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eee te oie ta eb a) te oat tet teeter nrc) PNET VA er ae Sree eyecare eer aon Bei et io LU I "E oT 2) NST Co ere Ta Pee eluted Ma Ue (lor Relaiiele i coMueelaro fe) Sele i“ EM oliucRelsw lies aa ce acacia (Mite) conteudo que vocé consome e compartilha ys : Cece ene a ee eee eo ee ee Ceo + - Hiway prUPilpN Nathaniel Hawthorne Precnee fess ete eee eso Pooler te Elem usb Pete B oe selec Ee BUolLoay Bote CRC tT Peo MS eee Peon ee es NEW ao Sate DOr EU Cau Mestre iy Crore rc Geet e Br eeo crete Resear este} Bronte ema o Tens Pipe sale Cea eo roa Cournot a ict e editorial Uma escrita nova. E viva! Num indo e vindo infinito, nada do que foi sera.. om ticenca postica a Lut: Santos, tomo suas palavras e reordeno seus versos para apresentar esta revista que esta se renovando, em continuo processo de atualizacao. ficando ainda mais dinamica € relevante A ‘agora Escrita Viva ~ Conhecimento Prattico- Lingua Portuguesa e Literatura creda com eneigia total com pessoas e ideias novas, revigo- rando 0 que de melhor entregamos com a Conhecimento Pratico - Lingua Portuguese Literatura e transfor- ‘mando todo 0 restante em valiosa experiéncia Mas calmal Assim como as ondas do mar que sempre vottam, noses melhores colaboradores per. ‘manecem firmes e fortes em seus postos.trazendo contoudes cada vez mais necessérlos E como tudo que & born pode ficar ainda melhor, com muita alearia in- Formamos que a periodicidade desta publicacao ~ que carinhosamente chamaremos apenas de Eserita Viva = agora sera mensal. Sim! Todo més jestaremos em bancas ou na sua casa como mesmo olhar atencioso para a nossa querida Lingua Portuguesa © suas interfaces. Nesta reestreia, nossa capa traz um assuinto que esta no pensamento ena boca de tede mundo: a intetigencia artifical Abrahdo Costa de Freitas foi verificar como essa tecnologia al afetar o nosso dia a dia, 0 nos- sa desenvolvimento, Flearemos & mercé de robés inteligentissimos? Sobreviveremos a esse tsunami? Ou serd 0 comeca do fim? Eas ondas trazem, ta do Para Monique Maicher. que chega 20 pantedo da boa literatura nacional ‘com folego © raca, Tanto que seu prime lito, Flarde Gume, de ‘cara ganhou um Jabuti Mauricio Silva, recém-chegado, nos ensina como foi. trajetoria da norma para 0 uso co portugues no Brasil Fol esse caminho das pedras que permits (e permite) termos gestado um Machado de ‘Assis, capaz de transformar uma ‘casa om personagem, assim des: laca Roberto Sarmento Lima, ou propiciarmos que.o rap auxiie no ‘ensino-aprendizagem, evidencia Fabio Roberto Ferreira Barreto. E. como uma onda, tem gente ‘que vai. tem gente que fica, como Heloisa Buarque de Hollanda, a nova ocupante de uma cadeira na ‘ABL que ja fol de Netida Pinon, lembra Juarez Ambires Tantos géneros e tantos tipos textu- ais cabem no mesmo balaio? Como ‘es dialogam? E a0 que responde ‘Aline Femanda Camargo Sampaio ‘em Contexto, Coisas da lingua, dia Divanize Carbonier|, autora potente, {que ensina o que é natrar. Eo aprendizado nunca termina, Disso tem certeza Marcio Scarpelini Vieira, ‘@ assim exomplifica om artigo sobre formagSe continuada. Ja Cristiane Alves, esctitora © Preta, como gosta de ‘ser-chamada, mostra as mitts in- teipretacdes linguisticas e legislativas. ‘em Lugar de Faia, E ha muito mais: Anabelle Loivos ‘Considera, uma especialista da pala va, trara, todo més, suas impressbes sobre a lingua © educacao. Ana Maria Haddad Baptista sera nossa resenhis- ta, apresentando obras e aspectos Iiterarios, analisados por quem conhe: ce profundamente o oficio. Leanatelo arzaro, editor, cronista, apresenta-se ‘em um texto versatil sobre tradugoes @ bbelezas do nosso porttiaués, enquanto Ninit Goncalves, artista da palavrae da fotografia, tem o remédio para os males da vila: poosia. E Marcia Fusaro, ‘muttifacetada, vai func a0 demons- {rar comoattiteratura,a arte e a ciencia ‘andam de maos dadas. ‘Assim vamos construinde nossa histo- tla, Allis, € ela que preserva lingua, Da oralidade as telas, ¢ por meio de narrativas que criamos a nossa iden= tidado. Por isso, esta edigao comoca com 0"Amendim de iwy Menon ~ ex -boia-fria que hoje © apontada como. uma das grandes revelacdes da ltera~ tura brasileira -¢ encerra com are- fiexdo da contadore de historias Paula Pog. sobre a importancia e © prazer dessa arte milena ‘O-convile esta feito: merguihe nessas Condas em que a escrita ¢ vival ‘Mara Magania Editora ESCRITAVIVA 3 FUTURODO pipes 10. entrevista Aparaense Monique Malcher, prémio Jabu- tide contos 2021.com seu primeira livro, Flor de Gume, reivindica © lugar das mulheres nortistas, “que oda ciéncia, da sabedoria da resistencia, e nao ‘&margem da socie- dade’, frisa 14. Gramatica Como se deu o pro- cesso de uniformiza- a0 e simplificacao do portugués utiliza- do no Brasil 18. Literatura Em Dom Casmurro, de Machado de As- sis, a. casa, tomada como protagonista, revela de que forma oeseritor construiu uma realidade, a luz do mundo social do qual faz parte, onteme hoje 26. Perfil loisa Buarque d Hollanda é anova imortal da Academia Brasileira de Letras, na cadeira que fol de Netida Pinon 30. Nosa capa Ocomeco do fim? Ainteligencia artificial otimiza 0 aces- s0 4 informacao, potencializa o arma- zenamento de dados, resolve calculos @ até produz textos que chamam a atencao a uma velocidad inatingivel para 0 cérebro humano, Mas pode a IA refletir,raciocinar e argumentar? 38. Lingua Viva © rap em sala de aula auxilia no processo ensino-aprancizagem e permite ampliar 0 repertério de mundo e a apreciacao estetica 44, contexto Génetos discursivos versus tipos textuais: um dos temas mais cobrados do ENEM 50, Linguarude ‘A diferenca entre con- tar um fato e constru uma narrativa 56. Diatogos Formac continua eas linguagens: uma volta para o futuro Banca do Antter Escarra, 97 COLUNAS FIXAS 05. Abre Alas Paixao e calheita de amendoim 06. Aperitivo Fique por dentro dos acontecimen- tos do mundo da Lingua Portuguesa eda Educagao 09. Sobreimpressées Discursos de odio na ordem do dia 24, Foco Poesia como remédio contra os males da vide Literal Trilogia dos Saraus, de Ze Sarmento 43. 48. Resenha Livros e seus sen- tidos 54, Interfaces Dialogos entre as areas do conhec: mento 60. Lusamérica Variagoes sobre a eleza da lingua portuguesa 62. Lugar de fala Um espaco de inclusae das vozes pretas, periféricas, indigenas, 65. Estante Langamentos lite: ratios do mas 66, Reticéncias Contacdo de his- t6rias'o melhor do fantastico e lidico no inconsciente coletive 4 CONHECIMENTO PRATICO-LINGUA PORTUGUESA ELITERATURA abre alas ul Amendoim Era tempo de colheita, quando as taturanas enlouqueciam de vontade de envenenar a pele das criangas pobres, como nés ‘caminhio de carroceria aberla se retorcia pela es- trada de chéo esburacada, Gostava de imagin’-lo serpente desesperada ro sol da ma- ‘ha, faminta, a procurar caminho para ‘a mesa. Idéntica preocupacao minha & dos meus irméos:se néo trabalhasse- ‘mos, néo teriamos comida. Gritavamos a cada solavanco, Menos de 12.anos, & {8 estavamos na colheita do amendioim Eu estava apaivonada polo Edison ‘que trabathava na lavoura de amen- doim, quando as taturanas enlouque- clam de ventade de envenenara pele das criangas pobres, como nds. NSO tinhamos defesa contra elas La fola primeira vez que soube que pocleria “ganhar felt homem* se me manti- \vesse no grupo da frente, como os pees. Nao sei se conseguem com- preender o que era “arrancar amen- doim’. As touceiras firmes no chao ‘explodiam vagens, presas as raizes, que quardavam os gra0s. ‘A nos cabia andlar abaisados quia se até o chao, com as mos, como chaves torques, que se agarravam 20s caules do amiendoim. Metiamos tragao © atrancavamos a moita, de uma vez 60. Dapo's. batiamos a terra nas coxas @ viravamos a colhelta de eras e vagens para cima. E iamos para as proximas. Quilémetros andan- do feito arcos, Com as costas voltadas para o-sol {As taturanas levavam, todo dia, um: ‘amigo pata o hospital. Criangas. como ‘eu meus irmaos, queimavarnos de febre deitadlos debaixo de alguma sombra, esperando terminar 0 dia para irmos embora Tinhamos direto 20 ‘salir das horas trabalhadas, antes do acidente com as lagartas paludas, E agua, servida sempre moma, com gosto de gasolina. As inguas imensas fas virlhas @ alas, A determinagao de aguentar chegar em casa, Se tudo ccoresse bem, no outre dia a mesma ‘cpisa. Confesso que. de vez em quan- do, sorhava ser atacada por taturanas, para ficarem casa descansando. Bem, estava apaixonada pelo Edson, ‘um rapaz franzino de 16 anos. Negro. Lindo. Tocava viclae © cantava aquelas imisicas tristes de amores que no deram certo, Eu conhava. Lembra-me ‘que, quando soube do meu interesse por ele, Edson me mandou um bilhete Cori ler escondida dentro do banheiro (casinhe) no fundo do quintal Ele me dizia que eu era Unda, mas muito me- Reflexao de lvy Menon fina. Precisava esperar que eu “eros: ‘cesse tum pouco mals’ para poder me namorar, Meu rosto queimou. E me: Vi Lide novea cartinha, Esforcel-me para fazer o numero dois, Limpei-me com bilhete. Leve, o papel nao fez bbarulho quando calu no buracao. Edson merreuna rua. Comecou abeber depois que o pai mandou airmazinna adolescente, morar na zona Mais de duas décadas se pas saram @ eu 6 encontreina rodovicria Pediiucme que the pagasse um café lum cigarto, uma coxinha Paguel. Uma lagrima toimava me denunciar: Ri, © the disse do meu prazerem revé- lo. Contaram-me que ele “levou uns. tires”. numa briga pro defender a ira ano bordel Na perna dieita, Nao fol {20 médico. A gangrena the apadreceu a pema ¢ termincu o servico come- cade pela morte, quando tedos ainda acrecitavarnos no futuro, Inclusive ele, CCinquenta e dis anos passados, sinto as ciores das queimaduras das. taturanas, Ougo 0 violao do Edson. Releio o bithete dele. E sei que muta cc0is8, no Brasil, so mudloua tempo e 05 endereces. Ainda moreemos de fome (ematames) ERTIES vy oenons varia Mara Menon) ¢ esentre. edvegada ps-araduade em Filosofia e Tectia de Dri, tacherela fm Teslagis € ex boa- Fa, Avioa cos lures Flares amarsias (poesia premio do | Coneursn Carioca de poesia Eltora Muitfora, 2006) Matematica das algeros aces, © book, Carn Eons, 2020, Aras oe era @ sang lronicas Etora Abaca, 2020 ‘8 em parcera.com Angels Zanvato 0 romance Ma fecado ~ Mar Abera, pela Rizoma Pojtos Edtoras (ro pelo ESCRITAVIVA 5 aperitivo...... Ataques as escolas crescem nos ultimos dois anos Na parede do banheiro de uma escola privada da zona teste de S30 Paulo, a ameaca colocou alunos, professores e diregaaem panico. Segunde Pedro, aluno do terceiro ano médio, o aviso era de que, naquele mesmo dia, uma bomba colecaria prédio no chao, 0 professor Renato informou que a escola fol esvaziada e que nada foi encontrado. Algo parecido também acontecou em um colegio do Rie de Janeiro: uma promessa de massacre pichada na parede: do banheiro dos meninos, com a indicagao da data planejada para crime. Em nenhum dos dois casos, felizmente, houve qualquer dano 0s estabelecimentes e ninguem salu ferido, Os nomes menciona- dos sao fiecionais para preservar a identidade dos entrevistados, Mas 0 outro lado da moeda é cruel eviolento, Desde 2002, 25 escolas brrasilsiras sofreram ataques, de acordo com a nota técnica Extre- mismo violento em ambiente esco- (ar, de Michete Prado do Monitor do debate politico na meio digital, projeto de pesquiisa realizado pelo Grupo de Politicas Publicas para 0 ‘Acesso a Informacao da USP Os dados tornam-se mais alarmantes ainda quando se verifica que 14 des- ‘906 ataques ocorreram nos uiltimas dois anes. ‘Onumero de suspeitas e ameagas & impreciso, porque ainda e necessaria uma sistematizagao mais apurada Porem, desde os tltinos eventos, Forgas de seguranca de todas as ins- tancias tem empreendido esforcos em mapear e agir preventivamente: para evitar novas ocorréncias. No estado da Bahia, segundo em nume- rode ataques, atrés apenas de So Paulo, por exemplo, nove adoles- centes suspeitos de