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BOLETIM I 65

REVISTA DA ÁREA DE HUMANAS


jul./dez. 2013

Incluída no SNPG – nível A


(Sistema Nacional de Pós-Graduação)

CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS
REITORA
Nádina Aparecida Moreno
VICE-REITORA
Berenice Quinzani Jordão
DIRETORA DO CLCH
Mirian Donat
VICE-DIRETOR
Ariovaldo de Oliveira Santos
REDAÇÃO
Isabel Cristina Cordeiro
Esther Gomes de Oliveira
CAPA
Marcos da Mata
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E COMPOSIÇÃO
Maria de Lourdes Monteiro
CONSELHO EDITORIAL
Sérgio Paulo Adolfo
Volnei Edson dos Santos
Paulo Bassani
Paulo de Tarso Galembeck
Celso Vianna Bezerra de Menezes
PARECERISTAS
Dra. Maria Beatriz Pacca - UEL
Dr. Francisco Moreno Fernandes - Univ. Alcalá de Henares - España
Dr. Aquiles Cortes Guimarães - UFRJ
Dra. Adelaide Caramuru Cezar - UEL
Dr. Jesús Castilho - Univ. de Valladolid - España
Dr. José Oscar de Almeida Marques - UNICAMP
Dr. José Nicolau Julião - UFRRJ
Dra. Salma Ferraz - UFSC
Dr. Otávio Goes de Andrade - UEL

PUBLICAÇÕES
BOLETIM, CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA – LONDRINA-PR. - BRASIL, 1980

1980, (1) 1992, (22,23) 2003, (44,45)


1981, (2,3) 1993, (24,25) 2004, (46,47)
1982, (4,5) 1994, (26,27) 2005 (48,49)
1983, (6,7) 1995, (28,29) 2006, (50,51)
1985, (8,9) 1996, (30,31) 2007, (52,53)
1986, (10,11) 1997, (32,33) 2008, (54,55)
1987, (12,13) 1998, (34,35) 2009, (56,57)
1988, (14,15) 1999, (36,37) 2010, (58,59)
1989, (16,17) 2000, (38,39) 2011, (60,61)
1990, (18,19) 2001, (40,41) 2012, (62,63)
1991, (20,21) 2002, (42,43) 2013, (64,65)
ISSN 0102-6968

I
BOLETIM 65

REVISTA DA ÁREA DE HUMANAS


jul./dez. 2013
Incluída no SNPG – nível A
(Sistema Nacional de Pós-Graduação)

CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina – nº 65 – p. 1-154, jul./dez. 2013
Indexado por / Indexed by
ISSN 0102-6968
Sociological Abstracts SA
Linguistics and Language Behavior Abstracts LLBA

Toda correspondência deverá ser enviada à

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA


Centro de Letras e Ciências Humanas
Campus Universitário – Cx. Postal, 6001
CEP: 86051-990 – Londrina-PR.

boletimhumanas@uel.br
Fone / Fax:(43) 3371-4408

Publicação semestral / Bi-annual publication


Solicita-se permuta / We ask for exchange

Biblioteca Central da UEL


Ficha Catalográfica

Catalogação na fonte elaborada pela Biblioteca Central da UEL

Boletim / Centro de Letras e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Lon-


drina. – V. 1 (1980)- . – Londrina : a Universidade, 1980- .
v.; 21 cm

Semestral

Descrição baseada em: v. 25 (jan./jun. 1994)

ISSN 0102-6968


1. Sociologia – Periódico. 2. História – Periódico. 3. Letras – Periódico. 4.
Filosofia – Periódico. 1. Universidade Estadual de Londrina.

CDD 301.05
CDU 301:4:I(05)
Sumário

Apresentação............................................................................. 7

A argumentação nos relatos de bolsistas pibid: reflexões


sobre uma experiência de ensino colaborativo...................... 09
Adriana Grade Fiori-Souza (UEL)

Ecos do romantismo em a casa das sete mulheres: o épico na


construção do imaginário........................................................ 25
Daniela Leonhardt (PG-UNICENTRO)

Machado de Assis e o Teatro Brasileiro................................. 43


Danielli Rodrigues (PG-UEL); Luciana Brito (UENP/CJ)

Documentos de processo de criação no cinema: o roteiro.. 65


Eva Cristina Francisco (PG-UEL); Edina Regina Pugas Panichi (UEL)

Dos inconvenientes e (in)utilidades da erudição para a


vida............................................................................................. 87
Felipe Luiz Gomes Figueira (IFPR)

Era uma vez dois irmãos e os contos de fadas........................


113
Lorena Carolina Fabri (UNIOESTE)

A seleção lexical como recurso de análise de texto sobre


as expectativas acadêmicas e profissionais de uma futura
professora de espanhol como língua estrangeira (E/LE)..... 139
Silvana Salino Ramos LOPES (UEL)

Normas Para Publicação........................................................... 153


APRESENTAÇÃO

O número 65 do Boletim do Centro de Letras e Ciências Hu-


manas divulga pesquisas em diversos temas: ensino de língua inglesa
e de língua espanhola, romantismo brasileiro, teatro brasileiro,
roteiro cinematográfico, erudição/educação em Nietzsche, história/
sociedade nos contos de fadas.
Adriana Grade Fiori-Souza, no artigo “A argumentação nos
relatos de bolsistas PIBID: reflexões sobre uma experiência de ensino
colaborativo”, apresenta os resultados de sua participação, como
professora formadora (orientadora), do Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID). No ano de 2012, duas
professoras novatas de língua inglesa (alunas do curso de licencia-
tura) elaboraram diários reflexivos. A identificação de operadores
argumentativos e de mecanismos intensificadores, nesses diários,
revelou que as professoras novatas ressignificaram as suas identidades
profissionais no âmbito do ensino colaborativo adotado.
O trabalho de Daniela Leonhardt, “Ecos do Romantismo
em A casa das sete mulheres: o épico na construção do imaginário”,
estuda os preceitos de construção de uma ideia de nação a partir
da narrativa épica, desenvolvidos no Romantismo do século XIX, e
que se mantêm no romance contemporâneo A casa das sete mulheres,
de Letícia Wierzchowski. A pesquisa busca, em textos de Jorge Luis
Borges, Benedict Anderson e Stuart Hall, uma explicação para a
conservação de ideais românticos na literatura produzida atualmente.
O artigo “Machado de Assis e o teatro brasileiro”, de Dani-
elli Rodrigues e Luciana Brito, focaliza a crítica literária do teatro
brasileiro pelo olhar de Machado de Assis, com ênfase em três
aspectos: a) o modo como acontece essa crítica; b) a caracterização
do cenário teatral do século XIX e do gosto estético da sociedade
da época; c) as contribuições machadianas para a formação de um
teatro brasileiro.
Eva Cristina Francisco e Edina Regina Pugas Panichi
apresentam, com base nas teorias da Crítica Genética, o roteiro
cinematográfico como processo criativo, estudando a tradução do
romance queirosiano, O Primo Basílio (1878), para o filme de Daniel
Filho (2007), trazendo uma comparação entre roteiros.
O artigo apresentado por Felipe Luiz Gomes Figueira, “Dos
inconvenientes e (in)utilidades da erudição para a vida”, analisa a
crítica do eruditismo na II Consideração Intempestiva, de Nietzsche,
e enfatiza os seguintes temas: a) a história enquanto incessante
transformação; b) os tipos de história; c) a história a favor da vida;
d) o problema da história levada às últimas consequências; e) as
massas e o Estado.
No trabalho “Era uma vez dois irmãos e os contos de fadas”,
Lorena Carolina Fabri investiga a relação das histórias populares
com a sociedade e o desenvolvimento delas enquanto representações
culturais, desde a época em que começaram a se instituir como tal.
O corpus do artigo são os contos de fadas compilados pelos irmãos
Grimm, objetivando ressaltar a relação história/literatura e as relações
sociais presentes na tradição oral.
Silvana Salino Ramos Lopes, no artigo “A seleção lexical
como recurso de análise de texto sobre as expectativas acadêmicas
e profissionais de uma futura professora de espanhol como língua
estrangeira (E/LE)”, analisa a seleção lexical, em texto escrito em
espanhol, com foco nos adjetivos, com o intuito de identificar a
ideologia implícita relativamente às expectativas relacionadas ao
desenvolvimento do estágio em instituição pública de ensino e à
carreira docente.

A argumentação nos relatos de bolsistas pibid: reflexões
sobre uma experiência de ensino colaborativo

Adriana Grade Fiori-Souza1

Resumo: Neste artigo, apresentamos uma análise dos recursos argumentativos


empregados por duas professoras novatas de língua inglesa, na elaboração de diários
reflexivos sobre a experiência vivenciada no Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação à Docência (PIBID), ao longo do ano de 2012. Com base na identificação
de operadores argumentativos e mecanismos intensificadores, a análise revelou que as
professoras novatas estão ressignificando as suas identidades profissionais no âmbito do
ensino colaborativo adotado.
Palavras-chave: colaboração; operadores argumentativos; mecanismos intensificadores.

Abstract: In this article, we present an analysis of the argumentative resources employed


by two English language student-teachers, in the writing of reflexive diaries about the
experience they had as participants of the Institutional Program of Teaching Initiation
Scholarships (PIBID), throughout the year 2012. Based on the identification of
argumentative connectors and intensifying mechanisms, the analysis revealed that the
student-teachers are (re)signifying their professional identities within the collaborative
teaching adopted.
Key-words:collaboration; argumentative connectors; intensifying mechanisms.

Introdução

A colaboração é um processo compartilhado de avaliação e


reorganização de práticas mediadas pela linguagem, em atividades
que envolvem todos os membros de uma discussão (MAGALHÃES
e FIDALGO, 2010). Nesses espaços, cada um dos participantes
tem a chance de se expressar, questionar os sentidos atribuídos a
conceitos teóricos, esclarecer dúvidas, lançar mão de exemplos de
situações concretas para explicar ideias ou relacionar teoria e prática.
1
Professora do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas do Centro de Letras e Ciências
Humanas da UEL. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem
(PPGEL) na mesma instituição.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 9-24–jul./dez. 2013 9


Isso pressupõe arriscar-se, expor-se, criticar e ser criticado, rever
conceitos e crenças, reconsiderar perspectivas – entendendo tais
desafios como ferramentas para o crescimento do grupo.
No ensino colaborativo, uma comunidade de professores2
aprendizes compartilha a atividade de ensinar e aprender, realizando
várias ações e desempenhando diversos papéis – em geral,
estimulados por objetivos diferentes. Tais características resultam
em uma prática que é, simultaneamente, ensino, aprendizagem e
pesquisa (MATEUS, 2009; 2011).
Os autores Clarke, Davis, Rhodes e Baker (1998)
elaboraram quatro princípios para a colaboração bem sucedida
de projetos integrando universidade-escolas. São eles: criticidade,
fundamentação, pragmatismo e dimensionamento. O primeiro,
criticidade, permeia todos os aspectos do trabalho colaborativo, e
é considerado o mais difícil a ser seguido. Pressupõe, segundo os
autores, três compromissos maiores: um patamar de igualdade entre
os participantes, a fim de que as discussões sejam conduzidas em
um espírito de colaboração democrática; consistência em prol dos
resultados, com o propósito de manter o foco nos valores acordados,
e, por último, monitoramento das consequências (pretendidas ou
não) de ações realizadas (ao invés de ideais abstratos), de acordo
com os resultados planejados.
O segundo princípio, fundamentação, refere-se ao
reconhecimento de que o ensino colaborativo está ancorado nas
realidades diárias dos participantes, em um contexto determinado.
Tal constatação implica em priorizar a observação dessa realidade
em detrimento de escolhas ideológicas ou metodológicas – em
especial, quando há conflito na relação entre o que se percebe e o
que se acredita.

2
O termo professor é aqui empregado para designar tanto aqueles que atuam na universidade
(professor formador), quanto aqueles envolvidos com a educação básica (professor
colaborador) ou ainda em formação inicial, cursando uma licenciatura (professor novato).

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O terceiro princípio, pragmatismo, determina que o objetivo
do trabalho colaborativo não é descobrir verdades, mas solucionar
problemas no mundo real. Os autores ressaltam que as considerações
feitas durante as discussões no grupo têm que refletir o olhar de
todos, ou seja, é preciso entender a colaboração como espaço de
aprendizagem, uma vez que todos os membros trazem importantes
percepções e experiências durante o embate de ideias. Além
disso, é preciso também reconhecer que a colaboração pressupõe
uma negociação constante de papéis – isto é, a apreciação dos
méritos de uma ou outra proposta precisa levar em conta os papéis
desempenhados por cada membro em diferentes momentos do
trabalho.
Finalmente, o quarto princípio, dimensionamento, diz respeito
ao reconhecimento de que as decisões tomadas em dimensões
diferentes terão impactos diferentes e que, portanto, é preciso
investigar as relações estabelecidas entre as dimensões nos diversos
níveis de um contexto. Segundo os referidos autores, essas dimensões
podem incluir um determinado aluno, a sala de aula, a escola, a
família, a comunidade, o sistema escolar ou até mesmo a rede de
conexões com associações culturais, profissionais, etc.
Corroboramos a afirmação dos autores (CLARKE et al.,
1998, p. 599) de que as parcerias universidade-escola favorecem
a formação de ambientes propícios para o ensino-aprendizagem.
Esse processo é cíclico, não linear, e baseia-se não só na constatação
de que os eventos humanos são essencialmente imprevisíveis, bem
como na concepção de ensino-aprendizagem como um processo
de socialização que requer tempo, paciência, e atenção a todos
os aspectos essenciais dos contextos pelos quais os envolvidos
compartilham um interesse genuíno.

O PIBID de Letras-inglês

O subprojeto de Letras-inglês (Edital 2011) do PIBID/


UEL iniciou suas atividades em julho de 2011, mas foi somente a

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partir de fevereiro de 2012 que as professoras-novatas participantes
passaram a lecionar a disciplina de língua inglesa no Ensino Médio
de uma escola estadual, em Londrina, em parceria com o professor
colaborador e a professora formadora.
Os objetivos do subprojeto são: permitir aos alunos do curso
de graduação em Letras-inglês tomar contato, observar e refletir
coletivamente sobre as características do ensino de inglês em escolas
públicas; propor inovação metodológica e monitorar seus resultados;
contribuir para a renovação curricular da própria licenciatura à
medida que os discentes poderão trazer subsídios de sua vivência
na escola pública para o currículo de formação de professores na
universidade; permitir ao professor colaborador envolver-se mais
diretamente na formação de novos profissionais e conhecer mais
profundamente seus alunos e a escola onde atua.
Para consecução de tais objetivos, o grupo formado por
onze alunas da graduação em Letras-inglês3, um professor de uma
escola pública localizada na cidade de Londrina, e um docente
do curso de Letras-inglês da Universidade Estadual de Londrina
desenvolveu diversas ações, dentre as quais se destacam os diários
reflexivos redigidos após cada reunião semanal do grupo, para
leitura e discussão de aspectos teórico-práticos relativos à abordagem
colaborativa adotada.
Nos diários, todos foram instruídos a relatar seus pensamentos,
insights, dúvidas e questionamentos a respeito dos assuntos
abordados em cada reunião. É importante ressaltar que os diários
aqui considerados tiveram como foco a discussão de um texto
sobre a identidade do professor, intitulado “A dialogical approach
to conceptualizing teacher identity”4 (AKKERMAN; MEIJER,
2011), na última reunião do grupo em 2012, a qual culminou em
3
Inicialmente, havia onze alunas da graduação participando do Programa. Contudo, ao longo
do ano, alguns participantes saíram e outros entraram em seu lugar. Por essa razão, foram
selecionados, para efeito desta investigação, apenas os diários elaborados por duasalunas que
permaneceram no grupo durante todo o ano de 2012.
4
“Uma abordagem dialógica para conceituar a identidade do professor” (tradução minha).

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uma autoavaliação do trabalho realizado no âmbito do projeto ao
longo do referido ano. Tão logo foram redigidos, os documentos
foram encaminhados para o e-mail coletivo do grupo, para leitura
por todos os membros.
Neste artigo, foram analisados os operadores argumentativos
e os mecanismos intensificadores identificados nos referidos diários,
a fim de compreender a relação entre os discursos e oensino
colaborativo adotado e, desta forma, contribuir para a construção de
conhecimento compartilhado para o desenvolvimento profissional
de professores formadores, colaboradores ou aqueles em formação
inicial.
A seguir, fazemos uma breve apresentação dos recursos
supracitados.

Operadores argumentativos

O discurso éobjeto central da Semântica Argumentativa –


de modo particular, as interações entre locutor e interlocutor em
uma dada situação de comunicação, as quais envolvem diversos
procedimentos argumentativos que direcionam o sentido pretendido
no texto (OLIVEIRA, 2004).
Os operadores argumentativos são responsáveis pelo
encadeamento discursivo e direcionamento da construção de sentido
na situação comunicativa. Eles apresentam, como traço constitutivo,
o fato de serem utilizados com o intuito de levar o interlocutor
a alguns tipos de conclusão, excluindo-se outros. Para descrever
esses enunciados, Koch (1984) salienta que é preciso definir a sua
orientação discursiva, isto é, distinguir aquelas conclusões para as
quais eles podem funcionar como argumentos.
As classes de palavras que funcionam como operadores
argumentativosincluem pronomes, advérbios, preposições e
conjunções ou, quando não se encaixam nesta categorização
utilizada pela gramática tradicional, são consideradas como palavras

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“de inclusão, exclusão, designação, realce, retificação, afetividade,
limitação, explanação, denotativas, dentre outras”, conforme
apontado por Oliveira(2003, p. 232). A autora ressalta que os
operadores evidenciam os traços de subjetividade do locutor – isto
é, o rol de recursos linguísticos, mentais e sociais que o locutor
emprega para organizar o discurso e estruturá-lo como texto. Por
essa razão, os conectivos e operadores estão em níveis diferentes,
respectivamente, linguístico e discursivo.
Na macrossintaxe do discurso, ou Semântica Argumentativa,
os operadores têm a sua importância realçada pelo fato de
determinarem “o valor argumentativo dos enunciados, constituindo-
se, pois, em marcas linguísticas importantes da enunciação” (KOCH,
1984, p.105).

Mecanismos Intensificadores

Como parte de um projeto de pesquisa sobre os recursos


argumentativos responsáveis pela persuasão no texto publicitário,
Azevedo e Oliveira (2005) elencaram uma série de mecanismos
intensificadores, a partir da análise de aproximadamente 8.000
propagandas. Segundo as autoras, “o processo de intensificação
é um recurso persuasivo que enfatiza a carga significativa de uma
palavra, de uma expressão ou de um texto, evidenciando seu caráter
emotivo-argumentativo” (p.10).
São considerados mecanismos intensificadores, entre outros:

advérbios intensificadores, quese referem a verbos, adjetivos ou a


outros advérbios (bem, bastante, mais, meio, menos, muito, pouco,
tão, tanto, quão, quanto, todo, etc.);
adjetivos intensificadores, que já trazem a noção intensificadora em
seu significado (grande, maior, melhor, profundo, repleto, etc.);
pronomes indefinidos, que se referem a substantivos(bastante,
bastantes, mais, menos, muita, muitas, pouco, pouca, etc.);
série sinonímica, que reforça uma ideia por meio de palavras
sinônimas (linda, atraente, charmosa, etc.)

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repetição, que demonstra a intencionalidade do enunciador. Existem
várias figuras de linguagem relacionadas à repetição, como por
exemplo, anáfora (repetição de palavra ou grupo de palavras no
início de dois ou mais enunciados), reiteração (repetição de palavra
dentro do enunciado, sem uma posição definida), paralelismo
(repetição da mesma estrutura ou sequência sintática), e ritornelo
(repetição de expressões ou enunciados integrais).

Análise do corpus

Na sequência, são apresentados os trechos dos diários sob


enfoque neste artigo, seguidos de uma análise dos operadores
argumentativos e mecanismos intensificadores utilizados.É
importante salientar que optamos por contemplar somente os
elementos de maior interesse para a construção de sentido dos
referidos textos.
Foram selecionados os parágrafos versando sobre a
autoavaliação das bolsistas PIBID em relação ao trabalho
desenvolvido ao longo do ano de 2012.

Texto I
1

2
Meu último diário do PIBID, que mistura de sentimentos! Eu percebo
o quanto eu cresci e o quanto eu aprendi com o grupo. Sim, hoje eu sou
3
professora. Eu estudei 4 anos para estar preparada, eu realizei um ano de
regência num colégio público com mais seis meses de observação. Sim,
4
por mais que eu ainda não tenha decidido se escolhi que a docência será
minha carreira permanente, eu sou professora. Ouvir o pessoal mais novo
5
dizendo que não quer ser professor me fez lembrar como eu me sentia.
Acho que viver a docência todo esse tempo, descobrir os problemas, mas
6
também a gratificação, foi essencial para a formação dessa identidade
de professora. Gente, antes de negar essa possibilidade, experimentem,
7
tentem, errem, melhorem e cresçam. É pesado, é difícil, mas também é
divertido e gostoso.
8

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Operadores Argumentativos Linha(s) Efeito de Sentido
e 1 Adição
para 2, 7 Finalidade
ainda 4 Conteúdo Pressuposto
não só... mas também 7, 9 Adição
e 9 Adição ou Conclusão

Operadores Argumentativos (texto I)

O texto I destaca-se pela repetição de alguns operadores


(sinalizados em caixa alta e em negrito), os quais reforçam o
direcionamento discursivo e levam o leitor ao raciocínio pretendido
pela autora: a soma de argumentos favoráveis à experiência
vivenciada no PIBID, como demonstram os exemplos abaixo:

“... cresci E (...) aprendi com o grupo.” (linhas 1-2)


“... descobrir (não apenas) os problemas, MASTAMBÉM a
gratificação...” (linha 7)
“... experimentem, tentem, errem, melhorem E cresçam.” (linhas
8-9)
“(não apenas) É pesado, é difícil, MAS TAMBÉM é divertido e
gostoso.” (linha 9)

Nas linhas 4 e 5, a ocorrência do operador ‘ainda’ introduz o


pressuposto de que é preciso decidir sobre o futuro profissional. Esse
argumento denota certa tensão e expectativa, pois a autora – apesar
de se declarar professora – parece ter dúvidas quanto ao exercício
da docência como opção definitiva.

“... por mais que eu AINDA não tenha decidido se escolhi que
a docência será minha carreira permanente, eu sou professora.”
(linhas 4-5)

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Nas linhas 7 e 9, a autora lança mão de pares correlatos, com
a omissão do 1º elemento (não apenas), para introduzir argumentos
que, embora sejam contrastantes (problemas X gratificação; pesado,
difícil X divertido e gostoso), também estabelecem uma relação
semântica de adição, pois direcionam o interlocutor para a conclusão
de que o trabalho no âmbito do PIBID abrange tanto aspectos
negativos quanto positivos. Os aspectos positivos, introduzidos
como 2º argumento, são priorizados, sugerindo que os obstáculos
não superam os benefícios trazidos.
Nas linhas 8 e 9, há uma sequência de verbos no modo
imperativo, separados por vírgulas, com exceção dos dois últimos,
ligados pelo operador ‘e’. Essa ocorrência pode indicar uma relação
semântica de adição, entre duas orações sequenciais por conexão
(“...melhorem e cresçam”), ou de conclusão, encaminhando o leitor
para o final, isto é, o crescimento proporcionado pela experiência.
Neste segundo caso, o operador ‘e’ estará introduzindo uma
oração coordenativa conclusiva, sendo um sinônimo deportanto. Esta
segunda opção parece ser a mais adequada, uma vez que o trecho
“... experimentem, tentem, errem, melhorem e cresçam” (linha 9)
parece retomar os dois argumentos principais, introduzidos logo no
início do texto: a afirmação da autora de que cresceu e aprendeu
em razão do trabalho desenvolvido no projeto (linhas 1-2). De
fato, o operador ‘e’ pode assumir outros significados, além do seu
sentido mais frequente (adição), tais como: conclusão, consequência,
contraste, reforço argumentativo, restrição, tempo simultâneo e
tempo posterior (OLIVEIRA; AZEVEDO; NASCIMENTO,
2008).
Outro operador argumentativo relevante para o encadeamento
discursivo é ‘para’, que estabelece a relação semântica de finalidade.
A autora faz uso do referido operador duas vezes no texto, para
introduzir argumentos que esclarecem as razões do empenho
despendido: o preparo para a docência e a constituição da identidade
profissional:

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“Eu estudei quatro anos PARA estar preparada.” (linhas 2-3)

Mecanismos Intensificadores (texto I)

Em relação aos mecanismos intensificadores, observamos o


emprego do advérbio intensificador “quanto” duas vezes na sentença
abaixo, acentuando o crescimento e o aprendizado da autora, e
atribuindo-os ao trabalho desenvolvido pelo grupo do PIBID.

“Eu percebo o QUANTO eu cresci e o QUANTO eu aprendi com


o grupo.” (linhas 1-2)

Em seguida, são utilizadas duas figuras de linguagem relativas


à repetição, como forma de enfatizar a ideia sob enfoque.

SIM, hoje EU SOU PROFESSORA. (linha 2)
SIM, por mais que eu ainda não tenha decidido se escolhi
que a docência será minha carreira permanente, EU SOU
PROFESSORA. (linhas 4-5)

No início das duas sentenças acima, há a repetição da


interjeição “sim” (anáfora), aliada à repetição do enunciado “eu sou
professora” (ritornelo), reforçando a convicção da autora quantoao
seu preparo para exercer a docência.
Além disso, nota-se o uso do pronome indefinido “todo”para
fazer referência ao tempo investido na formação inicial, bem como
do adjetivo “essencial” para destacar a experiência vivenciada, os
quais foram determinantes para a constituição identitária da autora.

“Acho que viver a docência TODO esse tempo (...) foi ESSENCIAL
para a formação dessa identidade de professora.” (linhas 6-8)

Por último, há o emprego de séries sinonímicas para


sobrepor efeito expressivo. A 1ª série, representada por verbos
no imperativo, intensificaa importância da participação ativa dos

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 9-24–jul./dez. 2013 18


bolsistas. Esse modo verbal carrega o dêitico pessoal você e espera
um comportamento do interlocutor. A 2ª e 3ª séries contêm,
respectivamente, adjetivos com carga semântica negativa e positiva,
para demarcar as características do trabalho colaborativo.

“... EXPERIMENTEM, TENTEM, ERREM, MELHOREM E


CRESÇAM.” (linhas 8-9)
“É PESADO, é DIFÍCIL, mas também é DIVERTIDO e
GOSTOSO.” (linha 9)

Texto II
1
Nem acredito que nosso trabalho esse ano jáacabou. Parece que foi ontem
2
que caí de paraquedas no grupo. Posso dizer que essa queda foi bem
emocionante:D. Do dia que entrei até agora tenho certeza que aprendi
3
em todas as reuniões, discussões, leituras, preparo de material, aulas,
trocas de e-mail e escrevendo e lendo diários e debriefings*. Me constituí
4
com o outro. Essa foi uma das reuniões em que eu mais me vi no discurso
dos integrantes, pois apesar de todos sermos diferentes, compartilhamos
5
a mesma experiência e estivemos por muito tempo na mesma
“sintonia”. Com tudo isso eu cresci pessoalmente, academicamente e
6
profissionalmente.
7
*Relatórios redigidos após as aulas ministradas.

Operador Argumentativo Linha(s) Efeito de Sentido


e 4, 6, 7 Adição
pois 5 Explicação
apesar de 5 Oposição/Contraste
tudo 7 Afirmação plena

Operadores Argumentativos (texto II)

No texto II, nota-se novamente o predomínio do operador


‘e’,estabelecendo a relação semântica de adição:

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 9-24–jul./dez. 2013 19


“... aprendi em todas as reuniões, discussões, trocas de email E
escrevendo E lendo diários E debriefings.” (linhas 3-4)
“...compartilhamos a mesma experiência E estivemos por muito
tempo na mesma sintonia.”(linhas 6-7)
“Com TUDO isso eu cresci pessoalmente, academicamente E
profissionalmente.” (linhas 7-8)

Nas linhas3-4 acima, a autoraemprega o operador ‘e’três


vezespara enfatizar o aprendizado obtido por meio das diversas
ações desenvolvidas no projeto. Essa soma apresenta uma coesão
sequencial que serve para ligar os vários argumentos.
Além disso, o efeito de sentido de adição é combinado com
o de afirmação plena – por meiodo operador ‘tudo’(linha 7), acima,
sugerindo um grande volume de trabalho, o qual possibilitou o
crescimento da autora nos níveis pessoal, acadêmico e profissional.
Nas linhas 5 a 7, a seguir, observa-se o uso de dois operadores
em sequência, estabelecendo as relações semânticas de explicação
econtraste/oposição. São eles: ‘pois’ e ‘apesar de’, conforme ilustrado
no excerto abaixo.

“Essa foi uma das reuniões em que eu mais me vi no discurso


dos integrantes, POIS APESAR DE todos sermos diferentes,
compartilhamos a mesma experiência e estivemos por muito tempo
na mesma ‘sintonia’.”

Com o emprego do operador ‘pois’, a autora introduz uma


nova enunciação paraesclarecer/justificar o enunciado anterior,
referente ao discurso ‘afinado’ dos membros do grupo: a experiência
do trabalhocolaborativo (realizado ‘em sintonia’), ao longo de todo
o ano letivo.
Justaposto ao operador ‘pois’, observa-se o uso de ‘apesar
de’, que produz um efeito de sentido de contraste/oposição entre
os argumentos apresentados, favorecendo o segundo:

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 9-24–jul./dez. 2013 20


Argumento A Argumento B
↓ ↓
Reconhecimento das X Realização da experiência
diferenças individuais de trabalho colaborativo

Em relação aos operadores de contraste/oposição, KOCH
(2004) observa que eles pertencem a dois grupos (Grupo 1: mas,
porém, contudo, todavia, etc.; Grupo 2: embora, ainda que, posto
que, apesar de, etc.). Apesar de tais operadores funcionarem de
forma semelhante – isto é, oporem argumentos que orientam para
conclusões contrárias, eles são diferentes em relação à estratégia
argumentativa empregada pelo locutor: no caso dos operadores
do grupo 1, a estratégia usada é a de suspense (trazer à mente
do interlocutor a conclusão, para somente depois introduzir o
argumento que levará à conclusão); no caso do grupo 2, a estratégia
empregada é a de antecipação, pois o locutor revela, antecipadamente,
que o argumento introduzido pelo operador será invalidado.

Mecanismos Intensificadores (texto II)

A autora lança mão de vários mecanismos intensificadores


para descrever sua participação no projeto, evidenciando o caráter
emotivo-argumentativo do texto.
Nas linhas abaixo, ela emprega dois advérbios – ‘bem’ e ‘mais’,
e o adjetivo avaliativo ‘emocionante’ para analisar a sua experiência
no PIBID.

Parece que foi ontem que caí de paraquedas no grupo. Posso dizer
que essa queda foi BEM EMOCIONANTE :D. (linhas 1-2)
Essa foi uma das reuniões em que eu MAIS me vi no discurso dos
integrantes... (linhas 4-5)

Além disso, ela utiliza também uma metáfora (cair de


paraquedas), figura de linguagem característica da subjetividade

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 9-24–jul./dez. 2013 21


afetiva, para se referir ao seu ingresso no grupo, eum recurso
gráficosimbolizando um rosto sorrindo (:D), paradestacar o valor
positivo que confere à mensagem.
Todas essas marcas permitem ao interlocutor vislumbrar a
autora como alguém que se identifica com o discurso produzido
no âmbito do PIBID (no subprojeto de Letras-inglês), e considera
o trabalho realizado tanto desafiador quanto estimulante para o seu
aprimoramento de modo geral.
Ainda sobre os mecanismos intensificadores,observamos o
emprego dos pronomes indefinidos ‘todas’ e ‘todos’ nas sentenças
abaixo. Na primeira, a carga intensificadora recai sobre as ações do
projeto, que permitiram um aprendizado constante; na segunda, o
pronome evidencia que os membros do grupo – sem exceção – têm
características e personalidades próprias:

“...aprendi em TODAS as reuniões, discussões, leituras, preparo


de material, aulas, trocas de e-mail e escrevendo e lendo diários e
debriefings*”. (linhas 3-4)
“... apesar de TODOS sermos diferentes...” (linha 6)

Na sequência, verificamos a repetição da palavra ‘mesma’


dentro do enunciado (reiteração), para reforçar a cumplicidade
da equipe de trabalho, aliada ao pronome indefinido ‘muito’, que
acentua o período de tempo destinado à prática colaborativa.

“... compartilhamos a MESMA experiência e estivemos por


MUITO tempo na MESMA ‘sintonia’.” (linhas 6-7)

Por último, há o emprego de três advérbios de modo, os quais


acentuam o crescimento/desenvolvimento da autora, como resultado
de sua participação no projeto, em três dimensões distintas: a pessoal,
a acadêmica e a profissional.

“Com tudo isso eu cresci pessoalmente, academicamente e


profissionalmente.” (linha 7)

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 9-24–jul./dez. 2013 22


Considerações finais

Neste trabalho, procuramos analisar os recursos argumentativos


identificados nos diários reflexivos elaborados por duas professoras-
novatas, bolsistas do PIBID/UEL, com o intuito de compreender a
relação entre os discursos e o ensinocolaborativo adotado.
A análise dos dados revelou que as participantes estão em
um processo de (re)constituição identitária, evidenciado por meio
dos operadores argumentativos e mecanismos intensificadores
utilizados. A atividade compartilhada de ensinar e aprender, em
uma experiência de ensino colaborativo, parece ter contribuído para
fortalecer o envolvimento dos participantes e a formação profissional.
Nas palavras de Freire (2011, p. 25): “Não há docência sem discência,
as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os
conotam, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Quem
ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”.
Apesar de breve, este estudo vem reforçar que as parcerias
colaborativas favorecem o engajamento crítico e contribuem para
o desenvolvimento profissional docente.

