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CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS
REITOR
Sérgio Carlos de Carvalho
VICE-REITOR
Décio Sabbatini Barbosa
DIRETORA DO CLCH
Viviane Bagio Furtoso
VICE-DIRETORA
Ana Heloisa Molina
REDAÇÃO
Isabel Cristina Cordeiro
Esther Gomes de Oliveira
CAPA
Bianca Matos Ferreira
CONSELHO EDITORIAL
Volnei Edson dos Santos
Paulo Bassani
Celso Vianna Bezerra de Menezes
PARECERISTAS
Dr. Francisco Moreno Fernandes - Univ. Alcalá de Henares - España
Dr. Aquiles Cortes Guimarães - UFRJ
Dr. Jesús Castilho - Univ. de Valladolid - España
Dr. José Oscar de Almeida Marques - UNICAMP
Dr. José Nicolau Julião - UFRRJ
Dra. Salma Ferraz - UFSC
Dr. Otávio Goes de Andrade - UEL
PUBLICAÇÕES
BOLETIM, CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA – LONDRINA-PR. - BRASIL, 1980
I
BOLETIM 77
CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS
Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina – nº 77– p. 1-333 - jul./dez. 2020
Indexado por / Indexed by
ISSN 0102-6968
Sociological Abstracts SA
Linguistics and Language Behavior Abstracts LLBA
boletimhumanas@uel.br
Fone / Fax:(43) 3371-4408
Semestral
ISSN 0102-6968
CDD 301.05
CDU 301:4:I(05)
Sumário
A A R G U M E N TAT I V I D A D E D O S R E C U R S O S
ENCANTADORES E MOTIVADORES EM PROPAGANDAS
MULTIMODAIS................................................................................ 311
Ednéia de Cássia Santos Pinho; Esther Gomes de Oliveira
7 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 7-12 – jul./dez. 2020
A morte não é nada (Santo Agostinho)
A morte não é nada.
Eu somente passei
para o outro lado do Caminho.
Me dêem o nome
que vocês sempre me deram,
falem comigo
como vocês sempre fizeram.
Vocês continuam vivendo
no mundo das criaturas,
eu estou vivendo
no mundo do Criador.
Não utilizem um tom solene
ou triste, continuem a rir
daquilo que nos fazia rir juntos.
8 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 7-12 – jul./dez. 2020
agora que estou apenas fora
de suas vistas?
As editoras
Isabel Cristina Cordeiro
Esther Gomes de Oliveira
9 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 7-12 – jul./dez. 2020
NÚMERO DO NÚMERO DE NÚMERO DE
BOLETIM/ANO ARTIGOS AUTORES
1. 1980 6 7
2. 1981 5 5
3. 1981 11 11
4. 1982 10 10
5. 1982 11 12
6. 1983 8 8
7. 1983 11 11
8. 1985 7 7
9. 1985 5 5
10. 1986 7 7
11. 1986 13 14
12. 1987 9 9
13. 1987 9 9
14. 1988 9 9
15. 1988 7 7
16. 1989 6 6
17. 1989 7 8
18. 1990 6 7
19. 1990 5 5
20. 1991 8 8
21. 1991 8 8
22. 1992 7 8
23. 1992 5 6
24. 1993 8 9
25. 1993 7 7
26. 1994 5 5
27. 1994 9 9
28. 1995 10 11
29. 1995 5 5
30. 1996 9 10
31. 1996 8 9
32. 1997 9 9
33. 1997 9 11
34. 1998 13 14
10 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 7-12 – jul./dez. 2020
35. 1998 15 16
36. 1999 9 13
37. 1999 16 16
38. 2000 13 15
39. 2000 13 17
40. 2001 12 14
41. 2001 11 13
42. 2002 9 10
43. 2002 12 15
45. 2003 10 16
46. 2004 12 17
47. 2004 9 10
48. 2005 8 12
49. 2005 8 10
50. 2006 8 12
51. 2006 9 ‘0
52. 2007 10 13
53. 2007 9 12
54. 2008 9 11
55. 2008 8 11
56. 2009 9 12
57. 2009 9 12
58. 2010 10 10
59. 2010 10 14
60. 2011 8 10
61. 2011 11 14
62. 2012 9 15
63. 2012 10 19
64. 2013 12 19
65. 2013 7 9
66. 2014 9 14
67. 2014 11 19
68. 2016 8 12
69. 2016 7 11
70. 2017 8 12
71. 2017 6 10
11 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 7-12 – jul./dez. 2020
72. 2018 8 19
73. 2018 7 15
74. 2019 7 12
75. 2019 7 14
76. 2020 8 10
77. 2020 13 25
12 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 7-12 – jul./dez. 2020
GEORGE SAND – AURORE DUPIN:
UM CORAÇÃO SIMPLES E UMA MENTE
ABERTA (1804-1876)
RESUMO: Este artigo tem como foco principal apresentar a escritora, a mulher
George Sand e as recentes traduções de algumas de suas obras para o português ao
público brasileiro. Procura demonstrar o papel que ocupou como autora na sociedade
francesa no século XIX, suas convicções políticas e o contexto histórico dentro do qual
atuou. Além disso, aborda sua relação com outros artistas, muitos dos quais influenciou,
como Gustave Flaubert e Fiodor Dostoiévski. Retrata ainda a adoção do pseudônimo
masculino para poder publicar como escritora, ofício reservado apenas aos homens,
na época.
PALAVRAS-CHAVE: George Sand. Literatura francesa. Século XIX. História-
Sociedade francesa.
ABSTRACT: This article focus is to present a writer, the woman George Sand and
the recent translations of some of its works to Portuguese for the Brazilian audience.
It seeks to demonstrate the role that the writer had in the French society of the XIX
century, her political convictions and the historical context in which she acted. In
addition, it approaches her relations with other artists, many of which influenced by
her, like Gustave Flaubert and Fiodor Dostoiévski. Portrays the adoption of a male
pseudonym as well to publish as a female writer, a craft designated only to men, at
the time.
KEYWORDS: George Sand. French literature. XIX Century. French History-
Society.
Introdução
13 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
novelas, livros infantis, diversos contos, artigos em jornais, peças
para o teatro e tendo mantido uma vasta correspondência com
personalidades da época, como Liszt, Alfred de Musset, Balzac,
Delacroix, Pierre Leroux, Lamennais, Gustave Flaubert e Victor
Hugo. Foi uma autora muito presente no meio intelectual francês
do século XIX, mas, infelizmente, é pouco estudada e conhecida
no Brasil. Na Europa, ela começou novamente a suscitar um
interesse maior somente nos últimos quarenta anos.
Depois da sua morte, apesar de ter virado nome de ruas
e escolas pela França, foi praticamente esquecida pela crítica
literária e pelos intelectuais que se debruçaram sobre o século
XIX. Uma das razões para isso é que ela não se encaixou nos
modismos de seu tempo. Tanto naturalistas quanto simbolistas
zombavam dela, “a boa senhora de Nohant”, por ter sido uma
escritora romântica, engajada politicamente, que se colocava
em seus textos, procedimento que se tornou fora de moda com
o realismo. Teve várias discussões sobre o assunto com Gustave
Flaubert. Permanecendo no esquecimento e pouco estudada nas
universidades, foi justamente o contrário do que ocorreu com seus
contemporâneos e amigos, Balzac e Flaubert, considerados, desde
sua época, grandes nomes do romance na França do século XIX.
George Sand publicou suas obras, em capítulos, em jornais como
fez Balzac e obteve o mesmo sucesso de público, tendo também
vivido de sua literatura.
Em 1854, aos 50 anos, publica Histoire de ma vie3,
autobiografia que ela mesma definiu: É uma série de lembranças,
de profissões de fé e de meditações num ambiente cujos detalhes terão
3
Autobiografia de George Sand, publicada pela primeira vez em 1855.
14 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
alguma poesia e muita simplicidade. Não revelarei, no entanto, toda
a minha vida4. (SAND, 2004, p. 9, tradução nossa).
Na verdade, ela mora no interior da França, casa-se aos 18
anos e decide se separar oito anos depois, mudando-se para Paris,
data também de mudanças políticas importantes – a Revolução de
1830 – e indo viver com o jovem Jules Sandeau, sobrenome a partir
do qual cria seu pseudônimo, Sand. Um breve paralelo entre a vida
literária de Sand e sua vida particular pode ser muito esclarecedor,
um facilitador para a compreensão de sua mente aberta.
Michelle Perrot5 fala sobre a participação de Sand na
Revolução de 1830 e sobre esse ano importante de ruptura para
a escritora:
4
“C’est une série de souvenirs, de professions de foi et de méditations dans un cadre dont
le détails auront quelque poésie et beaucoup de simplicité. Ce ne sera pourtant pas toute
ma vie que je révélerai” (SAND, 2004, p. 9).
5
Historiadora francesa, professora emérita de História Contemporânea da Universidade
Paris VII, autoridade em História do século XIX.
6
Mariée depuis 1822 au baron d’Empire Casimir Dudevant, mère de deux enfants, Maurice
15 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
O rei Carlos X da França, considerado autoritário demais
pelos liberais franceses, foi deposto na Revolução de 1830, que
também ficou conhecida como as Três Gloriosas. A revolução
aconteceu após quatro atos do então rei, Carlos X: “O rei publica
em 25 de julho quatro ordens: proíbe a liberdade de imprensa,
dissolve a Câmara dos deputados, modifica a lei eleitoral
aumentando o cens7 e adia para setembro a eleição da nova
assembleia”8. (BILLARD et al., 1988, p. 206, tradução nossa).
A partir desses atos há uma mobilização de jornalistas,
estudantes, operários e pequenos burgueses que reagem, se
organizam e no dia 27 de julho iniciam a revolta que dura três
dias. Pego de surpresa, o exército não consegue vencer os intensos
ataques. A derrota leva Carlos X ao exílio na Inglaterra.
No seu livro, Histoire de ma vie, citado no início deste artigo,
há um trecho em que a autora relata essa ida a Paris e como ela
se tornou uma flâneuse, disfarçada de homem, durante apenas
alguns anos de sua vida.
et Solange, déçue par cette union désassortie qui la confinait dans sa maison de Nohant, elle
salue avec enthousiasme “les Trois Glorieuses” (les journées de juillet 1830) et se declare pour la
première fois républicaine: “il nous faut une belle et bonne republique [...], une constitution plus
généreuse, plus profitable aux dernières classes de la Société, moins exploitable par les ambitieux.”
Sa “conversion” républicaine est définitive. Établir la République est désormais un objectif. 1830
est une rupture aussi sur le plan privé. Portée par un romantisme qui revendique la liberté
amoureuse, elle quitte son mari, dont elle se séparera officiellement un peu plus tard, “monte” à
Paris avec l’aide de son compatriote (et amant) de La Châtre, Jules Sandeau, se fait journaliste
et bientôt écrivain. En 1832, elle publie son premier roman, Indiana, qui connaît un immense
succès. Elle devient George Sand (PERROT, 2014, p. 167).
7
Valor do imposto a ser pago para se tornar eleitor ou elegível, o cens foi abolido na
França em 1848.
8
Le roi publie le 25 juillet quatre ordonnances: il interdit la liberté de la presse, dissout la
Chambre, modifie la loi électorale en élevant le cens et ajourne jusqu’en septembre l’election de la
nouvelle assemblée (BILLARD et al., 1988, p. 206).
16 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
[...] estava ávida por desfazer-me do provincianismo e colocar-me
a par das novidades que estavam ocorrendo, no que diz respeito
às ideias e às artes do meu tempo […] com exceção das obras
mais famosas, não conhecia nada das artes modernas; tinha
sobretudo sede de teatro.
Sabia muito bem que era impossível a uma mulher pobre
permitir-se esses sonhos […]
Então, mandei fazer para mim um redingote-guarita em tecido
grosso e cinza, calças e colete combinando. Com um chapéu
cinza e uma imensa gravata de lã, transformei-me em um
perfeito estudantezinho do primeiro ano. Não tenho palavras para
expressar o prazer que senti ao calçar minhas botas novas: tinha
vontade de dormir com elas, como fizera meu irmão quando era
garoto ao calçar o seu primeiro par. Com esses pequenos talões
ferrados, ganhei uma firme passada ao caminhar. Eu rodopiava
de um extremo a outro de Paris. Tinha a impressão de ter dado
a volta ao mundo. Além de tudo, com aquelas roupas não receava
nada. Podia andar pelas ruas em todos os climas, voltava para
casa a qualquer hora, frequentava a plateia de todos os teatros.
Ninguém prestava atenção em mim nem suspeitavam do meu
disfarce (SAND, 2017. p. 419- 421).
17 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
Não importa o quanto seja alta, bela ou forte, no seu início,
uma moça nascida numa província qualquer; e se, como Dinah
Piédefer, ela lá se casar e lá permanecer, se tornará logo uma
mulher da província. Apesar dos seus firmes propósitos, o lugar
comum, a mediocridade das ideias, o desleixo com a aparência,
a horticultura das vulgaridades invadirá o ser sublime escondido
nessa alma nova, e está tudo dito, a alma apodrecerá9 (BALZAC,
1843, p. 377).
9
“Quelque grande, quelque belle, quelque forte que soit à son début une jeune fille née dans un
département quelconque; si, comme Dinah Piédefer, elle se marie en province et si elle y reste, elle
devient bientôt femme de province. Malgré ses projets arrêtés, les lieux communs, la médiocrité
des idées, l’insouciance de la toilette, l’horticulture des vulgarités envahissent l’être sublime
caché dans cette âme neuve, et tout est dit, la belle plante dépérit” (BALZAC, 1843, p. 377).
10
Legenda da ilustração na época: “Se esse retrato de George Sand deixa o espírito um
pouco perplexo, é que o gênio é abstrato, e como se sabe, não tem sexo!”.(NESCI, 2007,
p. 249).
18 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
certo. Tratava-se da oposição entre a mulher, que procurava um
sentimento absoluto, e o homem, sempre mais vaidoso ou sensual
que propriamente amoroso, apaixonado. Sobre Indiana, ela afirma:
É o amor chocando-se com sua testa cega a todos os obstáculos
da civilização[...]11 (SAND, 1984, p. 40). A autora se refere nesse
trecho ao amor romântico, sentimento que a personagem título
desenvolve mais fortemente ao se formar como leitora de obras
românticas. Ela já havia publicado, em 1831, Rose et Blanche (Rosa
e Branca), romance escrito com Jules Sandeau, o qual os autores
assinaram como Jules Sand.
Seu terceiro romance, Lélia, de 1833, chama muito
atenção do público, provocando escândalo (MAUROIS, 1952).
Nessa época, George defende que o casamento pode ser uma
verdadeira prisão da qual a mulher precisa se libertar para buscar
sua satisfação. No romance, ela discute o lugar da mulher na
sociedade e os problemas psicológicos que enfrenta para modificar
sua condição. Há trechos em que relata os encontros amorosos
de Lélia, revelando sua insatisfação sexual, o que vai explicar sua
procura de novos parceiros porque não se conforma em ficar ao
lado do amante após o gozo dele e a frustração dela.
Vejamos dois trechos de Lélia, em que aparece a tentativa de
Lélia para superar a frigidez ao lado do amante Sténio. Lélia havia
começado uma vida que ela chamou de “sacrifício e abnegação”,
porque aceitava dar prazeres que não podia compartilhar e
suportava mal esse estado. Seguem aqui excertos fundamentais
para a compreensão da personagem Lélia:
19 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
de avidez estranha e delirante que não poderia ser saciada por
nenhum abraço carnal. Sentia meu peito devorado por um fogo
inesgotável, e seus beijos não vertiam ali nenhum tipo de alívio.
Eu o apertava em meus braços com uma força sobre-humana,
depois caía ao lado dele exausta e desanimada... o desejo que
havia em mim era um ardor da alma que paralisava o poder dos
sentidos antes mesmo de despertá-lo. Era uma fúria selvagem
que se apoderava de meu cérebro e se concentrava exclusivamente
nisso. [...]12 (MAUROIS, 1952, p. 166).
20 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
As sucessivas revoluções marcaram sua existência. A revolução
de 1830, dinástica e liberal, foi para ela uma libertação política
e pessoal. O Antigo Regime tinha sido vencido; a aristocracia
cedia lugar ao que se chamava no passado de “Terceiro Estado”,
a “burguesia” e o “povo”. Sua obra é permeada pelo eco das lutas
de classe no campo14 (PERROT, 2014, p. 166-167).
[...] Michel de Bourges, advogado dos republicanos, a introduz
nos meios radicais e complementa sua educação política. Pierre
Leroux a converte ao socialismo: um socialismo sincrético,
que tenta conciliar igualdade e liberdade, materialismo e
espiritualismo, literatura e política, e que atribui um grande lugar
à igualdade dos sexos e aos artistas. Esta síntese convém a ela. O
socialismo é o objetivo; a República é o meio, diz ela.15(PERROT,
2014, p. 168).
A Revolução de 1848 a surpreende e a conquista. Ela voa a
Paris e apoia com convicção o governo provisório, povoado de
homens políticos aos quais está ligada: Louis Blanc, Emmanuel
Arago, Alexandre Ledru-Rollin, Armand Barbès... Redige
anonimamente uma parte dos Boletins da República, órgão do
governo provisório. Ela ataca “os ricos” com uma veemência
julgada excessiva pelos seus superiores, o que a obriga a renunciar
ao seu exercício que exigia mais discernimento16 (PERROT,
2014, p. 170).
14
Les révolutions successives marquèrent son existence. La révolution de 1830, dynastique
et libérale, fut pour elle une libération politique et personnelle. L’Acien Régime était vaincu;
l’aristocratie cédait la place à ce qu’on appelait jadis “le Tiers État”, la bourgeoisie et le “peuple”. Son
oeuvre est traversée par l’écho des luttes de classe à la campagne (PERROT, 2014, p. 166-167).
15
Michel de Bourges, avocat des républicains, l’introduit dans les milieux radicaux et achève son
éducation politique. Pierre Leroux la convertit au socialisme: um socialisme syncrétique, qui tente
de concilier égalité et liberte, matérialisme et spiritualisme, littérature et politique, et qui acorde
une grande place à l’égalité des sexes et aux artistes. Cette synthèse lui convient. Le socialisme est
le but; la République est le moyen, dit elle. [...] (PERROT, 2014, p. 168).
16
La révolution de 1848 la surprend et la conquiert. Elle vole à Paris et soutient avec conviction
le gouvernement provisoire, peuplé des hommes politiques auxquels elle est liée: Louis Blanc,
Emmanuel Arago, Alexandre Ledru-Rollin, Armand Barbès... Elle rédige anonymament une
partie des Bulletins de la République, organe du gouvernement provisoire. Elle s’em prend “aux
riches” avec une véhémence jugée excessive par ses commanditaires, ce qui l’oblige à renoncer à
cet exercice qui demandait plus de discernement (PERROT, 2014, p. 170).
21 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
Segundo o professor Gabriel Mendes, na revolução
de 1848, que ficou conhecida como A Primavera dos Povos, o
proletariado, explorado pelo patrão, participa mais ativamente com
suas propostas do que em outras revoluções, reivindicando mais
representatividade, bem como mudanças políticas e das condições
de trabalho, muitas vezes insalubres (MENDES, 2018).
A forma de governar de Luís Felipe foi o estopim que
desencadeou a revolução de 1848 na França, já que ele havia
prometido exercer a monarquia constitucional e ouvir mais o
parlamento, mas na prática foi muito autoritário e governou em
favor da alta burguesia, como banqueiros e grandes empresários,
tanto que ficou conhecido como “rei burguês”. A oposição,
formada por bonapartistas, republicanos e socialistas, sentindo-
se enganada, organiza, então, banquetes públicos, entre os vários
grupos revolucionários, para discutir os rumos da revolução, a qual
começa em 24 de fevereiro. É a chegada da Primavera dos Povos
e a consequente queda de Luís Felipe.
E o professor Pedro Rennó ratifica: As promessas de Luís
Felipe não eram cumpridas, os liberais se sentem enganados, como
os republicanos, e os operários que chegavam a trabalhar de 16
a 18 horas por dia, sem descanso remunerado, nem nos finais de
semana (RENNÓ, 2018).
Ainda, segundo o fato histórico de fevereiro de 1848:
22 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
Guarda Nacional, e pressionado por sua família, abdica. [...].
Um governo provisório se forma [...]. (O poeta) Lamartine se
torna líder desse governo. A república é proclamada por sufrágio
universal. A escravidão e a pena de morte, por motivos políticos,
são abolidas17 (BILLARD et al., 1988, p. 214).
17
Les chefs de l’opposition ont en vain tenté d’imposer et à Guizot une reforme électorale. Une
ultime manifestation dans ce but est décidée pour le 22 février à Paris. Malgré son interdiction, elle
se déroule dans le calme. Le landemain, l’agitation reprend dans la capitale. La garde nationale
se révèle violemment hostile à Guizot qui démissionne. Mais la tension persiste. Le 24 février,
Paris se couvre de barricades. Le roi, découragé par la défection de la Garde nationale, pressé
par son entourage, abdique. [...] Un gouvernement provisoire est formé [...]. Lamartine prend
la tête de ce gouvernement. La republique est proclamée avec le suffrage universel. L’esclavage et
la peine de mort pour motif politique sont abolis (BILLARD et al., 1988, p. 214).
23 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
1848. Como fica muito desapontada com o fracasso desse novo
levante, que de nada adianta, resultando no golpe de 1851, retira-se
da cena parisiense, como já mencionado acima, para se instalar em
Nohant, sua terra natal, seu refúgio, indo cada vez menos a Paris.
No momento do golpe de Estado de dezembro de
1851, pelo qual Luís Napoleão Bonaparte tomou o poder, esta
republicana convicta protestou, mas não se exilou como Victor
Hugo. De volta à sua terra natal, sente grande prazer quando está
em contato com a natureza e também realizando as tarefas de casa,
além das cavalgadas que já fazia vestida de menino, desde jovem
com seus amigos do Berry.
Havia se dedicado, já a partir de 1845, aos contos
tradicionais, orais, e escreve cinco romances campestres dentre os
quais François, le Champi (1850)18, cuja tradução foi publicada no
Brasil em 2017 (SAND, 2017), e é um dos romances de George
Sand dessa fase. A tradução - François, o menino abandonado -
nos faz voltar ao mundo rural da Europa do século XIX com muita
naturalidade e nos proporciona uma leitura prazerosa, ainda que
trate de uma temática triste, dentro do contexto social da época
em que Sand o escreveu – crianças abandonadas ou enjeitadas.
Suas aspirações místicas e seus pendores humanitários irão
se unir para compor esse mundo ideal, rousseauniano, voltado
para o passado e para a cena rural de sua região, o Berry, e não
para o universo operário do meio urbano, muito explorado pelos
escritores românticos e realistas, a partir de 1850 na França. Ela
vai se opor à descrição obsessiva das mazelas sociais, que, se por
um lado, denunciava as injustiças, por outro, acabava reforçando
os argumentos burgueses que aliavam sempre miséria à violência e
18
Os outros são: Le Meunier d´Angibault(1845), La Mare au diable(1846), La Petite Fadette
(1849) e Les maîtres sonneurs(1853).
24 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
criminalidade. George Sand está preocupada, ao retratar sua região,
em expor uma tradição literária rural, com valores autênticos da
população do Berry, o que ela discute já na introdução do romance
– François – em diálogo com um amigo, em que levanta a difícil
questão do resgate da oralidade pela escrita e do estabelecimento
de uma realidade que é e não é a sua ao mesmo tempo: dar a ver
ao leitor um modo simples de viver através de uma língua francesa
(republicana!), que todos entendam, com um texto aqui e ali
permeado de palavras ou expressões da língua local (chéret para
xale, champi para abandonado, de suite para imediatamente, em
vez de tout de suite, o que exasperava Beaudelaire, que a chamava
de Latrina ( Jules Romain a chamava de Vache à romans)19.
É importante ainda lembrar o que Simone de Beauvoir
diz a respeito de Sand em Segundo Sexo, de 1947. A feminista
reconhece a contribuição na parte afetiva e sexual da mulher,
mas não cita a sua participação política e a função cultural que
desempenhou, tendo reunido junto a si muitos nomes importantes
das artes do século XIX. Talvez justamente porque Sand não
tenha apoiado as feministas que solicitaram seu apoio para que as
mulheres tivessem direito ao voto a partir da Revolução de 1848.
Sand não apoiou essa luta pelo sufrágio universal e se justifica
em correspondência, publicada somente em 1904 por sua neta,
Aurore Dupin. Michelle Perrot comenta o fato em seu livro, Des
Femmes rebelles, 2014:
19 Vaca romanceira.
25 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
pais, seus maridos e seus amantes. Um dia, seguramente, as
mulheres votariam. Mas elas deveriam primeiramente se instruir,
essa falta de instrução constituindo o maior crime dos homens
contra as mulheres. E conquistar seus direitos civis. A abolição
do Código Napoleão, “o infame código civil”, monumento
do patriarcado, e o restabelecimento do direito ao divórcio,
eram as premissas indispensáveis. É este o ponto de vista que
Sand defende na sua obra e principalmente nos seus romances
“feministas”: Indiana, Lélia, Jacques, que revelam a infelicidade
das mulheres amordaçadas pela família; ou no seu ensaio, Cartas
a Marcie, que o abade Félicité de Lamennais, mesmo sendo um
contestador, recusou publicar no seu jornal Le monde, porque ela
criticava o casamento. A autonomia individual das mulheres era a
condição da sua cidadania. Direitos civis primeiro: esta é a lógica
sandiana da responsabilidade, uma lógica universalista que leva
a sério os princípios de 1789 e pede sua extensão a todos, sem
distinção de sexo20 (PERROT, 2014, 162-164, tradução nossa).
20 Cette femme, si profondément consciente de la nécessité de l’égalité des sexes, n’a pas revendiqué
en 1848 le droit de vote pour les femmes. [...] Elle pensait qu’il y avait d’autres priorités: les
réformes sociales par exemple; et surtout que les femmes n’étaient pas mûres. [...] Les femmes
n’avaient aucune indépendance de jugement et voteraient comme leur père, leur mari ou leur
amant. Un jour, assurément, les femmes voteraient. Mais elles devaient d’abord s’instruire, ce
défaut d’instruction étant “le plus grand crime des hommes envers les femmes”. Et conquérir leurs
droits civils. L’abolition du Code Napoléon , “l’infâme Code civil”, monument du patriarcat, et
le rétablissement du droit au divorce, étaient des préables indispensables. C’est ce point de vue
que Sand défend dans son oeuvre, et notamment dans ses romans “féministes”: Indiana, Lélia,
Jacques, qui montrent le malheur des femmes ligotées par la famille; ou dans son essai, Lettres
à Marcie, que l’abbé Félicité de Lamennais, pourtant constestataire, refusa de publier dans son
journal Le monde, parce qu’elle critiquait le mariage. L’autonomie individuelle des femmes
était la condition de leur citoyenneté. Droits civils d’abord: telle est la logique sandienne de la
responsabilité, une logique universaliste qui prend au sérieux les principes de 1789 et en demande
l’extension à tous, sans distiction de sexe. (PERROT, 2014, p.162-164).
26 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
a mulher não existia fora do casamento, rebatendo os argumentos
de Sand quando esta criticava a instituição e defendia a busca
para a sua libertação.
27 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
Um dos primeiros encontros dos dois escritores foi na
estreia de Villemer, peça teatral de Sand, no camarote do príncipe
Jérôme. O espetáculo fez muito sucesso e o entusiasmo do público
a tocou profundamente. Em carta a Flaubert, de 15 de março de
1864, ela escreve: O senhor foi tão bom e tão simpático comigo na
estreia de Villemer que já não admiro apenas seu grande talento,
mas gosto do senhor de todo o coração ( JACOBS, 1981, p. 56).
A própria Sand resume, numa de suas cartas a Flaubert, a
grande amizade e o carinho que existe entre os dois:
23
Nous sommes, je crois, les deux travailleurs les plus différents qui existent. Mais puisqu’on
s’aime comme ça, tout va bien. Puisqu’on pense l’un à l’autre à la même heure, c’est qu’on a besoin
de son contraire. On se complète en s’identifiant par moments à ce qui n’est pas soi ( JACOBS,
1981, p. 213).
28 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
presenciou de importantes personalidades, seja, enfim, do que
explorou e apreciou dos homens e das coisas exteriores de um
ponto de vista qualquer (SAND, 2017, p. 25-26).
29 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
A instrução gratuita e obrigatória só fará aumentar o número de
imbecis. [...] Do que precisamos, antes de mais nada, é de uma
aristocracia natural, ou seja, legítima. Nada pode ser feito sem
uma cabeça, e o sufrágio universal, tal como existe, é mais estúpido
que o direito divino (VALLÈS, 1992, p. 191).
30 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
Então, ela responde: Faz alguma coisa mais terrena e que
caiba em todo mundo24 JACOBS, 1981, p. 505, tradução nossa).
No que diz respeito à arte pela arte, George Sand dá a sua
visão:
24
Fais quelque chose de plus terre à terre et qui aille à tout le monde ( JACOBS, 1981, p. 505).
25
“Je sais que tu blâmes l’intervention de la doctrine personnelle dans la littérature. As-tu raison?
N’est-ce pas plutôt manque de conviction que principe d’esthétique? On ne peut pas avoir une
philosophie dans l’âme sans qu’elle fasse jour […] Seulement je crois qu’il leur manque et à toi
surtout une vision bien arrêtée et bien étendue sur la vie” ( JACOBS, 1981, p. 511).
31 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
romance histórico, tendo ido à cidade de Cartago quatro anos
antes de escrevê-lo.
A tradução recente de três obras de Sand26 pode significar
que este é um ótimo momento para trazer ao alcance de todos
sua personalidade e sua genialidade através deste trabalho – e de
outros – que, certamente, remetem tanto à sua vida particular
quanto ao mundo literário e político ao qual ela pertenceu.
