciência estético-literária de Guimarães Rosa, percebe-se
que há pontos de discussão entre a obra roseana e as teorias de
crítica de arte romântica. Vê-se na obra de Rosa a efetivação de um
projeto que busca a palavra original, numa tentativa de romantizar
o mundo do Sertão; e, quando falamos romantizar, quer-se conferir
o significado máximo dado por Novalis: ―Sempre que atribuo um
sentido elevado ao que é vulgar, uma feição misteriosa ao que é
comum, a dignidade do desconhecido ao conhecido, um sentido
infinito ao finito, romantizo-o‖ (NOVALIS, 1992, p. 55).

Referências

GUIMARÃES ROSA, João. João Guimarães Rosa: correspondência com seu


tradutor italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

______. No Urubuquaquá, no Pinhém. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio


Editora, 1976.

HANSEN, João Adolfo. Forma literária e crítica da lógica racionalista em


Guimarães Rosa. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 47, n. 2, p. 120-130,
abr./jun. 2012.

LACOUE-LABARTHE, Philippe; NANCY, Jean-Luc. El absolute literario: Teoría


de la literature del romanticismo alemán. Traduccíon de Cecilia González y
Laura Carugati. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, 2012.

LORENZ, Günter. ―Diálogo com Guimarães Rosa‖. In: COUTINHO, Eduardo


de Faria (Org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre


as formas da grande épica. Trad. de José Marcos Mariani de Macedo. São
Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2010.

NOVALIS. Fragmentos sobre o Romantismo. In: GOMES, Álvaro Cardoso;


VECHI, Carlos Alberto. A Estética Romântica: textos doutrinários. Trad. de
Maria Antônia Simões Nunes (textos alemães, espanhóis, franceses e

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 469


Rodrigo Vieira Ávila de AGRELA

ingleses); Duílio Colombine (textos italianos). São Paulo: Atlas, 1992.

PRADO JR., Bento. O Destino Decifrado – Linguagem e existência em


Guimarães Rosa, in: Alguns ensaios: filosofia, literatura e psicanálise. São
Paulo, Limonad, 1985, p. 195-226.

SCHILLER, Friedrich. Poesia ingênua e sentimental. Trad. de Márcio Suzuki.


São Paulo: Iluminuras, 1991.

SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre a poesia e outros fragmentos.


Tradução, prefácio e notas Victor-Pierre Stirnimann. São Paulo: Iluminuras,
1994.

______. O dialeto dos fragmentos. Tradução, apresentação e notas Márcio


Suzuki. São Paulo: Editora Iluminuras, 1997.

SOUZA, Roberto Acízelo. Teoria da Literatura. In: JOBIM, José Luís (Org.).
Palavras da Crítica: Tendências e conceitos no estudo da literatura. Rio de
Janeiro: Imago, 1992.
WELLEK, René. Conceitos de crítica. Trad. de Oscar Mendes. São Paulo:
Editora Cultrix, 1963.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 470


EXPERIÊNCIAS DIDÁTICAS EM ESTILÍSTICA:
CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO DE LÍNGUA
PORTUGUESA

Rony Petterson Gomes do VALE


UFV

Resumo: Esse trabalho apresenta uma reflexão sobre práticas de


ensino de Língua Portuguesa articuladas com preceitos teóricos e
analíticos da Estilística e desenvolvidas durante a disciplina
―Estilística do Português‖. Como objetivo, cada aluno deveria
desenvolver um projeto de pesquisa e ministrar uma aula sobre
diferentes tópicos, tendo como orientação as contribuições
múltiplas da Estilística para o ensino de língua. O resultado foram
maneiras criativas e funcionais de tratar algumas problemáticas do
ensino de língua, como, por exemplo: as diferenças dialetais e sua
estilização em diferentes gêneros textuais; o preconceito linguístico
e o politicamente (in)correto; a gramática normativa versus o
entendimento da licença poética; etc.

Palavras-chave: Estilística; ensino; Língua Portuguesa; pesquisa;


interdisciplinaridade.

Introdução

O trabalho que aqui se apresenta é uma espécie de relato de


experiência didática desenvolvida na disciplina LET 401 (Estilística
do Português) do curso de Letras da UFV. Nesse texto, detalho como
orientei algumas atividades tanto de pesquisa quanto de docência
com alunos do 9º período do curso de Letras, ou seja, alunos que
estão às ―portas‖ tanto do mercado de trabalho quanto da
possibilidade de seguirem para programas de pós-graduação.
Mesmo me defrontando com o um número grande de alunos (36) e
certa resistência (que, por vezes, se materializa num discurso de
poder, de preguiça, de incapacidade, de aversão à pesquisa etc.),
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
Rony Petterson Gomes do VALE
apostei no potencial dos alunos.
Direi, também, que todo o processo aqui apresentado não
seguiu, de modo algum – ou pelo menos, de modo consciente – as
orientações e pesquisas desenvolvidas no campo da Linguística
conhecido como ―Linguística Aplicada‖. Com efeito, peço desculpas,
de antemão, pela a não utilização de teorias, conceitos e categorias
do campo citado. Todavia, diante dos resultados (raciocínio dos
alunos e suas ideias de aula) e dos produtos (projetos e artigos),
acredito que tais experiências possam ajudar outros professores, no
nível superior ou nível fundamental/médio, a elaborarem suas
próprias articulações (como sugere Bakhtin (2013)).
Divido este trabalho em três partes, a saber:

i. na primeira, trato dos acordos acertados e dos objetivos


traçados no início da disciplina e o que isso exigiria de
cada parte envolvida – professor e alunos;
ii. na segunda, discuto como questões externas podem
levar a um novo acordo e como isso pode gerar estresse;
também apresenta esse novo acordo com relação às
atividades;
iii. na terceira, apresento um resumo dos produtos de
alguns projetos de pesquisa, bem como de algumas
iniciativas de aulas, muitas vezes, resultados dos
esforços desprendidos durante a elaboração dos
projetos.

1. Do plano inicial de curso às atividades proposta na Let 401

Retomando o que foi dito, reforçamos aqui que a Let 401 –


Estilística do Português – é uma disciplina para os períodos finais
do curso de Letras (normalmente, atendendo alunos das quatro
habilitações duplas – Português/Literatura, Português/Inglês,
Francês, Espanhol). Essa disciplina segue as propostas e reflexões
desenvolvidas a partir da Estilística da Língua, iniciada por Charles
Bally, e conta também com contribuições de outros autores, em
especial Mattoso Câmara Jr.
Devido a condições excepcionais, minha proposta com os
alunos foi trabalhar nos moldes de uma disciplina de pós-
graduação, principalmente pela quantidade de alunos inscritos.
Assim, as aulas assumiram o caráter de seminários com
aproximadamente oitenta minutos de duração e mais quarenta

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 472


Experiências didáticas em estilística

minutos para perguntas e discussões. Durante esses seminários, eu


buscava explorar vários temas teóricos como, por exemplo: a
definição de estilo; a análise do estilo; escolha X desvio; funções da
linguagem e figuras de estilo; denotação X conotação etc. Cabia ao
aluno ler os textos teóricos e tentar articulá-los com as minhas
explanações.
Nesse plano inicial, acordado por todos os alunos, as
atividades avaliativas foram assim dispostas:

i. atividades continuadas – fichamentos, resumos,


resenhas e exercícios de análise estilística;
ii. projeto de pesquisa, no qual a Estilística fosse articulada
com algum tema dentro das línguas (português, inglês,
francês, espanhol) e suas respectivas literaturas;
iii. artigo científico, com os resultados dessa articulação.

A princípio, essa disposição poderia levar a crer que as


atividades não estariam no nível dos alunos (de graduação); todavia,
todos os alunos matriculados sabiam qual era a verdadeira situação:
eles estavam às vésperas da monografia e passar por isso era
inevitável. Meu argumento era levar cada um deles a experimentar a
elaboração de um artigo (a partir de um projeto de pesquisa) sob a
orientação atenta de um professor. A ideia soou muito boa; o meu
problema – digo o do aluno – parecia resolvido. No entanto...

2. Pressões externas e reformulação do acordo e do plano de


curso

Devido a pressões externa – que não convém aqui detalhar –


fui obrigado a reformular o plano de curso e as atividades.
Alegação: o curso de Letras da UFV é um curso de licenciatura; logo,
a prioridade é formar professores. Diante disso, mesmo a
contragosto, reelaborei as atividades avaliativas de modo a atender
a demanda do curso:

i. atividades continuadas;
ii. plano de aula – com alguma contribuição da Estilística
(nos moldes de Bakhtin (2013));
iii. aula para o ensino fundamental ou médio;
e, ou
iv. projeto de pesquisa;

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 473


Rony Petterson Gomes do VALE
v. artigo;
ou
vi. prova analítico-discursiva

Como podemos ver, a obrigatoriedade da pesquisa foi


retirada por notar certa resistência de alguns alunos – contra a
minha vontade e opinião de que não existe professor que não seja
pesquisador. Apesar das pressões, somente poucos alunos optaram
pela prova – isso mostra a hipocrisia de um grupo de estudantes
dentro da universidade, que procuram reivindicar seus direitos, mas
sem ter noção deles, e, logo após de suas reações infundadas e
injustificadas, desenvolvem um medo gigantesco de sanções,
resultantes de suas escolhas equivocadas e, muitas vezes,
irrefletidas.
3. Alguns projetos de pesquisa e planos de aula

O objetivo nessa seção é apresentar alguns exemplos de


ideias desenvolvidas pelos alunos. De antemão, direi que não tenho
nem posso me aprofundar nessas explanações, uma vez que alguns
dos projetos e planos de aula se tornaram artigos e relatórios de
experiência e, por isso mesmo, foram submetidos para publicação
ou já estão em processo de avaliação em revistas acadêmico-
científicas. Outra questão que deve ser ressaltada é que, por vezes,
um plano de aula estava (poderia estar) atrelado à elaboração do
projeto de pesquisa e do artigo – os alunos gostam de economizar
tempo!

3.1 Dos projetos

O projeto e seu produto (o artigo) deveriam seguir as


seguintes orientações:

i. articular a Estilística (teoria, conceitos e/ou categorias) à


análise de algum problema de pesquisa de língua ou de
literatura;
ii. ambos não deveriam ultrapassar 10 laudas;
iii. ambos deveriam seguir as normas da ABNT.

A escolha do assunto e do tema era livre; porém, ao final de


cada seminário, eu abria uma parte para a reflexão, na qual eram
levantadas algumas questões polêmicas para incitar uma possível
pesquisa, como, por exemplo, as que se seguem:

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 474


Experiências didáticas em estilística

A literatura infantil é outro campo onde predomina a


parataxe. Tudo nela expressa a simplicidade, a magia, o
encantamento. E esse universo não é regido pelas leis da
lógica, mas pela pureza dos sentimentos. (MONTEIRO,
1991, p. 50)

A prosa, utilizando-se da denotação, arquiteta-se em


discursos objetivos e a ordenação dos elementos é de
base sintagmática. [...] A poesia, valendo-se de elementos
plurissignificativos, foge da informação e busca a
expressão, o lirismo. E, como o lirismo é espontâneo, o
rigor lógico tem que desaparecer. (MONTEIRO, 1991, p.
49)

Jesus Belo Galvão não comenta o uso da 1ª pessoa do


plural com a gente, tão comum na linguagem popular
(―a gente rimos‖) e adotada por autores que dela se
aproximam e a estilizam, como Mário de Andrade e
Guimarães Rosa. (MARTINS, 2012, p. 228 – grifos
nossos)

A colocação absolutamente predominante do adjetivo


antes do substantivo só é encontrada em casos bem
excepcionais. O mais comum é que num texto se
misturem adjetivos pospostos e antepostos, em
proporções variadas, mas quase sempre predominam
os pospostos. (MARTINS, 2012, p. 206 – grifos nossos)

É oportuno considerar que a escolha da colocação do


adjetivo, determinada por fatores expressivos, constitui
um dado diferenciador dos estilos de época. Com efeito,
se o romântico enaltece a imaginação e a fantasia,
interpreta o mundo sempre na perspectiva da exaltação
sentimental, é esperável que não só cometa excessos no
emprego dos adjetivos mas também que os localize em
geral antes dos substantivos. De modo oposto, se o
clássico busca o equilíbrio racional, sem dúvida sua
linguagem será mais comedida, com menor emprego de
adjetivos que, além disso, terão o caráter definidor
próprio da posposição. (MONTEIRO, 1991, p. 59)

No entanto, cabia ao aluno problematizar e levantar a


bibliografia e o corpus necessários para o desenvolvimento da
pesquisa. Tudo isso, lembro, sob minha orientação direta.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 475
Rony Petterson Gomes do VALE
Diante do exposto, apresentarei sucintamente alguns dos
trabalhos desenvolvidos:

a) Estilo e expressividade em José de Alencar: a adjetivação na


construção da personagem Iracema – Nesse trabalho, a
acadêmica Danúbia de Paula Oliveira se propôs a refletir
sobre o lugar comum que diz que o uso – por vezes
excessivo – e a posição do adjetivo – anteposta ao
substantivo – são características essenciais do estilo
romântico. Em seu pequeno trabalho de análise, fica
evidenciado que, pelo menos em relação à personagem
Iracema, a adjetivação se dá de modo posposto.
b) A sintaxe da poesia simbolista brasileira: os efeitos
expressivos da poesia de Cruz e Souza – Nesse trabalho, o
acadêmico Weslen Pedro Fonseca busca averiguar algumas
características projetadas sobre a organização da frase do
poema simbolista brasileiro, a saber: a grande liberdade da
sintaxe em relação à semântica; a constituição voltada para a
frase incompleta; a subversão da frase em prol do símbolo
etc. Mostrou-se que a construção da frase simbolista, em
Cruz e Souza (7 poemas dos Broquéis), tende para o
equilíbrio do uso de frase completas simples e complexas e a
menor ocorrência de monorremas em face a dirremas.
Todavia, foi proposta uma continuidade desse projeto para
dar mais clareza aos resultados, analisando a totalidade dos
poemas presentes nos Broquéis.
c) Sinonímias que os estrangeiros utilizam nas redações da
avaliação escrita do CELP-BRAS: efeitos estilísticos – Nesse
trabalho, o acadêmico Mateus Lopes de Souza procura
identificar e comparar o uso de sinonímias presentes nas
redações de alunos estrangeiros no exame de língua
portuguesa aplicada pelo CELP-BRAS. Identificou-se a
tentativa dos alunos em manter, quase sempre, o valor
expressivo dos sinônimos o mais próximos possível da
denotação, ou seja, o aluno busca o valor referencial nos
sinônimos para fazer suas retomadas, o que por vez causa
estranhamento ou mesmo o humor.
d) A ocorrência de parataxe e da coordenação na construção
do estilo em contos infantis de Monteiro Lobato e Ruth Rocha
– nesse trabalho, a acadêmica Betânia Neves da Silva procura
desmistificar a ideia de que a literatura infantil é

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 476


Experiências didáticas em estilística

prioritariamente marcada por formas de organização


sintática mais simples, descomplicada e sem relações
racionalizantes complexas, como a subordinação. Os
resultados obtidos com a análise de textos de Monteiro
Lobato e Ruth Rocha indicam um equilíbrio entre as formas
de hipotaxe e parataxe, de um lado, e de coordenação e
subordinação, de outro.

Passo, agora, para os planos de aula, evidenciando a


criatividade da articulação entre a Estilística e o ensino. Muitas
vezes, como veremos, essa articulação se apresenta como resultado
da reflexão desenvolvida durante a elaboração do projeto e
execução da pesquisa.

3.2 Dos planos de aula

Novamente, deve ficar claro que a escolha do assunto e do


tema era livre; porém, cabia ao professor orientador a decisão sobre
sua viabilidade de aplicação em relação ao tempo, nível e preparo
dos acadêmicos. Segue, assim, alguns planos e comentários sobre
sua aplicação:

a) A escrita criativa – nessa aula, o acadêmico Weslen Pedro


abordou a produção textual por da análise estilística da frase
em Lésbica, de Cruz e Souza, articulada à música Acaí, de
Djavan e a um metadiscurso do humorista José Vasconcelos,
no qual o mesmo satiriza ao utilizar vocábulos rebuscados
no discurso político. Evidenciou-se a diferença entre o
discurso vazio e o valor estilístico da ―massa‖ sonora dos
vocábulos.
b) Neologismos e Estilística: a expressividade dos neologismos
literários – nessa aula, a acadêmica Lilian Ferrari procurou
evidenciar o potencial expressivo da formação de palavras
em português, apontando as diferenças entre composição e
derivação, de um lado, e a criação com base no neologismo,
de outro. Utilizou como corpus os trabalhos Marcelo,
marmelo, martelo, de Ruth Rocha e Emília no país da
gramática, de Monteiro Lobato.
c) Um tiro ao Álvaro do preconceito linguístico: estilo e
variação linguística – nessa aula, a acadêmica Elsa Mayra
procurou discutir a variação linguística diretamente articula

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 477


Rony Petterson Gomes do VALE
à questão do estilo. Para isso, analisou letras de Adoniram
Barbosa, evidenciado as inovações desse autor oriundas do
uso do registro coloquial ou vulgar da Língua Portuguesa.
Além disso, abordou a questão do preconceito linguístico,
mostrando que o preconceito é um componente social que
influencia nas escolhas linguística dos falantes.
d) Memes nas redes sociais: as funções expressivas em foco –
nessa aula, o acadêmico Renan Montico analisou a estrutura
do meme ―Diferentona‖. Evidenciou, principalmente, a
ocorrência de monorremas e dirremas ―escalonadas‖ e dos
efeitos estilísticos e argumentativos de base indutiva
(exemplo: ―só eu que odeio calor?‖ //Só
você//Frozen//Boneco de neve//Picolé// Miss icegurt//
[conclusão]  Diferentona), apoiada, muitas vezes, nas
informações imagéticas do meme.