Referências

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conceptualizing teacher identity.Teaching and Teacher Education, v. 27,
p.308-319, 2011.

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Londrina, v. 5, p. 09-20, jan./dez. 2005.

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www.jstor.org/stable/3588130. Acesso em 14/10/11.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 9-24–jul./dez. 2013 23


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Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 9-24–jul./dez. 2013 24


Ecos do romantismo em a casa das sete mulheres:
o épico na construção do imaginário

Daniela Leonhardt1

Nós pertencemos ao futuro,


como o passado nos pertence.
A gloria de uma nação, que existe,
ou que já existira, não é senãoum reflexo
da gloria de seus grandes homens.

Gonçalves de Magalhães2

Resumo: O artigo busca verificar que os preceitos de construção de uma ideia de nação
a partir da narrativa épica, desenvolvidos no Romantismo no século XIX, mantêm-se
no romance contemporâneo A casa das sete mulheres, de Leticia Wierzchowski. Busca-
se em textos publicados por Jorge Luis Borges, Benedict Anderson e Stuart Hall uma
explicação para a conservação de ideais românticos na literatura produzida atualmente.
O romance analisado retorna às narrativas épicas produzidas no século XIX, abordando
a Revolução Farroupilha, conflito que ocorreu no sul do país e se estendeu por dez anos,
destacando a bravura e coragem das personagens e contribuindo, assim, para a criação
de um imaginário coletivo ligado à exaltação de valores heroicos.
Palavras-chave: Romantismo, épico, imaginário, nacionalismo.

Abstract: This article aims at verifying that the precepts of building an idea of
nation from the epic narrative, developed in the nineteenth century Romanticism,
are maintained in the contemporary novel House of the Seven Women, by Leticia
Wierzchowski. The explanation for the conservation of romantic ideals in literature
produced today is found in texts by Jorge Luis Borges, Benedict Anderson and Stuart
Hall. The analyzed novel returns to the epic narratives produced in the nineteenth
century, and addresses the Farroupilha Revolution, a conflict that occurred in the
south of Brazil and lasted ten years. The novel highlights the bravery and courage of the
characters and, therefore, contributes to the creation of a collective imaginary connected
to the exaltation of heroic values.
Keywords: Romanticism, epic, imaginary, nationalism.

1
Professora Especialista em Ensino de Língua Portuguesa. Aluna do Programa de Mestrado
em Letras da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), orientada pela
Professora Doutora Cláudia Rio Doce.
2
Mantida a grafia original.

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Este artigo pretende verificar de que forma conceitos surgidos
no Brasil a partir do Romantismo ainda estão presentes na literatura
contemporânea - especificamente na obra A casa das sete mulheres,
de Leticia Wierzchowski - objetivando valorizar a nação através da
narração de episódios épicos, contribuindo, assim, para a construção
de um imaginário coletivo.Isso se torna particularmente interessante
quando se observa que Antonio Candido entende a tradição na
literatura como um conjunto de noções que compõem arquétipos
que se impõem ao pensamento econfessa que adota o ponto de vista
dos autores românticos. Este fato já aponta para a sobrevivência
de um imaginário, não só na literatura, mas também na crítica e/
ou na historiografia literária. Machado de Assis, no ensaio Notícia
da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade, publicado
originalmente em 1873, já previa que a construção da ideia de nação
iniciada no Romantismo, no século XIX, não seria tarefa fácil nem
se encerraria em pouco tempo. Segundo ele, “[...] não será obra de
uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la
de todo.”(ASSISapud COUTINHO, 1974).
A casa das sete mulheres reconta, a partir da visão feminina, a
Revolução Farroupilha, conflito que ocorreu no sul do país durante
o século XIX, em que fazendeiros se revoltaram contra o governo
imperial. A guerra durou dez anos e, durante este tempo, as mulheres
da família de Bento Gonçalves permaneceram isoladas na Estância da
Barra, a fim de que se mantivessem em segurança. Manuela, sobrinha
de Bento, narra partes da história em seus cadernos, contando sua
visão dos acontecimentos. Há, ao mesmo tempo, a participação
de um narrador onisciente seletivo, responsável pelo vínculo da
estância com o mundo exterior - inacessível às mulheres - e pelo
posicionamento do leitor em relação às personagens.
Analisando o romance, é possível constatar que a construção
de um imaginário coletivo que enfatize a grandeza da nação e a
glória de seus homens através de um estilo épico continua sendo
uma fonte de inspiração para a literatura do século atual, seguindo
os mesmos princípios românticos do século XIX.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 25-42–jan./jun. 2013 26


As ideias românticas, trazidas principalmente da Alemanha e
da França, propunham uma conscientização histórica que procurava
traçar a trajetória da nação ereforçava a necessidade de se prover o
Brasil de uma história própria, rejeitando o passado em comum
com Portugal. Para isso, fazia-se necessária a criação de símbolos
nacionais que representassem a nova nação e sua grandeza. Uma
literatura eminentemente nacional era, pois, imprescindível.
Coube, então, aos românticos, a tarefa de construir a história
da literatura brasileira, buscando, no passado, quem houvesse
pensado e representado o Brasil, os precursores da identidade
nacional e, ao mesmo tempo, criar uma literatura que fosse
essencialmente brasileira, de forma que se pudesse, em torno dela,
construir um sentimento de identificação com a nação.
Porém, isto não era uma tarefa fácil. Gonçalves de Magalhães,
em ensaio publicado emNitheroyRevista Brasiliense, Sciencias, Lettras
e Artes, queixava-se da dificuldade de se encontrar documentos que
pudessem auxiliá-lo na empreitada de compor uma historiografia
literária. Dizia não haverno Brasil quem se preocupasse com
isso anteriormente e que somente alguns autores estrangeiros
haviam feito menção à literatura brasileira, entre eles, Friedrich
Bouterwek, Sismond de Sismondi e Ferdinand Diniz, de cujos
trabalhos criticavam a exiguidade de informações. Magalhães
ressaltava ainda que as pesquisas feitas tiveram que ser realizadas
em bibliotecas europeias e que, por falta de material, reconhecia
estarem incompletas. Informações importantes para ele não foram
encontradas e, por fim, confessava:

[...] depois de um longo e enfadonho estudo, vimo-nos quase


redusidos sem outro guia, que o nosso próprio juiso, a lermos,
e analysarmos os auctores, que obter podemos, esperando que o
tempo nos facilite os meios para o fim aque nos propomos.(sic)
(MAGALHÃES, 1836, p.137).3

3
Mantida a grafia original.

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Parte da historiografia literária brasileira é, pois, criada no
século XIX pelos próprios escritores românticos. Sem documentos
e conhecimento, muitas vezes os fatos eram até inventados pelos
pesquisadores. Antonio Candido (2000) explica que

Ao descrever os sentimentos e as ideias de um dado período literário,


elaboramos frequentemente um ponto de vista que existe mais em
nós, segundo a perspectiva da nossa época, do que nos indivíduos
que o integraram. (CANDIDO, 2000, p. 319).

Para o autor, porém, a importância histórica da tarefa


realizada pelos românticos é grande. Ela possibilitou o próprio
desenvolvimento do Romantismo no Brasil, promovendo a
identificação de obras e autores e confirmando o nacionalismo
literário, peça chave no desenvolvimento da literatura, que, por
consequência, deveria exprimir a realidade brasileira, celebrar
a pátria, mostrar o Brasil para os brasileiros e contribuir para o
progresso da nação, unindo-a em torno de um passado em comum.
Para isso, heróis foram criados, fatos históricos recontados de
forma a glorificar as ações dos brasileiros, construindo um imaginário
coletivo que representasse o Brasil e possibilitasse a identificação de
todos com a nação que surgia. O destaque dado a um estilo épico tem
sua razão de ser. Nada melhor para criar um imaginário de um povo
do que a valorização de seus homens ilustres, que se destacam por
feitos heroicos, pela grandeza de caráter e pela bravura demonstrada
em situações de conflito, elogiando, através deles, toda a nação.
Paulo Franchetti (2008), analisando o interesse de D. Pedro II na
constituição de uma tradição brasileira, ressalta a importância do
épico para “[...] sintetizar, com a narrativa da história pregressa ou
arqueológica da nação, o caráter distintivo da civilização brasileira
em relação à matriz portuguesa.” (FRANCHETTI, 2008, p. 1099)
Jorge Luis Borges, em palestra proferida na Universidade
de Harvard, reflete sobre a necessidade do épico para os homens.
Segundo ele, os antigos poetas narravam histórias de coragem e

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 25-42–jan./jun. 2013 28


esperança, histórias estas que continuam vivas, porque as pessoas
ainda se interessam por elas. Os enredos se repetem, são contados e
recontados e continuam ilimitados. São preenchidos com detalhes
e com criatividade, mas não precisam ser novos. O que é necessário
é o herói, um homem cujas atitudes possam ser modelo para todos
os homens.
O romance, gênero surgido no Brasil durante o Romantismo
e produzido por vários escritores da época, é, para Borges, uma
degeneração da épica. Para ele, cabe aos jovens retomar a épica.

De certo modo, as pessoas estão famintas e sedentas de épica. Sinto


que a épica é uma das coisas de que os homens precisam. Mais que
todo lugar [...] foi Hollywood que abasteceu o mundo de épica. Por
todo o globo, quando as pessoas assistem a um faroeste – observando
a mitologia de um cavaleiro, e o deserto, e a justiça, e o xerife, e os
tiroteios, etc. - , imagino que resgatem o sentimento épico, quer
tenham consciência disso ou não. (BORGES, 2000, p. 60).

Afrânio Coutinho (1988) assegura que a preferência pelo


romance não foi por acaso. Segundo ele,

[...] o gênero ofereceu ao espírito romântico as melhores


oportunidades de realização de seus ideais de liberdade e
realismo – fosse na linha psicológica, histórica ou social, - além
de proporcionar-lhe melhor atmosfera para o sentimentalismo,
o idealismo, o senso do pitoresco e do histórico e a preocupação
social. (COUTINHO, 1988, p. 150)

Além disso, o romance era a forma ideal para unir a realidade


e a fantasia, a análise e a invenção, destacando-se, nesse aspecto, o
romance histórico.
DorisSommer(2004) lembra que os romances nacionais do
século XIX marcaram época para gerações de leitores e são, ainda
hoje, lidos nas escolas, encenados em peças teatrais, filmes e séries
de televisão. Para ela, os escritores de romances que se tornaram

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 25-42–jan./jun. 2013 29


clássicos em vários países latino-americanos estavam engajados
em um projeto de construção nacional e “[...] foram encorajados
tanto pela necessidade de preencher uma história que ajudaria a
dar legitimidade à nação emergente quanto pela oportunidade
de direcionar aquela história para um futuro ideal.” (SOMMER,
2004, p. 22).
Analisando as manifestações artísticas presentes na literatura
desde o Romantismoé possível verificar a pertinência da teoria de
Borges. Livros são escritos e batem recordes de vendas.Filmes épicos,
baseados em conhecidas narrativas são constantemente lançados e
fazem um enorme sucesso. E, num fenômeno relativamente recente,
a televisão brasileira também adere a isso, recriando histórias épicas
em séries que são vistas por milhares de brasileiros e auxiliam na
venda dos livros, como foi o caso de A casa das sete mulheres, O tempo
e o vento, Guerra de Canudos,e várias outras. A indústria cultural
produz o que o público quer. Se as pessoas querem o épico, ele será
colocado, de formas diferentes, à disposição do público.
Jorge Luis Borges levanta ainda outra questão interessante: o
herói não é, necessariamente, aquele que sai vitorioso. Ao contrário.
Analisando Ilíada, de Homero, ele demonstra que o herói ataca a
cidade, mesmo sabendo que não pode conquistá-la e outros heróis
a defendem, embora já esteja em chamas.

De fato, os homens sempre sentiram que os troianos eram os


verdadeiros heróis. [...] Os homens buscaram parentesco com os
derrotados troianos, e não com os vitoriosos gregos. Isso talvez
porque haja uma dignidade na derrota que dificilmente faz parte
da vitória. (BORGES, 2000, p. 53).

Na Revolução Farroupilha, retratada em A casa das sete


mulheres, ocorre algo semelhante: os revolucionários, com poucas
armas e sem nenhum treinamento, lutam durante dez anos contra
os soldados do Império. Pode-se dizer que é uma batalha perdida
desde o princípio. Porém, o que é destacado nessa obra (e em

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 25-42–jan./jun. 2013 30


outras com o mesmo tema) é a coragem e a persistência de homens
que continuam lutando, mesmo sob as piores condições. Cabem
então questionamentos: Por que uma guerra perdida é valorizada
e continua atraindo a atenção de pessoas, mesmo decorrido tanto
tempo? De que forma se mantém essa ideia? A literatura contribui
para esta manutenção, como defendiam os autores do século XIX?
É o épico que constrói esse imaginário?
Os românticos já sabiam que o sentimento de pertencimento
é inerente ao ser humano. Em qualquer situação, busca-se a
identificação com aqueles que, de certa forma, partilham algo
em comum e coloca-se em oposição aos que estão mais distantes.
Distância aqui não se refere à localização espacial, mas a uma rede
de interesses comuns entre grupos de pessoas. O esforçoromântico
de dotar o país de uma história literária também era o esforço
de dotá-lo de uma identidade, afastando-o completamente da
metrópole. Stuart Hall,no século XX, entende que a identificação
não é automática, ela muda conforme a maneira como o sujeito é
representado. O sujeito, então, é dividido, fragmentado, composto
por múltiplos de si. Para o teórico, a identidade é politizada e
abre o caminho para uma política de diferença. Ele explica que as
culturas nacionais são as principais fontes de identidade, como se
fossem partes de nossa natureza essencial. Porém, ressalta que estas
identidades culturais na verdade são forjadas pela representação, que
é uma maneira de ver o mundo, a apresentação de uma imagem
percebida de outra forma, à qual são atribuídos sentidos. A ideia
de nação surge, então, no interior da representação, fazendo com
que as pessoas se identifiquem com as culturas nacionais tais como
são apresentadas. “Uma cultura nacional é um discurso, um modo
de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações
como a concepção que temos de nós mesmos.” (HALL, 2006, p.
50) (grifo no original) Portanto, a identidade é, ao mesmo tempo,
coletiva e individual, é uma escolha, uma necessidade que permite
ao sujeito se definir em relação a si mesmo e ao outro. É interessante

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 25-42–jan./jun. 2013 31


notar que, embora sem o conhecimento teórico que se desenvolveu
posteriormente, intuitivamente, os precursores do nacionalismo
literário já colocavam em prática, através de suas pesquisas e
narrativas, os mesmos conceitos.
Hall ainda explica que as dessemelhanças entre as nações
decorrem das diversas formas como elas são imaginadas. As culturas
nacionais são construídas a partir de elementos como tradição,
origem e do povo original, puro. Assim como os românticos fizeram,
constrói-se essa representação em cima de mitos, colocando a origem
da nação em uma época muito antiga, estabelecendo tradições e
continuidades através das narrativas, como por exemplo, A casa das
sete mulheres. Na obra é possível perceber a valorização das tradições
e da origem do povo. Apesar da proximidade com os países platinos,
vê-se que a identificação ocorre com o Brasil, porém, de forma
limitada. Os discursos mostram as personagens divididas entre o
contato com os países vizinhos - e a influência que deles recebem -
e a noção de pertencimento ao Brasil, embora em guerra contra o
governo. Em uma passagem da obra, o personagem Bento Gonçalves
afirma que ambiciona o fim da guerra, desde que o acordo de paz
possa salvar a dignidade do Rio Grande do Sul. Pede pressa nas
negociações já que Rosas, o ditador argentino, ameaça a soberania
brasileira, com tropas prontas a invadir o território. Assim, para o
farroupilha, a paz deve ser selada imediatamente para que a luta seja
contra o exército inimigo, e não contra irmãos.
Pesavento(2000) ressalta a proximidade entre a região do
Rio Grande do Sul com os países platinos, marcada por períodos de
convivência pacífica e outros de guerra, como um dos motivos que
permite que haja uma espécie de identificação com os habitantes da
região, construindo um discurso baseado em uma realidade pastoril
e revolucionária em comum, caracterizado pela virtude na guerra e
pelas atitudes autoritárias e, de certa forma, machistas.
Percebe-se, portanto, um universo simbólico estabelecido
a partir da historicidade e da prática. O passado, as tradições e

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 25-42–jan./jun. 2013 32


vivências vão criando um imaginário coletivo, exatamente o que os
românticos buscaram fazerjá no século XIX.
O imaginário, segundo Pesavento, é uma elaboração da
mente humana com uma finalidade. Para a pesquisadora, o
mundo percebido é arquitetado socialmente pelo pensamento, um
mundo legitimado pelos homens e pelo qual se luta. O imaginário
é produzido pelo real e pelo social, composto por representações
do mundo vivido e pelos desejos e sonhos de cada época, capaz
de modificar ou extrapolar a realidade e se torna real para quem
o vivencia. É “[...] sistema de ideias e imagens de representações
coletivas que os homens constroem através da história para dar
significado às coisas.” (PESAVENTO, 2006, p. 50).
É possível, portanto, dizer que o imaginário se estabelece
de forma coletiva, criando uma visão de mundo em comum e que
passa a ser a visão que as pessoas têm de si mesmas e das outras, e
ainda, como são vistas pelas outras. Ele institui princípios de valores
históricos, culturais e de ideais referentes a instituições sociais ou
comunidades, sendo carregado de emoções e afetividade.
Sendo o Brasil um país continental, é natural que cada
região tenha características próprias, desenvolvidas a partir de
fatores geográficos, históricos e sociológicos. É possível perceber
claramente comunidades que se unem por interesses comuns e
dividem os mesmos discursos. Há uma divisão entre o universal e o
particular, uma identificação com a nação da qual se faz parte, sem
perder sua expressão própria, original e regional. É justamente essa
expressão particular - valorizada já no século XIX - que contribui
para a construção do imaginário coletivo. Como os nordestinos se
veem e são vistos pelos paulistas? Como os paulistas são vistos pelos
gaúchos? Como os gaúchos são vistos pelos amazonenses? E como
veem a si próprios?
Várias são as maneiras de se construir um imaginário, porém,
logo se percebeu que as histórias são um ponto privilegiado para isso.
Desde tempos imemoriais o homem sempre as contou. Narrativas

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 25-42–jan./jun. 2013 33


orais, declamadas ou não, eram utilizadas como registro da memória
de um povo. Mães e avós contavam histórias às crianças. Antigas
lendas indígenas eram formas de explicação para os fenômenos
observados. Os mitos, para os gregos, eram formas de identificação
e de reconhecimento de si mesmos como povo. Eram discursos
memoráveis míticos, fabricados e repetidos indefinidamente, um
universo simbólico, uma representação, produzindo sentidos,
criando heróis. As histórias contêm vozes de tempos passados, de
toda uma memória significativa acumulada ao longo dos séculos.
No Romantismo, os autores buscavam no indígena a origem do
Brasil, num esforço de reinterpretação do passado, marcando de
forma inequívoca a diferença entre o Brasil e a Europa. Personagens
históricas que se destacaram na nova nação que se desenvolvia
passaram a ser personagens de narrativas épicas, incitando, com
seu exemplo, gerações que viriam.Em todos os momentos, porém,
onarrador sempre teve a liberdade de recriar, de recontar as suas
histórias, introduzir inovações, produzir versões que, na verdade,
reproduzem as mesmas narrativas. João Adolfo Hansen (2008),
ressalta que

[...] a ficção épica não é nem deve ser lida como documento de
coisas e ações empíricas, pois sua narração estiliza a matéria histórica
numa maneira elevada, que põe em cena e celebra, por semelhança, a
forma essencial ou universal da ação, caracterizando-a como heroica
ou ilustre, grande e perfeita. (HANSEN, 2008, p. 42)

A casa das sete mulheresnão é o primeiro texto a recontar a


Revolução Farroupilha, nem será, provavelmente, o último. Os
primeiros romances representativos a abordarem o tema foram O
Corsário, de CaldreFião (1851), O Gaúcho, de José de Alencar (1871)
e O Vaqueano, de Apolinário Porto Alegre (1872), todos escritos sob
a influência das ideias nacionalistas românticas.
Borges (2000) afirma que há somente poucos enredos e o
interesse dos livros não está nestes enredos, mas nas mudanças, nas

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alterações sofridas por eles. Isso não implica falta de criatividade, ao
contrário, os leitores, sabendo o que será contado, podem assimilar
todas as diferenças.
Roland Barthes (1999), ao falar sobre o mito, reforça a
interpretação de Borges de renovação dos enredos, quando afirma
que omito é uma imagem criada pelos homens para transmitir
mensagens que são interpretadas metaforicamente. Como
imagem, ele pode e deve ter múltiplas leituras, sendo, portanto,
plurissignificativo “[...] é por isso que se pode raciocinar sobre eles
independentemente de sua matéria.” (BARTHES, 1999, p. 132).
O autor explica que o leitor pode apropriar-se do sentido do mito
e, ao enunciá-lo, não estabelece mais exatamente a relação primeira.
“É que o mito é uma fala roubada e restituída. Simplesmente, a fala
que se restitui não é exatamente a mesma que foi roubada [...]”.
(ibidem. p. 147) (grifo no original). Os escritores têm, portanto,
olivre-arbítrio de retomar temas, porém utilizando-os como fonte
de criação artística, recriando-os com liberdade. Visto desta forma,
forçosamente tem-se que assumir que existe, em determinados
temas ou em determinadas histórias, um foco de interesse que lhes
permite inúmeras recriações, o que se vê na Revolução Farroupilha.
Jorge Luis Borges, porém, estranha que, de duas guerras
mundiais, não tenha surgido nenhum épico. Provavelmente porque
nestas duas guerras mundiais não houve um dos elementos essenciais
para o surgimento do épico – a identificação, o pertencimento. Se o
épico, historicamente sempre foi a narrativa de heróis agindo sobre
o mundo, estes heróis somente o são por terem o reconhecimento
de suas comunidades. Cria-se ao redor deles um universo simbólico,
uma representação: são eles os modelos de homens que devem ser
seguidos. Ora, nas guerras mundiais não houve propriamente uma
identificação em torno de um ou mais homens que representassem
os ideais de coragem e honra de um povo específico, até porque
havia várias nações envolvidas.
Não é o que acontece, porém, com a Revolução
Farroupilha,como se viu, presente em inúmeras narrativas desde

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o século XIX. Em A casa das sete mulheres, nota-se que o tema da
Revolução atrai o interesse das pessoas, é um acontecimento que
permanece vívido na consciência da comunidade, unida por uma
noção de pertencimento. E é a vivência em comum que cria esse ideal
de pertencimento. Porém a Revolução apresentada não é mais real,
mas simbólica, recriada, uma representação surgida na/pela ficção.
O universo simbólico representa sempre o real, o que é necessário
para que os homens possam pensar e agir em sua sociedade, no
contato com os outros homens.

O simbólico se faz presente em toda a vida social, na situação


familiar, econômica, religiosa, política etc. Embora não esgotem
todas as experiências sociais, pois em muitos casos essas são
regidas por signos, os símbolos mobilizam de maneira afetiva as
ações humanas e legitimam essas ações. A vida social é impossível,
portanto, fora de uma rede simbólica. (LAPLANTINE,
TRINDADE, 2011, p. 21-22)

O romance A casa das sete mulheres, através da recriação do


enredo, contribui para a criação do imaginário, retomando, assim,
princípios românticos. A autora, Leticia Wierzchowski, partindo
de uma visão simbólica a respeito da Revolução, dá a ela novas
cores, colocando em cena as lembranças da personagem Manuela.
É ela que, através de seus cadernos, vai evocando suas memórias e
recriando os acontecimentos. Porém, o passado revisitado é subjetivo,
corresponde a uma visão emotiva e impressionista.
Halbwachs (2004), analisando a questão da memória, esclarece
que ela nasce sempre de um coletivo. Todas as lembranças surgem
baseadas no confronto entre o que o indivíduo vivenciou e o que o
grupo o fez. São as outras pessoas que permitem que as lembranças
aflorem, principalmente em se tratando de acontecimentos inscritos
na história. Afirma também que pessoas que vivenciaram o mesmo
acontecimento têm dele lembranças diferentes com nuances
diferentes. Lembranças que fazem sentido no grupo, que armazenam

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o que interessa à comunidade partícipe. A memória coletiva “retém
do passado somente aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver
na consciência do grupo que a mantém.” (HALBWACHS, 2004,
p. 86). A literatura contribui para a manutenção dessas lembranças
quando reconta vezes e vezes as mesmas histórias. Estas permanecem
presentes e significam no interior das comunidades.
O leitor, durante seu percurso de leitura, recria as suas
lembranças e as reconstrói no contato com o texto, surgindo daí
o imaginário. A verossimilhança permite uma identificação mais
completa, envolvendo o leitor em uma teia de acontecimentos já
conhecidos que, recriados, surgem renovados. Cada mulher pode se
imaginar na situação das personagens, sentindo-se sozinha, porém
forte, enfrentando os desafios que vão surgindo. Cada homem
assume o papel de um guerreiro, forte, corajoso, honrado, lutando
por seu povo e por seus ideais. Cada qual, um herói do seu épico,
da sua própria vida. Segundo Hansen (2008), “[...] os personagens
épicos são heroicos da mesma maneira que toda virtude é heroica.”
(HANSEN, 2008, p. 52). É assim que o gaúcho se imagina? Ele é
capaz de se identificar com estes personagens? Tudo parece indicar
que sim, já que o romance alcançou bastante sucesso em todo o país.
Benedict Anderson (1993) propõe o conceito de comunidades
imaginadas. Para ele, comunidades imaginadas são aquelas ligadas
por uma imagem viva de comunhão entre seus membros. Ele reflete
sobre os elementos que podem estabelecer esta comunhão, entre eles
as raízes culturais, religiosas ou os reinos dinásticos. Além isso,assim
como Afrânio Coutinho, destacao romance como uma das principais
formas de criação imaginária. Para Anderson, a própria estrutura
do romance leva à noção de simultaneidade, em que personagens
agem de maneira concomitante, porém sem sequer saberem da
existência umas das outras. Assim também as pessoas não conhecem
todos os membros de sua comunidade, mas acreditam que todos
pensam e agem de maneira semelhante. O autor sugere, inclusive,
a comparação entre os romances históricos e os documentos e

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narrativas de um determinado período, verificando-se que existem
pontos em comum, uma união entre o mundo interno e o externo.
O leitor, então se vê inserido em um mundo em que várias outras
pessoas leem as mesmas coisas, identificando-se, portanto, com os
outros membros de sua comunidade (imaginária), partilhando das
mesmas raízes. Os leitores estão ligados pelo diálogo que se estabelece
entre eles e, ao mesmo tempo, com o romance.
Chega-se ao outro lado da questão. Assumindo-se que o leitor
do sul identifique-se com os personagens do romance principalmente
por seu pertencimento a uma comunidade imaginária, por que A casa
das sete mulheres - assim como outros romances como, por exemplo,
O Gaúcho (1871) - também teve visibilidade em todo o país?
Dentro dessa perspectiva, é possível que seja justamente por
recriar o imaginário, a forma como o habitante do sul é visto pelas
outras pessoas.
É comum que o indivíduo seja abordado por frases que dizem
ser a leitura uma viagem, que é possível viajar nos livros e que se
pode conhecer, através deles, outros lugares. Um leitor de outra parte
do país tem, a partir de sua leitura, uma representação de como é
o Rio Grande do Sul, de como vivem as pessoas, como pensam, o
que fazem. Constrói, portanto, seu imaginário, sua visão que não
é, necessariamente, a realidade. Mas assume, então, que as atitudes
e características das personagens são as mesmas dos habitantes da
região, e pode dizer que a conhece.Assinala-se, aqui, a ambição
de José de Alencar que, em seus romances de cunho regionalista
buscava mostrar a toda nação como eram os lugares a que a maioria
da população não tinha acesso. Aliás, o próprio romance O Gaúcho
(1871) foi escrito a partir de histórias ouvidas pelo autor. Portanto,
um imaginário contribuindo para a criação de um imaginário.
A casa das sete mulheres possivelmente também se destacou
no país por exaltar as virtudes de coragem, dignidade e honra,
mesmo diante da derrota. Tais valores continuam importantes
na sociedade atual, assim como o eram no século XIX. A maioria

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da população convive diariamente com várias dificuldades. É a
eterna luta do bem contra o mal, do gigante contra o pequeno,
representada em A casa das sete mulheres pela luta da província contra
o império (que representava resquícios da dominação portuguesa).
Em outras palavras, uma luta épica. Em tempo: a evasão da
realidade e a tentativa de transcendê-la pela imaginação é outro
importante princípio romântico: “[...] fugir da realidade para um
mundo idealizado, criado, de novo, à sua imagem, à imagem das
suas emoções e desejos e mediante a imaginação.” (COUTINHO,
1988, p. 146).

Considerações Finais

O Romantismo foi um movimento que se desenvolveu


durante o século XIX, porém, alguns de seus preceitos permanecem
vivos, marcando presença em obras contemporâneas, como é o caso
de A casa das sete mulheres.
Neste artigo, procurou-se mostrar como o épico, gênero
utilizado pelos românticos para valorizar a nação brasileira,
foi também utilizado por Letícia Wierzchowski em sua obra,
retratando a Revolução Farroupilha e contribuindo, desta forma,
para a construção de um imaginário coletivo.A casa das sete mulheres
recria tradições e valores heroicos, colocando novamente em cena
peculiaridades da nação brasileira e satisfazendo a necessidade
humana pelo épico, que, segundo Borges, perpassa gerações.
Autores modernos como Benedict Anderson e Stuart Hall
buscaram explicar em seus estudos teóricos aquilo que os românticos
do século XIX já haviam feito na prática: o imaginário é um
discurso construído, e isso pode ser feito através da literatura e,
especificamente, das narrativas épicas, narrando histórias de heróis
que criam e recriam um universo simbólico e unem, em torno da
mesma ideia, uma comunidade. Porém, enquanto que no século XIX
isto era uma necessidade política, hoje parece ser uma reafirmação de

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valores, uma forma de manter unida uma comunidade bombardeada
constantemente por inúmeras influências estrangeiras.

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Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 25-42–jan./jun. 2013 41


Machado de Assis e o Teatro Brasileiro

Danielli Rodrigues 1
Luciana Brito (co-autora)2

(...) longe de educar o gosto o teatro serve apenas para desenfastiar o


espírito, nos dias de maior aborrecimento.
(Machado de Assis)

Resumo: Machado de Assis escreveu diversos livros e é estudado por inúmeros críticos,
como Roberto Schwarz, John Gledson, Antonio Candido, Alfredo Bosi, João Roberto
Faria, somente para citar alguns. Sem dúvida, pode ser considerado nome basilar na
literatura brasileira, digno de estudos e pesquisas sobre os variados aspectos de suas
obras. O presente estudo visa abordar a crítica literária do teatro brasileiro pelo olhar de
Machado de Assis, assim como apresentar o modo como ocorre a crítica teatral inserida
em nosso país, a caracterização do cenário teatral do século XIX e do gosto estético da
sociedade da época, além das contribuições para a formação de um teatro brasileiro.
Palavras-chave: Crítica. Teatro Brasileiro. Machado de Assis.

abstract: Machado de Assis wrote diverse books and his works are studied by many
literary critics such as Roberto Schwarz, John Gledson, Antonio Candido, Alfredo Bosi,
João Roberto Faria, among others. Doubtless, he can be considered as a rare pearl in
the Brazilian literature, worthy the study and the research of varied aspects presented
in his works. This present study aims at to approach the literary criticism in Brazilian
drama by Machado de Assis’ view as much as present the manner in which the drama
criticism embedded occurs in our country, the characterization of drama landscape of
XIX century and the esthetic ideal of that society epoch, besides his contributions for
formation of a Brazilian drama.
Keywords: Critic. Brazilian drama. Machado de Assis.

1
Danielli Rodrigues é Especialista em Literatura Brasileira e Mestranda em Letras – Estudos
Literários pela UEL, sendo bolsista do CNPq. E-mail: danielliokamura@yahoo.com.br
2
Luciana Brito é Coordenadora e Professora Doutora da UENP/CJ no curso de Letras, e
Professora no Programa de Pós-Graduação em Letras da UEL. E-mail: lbrito@uenp.edu.br

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Introdução

De acordo com Peixoto (1986), a palavra teatro vem do verbo


grego theastai e significa ver, olhar e contemplar. Para Magaldi, a
etimologia dessa palavra remete a “lugar de onde se vê” (MAGALDI,
1991, p. 8), ou seja, ao local em que se assistiam as representações
teatrais, denominado odeion, auditório; por sua vez, a terminologia
grega, teatron, remete à plateia. Percebe-se que tais definições,
mesmo tendo o ponto de partida diferente, estão ligadas à ideia de
visão. Porém, desde seu nascimento na Antiguidade até os dias de
hoje, vários intérpretes e teóricos dessa atividade humana situam
dois pontos irrefutáveis como sendo os princípios3 do teatro: a
necessidade do jogo e a ânsia de “ser outro”. Ambos remetem a
um impulso da condição humana. O primeiro se refere à noção de
representação vinculada a algum tipo de ritual mágico e religioso
primitivo; o segundo, a um espírito lúdico, cuja finalidade seria
representar a si mesmo, aos deuses, aos animais etc. Por certo que
esses princípios estão contidos na origem da representação cênica
propriamente dita, datada dos primórdios da existência humana,
contudo, mesmo nos dias de hoje, esses princípios continuam
presentes e motivando a permanência dessa atividade.
No Brasil, as encenações teatrais têm início com a chegada
dos jesuítas, com os autos. Isto porque, em seus primórdios, o teatro
brasileiro era influenciado pelo teatro português devido à colonização
no século XVI. Tal influência se estendeu aos longos dos anos em
nossa literatura, mesmo após a Independência do Brasil, tendo uma
proposta efetiva de teatro realmente brasileiro com o Modernismo
em 1922.