Concluindo, Flaubert, através da escrita do conto Un coeur
simple, com tradução para o português, “Um coração simples”,
dedicado a Sand, acabou chamando nossa atenção, e de muitos
outros leitores, para o pensamento e a obra literária de George
Sand. O conto traz a história de uma empregada doméstica que
dedica sua vida a uma família burguesa do interior da França. Na
sua visão ingênua, torna-se um deles. No entanto, essa família
não considera Félicité como sendo parte dela. A doméstica tem
uma capacidade enorme de amar. Primeiro, apega-se às crianças
da casa, mas uma delas morre e a outra cresce, casa-se e muda-se
para longe dali. Depois, Félicité descobre um sobrinho que acaba
embarcando como marinheiro. Por fim, liga-se a um papagaio
deixado por vizinhos como a um filho que nunca tivera. Quando
o bicho morre, ela o empalha e o coloca numa espécie de altar
caseiro. É fervorosamente religiosa. (FLAUBERT, 2019).
Era difícil entender como Flaubert teria se debruçado
sobre uma mulher tão simples de forma tão intensa, captando
a alma de uma simplória, de um ser desprovido de inteligência,
sensualidade ou beleza. O que o teria levado a isso com essa
visão de mundo expressa em suas cartas logo após a Comuna de
Paris, além da sua inclinação para temas religiosos? Então surgiu
26
O carvalho falante (2014); História da minha vida (2017); François, o menino
abandonado (2017).
32 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
a vontade de pesquisar as circunstâncias da publicação do conto
e a consequente “descoberta” da correspondência de Flaubert e
George Sand. Grande foi a nossa surpresa quando, no final da
Correspondência, Flaubert afirma:
33 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
Victor Hugo, grande romancista francês, que também era
amigo e admirador da autora, não compareceu aos funerais, mas
escreveu um discurso que foi lido por Paul Meurice, no velório
de George Sand:
34 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
também... em busca da carne perdida”29 (FOUQUE, 2009, p. 25,
tradução nossa). Poderíamos dizer que o texto de Proust está, na
sua natureza, cheio de experiência feminina, doméstica, sensorial,
muito próxima da que nos dá a viver e a ler George Sand em seus
textos.
Depoimento de Fiodor Dostoiévski, escritor do século
XIX, seu contemporâneo:
29
C´est une scène d´oralité absolue, au sens de parler et manger. C´est donc...à la recherche de la
chair perdue (FOUQUE, 2009, p. 25).
30 C’est seulement en apprenant sa mort que j’ai compris toute la place que ce nom occupait dans
ma vie, tout l’enthousiasme et l’adoration que j’avais voués à ce poète, et combien je lui devais
de joie et de bonheur. Je parle ici avec hardiesse car c’est ce que je ressentais. [...]. George Sand est
une de nos contemporaines à nous autres idéalistes russes de 1840 dans le sens le plus complet du
mot. [...]. En exaltant des noms comme celui de George Sand et en s’inclinant devant eux, les
Russes n’ont fait que remplir leur devoir et s’acquitter d’une dette. Qu’on ne s’étonne pas de mes
paroles, surtout quand elles se rapportent à George Sand. Il se trouvera peut-être des personnes
qui souriront de la grande importance que je donne à George Sand, mas les rieurs auront tort
(GUÉNO, DEFORGES; AYALA, 2004, p. 153).
35 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
sempre bem vendáveis. Depois de trabalhar muito, quando faltava
pouco para concluir sua tradução, Dostoiévski descobriu que o
livro já tinha sido traduzido para o russo.
36 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
A influência de Sand não apenas sobre Dostoiévski, mas
sobre os vários escritores já citados aqui, só contribui para enfatizar
a relevância da escritora nos meios político, intelectual e social
– este principalmente no Berry, onde fazia efetivos atos sociais
– do século XIX. Isso faz com que nos questionemos ainda mais
sobre o fato de que ela ficou esquecida na Europa – e no Brasil
também – durante muitos anos após a sua morte. Por que será?
Seria apenas por ter sido uma escritora romântica na época em
que brilhavam o simbolismo e o naturalismo? Claro que não, isso
nos remete também a questões de gênero, já que Sand foi um
sucesso absoluto no século XIX, tendo vivido dos frutos de sua
arte literária numa época em que só os homens conseguiam essa
proeza. Como bem sabemos, não foi sem motivo que ela adotou
como pseudônimo um nome masculino logo no começo de sua
brilhante carreira de escritora.
Atualmente no Brasil, alguns pesquisadores e tradutores
vêm estudando a vida e a obra de George Sand (Costa, 2015;
Garcia; Aparecida; Morais; Simone; Lee; Oliveira, 2017).
Um desses trabalhos de pesquisa resultou na tradução da obra
autobiográfica de Sand História da minha vida (Histoire de ma
vie). Para Magali Fernandes, prefaciadora da tradução, “Trazê-la
de volta ao público brasileiro, neste momento, tem como objetivo
central a recuperação do lado escritora e personagem de George
Sand”. Mas não só isso, alguns estudos atuais que tratam de sua
obra reconhecendo sua grandeza e representatividade, por parte da
crítica literária francesa e internacional, foram sua outra motivação
para escolher trabalhar com a escritora. Os pesquisadores optaram
por sintetizar os dez volumes da obra num único volume sem
interferir diretamente no texto original (SAND, 2017).
37 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
Outro trabalho sobre a escritora está sendo desenvolvido
por uma das autoras deste artigo. Trata-se de uma pesquisa sobre
aspectos políticos e literários do século XIX, época em que George
Sand viveu e seu lugar em meio a esse contexto31, bem como alguns
aspectos da amizade da autora com Gustave Flaubert. Ambos
trilharam importantes caminhos artísticos, principalmente dentro
da literatura, e intelectuais, devido ao senso crítico de ambos e
à qualidade de sua retórica e de seu trabalho. Não pretendemos
desvendar a atração irresistível de um pelo outro, ainda que apenas
no terreno da amizade, da lealdade e da intelectualidade forte de
ambos. Flaubert sentia necessidade de confiança, acolhimento.
Sand era uma pessoa afetiva, acolhedora, carinhosa.
Como já mencionamos, os dois autores tinham, cada
um, um posicionamento, claro e diferente um do outro, sobre a
literatura, a política e a cultura como um todo. Não é novidade
que a literatura, epistolar ou não, difunde características da época
em que foi escrita, e, de certa forma, da sociedade que a cerca.
Quanto mais livros de Sand forem traduzidos, mais
aumenta o diálogo entre o conhecimento do leitor e seu contato
com a cultura oitocentista francesa, através desse ponto de
vista tão particular da autora, de resto já bem propagada por
contemporâneos de Sand, como Balzac, Victor Hugo e Flaubert,
entre outros. É fundamental aproveitar esse momento em que a
autora voltou a ser estudada e traduzida para fomentar a divulgação
de sua obra através de novas traduções de seus escritos e de novas
reflexões sobre sua representatividade no mundo contemporâneo.
Em A literatura em Perigo, Todorov (2010, p. 33) afirma
que “O conhecimento da literatura não é um fim em si, mas uma
31
Esse estudo faz parte do projeto de pesquisa realizado no mestrado, da discente Liliane
Mendonça Duarte, sob orientação do professor Dr. Maurício Mendonça Cardozo, pelo
Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
38 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
das vias régias que conduzem à realização pessoal de cada um”.
O que nos leva a refletir que “para quem não conhece a língua do
original, a tradução tem o mesmo valor (que pode ser imenso!)”
(MORAES, 2017, p. 50) portanto, ter a oportunidade de ler uma
tradução é provavelmente a maneira mais eficiente de ampliar
conhecimento e adquirir cultura. Para Todorov, “Mais densa e mais
eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente,
a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras
maneiras de concebê-lo e organizá-lo” (TODOROV, 2010, p. 23).
E é nessa formulação, nessa dinâmica do conhecimento
literário e de crescimento pessoal por meio da literatura que
ressaltamos a importância desses trabalhos já citados sobre a autora
e de outros que venham ainda a surgir e exaltar a genialidade dela,
que desde o início da carreira precisou forjar um nome masculino
para ter suas obras publicadas.
Referências
39 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
FOUQUE, Antoinette. Entretiens avec Christophe Bourseiller. Paris:
Bourin Editeur, 2009. (Collection Qui êtes-vous?).
40 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
SAND, George. François, le Champi (1850). Tradução Liliane
Mendonça. São Paulo: Kazuá, 2017.
41 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
STELA DO PATROCÍNIO,
“ESPAÇO VAZIO PURO”
ABSTRACT: The aim of this research is to discuss the work of the Carioca poet Stela
do Patrocínio, under the conceptual prism of Pure Poetry, suggested by the French critic
Abbot Henri Brémond in 1925. The expectation is to propose subsidies for advances both
in the practical knowledge of the Patrocinian work and in the theoretical development
of the Bremondian nomenclature, by the approach with the Contemporary Literature.
KEYWORDS: Stela do Patrocínio; Pure Poetry; Henri Brémond.
Introdução: “falatório”
43 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
breve período em que, no seu último ano, esteve internada no
Hospital Cardoso Fontes em virtude de complicações infeccionais
– passou quase três décadas de sua breve biografia e faleceu.
A longa estadia da poetisa no hospício ainda estaria
condenada ao silêncio, como é a sina de tantos outros que estiveram
nesse ambiente inóspito que, pela sua natureza massificadora,
costumava funcionar como verdadeira máquina de amputação de
subjetividades, pelo menos até antes da reforma antimanicomial
efetivada em tempos mais recentes. Raros foram os usuários que
conseguiriam elevar e manter a sua voz, o seu jeito próprio de
ser e de ver o mundo, a sua personalidade, mais ainda, a sua arte.
Entretanto, Stela conseguiu sobreviver como Stela e mais,
nos legar uma produção estética de alto e surpreendente valor.
Isso se deve ao fato de, em meio ao imenso grupo de centenas
de internos, Stela do Patrocínio ter em mais de uma ocasião se
destacado por empregar um discurso oral – ou, como a própria
se refere, um “falatório” – inusitado mesmo para os padrões de
alienados, pois carregado de forte teor poético. A poetisa, pode-
se afirmar, sobreviveu por conta unicamente de sua fala poética:
O futuro eu queria
Ser feliz
E encontrar a felicidade sempre
E não perder nunca o gosto de estar gostando
44 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
Ficar gostando e não perder o gosto
Ser feliz
Encontrar a felicidade
E não perder o gosto de estar gostando (PATROCÍNIO, 2001, p. 73)
45 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
A poética de Stela do Patrocínio ainda é relativamente
pouco conhecida pelo grande público. Sem embargo, dos que
tiveram a oportunidade de ouvi-la ou lê-la – estudantes e
professores de Letras ou de Psicologia, psicanalistas, artistas
plásticos, teatrólogos, atores, cineastas de curtas-metragens –,
muitos parecem compartilhar da opinião entusiasmada de Ricardo
Aquino, que abriu o prefácio de Reino dos bichos e dos animais é
o meu nome com a afirmação: “O texto de Stela do Patrocínio
que vem à luz neste livro já nasce como um marco na literatura
brasileira, revestindo-se da maior importância e significado” (in
PATROCÍNIO, 2001, p. 13).
O simples alvitre de que se trata de “um marco” é
suficiente para instigar à leitura cuidadosa da obra patrociniana.
Contudo, quais motivos poderiam ser elencados para justificar
convincentemente – vale dizer, do ponto de vista amiudado de
uma crítica literária isenta – impressões dessa natureza?
São dois os aspectos que singularizam, de maneira bastante
apreciável, a poética de Stela do Patrocínio, conferindo-lhe
caráter de relevância no panorama da Literatura Brasileira
Contemporânea.
Em primeiro lugar, a circunstância de que, quando se
menciona o “discurso poético” de Stela, de forma alguma está em
pauta uma escrita organizada com método estético consciente,
quer esse método esteja sob o influxo de um insight de inspiração,
quer sob a aplicação de trabalho. Não se observa, nesse caso
porventura único, alguém que se senta à escrivaninha ou ao
computador episodicamente para produzir uma manufatura
artística. O que se tem, ao invés, é a incomuníssima anotação
de uma lírica da oralidade que não se dissocia da fala cotidiana,
ou seja: de acordo com os testemunhos, Stela do Patrocínio não
46 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
se comunicava, verbalmente, senão por poemas ou estruturas
próximas – a integralidade ou quase de seu tempo era ocupada
pelo “discurso poético” in natura, em estado bruto. Pelo menos nos
seus últimos anos, nada importando o peso quer do delírio, quer
da lucidez, a poetisa vivia em estado poético perene e espontâneo.
Se se trouxer à memória as biografias de outros tantos poetas e
escritores que escreveram nos ambientes asilares ou assemelhados,
acossados sob o aguilhão da loucura – Torquato Tasso ou Friedrich
Hölderlin, Ângelo de Lima, Antonin Artaud e, entre nós, Qorpo
Santo, Lima Barreto e Maura Lopes Cançado –, é claro perceber
que sempre havia uma nítida separação entre aqueles instantes
de produção literária e os instantes de comunicação coloquial,
alienados ou não, mas sem traço nenhum de intencionalidade
estética. Certo que, com efeito, em Stela do Patrocínio também
não se vê a tempo algum a intencionalidade estética: porque, sem
solução de continuidade, a expressão poética lhe surge como a
mesma expressão natural do sujeito em seus afazeres do dia a dia.
Isso transporta a lírica oral de Stela do Patrocínio a um grau de
pureza do mais precioso quilate e – quer parecer – absolutamente
inédito, pelo menos nos registros gerais mais noticiados dos
cânones da História da Literatura no Ocidente.
O segundo aspecto que confere ao discurso de Stela o
caráter duma floração única é a particularidade de que brota em
condições de estufa: poética do exílio, ela se asila e se isola, na
perfeita encarnação da marginalidade, como ilha, desse modo
emersa, na medida do possível, dos circundantes históricos de
três décadas, dos movimentos sociais, das intestinações políticas
e econômicas, dos padrões culturais e de todos os -ismos e os
truísmos literários, sem espaço para questões de mercado, moda
ou recepção – todas essas são intervenções de triz, as inevitáveis
47 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
e nada mais. Stela do Patrocínio, em seu mundo próprio, aparece
como uma poetisa incontaminada pelo Zeitgeist ou, ao menos,
tanto quanto alguém possa ser assim. Destarte, intensamente
depurada, essa lírica plena de liberdade alcança, quem sabe, o mais
distante a que qualquer poeta já foi na procura alquímica do graal
de si mesmo: Poesia em-si, Poesia que nem se sabe Poesia, Poesia pura.
Como abordar uma obra assim caracterizada? Uma das
possibilidades é, coerentemente com a sua índole de pureza,
libertando-a dos seus atributos contingenciais e buscando seus
atributos essenciais.
Como toda poética, principalmente as fortes, a de Stela
do Patrocínio aponta para múltiplas dimensões: a poetisa louca,
a poetisa interna/usuária, a mulher, negra, pobre, sexualmente
oprimida, solitária, brasileira, religiosa (etc...) são apenas algumas
das primeiras a chamarem atenção e a se viabilizarem como
objetos perquisitivos de apreço, correspondendo a campos de
análise muitas vezes já abertos e que, com o tempo, servirão para
o erguimento de uma fortuna crítica consistente.
Entretanto, em complemento a tais vieses, o alvo deste
artigo se coloca em campo mais fluido, ao abstrair a poetisa
como personagem da própria obra – ou ao resgatá-la dessa
obra – e procurar visualizar a poeta, sem mais adjetivos: quer-se
ter a observação concentrada na palavra da artista que, durante
décadas, viveu num mundo particularíssimo e poetou não sob
a aura de experiência estética consciente, e sim como expressão
de vivência em ato natural. Alheia à diacronia, desinteressada
da sincronia, desintelectualizada porque independente de
quaisquer preocupações literárias externas, políticas, sociais, éticas,
comportamentais, editoriais, mercadológicas ou de influência
que tenham angustiado o período histórico em questão, Stela
48 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
do Patrocínio ilustra na práxis mais profunda o que um autor
erudito como Manoel de Barros perseguiu conscientemente por
toda a vida: o autêntico e permanente “estado de Poesia”. Aliás,
a excelência em não-ser de Stela espelha a obsessão de não-ser
de Manoel:
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instrumento bastante adequado para lançar novas inquietações
sobre essa singularidade da poética patrociniana, desde que
seja submetido a uma afinação que leve em conta o estado da
contemporaneidade e a situação de solidão extrema da autora.
Vejamos. A elocução Poesia pura intenta, pelo menos em
princípio, responder à seguinte dúvida: o que faz de determinado
objeto algo a ser estimado como poético e que falta a outro que
assim não é estimado? Divagações singelas à volta da atualmente
gasta dicotomia entre a forma e o conteúdo demonstraram-se, com
o tempo, ineficazes. Estrutura é tão-só o texto, tema é tão-só o
pretexto. Mas, positivamente, a serviço de qual âmago a forma
se arquiteta e o conteúdo se invoca? Que é esse poético que a
forma e o conteúdo conseguem captar, quando o conseguem?
Ou, empregando a fórmula poundiana: como se constituem
as “essências e medulas” que possibilitam a certas realizações
humanas se estatuírem como Poesia, linguagem erguida?
São indagações espinhosas: milênios de tarefas infinitas as
têm tentado solver, contudo, o conceito de Poesia pura permanece
como dos mais fugidios. Divulgada na França pelo abade Henri
Brémond em 1925, com referência à obra de Paul Valéry, e daí
ganhando, em meio a acirradas controvérsias, com rapidez a
Europa e o Ocidente, a expressão Poesia pura, na verdade, pretende
abarcar uma vasta problemática que atravessa a História da
Literatura, sob terminologias e pontos de vista diversos, desde
pelo menos o Íon (c. 394-391 a. C.), de Platão, e a Poética (c. 335-
323 a. C.), de Aristóteles. A bem dizer, é, com efeito, justamente
sobre a ideia de pureza da Poesia que se erigiu toda a Teoria da
Literatura. Sem contar a imensa gama de textos metapoéticos,
quase todos os mais importantes documentos teóricos pertinentes
têm discutido, ao longo dos séculos, a questão da Poesia pura, seja
50 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
direta, indireta ou mesmo tangencialmente, por exemplo: a Arte
poética ou Epístola aos Pisões (c. 19-8 a. C.), de Horácio; o Tratado
do sublime, de Longino (séc. I); Do ensino, de Santo Agostinho
(389); trechos das epístolas de Dante Alighieri a Cangrande I della
Scala (1305-1320); e a Arte poética (1674), de Nicolas Boileau.
Especial atenção foi dada ao assunto no séc. XIX, sobretudo pelos
românticos e pelos simbolistas, através de escritos significativos,
como, em citação aleatória: vários dos fragmentos do Pólen (1798-
1801), de Novalis; o ensaio “Uma defesa da Poesia” (1811-1815),
de Percy Shelley; os artigos “A filosofia da composição” (1848)
e “O princípio poético” (1850), de Edgar Allan Poe; O pintor da
vida moderna, texto também conhecido como Sobre a Modernidade
(1863), de Charles Baudelaire; a “Carta dita do vidente” (1871),
de Arthur Rimbaud; e, dentre tantas outras páginas, “Crise
do verso” e “Magia” (c. 1886-1898), de Stéphane Mallarmé,
bem como a sua carta autobiográfica (1885) endereçada a Paul
Verlaine. Nos novecentos, vale mencionar: as querelas formalistas
e depois estruturalistas sobre a literaturnost de Roman Jakobson;
as Cartas a um jovem poeta (1903-1908), de Rainer Maria Rilke;
as conferências “Situação de Baudelaire” (1924), “Primeira aula
do curso de Poética” (1937) e “Poesia e pensamento abstrato”
(1939), mais as “Questões de Poesia” (1935), de Paul Valéry; o
ABC da Literatura (1934), de Ezra Pound; as ponderações de
Walter Benjamin traçadas em Charles Baudelaire – um poeta na
época do capitalismo avançado (1927-1940); a Estrutura da lírica
moderna: da metade do século XIX a meados do século XX (1956),
de Hugo Friedrich; O arco e a lira (1956) e Os filhos do barro
(1972), de Octavio Paz; e praticamente todos os numerosos
manifestos que as Vanguardas proliferaram, desde o Futurismo
de Tommaso Marinetti (1909). Entre nós, é o caso de citar, sem
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pretensa exaustão, o “Prefácio interessantíssimo” (1922) e tópicos
d’A escrava que não é Isaura (1925), de Mário de Andrade; os dois
manifestos de Oswald de Andrade (... da Poesia pau-Brasil, 1924; e
... antropófago, 1928) e o sistema ideológico oswaldiano sucedâneo;
a Teoria da Poesia Concreta (1950-1960), do grupo Noigandres; o
ensaio “À busca da Poesia” (1970), de Pedro Xisto, sobre a obra de
Guimarães Rosa; a linha dorsal d’A arte no horizonte do provável
(1977), de Haroldo de Campos; e, por fim, em foco mais fechado,
alguns capítulos do Convívio poético (1955) e da Vigília poética
(1962), de Henriqueta Lisboa.
Assim, nesta pesquisa, quando se fala em Poesia pura,
quer-se ter em mente o que todos esses arrazoados críticos têm
em comum, a saber, procurar identificar o que faz um poema
ser poema, isto é, o que o faz irradiar Poesia. O que vale dizer:
falar de Poesia é sempre falar de sua pureza, tentar identificá-la
num texto sob uma dada perspectiva. É patente, contudo, que
nenhuma definição é suficiente para dar conta do fenômeno da
Poesia pura. Por sua própria natureza, a Poesia pura é refratária a
qualquer expectativa de se demarcá-la. Propondo-se então como
antidefinição confinante com o mistério, ela é, antes, uma abstração
de contornos extremamente indistintos – para empregar um
tropo, poder-se-ia dizer: é uma nuvem cuja existência se revela
inegável, não sendo, porém, possível encapsulá-la em duras paredes
ou estabelecer qualquer espécie de limite definitivo ou fôrma
durável à sua essência móvel e metamórfica. A única estratégia
prática para se aproximar de sua verdade seria através de uma
recepção crítica que permita um vislumbre holográfico: cada
parte de eventual conceituação sobre as características daquilo
que conhecemos como Poesia pura, embora seja necessariamente
uma informação incompleta, não obstante precisa ser recebida,
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a fim de que sirva como ferramenta prática, como se fosse uma
informação de integralidade. Sirva-nos por ora, portanto, a
afirmação do abade Brémond (1947, p. 14): “Hoy ya no decimos: en
un poema hay vivas pinturas, pensamientos o sentimientos sublimes,
hay esto y aquello, y además hay lo inefable. Decimos: ante todo y sobre
todo hay lo inefable, estrechamente unido por lo demás a esto y aquello.”
No entanto, não se tencione conceder a esse “inefable” algum
matiz tautológico semelhante à literaturnost jakobsoniana. Para
nos acercarmos um pouco mais da Poesia pura, recorra-se a uma
ontologia negativa: Poesia pura é aquela que não é impura. E isso
não seria nova tautologia? Certo que não. Símile: para se lapidar
o puro carbono em cristal que perfaz o diamante, mister antes
limpar toda rocha que polua a gema. Poesia pura, sob tal óptica,
seria aquela que se sustém em liberdade, suspensa no tempo e no
espaço, independente de quaisquer temas e propósitos que lhe
empanem o brilho, sem servir a qualquer imperativo racional ou
sentimental, ao que quer que seja fora de si mesma e de sua crua
cor. Como coloca Julio Cortázar, na orelha de capa da edição em
espanhol de La Poesía pura – referindo-se às “condiciones esenciales
de toda poesía”, extraídas do “irreiterable testamento” de Baudelaire
–, a Poesia pura reclama um total “desgajamiento del compromiso
ético (no de la ética) y del didáctico (no de la verdad)”. E Henriqueta
Lisboa aduz:
Seja como for, libertada das formas elementares da paixão (que não
são formas criadoras), do juízo afeito a discernir o real do irreal
(impróprio à beatitude poética), da cópia servil das coisas, da lógica
prosaica, da eloqüência oratória, do anedótico, do didático, purificada,
em suma, organicamente, a poesia atinge seu mais elevado estágio,
um mundo de perspectivas extraordinárias, onde impera a intuição
(LISBOA, 1955, p. 81).
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Para arrematarmos as explicações sobre este ponto, dê-se
novamente a palavra a Brémond:
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Ser útil, inteligente, ser raciocínio
Não tinha onde tirar nada disso
Eu era espaço vazio puro (PATROCÍNIO, 2001, p. 82)
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Poesia pura: quase-silêncio
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de “sentido”; a irredutibilidade “ao conhecimento racional”; a eclosão
misteriosa de uma “experiência que compromete o mais íntimo” do
ser; a transmissão inconsciente “não” das “ideias ou os sentimentos do
poeta, mas” do “estado de alma que o faz poeta”; e o fato de a Poesia
ser associada a um místico “chamado do interior” (BRÉMOND,
1947, p. 168). Versaremos sobre os três primeiros.
Inefabilidade
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de quaisquer regras que a queiram identificar, catalogar, manietar
ou pretensamente elucidar. O que representa, até certo ponto, a
inutilidade da própria Teoria Literária em sua tentativa de querer
explicar o poético, ou, noutras palavras: a bem dizer, a tarefa da
Teoria Literária é inexaurível, pois não há o que nem como falar
sobre a Poesia fora da própria Poesia. Um poema não vale tanto
pelo pouco que se diz sobre ele, mas pelo muito que jamais se
conseguirá dizer. A inefabilidade é, por conseguinte, como que
o inestimável atestado de plena liberdade da Poesia diante das
contingências, e é da inefabilidade que decorrem os demais
predicados inerentes à noção de Poesia pura. Noutro excerto
cardeal, cujo caput já foi trazido à colação, Brémond se refere com
mais ênfase a essa propriedade de inefabilidade e à sua importância
para a visão do fenômeno poético:
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O “falatório” de Stela do Patrocínio está indubitavelmente
pleno desse inefável que é caracterizador de “Todo poema” – todo
verdadeiro poema dotado de “irradiación” –, aquela beleza simples
que, sem poder ser explicada – pois constitui “una realidad
misteriosa” –, faz com que imediatamente se reconheça o texto
patrociniano como texto poético:
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assonante entre o pronome singular “comigo” e o adjetivo plural
“sozinhos”. Seja como for, é possível afirmar que se trata de textos
poéticos não apesar de não se saber por que são poéticos, mas,
também, justamente porque não se sabe a exata razão de serem
poéticos.
Porém, seria ocioso continuar a mencionar mais versos
para classificar a inefabilidade naquilo que é por natureza
inefável. Avançando na proposta do Abade Brémond, podemos
mencionar o apelo não somente ao interesse crítico, mas outrossim
ao interesse estético que a obra patrociniana encerra, ou seja, a
inequívoca capacidade que essa obra tem de, partindo de sua
“realidad misteriosa”, inspirar o surgimento de outras obras de arte.
É desse modo que, embora ainda seja incipiente a crítica sobre
a autora e relativamente recente a divulgação de seu discurso, já
são numerosos os poemas, as peças teatrais, as performances, as
películas e as canções (inclusive uma ópera), que surgem como
testemunho do impacto da “irradiación” da poética de Stela do
Patrocínio, de sua “acción transformante y unificante” – o inefável,
sem poder ser aclarado, tem não obstante a capacidade de
influenciar, dialogar com o outro e de transformá-lo, unificando
emissão e recepção. Pois, se a melhor forma de se falar sobre o
poema é o próprio poema, outra forma apreciável é o despertar
da resposta de outro poema. Ou de como se detectar a efêmera
flor azul do inefável: a novalisiana germinação espiritual.
De maneira que, expressando poeticamente o inexprimível,
Stela do Patrocínio conseguiu irradiar, desde o hospício
e o momento em que se encontrava, uma verdadeira ação
transformante capaz de unificar novas realizações artísticas em
torno de seu “falatório”.
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Independência de “sentido” e irredutibilidade ao “conhecimento
racional”
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afirmar ser um poema independente do sentido não significa
necessariamente que não contenha sentido, mas que pode contê-lo
ou não. Brémond é categórico a respeito:
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refletia a própria “inutilidade” social da pessoa de Stela, como
usuária/interna da instituição manicomial, situação da qual tinha
perfeita consciência:
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usufruídos. O apreciador tem que se tornar dono da obra, de
parte dela ou, pelo menos, dono do direito de contemplá-la. Mas
a Poesia pura, por não ser um “produto” na acepção funcional do
termo – por não ter sentido a ser auferido –, não tem dono: uma
vez posta em circulação, é livremente usufruída a qualquer tempo
e em qualquer lugar por qualquer um que a queira e possa anotar
ou recordar.
Por conseguinte, tal qual sua poética, Stela passou sua
vida, como louca ou como poetisa, feito um ente ausente de
qualquer sentido lógico ou produtivo dentro do panorama social
e mesmo do panorama literário utilitário. Pôde, assim, dedicar-se
à Poesia em tempo integral e com total despreocupação com a
própria circunstância de estar fazendo Poesia, que não era por ela
entendida como um “produto” que servisse para qualquer desígnio,
porém como um ser-em-si, “só história que eu tô contando,
anedota” (PATROCÍNIO, 2001, p. 153). Sem escolas, sem grupos,
sem movimentos que a impressionassem, também nada havia que
a direcionasse às novíssimas formas de expressão do momento.
Ela criou sua poética sozinha, sem que estivesse sob a égide de
quaisquer outros poetas, totalmente liberta – caso único? – da
chamada “angústia da influência” explanada por Harold Bloom.
Não se constituía, portanto, um “sentido” a orientá-la, que não
fosse o da própria expressão pura. Isso se reflete em seus versos,
que o mais das vezes prescindiam da tirania de um “sentido” a
conduzi-los.