Considerações finais

É importante deixar claro que o texto aqui apresentado é


somente um relato de experiência. Os produtos (aulas e artigos)
passaram pelo meu julgamento enquanto professor e pesquisador.
Não tenho a pretensão de que dizer que tais experiências sejam
totalmente eficazes, uma vez que todas foram feita em uma
situação de ―laboratório‖, durante as aulas da Let 401. Prefiro
pensar que elas possam ajudar professores nos diversos níveis a
trabalharem a estilística e enfrentar, por um lado, as deficiências
dos manuais didáticos e, por outro, aqueles que acreditam que a
Estilística está no rol das disciplinas fadadas ao esquecimento
forçado, como a Retórica, a Hermenêutica etc. É desse modo que
digo que tais experiências se configuram contribuições (pequenas e
singelas, eu sei) para a Estilística da Língua Portuguesa.

Referências

BAKHTIN, M. M. Questões de estilística no ensino da língua portuguesa. São


Paulo: Editora 34, 2013.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 478


Experiências didáticas em estilística

MARTINS, N. S. Estilística da frase. In: MARTINS, N. S. Introdução à


estilística, São Paulo: TA Queiroz, 2012, p. 163-232.

MONTEIRO, J. L. A estilística. São Paulo: Ática, 1991.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 479


LINGUAGEM POSITIVA NO ENSINO DE INGLÊS:
ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DE NEGOCIAÇÃO DE
IMAGEM NA SALA DE AULA

Shirlene Bemfica de OLIVEIRA


IFMG Ouro Preto

Resumo: Este trabalho analisa as práticas interativas construídas em


aulas de inglês de uma escola regular e discute o processo de
negociação de imagem. A discussão apoia-se no Sociointeracionismo
com foco nas Estratégias de Convívio Social (TAVARES, 2003). Os
resultados apontam para uma dicotomia entre as diferenças
linguísticas veladas que geram ansiedade no professor e reforçam a
necessidade de envolvimento dos alunos na interação. Além disso,
demonstram a importância de um tom positivo e uma linguagem
corporal positiva do professor para que os alunos possam entender
como suas escolhas linguísticas e comportamentos tem impactos
sobre a aprendizagem (WHITE, 2016).

Palavras-chave: interação, língua inglesa, estratégias, negociação de


imagem, convívio.

Introdução

O mundo pós-moderno traz desafios para professores em


sala de aula, uma vez que este contexto exige de seus participantes
o uso de estratégias de convívio para superar a individualidade e a
impessoalidade excessiva. Esta tarefa é complexa, e juntamente com
as pressões de tempo e recursos limitados podem levar os
professores a ficarem muitas vezes, insatisfeitos e irritados. No
entanto, de acordo com White (2016), mesmo em tempos de
frustração, é necessário construir em sala de aula um ambiente de
aprendizagem positivo e cortês de forma a considerar o professor e
suas particularidades e os alunos com suas opiniões e sentimentos.
O professor, que geralmente é o responsável por gerenciar a
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
Linguagem positiva no ensino de inglês: análise das estratégias

interação em sala de aula pode, segundo o autor, assumir uma


postura de responsabilidade, ter um bom gerenciamento da turma e,
ao mesmo tempo, incentivar os alunos a assumirem uma atitude
positiva em relação ao seu aprendizado da língua inglesa por meio
de regras, rotinas e pelo uso da linguagem verbal e não verbal. Em
sala de aulas de língua inglesa, professores têm o desafio de
construir juntamente com os alunos um processo de ensino e
aprendizagem interativo, que propicie os usos significativos da
língua alvo, que considere que todos os envolvidos têm objetivos e
expectativas diferenciados, mas que consiga reconhecer suas
identidades a partir de sua relação com o outro e entender que esta
relação tem impacto para todos.
No contexto escolar, os estudos sobre Alteridade tentam
compreender como professores e alunos estabelecem relações de
interação e interdependência. Ao se posicionarem em sala de aula,
esses atores usam a linguagem para construir novos contextos
sócio-histórico-culturais e para aprender nesse meio (MOLAR, 2011).
A interação social é estabelecida com suas experiências e histórias
de vida que são diferentes e diversas, e nas situações criadas
estabelecem negociações, embatem em tensões e conflitos entre
sentidos e significados que, uma vez compartilhados, podem gerar
ou reconstruir conhecimentos novos (MIASKOVSKY, 2008, p. 40). Na
sala de aula, alunos e professores, precisam se colocar no lugar do
outro durante as interações reconhecendo, compreendendo e
respeitando as diferenças para que o discurso construído favoreça a
aprendizagem e ao gerenciamento dos conflitos. Esta noção de
alteridade tem se fortalecido devido às imposições do mundo
moderno e sua discussão é importante no cotidiano escolar devido
às tensões e conflitos gerados nas interações pessoais que são
constituídas de diferenças de diversas ordens. No contexto escolar,
a pluralidade é amplificada, pois as diferenças apresentam maior
sensibilidade e a função da escola ultrapassa a dimensão de
produção do conhecimento para a mediação de conflitos (MOLAR
2011).
Para Molar (2011, p. 69), durante esse processo interativo
―ocorre não apenas a aprendizagem de conceitos, informações, mas,
sobretudo, a compreensão dos contextos em que surgem os
contatos; os relacionamentos de sujeitos plurais para a apreensão
dos elementos que adquirem significado‖. Mas como esta
construção interativa é moldada pelo discurso didático? Este
trabalho apresenta algumas estratégias discursivas utilizadas por

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 481


Shirlene Bemfica de OLIVEIRA

uma professora no contexto de ensino de inglês em uma escola


regular. A ênfase das análises é no processo de negociação de
imagens utilizadas para preservar e salvara imagem da professora e
de seus alunos. Este aporte teórico será discutido na próxima seção.

1. Negociação de imagem

Professores e alunos negociam suas imagens ao


estabelecerem o discurso pedagógico específico para o contexto,
considerando os fatores que influenciam essa interação e as
intenções comunicativas dos interlocutores que se dão por meio de
―pistas de contextualização e da alternância de estilos de natureza
linguística, paralinguística (pausas, hesitações, entonação) e
extralinguística (expressões fisionômicas, gestos e palmas)‖
(TAVARES, 2003, p. 78). Nesse contexto, como o professor é o
responsável pelo gerenciamento da interação, ele usa do discurso
para controlar a disciplina, estabelecer hierarquias, para motivar os
alunos, para ensinar ou construir o conhecimento de forma
colaborativa e cooperativa, etc. Para isso, ele utiliza-se das
estratégias de convívio, institucionais, de cooperação e de discurso
espontâneo.
A estratégia de convívio é utilizada como forma de
atenuação do discurso, ou seja, os falantes usam marcas
discursivas, como pistas de contextualização para que os
interlocutores percebam suas intenções comunicativas. Neste
estudo, essa estratégia tem o objetivo de ―preservar a imagem do
professor como autoridade máxima que controla as atividades e o
turno dos participantes, mas, ao mesmo tempo, faz com que esse
controle não seja entendido como uma grande ameaça aos alunos‖
(TAVARES, 2003, p. 80). São exemplos dessa estratégia:

Estratégias de convívio verbais:falar em inglês; usar


diminutivos; usar afetividade; ser informal; usar termos
de senso comum; usar a primeira pessoa do plural;
envolver alunos na decisão do fluxo de atividades; fazer
brincadeiras, rir; dar as respostas das próprias perguntas;
pedir desculpas por algo que fez ou falou; concordar com
as vontades dos alunos; generalizar perguntas; pedir
permissão para continuar atividade; repetir e traduzir
palavras.

Estratégias de convívio não-verbais: dar ênfase e

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 482


Linguagem positiva no ensino de inglês: análise das estratégias

motivação na fala; movimentar-se entre alunos; bater


palmas ritmadas (TAVARES, 2003, p. 82)

A estratégia institucional (diretiva) é utilizada quando os


falantes querem estabelecer uma hierarquia de autoridade distinta
dentro da sala de aula. Para Tavares (2003), há três situações de
realização das estratégias institucionais: a primeira acontece
quando o falante principal deseja iniciar uma fala e não consegue. O
falante aumenta o volume da voz, chama a atenção do ouvinte
usando expressões atenuantes. Por exemplo, que diferença você vê
entre as seguintes afirmações?
Sentem-se! Calem a boca! (Professor grita, bate palmas e
olha com raiva)
Vamos começar mais uma vez, estão todos sentados e
quietos? (Professor silenciosamente espera com uma
expressão positiva no rosto e olha com expectativa para
estudantes)
Eu não estudei quatro anos para tolerar vocês com esse
comportamento!
(Dados de White, 2014)

A tensão e desconforto criados pelo discurso autoritário do


professor podem gerar sentimentos de ódio e recentimento e levam
a falta de concentração e interesse de todos. Os alunos que
regularmente se sentem inseguros, embaraçados, ou irritados com o
estilo de comunicação de um professor podem não aprender de
forma eficaz.
A segunda estratégia se configura quando o falante está
dando explicações, utilizando o discurso de convívio, que não é
aceito pelos ouvintes. Ele, então, muda o discurso para proteger sua
imagem e não deixá-la exposta. E a terceira situação, a estratégia
pedagógica, acontece quando o falante está guiando ou orientando
os ouvintes para uma determinada ação ou tarefa. Essa configuração
é caracterizada pela grande influência do falante sobre os turnos e
sobre o conteúdo (TAVARES, 2003, p. 84-87). A estratégia pedagógica
caracteriza a maneira como os falantes negociam suas imagens. Eles
participam da conversa, escolhendo, então, um discurso de convívio.
E a estratégia de cooperação, por sua vez, é construída no
momento em que falantes e ouvintes utilizaram-se de um discurso
instrucional ―com o intuito de cooperar para alcançar seus próprios
objetivos‖. A estratégia espontânea é construída nas situações em
que os limites de começo e fim da conversa está ainda sendo

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 483


Shirlene Bemfica de OLIVEIRA

definindo. Nessas ocasiões, os falantes e ouvintes utilizam um


discurso espontâneo semelhante ao discurso em conversações não-
institucionais. Eles ―tomam os turnos uns dos outros sem indicação e
a conversa ocorre de forma mais parecida com conversações
naturais‖ (TAVARES, 2003, p. 95).
O professor deve explorar maneiras e estratégias discursivas
para usar o tom de voz, palavras e linguagem corporal para
promover o relacionamento positivo em sala de aula, com respeito
mútuo e confiança, conforme nos mostra o Quadro 1 abaixo.

Quadro 1: Estratégias de Negociação de Imagem: focos deficientes


ou construtivos
ESTRATÉGIA DE NEGOCIAÇÃO DE IMAGEM
Negativo: foco deficiente Positivo: foco construtivo
Problema Desafio
Impaciente empolgado, entusiasmado, motivado
Parem de gritar! Um de cada vez! Joyce, obrigada por esperar sua vez de
falar. Você está sendo paciente.
Você está muito lento. Apresse-se! Todos estão trabalhando de forma
cuidadosa e estão sendo criteriosos, mas
temos apenas cinco minutos para
terminar.
João, não se atrase novamente! Michael, chegue no horário, por favor. De
Você entrará em uma enrascada! acordo com as normas da escola, o que
acontece se chegamos atrasados por três
vezes? (Peça ao aluno que dê a resposta.)
Patrícia, pare de atrapalhar o Athos. Muriel, por favor, leia o quadro de regras
da sala. Estamos conseguindo ouvir os
colegas que estão falando?
Não, está errado. A resposta é ____. Humm... Este foi difícil para vocês?
Vamos olhar o exemplo novamente
juntos. (Guie os alunos desafiando-lhes
para verificar se eles chegam a resposta
correta.)
Calem a boca! Por favor, retornem aos seus lugares,
sentem-se e coloquem o material sobre a
mesa.
Prestem atenção! Vocês não estão Nós só iremos continuar quando todos
ouvindo a Clarissa. estiverem em silêncio e prontos para
ouvir a Clarissa.
Demonstrar que não gosta dos alunos Aprenda a gostar da profissão.

Revirar os olhos para ser Sorria e mantenha a calma enquanto


desconsiderado, jogando as mãos para constrói regras com os alunos, gerencia a
cima no ar para mostrar frustração, interação e desenvolve as atividades
cruzando os braços sobre seu peito ou
bater o pé para indicar impaciência, Relaxe seus braços e ombros, acenando
balançando um dedo apontado para para indicar acordo ou incentivo.
alguém enquanto corrigi-los.
Adaptação de White (2014)

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 484


Linguagem positiva no ensino de inglês: análise das estratégias

Em nosso estudo, analisamos a negociação da imagem na


sala de aula das participantes por meio da ação destas cinco
estratégias de negociação de imagem.
2. Metodologia

Esta investigação foi desenvolvida com a participação de


uma professora de uma escola militar pública (Kenia), os alunos de
uma de suas turmas e a pesquisadora que coletava os dados para
uma pesquisa de doutorado1. Para este artigo apresentaremos os
dados de três aulas que foram filmadas e transcritas. O corpus das
três aulas é composto de 586 turnos em que 259 são da professora,
311 são dos alunos, 4 da pesquisadora, 11 do material de áudio e 1
da supervisora da escola. Das 5573 palavras ditas nas três aulas
gravadas, 3106 foram da professora, cerca de 44,2 % do total.
Convém ressaltar que, além dos 259 turnos contados para as
análises, 34 turnos não foram compreendidos na totalidade. Esses
turnos eram curtos (com uma ou duas palavras) e constituíam-se de
sobreposições de vozes de alunos ou da professora. Na próxima
seção, discutiremos aspectos mais específicos relativos à fala da
professora em uma das aulas gravadas e compreenderemos melhor
o processo interacional proposto por ela.

3. Análise e discussão dos dados

Nas três aulas gravadas, inicialmente, para o bom


gerenciamento da aula, a professora participante demonstra uma
preocupação com o espaço físico da sala de aula para promover
interação e o bem estar dos alunos. Ela organiza os alunos em
círculo ou em pequenos grupos, dependendo do objetivo da aula.
Observa-se pelas gravações que as aulas foram planejadas com fases
ou episódios2bem marcados e definidos em que os rituais de

1
OLIVEIRA, S. B. Construindo e transformando os processos conceituais:
ações para o desenvolvimento do professor. Tese de doutorado. Programa
de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Faculdade de letras, UFMG,
2009.
2
Como episódios, entendemos o preâmbulo, a aula propriamente dita e o
rito de partida (OLIVEIRA, 2006). Segundo a autora, no preâmbulo
configura-se a interação destinada ao contato social ou marca o início do
evento comunicativo, nesse caso, o início da aula. A aula propriamente dita
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 485
Shirlene Bemfica de OLIVEIRA

iniciação, desenvolvimento e fechamento da aula foram claramente


visíveis. O desenvolvimento das aulas é pautado por estratégias de
negociação de imagem. Pelo corpus de três aulas, observa-se que a
professora utilizou-se mais das estratégias de convívio e
institucional para negociar imagens e os alunos utilizam mais as
estratégias pedagógicas, as de cooperação e a espontânea.
A estratégia de convívio foi identificada no corpus e utilizada
como forma de atenuação do discurso, ou seja, algumas marcas
discursivas foram usadas pela professora, como pistas de
contextualização para que os alunos percebessem suas intenções
comunicativas. Como estratégias de convívio foram evidenciadas:
usar a língua alvo (exemplo 1- linhas 286-309), diminutivos,
afetividade, fala informal, termos de senso comum, primeira pessoa
do plural, brincadeiras, risos, concordância com as vontades dos
alunos, generalização de perguntas, repetição e tradução de
palavras, envolvimento dos alunos na decisão do fluxo de
atividades, pedidos de desculpas, ênfase e motivação na fala,
palmas ritmadas e movimentação entre os alunos.
Estas estratégias também eram evidenciadas quando a
professora iniciava as aulas cumprimentando os alunos de forma
alegre e descontraída. Ela entra e sinaliza: ―Hello everybody! How are
you feeling today?‖, os alunos, por sua vez, se levantam e
respondem: ―Hi dear teacher! I feel good today!‖ Good Morning!‖ Os
alunos cantavam músicas no início de todas as aulas. No excerto
abaixo a turma havia se cumprimentado e estava decidindo sobre a
música a ser cantada. A professora usa a língua inglesa na maior
parte da aula e usa um tom informal para ativar os conhecimentos
prévios dos alunos:

é o centro da interação, ou seja, o momento em que o conteúdo é ensinado.