3
Não confundamos princípio com origem ou nascimento. Princípio se remete às motivações
intrínsecas da condição humana e independe da época em que se vive. Origem, ou nascimento,
tem seu sentido cristalizado numa determinada época histórica. Para Peixoto, “desde muitos
séculos antes de nossa era até hoje, nunca deixou de existir: há algum impulso no homem, desde
seus primórdios, que necessita deste instrumento de diversão e conhecimento, prazer e denúncia”
(PEIXOTO, 1986, p. 7).

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O teatro surge de forma pedagógica, baseado na Bíblia e com
uma proposta de catequizar os índios: “Entre nós o teatro surge como
instrumento pedagógico: autos, encomendados pelo padre Manuel da
Nóbrega ao padre José de Anchieta, para catequese e ensinamento da
religião aos índios” (PEIXOTO, 1986, p. 78).
Partindo da cultura dos índios, o teatro com certeza era um
meio facilitador e eficaz para uma nova educação (portuguesa).
Tal educação era pautada na religião Católica e era mais fácil fazer
com que fosse aceita pelos índios por meio de uma representação
(imagem) do que apenas de um sermão. Assim, as peças eram
escritas pelos próprios jesuítas abordando elementos de sua cultura
e os dogmas da religião, fazendo uso de um esquema adaptado
de teatro medieval para tratar de problemas e aspectos da cultura
brasileira. No entanto, os autos praticamente não eram autos, mas
sim episódios preocupados em impor a religião aos índios, não
tendo uma importância enquanto drama. Nas palavras de Décio
Almeida Prado:

Nem chegam propriamente a ser autos, na acepção rigorosa do


termo, se considerarmos a ideia de unidade que a palavra auto
suscita. Serão antes uma série de episódios esparsos, alinhavados
por um fio de enredo quase inexistente, ilustrações piedosas da
vida dos santos, redigidas em duas, três línguas diversas, que talvez
alcançassem junto ao público os seus fins edificantes, sem possuir,
em virtude disso, maior força dramática ou sabor poético (PRADO,
2003, p. 10).

Já no século XVII, as encenações começaram a ser


prejudicadas pelas lutas de invasões de outros povos europeus,
como os holandeses, espanhóis, franceses. O teatro pedagógico
(catequético) entra em declínio, visto que as atividades missionárias
estavam praticamente consolidadas. Surgem, então, representações
profanas, na maioria das vezes feitas para comemoração de alguma
data. O teatro começa a ser confundido com festas populares, no

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caso os bailes e as cavalhadas. No século seguinte, há uma tentativa
de estabelecer companhias e uma preocupação com o local para o
fazer teatral. As representações, que antes aconteciam em igrejas,
palácios e praças públicas sobre um palco/tablado, ganham um local
específico, permanente, como a Casa da Ópera.
No entanto, em uma sociedade de senhores e escravos,
calcada em preconceitos e na qual durante esses três séculos de
colonização os artistas recrutados eram oriundos da plebe (índios
domesticados, escravos, negros, mulatos, mamelucos, etc.), o teatro
não era a atividade mais prezada à época. Não ficou uma produção
teatral que possamos julgar relevante e nem escritores importantes;
embora tenham se feito notar algumas influências europeias dos
mestres Metastásio, Calderón, Molière. Nos fins do século XVIII,
surge uma esperança em torno dos escritores inconfidentes, que
convivem em um lugar/momento propício à arte, mas ainda não
há produção relevante:

(...) há realmente, notícias de tragédias escritas por inconfidentes,


por Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto, algumas das
quais representadas em Ouro Preto. Ainda aqui, entretanto, não
temos sorte: nenhuma das peças dos poetas arcádicos resistiu ao
tempo. De novo, vemo-nos com as mãos vazias: tentamos agarrar
a realidade e, no entanto, só conseguimos obter nomes e datas, sem
vida, nem consistência (PRADO, 2003, p. 12)

Posteriormente, com a vinda da família real (1808), o Brasil


obtém algumas melhorias no teatro e, por conseguinte, com a
Independência (1822), um forte sentimento nacionalista nasce no
povo. João Caetano, Gonçalves de Magalhães e Martins Pena são
fundadores da tragédia e comédia nacionais. Mais tarde, outros
seguidores como Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar,
França Júnior, Artur Azevedo e Machado de Assis. Dessa forma,
o século XIX, influenciado pelo Romantismo, empreende uma
tentativa de criar realmente um teatro brasileiro, mas ainda falta

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um texto dramático nacional e um público consciente. Na segunda
metade daquele século, teremos a importante participação de
Machado de Assis no cenário teatral, criticando e identificando
problemas para a formação do teatro brasileiro.
A crítica de Machado de Assis referente ao teatro é uma
apresentação de um projeto teatral, ou seja, uma proposta para um
teatro nacional, brasileiro. Machado é notavelmente reconhecido
como crítico, mas como dramaturgo, por vezes, a crítica julgou e
julga suas peças de pouca importância. Entretanto, é inegável que
Machado, na sua dramaturgia, procura não cometer os erros dos
escritores mencionados em sua Crítica teatral e busca um teatro
mais elaborado. Em suas peças, apresenta um discurso crítico,
comentando, opinando e julgando um determinado conceito
literário juntamente com elementos metaliterários: metapoesia,
metaficção, metateatro. É nesse sentido que também é perceptível
a sua crítica ao teatro dentro de seu próprio teatro (metateatro) e,
nas peças, é possível verificar traços dessa crítica sobre o teatro de
sua época.
Vale salientar que várias mudanças ocorreram na Europa
durante a segunda metade do século XIX: de um lado o capitalismo
passando por diversas transformações e de outro as diversas
experiências da classe operária, questionando e fazendo reivindicações
sociais. Nessas mudanças e transformações sociais, surgem tensões e
posições ideológicas, agito de ideias e ideais filosóficos e científicos,
permitindo ao homem ter um melhor e maior conhecimento sobre
si. No que se refere ao contexto histórico, nas últimas décadas do
século XIX, o Brasil enfrenta a crise da monarquia e ainda o aumento
da urbanização.
Na literatura, em 1857 Gustave Flaubert publica, na França,
Madame Bovary, obra que propõe uma literatura antirromântica,
de denúncia dos valores burgueses. Pouco mais tarde, em 1859,
irrompem o evolucionismo de Darwin (A origem das espécies) e,
em 1865, a Questão Coimbrã, em Portugal. Em suma, fica visível

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que esses fatos marcam a vida de Machado, que passa a contribuir
significativamente para a crítica literária do teatro brasileiro.

A Crítica Teatral em Torno de Machado de Assis



Na juventude, Machado estreia como crítico teatral no
semanário O espelho, por meio do qual, após alguns artigos, torna-
se reconhecido. Da mesma forma que outros escritores e críticos
(Quintino Bocaiúva e José de Alencar) consagrados de sua época,
busca uma melhora no teatro brasileiro e as suas críticas trazem
contribuições em torno das ideias sobre teatro. Sem dúvida,
“Machado foi o melhor crítico teatral do período. Suas ideias estão
espalhadas em artigos específicos sobre autores e peças, bem como em
folhetins e nos dezesseis pareceres que escreveu para o Conservatório
Dramático” (FARIA, 1998, p. 43), e é por meio dele que temos uma
proposta de reforma teatral no Brasil.
É importante ressaltar o contato que Machado teve com
o repertório teatral francês, do qual traduziu várias peças, sendo
assim influenciado no início de sua produção teatral, como em Hoje
avental, amanhã luva (1860). Havia outros escritores que faziam
traduções de peças francesas e, como elas eram bem aceitas pelo
público, eram encenadas com a garantia de audiência. Percebe-se que
“(...) os dramaturgos brasileiros, estimulados pelo repertório francês, mas
sintonizados com as nossas transformações sociais, realizaram em suas
obras o primeiro esforço conjunto para a formação de uma consciência
burguesa no Brasil” (FARIA, 1998, p. 46).
Machado acredita em um teatro nacional e com uma função
social, e deseja que a sociedade deixe de lado a antiga concepção do
teatro apenas como um mero passatempo. No período de 1857 até
1860, ainda quando a estética romântica e a realista se confrontavam,
Machado se encaminhava nos estudos literários publicando artigos
nos semanários e jornais, expondo as suas ideias e ideais sobre o
teatro e fazendo análises de representações teatrais. Também tem uma
participação como censor do Conservatório Dramático Brasileiro.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 43-64–jan./jun. 2013 48


Em seu primeiro importante artigo sobre a crítica literária,
O passado, o presente e o futuro da literatura (publicado no jornal
A marmota, 1858), o autor faz uma reflexão das condições do
teatro brasileiro apresentando a dependência da cultura de países
estrangeiros, a qualidade das peças traduzidas e a produção de
um teatro que mais parece cópia do teatro estrangeiro. No artigo,
Machado invoca uma mudança de hábito em nosso teatro:

Passando ao drama, ao teatro, é palpável que a esse respeito somos


o povo mais parvo e pobretão entre as nações cultas. Dizer que
temos teatro, é negar um fato; dizer que não o temos, é publicar
uma vergonha. E todavia assim é. Não somos severos: os fatos falam
bem alto. O nosso teatro é um mito, uma quimera. E nem diga que
queremos que em tão verdes anos nos ergamos à altura da França, a
capital da civilização moderna, não! Basta que nos modelemos por
aquela renascente literatura que floresce em Portugal, inda ontem
estremecendo ao impulso das erupções revolucionárias. Para quê
estas traduções enervando a nossa cena dramática? Para quê esta
inundação de peças francesas, sem o mérito da localidade e cheias
de equívocos, sensaborões às vezes, e galicismos, a fazer recuar o
mais denodado francelho? (ASSIS, 2008c, p. 112).

Essa sugestão de mudança nos leva à seguinte reflexão: será


que Machado contribui para a modernização do teatro nacional
ou para a sua solidificação? Tal reflexão é um pouco complexa,
mas partindo das palavras do próprio Machado, fica claro que
é necessária uma solidificação do nosso teatro brasileiro, já que
o mesmo praticamente inexiste no período – ao menos nos
moldes propugnados por Machado. Como querer que haja uma
modernização, se nem a sua solidificação ocorreu? Embora tais ideias
sejam interessantes e tenham provocado os escritores de seu tempo,
a mudança sugerida não ocorre e, de um ano para outro, é difícil
mesmo rever a exposição de suas ideias. Machado insiste, e no ano
seguinte, em seu artigo Ideias sobre teatro (no semanário O espelho),
utiliza-se de argumentos plausíveis e concisos para abordar a arte

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dramática. Além disso, apresenta conceitos necessários para o teatro,
nos levando à reflexão sobre a situação da sociedade carioca perante o
teatro: “A iniciativa em arte dramática não se limita ao estreito círculo
do tablado – vai além da rampa, vai ao povo. As plateias estão aqui
perfeitamente educadas? A resposta é negativa” (ASSIS, 2008b, p. 131).
A proposta de Machado é considerável e viável, mas a
sociedade tem um processo lento na educação; tal fato torna difícil
ter uma sociedade educada para esse teatro nacional. Esse processo
depende de vários fatores, como da necessidade do fortalecimento
da literatura dramática e do teatro, para que o público seja mais
exigente; sendo mais exigente, a literatura dramática e o palco
tendem a aperfeiçoar-se. Nesse sentido, é óbvia a necessidade de
mudança no gosto estético da sociedade para que o Brasil desenvolva
o seu próprio teatro, mas querer isso parece ser apenas uma utopia
para aquele momento. No entanto, Machado não está sozinho,
pois faz coro com outros críticos da época que tentam abrir novos
caminhos para o teatro, como o dramaturgo José de Alencar.
Entre os diversos artigos publicados posteriormente, no
Diário do Rio de Janeiro 4em 1866, publica O teatro nacional
criticando os exageros da época:

A cena brasileira, à exceção de algumas peças excelentes, apresentou


aos olhos do público uma longa série de obras monstruosas, criações
informes, sem nexo, sem arte, sem gosto, nuvens negras que
escureceram desde logo a aurora da revolução romântica. Quanto
mais o público aplaudia, mais requintava a inventiva dos poetas; até
que a arte, já trucidada pelos maus imitadores, foi empolgada por
especuladores excelentes, que fizeram da extravagância dramática
um meio de existência. Tudo isso reproduziu a cena brasileira, e
raro aparecia, no meio de tais monstruosidades, uma obra que
trouxesse o cunho do verdadeiro talento (ASSIS, 2008g, p. 397).

4
Publicado em 13 fev., na Semana literária.

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Para Machado, ironicamente, o público não tem culpa, pois
fazia o seu papel em assistir e aplaudir as peças nacionais; assim,
com os aplausos e a presença da plateia, havia a motivação para
novas representações. Pudera o público refletir sobre as peças, antes
de ficar aplaudindo a primeira peça que assistissem? Ao que parece,
qualquer peça era aplaudida, não havia uma reflexão em torno da
representação teatral, mas sim um hábito de aplaudir os autores. O
gosto da sociedade não mudava perante o teatro, e o estado da arte
dramática também não era apropriado. Diante disso, questiona as
imitações do Romantismo, tal qual as do Realismo que, impregnadas
de teorias levadas ao exagero, estavam longe de uma renovação do
teatro. Considera que tal mudança levaria bastante tempo e, mesmo
assim, quase sem esperanças em relação ao teatro brasileiro, faz apelo
para o Estado, pois acredita que este tem poderes para contribuir
com a reforma necessária no gosto do público.
O crítico, mesmo com poucas esperanças, não desiste: no
Diário do Rio de Janeiro, também no mesmo ano (meses diferentes),
publica artigos sobre o teatro de alguns dramaturgos da época
como Gonçalves Magalhães, José de Alencar e Joaquim Manuel de
Macedo, apresentando os seus acertos e erros para a formação do
teatro nacional. Tais críticas mostram como se fazia teatro naquele
momento e o que poderia ser melhorado.
No artigo O teatro de Gonçalves de Magalhães, deixa claro que
a sua importância se dá por ser o marco do teatro nacional a partir
da peça Antonio José (1838), tragédia que apresenta uma reforma na
cena e na arte de declamação contando a história do poeta judeu,
Antonio José, morto na Inquisição. Sua segunda tragédia, Olgiato
(1839), não fez tanto sucesso e, ocupando-se com outras funções,
deixa de lado o teatro. Machado apresenta certas imperfeições do
teatro de Gonçalves Magalhães e afirma que a peça Antonio José não
pode ser considerada uma tragédia:

Mesmo atendendo ao propósito do autor em não ser nem


completamente clássico, nem completamente romântico, não se

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pode reconhecer no Antonio José o caráter de uma tragédia. Seria
impróprio exigir a exclusão do elemento familiar na forma trágica ou
a eterna repetição dos heróis romanos. Essa não é a nossa intenção;
mas segundo nos parece, não deu bastante atenção ao elemento
puramente trágico, que devia dominar a ação, e que realmente não
existe senão no 5º ato (ASSIS, 2008d, p. 406).

Além de comentar que só se percebe a presença do trágico


no 5º ato, conclui haver apenas duas situações dramáticas, uma no
3º e outra no 4º ato, nota que do início ao fim da peça o escritor
desenvolve um estilo e versificação diferentes, e completa afirmando
que a sua peça não tem paixão. A peça Olgiato também traz as
mesmas imperfeições, sendo apenas um pouco mais dramática. Em
seus argumentos, Machado traz exemplos de situações das duas peças
para comprovar que as tendências do escritor mencionado não são
dramáticas, embora haja o seu esforço intelectual.
No artigo O teatro de José de Alencar, Machado divulga que
grande parte das obras dramáticas surgia naquele decênio, citando
nomes dos conselheiros do teatro, como José de Alencar, Quintino
Bocaiúva e Pinheiro Guimarães, enaltecendo o talento e a reputação
destes. Também comenta que os poetas mantinham ora relação
com a imprensa, ora com a política. Poderiam conciliar a poesia e a
política? Escolheriam uma das duas? Manteriam os seus propósitos?
Ficam essas questões deixadas de lado para tratar da produção
dramatúrgica de José de Alencar.
A estreia de José de Alencar ocorre em 1857 com a comédia
Verso e reverso, muito aplaudida. Posteriormente segue com uma série
de obras dramáticas. De acordo com Machado, Alencar é um dos
mais talentosos poetas dramáticos da época e que na obra Asas de
um anjo (1858) consegue ser original quanto ao estilo e à construção
dos diálogos, permitindo uma observação de forma detalhada das
coisas da vida. Na peça Demônio familiar (1857), afirma que Alencar
atingiu a alta comédia:

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É sem dúvida necessário que uma obra dramática, para ser do
seu tempo e do seu país, reflita sobre uma certa parte dos hábitos
externos, e das condições e usos peculiares da sociedade em que
nasce; mas além disto, quer a lei dramática que o poeta aplique o
valioso dom da observação a uma ordem de ideias mais elevadas
(...) (ASSIS, 2008f, p. 411).

Machado comenta que nas peças de Alencar a família


apresentada é uma família verdadeiramente brasileira em suas
relações e costumes domésticos, o que leva à comoção. Além disso,
apresenta perfeitamente as tendências cômicas e dramáticas. Em Mãe
(1860), julga que o escritor oportuniza um dos melhores dramas
nacionais bem concebidos, juntando a consciência e a inspiração.
Todavia, divergem na forma como o escritor enfrenta a arte e a sua
visão diante dos costumes. Aqui, encontramos um Machado com
mais esperanças depois de comentar sobre as peças de José de Alencar,
em especial Demônio familiar. Para ele, agora há esperanças para o
futuro, estando mais próxima a possibilidade de uma arte brasileira
com cena brasileira e de forma solidificada.
No artigo O teatro de Joaquim Manuel de Macedo, apresenta
Macedo como um dos mais aplaudidos, com as suas peças
representadas em todo o império e tendo uma vasta produção
e repertório teatral. Inicia os seus comentários a partir de dois
dramas que julga menos aplaudidos e mais relevantes, Cego (1849)
e Cobé (1859). Na crítica da peça Cego mostra as suas imperfeições
e defeitos, como a forma de ter escrito em versos dramáticos com
períodos frouxos, versos imperfeitos e falas eloquentes, embora com
ideias belas e originais. Em Cobé, diz que o drama tem as mesmas
qualidades e defeitos que o outro já abordado. Conclui que os seus
dramas exprimem sentimentos e sinalizam certo talento dramático,
mas precisam de reparos.
Em relação às outras peças, como Luxo e vaidade (1860)
e Lusbela (1862), Machado demonstra decepção pela perda de
originalidade, caracteres ilógicos e incorretos, cenas mal ligadas entre

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si, entre outros problemas. Sua comédia tem uma boa reputação e
muitos aplausos, mas Machado contesta se é legítima essa reputação.
Macedo não atende aos verdadeiros elementos da comicidade em
suas peças, fazendo uso da sátira e do burlesco em suas comédias.
Em Torre em concurso (1861), por exemplo, trata de uma caricatura
burlesca sobre costumes políticos e essa situação burlesca garante o
riso e os aplausos da plateia:

Tal é o teatro do Sr. Dr. Macedo; talento dramático, que podia


encher a biblioteca nacional, com obras de pulso e originalidade,
abandonou a via dos primeiros tentames, em busca dos efeitos e
dos aplausos do dia; talento cômico, não penetrou na esfera da
comédia, e deixou-se levar pela sedução do burlesco e da sátira
teatral (ASSIS, 2008e, p. 457-458).

Dessa forma, percebe-se um dramaturgo que se deixa levar


pela opinião, pelo riso e aplauso fácil, pela lotação de pessoas, pelas
inúmeras representações das peças, deixando em segundo plano
a atenção aos elementos dramáticos e ao gosto estético apurado.
Machado o condena por sacrificar o gosto e a lição da arte.
O pendor crítico de Machado está na sua preocupação com
o teatro nacional. Como crítico, busca a formação de um teatro
nacional, de uma literatura brasileira que tenha uma boa qualidade,
isto posto, nada mais natural que essa crítica e essas preocupações
apareçam e sejam projetadas também em suas peças. A proposta em
sua atividade crítica – seja nos textos desta natureza ou nas obras
teatrais – é de contribuir para a solidificação do teatro brasileiro. Os
artigos revelam essa busca do teatro nacional de forma consciente,
contrariando a dependência do teatro estrangeiro e sugerindo uma
produção original, preocupada com o âmbito estético e criando
a nossa literatura. Machado permite uma crítica estimuladora de
novos talentos quando questiona a estética literária em suas críticas
aos outros escritores, além disso, acaba orientando-os. Ao fazer sua
crítica, instiga os escritores por uma nova criação, uma produção
literária realmente brasileira.

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A Crítica e o Escritor-crítico nas Obras Machadianas

Os escritores apresentavam opiniões sobre o teatro nacional


valendo-se da imprensa da época. Quintino Bocaiúva parece
acreditar que as peças francesas eram uma boa influência para a
dramaturgia brasileira. Já José de Alencar investe no gênero teatral,
chegando à alta comédia com o Demônio familiar. Joaquim Manuel
de Macedo faz um teatro para agradar ao público. Enquanto isso,
por meio da crítica e de peças teatrais, Machado tenta mudar o
gosto estético do público.
Desse modo, entre a publicação de artigos críticos, escreve
as suas peças teatrais. A sua primeira peça encenada, O caminho
da porta (set. 1862) é seguida de outra, O protocolo (nov.1862),
ambas realizadas no Ateneu Dramático. O escritor publica essas
duas peças em 1863, no volume Teatro de Machado de Assis, na
Tipografia do Diário do Rio de Janeiro. O interessante é que as peças
são acompanhadas pelas cartas de Machado de Assis ao seu amigo
Quintino Bocaiúva e as respostas obtidas. No conteúdo das cartas,
verifica-se que Machado solicita a crítica em relação às suas peças
a uma autoridade literária e reforça que essa crítica, mesmo vinda
de um amigo, deveria ser imparcial. O escritor deixa claro que vai
publicá-las, porém, não irá fazê-lo sem o conselho do amigo. Segue
um trecho da carta de Machado:

Sou imensamente reconhecido, por tal, aos meus colegas da


imprensa. Mas o que recebeu na cena o batismo do aplauso pode,
sem inconveniente, ser translado para o papel? A diferença entre os
dois meios de publicação não modifica o juízo, não altera o valor da
obra? É para a solução destas dúvidas que recorro à tua autoridade
literária (ASSIS, 2008a, p. 311-312).

Quintino Bocaiúva responde à carta comentando inicialmente


sobre o talento de Machado e dando-lhe incentivos para o gênero,
mas com toda sua franqueza e lealdade, conforme solicitado pelo
escritor. Sobre as duas peças escreve:

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(...) devo dizer-te que havia mais perigo em apresentá-las ao público
sobre a rampa da cena do que há em oferecê-las à leitura calma e
refletida. O que no teatro podia servir de obstáculo à apreciação da
tua obra, favorece-a no gabinete. As tuas comédias são para serem
lidas e não representadas. Como elas são um brinco de espírito
podem distrair o espírito. Como não tem coração não podem
pretender sensibilizar a ninguém. Tu mesmo assim as consideras,
e reconhecer isso é dar prova de bom critério consigo mesmo,
qualidade rara de encontrar-se entre os autores (BOCAIÚVA,
2008, p. 312).

É sabido que Machado, em sua dramaturgia, aborda um gênero
intermediário, a comédia de costumes5, tampouco está preocupado
com o sentimentalismo e as emoções ainda presentes do Romantismo
e, levando em consideração que, diferentemente da tragédia, a
comédia não se atém tanto às emoções e “não nos faz compreender
melhor as crises extremas da vida humana e as mais exaltadas emoções
a elas ligadas, mas, mesmo assim, permite que tenhamos visão mais
clara dos costumes e hábitos da sociedade, das pequenas fraquezas e
excentricidades do comportamento humano” (ESSLIN, 1978, p. 81).
É possível perceber que o teatro de Machado, embora iniciante, não
estivesse tão destoante como relata Quintino. O que fica para nós da
resposta de Quintino é que as peças de Machado devem ser lidas e
não representadas; tal julgamento é trazido à tona até hoje por alguns
escritores na crítica contemporânea. É triste presenciar na maioria
dessas leituras o quão relevantes são as palavras de Bocaiúva, que
por vezes ficam como um julgamento final das obras dramáticas de
Machado, ainda mais quando comparadas aos seus demais gêneros,
como os contos, as crônicas e os romances. Não há como deixar de
lado a crítica de Quintino, porém, não há como sustentá-la para
toda a dramaturgia de Machado. Pensar que as peças de Machado
5
Para Martin Esslin, os gêneros básicos do drama são a tragédia e a comédia, tal termo (gêneros
básicos) não é aceito universalmente. Para ele, há também diversos gêneros intermediários
como a “comédia de costumes, a farsa, a tragicomédia, o burlesco, a comédia doméstica, a tragédia
doméstica, o melodrama e assim por diante” (ESSLIN, 1978, p. 73).

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somente devem ser lidas, é simplesmente acreditar que elas não são
passíveis de representação. Como justificar tal fato, se elas foram
apresentadas ao público? É inegável que não podemos justificar a
qualidade suficiente para o palco apenas pelo simples fato de elas
terem sido representadas. Mas como dizer que não são possíveis na
representação, se na própria peça há indícios que provam o contrário?
Há vários elementos, como a preocupação com a construção dos
personagens pelos seus próprios diálogos, ações, assim como através
de diálogos dos outros personagens; as rubricas que também trazem
a identificação para a encenação, o exagero da ironia levando ao riso,
entre outros. Apesar dessa avaliação rigorosa de Bocaiúva, Machado
não deixou de escrever as peças e apresentou a realidade brasileira
através dessas comédias de costumes. As comédias criticavam sim a
sociedade, mas eram carregadas de ironia e humor e, ainda, passíveis
de representação cênica, descrevendo com detalhes e dando vida
aos personagens e à situação; afinal, não podemos esquecer que
“quanto mais completamente um dramaturgo imagina uma situação e
os personagens que a vivem, mais perto a peça chegará da complexidade
e ambivalência da vida real” (ESSLIN, 1978, p. 107).
A crítica de Bocaiúva a Machado é até hoje polêmica, citada
por quase todos os escritores que comentam sobre o teatro de
Machado. Como foi observado anteriormente, o escritor aceita
a crítica de seu amigo Quintino; não faz reclamação ou discórdia
em relação ao assunto. As palavras de Bocaiúva soam como uma
verdade absoluta. No entanto, seria o teatro de Machado diferente
se não houvesse essa crítica? Talvez pudesse ter se dedicado mais
à produção teatral. O que podemos afirmar é que a crítica seria
diferente, pois tais críticos nem parecem fazer as próprias análises,
mas sim paráfrases da crítica de Bocaiúva:

Machado de Assis (1839-1908), maior romancista do Brasil,


também foi um excelente crítico teatral, mas suas peças, que evocam
os Provérbios de Musset, se prestam muito mais à leitura do que à
representação, conforme o acertado juízo de seu amigo Quintino
Bocaiúva (TEYSSIER, 2003, p. 131).

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Desse modo, comparam-no com outras atividades mais
repercutidas, como o romance e a crítica. Há certa ausência de uma
crítica mais minuciosa, ou melhor, que parta das peças e não de uma
crítica feita no início de sua produção teatral. Também é preciso
deixar de lado o juízo de Bocaiúva, a fim de não tomá-lo como uma
conclusão final, única e válida, praticamente inquestionável.
Sábato Magaldi (2004), ao apresentar a crítica do teatro
de Machado reserva um capítulo nomeado “Preparação de um
romancista”, levando no próprio título do capítulo a referência
do romance enquanto gênero mais valorizado do escritor. No
desenvolvimento do capítulo, Machado é referido como autor
de Quincas Borba, criador de Dom Casmurro, autor de Memórias
póstumas de Brás Cubas, autor do Memorial de Aires, ou seja,
novamente é passada a referência de Machado como um romancista,
destacando alguns de seus livros mais conhecidos. O crítico
Magaldi (2004), ainda que dedique um espaço até apropriado para
o assunto e demonstre uma percepção interessante em relação às
peças machadianas, deixa a desejar quando faz a comparação com
outros gêneros:

Feitas as mais diversas ponderações, é forçoso concluir: as peças de


Machado de Assis (1839-1939) não apresentam grandes qualidades
em si. Tivesse o autor cultivado apenas o teatro, seu nome seria
absolutamente secundário na literatura brasileira. Trata-se, porém,
do nosso primeiro escritor (MAGALDI, 2004, p. 125).

Há uma falsa modéstia quanto à conclusão do crítico em


relação às peças machadianas, quando utiliza uma justificativa
atentando para a importância de Machado como romancista e
deixando de lado o dramaturgo, como uma atividade de menor
relevância. No argumento seguinte admite não ser magnífico o título,
mas apropriado para uma tentativa de fazer a análise do dramaturgo.
Posteriormente, enaltece ainda mais Machado como um admirável
romancista, reconhece como um notável crítico no século XIX, mas
o empobrece enquanto autor teatral.

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Na tentativa de análise do dramaturgo recorre à crítica de
Bocaiúva para afirmar que Machado de Assis não tem vocação para
o palco, fazendo alusão aos outros gêneros praticados pelo escritor:

É lugar-comum o juízo segundo o qual Machado de Assis não


teve autêntica vocação para o palco. O anátema proferido por
Quintino Bocaiúva contra dois textos do início da carreira – “as tuas
comédias são para serem lidas e não representadas” – estendeu-se
pelos comentaristas posteriores a toda a obra dramática, apêndice
inferior da personalidade do ficcionista. Que o romance e o conto
sejam infinitamente mais expressivos, ninguém põe em dúvida
(MAGALDI, 2004, p. 125).

Percebe-se que Magaldi (2004) faz menção ao mesmo


problema citado por Teyssier (2003), a ideia de que o teatro de
Machado estaria mais voltado à leitura do que a representação;
problema questionado primeiramente por Bocaiúva no ano de
1863. Magaldi até alude que o questionamento é citado por outros
críticos posteriores a Bocaiúva e que tal frase percorre todos os textos
dramáticos do escritor. A colocação feita em relação aos demais
críticos é coerente e consciente, porém não consegue deixar um
pouco de lado a crítica de Bocaiúva e aproveitar de forma concisa a
produção dramática de Machado, tentando subordiná-la aos contos
e aos romances.
Ao comentar o objetivo do estudo nas peças, aborda que se dá
pela inconsistência delas; que o escritor não progrediu na literatura
dramática brasileira, mantendo se cômodo à forma de escritores
franceses e utilizando um parentesco com os provérbios de Musset
(relação com a forma francesa já citada por Bocaiúva). Conclui
que, possivelmente, Machado não teria incentivo para uma melhor
produção dramática depois do julgamento de Bocaiúva. Ao traçar
o perfil das peças afirma:

As virtudes das comédias machadianas prendem-se sempre a


negações: não têm mau gosto (...), não se entregam a exageros,

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não admitem melodramaticidade. Temerosas de ultrapassar os
limites das conveniências literárias, enclausuram-se em atmosfera
de meio tons, onde respirariam ridículos os arroubos românticos.
Tão tímidas se mostram de experimentar o hausto largo que se
encolhem propositadamente no fôlego comedido (...) Machado
prefere para si o âmbito limitado das peças em um ato. São uma
simples exposição de ideia espirituosa, um provérbio com feitio
moral, uma sentença que, por ser conclusiva, solicita um pequeno
entrecho. Esse caminho descomprometido casava-se melhor ao
tipo de representação a que se destinaram várias peças – saraus
literários de arcádias e ateneus dramáticos, em que se reunia um
público diminuto e especial, composto o elenco apenas de homens
(MAGALDI, 2004, p. 127).

Para ele, o teatro de Machado é descomprometido de acordo


com os elementos que o compõem. É certo que algumas peças
machadianas foram encomendadas para um grupo e lugar específico,
mas julgá-las feitas em um ato tendo isso como justificativa não é
suficiente. É sabido que nessa época, as peças escritas por um único
ato eram um estilo utilizado. As frases com lições de moral são
identificadas nas peças, mas não são sua essência.
Magaldi (2004) segue sua análise argumentando que há
poucos elementos de intrigas, sendo por vezes imperceptíveis.
Entretanto, se mantém um espírito observador e a ironia nos
diálogos, que o distanciam de um teatro do lugar-comum. Os temas
dos episódios, sobretudo, se referem ao matrimônio. O dramaturgo
sustenta a ação pelo diálogo e, mesmo quando é necessária a ausência
de um personagem do palco, faz uso de ideias pouco elaboradas,
mas criativas, como que para permitir que o personagem saia para
fazer algo e depois volte, entre outras. Magaldi critica a falta de
criatividade de Machado para o palco, e que suas qualidades levavam
às sondagens introspectivas que na se dão bem em cena, por fim
compara com os demais dramaturgos da época:

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O dramaturgo Machado foi, talvez, menos irregular que Macedo,
Alencar ou França Júnior. Mas não produziu uma só peça que se
igualasse aos melhores momentos daqueles nomes. O bom senso
poupou-lhe o dramalhão, o mau gosto e a vulgaridade. A falta de
vocação específica para o palco não provocou um só estalo cênico,
encontrável na obra dos outros. Como fino passatempo, apoiado no
sabor da linguagem, o teatro de Machado de Assis pode estimular,
até hoje, o prazer intelectual de uma plateia culta (MAGALDI,
2004, p. 139).