envolvimento e propagacdo de ameacas de ataques contra escolas foram apreendidos ‘em apenas dois dias, em abril MEMORIA DA LINGUA Heranga africana do portugués brasileiro Ahheranga africana responce por uma gran- de parte da constituicao do portugués que se fala no Brasil Diversas culturas, linguas falares oriundos até da luta das povos, que para ca foram trazidlos, compoem nossa diversidade linguistica."Herancas Africanas. no Portugués do Brasil’ é lerceira parte da exposigao ‘Portugués do Brasit. a princi- paldo Museu da Lingua Portuguesa, em Sao Paulo, e uma série de artigos publicados em seu portal, sobre a meméria da nossa Lingua, desde quando surgiu, no noroeste da penin sula iberica, passando tambem pela presen: alindigena, Nesse terceiro arco narrativo, ‘come é denominado, conta-se a historia a partir das ondas de trafico de africanos escravizados. Ha graficos que ilustram a rota comercial de ‘escravos aqui telas, como “Homem negro’ do artista hotandés Albert Eclehout, datade de 1641, videos — em um detes. o poeta, compositor e cantor Tom Zé interpreta "Acalanto de Ouro Preto’, poema de Murilo Mendes, que consta em Contem lado de Ouro Preto, ce 1954, uma belis- ssima foto Oricanta - ifé de Pierre Verger ~ & esculluras iorubas, mostrando como a lingua propicia interfaces mittiplas cam a arte, Do ponte de vista lingurstice, aprende- -se que “a lingua portuguesa irradiou-se pelo Brasiicom a ocupacse do litoral o avango por entre os rios ammazénicos ea entrada pelos sertoes e cerrads, alem da descoberta das minas @ ida ao sul e aos pampas. Assim, pouco a pouco a lingua portuguesa foi se modificando, emergindo progressivamente ca racteristicas inexistentes no por- tugués de Portugal’. Um passelo histerico-linguistice imperdivel 6 CONHECIMENTO PRATICO-LINGUA PORTUGUESA ELITERATURA LINGUA CURIOSA Pelé vira verbete de dicionario Quer definir algo como extraordinario? Ja pode dizer assim: "Esse menino ¢ 0 Pelé da robstica * No dicio- nario Michaelis, o adjetivo, que pode ser masculine ou feminino, teve sua incluso oficializada no final de abril. Segundo 0 tivréo, Pele significa “que ou quem em vitude de sua qualidade, valor ou superioridade nao pode ser igualado a nada ou a ringuem, assim ‘como Pete, apelido ce Edson Arantes do Nasc- mento (1940-2022), considerado 0 maior atieta de todos as tempos.” O dicionario ainda da os sequintes| exemplos: “Ele € © Pelé do basquele, ela @a Pelé do ténis, ela éa Pelé da dramaturgia brasileira, ele ¢ 0 Pelé da mecicina” Como sinénimos, ensina que s30 ‘excepcional, incomparavele Unico’ Autismo e os professores Autismo para Educadores’ ——_plexo e necessario para a meu aluno éautista, e agora?, a psicanalista, psicoem- bridloga, consultora DISC (ferramenta de avaliagao compertamental) e constola. dora familar sistemica Cintia Castro, pretende ser um guia para os educadores com o intuito de auxiliar na pratica docente, no dia a dia. no proceso de aprendizagem de educar as criangas com espectro autista e, 20 mesmo tempo, toda a turma. © lio retine discussées @ reflexdes sobre 0 tema incluso com 0 objetivo de educar e cons- cientizar a sociedade como lum todo, alem do ambiente educacional. Para a autora, inclusao € um tema com- sociedade quando se fala de pessoas com necessidades especiais. “Seria mais inte- ressante se todos se colo- cascem no lugar das familias das pessoas que sofrem 3 exclusio, Porque ¢, sim, um. sofrimento muttas vezes nao ser aceito por ter alguma pe- culiaridade. E, se pararmos para analisar. quem nao tem algo peculiar? questiona Ernani Terra Douter em Lingua Portuguesa, Drofessore autor da diversas tos fas seas ceirqua paruguesa rams datngua portuguesa. Itoratura lotsa producto do textos “Estou lendo Pessoa: uma biografia, do norte-americano que vive em Lisboa Richard Zenith, publicado pela Companhia das Letras, com traducao de Pedro Maia Soares. Estou gostando muito. Embora seja um catatau de mais de 1100 paginas, aleitura fluie se 1é o livro em pouco tempo. Os capitulos sao curtos, o que fax com que sempre se queira saber o que vem depois, como numa novela ou minissérie.” “Thule: Pessoa-uma biografa Eadtora:Comspanhiacias Letras Paginas: 1350 Rita lee, presente! lreverente, transgressora, letrista incompa- ravel (ola preferiria de mao cheia), pintora, autora infantil. Quantas Ritas cabem em Rita Lee? A multiartista, que nos deixou em maio passado, ganhou uma exposicao s6 dela de carluns ¢ caricaturas, A ideia fol do presi- dente da Associagao dos Cartunistas do Brasil JAL. que reuniu as homenagens pos- tadas por diversos cartunistas no biog oficial do Troéu HOMIX. com 0 titulo “Rita Leenda! Avelha negra entre as nuvens brancas’ Ja S30 mais de 0 cartuns, mas a quantidade de desenhos pode au- ‘mentar. "Rita continuara com suas ‘musicas embalando desenhistas em seus trabalhos de tragos feitos com lapis dancantes’, diz 0 comu- nicado da Associagao. ESCRITAVIVA 7 aperitivo & LINGUA Dicrzat | y—7 Voz sintética ja é — realidade nos audiobooks CO primeiro audiobook a utilizar a inteligéncia artificial é da plataforma Skeelo. A escolha recaiu sobre o best-seller Aleida atracdo: 0 Segredo, de Rhonda Byme, colocado em pratica (Lea), de Michael J. Losier. A tecnologia fol empregada na narragao da obra, que utiliza voz Sintética, Inicialmente, 0 projete envolve apenas livros de nao iecao. E preciso dar tempo ao tempo para que a tecnologia se aprimore e consiga trazer vozes de ‘miltiplos personagens e diferentes entoniagoes ao longo de uma histéria de ficc3o. Essa novidade promote baratear 05 custos eo tempo da produce. Os ensinamentos de Losier sobre como podems utilizar a lei de atracao a nosso favor ja venderam milhoes de exemplares em todo o planeta, As licdes fensinam também a afastar aquilo que nao desejamos. A obra testa dlisponivel nos planos premium do Skealo € pode ser en- contrada apenas no app, cisponivel para Android ¢ iOs. ouTRALINGUA Obra colombiana ganha traduga zl em nove paises a poses viions | Sumario de plantas oficiosas, ven- ’ cedora do Préenio de Nio Fleglo Latinoamérica Independiente em 2022, para exigao em nove editoras organizadores do premio. Entre as casas de publcacéo, a editora Fésforo. representante do Brasil também ira publicar o livro, omando-se as outras oito ~ EL ‘Cuervo (Bolivia). Godot (Argentina) Libros del Fuego (Venezuela), Luna Libros (Colémbial, Elefanta (Me xico), El Fakir Ecuador}, Trabalis, (Puerta Rico} e Criatura (Uruguail, ‘autor Efren Geraldo reuniu espé- ‘cles reais © imaginarias, provenien- tes de interesses, preferéncias ¢ historias de vida proprias e alheias, para criar um inventario iconagrafico das plantas. Ele forma uma espacie de diario imaginario sobre presen- a5 € ausencias, representagoes © perplexidacies da flora em um momento de extrema dificuldade, Geraldo quis montar uma conste- lacao de ornamentos conhecidos ¢ dosconhecidos, arvores, alimentos, venenos e seres vegetals, Segun- do ele, tudo ver da meméria e da experiencia, mas tamibem de varias representacées literarias, cientificas @ artisticas que mostram que as plantas se movem e aproveltam a ua grande inteligéncia para o fazer. © CONHECIMENTO PRATICO- LINGUA PORTUGUESA ELITERATURA sobreimpressées ra.uma vez um soldado do quartel yermetha que resol ‘yeu escamecer dos profes: Sores - sim, porque para ele verdadeiro professor & mestre. Endo aceita receber salario se esta fazen- do greve, Era uma vez uma professora que do estava num dia muito bom © man: dou o Soldado parar de ler telenovela no quartet E que quem anda verda- delramente salvando vidas inteligen- les sdo esses ofevistas vermethos, como @ cor de sua corporacao. Foi mais ou menos assim que acon- teceu: © soldado estava todo choio de side medalhas @ de coturas, em seu posto no alto da torre do quartel ver- metho Pata pasar 0 tempo. resolvett botar fogo nas redes saciais, Foi logo dizendo na pagina do colégio pubiico do filho “Eu sei que vao me eriticar pela minha opinido, mas os sorvido: res da Educacaa esta ha mais de um més sem trabalhar e vo receber como se estivessem nas salas de aula Mas @ os aposentados, que deram a vida por mais de 30 anos de trabalho. recebem o qué? Nada, né? Isso é um absurdlo, Parece mesmo que o certo Vvirou errado pois no final ha uma pre- miagao para os grevistas (aumento de salério € abono de greve). para os aposentados. nada, Mestre de verda- de ensinal Os servidores da Educacao guerem coisas que nao existem nom om escolas particulares!* Reflexao de Anabelle Loivos Considera A fabula do mestre edo soldado Professora #tchateada: “Totalmente infeliza sua fala, senhor Professores ‘esto hé 40 dias’sem trabalhar mas ‘ocupando escolas ¢ desenvolvendo atividades de greve junto 4 comu- nidade. Esto tambem ha 19 anos sem ter reajuste salarial, No entanto neste exato momento, esta tentando ‘salvar a vida’ inteligente na escola, para que ela sebreviva extramuros, As ‘categorias tinham que se unir contra teal inlmigo, que & 0 descalabro do Estado.€ no investir em picuinhas classisias e desnecessatias como ‘essa levantada polo senhor. soldado. Uma lastima* Soldado do quartel vermelho, vermethinho de raiva: “Woes se de- finlu bem, professora, servidores da Educacao nao sao mestres. Mesttas, para mim, ensinam em qualquer lugar nas piores condigdes Mestre divide: © saber, professor so pensa em seu beneficio, ar condicionado ele. Sea senhora é professora, me desculpe Discursos de 6dio dao o tom as redes sociais té-la magoado: porém, sea senhora for mestte, pense que lecionar e uma dciva que 0s professores nunca ‘ontondersa, Respeito os mastfes, mas 1ndo os professores que carimbam diplomas, que nao conhecem a arte de ensinar. Uma lastimall” Professors trabalhada na “tapinba -no-dér' “Perdio, St. Soldado, realmente nao falamos da mesma coisa. Essa distingao entre mestres © professores seryiu para vender fo- tonovela, mas é to descabidal Ar- condicionado nao é beneficio. ¢ ne- ‘cessidadie para espacos de menos de 20 me 60 pessoas juntas Lecionar nunca foi uma ddiva. do mesmo modo que serbambeiro tambem nao & trata-se de exercer uma profiss8o. ‘com dignidade e respeito. Professores ‘estlo, sim, preocupados em ganhar 0 pao seu de cada dia, pois ja abolimes a escravatura desde 0 século 19, mas ainda ha pessoas que entender 0 magistério como misséo, Ensinar no ss faz por amor camisa, senhor. Se faz por conviegde politica @ afeto ao conheciments democratico, Espero que seus filhos tenham étimas pro- fessores © que suas reservas contra a classe caiam por terra quando 0 se~ ‘hor se der conta de que aluta de um Galuta de todos* Era uma vez uma rede social. Era uma vez um discurso de édio. Havia la Lum botae dle unjollow Foi al que essa fabula terminou [3 ANABELLELOIVOS CONSIDERA # doo em Letras trot Compared pela UFF, pos-doutora pela USPIFELCH) 0 professors peooada sf {Lets inom enfase em Literats Comaarada am Diss culdace de Educacae da UFRJ, Decica-sea pesquisas nab areas de Eaucagan Icom enfase om Histone da Educacso e Memora) sper. da Lingua Perugicsa esuastleranuras eam Pratieas Pocagéq) stasis Superisionados). E morro do corpo de pesqusadares.e s6els do LTC -Isblute do Logica, Fosoliae Teoria da ies ESCRITAVIVA 9 — CCC) ranted esa -“ESCREVO COMO QUEM CRAVA PALAVRAS NO TRONCO DE UMA ARVOR: ~_COM UM CANIVETE’, A literatura dessa paraense vem para ficar muitas Moniques que andam por A: escritora, a artista plastica, a an- Jropéloga, a jornalista, nascidas em Santarém, no Para, netas de uma ribeirinha, agora plantadas na urbanidade de Séo Paulo, ganham o mundo, mas ndo saem das margens de rios profundos. Flor de Gume, seu primeira Livro, atesta isso. As 87 historias que garan tiram 0 Jabuti na categoria Conto, em 2021, navegam nas aguas de seu estado, ¢ de la apre sentam meninas,mdos, avés, num entrecruza- mento de geragdes ¢ suas vivéncias sofridas. A violGncia perpetrada contra as mulheres & a guia mestra dessas tramas, que resgatam até os cadernos de suas avés, entre cenas re- aise