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Mundo dos bichos e dos animais
Os animais: dinossauro camelo onça
Tigre leão dinossauro
Macacos girafas tartarugas
Reino dos bichos e dos animais é o meu nome
Jardim Zoológico Quinta da Boa Vista
Um verdadeiro jardim zoológico
Quinta da Boa Vista (PATROCÍNIO, 2001, p. 118)
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prosa, que tiene allí su objeto natural. Impura, es una palabra, la
elocuencia – entendiendo por ella no sólo el arte de hablar mucho
para no decir nada, sino el arte de hablar para decir alguna cosa
(BRÉMOND, 1947, p. 19).
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E agora continuei velha
Me transformei novamente numa velha
Voltei ao que eu era, uma velha (PATROCÍNIO, 2001, p. 80)
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Conclusão: “Falo, falo, falo, falo o tempo todo”
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(embora não necessariamente em pecúnia ou espécie), o que, em
princípio, parece ir contra toda a leveza e desprendimento que se
esperaria de um poeta.
Stela do Patrocínio, por seu lado, também se pode definir
como grande “poeta apesar de si mesma”, embora de modo
muito diferente de Valéry. Longe de ser uma poetisa de cátedra
– nem mera diletante –, Stela não compunha sua obra para
ser reconhecida como tal. Importante frisar que Stela nunca se
preocupou em ser poeta, com a publicação de um livro ou mesmo
com a feitura e registro de um poema. Ela simplesmente é poeta
e viveu como poeta de forma imediata e contínua – “Falo, falo,
falo, falo o tempo todo” (PATROCÍNIO, 2001, p. 142) – e desse
modo conseguiu atingir a naturalidade e a maturidade plenas em
seu discurso poético. Logo, o “falatório” de Stela se dissocia do
padrão do poeta como figura produtora de discursos de consumo
para a sociedade moderna e contemporânea, está faminta por
manufaturas de lazer sentimental e de ostentação erudita. Em
lugar de se amoldar a um nicho estreito de cultura centrípeta,
em que as funções poéticas são absorvidas e se adequam às forças
mercadológicas ou acadêmicas, a poética patrociniana instaura um
contradiscurso resistente, centrífugo e explosivo, de afirmação da
subjetividade em face da massificação. Neste século XXI, época
do acomodamento do mainstream e do nivelamento em horizonte
da divulgação textual fanhosa nas redes sociais, a Poesia necessita
de um arejamento para resgatar sua face combativa.
Talvez um discurso contundente como o de Stela de
Patrocínio, oriundo da marginália do manicômio, possa agora
auxiliar nessa recuperação das essências da pureza transgressora
e libertária da Poesia, em seu embate eterno para revelar o mais
profundo do ser humano.
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Referências
PATROCÍNIO, Stela do. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome.
Org. e apr. Viviane Mosé. Rio de Janeiro: Azougue, 2001.
70 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
POIESIS, LETRAMENTO DOMINANTE/
LETRAMENTO VERNACULAR:
DIÁLOGO INEVITÁVEL
Introdução
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visuais e/ou verbais, que rompem e, fragmentariamente,
disseminam-se, desorganizando o espaço geométrico da cidade-
conceito, instituída pela ordem, pelo racional, pelo burocrático,
quebrando uma suposta hegemonia cultural e social. Esse espaço
simbólico ressignificado constitui-se um espaço em que os sujeitos
produzem sentidos que os constituem.
Nessa perspectiva, a cidade “se vê entregue a movimentos
contraditórios que se compensam e se combinam fora do poder
panóptico” (DE CERTEAU, 1990, p. 174), movimentos revelados
por imagens visuais e/ou verbais inscrições/dizeres/pichações
em muros, paredes, postes e placas de trânsito que manifestam
a inscrição dos sujeitos em situações que eles experienciam
no espaço e no tempo em que estão envolvidos. Constituem
operações culturais que remetem a uma outra dimensão espacial,
que inscrevem os sujeitos numa experiência “poética e mítica do
espaço” (DE CERTEAU, 1990).
Didi-Huberman (2015) compreende a imagem como algo
muito mais do que uma simples forma ou desenho no espaço
visível, constitui “uma marca, um sulco, um rasto visual do tempo
que ela quis tocar [...] (p. 316). E são estas marcas, estes rastos
visuais, imagens visuais e/ou verbais que “ardem” em muros,
paredes, postes, portões e outros e assinalam a forte presença de
uma representação imagística no emaranhado espaço urbano.
Tais imagens, aqui objeto de análise, as chamadas pichações,
dizeres ou inscrições que proliferam pela cidade, constituem, a
nosso ver, práticas do espaço, ou ainda, numa visão coerente com as
formulações de De Certeau, que propõe analisar os procedimentos
de tais práticas no sistema urbanístico, significam
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se reforçaram em uma proliferação ilegitimada, combinadas
segundo táticas ilegíveis mas estáveis que constituem regulações
cotidianas e criatividades subreptícias (DE CERTEAU, 1990,
p. 175).
A pichação2 consiste num gênero discursivo que circula
num contexto de letramento vernacular não legitimado
institucionalmente. É considerado um gênero “menor” nas
instituições legitimadas, entre elas a instituição escolar, e tanto
esse tipo de produção como o sujeito-autor são discriminados,
invisibilizados. Inserido numa cultura popular reprimida e
ignorada por instâncias maiores, num sistema de relações de
poder, busca o sujeito-autor, por meio do trabalho com e sobre
a linguagem, a criação de enunciados com o objetivo de marcar/
denunciar sua posição em seu meio social.
O espaço geométrico é regulado por normas que instituem
procedimentos de controle e vigilância sobre esse tipo de produção
que se dissemina por vários pontos e com diferentes formas de
manifestações. Procedimentos são adotados para “controlar”
essas formas de manifestação. Isso significa dizer que a produção
de sentido “é, ao mesmo tempo, controlada, selecionada e
redistribuída por certo número de procedimentos que tem por
função conjurar seus perigos, dominar seu acontecimento aleatório
[...]” (FOUCAULT, 2010, p.9). As pichações representam formas
de inscrições que subvertem esse espaço burocrático.
Nosso olhar estará, então, voltado para esse espaço
caracterizado pelo entrecruzamento de tramas, pela polivalência
e pela heterogeneidade, por paradoxos e contradições, em que o
conflito é intrinsecamente constitutivo. Um espaço privilegiado
2
Entende-se, aqui, a pichação como forma de expressão escrita, materializada em textos
verbais inscritos em muros, paredes e postes nas ruas das cidades.
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para as identificações culturais emergentes que demandam uma
leitura complexa que ultrapassa o binarismo, sobretudo na relação
sujeito/mundo/língua(gem) e no trabalho de sujeitos na e pela
linguagem. Isso significa olhar para uma dimensão espacial que
demanda do mundo uma releitura em que estão envolvidos/
imersos os sujeitos em suas experiências cotidianas. Com esse
olhar, buscaremos “exumar formas sub-reptícias que são assumidas
pela criatividade dispersa, tática e bricoladora dos grupos ou dos
indivíduos presos [...] nas redes da ‘vigilância’” (DE CERTEAU,
idem, p. 41), ou seja, “imagens verbais”, textos produzidos nas
práticas sociais de letramentos vernaculares. Por letramentos
vernaculares queremos dizer aqueles caracterizados por uma
relativa liberdade do controle formal institucional e que podem
dar origem a novas práticas improvisadas e espontâneas.
Nesse sentido, significa dizer que nosso olhar estará
debruçado sobre as práticas de/sobre linguagem não valorizadas
socialmente e, portanto, pouco investigadas, que revelem a
singularidade ou indícios de autoria de sujeitos falantes, em
seu “trabalho” com e na sua própria língua. Constituirão objeto
de investigação e análise neste trabalho as pichações, dizeres
aleatórios inscritos em uma escrita vernacular (marginalizada e
invisibilizada socialmente) em muros, paredes e postes no espaço
urbano. Sob a ótica de um “fazer” com a língua, observar-se-á o
“trabalho” de sujeitos com e sobre a linguagem, a exploração da
palavra e da escrita num “jogo estético”, ou seja, a exploração e
uso de mecanismos e recursos linguísticos que podem indiciar um
processo de metaforização na “maneira de dizer” a realidade social.
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Os muros “falam”: a poiesis, um fazer-poético nas “falas
desorganizadas”
75 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
FIGURA 3. Escrita vernacular FIGURA 4. Escrita vernacular
Fonte: Pinterest
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A inscrição acima é um exemplo que desvela um sujeito em
uma prática de letramento situado que aponta para uma escrita
vernacular, ou seja, o uso transgressivo da língua na “violação” do
código: na perda da integridade da palavra “também” [na inscrição
TBM], na forma gráfica dos sintagmas verbais BIXA/PIXA e
que produz de imediato o efeito de sentido de “perturbação” de
uma ordem instituída na ruptura de uma “doxa” - língua padrão
e, ao mesmo tempo, pelo efeito sonoro provocado pelo fonema
fricativo alveolar-palatal/x/, marcado pelo grafema x, em “bixa/
pixa” e também pela alternância dos fonemas consonantais
oclusivos bilabiais p/b, que reforçam o efeito melódico na cadeia
do significante.
Ao manipular com a língua/na língua/sua língua, o sujeito
provoca no leitor um certo sobressalto, instigando-o a olhar mais
detidamente para a construção frasal. A articulação operada
pelo marcador discursivo TBM (também) nos desloca para
uma dimensão de um enunciado. Não se trata de um simples
torneio com formas linguísticas – o sujeito cria um enunciado,
um dizer que tem um sentido em sua posição de mundo: um
sujeito que por sua condição social é alvo de preconceito e,
portanto, marginalizado, busca marcar sua posição – incluir-se
na categoria dos pichadores para, supostamente, ser reconhecido
como alguém que deixa sua marca; quer pertencer a um grupo
social que se impõe; que se significa trabalhando a língua como
acontecimento, produzindo sentidos, o que significa dizer que
os sujeitos são obrigados a tomar posição, a manifestar-se para
marcar-se de forma ativa.
Dessa forma, a perspectiva de um ‘fazer para’, na busca de
uma visibilização no espaço social por meio da escrita, impõe ao
sujeito a mobilização de mecanismos de seu arsenal cognitivo –
77 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
‘como fazer’, num movimento de criação e reelaboração na “arte
de fazer”.
Esse “trabalho” do sujeito na/com a exploração das
potencialidades da linguagem, da palavra e da escrita indicia uma
“fabricação”, ou seja, um “produzir que dá forma, um fabricar
que engendra, uma criação que organiza, ordena e instaura uma
realidade nova, um ser” (NUNES, 1989, p.20), numa arte de
fazer que caracteriza uma poiésis. Do grego poien, poiesi é uma
expressão originária do verbo ποιέω (poiéo= fabricar, executar,
confeccionar, criar), que se traduz por fabricação, confecção,
preparação, produção, criação).
Essa ressignificação, que enfatiza um processo de criação,
abre caminho para a visibilização de um letramento vernacular
- pichações ou formulações, flagrantes no espaço urbano - que
singularizam sujeitos em ação, experienciando o real como
mundo e, construindo um modo próprio de se fazerem donos da
linguagem, “poetizam” a sua forma de ver e de se ver no mundo.
FIGURA 6.
Fonte: Pinterest
78 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
num jogo em que o sujeito se vale da materialidade linguística
como recurso para a constituição de uma poiesis. Estruturado a
partir de uma escrita híbrida, que revela “uma rasura na linguagem
instituída” (WALTY; VALESKA, 2010), pelo deslocamento e
condensação de elementos heterogêneos, o sujeito explora a cadeia
do significante, extrai expressividade da combinação de palavras
“justapostas numa colagem” que apresentam semelhança fônica
e mórfica (AULAS/JAULAS).
O sujeito trabalha com uma estratégia discursiva que
materializa um enunciado por meio de uma frase “sem texto”, ou
seja, por uma aforização primária (MAINGUENEAU, 2014)
constituída de um slogan, com uma frase nominal + AULAS
/ - JAULAS, buscando defender uma posição em torno de um
tema social.
Na dimensão semântico-discursiva, esse arranjo dos
constituintes morfológico/fônico tem como efeito a polarização
por meio da construção de uma metonímia, a partir dos referentes
“aulas / jaulas”, com uma manobra em que coloca em cena
situações controversas: AULAS está para EDUCAÇÃO e
JAULAS para PRESÍDIO.
O enunciado é constituído de uma materialidade linguística
que registra um acontecimento discursivo; materialidade e
acontecimento são inseparáveis e se fundem para produzir
efeitos de sentido. O enunciado se concretiza por meio de um
jogo opositivo marcado pelo uso dos pronomes intensificadores
+/- na relação sintática com os sintagmas AULAS / JAULAS,
respectivamente.
Inferimos uma proposição implícita, subentendida,
evidenciado pelo confronto do enunciado com um dos possíveis
79 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
contextos da enunciação, desencadeada pela pergunta “Por que
o sujeito diz o que diz?” Pode-se subentender que diz o que
diz, em um tom reivindicatório implícito num verbo potencial:
“O que quero ao enunciar tal enunciado?” / “Quero + aulas e -
jaulas”. O uso dos pronomes desvela um conteúdo avaliativo com
valor de intensidade, apontando a posição defendida pelo que é
positivo e o que é negativo. Atuam os pronomes na dimensão
ilocutória do discurso, com a finalidade de transformar uma
parte do enunciado em foco da enunciação, introduzindo um
juízo de valor: o investimento em educação deve ter maior peso
que o investimento em presídios, o que pode suscitar o seguinte
desdobramento – quanto maior for o investimento em educação,
menor será a necessidade de construção de presídios.
A nosso ver, num movimento em que o eixo norteador é
a poiesis como processo criador no uso da língua, numa operação
estética em que “uma prática cotidiana abre um espaço próprio
numa ordem imposta, exatamente como faz o gesto poético que
dobra ao seu desejo o uso da língua comum num reemprego
transformante” (DE CERTEAU, 1996, p.339), é possível
correlacionar práticas de linguagem em que se aproximam,
ideologicamente, formas de escrita tidas como diferentes,
circunscritas a lugares sociais distintos, a grupos sociais distintos.
A título de exemplo, comparemos o jogo jogado pelo
sujeito-autor do texto pichado em muro com o modo de
fazer, de produzir uma poiesis, de um sujeito-autor consagrado
institucionalmente, amplamente divulgado em livros, entre eles,
os livros escolares.
O “fazer poético” do enunciado pichado, “fabricado”
numa escrita vernacular, híbrida, invisibilizada e estigmatizada
socialmente, opera no mesmo nível de complexidade no
80 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
processo de elaboração de um “fazer poético”, inscrito e aceito
institucionalmente no cânone literário3:
81 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
que a função representativa ou referencial da linguagem suscitará
de uma maneira ou de outra aspectos emocionais que desvelam
uma apreciação valorativa na forma de ver o mundo.
Fonte: Pinterest
82 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
da construção de uma mensagem sobre o processo de criação em
si, Jakobson (1969) define como função poética da linguagem ou
ainda, como uma função estética: causa uma reação pelo arranjo,
pela “fabricação” da mensagem.
Estética tem origem no termo grego aisthetiké e significa
o que é perceptível pelos sentidos, tudo o que pode ser percebido
como agradável e belo pelos sentidos. A percepção da realidade
se dá de forma subjetiva, carregada pelas emoções e atitudes do
enunciador diante do fenômeno apreendido. Nessa perspectiva,
a dimensão poética se constitui esteticamente por meio de
procedimentos que ultrapassam o uso automático dos significados
previsíveis, mas supõem a emergência de um sentido diferente.
Fonte: Pinterest
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sim o produto de uma relação que cada indivíduo, cada locutor
ou interlocutor constrói a seu modo (FAITA apud CRUVINEL,
2001, p.190).”
Por meio do sintagma verbal “QUERO SABER”, na
1ª pessoa, em forma de uma interrogativa indireta, o “eu” faz
um questionamento, uma reflexão pessoal, em tom de lamento:
queixa-se para si mesmo, manifestando seu estarrecimento/
sua incredulidade pela condição em que se encontra. Na cena
enunciativa, o sujeito recorre aos procedimentos semânticos da
discursivização, interligados, da figurativização e da tematização,
conforme concepções de Fiorin (2000), ancoradas na teoria
semiótica de A.J. Greimas, no campo da semântica discursiva.
Nessa linha, para Fiorin, a figurativização traduz-se
por figuras, expressões do mundo natural, do mundo físico,
como substantivos concretos, verbos que apontem ações físicas
e adjetivos que marcam características físicas, enquanto a
tematização refere-se a traços semânticos ligados ao mundo
abstrato, que categorizam, estruturam a realidade apreendida
pelos sentidos. As figuras, articuladas no interior de um texto
estruturado, ao serem organizadas numa sequência, traduzem os
temas subentendidos ao texto.
No enunciado, ao se interrogar, o sujeito tece uma sequência
encadeada no plano sintático-discursivo por um percurso
figurativo constituído a partir dos substantivos concretos “ônibus” /
“ponto” e dos verbos “pegar” / “chegar”, organizados nos sintagmas
“que ônibus eu peguei” (conforme expressão popular “pegar ou
tomar o ônibus”), “pra chegar nesse ponto”.
A ordenação sequencial lógica, no plano referencial, indica
o deslocamento de alguém que embarca em um veículo (ônibus),
num determinado ponto e chega a seu destino em outro ponto. Os
traços semânticos visuais produzem um efeito de realidade obtido
84 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
pelo uso da iconização, pois leva ao reconhecimento de figuras do
mundo, dando concretude a um micro relato do enunciador. Mas
o sintagma adjetival “que eu tô hoje”, modificador do substantivo
“ponto”, rompe com um enunciado puramente referencial,
remetendo a um nível de abstração, a uma leitura que revela o
estado emocional do enunciador: faz uma autorreflexão sobre
os rumos tomados em sua vida, em que as figuras concretizam,
sensorialmente, perplexidade, frustração e desapontamento,
sentimentos que o afligem e o angustiam em sua vida presente.
O sujeito-pichador materializa seu questionamento sobre
sua relação com o mundo exterior e. metaforicamente, recorrendo
aos equívocos, aos desvios e às ambiguidades inerentes à língua,
produz um enunciado fruto da criatividade da figurativização e
seus efeitos estéticos, por meio da manobra de recursos linguístico-
discursivos.
A título de exemplo, em outro contexto sócio-histórico,
sob diferentes perspectivas, outros sujeitos/renomados escritores
produzem enunciados que buscam refletir sobre a realidade,
buscando construir interpretações acerca de temas sociais que os
instigam no mundo. Para isso, mobilizam, igualmente, os recursos
expressivos da figurativização no processo de construção poética,
na materialização de uma poiesis:
85 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
2.Política literária
O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.
Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz.
(Carlos Drummond de Andrade, 1977:6)
Constituem operações e procedimentos que singularizam
uma busca do estético, da aisthesis, uma busca daquilo que é
perceptível pelos sentidos; de tudo o que pode ser percebido
como agradável e belo pelos sentidos. Para os gregos, sobretudo
para Aristóteles, a arte significa uma forma de sublimação
do espírito humano, que se manifestaria por meio do prazer
estético, externado pelo ato criador, a poiesis. Esta se produz por
meio de mecanismos estéticos (aisthesis), que deve ter um efeito
transformador, libertador (katarsis).
Tomando por base o enfoque da tradição clássica sobre
o conceito de estética e arte, segundo o ponto de vista da teoria
estética da recepção, Jauss (2002) reelabora as três categorias
poíesis, aisthesis e kátharsis para o processo da fruição estética,
considerando sua função comunicativa:
86 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
Nesse sentido, na poiesis, o prazer se manifesta no domínio
da produção, que pode impelir o indivíduo a uma dimensão do
mundo interior ou a ficar no mundo real em busca da criação
artística; a aisthesis é concebida pelo prazer conquistado por meio
de uma “experiência estética receptiva”, em que as expectativas
do indivíduo leitor se modificam ou se expandem; a katharsis se
configura a partir de uma efetiva modificação das concepções de
mundo e de vida do leitor diante de uma obra de arte.
No âmbito da linguagem verbal, a literatura configura esse
processo criativo que se dá a partir da percepção de um fenômeno
da realidade, da expressão de emoções e ideias, em que se observa
a manifestação de uma função estética, contempladora, que instiga
um esforço de interpretação do mundo. A linguagem literária
constitui um arranjo singular no processo de construção de
sentidos, capaz de “tornar o mundo compreensível transformando
a sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas
intensamente humanas” (COSSON, 2006, p.17).
Nessa direção, num trabalho que envolve a língua, os
sujeitos e seu mundo social, os sujeitos-pichadores buscam
ocupar o espaço da invisibilidade no espaço urbano. Aí produzem
textos que expressam uma concepção da realidade em que
buscam significar e ao mesmo tempo também se significarem e
se constituírem intersubjetivamente por meio de suas posições
discursivas.
Conhecedores competentes das regras e mecanismos de sua
língua, os sujeitos imiscuem-se no texto do outro e descontroem,
dessacralizam enunciados dominantes no senso comum, no
universo do saber popular, explorando a camada de superfície dos
enunciados por meio de um jogo de palavras.
87 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
FIGURA 9. “O fazer poético”
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Fig.1 – Em terra de cego → [quem tem um olho] é rei”
↓ ↓ ↓
Sintagma adv. Sintagma adj. SN
↓
“melhor se fazer de mudo”
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Ao subverter o provérbio, inscreve sua posição valorativa
num discurso ressignificado, evoca um acontecimento que já foi
objeto de discurso e ressuscita “no espírito dos ouvintes o discurso
no qual este acontecimento era alegado, com as ‘deformações’
que a situação presente introduz e da qual pode tirar partido”
(PÊCHEUX, 1969, p.77). A deformação ocorre na ruptura da
correlação semântica “cego ↔ olho” por uma contradição em “cego
≠ mudo”. Na perspectiva do ato produtor, “a poiesis enquanto co-
produção con-duz do velamento para o desvelamento” (CASTRO,
2004, p. 8), movimento que desfaz a aparente transgressão quando
projetada para o nível enunciativo.
O deslocamento indiciado na oposição semântica “cego ≠
mudo”, que aponta para o nonsense, gera um efeito polissêmico:
cego deixa de ser um deficiente visual, mas aquele que “não quer se
intrometer no que vê”. Diante disso, para um interlocutor que se
supõe exigente, crítico, o “melhor” é a gente “se fazer de mudo” (se
fingir de mudo) para evitar desentendimento, conflito, desavença.
Valendo-se do paradoxo como procedimento estético, com
o objetivo de produzir no leitor um efeito catártico, de forma
impactante, inscreve assim o sujeito, o “diferente”, um diferente
que se acentua na geração de novos sentidos, uma poiesis, em que
mostra uma capacidade criativa e a força de uma escrita literária.
Um modo de produzir uma poiesis pode traduzir um jogo estético
em que o sujeito mobiliza, centraliza esse jogo sobre o ‘como fazer’,
criando uma ambiência semântica.
Comparemos o jogo jogado pelos sujeitos-autores dos
textos pichados em muro com o modo de fazer, de produzir
uma poiesis de sujeitos-autores consagrados institucionalmente,
em que o “fazer poético” se instaura a partir de uma quebra de
expectativa, pela imprevisibilidade, construído por meio da ruptura
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do esperado, como se pode perceber nos poemas abaixo:
1.Poeminha do Contra,
Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!
(Mário Quintana)
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Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
(Luís Vaz de Camões)
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poiesis como ato criador, processo desencadeador da elaboração
estética de uma realidade simbólica e ficcional na constituição
de textos literários.
Produções escritas em muros, paredes, postes – pichações
- no espaço urbano, universo heterogeneamente constituído,
caracterizadas por uma escrita vernacular, são estigmatizadas
e marginalizadas e por isso invisibilizadas para os padrões
legitimados e institucionalizados pelos letramentos dominantes.
A análise de alguns desses enunciados/pichações, nesse trabalho,
possibilitou-nos ver nessas produções escritas as táticas utilizadas
pelos sujeitos pichadores no “trabalho” de um fazer poético de
dizer o mundo, os modos de um “fazer poético”:
Fonte: Pinterest
93 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
A posição defendida por um letramento dominante impõe
uma verdade ou doxa baseada na premissa de uma modalidade
de língua, uma língua padrão, institucionalizada e legitimada por
um segmento social privilegiado, que imprime uma relação de
poder com a prescrição de uma língua única, homogênea, estável e
transparente. A referência é a língua usada por escritores tomados
como clássicos nas literaturas portuguesa e brasileira, versados na
arte de escrever “em bom português”. O ensino da língua sofre a
influência do sistema escolar, que, por sua vez, sofre a interferência
do sistema social.
Na perspectiva de Foucault (2010), a produção do discurso
é selecionada de tal forma que impõe mecanismos para a
apropriação dos saberes e a escola se coloca como o lugar em que
se demarca a competência para o domínio desses saberes; define
por meio de um ensino de língua uma minoria autorizada a receber
os conhecimentos, excluindo uma grande maioria.
Tal visão, premeditada, despreza a ideia de heterogeneidade,
de diferença e de modalidades, constitutiva de toda e qualquer
língua. Com isso, as atividades de letramentos vernaculares,
práticas de escrita não reguladas, controladas ou sistematizadas
por instituições ou organizações sociais, mas que têm sua
origem na vida cotidiana, nas culturas locais, são marginalizadas,
desvalorizadas, invisibilizadas e a escrita vernacular concebida
como desvio ou erro é estigmatizada. A consequência de tal
posicionamento é o apagamento de subjetividades e indivíduos
rotulados como incompetentes em sua própria língua materna
e incompetentes, sobretudo, para a apropriação de construções
simbólicas do universo literário como um processo de interpretação
do real e como forma de intervenção ativa no mundo. Promove-se
um apagamento do ler e do criar um saber literário e se incute a
94 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
noção de que o domínio de uma escrita literária é para uns poucos
privilegiados.
A “verdadeira” compreensão do ato agonístico, “dramatizado”
pelo confronto/conflito entre elementos oposicionais e
antagonísticos (num cenário acentuadamente híbrido em que se
digladiam saberes, ideologicamente postos em confronto/conflito
e ideologicamente materializados pelas diferenças linguísticas),
passa por um olhar que leve em conta a composição e justaposição
de saberes que, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que se
antagonizam se aproximam, se relacionam (cf. BHABHA, 1998).
Num processo de ressignificação, é necessário entender
que, ao invés da negação e antagonismo no conflito, constitutivo
do heterogêneo, entre “verdades” que se põem e se opõem,
impõe-se um olhar que requer um processo de desconstrução
de posições (SOUZA, 2004). Esse olhar pode tornar visível o
hibridismo constitutivo de saberes tanto numa posição dominante,
privilegiada institucionalmente pela/na instituição escolar/saber
instituído por uma variedade linguística legitimada quanto na
construção de contra-saberes numa posição não dominante,
desprivilegiada institucionalmente/saber não legitimado marcado
por variedade linguística estigmatizada.
Nessa perspectiva, as reflexões teórico-metodológicas aqui
desenvolvidas, num movimento dialógico entre os conceitos
de letramento e poiesis, tendo como objeto de análise dizeres
aleatórios, ou seja, pichações em muros, paredes e postes,
possibilitaram a construção de um fazer discursivo que faz
vir à tona os “silêncios articulados” (BHABHA, 1998), numa
perspectiva crítica, o que pode contribuir para o desvelamento
de posições num processo permeado por elementos linguísticos
e culturais contraditórios e conflitantes.
95 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
No espaço escolar, em que irrompem conflitos e contradições
no confronto de representações de linguagem, torna-se
fundamental redimensionar a ideia de diferença, o que pressupõe
instaurar um processo que considere os valores culturais aí em jogo,
negociando-se criticamente com a “diferença do outro”.
A noção de “poiesis” como ato criador traz como
pressuposto a ideia de processo criador e pode constituir uma
estratégia linguístico-discursiva que rompe com uma “verdade”
única, que produz e institui conflitos e contradições, no que diz
respeito ao ensino de língua materna para falantes dessa língua,
na produção de saberes pela leitura e pela escrita. Nesse sentido,
pode traduzir um movimento que produza uma desconstrução
de posições, com o deslocamento do olhar para outros saberes em
circulação, constituídos socialmente.
Esse deslocamento do olhar para uma posição que vê
a “poiesis” como um fazer poético, um fazer herdado, mas
também construído socialmente por sujeitos, contribui para
uma apropriação literária do mundo, criando condições para que
falantes naturais se vejam/se sintam competentes no trabalho
com e pela sua própria língua. Por meio da ludicidade nas
interações linguísticas, como elemento motivador e impulsionador,
inscritos no espaço simbólico da leitura literária e da escrita
literária, os sujeitos podem construir experiências estéticas que
desvelem, visibilizem um potencial criativo, que possibilite o
desenvolvimento da força de uma escrita e de uma leitura literária,
constituidora de sujeitos autores.
Nesse sentido, dentro desse aporte teórico, a produção
de uma “poiesis”, concebida como uma experiência estética e
cognitiva capaz de transformar e enriquecer a realidade pessoal
do sujeito, na dimensão literária do contexto de letramento, seja
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oriunda dos letramentos vernaculares ou dos letramentos de
prestígio, embora constituindo diferentes modos de enunciação,
guarda procedimentos comuns de elaboração, caracteriza os
procedimentos geradores e capacitadores da apropriação do
mundo da escrita literária pelos leitores, em todos níveis, seja
professor, seja aluno, sejam sobretudo os indivíduos inseridos
precariamente nos círculos da educação formal (CHIARETTO,
2003, p.235).