Apesar das críticas negativas à Machado enquanto dramaturgo,


comenta sua importância como crítico teatral, apresentando as ideias
conscientes que incitam outros escritores para a formação do teatro
brasileiro.
João Roberto Faria (2008) também recorre à crítica de
Bocaiúva, mas é bem mais sutil ao fazer uso dela. Além disso, Faria
(2003) não usa apenas os trechos mais utilizados pelos críticos,
realiza uma abordagem mais apurada, com comentários de diversos
trechos e com o todo da carta de Bocaiúva, relacionando-os aos
momentos de atividade literária de Machado. O interessante é que
não vê Machado apenas como um dos melhores romancistas, mas
sim como um estudioso da literatura, em específico no seu livro, do
teatro, escritor-crítico do teatro. Ao tratar da crítica teatral afirma:

Por incrível que pareça, o desejo de Machado foi atendido, pelo


menos durante algum tempo. Vários novos dramaturgos brasileiros
surgiram e nos três ou quatro anos que se seguiram a nossa
produção dramática se multiplicou, tornando-se, por algum tempo,
hegemônica no palco do Ginásio. Nomes hoje desconhecidos, como
Pinheiro Lopes, Francisco Manuel Álvares de Araújo, Constantino
do Amaral Tavares e Maria Ribeiro, além dos já citados Sizenando
Barreto Nabuco de Araújo e Aquiles Varejão, colaboraram para
tornar esse momento um dos mais fecundos da história do teatro
brasileiro (FARIA, 2008, p. 55-56).

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Para ele, as peças machadianas apresentam elementos
convenientes tanto nos recursos dos textos dramáticos quanto
nas críticas. As comédias podem ser dividas em dois conjuntos, o
primeiro: Desencantos, O caminho da porta, O protocolo e As forças
caldinhas, que se aproximam em sua abordagem da vida social do Rio
de Janeiro e dos enredos que apresentam relacionamentos amorosos;
o segundo é composto de comédias diferentes: Quase ministro
(política), Os deuses da casa (divertimento), Uma ode de Anacreonte
(propósito lírico), Tu só tu, puro amor (momento histórico), mas que
foram feitas sob encomenda. Nesse sentido, o primeiro conjunto é o
mais importante para a história do teatro brasileiro em relação à sua
representação como compromisso de Machado com a dramaturgia,
pois neles há: “(...) qualidade refinada, sem apelos ao baixo cômico,
que refletisse um pouco do modo de vida da burguesia emergente no
Rio de Janeiro” (FARIA, 2003, p. XXVI).
Portanto, de um crítico para outro temos uma visão às vezes
parecida, outras diferentes em relação à obra machadiana. Para se
chegar a uma conclusão se faz necessária a leitura das peças com
um olhar atento e consciente em relação ao teatro, para identificar
a sua construção no texto dramático.

Conclusão

Sábato Magaldi (2004), em seu livro Panorama do teatro


brasileiro, afirma que Machado queria mudanças no teatro; tais
mudanças não deveriam ser apenas no palco, mas também no
público, na plateia. Machado julgava necessário educar essa plateia,
para que novas concepções teatrais fossem construídas. Libertando-
se do teatro do passado, das imitações de peças clássicas e não
restringindo o novo teatro a um pequeno grupo teatral, ou seja,
caminhando junto com o povo, seria possível “democratizar” o
teatro e levar o seu verdadeiro valor à sociedade; porém, durante suas
reflexões, verificou que, além de problemas no palco e na plateia,

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havia também o problema na dramaturgia, ou melhor, a falta de uma
literatura dramática nacional, tais argumentos se fazem presentes
em suas críticas literárias sobre o teatro brasileiro.
Ademais, Machado provoca diálogos entre crítica e ficção
em suas peças; tal estilo é encontrado no decorrer de suas obras e
com mais frequência ao passar dos anos. Na peça Quase ministro,
por exemplo, faz uma crítica à poesia, à política e ao teatro lírico,
textos estes que nos trazem reflexões sobre o fazer literário; faz uso
também da intertextualidade, inserindo figuras greco-latinas como
Calígula e Minerva. O discurso apresentado possibilita mais de um
nível de leitura. Temos, por exemplo, a crítica dentro de um discurso
teatral, quando propõe ideias sobre a poesia e de como ela é feita.

Referências

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R. (Org.). Machado de Assis do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008c. p.
112-114.

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Documentos de processo de criação no cinema:
o roteiro

Eva Cristina Francisco1


Edina Regina Pugas Panichi2

Resumo: Quando se fala em Crítica Genética, automaticamente se pensa em


documentos de processo em forma de manuscritos. Com os estudos acerca da gênese da
criação, que envolvem também as obras de arte das mais diversas (cinema, pintura,
teatro, etc.) os documentos que mostram os “passos” dados pelo criador deixam de ser
apenas manuscritos, passando a abarcar outros elementos como, no caso do cinema e
do teatro, o roteiro. Assim, este trabalho objetiva engendrar algumas reflexões sobre o
roteiro como processo criativo, mais especificamente no caso da adaptação fílmica. Para
tanto utilizaremos a tradução do romance queirosiano, O Primo Basílio (1878), para
o filme de Daniel Filho (2007), trazendo uma comparação entre roteiros.
Palavras-chave: Roteiro; Cinema; Adaptação; Processo de Criação.

Abstract: Upon speaking about Genetic Criticism, automatically we think in


manuscripts as process documents. Due to studies about the genesis of creation, which
also involve several works of art (cinema, picture, theater, etc.), the documents that show
the creator’s “steps” are not only manuscripts anymore, but also cover other elements, such
as, in the cinema and theater cases, the plot. Thus, this paper aims engendering some
reflections about the plot as creative process, more specifically in the film adaptation. For
it we have as a base the adaptation of Eça de Queirós’ novel O primo Basílio (1878) ,
to Daniel Filho’s film (2007), bringing a comparison between both plots.
Key-words: Plot; Cinema; Adaptation; Creation Process

O roteiro e a adaptação

A adaptação cinematográfica oferece diversos subsídios no


que diz respeito aos estudos da gênese da criação. Em uma obra
fílmica, a história pode ser adaptada de várias fontes, dentre elas,
músicas, poemas e romances (este como o caso das considerações
1
Estudante do Programa de Doutorado em Estudos da Linguagem – UEL – Bolsista Capes
2
Docente Sênior do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem - UEL.

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feitas no presente trabalho). De início, pode-se pensar que se trata
de um trabalho mais ameno, comparado à criação de uma história
totalmente original. Todavia, “adaptar uma história tirada de outra
fonte em geral exige mais habilidade e maior compreensão do veículo
cinematográfico do que criar uma história nova” (HOWARD &
MARBLEY, 1996, p. 36).
Assim, muitas vezes, ao nos depararmos com uma obra
transmutada de uma narrativa literária, por exemplo, temos a
impressão, ou a absoluta certeza, de que “não era assim o original”.
Por quê? Nem tudo pode ser transmutado, somente aquilo que vai
instigar, envolver, prender a atenção do receptor é que será viável
adaptar. Deve-se ter a consciência de até onde se pode e se deve
cumprir com a fidedignidade da obra original. Acontecimentos
que demoram anos, meses em um romance, se tornam bem mais
interessantes ao ocorrerem em um mesmo dia, em um filme. Ao
recriar uma obra por meio da transmutação é importante que se
tenha um constante contrabalanço entre a fidedignidade à primeira
versão e a necessidade do drama, da intensidade e compreensão da
nova releitura que nasce. Conforme Field, 2001, p. 151:

Quando você adapta um livro ou romance em roteiro tem que


considerá-lo um roteiro original, baseado em outro material. Você
não pode adaptar literalmente um romance e fazê-lo funcionar
(...). Quando você adapta um livro em roteiro, tudo o que precisa
usar são os personagens, eliminar outros, criar novos incidentes ou
eventos, talvez alterar a estrutura inteira do livro.

O roteiro, seja ele o próprio texto na sua “primeira versão”


ou inspirado, ao ser transcodificado de outra fonte, deve ser
representado na tela como algo real para o espectador. Uma das
características principais do cinema é a impressão da realidade. “Os
atores são as personagens, os lugares e fatos parecem tão reais quanto
o cineasta consegue fazê-los reais” (HOWARD & MARBLEY, 1996,
p. 38). Dentro de tais considerações, traçamos a pertinência de

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estudar o roteiro como um dos documentos do processo criativo
nessa arte coletiva (cinema). Ele pode ser considerado o elemento
que dá início à trama; o “esqueleto” de todo o conflito e resolução
que estão por vir; o vir a ser da arte que tocará as emoções dos mais
diversos indivíduos:

Ao inserir o roteiro no processo de criação cinematográfico, nos


afastamos, primeiramente, dos embates diante dos limites da
palavras em relação à imagem. Roteiros são feitos, sim, de palavras
(são artefatos verbais), mas, nos diálogos, encontramos a palavra
escrita preparando-se para a oralidade, e, nas descrições de cena,
nos deparamos com palavras que engendram imagens, ou seja,
fortemente carregadas de visualidade. (SALLES, 2010, p. 172).

Mais que fazer da adaptação a gênese da criação cinematográfica


é fazer a recriação “funcionar” e para que isso aconteça, o público
deve se manter na poltrona, prestar atenção no enredo, preocupar-se
com o desfecho, com as personagens, com os fatos e acontecimentos,
ou seja, é preciso que o espectador participe da história contada em
tempo real. Se o tradutor não tiver essa preocupação e o público se
mostrar desinteressado, insensível, as chances de se acabar com a
trama cinematográfica são quase certas. O drama deve gerar impacto
sobre o público, gerar uma reação emocional dos expectadores para
poder existir.
Howard & Marbley (1996) defendem que para manter
a participação do público e criar a reação de emoções da qual o
drama depende é preciso trabalhar a incerteza (na plateia), seja ela
sobre um futuro imediato ou sobre o desenrolar da trama. Outro
meio de conquistar essa participação, segundo os autores, é gerar
o sentimento “esperança versus medo”. A partir do momento que
a plateia começa a torcer por certos eventos e, simultaneamente, a
temer outros, sem saber para que lado a história tomará seu rumo,
estará respondendo positivamente, por meio da incerteza, aos anseios
do diretor/roteirista.

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Para que tais estratégias (incerteza / esperança versus medo)
atinjam o objetivo do roteirista, acima de tudo, é preciso que ele
trabalhe para que os expectadores simpatizem com um ou mais
personagens principais e, na sequência, para adquirir a “esperança
versus medo”, é deixar que eles saibam o que pode acontecer
na história, mas nunca o que vai acontecer, ou seja, trabalhar a
curiosidade. Logo, basicamente, para conquistar a participação
do público é necessário lançar a antecipação das probabilidades de
acontecimentos no filme. Antecipar o que pode ou não acontecer
é uma situação informada pelo roteirista, não é uma situação de
ignorância, de desconhecimento total em relação ao que está por
vir na trama. Isto é, se a plateia ignora os perigos e benefícios que
podem surgir no filme, ela também é incapaz de antecipar o que
pode ou não ocorrer, o que pode causar desinteresse pela história
representada.
Basicamente, o segredo para que os elementos do roteiro, tais
como as cenas individuais e a história toda, estejam de acordo com
o anseio do roteirista está no fato de se ter conseguido conquistar,
na plateia, essa mistura de sentimentos, conhecimento e crença.
Para tanto, essa mixagem tem de existir no papel, no roteiro. Se
não houver uma consideração quanto a esse relacionamento com o
público na fase de roteirização, seja em uma adaptação ou em uma
história absolutamente original, praticamente a falha na produção
do filme por ser dada como certa.
Com base nessas reflexões, faremos a leitura do roteiro
de O Primo Basílio comparando a versão do enredo da narrativa
literária com a do enredo fílmico. Buscaremos, com isso, mostrar a
importância desse documento no processo de criação, nesse caso,
tratando da adaptação, como também expor como o roteirista fez seu
trabalho com eficiência a fim de fazer do filme um grande sucesso.
Para isso, será usada a perspectiva de Howard e Mabley em sua obra
Teoria e Prática do Roteiro.

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A Leitura Do Roteiro: Uma Comparação

Serão colocados, aqui, os elementos básicos da roteirização,


bem como as ferramentas eficazes na criação do roteiro para que,
desse modo, tenhamos uma leitura comparativa entre romance e
filme, pois, segundo Comparato:

A adaptação é uma transcriação de linguagem que altera o


suporte linguístico utilizado para contar a história. Isto equivale
a transubstanciar, ou seja, transformar a substância, já que uma
obra é a expressão de uma linguagem. Portanto, já que uma obra
é uma unidade de conteúdo e forma, no momento em que fazemos
nosso conteúdo e o exprimimos noutra linguagem, forçosamente
estamos dentro de um processo de recriação, de transubstanciação.
(COMPARATO, 1995, p. 330)

a- Protagonista, objetivo e obstáculos: o conflito central, tanto


no romance quanto no filme, gira em torno do personagem Basílio:
retomar o romance com a prima, como mais uma aventura, mesmo
ela sendo casada. A partir desse conflito surgem obstáculos: o
casamento de Luísa e seu pudor e respeito iniciais pelos valores
familiares e a reação de Juliana, com suas chantagens, ao descobrir
o adultério. O que difere o romance e o filme nessa questão é que
Basílio, após alguns encontros com a prima, se torna um homem
frio e indiferente, fazendo com que Luísa reflita sobre o que estava
fazendo e chegue a comparar o amante com o marido. Já no filme,
Basílio se mostra sempre carinhoso, romântico e dedicado nas cenas
do casal. Ele somente mostra sua verdadeira face ao saber, através de
Luísa, que o adultério havia sido descoberto, e resolve fugir.

b- Premissa e abertura: premissa é toda situação já existente quando


o protagonista começa a se movimentar no alcance de seu objetivo.
Já a abertura “é aquele ponto na história maior, que o narrador
selecionou para começar a recontar a história. (Howard e Mabley,

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1996, p. 88). No início do filme, Luísa reencontra o primo no Teatro
Municipal de São Paulo. O autor escolheu esta abertura para, por
meio do próprio diálogo, já situar o espectador do romance que
ocorrera no passado dos protagonistas, bem como para ir direto ao
conflito principal da narrativa. Ele poderia ter começado o roteiro
contando a história de amor que Basílio e Luísa viveram no passado,
mas, para a narrativa fílmica não seria de grande aproveitamento,
já que o espectador pode tirar suas próprias conclusões a partir da
abertura escolhida pelo roteirista. Aí corroboramos que o cinema
é um exercício de análise e síntese e que o expectador utiliza-se
de inferências para compreender a trama por meio de “meias
palavras” fornecidas pelo cineasta. Uma questão de elipse fílmica.
Já no romance, a premissa é a partir da apresentação de alguns
personagens, muito descritivamente, já com as falhas humanas que
denunciam a sociedade lisboeta da época (os perfis de Leopoldina
e do Sr. Acácio – personagens não presentes no filme - são claros
exemplos disso) e o leitor passa a conhecer a história somente após
várias páginas.

c- Tensão principal, culminância e resolução: a tensão principal


de um roteiro gira em torno do conflito principal da narrativa; toda
história pode ter uma ou mais tensões. Quando o espectador observa
os obstáculos dados na trama, passa a questionar os acontecimentos
sequentes: Basílio consegue seduzir Luísa? A tensão principal começa
quando Basílio consegue seduzir Luísa e a leva para a cama. Depois,
temos outras tensões consequentes desta. Quando Juliana descobre as
cartas, nos perguntamos: o que vai acontecer agora? Juliana vai contar
para Jorge? Luísa conseguirá o dinheiro para pagar pelas cartas? O
que vai acontecer se Jorge descobrir? No romance apresentam-se
as mesmas tensões. A tensão principal das duas obras são bem
semelhantes. A culminância é o clímax da história, o ponto mais alto
da narrativa fílmica. Tanto no romance como no filme, a culminância
se dá quando Jorge lê a carta que Luísa recebera de Basílio.

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Ele descobre a esposa adúltera e a trama se encaminha para o fim.
Já a resolução é o ponto em que a questão é resolvida, o público
pode relaxar, o desfecho da história é concluído. Na leitura das duas
obras, observamos que a resolução é bem semelhante: a morte de
Luísa. No romance, Basílio volta a Lisboa, mostra-se indiferente
ao falecimento da prima e lamenta por não ter levado com ele a
amante Alphonsine. Ele termina a história sem punição alguma ou
prejuízo. No filme ele também volta ao Brasil e age com o mesmo
desdém em relação ao falecimento da prima, investindo, logo em
seguida em outra conquista.

d- Tema: O tema pode ser definido como o ponto de vista do escritor


em relação à história que será contada. Esse ponto de vista pode ser
detectado na resolução da narrativa e nele, é revelada a interpretação
da obra pelo autor. “O tema é aquela área do ‘dilema humano’
que o autor escolheu explorar sob uma variedade de ângulos e de
maneira complexa, realista e plausível.” (Howard e Mabley, 1996,
p. 97). Na literatura portuguesa, o romance em estudo representa
um dos primeiros momentos de reflexão crítica sobre a organização
da sociedade burguesa em Portugal do século XIX. Na história da
traição praticada por Luísa e da chantagem que sofre por parte da
criada Juliana, não é a psicologia dos personagens que se encontra
em questão, e sim os mecanismos da sociedade que determinam
suas ações e as instituições que compõem a sociedade portuguesa.
O casamento, que se mostra como ideal de felicidade na literatura
romântica, é um dos principais alvos de crítica do escritor, que dá
como tema a insubordinação do matrimônio: o adultério.  Nos
dois textos estudados, a tematização é a mesma. Isso fica claro no
momento da morte da Luísa, a punição que a personagem recebeu
acarretadas por consequência dos seus erros.

e- Unidade: A unidade de ação ajuda a dar forma à essência da


história. Por isso, é necessário um personagem central na maioria

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dos filmes. Nas duas narrativas estudadas, a unidade de ação se dá
na busca do objetivo do personagem que dá nome às obras: seduzir
Luísa e levar um romance sem compromisso e sem ser descoberto
ou prejudicado. É a partir desse objetivo que a trama se desenrola.
Mesmo depois de todas as tensões, as chantagens e a fuga do
personagem, Basílio ainda volta com seu objetivo inicial.

f- Exposição: É de grande importância relatar alguns fatos da vida


do personagem principal da narrativa para entendermos as atitudes
que este tomará. No livro, a exposição em flashback do namoro de
Luísa e Basílio, bem como a riqueza que o primo possuía antes da
falência da família, apresenta-nos a visão da formação do seu caráter.
O fato de Basílio ter ido embora para o Brasil e só ter escrito à Luísa
um ano depois, ainda assim terminando o namoro, já prenuncia a
falta de seriedade que ele tinha em relação ao relacionamento. Na
obra cinematográfica, essa exposição é dada de maneira mais sutil.
Os diálogos com Luísa, os relatos sobre a vida boa na França, o fato
de não ter nenhum relacionamento fixo. Tanto no romance quanto
no filme, ele se mostra aventureiro, o que denuncia suas intenções
com a prima. Vejamos seu primeiro diálogo (no filme) depois do
reencontro com ela:

- E você Basílio? Continua solteiro?


- Solteirinho da Silva. Você me trocou pelo engenheiro.
- Você também me fez promessas que nunca cumpriu. Ia me escrever
toda semana. Esqueceu? Você vai ficar muito tempo?
- Só até a fábrica produzir o primeiro carro. Apesar de depois de te
ver, vai ser difícil deixar o Brasil. Nossas férias na fazenda... hum...
os melhores anos da minha vida. Nosso namoro... teu marido sabe?
- E a França? É linda mesmo?
- Não tanto quanto você.
-Mas nenhuma namorada Basílio? Conta?
- Um flerte aqui, outro ali, nada sério... É difícil manter um
relacionamento.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 65-86–jan./jun. 2013 72


g- Caracterização: Os acontecimentos da narrativa são determinados
pela busca do objetivo dos personagens e serve de foco para o
entendimento do comportamento destes, que ficam caracterizados
por suas atitudes. No romance, quando Basílio comenta com o amigo
sobre o sucesso da conquista e este diz para Basílio se apressar, pois
precisavam voltar à Escócia, percebemos que as intenções de Basílio
não eram das melhores. Ele só queria mais uma aventura. No filme,
o fato de Basílio ter arranjado uma desculpa para voltar rapidamente
a Paris, logo depois que Luísa revela que a empregada sabia de tudo,
detectamos sua falta de caráter, sua covardia e falsidade em relação
ao sentimento que declarava à Luísa. Essas caracterizações, colocadas
paulatinamente ao leitor/espectador, no desenrolar da trama, nos
ajudam na caracterização da personalidade de Basílio.

h- Desenvolvimento da história: Para o desenvolvimento de


uma história, o protagonista tem a necessidade de alternativas ou
tentativas para a resolução do seu problema. A busca da meta do
protagonista leva às ações que culminam na tensão principal e, por
fim, chegam à resolução. Como exemplo, no romance, temos as
dificuldades que Basílio encontra para seduzir Luísa. O fato de a
prima ser casada e a princípio respeitar os valores familiares. Todavia,
com seu jeito conquistador, ele a seduz e alcança seu objetivo. Juliana
descobre a traição, começam as chantagens e todas as tensões, junto
à descoberta do marido, chega-se à tensão principal e Luísa falece.
No filme, a semelhança dos fatos é muito considerável. Basílio tenta
alcançar seu objetivo até conseguir e, no desenvolver da história, as
consequências também levam Luísa à morte.

i- Ironia dramática: A ironia dramática manifesta-se nos momentos


da narrativa em que o leitor/espectador sabe de algum fato antes
que o próprio personagem. Tais momentos podem ser definidos
como revelação. Então o escritor cria um momento específico
para o reconhecimento do personagem em relação àquilo que já se

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sabe. Esse recurso é utilizado para fornecer maior dramaticidade à
história. Um exemplo disso: no romance, Juliana possui as cartas
dos amantes e o espectador já sabe das ações planejadas por ela com
auxílio de sua tia. Ela continua dedicada ao trabalho e até muda
o comportamento, para melhor, em relação à patroa. Somente em
uma das tensões da narrativa que a própria Juliana revela à patroa
sobre a posse das cartas e quais as consequências que Luísa poderia
sofrer se não arranjasse o dinheiro. O leitor passa a conhecer
acontecimentos futuros que se darão no decorrer da história. No
filme, essa revelação é bastante semelhante. Desde a primeira carta
que Luísa tenta escrever a Basílio, e é interrompida pela visita de
Sebastião, o espectador já tem conhecimento que Juliana apanhara
o bilhete no lixo e que o usaria para chantagear Luísa. A revelação
é dada no momento em que Luísa despede Juliana e esta relata que
está com as cartas e pode usufruir delas para prejudicar a patroa.
Nesse tipo de cena, o espectador pode participar ativamente, já que se
encontra embutido num saber maior que o do próprio personagem,
e isso fornece ao espectador certa posição de superioridade.

j- Preparação e consequência: A preparação se dá quando um


personagem se prepara para uma próxima cena ou ação na narrativa.
No livro, antes da cena em que Juliana revela à Luísa que tem a posse
das cartas comprometedoras, Juliana se prepara para tal ato. Ela
primeiramente desconfia, decepciona-se quando sabe que Basílio é
apenas um primo da patroa, mas não desiste e continua investigando
até descobrir o adultério. Antes de usar suas armas para a chantagem,
há toda uma preparação e planejamento da criada para que seja
executada a ação na hora certa e consequentemente seus objetivos
sejam alcançados. A preparação antes dessa revelação aumenta o
impacto dramático e a surpresa do leitor quando surge a tensão sobre
o que aconteceria no romance a partir daquele momento da história.
Já na narrativa fílmica, esse mesmo acontecimento é dado de maneira
sintetizada, já que o sincretismo da linguagem cinematográfica

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 65-86–jan./jun. 2013 74


permite que seja filmado somente o que vai realmente prender a
atenção do espectador, sem muitos rodeios e detalhes. Quando
Juliana desconfia do romance, já no dia seguinte consegue obter o
primeiro bilhete de Luísa em resposta às flores que Basílio mandara
depois da primeira noite de amor dos amantes. A empregada também
planeja, pede conselhos à tia e, num momento de fúria, também
revela à patroa sobre a posse das cartas. Esse impacto dramático
causa a tensão ao espectador sobre quais seriam as consequências
em relação ao descuido de Luísa, bem como aos seus atos adúlteros.

k- Pista e recompensa: No desenvolvimento de uma narrativa,


uma pista pode ser fornecida para o auxílio na construção da
história. Já a recompensa, geralmente é dada próximo da resolução
da trama. A pista é semelhante a uma metáfora, que pode agir no
inconsciente do receptor e facilitar a ideia que o narrador quer
expressar. Nas obras analisadas, encontramos pistas subjetivas sobre
o caráter do personagem Basílio. No desenvolvimento da história,
tanto no romance como no filme, o narrador apresenta indícios
da personalidade do primo de Luísa. Ele faz isso por meio dos
comportamentos deste personagem, principalmente pelo objetivo
de seduzir a prima casada, pelas atitudes, ao colocar a fuga do
protagonista para a França diante do problema. Esse recurso mantém
o leitor/espectador curioso em relação ao que pode acontecer no
decorrer da história. Como “recompensa”, temos a confirmação do
mal caráter do amante de Luísa quando esta falece e ele recebe a
notícia com indiferença, continuando sua vida como se não tivesse
culpa alguma dos fatos que levaram a prima à morte.

l- Elementos do futuro e anúncio: Ao escrever uma obra ou roteiro,


é preciso prender a atenção do receptor para os acontecimentos
futuros da trama. O anúncio tem a função de designar o que está
para acontecer e instiga o leitor/espectador a esperar, torcer, temer,
prever, o que o coloca dentro da história. O próprio título da

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história de Basílio pode ser um anúncio. O leitor espectador tem
a curiosidade de saber o porquê do nome do primo na obra: qual
seria o papel desse personagem? O que acarretaria a participação de
Basílio na história? Ele seria o protagonista ou antagonista? Ele é do
bem ou do mal? Também existem outras passagens na história que
podem servir de exemplos. No romance, quando Juliana encontra
o primeiro bilhete no roupão de Luísa e o coloca de volta no lugar,
já antecipamos que ela planeja algo contra a patroa. No decorrer da
história, quando Juliana finalmente furta as cartas e vai ter com sua
tia Vitória, a antecipação do leitor se realiza: ela pretende chantagear
Luísa. O leitor fica na expectativa sobre o que vai acontecer, qual será
a chantagem, o que ela vai cobrar pelas cartas ou se ela só pretende
se vingar de Luísa, contando tudo para Jorge. No filme, essa mesma
passagem acontece de maneira bem semelhante. O que difere é que,
o primeiro bilhete que Luísa escreve já é apanhado por Juliana no
lixo e não encontrado no roupão de Luísa e posto de volta. Quando
Luísa dá falta deste bilhete, ao procurá-lo no cesto de lixo e não
encontrá-lo, já é anunciado que Juliana usaria dele para se vingar,
de alguma maneira, da patroa.
No romance, quando Jorge recebe as correspondências e uma
delas é uma carta de Basílio, deduzimos que o marido traído pode
descobrir tudo, a qualquer momento. Eça de Queirós faz rodeios,
narra que o personagem, de início, tem uma curiosidade imensa
de abrir a carta, mas resiste até que em certo momento ele realiza
a ação e acaba por descobrir tudo. No filme, quando Luísa está na
cama enferma e Jorge recebe a carta de Basílio e a coloca sobre uma
mesa, é anunciado ao espectador que a qualquer momento ele pode
abrir a carta, o que realmente acontece no desenrolar da trama. Os
elementos futuros e anúncios são perfeitos para o envolvimento e
participação do leitor/espectador na história.

m- Plausibilidade: Algo plausível é tudo aquilo que pode passar


por admissível, verdadeiro, razoável. Na ficção, o escritor usa das
lógicas e evidências para atribuir a plausibilidade das situações criadas

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durante a narrativa. Pode-se afirmar que as situações representadas
na história de O Primo Basílio são plausíveis. Os atos de Basílio,
no romance, fluem de um argumento daquilo que o precedeu e as
consequências são críveis, comparadas com a realidade. No próprio
filme, que não apresenta antecedentes dos atos do personagem, as
circunstâncias vividas por ele desde o momento em que aparece na
história, são motivos plausíveis dos fatos que ocorrem no decorrer
da trama. Tanto no romance quanto no filme, é plausível o fato da
traição e as consequências que esta pode trazer, desde as chantagens
de Juliana, até o falecimento de Luísa.

Ação e atividade: Podemos chamar atividade “tudo o que o


personagem pode estar fazendo em uma cena - tricotando,
cozinhando (...) Uma ação é uma atividade com um propósito
por trás, é uma atividade que leva adiante a busca de um objetivo
(HOWARD E MABLEY, 1996, p. 132). Pode-se dizer, diante dessa
afirmação, que toda ação precisa ter um propósito para ser justificada.
Um exemplo de uma atividade com ação dramática nas histórias
analisadas é quando Luísa procura Sebastião para contar sobre seu
adultério, buscando a solução para seu problema:

Então, tirou o roupão violentamente, passou um vestido sem apertar


o corpete, vestiu por cima um casaco largo de inverno, atirou um
chapéu para a cabeça despenteada, saiu, desceu a rua tropeçando
nas saias, quase a correr. (QUEIRÓS, 1988, p. 65, TOMO II).

No romance, essa atividade de Luísa provocou a ação


dramática de uma das tensões da trama. Ela poderia ter realizado
essa atividade de sair às pressas por qualquer outro motivo, porém,
sua intenção já era buscar ajuda. Nesse momento da narrativa o
leitor se prende a saber o que aconteceria nas próximas páginas,
qual seria a reação de Sebastião e, principalmente, se as cartas seriam
recuperadas. No filme, essa passagem é bem semelhante. A diferença
é que Luísa sai de casa do jeito que estava vestida e o plano de

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Sebastião não é revelado, por meio de diálogo, como no romance.
O que os dois combinaram é mostrado na própria ação dramática
da cena seguinte. Isso acontece porque, no filme, é inútil relatar um
diálogo sendo que tudo que fosse falado neste o espectador teria a
oportunidade de inferir por meio das cenas seguintes.

o- Diálogo- O diálogo pode ser considerado um elemento para


auxiliar na identificação e caracterização dos personagens, o que
nos possibilita julgar as atitudes deles. Ele “é a única área onde o
roteirista possui algo que se aproxima da comunicação direta que um
romancista tem com o público. Uma boa fala ou uma frase elegante,
enunciadas da maneira certa pelo autor, exercem impacto poderoso
sobre o público. (HOWARD E MABLEY, 1996, p. 139). No
romance, essas considerações podem ser confirmadas num diálogo
entre Juliana e sua tia Vitória ao tramarem como conseguiriam o
dinheiro pelas cartas:

Juliana teve um deslumbramento. Um conto de réis! A Tia Vitória


estava a brincar.
- Ora essa! Que pensas tu? Por uma carta que quase não tinha mal
nenhum pagou uma pessoa que bate aí um chiado de carruagem –
ainda ontem a vi com uma pequerrucha que tem – pagou trezentos
mil réis. E em belas notas. Pagou-os o janota, já se sabe, foi o janota
que pagou. Se fosse outro, não digo, mas o Brito! É rico, é um
mãos-rotas, cai logo... (...)
- Oh, Tia Vitória, dava-lhe um corte de seda.
- Azul! Até já te digo a cor! (...)
- Mas não haverá perigo, Tia Vitória, se o Brito vai à polícia...
A Tia Vitória encolheu os ombros, e impacientada:
- Olha, vai-te que estás a me enfrenesiar! Polícia! Qual polícia! Essas
coisas levam-se lá à polícia... Deixa a coisa comigo! Adeus – e às
quatro para jantar, hem!

O narrador expressa, por meio desse diálogo, a maldade da tia


e da sobrinha, o caráter de Juliana, os planos maléficos que estavam
por levar a narrativa ao ponto crucial da trama. Ele exprime, também,

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a ambição das personagens, bem como o que estas seriam capazes
de fazer para alcançar seus objetivos tentando, desse modo, retratar
a sociedade. Por meio dessas falas, o narrador consegue representar
ao leitor a caracterização das personagens além de suas ações futuras,
que conduzem o desenvolvimento da história e chamam a atenção
do leitor para a narrativa.
No filme, essa dialética é representada pelo diálogo entre Luísa
e Basílio, quando ela propõe a fuga para se livrarem do escândalo
que estava por vir. Mais uma vez, o narrador caracteriza Basílio como
um mau caráter representando sua covardia por meio da reação que
ele apresenta ao ouvir a proposta de Luísa:

- Sabe a Juliana? A empregada lá de casa?


- Sei.
- Ela está com todos os cartões que você me mandou. Ela pegou
tudo!
- É... é um “abacaxi”. Mas não é o caso de fugir Luísa. O que essa
mulher quer é dinheiro. Ta na cara. É saber quanto é.
- Não! Não adianta pagar. Ela pode abrir a boca a hora que ela
quiser. Ela é má! Nós não vamos continuar aqui em São Paulo. Eu
posso até dormir aqui hoje, mas amanhã, amanhã tem que haver
um avião pra Paris.
- Não Luísa... Não. Não se foge mais assim. O século XIX acabou faz
tempo. Se você fugir, aí sim, vai ficar marcada pra sempre. “Aquela
que fugiu”. Esquece isso minha filha. (Diálogo retirado do capítulo
10 do filme Primo Basílio).

Nesse diálogo, percebemos a indiferença de Basílio em relação


à aflição de Luísa. A falta de importância e de comprometimento
que ele dá às possíveis consequências do adultério. O narrador pode
revelar a verdadeira face do amante. Isso também se confirma na
cena seguinte do filme, em que Basílio simplesmente parte para Paris
deixando Luísa com todos os problemas. Podemos deduzir, pelas
falas do personagem, que Luísa ficaria só na situação apresentada e
que não poderia contar com o apoio ou a ajuda do primo.