O rito de partida demarca o término do evento comunicativo ou o final da
aula (SILVA, 2003; OLIVEIRA, 2006). Nesse tipo de investigação, devemos
considerar, entre outros aspectos, a fala do professor e dos alunos, a
alocação e os comportamentos de tomada de turnos dentro do contexto em
que estão inseridos, bem como os rituais de iniciação, desenvolvimento e
encerramento das aulas (TSUI, 1995, p. 13).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 486
Linguagem positiva no ensino de inglês: análise das estratégias

Exemplo 1
286 K: (…) Do you remember the three short songs I told you? Do you
remember?
287 S1: No
288 S2: Yes
289 S3: I know
290 K: Good morning song. Don‘t you remember?
291 S1: No
292 S2: mais ou menos
293 K: good morning I said good morning (cantando) morning and after
that?
294 SS: Good morning! Good Morning! Hello and how are you? Early in the
morning, I say good morning, Hello and how are you?
295 K: Vocês lembram de good morning e qual outra?
296 S5: Go go bananas
297 K: boys and girls (cantando)
298 SS Peel banana, peel peel banana, Peel banana, peel peel banana,
shake banana, shake shake banana,
299 banana, shake shake banana, (dançam e balançam o corpo). Go
Banana, go go banana, go Banana, go go
300 banana. (levantam as mãos) Inky winky, foxy woxy, WEEE
301 S1: ah essa aí é legal
302 S2: No
303 K: (continua cantando e alguns alunos acompanham) do you
remember?
304 S3: Essa aí eu lembro
305 S4: Oh professora aquela do make take break como é que é o nome
306 S6: vira cantora professor
307 S5: do the Police every breath you take
308 K: eu estou falando só das short songs porque essas são músicas né,
que dá pra gente ligar com a matéria.
309 Every breath you take is from the The Police.
(Aula 2: linhas 286-309)

A professora faz perguntas na língua inglesa sinalizando a


intenção de construir uma conversa na língua inglesa. Os alunos
cooperam respondendo as solicitações e participando da conversa.
Além de participarem da conversa em inglês, cantam, fazem
perguntas sobre a proposta e sugerem outras músicas. A
participação dos alunos era livre. Eles interagiam com a professora
com pequenos chunks em inglês e em português mantendo o piso
conversacional.
O exemplo abaixo é uma conversa para a apresentação da
unidade a ser iniciada:

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 487


Shirlene Bemfica de OLIVEIRA

Exemplo 2
35 K: I tried, but yes again so I would like to talk to you before we start
our next unit. First of all/
36 S3: next class?
37 K: no next class, THIS CLASS.
38 SS: alright!
39 S4: no next class, this class.
40 S5: WHAT this class?
41 K: yes, ah (+) this period we are going to work with different things
42 (+) I‟m going to speak in English with you of course and after that
43 ah ah (+) we are going to have some exercises in pairs and in
groups too. Communicative activities. We are going to
communicate all the time.
44 S5: in English?
45 K: Yes, in English because we did it (?) right now (+) eh, ah (+) we have
46 no project for this period just awareness, black awareness week,
47 semana da consciência negra on November yeah on November we
48 have black awareness week, we are going to participate of this project
49 and that‘s the only project. I‘m going to participate (+) we have (+) we
50 are going to do listening activities (+) writing activities, reading
51 activities, we are going to talk to each other more and more and
many many exercises (+) I‟m going to leave some copies at
Associação yeah you have to take copies of course (risos dos
alunos)
(Aula 3: linhas 35-51)
Geralmente a professora inicia a unidade desafiando os
alunos a usarem a língua inglesa para discutirem questões
importantes. Os alunos parecem compreender a professora que usa
movimentos com o corpo e a língua materna para se fazer
entendida por todos. Kênia usa a língua inglesa em grande parte de
suas aulas e demonstra ansiedade para que os alunos correspondam
e utilizem a língua alvo na comunicação diária. Percebemos isso
como um ―sinalizador de identificação do grupo‖ de aprendizes da
língua inglesa, marcando e delimitando os objetivos de suas aulas.
Em sua prática, notamos que ela utiliza o pronome nós / we como
estratégia retórica de acolhimento, envolvimento e de participação
do grupo. Todos são convidados a participar da interação, para
alcançar os objetivos de aprendizagem na LI, reforçando a imagem
da interação como meio para a evolução linguística do grupo e como
forma de companherismo. Durante as aulas, a professora também
utiliza estratégias para manter o papel de líder, de comando,
utilizando marcas de discurso diretivo. Estas marcas se
configuraram por meio de recursos verbais como as apresentadas

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 488


Linguagem positiva no ensino de inglês: análise das estratégias

no exemplo 1 (linhas 79 e 83) abaixo, ‗come on guys, look at me


guys‘ e summons3, observados nas aulas do corpus:

Exemplo 3
71 Kenia: Alright (+) very good (+++) on number four we have to
72 read about Catherine and Terry ok?
73 Students: yes
74 Kenia: ok (+) as you know (+) on the text ahhh (+++) we have some
75 information about them for example Catherine (+) Catherine
76 smokes ok? smokes ok? Alright? So how can we (+++) ask about
77 Terry?
78 Simon: not
79 Kenia: not?
80 Simon: he doesn‘t smoke
81 Kenia: alright (+) he doesn‘t smoke (+) for example (+) now you are
gonna make it in pairs some questions for example about
Catherine (+++) look at me guys (+) pay attention Warley (+) for
example (+) as you know Catherine smokes so (+) does Catherine
smoke? And you have (+) you have to answer and yes she does (+)
no she doesn‘t (+) did you understand? (+++) come on guys (+)
vamos lá gente (+) deixa eu falar (+) vamos lá
(Aula 1: linhas 69-83)

Outros diretivos atenuados tais como ‗Essa brincadeira! Presta


atenção! Pay attention, please? Prestem atenção, gente!‘ foram
utilizados como formas de marcar a autoridade da professora, bem
como para decidir normas de elaboração de exercício, aprovar
participação de alunos, pedir a participação de alunos, dar
explicações do conteúdo, guiar o andamento dos trabalhos e
discordar de alunos quanto ao conteúdo e ao encaminhamento de
atividade. No exemplo 2, a professora percebe que alguns dos alunos
não estão desempenhando a atividade comunicativa proposta de
forma apropriada porque estão brincando. Ela demonstra sua
ansiedade em fazer com que os alunos usem a LI em sala, aumenta o
volume da voz com a intenção de manter o controle da turma, usa a

3
Segundo Schegloff (1968, p. 1080) summons ou linguagem não-verbal são
estratégias para chamar a atenção que podem se configurar por meio de
frases de cortesia, por um termo de tratamento ou por um recurso físico,
como, por exemplo, um tapa nas costas, ou no contexto de sala de aula, as
palmas ritmadas para que os alunos fizessem silêncio.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 489
Shirlene Bemfica de OLIVEIRA

língua portuguesa para manter o controle disciplinar, mas atenua


utilizando ―por favor‖ se prontificando a repetir a instrução
novamente, pede permissão para continuar a atividade e se
movimenta entre os alunos (linhas 229-237).

Exemplo 4
229 Kenia: Stop please (+) vocês falam que entendem, mas não sabem
230 virar e perguntar (+) professora por favor (+) vou explicar mais
231 uma vez (+) eu quero que vocês falem (+) eu estou falando com
232 vocês (+) tem um tempão tá e vocês estão olhando um para a cara
233 do outro fingindo que estão falando (+) a situação é essa gente (+)
234 nós vamos sair daquela situação de quadro e nós vamos falar, usar
235 a estrutura do verbo auxiliar (+) vocês já conhecem prestem
236 atenção nesse quadro que eu vou explicar e pela última vez (+) não
237 pela última vez o quanto vocês quiserem (+) mas o problema é que
vocês não correspondem (+) tem que corresponder pra poder saber
onde ta a dúvida de vocês (+) vocês têm aí informações sobre
Catherine (+) tem ou não tem? (+)
Students: tem
Students: yes she does
(Aula 1: linhas 229-283)

A estratégia institucional foi identificada e utilizada pela


professora quando ela queria reforçar uma hierarquia dentro da sala
de aula como vimos nas linhas (231 e 232) do exemplo 2. Em outras
aulas gravadas, observamos a realização da estratégia institucional
em três situações: a primeira aconteceu quando a professora
desejava iniciar uma atividade e não conseguia; a segunda
configurava-se quando ela estava dando explicações, utilizando
discurso de convívio, que não era aceito pelos alunos. Ela, então,
mudava o discurso para proteger sua imagem e não deixá-la exposta;
e a terceira situação acontecia quando ela estava guiando a
elaboração de exercícios exercendo grande influência sobre os turnos
e sobre o conteúdo (TAVARES, 2003, p. 84-87).
A estratégia pedagógica, que caracteriza a maneira como os
alunos negociam suas imagens, se configurou quando os alunos
queriam participar na escolha do conteúdo ou tirar dúvidas sobre
ele, escolhendo então, um discurso de convívio (TAVARES, 2003, p.
87). No corpus investigado, por exemplo, percebemos que os alunos
usaram um discurso de convívio com a professora, fazendo
brincadeiras ‗seis do seis de dois mil e seis, isso é que é rima,
heim!‘(linha 578), fazendo perguntas sobre o conteúdo ‗como é que se

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 490


Linguagem positiva no ensino de inglês: análise das estratégias

pronuncia?‘ ou influenciando e participando do fluxo da atividade,


quando ela estava checando oralmente o exercício de compreensão
oral.

Exemplo 5
573 K: /?/ vocês lembram (+) nós vamos fazer (+) o negócio é o
574 seguinte (+) quantos numbers (+) a:::h (+) /?/ one until nine /?/ one
575 (+) two (+) three (+) four (+)
576 SI(1): /?/
577 K: Nine (+)
578 (alunos conversam)
579 SI(2): Seis do seis de dois mil e seis (+) isso que é rima heim?
580 SI(3): Professora como é o nome do exercício?
K: Listening international abbreviations (+) (burburinho na sala)
590 (…)
591 K: hã (+) I will tell you the true story about ymca, ok? /?/ I will tell
592 you.
593 K: let‘s check (+) let‘s check the right meaning, ok? For example (+)
594 what is the meaning of bbc?
595 SI(6): bbc eu acho que é canal (+)
596 (alunos falam simultaneamente)
597 K: /?/ por isso que eu coloquei as letras do alfabeto pra vocês
598 lembrarem (+) /?/)
599 SI(1): o „y‟ eu nem sei como que pronuncia (+) como é que se
600 pronuncia o „y‟?
601 SI(2): cê é BUrro (+)
602 SS: „Y‟/uai/
603 SI(1): Ai?
604 K: „Y‟ /uai/
605 SI(1): „y‟ /uai/ „y‟ /uai/ „y‟ /uai/
606 K: so:: hã:: (+++)
607 SI: esqueceu né professora? esqueceu né professora?
608 K: What is BBC ? Broadcasting British/
609 P: British, but British is first (+)
SI: corporation
P: British Broadcasting Corporation (+)(+++)
K: pra vê se vocês sabiam?
SS: Ha:::::::::::: (risos)
(Aula 1 da professora Kênia: linhas 573-609)

No exemplo 2 também, um aluno usou um discurso de


convívio, respondendo às perguntas da professora, falando em inglês
com ela e concordando com a vontade da professora de repetir a
atividade proposta como modelo para os alunos que não haviam

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 491


Shirlene Bemfica de OLIVEIRA

compreendido o que deveria ser feito (linhas: 242, 248).


A estratégia de cooperação, outra modalidade de estratégia de
negociação de imagem, foi construída nos momentos em que os
alunos utilizaram-se de um discurso instrucional, tanto direcionado
à professora como com os próprios colegas, ―com o intuito de
cooperar com o andamento da aula e de alcançar seus próprios
objetivos‖ (TAVARES, 2003, p. 93). Nos exemplos 4, a seguir, os
alunos da professora Kênia cooperaram para a realização de uma
atividade em pares em que eles tinham de entrevistar o parceiro
solicitando informações pessoais. Todos fizeram a atividade ao
mesmo tempo e o gravador foi colocado nas mesas de alguns dos
pares:

Exemplo 6
578 Kenia: vamos combinar uma coisa, quando for dar a resposta. Dê
579 uma resposta pessoal observe a resposta da sua atividade e se você
tiver e se você observou você dá conta de adequar a sua realidade.
580 Isabel: Where do you live? Where do you live Lucas?
581 Lucas: I live in BH.
582 Isabel: Do you live in a house or a flat?
583 Lucas: I live in a house.
584 Isabel: What do you do in your free time?
585 Lucas: I listen to music.
586 Isabel: What kind of films do you watch?
587 Lucas: I like Xuxa e os Duendes. I like romantic films.
(Aula 3: linhas 572-589)

No exemplo 5, a professora discutia um texto sobre


modificação genética nos alimentos, especificamente na plantação
de bananas. Ela fez perguntas de demonstração e perguntas
referenciais sobre o assunto:

Exemplo 7
177 Does anybody like bananas?
178 S1: I like (um aluno responde, os outros se mantêm em silêncio)
179 K: Do you like bananas?
180 S1: Do you like bananas?
181 K: Ok, good, guys what do you know about the production (+)
182 production of bananas (fazendo um reparo na pronúncia) or
plantation of bananas in Brazil? What do you know?
183 S2: ah, I don‘t know
184 K: Is it a large plantation or not?
185 S3: There is a plantation all the year
186 K: there is a plantation of bananas all the year?
187 S3: during all the year
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 492
Linguagem positiva no ensino de inglês: análise das estratégias
188 K: Which area do you think has the most plantations of bananas?
189 S3: next to/
190 K: which areas (+) North, South of Brazil?
191 S4: no Brasil todo lado tem banana
192 SS: é
193 K: Minas Gerais I think we have many plantations of banana
194 S3: South of Brazil
195 K: I‘m not sure about it because I didn‘t research many things about
it
196 S4: No Brasil todo tem banana
197 S5: Planta o caule só?
198 K: (não ouve a pergunta do aluno) My (?) is really bad (?) economy or
199 something like that and another question. Do you have the idea that
200 we could clone bananas (+) that bananas could be genetically
modified
201 S5: But why are they clonning bananas?
202 K: Do you have this idea because I think I had the idea that we could
find bananas anywhere? L
203 SS: é
204 S2: Oh, yeah
205 K: mainly in Brazil because because we have ah good seeds good
206 production
207 S3: We don‟t need clonning bananas
208 K: Yeah, we export bananas to other countries
209 S4: We export bananas to other countries
210 K: Ok, but this text reports that we have troubles about plantation
211 about this plantation of bananas here in Brazil. It doesn‘t tell about
212 vitamins on bananas. Ok? It doesn‘t tell us about the benefits of
bananas. I think it is a good product it is the most how can I say
213 S5: rich?
214 K: Yes, it is the most rich fruit
215 S6: richer with vitamins?
216 K: richest, yes richest (+) I received an e-mail talking about this and I
217 was amazed because bananas can cure many diseases skin diseases
218 or cancer or many diseases (+) banana is really a good product, but
nowadays ah Brazilian farmers they need to use products
219 S1: Agrotóxico
220 S2: Agrotoxic
(Aula 3: linhas 177-220)

As expressões ―I think‖ (linha 194), ―I‘m not sure‖ (linha 197)


e as linhas 204 e 205 indicam que a professora realmente estava
solicitando dos alunos informações que não eram do conhecimento
dela. Os alunos, por sua vez, participaram respondendo, fazendo
perguntas e trazendo informações novas. Eles usaram o inglês e o
português durante as contribuições. Dependendo do momento da
aula, a professora enfrentou dificuldades em solicitar as
informações em inglês e obter as respostas dos alunos em inglês. Na
maior parte do tempo, os alunos compreendiam as perguntas que a
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 493
Shirlene Bemfica de OLIVEIRA

professora fazia, mas respondiam em português. Vimos um avanço


no modelo interacional proposto pela professora e pelos alunos do
exemplo 4 para o exemplo 5 porque o tipo de conversa não é tão
controlado apesar de os alunos usarem o português. A interação
proposta no exemplo 5 propõe um letramento crítico em relação a
uma situação que eles demonstram ter pouco conhecimento, mas
que contribuem com seus conhecimentos prévios para a
reconstrução da interpretação textual e para questionarem a
situação proposta. Por que clonar bananas se temos bananas em
todo território nacional e o ano todo? Por que precisamos produzir
alimentos geneticamente modificados?
A última modalidade de estratégia de negociação de imagem
discutida nessa pesquisa, a estratégia espontânea, foi identificada
nas situações em que os limites de começo e fim de aulas estavam
sendo definidos. Nessas ocasiões, os alunos utilizaram um discurso
espontâneo semelhante ao discurso em conversações não-
institucionais. Professora e alunos ―tomavam os turnos sem
indicação e a conversa ocorria de forma mais parecida com
conversações naturais‖ (TAVARES, 2003, p. 95). O exemplo 6, no
início de uma das aulas gravadas da Kênia, representa um momento
descontraído da organização do espaço da sala de aula (linhas 12,
13). Percebemos, durante essa e outras aulas, que a estratégia
espontânea ocorreu somente na língua portuguesa, talvez por os
alunos se sentirem mais confortáveis com o uso da língua materna
ou ainda porque não têm fluência oral suficiente para manter um
diálogo espontâneo na língua alvo / inglesa.