ficcionais. A escrita, para Monique Mal- cher, & um projeto politico de estar no mando e nasceu da oralidade das contagies de histé- vias onvidas no baivro de Mapiri, Sua literatu- raé fluida, seu discurso é fava afiadae poético a9 mesmo tempo, suas colagens ~ sao delas as ‘lustragdes que ajudam a navogagao de Flor do Cume ~ reivindicam o lugar das mulheres nor Listas, que 6 oda ciéneia, da sabedoria eda » sisténcia, enio.i margem da sociedad, frisa Monique, vocé é um dos casos raros, nat literatura brasileira, que, com 0 primeiro tivro, ganha um Ja- uti e alca vos primordialmente destinados aos grandes nomes. Como fol isso? Quais sentimentos que uma artista com a sua poeticidade latente acessa num momento assim? Grandes eseritas podem também nao ganhar pré- mios, importante que a gente sempre se lembre disso. Nunca esteve no meu radar, nem mesmo como sonho, ganhar um prémio... mesmo que ga nharo Jabuti tenha sido um dos dias mais felizes da minha vida como escritora. A felicidade vem de ser lida ainda mais ter a possibilidade de chegar a diversas pessoase lugares, Na ocasiao pensa- ‘va muito em todas as escritoras do Norte que se- quem batalhando para serem lidas. Sinto que esse prémio também tem um sabor coletivo, Por que vocé escreve? Escrevo porque acredito na eseritacomoum. projet politico deestar no mundo. Vejoaese: ta como o balango de minha lingua elaborando palavras, para que elas possam ser ferramentas jonhos ¢ absurdos. Quan- do escrevo nada pode me tovar € posso exercer diversos olhares e gestos em relagao ao mundo. Eserevo como quem crava palavras no tronce de uma arvore com um canivete. de questionamentos E desde quando vocé escreve? Quando soube que is- ‘50 era. uma parte indissocidvel da Monique Malcher? Escrevo desde que aprendi com minha v6 mater na osabor de contar historias. A escrita, pra mim, nasce da oralidadade. Eu admiravaa forma co- moela contava histérias e plantava a importancia desse movimento nas reunides na casa antiga do bairro do Mapiri, em Santarém, Bla conseguia fazer as eriangas mais barulhentas ficarem em siléncio. Brincdvamos de buscar objetos. “Ganha quem achar algo que fagao barulho da tempestade.” E foi assim que aprendi a correrem busea do som edo sentir da histérias faladas e depois esoritas. ‘coisas do mundo. Passei entao a contar minhas Flor de Gume dilacera e nos conecta com nossa ancestralidade, apresenta um mundo nao co- nhecido por grande parte dos brasileiros. E isso desconcerta... Como foi conceber esses 37 con- tos que une geracdes, 0 feminino e suas lidas, as ‘mulheres sitenciadas, até a regeneracao que 56 a natureza permite? Foi um processo longo que envolveu pesquisa sub- Jetiva de minhas recordagdes, mas grande parte fol uma elaboragdo etnogréfica de cadernos de minhas avs, entrevistas com mulheres paraenses ¢ mi has pesquisas sobre alienagdo parental ¢ violéncia doméstica. J4 que sou antropéloga também e so temas que sempre me nortearam. Level trés anos para terminar a primeira versao do livro. Voce utiliza "a voz" dos rios, da terra, da floresta, pa- 110 didlogo entre suas varias personagens, mulheres tidas, muitas vezes, como & beira da sociedade. E cria tum tecido literdrio dos mais potentes da contempo- raneidade, Vem do Paré, de Santarém, da periferia de ‘Santarém., Fale um pouco dessa trajetéria e de como neta de ribeirinhos se encantou com a palavra. ‘Nao vejo.as mulhares do Norte como a beira da soviedade, pois isso pressupde que o centro este jaem outro lugar. Sempre fomos centro também, ESCRITAVIVA 11 entrevista Monique Malcher de ciéneia, de sabedoria e de resisténcia. Poré: avisio colonial nao nos vé assim. Sou neta de mu Iheres ribeirinhas, mas sou também mulher ribel- rinha. Mesmo as nascidas na cidade sao dos rios. uma identidade forte e complexa. Um dos meus olhos é asfalto, e outro é planta. Muitas das avés paraenses/nortistas também exercem 0 papel de alfabetizar suas eriangas eas de outras pesso- as, era que minha v6 materna fazia, Nao 6 uma hist6ria exclusiva de minha familia, Inclusive, ‘em um dos contos, a av6 altabetica 0 avé depois de ole jé ser um homem idoso. Nossas matriareas sempre foram mulheres intelectuais, mas nunca foram respeitadas como tal. Bs- se foi um dos questionamentos que busquei trazer para acom- plesridade das personagens de Flor de Gume. As histérias do livro remetem res, ao silenciamento delas, as dores, mas também é resistén- cia, ao renascimento.. Fala-se ‘muito nas midias sobre o.as- sunto, hé campanhas contra‘0 feminicidio ete. Entretanto, dez ‘mulheres sao assassinadas por dia no Brasil, segundo dados do Monitor da Violéneia, Como isso deve impactar (ou impacta) a arte em geral? Eoque sempre falo, parece cansativo para algumas pessoas que a literatura traga repetidamente esses temas, mas nunca me canso de eserever sobre, Através do livro vl uma grande rede de profissionais da educagdo eda psicologia levando para seus ambientes e proje- tos esses temas. Isso me anima, mesmo sabendo {que temos muito trabalho pela frente. Fixiste um forte impacto nao s6 nas mulheres e nos homens, mas também nas eriangase nos adolescentes que reconhecem no livro a vida da interior e se sentem representados. cia contra as mulhe- Jarid Arraes (4), escritora das mais importantes da atuatidade, editou e fez a oretha do seu livro. Como se deu essa relactio? {2 CONHECIMENTO PRATICO-LINGUA PORTUGUESA ELITERATURA “N&o vejo as mulheres do Norte como a beira da sociedade, pois isso pressupde que o centro esteja em outro lugar. Sempre fomos centro também, de ciéncia, de sabedoria e de resisténcia. Porém, a visao colonial nao nos vé assim” david foi além de editora....uma amiga que ganhei ¥¢ proceso. 0 livro ia ser publicado por um pequeno financiamento coletive. Nesse periodo, conheci Jarid no clube de escrita que ela coordena ¢,coincidentemente, ela estava procurando wma autora do Norte para publicar. Pediu para ler 0 i- vroe se apaixonou por ele, depots disso o livre fol publicado pelo selo Ferina, que na época estava na editora Polen - hoje se chama Jandaira -e conti nua sendoa casa editorial do livro. Uma das suas declaracées mais potentes fol.) Antes do meu nome ser retirado daquele envelo- pe roxo ontem.. ouvia a voz de Elza Soares enquanto chorava agarrada ao meu livro. Eu vou escrever até o fim, cantava na licenca poética. Nunca senti o que fisicamente se inscreveu. ‘Minha pete repuxava de meu rosto, como se 0 0550 fosse Ser minha nova casa, e muitas vezes foi, Meu rio foio tutano das coisas, as margens. $6 que estive sempre desgarrada no meidio das aguas, onde mui- tos nao querem estar, onde o ‘afogamento e 0 banco de areia ‘mandam. Meus pés de acerolei- rame levaram de cada dor que me rasgou até esse desmaio que me trouxe de volta para um ‘mundo em que meu nome é re- tirado do envelope roxo’. Passadoum ano e alguns messes dessa emoctio, como esté a carreira de Flor do Gume? Vocé esteve em Boston, para falar do li- ro, néo é? Como fola experiéncia? OFlor de Gumeainda me parece um livro que foi langado més passado, ele segue encontrando muitos leitores e projetos, isso me deka extrema- mente felis. Jé estamos na terceira reimpressio. A vviagem pra Boston foi uma étima oportunidade de provar meu ponto sobre a literatura que faco ser também universal, sentida de modos diferentes, ‘mas compreendida, Foi lindo estar nas bibliote- case conhacer leitores imigrantes, além das duas turmas de género em Harcard que se emocionaram bastante ao comentarem sobre o livro, Penso que Forga da natureza Flor de Gume (editora Jandaira, em sua terceira reimpressao) no aceita camisa de forca. E teme- rario classificd-lo apenas como tivro de contos, pois a poesia nete se infiltra como afluentes dos rios que navega ou como travessas que desembo- cam nas ruas que trafega Dividido em trés fases, “Os nomes escritos nas Arvores, os umbigos enterrados no chiio’, “Quando 105 labios roxos gritam em caixas de leis hermeé- ticas’ e "0 reflorestar do corpo. o abandonar das pragas’, intercala historias de meninas, maes, avos, todas elas mulheres que softem com a violén- cia, como sitenciamento. A palavra de Malcher é cortante como gume: "Meu corpo conhecia todo tipo de dor com objetos diferentes, Sandal liv, prato, folha, galho, cadeira, controle de TV e quase sempre chute com soco" (pag. 451, Ou: "Nao é exclusividade das casas serem assombradas. mu Unetes sao também, Isso conhego bem” (pg. 79). Pode-se ler o livro em sequencia linear ou esco- Inher qual momento quiser, pois, mesmo separa~ dos, conversam entre si, estéio conectados por um forte fluxo narrativo, Ha uma personagem, Silvia, que passeia pelas varias etapas da vida, ou methor, navega nesses rios amazonicos, em dife- rentes momentos, ¢ esta presente em quase todas as historias, € atraves de suas memérias, de seus sentimentos e de suas percepcdes que navega- mos nessas aguas. A literatura de Monica Malcher 6 indomavel, como toda forca da natureza esses momentos so trocas ¢ que esses lugares precisam muito de nds; observare compreender um mundo que existe ¢ é forte. Qual o othar da muther de hoje para a menina ‘Monique? Quais as recordacées que vocé tem dessa fase? Euainda sow aminha ancestral mais antiga, minha crianga, Nao ha uma separagao eviden- teentre nds, Pois quando era crianga jé escrevia sabendo da responsabilidade de eserever e hoje me divirto com o process das coisas como uma ‘eré. Se vemos nossa crianga apenas como passado ‘penso que nos sobra o endurecimenta, Recordaa equena Nique que amavasentar 4 mesa. sentira folha om branco antes de escrever nela para pre encher tudo, Nunca sosseguei até preencher tudo. Tem outros contos seus publicados em algumas antologias. 0 conto ¢ sua maior expresso? Tem planos para um romance? Poesias? ‘Nenhum género 6 minha maior expressao. 0 sentimento poético é minha maior expresséo. Ea palavra que me diz o que cla vai ser. Nao me Amporto muito também com o que ela vai ser, mas com a danga que fas. Meu pré:rimo livro seré um romance, jé que precisamos rotular assim para as questées préticas de venda e distribuicdo, mas eu gosto de pensar nele como uma pedra que es tou esculpindo, Vocé também é artista plastica. 0 proprio Flor de Gume tem colagens suas, Como ‘acontece, para vocé, essa interface entre literatura e artes plésticas? As duas enisas conversam demais, em ambas meu modo de criar nao seque muitas veges uma linha esperada. Gosto de manipular imagense, por is- 50, amo esoravere colar. A diferenga talvexesteja em como me sinto fasendo esas atividades. Bis- srever me eausa inedmodo ecolar me causa rela sramento, Amoas duas sensagdes. Vocé tem consequide viver das artes, em geral? Gum desafio extremo, mas sim. Vivo das artes hoje, pago minhas contas inteiramente com a li- teraturae as artes pléstieas. O que envolve wma gama de trabalhos e muita organizaedo para dar certo, Ainda néo é algo que eu possa respirar totalmente tranquila, mas finalmenve sou uma artista vinda das periferias que tem provadoo sabor do que € ter acesso, pois privilégio nunca soube o que é. O que vem por ai? Tenho sempre varios projetos em andamento, sou ‘inquieta, hahaha. Mas o que eu pretendo term nar em brave 60 nova livro, que nao posso falar muito sobre, mas vai sé passar no Amazonas. 