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O diálogo, particularmente, tem muita importância no
processo de roteirização. Segundo Field, 2001, p. 147, esse elemento
tem como propósito: mover a história adiante; comunicar fatos
e informações ao receptor; revelar o personagem; estabelecer os
relacionamentos do personagem; emprestar realidade, naturalidade
e espontaneidade ao seu personagem; revelar os conflitos da história
e personagens; revelar os estados emocionais de seu personagem e
comentar a ação.

p- Elementos visuais – Esses elementos se dão por meio da descrição
quando se trata de um romance. Os diálogos e as descrições dos
personagens, ambientes e objetos formam a imagem na imaginação
do leitor. Pela voz do narrador podemos imaginar a personagem de
Juliana: “... era muitíssimo magra, as feições miúdas, espremidas...
os olhos grandes, encovados” (QUEIRÓS, 1988, p. 5, TOMO I),
ou de Basílio “alto, delgado, um ar fidalgo, o pequenino bigode
preto levantado, o olhar atrevido..” (QUEIRÓS, 1988, p. 6, TOMO
I), ou até mesmo a vizinhança: “era ” um horror de rua! Pequena,
estreita, acavalados uns nos outros! Uma vizinhança a postos, ávida
de mexericos. (...) e era um badalar de línguas por aí abaixo, e
conciliábulos, e opiniões formadas! Fulano é indecente, fulano é
bêbado! (QUEIRÓS, 1988, p. 20, TOMO I). Enfim, o narrador
se utiliza desses recursos da descrição e dos diálogos para “montar”
um personagem na mente do leitor, com toda sua caracterização,
qualidades, defeitos, bem como para informá-lo do perfil da
sociedade da época desde os ambientes descritos, ao comportamento
dos seus componentes.
No filme está claro que os elementos visuais são bastante
explorados. Na narrativa fílmica os recursos são bem variados: a
câmera como narradora; os ângulos; os movimentos de câmera e
enquadramentos; o vestuário; a cor; a iluminação, enfim, tudo que
a linguagem cinematográfica oferece para se projetar uma história
em uma tela de cinema. A cada cena a que assistimos podemos

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perceber o poder que os recursos cinematográficos têm quando se
trata de chamar a atenção do espectador.

q- Cenas dramáticas – Para que haja uma cena eficaz, que chame a
atenção do espectador, é preciso que haja os objetivos, os obstáculos,
uma culminância e a resolução. Além disso, o protagonista que
compõe esta cena não precisa ser o mesmo de toda narrativa.
Quando o narrador do romance criou a passagem em que Juliana
revela à patroa que possui as provas do adultério, a criada é, neste
momento, a personagem central do conflito. Apesar de Juliana não
ser a personagem principal da história, ela é a dona da cena, conduz
aquele momento a outros acontecimentos. Uma ação dramática
pode se sintetizar em: alguém quer muito alguma coisa, existe um
obstáculo que atrapalha, a ação ocorre em algum espaço, em certo
tempo e, algumas vezes, responde o porquê do sucedido. Da teoria
à prática, no romance temos: Juliana quer o dinheiro, mas Luísa não
o tem. Ela toma as chantagens como armas para atingir seu objetivo.
A cena se passa no quarto de Luísa, numa tarde em que esta perdera
um dos encontros com o amante. Qual a ação de Juliana em seguida?
Coloca a patroa para realizar as tarefas domésticas castigando-a e
pressionando para que ela consiga o dinheiro em troca das cartas
e do silêncio.
A ação dramática que acabamos de descrever é transposta
para o filme com bastante semelhança: quando Luísa chega, furiosa,
do encontro que não deu certo, e tenta despedir Juliana ao ver
que seu quarto ainda está desarrumado, a criada revela a posse das
cartas e, no decorrer da história, submete a patroa às tarefas do lar
chantageando e ameaçando para que ela consiga logo o dinheiro.
Nas duas obras analisadas, por quase toda a narrativa, Juliana e Luísa
foram as protagonistas da ação. Por meio das descrições e diálogos,
bem como dos elementos das linguagens escrita e cinematográfica,
é possível identificar os desejos, medos e emoções das personagens
em questão.

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O romance é a forma de arte ideal para expressar nossa
realidade; percebemos isso ao ler uma narrativa literária e notar que
os personagens são traçados com o mais profundo sentido humano.
Eça de Queirós é um exemplo disso e detectamos o aproveitamento
da arte do autor por Daniel Filho, que utilizou das riquezas literárias
apresentadas na obra do escritor português para aperfeiçoar e
enriquecer a narrativa fílmica, transmutando o roteiro. A trama das
histórias, tanto no romance quanto no filme, apresentam aspectos
sociais e dramas individuais para uma narrativa instigante. Podemos
observar, nas duas obras, que o adultério de Luísa conduz a história
a um desfecho trágico. Nas duas obras analisadas a resolução se dá
com a morte de um dos protagonistas, Luísa. Porém, existe certa
ironia nessa resolução: mesmo Basílio sendo o principal motivo da
morte de Luísa, ele não recebe nenhuma punição, não sofre nenhuma
consequência. Perguntamos o porquê dessa impunidade, sendo
que os autores procuram denunciar o comportamento e defeitos
da sociedade em suas entrelinhas. A resposta é simples: eles não
estão idealizando uma situação e sim refletindo criticamente sobre a
organização da sociedade da época. Desse modo, podemos concluir
que as obras estudadas são denunciantes e mostram as falhas do
corpo social com o propósito de conduzir o receptor das obras a
certa indignação e à tentativa de suprimir os erros dessa sociedade.
Podemos afirmar que o sucesso de romance e filme se deve aos
temas escolhidos, temas próprios dos seres humanos, independente
de questões espaço-temporais. Paixão, adultério, maldade, falta de
caráter, decepção, temas estes que se encontram presentes na vida
do leitor/espectador e o faz viver a história apresentada na tela.
Acrescentamos, ainda, que os tempos mudaram e a leitura de Eça
sugere-nos essa observação paradoxal: com o passar dos anos, o livro
ganhou atualidade.
Ademais, o trabalho do roteirista foi fundamental para que
o filme “funcionasse”. De acordo com Comparato, 1995, p. 334,
ao se trabalhar com a adaptação de um romance deve-se ter como

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base a condensação dessa obra,” eliminar os acontecimentos que não
sejam essenciais e enaltecer o núcleo dramático principal, seu eixo
vertebral”. Na análise comparativa que fizemos, tais considerações
foram corroboradas e o sucesso foi comprovado com os milhares de
ingressos vendidos já na estreia do filme, em 2007. O roteiro como
documento processual mostra, mais uma vez, que a obra de arte está
sempre inacabada, que é possível, recriar, transcriar, refazer o “novo”
tantas vezes quanto for a criatividade e competência do roteirista -
mesmo porque não foi a primeira vez que o romance em questão foi
adaptado. Tais observações encontram respaldos em Salles:

Sob a perspectiva processual, roteiros são vistos, portanto, como


uma etapa do processo que, de certa forma, têm a função de tornar
o filme possível. No roteiro, o filme já está sendo feito. Trata-se de
um mapa, com contornos ainda não totalmente definidos, que
carrega algumas tendências do futuro do filme. É instigante pensar
que o mesmo roteiro pode gera diferentes filmes, dependendo, por
exemplo, do momento da filmagem e da equipe envolvida. Nesse
contexto, podemos falar de roteiro como espaço de possibilidades,
que indica caminhos para o filme. Não podemos no esquecer,
também, da relevância do roteiro como documento mediador, entre
um processo individual do roteirista e a coletividade da equipe de
filmagem, atores, etc. (SALLES, 2010, p. 173)

Considerações finais

Quando propusemos a análise acerca da adaptação fílmica da


obra literária O Primo Basílio (1878) de Eça de Queirós, a intenção
foi promover um diálogo entre as duas linguagens: literária e fílmica.
A transmutação dessas linguagens resultou em transformações
inevitáveis diante da mudança de veículo, dos contextos diferentes
e modos de produção, revelando que a nova obra foi recriada, se
tornou autônoma, sujeita a comparações e críticas, porém com várias
relações com o texto que lhe serviu de base. Podemos dizer, assim,
que o filme não foi uma mera ilustração do texto queirosiano.

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Desse modo, intentamos salientar as interfaces de uma
mesma narrativa em mídias diferentes, dando um relevo especial
à obra cinematográfica, apresentando os principais elementos e
recursos no processo de roteirização, utilizados para transpor a
linguagem da narrativa literária para a linguagem fílmica. Para isso,
buscamos explorar as cenas, os personagens, os diálogos, etc.
Embora a história tenha sido transposta de Portugal para o Brasil, de
Lisboa para São Paulo, Daniel Filho manteve o tom irônico de Eça
de Queirós, conservando a crítica à hipocrisia social que caracteriza
a obra original.
A fim de realizar o estudo comparativo, lançamos,
primeiramente, algumas considerações sobre a adaptação fílmica.
Trabalhamos as conjunções, disjunções e transmutações entre
romance e filme, concluindo que as diferenças aparecem somente
em detalhes do roteiro, mas que foram eficazmente recriadas a
ponto de tornar a obra cinematográfica independente e relevante.
Para isso, utilizamos a leitura do roteiro do filme fazendo também
as comparações entre as duas linguagens. Como já mencionado, o
roteiro manteve-se fiel à mensagem principal da narrativa literária:
a crítica irônica à organização social da burguesia e a sua célula
fundamental, o casamento.
Enfim, tentamos demonstrar que na comunicação
cinematográfica estamos diante de um fenômeno comunicacional
complexo, que põe em jogo mensagens verbais, sonoras e icônicas
em movimento; essa riqueza contextual faz do cinema um tipo de
comunicação mais rico do que a escrita, pois os diversos significados
aparecem conjuntamente, criando a impressão de que estamos
diante de uma linguagem que nos restitui à realidade. Por essa
razão, as narrativas fílmicas exercem extraordinário apelo sobre os
espectadores. No mundo da literatura e do cinema, o que
parece é que a imaginação é a criação ideal da realidade, servindo
de experiência e de ponto de partida para a criação artística, é a arte
ampliando e corrigindo a realidade. Romance e filme, com mais ou

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menos intensidade, possuem o dom extraordinário de surpreender
a realidade num momento flagrante. No conjunto temos uma visão
de arte que exercita seus elementos componentes em obras distintas,
mas com o propósito único de buscar uma forma de expressão
plena. Assim, corrobora-se que utilizar o roteiro como documento
de processo é uma poderosa chave para entender a gênese da criação
cinematográfica.

Referências

COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

FIELD, Syd. Manual do roteiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

HOWARD & MABLEY. Teoria e Prática do Roteiro. Trad. Beth Vieira.


São Paulo: Globo, 1996.

MARTIN, Marcel. A Linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense,


2003.

QUEIRÓS, Eça de O Primo Basílio. Porto-Braga, Livraria Internacional


de Ernesto Chardron, 1878.

SALLES, Cecília Almeida. Arquivos de criação: arte e curadoria. Vinhedo,


SP: Editora Horizonte, 2010.

Filmografia

Filho, Daniel. Primo Basílio. Lereby Produções, 2007.

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Dos inconvenientes e (in)utilidades
da erudição para a vida

Felipe Luiz Gomes Figueira1

Resumo: O presente artigo busca analisar a crítica ao eruditismo na II Consideração


Intempestiva, de Nietzsche. Para tanto, são analisados os seguintes temas: a história
enquanto incessante transformação, os tipos de história – monumental, tradicionalista
e crítica -, a história a favor da vida, o problema da história levada às últimas
consequências e, por fim, as massas e o Estado. Assim, busca-se compreender em que
medida Nietzsche tem um projeto educacional de crítica e supressão do eruditismo.
Palavras-chave: Nietzsche. II Consideração Intempestiva. Educação. Eruditismo.

Abstract: This article analyses the criticism of eruditism in the Untimely


Meditations II, from Nietzsche. For this, the following themes will be analysed:
history as unstoppable transformation, the kinds of history - monumental,
traditionalist and critic - history in favor of live, the history’s problem taken to the
last consequences, and also, the  masses and the State. Thus, trying to comprehend
how Nietzsche has an educational project of critic and eruditism suppression.
Keywords: Nietzsche. Untimely Meditations II. Education. Eruditism.

Introdução

Se a Grécia de Nietzsche não é um lugar de erudição, a forma


com que compreende a história também não é. A história, então,
não deve ser apenas um emaranhado de informações, que acabam
se tornando fins em si mesmos, mas algo relacionado à vida, ou
seja, algo que promova a vida. Trata-se, por sua vez, do problema
da ciência contra o sentimento (instinto, arte, vida), o que também
poderia atender – numa linguagem típica de O nascimento da tragédia
– pelo nome de espírito socrático versus dionisíaco.
“Além disso, odeio tudo aquilo que somente me instrua sem
aumentar ou estimular diretamente minha atividade” – e é com

1
Doutorando em Educação pela UNESP (Marília). Professor do Instituto Federal do Paraná
(IFPR). Email: felipe.figueira@ifpr.edu.br

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essas palavras de Goethe que Nietzsche iniciará sua II Consideração
Intempestiva, Da utilidade e desvantagem da história para a vida2.
Tais palavras, de fato, sintetizam as críticas de Nietzsche aos estudos
históricos e sua respectiva erudição. É o que o filósofo deixará
explícito ao afirmar que “o supérfluo é o inimigo do necessário”:

Nestas considerações, deve ser em verdade apresentado, porque


instrução sem vivificação, o saber no qual a atividade adormece;
a história tomada como um precioso supérfluo e luxo do
conhecimento deveriam ser, segundo as palavras de Goethe,
verdadeiramente odiosos para nós – na medida em que ainda falta
o mais necessário e porque o supérfluo é o inimigo do necessário
(NIETZSCHE, 2003, p. 5).

Contudo, é válido deixar claro, desde já, que Nietzsche não


propõe uma abolição dos estudos históricos, muito menos da própria
história, mas se posiciona de forma enérgica quando estes, com o
“ocioso refinado”, se colocam como o sentido supremo da vida. É
nisto que consiste o problema, quando tal “ocioso”, que pode ser
chamado pelo nome de erudito, acaba por se posicionar contra a
vida, contra sua transformação imanente. O tipo erudito torna-se
especialista e fossiliza a si próprio em vida, não se inserindo num
estado contínuo de criação de valores. A preguiça erudita é fantasiada
em livros; há uma autonomização do objeto, do conhecimento: eis
o cerne das críticas nietzschianas ao mau uso da história. A história
deve ser útil à vida. Conforme expressa Rangel: “A História deve
2
Nessa obra Nietzsche combate “(...) os historiadores universitários, vendo neles seres
empanturrados de saber, meros espectadores do passado, e não criadores de vida e cultura. Protesta
contra a educação histórica com que os professores pretendiam instruir seus alunos, tornando-os,
pelo acúmulo de saber, incapazes de recriar a vida a partir de suas experiências. Convida os
jovens a se educarem a si mesmos, de tal modo que pudessem se desfazer de seus hábitos e da
educação que lhes foram inculcada” (DIAS, 1991, p. 42-43). A respeito da II Intempestiva, Ecce
Homo é claro: “A segunda Extemporânea (1874) traz à luz o que há de perigoso, de corrosivo e
contaminador da vida em nossa maneira de fazer ciência: a vida enferma desse desumanizado
engenho e maquinismo, da “impessoalidade” do trabalhador, da falsa economia da “divisão do
trabalho”. A finalidade se perde, a cultura – o meio, o moderno cultivo da ciência, barbariza”
(NIETZSCHE, 2009, p. 64).

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ser empreendida quando aquele que recorre a ela sente necessidade de
descobrir e de salvaguardar valores necessários a uma vida saudável em
meio a desafios inéditos” (RANGEL, 2010, p. 215). Enfim,

(...) precisamos dela para a vida e para a ação, não para o abandono
confortável da vida ou da ação ou mesmo para o embelezamento da
vida egoísta e da ação covarde e ruim. Somente na medida em que a
história serve à vida queremos servi-la (NIETZSCHE, 2003, p. 5).

Em sua II Intempestiva, o filósofo (que acredita ser necessário


ir além do presente, e isso porque o presente é tido como decadente,
degenerante) se verá, a todo tempo, contraposto à “poderosa corrente
historicista”, tão em alta nos meios acadêmicos alemães. Conforme
anota Scarlett Marton:

Não é a partir de uma perspectiva futura que fala o filósofo.


Extemporâneo, ele põe-se à distância do que ocorre à sua volta,
afasta-se do desenrolar dos acontecimentos. E, se assim procede,
é porque já mergulhou fundo em sua época, já penetrou em seu
âmago, já vasculhou seus recônditos. É também porque já vivenciou
os alvos que combate, com eles já esteve envolvido, deles já foi
cúmplice (MARTON, 2001, p. 34).

E tudo isso fará com que parte da apatia gerada pelos


contemporâneos de Nietzsche em relação a II Intempestiva seja
resultado de seu caráter de luta contra seu tempo, contra essa
corrente – historicista, que entende que há um sentido metafísico
que organiza todos os particulares, cada cultura -, contra esse mal3:

3
A II Intempestiva causou apatia, o que pode ser comprovado, também, pela recepção de
seu amigo Jacob Burckhardt, ao qual Nietzsche enviou um exemplar para apreciação, tendo
recebido, no entanto, uma mera resposta à carta que continha em anexo o livro. À parte isso,
é objetivo dessa dissertação abordar as críticas ao eruditismo nessa obra e não a recepção de
seus contemporâneos, pois geraria outro trabalho.

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Esta consideração também é intempestiva porque tento compreender
aqui, pela primeira vez, algo de que a época está com razão orgulhosa
– sua formação histórica como prejuízo, rompimento e deficiência
da época – porque até mesmo acredito que padecemos todos de
uma ardente febre histórica e ao menos devíamos reconhecer que
padecemos dela (NIETZSCHE, 2003, p. 6).

A história enquanto incessante transformação

A razão, esse elemento diferencial do ser humano,


instaurou a ilusão de que ele é qualquer coisa acima da natureza
e, consequentemente, acima dos demais animais. Isso, contudo, é
fonte de grande erro e corrupção. Erro porque o ser humano é mais
um na natureza; corrupção porque o homem acaba por fazer uso da
natureza a seu bel-prazer. O que é fato, todavia, é que a capacidade
de memória, intrinsecamente relacionada à razão, gera grandes
tormentos. Nietzsche afirma que se operasse em nós a faculdade
do esquecimento, se vivêssemos ahistoricamente (que significa
simplesmente viver), como faz qualquer animal, não sofreríamos
nem ficaríamos tristes. A razão – sob o horizonte da memória -
humana admira-se de não poder esquecer. Nessa esteira é possível
afirmar, desde já, que o homem erudito é o que mais se lembra,
desprezando a necessária ação de esquecer, a faculdade de esquecer.
Tanto mais se vive, mais e mais a angústia do existir se
intensifica: o ser humano se depara, dia a dia com o “foi” e se vê,
também, nesse horizonte de ocaso. Esse problema existencial, por
sua vez, escapa ao mero raciocínio lógico. A erudição torna-se tão
somente uma fuga da vida, que incessantemente é tragada pelas
ondas do “foi”. Nada consegue aprisionar o “foi”. Assim, o homem
“se comove ao ver o rebanho no pasto”:

Por isso o aflige, como se pensasse em um paraíso perdido, ver o


gado pastando, ou, em uma proximidade mais familiar, a criança
que ainda não tem nada a negar de passado e brinca entre os gradis

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do passado e do futuro em uma bem-aventurada cegueira. E, no
entanto, é preciso que sua brincadeira seja perturbada: cedo demais
a criança é arrancada ao esquecimento. Então ela aprende a entender
a expressão “foi”, a senha através da qual a luta, o sofrimento e o
enfado se aproximam do homem para lembrá-lo o que é no fundo
a sua existência – um imperfectum que nunca pode ser acabado
(NIETZSCHE, 2003, p. 8).

O sonho da ciência de querer abarcar todo o real evapora-


se, porque quando se lança o olhar para o real, ele (o presente, o
momento) já passou. Daí, contudo, não se deduz uma apologia
nietzschiana ao sem sentido, mas sim, uma crítica ao papel da
razão em aprisionar, por vias conceituais, o fluxo do tempo. Pelo
contrário, Nietzsche é o filósofo dos valores, mas estes não podem
ser imutáveis, pois a vida é devir. Tudo é fadado à transformação,
ao “ter sido”. Tudo é transformado pela própria vida, que é luta,
sofrimento, enfado, mas que também é realização, elevação, alegria,
criação! Nada é permanente. Todo conhecimento é contingente e o
homem está imerso nessa vida que se transforma.
Tudo aquilo que vai contra essas premissas torna-se,
inevitavelmente, conhecimento estéril, supérfluo, o que, em última
instância acaba por ser um desrespeito à vida, que exige muito mais
que uma sabedoria de compêndio. Só é possível conhecer, saborear a
vida, na medida em que a vivemos em sua incessante transformação.
O célebre pensamento de Sócrates – “Só sei que nada sei” – possui,
nesse ínterim, profunda convergência com as idéias de Nietzsche.
O outro pensamento de Sócrates – “Conhece-te a ti mesmo” -
todavia, não é compartilhado por Nietzsche, porque o conhecer
já é algo tardio e não expressa ao certo como a vida é. A vida pode
até ser organizada, mas o seu fundamento é desorganizado (devir,
transformação). A transformação é característica da vida e é sempre
necessário estar atento a ela.
Para se viver bem em meio a esse ambiente é necessário
ao homem “força plástica”, pois do contrário a vida se torna

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absolutamente insuportável. O ser humano, esse grão de areia
racional, ou desenvolve tal força ou é tragado pelo mar. O próprio
Nietzsche é quem nos explica o que é a “força plástica” - que é a
própria sabedoria que cada um possui de lidar com a vida a partir
dos limites no interior do qual se encontra -, e as suas conseqüências:

(...) penso esta força crescendo singularmente a partir de si mesma,


transformando e incorporando o que é estranho e passado, curando
feridas, restabelecendo o perdido, reconstituindo por si mesma as
formas partidas. Há homens que possuem tão pouco esta força
que, em uma única vivência, em uma única dor, frequentemente
mesmo em uma única e sutil injustiça, se esvaem incuravelmente em
sangue como que através de um pequenino corte; por outro lado, há
homens nos quais os mais terríveis e horripilantes acontecimentos
da vida e mesmo os atos de sua própria maldade afetam tão pouco
que os levam em meio deles ou logo em seguida a um suportável
bem-estar e a uma espécie de consciência tranquila (NIETZSCHE,
2003, p. 11).

O que Nietzsche provoca com todos esses questionamentos é


uma crítica à história a todo custo, o que também poderia atender pelo
nome de ciência a todo custo; uma crítica, portanto, à cientificização
do passado, uma crítica à ciência histórica. Fossilizar o passado,
estratificá-lo: eis o sentido da crítica de Nietzsche à história, que
para o filósofo deve ser valorização do movimento. É necessária certa
dosagem, ou seja, tanto o elemento histórico quanto o a-histórico
são necessários para o ser humano, e o excesso de história pode se
traduzir em prejuízos para o homem. Nessa linha tênue, quanto mais
“força plástica”, mais saúde, ou seja, mais transformação, ação. Saúde,
assim, torna-se sinônimo de transformação, de não se resignar face
ao passado, estratificando-o. Trata-se, então, de uma preocupação
nietzschiana com a saúde humana: “o histórico e o a-histórico são na
mesma medida necessários para a saúde de um indivíduo, de um povo
e uma cultura” (NIETZSCHE, 2003, p. 11 – grifos do autor).

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O homem teórico4, nessa esteira, torna-se o contraponto
exato ao “homem de ação”. Enquanto o homem teórico não admite
outra coisa senão a negação do instinto, da ação, o homem de ação
não conhece outra coisa a não ser aquilo que quer fazer, amando-o
infinitamente. O homem teórico estratifica o conhecimento, busca
o saber pelo saber, sendo esse o motivo desse homem ser o oposto do
“homem de ação”, pois esse não realiza tal estratificação, mas ama a
vida em sua contínua transformação, é alguém, portanto, saudável.
Nietzsche, nesse aspecto, é incisivo:

(...) todo homem de ação ama infinitamente mais o seu feito do que
este merecia ser amado: e os melhores feitos acontecem em meio a
uma tal superabundância de amor que, mesmo se o seu valor fosse
incalculavelmente grande também em outros aspectos, em todo
caso eles ainda deveriam ser dignos deste amor (NIETZSCHE,
2003, p. 13).

Assim, o homem teórico pode ser remetido, sem dúvida, ao


homem de excesso de história, ambos assassinos da ação, coveiros
do presente5. Tanto o homem teórico quanto o homem de excesso
de história, enfim, são seres que realizam uma terrível estagnação:
tratam o conhecimento, no caso a ciência, como fim e não como
meio motivador e auxiliar da arte, da vida, do instinto. É sob essa
direção que a referida associação pode ser pensada.
4
Segundo Oswaldo Giacóia, em Nietzsche: “(...) o tipo de homem teórico (...) acredita ser
possível, mediante o princípio de causalidade, desvendar os segredos mais abissais da realidade
- não somente conhecê-los, mas também corrigi-los. O otimismo teórico considera a ciência um
remédio universal, que cura a ferida eterna do existir, e identifica no erro e na ignorância a fonte
de todo mal (GIACOIA, 2000, p. 35).
5
Conforme afirma Rangel: “O passado aparece ao homem como incompleto, reivindicando
cuidado, evidenciando ações apenas parcialmente realizadas ou mesmo equivocadas, e na medida
em que o homem é seduzido por tais aparições ele vai adoecendo, adoecendo porque se coloca a
tarefa de reconstruir algo que não mais pode ser alterado – aquilo que já passou, e que insiste
em perturbar este homem na medida mesmo em que vai conquistando espaço em sua vida. Este
homem soterra o presente de passado, torna-se o “coveiro do presente”, e acaba definhando. Melhor
dizendo, virando as costas para o presente e para seus rearranjos inéditos, este tipo de vida não
pode mais se complexificar e se conservar, e isto justo porque não é capaz de manter-se atento às
forças que se reconfiguram de maneira inédita, junto a ele, no presente” (RANGEL, 2010, p. 73).

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Os tipos de história: monumental, tradicionalista e crítica

Nietzsche, com o intuito de ilustrar o motivo pelo qual a


história interessa aos seres vivos, apresenta três formas de história:
monumental, tradicionalista e crítica. Por mais que o filósofo não
seja alguém fora de seu tempo (ele é alguém em luta contra o seu
tempo!), não é possível associar estas formas a movimentos sociais,
como Hélio Sochodolak apresenta em sua obra O jovem Nietzsche
e a história. Ao fazer esse recurso, ao descaracterizar os sentidos das
metáforas nietzschianas, Sochodolak reduziu ao extremo o foco do
filósofo, unilateralizando tais formas a apenas um segmento.
Para Sochodolak, a história monumental corresponderia ao
tipo de história praticado pela burguesia; a história tradicionalista
seria a exercida pelos nobres; e a história crítica, por sua vez, seria
signo de operariado. Ora: Nietzsche vê nessas formas razões de ser
do próprio ser humano, presentes e em diálogo nos homens, e não
limitadas a um segmento social! Com tais metáforas, o filósofo busca
esclarecer que a “história interessa aos seres vivos por três razões”, e
não restringe, é válido enfatizar, a movimentos sociais.
A história monumental, então, deve servir à vida, e traz
várias lições valiosas ao homem – desde que devidamente avaliadas
–, por exemplo, de que “(...) apenas o que é grande sobrevive”
(NIETZSCHE, 2003, p. 20). Esse tipo de história faz com que o
homem aspire à grandeza, não se contentando com as limitações de
uma circunstância desagradável; permite, portanto, sonhar – o que
não é meramente idealizar -, buscar uma meta com a confiança de
que pode ser alcançada6. Como afirma Nietzsche:

6
“O que Nietzsche procura nos grandes indivíduos que remodelaram seus horizontes históricos,
não são ídolos, nem o relato perfeito do que realizaram, mais modesto, pretende manter viva dada
força capaz de impulsionar o homem em sua tarefa de crescer em meio ao devir” (RANGEL,
2010, p. 218).

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Ele deduz daí que a grandeza, que já existiu, foi, em todo caso,
possível uma vez, e, por isto mesmo, com certeza, será algum dia
possível novamente; ele segue, com mais coragem, o seu caminho,
pois agora suprimiu-se do seu horizonte a dúvida que o acometia
em horas de fraqueza, a de que ele estivesse talvez querendo o
impossível (NIETZSCHE, 2003, p. 21).

Todavia, é necessário estar bem atento a esse tipo de história,


pois quando ela se torna um fim em si mesmo, se torna um excesso,
pode ser um prejuízo à vida. A questão nodal em Nietzsche torna-
se perceber a dosagem correta. Enfim, a história monumental, da
mesma forma que pode servir à vida, pode prejudicá-la.
Essa maneira de se conceber a história seleciona apenas uma
parte do passado e, com isso, o próprio passado pode se ressentir.
Tal fragmentação torna-se perigosa porque muitas vezes tende-se
a desprezar as causas e só se observar os efeitos. “Efeitos em si”,
todavia, tornam-se artificiais, perigosos. O perigo de tal história,
ainda, é acreditar que o que há de mais esplêndido já existe e, com
isso, suprimir todo ser artístico em gestação: “Vejam, a grandeza já
existe!”. Disso resulta que:

A história monumental é um traje mascarado, no qual seu ódio


contra o que é poderoso e grande em seu tempo se faz passar por
uma admiração saciada pelo que há de grande e poderoso nos
tempos passados. Envoltos neste disfarce, eles invertem o sentido
próprio daquele tipo de consideração histórica e o transformam
em seu contrário; quer eles o saibam claramente ou não, agem em
todo caso desta forma, como se o seu lema fosse: deixem os mortos
enterrarem os vivos (NIETZSCHE, 2003, p. 24).

A história tradicional, por sua vez, interessa:

“(...) àquele que olha para trás com fidelidade e amor para o lugar
de onde veio e onde se criou; por intermédio desta piedade, ele
como que paga pouco a pouco, agradecido por sua existência”
(NIETZSCHE, 2003, p. 25).

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A reverência ao passado, o culto ao mesmo, talvez estas
características sejam as que melhor definam a postura tradicional face
ao passado7. Saber-se descendente de um passado, ver-se enquanto
filho de uma árvore, portanto, não se ver enquanto um órfão é o
que essa postura incessantemente se lembra. Contudo, essa história
é, também, sempre fragmentária, pois tende a valorizar demais um
tempo e espaço muito específicos em detrimento de outros. Essa
percepção, por sua vez, é perigosa, pois não é rigorosa, no sentido
de não dispor de “(...) nenhuma diferença de valor e de proporção que
fizesse, verdadeiramente, justiça às mesmas, sua medida e proporção:
sua medida e proporção passam a ser estabelecidas pelo olhar antiquário
para trás de um indivíduo ou povo” (NIETZSCHE, 2003, p. 28).
O perigo dessa forma de se conceber a história, ainda, é que
devido a sua veneração absoluta do passado, acaba por suprimir tudo
aquilo que se encontra em gestação. O passado, sempre perfeito,
é o que deve ser imitado, e o novo, imperfeito, deve ser rejeitado,
eliminado: eis o fim dessa história utilizada em excesso.
Já a terceira forma de história – a crítica -, por seu turno,
representa algo igualmente necessário ao homem. Às vezes é
necessário romper e condenar o passado, e isso em prol da vida, das
necessidades do presente, sendo a própria vida a zelosa e “impiedosa”
juíza: “Não é a justiça que se acha aqui em julgamento, nem tampouco
a misericórdia que anuncia aqui o veredicto: mas apenas a vida, aquele
po­der obscuro, impulsionador, inesgotável que deseja a si mesmo”
(NIETZSCHE, 2003, p. 30).
Diante de tudo isso, ou seja, diante da vida tal qual ela
se apresenta ao homem, é necessário se posicionar, precipitar o
desaparecimento de certas estruturas, para seu próprio benefício.
Assim como as demais formas de história, é necessária a dosagem
certa para que este impulso de ruptura não se volte contra a vida e
7
“Se a história monumental estuda os indivíduos e seus feitos, a fim de mostrar que a existência
em meio a transformações sig­nificativas é possível, a história tradicional quer remontar ideologias,
práticas, símbolos e espaços no interior dos quais a vida se mostra possível” (RANGEL, 2010,
p. 221-222).

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esta, consequentemente, contra o homem. Enfim, a história crítica
a todo custo torna-se sinônimo de ruptura, o que pode representar
um perigo:

Trata-se sempre de um processo muito perigoso, a saber, muito


perigoso para a própria vida: e homens ou épocas, que servem
desta maneira à vida, ao julgarem e aniquilarem um passado, são
sempre homens e épocas perigosos e arriscados. Pois porque somos o
resultado de gerações anteriores, também somos o resultado de suas
aberrações, paixões e erros, mesmo de seus crimes; não é possível se
libertar totalmente desta cadeia (NIETZSCHE, 2003, p. 30-31).

Por que, afinal de contas, a história monumental, tradicional


e crítica podem representar tanto prejuízo quanto benefício à vida?
Benefício porque ajudam minimamente o homem apreender o que a
vida é e como agir; prejuízo porque tomadas como fins em si mesmas,
acabam por estagnar a ação ou, mais propriamente, por limitar
grandemente o homem em meio à vida que é, incessantemente,
devir. Logo, é necessário saber fazer uso da história em suas três
formas e é nesse “saber fazer” que o homem pode se lançar como
artífice de seu próprio destino.
Desse modo, a preocupação de Nietzsche ao estudar essas três
formas de se valorar a história tem sentido existencial. Assim como
quando analisou a tragédia grega não foi por mera erudição, mas
para perceber problemas existenciais, ao analisar essas formas sua
preocupação é convergente, não eruditista. A história, para o filósofo,
deve, portanto, operar como um medicamento aos problemas da
existência e, assim como a arte, aliviar o peso da vida. Tudo aquilo
que acrescenta peso, no caso, o excesso de história sob o signo do
homem teórico (o “ocioso”) deve ser combatido. É justamente isso
o que Nietzsche faz.