Constitui o trabalho de sujeitos com e sobre a linguagem,
específico do fazer poético, que indicia a exploração das
potencialidades da linguagem num “jogo estético”. Ainda, segundo
Chiaretto (2003, p.236), esse letramento literário contemplaria
dois âmbitos primordiais, a sociedade e o indivíduo, ou seja,
diante dos mecanismos ordenados para organizar de forma
pública e previsível a sociedade como um todo homogêneo, há a
imprevisibilidade do sujeito, isto é, sua carga subjetiva conformada
em um caos de experiências, sentimentos, pensamentos e desejos.
Em última instância, o letramento (e o letramento
literário) deve se constituir sob uma perspectiva de uma ação
pedagógica que busque, exaustivamente, a inserção dos alunos no
domínio do letramento literário, por meio do contato cada vez
mais acentuado com diferentes textos literários, fazendo ver que
tais textos não compreendem somente uma outra forma do uso
social da escrita, mas também a possibilidade de um real domínio
dessa escrita por meio de uma educação literária.
(In)conclusões
97 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
paradoxalmente estabelecidas num universo social e discursivo
constitutivamente heterogêneo como o espaço escolar, buscamos,
com as reflexões aqui instauradas, desnaturalizar posições
arraigadas e fomentar uma proposta de ação educativa norteada
para colocar em diálogo os textos/enunciados/discursos das
diversas culturas locais, vernaculares, com aqueles das culturas
valorizadas, canônicos, ou seja, “transformar patrimônios
em fratrimônios” (ROJO, 2009, p.115), e com isso formar,
efetivamente sujeitos “que sejam multiculturais em sua cultura e
poliglotas em sua língua (ROJO, 2009, p.115).
Ao ampliar-se o conceito de “poesia”, do fenômeno
poético como um motor de elicitação de um processo básico de
conhecimento, que, no dizer de Osakabe (2005), dá-se, como
qualquer acontecimento se dá, amplia-se a ressignificação para a
visibilização de outras produções culturais, em diferentes gêneros
discursivos, que singularizam os sujeitos na construção de um
modo próprio de se fazerem donos da linguagem. A inserção
nas interações literárias pode contribuir para um processo de
construção de subjetividades e possibilitar que os sujeitos, por
meio da negociação de saberes, sejam capazes de se moverem
com independência.
Sob esse viés, esperamos, com esse trabalho, oferecer
subsídios para sujeitos professores em formação do curso de
licenciatura em Língua Portuguesa, na área de ensino de língua
e literatura, bem como para os cursos de formação continuada de
professores. Com isso, buscamos contribuir para o desenvolvimento
das áreas de estudos de letramento literário e para o ensino da
literatura como uma prática significativa para professores e alunos,
visando à constituição de uma educação literária.
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Referências
99 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
DE CERTEAU, MICHEL A invenção do cotidiano. Trad. Ephraim
Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1990.
100 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
NUNES, BENEDITO. Passagem para o poético: filosofia e poder em
Heideger. São Paulo: Ática, 1989, p.20.
101 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
WALTY, IVETE LARA, OLGA VALESKA, O. Por uma leitura
literária do mundo. In: MARINHO, MARILDES. e CARVALHO,
GILCINEI TEODORO (Org). Cultura Escrita e Letramento, Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2010.
102 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
O FATOR SURPRESA NOS CONTOS DE
CONCEIÇÃO EVARISTO: “INGUITINHA”,
“TEIAS DE ARANHA” E “OS PÉS DO
DANÇARINO”
RESUMO: O trabalho tem como objetivo refletir sobre o fator surpresa em três
dos doze contos que englobam a obra Histórias de leves enganos e parecenças (2016),
de Conceição Evaristo: “Inguitinha”, “Teias de aranha” e “Os pés do dançarino”,
fundamentando-se em autores e estudiosos da área como Júlio Cortázar (1993),
Fábio Lucas (1983) e Ricardo Piglia (2004). O realismo animista, introduzido por
Pepetela em 1989 na obra Lueji, relata aspectos culturais africanos muito diferentes dos
elementos encontrados na cultura ocidental e, nos contos estudados, é possível perceber
esses aspectos realizando o fator surpresa nos contos.
PALAVRAS-CHAVE: Fator Surpresa; Conceição Evaristo; Realismo Animista.
ABSTRACT: The purpose of this paper is to reflect on the surprise factor in three of the
twelve short stories that encompass the work “Histórias de leves enganos e parecenças”
(2016), by Conceição Evaristo: “Inguitinha”, “Teias de aranha” and “Os pés do
dançarino ”, based on authors and scholars in the field such as Júlio Cortázar (1993),
Fábio Lucas (1983) and Ricardo Piglia (2004). The animist realism, introduced by
Pepetela in 1989 in the literary work Lueji, describes African cultural aspects very
different from the elements found in Western culture and, in the stories studied, it is
possible to perceive these aspects performing the surprise factor in the stories.
KEYWORDS: Surprise Factor; Conceição Evaristo; Animist Realism.
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Estadual
de Londrina. E-mail: gabrielymenegheti@gmail.com.
2
Docente do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas e do Programa de Pós-
Graduação em Letras, Universidade Estadual de Londrina. E-mail: mcdegodoy@uol.
com.br.
103 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
Introdução
104 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
No conjunto da obra de Conceição Evaristo, este livro
de contos mantém os temas explorados em outras narrativas,
como denúncia social, a força e dificuldade das mães solteiras,
a religiosidade, todavia insere uma particularidade: o realismo
animista que, “através de uma concepção animista da realidade e
de mundo, as estórias africanas buscam ressignificar os modos de
vida dos antepassados e ampliar as possibilidades de significação
da relação entre a tradição e a modernidade” (GARUBA apud
WITTMANN, 2012, p. 36). A alma se mistura com a natureza;
a morte não é a separação iminente entre as famílias, enfim, para
Rodrigues (2018), o animista está relacionado ao espírito como
forma de perpetuidade da vida, apesar de ser mais complexo
que isso. Mas, o importante aqui é saber que a forma com que
Conceição escreve estes contos intriga e revela fatores surpresas
em praticamente todas as histórias.
Os contos analisados, neste trabalho, são três: “Inguitinha”,
“Teias de aranha” e “Os pés do dançarino”, não havendo possibilidades
de explorar todos os doze contos da obra pela intensidade do
material em questão. O interesse não é apenas identificar o
momento do fator surpresa, mas também compreender como a
autora chegou a esse ponto, quais as relações entre a história e
o fator surpresa e o significado dessas representações. Cortázar
(1993) alega que o contista sabe que não tem muito espaço para
que toda sua história seja relatada de forma explícita, portanto
deve utilizar de histórias sobrepostas, ou seja,
105 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
Cortázar identifica algumas características do conto, pois
entende essa forma de difícil classificação. Relaciona o romance
ao filme, por ser mais extenso, ter uma amplitude de cenários e
poder se dividir conforme os personagens vão se desdobrando, e
o conto à fotografia pela brevidade, personagens reduzidas e que
se desenrolam conforme o fato específico que as englobam,
106 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
secreto, narrado de um modo elíptico e fragmentário. O efeito
surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na
superfície” (2004, p. 90), identificando as razões e inserindo um
fechamento para a história que, como o próprio nome já diz, é uma
surpresa, algo que foge à lógica. Piglia (2004) ainda afirma que
esse efeito surpresa ocorrido no final do conto é uma propriedade
do conto clássico em que duas histórias se passam:
107 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
e dos que ainda não nasceram estão no mesmo estágio, transitando
simultaneamente. Neste trabalho, a relação entre o passado e o
presente tem uma força muito grande, quando se trata de uma
abordagem animista, e o conhecimento da mulher mais velha é
transmitido conforme lhe fora passado anteriormente, através da
crença da força daqueles que já não estão vivos, mas ainda exercem
papel fundamental em toda sociedade. Rodrigues, ao referir-se a
Garuba, assim define realismo animista:
.
Animismo, palavra que vem do latim animu, quer dizer espírito,
vida. Harry Garuba (2014) irá considerar que o animismo é
um modo de pensar a vida, sem os dualismos do modernismo.
Sendo assim, as fronteiras entre natureza e sociedade, mundo
dos objetos e dos sujeitos, mundo material e o de significados
agenciados e simbólicos são menos confiáveis do que o projeto
modernista havia decretado” (GARUBA, 2014, p. 2). Portanto,
para o filósofo, o animismo seria uma lógica que subverte
binarismos e “desestabiliza a hierarquia da ciência sobre a magia e
da narrativa secularista da modernidade através da reabsorção do
tempo histórico nas matrizes do mito e do mágico” (GARUBA,
2012, p. 42 apud RODRIGUES, 2018, p. 29).
108 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
contos de Evaristo, tendo como base teórica alguns estudiosos
dessas vertentes, como a dissertação de Tábita Wittmann (2012):
109 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
constante de seu nome levava a um caminho de mágoa, aflição,
angústia, mesmo tentando não transparecer tais sentimentos:
“Moça, qual é a sua graça? Inguitinha Minuzinha Paredes –
respondia ela – como se nem percebesse a insolência do ato”
(EVARISTO, 2017, p. 21, sem grifo no original). Ela sabia que
essa pergunta era carregada de maldade, intimidação e humilhação,
sendo sempre perseguida. Mas, o que ninguém sabia era de uma
habilidade, a força do sobrenome Paredes, o que não era levado
em consideração quando toda essa importunação ocorria.
A moça sofre tanto com os insultos pejorativos acometidos
em vida que, quando isso se torna insuportável, ela quebra todos
os estereótipos até então lançados sobre ela e sobre a própria
semântica gramatical. A finalização -inha, além de ser denominada
como sufixo diminutivo (CEGALLA, 2010, p. 113) e trazer a
percepção de algo pequeno, frágil, reduzido de algo, ainda cria
um ambiente onde Inguitinha padece até o momento em que
seu outro sobrenome se revela maior que todos os preconceitos
nela depositados. No momento em que a moça levanta uma
parede absolutamente do zero, por meio de uma força interior, ela
representa a quebra do comum, daquele que é sofredor e continua
sofrendo, e daquele que é o valentão e continua provocando, para
implantar o inusitado. É possível observar que, desde o início do
conto, a construção linguística contribui para a dicotomia frágil/
forte e instaura indícios de uma transformação.
Nesse instante, podemos compreender o fator surpresa:
Inguitinha levanta uma parede que, ergue-se, cai e afasta a
personagem que a importuna; todavia, não machuca o antagonista,
nem Inguitinha se revela cruel numa tentativa de fazê-lo sofrer
como ela sofrera desde sempre, o que aparece é o modo com que
a personagem consegue fazer para que as impertinências parem
de acontecer. Piglia (2004) exemplifica essa teoria utilizando
110 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
um conto de Edgar Allan Poe e é possível transportá-la para
os contos de Conceição. A história 1 refere-se ao relato da
situação inconveniente que Inguitinha passa por causa de seu
nome; a história 2 descreve um relato secreto, a força e poder
de Inguitinha, ao levantar uma parede subitamente. As histórias
1 e 2, entrelaçadas, são indicadas pelo próprio sobrenome da
personagem, embora apenas no final o efeito surpresa apareça.
A instauração do clima inicial, para que o efeito surpresa
rompa os limites do texto, dá-se desde o parágrafo em que a
narradora começa a apresentar o nome de Inguitinha e afirma
que todos “achavam que apelido era” (EVARISTO, 2017, p. 21),
configurando o primeiro passo da demonstração de fragilidade
da menina. “Era só Inguitinha sair de casa, mal dava os primeiros
passos, vinha um, dois, depois passavam outros mais a perguntar:
Moça qual é a sua graça?” (EVARISTO, 2017, p. 21), aos poucos
a narrativa vai criando mais tensão com o cansaço por aturar a
insistência de tanta zombaria, pois Inguitinha sabia que essas
pessoas não perguntavam sobre seu nome porque queriam
conhecê-la, mas porque queriam escutar de sua boca o nome de
que todos debochavam.
“Mas um dia, Inguitinha deveras cansada de tanta zombaria
resolveu reagir” (EVARISTO, 2017, p. 21), a partir daí a narrativa
começa a indicar que a história 1 resultou em tamanha opressão
que não haveria mais jeito de conter os sentimentos e Inguitinha
resolve revidar as palavras duras que ouviu durante toda sua vida.
A resposta de praxe foi tomada por uma reação que ninguém
imaginava, porém estava a todo momento declarada em seu nome
“Paredes”. Inicia-se, então, a história 2, o relato secreto que a moça
guardara para si mesma e que representa a força de sua identidade,
não mais a fraqueza que todos achavam que conhecia. O momento
em que a parede é erguida, por meio da força de Inguitinha, e o
111 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
ofensor é surpreendido e confrontado torna-se o ápice do fator
surpresa, ao desconcertar tanto aquele que a estava provocando,
como também o leitor, pois em nenhum momento explícito
durante a narrativa da história 1 é conduzido para esta situação.
O modo de narrar dos contos cria, no campo da organização
narrativa, o efeito surpresa que, relido no contexto de produção
da literatura de Conceição Evaristo e da afro-brasilidade, remete
à força de resistência do oprimido contra o opressor de forma
inesperada. Há o pressuposto, construído a partir do olhar do
outro, de que Inguitinha é frágil. De certa forma, o nome mantém
a dicotomia fragilidade/força. A zombaria, advinda de outros
que imaginam estar diante do subjugado, é destruída pela força
inesperada. O acontecimento inusitado revisto no campo mais
amplo da produção afro torna-se imagem representativa da força
contra a opressão.
O mesmo acontece no conto “Teias de aranha”, numa
família em que a mãe, sozinha, precisa cuidar de todos os filhos;
à noite, os que chegam mais cedo pegam redes para dormir,
enquanto os demais ficam no chão. O mais novo, sem destreza,
chora amargamente e a mãe, cansada do dia, pede ao mais velho
que ceda a sua rede e durma no chão. Nessa cena, a mistura entre
sonho e realidade traz a imagem das teias de aranha: “Todas as
noites, aranhas teciam fios, dos fios a rede para acalentar o corpo
sofrido do maiorzinho” (EVARISTO, 2017, p. 22). Acatar as
ordens da mãe torna-se uma obrigação, mesmo porque o mais
novo, bastante insistente em sua vontade, chora até que o mais
velho ceda sua rede, “E não adiantava nada os maiores chamarem
o caçulinha para se aninhar na rede com qualquer um deles.
Quanto mais tentavam consolá-lo, mais ele se aprofundava em
sua intenção. Queria uma rede só para ele” (EVARISTO, 2017, p.
22). Para Piglia (2004), sobre o entrelaçamento das histórias, diz:
112 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
Cada uma das duas histórias é contada de modo distinto.
Trabalhar com duas histórias significa trabalhar com dois
sistemas diferentes de causalidade. Os mesmos acontecimentos
entram simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas.
Os elementos essenciais de um conto têm dupla função e são
empregados de maneira diferente em cada uma das duas histórias.
Os pontos de interseção são o fundamento da construção
(PIGLIA, 2004, p. 90).
113 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
natureza de armadilha. Essa significação torna-se mais concreta
à medida que o leitor se aproxima da história 2, contada a partir
do ponto de vista do filho mais velho que precisa ceder a rede ao
caçula, já que ele não consegue chegar antes dos maiores ao lugar
de proteção. Entre a amargura e a compreensão da necessidade de
proteger o irmão mais novo, o mais velho cria seu próprio campo
de proteção e resistência, no limiar entre sonho e realidade: “Mas
um dia, um sonho. Acho que um sonho, nem ele sabia. Todas as
noites, aranhas teciam fios, dos fios a rede para acalentar o corpo
sofrido do maiorzinho”. (Evaristo, 2017, p. 22). Essa narrativa,
em diálogo com a anterior, representa a importância da tomada
de consciência da força e a necessidade da criação de barreiras de
proteção, desta vez, na coletividade.
Embora os contos de Conceição remetam a representações
cotidianas - “Nada de choro, nada de vela nada de fita amarela”
(EVARISTO, 2017, p. 22) - como o momento de dormir dos
meninos em “Teias de aranha”, revelam significações mais
profundas. Inguitinha configura uma moça aparentemente
desamparada que mostra sua grandiosa força interna; o menino
mais velho, dentre os irmãos, simboliza a fraternal proteção para
com seu irmão mais novo, quando fica em um lugar desconfortável
para dormir, mesmo não sabendo se haverá uma compensação
por este amparo. Dessa maneira, podemos entender que não são
narrativas simples e corriqueiras, mas a reprodução da compreensão
ampla das vivências, conforme o termo “escrevivência” da autora,
114 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
partilhadas por pessoas conhecedoras da mesma cultura. Para
Cortázar (1993), a notabilidade de um conto deve ser baseada
naquilo que se vê e vive:
115 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
e as anciãs apoiaram-no e ele foi se especializando em vários
ritmos até ganhar uma bolsa de estudos. Foi sucesso em muitos
lugares, principalmente em sua cidade. Certo dia, quando voltou
à sua cidade natal, havia uma grande festa lhe esperando. Ele
se apresentou, foi aclamado com muitas lágrimas de emoção e,
ao descer do palco, avistou a mais velha de todas as anciãs: sua
avó. Além dela, outras também lhe esperavam de braços abertos.
Davenir passou reto, mesmo lembrando que não teria chegado tão
longe como dançarino se não fosse a ajuda delas. De repente ele
foi tomado por uma dor estranha nas pernas, um amolecimento
e o sumiço de suas partes inferiores.
116 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
Durante a primeira parte, é possível identificar alguns
elementos da história 1 que apontam para o quanto a família o
ajudou, embora não haja citação direta da presença das anciãs: “A
família, adivinhando para ele um futuro profissional, enfrentou
todos os comentários jocosos e colocou o menino em aulas de
balé” (EVARISTO, 2017, p. 41). Todo apoio e enfrentamento da
sociedade para que Davenir se torne um bailarino profissional
demonstra o esforço exterior para que o moço perceba as
circunstâncias e seja grato, mas, pouco depois, nessa mesma
primeira parte, a narrativa já desenha um final trágico, uma
oposição àquilo que se espera de reconhecimento: “E com tanto
sucesso merecido, o moço esqueceu alguns sentimentos e ganhou
outros não tão aconselháveis” (EVARISTO, 2017, p. 42). Neste
instante, fica sugerido que na história 2 está caracterizada a
ingratidão.
No desenrolar da narrativa, há a chegada do moço à cidade
e como sua apresentação se realizou com esplendor. Essa parte
mostra todas as benfeitorias que as anciãs realizaram para Davenir
e explicita o sentimento de ingratidão que o acomete. Logo a
construção da história 2 começa a aparecer: “E, na vaidade do
momento, Davenir nem prestou atenção em três mulheres, as
mais velhas da cidade [...]. Passou por elas, sem sinal de qualquer
reconhecimento” (EVARISTO, 2017, p. 43). Os traços peculiares
da história 2 constroem o desaparecimento dos pés do moço
através de um sentimento de angústia e abatimento físico, pois
perde seus membros inferiores. Enfim, chega um recado da Bisa,
a mais velha das velhas, afirmando que o efeito surpresa do conto
fora arquitetado pela falta de humildade do rapaz.
Davenir, mesmo sabendo que não teria as oportunidades
se não fosse a ajuda de sua família e insistência das anciãs, passou
117 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
reto por elas e não lhes deu a devida atenção, um gracejo, um
agradecimento, ou mesmo uma certa representação de afeto de tão
grande que era sua arrogância e vaidade. O texto traça a história
2, nas entrelinhas, a todo momento afirmando a habilidade de
Davenir com seus pés e, ao mesmo tempo, a dependência pelas
anciãs, revelando, ao final, o fator surpresa inesperado pelo leitor.
Piglia (2004) alega que o conto é produzido para externalizar uma
narrativa oculta aos poucos, de forma com que o leitor só perceba
através do fator surpresa que ela estava ali o tempo todo e faça,
com isso, uma análise de seu próprio conhecimento.
118 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
do que nos anteriores, a cultura afro apresenta-se na figura da
sabedoria da anciã e do necessário reconhecimento de sua força
na comunidade. As consequências desse não-reconhecimento
são sentidas pelo protagonista que, castigado, perde sua força, seu
poder de dançar, porque perde os pés.
Inguitinha reconhece o poder do seu sobrenome e vence
o opressor; o irmão mais velho em “Teias de aranha” constrói
sua força para proteger a família e vê seu papel na coletividade;
Davenir, conhecedor de sua força advinda da comunidade, sai do
lugar de origem, coloca-se em movimento, tanto no sentido de
mudar como de dançar. Seus pés, simbolicamente, levaram-no
a tornar-se vencedor, mas ao esquecer a origem da sua força na
coletividade, é castigado pelas ancestrais. No contexto mais amplo
da produção afro-brasileira, a ancestralidade (sabedoria da mais
velha e das magias do passado) e o poder do coletivo para vencer
a opressão e ganhar espaço estão representados nos três contos.
A inter-relação cuidadosa entre duas histórias não só prende o
leitor, criando a atmosfera para o efeito surpresa, como também
engendra significações literárias mais amplas, relacionadas às lutas
e às resistências representadas pelas personagens negras, relidas
no contexto da produção afro-brasileira.
Considerações Finais
119 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
“Todo conto perdurável é como a semente onde dorme a árvore
gigante. Essa árvore crescerá em nós, inscreverá seu nome em
nossa memória” (CORTÁZAR, 1993, p. 155) e assim são os
contos de Conceição Evaristo, embrenham no leitor sensações
de pertencimento às histórias narradas. “Inguitinha”, “Teias de
aranha” e “Os pés do dançarino” são apenas três dos doze contos
da obra da autora que apresentam fatores surpresas de formidáveis
leituras e análises e de diferentes concepções. Essa relação de
conflito eterno entre o ser humano e a vida já é um dos princípios
para o conto.
120 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
que lhe faziam mal. Não é possível afirmar uma característica
concreta do realismo animista nesta história, mas é possível
assegurar que não foi surpresa nenhuma para a menina o
acontecimento e, portanto, ela já carregava consigo a consciência
de toda essa força. O conto alega que o nome “graça”, sempre
utilizado nas frases para importunar Inguitinha, vem do uso
habitual dos mais velhos, o que leva à presença da memória e da
ancestralidade.
Em “Teias de aranha”, o menino mais velho precisa ser
persistente no amparo a seus irmãos que, por mais que pareça um
evento cotidiano em que os mais velhos protegem os mais novos,
o realismo animista apresentado através das teias de aranha que
o amparam remete à noção de que ele não está sozinho e a sua
resistência nesses momentos de dificuldades serão amparadas. Ele
é confortado à noite pelos fios tecidos pelas aranhas, isso porque
ele protege os seus e esse papel de protetor que ele exerce por sua
família é uma tradição cultural que, aparentemente, vem sendo
praticada por esta família por gerações. Aqui ele é recompensado
pelo seu sofrimento através de uma manifestação simbólica em
que os fios tecidos pelas aranhas se entrelaçam à força que ele
carrega para poder amparar os mais fracos. Esse aspecto insólito
se faz presente juntamente com uma tradição descendente dos
antepassados, que Wittmann (2012) afirma ser um dos traços que
compõem o realismo animista.
Por fim, no terceiro conto, Davenir carece de aprender
a ser mais humilde para que seu papel na coletividade seja
desempenhado com dedicação, pois ele não é apenas um bom
dançarino, ele representa uma sociedade que fora erguida na luta
contra o preconceito através da ajuda das anciãs. O rapaz perde
suas possibilidades como dançarino por um período indeterminado
121 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
por não se dar conta dos seus deveres e funções para com a
sociedade em que nasceu. As anciãs fazem parte claramente das
características do realismo animista e o insólito que se apresenta
neste conto faz referência ao poder e à importância que elas têm
para dar continuidade de forma íntegra à comunidade, assim como
afirma Rodrigues (2018), concentrando-se no tempo histórico e
transferindo a sabedoria dos antepassados para o presente.
Portanto, nestes três contos, a autora utiliza da ancestralidade,
da tradição cultural transmitida através das gerações e do insólito
para compor o entrelaçamento entre a história 1 e a história 2
que Piglia (2004) afirma ser importante para construir o conto
moderno. O insólito, sempre presente na história 2, realça as
composições culturais afrodescendentes que podem se alinhar
com algumas particularidades herdadas do realismo animista.
Referências
122 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
EVARISTO, Conceição. Conceição Evaristo por Conceição Evaristo.
Literafro: o portal da literatura afro-brasileira. UFMG: 2009. Disponível
em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-
Evaristo. Acesso em: 09 set. 2020.
PIGLIA, Ricardo. Formas breves. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
123 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
EDUCAÇÃO SOCIAL EM LONDRINA:
PERSPECTIVAS DOS EDUCADORES
SOCIAIS SOBRE SUA PROFISSÃO1
1
Este artigo é fruto da investigação da primeira autora orientada pela segunda por ocasião
de seu pós-doutorado no programa de Pós-graduação em Educação da Universidade
Estadual de Maringá em 2019. Fizemos a opção pelo uso da expressão educador social
por questões de fluência na leitura, no entanto, reconhecemos a luta pela linguagem que
inclua todos os gêneros na expressão escrita.
2
Docente da Universidade Estadual de Londrina (UEL/PR)
3
Docente da Universidade Estadual de Maringá (UEM/PR)
125 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
Introdução
Se estivesse claro para nós que foi aprendendo que percebemos ser
possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância
das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas
salas de aula das escolas, nos pátios dos recreios, em que variados
gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se
cruzam cheios de significação. Há uma natureza testemunhal nos
espaços tão lamentavelmente relegados das escolas (Freire, 1996).
126 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
Com este texto, temos o objetivo de apresentar aspectos
gerais da Educação Social em Londrina e analisar suas
características, principalmente, a partir da consulta a Educadores
Sociais desta região. A estrutura argumentativa trata dos conceitos
de Educação Social, da oferta de Educação Social em Londrina
e dos resultados da pesquisa de campo, precedidos da explicação
metodológica e subdivididos em aspectos gerais dos participantes
e apresentação das ideias e discussões dos conteúdos trazidos por
eles.
127 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
a Educação Escolar que se desenvolve, predominantemente, por
meio do ensino, em instituições escolares consideradas próprias
e que deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social.
Compreendemos a Educação Social como complementar
à Educação Escolar e o texto da lei contempla o sentido da
Educação Social ao afirmar que a Escola tem por finalidade
preparar os sujeitos para o exercício da cidadania, e também
reconhece como Educação as diferentes atividades de formação
que acontecem em todos os contextos da sociedade.
Nestes espaços se desenvolvem práticas educativas que
partem da realidade do grupo, daquilo que é significativo para as
pessoas que participam destes espaços. São práticas comprometidas
com questões importantes para o próprio grupo; fruto de vivências
sociais que reforçam o contato coletivo e estabelecem vínculos
e laços de afetividade. Evidencia-se a vivência de atividades
lúdicas e provocativas que permitem o movimento, a expansão, o
improviso e a troca de experiências. Neste sentido, a organização
dos processos educativos desenvolvidos nos projetos de Educação
Social é pautada por princípios que são percebidos nas atividades
pedagógicas dos Educadores Sociais e, consequentemente,
revelam sua própria formação (em serviço) e profissionalização
que acontece não descolada da sua atuação.
Defendemos, neste trabalho, que o acesso e a permanência
na Escola Formal se constitui como uma das dimensões do
processo de emancipação do ser humano, considerando o exposto
na lei, bem como as exigências de uma sociedade letrada. É
sobretudo neste sentido que compreendemos a Educação Social
como complementar à Educação Escolar, conforme afirma Nuñez
(2003, p.30):
128 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
[...] la educación social trabaja para que la asistencia de niños
y de adolescentes a las escuelas pueda sostenerse, realizarse y
mantenerse en el tiempo com las mejores posibilidades. Pero
para que ello sea posible, compete a la educación social construir
um vínculo educativo entre el agente y el sujeto de la educación,
esto es, trabajar para que –a partir de la confianza que el agente
deposita en el sujeto, en sus posibilidades y en su responsabilidad–,
se pueda producir un nuevo encuentro del sujeto con el mundo,
abriéndose para aquél um lugar nuevo.
129 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
Esta autora também defende que a Educação Social é
um termo utilizado pela União Europeia, cujo objetivo é de
caracterizá-la como um conjunto de práticas de ensinos diferentes,
é também possibilitar que essas práticas se tornem visíveis, ou seja,
existente no campo da Educação e na sociedade. A Educação
Social se constitui como uma forma de contribuir com a formação
e emancipação do sujeito e surge como possibilidade de promoção,
reconhecimento e defesa dos direitos humanos. É, portanto, a ação
baseada no reconhecimento e amparo dos direitos humanos, uma
intervenção educativa que age na vida e no contexto dos sujeitos,
conforme afirma Nuñez (1999, p. 26):
130 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
A Oferta de Educação Social em Londrina
4
Fonte: «estimativa_dou_2019.xls». ibge.gov.br. Consultado em 28 de agosto de 2019
131 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
No entanto, em 1975, houve uma grande geada, que atingiu todo o
norte do Paraná, arruinando as plantações de café. Alguns iniciaram
novamente o trabalho com café, enquanto outros investiram em
outros negócios. Londrina perdeu o posto de grande produtor de
café, mas já tinha desenvolvido um crescimento urbano razoável
com indústrias, universidades e prestação de serviços.
Quanto à composição étnica da cidade, os grupos
imigratórios de Londrina reconhecidos são italianos, portugueses,
japoneses, alemães e espanhóis. Outros grupos considerados
menores são os árabes, judeus, britânicos, chineses, argentinos,
holandeses, poloneses, ucranianos, tchecos e húngaros. Portanto,
a literatura, ao falar da etnia da cidade, reconhece os grupos de
outros países e, particularmente, as pessoas de outras regiões e
estados do país que se deslocaram são silenciadas, especialmente
os da região norte e nordeste.
Os dados refletem um desafio vivenciado na cidade que
diz respeito a uma cultura considerada majoritária e dominante
e o silenciamento de uma cultura considerada inferior, que, no
entanto, constitui parcela significativa dos trabalhadores de
Londrina, inclusive de pessoas que precisam dos serviços públicos
muitas vezes negligenciados pelo estado e procurados em projetos
socioeducativos.