1 dari Arras ESCRIAVIVA 13 “Oficializada em 1959, a NGB - como ficou mais conhecida - promoveu uma consideravel inflexao no processo de construcao das gramiaticas brasileiras, ‘4 mais de 60 anos, a Nomenclatura Gra- matical Brasileira (NGB) era adotada tanto pa- rao ensino programético nas escolas quanto para os exa- mes de admissio & seleciio, seja nas universidades, seja nos concursos piblicos, con- forme rezava a Portaria n° 86, de janeiro do 1959, assi- nada por Clévis Salgado, en- to Ministro da Educagdo e Cultura do governo de Jusce: ino Kubitschek. Esse docu- mento, que serviria, nosanos posteriores, como referéneia para a padronizagdo das categorias gramati- caise outros conceitos linguisticos préprios do portugués utilizado no Brasil, resultou do tra- balho intenso de alguns dos principais nomes de nossa gramaticografia ¢ linguistica, como Antenor Nascentes, Clovis do Régo Monteiro, Candido Juecé (filho), Rocha Lima, Celso Cunha, Antdnio José Chediak, Serafim Silva Neto e Sil vio Elia, todos eles comprometidos com 0 pro- jeto de uniformizagao e simplificacao de nossa nomenclatura gramatical, haseando-se em trés prinofpios fundamentais: a exatidao cientifica do termo, sua vulgarizacao internacional e sua tradig&o na vida escolar brasileira. Oficializada em 1959, a NGB - como ficou mais conhesida ~ promoveu uma considerdvel inflexdo no processo de construgdo das gramé- ticas brasileiras, j4 que interferia dirotamen- te no modus faciendi de nossa gramaticogratia © instaurava um rigido padréo conceitual ja que interferia diretamente no modus faciendi de nossa gramaticografia e instaurava um rigido padrao conceitual e taxiondémico que, a partir de entao, deveria servir de modelo a nossos gramaticos” taxionémico que, a partir de entdo, deveria servir de mo- delo a nossos gramaticos. Contudo, nao foram poucos os graméticos que, prove- nientes da geragao anterior, rebelaram-se contra 0 que consideravam certos exces- s0s @ incoeréncias da nova terminologia, como é 0 caso do Napoledo Mendes de Al- meida*, que, embora tenha adaptado sua gramatica, a partir da década de 1960, aos ditames da nova nomen- clatura, manifestou-se pron- tamente contrério a uma uniformidade terminolégica que, segundo suas proprias palavras, fora criada “com desrespei- {0a tradigo € ao bom senso, quando nao a pré- pria disciplina” (p.6). O PAPEL DO GRAMATICO Sem uma filiacdo te6rica definida e inse- rindo-se nas politicas lingufsticas do Estado Brasileiro, a NGB 6, na verdade, segundo Lau- ro Baldini, um documento que resulta na redu- co do papel social do gramatico, uma vez que, a0 impor uma transformagao e uma padroni: zacao do discurso gramatical, obriga-o a ser uma espécie de “comentarista” da nomencla- tura, 0 gramético, portanto, perde espago eim- portncia dentro da dindmica social na qual se insoreve o saber metalinguistioo, ea gramati- ca passa, muitas vezes, A condicao de um mera repositério de dados lingufsticos previamenta arrolados pela nomenclatura oficial. Imbuido ESCRITAVIVA 15 gramatica NGB de um poder legal, a NGB representaria © encerramento de uma ampla etapa de nossa gramaticografia - com implicagdes consideraveis até mesmo no estatuto au- toral do gramético (como assevera Eni Orlandi) - eo inicio de uma nova fase que, se por um lado marea a decadéneia de um idedrio gramatieal especitico, delib: damente assentado na normatividade dos fatos da lingua, por outro lado assinala a intercorréncia de teorias linguisticas sobretudo com 0 advento do Estrutura- jam novo rumo a nossa es oritura gramatical. Com efeito, data dos anos que sucedem a década de 1960 0 surgimento de uma série de fatos circunstanciais que per- mitiram uma mudanea de paradigma na gramaticogratia brasileira, fatos que pa- recem ter sido mais responsaveis pelo desenvolvimento do descritivismo gra- matical do que pelo arrefecimento com- pleto do normativismo, fazendo com que ambos os dominios da gramética passas: sem a conviver nem sempre de forma pa- cifica, Cronologicamente falando, tais fatos poderiam ser identificados, alémda prépria elaboragdo da NGB, como a inclu- so da linguistica no currieulo do curso de Letras de renomadas universidades ~ ‘como a Universidade de Sao Paulo (1965) e a Universidade de Campinas (1971) -, a aprovacao da nova Lei de Diretrizes Bases dos Ensinos Fundamental ¢ Médio (1971) e odesenvolvimente de estudos lin- gufsticos de inspiragdo estruturalista, tudo isso culminando no aparecimento de gramétioos que, a exemplo de um Cel- 50 Cumha (Gramética do Portugués Contem- pordneo, 1970) ou um Evanildo Bechara (Moderna Gramética Portuguesa, 1961), tor- naram possivel a institueionalizagao de uma “nova” gramaticografia nacional ¢ prepararam o terreno para tim processa de proliferagao gramatical, oxjos prinei- pios teéricosvaodoenfoquefuncionalista a0 deseritivista, passando pelas aborde: gens pragmatieas ou interacionistas, :6 CONHECIMENTO PRATICO- LINGUA PORTUGUESA E.LITERATURA, Portugués brasileiro » purismo idiomatico Aaprovagao da NGB foi tembem responsavel peto aprofundamento de uma importante dis- cussio, que ja vinha sendo travada, com mais assiduidade, ao longo de toda a primeira meta de do século 20, em torno das especificidades do portugués aqui utilizado, adensando ainda mais a dicotomia entre os defensores das ca- racteristicas proprias do portugués "brasileiro* € os adeptos do purismo idiomatic, segundo o pesquisador e professor de semantica e pesquisador de estudes urbanos da Unicamp, Eduardo Guimaraes, De qualquer maneira. embora a unificagao dos termos aramaticais pudesse representar um ganho, no sentido de uma homogeneidade. com repercussées na propria identidade Linguistica nacional — ja que se tratava, inclusive, de se diferenciar da Nomenctatura Gramatical Portuguesa (NGP) aponta 0 professor doutor Marcelo da Silva Amorim -, parece que quem mais se condoeu com esse fato foram mesmo os gramaticos, como sugerido antes, que se sentiram preju- dicados em sua autonomia, Segundo Orlandi em ‘Metalinguagem ¢ gtamatizacdo no Brasil’ "com a NGB os graméticos forarn despossu- idos de seus lugares de autor que tinham no século XIX quando poderiam dizer (e nomear) a lingua portuguesa no Brasil, via discussées tebricas, decisées terminolégicas. anatises gramaticais dos fatos da lingua que se fala desse lado do Atlantica. ANGB cristalizoua gramatica, ou melhor, reduziu a gramatica a uma nomenclatura fixada e o gramatico per- deu seu estatuto de autor, de criador, ou, pelo menos, perdeu sua forma de autoria ele 56 pode repetir’(p. 32) Dos titimes anos do século 19 até a metade do século 20, a gramaticogratfia brasileira caracte- Fizou-se, sobretudo, por um saber metalinguis- tico que acusava um lastro positivista de cunho lusitano ¢ trazia como principals marcas desse. ideario linguistico as quereias linguisticas. as. reformas ortograficas e as discussdes lexicais acerca dos estrangeirismos, afirma Bechara em Tradicéo Gramatical Luso-Brasiteira, 0 que. alas. resultaria na escrita de graméticas inspiradas nos fundamentos cientificos. advindios dos estucios linquisticos eu- ropeus institucionalmente legitimados, lembram Leonor Favero e Marcia Moli- na; alem disso, esse periodo cetebrizou- -Se pela addogao de novas propostas linguisticas, pautadas, sobretudo, na fatura literéria de alguns modernists. dando novos contornos a nossa grama- ticografia. como explico em "Gramatica da Lingua Portuguesa no Brasil: um estudo da gramaticografia brasileira pré-NGB (1930-1960)", Apés esse longo periodo, o que se verificou - tambem como tepercussio da NGB - foia pro- dugSo de gramaticas. cujos principios tedticos vo do enfoque estruturalista 0 funcionatista e ao descritivista, pas- sande pelas abordagens pragmaticas ui interacionistas. como s80 exemplos ‘as gramaticas de Celso Cunha (Gra- matica do Portugués Contemporaneo. 1970) ou de Evanildo Bechara (Modema Gramatica Portuguesa. 1961) Muitas dessas gramaticas inspiraram- -se na novidade que era. no Brasil, ‘as teorias estruturalistas, procurando articular conceltos como os de regis- tro idiomatico, variantes discursivas. normas linguisticas ete, com conceitos como 05 de fatos de linguagem, papel do sujeito na producae do discurso, importaincia da interacao sociolinguisti- ca e outras, fazendo ainda, mais tarde, an 1 Napolese Mendes largas concessdes a teorias de rnatureza enunciativa e discursiva A citada gramatica de Celso Cunha é um exemplo dessa ‘versatilidade” teorica, ja que se trata de uma obra uja intengao era, entre outras, a de apresentar os fatos da tinguar de: forma sistematica, seguindo deli- beradamente a Nomenclatura Gra- matical Brasiteira e reafirmando seu propésito de “valorizar os meios expressivos do idioma" (p. 10) Apoiando ou nao as novas diretrizes da NGB, 0 fato € que a maioria dos gramaticos que produziram a par da segunda metade do século 20 adotou - ate por forga da legislacao ~as diretrizes do nove documento, seguindo de perto aquele principio que. porventura, estava na génese de todo esse movimento: 0 respeito 5 normas, em beneficio de uma regularizacao de nossa linguagem escrita padrao. Nesse sentido, tanto Bechara (que defende a ideia de uma lingua exemplar) quanto Cunha (que defende a de norma objetivad 0, ainda uma vez, modelares esse proposito. ja que ambos se inserem numa discussao mais ampla de utilizagao da norma culta, conferindo a escola 6 papel de ensinar e divulgar o(s) registro(s) de prestigio da sociedade brasileira deAlmelaa, Gomotcartstaea do Lingua ques Cortsnportrca. Ro Oe res ee Fotis Seo Pale Linas Acs fo Pai 900. ‘ramon Felogee pas Sedat FAVERO,Leoner Lopes: MOLINA cr brshara de pevivgues © AMOR, Marcela cs Siva NCB Mien As Concepts ra ‘ten Frc coca bo Nor UnsConpwactoenie nosea4a)H Abaca fergie air eayes Norepetus Soniioedelngio- de brea ere, 2008 fendinen camera caro ten Revise avocado ungue ie Eiecbars Poise nder Ge Uberanan n4p 120.9509 mea cee c BAO Laie ANG es Aor anak eee Fevers rguens Canora Crp tnguro Soe BECHARA Evanildo. A TradkgaoGre- Portes 1998, p 127-158 Gomstca netic dango pevgnse crore kare ‘mata! use Brastera Cornce Bo de Janeen 10 9 G9, 1905 COPLANDI En P Metatguge © ‘amazagae ro Brash Grates MAURICIO'SILVA Pessulcoutorado o asdoutoxada art Urata Brectora pala Uniersicade d= Si Paulo.¢ professor de Progamade Mestradoe Deutoro fr Educacao da Unversidace Nove ce Jo edo ogame, de Mestadoe Douteradsem Urata @ critic Utrera da Ponts Universidade Cattiea ‘de Seo Paulo atieu mo pesqulsador da Biblioteca Nacional do Ro dean [Dalz 2013)¢ como Desguisadorresente Ss Dblotaes rasta Guta @ ose Minin da Universidade le 0, Paulo 20i6-2017, [ rereniNc\s ALMEIDA Nagnleio Herder Flaine runt StoPaula n ep 25-33 pn Aun 2009 CORLANDI Ei P Ligure Cont ‘nents ingustce Pas ns Hata crane da gansta tatets fre NG 920-1960 fr ASSN. AO Coca FERNANGES HeWLER Rl ora Texston ert ths Minster Noo Puthator Pola p 7-386 ESCRFTAVIVA 47 literatura brasileira Dom Casmurro Uma casa brasileira COMM COLTCOZA. wercesscsercssonouns Uma morada nao é apenas uma morada, em se tratando de ficgao romanesca. Tomada em seu protagonismo, ela pode revelar como o escritor construiu uma realidade, a luz do mundo social de ontem e de hoje. Eis a ligdo deste ensaio, que visita 0 interior desse complexo em Machado de Assis 18. CONHECIMENTO PRATICO- LINGUA PORTUGUESA E.LITERATURA, evia passado pela cabeca daquele esori- ' | te que viveu no século 19 fazer de uma casa 0 retrato do Brasil? Pior: do Brasil daquele tempo e, por inerivel que pareca, de ho je também, sem mudar praticamente quase na- da? Na casa onde vamos entrar é possivel que encontremos 0 que ha de mais doentio e per- verso na sociedade brasileira ~ um vasto painel da nagao, Isso ¢ o que vamos ver. O instinto de erftico reconhece que ele tina razdio nas suas elucubragde: Quero comegar com a descrigdo de um micro- cosmo: trata-se de uma casa que aparece emum romance de muito sucesso ainda, sobretudo por cansa de certos olhos misteriosos de mulher. Tangado em 1698, 0 livro ainda seduz leitores. Nele, seu narrador, em idade mais avangada, projetou a casa de modo a torna-la semelhan- te Aquela em que viveu durante a adaleseén- cia, A ideia era que a segunda, em outro gar da cidade, tivesse a mesma compleigao fisica luero comecar, como quem nao quer nada, com a descri¢gao de um microcosmo: trata-se de uma casa que aparece em um romance que ainda faz muito sucesso, sobretudo por causa de certos olhos misteriosos de mulher" da primeira, tal e qual. Vista inicialmente por fora, deduz-se que a casa seja simples, espago- sae naturalmente confortdvel, trazendo uma inspiragdo das antigas casas-grandes da épo- ca da colonizagéio portuguesa, como disse Gil- berto Freyre, no seu Casa-grande & senzala’, de 1933. Realmente, n&o ha luxo; hé espago pa- ratudo nessa casa apresentada pelonarrador: *[u.] 6 0 mesmo prédio assobradado, trés ja~ nelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas ¢ salas [...]