Exemplo 8
12 K: (risos) dá uma cadeira pra ela aí (+) ah (+) ah:, So since you
13 haven‘t finished that exercise I need you to make a circle here,
14 please (muito ruído de carteiras se arrastando novamente e alunos
conversando alto e rindo)
15 K: I need (+) on your desk (+) only these things (+) right?
16 S1: Quem vai pegar /?/
17 S2: Dá pra chegar um pouquinho pro lado (+++) Oh Marcos (+)
18 K: Marcos arreda um pouquinho pra frente pra gente começar (+++)
19 Maria Paula minha aula já começou (+) vamos fazer como
20 combinado (+) vamos terminar o /?/ e o resto do trabalho (+)
mochilas do lado por favor (+) na mesa somente o material
necessário
21 A3: Paulo, me empresta aí
22 A4: oh professora me dá a folha?
23 A1: oito horas (risos)
24 K: Ok I want /?/ senta aqui até ele pegar (+) só um minutinho (+)

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 494


Linguagem positiva no ensino de inglês: análise das estratégias
25 Everton mochila (+) please /?/ fechem os fichários por favor (+)
26 Warley acompanhou com a Ingrid e Thais acompanhou com o
27 Márcio depois vc pega com eles, (+++) (a professora parece que faz
um comentário sobre a organização, fala o nome de alguns alunos
que se assentaram com os outros na última aula).
(Aula 1: linhas 12-27)
Podemos perceber pelos dados que Kênia valoriza o
desenvolvimento das habilidades de compreensão e produção oral e
escrita. Ela reconhece que o espaço físico e a organização dos
alunos em círculos interfere de forma positiva no gerenciamento da
interação. Além disso, ela reconhece que usar a LI para a
comunicação em sala de aula favorece o aprendizado dos alunos.
Ficou evidente em alguns trechos das aulas gravadas que as
estratégias de negociação de imagem foram utilizadas pela
professora e pelos alunos para que os participantes desenvolvessem
sua autonomia no uso da língua inglesa. As estratégias se tornaram
mais evidentes durante as tarefas de gerenciamento da aula do que
durante as tarefas pedagógicas, o que contribuía para uma melhor
interação pessoal. Houve tentativas de manter um discurso de
convívio de ambas as partes (professora e alunos), e a qualidade do
insumo e a maneira de direcioná-lo pode ter contribuído para a
aprendizagem dos alunos. Na aula analisada, o discurso instrucional
era dominante, tanto por parte da professora como por parte dos
alunos. Esse discurso era negociado entre eles, gerando estratégias
de negociação da imagem de diferentes perfis, conforme as
necessidades da situação, o que corrobora os resultados de Tavares
(2003). Acreditamos que a análise do uso de estratégias de
negociação da imagem nos auxiliou a estabelecer padrões recursivos
da organização da aula da participante, do tipo de conteúdo
selecionado e ministrado por ela, bem como dos papéis assumidos
pelos interagentes em sala de aula.

Conclusões e encaminhamentos: linguagem positiva em sala de


aula

Professores de língua inglesa enfrentam desafios em sala de


aula para motivar os alunos a desenvolverem conhecimentos
linguísticos, fluência na língua, habilidades sócio-afetivas4

4
Sócio-afetivas: relativas às emoções e relacionamentos com os outros.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 495
Shirlene Bemfica de OLIVEIRA

complexas como corrigir erros e oferecer sugestões de mudanças,


avaliar o progresso e participação dos alunos, manter a disciplina
em sala de aula e aplicação de regras, guiar as relações interpessoais
dos alunos durante o trabalho de grupo, promover trabalho de
pares, e as atividades com toda a turma.
As estratégias de negociação utilizadas pelos professores em
sala de aula podem ter efeitos duradouros sobre a construção
identitária dos alunos e no nível de satisfação do professor com a
carreira docente. O discurso respeitoso, encorajador e positivo
alimenta a confiança dos alunos e tem impacto em como eles
aprendem novos conteúdos e habilidades, na motivação em
progredir e desenvolver hábitos de aprendizagem autónoma e no
planejamento e gestão de experiências de aprendizagem para os
alunos com estilos de aprendizagem diversificada, personalidades,
níveis de maturidade e habilidades de auto-regulação (WHITE, 2014).
A reconstrução interativa em sala de aula, para um discurso
democrático, dinâmico e positivo pode ser feita não só através do
estabelecimento de rotinas e regras, mas também com o uso da
língua alvo, verbal e não-verbal, usada para se comunicar com os
alunos. White (2014) sugere que é necessário procurar maneiras de
reformular a linguagem negativa ou muito autoritária, incentivando
os alunos a escolherem comportamentos positivos, acreditando que
é possível fazer tais escolhas.
Silva e Tavares (2010) apontam para uma tendência de
ensino crítico em que o professor toma consciência do uso das
estratégias de negociação da imagem e do uso de um tom positivo
em sala de aula. Desta forma, o equilíbrio entre a negociação nas
interações e as capacidades de exibir o poder terão efeitos
diferentes, dependendo do modo como o professor interage com os
alunos, no sentido de que as rupturas desta interação podem trazer
consequências embaraçosas nas relações do contexto escolar,
inclusive tornando o processo de ensino e aprendizagem menos
eficiente do que se espera que ele possa ser.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 496


Linguagem positiva no ensino de inglês: análise das estratégias

Referências

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interaction. In: Erving Goffman (org) Interaction ritual: essays on face-to-face
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KRAMSCH, C. Interactive discourse in small and large groups. In: RIVERS, W.


(ed.) Interactive language teaching. Cambridge: Cambridge University Press,
1987.

MIASKOVSKY, W. H. A produção criativa na atividade sessão reflexiva em


contextos de educação bilíngüe. 2008. 266 f. Dissertação (Mestrado em
Linguística Aplicada e estudos da linguagem) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.

MOLAR, J. O. A alteridade na educação: noção em construção. Revista


NUPEM, Campo Mourão, v. 3, n. 5, 2011.

OLIVEIRA, S. B. Construindo e transformando os processos conceituais:


ações para o desenvolvimento do professor. Tese de doutorado. Programa de
Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Faculdade de letras, UFMG, 2009.

SILVA, P. P. TAVARES, R. R. Negociação da imagem, estratégias discursivas e


novas tendências nas práticas interativas em aulas de inglês como língua
estrangeira. Horizontes de Linguística Aplicada, v. 9, n. 1, p. 26-43, 2010.

TAVARES, R. R. Estratégias de negociação da imagem em sala de aula de


língua estrangeira. In: LEFFA, V. J. (Org.) A interação na aprendizagem das
línguas. Pelotas: EDUCAT, 2003, p. 75-100.

TAVARES, R. R. Linguagem, cultura e imagem na pesquisa qualitativa:


interpretando caleidoscópios sociais. Cad. EBAPE.BR [online]. 2005, v. 3, n. 1,
pp. 01-13.

WHITE, S. Reframing: The Power of Positive Language. 2014 Disponível em:


https://americanenglish.state.gov/files/ae/resource_files/topic_4__positive
_language_final.pdfAcesso em 29/9/2016.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 497


AS (INTER)RELAÇÕES DE IDENTIDADE, MEMÓRIA E
EXOTOPIA NA AUTOBIOGRAFIA FELIZ ANO VELHO,
DE MARCELO RUBENS PAIVA

Túlio Sousa VIEIRA


UFOP

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar uma obra do


autor Marcelo Rubens Paiva, o livro Feliz Ano Velho (1982),
elencando situações/momentos onde o sujeito narrador se constitui
e constitui sujeitos-outros que contribuem para instituir exotopias
do autor em relação a sua vida e obra. Busca-se, ainda, compreender
como a co-construção da identidade do narrador é deslocada, tendo
por base as discussões da teoria/análise dialógica do Círculo de
Bakhtin (BAKHTIN, 2006 e 2011), e pautado na concepção de
memória (HALBWACHS, 2006).

Palavras-chave: Identidade; Memória; Exotopia; Excedente de visão.

Considerações iniciais

O artigo em pauta está alicerçado em discussões


desenvolvidas em disciplinas do Programa de Pós-Graduação em
Letras – Estudos da Linguagem, Instituto de Ciências Humanas e
Sociais (ICHS), da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), que
entre os vieses de estudos, encontram-se as possibilidades de
leituras em semioses sobre a escrita de si, configurando-se o escopo
do presente trabalho a análise de uma autobiografia.
Considerada um marco da literatura contemporânea, a obra
que suscitou interesse pela escrita e que, consequentemente,
impactou no desenvolvimento deste trabalho, foi o livro Feliz Ano
Velho (1982), do escritor e dramaturgo Marcelo Rubens Paiva. Tendo
por bases os conceitos bakhtinianos como excedente de visão,
exotopia e polifonia, bem como a concepção de memória do autor
Maurice Halbwachs, o artigo ora proposto busca refletir sobre os
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
As (inter)relações de identidade, memória e exotopia

aspectos que compõem a narrativa de Paiva, além propor uma


discussão a respeito dos (des)caminhos que a escrita de si engendra.
Apresentando-se, assim, as expectativas iniciais que são os
fios condutores deste artigo, propõe-se analisar a narrativa
memorialística Feliz Ano Velho, trazendo à luz da discussão as
diversas vozes do narrador que (des)constroem a identidade e a
memória abarcadas na obra.

1. A narrativa de si: memória e identidade

De modo a corroborar com a prática deste estudo buscou-se,


inicialmente, uma reflexão acerca dos papéis desenvolvidos pelo
narrador na construção de sua escrita memorialística, dentre eles,
narrador-autor e narrador-personagem, que compõem sujeito e
sujeito-outro dentro da obra. A respeito dessas trocas dialógicas, a
comunicação empreendida tem por base toda uma enunciação que
envolve a alteridade destes sujeitos. Bakhtin ressalta da enunciação:

Qualquer enunciação, por mais significativa e completa


que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente
de comunicação verbal ininterrupta (concernente à vida
cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política etc.).
Mas essa comunicação verbal ininterrupta constitui, por
sua vez, apenas um momento na evolução contínua, em
todas as direções de um grupo social de determinado.
(BAKHTIN, 2006, p. 128).

Compreender essa propriedade inicial da comunicação entre


sujeitos criou a possibilidade de engajamento para as diversas
atividades comunicacionais que os sujeitos constroem. Por esse
motivo, os deslocamentos/movimentos vêm acompanhados de
vozes diversas, intrínsecas ao processo de evolução da comunicação
de cada um, tais como: viver, falar, relacionar-se etc. Assim, situa-se
um primeiro sujeito, que é autor e analisa as (des)construções da
identidade presente no livro e na vida do próprio narrador, e é
também uma alternativa para o sujeito-outro, personagem da
narrativa, que converge para a possibilidade do acontecimento em
questão, a escrita memorialística.
A escrita de si desenvolvida pelo autor suscita diversos
olhares para os acontecimentos que envolveram a vida de Marcelo
Rubens Paiva. Dentre eles, a perseguição política à sua família e o
desaparecimento do pai (deputado federal) por autoria da ditadura

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 499


Túlio Sousa VIEIRA

militar instaurada. As memórias do autor, então, possibilitam um


leque de caminhos para ele e apresentam saídas para os problemas
em que estava inserido, sendo eles: a impossibilidade de defender a
família diante o sumiço do pai e, principalmente, pela condição
adquirida devido ao trauma relativo à sua condição física.
A autobiografia de Paiva realiza uma tarefa de rememoração
do acontecido, uma espécie de reconstrução histórica do sujeito-
autor sobre o sujeito-personagem, no intuito de cultuar e atualizar o
que foi motivo de dor, descrença, dificuldade, perda, aquilo que, de
certo modo, modificou o autor e possibilitou seu engajamento na
escrita de memórias. Luís Travassos1 ilustra a principio esse norte
para Paiva, pois o autor insere no prefácio da obra um comentário
de Travassos quanto à proeminência de sua obra:

Marcelo, cara, peguei teu texto para ler em um dia de


tremendo baixo-astral. Como sempre acontece comigo
(desde que te conheço), recebi uma porrada de energia
na boca do estômago e o moral subiu dos intestinos
para a cabeça. O teu livro está um barato, especialmente
porque dá pra sentir um gozo aberto tipo pôquer
descoberto. No fundo eu acho que a transa da literatura
está ligada à transa da verdade (assim como a revolução,
o amor e um montão de coisas). E é aí que está todo o
pique do que você escreveu. A tua história está transada
de um jeito puramente terno, bem-humorado, erótico e
sedutor, o que, aliás, é a tua maneira de ser. Tem uma
firmeza no teu texto que espero que você mantenha: é
um texto limpo de teorias e com um puta sentimento
que expressa e defende suas ideias. Por exemplo, é
deliciosa a maneira como na história há elementos
críticos sobre as pessoas, comportamentos etc. sem
nenhuma cagação de regras ou ironias baratas, mas com
uma puta firmeza. Ameaça final: se você não publicar
esse livro, juro que vou me aliar ao pai da sua namorada
da BBB e perseguir você até o juízo final. Abração, Luís
Travassos, Inverno de 81. (TRAVASSOS, 1982, pp. 5-6).

1
Luís Gonzaga Travassos da Rosa nasceu em São Paulo, em fevereiro de
1945. Travassos foi ativista e líder estudantil brasileiro durante a ditadura
militar. Em junho de 1968, foi um dos líderes da ―Passeata dos Cem Mil‖,
ocorrida no centro da cidade do Rio de Janeiro.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 500
As (inter)relações de identidade, memória e exotopia

Feliz Ano Velho destaca a atitude crítica da juventude da


época. Paiva escreve reflexões sobre seu quadro de saúde,
tetraplégico, e destaca alguns momentos, metaforizando seu quadro
de saúde com o cenário politico. Percebe-se intertextualidade na
escrita quando Paiva cita Fernando Gabeira, escritor e jornalista, ao
denominá-lo como militante, aquele que lutava contra os ideários
vigentes, servindo de modelo para Rubens Paiva. Assim, ao citar a
obra ―O que é isso, companheiro‖ (1979), Paiva (auto)reconhece
nessa obra uma influencia também margeada pelo
descontentamento com a ditadura. Para Paiva, Gabeira se
assemelhava a sua condição metafórica de exilado, de sujeito sem
ação por causa da imobilidade aparente. O autor, então, comenta:

O Gabeira nem imagina o quão importante ele foi para


mim. Nunca me esqueci da emoção que ele sentiu,
quando, ao sair do apartamento, pegou um ônibus que
vai pelo aterro, na praia do Flamengo, abriu a janela e
ficou curtindo o vento batendo em seu rosto. Foi aí que
eu prometi para mim mesmo que, quando saísse do
hospital, a primeira coisa que faria seria abrir a janela,
para receber a brisa da Avenida Paulista no rosto. No
final do livro, Gabeira é trocado por um embaixador e
posto num avião para fora do país, na condição de
exilado. Era mais ou menos a sensação que eu estava
esperando sentir, quando saísse daquele hospital.
Exilado, sem poder voltar. Alguma coisa ia mudar, isso
eu sabia. Mas tinha medo de imaginar o que poderia ser.
Afinal, para onde eu não voltaria? (PAIVA, 1982, p. 40)

Cabe salientar, ainda, que Paiva desenvolve outro tipo de


intertextualidade durante sua escrita, ou seja, de mistura de
gêneros, de hibridização, onde um determinado gênero apresenta a
forma de outro. Esse fenômeno aparece quando, ao se desenvolver a
análise da escrita do autor, suas características discursivas, percebe-
se uma configuração diferente da usual durante o ato
comunicacional. Em um momento da escrita melancólica, o autor
cogita suicidar-se e, por essa razão, desloca a escrita narrativa. Ao
desempenhar esse papel, Marcelo Rubens Paiva transforma a
narrativa memorialística do livro numa carta de despedida. Observa-
se essa construção:

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 501


Túlio Sousa VIEIRA

Fig. 1: intergenerecidade intergênero - livro

Feliz Ano Velho (1982), Marcelo Rubens Paiva. São Paulo: Círculo do Livro. p.
224.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 502


As (inter)relações de identidade, memória e exotopia

Fig. 2: intergenerecidade intergênero – livro

Feliz Ano Velho (1982), Marcelo Rubens Paiva. São Paulo: Círculo do Livro. p.
225.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 503


Túlio Sousa VIEIRA

Na tentativa de encontrar um lugar de fuga, o autor cogita o


suicídio. Ressentido da violência cometida pelo governo ditatorial,
Paiva encontra consolo na morte, num possível encontro com o pai.
Uma leitura possível dessa tentativa é, por exemplo, o estado de
semelhança que o narrador se encontra ao de seu pai. Rubens Paiva,
deputado exilado da vida pela ditadura, e seu filho, o narrador,
exilado de si mesmo, motivado pela incapacidade de se movimentar.
Contudo, Paiva quebra novamente a sequência comunicacional da
narrativa e retoma sua história pessoal por meio da escrita de si,
resgatando sua autobiografia:
Depois do jornal, passei pro Gabeira. Na UTI, onde
ditavam este livro pra mim, não tinha entendido direito,
portanto comecei a ler tudo de novo. Minha avó virava
as páginas. Muito melhor ler do que ouvir ditado. As
palavras, quando escritas, ganham sentimentos, mais
verdade. Aquilo estava ali e não poderia ser apagado,
enquanto memória apaga facilmente. (PAIVA, 1982, p.
90)

Esse resgate da memória, que recolhe e expressa por meio da


escrita, parece ser um novo produto de fuga para lidar com os
problemas que o afetavam e, consequentemente, afetavam seu meio
social. Por outro lado, apesar dos cerceamentos de liberdades
provocados pela ditadura, com a autobiografia o narrador teria a
capacidade de manter vivo na memória nacional, mediante a escrita
de suas memórias, um produto reflexivo que não poderia cair no
esquecimento. Indo de encontro à concepção de memória nacional,
Halbwachs defende um conceito-outro sobre memória coletiva que
também abarca a escrita individual de Paiva. Para Halbwachs,

embora a memória coletiva extraia sua força e duração


do fato de que um conjunto de homens lhe serve de
suporte, são indivíduos que se lembram enquanto
membros de um grupo. Agrada-nos dizer que cada
memória individual é um ponto de vista sobre a
memória coletiva, que esse ponto de vista muda
segundo o lugar que nele ocupo e que, por sua vez, esse
lugar muda segundo as relações que mantenho com
outros meios. (HALBWACHS, 1950, apud RICOUER, 2007,
pp133-134)

Diante dessas tensões que as relações de memória


provocam, de deslocamentos contínuos mediante os lugares que os

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 504


As (inter)relações de identidade, memória e exotopia

sujeitos ocupam, encontra-se um ponto de contato com os estudos


do teórico russo Mikhail Bakhtin. Bakhtin discorre sobre essas
sobreposições a respeito dos diversos sentidos constituídos e
compreende essa construção como exotopia:
O ―super-homem‖ existe – mas não no sentido
nietzschiano do ente superior; sou o super-homem do
outro, como ele o é de mim: minha posição (minha
exotopia2) me dá o privilégio de vê-lo como um todo. Ao
mesmo tempo, não posso agir como se os outros não
existissem: saber que o outro pode ver-me determina
radicalmente a minha condição. A sociabilidade do
homem funda-lhe a moral: não na piedade, nem na
abstração da universalidade, mas no reconhecimento do
caráter constitutivo do inter-humano. (BAKHTIN, 2011,
p. XXVIII).

Ao descortinar essa concepção de interdependência de


sujeitos que se entrecruzam, sujeito-autor e sujeito-narrador, chega-
se ao conceito que corrobora na co-construção da identidade dos
sujeitos envolvidos. O conceito em evidência diz respeito a uma
gama de possibilidades discursivas que traz à luz da discussão as
consequências no discurso da co-construção identitária do autor.
São ações externas e internas que os sujeitos em voga praticam, um
em relação ao outro, e que só se concebem, a priori, a partir da visão
de outro que cada um constitui, mesmo que essa concepção de
sujeito privilegie uma tendência subjetiva, essas trocas atribuem
qualidade de (re)significação constante na obra, bem como na
(re)instituição da memória presente. Assim, o estudo pega
emprestado novamente do teórico Bakhtin outro conceito, o de
excedente de visão, para argumentar que:

O excedente de visão é o broto em que repousa a forma


e de onde ela desabrocha como uma flor. Mas para que
esse broto efetivamente desabroche na flor da forma
concludente, urge que o excedente de minha visão
complete o horizonte do outro indivíduo contemplado
sem perder a originalidade deste. Eu devo entrar em
empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o
mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no

2
Grifo meu.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 505
Túlio Sousa VIEIRA

lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar se


descortina fora dele, convertê-lo criar para ele um
ambiente concludente a partir desse excedente de minha
visão, do meu conhecimento, da minha vontade e do
meu sentimento. (BAKHTIN, 2011, p. 23).

A participação ativa em algo, pelos sujeitos que se


interpolam, narrador-autor e narrador-personagem, confere
intensidade de autoria a partir do momento em que ele (autor) se
distancia da obra observada, da contemplação do todo apresentado
e traz para si, para suas vivências, de modo a completar o ato visto,
ser sujeito-outro da obra realizada. Em outras palavras, o
deslocamento vivenciado por Rubens Paiva, sujeito-autor, excede
uma visão para a narrativa memorialística em que o sujeito-
personagem está inserido. Nessa direção, há uma justificativa à
atividade do autor, pois ao entrar em empatia com os sujeitos da
obra, cria para si um caminho próprio e exerce a função de autor,
função independente que exerce ao escrever suas memórias, sua
autobiografia.

2. Ecos da narrativa memorialística

A construção da identidade, no caso específico, do sujeito-


autor/personagem, é determinada justamente pela posição que ele
ocupa. Há uma identificação, um desvelamento do lugar de sujeito
que concorda com um conjunto de representações que participam
nele e o fazem agir em determinado meio social. Nesse sentido,
Marcelo Rubens Paiva desenvolve a autobiografia se culpabilizando
pelo ocorrido (acidente), alinhando um novo sentimento de
estranhamento ao estado de saúde debilitado. Há momentos na
escrita uma falta de linearidade em torno das cenas, situações
relatadas pelo autobiógrafo que promovem a co-construção da
identidade dos sujeitos envolvidos e desloca a narrativa
memorialística em sucessivas (re)construções de sentidos. Percebe-
se essa escrita na seguinte fala do autor:

Minha cabeça doía de tanto pensar. Se ao menos eu


erguesse a cabeça para mudar o cenário. Impossível.
Uma mulher bonita qualquer. Imagine transar com a
Lídia Brondi. Com é mesmo a cara dela? Canta, isso,
cante: -‗Eu sempre quis muito, mesmo que não parecesse
ser modesto. Juro que não presto. Eu sou muito louco‘.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 506


As (inter)relações de identidade, memória e exotopia

(Louco? É, não. Que saco, não aguento mais.). –Oi, dr,


Miguel. Tudo bem? (PAIVA, 1982, p. 37)

Esse tom que o sujeito-autor aplica à sua escrita permite que


ele coloque em evidência, não só para si, mas para o leitor, o
sentimento de repulsa alimentado pelas memórias da ditadura. Tal
característica é revelada quando o autor se compara a política da
época. Nessa situação, Paiva se reconhece como estagnado, como
um sujeito sem saídas, com uma necessidade de renovação. De
antemão, ele também desenvolve uma articulação comparativa em
que seu corpo é também metaforizado à vida paulistana:

Em cada cem habitantes paulistanos, 15 são viciados em


fliperama. É a cidade da máquina, do digital, da tomada.
Meninos e meninas, velhos impotentes, a Paulicéia delira
apertando botõezinhos, fazendo a bolinha subir. E ela
sobe, derruba um ―extra‖ e sobe outra. Não deixa ela
cair, ô cara, cuidado com o ―tilt‖. Mostre pra máquina
que você é mais máquina do que ela. (PAIVA, 1982, p.
186).

Essas metáforas constituem o sujeito-autor que (re)cria sua


autobiografia. Ao se comparar à máquina, Paiva tem a noção de que
em determinada hora poderá dar um tilt, ou seja, poderá parar,
morrer. Nesse momento o autor se (re)conhece como ―eu‖, um outro
―eu‖, ciente da situação e já focado na recuperação. Rubens Paiva
assume novos papeis que cabem a ele desenvolver. Esse sujeito-
outro, interessado, persistente, define outras memórias que
embasam sua autobiografia e extrapolam a escrita íntima.
Ao (re)colocar em cena esses acontecimentos, o autor
possibilita uma reconstrução de sentidos que abarca uma
compreensão da história do país que se intercala com o ocorrido na
época da ditadura com os recentes cerceamentos da democracia,
ocorridos a partir do ano de 2010 até aqui. Soma-se à escrita
melancólica, uma recusa por parte do autor em permitir o
esquecimento das memórias da ditadura. A alusão a esses temas
suscita uma catarse particular do autor e também como uma
bandeira levantada contra a violência ditatorial. Apesar das
memórias, a expectativa de mudança recai sobre o cenário
apresentado por Rubens Paiva. Por essas razões, o artigo em
questão pega emprestado uma assertiva de Jacques Derrida, que se
refere à escrita, qualquer que seja ela, para confirmar esse teor

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 507


Túlio Sousa VIEIRA

(re)elaborativo das práticas da memória instituídas pelo sujeito-


narrador para evitar o esquecimento e para que a escrita de si
extrapole o sentimento comum do autor:

Para que um escrito seja um escrito, é preciso que


continue a "agir" e que seja legível mesmo se aquele que
se chama o autor do escrito não mais endosse o que
escreveu, o que pareça haver assinado, que esteja
provisoriamente ausente, que esteja morto ou que, em
geral, não o tenha apoiado por sua intenção ou atenção
absolutamente atual e presente, com a plenitude de seu
querer dizer, ou mesmo que tenha sido escrito "em seu
nome" (DERRIDA, 1991, p. 342).

Esse diálogo proposto entre sujeitos diferentes3, sujeito-


personagem que vive e é autobiografado, e sujeito-narrador que
desloca suas memórias para a escrita da autobiografia, criam
sentidos da/na obra de Rubens Paiva por meio da co-construção da
identidade, que permite um entendimento mais elaborado da
reflexão proposta neste artigo. Nessa direção, a obra entrecruza-se
com um dos princípios da literatura, a apresentação da
possibilidade de leituras diferentes diante um mesmo fato. No caso,
a autobiografia do autor que conversa com inúmeros leitores e
diferentes épocas, e que trata de um evento marcante, com ecos no
período político vivido. A fruição da obra permite esse duplo
exercício, essa cadeia de significados que emerge da relação
dialógica proposta pelo teórico russo Mikhail Bakhtin, e que tem
reflexos no contexto geral da obra. A autoanálise de sujeito-
narrador e sujeito-personagem suscita, invariavelmente, múltiplas
interpretações e diagnósticos que Paiva produz. Assim, a escrita
melancólica está ligada aos fatos que marcaram a vida do autor e,
obviamente, a repressão sofrida por ele e sua família, tendo como
ponto norteador a perda do pai. Marcelo delineia sua escrita
embasada nessas asserções que a ditadura provocou em sua vida, e
que em diversos momentos tangenciam sua autobiografia, trazendo
à tona sua crítica/aversão ao período da ditadura:

3
Categoria bakhtiniana de sujeito – sujeito dialógico visto em relação às
categorias de dispersão; sujeito em relação intrínseca com a língua.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 508
As (inter)relações de identidade, memória e exotopia

Justiça neste país é uma palavra sem muita importância.


As pessoas de farda ainda são os donos do Brasil, e eles
tem um código de ética para se protegerem mutuamente
(como no caso do Riocentro). Vou usar um velho chavão,
mas é verdade que não é matando um corpo que se
elimina um homem. Rubens Paiva está vivo em muitas
pessoas. (...) Chegará o dia de quem desapareceu com
Rubens Paiva, assim como chegará o dia dos que
desapareceram com vinte mil na Argentina, porque
esses desaparecimentos têm o mesmo significado. O
sadismo de alguns imbecis que apenas por vestirem
fardas e usarem armas se acham no direito divino de
tirar a vida de uma pessoa, pelo ideal egoísta de se
manter no poder. (PAIVA, 1982, pp. 72-73)

Por intermédio da escrita autobiográfica, o sujeito-narrador


apresenta um conteúdo simbólico variado que faz parte e que
conversa com gerações-outras, influenciadas pela escrita
memorialística. O imaginário do público que lê a obra de Marcelo
Paiva trabalha de modo a inserir e modificar as leituras. A escrita de
si, como perspectiva de autorreflexão, trabalha em pontas distintas,
tanto de quem recebe, quanto de quem produz. Nesse
entrecruzamento de memórias, o artigo em voga cita, novamente, o
autor Maurice Halbwachs, de modo a apresentar uma importante
pontuação para a elucidação das práticas do sujeito-narrador sendo
ela:
Se a memória coletiva tira sua força e sua duração por
ter como base um conjunto de pessoas, são os
indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do
grupo. Desta massa de lembranças comuns, umas
apoiadas nas outras, não são as mesmas que aparecerão
com maior intensidade a cada um deles. De bom grado,
diríamos que cada memória individual é um ponto de
vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista
muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo
lugar muda segundo as relações que mantenho em
outros ambientes. (HALBWACHS, 2006, p. 69)

Em Feliz Ano Velho, sujeito-narrador/personagem trabalham


em modo conjunto para que as construções da identidade sejam
deslocadas durante a obra, na narrativa memorialística.
Analogamente, há uma co-construção da identidade, pois a obra
trabalha em duas frentes, a linearidade entre memória pessoal e

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 509


Túlio Sousa VIEIRA

memória coletiva. Esses eixos presentes na obra conferem coesão à


escrita memorialística trabalhada por Marcelo Rubens Paiva. Esse
simbolismo exercido pelas (inter)relações da identidade na obra
justifica-se, primeiramente, pela abordagem da memória do autor
quanto às violências sofridas. Há também um tom de denúncia e
indicação de penalidades aos que exerceram a ditadura. Por outro
lado, e ao que parece ser a motivação final da autobiografia, o autor
reconstrói sua mobilidade através da obra, possibilitando um não-
esquecimento, uma continuidade da conscientização que a memória
individual do autor poderia auxiliar em memórias coletivas dos
grupos em que partilhassem sua linguagem. Assim, o narrador
confere aos sujeitos-narrador/personagem uma consciência de que
era necessário continuar a vida:

De repente, deu-me um clique. Lembrei-me de que tinha


um corpo, apesar de tudo.(...) Um ano em que tive uma
certeza: minha vida mudou pacas. Sou um outro
Marcelo, não mais Paiva, e sim Rodas. Não mais
violinista, e sim deficiente físico. (...) Hoje em dia, me
pergunto se preferiria estar morto. Não sei, nem quero
saber. (PAIVA, 1982, p. 259).

O autor, então, constitui memórias diante das (inter)relações


de identidade, e familiariza-se com uma esfera infinita de
possibilidades devido ao reconhecimento do seu estado, ciente das
novas dificuldades e das relações que teria que desenvolver perante
a situação política ainda contraditória instaurada. Por intermédio da
literatura, a escrita de si desenvolvida abriu os olhos do sujeito-
narrador, deu consciência e sentido a narrativa memorialística,
embasada na aproximação da história vivida com a história narrada.
Considerações finais

As concepções de sujeito abarcadas durante o presente


artigo versam sobre uma possibilidade subjetiva, ficcional.
Realidade e ficção se misturam durante a narrativa memorialística.
A questão da memória apresentada em Feliz Ano Velho discorre um
caminho próprio. A escrita de si é constituída (in)diretamente pela
ausência do pai e do acidente que cerceou os movimentos do autor.
Há também uma desconstrução de verdade factual. Enquanto
componente da escrita, a escrita de si está dentro de um gênero
multifacetado, e o lugar de verdade (se existe um), um lugar de
memória, associa-se às marcas textuais presentes, na escrita
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 510
As (inter)relações de identidade, memória e exotopia

experenciada. Dessa maneira, a concepção bakhtiniana sobre autor


reforça seu laço com a obra em questão. A relação dialógica de
sujeito-autor e sujeito-personagem encontram parceria no que
Mikhail Bakhtin entende pela concepção de autor, que numa relação
exotópica ocorre quando

Segundo uma relação direta, o autor deve colocar-se à


margem de si, vivenciar a si mesmo não no plano em
que efetivamente vivenciamos nessa vida; só sob essa
condição ele pode contemplar a si mesmo, até atingir o
todo, com valores que a partir da própria vida são
transgredientes a ela e lhe dão acabamento; ele deve
tornar-se outro em relação a si mesmo, olhar para si
com os olhos do outro. (BAKHTIN, 2011, p. 13).