Com o tema da religião não é diferente, a literatura afirma
que em Londrina encontram-se templos de diversos credos e
religiões, entre eles: budistas, muçulmanos, católicos, evangélicos e
espíritas (XAVIER, 2003). A mesma visibilidade não observamos
nos grupos de matriz africana, que são muitos na cidade (SILVA;
LANZA, 2019). Nesta mesma perspectiva da etnia, percebemos
certo silenciamento na literatura que se traduz na forma como
estes grupos são tratados e assistidos pelo poder público no
132 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
contexto trabalhado. Por outro lado, também percebemos um
processo de resistência destes grupos que insistem em ganhar
visibilidade através da organização de associações e movimentos
sociais, que na sua dinâmica são potenciais campos de ação da
Educação Social, a exemplo das oficinas de capoeira e outras
atividades de matriz africana.
Quanto à Educação Formal, Londrina se destaca pela
elevada e qualificada oferta de serviços nesta área, sendo referência
regional e ponto de convergência para a Educação Básica e
Superior. A Rede Municipal de Educação possui 120 unidades
(74 escolas urbanas, 13 escolas rurais, 33 Centros Municipais de
Educação Infantil, 52 Centros de Educação Infantil, 41 Centros
de Educação de Jovens e Adultos, 07 Escolas de Educação
Especial). A Rede Estadual é composta por 73 escolas e colégios.
O Ensino Superior oferta mais de 120 cursos de graduação e
240 de pós-graduação, incluindo mestrados e doutorados. Apesar
desta configuração, ainda merecem destaque e atenção os índices
que apontamos a seguir:
133 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
em agosto de 2018 demonstram que, do total de 46.984 crianças
e adolescentes em idade escolar com algum registro nesse sistema
nos últimos 5 anos, 8.285, ou seja 17,63%, possuem no campo
de identificação a informação “não estuda” (LONDRINA, 2018,
p. 37).
A Trilha Metodológica
5
No relatório da pesquisa, elencamos entidades e instituições de Londrina que ofertam
diferentes projetos com recursos e responsabilidade do poder público, de ONGs, iniciativa
privada e filantrópicas.
134 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
Os locais consultados foram: banco de periódicos, dissertações
e teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES), Google Acadêmico, Portal Scientific
Electronic Library Online (Scielo); portal eletrônico da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
(ANPEd) e Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e
Tecnologia (IBICT) (p. 21).
135 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
Bauli (2018). Priorizamos o atendimento das demandas locais
dos sujeitos envolvidos no envio e retorno do questionário em
Londrina. Decidimos retirar o caráter obrigatório de algumas
perguntas e o critério de que apenas Educadores Sociais o
respondessem, o que resultou no aumento do número de respostas
que identificamos como significativas para o que queríamos
saber. Ainda assim, os questionários foram chegando lentamente.
Um terceiro procedimento foi o de esclarecer as dúvidas que os
sujeitos nos mandavam, o que foi feito em encontros presenciais
que acabaram se caracterizando como entrevistas com anotação
em diário de campo. Mas também trilhamos este caminho pelas
redes sociais em ambiente privado .
Em síntese, na coleta dos dados fizemos pesquisa
documental, entrevista com gestores e coordenadores com o
objetivo de analisar a história e a política desta área nesta região
nos últimos anos, levantamento via internet das instituições que
ofertam esta modalidade educativa e respectivos serviços; e a
identificação dos Educadores Sociais que nelas atuam usando
recurso de questionário, entrevista, observação e registro em
diário de campo.
136 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
trabalham em Londrina. Quanto à função que desempenham ou
já desempenharam, são 12 Educadores Sociais, 3 Orientadores
Sociais, 1 Pedagogo, 2 Assistentes Sociais, 5 Gestores Pedagógicos,
4 Gestores Administrativos, 1 Diretor de Unidade, 1 Mãe Social, 1
Coordenadora SFV, 1 Professora e Diretora Geral, 1 Conselheira,
1 Pesquisadora, 1 Auxiliar Educativo, 1 Coordenadora e 2
Oficineiros.
Quanto à formação dos sujeitos desta pesquisa, identificamos
4 pessoas com formação em doutorado, 14 com formação em
mestrado, 28 com especialização, 39 pessoas com Ensino Superior,
42 com Ensino Médio e todos com Ensino Fundamental
concluido.
No que se refere à população atendida por estes profissionais,
a maioria são crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade
social, alguns inclusive cumprindo medida socioeducativa. Ao
pedirmos para que estes profissionais marcassem por ordem de
importância as dificuldades encontradas por eles na instituição
que trabalharam ou trabalham atualmente, a dificuldade com o
público-alvo aparece em terceiro lugar, perdendo apenas para
os baixos salários e a violência no local de trabalho. A maioria
dos participantes trabalha ou trabalhou em instiuições não
governamentais (26 pessoas, 72,2 %) e a minoria em instituições
governamentais (11 pessoas, 30,6 %).
Quanto à Formação, quando perguntamos aos sujeitos se
fariam e/ou gostariam de cursar uma graduação em Educação
Social, obtivemos 43 (quarenta e três) respostas e a maioria (29
sujeitos que equivale a 67,4 %) respondeu que sim com as seguintes
justificativas:
137 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
Já tenho formação superior mas gostaria de atuar na área - é
uma área de atuação muito complexa e importante, que carece
de uma formação mais aprofundada - Para aprofundar meus
conhecimentos na área - Para ampliar o conhecimento e qualificar
a atuação que já realizo - Para subsídio em meu trabalho e por
mais conhecimento - Seria um ótimo complemento a minha
área de atuação que é a Educação Física - Por ser relevante
para função que ocupo - Para complementar minha formação e
aperfeiçoar meu trabalho como educadora social - Compreender
com especificidade o perfil e área de atuação deste profissional -
Trabalho na área social e gosto - Ampliação de conhecimento na
área - Porque complementaria minha formação em Serviço Social
- Em todas as áreas que atuo existem aplicações para a Educação
Social: unidades de acolhimento institucional, abordagem de
pessoas em situação de rua, unidades de acolhimento para adultos.
138 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
Considerando os dados apontados nesta pesquisa, nos
referimos ao Educador Social não como uma ocupação e sim
como uma profissão, conforme indica Bauli (2018):
139 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
conhecimentos adquiridos, que possibilita o exercício de uma
atividade, que pode ou não ser a ocupação dessa pessoa. Um
profissional pode, portanto, se ocupar de atividades diferentes
da sua área de formação profissional (p. 46).
140 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
PL 328/2015, e Bauli (2018) alude ao Dicionário da Educação
Profissional para explicar como ocorre a profissionalização de
uma atividade:
141 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
público para a aprovação do Projeto, o que consequentemente
desvaloriza o profissional bem como seu trabalho.
Ao questionarmos o fazer do Educador Social e implicações
com o critério necessário para normatizar e regulamentar a
profissão, esclarecemos que o PL 5.346/2009 propõe como
escolaridade mínima apenas o Ensino Médio, conforme consta em
Parágrafo único: “Fica estabelecido o Ensino Médio como o nível de
escolarização mínima para o exercício desta profissão”. Nestes termos,
nos posicionamos contrários a este PL, e para tanto justificamos
que o Educador Social trabalha com pessoas e com alto grau de
comprexidade, o que exige excelente formação.
Quanto à indagação sobre a formação necessária para a
função de Educação Social, em porcentagem, 46,5 % responderam
“Ensino Superior Específico (Graduação em Educação Social),
26,6 % responderam “Ensino Superior”, 11,6 % responderam
“Ensino Médio Profissionalizante” e 9,3 % “Apenas o Ensino
Médio”. Observamos, nas investigações de Bauli (2018), que vários
editais de seleção no Brasil pedem como critério de formação
somente o Ensino Médio e alguns apenas o Ensino Fundamental.
Com o propósito de compararmos a realidade com aquilo
que prevê a legislação, pedimos que os sujeitos apontassem pelo
menos 3 aspectos positivos da profissão do Educador Social, os
quais responderam:
142 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
ações – ajuda no processo de humanização – tem compromisso
político e compromisso com a mudança social - Ensinar,
orientar e conscientizar as pessoas no processo de aprendizado
– Potencial de transformação. Movimento histórico que busca
a emancipação dos trabalhadores, das pessoas que vivem as
expressões da desigualdade social e econômica - Vínculo, empatia
e a possibilidade de mudar os olhares diante das vulnerabilidades
encontradas e sair dessa condição oportunizando a criança
e adolescente a buscar a realização de seus objetivos de vida
- Propiciar momentos de interação social dentro do bairro,
Interação com as crianças e adolescentes - Ajudar na formação
cidadã de crianças e adolescentes, sendo uma referência positiva
na vida de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade,
sensibilizando-os a se ver como detentores de direitos, deveres e a
escolher o seu próprio caminho - Aprende quando ensina, amor
no que faz, luta por direitos - Contribuição para melhor qualidade
de vida do público atendido - Dinamismo frente ao atendimento
dos educandos - Formação humana dos educandos, Potencializar
os sonhos de melhoria contínua dos educandos - Transformar
o contexto social - trabalho com presidiários, trabalho com
jovens em internação - oportunidade de crescimento pessoal
– Motivação através da experiência; Senso de responsabilidade
social; Interação direta com o público-alvo - Público que atende,
trabalho social, contribuição na vida de outros - Busca conhecer a
realidade social; atua com público e comunidades vulneráveis; tem
por objetivo a promoção da dignidade da pessoa humana; conhece
a rede de serviços da sua comunidade; articula e fomenta a rede
de serviços; colabora para a construção das políticas públicas;
Essencial para a execução de projetos sociais governamentais e
não governamentais - Vínculo mais próximo com os familiares
- Amar seu público, conhecer o contexto que veio esse educando
- Trabalho em equipe - Respeito à realidade.
143 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
supervisão, geralmente em equipes multidisciplinares. Os horários
de trabalho são variados, podendo ser integral, com revezamento
de turno ou períodos determinados.
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profissão 42,6 %, estrutura física 24,2 %, falta de regulamento da
profissão 18,2 %, violência no local de trabalho 15,5, falta de políticas
públicas 15,2 %. Estes dados corroboram o que Bauli (2018) diz
a respeito das atividades a serem desenvolvidas pelos Educadores
Sociais, conforme segue:
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37,1% ganham mais de um salário mínimo, 11,4 % ganham
mais de dois salários mínimos, 11,4 ganham mais de três salários
mínimos e 11,4 % ganham mais de 5 salários mínimos. Aqueles
que indicam os menores salários são justamente os evidenciados
no parágrafo acima.
Observamos no contexto de Londrina (o que não é
muito diferente em outros lugares de onde se localizam os
respondentes) certa contradição com a valorização do fazer
deste profissional, visto que a profissão não é normatizada no
Brasil o que consequentemente dificulta, e muito, o acesso aos
direitos trabalhistas, como salários compatíveis com a função
que desenvolvem, inclusive compatível com o salário dos demais
profissionais, já que trabalham em equipe.
Referente à profissionalização, questionamos os sujeitos
desta pesquisa se achavam importante a existência de uma
associação e/ou sindicato de Educadores Sociais e por quê? A
maioria concorda com a existência de uma entidade e para tanto
justificam o seguinte:
146 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
expressão de uma categoria de trabalhadores minimamente
organizada que criou um órgão para a promoção e defesa dos
seus direitos.
6
VER: http://senalbalondrina.com.br/
147 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
Os dados aqui expostos apontam para a necessidade de
um olhar mais apurado para os desafios vivenciados na Educação
Social que se desenvolve no contexto de Londrina. Tal olhar
é extensivo aos Educadores Sociais enquanto profissionais
da Educação e torna-se apurado à medida que abarca as
problemáticas tanto do processo de atuação, quanto do processo
de formação destes sujeitos.
Em seus estudos desenvolvidos sobre a Educação Social
no Brasil, Natali (2016) identifica três problemáticas que cercam
a área atualmente:
148 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
trilhados para o reconhecimento, a valorização e o respeito destes
trabalhadores.
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de Pedagogia, vem ao longo de mais ou menos uma década criando
espaços de formação e atuação sobre esta temática, usando para
tanto a terminologia “Educação Não Formal”.
Freire (1996) faz considerações sobre os saberes que
julga indispensáveis para a tarefa de educar e diz que “ensinar,
exige rigorosidade metódica”. Para ele, um dos trabalhos da
universidade é fornecer subsídios teóricos para que educadores
e educandos, em diálogo, construam a própria prática educativa.
Tal rigorosidade está relacionada com a capacidade de buscar
maiores aprofundamentos, um comprometimento com os menos
favorecidos por meio de formação e informação permanentes, de
dar encaminhamento às ações educativas nesta área a partir da
reflexão constante.
Durante o tempo desta pesquisa, observamos como o
processo de conscientização da comunidade sobre a importância
desta área de atuação funcionou, pois, ao mesmo tempo que
desenvolvíamos o levantamento de dados, éramos questionados
de diversas maneiras e com diferentes questões sobre a Educação
Social e a atuação do Educador Social, desta forma, esclarecíamos
desde a caracterização do profissional até sua importância e a
necessidade de um olhar mais apurado para esta temática. Deste
processo surgiu, por parte de algumas instituições, o desejo e
convite para que desenvolvêssemos e ofertássemos cursos de
formação para os Educadores em serviço, de forma que fossem
envolvidos também todos os profissionais que trabalham na
instituição.
Quando falamos da necessidade da criação de uma trilha
constituída de muitos caminhos que se bifurcam, observamos
a necessidade, no contexto de Londrina, de uma associação
ou sindicato que agregue os profissionais da Educação Social,
150 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
especialmente o Educador. O sindicato só é possível uma vez
que a profissão esteja normatizada. Mas uma associação pode ser
organizada, se houver interesse e mobilização destes profissionais
e durante esta pesquisa observamos tal interesse.
A falta de normatização também deixa a desejar o
desenvolvimento e a obrigatoriedade de uma formação que
capacite o profissional para a atuação prevista no texto da lei,
conforme consta no CBO. Tal situação, de alguma forma, causa
certo conformismo por parte dos profissionais, que por sua vez
não buscam uma formação de nível superior, ou mesmo uma
pós-graduação, já que estas não são contempladas no plano de
carreira. Mais comprometedor é a possibilidade de uma legislação
ser aprovada com exigência mínima de formação, que não
atende a complexidade do trabalho que os Educadores Sociais
desenvolvem. Por isso, ressaltamos a importância da aprovação
do PL 4921/2019 que prevê o Ensino Superior como formação
mínima para este profissional no Brasil.
Referências
151 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
FREIRE, Paulo. Educadores de rua: uma abordagem crítica. Alternativas
de atendimentos aos meninos de rua. Bogotá: Gente Nueva. 1989.
152 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
RODRIGUES, Patricia Cruzelino. Participação política de meninos
e meninas: expedições de experiências e reflexões em curso. 197 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de
Maringá. Orientadora: Verônica Regina Müller. Maringá, 2014.
153 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA
E EFEITOS DE SENTIDO NA CRÔNICA
“RECEITA”, DE CARLOS DRUMMOND
DE ANDRADE
1
Aluna de doutorado em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina
(UEL).
2
Docente do departamento de Letras da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
155 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
Introdução
156 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
para a análise da crônica, principalmente em relação aos efeitos
de sentido. Trata-se de uma rica obra de Drummond, que oferece
muitas possibilidades de interpretação e apresenta diversos efeitos
de sentido, provenientes dos discursos que circulam nesse espaço
literário.
157 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
A princípio, devemos considerar que o dialogismo diz respeito
à concepção de que a língua e, por conseguinte, os discursos,
resulta da interação verbal que ocorre no nível da enunciação,
isto é, “A interação verbal constitui assim a realidade fundamental
da língua” (BAKHTIN, 2004, p. 123). Portanto, o outro faz-se
necessariamente presente no discurso do sujeito.
Por outro lado, somando-se ao dialogismo, Authier-
Revuz (2004) traz à tona o sujeito de Lacan (1988), para quem
o inconsciente era estruturado como linguagem. Visto que o
sujeito “não sabe o que diz, nem mesmo que fala” (LACAN, 1988,
p. 283), ele então não controla as situações de comunicação de
forma consciente, ou seja, não é, desse modo, a fonte primária
do dizer, pois o que diz é reflexo de seu inconsciente. Assim, o
“eu” constitui-se em relação e a partir do “outro”. Não se trata,
porém, de considerar que o sujeito seja inocente, mesmo porque
a opacidade lhe é necessária. Opera-se com um sujeito que é
perpassado pelo outro, pela historicidade e pelo simbólico, e por
isso mesmo inconsciente.
Ao lado do dialogismo e do sujeito inconsciente, a autora
recupera a noção de interdiscurso, assinalado por Pêcheux (2014,
p. 310) como “um ‘além’ exterior e anterior” ao discurso, um lugar
em que os dizeres filiados às diversas formações discursivas se
chocam e se abrigam. Trata-se de uma instância recalcada no
inconsciente do sujeito, para que possa retornar, como um já-
dito, sob uma memória discursiva, no dizer. É por meio desse
gancho com o pré-construído que Authier-Revuz (2004) trabalha
sua concepção de heterogeneidade mostrada, em contraponto à
heterogeneidade constitutiva.
Por heterogeneidade constitutiva, a autora compreende
que é a partir da alteridade, da relação do sujeito com o outro,
que se constitui o discurso. Essa heterogeneidade atravessa, então,
158 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
o processo discursivo e, ao mesmo tempo, o sujeito responsável
por ele:
159 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
Em relação às aspas, o itálico, o travessão e outros recursos
gráficos que delimitam o outro no dizer do sujeito, essas marcações
estão ligadas ao implícito, necessitando de interpretação para
que a referência ao outro seja compreendida no discurso. Assim,
não há ruptura sintática no caso das aspas, por exemplo, pois
“a expressão aspeada é, ao mesmo tempo usada e mencionada,
dependendo, conseqüentemente, da ‘conotação autonímica’”
(MAINGUENEAU, 1997, p. 89), isto é, dos comentários que
se faz acerca do dito.
Por outro lado, em contraponto à heterogeneidade
mostrada marcada, segundo Authier-Revuz (1998), as formas
de heterogeneidade mostrada não marcada são puramente
interpretativas, visto que não há marcas na superfície textual
que explicitam a heterogeneidade. Trata-se do caso do discurso
indireto livre, da ironia, da alusão, da imitação, entre outras, ou
seja, opera-se com o espaço do implícito e do sugerido, dando
margem à incerteza que cerca a presença do outro no discurso.
160 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
modo, dificulta-se a distinção do limiar entre as vozes que
compõem o enunciado – a do eu e a do outro.
Na análise a seguir, recuperaremos as formas marcadas e
não marcadas da heterogeneidade mostrada na crônica “Receita”,
visando destrinchar – mas não esgotar – as possibilidades de
interpretação do texto, juntamente com os efeitos de sentido
dos discursos ali produzidos. Trata-se de uma rica obra, cuja
materialidade fornece os elementos necessários para a análise
(como a ironia, as aspas, o discurso relatado etc.) e permite, ao
mesmo tempo, a identificação desses elementos por meio dos
quais ressoam efeitos de sentido variados.
161 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
“mantidas a distância”, em um primeiro sentido, como se mantém
afastado um objeto que se olha e que se mostra (AUTHIER-
REVUZ, 2004, p. 218).
162 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
Nesse caso, Authier-Revuz (2004, p. 223) fala de “aspas de
condescendência”, isto é, “o locutor utiliza palavras que atribui
ao interlocutor para ‘colocar-se ao seu alcance’, frequentemente
como uma etapa para conduzi-lo às ‘verdadeiras’ palavras, às
quais o locutor adere plenamente, sem aspas”. Trata-se de aspas
“pedagógicas, de vulgarização”, conforme as palavras da autora,
pois explicam o termo para o interlocutor.
Ainda em relação ao excerto, destacamos o discurso indireto
livre (DIL) em “Blasfêmia?”, uma forma de heterogeneidade
mostrada não marcada. Por outro lado, há outro enunciador
nesse discurso, que responde: “Não era blasfêmia”. Soma-se a
eles o terceiro enunciador em “Do meu canto, no bar, prestando
ouvidos à roda movimentada, aprendi a receita de um drinque”.
Desse modo, a mistura de vozes e posicionamentos pode, a
princípio, causar confusão, mas deve-se lembrar que os discursos
são polifônicos por natureza, assim não há discurso que seja livre
desse aparente caos enunciativo.
Adiantamos que o termo “receita”, título da crônica, é
polissêmica nesse contexto, pois apresenta possibilidades de
sentido como: a) receita culinária, no caso, do drinque; b) receita
médica e c) receita econômica. Isso fica claro no seguinte trecho:
163 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
à receita médica, fatores médicos entram em jogo no discurso
ao longo da crônica (“por que não incluir o quantum satis num
elenco assim prestigioso?”). Por fim, nos termos econômicos da
palavra “receita”, há aspectos políticos e financeiros envolvidos
no decorrer do discurso (“Fórmula internacional. Ótimo. Você
me deu o argumento em favor da caninha. Justamente por ser
internacional, por que não incluir o Brasil nessa jogada?”).
Antes de partirmos para a análise dos aspectos heterogêneos
do trecho acima, é importante considerarmos a condição de
produção da crônica, a fim de entendermos melhor a polissemia
descrita, uma vez que os efeitos de sentido dependem desse
conhecimento. A década de 1970, provável data de publicação
da crônica “Receita”, foi marcada por uma efervescência política
e social: a Guerra Fria, com os EUA e a extinta URSS em busca
da supremacia política e ideológica, estava em pleno vapor,
bem como a tecnologia, que se desenvolvia sobretudo na área
armamentista, uma vez que os arsenais bélicos e nucleares eram
de suma importância nesse período.
De acordo com Barbiero e Chaloult (2001, p. 1), “Marcados
pela crise do Estado providência, os anos 70 assistirão à ascensão
dos liberais não-intervencionistas, denominados de neoliberais”,
cujas ideias principais são a liberdade de mercado e a restrição da
intervenção do Estado na economia dos países. No caso do Brasil,
fomos um dos últimos a “limitar o papel do Estado, desencadear
um programa de privatização, diminuir os gastos públicos,
eliminar a inflação, estabilizar a moeda, aumentar as exportações
e abrir suas economias ao mercado mundial” (BARBIERO;
CHALOULT, 2001, p. 1), visto que nosso país ainda estava sob
o comando dos militares, após o golpe de 1964.
164 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
Portanto, “1/4 de uísque, 1/4 de gim, 1/4 de conhaque,
1/8 de vodca, 1/8 de absinto” pode indicar uma relação com a
receita econômica, pois tais bebidas são originárias de países
economicamente fortalecidos. Além disso, o drinque é composto
por substâncias de teor alcoólico elevado e sabores fortes, como
uma alusão à economia desses países. Deve-se lembrar que a alusão
é um processo interdiscursivo “que ocorre quando se incorporam
temas e/ou figuras de um discurso que vai servir de contexto
(unidade maior) para a compreensão do que foi incorporado”
(FIORIN, 1994, p. 34). Nesse caso, conforme mencionado, a
função da alusão é servir de contexto para que os efeitos de sentido
possam ser apreendidos.
O fato de o uísque ter origem escocesa, o gim ter raízes
holandesas e o conhaque ser proveniente da França (ABB, s/d),
enquanto as bebidas de menor representatividade no drinque
serem de origem russa (no caso da vodca) e suíça (absinto), sugere
que a receita (econômica) do drinque é poderosa. Assim, seria
no mínimo incoerente acrescentar o Brasil a essa receita, pois a
disparidade entre o país e o grupo (Escócia, França, Holanda,
URSS e Suíça) é grande.
Notamos que o contexto político é criticado nesse trecho,
sobretudo quando o enunciador diz: “Não bota 1/4 de caninha
pra reforçar a pauta?”, dando a entender que o Brasil, produtor da
cana que dá origem à caninha/cachaça, não tem representatividade
política no cenário mundial necessária para figurar nesse grupo. Há
também um desejo de ampliar os horizontes e o desenvolvimento
do país, mas, conforme as condições de produção da época, isso
não seria possível tão cedo, por conta do poder dos militares. Desse
modo, a ironia, uma forma de heterogeneidade mostrada não
marcada, faz-se presente nesse trecho. Segundo Brait (1996, p. 96),
165 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
Se a partir dos ensinamentos de Bakhtin é possível pensar todo
discurso como o processo de edificação do sentido, da significação
como interação, a ironia pode ser pensada justamente como o
discurso que coloca em cena, que dramatiza e tematiza esse
aspecto.
166 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
“Dois pontos” ressalta a metaenunciação, o discurso dentro de
outro discurso. Os dois pontos, de fato, são uma característica do
próprio gênero receita culinária, que os utiliza para apresentar os
ingredientes ou o passo a passo de um prato ou bebida. Assim,
segundo Maingueneau (1997, p. 93), a heterogeneidade enunciativa
“pode resultar da construção pelo locutor de níveis distintos no interior
de seu próprio discurso”, qualificando o metadiscurso, resultante das
glosas do enunciado.
Trata-se do fato de o discurso falar sobre si mesmo,
como uma autorreferência. Esse é o caso dos “Dois pontos”,
que se referem ao próprio discurso do enunciador da crônica.
As glosas, comentários que “acompanham o que o locutor
diz” (MAINGUENEAU, 1997, p. 93), por sua vez, podem ser
brevemente apresentadas como explicações sutis e rápidas, a fim
de esclarecer determinado aspecto ou apresentar possíveis efeitos
de sentido do enunciado.
Recuperamos aqui o trecho que apresenta a polissemia
com a receita médica:
167 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
grupo mesmo tendo pouca relevância econômica. Além disso, a
presença do latim sugere o cunho nacionalista do discurso, sendo
a língua de origem do português, e não das nacionalidades dos
demais ingredientes, à exceção do francês.
Mais à frente, em outro trecho da crônica, o gênero é
recuperado quando os enunciadores debatem os efeitos do absinto
no organismo (“Absinto é veneno. Faz um mal danado à gente”,
“Absinto é o que há de mais estomacal. Veja os tratados“, “Produz
exacerbação dolorosa das sensações táteis”, “Absinto é tônico.
Não sou eu quem diz. É a medicina”). Claramente, o debate, em
segundo plano, diz respeito muito mais à política da época do
que à medicina ou à bebida em si, ou seja, recorre-se à primeira
como forma de embasar o argumento por meio do discurso
institucionalizado.
Assim, o cunho político é evidenciado no trecho por
meio do absinto, que era associado aos efeitos alucinógenos
(“Produz exacerbação dolorosa das sensações táteis”). Acentua-
se, então, a ironia do discurso, pois os tratados econômicos
acabavam por provocar dores estomacais no sujeito, como se o
país, metaforicamente, levasse um soco no estômago por ficar à
margem da economia.
Já em relação ao itálico, nesse caso, por ressaltar um
estrangeirismo, demarca-se o outro, ao mesmo tempo em que
é incorporado pelo enunciado, ao contrário das aspas, as quais
se juntam ao próprio enunciado, ao invés de serem por ele
incorporadas. Além do itálico, outra forma de heterogeneidade
que aparece nesse excerto é, novamente, o discurso indireto livre:
“a coisa deve ser legal, não digo que não, mas tenha paciência”
indica um enunciador diferente do que enunciava antes. Isso pode
ser percebido na materialidade linguística por meio da alteração
168 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
do tempo verbal, além da mudança da terceira pessoa do singular
para a primeira do singular.
Outra forma de discurso indireto livre (DIL) é em “Caninha
sim”, uma vez que expõe um pensamento que dá continuidade
à afirmação de que “o opinante não se conformava”. Entretanto,
vale lembrar que ambos os enunciados se encontram em planos
enunciativos diferentes. Isso porque a afirmação “Caninha sim”
denota o pensamento do enunciador que entra em cena na
primeira forma de DIL do trecho analisado, em contestação
quanto à decisão do outro enunciador, ou seja, a decisão de não
incluir a caninha no drinque.
169 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
quando o discurso outro é posto no discurso direto, ou seja, trata-se
de um “fragmento X que aparece – donde o nome de ilhota textual
– como um elemento da mensagem (m) de l tendo ‘resistido’ na
sua literalidade à operação de reformulação-tradução contida na
mensagem M” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 194). Nesse caso,
o fragmento que representa o discurso outro, entre aspas, se faria
presente no discurso do locutor.
Mais adiante, o diálogo continua:
‒ Tirar o absinto?! Não diga besteira. Por que tonerre eu vou tirar
o absinto?! (ANDRADE, 2007, p. 95).
170 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
1990, p. 29), uma vez que o outro é marcado no discurso. Isso fica
bastante evidente no trecho final da crônica:
171 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
frutas cítricas. Por fim, a crônica é encerrada com a tradução da
expressão francesa “tonnerre de Dieu”, isto é, “trovoada de Deus”,
uma recuperação da heterogeneidade que acaba por referenciar
a si mesma.
Algumas considerações
172 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
(2004), esse tipo de heterogeneidade é puramente interpretativo,
necessitando do exterior do discurso para que a alteridade possa
ser recuperada. Aqui, enfatizamos a importância do entendimento
das condições de produção para que a ironia, a alusão, o DIL,
entre outros, pudessem ser percebidos na crônica, pois não se
trata apenas de uma questão de situação ou circunstância, mas
sim de questão que envolve o contexto sócio-histórico e o aspecto
ideológico. Retomando Pêcheux (2014, p. 76), “um discurso é
sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas”.
Ademais, foi relevante notar que as formas de
heterogeneidade enunciativa se entrelaçam, atuando juntas
no discurso; afinal, devemos nos atentar para o fato de que “o
sentido de um texto não está, pois, jamais pronto, uma vez que
ele se produz nas situações dialógicas ilimitadas que constituem
suas leituras possíveis: pensa-se, evidentemente, na leitura plural”
(AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 26) e nos aspectos linguísticos,
históricos e sociais envolvidos na produção/significação/
ressignificação dos dizeres.