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A história deve estar a favor da vida

Ficou demonstrado, então, que para Nietzsche a história


não deve ser utilizada apenas como acúmulo de informações eruditas,
para mero “aumento dos conhecimentos”, mas a favor da vida, da
ação, ao contrário daquele grupo de “(...) puros pensadores que apenas
contemplam a vida” (NIETZSCHE, 2003, p. 31). É justamente o
ser mero espectador o que Nietzsche veementemente combateu.

O estabelecimento da instrução dá ensejo ao surgimento de um


discurso acerca de certos fenômenos em particular, no interior
do qual passamos a controlar mais ou menos integralmente os
seus componentes estruturais. Tanto a posse de um tal discurso
quanto o controle que exercemos sobre os componentes estruturais
do fenômeno são, contudo, incapazes de produzir em nós o
conhecimento de um fenômeno similar. Por mais frustrante que
possa ser, há um abismo separando o mero conhecimento dos
ingredientes essenciais da obra de um autor como Dostoiévski e a
realização de uma atividade igualmente criadora. Eruditos podem
esclarecer o que já está feito a partir de uma teia infindável de
informações, mas são incapazes de se mostrar como o meio através
do qual uma ação criadora vem a ser. Eles instruem sem ampliar
ou vivificar a nossa atividade: sem provocar o surgimento de uma
atividade congênere. A mera instrução contrapõe-se, portanto, ao
acontecimento da ação porque não faz outra coisa senão elucidar o
feito e desviar a nossa atenção do centro do por-fazer (CASANOVA,
2003, p. 73).

O homem moderno acabou se convertendo no “homem


teórico” por excelência, dotado de um estômago cheio “de pedras
indigeríveis de saber” (NIETZSCHE, 2003, p. 34). Esse elemento
indigesto é o que destrói a ação, porque quem não está bem
fisiologicamente – em harmonia com o histórico e o ahistórico,
poderíamos dizer -, certamente não conseguirá agir bem. Esse
homem teórico torna-se, dessa forma, doente, até porque a falta de

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imanência – de vivências - só pode lhe resultar em prejuízo, em uma
verdadeira degenerescência – estratificação, combate ao instinto, em
suma, declínio das capacidades vitais. Tal saber resulta, enfim, em
caos:

O saber, consumido em excesso sem fome, sim, contra a


necessidade, não atua mais como um agente transformador que
impele para fora e permanece velado em um certo mundo interior
caótico, que todo e qualquer homem moderno designa com um
orgulho curioso como a “interioridade” que lhe é característica
(NIETZSCHE, 2003, p. 34).

Conforme afirma Sarah Kofman:

Há decadência em toda parte onde houver mistura disparatada,


riqueza desordenada, não dominada, incoerência, caos labiríntico
e emaranhado; gosto pelo infinito, pelo imenso, pelo desmedido,
pelo detalhe; pelo gosto histórico (KOFMAN, 1985, p. 96).

Ter apenas “saber”, sem vivência, torna-se aberração, digno


de escárnio.
Um indivíduo sem ação, por conseqüência, torna-se alguém
sem cultura autêntica, logo, também sem história. Se temos apenas
um “saber sobre a cultura”, e o saber é sempre algo tardio, portanto,
a cultura não nos pertence e somos apenas um amontoado de outras
culturas, “enciclopédias ambulantes”. É isso, também, um dos
sentidos mais bizarros que a sociedade moderna incorporou: povos
que possuem apenas “saber sobre a cultura”, nada além disso. No
entanto, o homem moderno permanece fascinado pela sua cultura
histórica, como sinônimo de ser culto:

Tomemos como exemplo um grego que passasse por perto desta


cultura. Ele perceberia que para os homens modernos “culto” e
“cultura histórica” parecem tão conectados como se elas fossem
uma só coisa e fossem diferentes apenas pelo número de palavras.

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Ele pronunciaria então sua sentença: alguém pode ser muito culto
e, no entanto, não ter necessariamente nenhuma cultura história;
então acreditaria não ter ouvido direito e balançaria a cabeça em
sinal de desaprovação (NIETZSCHE, 2003, p. 35).

O historiador, sujeito que acaba por se tornar um “pensador


passivo”, antes de se utilizar da história para a vida, deturpa-a,
suprime-a. A falta de imanência do historiador, portanto, é a mesma
verificada no erudito, daí que mais uma vez é possível sinonimizá-
los nessa esteira. Esse mesmo historiador, ironicamente, tenta se
posicionar diante de sua disciplina de conhecimento de forma objetiva,
e rejeita tudo o que se afasta disso, tratando de subjetivo8. Sobre a
objetividade, Nietzsche esclarece:

Compreende-se então com esta palavra uma condição do


historiador, na qual ele contempla um acontecimento em todas
as suas motivações e conseqüências de modo tão puro que
este acontecimento não produz nenhum em sua subjetividade
(NIETZSCHE, 2003, p. 52).

A relação dos filólogos com a Grécia, conforme afirma


Nietzsche, é de objetividade, que revela uma total falta de vinculação
afetiva, artística, com o passado. É assim que é possível compreender,
também, o dito do filósofo, segundo o qual:

Sim, chega-se mesmo ao ponto de evocar aquele homem para o qual


um momento do passado não significa absolutamente nada para
representá-la. Assim se comportam, com freqüência, os filólogos
e os gregos, uns em relação aos outros: eles não se interessam por
nada – chama-se isso também “objetividade”! (NIETZSCHE,
2003, p. 55).

8
Segundo Rangel: “(...) tendo em vista que o passado não pode ser reabilitado, pois não se encontra
mais oferecido em sua totalidade conformativa, em toda sua cadeia de relações, toda a tentativa
de encontrar o passado e de reconstruí-lo não passa de quimera, e o horizonte pretendido vai se
distanciando cada vez mais à medida que o homem dele se aproxima” (RANGEL, 2010, p. 78).

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Enfim, é urgente “forjar e promover a cultura de um povo”,
pois do contrário a própria barbárie cada vez mais imperará. Torna-
se imprescindível, para tanto, a restituição dos “instintos”, em
uma palavra, a valorização da vida. A conseqüência derradeira do
homem teórico torna-se, mais uma vez demonstrada, o “homem
instrumental”, que trata a razão de forma puramente egoísta. Esse
problema, por sua vez, pode ser encontrado de forma explícita
em Nietzsche, quando ele apresenta as cinco razões pelas quais o
excesso de história se torna nocivo, sobretudo a segunda, a quarta e
a quinta, mas que, devido à beleza orgânica destas razões, a primeira
e a terceira também serão apresentadas:

A super-saturação de uma época pela história parece ser nociva e


perigosa à vida em cinco aspectos: por meio deste excesso é gerado
aquele contraste até aqui discutido entre interior e exterior, e, com
isto, a personalidade é enfraquecida; por meio deste excesso uma
época acaba por arrogar-se a posse da mais rara virtude, a justiça,
em um nível mais elevado do que qualquer outro tempo; por meio
deste excesso perturbam-se os instintos do povo e dos indivíduos,
assim como se impede o amadurecimento do todo; por meio deste
excesso é semeada, a todo momento, a crença perniciosa na velhice
da humanidade, a crença de ser tardio e epígono, e por meio deste
excesso uma época recai na perigosa disposição da ironia sobre
si mesmo e, a partir dela, na disposição ainda mais perigosa do
cinismo: nesta, porém, desenvolve-se cada vez mais uma práxis
astuta e egoísta, através da qual as forças vitais são inibidas e, por
fim, destruídas (NIETZSCHE, 2003, p. 41).

Em tudo isso se pode ver de forma bastante clara os prejuízos


da história, não apenas enquanto estagnadora da vida, mas também
enquanto instrumento de destruição da própria vida. O sujeito
afirmativo nietzschiano, o “homem de ação”, aquele da valorização
dos instintos e da valorização do “outro”, será seguramente o
oposto da degenerescência – não sendo mero reagente -, mas
alguém preocupado com a vida, com a sua própria vida. Torna-se
compreensível, nesse ponto, a tese de Nietzsche de que: “a história

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só é suportada por personalidades fortes, as personalidades fracas são
completamente dizimadas por ela” (NIETZSCHE, 2003, p. 45 –
grifos do autor). Preocupar-se com a vida alheia já é, muitas vezes,
manipulá-la: esse é o perigo do excesso de história, e é esse também o
sentido de se valorizar a singularidade em Nietzsche. Ora, o passado
e suas respostas são sempre diferentes das do presente. Conhecer
por conhecer é tentar responder sem ter uma pergunta, é criar um
conhecimento estéril “que não leva a lugar algum”.

O problema da história levado às últimas consequências

A história – o sentido histórico – levada às últimas


conseqüências torna-se, como vem sendo demonstrado,
absolutamente perigosa, pois desenraiza o futuro9. O presente e o
futuro, que deveriam ser os parâmetros para o passado, acabam sendo
sufocados por este: eis o perigo do excesso de história e que pode
ser visualizado de forma textual nesse excerto: “O sentido histórico,
quando vige sem travas e retira todas as suas consequências, desenraiza o
futuro, porque destrói as ilusões e retira a atmosfera das coisas existentes,
a única na qual podiam viver” (NIETZSCHE, 2003, p. 58). Morte
ao instinto: eis o sentido de tal lógica. Nietzsche, em Schopenhauer
como educador, é incisivo:

Quem deixa que se interponham entre si mesmo e as coisas as


noções, as opiniões, os acontecimentos do passado, os livros, quem
portanto, no sentido mais amplo do termo, nasceu para a história,
este não verá jamais as coisas pela primeira vez e não será jamais ele
próprio uma dessas coisas que se vê pela primeira vez; mas ambas

9
“Toda a reflexão de Nietzsche sobre a educação tem como finalidade principal denunciar o fato
de o saber ter-se tornado um luxo, um capital improdutivo com o qual nada se tem a fazer, e
protestar contra a “formação histórica” imposta à juventude na Alemanha de Bismarck. Segundo
Nietzsche, a educação que os jovens alemães recebem nas instituições de ensino funda-se numa
concepção de cultura história que, ao privilegiar os acontecimentos e as personagens do passado,
retira do presente sua efetividade e desenraiza o futuro. Uma história, um pensamento que não
servem para engendrar vida e impor um novo sentido às coisas só podem ser úteis àqueles que
querem manter a ordem estabelecida e o marasmo da vida cotidiana” (DIAS, 1991, p. 60).

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as coisas se combinam reciprocamente no filósofo, porque é preciso
que ele tire de si mesmo o maior ensinamento e porque ele faz uso
para si mesmo da imagem e do resumo do universo (NIETZSCHE,
2003b, p. 205).

O erudito é aquele que não ama outra coisa senão o saber


pelo saber – poderíamos dizer, aqui, que se trata apenas do elemento
histórico, muito mal empregado, ou seja, da capacidade de memória.
Essa é sua fonte de “criação”, que é, muitas vezes, mera reação,
crítica de arte – na medida em que o simples viver, o ahistórico,
é depreciado, abandonado. Como só se cria pelo amor, segundo
Nietzsche, “(...) somente no amor, porém, somente envolto em sombras
pela ilusão do amor, o homem cria” (NIETZSCHE, 2003, p. 59), o
erudito só “gesta” reação, logo, desenraiza o futuro – torna-se doente,
pois não harmoniza o elemento histórico com o ahistórico, fazendo
da história um prejuízo à vida. É por isso que a cultura moderna
torna-se uma aberração, porque é apenas um “saber sobre a cultura”,
nada autêntico, inédito – trata-se de reação seguida de reação. E o que
é a barbárie senão ausência de estilo, de unidade, de autenticidade, de
saúde? O homem teórico gestou, portanto, grande parte da barbárie,
ma medida em que “a imagem de si do moderno é um misto de cogito
cartesiano e inseto kafkiano” (WEBER, 2011, p. 21). Ou seja, o
ideário moderno de racionalidade culminou em uma aberração: um
inseto, algo no mínimo excêntrico, sufocado pelo sistema social e
econômico, que se converte em algo desprezível.
Na modernidade, portanto, um grande problema foi gerado:
há a coexistência, não resolvida e que não pode ser solucionada,
entre o formal e entre a perda de qualquer referência. Coexistem,
assim, no homem contemporâneo: o inseto (imperfeito) e o
formal-matemático (também imperfeito), mas ambas as situações
permanecem incomunicáveis, inconciliáveis na imperfeição. Em
razão dessa dramática e complexa contraposição, torna-se possível
refletir acerca do referido “misto”. O ser humano, assim, é imperfeito
e incompleto – uma “aberração” - sob qualquer uma das situações.

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Enfim, ao se tirar continuamente, o “véu de ilusão”, ou seja,
o mistério de um sujeito, algo que cria uma “apatia prematura”, o
erudito-historiador-dissecador, com isso, mais uma vez sufoca a
vida. Ser o tempo todo submetido ao tribunal histórico e ver-se na
obrigação de responder a tudo seria, na linguagem d’O nascimento da
tragédia, a morte do dionisíaco, por decorrência, também a morte do
apolíneo: portanto, o assassinato da tragédia, o assassinato da vida em
sua máxima potência. Segundo Santos: “(...) para Nietzsche, o excesso
do conhecimento histórico impede-nos de sentir diretamente a realidade,
provocando o embotamento da capacidade de admiração ao ponto de
nos convencer que já nascemos velhos” (SANTOS, 1993, p. 61). E
será a respeito da juventude que Nietzsche terá grande preocupação,
pois a nova geração é a que se encontra mais apta a mudar os rumos
degenerescentes de então. Para tal objetivo renovador escreve:

Sim, sabe-se que a história possibilita uma certa preponderância,
através da qual algo que conhecemos com exatidão desenraiza os
instintos mais fortes da juventude: seu fogo, sua rebeldia, seu auto-
esquecimento e seu amor, diminuindo o calor de seu sentimento de
justiça, amadurecendo lentamente os desejos através do contradesejo
de estar rapidamente a postos, útil e frutífero para dominar ou
reprimir, para, ceticamente, tornar doentes a seriedade e a ousadia
das sensações: sim, a própria história consegue até mesmo iludir a
juventude quanto ao seu privilégio mais belo, quanto à sua força
para semear em si um grande pensamento com uma fé exuberante
e para deixar crescer a partir dele um pensamento ainda maior
(NIETZSCHE, 2003, p. 88).

A pessoa aprende a recortar um fragmento do passado e a


analisá-lo da forma mais sistemática e fria possível, empregando um
“método” para tanto. Um jovem coveiro, um jovem com “cabelos
grisalhos”, nada mais terrível e passível da destruição de Zeus,
como profetizara Hesíodo. É a ânsia pelo saber, portanto, a causa
de grandes destruições.

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Teu modo de andar, mais exatamente como andas enquanto homem
de conhecimento, é tua fatalidade; fundamento e solo, segundo
pensas, recuas para o interior da incerteza; para a tua vida, não há
mais nenhum suporte, só teias de aranha rompidas a cada nova
intervenção de teu conhecimento (NIETZSCHE, 2003, p. 77).

Por tudo isso, é possível afirmar:

(...) consideremos agora justamente o estudante de história, o


herdeiro de um esnobismo que se mostra já muito cedo, quase na
adolescência. Agora o “método” tornou-se o seu próprio trabalho, a
pegada correta e tom do mestre; um pequeno capítulo do passado
totalmente isolado é sua perspicácia e o método aprendido é
sacrificado; ele já produziu, sim, com as palavras mais orgulhosas,
ele “criou”, ele se tornou então um serviçal da verdade por meio da
ação e senhor no âmbito do mundo histórico. Se já estava “pronto”
como rapazola, ele está agora completamente pronto: precisa-se
apenas sacudi-lo e então a sabedoria cai com um grande estampido
no colo; no entanto, a sabedoria é preguiçosa e toda maçã tem seu
verme (NIETZSCHE, 2003, p. 63).

Nietzsche, como já dito, é um filósofo preocupado com os


valores. Suas críticas ao eruditismo são absolutamente cabíveis e
sob diversos ângulos demonstráveis. A prática eruditista, em última
instância, é desagregadora de valores, vulgarizadora, e isso se dá
porque os eruditos, essas “galinhas exaustas”, “cacarejam mais do
que nunca”:

(...) porque põe ovos mais frequentemente: é certo que os ovos


também foram se tornando cada vez menores (por mais que os livros
tenham se tornado cada vez mais grossos). Como um resultado
derradeiro e natural temos a “popularização” universalmente
apreciada (ao lado da “feminilização” e “infantilização”) da ciência,
ou seja, o famigerado corte da saia da ciência a partir do molde
fornecido pelo corpo do “público em geral”: para utilizar aqui,
pelo menos uma vez, uma expressão própria à alfaiataria, uma

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vez que esta é uma atividade de alfaiates alemães (NIETZSCHE,
2003, p. 64-65).

É possível, nesse ponto, ver de que forma a tendência à


redução da cultura e a tendência à ampliação da cultura – elencadas
na III Intempestiva – se juntam na tendência jornalista, que é o
próprio espírito plebeu de divulgação.
Na redução da cultura, sob o símbolo do erudito, a demora
excessiva em um ponto é algo peculiar; já na ampliação máxima é o
contrário que ocorre, ou seja, a pressa. Na modernidade, todavia, as
duas tendências se unirão: o erudito servindo a pressa, ou seja, suas
pesquisas sendo meramente utilitárias, comercializáveis, motivo de
grande lucro para a pseudocultura representada pelo jornalismo, e
a massificação que anseia sempre pela divulgação, refestelando-se.
Assim, o jornalismo crê que transmite informações de qualidade ao
grande público. Mas, é válido destacar que “(...) o estilo jornalístico de
escrita e pensamento é a mais grave de todas as ameaças ao aprendizado
da língua materna” (WEBER, 2011, p. 87), devido ao seu estilo
superficial. E, segundo Larrosa:

(...) o jornalista, por seu lado, representa a pseudocultura,


a aceleração, a indisciplina intelectual, a superficialidade, a
imaturidade, o espírito plebeu da divulgação. O jornalista é o que
opina sobre tudo e sobre todos, o que fala qualquer coisa, o que tem
opiniões próprias, mas nada mais que opiniões. (...) O jornalista
é o que subordina às leis da moda, às demandas do mercado, ao
gosto da opinião comum (LARROSA, 2005, p. 38).

Com este aspecto da crítica nietzschiana o “homem teórico”


converte-se em “homem instrumental”. Ser pessimista, nesse
contexto, torna-se sinônimo de sabedoria, e Nietzsche recomenda:
“(...) agis como pessimistas práticos, ou seja, como homens que são
guiados pelo pressentimento de um desastre e que se tornam por isto
indiferentes e desleixados diante do seu bem-estar próprio e alheio”
(NIETZSCHE, 2003, p. 65).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 87-112––jan./jun. 2013 106
No entanto, a Alemanha de Nietzsche acreditava estar no ápice
da história, tendo atingido o cume ao qual o ser humano poderia
chegar, e sonhar chegar. Nietzsche, amparado em Schopenhauer e
sua crítica à filosofia universitária, designa uma filosofia específica
que fortificava e promovia esse pensamento bizarro: a hegeliana10.
Tal filosofia fez com que os alemães acreditassem que toda a história
humana havia culminado necessariamente na história alemã. A
estrutura segregacionista, etnocêntrica, estava lançada11. Enfim,

Chamou-se, com escárnio, esta história compreendida


hegelianamente o caminhar de Deus sobre a terra; mas um Deus
criado por sua vez através da história. Todavia este Deus se tornou
transparente e compreensível para si mesmo no interior da caixa
craniana de Hegel e galgou todos os degraus dialeticamente
possíveis de seu vir a ser até a sua auto-revelação: de modo que,
para Hegel, o ponto culminante e o ponto final do processo do
mundo se confundiriam com a sua própria existência berlinense
(NIETZSCHE, 2003, p. 72).

As massas e o Estado

Todo esse cenário no qual a Alemanha Oitocentista é banhada


é dramático: o homem com sua mania de grandeza; a ideia de que

10
“Esses fins estatais da filosofia universitária foram, porém, os que propiciaram à hegelharia um
favor ministerial tão ímpar. Pois, para ela, o Estado era o ‘organismo ético absolutamente perfeito’,
fazendo com que todo o fim da existência humana se absorvesse no Estado” (SCHOPENHAUER,
2001, p. 17).
11
Esse tipo de história, que será designado pelo nome de historicismo, que se crê com a verdade,
tendo compreendido o sentido – teleologia – da história, será veementemente criticada por
Nietzsche. José Fernandes Weber nos ajuda a compreender o sentido dessa crítica: “Reconhecer
que não há verdades absolutas, que também o homem veio a ser, que sua faculdade de cognição
veio a ser, é o que impede confundir a valorização da história com uma defesa do historicismo.
Aliás, a crítica ao historicismo é a crítica à pretensão de objetividade da ciência história, a crítica
da tentativa que essa corrente de pensamento efetua de, por meio do estudo da história, encontrar
o telos dos acontecimentos, em suma, a crítica à compreensão metafísica da história” (WEBER,
2011, p. 181). Tal história, por sua vez, serve muito bem aos interesses utilitários e egoístas
do Estado, o que será grandemente analisado por Nietzsche em suas Conferências e na III
Consideração Intempestiva.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 87-112––jan./jun. 2013 107
um dia se chegou ao cume da história; o excesso de conhecimento
histórico; a morte ao instinto; o império das massas. Todos esses
aspectos encontram-se vinculados a Hegel, mas são diametralmente
opostos aos de Schopenhauer e Nietzsche. Não há mais nada a se
esperar de tal tipo de ser humano: “(...) pois a presunção do pequeno
verme humano é agora a coisa mais divertida e mais hilariante sobre o
palco terrestre” (NIETZSCHE, 2003, p. 84). E o erudito é aquele
que, como se não bastasse, disseca o verme.
Schopenhauer, no que diz respeito à crítica ao Estado, torna-
se pensador basilar, que fundamenta grandemente as críticas de
Nietzsche a essa instituição e à universidade. Para Schopenhauer,
Hegel é o indivíduo que fundamentou as bases do Estado, algo que,
por si só, se torna motivo de aspereza por parte de todo aquele que
visa uma formação genuína, não-utilitária. Tratar a filosofia enquanto
“ganha-pão” foi uma das características da “hegelharia”. Essa nova
forma de tratar a filosofia, todavia, é semelhante à prostituição. Nas
palavras de Schopenhauer:

Entre os antigos, o sinal que diferenciava os sofistas dos filósofos


sempre foi ganhar dinheiro com a filosofia. A relação dos sofistas
com os filósofos era, por isso, bem análoga àquela entre as moças
que se entregavam por amor e as prostitutas (SCHOPENHAUER,
2001, p. 27).

Hegel, enfim, prejudicou a cultura da época.

Mas não se pode duvidar que o fato de a filosofia séria, profunda e


honesta de Kant ter sido recalcada pelas fanfarronadas praticadas
pelos sofistas unicamente em vista de fins materiais teve a influência
mais prejudicial para a cultura da época. Além disso, o elogio de
uma cabeça tão sem valor e mesmo inteiramente corrompida como
a de Hegel, como se fosse a do primeiro filósofo deste e de todos
os tempos, foi indubitavelmente a causa da degradação total da
filosofia e da literatura mais elevada durante os últimos trinta anos
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 56).

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Quando as massas reinam, ou seja, a vulgaridade, que também
pode ser representada pelo populacho hegeliano, a banalização, o
tipo nobre, aristocrático, é tratado como inferior, arrogante, digno
do mais absoluto desprezo, e é por esse operar bárbaro que estas
vão para “(...) o diabo, e a estatística as carreguem!” (NIETZSCHE,
2003, p. 84).
Nietzsche combate esse cenário de forma tão exacerbada
e apaixonada, que é impossível não perceber amor pelo que
faz, sendo ele um “homem de ação”, alguém em luta contra o
seu tempo, alguém que cria e destrói, destrói e cria, enfim, um
extemporâneo, que tinha noção dos prejuízos da massa para a
vida. Massas e autenticidade cultural possuem sentidos opostos:
Nietzsche, obviamente, se posiciona de forma aristocrática, como
signo de valorização da vida, como signo de luta contra a barbárie.
Quem aceita a fragmentariedade, ou seja, quem nega a totalidade, a
teleologia aos moldes apregoados por Hegel, a crença na totalidade
sendo o credo típico da ciência, da filosofia, ao menos até o século
XIX, é o único que pode almejar a uma formação aristocrática, que
não aceita uma “compreensão metafísica da história”. A integralidade
que a educação aristocrática de Nietzsche almeja, não é a de uma
totalidade, entendida enquanto universalidade, e sim da lida com o
conjunto dos elementos que cada um é. É total, mas não é universal.
A educação aristocrática assume a fragmentariedade do mundo, do
homem e busca criar com isso um sistema de significado para o
homem, para o mundo. A tragédia faz precisamente isso. O sentido
da história hegeliana, e tudo o que dela procede, inclusive o Estado,
por sua vez, tornam-se desprovidos de sentido.
O “homem teórico”, esse ser tão visado pela educação,
engendrou a barbárie, daí o combate de Nietzsche contra o seu ideal
“cultural”. Esse “saber sobre a cultura”, por seu turno,

(...) é injetado ou inoculado, como um saber histórico, no jovem;


ou seja, sua cabeça é preenchida com uma quantidade descomunal
de conceitos extraídos do conhecimento maximamente mediato das

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épocas e dos povos do passado, não da intuição imediata da vida
(NIETZSCHE, 2003, p. 92).

Em suma, confundir “deliberadamente quantidade com


qualidade” é um dos principais crimes da modernidade...
O Estado, nesse ínterim, torna-se peça fundamental para
se manter o status quo, o egoísmo tão amplamente difundido. Por
isso, sobretudo, grande parte das críticas do filósofo ao Estado se
deram: porque este fundamenta, incentiva e protege a mediocridade,
o império das massas, e também a erudição, esse “abortamento do
impulso crítico”, da vida.

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Era uma vez, dois irmãos
e os contos de fadas

Lorena Carolina Fabri1

Resumo: O presente artigo tem como preocupação mostrar, não somente a relação das
histórias populares com a sociedade, mas ainda o desenvolvimento que tais histórias
tomaram, enquanto representações culturais, desde a época em que começaram
a se instituir como tal. Os chamados “Contos de Fadas” que os irmãos Grimm
compilaram podem servir como base para um estudo historiográfico da sociedade
em que foram coletados. A relação história com literatura serve, aqui, para ajudar
a situar e compreender melhor as representações sociais presentes na tradição oral e,
consequentemente, na escrita de tais contos. O objeto principal desse estudo são os
contos compilados pelos Irmãos Grimm, a sua relação histórica com a sociedade em
que surgiram e a sua transformação cultural. A análise histórica desses contos enquanto
fonte visa mostrar os elementos existentes na cultura popular que estão presentes nessa
representação artística.
Palavras-chave: Irmãos Grimm, História, Cultura.

Abstract: This current article is concerned to show, not only the relation of the popular
stories with the society, but still the development which such stories had, as long as
representation of culture, since the times they began to be defined as such. The so called
“Fairy Tales” that the Brothers Grimm had compiled are the bases to an historiographic
study about the society which they emerge. The relation of history and literature helps to
situate and better understand the social representation belonging in the oral’s tradition
and, consequently, on the written of this tales. The main object of this essay are the
tales compiled by the Brothers Grimm, their relation historical with the society in
which they emerged and their culture’s transformation. Those tales are the source of an
historical analysis, which intents to show the elements of the popular’s culture, inside
of this artistical representation.
Keywords: Brothers Grimm, History, Culture.

Introdução

Os irmãos Grimm possuem relevância como objeto de


pesquisa tanto pela sua contribuição no campo literário como pela
contribuição histórica. A trajetória de seu trabalho permite conhecer
a pesquisa e criação do primeiro dicionário da língua alemã pelos

1
Graduada em História pela UNIOESTE - Marechal Cândido Rondon.

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Grimm, além da compilação e publicação da coletânea Kinder und
Hausmärchen (Contos da Criança e do Lar). Entretanto, esse texto
focará principalmente nessa característica de coletores e publicadores
de contos populares.
Este artigo abordará o lançamento dessa coletânea de contos,
que foram colhidos pelos próprios autores da tradição oral para
serem publicados, e o processo que envolveu esse lançamento. Entre
os assuntos abordados, apresenta-se a importância histórica que as
histórias populares possuem quando relacionadas com o contexto
social em que foram recolhidas, e como passaram da forma oral à
escrita. Além disso, pode-se analisar a afinidade e a relevância da
publicação dos contos, bem como a mudança do conto original oral
para a versão publicada.
A análise baseada nos contos dos Grimm irá relacioná-los
com o contexto histórico em que surgiram e sobre a sua relevância.
A relação história-literatura revela um novo objeto de estudo e os
contos populares são um exemplo da mentalidade e dos significados
da época de sua publicação.
Trata-se de um assunto interdisciplinar que envolve tanto a
história quanto a literatura, onde se usa a obra literária e a sua análise
para a compreensão da mentalidade cultural e social da época em que
o objeto de estudo foi produzido. Neste caso serão utilizados contos
que contemporaneamente são denominados “contos de fadas”.
Porém após análise histórica sobre as suas primeiras publicações,
entende-se que o meio em que tais histórias vieram não eram
“infantis”, daí a importância da análise de tais registros não só no
campo literário, mas também historiográfico.

A compreensão de que a literatura é, além de um fenômeno estético,


uma manifestação cultural, portanto uma possibilidade de registro
do movimento que realiza o homem na sua historicidade, seus
anseios e suas visões do mundo, tem permitido ao historiador
assumi-la como espaço de pesquisa.2 (MENDONÇA; ALVES,
2003, p. 02)
2
MENDONÇA, C. V. C. de; ALVES, G. S. Os desafios teóricos da história e a literatura.
Revista História Hoje, São Paulo, n.2, p. 2, 2003.

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Juntamente com o levantamento histórico a fim de entender
o contexto que produziu o objeto de estudos, há que se levar alguns
fatores em consideração, como a passagem da tradição oral para a
escrita, tanto quanto a função que aquele conto publicado viria a
ter. Essa pesquisa, portanto, compromete-se a expor o significado
e o surgimento desses contos para entendermos sua função social-
histórica associada à cultura. Seja como registro histórico, ou como
representação cultural, o estudo da criação e da função dos contos dos
Grimm perpassa também a passagem da tradição oral para a escrita.

Contos de fadas

A ideia acerca do que são os “Conto de Fadas” é essencial


para a compreensão do legado deixado pelos irmãos Grimm. Apesar
das histórias dos Grimm serem consideradas infantis, nem sempre
elas possuíram esse propósito. Recolhidas originalmente de fontes
orais pelos irmãos, esses contos apresentavam elementos daqueles
publicados por Charles Perrault nas cortes francesas um século antes.
Sendo assim constata-se que, apesar de escritos e publicados seguindo
a tradição e influência direta dos compiladores-autores, esses contos
não foram originalmente “inventados” pelos Grimm, mas vinham
de uma tradição cultural antiga. Mais precisamente, chegaram ao
conhecimento destes pela tradição popular oral.3

Cabe considerar que os ditos “contos de fadas”, na sua origem, não


são destinados ao público infantil. O que os Grimm realizam, em
verdade, é a compilação de elementos de uma tradição oral local,
a qual expressa anseios, temores, “lições de moral”, similares aos
exempla medievais. Transpondo a referida tradição oral da “voz para
a letra”, imprimem nas versões que produzem perspectivas fundadas
3
Os Grimm compilaram alguns contos da tradição oral e entre os colaboradores temos “[...]
Jeannette Hassenpflug, vizinha e amiga íntima deles, em Cassel; e ela ouviu as histórias de
sua mãe, que descendia de uma família francesa huguenote. Os huguenotes trouxeram seu
próprio repertorio de contos para a Alemanha, quando fugiram da perseguição de Luís XIV.”
In: DARNTON, R. O Grande Massacre de Gatos. Tradução: Sonia Coutinho. 4. ed. Rio de
Janeiro: Graal, 1986. p. 24.

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em sua experiência e interpretação da realidade que vivenciavam.4
(FABRI, 2008, p.9)

Philippe Ariès fala em seu livro História Social da Criança e da


Família (1981) sobre a representação infantil no século XVIII, época
em que não existia uma diferenciação clara entre criança e adulto.5
Segundo ele, existia uma diferenciação maior entre classes sociais e
gênero que de idades, mostrando que a tradição popular era comum
tanto às crianças quanto aos adultos. Sendo assim, não é coerente
analisar os contos populares como destinados exclusivamente às
crianças, mas como narrativas que vinham dos salões e reuniões
de adultos, com características desse universo, pertencentes à
mentalidade popular da época em que foram recolhidos das fontes
orais pelos Grimm.6
J. R. R. Tolkien, ainda sobre contos de fadas, fala que

Na verdade, a associação entre crianças e histórias de fadas é um


acidente de nossa história doméstica. No mundo letrado moderno,
as histórias de fadas foram relegadas ao “berçário”, assim como
a mobília velha ou fora de moda é relegada à sala de recreação,
principalmente porque os adultos não as querem mais e não se
importam se a usarem de forma inadequada. [...] É verdade que
em tempos recentes as histórias de fadas normalmente têm sido
escritas ou ‘adaptadas’ para crianças. Mas também se pode fazer
isso com a música, ou a poesia, ou os romances, ou a história, ou
os manuais científicos.7 (2006, p.41)
4
FABRI, L. C. Era uma vez nos contos de fadas dos irmãos Grimm. (graduação em história).
Marechal Cândido Rondon: UNIOESTE, 2008. p. 9.
5
[...] as crianças não eram as únicas a ouvir essas histórias: elas também eram contadas nas
reuniões noturnas dos adultos. In: ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de
Janeiro: Ed. Afiliada, 1981. p. 85.
6
Quando essas histórias faziam parte da tradição oral, o mundo doméstico não era tão
dissociado do resto da sociedade, trabalhava-se num lugar que era a extensão da casa. Não
havia uma distância clara entre casa e trabalho, nem entre o mundo da infância e o mundo
dos adultos, tampouco havia uma preocupação com a formação das crianças, pois nem
havia uma clara idéia de que a infância, tal qual a concebemos, existisse. In: CORSO, D. L.;
CORSO, M. Fadas no Divã. São Paulo: ARTMED, 2006. p. 25-26.
7
TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. São Paulo: Conrad, 2006. p. 41.