Na obra, a interpretação do autor ocorre quando o sujeito-


autor encontra no sujeito-personagem uma ponte para a
comunicação de memórias. Contemplar o outro fornece bases para o
autor modificar o todo da obra, acrescentar dados, modificar o
acontecimento comunicacional. Ao emergir essa verossimilhança, o
autor imprime na constituição da obra a interpretação estética que
somente ele enxerga na prática dialógica entre os sujeitos da
narrativa memorialística. O gênero autobiográfico em que Feliz Ano
Velho está inserido possibilita, ainda, validar a concepção que o
autor Philippe Lejeune entende sobre autobiografia:

O que define a autobiografia para quem a lê é, antes de


tudo, um contrato de identidade que é selado pelo nome
próprio. E isso é verdadeiro também para quem escreve
o texto. Se eu escrever a história de minha vida sem
dizer meu nome, como meu leitor saberá que sou eu? É
impossível que a vocação autobiográfica e a paixão do
anonimato coexistam no mesmo ser. (LEJEUNE, 2008, p.
33)

Essa relação de identidade que coexiste na obra de Marcelo


Rubens Paiva, onde autor, narrador e personagem se sobrepõem,
constituem as memórias do autor por meio de excedentes de visão
de Marcelo Rubens Paiva. Excedentes esses que são constituídos por
exotopias do sujeito-autor e sujeito-personagem, trazendo à luz do
trabalho memórias que nortearam a escrita memorialística de
Rubens Paiva. Assim, o livro abre uma oportunidade de acesso a
acontecimentos que extrapolam sua vivência particular e, assim,
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 511
Túlio Sousa VIEIRA

ressaltar e preservar memórias, de modo visualizar acontecimentos


históricos e restaurá-los pela autobiografia, não permitindo o
esquecimento das violências ocorridas. Por tais razões, a escrita
memorialística de Rubens Paiva se sobressai no tempo e no espaço,
por permitir essa (re)significação da obra, que não resulta somente
das memórias individuais e coletivas do autor, mas que engloba
uma condensação de privado e público ao qual ele estava inserido.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 6. ed. – São Paulo: Editora


Martins Fontes, 2011.

BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem.


12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.

DERRIDA, Jacques. Margens da Filosofia. Tradução Joaquim Torres Costa;


Antonio Magalhaes. São Paulo: Papirus, 1991.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução Beatriz Sidou. São


Paulo: Centauro, 2006.

LEJEUNE, Philippe. O Pacto autobiográfico. De Rousseau à Internet.


Tradução Jovita Maria Gerheim Noronha et al. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2008

PAIVA, Marcelo Rubens. Feliz Ano Velho. São Paulo: Círculo do Livro, 1982.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução Alan


François et. al. Campinas, SP. Editora da Unicamp. 2007.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 512


FOTOGRAFIA E MEMÓRIA: A RECONSTRUÇÃO DO
PASSADO EM W OU MEMÓRIA DA INFÂNCIA, UMA
FOTO E DUAS IRMÃS

Viviane BITENCOURT
UFMG

Resumo: Neste trabalho, será abordado o papel da fotografia na


reconstrução do passado em W ou memória da infância, de Georges
Perec. Será relatado e relacionado ao romance um evento entre duas
irmãs sobre a leitura de uma fotografia de família, a fim de mostrar
que ela, além de ser um instrumento fragmentário de reconstituição
e exercício de memória, também possibilita a criação de novas
realidades.

Palavras-chave: Fotografia; Memória; Infância; Georges Perec.

Introdução

Perec, em W ou a memória da infância, traz em um só livro


duas narrativas distintas, mas entrelaçadas, que se alternam entre
um capítulo e outro, diferenciando-se pela tipologia. Enquanto uma
delas faz parte do mundo imaginário e fictício, na outra há um
relato autobiográfico, no qual o narrador tenta resgatar memórias
de sua infância. Para isto, ele não só recorre ao testemunho de
alguns familiares e ao que, vagamente, recorda, como também às
fotografias de família, que assumem um papel importante para
fazer ressurgir momentos já esquecidos, assim como para
esclarecer outros que eram marcados por dúvidas ou falsas crenças.
Na relação entre imagem fotográfica, passado e memória, o
trabalho também traz a narrativa de um evento ocorrido entre duas
irmãs e uma foto, na qual as possibilidades de leitura levam à
criação de novas realidades, verdades, histórias e lembranças.
Assim, pretende-se mostrar como a fotografia, ao mesmo tempo que

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP


Viviane BITENCOURT

tem valor atemporal, no sentido de não pertencer a tempo nenhum,


também não deixa de ser um espaço do seu tempo. É um paradoxo:
a imagem fotográfica apresenta-se como uma captura do tempo,
como bem definiu Denis Roche, contudo, ela liga o passado, o
presente e o futuro e, portanto, é um jogo entre construção,
destruição e reconstrução. Enquanto ela tem como uma de suas
funções manter alguns fragmentos daquilo que se foi na imagem, a
literatura faz permanecer a escrita. Diante disso, essa junção
mostra-se de grande valor não só sentimental, mas também
artístico.
Primeiramente, partir-se-á da ideia entre fotografia e criação
de realidade, tendo como base o evento de uma foto e duas irmãs e,
em seguida, analisar-se-á como Perec usa a fotografia para a
construção de um passado quase esquecido.

1. Fotografia e a criação de realidades: duas Bitencourt, uma moto


e seu pai

É comum que algumas famílias tenham um valor afetivo em


relação às suas fotografias e as guardem com esmero, como um
objeto valioso, que fica em caixinhas ou álbuns de recordação, uma
maneira de relembrar o passado e até mesmo de orgulho, a ser
mostrado às visitas que vão à casa e reafirmar o quanto os filhos
cresceram. Semelhante relação com suas fotos tinha a família
Bitencourt, de vida simples, agitada por 10 filhos, em uma pequena
cidade do interior de Minas Gerias. Em uma estação chuvosa, a casa
estava com infiltração, o que fazia com que o mofo dominasse seus
cômodos e, assim, algumas de suas fotografias começaram a se
deteriorar. Diante dessa situação, a filha mais velha, V., que já era
casada, com a intenção de preservar aqueles fragmentos de sua
infância e da história da família, resolveu juntar as fotos que
sobreviveram ao tempo, aos maus tratos e às crianças e levá-las
consigo para serem guardadas e, um dia, compartilhar esses
fragmentos entre os irmãos e os pais.
Alguns anos depois, talvez 5 ou 6, não se sabe ao certo, Ca,
dois anos mais nova que V., em uma visita de final de semana, teve
acesso à caixa que guardava os retratos e, com um celular, tirou
fotos das fotos. Posteriormente, se fazendo valer dessa redundância
que a modernidade nos permite, publicou em uma rede social, para
todos, uma das imagens que acreditava ser dela, quando é
surpreendida com um comentário de V.: ―Ca, vc sabe que essa aí sou

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 514


Fotografia e memória: a reconstrução do passado

eu, né? rsrs‖ (ver Fig. 3). Ela reage argumentando que, na parte de
trás do objeto, havia, escrito com a letra da mãe, um registro que
informava o local e que as pessoas ali retratadas eram ela e o pai.
Esse foi um argumento forte e convincente, visto que não só a
imagem a levara a crer que era ela quando criança, devido até
mesmo à semelhança entre as irmãs, mas o registro, que não era um
qualquer, porém da própria mãe, o que conferia um valor de
verdade ao material: ―Tá com a letra da minha mãe, falando que era
meu pai e eu, no Morro Vermelho1, eu custo achar uma foto que eu
tô com cara boa, e agora vc fala que é vc?? Haaaa pelo amor de
deus‖. Contudo, a irmã mais velha não se dá por vencida,
reafirmando ser ela e dizendo até o lugar, que não era Morro
Vermelho, como supostamente dizia o registro da mãe, mas perto
do Rio das Velhas, rio principal que desce a cidade de Raposos,
onde elas cresceram. Mais do que isso, V. ainda se lembra do
momento em que a foto foi tirada, do chinelo de cores diferentes
em cada pé. De um lado, preto, do outro, não se sabe ao certo se era
azul ou amarelo, mas há uma lembrança quase que certa, se é que
se pode confiar nela, de que era uma dessas cores comuns para
chinelos havaianas da época. Para convencer a irmã Ca, foi preciso
enviar para ela imagem de uma outra foto, da mesma época, em que
estavam juntas, mostrando que ela ainda engatinhava. Uma possível
prova concreta de quem está na foto com o pai seria a data que viria
no canto superior, como mostra a Fig. 1, mas esta parte está
rasgada, talvez até propositalmente, nunca se saberá.
Diante da informação sobre a anotação feita pela mãe, V.
pegou a foto original e constatou que, atrás dela, há rastros de
seguinte registro, como mostra a Fig. 2: ―Edson [nome do pai], Ca
[que, por estar cortado, supõe-se ser Carine (...) na rua [do] Barracão
[Amarelo]‖. A informação nem é tão clara, devido às partes
faltantes, o que contribui com a ideia de ser precipitado concluir
que, na foto, fosse a irmã Ca. Mais do que isto, ela talvez não saiba
que, quando ainda era criança, a mãe havia montado um álbum com
as fotos da família em um caderno, provavelmente um ―Tilibras‖, de

1
Mais um ato falso da memória, pois atrás da foto em questão não está
escrito Morro Vermelho, mas Barracão [Amarelo], bairro onde elas moraram
por um tempo. Como Ca já não tinha mais acesso à foto original, apenas a
foto da foto e sem o verso, ela foi levada pela geografia ali exposta a crer
que estivesse escrito ―Morro Vermelho‖ (ver Fig. 2).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 515
Viviane BITENCOURT

arame e 96 folhas, pelo que se é possível lembrar. Assim, cada folha


do caderno tinha 2 fotos e, ao lado ou abaixo delas, havia uma
pequena descrição do local e pessoas, mas não no verso. Como o
escrito da mãe está nesse pedaço de folha de caderno, colado na
parte de trás da foto, compreende-se que ele faz referência a outra
imagem, colocada na parte de trás da qual foi publicada como sendo
de ―Ca‖. Mesmo que os restos de dados deixados atrás da foto não
sejam completos e claros, eles foram suficientes para a criação de
uma nova realidade, uma além da imagem, e que tem um outro
protagonista.

(Fig. 1)

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 516


Fotografia e memória: a reconstrução do passado

(Fig. 2)

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 517


Viviane BITENCOURT

(Fig. 3)

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 518


Fotografia e memória: a reconstrução do passado

2. Fotografia como reconstituição do passado em W ou memória


da infância e duas Bitencourt, uma moto e seu pai

No texto autobiográfico de W ou memória de infância, há um


―relato fragmentário de uma vida de criança durante a guerra, um
relato pobre de façanhas e de lembranças, feito de fragmentos
esparsos, de ausências, de esquecimentos, de dúvidas, de
hipóteses‖, marcado pelas incertezas trazidas pelo tempo junto às
―lembranças sem fundo‖ (PEREC, 1995, p. 3), vagas, e pelo
esquecimento de tudo de seus primeiros anos de existência (PEREC,
1995, p. 20). Através de um exercício de memória, no texto de Perec,
a personagem que narra sua história apoia-se em rastros do
passado, às vezes enganada pelo que considerava ser o real vivido,
depara-se com ―fotos amarelecidas, testemunhos raros e
documentos insignificantes‖ (PEREC, 1995, p. 20-21). Assim, ao
longo do texto, ele é surpreendido por fatos, ou talvez provas, de
que nem tudo do que se lembrava acontecera exatamente como
acreditava, evidenciando a fragilidade da memória e suas lacunas
em relação a um passado sobre o qual ele ―às vezes [tem] vontade
de saber, mas muitas coisas agora [o] afastam para sempre dessas
lembranças‖ (PEREC, 1995, p. 42), o que o faz perceber que:

Doravante as lembranças existem, fugazes ou tenazes,


fúteis ou opressivas, mas nada as reúne. [...] O que
caracteriza essa época [da infância] é antes de tudo sua
ausência de referenciais: as lembranças são bocados de
vida arrancados ao vazio. Nada as ancora, nada as fixa.
Quase nada as confirma. Nenhuma cronologia a não ser
a que arbitrariamente reconstituí com o passar do
tempo. (PEREC, 1995, p. 85-86)

Neste contexto de reconstituição, a fotografia assume um


papel importante na narrativa, visto que ela, algumas vezes, ou
reacende o que fora esquecido, levando a personagem a pensar em
acontecimentos dos quais não mais se lembrava, ou se contrapõe a
algum evento contado pelo narrador, apresentando-se como uma
prova mais do que documental daquilo que a lembrança não dá
mais conta ou inventando de forma involuntária, já que a memória
é, muitas vezes, um instrumento que prega peças ao homem. Em
alguns momentos, o narrador explicita sua incerteza sobre
determinados acontecimentos do passado, e declara que:

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 519


Viviane BITENCOURT

A primeira lembrança teria por cenário o fundo da


loja de minha avó. Tenho três anos. Estou sentado
no centro da peça, no meio de jornais ídiches
espalhados. O círculo da família me rodeia
completamente: [...] toda a família, a totalidade,
[...] reunida em torno da criança que acaba de
nascer (mas eu não disse há pouco que tinha três
anos?). (PEREC, 1995, p. 21)

Parece que Perec joga com esse nascer: é o nascimento do


corpo ou do sujeito que sabe de si pela memória? Nascer enquanto
existir ou enquanto história e memória de si? Essa primeira
recordação é, provavelmente, o seu nascimento, é o momento e
lugar no qual tudo começa, não por ter acabado de vir ao mundo,
mas como primeira percepção de si, central e ainda rodeado por sua
família. Esta forma uma totalidade que ele, possivelmente, nunca
mais reconstruirá, mesmo que seja uma lembrança com pouco do
que realmente acontecera.
As incertezas do que é narrado, ora relacionadas a algumas
fotos de família, ora ao testemunho da tia ou da prima, ou ao que o
narrador do relato autobiográfico em questão lembra, assim como a
contextualização da História2, vão se conectando na construção do
texto e reconstrução do passado. Isso mantém uma relação muito
direta entre obra e vida, literatura e real, principalmente quando o
que está em jogo é uma narrativa apresentada como autobiográfica,
como no caso das que aqui são analisadas.Apesar disso,

O esforço de incluir a realidade na escrita não deve


ser confundido com documentarismo; pelo
contrário, não se trata de levar a realidade à
literatura, senão de levar a poesia à vida, reencantá-
la, comprometer a escrita com o desafio de índice e
fazer dela um meio de intervenção sobre aquilo que
encena ficcionalmente. Entre o índice que traz para
dentro da escrita a marca da realidade como
evidência e testemunho e a performance que
converte a recepção em intervenção poética sobre o
mundo, a procura da literatura é dos efeitos e afetos

Perec diferencia a história particular da História universal, atribuindo à


2

última inicial maiúscula.


Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 520
Fotografia e memória: a reconstrução do passado

que marcam as interseções dos nossos corpos na


realidade da qual todos somos parte.
(SCHOLLHAMMER, 2013, p. 178)

Por fazer referência a fotografias, percebe-se mais facilmente como


essa escrita parte daquilo que permanece nas imagens da memória
ou dos objetos, sem, necessariamente, ter um compromisso com a
―verdade‖3 do que foi, o que também pode ser evidenciado no caso
das irmãs Bitencourt, que confunde(m) lugar e personagem
fotográfica (qual delas será?).
A realidade apresentada na fotografia, disposta aos olhos,
vai muito além de uma simples iconografia, ela dispõe de várias
possibilidades de leitura e preenchimento, portanto, realidades. Em
Perec, sua narrativa dependerá das interpretações e leituras que fará
do que lhe resta do passado, apenas rastros, a permanecer em seus
textos. No caso da foto das irmãs, suas histórias também se
conectarão àquele momento de incerteza sobre aquele episódio e
seu registro. Ao mostrarem aos seus filhos e netos, dirão que a
menina na moto é a própria pessoa que fala, a irmã ou que não
sabem ao certo?
Pensar a memória e reconstituição por meio da fotografia
(KOSSOY, 1998)é mostrar que se deve ―pensar as diferentes e
simultâneas realidades que a fotografia comporta. Ao passar de
uma realidade a outra, restam algumas lacunas‖ (KOSSOY, 1998, p.
41). Quando se trata de fotos pessoais, estes espaços são
preenchidos, algumas vezes, pelo que é recordado, pela imaginação
ou ainda pelos rastros que carregam, como, por exemplo, uma
anotação em seu verso, como é mostrado pela conversa das irmãs
sobre a imagem compartilhada nas redes sociais ou no relato
autobiográfico de Perec. Assim, o registro fotográfico apresenta-se
como ―rica fonte de informações para a reconstrução do passado,
tanto quanto uma matéria para construção de ficções‖ (KOSSOY,
1998, p. 41), pois ―é memória e com ela se confunde‖ (KOSSOY,
1998, p. 42). Diante disso, deve-se reafirmar que, mesmo com o fato
de uma narrativa que aposta recuperar o vivido usando também
fotografias, e que ainda tenta se manter mais próxima do real, a

3
É necessário pensar que verdade não necessariamente é real ou única, um
mesmo fato pode ter várias verdades e nem uma ser menos real do que a
outra.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 521
Viviane BITENCOURT

ficção pode ganhar espaço, pois a memória, embora marcada e


auxiliada pelo conteúdo das imagens estampadas nas fotos, não é
passível de confiança. Ainda assim, mais do que um vestígio, ela é o
que confere durabilidade ao efêmero, faz presente aquilo que se foi
e que estava esquecido ou distante. Ao ler uma foto, une-se ali o
capturado com o tempo da ação ao que permanece e ainda durará, o
que pode atribuir certo valor afetivo - um objeto de reconstrução
que envolve o passado, o presente e se direciona para o futuro.
Assim:

[...] diante da imagem - [...] o presente nunca cessa


de se reconfigurar, [...] o passado nunca cessa de
se reconfigurar, visto que essa imagem só se
tornará pensável numa construção da memória,
se não for da obsessão. [...] Ela provavelmente nos
sobreviverá - [...] é o elemento do futuro, o
elemento da duração. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p.
16.)

A imagem fotográfica, para Kossoy, como é apresentado em


seu site, é ―um fragmento do mundo que, ao representar o espaço,
nos remete ao tempo, um mundo em si, codificado e mágico,
universo de certezas relativas e ambiguidades fundamentais‖4.
Diante disso, sobre suas primeiras lembranças de infância, o
narrador de W ou memória da infância fala de fotografias que,
algumas vezes, contrariam sua lembrança, criando uma realidade
ambígua, na qual as cores se confundem. Há uma fusão da
lembrança com a imagem lida. Sobre o episódio da foto das irmãs,
uma delas se lembra do momento em que aquele registro ao lado do
pai foi feito e que usava chinelos de cores diferentes, mas não tem
certeza de qual. Em W ou Memória da infância, o narrador, ao falar
de um fragmento recordado, sabe que estivera no fundo da loja da
avó, mas o embaraço mnemônico o confunde e ele não tem mais
como certa a idade em que vivera tal episódio. Ele ainda se lembra
de estar em um carrinho, mas já confunde sua cor. As lembranças,
assim, vão sendo expostas, evidenciando algumas de suas lacunas.
Algumas vezes, as fotos reafirmam vagas recordações ou, em
outras, colocam em dúvida aquela quase certeza sobre o passado.
Ao narrar sobre algumas fotos de sua infância, às vezes até com

4
Apresentação do site de Kossoy
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 522
Fotografia e memória: a reconstrução do passado

letra de sua mãe, o narrador da autobiografia em questão mostra


que a foto não é uma lembrança - uma rememoração - apenas pela
imagem que ela retrata, mas também pelos rastros que nela foram
deixados - informações - como uma data, uma letra (caligrafia de
alguém, que traz uma marca identitária de quem escreveu, o que
pode atribuir um caráter afetivo) ou até mesmo o amarelado do
tempo. Esses registros acabam atribuindo um valor de verdade ao
que ali é visto, como ocorreu no caso da foto publicada em redes
sociais de duas Bitencourt, uma moto e seu pai. Para Barthes, o que
mais diferencia a fotografia com outras artes que simulam a
realidade é o fato de que nela ―jamais posso negar que a coisa
esteve lá. Há dupla posição conjunta: de realidade e de passado‖
(BARTHES, 2015, p. 67), o que ele chamou de ―Isso-foi‖ (BARTHES,
2015, p. 68). Ainda que a imagem represente uma realidade
encenada, ela existiu. Assim, mesmo que as memórias expostas no
texto de Perec sejam imprecisas, ―fugazes ou tenazes, fúteis ou
opressivas‖ (PEREC, 1995, P. 85) e a ida à rua onde morava não o faz
ter certeza do número da casa, as fotografias sobre as quais ele
escreve são um registro de que aquilo que ali é apresentado existiu.
Ao trazer para sua narrativa um questionamento ao valor de
verdade ao qual é atribuído o texto autobiográfico, Perec não só leva
seu leitor a refletir sobre a relação entre literatura e real, vida e
obra, como também entre fotografia e memória, o que também pôde
ser analisado na discussão das irmãs sobre a foto.

Conclusão

Sobre o episódio da foto de duas Bitencourt, uma moto e seu


pai, uma das irmãs se lembra do momento em que sua imagem com
o pai foi registrada, mas é incerta sobre as cores. Em W ou memória
da infância, o narrador, ao falar de um fragmento recordado, sabe
que estivera no fundo da loja da avó, mas o embaraço mnemônico o
confunde e ele não tem mais como certa a idade que tinha ao viver
aquilo ou confunde a cor de um carrinho. Dessa forma, as
lembranças do passado vão sendo expostas, evidenciando algumas
de suas lacunas. Em alguns casos, a fotografia reacende a memória e
é, de certa forma, um rastro do passado. Contudo, ela é ―apenas‖
um fragmento temporal e, por não trazer uma totalidade, sua leitura
pode levar a diversas interpretações e perspectivas. É uma espécie
de construção que depende não só do material analisado, como
também de quem a vê, de suas experiências, seu conhecimento de

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 523


Viviane BITENCOURT

mundo e suas emoções. Se o retrato for pessoal, dependerá ainda


dos vestígios deixados pela memória ou os reacenderá. Isso é o que
também constrói sentido à fotografia, que é um objeto da
lembrança não só universal, quando coletiva no sentido histórico e
documental, como particular, que estabelece uma relação entre
sujeito e objeto.
Quando se trata de fotos de família, há um retorno não
apenas a um momento que existiu, mas, além disso, às pessoas que
ali estão, ao contexto que a imagem foi capturada, entre outros
fatores relacionados ao que é do campo do sensorial. A análise da
fotografia é mais do que uma leitura iconográfica, ela permite
interpretações inúmeras e desconhece qualquer fator ontológico,
pois não é possível chegar à sua essência. Ler uma foto é um
processo de criação de realidades e há várias formas de entendê-la,
o que ainda se mistura com as sensações e a imaginação de cada
indivíduo que tenta preencher as lacunas, sejam da imagem ou da
escrita.
Por mais que haja uma lembrança, mesmo que não muito
clara, do momento da foto, se há alguma dúvida ou ambiguidade,
provavelmente, ela sempre permanecerá, pois memória e fotografia
também atuam como rastros incertos do passado. Suas
interpretações podem ir além do plano real e cair na ficção que
remodela a experiência do leitor com os rastros deixados, a fim de
reconstruir o passado. Enquanto Michel Butor afirmou que a escrita
faz permanecer a palavra, podemos destacar como a fotografia faz
durar a imagem.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 524


Fotografia e memória: a reconstrução do passado

Referências

BARTHES, B. A Câmara clara. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2015.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I – magia e técnica, arte e política. 8a


ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.

BUTOR, Michel. O livro como objeto. Repertório. Trad. e org. Leyla Perrone-
Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1974.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo. Belo Horizonte: Editora UFMG,


2015.

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Ed. 34,


2006

KOSSOY, Boris. Fotografia e memória: reconstituição por meio da fotografia.


In: SAMAIN, Etienne. O fotográfico. São Paulo: Editora Hucitec, 1998. p. 41-
47.

PEREC, Georges. W ou a memória da infância. Trad. Paulo Neves. São Paulo:


Companhia das Letras, 1995.

ROCHE, Denis. La disparition des lucioles (réflexions sur l'acte


photographique). s/l: Éd. de l'étoile, 1982.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 525


MAURICE BLANCHOT, MARIA GABRIELA LLANSOL
E AS METAMORFOSES DO VIVO

Zenaide Tamires Costa SANTANA


Telma Borges da SILVA
Unimontes

Resumo: Pretendemos aqui, um encontro como via de aproximação


entre o pensamento de Maurice Blanchot e a escrita de Maria
Gabriela Llansol. Escrita essa gestada nas metamorfoses do vivo.
Assim, tentaremos vislumbrar a fecundidade do pensamento
blanchotiano junto d‘A restante vida (2014) da escritora portuguesa.
A partir desse encontro, veremos como a crítica realizada por
Blanchot entreabre um caminho para a escrita pulsante de Llansol.
Com o ‗morrer‘, se inicia as metamorfoses do texto para que se
chegue ao ser da escrita, aquele infinitamente morto, dirá Blanchot.
Dessa maneira, encontraremos no escrever e no ler, o trespasse do
gesto da morte.

Palavras-chave: Maurice Blanchot; Maria Gabriela Llansol; Escrita;


Fragmento.

―[...] todos nos encontrámos, por iguais, em A restante vida.‖


Maria Gabriela Llansol

1. Começo com a palavra desejo,

Desejo de abrir o texto. Abrir ao que se abre no encontro.


Este ensaio nasce do encontro-leitura entre O espaço literário (2011)
de Maurice Blanchot e A restante vida (2014), o segundo livro da
trilogia Geografia de Rebeldes, de Maria Gabriela Llansol.
Traçaremos aqui três movimentos que nos pareceu
vinculados à escrita llansoliana através da perspectiva crítica de
Blanchot. Tais movimentos possuem em comum a relação com a
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
Maurice Blanchot, Maria Gabriela Llansol e as metamorfoses do vivo

morte, com o movimento do morrer – movimento anunciador das


metamorfoses que hão de vir com o texto. O primeiro movimento, Je
est un autre – partindo da relação essencial entre escrita e morte –
ou mais, precisamente, entre o escrever e o morrer: ―aquele que diz
é sempre o outro‖ 1, destrói o poder de dizer ―eu‖, visto que tal
relação pressupõe uma abertura a tudo que é vivo. O segundo
movimento – a dobra do texto – reluz a matéria opaca da escrita
llansoliana. O projeto de escrita de Maria Gabriela Llansol culmina
na busca pela palavra sem impostura. Isto é, a palavra que traça um
caminho diferente dos caminhos dos príncipes e dos homens de
poder. Assim, a textualidade llansoliana visa encontrar no próprio
texto o seu caminho. Tecido vertiginoso. Esburacado. Fragmentada e
dispersa, essa escrita tece dentro do texto a possibilidade da língua.
Em outras palavras: nos próprios desvãos criados pelo texto
emergirá a possibilidade luminescente da escrita ou, no dizer de
Llansol, o fulgor do texto – o fulgor como aquilo que resta – a
restante vida do texto. Aqui veremos, ainda, como dentro desse
território escorregadio a nomenclaturas – a textualidade llansoliana
– faz da própria trama lugar fulcral das metamorfoses, onde as
figuras trespassadas por diversas mutações movimentam-se para
reunirem-se em torno de uma comunidade de escrita. O terceiro
movimento, por sua vez, retorna ao nascimento do texto, ao ponto
indefinido e múltiplo do encontro – onde aquele que diz, sempre
outro, recebe o outro porvir – leitor/legente que se abre à
fulgurância do encontro – assim, o texto nasce para o aberto – à
comunhão do desconhecido: ―Trabalhar a dura matéria, move a
língua; viver quase a sós atrai, pouco a pouco, os absolutamente
sós‖2.

2. Je est un autre

N‘O espaço literário, Blanchot afirma: escrever é passar do eu


ao ele. Exigência afirmada por Rimbaud nas ‗Cartas ao Vidente‘: Je
est un autre. Aqui, nessa passagem àquilo que se desconhece, o
escritor abre-se ao aberto – isto é, àquilo que poderemos nomear de
vivo, numa partilha des-hierarquizada, conforme sugere Silvina

1
BLANCHOT, 2010, p. 166.
2
LLANSOL, 2011, p. 50.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 527
Zenaide Tamires Costa SANTANA &Telma Borges da SILVA

Rodrigues Lopes a respeito da escrita de Llansol3. Nascido dessa


ruptura, isto é, nessa passagem do ‗eu‘ ao ‗ele‘, o escritor pretende
instaurar a diferença e tão logo – o novo – daquilo que vive, pois:

Escrever é quebrar o vínculo que une a palavra ao eu,


quebrar a relação que, fazendo-me falar para ―ti‖, dá-me
a palavra no entendimento que essa palavra recebe de ti,
porquanto ela te interpela, é a interpelação que começa
em mim porque termina em ti. Escrever é romper esse
elo. É, além disso, retirar a palavra do curso do mundo,
desinvesti-la do que faz dela um poder pelo qual, se
falo, é o mundo que se fala [...] 4

Assim, quando ouvimos: Je est un autre, não é ‗eu sou‘, sim:


‗eu é‘ – a curvatura da letra abre a sintaxe para a criação do
inaudito: Je est un autre. Movimento que nos leva ao desfazimento
de uma identidade e, assim, do sujeito tal como foi concebido pelo
pensamento cartesiano. Para Blanchot, a escrita literária só se
tornaria possível nessa abertura que já é uma ruptura com aquilo
que se poderia nomear ‗eu‘. É nesse viés que a obra desdobra um
outro, quando este escreve, visto que tal gesto lida com forças até
então inimagináveis que só concernem à arte, e, por conseguinte, à
sua exigência. Essa exigência sugere-nos o mesmo movimento
presente no gesto do morrer: uma vez que ―eu‖ não morre. No
momento da morte, este ―eu‖ já será ―outro‖: é sempre ―ele‖ que
morre. O ―eu‖ não vê a sua morte – esta está como que bloqueada,
quem morre é sempre o outro de mim, como se ―eu‖ fosse a última
chance e ainda, ainda assim, não sou – no momento da morte: eu é
um outro (a minha morte é inacessível à mim).
Nesse sentido, parece-nos que se relacionar com a obra seria
já relacionar-se com a morte, uma vez que esta relação desfaz as
categorias de sujeito e objeto, possibilitando uma abertura ao outro
do mundo. Importante lembrarmos que mais que o evento da morte,
o texto engendra-se no movimento do morrer. A restante vida de
Llansol é o texto dobrado sobre si mesmo. É o próprio movimento
do morrer retornando sempre a ele mesmo. O morrer trespassa a
obra desde seu primeiro instante, quando a escritora se põe a
escrever até o momento em que desemboca num projeto contra a

3
LOPES, 2014, p. 65-66.
4
BLANCHOT, 2011, p. 17.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 528
Maurice Blanchot, Maria Gabriela Llansol e as metamorfoses do vivo

impostura da língua e os regimes de poder impostos por esta.