. Tenho chacarinha, flores, le gume, uma casuarina, um pogo e lavadouro.” ‘Comparando, essa casa do romance se pare- ce bastante com as casas daqueles tempos an- tigos no Brasil, como esta que Gilberto Freyre descreve: “A casa-grande de engenho que 0 colonisador comegou, ainda no séeulo XVI, a levantar no Bra- silf...Jalpendre na frentee dos lados[...] Paredes ‘grossas. Alicerces profundos.” ESCRITAVIVA 19 — literatura brasileira Dom Casmurro Alicerces profundos! Comprova-o a pro- gresstio da nossa histéria. A imagem desse alpendre (copiar ou varanda, como quei- ram chamar, de acordo com a regidio que se focaliza) mais a poténcia dessas paredes — metéfora de nosso processo civilizatério, resistente a mudangas — continuam a as- sombrar, persistem como obsessao nos dias atuais. Alids, no Brasil, a continuidade cega dos valores ~ volta ao passado, retrocesso, retorno — parece entranhar-se em tudo que 6 objeto cultural pre: isso se refle tena prépria lingnagem do narrador: “Acasaem que moro éprépria; filaconstruir de propésito, levado de um desejo t&o particu- Jar que me vera imprimi-to, mas v4. Um dia, ‘hd bastantes anos, lembrou-me reprodusir no Engenho Novoacasaem quecrieina antiga Rua de Mata-cavalos, dando-Ihe o mesmo aspectoe economia daquela outra, quedesaparecen.” A casa @ prépria (sinal de que o narra dor esta bem de vida e deseja perpetuar-se nessa imagem, que vem desde a adolesoén- cia). A sua reprodugao serviu para mostrar que as elites s6 se sentem seguras quando andam para tras, apegando-se ao passado que teria dado certo... para elas mesmas, evidentemente. Reproducdo, conservacdio, restauraéo, analogia, parecenca: 0 texto se recobre desse vocabulario do campo seman- tico das similaridades, as quais conferem mais estabilidade ao narvador circunspec- toeavesso a mudancas: “O mais é também andlogo e parecido.” Chicoteato embora pelos instaveis mo- mentos com que nao contava enquanto du- row 0 casamento que naufragou, ele nao ‘quer ver cairo seu mundo de aliceroes pro- fundos e paredes grossas; ndo quer vé-lo su- ‘oumbir ante os embates, os imprevistos eas surpresas que, no decorrer, The causaram choque. Dai a tentativa, mesmo assim, de reeonciliar-se com 0 passado: “0 meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescéncia.” Numa atitude quase religiosa, o narrador se vé a si proprio no encontro com 0 Desco- nhecido, que Ihe reservou desamparo: “Pois, senhor, nao consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se 0 rosto é igual. a fisionomia 6 diferente.” Quase um martir que procura descanso, esse homem reflete sobre sua via-erticis per- corrida até ali. Como nao se segurar &s pare- des grossas, protetoras, da antiga casa? Nao Ihe restou alternativa, sen%o repetir esse passado, ao menos na aparéneia de uma ca- sa senhorial, com ares de convento, Gilber to Freyre faz notar que em muitas das velhas da era colonial “estava-se como emum convento portugués — uma grande fazonda com fungées de hospedaria e de santa casa”. Declara o antropélogo pernambucano: “Se a casa-grande absorveu das igrefas € conventos valores ¢ recursos de técnica, também as igrejas assimilaram earacteres da casa-grande: 0 copiar, por exemplo, Nada mais interessante que certas igrejas do interior do Brasil com alpendre na frente ou dos lados como qualquer casa de residéneia. Conhego varias ~ em Pernambuco, na Parafba, em Sao Paulo.” © pr6prie Machado de Assis, nese seu Dom Casmurro, resolveu lembrar, por uma observagao do tio Cosme ~ outro que faz da casa de Mata-cavalos uma hospedaria, junto coma prima Justina eo agregado José Dias que “a [greja brasileira tem altos destinos’, e, nessa mistura bem nacional de religiéo com vida sociale polities, aluda ao fato de que “um bispo presidiu a Constituinte ¢ 0 Padre Feijé governou o império...". Nao admira, pois, que oagregado dessa familia, 0 queridissimo Jo- 86 Dias, no capitulo 61, numa demonstragéo clara de que esta integvado ao mundo senho: rial que a casa representa, solte esta maxima 20. CONHECIMENTO PRATICO-LINGUA PORTUGUESA ELITERATURA, em tom solene: “O mundo também é igreja para os bons... Boa é a igreja, para ele, cla- ro, jé que a casa abrigou esse fiel desde mui- to cedo, dando-Ihe teto, comida e seguranga econémica. Hoje, na linguagem popular, diz-se de um grupo fechado de amigos, ou de eimplices em algum negocio, que eles formam uma igreji- nha... ‘tudo muito suave nesse diminutivo, adequado ao “intimismo a sombra do poder” — expresstio com a qual Thomas Mann*, re~ tomada depois por Lukaest, designou o am biente politico da Alemanha (mas bem que serve para nés também) como lugarde conci- liagdes feitas pelo alto, pelas classes dirigen- tes e aristocraticas, excluindo as iniciativas populares na condugdiodos destinos da socie~ dade. Nesse estahelecimanto de paralelo com a oultura brasileira, o narrador de Dom Gas muro ignorao que nao lhe interessa, s¢.0.que ‘tem pela frente veio de baixo principalmen- te,e fecha-se noseu subjetivismo extremado, encareerado na easa que mandon construir imagem e semelhanga da de Mata-cavalos Desse modo, nao haveria metéfora melhor, para tal conexio simb6lica representativa do autoexilioe conservadorismo declasse, do que uma casa que reproduz outra, mais anti ga, em todos os seus aspeetose atmosfera. E verdade que, hoje, findo o Império, es- ses tragos est&o bastante esmaccidos — ou dispersos, disfargados ~ na cena urbana do pals, mas seus remanescentes culturais con- tinuam assombrando o pensamento eotidia- no brasileiro. Como diz.o proprio narrador, a isfonomia 6 diferente, mas, mantido into: do até agora o rosto dos senhores, nada haa comemorar. © tom de modlernidade — que instaura 0 reino das dissolugdes, dos descentramentos e das rupturas que brigam com o roteiro da continuidade — avisa que esse narrador, ao contrario, 6 renitente e nao entrega facil 0 jogo que 0 atropela. Continua, resiste, pois. Bsse narrador néo 6, definitivamente, mo- derno! talvez das profisstes escolhidas, ainda mais durante o Império, ade advogado “Alias, no Brasil, a continuidade cega dos valores — volta ao passado, retrocesso, caminho de volta — parece entranhar-se em tudo que é objeto cultural presente no nosso entorno’ seja a mais conservadora, a comegar pela adogao do latim nas suas mais difundidas ex- pressées juridicas. (DOMUS, DOM, DON’ Por isso foi que esse dono da casa do En- genho Novo, que atende pelo nome de Bento Santiago, entéo vitivo, advogado de forma- do, bem-nascido em uma familia abastada de Itaguaf, até gostou do apelido que reeebeu do rapaz do trem da Central, aquele mesmo que Ihe leu poemas que deram bovejos, tal co- mo aparece no primeiro capitulo do romance. Era noite. 0 trem voltava da cidade para o subérbio, onde moravam ambos, sem se co- nhecerem efetivamente, a nao ser “de vista e de chapéu”. ram mutuamente estranhos. Resolvendo apresentar-se Aquele senhor de ares respeitaveis, o jovem praticamente co- mandou a conversagao: falaram da lua ¢ dos. ministros ~ natureza e politica, coisas que. nunea se arranjaram bem por aqui —, e, por fim, sain este tiltimo assunto: poesia, Ao que parece, nao agradou muito (“os versos po- dee ser que nao fossem inteiramente maus”), apesar da dissimulagio algo ciniea do ou- vinte, que pds no embuste disereto toda a sua presenga. Mas 0 rapaz, claro, percebeu. o enfado que causou no outro e, ressentido, ESCRIAVIVA. 2 literatura brasileira Dom Casmurro meteu “os versos no bolso”. O“meu poeta do trem” (perceba-se aia ironia do narrador!) terminou por apelidar vizinho de “Dom Casmurro”, designagdo que “afinal pegou” e, de quebra, ainda serviu de titulo ao livro de memérias que estava preparando. Titu- lo que, dado pelo ocupante do andar de bat xo, agradou o de cima, Por outras palav’ Tudo orapaz, mesmo aborrecido, serviu a seu se- nhor, 0 escravo aguenta as chibatadas que igual, tudo Ihe dao e ainda contribui para a santa paz permanece da casa-grande. Isso 6 resultado da assimetria que sepa- ra as classes sociais no Brasil: de um lado, 0 ofendido (no caso, o rapaz poeta, que se sentiu desprestigiadodurantea leiturados As nossas elites nao sabem por que admiram ou cultivam ‘© gosto por retratos e paisa- gens europeus. incorporados Aarquitetura e a decoracso seus versos), enquanto, de outro, 0 ofensor, Ga taene @cificion Ate hole ainda que nao 0 tivesse premeditado (0 ho- postivelments. sob ceriastcari= mem mais velho, de vida econémica com- digdes, Creem apenas que isso pletamente resolvida e préspera). 0 javem confere elegancia e requinte. E se ressente da ofensa, mas aquele que po- uma marca distinta e distintiva doria ter-se ofendido com 0 apelido (“Nem de classe essa adaptacio a .uei”) nd se chateou, por: modelos de fora, desde que te- regra que, como diz um provérbio an- nham prestigio internacional. 0 tigo, o que vem de baixo nao atinge. Classe critico Antonio Candido atribui fechada noseu poderoso“intimismo a som- isso aos recalques que cons- bra do poder” ~ eis 0 que Thomas Mann titulam nosso sentimento de inferioridade. ranco do atraso que nos humilhava ‘As casas se superpdem: ade Mata-cavalos e a do Engenho Novo. “Diz-se que o Brasil é um “Nesse estabelecimento de pais nove; sim, é um pais novo paralelo com a cultura brasileira, oe nt eee onarrador de Dom Casmurro um pais velho’, afirmou outro ignora 0 que nao the interessa, Cee se o que tem pela frente veio de Aescravido, esse sistema ai injusto crticado por Nabuco. baixo principalmente, e fecha-se Gartamente shitannars nanos: no seu subjetivismo extremado, sa memoria @ na nossa cultura, di nos acompanha, a ponto de até encarcerado na casa que acharem natural que as coisas mandou construir a imagem e se passem como se passam, A “porque ja se diluiu no sangue’, semethanca da de Mata-cavalos’ completa Nabuco, numa ex- press8o adomada de clichés. 22 CONHECIMENTO PRATICO- LINGUA PORTUGUESA E.LITERATURA poderia aplicar a nés também, se nos tivesse ido —, os que esto de cima nem reparam nos que estdio embaixo, a ndo ser muito casual- mente, quando um deles aparece fisicamente sua frente, Num trem, por exemplo, Por seu turno, o agregado José Dias, outro “dependente” desse jogo de poder, sabe que Bento Santiago logo seré o dono de tudo. f um senhor, no sentido pleno do termo: 0 ter- mo originério latino para isso 6 “domus’ sa do senhor”, “familia”, de onde saem “dom” (0 dos tftulos eclesidsticos ou de nobreza), ‘dominio’, “dominagao”, “dominador”, “do- mingo” — e “domieflio”, casa, enderego! Até ‘mesmo o substantive “dom”, talento inata pelo qual alguns se distinguem da massa hu- mana. Em tudo se aspira ao elevado, ao supe- rior. Efoi assim que aleunha que receben do “meu poeta do trem” no o desagradou; até mesmoo embeveceu. Nacasa do Engenho Novo mandau também reproduzir, além da arquitetura e da aparén- cia externa da velha casa de Mata-cavalos, os medalhies de certos senhores do passa- do classico romano que ornamentavam as paredes da sala principal. L4 continua riam reinando, absolutos, gloriosos, como se fossem o espelho do ocupante: "Nos quatro cantos do teto as figuras das estagdes, € 20 centro das paredes os meda- Ihdes de César, Augusto, Nero ¢ Massinissa, com os nomes por baito... Nao alcango a ra- 240 de tais personagens. Quando fomos pa- ra.acasa de Mata cavalos, jé cla estava assim decorada; vinha dodecénio anterior. Natural- mente era gosto do tempo meter sabor classi 606 figuras antigas em pinturasamerfoanas. Uma casa 6, pois, mais do que uma ca- sa, £ um estado de alma, um desejo, uma reminiseéneia, e um sonho que no quer saber de dissipar-se. A pretensio de Ben- tinho, concretizada na casa definitiva do Engenho Novo, nao pretende esgotar-se Protende