Em determinados trechos da crônica, identificamos, a
título de exemplo, que a ironia, uma forma de heterogeneidade
mostrada não marcada, ocorria justamente por conta do itálico,
uma forma de heterogeneidade mostrada e marcada, além da
própria heterogeneidade constitutiva, que se faz presente mesmo
não sendo mostrada no discurso.
Por fim, gostaríamos de esclarecer que não esgotamos as
possibilidades de efeitos de sentido da crônica e as explanações
sobre as formas de heterogeneidade, até mesmo dos trechos que
selecionamos para a análise, uma vez que o espaço não comportaria
todas elas. Além disso, são muitas as possibilidades, portanto
apresentamos as que pudemos identificar e as que julgamos mais
relevantes para esta exposição.
173 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
REFERÊNCIAS
174 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário
de Análise do Discurso. Tradução Fabiana Komesu (Coord.). 3. ed. São
Paulo: Contexto, 2012.
175 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
MONOTONGAÇÃO: UM ESTUDO DE CASO
EM IBIPORÃ SOB A PERSPECTIVA DA
SOCIOLINGUÍSTICA
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (UEL). E-mail:
ismaelgramatica@uol.com.br
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (UEL). E-mail:
patriciamedeiros.cristo@gmail.com
3
Mestrando em Estudos da Linguagem pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos
da Linguagem (UEL). E-mail: jhosuemferreira@hotmail.com
177 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
Considerações iniciais
178 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
Trata-se da Sociolinguística - também conhecida como
Teoria da Variação - enquanto ciência preocupada com a variação/
mudança linguística, buscando entender as relações existentes
entre linguagem e sociedade. Ela se volta para a busca dos fatores
geradores da diversidade e da variação linguística existente na fala
de uma comunidade, ou seja, para o uso da língua na comunidade
de fala. Nessa perspectiva, a língua está sujeita a variações, de
maneira que elimina a concepção de falante ideal e de uma
comunidade linguística homogênea. Ou seja, seu objeto de estudo
é a língua falada, em um contexto social, em uma situação real de
uso. Nesse sentido, Micheletti reitera:
179 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
Portuguesa no Brasil, revelando o verdadeiro comportamento da
língua usada efetivamente pelas pessoas em contexto concreto.
180 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
Vale destacar que o processo relevante neste estudo é a
monotongação, ou seja, o processo fonológico pelo qual um
ditongo é convertido em monotongo. Conforme Câmara Jr., a
monotongação é:
181 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
conversas espontâneas e interação médico-paciente. A autora
afirma que outros estudiosos já haviam investigado o fenômeno:
182 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
uma palavra com ditongo decrescente, particularmente a sequência
/ej/. Ex.: Tudo que não é falso é... O homem que constrói casas
é... Quem nasce no Brasil é... Vendedor de pipocas é... Vendedor
de sorvetes é...
183 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
nas palavras cujo contexto seguinte é a vibrante /r/, houve a
ocorrência de 87% do fenômeno da monotongação. As palavras
cujo contexto posterior é a chiante [ʃ] apresentaram 100% de
monotongação. Todos pronunciaram as palavras “bejo” e “quejo”.
184 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
terapeuta; 1 ocorrência de farmacêutica; 19 ocorrências de
bombeiro; 1 ocorrência de oleiro; 2 ocorrências de doutor; 9
ocorrências de caminhoneiro; 9 de caseiro; 6 de faxineira; 1 de
churrasqueiro; 6 de coveiro; 2 de camareira; 1 de bandeirinha; 1
de confeiteiro; 1 de borracheiro; 5 de sapateiro; 11 de prefeito; 1
de vidraceiro; 1 de pasteleiro; 13 de porteiro; 5 de faxineiro; 6 de
“cabelereira”, com o apagamento do iode no primeiro ditongo;
9 de barbeiro; 2 registros de “madereiro”, com o apagamento do
iode no primeiro ditongo; 2 registros de ferreiro; 2 registros de
“bombero”, com o apagamento do iode; 2 de auxiliar; 1 registro
de autor; 1 registro de pacoteiro e 1 de funileiro.
185 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
o apagamento do iode; 3 de banqueiro; 1 de “covero”, com o
apagamento da semivogal; 3 de ferreiro; 14 de prefeito; 18 de
enfermeiro; 7 de açougueiro, contra 23 ocorrências de “açogueiro”,
com o apagamento da semivogal no primeiro ditongo da palavra;
2 de marinheiro; 1 de “funilero”, com o apagamento do iode; 1
de “calhero”, com o apagamento do iode; 1 de tintureiro; 1 de
“ferramentero”, com o apagamento do iode; 1 de farmacêutica; 2
de borracheiro; 2 de fazendeiro; 1 de autor; 4 de hoteleiro; 1 de
“açogueira”, com o apagamento da semivogal no primeiro ditongo;
5 de faxineira; 3 de funileiro; 2 de fruteiro; 1 de arrumadeira;
2 de verdureiro; 6 de sapateiro; 1 de copeiro; 6 de terapeuta; 6
de pacoteiro; 1 de pasteleiro; 2 de barbeiro; 1 de torneiro; 1 de
confeitero, com o apagamento do iode no segundo ditongo da
palavra; 1 de biscatero, com o apagamento do iode; 3 de vidraceiro;
2 de madereiro, com o apagamento do iode no primeiro ditongo;
1 de “pexero’, com o apagamento do iode nos dois ditongos; 1 de
mensageiro; 1 de carreteiro; 2 de pipoqueiro; 1 de leiloeiro; 2 de
engenheira; 1 de bailarina; 1 de astronauta; 1 de motoqueiro; 2 de
juiz de direito; 1 de gestor financeiro; 1 de tapeceiro; 1 de doceira;
1 de gerente de restaurante; 1 de atendente de restaurante; 1 de
auxiliar de cozinha; 1 de açoguero, com o apagamento da semivogal
nos dois ditongos da palavra e 1 ocorrência de forneiro.
186 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
ocorrências de marceneiro; 10 de jardineiro; 12 de padeiro; 12 de
cozinheiro; 20 de pedreiro; 5 de costureira, 9 de enfermeiro; 12 de
engenheiro; 4 de terapeuta; 11 de carpinteiro; 14 de bombeiro; 5 de
enfermeira; 7 de caminhoneiro; 3 de banqueiro; 1 de garimpeiro
contra 1 de garimpero, com o apagamento do iode; 2 de feirante;
2 de marinheiro; 1 de faxineira; 2 de carteiro; 1 de açougueiro;
6 de barbeiro; 7 de prefeito; 5 de porteiro; 4 de serralheiro; 1 de
bicicleteiro; 1 ocorrência de cozinhero, com o apagamento do
iode; 1 de leiteiro, contra 2 de leitero, com o apagamento do iode
no segundo ditongo da palavra, confirmando uma das “regras
internas” da língua, que é a manutenção do ditongo diante da
consoante dental /t/ e a eliminação do iode com a vibrante /r/
em contexto posterior; 1 de cabelereira, com o apagamento do
iode no primeiro ditongo; 4 de sapateiro; 2 de madereiro, com o
apagamento do iode no primeiro ditongo da palavra; 5 de caseiro;
1 de ferreiro; 2 de faxineiro; 1 de treinador; 1 de marcenero, com o
apagamento do iode; 1 de costureiro; 4 de funileiro; 1 de auxiliar
- é interessante registrar dois possíveis motivos pelos quais não
houve o processo de monotongação na palavra auxiliar: neste
caso a letra x não representa o fonema [ʃ] e também não temos
a presença do segmento /ej/; 3 de chaveiro; 3 de pipeiro; 1 de
forneiro, contra 2 de fornero, com o apagamento do iode diante
da vibrante /r/; 1 de engenhero, com o apagamento do iode; 2 de
borracheiro; 3 de açogueiro, com o apagamento da semivogal no
primeiro ditongo; 1 de pacotero, com o apagamento do iode; 2
de doutor; 2 de carcereiro; 3 de coveiro, contra 1 de covero, com
o apagamento do iode; 2 de bandeirinha contra 1 de banderinha,
com o apagamento do iode; 1 de seleiro; 1 de padero, com o
apagamento do iode diante da vibrante /r/; 1 de garimpeiro; 1 de
caminhonero, com o apagamento do iode; 1 de fisioterapeuta; 1
de carreteiro e 1 de fazendeiro.
187 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
f ) A monotongação na escrita dos meninos do Ensino
Médio
Os 62 meninos do Ensino Médio foram informantes de um
total de 738 palavras. Dentre as 738 palavras, houve 24 ocorrências
de marceneiro; 55 de pedreiro, contra 1 registro de pedrero, com o
apagamento do iode diante da vibrante /r/; 25 de carpinteiro, 45
de engenheiro, contra 1 de engenhero, com o apagamento do iode
diante da vibrante /r/; 40 de padeiro, contra 3 de padero, com o
apagamento do iode diante da vibrante /r/; 7 de confeiteiro; 6 de
leiteiro, contra 1 de leitero, com o apagamento do iode diante da
vibrante /r/; 29 de lixeiro; 3 de operador de caixa; 14 de jardineiro;
6 de costureiro; 22 de caminhoneiro; 8 de chaveiro; 3 de sacoleiro;
9 de porteiro; 6 de leiteiro, com a manutenção do iode diante da
consoante dental /t/ e diante da vibrante /r/; 12 de caixa, com
a manutenção do iode diante da consoante chiante [ʃ]; 18 de
cozinheiro; 45 de bombeiro; 13 de coveiro; 10 de costureira; 10
de faxineiro; 5 de faxineira; 2 de blogueiro; 1 de sacoleira; 18 de
sorveteiro; 17 de enfermeiro; 5 de enfermeira; 13 de funileiro; 1
de copeiro; 1 de alfaiate, com a manutenção do ditongo diante
da vogal /a/; 3 de carcereiro; 10 de açougueiro, com a manutenção
do vau diante da oclusiva vozeada /g/ e a manutenção do iode
diante da vibrante /r/, contra 24 de açogueiro, com o apagamento
do vau diante da oclusiva vozeada /g/ e a manutenção do iode
diante da vibrante /r/; também houve 1 registro de açoguero, com
o apagamento do vau diante da oclusiva vozeada /g/ e do iode
diante da vibrante /r/; 1 de juiz de direito; 9 de serralheiro; 25 de
farmacêutico; 9 de cabeleireiro, com a manutenção do iode nos
dois ditongos, contra 22 de cabelereiro, com o apagamento do iode
no primeiro ditongo; 16 de borracheiro, contra 2 de borrachero,
com o apagamento do iode; 3 de cozinheira; 6 de relojoeiro; 2 de
188 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
banqueiro; 3 de fisioterapeuta; 1 de sucateiro; 13 de auxiliar; 1 de
auxiliar geral; 2 de fazendeiro; 1 de escoteiro; 2 de covero, com o
apagamento do iode; 4 de tapeceiro; 4 de torneiro; 3 de autor; 1
de neurologista; 17 de prefeito; 1 de carvoeiro; 6 de marinheiro;
5 de ferreiro; 3 de sapateiro; 1 de butineiro; 1 de conselheiro; 1
de lenheiro; 1 de boiadeiro; 1 de terapeuta; 1 de madereiro, com o
apagamento do iode no primeiro ditongo; 1 de hoteleiro, contra
1 de hotelero, com o apagamento do iode diante da vibrante
/r/ ; 1 de lixero, com o apagamento do iode; 9 de pacoteiro,
contra 1 de pacotero, com o apagamento do iode; 3 de barbeiro;
1 de estaleiro; 3 de vidraceiro; 3 de calheiro; 8 de carteiro; 1 de
latoeiro; 1 de astronauta; 1 de leiloeiro, com a manutenção do
iode diante da consoante lateral /l/ e diante da vibrante /r/; 1
de confeitero, com a manutenção do iode diante da consoante
dental /t/ e o apagamento diante da vibrante /r/; 2 de pipoqueiro;
1 de garimpeiro; 1 de doutor, com a manutenção do vau diante
da consoante dental /t/; 1 registro de atendente de açougue, com
a manutenção do vau diante da consoante oclusiva vozeada /g/;
1 de doceiro; 3 de pasteleiro; 1 de gesseiro; 1 de jornaleiro e 1 de
lancheiro.
Considerações finais
189 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
casos de monotongação, perfazendo um total de apenas 1% (um
por cento) do registro de palavras (terminadas em eiro) que foram
monotongadas na escrita do grupo pesquisado.
Entre o total de palavras informadas, 17 (dezessete) são
vocábulos que trazem o ditongo eu diante da consoante dental
/t/, com 0% (zero por cento) de monotongação; 10 (dez) palavras
trazem o ditongo ou, apresentando 70% (setenta por cento) de
monotongação; 25 (vinte e cinco) são palavras que terminam com
o sufixo eira, apresentando 100% (cem por cento) da manutenção
do ditongo, ou seja, 0% (zero por cento) de monotongação; 6
(seis) palavras são portadoras do ditongo au, diante da consoante
dental /t/, com 0% (zero por cento) de monotongação; 7 (sete) são
palavras que trazem o ditongo ei na primeira sílaba (pretônica),
com 0% (zero por cento) de monotongação; 12 (doze) são palavras
com o ditongo ei diante da consoante dental /t/, com 0% (zero por
cento) de monotongação; 1 (uma) palavra é portadora do ditongo
ei na sílaba pretônica, não sofrendo monotongação; 4 (quatro) são
palavras portadoras do ditongo au, diante da consoante dental
/t/, com 0% (zero por cento) de monotongação; 2 (duas) são
portadoras do ditongo ou, diante da consoante dental /t/, com
0% (zero por cento) de monotongação; Dentre as 72 (setenta
e duas) meninas do Ensino Médio, das 811 (oitocentas e onze)
palavras fornecidas por esse grupo de informantes, 622 (seiscentas
e vinte e duas) são portadoras do ditongo ei na terminação eiro,
apresentando um total de 3% (três por cento) de monotongação,
contra 97% (noventa e sete por cento) da manutenção do
ditongo diante da consoante vibrante /r/; 72 (setenta e duas)
palavras são portadoras do sufixo eira, com 0% (zero por cento)
de monotongação; 27 (vinte e sete) são portadoras do ditongo au,
como em autor, auxiliar e astronauta, com 0% (zero por cento) de
190 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
monotongação; 7 (sete) são portadoras do ditongo ou, diante da
oclusiva vozeada /g/, com 0% (zero por cento) de monotongação;
46 (quarenta e seis) são portadoras do ditongo eu, diante da
consoante dental /t/, com 0% (zero por cento) de monotongação;
13 (treze) são portadoras do ditongo ai, diante da consoante
chiante [ʃ] ou da consoante lateral /l/, com 0% (zero por cento)
de monotongação; 24 (vinte e quatro) são palavras portadoras do
ditongo ei, diante da consoante dental /t/, com 100% (cem por
cento) da manutenção do ditongo.
Dentre os 24 (vinte e quatro) meninos do Ensino
Fundamental, das 266 (duzentas e sessenta e seis) palavras
fornecidas por esse grupo de informantes, constatou-se que 234
(duzentas e trinta e quatro) palavras trazem em sua estrutura o
sufixo eiro, apresentando 5% (cinco por cento) de monotongação;
2 (duas) são portadoras do ditongo ei na sílaba pretônica, com
0% (zero por cento) de monotongação; 1 (uma) é portadora
do ditongo au, como em auxiliar, com 0% (zero por cento) de
monotongação; 2 (duas) são portadoras do ditongo ou, diante da
consoante dental /t/ com 0% (zero por cento) de monotongação; 4
(quatro) são portadoras do ditongo ou, diante da oclusiva vozeada
/g/, com 0% (zero por cento) de monotongação; 4 (quatro) são
portadoras do ditongo eu, diante da consoante dental /t/, com
0% (zero por cento) de monotongação; 7 (sete) são portadoras
do ditongo ei, diante da consoante dental /t/, com 0% (zero por
cento) de monotongação; 1 (uma) palavra é portadora do ditongo
ei, diante da consoante dental /n/, com 0% (zero por cento) de
monotongação; 3 (três) são portadoras do ditongo ei, na sílaba
pretônica e diante da consoante vibrante /r/, com 33% (trinta e
três por cento) de monotongação.
191 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
Dentre os 62 (sessenta e dois) estudantes do gênero
masculino do Ensino Médio, das 738 (setecentas e trinta e oito)
palavras fornecidas por esse grupo de informantes, constatou-se
que 618 (seiscentas e dezoito) palavras trazem em sua estrutura o
sufixo eiro, apresentando 3% (três por cento) de monotongação; 24
(vinte e quatro) são portadoras do sufixo eira, com 100% (cem por
cento) da manutenção do ditongo; 17 (dezessete) são portadoras
do ditongo au, com 0% (zero por cento) de monotongação;
30 (trinta) são portadoras do ditongo eu, diante da consoante
dental /t/ ou da consoante vibrante /r/, com 0% (zero por cento)
de monotongação; 18 (dezoito) são portadoras do ditongo ei,
diante da consoante dental /t/, com 0% (zero por cento) de
monotongação; 16 (dezesseis) são portadoras do ditongo ai,
diante da chiante [ʃ] com 0% (zero por cento) de monotongação;
15 (quinze) são portadoras do ditongo ou, diante da consoante
dental /t/ ou da oclusiva vozeada /g/, com 5% (cinco por cento)
de monotongação.
Esta investigação não pretende apresentar uma definição
exata de como se realiza o processo da monotongação na fala ou na
escrita. Trata-se de um trabalho que talvez possa oferecer subsídios
para potenciais interessados, que ainda sejam iniciantes no tema.
Como todas as áreas do conhecimento humano, a Fonética é um
campo de inesgotáveis descobertas, haja vista a complexidade
da língua nos aspectos que são estudados pela Sociolinguística,
conforme já foi apresentado no início do trabalho.
Considerando os resultados da pesquisa, constatamos
que, embora o ditongo /ej/ tenha praticamente desaparecido na
oralidade em palavras que trazem as consoantes [r], [ʃ] ou [Ʒ]
como contexto posterior, ainda persiste na escrita, salvo algumas
exceções. Verificamos também que, com a consoante dental /t/ em
192 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
posição imediatamente posterior ao ditongo /ej/, o apagamento
da semivogal não se realiza na fala nem na escrita. Em se tratando
dos ditongos au, oi, eu, como em auxiliar, boiadeiro, fisioterapeuta
ou farmacêutico, o fenômeno da monotongação praticamente
não existe.
Referências
193 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
SILVA, Giselle Machline de Oliveira; SCHERRE, Maria Marta
Pereira (orgs). Padrões sociolinguísticos: análise de fenômenos variáveis
do português falado na cidade do Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, Departamento de Linguística e Filologia, UFRJ,
1998, pp. 217-236.
194 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
CARTA PESSOAL: A IMPORTÂNCIA DA
PRODUÇÃO DE GÊNEROS MANUSCRITOS
NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
1
Professora da rede pública paranaense. Mestre em Ensino de Ciências Humanas, Sociais
e da Natureza pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná - Campus Londrina.
Pesquisadora na área dos gêneros discursivos, multiletramentos, práticas pedagógicas e
Educação do Campo.
2
Professor adjunto da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Desenvolve trabalhos
em diversos cursos de graduação, com enfoque nas disciplinas de Comunicação Linguística
e Metodologia da Pesquisa Científica, e no Programa de Pós-Graduação em Ensino de
Ciências Humanas, Sociais e da Natureza - PPGEN.
195 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Introdução
196 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Portanto, em vista dessas considerações, o presente artigo
tem como principal problemática a busca pela forma produtiva de
proporcionar um trabalho com o gênero carta pessoal em uma turma
de sétimo ano, objetivando promover a subjetividade na produção
textual, levando-se em conta a discussão acerca da importância
das produções manuscritas como elemento potencializador da
expressão de sentimentos a partir da comunicação. Para tanto, por
intermédio de uma pesquisa bibliográfica, no primeiro momento
será discutido o papel da escola no resgate de tais gêneros, bem
como a importância de se equilibrar o uso das tecnologias às
formas ditas antigas de se comunicar. Na sequência, em caráter
descritivo, serão abordadas algumas reflexões acerca dos gêneros
textuais na perspectiva de como se ensinar de forma a valorizar os
sentimentos e particularidades dos discentes produtores de textos.
Após tais definições, este estudo apresentará uma caracterização
específica do gênero carta pessoal no intuito de promover a
valorização desse gênero. A fim de ilustrar tal abordagem, a partir
de uma pesquisa de campo em sala de aula, será feito o relato de
uma atividade desenvolvida numa sequência de aulas de Língua
Portuguesa com alunos de sétimo ano do Ensino Fundamental.
Nas análises e considerações finais, os resultados de
tal atividade serão interpretados e ilustrados com trechos das
produções feitas pelos alunos e de depoimentos escritos por eles.
O ensino e a tecnologia
197 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
os primórdios, o ser humano cria e usa novas técnicas, buscando
facilitar e tornar seus fazeres mais práticos. Atualmente, é evidente
o quanto o homem moderno depende das tecnologias, sobretudo
as que envolvem as comunicações. Com as crianças e jovens não
é diferente, interagir com qualquer lugar do mundo através de
pequenas máquinas se tornou atividade corriqueira. Além de
estarem 24 horas conectados, os jovens costumam postar nas
redes sociais a maioria de suas atividades diárias, depoimentos
emocionantes de aniversários para amigos e familiares, legendas
de imagens expondo sensações, dentre outras formas de expressar
seus sentimentos. De acordo com a perspectiva de Chatifield
(2016), a quantidade de publicações é cada vez maior, todavia há
uma perda no que diz respeito à qualidade e o papel social dos
textos, haja vista que a maioria das publicações busca apenas a
autoafirmação do indivíduo.
Já em 1975, o filósofo e sociólogo Erick Fromm abordava
tal temática, dizendo que a crescente evolução tecnológica, em
função da produção máxima para alimentar o consumismo,
atrapalha a evolução humana no sentido de que o surgimento
de novas ideias é prejudicado pela insegurança das pessoas no
que tange aos processos de criação, “a razão surge da fusão do
pensamento racional com o sentimento” (FROMM, 1975, p.56).
Ao tentar aproximar a máquina das características próprias do ser
humano, é o ser humano que está se aproximando das máquinas,
deixando de priorizar seus sentimentos, pensar no próximo e dar
sentido à vida, já que
198 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Estando o aluno acostumado com a facilidade da
máquina, notamos um certo desprezo com relação aos meios de
comunicação que deram origem aos que eles usam hoje, aliás
poucos sabem como surgiram e funcionavam ferramentas de
diálogo que eram comuns na época de seus pais, por exemplo.
Falar de gêneros textuais ligados à interação escrita já remete
diretamente aos aplicativos de conversa simultânea, portanto é
na escola que se deve esclarecer as origens e as formas usadas em
outros tempos, tendo em vista que
199 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Gêneros textuais e suas particularidades
200 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
de produção dos discursos, as quais geram usos sociais que os
determinam [...]
Toda educação verdadeiramente comprometida como exercício
da cidadania precisa criar condições para o desenvolvimento
da capacidade de uso eficaz da linguagem que satisfaça suas
necessidades pessoais – que podem estar relacionadas às ações
efetivas do cotidiano, à transmissão e busca de informação, ao
exercício da reflexão [...]
no processo de ensino e aprendizagem dos diferentes ciclos do
ensino fundamental espera-se que o aluno amplie o domínio ativo
do discurso nas diversas situações comunicativas, sobretudo nas
instâncias públicas de uso da linguagem, de modo a possibilitar
sua inserção efetiva no mundo da escrita, ampliando suas
possibilidades de participação social no exercício da cidadania
(BRASIL, 1998, p.21-32).
201 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
outros aspectos. A partir de tal entendimento, o discente será capaz
de compreender o gênero textual em questão de forma ampla e terá
autonomia de produzi-lo, aliando os conhecimentos adquiridos
à sua vivência, realizando assim uma produção baseada em suas
práticas sociais de comunicação. Como afirma Antunes (2016),
a escola não pode se isentar da responsabilidade de apresentar
ao aluno as práticas sociais que acontecem a partir das trocas
efetivadas pela linguagem e isso se dá a partir do entendimento
de diferentes gêneros que circulam em diferentes esferas do
cotidiano das pessoas.
O discente hoje é considerado um colaborador na construção
dos saberes, ele contribui de acordo com sua experiência de vida
e faz participações com variados tipos de comentários durante as
aulas. Portanto, ao produzir um texto, após ter trabalhado com a
compreensão do gênero, sua subjetividade estará presente, seja por
meio de marcas linguísticas ou semânticas. A partir do momento
em que o autor expressa suas marcas, estando apto a se fazer
comunicar/entender por meio de gêneros textuais adequados ao
contexto, podemos afirmar que parte da sua formação, almejada
pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), está se fazendo
de maneira satisfatória.
202 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
outros seguidores de Cristo destinadas a povos romanos e gregos.
No Brasil, esse meio de comunicação chegou já no momento
do descobrimento, quando Pero Vaz de Caminha enviou uma
carta que comunicava o descobrimento de novas terras. A partir
daí, costumavam enviá-las ao rei, a fim de que ele se mantivesse
informado acerca das notícias da colônia. Em 1840, foi criado
o primeiro serviço postal na Inglaterra, chegando ao Brasil em
meados de 1843. Então, o uso das cartas se tornou comum e
essencial na comunicação entre as pessoas até a chegada do
telefone e outros meios que facilitaram e agilizaram a interação
entre as pessoas.
Com o passar dos anos, a carta passou por transmutações,
levando-se em consideração que as situações de produção e
circulação mudaram com a chegada da tecnologia e a mudança nos
domínios discursivos, criando-se assim uma grande variedade de
subgêneros. Neste estudo, será dado ênfase à carta pessoal, texto
analisado e proposto em sala de aula.
Em se tratando de suas características, Bortolin et al. (2017)
cita Köche et al. (2012), Kaufman e Rodriguez (1995), enfatizando
que a carta pessoal deve conter um remetente e um destinatário
que possuem certo grau de intimidade e estabelecem uma
comunicação a distância. É de acordo com o grau de intimidade
também que se determina a linguagem que, na maioria das vezes,
apresenta marcas da oralidade, pontuação diferenciada e com
pouca formalidade. Sua estrutura costuma ter local, data, vocativo,
corpo do texto e assinatura, podendo conter ainda o “P.S” (post-
scripitum) que é definido como uma nota final constando algo que
foi esquecido de mencionar no corpo da carta. Caso seja enviada
pelo correio, ela é colocada em um envelope que deve conter os
dados do remetente e destinatário.
203 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Marcuschi (2003), ao afirmar que um texto é tipologicamente
heterogêneo, enfatiza que a carta pessoal “pode conter uma
seqüência narrativa (conta uma historinha), uma argumentação
(argumenta em função de algo), uma descrição (descreve uma
situação)”, além de contar ainda com sequências, expositivas
(apresenta conceitos, explicações) e injuntivas (instrui e orienta).
Acerca do trabalho com o gênero textual em questão,
Bertolin et al. (2017) mencionam um roteiro proposto por
Santos (2013) e adaptado pelos autores do artigo “Carta pessoal:
do diálogo ao monólogo como meio de expressão, reflexão,
enfrentamento dos medos e humanização” que torna mais prático
os procedimentos de análise:
1. Nome específico:
Carta pessoal.
204 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
d) Tempo:
Produção sem um tempo determinado; se enviada pelo sistema postal, o tempo
de leitura ficará sujeito à data de entrega.
e) Lugar:
Produção: sem lugar determinado (podendo ser escrita em sala de aula como
exercício).
Recepção: Geralmente, na residência do destinatário.
f ) Evento deflagrador:
Contar eventos particulares da vida do emissor, expressar emoções, sentimentos
e perguntar sobre acontecimentos da vida do destinatário.
3. Tema/objeto de estudo:
Assuntos particulares e pessoais da vida do emissor; questionamentos ao
destinatário; expressão de emoções e pontos de vista.
4. Função/objetivo:
Dialogar (a distância) com o destinatário que faz parte de suas relações.
5. Linguagem/estilo:
Linguagem familiar, informal, espontânea e com marcas da oralidade.
6. Organização/estrutura:
Organizada em parágrafos.
Estrutura: local e data; vocativo; corpo do texto; despedida e assinatura
(podendo acrescentar o P.S – post-scriptum – para apresentar informações
adicionais esquecidos de mencionar no corpo do texto).
205 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Esse levantamento de traços característicos condiz com as
propostas de trabalho acerca dos gêneros textuais, pois permite que
o discente seja capaz de identificar as particularidades essenciais
da carta, levando-se em consideração seu contexto de produção,
autoria, domínio discursivo, funções, dentre outros aspectos. A
atividade proposta, a ser analisada a seguir, tem como base tais
princípios, todavia o destinatário ficou a cargo dos alunos para
que eles pudessem ter liberdade e grau de subjetividade maior na
hora da produção.
206 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Ao serem questionados se já tinham recebido alguma
carta, nenhum aluno se manifestou positivamente. Então lhes
foi apresentado um texto intitulado “Carta Aberta ao Homem-
Aranha”, de Lourenço Diaferia (1983), que, apesar de ser uma
crônica, tem a estrutura de carta. Após a leitura, houve uma roda
de conversa, a fim de explicar-lhes que é possível um gênero textual
apresentar a estrutura de outro e que, partindo-se do pressuposto
de que a carta pessoal deve ser lida primeiramente – e muitas
vezes - pelo destinatário, seria mais fácil encontrar uma carta
como aquela nos livros.