Morrer é desfazer-se dos restos, isto é, desfazer dos excessos da
língua. Desfazer aquilo que não cabe mais levar; e, por fim, morrer
torna-se a figura do pobre. Morrer e escrever, estes dois
movimentos, ali, tornados um só, encontram uma figura diante da
diversidade das metamorfoses – o pobre – que, tal qual a palavra
literária, é aquele que não se atém ―ao ter‖, é o ser da passagem,
este que só se dá no seu momento único da paisagem. Isto é, com o
fulgor do texto. Ser aquele que passa, diz o texto. Ensina-nos o
texto.
Assim, Blanchot sugere que para escrever um único verso
não é necessário apenas esgotar a vida em busca da arte, como
também, esgotar a arte5. Dessa forma, o movimento extenuante que
esse acontecimento da escrita exige, faz lembrar-nos de uma fala de
Peter Pál Pelbart, presente em O avesso do Niilismo: cartografias do
esgotamento:

O esgotado é aquele que teve a força de ‗produzir o


vazio ou fazer buracos, afrouxar o torniquete das
palavras, secar a ressudação das vozes, para se
desprender da memória e da razão‘. Apenas então pode
surgir a ‗pequena imagem alógica, quase afásica, ora se
sustentando no vazio, ora estremecendo no aberto‘.
Portanto, quando já nada resta, advém a ‗imagem pura,
intensidade que afasta as palavras, dissolve as histórias
e lembranças, armazena uma fantástica energia
potencial que ela detona ao dissipar-se‘.6

Desse modo, a definição de esgotado se assemelha aos


movimentos que Llansol realiza no texto: ao produzir vazio, ao
fazer buracos, afrouxando o torniquete das palavras, desprendendo-
se da memória e da razão, sobrepondo vozes, encontramos em
Llansol o desfazimento do eu, uma vez que esta palavra ao chegar
no texto, já está trespassada por diversos ‗eus‘ ou múltiplos ‗eus
fragmentados‘:
Hadewijch escrevera: perdi a memória; tu és minha
memória e iluminas-me; assim saio de mim mesma para
caminhar na velada obscuridade em que há grandes
árvores e grandes vultos de cada lado:
Um único cão da matilha não se tornou lobo; era um cão

5
BLANCHOT, 2011, p. 91.
6
PELBART, 2013, p. 40.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 529
Zenaide Tamires Costa SANTANA &Telma Borges da SILVA
que escutava música e vivia no seu pêlo castanho
sempre perto da alegria e da morte por ser a melodia do
seu dono inventado; o cão chamava-se Hadewijch e
deitava-se num quarto da casa sobre almofadas,
na sala de jantar,
lugar privilegiado da casa,
onde nunca se comia
e, principalmente,
à cabeceira da mesa;
não quisera ainda morrer;
fora colocar uma garrafa de vinho no armário para os
visitantes que viriam num dos próximos dias
quando sentiu vontade de sentar-se numa das pontas da
mesa, a olhar a profundidade da sala seguinte. Não era
lugar nem muito cheio nem vazio, percebeu
imediatamente que, consigo, outros seres vindos não se
sabe donde se tinham sentado, esperavam; o seu gato e
imagem não entrara, deixara-se ficar na cozinha, na
poltrona em que dormia; um dos seres emitia música,
outro, à distância cerrara-lhe os olhos; Tomás Müntzer,
presente e morto, convidava-a a entrar e a ver sua
morte. 7
A fala de Hadewijch repercute em nós como a fala daquele
que escreve para aquele que lê: perdi a memória; tu és minha
memória e iluminas-me. Llansol poderia assim, sobrepor-se a esta
figura que perdeu a memória, escrevendo mediante as cenas fulgor.
Assim, o texto surgiria como a repetição do próprio gesto da escrita
onde tais figuras são traços do escrever, do ir em direção ao sem
lugar de uma escrita, tornando-se o movimento infinito dos
encontros, abrindo-se sempre ao devir. O escritor este que, sem
memória, como a figura do esgotado mencionada por Pelbart, vê no
outro a possibilidade da memória, isto é, o nascimento do sentido.
Hadewijch, após as diversas metamorfoses que o texto a leva sofrer,
torna-se a figura do pobre – assim, na escrita de Llansol, não há
metáforas e o próprio acontecimento no texto é um acontecimento
real, excede em realidade. A figura do pobre, tornar-se o pobre
aparece-nos como o desejo íntimo do texto. Desejo que parece
encontrar no morrer o seu movimento próprio. Levando-nos, nesse
sentido, ao desmanchamento, como já dito, das categorias de
sujeito e de objeto, pois o desejo do texto é de alcançar a altivez
própria da palavra literária: aquela que nada pode, mas tudo deseja,

7
LLANSOL, 2014, p. 36.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 530
Maurice Blanchot, Maria Gabriela Llansol e as metamorfoses do vivo

sugere-nos Blanchot.8

3. Escrita-fragmento

A partir desse gesto, Je est un autre, vemos como a escrita


llansoliana torna-se uma textualidade – diferentemente de uma
narrativa – visto que não se pretende narrar, tampouco criar uma
linearidade; o projeto llansoliano volta-se para uma escrita-fulgor
num puro enaltecimento do vivo; escrita como extensão do sopro,
começo do gesto de desprendimento do mundo e de suas leis,
linguagem que busca alcançar sua própria chama. Pois Llansol
busca, sobretudo, alcançar uma linguagem sem impostura,
linguagem que se torna, em seu extremo, poética. Visto que não
deseja conquistar, asfixiar o mundo, antes libertá-lo da pressão dos
nomes, tornando possível o próprio movimento dos seres vivos –
sem o desejo de categorizá-los, torná-los subservientes ao modo
humano. Ao contrário – através da sua escrita Llansol opera a
abertura a tudo que é vivo e lembra-nos em Finita: ―é preciso
escrever a todos os seres‖ 9. Logo, vemos que essa linguagem
pretende se desvincular das tramas de poder realizadas pela
História. Também nesse aspecto, o projeto de Llansol se aproxima
da perspectiva blanchotiana sobre a fala poética, uma vez que,

[...] não é mais essa linguagem que constitui afirmação


apreensível e surpreendente cobiça e conquista, o sopro
que aspira ao respirar, que está sempre em busca de
algo, que dura e quer a duração. No canto, falar é passar
além, consentir nessa passagem que é puro declínio.10

Há o desejo de alcançar a liberdade do sopro, aquele gesto


que sai do ser para o mais longínquo. Nesse sentido, ―a
metamorfose aparece então como a feliz consumação do ser [...] que
é a pura felicidade de cair, a alegria da queda, fala jubilosa que, uma
única vez, dá ao desaparecimento, antes de desaparecer nela [...]‖ 11.
Nesse mesmo caminho Llansol afirma em Finita: ―Em nenhum sítio

8
BLANCHOT, 2011, p. 37.
9
LLANSOL, 2011, p. 56.
10
BLANCHOT, 2011, p. 156.
11
BLANCHOT, 2011, p. 156.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 531
Zenaide Tamires Costa SANTANA &Telma Borges da SILVA

há uma geografia necessária se não for jubilosa.‖ 12. Assim,


poderíamos pensar que construir o texto, criar uma geografia
necessária, seria como realizar essa metamorfose do ser, quando
este deixa de se afirmar pelo seu aspecto unitário e contínuo e abre-
se ao fluxo exterior. Em ‗Finita‘ novamente: ―Não sou o centro da
acção nesta casa, nem deste fazer. Meu corpo no seu espírito é
também uma obra, deixo-me pôr em movimento pelo sol e pela
música distante. Porque razão isto deve ser feito, e aquilo, e aquilo?‖
13
. A geografia necessária torna-se jubilosa, pois se encontra em
harmonia com a sua verdade mais íntima. A escritora, ao
desvincular-se do real tal como ele é projetado pelo próprio mundo,
cria a diferença através do seu gesto: ―Quando se nasce, não há
ainda viajante... luzes dispersas esperam as únicas pausas
permitidas... o reino vivo baixado ao fogo crematório dos ventres
aspira à nova forma‖ 14. Fala que nos direciona para o aprendizado
da escrita, esse gesto que possui dentro de si a diferença é também
o gesto que inscreve a metamorfose contínua no próprio texto.
Assim, Llansol demarca a sua escrita já no prefácio de seu
livro fonte, O livro das comunidades: ―Escrever vislumbra, não presta
para consignar. Escrever como neste livro, leva fatalmente o poder à
perda de memória. E sabe-se lá o que é um corpo Cem Memórias de
Paisagem.‖ 15 O que nos faz recordar da fala de Tatiana Salem Levy,
em um ensaio a respeito da impostura da língua e a escrita de
Llansol, traz o pensamento de Roland Barthes acerca da relação da
língua com o poder. Uma vez que essa língua da qual dispomos para
designar os seres, essa língua que vincula as palavras de ordem,
língua em que se cruzam os discursos que exercem funções no
mundo, é a língua do poder, isto é, da linguagem que traz consigo
as ideologias, que se fecha às abordagens do sentido. Com isso,
ressalta Levy:
Llansol partilha com Barthes a idéia de que o poder está
espalhado por toda a parte, e sua literatura tenta fazer
despontar ―a exigência da liberdade de consciência de
cada ser vivo em face de Deus, do Estado e de sua rede
de múltiplos poderes, na tentativa indefinida – sem fim,
e sem limites – de alcançar para cada habitante da terra

12
LLANSOL, 2011, p. 130.
13
LLANSOL, 2011, p. 130.
14
LLANSOL, 2011, p. 112.
15
LLANSOL, 2014, p. 10.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 532
Maurice Blanchot, Maria Gabriela Llansol e as metamorfoses do vivo
o direito inalienável à autonomia do seu sopro de vida, e
à realização de sua natureza‖. Parece-nos ser esta a
grande cena fulgor de seus textos, a tentativa de deslize,
a busca de uma brecha na linguagem, onde o homem se
possa constituir como intensidade, ou seja, distante dos
mecanismos de poder e próximo ao seu sopro de vida.16

Nesse aspecto, vemos que o deslize se daria como um


movimento de desvio, surgindo como um dos movimentos
propulsores da metamorfose, visto que é preciso se desviar, isto é,
sair da clausura de um ‗eu‘ unificado, para assim se relacionar com
o de fora do sentido. Desse modo, o desvio também deve se realizar
dentro da palavra, em seu sentido, indo em direção ao indefinido do
nome, criando na sintaxe espaços de ventilação, para a circulação do
ar, como ―clareiras de respiração na língua‖. Assim como ressaltou
Silvina Rodrigues Lopes a respeito da metamorfose n‘O livro das
comunidades17 – n‘A restante vida, livro que se segue à escrita desse
livro fonte– se vê que essa metamorfose prossegue o seu curso ora
descontínuo, ora com um vigor resplandecente nas figuras que
compõem o texto: ―são os vazios da figura que lhe conferem um
dinamismo infinito, isto é, uma força de metamorfose‖18. Aqui Lopes
menciona um dos elementos de grande relevância da escrita de
Llansol: as figuras. A existência de tais figuras confere ao texto a
sobreposição de mutações, desde sua metamorfose primeira,
quando aquele que escreve já é um outro ao acontecimento do
texto, abrindo lugares até então inacessíveis e desconhecidos. Bem
como O livro das comunidades, A restante vida ―[...] é tanto um
dispositivo de sobreposição de camadas da memória quanto de
sobreposição e justaposição de processos‖ 19. Assim, vemos como o
movimento do ―eu‖ ao ―outro‖ é propulsor de rupturas, fazendo
nascer uma escrita fragmentada, nunca totalizante, sempre em
busca do diverso – a interrupção como fala engendra sempre uma
abertura ao por vir dos encontros.

16
LEVY, 2011.
17
―O livro das comunidades corresponde essencialmente à passagem de um
dinamismo das ações mundanas – que têm como objetivo a transformação
do exterior – para um dinamismo das ações meditativas – que constituem
uma experiência interior.‖ (LOPES, 2014, p. 63-64).
18
LOPES, 2014, p. 68.
19
LOPES, 2014, p. 66.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 533
Zenaide Tamires Costa SANTANA &Telma Borges da SILVA

4. Encontro-leitura

―O corpo que escreve, ou o corpo que lê, não é apenas um


corpo (‗ninguém sabe o que pode um corpo‘, ninguém sabe o que é
um corpo)‖ 20. Através dessas palavras entrelaçadas ao pensamento
de Spinoza, com Silvina Rodrigues Lopes, vislumbramos o lampejo
do gesto de ler. Aqui este não saber o que pode um corpo é a
abertura para a experiência irrepetível, a legência do texto. A leitura
que escreve o texto, diante da abertura que este proporciona ao
legente. Nesse movimento, ler assemelha-se à escrita, uma vez que
este encontro entre o texto e o legente exige a perda das balizas
antes asseguradas pelo mundo, ou melhor, pela linguagem do
mundo. Movimento análogo ocorre com as figuras que trespassam a
textualidade de Llansol. Sempre em busca de um fazer-se que se
torna um ―desfazer-se‖, tais figuras metamorfoseiam-se, por vezes,
no próprio desejo do texto, tornando-se a expressão do sem-lugar
de uma escrita:

Meu corpo e meu espírito sofriam tantas mutações


que me sentia suspensa à beira de um abismo,
simultaneamente rotação, elevação e queda; dotada de
duas línguas entre muitas outras que se me
apresentavam menos persistentes e visíveis, passei a
quase só habitar o rés-do-chão, esquecida da guerra e da
cabeça decapitada de Müntzer. Entre fios, cores, paixão e
temperança, ovos de Páscoa que decorara com Nietzsche
ao lado, a permanente deslocação de objectos e móveis,
lia novos livros e praticava novas escritas sobre a tábua
de passar a ferro. Pouco a pouco me liquefazia, me
tornava corrente, frase, planta, pequena planta e pedra,
e me olhava minúscula no meio de todos com a grande
abóbada e a grande arquitectura sobre a minha cabeça.
Várias imagens de mim
Ana de Peñalosa,
tornavam,
iam pelo mundo,
e me encontravam no mesmo lugar à espera de meus
filhos.21

Assim, desde O livro das comunidades, partindo dessa


mobilidade exigida pela escrita, ler é entrelaçar-se ao aberto do

20
LOPES, 2014, p. 70.
21
LANSOL, 2014, p. 58.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 534
Maurice Blanchot, Maria Gabriela Llansol e as metamorfoses do vivo

texto, e como afirma Lopes,


Trata-se de um encontro entre forças não objetiváveis –
a memória, o imemorial, o desejo -, devir que desfaz as
identidades do autor, do texto e do leitor, captando-os
para a sua verdade mais própria, ‗car je est un autre‘. 22

Desse modo, a morte engendrada no movimento do morrer,


bem como, o ler e o escrever relacionam-se em sua intimidade.
Proporcionando o desfazimento de mundos até então constituídos e
delimitados. Ler e escrever traz consigo a relação direta com o de
fora do sentido, com o desconhecido, que sendo absolutamente
desconhecido, assemelha-se à morte – intocável invisibilidade.
Assim como, uma relação direta com o vivo, aquilo que aparece na
intimidade pulsante do escritor. Ainda n‘O livro das comunidades,
lemos o desejo de Ana Peñalosa dobrando-se sobre uma escrita-
leitura:

Não gosto de ler. Gosto


De ouvir música como se eu
mesma a escrevesse.
De hoje em diante, já não con-
sigo separar a leitura da escrita
(se pudesse olhar o texto a
produzir-se, voltaria de novo
a ler).23

Escrita que se escreve no instante da leitura. Ler em Llansol é


escrever? Mas como isso se tornaria possível? A escrita como a
possibilidade de criar outros sentidos dentro da língua. Com isso,
ler é abrir-se às fulgurações dos sentidos, ler é abrir-se ao que se
abre no encontro. O texto, como fruto de metamorfoses, é semente
para quem o lê. O que nos leva ao encontro tal como ele se dá no
momento em que a Obra desponta. Bem o diz Blanchot:

O encontro: aquilo que vem sem vinda, aquilo que


aborda de frente, mas nem sempre de surpresa, aquilo
que exige a espera e que espera espera mas não alcança.
Mesmo no âmago mais íntimo da interioridade, é sempre
a irrupção do exterior, a exterioridade sacudindo tudo.
O encontro penetra o mundo, penetra o eu e, nessa
penetração, tudo aquilo que chega não chegando
(chegando com o estatuto da não chegada) o avesso

22
LOPES, 2014, p. 61
23
LLANSOL, 2014, p. 14
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 535
Zenaide Tamires Costa SANTANA &Telma Borges da SILVA
impossível de viver daquilo que ao direito não se pode
escrever, dupla impossibilidade que, por um ato
suplementar – uma fraude, uma forma de mentira, uma
loucura também – é preciso transformar para adaptá-lo
à ―realidade‖ viva e que escreve.24
A leitura como fruto do encontro entre texto e leitor penetra
o eu e nesse movimento engendra o outro – rachadura – começo
incessante – ali onde nunca se sabe quando começa a vida – o ponto
indeterminado da chama entre o seu apagamento e o seu
crescimento. A escrita que nasce na leitura: começo com a palavra
desejo, ―Olhei para trás e vi que era seguida. O caminho do meu
desejo é inexorável; devo trilhá-lo; exigem-no aqueles com que me
encontro‖.25

Referências

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Alvaro Cabral. Rio de Janeiro:


Rocco, 2011.

BLANCHOT, Maurice. Conversa Infinita 3: a ausência de livro. Trad. João


Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2010.

LLANSOL, Maria Gabriela. A restante vida:Geografia de Rebeldes II. 1 ed. Rio


de Janeiro: 7letras, 2014.

LLANSOL, Maria Gabriela. Finita: Diário II. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2011.

LLANSOL, Maria Gabriela. O livro das comunidades: Geografia de Rebeldes I.


1 ed. Rio de Janeiro: 7letras, 2014.

LOPES, Silvina Rodrigues. ―Poética do desprendimento‖. In: FENATI, Maria


Carolina (Org.). Partilha do Incomum: leituras de Maria Gabriela Llansol. .
Florianópolis: Editora UFSC, 2014.

PELBART, Peter Pál. O avesso do Niilismo – Cartografias do Esgotamento. São

24
BLANCHOT, 2010, p. 189-190
25
LLANSOL, 2014, p. 87.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 536
Maurice Blanchot, Maria Gabriela Llansol e as metamorfoses do vivo
Paulo: N-1 edições, 2013.

SALEM, Tatiana Levy. ―Maria Gabriela Llansol: a rapariga que temia a


impostura da língua‖. Disponível em:
http://www.geocities.ws/ail_br/mariagrabrielallansolarapariga.html. Acesso
em: 13 de Out., 2016.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 537

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