ficar, Dai, cartamente, terem as suas paredes grossas de convento @ ali- cerces firmes assegurade a esse senhor enraizamentos oulturais profundos. Com certeza uma casa brasileira Gam 1 casa-Grande Senzala 2 PaulThomaMann 3 GybrgyLukser ou 4 Ealtora Maya & (0975-1955), ‘Geora Lukas # ‘Schmiat 3933 Excorromansta enese— BBS-AO7D) Mocosoxtiage min eaisizeeriiensocal Fl6sofp erica iNratog nro Clears ‘Saimparn Aleman tendo strode eernno nung acressisamper- _recebeoo Nobel oe ro.Comocriica era forcinstecitir” — Sioumaremaces ern oon: I nosenro Se ae So saisewro nas secre a see es eet an oe ee ay Se one a ee See CCANDIDO Antonia Literatuea Paulo Global 2003 -callura de 1900 0 1545 LuKACS, Georg, Thomas Mann ipanctams para esrangeios) ea ragicas davarte madera In. CANDIDO Antonia, Letalira ip, LUKACS. Georg Ensoios ‘esooiedace oxtudon de tore Soave Votura Tad de Cares -e historia iteraria, 5 ect rev. Nelson Coutinho, 2. ed Rio de Peete dae aeexe, SioPauio Comporna cate avaro Cnlaasae restora fleas come Wao Nocional 1976 9100-18. Taos p wraes sheapae Dusan FREYRE Glberto Caza rondo NABUCO, Joaquim 0 annocinento to tng ‘sere formacio da fama abalcorimo 5s esti Fema ntact Draslevasobovegmeda SenadoFederal 2010 Eigdes feo seas do sto Pas feeonomia patrarcal 48.4 So do Senadio Feseral 7h ESCHITAVIVA 23 foco PIE Remeédio?! Quando a poesia e outras manifestacdes artisticas tornam-se necessarias para ocombate aos males da vida stamos viveneiando um momento na historia da hus manidade que tem a satice como elemento fundamen: lal de busca de felicicade numa so- cledade doente em muitos aspectos. A pandemia trouxe muitos agravan- tes socials, psicolégicos ¢ econd- micos, mas ainda ndo sabemos os reflexos que isso trara daqui.a algum tempo, pois a historia nos ensina que ‘outros efeitos de uma situacao des- sa dimensdo sero verificacos com ‘mais preciso somente mats adiante, Ouitro fato que ficou evicente nesse processo de compreensio de um instante caético foi c extramismo po- Iitico @ religioso diante de questoes que ha muito foram devidamente es- clarecidas pela ciencia. Ate mesmo. @ suposta cura para tal enfermicade fo) questionada por questoes ideolo- gieas. O remedio cantra a ignorancia © oconhecimenta e a consciencia Sobre a estrutura dos fatos ena modo como eles se constroom O remeédia que tanto queriamos para uma solugac rapida nao existia @ ficamos meses trancados em casa ‘com a morte varrendo as ruas vazias. ‘Uma das solugSes encontradas para que a loucura nso nos sufocasse fol comecar a olhar para sie para ‘© minimo espaco (quase) sadio ao redor A intetiorizagao ea busca de sitornaram-se mecanismos funda- mentais para espantar a ansiedade ‘que muitas vezes rumava a loucura. Enquanto 0 remédio para a doenca nao era criado, © ser humano come- ‘cou foreadamente uma busca pelo temédio da ressignificacao das rela- ‘ges com 0 espace e com ocanvivio. continuo com 0 mais abismal dos sores. Nosse cantoxta de grave crise saritaria, muitos amores ¢ amizades se esfacelaram nesse exercicio de ‘compreender 0 outro na sua totall- dad. ja que esse contato passou a set continuo, diano ¢ total ‘Ags poucos os habitos foram mu- dando nesse isolamento social. ¢ quando menos percebemos estava- mos olhande de forma diferente para um facho de luz que invadia 0 va0 dajanela e criava um desenho na parede ouno cho, Pesquisas dizem ‘que as pessoas comecaram a es- crever mais. principatmente relatos blograficos, O desenho, a fotografia ea musica retomaram antigos espa- 08 esquecidos. Percebemos que all estavam alguns remedios para uma doenca de fora cujo contexto causa va.adoenga interna, Precisswamos de uma resducaccio dos sentidos? A velociclade da vida ‘moderna ea imposicao de necessi- dads trazem nas asas um voo que se ontenta com o obvio eo servitismo mercadiologico.@ isolamento des- onstrulu provisoriamente esse pro- cess0. a inércia pouscu sobre o corpo, 805 olhos viram-se aprisionados ante quatro paredes, tendo na fresta de Umajanela semiaberta um pouce de esperanga em forma de luz. As pe- ‘quenas coisas que passavam desper- Cebidas comecaram a ser notadas. 0 filosofo Henri Bergson dizia que uma ‘@ducacae dos sentidos é necessaria, para compreendermos nossa vida 20 nos relacionarmes com 0 espaco aoredore ‘essa edticardo tem por finatisecte harmanizar meus sentidos entre si. restabelecer entre seus dacios 24 CONHECIMENTO PRATICO- LINGUA PORTUGUESA ELITERATURA, urna continuidade gue foi ompida peta propria descontinuidade das necessi- dades do meu corpo, enfim.reconstruir proximadiamente a totatidace do objeto materia’ LIVROS, LIVROS A MANCHEIAS Durante 0 periocio mais critico da panclemia eresceu enormemente a compra de livros pela intemat. muttas pessoas que nao tinham esse habito acabaram gostando do que ex- perimentaram. A literatura nao tema fungao de salvar vidas, mas cada um s@ apropria de algo de acordo com suas necessidacies’e multas vezes ‘e5sa apropriagdo vern em forma de reméciono sentido que ameniza an- gistias, ansiecades, pensamentos re- Petitivas.e ate 0 tedio. © poeta Percy Bysshe Shelley, no seu fundamental enssio Uma defesa da poesia, diz que ‘ocultivo da poesia nunca deve ser mais clesejado do que em periodos ‘quando die um excesso de principio. egoista e colculista, aacumulacao de materiats da via externa excede ‘@quamtidacle de poder capaz de as- Similé-los 4s les intemnas da natureza humane’. Certamente que Shelley 2 refere ds questOes materials que envolvem a vida, masisso também se direciona a possibilidade de um othar que se volta para si, justamente por ter que se distanciar das questoes materiais devido a0 ato primordia de reservar a vida no isolamento, Essa situagao fol contestada pelos segui- dores do negacionisme que nao acel- tavam 0 isola mento ¢ queriam voltar 20 contalo social para continuar seus ganhos materials, mesmo com tantas pessoas morrendo 20 redor, O poeta inglés fala especificamen- te de poesia em seu ensalo. mas, como sabemos, poesia ¢0 elemento de efeito estatico/suibjetivo ‘contido” fem algo, ¢ nde apenas 0 que se de~ homina como “beleza estética’ numa obra artistica: e esse “algo” pade ser multe variavel. A fungao podtica dita L por Shelley nao se instaura apenas ra escrita eleltura de poesia mas no elemento mimético proporcionacio pelas artes para se ressignificar as coisas a0 nosso redor Desde 0 inicio da humanidade ohomem busca a re- presentago mimética, seja nas pin- turas rupestres, seja na estética dos objetos ublitarios. A arte teve uma: Funeao importantissima para multas pessoas no periodo mais crtico des- ta ultima pandemia, Obviamente que para muita gente a arte continuou. ao significando nada, mas a arte nao tem essa fungac especifica dle cura ou de didatismo para explicar as coisas de moda diferente, Piorre: Francastel nos diz que algumas ve~ +205 a sociedade foi ‘mais bem ana- lisada’ por artistas do que por histo- riadores ou socidlogos. justamente pela neutralidade de posicionamento Ideotogico que contem tal analise, Os livros ce autoajuda também foram muito procurados durante o isolamento pandémico. mas eles no. abordam especificamente a mimesis tratada por Aristoteles.e a funciona lidade desses livros esta atrolada ao ato de oferecer “pilulas magicas” para issipar dores. alm de se tomar um nicho de mercado bem rentavel para alguns. A literatura nao é remedio, conttariando o titulo deste texto, mas ela possibilita o desencadeamento Ge profundas reflexbes sobre a vida, ja-que 05 elementos simbaticos tec- nicamente oferecidos polas figuras de linguagem tem papel fundamental a estruturacao textual. Fala mos aqui inicialmente de literatura, mas isso vale para todas as artes, uma vez que para todas elas existe uma organiza- {do tecnica /tedrica que envolve seu desenvolvimento Antonio Candido afirma em O direito 4 literatura que (SO *aliteratura confirma e nega, propoe ‘edenuncia, apoia e combate. forne- cendo a possiblidade de vivermos diateticamente os problemas”. NBo & por acaso quea arte, a educacdo.e a cultura Sao 05 primeiros alvos dos governas ditatorials Segundo Aristateles a arle deve buscar a esséncia profunda das col- as 6 naa coplar sua mera aparencia, Jsso Ja nos fornece uma possieil- dade imensa de reflaxde sobre a ‘elementos simbolicos al tratados Esse suppsto remedio que a arte traz ‘escondido 8s vazes pode ser amargo, 38 que a arte nao quer ser uma pilula magica de autoajuda. mas simum ‘caminho de descobertas que va se abrindo como na "Maquina do mundo” de Drummond. 10 fil6sofo pragmatico Richard Rorty, acometide por um cancer €j@ lente pelos medices da ineficacla do tratamento, lia compulsivamen- te 05 poomas de Shelley, Ofilho de Rotty. 20 ver o pal iendo um poela romantic, questionou-a se 0s livros de conteudos filoséficos ou que re- ‘metiam a espiritualidade nao fariam mais sentide naquele moment dificil. filasofo responideu ao filho que somente a poesia trazia um alento ©, ‘completou.“cuspeito que nenhum efeito comparavel poderia ser pro- Vocado pela prosa” Muitas vezes a ‘poesia fot ida como “perfumaria’.na ‘qual a sua ublidade era embelezar e erfoitara vida ou sentimentos nobres pormeioda linguagem: A flosofia Pragmatica tem 0 conceito de quo.e ‘Pensamento produzido teoricamente tenha uma eficacia para resolucao de determinado problema. e um de ‘seus maiores tepresentantes coloca poesia como um "temedio” para o ‘Serno momento mais dificil de sua Reflexaio de Ninil Goncalves vida. Rorty escreveu sobre isso no ensalo "Fogo da vida’ & nesse texto, ele afirma que ‘como quer que tenha sido, agora gostaria que tivesse pas- sao mais tempo da minha vida com versos’ Muito alm de terapéutica, a lteraturae as artes, em geral, tazem ‘em si um proceso de reflexao sobre: (0 Ser e tudo aquito que ete vivencia, onstituindo assim um processo de ‘conscientizagao que, segundo Paulo Froire, nunca deve se findar par estar em continua transformagao, No meu primeito texto desta colu- nada revisla escalhi o tema da arte como remedio aos males da vida e trouxe brevemente algumas reflexces sobre a necessidade desse medica ‘mento em tempos to arciuos. A pro= pra revista e toda a sua diversidacie de informacdes e reflexdes voltadas as artes €s linguagens nao dela de ser um remadio numa epoca de oucos suplementes literérios que possibilitiam um dialogo pleno desta rea com todas as formas de arte. Im PERCEON ent Menara Paso 2006. ANDDO Ano vores ‘Servos orasobre ant eoldade fect Ps oats Sto no. 1078 RORTY Rona Te fre fe Pty Fourier heaga ix 2007, Dispomvel om hitps??” sea postfouncaion weaata neo cca am 2028, SHELLEY Poy Byte Ue defen aa oes NINIL CONCALVES «posta. roaster, ftoarle acs sWies.Gaduado en Letras, masta doutorom Edveee80 Papen ns ssorse eh ftogrta sansa terres Pons Abeoeses GOI) RypesAusaneaoace) same anspor a ‘slgumascoletaroas Fotografia stra nos Coe (2014 Crates 201, Cstinos Taam Marios. 0s 20) our eres ftosrafica Tokio tment ds ADL (2018) Enaioe tics co Enso CID, Extabca io Lebo GOI, Edueaders musts 22) ene Ao ESCHITAVIVA 25 perfil Heloisa Buarque de Hollanda Texto dle Juarez D. Ambires as quintas A “velhinha antenada”, como ela se autodenomina, mantém relagao entre cultura e desenvolvimento, com foco na poesia, na produgao periférica e nos meios digitais décima mulher a preencher para 14 A« condignamente uma vaga no es- -pago cultural mais reverenciado de nossas letras, a Academia Brasileira de Le- tras (ABL), fundada em 1897, é Heloisa Buar- que de Holanda. Bla passa a ocupar acadeira 30, que foi de Nélida Pifion, falecida no ano passado. O pleito foi quase a totalidade dos votos. Dos trinta e oito possiveis, Heloisa ob- teve 34, prova acima de tudo do seu prestigio intelectual. 