Em termos de conteúdo, a carta era de uma criança,
moradora da cidade de São Paulo que tentava contato com o
Homem-Aranha, buscando ajuda com relação ao comportamento
de seus pais que estavam “subindo pelas paredes” pela crise
financeira que afetava a sociedade da época. Além de se apresentar,
falar o quanto admirava o super-herói e seus feitos, o menino
lhe questionava sobre suas ocupações, relatava fatos e pedia
uma resposta acerca de suas dúvidas sobre os pais também se
ocuparem com feitos heroicos já que seus empregos não eram
financeiramente satisfatórios. A carta acaba com uma despedida
e na assinatura o autor coloca apenas suas iniciais.
Após a discussão do assunto onde, dentre outros debates,
abordou-se o uso do termo “subir pelas paredes” e seus significados
no texto, foi feito um levantamento com base nas questões
propostas por Santos (citado por BORTOLIN et al, 2017), onde
os alunos, de forma supervisionada, puderam identificar pontos
relevantes da carta lida. Durante a correção da atividade, numa
conversa informal, a pergunta de um discente chamou a atenção:
“Professora, pra quê temos que aprender a escrever carta se nem
usamos mais esse tipo de comunicação?”. A partir dessa pergunta,
207 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
além de se comentar os tipos de cartas que ainda circulam nas
esferas sociais da atualidade, foi dado início às discussões acerca
do papel da subjetividade impressa nos manuscritos, citando
os bilhetes, os diários, as mensagens nas capas de cadernos, as
pichações nas paredes da escola e até mesmo as camisetas que
eles costumam assinar quando o ano letivo está se findando. Ao
serem questionados sobre tais produções, uma das funções mais
enfatizadas foi o fato de que um registro manuscrito pode servir
como lembrança de alguém.
Na intenção de ilustrar a subjetividade, lhes foi passado o
filme “Cartas para Deus” (2010), no qual um menino de 8 anos
que tinha câncer buscava, através das cartas pessoais destinadas
a Deus, fazer suas orações, contar sua luta diária e pedir por ele e
pelas pessoas que viviam ao seu redor. As cartas eram entregues
a um carteiro que não sabia o destino que deveria dar a elas, haja
vista que o destinatário não tinha um endereço físico. A história
tem seu desfecho quando o carteiro resolve abrir as cartas do
menino e percebe que cada uma, além de falar dos problemas
e passar uma mensagem, pedia por uma pessoa diferente da
vizinhança. O homem resolve entregá-las a cada um, momento
que causa comoção na trama. Ao ler, as pessoas resolvem guardar
a carta como uma lembrança do menino e herdam seu costume
de destinar suas orações em forma de manuscrito, dando
continuidade à prática da escrita como forma de desabafo.
Depois de assistirem ao longa-metragem, foi proporcionado
um momento de discussão, no qual se possibilitou assimilar a
importância do sentimentalismo e da sensibilidade na produção
de textos manuscritos, tendo como base os trechos de algumas
cartas escritas pelo menino. Discutiu-se também o contexto de
produção, o papel do autor e do destinatário, assunto, organização
208 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
e preenchimento de envelope (este trazia marcas particulares do
menino). Na sequência, lhes foi proposta a seguinte atividade:
209 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Figura 1 – Registro de rascunho de aluno
210 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Figura 2 – Registro de rascunho de aluno
211 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
se produzir uma carta pessoal e o quanto a privacidade oferecida
por esse gênero possibilita a subjetividade e o sentimentalismo.
Durante a produção em sala, alguns alunos se emocionaram ao
perceber que tal atividade possibilitava a comunicação, ainda
que imaginária, com destinatários que já não faziam mais parte
de seus convívios. No caso das produções para familiares vivos,
notamos um certo encorajamento para dizer coisas as quais os
discentes não se sentiam à vontade de dizer pessoalmente. No
próximo exemplo de texto de aluno, verificamos a maioria das
características da carta pessoal trabalhadas em sala de aula, bem
como as ideias defendidas por esta pesquisa.
212 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Considerações finais
213 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
contextualizado às suas respectivas realidades, mantendo assim
um equilíbrio entre o uso das tecnologias e as formas mais antigas
de comunicação.
Referências
214 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
CHATFIELD, Tom. Homens na era da tecnologia. São Paulo:
Carta Capital. 2016.Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/
revista/889/homens-na-era-da-tecnologiaAcesso: 23/04/2018.
215 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
DIÁLOGOS ENTRE A LINGUÍSTICA TEXTUAL
E TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO: ANÁLISE DE
UMA SENTENÇA JUDICIAL
Introdução
1
Mestre em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina – UEL.
2
Doutorando em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina – UEL.
Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná- UENP,
Juiz Federal.
217 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Marcuschi propõe que se veja a LT como o “estudo das
operações lingüísticas e cognitivas reguladoras e controladoras
da produção, construção, funcionamento e recepção de textos
escritos ou orais” (2008, p. 73). Não é objeto da LT o conteúdo,
que o distingue do sentido. “O conteúdo é aquilo que se diz
ou descreve ou designa no mundo, mas o sentido é um efeito
produzido pelo fato de se dizer uma ou outra forma esse conteúdo”
(MARCUSCHI, 2008, p. 74).
Para o autor, “as relações que possibilitam a continuidade
textual e semântico-cognitiva (coesividade e coerência) não se
esgotam nas propriedades léxico-gramaticas imanentes à língua
enquanto código”, mas exigem, ainda, “atividades lingüísticas,
cognitivas e interacionais integradas e convergentes que permitam
a construção de sentidos partilhados, ou pelo menos dêem pistas
para seu acesso” (MARCUSCHI, 2008, p. 120).
Para Ducrot, em sua proposta conhecida como Semântica
Argumentativa, o ato linguístico fundamental é o de argumentar,
pois, por meio da língua, o falante encaminha o interlocutor a
determinada conclusão. Assim, a compreensão de uma enunciação
implica apreender os vestígios deixados na superfície linguística.
Na esteira de Cabral (2017), pretendemos mostrar as
relações que podem ser estabelecidas entre a LT e a Teoria da
Argumentação na língua, estabelecendo um diálogo possível entre
as questões envolvendo a textualidade e a língua, notadamente pelo
conceito de intencionalidade (coerência) e a progressão textual/
sequenciação (coesão) do produtor de uma sentença judicial.
Ainda, procuramos verificar se, ao construí-la, o produtor do
texto jurídico atendeu a funcionalidade intrínseca a esse gênero.
218 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Fundamentação teórica
219 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
produtores de coerência, pois as relações “de coerência devem ser
concebidas como uma entidade cognitiva. Isto faz com que essas
relações, em geral, não estejam marcadas na superfície textual e
que não tenham algum tipo de explicitude imediatamente visível”
(MARCUSCHI, 2008, p. 122).
A intencionalidade
220 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
processo judicial, enquanto mecanismo de resolução de conflitos
e aplicação do direito pelo juiz.
O gênero discursivo refere-se a formas típicas de enunciados
que se realizam em condições e com finalidades específicas nas
distintas situações de interação social (BAKHTIN, 2003). Os
gêneros são fenômenos históricos, fortemente vinculados à vida
cultural e social. Resultado de um trabalho coletivo, os gêneros
contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas
do dia a dia. São entidades sociodiscursivas e formas de ação
social incontornáveis em qualquer situação comunicativa
(MARCUSCHI, 2010).
Maingueneau (2011, p. 69) recorre a metáforas tomadas de
três domínios para caracterizar os gêneros do discurso: o jurídico,
o teatral, e o lúdico (ou jogo). O jurídico é fundamentalmente
cooperativo e regido por normas. O teatral está diretamente
relacionado às interações sociais, concebidas como um grande
teatro onde tudo o que se faz é “representar papéis”. O lúdico cruza
as metáforas do jurídico com o teatral, a fim de enfatizar as regras
envolvidas na participação semelhantes a um jogo, um gênero
implica certas regras preestabelecidas e mutuamente conhecidas
e cuja transgressão põe “fim ao jogo”.
Os elementos essenciais do gênero jurídico analisado
estão previstos na legislação3. Uma vez que a função primária
da linguagem jurídica é a referencial, centrada no contexto, o
estilo usualmente esperado é o da objetividade até mesmo como
imperativo do princípio da imparcialidade que deve nortear a
atividade jurisdicional.
Conforme dispõe o artigo 58 dos Princípios de Bangalore da
Magistratura (documento da ONU sobre integridade judiciária)
são consideradas manifestações de parcialidade e preconceito:
221 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
epítetos, injúria, apelidos humilhantes, estereótipos negativos,
humor baseado em estereótipos, talvez relacionado a gênero,
cultura ou raça, ameaça, intimidação ou atos hostis sugerindo
uma conexão entre raça, nacionalidade e crime e referências
irrelevantes a características pessoais são alguns dos exemplos.
222 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
fazer pelo acréscimo de novos comentários a um tópico, ou pela
transformação dos comentários em novos tópicos.
223 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
temática, utilizada a fim de garantir que o leitor, por meio de
frames, ative constantemente o tema abordado para manter viva
a conversação.
Já a progressão temática trabalha em nível de organização e
hierarquia de maneira sucessiva ao dividir os enunciados em tema
e rema. O tema, de maneira resumida, é a informação dada, a base
do que é dito, é o chamado tópico. O rema é a informação nova,
dita pela primeira vez acerca do tema. Divide-se em:
224 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
entre os enunciados, dividindo em encadeamento por justaposição
e encadeamento por conexão. O primeiro não se utiliza de
elementos articuladores e o segundo emprega os diversos tipos
de conectores presentes na língua.
225 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Análise do corpus
226 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
pretensão e a contranarrativa da defesa, cujo resultado é a narrativa
qualificada do próprio juiz que se revela como sobrelinguagem
em relação à linguagem utilizada pelo autor e réu” (BEZERRA
NETO, 2018, p.104).
Neste caso, o relatório formal era dispensável por força da
Lei 9.099/95 do Juizado Especial, que é um rito processual mais
simplificado, mas o texto selecionado para análise é uma síntese
dos fatos, feita pelo juiz, a partir das narrativas apresentadas pelo
advogado da parte autora, na petição inicial, e pelo advogado da
ré, na contestação e no pedido contraposto6, e das ocorrências
havidas na AIJ (Audiência de Instrução e Julgamento).
6
O pedido contraposto é uma espécie de contra-ataque. Consiste em um pedido formulado
pelo réu contra o autor, na mesma peça da contestação, cuja fundamentação baseia-se nos
mesmos fatos que são objeto da lide.
227 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Texto para análise
Sentença Judicial
228 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Relembramos que para garantir a manutenção e a
progressão do texto é possível contarmos com a sua realização
em cadeias coesivas, ocorridas por meio de recursos gramaticais
(pronomes, elipses, numerais, etc) ou recursos lexicais (sinônimos,
hiperônimos, expressões nominais). Koch e Travaglia (2012, p.
30-31) afirmam que a “coesão referencial envolve a remissão de
um elemento a outros no universo textual e pode ocorrer para trás
(anáfora) ou para frente (catáfora)”, ou seja, há certa relação com
dados já especificados ou explícitos no texto ou, ainda, expansão
do sintagma nominal, quando este é modificado ou alterado por
um sintagma nominal antecedente.
As expressões nominais abordadas nos fragmentos revelam,
implícita ou explicitamente, informações primordiais sobre as
opiniões, crenças e atitudes do sujeito produtor do texto. Listamos
os exemplos encontrados:
a) “briga” (l. 1), “surra” (l. 1), “escoriações, unhadas, socos, puxões
de cabelo” (l. 2), “ serviço” (l. 4), “agressões recíprocas” (l.
19). (Referentes à agressão);
b) “quiproquó” (l. 4), “rolo” (l. 7), “baixaria” (l. 7), “descontentamento,
desgraça, amargura” (l. 26), “espinho pontiagudo e venenoso”
(l. 28). (Referentes à situação difícil);
c) “sujeito do desejo ardente das duas mulheres” (l. 5), “solteiro”
(l. 6), “amante das duas” (l. 6), “agente disputado” (l. 9), “senhor
das moças lá do Halim Souki” (l. 29). (Referentes ao homem);
d) “indenização” (l. 8), “Justiça” (l. 11), “danos morais” (l. 15),
“defesa” (l. 24), “depoimentos” e “sentença” (l. 33). (Referentes
ao universo do Direito).
e) “requerida” (l. 12), “agressora” (l. 14) – (Referentes à ré);
229 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
f ) “gente graúda de sapiência” (l. 22) (Referente aos
desembargadores);
g) “gente” (l. 23), “magistrado” (l. 31) (Referentes ao juiz);
h) “mulheres briguentas” (l. 24), “moças” (l. 32) (Referente às
mulheres);
i) “bem bom” (l.14) (Referente ao momento do flagrante
amoroso).
7
Disponível em:< https://m.migalhas.com.br/quentes/154884/juiz-que-escreveu-sobre-
lei-dos-namoros-em-sentenca-divulga-carta>. Acesso em: 28 nov.2019
230 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
sente”8, quando o usual seria “alegar”9 “arguir”, “invocar”. Isso é
confirmado adiante, quando, na fundamentação, indaga: “E isso
não é inépcia. Afinal, pra quê tanto enciclopedismo inútil nos
processos dos Juizados”?
Como estamos tratando de um texto da seara jurídica
que precisa ter uma sólida base argumentativa, encontramos
recorrência a diversos doutrinadores e desembargadores, a fim de
evocar o recurso da intertextualidade por meio de argumentos de
autoridade. A advogada de uma das partes cita alguns dos nomes
mais prestigiosos do Direito como “Ada Pelegrini Grinover e
Maria Helena Diniz e Clayton Reis e Carlos Alberto Bittar e
Yussef Said Cahali e S. J. de Assis Neto [...]” porque acreditava,
desta forma, garantir que seu pedido fosse acolhido pelo
magistrado, já que são “gente graúda de sapiência”. O argumento
não foi considerado pelo julgador, uma vez que critica a postura
da procuradora. De fato, esse é um vício dos operadores do direito
no Brasil, onde prevalece “a articulação de opiniões acompanhadas
da citação, sem contextualização ou análise, de uma série de
‘jurisprudências’ e ‘doutrinas’ a título de argumento de autoridade”
(RODRIGUES, 2013, p. 77).
Silva (2006) traz uma importante contribuição para a nossa
pesquisa acerca da inter-relação entre o argumento de autoridade
e a intertextualidade. A autora assim declara:
8
Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?id=yXNm>. Acesso em 12 dez. 2019.
9
Art. 337. Incumbe ao réu, antes de discutir o mérito, alegar: IV - inépcia da petição
inicial; Art. 330. A petição inicial será indeferida quando: I - for inepta; ... § 1º Considera-
se inepta a petição inicial quando: I - lhe faltar pedido ou causa de pedir; II - o pedido
for indeterminado, ressalvadas as hipóteses legais em que se permite o pedido genérico;
III - da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão; IV - contiver pedidos
incompatíveis entre si.
231 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Os enunciadores, ao selecionarem os argumentos de autoridade,
o fazem consoante ao acordo prévio com o auditório. E para
consagrar o seu dizer, citam essas autoridades no interior da
enunciação que constroem para legitimá-la. [...] Seja pelo
discurso direto ou indireto, os enunciadores reformulam o
enunciado do outro para introduzi-lo nos seus discursos, de
acordo com o que se deseja (SILVA, 2006, p. 70)
232 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Tendo em vista determinado objetivo a atingir, imbuído de
determinadas ideologias, o produtor do texto seleciona as palavras
que lhe convêm. Segundo Aquino (2003,p. 199) ao tomarmos a
escolha lexical como ferramenta que define situações em que os
falantes criam o contexto no qual irão interagir, então poderemos
entendê-la não como algo que ocorre fortuitamente no discurso,
mas perfeitamente concatenada aos demais elementos que o
organizam (AQUINO, 2003, p. 199).
233 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
quando é extrapolado, acaba por comprometer a funcionalidade
desse tipo de gênero.
Como afirma Perelman (2004, p.191): “a paz judicial só
se restabelece definitivamente quando a solução, a mais aceitável
socialmente, é acompanhada de uma argumentação jurídica
suficientemente sólida”. No caso analisado, embora juridicamente
válida, a fundamentação irônica e sarcástica, cuja aceitabilidade
social é discutível, tem potencial para perpetuar o conflito.
Considerações Finais
234 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Portanto, houve relação dialógica entre LT e Teoria da
Argumentação no fazer textual e na construção da textualidade,
pois vemos as marcas desses aportes teóricos refletidos nos
exemplos extraídos dos fragmentos analisados.
Referências
235 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
ESTRELA, Simone da Costa. As Modalizações em Sentenças
Judiciais: a Ação de Linguagem na Representação dos Mundos
Formais. 2010. Dissertação (Mestrado em Linguística). João Pessoa:
UFPB, 2010.
236 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Textual: perspectivas alemãs. Trad. Hans Peter Wieser. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2009.
237 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
RESISTÊNCIA FEMININA E HUMOR: UMA
ANÁLISE DISCURSIVO-ARGUMENTATIVA
ABSTRACT: In each discourse, there are voices that speak about women, from
discursive and ideological formations that, represented in / by language, enable the
apprehension of meanings capable of reflecting social positions, resistances, changes
and representation of values. Based on Discourse Analysis (by French line) and on
Argumentative Semantics, we study the processes of construction of meaning effects,
considering the ideological crossings and the meanings emitted / captured by the
argumentative resources present in three comic strips taken from the internet. Through
this humor’s discursive genre, it is possible to observe the discourses of resistance of
women in modern society and, from them, consider alternatives to develop and
question by new meanings.
KEYWORDS: Discourse; Argumentation; Humor; Resistance.
1
Ana Carolina Bernardino, Doutoranda do Programa de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Londrina – UEL – Londrina, Paraná, Brasil. Integrante do
projeto de pesquisa PAD II – Pesquisas em Análise do Discurso (UEL).
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Talita Canônico e Silva, Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual
de Londrina – UEL – Londrina, Paraná, Brasil. Docente do Ensino Básico, Técnico e
Tecnológico no Instituto Federal do Paraná – IFPR – Campus Londrina, Paraná, Brasil.
Integrante do projeto de pesquisa PAD II – Pesquisas em Análise do Discurso (UEL).
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Introdução
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a produção de sentidos, pelo viés da Semântica Argumentativa.
A seguir, consideramos alguns traços do campo do humor.
Iniciamos, então, a análise do corpus, uma tirinha do personagem
Armandinho, em que refletimos a respeito dos diversos efeitos
de sentido produzidos, levando em consideração os diferentes
atravessamentos. Por fim, elaboramos algumas reflexões acerca
do trabalho empreendido.
Análise de Discurso
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A Ideologia e as Condições de Produção: constituição do sujeito
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relações discursivas das quais, na verdade, não são senão o portador
ou o efeito”.
Sendo assim, o discurso é mediador entre o sujeito e o
social, uma vez que todo sujeito é atravessado por uma ideologia
e está inserido em dada condição sócio-histórica; portanto, são
múltiplas as possibilidades de efeitos de sentido, pois os sujeitos
não são constituídos da mesma forma. Para compreendermos os
sentidos produzidos pelos discursos, é necessário estabelecermos
uma relação entre a língua, a história e a própria ideologia.
Não há sentido sem interpretação e a compreensão do sentido
é depreendida a partir dos atravessamentos ideológicos que
interpelam cada indivíduo, por esse motivo os sentidos são
múltiplos e diversos.
Orlandi (2015, p. 45) esclarece:
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Memória discursiva e silenciamento: os múltiplos efeitos de
sentido
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Dessa forma, o discurso é compreendido a partir de
atravessamentos sócio-históricos, como um efeito de sentido entre
os sujeitos, portanto, o sentido é construído a partir da construção
do discurso. Não existe um sentido pronto, eles são determinados
pelas posições que cada sujeito ocupa no processo enunciativo.
Logo, a AD está em constante processo de desconstrução, de
reconfiguração e, até mesmo, de experimentação, pois os efeitos
de sentido, decorrentes das relações sócio-histórico-ideológicas,
são múltiplos e diversos. Sucintamente, a memória discursiva
funciona antes do sujeito e, também, é independente do sujeito.
Em outras palavras, é necessário que exista um sentido anterior
para que novos sentidos possam ser construídos.
Além disso, os sentidos não estão apenas nos ditos, mas,
também, nos não ditos, ou seja, no silenciamento; o silêncio tem
sua própria maneira de significar, uma vez que estar em silêncio
é estar no sentido. Segundo Orlandi (2007), o silêncio é disperso
e contínuo e é essa continuidade que permite que o sujeito possa
mover as significações e percorrer os múltiplos efeitos de sentido
provenientes dos discursos. O movimento de silenciamento e de
sair do silenciamento proporciona interpretação à medida que nos
insta na origem do próprio sujeito e dos seus sentidos. Assim, para
Orlandi (2007), o silêncio é fundante e fundador dos sentidos.
O silêncio é a capacidade do sujeito trabalhar sua
contradição constitutiva, sua relação com o outro. É ele que o faz se
situar na relação do «um» com o «múltiplo». Sob esta perspectiva,
seria possível entendê-Io como o não dito que é a história, à
medida que estabelece a relação do sentido com o imaginário, com
a língua e com a ideologia. Deste modo, é possível falar sobre os
efeitos de sentido pois o que está em jogo é a relação de diferentes
formações discursivas com diferentes sentidos.
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Semântica Argumentativa
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relações, propriedades ou qualidades, dependendo do substantivo
para completar seu sentido e apresentando diferentes efeitos ao
ser anteposto ou posposto. Segundo Malheiros (1982, p. 14), o
adjetivo é “um termo que atribui ao substantivo características
objetivas de significação ou de realce afetivo ou expressivo”.
Os operadores argumentativos, segundo Koch (2012)
indicam a força argumentativa dos enunciados, eles expressam
valores semânticos distintos conforme a condição em que são
produzidos, estruturando o texto e direcionando a argumentação.
Tais operadores são tratados por alguns estudiosos como um
dos principais recursos persuasivos, e foram sistematizados, em
mais ou menos vinte tipos, dependendo dos efeitos de sentidos
vinculados: adição, comparação, disjunção, explicação, conclusão,
concessão, condição, entre outros.
Em nosso corpus, focalizaremos quatro operadores
argumentativos: porque, se, já e ainda, que serão analisados
posteriormente.
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A sociedade posiciona o sujeito feminino em lugares
culturalmente demarcados e este controle exige que padrões
sejam idealizados e seguidos. As movimentações femininas,
como acontecimento discursivo, vêm produzindo alterações/
deslocamentos a respeito da feminilidade, ou seja, ressignificando
sentidos e promovendo conquistas, como direitos civis, ingresso no
mercado de trabalho, uso da pílula anticoncepcional, entre outras.
O Dia Internacional da Mulher, assunto chave de nossa
análise, foi efetivado em agosto de 1910, no II Congresso
Internacional de Mulheres Socialistas, em Copenhague
(Dinamarca). Dentre as propostas discutidas, destacamos o
sufrágio, os direitos para maternidade, as novas leis para carga
horária de trabalho, para insalubridade, entre outras. Em 1921, o
dia 08 de março foi definido como o Dia Internacional da Mulher,
mas a data só foi oficializada em 1970, pela ONU.
Essa data foi escolhida em homenagem às mais de
cem mulheres, que estavam em greve e morreram devido ao
incêndio em uma fábrica de Nova Iorque, em meados de 1800.
Posteriormente, o assunto foi questionado por alguns estudiosos
como não verdadeiro em relação ao ocorrido e às datas. Se a
história é real ou inventada, o Dia Internacional da Mulher
tornou-se significativo, ampliou o sentido de um acontecimento e
o fez símbolo de cultura e de resistência, constituindo a memória
social, que se concretiza, especialmente, por situações de disputa
e de conflito.
A tirinha que analisaremos é um gênero do campo do
humor e dentre as suas características, para a efetivação do
sentido, é preciso haver representação social do tema abordado,
envolvendo, de acordo com Possenti (2014), linguagem, história,
cultura e ideologia. O discurso do humor trata de temas polêmicos,
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manifesta cultura e visão estereotipada, conforme valores
estabelecidos, por isso é relevante trabalhar essa esfera em Estudos
da Linguagem. Para Possenti (1998), de forma ambígua, irônica
ou por imitação, o discurso humorístico resume problemas sociais
de forma livre, pois o sujeito não se responsabiliza pelo que diz,
dentro da justificativa de que é para trazer humor.
As tiras circulam em vários espaços, como revistas, jornais,
internet, e seus temas envolvem política, economia, educação
e entre outros. Segundo Silva (2012), os contextos descritos
pelas tiras representam cenários e expressões de personagens;
seu conteúdo pode ser manifestado verbalmente ou não, dito
ou implícito, produzindo, pelas vozes articuladas no discurso, a
ironia, o riso, o humor. Para compreender o discurso humorístico,
é preciso ativar o conhecimento de mundo e o linguístico, pois a
língua estará sempre relacionada a um contexto efetivo. Pelo jogo
da linguagem, pelo duplo sentido e pela quebra de expectativa o
humor é concretizado e isso será possível por meio dos recursos
linguísticos e imagéticos. Conforme Amaral (2002), os textos de
humor trazem vestígios, por meio da linguagem, que indicam
assujeitamento imposto pela ideologia; as vozes transmitem o
discurso do sujeito que, por sua vez, é produzido em condições
preestabelecidas por certa formação discursiva.
A tirinha selecionada para análise faz analogia à
comemoração do Dia Internacional da Mulher e, pela linguagem,
revela a resistência, a transformação e a representação de valores,
captados pelas formações ideológicas, pelas condições de
produção, pela memória discursiva e pela denúncia de práticas
silenciadas. Nesse sentido, estudaremos a movimentação
discursivo-argumentativa.
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Análise do Corpus
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No nível textual, verificamos a predominância da
adjetivação e dos operadores argumentativos.
SUBSTANTIVO ADJETIVO
Luta das mulheres
Mundo Todo
Condições Dignas
de consciência política e solidariedade
Dia
internacional
Consciência Política
Solidariedade Internacional
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Nesse sentido, observamos a resistência como forma
de ressignificação, ou seja, o desejo em sair da submissão, do
apagamento instaurado sócio-histórica e ideologicamente, uma
vez que o discurso da tirinha vai em busca de igualdade e respeito,
reafirmando a luta e a resistência, pois, apesar das mudanças, a
igualdade ainda está longe de ser alcançada.
Chaui (1980, p. 31) acrescenta que a
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em algumas formações discursivas, se é preciso marchar (FD da
tomada de atitude) é porque a sociedade entende as mulheres
com determinados sentidos possíveis: frágil, não tem voz, não
pertence ao espaço público, não vai às ruas (formação discursiva
histórica e social). A posição de marcha tenta romper com sentidos
cristalizados, romper com o círculo de repetição da condição das
mulheres, ou seja, sair do silenciamento. De acordo com Zoppi-
Fontana e Ferrari (2017, p. 15), “as lutas pelo conhecimento e as
práticas de resistência às diversas formas de dominação surgem no
interior do processo de interpelação ideológica e não fora dele”.
Dessa forma, segundo Paveau (2013, p. 91), a memória
está diretamente ligada
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As condições de produção, que constituem os discursos,
funcionam de acordo com certos fatores. Um deles é o que
chamamos relação de sentidos[...] Não há discurso que não se
relacione com outros. Em outras palavras, os sentidos resultam
das relações: um discurso aponta para outros que o sustentam,
assim como para dizeres futuros (ORLANDI, 2015, p. 37).
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a transformação de enunciados pertencentes a formações
discursivas historicamente contíguas. Não se trata, portanto, de
uma memória psicológica, mas de uma memória que supõe o
enunciado inscrito na história.
Considerações
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e, como símbolo de resistência, denuncia as práticas que foram
silenciadas. Nesse sentido, a resistência contra o que é instaurado
sócio-historicamente: as mulheres continuam lutando, como no
século XIX, pelos seus direitos e, principalmente, nas CPs atuais,
por respeito.
O sujeito é um indivíduo concreto, que irá se constituir por
meio da interação social. É na sociedade que ele encontra lugar
para sua prática de ser. Esse processo ocorre devido à linguagem,
por meio do sistema de valores no qual ele é marcado socialmente,
pela memória discursiva que o sustenta, pelos atravessamentos
ideológicos que o determinam.
Desde a instituição do dia da mulher até hoje, quantas
mulheres silenciaram e quantas se apropriaram do discurso de
luta? Hoje, o dia da mulher significa no comércio, nos movimentos
feministas e, até mesmo, para quem desconhece a história de luta
por direitos (sufrágio, leis trabalhistas, entre outros). A luta, hoje,
envolve e denuncia questões como a falta de respeito, a violência,
as relações de poder, entre outras, assim consideramos que os
sentidos estão e sempre estarão em circulação.
Além disso, o silêncio que existiu por anos era, também,
uma forma de resistência e de luta. O silêncio é a resistência: a
mulher está lutando e, ao mesmo tempo saindo da posição de não
lutar. Portanto, os atravessamentos ideológicos são responsáveis
por fazer com que os sujeitos signifiquem e ressignifiquem a partir
das suas relações. Também, as condições de produção demonstram
a necessidade de continuar despertando reflexões sociais nesse
novo momento sócio-histórico (em que as minorias estão sendo
abafadas novamente) acerca da posição sujeito mulher.
O discurso presente na tirinha ilustra muitos dos discursos
atuais: é o desejo de falar, de exteriorizar, de resistir. A luta tem
função de resgate e de reflexão social. Que possamos seguir!
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Referências
KOCH, Ingedore Villaça. A inter-ação pela linguagem. 11ª ed. São Paulo:
Contexto, 2012.
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ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos
sentidos. 6ª ed. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2007.
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SILVA, Suzete; OLIVEIRA, Esther Gomes de; OLIVEIRA, Lolyane
Cristina Guerreiro de. A expressividade argumentativa do adjetivo no
texto publicitário. Signum: Estudos da Linguagem. V. 16, n.º 1/2013.
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O QUE A ARTE URBANA PODE ENSINAR
PARA UMA CIDADE?