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Dessa maneira, entende-se que o campo dos contos de fadas
não pertence unicamente às crianças, mas podem revelar muito se
estudado o seu surgimento e o que os levou a serem considerados
infantis.
Ainda segundo Tolkien, o conceito “Contos de Fadas” se
refere originalmente a histórias sobre o reino em que existiam as
fadas, elfos e os seres fantásticos e portadores de magia.8 Porém
a associação do termo Contos de Fadas aos contos de origem
popular publicados pelos Grimm se dá comumente pela presença
de elementos mágicos, sobrenaturais ou até mesmo fantásticos, em
alguns de seus contos. Logo, desmistificar os contos dos Grimm
como Contos de Fadas e caracterizá-los corretamente enquanto o que
realmente são: histórias populares transcritos da tradição popular de
um povo e pertencente à representação cultural de uma época ajuda
a procurar os meios corretos de estudo para essa fonte histórica.
Além de Contos de Fadas, é preciso saber diferenciar a
obra de Charles Perrault9 e os contos reunidos e publicados pelos
irmãos Grimm. Apesar de apresentarem similaridades com os
contos lançados por Perrault, a publicação dos irmãos se diferencia
exatamente em virtude das fontes narrativas. As fontes orais que
contribuíram com o Kinder und Hausmärchen tiveram algum
contato com a cultura francesa devido à proximidade geográfica.
A importância de tais fontes para diferenciar a obra dos Grimm,
segundo Darnton, é “como todos os contadores de história, os
narradores camponeses adaptavam o cenário de seus relatos ao
próprio meio; mas mantinham intatos os principais elementos
[...].”10 Mostrando, assim, que as fontes dos contos compilados
pelos irmãos adaptavam a história à sua vivência, incorporando
características dessa cultura germânica.
8
(...) porque no uso corrente do termo histórias de fadas não são histórias sobre fadas ou elfos,
mas sim sobre o Belo Reino, Faërie, o reino ou estado no qual as fadas existem.” In: Ibid. p. 15.
9
Charles Perraul lançou o Contes de ma mère l’oye (Contos da Mamãe Ganso) em 1697, uma
coletânea que veio a influenciar nos contos recolhidos pelos irmãos Grimm um século depois.
10
DARNTON, R. Op. Cit. p. 30-31.

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Os contos publicados pelos Grimm pertencem e carregam,
enquanto representações populares, elementos da sociedade em que
são lançados. Como anteriormente dito, não são criações dos autores,
mas registros recolhidos da tradição oral popular, e como tais,
apresentam em si elementos da cultura de onde foram recolhidos.
Segundo Darnton a análise realizada pelos historiadores com os
contos ajuda a compreender o significado presente nelas, pois “[...]
relacionam os contos com a arte de narrar histórias com o contexto
no qual isso ocorre. Examinam a maneira como o narrador adapta
o tema herdado a sua audiência, de modo que a especificidade do
tempo e do lugar apareça, através da universalidade do motivo.” 11
Dessa maneira, analisar uma versão de um conto dos Grimm
permite a compreensão também dos elementos culturais comuns aos
narradores de tais histórias. Como exemplo, ao averiguar os contos
escritos por eles, pode-se identificar a presença de exemplos de seu
universo mental: como o desejo por comida, riqueza ou casamento,
presente em contos como “Chapeuzinho Vermelho”, “Raponcel”12,
“Joãozinho e Margarida”, “O Casamento de João”, “João Jogatudo”,
entre outros.
Assim, ao estudar os elementos presentes nos contos dos
Grimm, nota-se as características sociais e culturais que eles
carregam, assim como Darnton fez. Entretanto esse artigo não irá se
aprofundar na dissecação do significado de cada conto, mas contará
com exemplos dos contos dos Grimm para demonstrar a importância
de relacionar literatura e história, e dialogar com seus significados.
Outro ponto comum das histórias dos Grimm que ajuda a
visualizar a mentalidade e a forma de vida da época em que foram
recolhidas é o local das narrativas. Geralmente em florestas, como
Chapeuzinho Vermelho, O Pequeno Polegar, Joãozinho e Maria,
Raponcel, entre outras. Essa característica ajuda a situar o meio
11
Ibid. p. 29.
12
A versão usada nesse artigo é “Raponcel”, pois a mulher fica com desejo de raponços e
devido a isso, a menina ganha esse nome nesta versão. GRIMM, J.; GRIMM, W. Contos
e Lendas dos Irmãos Grimm. II Volume. São Paulo: Editora Parma LTDA, s.d. p. 237-243.

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comum dos narradores como sendo anterior à industrialização e ao
desenvolvimento das cidades.

História-literatura

A análise do trabalho publicado pelos Grimm relaciona a


obra literária produzida em determinado contexto histórico com a
sua realidade social. Tudo que é produzido, como nesse caso a obra
literária, existe, pois devido a uma necessidade. Da mesma forma que
usamos a publicação literária para analisar o contexto que a produziu,
entende-se que o contexto histórico justifica a produção artística.

Compreender a literatura significa, pois compreender a totalidade


do processo social de que ela fez parte. Como escreveu o crítico
marxista russo Georgy Plekhanov: “A mentalidade social de uma
época é condicionada pelas relações sócias dessa época. Isto em parte
alguma é tão evidente como na história da arte e da literatura.”13
(EAGLETON, 1978, p.18)

Logo, nota-se a importância e a conseqüente relevância do


estudo que relaciona a historia e a literatura. A produção artística é
influenciada pelo meio que a produziu e evidencia essas características
em seus significados. Além da relação com a realidade histórica, a
produção artística apresenta outros fatores, como a influência de
seu criador e do público que irá consumi-la.

Tomemos os três elementos fundamentais da comunicação


artística – autor, obra, público – e vejamos sucessivamente como
a sociedade define a posição e o papel do artista; como a obra
depende dos recursos técnicos para incorporar os valores propostos;
como se configuram os públicos. Tudo isso interessa na medida em
que esclarece a produção artística, e embora nos ocupemos aqui
principalmente com um dos sentidos da relação (sociedade -> arte),
faremos as referências necessárias para que se perceba a importância
13
EAGLETON, T. Marxismo e crítica literária. Tradução: Antônio Souza Ribeiro. Porto:
Afrontamento, 1978. p. 18.

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do outro (arte -> sociedade). Com efeito, a atividade do artista
estimula a diferenciação de grupos; a criação de obras modifica os
recursos de comunicação expressiva; as obras delimitam e organizam
o público. Vendo os problemas sob esta dupla perspectiva, percebe-
se o movimento dialético que engloba a arte e a sociedade num
vasto sistema solidário de influência recíproca.14 (CÂNDIDO,
1976, p.24)

O estudo utilizando fontes literárias relacionadas com a


história, então, não envolve somente a obra em si e o autor, mas
um universo onde faz parte tanto elementos que contribuíram para
a criação artística, como elementos posteriores ao seu surgimento,
nesse caso o público direcionado ou a presença dos elementos
culturais nessa obra literária.
Cada representação artística apresenta diferenças significativas
tanto em sua produção quanto o sentido que ela vai ter, e isso
ocorre pela influência de quem a criou. Perceber as presenças que
propiciaram o surgimento de uma expressão artística ajuda a situar
a criação dessa obra e direcionar sua averiguação. A produção não
pode ser analisada separada do contexto no qual ela surge, pois os
elementos sociais estarão presentes e a farão ter o seu significado
cultural. A obra tem uma relação com a cultura que propiciou seu
surgimento e demonstra as características sociais de onde surgiu. 15
Assim, a produção artística é encarada enquanto um objeto
passivo de ser dissecado e analisado. Alguns elementos podem ser
percebidos nessa análise, como a relação com a cultura em que está
inserida, a influência de seu autor e o público ao qual se destina.
Essas características moldam o objeto de estudo, tornando possível
e pertinente ser estudado, e por isso a preocupação em ter esses
aspectos em mente ao realizar a análise da publicação dos Grimm.
14
CÂNDIDO, A. Literatura e Sociedade. 5. Ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1976. p. 24.
15
“[...] arte, como qualquer outra forma de produção, depende de certas técnicas de produção
“ certas formas de pintura, publicação, representação teatral, etc. Estas técnicas fazem parte das
forças produtivas da arte, do estádio de desenvolvimento da produção artística, e envolvem
um conjunto de relações sociais entre o produtor artístico e seu público.” In: EAGLETON,
T. Op. Cit. p. 79.

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A exemplo disso tem-se a influência dos autores, onde,
diferentemente dos contos provindos da tradição oral ou dos
contos de Perrault16, a publicação dos Grimm exprime a presença
das características da criação religiosa dos irmãos, e também da
cultura germânica que é a fonte das narrativas. Leva-se, ainda,
em consideração que além da formação religiosa dos autores, eles
pertenciam a uma camada social distinta daquela que narrou os
contos. Era esse o seu público alvo ao lançar os contos, e não o
público que contou as histórias, porém analfabeto.
Para Terry Eagleton acerca da literatura e a sua função, ela é
considerada também como uma mercadoria, um produto idealizado
obedecendo à finalidade que o seu criador dá a ela. Apesar de
representar os elementos sociais da época e da realidade de onde
surge, a literatura também é comercializada, gerando lucro e por
isso, direcionada a um público para ser consumida. Essa atividade
econômica que influência diretamente a produção artística como a
necessidade de lucro, serve também para justificar a relevância da
publicação de certa obra artística, e dita as regras de sua publicação
para atingir um público-alvo.17
Dessa forma, a publicação dos contos obedece ao propósito
pensado pelos seus editores. Os Grimm, embora muito interessados
em fazer o levantamento dos elementos culturais germânicos,
também obedeciam a critérios próprios. Critérios estes diferentes
de outros autores da época, explicando assim a diferenciação de sua
publicação.
Peter Burke fala que a manifestação de cultura popular está
enraizada profundamente com a realidade à qual ela está inserida. A
16
A obra de Perrault, por ter sido lançada visando à corte francesa, apresentou um caráter de
diversão, enquanto a publicação dos Grimm, seguindo a formação e o público para o qual
foi lançado, teve uma constituição diferente, mais moralista.
17
A literatura pode ser um artefacto, um produto da consciência social, uma visão do mundo;
mas é também uma indústria. Os livros não são apenas estruturas significativas, são também
mercadorias produzidas por editores e vendidas no mercado com lucro. [...] Podemos ver
a literatura como um texto, mas podemos também vê-la como uma actividade social, uma
forma de produção social e econômica que existe a par de outras formas semelhantes e se
interrelaciona com elas.” In: EAGLETON, T. Op. Cit. p. 77-78.

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cultura expressa as características do meio ao qual ela está inserida,
por isso é passiva de mudança conforme o meio muda. A análise do
significado presente na obra dos irmãos Grimm se relaciona com o
meio ao qual tais contos foram lançados, mesmo que tenham tido
contato com outras formas culturais, e anos após esse lançamento,
seu enredo se transformou com as mudanças sociais. Cada versão
de um conto, dessa forma, adquire as características culturais do
meio em que ele surge. 18
Logo, nota-se que além do interesse em registrar a cultura
popular, o outro intuito com o lançamento da coletânea era a sua
venda. E isso acontecia direcionando ao público que a compraria.
Ao contrário dos camponeses que transmitiram sua tradição
popular, mas, que desconheciam a leitura, os contos foram lançados
direcionados à camada burguesa letrada.19 Ademais, nota-se a
presença da criação religiosa dos irmãos na publicação.
A criação dos Grimm influência em sua publicação na
medida em que eles inserem elementos de sua formação religiosa
em muitos dos contos. A comparar com contos presentes na edição
de Perrault, por exemplo, constata-se a presença de elementos dessa
criação huguenote, como os contos “Copinho de Nossa Senhora”,
“João Jogatudo”, “São José na Floresta”, “Os três raminhos verdes”,
entre outros.20
18
A cultura popular, como vimos, estava intimamente relacionada com seu ambiente, adaptada
a diferentes grupos profissionais e modos regionais de vida. Necessariamente mudaria quando
mudasse seu ambiente. A maneira como ela mudou é um tema que os historiadores estão
apenas começando a investigar, e é de se esperar que essa história, quando for finalmente
contada, seja complexa, visto que as diferentes partes da Europa foram atingidas em diferentes
graus pelas transformações econômicas.” In: BURKE, P. Cultura popular na idade moderna.
2 ed. São Paulo: Companhia das letras, 1995. p. 267-268.
19
Quando Jacob e Wilhelm Grimm desenvolveram seu primeiro plano de compilar contos
populares alemães, tinham em mente um projeto erudito. Queriam capturar a voz ‘pura’ do
povo alemão e preservar na página impressa a poesia oracular da gente comum.” In: TATAR,
M. Contos de Fadas: Edição comentada e Ilustrada. Tradução: Maria Luisa X. de Borges. Rio
de Janeiro: Ed. Jorge ZAHAR Editor, 2004. p. 350.
20
Esses contos citados como exemplo apresentam em sua estrutura elementos de caráter
religioso, como a presença de santos ou anjos e uma linguagem religiosa moralista, incutindo
assim, os ideais religiosos. Esses ideais religiosos citados que estavam presentes nesses contos
eram a bondade, e ensinamentos de compaixão.” In: FABRI, L. C. Op. Cit. p. 28.

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Esse aspecto religioso exprime também a interferência dos
autores na publicação para servir a um público-alvo. Dessa forma
os próprios Grimm têm interferência direta sobre o lançamento
dos contos orais recolhidos, passando à medida que são relançados,
abrandando a linguagem, como Maria Tatar relaciona em seu
“Contos de Fadas” (2004):

As ambições eruditas e o zelo patriótico dos Grimm guiaram em


grande medida a produção da primeira edição dos Contos da
infância e do lar. [...] Em sucessivas edições dos Contos da infância
e do lar, Wilhelm Grimm inflou os textos a ponto de deixá-los
muitas vezes com o dobro do tamanho original. Poliu a prosa
tão cuidadosamente que ninguém mais pôde se queixar das suas
qualidades rudes.21

Assim, a influência da publicação dos Grimm está


representada tanto na passagem da oralidade para a escrita, quanto
principalmente na ação consciente dos autores, atribuindo seus
próprios elementos, bem como direcionando sua obra à venda a
um público. Essa constatação deixa claro que a análise dos Grimm
se diferencia quando são entendidas essas características inerentes à
sua obra e presentes unicamente nela.22
21
TATAR, M. Op. Cit. p. 351-352.
22
“Para seu famoso livro de Märchen, os Grimm coletaram história da tradição oral em
Hesse, pedindo aos seus colaboradores que as enviassem ‘sem acréscimos e os chamados
aprimoramentos’ (ohne Zusatz und sogennante Verschönerung). No entanto os irmãos não
publicaram exatamente o que haviam encontrado. Para começar, as histórias circulavam em
dialeto, e os Grimm traduziram-nas para o alemão, criando, em conseqüência, uma obra-
prima da literatura alemã. Mas o que eu quero ressaltar é o que se perdeu e o fato de que na
Alemanha daquela época a língua das classes médias era literalmente diferente da dos artesãos
e camponeses. Assim, as versões originais das histórias teriam sido ininteligíveis para quem
se destinava o livro. A tradução era imprescindível, mas necessariamente envolvia distorções.
Algumas histórias foram expurgadas pois, de outra forma, teriam chocado seus novos leitores.
As idiossincrasias individuais do relato foram atenuadas, de modo a dar um estilo uniforme
à coletânea. Onde as diferentes versões do mesmo conto se complementavam, os Grimm as
amalgamaram (de modo bastante justificável, tendo em vista sua teoria de que quem criava
não era o individuo, mas o ‘povo’). Finalmente, um estudo das diferenças entre a primeira
edição dos Märchen e outras posteriores mostra que os Grimm emendaram os contos, tentando

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Esse tipo de manifestação de cultura popular que apresenta a
passagem da fonte oral para a publicação escrita mostra-se distinta
na obra dos Grimm do que em outros contos populares como o de
Perrault. Diferentemente de criar uma história, os irmãos publicaram
contos populares que coletaram oralmente em grande parte por
camponeses germânicos e adicionaram elementos próprios. Porém
alguns desses contos apresentavam contato com as histórias lançadas
por Perrault na França, embora muitas narrativas tenham vindo
realmente carregadas de elementos culturais originados da cultura
camponesa germânica.23
Darnton evidencia essa presença de elementos dos contos
de Perraul no lançamento da obra dos Grimm ao falar que
“’Chapeuzinho Vermelho’ inseriu-se na tradição literária alemã [...]
com suas origens francesas não detectadas.”24 E assim como houve a
mudança na passagem dos contos pelos diferentes meios culturais, a
mudança da oralidade e escrita também modificou as características
presentes no lançamento das histórias.
A mudança de elementos que é evidenciada quando são
comparadas as versões de Perrault com a dos Grimm mostra a
existência de uma discrepância entre a mentalidade vivenciada por
Perrault e a vivenciada pelos Grimm. À exemplo disso temos a versão
do conto “Chapeuzinho Vermelho” de Perrault, onde a menina é
simplesmente devorada. Entretanto, quando confrontada com a
versão dos Grimm, surge um elemento de redenção, o lenhador que
a salva e confere o caráter moralista ao conto,25 deixando claras as
dar-lhes um tom mais oral. Por exemplo, inseriram fórmulas tradicionais em Branca de Neve
que iam desde ‘era uma vez’ (Es war einmal) até ‘eles viveram felizes para sempre’ (sie lebten
glücklich bis na ihr Ende).” In: BURKE, P. Op. Cit. p. 46-47.
23
“Os contos da coletânea dos Grimm passaram a constituir um arquivo cultural do folclore
alemão, de histórias que ao que se pensava, espalhavam e modelavam a identidade nacional.
(...) Os Grimm baseavam-se em diversas fontes, tanto orais quanto literárias, para compilar
sua coletânea.” In: TATAR, M. Op. Cit. p. 351.
24
DARNTON, R. Op. Cit. p. 24.
25
“[...] na versão dos irmãos Grimm, a personagem título ser salva no final pelo personagem
do caçador, enquanto que na versão de Perrault esse personagem não existe.” In: FABRI, L.
C. Op. Cit. p. 59.

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origens e identidades de cada conto, que assume a forma proposta
pelo seu autor.
A análise fiel, entretanto, da versão oral não poderá ser feita,
devido a sua mudança quando transcrita e publicada.26 Essa mudança
de meio tende a mudar elementos da história e a pesquisa focada
nas versões escritas nem sempre podem garantir a sua transposição
total, perdendo alguns elementos nessa mudança. A narrativa oral é
perpassada, porém a história publicada escrita está a mercê de outros
fatores decisivos. O transmissor do conto e o seu receptor, portanto,
têm papel relevante para o lançamento da versão escrita da história.
Ainda sobre narrativa, segundo Walter Benjamim

Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se


perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde
porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto
mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se
grava nele o que é ouvido. [...] A narrativa, que durante tanto
tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar e na
cidade –, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal
de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro
em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório.
Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la
dele. Assim sem imprime na narrativa a marca do narrador, como
a mão do oleiro na argila do vaso.27 (1987, p.205)

Sobre a passagem da oralidade para a escrita, os Grimm


transpõem a cultura oral popular recolhida para seus livros
destinados a outro público. Diferentemente da camada social que
contou os contos aos irmãos que era analfabeta, os contos foram
lançados visando um público que sabia ler, as casas burguesas. Esse

26
O maior obstáculo é a impossibilidade de escutar as narrativas, como eram feitas pelos
contadores de histórias. Por mais exatas que sejam, as versões escritas dos contos não
podem transmitir os efeitos que devem ter dado vida às histórias no século XVIII [...]” In:
DARNTON, R. Op. Cit. p. 32.
27
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. 3 Ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 205.

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motivo ajuda a justificar a diferença dos contos dos Grimm com
outros contos e nota-se aí o motivo pelo qual estudar esses contos:
explorar esse universo cultural.
Tem-se que ter em mente qual a definição de cultura usada no
texto e relacionada com seu contexto social. Segundo Peter Burke,

“Cultura” é uma palavra imprecisa, com muitas definições


concorrentes; a minha definição é a de “um sistema de significados,
atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas (apresentações,
objetos artesanais) em que eles são expressos ou encarnados”. A
cultura nesta acepção faz parte de todo um modo de vida, mas não é
idêntica a ele. Quanto à cultura popular, talvez seja melhor de início
defini-la negativamente como uma cultura não-oficial, a cultura
da não-elite, das “classes subalternas”, como chamou-as Gramsci.
No caso dos inícios da Europa moderna, a não-elite era todo um
conjunto de grupos sociais mais ou menos definidos, entre os quais
destacavam-se os artesãos e os camponeses. Portanto uso a expressão
“artesãos e camponeses” (ou “povo-comum”) para sintetizar o
conjunto da não-elite, incluindo mulheres, crianças, pastores,
marinheiros, mendigos e os demais grupos sociais.28(1995, p.25)

Contudo, esse texto tratará dessa cultura da não-elite que foi


fonte das narrativas publicadas pelos irmãos Grimm.
A cultura não é algo único, ou não haveria a necessidade
da distinção entre cultura e seus estilos de variação como popular,
erudita, camponesa, etc. Porém, os contos dos Grimm vêm da
tradição popular oral, recolhida por eles, mas, publicada seguindo as
intenções dos autores. Essas intenções abrangiam tanto o público a
qual era destinado; que ao contrário das fontes iletradas, o público ao
qual a publicação era destinada, que já dominava a leitura; quanto à
mensagem que os autores desejavam transmitir com sua obra. Outro
propósito com a publicação desses contos viria a ser a preservação
da memória e a cultura popular germânica devido à preservação dos
contos com a escrita.

28
BURKE, P. Op. Cit. p. 25.

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A literatura popular tem sido um tema de pesquisa muito
concorrido nesses últimos dez anos, apesar da tendência cada vez
maior de questionar a idéia de que os livretos baratos, como a
bibliothèque bleue, tenham representado uma cultura autônoma da
gente simples, ou de que seja possível distinguir claramente entre
correntes da cultura de ‘elite’ e da cultura ‘popular’. Atualmente,
parece descabido conceber a transformação cultural como um
movimento linear, ou gradualmente descendente, de influências.
As correntes não só desciam, mas também subiam, fundindo-se e
misturando-se nesse transito.29 (DARNTON, 1990, p. 129.)

Embora distintos, os estilos culturais sempre tinham


similaridades por estarem presente no mesmo meio, na mesma
época, entretanto, com adaptações em cada camada social à qual
pertenciam. Segundo Peter Burke, existia uma cultura chamada
artesã e uma cultura urbana, que por serem alfabetizadas, diferiam
da chamada cultura camponesa. As cidades apresentavam maiores
oportunidades e um desenvolvimento superior ao campo devido
à alfabetização dos seus habitantes, distinguindo, desse modo, os
camponeses iletrados da população das cidades que freqüentava as
escolas e aprendiam a ler e escrever. 30
Visto isso, leva-se em consideração a diferença das fontes
para o público alvo do lançamento dos livros dos Grimm. Além da
cultural, a distinção da forma oral para a forma escrita. Logo, não
existe uma cultura popular única e separada, mas que sofria tanto
influência do seu campo de recolhimento, quanto do público ao qual
era destinado. A cultura por estar num meio comum, e cercado por
diferenças, acaba adquirindo diferentes características que acabam
por relacionar os distintos meios ao qual pertence. Essas são as
características divergentes, porém relacionadas, que formam esse
meio social ao qual pertencem as narrativas publicadas pelos irmãos.

29
DARNTON, R. O Beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.129.
30
“Um outro fator que unia a cultura artesã e a cultura urbana, separando-as da cultura
camponesa, era a alfabetização. Os habitantes da cidade tinham oportunidades muito maiores
de aprender a ler e escrever do que os camponeses, visto que tinham mais acessos a mestres-
escolas.” In: BURKE, P. Op. Cit. p. 68.

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Um dos poucos casos extraordinários de interação entre a tradição
erudita e a popular é o da bruxa. Jacob Grimm achava que a crença
nas bruxas vinha do povo; Joseph Hansen, no final do século XIX
sustentou que ela tinha sido elaborada por teólogos a partir de
materiais extraídos das tradições clássica e cristã. Pesquisas mais
recentes sugerem que ambos estavam certos – em parte: a imagem
da bruxa corrente nos séculos XVI e XVII envolvia elementos
populares, como a crença de que certas pessoas tinham o poder
de voar pelos ares ou de fazer mal aos seus vizinhos por meios
sobrenaturais, e elementos eruditos, notadamente a idéia de um
pacto com o diabo.31 (BURKE, 1995, p.88-89)

Nota-se, dessa maneira, a interação de diferentes formas


culturais, como a popular e a erudita por pertencerem em um mesmo
meio: um universo mental que tinha a participação de diferentes
representações. Assim, tem-se que o caminho que essa pesquisa
segue, de apresentar a obra dos irmãos e mostrar o porquê da sua
relevância na história, tenta justificar a relação história-literatura
ao apresentar a importância dos contos não só como histórias
infantis, mas enquanto representações permeadas de significados da
mentalidade popular. Não é somente uma análise dos contos em si,
mas como eles surgiram e qual a finalidade, pois esses elementos que
fizeram os contos terem a importância que eles têm.

Contos populares

Apesar de atualmente serem lançadas coletâneas dos


chamados contos de fadas com o intuito de serem histórias para
crianças dormir, nota-se a drástica alteração que as publicações foram
assumindo com o passar do tempo. Até a época de Perrault, e mesmo
com os irmãos Grimm, os contos populares não eram direcionados
às crianças32, mas a partir das mudanças sociais após a Revolução
31
Ibid. p. 88-89.
32
Como já foi explicitado anteriormente, os contos não era considerados infantis por não
existir clara a noção de criança separada do adulto.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 113-138––jan./jun. 2013 128
Industrial, a sociedade foi mudando e relegando o conteúdo dessas
histórias ao universo infantil.
Os contos dos Grimm, então, são únicos enquanto
representações de caráter popular com elementos sociais da época
em que surgem. A realidade desse período influenciou a obra dos
irmãos, assim como seu significado. Levando isso em consideração,
então, as características presentes nesses contos podem ser
analisadas relacionando com essa realidade que a originou e ajudar
à compreensão da mentalidade social dessa época.
Como já foi dito, anteriormente, a diferenciação dos contos
dos Grimm para os contos de Perrault é o significado presente
em cada obra. Mesmo ambas terem sido provenientes da tradição
oral, as histórias lançadas por Charles Perrault na França serviam
principalmente para “divertir a corte francesa do final do século
XVII”33. Por outro lado a análise dos contos e do contexto em que
eles surgiram determina o grau de influência dos Grimm enquanto
autores; revelando que a publicação dos irmãos serviu, além como
compilação de contos populares com características germânicas da
oralidade, também tinham presente aquilo que os Grimm desejavam
lançar. Essa presença exprimia aquilo que os autores desejavam
transmitir: uma obra com a presença religiosa moralista. Esse aspecto
dos contos dos Grimm os torna únicos e diferenciados de qualquer
outra manifestação de arte popular semelhante, e mostra também a
presença de elementos da cultura germânica do final do século XVIII.
Porém, para evidenciar o caráter distinto dos contos, eles
precisam ser confrontados, como Darnton fez em seu livro34, e revelar
os elementos presentes nas narrativas. Mesmo mantendo o sentido
e os elementos de sua forma oral, os contos ao serem publicados
também obedecem à influência dos irmãos Grimm.

33
FORTES, R. F.; ZANCHET, M. B.; LOTTERMANN, C. Tradição, estética e palavra
na literatura infanto-juvenil. Cascavel: Gráfica Universitária - UNIOESTE, 1996. p. 15.
34
O Grande Massacre de Gatos.

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“Charles Perrault publicou a primeira adaptação literária de
Chapeuzinho Vermelho em 1697, mas poucos pais se dispunham a
ler aquela versão do conto para os filhos, pois termina com o ‘lobo
mau’ jogando-se sobre Chapeuzinho Vermelho e devorando-a. Na
versão dos Grimm, a menina e a avó são salvas por um caçador,
[...].”35 (TATAR, 2004, p. 28)

Na transcrição acima do texto de Maria Tatar, nota-se, então,


além da distância temporal e geográfica entre os autores, está presente
também a influência direta do público no lançamento dos contos.
A evolução da mentalidade que passou entre um século e outro
aparece na versão dos Grimm, bem como a participação da criação
dos autores com o elemento de redenção. No conto de Chapeuzinho
Vermelho, por exemplo, existe o elemento de redenção, o lenhador
que salva a menina e a avó, inserido pelos Grimm.
Logo o caráter dos Grimm de preservar os elementos da
cultura popular transcrevendo a versão oral para sua publicação,
também seguiu normas para serem publicados. São expressões
artísticas que entrelaçam a narrativa original popular com a finalidade
dos coletores em adequar seu livro ao público que iria consumi-lo. A
riqueza maior, então, na análise dos livros não se restringe somente
ao significado do conto e a relação com a realidade, mas como a
realidade dos autores teve um peso na publicação.
Tendo isto em mente, entende-se que, mesmo provenientes
de um meio comum, ou seja, da oralidade, e mesmo tendo contato
com o universo cultural das histórias de Perrault, os contos lançados
pelos Grimm carregam características únicas culturalmente, tanto
proveniente das fontes, quanto dos escritores.
Seguindo essa premissa, os contos dos Grimm não têm
somente relação com àqueles de Perrault, mas diversas culturas
adaptavam seus elementos em narrativas próprias. Como um
exemplo, tem-se o conto “Cinderela”, que tem algumas versões que
não são necessariamente européias:

35
TATAR, M. Op. Cit. p. 28.

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A primeira Cinderela que conhecemos chamava-se Yeh-hsien, e sua
história foi registrada por Tuan Ch’engshih por volta de 850 d.C.
Yeh-hsien usa um vestido feito de plumas de martim-pescador e
minúsculos sapatos de ouro. Ela triunfa sobre sua madrasta e a filha
desta, que são mortas a pedradas. Como as Cinderelas ocidentais,
Yeh-hsien é uma criatura humilde, que faz os serviços domésticos
e sofre tratamento humilhante nas mãos da madrasta e da filha
desta. Sua salvação aparece na forma de um peixe de três metros
de comprimento que a cumula de ouro, perolas, vestidos e comida.
As Cinderelas que seguem nas pegadas de Yeh-hsien encontram
sua salvação na forma de doadores mágicos. Na “Aschenputtel”
dos Grimm, uma árvore derrama sobre Cinderela uma profusão
de presentes; na “Cendrillon” de Perrault, uma fada madrinha lhe
proporciona uma carruagem, lacaios e lindas roupas; na escocesa
“Rashin Coatie”, um bezerrinho vermelho gera um vestido.36

Ainda sobre a análise do conto Cinderela, a versão de


Charles Perrault contém o elemento mágico da fada madrinha e da
carruagem de abóbora37. Porém, o conto publicado pelos Grimm
apresentava a proteção da mãe morta da menina além da ajuda
de rolinhas nas tarefas impostas pela madrasta, cegando as irmãs
malvadas no final como punição.38
Apesar da preexistência de versões anteriores dos contos
lançados pelos Grimm, a análise da versão deles evidencia uma
diferença que os torna únicos: a influência dos autores na publicação.
Assim como os contos lançados por Perrault assumem uma
característica de diversão dos salões, as histórias dos irmãos Grimm
apresentam relação com a cultura germânica do final do século XVIII
e com a criação desses autores.

36
TATAR, M. Op. Cit. p.37-8.
37
Disponível em: <http://www.worldoftales.com/fairy_tales/Charles_Perrault/
CINDERELLA,_OR_THE_LITTLE_GLASS_SLIPPER.html>. Acesso em 22 fev. 2013.
38
Disponível em: <http://www.worldoftales.com/fairy_tales/Brothers_Grimm/Margaret_
Hunt/Cinderella.html>. Acesso em 22 fev. 2013.

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O apelo duradouro de Cinderela provém não só da trajetória dos
trapos ao luxo da heroína do conto, mas também do modo como a
história se conecta com conflitos de família clássicos que vão desde
a rivalidade entre irmãos a ciúmes sexuais. [...] Se a mãe biológica
de Cinderela está morta, seu espírito reaparece e como o doador
mágico que dá a heroína os presentes de que ela precisa para fazer
uma aparição esplendida no baile. [...] A versão de Perrault de
1697, em seus Contos da Mamãe Gansa, está entre as primeiras
elaborações literárias completas da história. Foi seguida pela versão
mais violenta registrada em 1812 pelos Irmãos Grimm. Estes se
deleitaram descrevendo o sangue nos sapatos das filhas da madrasta,
que tentam cortar fora pedaços de seus calcanhares para que o
sapatinho lhes sirva. A versão alemã também nos dá uma Cinderela
menos compassiva, que não perdoa as filhas da madrasta mas as
convida para seu casamento quando pombos lhes bicam os olhos.39

Então, o estudo acerca da relação do significado presente no


conto dos Grimm, segundo Maria Tatar, expõe o caráter religioso que
os Grimm incutiram no lançamento de sua obra. Essa característica
religiosa está, ainda, presente em outros contos, tais como: O
copinho de Nossa Senhora, Os três raminhos verdes, O Cravo,
O termo da vida, João Jogatudo, As três linguagens, São José na
floresta, entre outros tantos.
Robert Darnton expõe em sua pesquisa a diferença existente
na obra francesa e alemã quanto à presença de elementos comuns do
meio em que os contos foram colhidos. No caso francês o caráter de
diversão40, enquanto que na versão alemã, a presença da religiosidade
proveniente da criação dos autores. Entretanto, outra característica
presente nos contos e que foi influência da tradição popular foi a
violência presente nos contos.