6 prova ainda do reconhecimen- to por uma luta engajada que envolve temas. cruciais do nosso presente. Heloisa vem de uma geografia essencial do pensamentobra- sileiro, que 6a universidade. Trabalhou anos com Teoria da Cultura, na Escola de Comu- nicagAo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Veio a se tornar, depois, professora emérita da instituigao. Nela, iniciou no ma- gistério em 1964, coma ditadurajéem curso. Como professora que foi e 6, na Academia fax parte docireulo dos grandes mestres uni- versitarios que ascenderam Acasa, oque no é fato nem corriqueiro, nem antigo nos mais de cem anos da ABL. Com isso, ja antes da posse, figura ao lado de outros professores, como Cleonice Berardinelli e Alfredo Bosi, ambos infelizmente jé de saudosa mem6ria. Referimo-nosaindaa outros mestres, em his- Urico mais escolar do termo. Além do magis- tério, as atividades que a levam a Academia sto as de ensaista, erftica literdria, curadora de exposigdes e pesquisadora. Na formagdo universitaria, Heloisa vem das Letras, curso que frequentou na PUC do Rio. Sua formagao na licenciatura 6 0 Grego Classico, a Anti- gutidade. Na sequéncia dos estudos, todavia, ela se volta para 0 contemporaneo e nisto vem entre nés a se notabilizar, a se tornar referéncia. Oconhecimento, comosevé, éoqueestana base do seurenome, da sua envergadura inte- loctual. f, por exemplo, no Brasil, um dos ico nos do nosso movimento feminista (ver box Astrés ondas), doqual ¢militantehistériea, referéncia entre nés hé bem cinco déeadas. 26 CONHECIMENTO PRATICO-LINGUA PORTUGUESA ELITERATURA Mas, no inicio dos anos oitenta, Helofsa pas- saa ter nova visio. 0 episédio 60 de sua tadia em Colimbia, em pesquisa para o seu p6s-doutorado em Sociologia da Cultura. 0 fato mais uma vez indica o seu constante di- logo com c entre areas das Humanidades. Nos Estados Unidos, ela aprofunda suavistio do nosso movimento feminista e 0 reconh ce como representagao de aspectos tinicos. Na atualidade, 6, sem engano, a maior re- feréncia tedrica das nossas feministas. De 2020 para cé, esté na edigao do seu quarto titulo que historia contemplagiio, 0 refrigério do espirito, 0 alimento da alma, tudo, menos o palpavel ou a atitude inovadora em termos sociais. Em certa mentalidade burguesa, é aberta- mente instrumento natural de excluséo, 6 arma da manutengao de privilégios de classe, da sustentagiio de um quadro so- cial que se quer inalterado. Para Heloisa, apalavra (literéria ou no) é para todos, & agente do subarbio a lé com competéncia c.a faz com interesse. O tempo para 08 po- bres ou para as classes médias ericas é quem depura, Separa e teoriza essa cultura que, no “O conhecimento, primeiro os empenhos persit mundoe aqui, j4 conhecen fases ae ‘tentes: depois, os talentos ver- © 6das mais importantes como se ve, € 0 dadeiros. ‘Todos, entretanto, que esta na base naesteira de Antonio Candido, “VELHINHA ANTENADA” Sobre o feminismo ou nio,a GO Seu renome, da tém direito A literatura @ ela pode, sim, ser instrumento de verdade 6 que Heloisa é a mu- sua envergadura ascensio para talentos diver- Ther dos livros. Bla gosta do ob- jeto ¢ da sua edigdo. Dirige ha intelectual. E, por 0s. Quando pouco, ela é mei de antoconhecimento e, por is- tempos a Aeroplano Editora, lic ~exemplo, no Brasil, UM 50, 6de fato necesséria. gada A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). De modo dos icones do nosso Assim, buscando quebrar os paradigmas conservadores algum, todavia, esta na contra movimento feminista, aa universidade, Heloisa or- mao do presente. Tem verda- do qual é militante ganiza e dirige 0 “Programa deiro interesse por tecnologia Avangado de Cultura Gontem- eé uma conhecedora das suas ~=—-—siStorica, referéncia _pordnea’, na UFRJ. Coordena competéncias, da importdncia entre nés ha bem ainda, multitarefa que 6, 0 “E6- da internet e dos espacos posi- rum M" - espago aberto para 0 tivos e motivados que ela pode cinco décadas" debate sobre as questées que abrir, Brincando, ela mesma diz que é “uma velhinha antenada”, Ainda segundo ela, a tecnologia e a internet no promoveram a superagdo do livro, su: as referéncias altamente positivas. Em seu universo existencial, inclusto é um vooabu- lo necessario, de verdadeira importancia. Bis entdo 0 porqué de o livro ser essencial nas maos dos mais humildes, dos postos & margem. Conforme a professora, 0 dominio da palavra para os destituidos é inclusio, 08 mais pobres gostam do livro, querem-no. Monte quem diz.0 contrario. Para algumas representagdes burguesas, a palavra tem vinculo com outras serven- tias, representa outros valores. Pode ser a envolvem a mulher na univer- dade, Segunda coordenacdo sua recai paralela e brilhantemente sobre 0 “Laboratorio de ‘Tecnologias Sociais do Projeto Universidade das Quebradas’. Fi se laboratério, nasua vez, encarrega-se da aplicagao de cursos de extensdo da UFRJ nas periferias do Rio. Com isso, 0 que 8° busca é estender aspectos da cidadania para Areas mais distantes, onde o brago do Estado tem agao parcial, limitada. Pre- senoiaisou remotos, os cursos de extensdo das Quebradas difundem os valores ante- riormente elencados ¢ tentam dar vex 6 vor. a gente local para suas manifestacies de literatura, miisica e outros contetidos. ESCRITAVIVA 27 perfil Heloisa Buarque de Hollanda Para nossa mais nova académica, se nfio houver contatos sérios ¢ rompimentos sin- ceros, nao se transpée uma estrutura de do- minagio. Os periféricos, na vez deles, ficam ainda mais submetidos a falta de opeao que otrafico eo crime armado lhes impem, mas também o Estado burgués. Agindo assim, este no justifies as causas histéricas da sua eriacdo que prometeu na origem ser ao As trés ondas Movimento feminista ¢ a historia do feminismo e de pensadoras feministas De acordo com a data, a cultura eo pais, feministas ao redor do mundo tiveram muitas vezes diferentes causas e objeti- vos. A maioria das historiadoras feministas ocidentais defence que todas as acbes organizadas que trabalham pela obtencAo dos direitos da mulher devem ser consi- deracas movimentos feministas. Mesmo que as acdes nae usem 0 termo “femini mo’ para se apresentar, devem ser vistas como prattica feminist. Qutros estudiosos Ja defendem que o terme deva ficar restri- to.aos movimentos feministas modernos ea suas extensoes, Esses pesquisadores utiizam 0 termo “protafeminisma” para descrever movimentos mais antigos. Aistéria dos movimentes feministas madernos no Ocidente é cividida em trés ondas. Cada uma é descrita como pre cocupada com diferentes aspectos dos mesmas temas ligados a mulher e sua historia. A primeira onda refere-se ao mo- vimento desde 0 século 19 até o comeco ‘do 20, que lidou majoritariamente com 0 sufragio das mulheres, direi tas e educacionais para elas e as meninas, A segunda onda (décadas de 1960 a 1980) lida com a desigualdade das leis, com as desigualdades culturais e com 0 papel da muther em sociedadle. Jé a terceira onda (Fim da década de 1980 e comeco da dé- cada de 2000) € vista como uma continu- ‘agao da segunda e como uma resposta as falhas nela percebidas 28 CONHECIMENTO PRATICO-LINGUA PORTUGUESA E.LITERATURA, menos mais progressista. Dessa forma, en: tretanto, para Heloisa nada de se pensar que periféricos séo coitados, vanios de contetidos ce incapacitados de os criar. Longe disso. Bom senso ¢ competéncia sdo poderes bem distri- buidos que chegam a todos os enderegos. No teor de suas palavras, brancos privilegiados ‘como ela tm de promover a divisio dos bens recebidos social ¢ historicamente. A aber- tura epistemolégica da universidade, do co- nhecimento académico para isso é essencial, e Helofsa generosamente ao fato se filia, [PORSIA NO TOPO DAS CRIACOES Neste perfil, caberiam ainda e por fim ‘mendes a Helofsa dos anos sessenta e seten- ta, figura atuante, corajosa e publica. A épo- ca, suas ages, & medida que se piem contra aditadura, mais se abrem A poesia, que, para ela, 6a maior de todas as criagies. Fla chega a0 parecer le que.a mesma poesia é prima-ir- mé da filosofia o, por isso, ensina a pensar & precisa ser praticada. Devido ao fato, naque- le episédio, volta-se para a poesia marginal. 0 Rio torna-se assim uma geogratia de ag%o © 0s poetas marginais reinam na contramio, na contraordem, na contracultura. So Pau- Jo, na sua vex e na oposigao a isso, esta com os poetas do Coneretismo (ver bor Poesia também é imagem) que pregam o fim do verso. Heloisa, entretanto, congraga-se com os marginais de sua quase terra natal. Des- se modo, foi das primeiras vozes a teorizar 0 movimento, a buscar filiagdes, alevé-lo& uni- versidadee a confraternizar comos seus poe~ tas, sob suspeita, na Academia. Assim, Cacaso, Chacal, Teminski e outros esto em sua vida e tornam-se amigos de sempre. A poesia, parte to especial e mate~ rialmente fragil do movimento, passou a ser para ela um o4sis em meio A repress%io mi- litar. Papel, mimedgrafo, grampo, tesoura eram a base de uma produc&o artesanal, A insisténcia estava no fato de que, segundo a conoepedo do grupo, a literatura nao depen- dia de Gutenberg. Queria se dizer com isso queela nao dependia da imprensa, de uma vi- so capitalista que a enquadrara até entiio. A Poesia também éimagem © Coneretismo 6 um movimento artistico brasileiro que se inspirou na arte abstrata da Europa do século 20 € que teve na poe- sia a sua maior expressao. A poesia concre- tista propde a aboligdo do verso tradicional @inclui o.elemento visual. Para o posta concreto, além de palavra e de som. a poesia é também imagem, Comecou a ser praticada no Brasil com a publicagao da Revista Noigrandes, em 1952 Ela 6 produ- ¢80 dos postas Décio Pignatarl e Haroldo e Augusto de Campos ~ expoentes dessa vertente atistica no Brasil. No entanto, 0 Concretisme oficiaimente <2 inicaria no Brasit apenas em 1956 A epoca, sua base foi a Exposicao Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Maderna de Sao Paulo arte literdria nascera antes disso e sem isso viveria. Nessa acepedo, a literatura néo de- pendia dos meios oficiais, néo precisava do seu consentimento ou da anuénciadaordem. Por meio desse modo de se ver a arte, vivia- -se 0 desbunde, termo muito em voga & épo- ca. Vivia-se uma liberdade muito tocada pelo movimento hippie que por aqui se estenderia um pouco mais, A palavra de ordem eva, em esséncia Glti- ma, juventude, e Helofsa com sua sensibili- dade to social percebia um conceito ¢ ainda outros, como feminismo, com os quais a nos- sa esquerda ainda nao sabia lidar, quanto maisa ditadura to repressiva. Noepisédio, 0 sinal visivel de sua agao foi a organizagao de uma antologia. A publicagdo ocorre em 1976 © 0 contetido do livro é obviamente a poesia marginal. 0 titulo ao qual se chega 6 26 poo- tas hojo, na atmosfera irreverente ¢ coloauial que se queria, Parte da selecio sera a poesia de Ana Cristina César, cuja pessoa 6 escri: ta Helofsa conhecera ha pouco, mas na qual rapidamente percebeu o talento maior. Nao muito depois, 0 movimento reconhece os li- mites da sua fugacidade e ocorre a dispersio, o enquadramento noutras ordens. Uma pau- ta, entretanto, se firmard e,em nossa leitura, Helofsa seré entre nés um dos seus mais for- tes legatrios Sua eleigdo para a nossa Academia Brasi- leira de Letras dé-lhe maior visibilidade e, na extensio, ao legado recebido. Ela, contu- do, também 0 criou, também o estendeu, es- tudou, sentiu, pensou, divulgou, Palavras que se registraram nesse perfil tentam apre- ender Helofsa, mas, gracas a ela e a outros, esto presentes nas pautas que tendem ase. revelar mais humanizadas que outras. Se 0 Movimento Modernista vai falar em cotidia- no, em vida comum e despojada, entra nés dos anos setenta para c4, areferéncia éocaos urbano ea periferia ou a quebrada. Nela, est amaior parte das minorias que vio se desco- brindo sempre maiorias, Helofsa sabe desses: fatos todos @ sempre convida a reflexio so- bre eles. Sabe que os seus desdobramentos, gritam ¢ fazem sofrer os mais vulneraveis. As palavras esto na boca de muitos, mas na consciéneia de uns poucos. Atentemos para elas: exclusdo, inelusdo, mulher, negro, in- dio, homossexualidade, teoria digital, divei- to, acessibilidade ete., etc. co 1 Habs ions mers urs ane do Monn aka cnr Ponca eee GLE vunrezvowzers ferrites frm AMBIRES 2 eutor em Leer slider enbiare Brasil pela USP. professor ce roots ances lngae portuguesa ma Facutende do Expiaoforist Comercio de So Poulo professor de ‘pine errs IMeratua em cusso de especiiza¢30 rnaFaculdase da Dieta de S30. Bernardo de Corpo rovsor para editors arszambensyahoocom ESCRITAVIVA 29 capa Inteligéncia artificial Serao | Bo fing 10 o fim: Maquinas e assistentes virtuais otimizam o acesso a informagao, potencializam 0 armazenamento de dados, produzem textos eresolvem calculos auma velocidade que 0 cérebro humano nao consegue atingir. Mas a lA pode argumentar, refletir, raciocinar? Texto de Abrahao Costa de Freitas Sl (=lis-] [pele lo elon lips |) (r-To]=t1-1g) gel ps =1=r- eee le] falgetunls1el-1g1s (enna 101) [61 8) forele(gtia (er Me] 6M) 10a l Slag --Waleia la) psicologia humana e novos rumos Meats) sel t-s —las|olee ‘eventemente, nos vimos as voltas nee “A EUR ee cere capaz de responder a perguntas e produzir Cun ont Onno Pisa nett trie oray ted ROMs ntti er ea ea Oyenec en rein ee Commitee sono CO arene tes orc etna Cre trtareen ie iui seco nts} Pees Rese tase nt tte me Mentos ear artificiais criados para substituir 0 ho- Serie meine et One oreo Peeocncnrae accrues kero gia, nada havia abalado tanto a sociedade omnia aerate some tee Pirate meee iaccentur aerated Rose wre eee Rone Ce crete ig Coe COMME Une unt tora SCE Uae Rae Conn nC que regula ¢ controla parte signiticativa Cerin tet ee marcel s Sire c on ort ene mos conhecer sobre o mundo a nossa vol- Ce ea eae ore ro ee eee Rt Chie no reo eee Men ae Coen ac) Petree tanec mts rent EA capa Inteligéncia artificial Imersos nease regime de informagéio, nos imaginamos tio auténticos ¢ criatives que nem nos damos conta do quanto a nossa auten- ticidade e criatividade so determinadas por um intricado sistema de algoritmos que nos escapa ao controle. O conjunto de truques ¢ artimanhas digi- tals utilizados nesse proceso de construgao de informacao ¢ conhecimento deixa evidente ‘© que muitos se recusam a admitir: 0 mundo digital controlae regula as agdes ¢ relacdes do mundo vivido. Bssa coagio sistémica do regime da infor magio transforma a comunicagao em um sis~ tema de Vigilancia, que tem como regra aquilo que Byung Chulifan chama de “paradoxo da sociedade da informacao”. Aprisionadas nas informagdes, as pessoas no percabem o siste~ ma de vigildneia constante ao qual esto atre~ ladas nem se do conta de que nao so elas que esto livres, mas as informagaes. A légica da exibigdio transformaadominagio om uma iluséo de transparéneia, que oculta as intengdes de um regime de informagao ca: da ven mais abrangente ¢ totalitério. Enquan- to nos imaginamos em liberdade, nossa vida é cada vex mais submetida a um controle quase que total de agdes © comportamentos (ver box Eletros inteligentes). Para nos dar uma ideia de como esse proces- so se naturalizou em nosso cotidiano. a ponte de jé nem percebermos 0 quanto ele 6 perver- 80 ¢ impiedoso, Byung Chul-Han utiliza como exemplo pontual a loja da Apple em Nova lor: que. Erguida como um templo da transparén- cia, € um enorme cubo de vidro que, embora “sugira liberdade e comun: realidade “incorpora a dominagao impiedosa da informagao”. Aberta dia e noite, 6 no subsolo que as ven- das acontecem. Para 0 filésofo, esse detalhe, aparentemente banal, deixa claro 0 que to- dos nés jé sabfamos; “a transparéneia nunca é ‘transparente.” Porisso, para falarem inteligénciaartificial, é preciso nao apenas entender o que ela repre- senta ¢ significa, mas também revelar o poder da vez maior da caixa-preta algoritmica*. Eletros inteligentes ‘Acomodidade que a tecnologia nos trouxe pa- rece tao ébvia e incontestavel que quase nunca paramos para pensar no sistema de dominag3o que ela oculta Incorporados ao nosso cotidiano, os gplicativos dee busca, os assistentes de voz ¢ os smart apps ‘540 quase como ‘membros da familia’: Poucos ‘consequem imaginar a existéncia sem 0 auxilio luxuoso de um smartghone ou de um chatboot Acontece que esse luxo todo tem um custo, que ‘vai muito além do valor que pagamos por este ‘ou aquele dispositive e/ou aplicativo. A comodi- dadle e conveniéncia que eles nos trazem tam- bem vem acompanhadas cle olhos e ouvidos que saltam das paredes para as maquinas ‘Acasa inteligente se transforma em uma es- pécie de prisao digital que monitora e controta minuciosamente 6 nosso dia a dia. © robo-aspi- rador. que nos ajuda na limpeza daqueles canti- nhos inacessiveis 4 vassoura, também mapeia a nossa casa. A cama inteligente, conectada aos seus muitos sensores, vigia inescrupulosamente ‘9 n0350 sono. ‘Qualquer inocente olhadela em um site de busca ‘ou plataforma de streaming expoe sem pudores nossos habitos, gostos desejos mais secretos, Contrariando as previsdes de guerra entre humanos e maquinas, dominio da inteligéncia artificial sobre a humanidade tem se instaurado ‘dle maneira bem mais sutil e imperceptivel do ‘que sugerem os filmes de ficgdo baseados em catastrofes ou distopias apocalipticas. RACIONALIDADE DIGITAL, Emboraao longo do tempoa nossa espécie tenha se tornado cada vex menos vulneré- vel aos caprichos ¢ As vontades da nature: za, a partir da primeira revolugao industrial amaioria de nossas atividades passou a ser controlada por um mimero cada ver, maior de maquinas artefatos teenolégicos. Com isso, a nogao que.a maioria de nés tem do tempo e da relag&o com as pessoas pa 32 CONHECIMENTO PRATICO-LINGUA PORTUGUESA ELITERATURA aserregidae determinada pelasmaquinase por aquilo que elas nos levaram a inventar e imagi- nar. Para medir o tempo inventamos o relégio, para nos relacionarmos com as pessoas imagi- namos comunidades que nada tém a ver com a nogdo ancestral que tinhamos delas: grupos li- gados por um conjunto de tradigées locais e es tabelecidos a partir de uma economia de trocas e favores voltados para a subsisténcia. Nas comunidades imaginadas do século 24, a percepedo que se tem da sociedade ¢ do outro jnndo 6 mais a mesma. O regime da informagdo transformou por completo a relacdo que tinha- mos.com o mundo ecom as pessoas. A digitaliza- cdo do mundo redesenhou nossa ordem social, promovendo uma revolucao cognitiva que deu outro sentido a psicologia humana e novos ru- mosa vida cotidiana das pessoas. A transigéo do mundo agricola para 0 mun- do da indistria e, posteriormente, do mundo industrial para o mundo digital instituin di- forentes tipos de racionalidade, provocando mudangas muito sutis na forma como produzi- mos, distribuimos e assimilamos informagio conhecimento. Nas iltimas décadas, 0 acesso quase ilimita- doaosartefatos digitais criou uma orgianocon- sumo de informagdes, que pode ter espalhao as primeiras sementes de uma catéstrofe futura. A mesma embriaguez da informagtio que nos maravilha ¢ assombra pode nos deseoncertar ¢ entontecer: Oavanco implacdvel da digitalizagaodomun- do produziu, de maneira impensada.e imprevist vel, um novo tipo de racionalidade que substitul a I6gica do discurso pela preciso dos dados, tornando obsoleta toda ¢ qualquer ideia de ago comunicativa (ver box Machine Learning’) Diante disso, chegamos a desconcertante con- clusio de que a racionalidade digital nao funda- menta nada, apenas calcula, A massa pura de informagdes com a qual trabalha é to volumosa que ultrapassa aquilo que Hiroki Azuma chama de “racionalidade limitada dos individuos’, Isso n&o apenas entorpece a comunicagao entire as pessoas, mas também invalida os an- tigos pressupostos e postulados sabre o que 6 informagéo, conhecimento ¢ aprendizagem. A "Nas Ultimas décadas, 0 acesso quase ilimitado 20s artefatos digitais criou uma orgia no consumo de informacées, que pode ter espalhado as primeiras sementes de uma catéstrofe futura. A mesma embriaquez da informacdo que nos maravilha e assombra pode nos desconcertar e entontecer" prépria coneepedio do que é humano foi ba- ralhada com o advento do big data’ A ideia de que tudo pode ser transfor mado em dados, de preferéncias pessoais a biologia do corpo humano, transformou, 0 dataismo? em uma espécie de euforia gue beiraodesatinoe podelevara umacri- se do saber, da cultura e da inteligéncia. Osabertotaldataistaéumtipodeconhe- eimento que corrompe e invalida o pensa- mento, porque, como diz Byung Chul-Han, “ndio é alcangado pela narracéo ideolégica, mas pela operacdo algoritmica’. (O REGIME DA INFORMAGAO Se, como quer Foucault em As palavras eas coisas, “o ser humano é uma inveng&o cuja data recente a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente”, a inte- ligéneia artificial 6 um subproduto dessa invengao que aos poncos vai amadurecen- doe extrapolandoos limites do natural pa racriar um real imaginado que ultrapassa as fronteiras ¢ os limites do corpo e inau- gura um nove capitulo na histéria de nos- sa relagao.comasmaquinas. Um capitulo no qual a digitaliza~ eGo do mundo ¢ o regime da informagao transformaram por completo a ideia de ESCRFTAVIVA 39 Machine learning ‘Acctlacdo da racionalidade digital ¢ da inteligén- cia artificial é uma aventura que teve seu inicio ha cerca de 70 milanos, quands aconteceu a revolucdo cognitiva que levou 0 ser humano ao topo da cadeia evolutiva Isso nos permitiu ex- pandir nossa capacidade de dialogar para além do abjetoe possibilitou a troca eo compartitha- mento de informacdes essenciais para nossa sobrevivencia enquanto especie. ‘Acapacidade de transmitir informagoes sobre algo que no existe no mundo fisico nao apenas ampliou as nossas habilidades ce cooperacao, mas também possibilitou a criacdo de um mun- do imaginado que nos levou a fabricagao de mits, lendas € civilzacoes, ‘Apartir dai a nossa historia passou.a ser deter- minada por uma série de pequenas revolucées. que pouco a pouco foram modificando a nossa percepcao do mundo e de nos mesmos. ‘Altima e mais significativa foi a revolucéo clen- tifica, que ha aproximadamente 500 anos nos deu a consciéncia de nossa propria ignorancia @ acendeu em nds 0 desejo pela descoberta, Nosso fascinio pelas maquinas nasce desse desejo de criar condigoes para que o mundo e 34 ESCRITAVIVA seus recursos se torniem cada vez mais acessi- Veis para nos e como minimo esforco possivel. Ainclusao do big data nesse processo de aquisi- G30 de conhecimento ¢ a mais recente conquis- ta desse modo de aprimoramento de nossas habilidades cognitivas. Um processo que passa ser posto emrrisco, porque a racionatidade di- gital ¢ em tudo oposta a racionalidade humana, Os dataistas podem ate argumentar quea inteligéncia artificial ouve atentamente melhor do que a inteligéncia humana, Mas ha muitos outros aspectos envolvidos nesse proceso que precisam ser levados em consideracao. Oaprendizado das maquinas e os assistentes Virtuais inteligentes como Siri Alexa. Cortana Bixby e ChatGpt podem até otimizar o acesso & informacao e potencializar 0 armazenamento de dacios e informacdes por meiode algoritmos poderosos capazes de produzir textos ou resol- ver calculos em uma velocidade que 0 cérebro humano jamais conseguiria ating, Mas quais: a0 as premissas € 0s pressupostos que funda- mentam esse tipo de racionalidade? & possivel dizer que a inteligencia artificial argumenta, reflete, raciocina? Se levarmos em conta que a racionalidade digital substitui o aprencizado discursive pelo aprendizado das maquinas. a resposta é um claro e sonoro nao, Algoritmos nao funcamen- tam, apenas calculam, Portanto, nao sao ca~ pazes de aprender, uma vez que o conceito de fundamentacdo est entrelagado ao concaito de aprendizado, ‘Argumentos sao aprimorados e aperfeicoados no proceso discursivo, que. em titima instancia € dinamico, dialdgico e intersubjetivo. Algoritmos so otimizadios no proceso maquinal. Por isso, nao produzem, apenas arremedam argumentos Nesse sentido, o aprendizado das maquinas seria apenas um simulacro do aprendizado no sentido literal do termo, um daqueles imposto- res dos contos borgeanos andando em circulos volta de ruinas circutares.

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