39
TATAR, M. Op. Cit. p. 38.
40
Sobre Perrault “(…) recolheu as histórias da tradição oral e adaptou-as para o salão, com
um ajuste de tom, para atender ao gosto de uma audiencia sofisticada.” In: DARNTON,
R. Op. Cit. 1986. p. 89.

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Enquanto os contos franceses tendem a ser realistas, grosseiros,
libidinosos e cômicos, os alemães partem para o sobrenatural,
o poético, o exótico e o violento. Naturalmente, as diferenças
culturais não podem ser reduzidas a uma fórmula – astúcia francesa
contra crueldade alemã – mas as comparações possibilitam que se
identifique o tom peculiar que os franceses davam às suas histórias;
e a maneira como eles contam histórias fornece pistas quanto à sua
maneira de encarar o mundo.41(1986, p. 75)

Darnton analisa outros contos dos Grimm relacionados


com a versão francesa, e apontou outros fatores, além da presença
religiosa, como a adição de elementos sinistros42. Porém, quanto
ao significado e a relevância dos contos, Robert fala que “[...] os
contos diziam aos camponeses como era o mundo; e ofereciam uma
estratégia para enfrentá-lo.”43
A discussão sobre os significados presentes nos contos está
relacionada, dessa maneira, a uma tradição popular transmitida
oralmente e sua relevância se concentra na análise desse significado.
A cultura popular sobrevivia e era encontrada nesses registros orais,
que deixavam claros os aspectos mentais da época. Pela diversidade
cultural, nota-se, entretanto, que não existia uma história única, mas
versões desses contos adaptados a cada cultura onde era contada.
Como Darnton mostra as diferenças nas versões lançadas por
Perrault e pelos Grimm.

Sem fazer pregações nem dar lições de moral, os contos franceses


demonstram que o mundo é duro e perigoso. Embora, na maioria,
não fossem endereçados às crianças, tendem a sugerir cautela.
[...] Mais de metade das trinta e cinco versões registradas de
“Chapeuzinho Vermelho” terminam como a versão contada antes,
41
Ibid. p. 75.
42
As versões alemãs do conto (Grimm 46) seguem a mesma linha narrativa, mas há o acréscimo
de toques macabros, (...). Como já foi mencionado , as versões francesas (contos tipo 311
e 312), incluindo a de Perrault, contêm alguns detalhes horríveis, mas nada se aproxima do
horror dos Grimm.” Ibid. p. 68-69.
43
Ibid. p. 77-78.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 113-138––jan./jun. 2013 133
com o lobo devorando a menina. Ela nada fizera para merecer esse
destino; porque, nos contos camponeses, ao contrário dos contos
de Perrault e dos irmãos Grimm, não desobedece a sua mãe nem
deixa de ler os letreiros de uma ordem moral implícita, escritos
no mundo que a rodeia. Ela, simplesmente, caminhou para as
mandíbulas da morte. É a natureza inescrutável e inexorável de
calamidades que torna os contos tão comoventes, e não os finais
felizes que eles, com freqüência, adquirem, depois do século XVIII.44
(DARNTON, 1986, p.78-79)

A análise então de um dos contos mais famosos, tanto dos


Grimm quanto de Charles Perrault, Chapeuzinho Vermelho,
evidencia essa influência dos autores em sua obra. Se for considerada
a versão de Charles Perrault, lançada visando os salões franceses e o
entretenimento, conta a narrativa da menina, porém sem apresentar
o final em que ela é salva pelo caçador. Diferentemente, a versão dos
Grimm, tem como diferencial a inclusão do elemento de redenção,
neste caso o lenhador, que salva a menina, dando-lhe uma segunda
chance, até chegar às versões infantilizadas onde até mesmo a avó é
salva, abrindo-se a barriga do lobo.
Analisar a mudança gradativa que o conto assumiu com o
passar do tempo e com a diferença da cultura em que se encontrava
ajuda a entender e situar cada conto. “Diferentemente dos Grimm,
Perrault nunca buscou enfatizar o sabor francês particular das
histórias em Contos da Mamãe Gansa.”45 Logo o conto de Perrault
para as cortes francesas, mesmo partindo de uma tradição popular
e trazendo um conto da versão oral para a escrita, o faz de acordo
com o seu autor e a sua época. Assim como a versão dos Grimm,
e o seu final moralizador adicionando a presença do lenhador-
salvador. Da mesma maneira hoje em dia, adaptações destinadas à
crianças que incluem o elemento “magia” e salvam além da menina,
também a avó.

44
DARNTON, R. Op. Cit. 1986. p. 78-79.
45
TATAR, M. Op. Cit. p.356.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 113-138––jan./jun. 2013 134
Logo, o grande passo dos Grimm com a publicação de contos
populares não foi só no caráter de preservar uma memória que foi
sendo esquecida, nem contribuir para o gênero literário com sua
formação e pesquisa, mas também vieram a influenciar diversos
autores posteriores, que ao ter seus contos como base, criaram as
mais diversas obras literárias. Pois como Perrault, conexão com
suas publicações o que permitiu o surgimento de outros nomes na
literatura universal.

Considerações finais

Essa pesquisa sobre os irmãos Grimm e sua obra mostra,


então, a diferença entre contos de fadas e contos populares e a relação
que tal lançamento tem com o meio em que se originou. Os contos
de fadas não foram concebidos destinados às crianças e a sua análise
ajuda a entender como surgiram e o porquê. O seu lançamento tem
a ver tanto com o contexto histórico em que surgiram, quanto com
o universo social envolvido nesse processo.
Primeiramente há que se ter em mente que a compilação
trouxe contos da narrativa oral para a escrita e dessa forma, não são
originais dos Grimm, mas que carregam sua interferência direta,
uma vez que os contos foram lançados segundo as orientações desses
autores. E essa relação que existe tanto da literatura com a história e
vice e versa deixa clara a finalidade que essa coletânea teria.
Os Grimm, mesmo tendo influenciado o contexto das
narrativas inserindo seus próprios elementos, ainda contribuíram
significativamente para conservar a herança de uma tradição popular
que foi sendo perdida por não haver um registro dela. A publicação
desses registros da mentalidade de uma época e cultura servem
então como fonte para o estudo da sua relação com a sociedade e a
mentalidade da época em que surgiram.
Apesar de Charles Perrault também ter lançado sua coletânea,
a pesquisa acerca da obra dos Grimm é diferenciada devido aos
fatores já apontados neste estudo, como a relação da obra com os
autores e o público ao qual era destinada. Logo, a contribuição de

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 113-138––jan./jun. 2013 135
Perrault com a publicação de sua compilação pode ser analisada na
medida em que foi uma das fontes para que os contos chegassem
aos Grimm, porém de forma indireta e oral atraves dos narradores
populares.
A mudança de características que as publicações carregam
mostra as suas influências e a relação com o público que iria recebê-
la. Com o decorrer do tempo, entretanto, ocorrem significativas
mudanças no contexto das publicações e consequentemente em
seu significado.
Como a análise entre Perrault e Grimm deixa claro, passado
um século entre os lançamentos e encontrando-se em culturas
diferentes, já diferem o seu sentido e a sua finalidade. Logo, após
o lancamento dos Grimm, nota-se também uma transformação no
contexto dos contos, até serem considerado na atualidade como
contos de caráter infantil, o contrário do que eram quando surgiram.
Dessa forma, a passagem da oralidade para a escrita, apesar de
contribuir para o seu registro e impedir a perda de seu conteúdo,
veio alterar, preogressivamente com o desenvolvimento da sociedade,
seu desígnio original: ser um registro cultural e transmitir elementos
da mentalidade popular da época em que foram recolhidos.
Além de acontecimentos históricos serem registrados
em fontes oficiais, a análise dos elementos presentes em cada
cultura ajudam a conhecer a situação de cada época. Mesmo
uma criação artística consegue demonstrar as caracteristicas de
uma época, relacionar um povo e sua cultura e preservar essa
memória. Entretanto, além de somente preservar, o estudo sobre as
características que favoreceram o surgimento dessa expressao artística
é muito importante e determinante para entender seu surgimento
e sua relação cultural.

Assim, mesmo que os literatos a tenham sempre produzido sem


um compromisso com a verdade dos fatos, construindo um mundo
singular que se contrapõe ao mundo real, é inegável que, através
dos textos artísticos, a imaginação produz imagens, e o leitor, no
momento em que, pelo ato de ler, recupera tais imagens, encontra

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 113-138––jan./jun. 2013 136
uma outra forma de ler os acontecimentos constitutivos da realidade
que motiva a arte literária.46 (MENDONÇA; ALVES, 2003, p. 02)

Dessa forma, o estudo do registro dos irmãos Grimm


consegue estabelecer a relação que a obra lançada por eles têm
com a realidade a qual ela foi destinada. E mesmo tendo sofrido
adaptações posteriores, é um registro que ajuda a contextualizar a
sua época de produção, assim como a mentalidade a qual pertence.
Devido a essa relevância, essa publicação, então, consegue transpor,
se corretamente analisada e contextualizada, o terreno da literatura
e contribuir para uma análise histórica.

Referências

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Ed. Afiliada, 1981.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 3 Ed. São Paulo:


Brasiliense, 1987.

BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna. 2 ed. São Paulo:


Companhia das letras, 1995.

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 5. Ed. São Paulo: Companhia


Editora Nacional, 1976.

CORSO, Diana Lichtenstein.; CORSO, Mário. Fadas no Divã. São Paulo:


ARTMED, 2006.

DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos. Tradução: Sonia


Coutinho. 4. Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

_____. O Beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.


EAGLETON, Terry. Marxismo e crítica literária. Tradução: Antônio Souza
Ribeiro. Porto: Afrontamento, 1978.

46
MENDONÇA, C. V. C. de; ALVES, G. S. Op. Cit. p. 2.

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FABRI, Lorena Carolina. Era uma vez nos contos de fadas dos irmãos Grimm.
(graduação em história). Marechal Cândido Rondon: UNIOESTE, 2008.

FORTES, Rita Felix; LOTTERMANN, Clarice; ZANCHET, Maria


Beatriz. Tradição, estética e palavra na literatura infanto-juvenil. Cascavel:
Gráfica Universitária - UNIOESTE, 1996.

GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. Contos e Lendas dos Irmãos Grimm.


Volume I, II e III. São Paulo: Ed. Parma LTDA, s.d.

MENDONÇA, Carlos Vinícius Costa de; ALVES, Gabriela Santos. Os


desafios teóricos da história e a literatura. Revista História Hoje, São Paulo,
n.2, p. 2, 2003.

TATAR, Maria. Contos de Fadas: Edição comentada e Ilustrada. Tradução:


Maria Luisa X. de Borges. Rio de Janeiro: Ed. Jorge ZAHAR Editor, 2004.

TOLKIEN, John Ronald Reuel. Sobre histórias de fadas. São Paulo: Conrad,
2006.

Sites acessados

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em: <http://www.worldoftales.com/fairy_tales/Charles_Perrault/
CINDERELLA,_OR_THE_LITTLE_GLASS_SLIPPER.html>.
Acessado em: 22 fev. 2013.

GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. Cinderella. Disponível em: <http://


www.worldoftales.com/fairy_tales/Brothers_Grimm/Margaret_Hunt/
Cinderella.html>. Acessado em: 22 fev. 2013.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 113-138––jan./jun. 2013 138
A seleção lexical como recurso de análise de texto
sobre as expectativas acadêmicas e profissionais de uma
futura professora de espanhol como língua estrangeira
(e/le)

Silvana Salino Ramos LOPES1 (PG-UEL)

Resumo: Este artigo apresenta análise de seleção lexical, em texto escrito em espanhol,
com foco no uso de adjetivos. O texto é de autoria de uma aluna em processo de formação
acadêmica, futura professora de espanhol como língua estrangeira (E/LE). O objetivo
da análise é identificar a ideologia implícita no texto sobre as expectativas relacionadas
ao desenvolvimento do estágio em instituição pública de ensino e à carreira docente.
Palavras-chave: seleção lexical, texto escrito, espanhol como língua estrangeira (E/LE)

Abstract: This article presents an analysis of lexical selection, in written text in Spanish,
with focus in the usage of adjectives. The text is authored by a student in the academic
formation process, a future teacher of Spanish as a foreign language. The purpose of this
analysis is to identify the ideology implicit in the text about the expectations related to the
internship development in an educational public institution and to the teaching carrier.
Key words: lexical selection, written text, Spanish/foreign language

Introdução

O presente artigo tem o objetivo de apresentar e compartilhar


exemplo de análise semântico-argumentativa, no que se refere à
seleção lexical utilizada em um texto escrito2, de autoria de aluna do
Curso de Letras Espanhol3, Modalidade: Licenciatura, Habilitação:
Língua Espanhola e Literatura Hispânica, da Universidade Estadual
de Londrina. O texto foi apresentado como parte integrante do
1
Professora de Espanhol do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas (LEM) -
Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Doutoranda do Programa de Estudos da
Linguagem (PPGEL) - Orientador Professor Dr. Paulo de Tarso Galembeck. E-mail: silsalino@
sercomtel.com.br
2
Este texto é parte do corpus de pesquisa em andamento, na qual a seleção lexical compõe o
quadro de critérios linguísticos de análise.
3
Nome do curso em 2013 por meio da Resolução CEPE 049/2013. Nome anterior: Curso de
Letras – Modalidade: Licenciatura – Habilitação: Língua Espanhola e Literatura Hispânica,.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 139-152 ––jan./jun. 2013 139
Relatório de Estágio4 (RE), do terceiro ano, em 2012, à disciplina
de Estágio Supervisionado I, 6EST111, ministrada por esta docente.
Os dados de identificação da turma, do turno e da aluna5 não são
explicitados.
Na disciplina mencionada, além de preparar o aluno, futuro
professor, para a prática docente, no que diz respeito a procedimentos
teórico-prático-metodológicos, conhecimento das leis, diretrizes e
propostas governamentais para a Educação Básica, no que se refere à
língua estrangeira (LE), também se espera que os alunos demonstrem
um nível adequado de competência discursiva. Esclarecemos que,
para essa série6, o aluno deve, ao final do ano letivo, apresentar o
seguinte desenvolvimento na habilidade de expressão escrita (EE),
nível B2:

Sou capaz de escrever textos claros e detalhados sobre uma ampla


série de temas relacionados com meus interesses. Posso redigir
textos e relatórios transmitindo informação ou propondo motivos
que apoiem ou refutem um ponto de vista concreto. Sei escrever
cartas que destacam a importância que atribuo a determinados
fatos e experiências7.

Esse descritor é uma adaptação do Quadro Europeu Comum


de Referência para as Línguas8, considerando o público do curso e
as séries. Desde 2012, essa informação consta dos programas das

4
Trabalho acadêmico exigido na 3ª Série do curso mencionado, como critério para promoção
de série, essa atividade compreendeu 20 (vinte) horas de observação de aulas, em 2012, em
instituições que oferecem o E/LE por meio do CELEM – Centro de Línguas Estrangeiras
Modernas.
5
A autorização dos alunos para utilização dos relatórios como corpus para a pesquisa foi
devidamente documentada e esclarecida.
6
A partir de 2012, a cada série do curso foi estabelecido um nível específico, com descritores
para cada uma das habilidades.
7
No original: Soy capaz de escribir textos claros y detallados sobre una amplia serie de temas
relacionados con mis intereses. Puedo escribir redacciones o informes transmitiendo información
o proponiendo motivos que apoyen o refuten un punto de vista concreto. Sé escribir cartas que
destacan la importancia que le doy a determinados hechos y experiencias.
8
http://cvc.cervantes.es/ensenanza/biblioteca_ele/marco/cvc_mer.pdf

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 139-152 ––jan./jun. 2013 140
disciplinas do curso e é apresentada e discutida no início do ano
letivo entre docentes e discentes.
Dessa forma, a competência discursiva atinge seu máximo
de exposição quando o aluno redige o RE, realizado em contexto
de ensino de espanhol como língua estrangeira (E/LE), nos Centros
de Estudos de Línguas Estrangeiras Modernas (CELEM), em
instituições de ensino da rede pública da cidade de Londrina.
A análise proposta tem por base a seleção lexical do texto
introdutório, no qual a aluna/estagiária/autora manifesta sua opinião
e expectativas sobre seu processo de formação e futura atuação
profissional na área docente. A justificativa da análise encontra-se,
primeiramente, na carga emocional que a redação desse texto deve
suscitar no aluno ao referir-se, tanto à sua caminhada para obter
a titulação acadêmica, quanto ao seu engajamento no processo, e
em um segundo momento, a observação da presença de palavras
que se relacionem à visão do aluno sobre a profissão docente, o que
permite, também, uma visão da formação oferecida pelo curso, do
ponto de vista discente, em meio ao seu processo de aprendizagem.

Contextualização

O objetivo do estágio, nessa série, é que, por meio da


observação e da regência de aulas de espanhol, os alunos possam
interagir nos campos de estágio9, instituições públicas de ensino que
oferecem o espanhol no CELEM. Esse contexto de estágio se deve
9
O professor do CELEM, da instituição que recebe o estagiário, não só disponibiliza sua
turma para observação, como também acompanha o processo de estágio do aluno da UEL.
Esse trabalho é definido pela universidade com a função de Orientador do Campo de Estágio,
responsável pelo aluno na sala de aula e por propiciar informações e condições para que o
estagiário possa ministrar aulas no grupo após cumprir uma porcentagem de aulas observadas,
conforme programa da disciplina. O professor da disciplina de Estágio Supervisionado I
(6EST111) é o supervisor do estagiário nesse processo. Todos os procedimentos estão descritos
e regulamentados entre a universidade e a instituição de ensino, chamada de concedente.
Documentos como o Termo de Compromisso são assinados pelos envolvidos no processo e
tramitados pela Coordenação de Estágio do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas
e a PROGRAD – Pró-Reitoria de Graduação da UEL.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 139-152 ––jan./jun. 2013 141
a que, na cidade de Londrina, o número de escolas públicas que
oferecem o E/LE em horário regular de aulas é reduzido, conforme
atesta Silva (2011, p. 6-7),

[...] Em nossa pesquisa, baseamo-nos nos 55 estabelecimentos


de ensino que ofertam o Ensino Médio, e que pertencem à rede
estadual de ensino, na cidade de Londrina, zona urbana e zona
rural, excluídos os que ofertam somente a modalidade da Educação
de Jovens e Adultos. Desses 55 estabelecimentos, 53 optaram por
oferecer o ensino da língua espanhola por meio de CELEM e manter
o inglês como disciplina obrigatória. Uma (01) escola optou por
incluir o espanhol na grade e ofertar a língua inglesa no CELEM
e uma (01) outra manteve o inglês como disciplina obrigatória,
mas ainda não disponibiliza a língua espanhola como facultativa,
deixando de atender, portanto, à Lei nº 11.161/2005.

No que se refere à elaboração dos relatórios parciais, os


redigidos para cada uma das aulas observadas, o aluno deve seguir um
roteiro pré-elaborado com aspectos a serem observados e analisados
em cada uma das aulas de espanhol. Cada etapa do processo é
orientada e supervisionada, de forma didática, metodológica e
linguística. Entretanto, o texto construído é de autoria do aluno,
o qual revela, por escrito, sua percepção do processo de estágio,
além de apresentá-lo oralmente no final do ano letivo a uma banca
avaliadora, composta por professores das disciplinas de Língua
Espanhola, Prática de Ensino e Estágio Supervisionado.
O RE é composto por textos específicos de cada etapa do
estágio, contudo, neste artigo, o objeto de análise será o texto acerca
das expectativas do aluno, neste caso, aluna, redigido antes do início
do período de observações, critério estabelecido com o objetivo
de manter a veracidade da exposição pessoal e sem a interferência,
ainda, do meio escolar, local de sua prática acadêmica. Com base
nesse texto, nas observações realizadas e nas reflexões decorrentes,
o estagiário deve redigir o texto de interpretação dos resultados,

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 139-152 ––jan./jun. 2013 142
parte final do trabalho, sobre o processo vivenciado na instituição
de ensino, em confronto e análise com o construto teórico e as
práticas da disciplina.

Acerca da aprendizagem de uma língua estrangeira (LE)

No processo de aprendizagem de uma LE, cada indivíduo


possui uma forma de aprender: uns assimilam os conteúdos mais
rapidamente que outros, cometendo menos erros; outros cometem
muitos erros. Segundo Ravera Carreño (1990, p. 15, 16), isso
se classifica como variação individual e as causas dessa variação
são fatores de tipo psicológico, sociológico, estilo cognitivo,
personalidade, tendência maior ou menor de aceitação da norma,
entre outros aspectos.
Para essa mesma autora, existe a variação contextual, que
mostra que o mesmo aluno em contextos diferentes pode ter um
comportamento de acordo com o interlocutor ao qual ele se dirija
e interaja. Os estagiários têm a consciência de que o principal leitor
de seu trabalho será a professora, que é a responsável pela disciplina;
portanto, o grau de exigência do próprio aluno, quanto ao resultado
de seu desempenho textual é naturalmente alto, em função de que o
nível de linguagem já está estabelecido: o formal da LE em estudo.
Entendo que “a aprendizagem é vista como fruto de
um trabalho integrado, no qual o conhecimento é construído
interacionalmente por meio do uso da linguagem” (Fabrício,
1999, p. 217). Assim, a produção textual acadêmica é um meio de
expressão do conhecimento do aluno sobre a LE.
Dessa forma, minha intenção, neste espaço e contexto, no
que se refere à competência discursiva da aluna, é observar a escolha
lexical, na construção textual como representação do pensamento,
a exteriorização das expectativas de um profissional em formação,
em relação ao campo de atuação e à sua própria vida.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 139-152 ––jan./jun. 2013 143
A comunicação e a semântica argumentativa

A comunicação é um processo resultante da interação com


outras pessoas, entretanto, conforme argumenta Littlewood (1994,
p. 19), a língua não só permite a comunicação entre as pessoas,
como também afeta o modo como elas entendem ou reagem sobre
o mundo que está à volta.
Na comunicação oral, além da fala, estão inclusos outros
elementos, tais como “a prosódia, a gestualidade, os movimentos
do corpo e dos olhos, entre outros” (MARCUSCHI, 2001, p. 17),
os quais complementam a compreensão do ouvinte.
Já na comunicação escrita, esses elementos não estão
presentes, porém há recursos gráficos e linguísticos que permitem
inferir e compreender a intenção do autor. Segundo Antunes (2010,
p.41), no processamento textual, o autor ou falante, o ouvinte ou
leitor, ativa quatro conjuntos de conhecimento: o linguístico, o
enciclopédico, o de modelos globais de texto e o sociointeracional.
A autora acrescenta que “numa visão bem ampla, esses sistemas de
conhecimento envolvem o conhecimento das operações cognitivas,
das estratégias e dos procedimentos que fazem a rotina das pessoas
em seus eventos de interação social” (ANTUNES, 2010, p.41. Grifo
da autora).
Quanto à estruturação do texto escrito, recorremos à Semântica
Argumentativa, considerada uma ramificação da Pragmática,
tendo como foco as relações entre o locutor e o alocutário, em um
determinado contexto discursivo, no qual o sentido é obtido pelo
uso dos chamados procedimentos argumentativos, segundo Oliveira
(2004, p.123).
Nesta análise, o locutor é a estagiária, o alocutário é a
professora responsável pela disciplina e leitora do RE em 2012, o
contexto é a apresentação de trabalho sobre o estágio realizado no
CELEM, nas aulas de espanhol, texto introdutório. O que se analisa
são os recursos utilizados pela aluna/estagiária/autora para expressar

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 139-152 ––jan./jun. 2013 144
sua opinião, argumentar sobre sua visão acerca do processo inicial
de estágio.

O texto, a argumentação e a seleção lexical

Conforme Beaugrande (apud Marcuschi, 2008, p.80), texto


é definido como “[...] um evento comunicativo no qual convergem
ações lingüísticas, cognitivas e sociais”.
Marcuschi (2008, p.79) esclarece que “Quando um falante ou
um escritor se põe a usar a língua (produzir textos), ele pode fazer
escolhas diversas a partir do sistema virtual da língua, mas tem que
se decidir por uma escolha.” Com base nessas afirmações, a proposta
de análise se justifica e se viabiliza, na intenção de identificar quais
palavras foram usadas pela aluna/estagiária/autora para imprimir sua
impressão inicial do processo de formação docente. Por conseguinte,
a análise tem por base a Seleção Lexical, que segundo Arruda e Aoki
(2009, p.4)

[...] consiste na escolha do vocabulário, na sua disposição textual e


no emprego de determinadas figuras de linguagem (ex. metáforas,
ironias) que podem revelar comprometimento de caráter ideológico.
Salientamos que o modo como esse léxico é trabalhado, bem como
as escolhas lexicais feitas são de fundamental importância para a
compreensão do processo discursivo persuasivo. Isto é, a escolha
dos argumentos usados pelo enunciador tem como finalidade o
convencimento e a persuasão do seu enunciatário.

O interesse que motiva este trabalho é a informação que se


pode obter com o resultado da análise e as possibilidades de reflexão
que esse léxico pode suscitar na condução dos trabalhos docente e
discente. Uma leitura mais objetiva, mais detalhada, com finalidade
específica, como a seleção lexical, é um exemplo da dimensão de
pesquisas em potencial com um corpus como o aqui exemplificado.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 139-152 ––jan./jun. 2013 145
Análise

Transcrevo, na sequência, o texto10 original em questão, sobre


as expectativas da aluna/estagiária/autora em relação ao seu processo
de formação acadêmica.
Como critério de análise, são identificados os adjetivos
empregados na manifestação pessoal, no que se refere ao curso, à
universidade e à profissão, com base nas explanações contextuais
relacionadas ao:
passado – (palavras em negrito);
presente – (palavras duplamente sublinhadas);
futuro – (palavras sublinhadas).

A relação temporal tem por base a busca de indicativos de


ideologia e/ou crenças acerca do período anterior ao ingresso no
curso, ao período inicial de estágio e aos anseios sobre a condição
profissional futura.

Quadro 1: Texto original em espanhol


“Soy feliz por estudiar en la mejor Universidad de mi ciudad con excelentes profesores
y de haber llegado al tercer año del curso. Reconozco que estudiar una lengua extrajera
exige mucho de nosotros, porque no es solamente salir hablando con fluidez, además de
eso, necesito saber cómo transmitir el conocimiento, o sea, hacer con que los alumnos
cojan el gusto por aprender lo que les enseño en clase.
Espero conseguir realizar mis sueños como estudiante. Quiero intentar un concurso
para trabajar en un Colegio Público y después estudiar maestría y por qué no decir un
doctorado.
Me parece muy difícil escribir este texto, es como creer en algo que aún no puedo ver,
por ello, lo escribo y lloro. No imaginaba que escribir algo sobre mi futuro me dejaría tan
conmovida, es que, como estudiante perdemos nuestra identidad, no sabemos quiénes
somos y ni hacia dónde estamos caminando y si vamos a lograr realizar nuestros sueños.
Creo que, no vine al mundo por la obra del acaso y que nada sucede en mi vida sin
un propósito, aunque muchos no puedan reconocer mi valor, yo lo reconozco, porque
soy la única persona responsable por mi felicidad y éxito. La única persona que puede
posibilitar las realizaciones de mis sueños.
Como profesora no espero ser rica, porque si considero la remuneración, no seguiría
con los estudios. Quiero hacer lo que me gusta, que es enseñar. Recibir mi sueldo
dignamente y poder contribuir con la educación de muchos.”

10
O texto não sofreu correções ou quaisquer adequações para esta análise.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 139-152 ––jan./jun. 2013 146
No quadro seguinte, disponho os adjetivos identificados e
classificados, por parágrafos, segundo a ideia de tempo a que se
referem. Após o quadro, comento o uso dos adjetivos em relação à
temática do texto.

Quadro 2: Seleção Lexical / Relação Temporal

PARÁGRAFO PASSADO PRESENTE FUTURO

feliz
mejor
- excelentes -

extrajera

2º - - público

difícil
3º - conmovida -
única
responsable
4º - -
única
- rica (no serlo)
5º -

Comentários

Não identifiquei a presença de adjetivos que se relacionassem


com o contexto anterior ao do início da formação acadêmica,
referentes ao passado, em nenhum dos parágrafos.
Os adjetivos relacionados ao presente estão no primeiro,
terceiro e quarto parágrafos. Passo a apresentar interpretação para
cada um dos adjetivos destacados e a relação temática com o contexto
atual, momento inicial do processo de formação.
No primeiro parágrafo, o adjetivo FELIZ, predicativo
do sujeito, foi utilizado para indicar o sentimento da autora,
uma condição bem definida, estável, de realização pessoal pela
posição ocupada, que pode ser interpretado como conquista. Essa

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 65 – p. 139-152 ––jan./jun. 2013 147
interpretação é confirmada pelo uso de MEJOR, adjunto adnominal
de universidade, especifica o status, em sua opinião, da instituição
dentro da comunidade local. Esse conceito de fazer parte do que
há de melhor, em termos acadêmicos, também é explicitado pelo
qualificativo EXCELENTES, em relação ao corpo docente de seu
curso. É clara a evidência de satisfação pessoal no sentimento
de pertencimento da autora, no que se refere ao seu universo de
aprendizagem.
No terceiro parágrafo, o adjetivo DIFÍCIL, também
predicativo do sujeito, indica a dificuldade de exposição pessoal,
de exteriorizar sentimentos com relação ao que espera de e para si
mesma. O uso de CONMOVIDA, para explicar a condição da autora
no momento de redação do texto, em relação a seu pensamento
sobre o futuro, confirma o uso do adjetivo anterior e sua carga
semântica, (DIFÍCIL).
No quarto parágrafo, a autora faz uso do adjetivo ÚNICA,
em dois momentos: linha 2 e linha 3, em ambos com a função de
adjunto adnominal do substantivo persona.
No mesmo parágrafo, o adjetivo, adjunto adnominal,
RESPONSABLE é usado para determinar, também, o substantivo
PERSONA, referindo-se a ela mesma, em uma atitude de
reconhecimento da responsabilidade por seu sucesso, sem restringir-
se ao campo profissional de forma explícita.
Com relação à seleção lexical e ao uso de adjetivos relacionados
ao presente, à fase inicial do estágio, no processo de formação, a
autora permite a compreensão de uma postura exigente em relação
à qualificação.
Quanto ao uso de adjetivos relacionados ao futuro, a autora
usa o adjetivo PÚBLICO, para esclarecer que gostaria de exercer
sua profissão na rede pública de ensino. Ao observar o próximo
adjetivo, o do quinto parágrafo, predicativo do sujeito, RICA, em
sentido de não sê-lo, há a exteriorização de que, embora possa
conseguir uma vaga em instituição pública, já manifesta ter como

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clara e determinada a baixa remuneração, sem entrar em detalhes
para justificar ou esclarecer seu posicionamento.
Essa constatação demonstra a crença e a convicção de um
futuro econômico não promissor, reforça o lugar comum de que
ser professor é uma realização pessoal, um ideal, uma contribuição
social, um ato de amor ou, ainda, exercer um dom.
A autora faz uso de duas expressões que chamam a atenção
(marcadas em cinza): COMO ESTUDIANTE, no segundo e no
terceiro parágrafos, e COMO PROFESORA, no quinto e último
parágrafo. Essas expressões sugerem duas etapas de sua vida, dois
papéis, os quais demonstram a mesma postura ou visão negativa em
relação à sua formação acadêmica e à área de atuação profissional do
docente. A primeira, de perda de identidade e a segunda, de perda
de uma boa remuneração salarial.
Embora a palavra SUEÑO, no singular e no plural, apareça
no texto (2º, 3º e 4º parágrafos), tanto relacionada ao campo da
vida pessoal da autora, como no sentido de abrangência a outros
colegas de formação, esse vocábulo cede lugar aos aspectos reais da
formação e da atuação profissional, a realidade demonstra já estar
internalizada, mais presente, mais marcada no discurso.

Considerações finais

A análise realizada por meio da observação da seleção lexical


permitiu compreender, além do significado das palavras e do todo,
foi possível comprovar o impacto causado pelo início do processo de
estágio, a realização do primeiro texto, a exposição das expectativas
para todo um ano de trabalho, o terceiro ano da graduação e o
primeiro contato efetivo com a carreira em estudo.
Como docente e formadora de professores, creio que
aqui foi exemplificado um significado superior ao conferido pela
escrita. A análise forneceu dados para afirmar que o processo de
formação transcende os limites da academia, acompanha o aluno

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como indivíduo que se desloca de sua zona de conforto para o real
idealizado, para a interação, o encontro e o confronto teórico e
prático. Os demais textos do RE fornecem mais dados e reflexões.
Certamente, o trabalho de escritura desse material de avaliação
ultrapassa o cumprimento de atividades obrigatórias, pode ser
considerado um divisor de águas na formação profissional. Neste
espaço delimitado, temos o início, as expectativas e as primeiras
manifestações do pessoal no coletivo e as interferências do coletivo
no pessoal.

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