ABSTRACT: THis article presents the city as a formative field, principles of the
concept of the Educating City and its development in Brazil. In this context, the city
continues with school education and specifically seeks to link the images of the city
explored through the urban art present in the murals and graffiti of public schools
and to establish their relations with the context and social development. We present a
bibliographic study with contributions from the authors that inspired the Brazilian
educating cities, helping to understand the concept beyond the political and economic
dictates about the development of the educating cities, bringing the concept closer to the
reality explored in the projects, laws and research of the authors mentioned, in addition
to explain their practical experiences. Seeking the interaction between city, school and
urban art, bringing concepts together in an attempt to propose a different look at urban
images. Images that educate, that transform the environment, that propose thinking,
curiosity and awareness for certain current issues, images that disturb us and make
us seek to know more about the theme explored in urban art.
KEY WORDS: education; urban art; Educating City.
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Introdução
Um rosto negro com sorriso aberto olhando para o alto através de seus
grandes óculos; no balão que sai de seus lábios carnudos a frase: seja
você mesmo (Descrição do grafite de Carão em um muro escolar, 2017).
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[...] o artístico desperta necessariamente no público uma
emoção especial, de encantamento e enlevo ou até mesmo de
medo, que pode ser identificada como prazer estético, pois
surge da contemplação e da fruição da obra, de suas qualidades
formais e de linguagem. Essa emoção difere daquela que temos
cotidianamente diante dos fatos da vida, porque sabemos que
ela é fruto da imaginação do autor e da nossa também, que é
capaz de entendê-la. Assim, tanto o prazer que sentimos diante
de uma paisagem agradável como a sensação de suspense que
temos ao ver alguns filmes resultam do domínio do autor sobre a
arte com a qual se expressa, das qualidades estéticas de sua obra
(COSTA, 2001, p. 19-20).
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Temos como exemplo, nesse âmbito, a experiência do
grafiteiro Kobra (2020), que utilizou, no painel desenvolvido
na Universidade do Vale do Taquari (RS), os rostos de Darcy
Ribeiro, Clarice Lispector e Paulo Freire, na série Olhares da
Educação (2020), a fim de retratar personalidades que lutaram
pela educação no Brasil e influenciaram muitas gerações; há
outras séries de grafites, como Etnias (2006) e Muro das Memórias
(2007), em que reproduziu fotos antigas de São Paulo em tons
de sépia e preto e branco; Green Pincel (2011), em prol de causas
ecológicas; Realidade Aumentada (2015), com questões particulares
importantes, como um morador de rua que escreve poemas;
mais recentemente e atual, Recortes da História, com releituras
de momentos históricos importantes em grandes murais; entre
tantos outros grafites desenvolvidos, os quais relatam, por meio das
imagens, a história, o cotidiano e as etnias. O artista deseja que o
leitor pare e pense, busque e reflita sobre, observe além da beleza
de sua produção e continue aguçado na tentativa de aumentar seu
repertório em relação ao assunto.
Em entrevista, o grafiteiro Eduardo Kobra (2020) coloca:
“Todos os murais que realizo não são apenas pinturas, são portais
para que as novas gerações busquem conhecer mais da história
do que está em cada painel”. Para ele, a “arte muda a vida das
cidades, faz as pessoas conhecerem um universo muito maior de
informações”.
Diante do exposto sobre a arte urbana, consideramos que
a Cidade Educadora seja explorada como conceito e literatura
basilar para o desenvolvimento desta pesquisa, que tem por
objeto as representações artísticas denominadas aqui “arte urbana”
ou “arte de rua”, alocadas nos muros das escolas. Intentamos
compreender como e por que esses espaços de interface entre a
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escola e a cidade são ocupados pela comunidade escolar e em que
medida podem ser compreendidos como “pontes” entre a escola e a
cidade. Para tanto, interessa sobremaneira entender o conceito de
Cidade Educadora, considerando-o em sua historicidade. Neste
texto, apresentamos o resultado de um estudo bibliográfico com
aporte em autores que nos auxiliam a compreender o conceito
para além dos ditames políticos e econômicos.
Esse conceito ganhou força e notoriedade com o
movimento das Cidades Educadoras, que teve início em 1990 com
o I Congresso Internacional de Cidades Educadoras, realizado
em Barcelona, na Espanha. Nesse encontro, um grupo de cidades
pactuou um conjunto de princípios centrados no desenvolvimento
dos seus habitantes que orientariam a administração pública.
Produziu-se uma Carta, a qual foi revista no III e no XIII
Congresso Internacional, de Bolonha (1994) e de Génova (2004),
respectivamente, a fim de adaptar as suas abordagens aos novos
desafios e às necessidades sociais, priorizando o desenvolvimento
dos habitantes das cidades, pois eles não podiam ser deixados ao
acaso.
Em 2020, o movimento alargou-se por vários países do
mundo e cidades que desejam receber o selo de educadoras
precisam comprovar o efetivo desenvolvimento de ações e políticas
públicas elencadas no documento que regulamenta o que se define
por Cidade Educadora.
Para discorrer sobre o conceito, foram definidos os
autores do campo teórico: Sonia Miranda, Andrea Medeiros e
Fabiana Almeida (2016) ; Silvia Alderoqui (2003), Yi-Fu Tuan
(2013), Adriana Fontes (2017), Jaqueline Moll (2013), Zygmunt
Bauman (2005); e os inspiradores do campo teórico das Cidades
Educadoras: Anísio Teixeira apud Ferrari (2008), Mário de
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Andrade apud Faria (1999), Paulo Freire apud Menezes e Santos
(2001), Milton Santos (2007), Moacir Gadotti (1992) e Ladislau
Dowbor (2006), a fim de compor o cenário teórico com aspirações
práticas das Cidades Educadoras brasileiras.
“Uma Cidade Educadora é aquela que, para além de
suas funções tradicionais, reconhece, promove e exerce um
papel educador na vida dos sujeitos, assumindo como desafio
permanente a formação integral de seus habitantes” (Educação e
Território. https://cidadeseducadoras.org.br/conceito, acesso em
dez/2019). Na Cidade Educadora, então, os diferentes espaços,
políticas, tempos e atores são compreendidos como agentes
pedagógicos, capazes de apoiar o desenvolvimento de todo
potencial humano.
A Cidade Educadora deve ocupar-se prioritariamente com as
crianças e jovens, mas com a vontade decidida de incorporar pessoas de
todas as idades, numa formação ao longo da vida. A Carta supracitada
é, ainda hoje, o referencial mais importante da Associação
Internacional de Cidades Educadoras, que reúne 470 cidades de
36 países em todo o mundo. Atualmente, 20 municípios compõem
a Rede Brasileira de Cidades Educadoras.
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o tratamento do currículo escolar, provendo uma perspectiva
humanista.
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relação direta com os elementos da cultura visual (MIRANDA;
MEDEIROS; ALMEIDA, 2016, p. 19).
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delas, pois: “Assim, como a cidade não é apenas uma estrutura
externa a seus habitantes, mas é produzida por eles, a arte pública
contemporânea se propõe a ser uma força constitutiva no modo de
construção das interações sociais, tornando-se parte significativa
da vida urbana” (p. 349).
A imagem não somente cristaliza uma dada realidade
social, mas responde ativamente às solicitações de seu meio, às
exigências de sua classe, aos problemas morais, sociais e políticos
de sua época. “Sua resposta importa num desvendamento ou numa
constatação, numa descoberta ou numa recusa, sem excluir-se a
própria aceitação daquilo que existe e que, no entanto, recebe,
na obra, uma expressão reveladora e ampla dirigida a todas as
consciências” (NUNES, 1991, p. 98).
Em seu artigo publicado em comemoração aos 20 anos
das cidades educadoras, intitulado “A cidade e os seus caminhos
educativos: escola, rua e itinerários juvenis” (2013), Jaqueline Moll
faz a seguinte pergunta: “será possível compreender a rua como
uma grande escola ignorada?” (p. 216). A autora trilha seu artigo
procurando respostas em pesquisas que nos levam a compreender
que a rua pode ser educativa quando permeada de ações educativas
coletivas, ações intencionais e identitárias de grupos que habitam
e exploram pedagógica, política e culturalmente a cidade e seus
múltiplos territórios.
Conceitos de Cidade Educadora podem alargar nossa
compreensão de educação, reinventar a escola e reinventar a cidade.
Pretende-se que esses movimentos ousem na intencionalidade das
ações desenvolvidas, convertendo a cidade em território educativo
e fazendo da cidade uma pedagogia. “A cidade democrática e
educadora, espaço de muitas trilhas é, portanto, uma utopia a ser
reanimada, porque mais uma vez nos remete aos sonhos coletivos
de uma vida feliz, sustentável e solidária neste planeta” (p. 224).
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Para Silvia Alderoqui, em “La ciudad um território que
educa” (2003, p. 154), “a cidade se converte em potencial espaço
simbólico da construção da cidadania, um espaço físico, um lugar
que é uma ‘trincheira da identidade’”. No mais, a autora busca
relacionar a cidade e a cidadania. Diferenciando como produtora
da vida cotidiana a cidadania, exemplifica que nas grandes cidades,
como São Paulo, México e Buenos Aires, “os espaços de identidade
se converteram em lugar hostil e talvez inimigo da cidadania”
(Alderoqui, p. 155). Enquanto a cidade se refere ao contexto
educativo, pois as escolas estão dentro da cidade, aprende-se na
cidade. Sendo assim, a cidade seria agente da educação informal.
Para Alderoqui (2003), ainda, não pode haver cidade que
educa se não há projeto urbano estruturado, ou seja, um espaço
público urbano. Ao mesmo tempo, a cidade é uma construção social
contraditória e pluridimensional. A autora acredita, além disso,
que a sociedade deve reconquistar os espaços públicos, garantir
a segurança viária, fazer uso inovador das escolas, transformar a
cidade como espaço de experiências urbanas. “Deste modo, todas
as instituições, empresas profissionais se corresponsabilizem e se
façam solidárias com um projeto educativo da cidade para que ‘as
diferenças não sejam sede das desigualdades’” (FRIGERIO, 2001,
apud ALDEROQUI, 2003, p. 174), para que todos os “cidadãos
mereçam sua cidade, para que as cidades voltem a serem lugares de
esperança e riqueza onde, em vez de crianças de rua, haja crianças
pelas ruas” (p. 174).
Essas são etapas fundamentais no processo pelo qual
nos tornamos quem somos. Trata-se de uma relação complexa
entre o individual e o coletivo, que envolve a participação ativa
na transformação de si, do outro e do mundo. Cria-se, então, a
possibilidade de falar, aprofundar, questionar, esclarecer, explicitar
ideias e compreensões sobre a leitura e outros temas grafitados
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e pintados nos muros da escola. As imagens desenvolvidas nos
muros escolares podem redimensionar o olhar e a condição dos
estudantes ao observarem o mundo.
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1 Gestão democrática garantindo a autonomia administrativa e
financeira; 2 Comunicação direta com as escolas – pólo irradiador
da cultura para construir e elaborar cultura; 3 Da autonomia
da escola – cada escola poderia escrever seu próprio Projeto
Pedagógico; 4 Da avaliação permanente do desempenho escolar,
o princípio da avaliação remete ao primeiro princípio, o da gestão
democrática.
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coletivo, e surge como um importante legado das intervenções
temporárias praticadas nos espaços coletivos. Esse aporte teórico
pode contribuir para o projeto de novos espaços coletivos que
permitam, e estimulem, mais intervenções temporárias, sempre
visando à cidade como a reunião de espaços coletivos mais
amáveis (FONTES, 2017, p. 69).
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“Enquanto as crianças estavam no parque, não estavam
trabalhando, estavam conhecendo várias manifestações da cultura
brasileira” (FARIA, 1999, p. 63). O PI garantia o direito ao espaço
público para o operariado, fazendo parte do projeto municipal de
urbanização da cidade. A educação deveria ser: moral, higiênica e
estética. As instrutoras deveriam brincar com as crianças, ensiná-
las a brincar e a preservar as brincadeiras tradicionais. Assim, a
criança, para Mário de Andrade, é portadora da cultura de sua
classe e o PI é um local privilegiado para conhecê-la.
Mário de Andrade pode ser visto também como um
“pioneiro das idéias relativas ao desenho como antecipação da
escrita, como forma de grafismo, como uma das linguagens”
(FARIA, 1999, p. 73). O poeta, preocupado com a identidade
nacional, pretendia fazer com que a cultura popular estivesse
presente na formação da identidade brasileira.
Para Dowbor (2006, p. 2), a título de complementação, “a
educação não deve servir apenas como trampolim para uma pessoa
escapar da sua região: deve dar-lhe os conhecimentos necessários
para ajudar a transformá-la”.
Determinadas características físicas podem resultar tanto
em um espaço hostil quanto em um espaço potencialmente
atraente. A qualidade urbana se cria, portanto, por meio da
união dos atributos do lugar. Sendo assim, a “possibilidade da
amabilidade se transforma em uma situação real quando ocorre
sobre um espaço potencialmente atraente uma intervenção
temporária bem sucedida, tornando-o um espaço amável”
(FONTES, 2017, p. 72).
Em outros termos, um bom conhecimento da realidade,
sólidos sistemas de informação e transparência na sua divulgação
podem permitir iniciativas inteligentes por parte de todos. Uma
274 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
“educação que insira nas suas formas de educar uma maior
compreensão da realidade local terá de organizar com os diversos
atores sociais que constroem a dinâmica social” (DOWBOR,
2006, p. 6-7).
275 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
As novas responsabilidades da escola eram, portanto, educar
em vez de instruir; formar homens livres em vez de homens dóceis;
preparar para um futuro incerto em vez de transmitir um passado
claro; e ensinar a viver com mais inteligência, mais tolerância
e mais felicidade. Para isso, seria preciso reformar a escola,
começando por dar-lhe uma nova visão da psicologia infantil.
O próprio ato de aprender, afirma Anísio, durante muito
tempo significou simples memorização; depois, seu sentido passou
a incluir a compreensão e a expressão do que fora ensinado;
por último, envolveu algo a mais: ganhar um modo de agir. Só
aprendemos quando assimilamos um conteúdo de tal maneira
que, chegado o momento oportuno, sabemos agir de acordo com
o aprendido.
Para o pensador, não se aprendem apenas ideias ou fatos,
mas também atitudes, ideais e senso crítico – desde que a escola
disponha de condições para exercitá-los. Assim, uma criança só
pode praticar a bondade em uma escola onde haja condições reais
para desenvolver o sentimento. A nova psicologia da aprendizagem
obriga a escola a se transformar em um local onde se vive, não em
um centro preparatório para a vida. Como não aprendemos tudo
o que praticamos, mas aquilo que nos dá satisfação, o interesse
do aluno deve orientar o que ele vai aprender. Portanto, é preciso
que ele escolha suas atividades.
Quanto à disciplina, Anísio afirma que o homem educado é
aquele que sabe ir e vir com segurança, pensar com clareza, querer
com firmeza e agir com tenacidade. Numa escola democrática,
mestres e alunos devem trabalhar em liberdade, desenvolvendo a
confiança mútua, e o professor deve incentivar o aluno a pensar
e a julgar por si mesmo. “Estamos passando de uma civilização
baseada em uma autoridade externa para uma baseada na
276 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
autoridade interna de cada um de nós”, coloca ele em seu livro
Pequena introdução à filosofia da educação (1968, p. 53).
Para ser eficiente, ressalta Anísio, a escola pública para
todos deve ser de tempo integral para professores e alunos, como
a Escola Parque por ele fundada em 1950 em Salvador, que mais
tarde inspiraria os Centros Integrados de Educação Pública
(CIEPs) do Rio de Janeiro e as demais propostas de escolas de
tempo integral que se sucederam.
Cuidando desde a higiene e a saúde da criança até sua
preparação para a cidadania, essa escola é apontada como solução
para a educação primária no livro Educação não é privilégio,
também publicado em 1968. Além de integral, pública, laica e
obrigatória, a escola deveria ser municipalizada, para atender
aos interesses de cada comunidade. O ensino público deveria ser
articulado numa rede até a universidade. Anísio propôs, ainda,
a criação de fundos financeiros para a educação, o atual Fundo
de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de
Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).
Segundo o Instituto Paulo Freire (IPF), a Escola Cidadã
defende a educação permanente e tem uma formatação própria
para cada realidade local, de modo a respeitar as características
histórico-culturais, os ritmos e as conjunturas específicas de cada
comunidade, sem perder de vista a dimensão global do mundo
em que vivemos.
Para tanto, o seu projeto político-pedagógico é elaborado
com base na realização de um diagnóstico da realidade escolar
chamado Etnografia da Escola, que possibilita a construção
de um currículo escolar fundamentado na criação de espaços
interculturais, por sua vez, trabalhado nas perspectivas inter
e transdisciplinar, que levam em conta a dimensão da razão e
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da emoção, portanto, a técnica, a sensibilidade e a criatividade.
“Nesse sentido, a Escola Cidadã é democraticamente organizada
e pedagogicamente alegre, criativa e ousada” (MENEZES;
SANTOS, 2001).
Considerações finais
278 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
O conceito de Cidade Educadora procura articular os
espaços da cidade que promovem o conhecimento, buscando, na
perspectiva humanista, as sensibilidades e as sociabilidades de cada
lugar, de cada cidade, possibilitando a formação da consciência no
espaço público, posto aqui pela cultura visual, produzida pela arte
urbana. Cada cidade gera seus próprios símbolos, cria as imagens
que julga necessário comunicar e explicitar, como uma forma
de revelação ampla a todas as consciências, formando, assim, os
espaços coletivos desse local, possibilitando a todos os cidadãos
a alegria, a ousadia e o prazer da identidade local.
Diante de todos os argumentos e fundamentações
apresentados, podemos afirmar que a arte urbana é ponto fundante
para uma Cidade Educadora, emprenhada de múltiplas leituras,
reinterpretando os espaços e elegendo-os como grandes páginas
de livros que inundam a cidade, convidando todos a lerem. Dessa
maneira, a arte urbana entra na sala de aula, da mesma forma
que a sala de aula se apropria da arte urbana para promover a
cultura, a história, diagnosticar os problemas sociais, raciais,
econômicos, entre tantos outros temas explorados nessa arte capaz
de sensibilizar para novos horizontes.
279 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
Imagem 1 – Grafite de Carão em um muro escolar de Londrina-
PR (2017)
Referências
280 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
KOBRA, Eduardo. “A arte muda a vidas das cidades”, diz Kobra, que
pintou muro com Clarice Lispector, Darcy Ribeiro e Paulo Freire.
Entrevista concedida a Luiza Piffero. Gauchazh, Rio Grande do
Sul. Disponível em https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/
noticia/2020/02/a-arte-muda-a-vida-das-cidades-diz-kobra-que-
pintou-muro-com-clarice-lispector-darcy-ribeiro-e-paulo-freire-
ck6l2uqa70gt301mvtu27t0he.html. Acesso em: fev. 2020.
281 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
MENEZES, Ebenezer Takuno de; SANTOS, Thais Helena dos. Verbete
escola cidadã. Dicionário Interativo da Educação Brasileira - Educabrasil.
São Paulo: Midiamix, 2001. Disponível em: <https://www.educabrasil.
com.br/escola-cidada/>. Acesso em: 29 de mar. 2020.
282 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
STORYBOARD DA CENA DO JANTAR EM
SHREK 2 (2004): O PERCURSO CONSTRUTIVO
NA ANIMAÇÃO DIGITAL
1
Doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina. Professor do
Curso de Letras da UniFil – EAD e da Secretaria do Estado da Educação do PR-SEED.
2
Doutora em Letras pela UNESP/Assis e Pós-doutoramento em Teoria/Crítica Literária
pela UFMG. Professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem –
PPGEL da Universidade Estadual de Londrina.
283 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
the construction of meanings in the aforementioned movie through the postulates of the
genesis of creation, theoretical approaches to cinematography, and a semiotic approach.
KEYWORDS: Genetic Criticism; Computer Animation; Storyboard; Genesis of
creation.
Introdução
284 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
documentos nos oferecem, é possível aproximar-se do movimento
criador.
Salles (2006) defende a obra de arte como processo em
construção, sem início nem fim e com características marcantes
como simultaneidade de ações, dinamicidade, associações,
transformações que transcorrem à margem da memória, dos
registros de percepção e da pluralidade individual, portanto
relacionada ao conceito de rede. O objeto de pesquisa da referida
autora lida com anotações provindas de linguagens verbais e
visuais e destaca determinadas relações que se imbricam na
construção da obra.
Com a dilatação das fronteiras dos estudos genéticos,
amplia-se o significado de manuscrito. Lida-se, assim, com índices
de materialidades diversas: rascunhos, roteiros, esboços, plantas,
maquetes, copiões, ensaios, storyboards, cadernos de artistas, dentre
outros. O presente artigo investiga o processo criativo fílmico por
meio da análise do storyboard de uma cena da obra cinematográfica
Shrek 2 (2004).
Salles (2008) justifica a ampliação de documentos de
processo na Crítica Genética já que o interesse do crítico genético
é o movimento criador em sentido amplo, uma vez que ele tem
que se desvencilhar da relação direta Crítica Genética e rasura
verbal ou Crítica Genética e rascunho literário, relação essa
estabelecida pela origem dos estudos genéticos. Para que esses
estudos avancem, o parâmetro tem que deixar de ser a palavra e ser
deslocado para alguns aspectos de natureza geral. Os documentos
de processo são, portanto, registros materiais do processo criador.
São retratos temporais de uma gênese que agem como índices
do processo criativo.
285 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Crítica genética
286 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
buscam compreender os mecanismos da produção, elucidar os
caminhos seguidos pelo escritor e entender o nascimento da obra.
3
Tradução nossa: “através do qual somos capazes de dar movimento a imagens feitas de
frames individuais. O segredo dessa ilusão está na notável capacidade de uma parte do olho
humano, a retina, de momentaneamente reter qualquer imagem que recebe. É esse ligeiro
espaço de tempo de retenção ou atraso que permite a separação de imagens sequenciais,
se vistas em rápida sucessão, transformando-as em imagens em movimento e é baseado
nesse princípio que funciona a projeção de filmes e vídeos” (WEBSTER, 2005, p. 04).
287 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
de um ponto de vista técnico, o facto de, no primeiro, as imagens
serem registadas fotograma a fotograma e não de uma forma
contínua. Daí que a ilusão de movimento a que nos referimos
seja não apenas uma consequência da dinâmica representada em
cada imagem, mas sobretudo – como refere Norman McLaren,
um dos mais ilustres criadores desta forma de expressão – dos
movimentos entre as imagens (NOGUEIRA, 2010, p. 59).
288 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
e de reagir. O inorgânico torna-se orgânico, o material torna-se
espiritual (NOGUEIRA, 2010, p. 60).
Fossati (2011) pondera que existe um potencial educativo
no mundo animado, já que o mundo dos sonhos e da fantasia
se converte em uma doce e branda maneira de se refletir sobre
o mundo, por pertencer o desenho animado ao mundo feérico.
As etapas do processo de animação de um filme longa-
metragem 3D CGI, de acordo com o site da Pixar Animation
(2020), são divididas em sete fases. A primeira desenvolve-se das
versões preliminares do roteiro, quando são elaborados desenhos
de conceito de todos os personagens e cenários.
A segunda é a produção do Storyboard, ou seja, o esboço
das sequências de cenas em preto e branco, com o objetivo de
se estudar e compreender a visualidade, o ritmo e a dinâmica
dos episódios. O storyboard também informa ao roteirista o
“comportamento” do roteiro que, nesta fase, já foi criado, mesmo
que ainda não tenha chegado à versão final;
A terceira fase é o Animatic. Nela, o storyboard é colocado
em movimento, ou seja, os quadros desenhados são fotografados
e editados para que se possa ter uma primeira noção acerca do
tempo de duração das cenas e o ritmo geral de todo o programa.
Já na quarta fase, acontece a Modelagem de personagens e
cenários, fase em que se transfere o que foi feito na arte conceitual
(desenhos/ilustrações) para a forma 3D em wireframe.
A quinta fase é a texturização e colorização de personagens
e cenários.
Na fase seis, acontece a composição das cenas e animação,
sendo esse o momento de dar vida aos personagens, tornando seus
movimentos o mais real possível, registrando esses movimentos na
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tela do computador e combinando-os com cálculos matemáticos.
A última fase, a sétima, é denominada Iluminação e render, ou
seja, é a transformação dos dados matemáticos do computador
em vídeo digital.
A relevância do storyboard
290 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
documento carregado de intenções do diretor ou produtor, sendo
essencial para o diretor em seu processo de criação.
Existem alguns elementos presentes em todos os
storyboards, ainda que com diferentes formas e significados, como
a demarcação de enquadramentos e indicadores de movimento
como setas e linhas direcionais. Uma seta, por exemplo, pode
significar para um documento a movimentação de um personagem,
uma mudança de close, a direção de uma fonte sonora, ou mesmo
a entrada de novas fontes de iluminação.
A produção do storyboard também ganha importância
quando se leva em conta que realizar um vídeo é uma atividade
essencialmente coletiva. Por isso, a equipe deve estar em sintonia
quanto ao projeto que está desenvolvendo. Se isso não ocorrer,
cada membro terá um filme diferente na cabeça, e a consequência
será uma obra de arte pouco coesa.
Também é importante que o artista de storyboard tenha
uma ideia precisa sobre as condições econômicas do projeto. Isso
porque, no caso da animação, é ele quem deve ser capaz de manter
um equilíbrio entre as sequências que necessitam de full-animation
– processo mais caro e trabalhoso – e as sequências de animação
mais modestas. É ele também o responsável pelo planejamento
dos cenários, podendo reaproveitá-los e assim economizar tempo
e energia dos profissionais envolvidos. Como na animação todos
os ambientes são criados, as ações podem se dar em mundos
paralelos, em um país diferente a cada plano, e até mesmo em
planetas diferentes. Mas, mesmo assim, uma abundância de
cenários distintos pode ser sinônimo de custos altos.
291 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Conrad vernon e a produção do storyboard
292 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
de sentido, pois ela teria que ser, literalmente rasgada, com o
propósito de demonstrar o ódio momentâneo dos personagens.
Para este trabalho, analisamos a relevância do storyboard
da cena do jantar entre Shrek e o Rei Harold. Após serem
apresentados ao genro, Harold e Lílian oferecem um jantar
especial de boas-vindas para Shrek e Fiona, mas Shrek não está
habituado à etiqueta real. Ele engole os escargôs servidos com
concha e tudo, bebe a água de lavar os dedos pensando ser sopa
e, sem querer, engole uma colher, para logo em seguida cuspi-la.
Seus hábitos de ogro parecem ofender o Rei Harold e incomodar
Fiona; já o Burro, fiel escudeiro, fica feliz com toda aquela comida.
Rei Harold não aceita um ogro na família e Shrek acha que o Rei
foi um mau pai.
Como método de análise, apresentaremos o storyboard
retirado do DVD especial da DreamWorks, composto por 109
desenhos. Para essa amostra de análise, trinta e três deles serão
apresentados e dispostos na sequência (da esquerda para a direita,
horizontalmente).
293 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Imagem 1 - Storyboard - Cena do jantar (Shrek 2 2004).
4
Fonte: Shrek 2 (2004) – DVD bônus
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com aquele primeiro jantar com os sogros, quando ninguém está
confortável e ninguém se conhece.
pode se dar através das mais diversas formas, sejam elas críticas,
escárnio, quebra de expectativa, ou outras. Independente da
forma em que se dê [...], o humor é uma forma de revelar e de
flagrar possibilidades de visão do mundo e das realidades culturais
que nos cercam. Assim sendo, o humor é uma manifestação
comunicativa por excelência (VERNON, 2004).
295 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Dave disse: você deveria ter uma ave de rapina enorme, pronta
para atacar o Shrek, bem atrás dele, o tempo todo. Achei a idéia
bárbara!
Aquelas garras ameaçadoras atrás dele o tempo todo, durante o
jantar (VERNON, 2004).
296 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Imagem 2 – Storyboard olhar de Rei Harold Imagem nº 3- Cena
finalizada
297 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
componentes, angulações e elementos que auxiliam na narrativa
e na ambientação:
- Quando ela diz, Shrek! Parece que está falando com o rei. Faz
sentido, mas na verdade engana os olhos.
298 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
fala dos personagens em relação aos interlocutores. Fica evidente,
na cena, a importância dos registros de experimentação que
possibilitam que as tomadas possam se concretizar em diferentes
formas e ângulos, ou seja, são tentativas presentes no ato criador.
Ao estudarmos a origem da cena, descobrimos que era para
ser outra, ou seja, uma cena de festa de boas-vindas ao casal
protagonista. Entretanto, devido a muitos problemas com os
elementos técnicos, a equipe resolveu optar pela cena do jantar:
299 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Outro ponto importante da cena foi a comida e a maneira
francesa de se distribuírem os talheres à mesa. Como se pode
visualizar, a seguir, um recorte do storyboard mostra os talheres
colocados conforme a etiqueta mencionada:
300 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
- O garfinho de ostras, menor que os demais, é o único que fica à
direita com as facas, antes da colher de sopa. Afinal, caso servido,
deve ser o primeiro prato.
- Caso seja servido algum fruto do mar que possa ser degustado
com as mãos, deve-se colocar lavanda com limão à mesa para
limpar os dedos.
Fonte: Como servir à francesa: <https://www.terra.com.br/
mulher/infograficos/etiqueta-a-mesa/etiqueta-a-mesa-05.htm>
Acesso em: 12 jun. 2020.
301 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
O “comer” é um ato portador de inúmeras representações
simbólicas e, portanto, é preciso compreender que determinadas
práticas, assim como determinados alimentos, são símbolos
máximos de complexidade cultural para distintos grupos sociais.
Por vezes, estes símbolos denunciam muito das estruturas sociais
vigentes, territorialidades, patrimônios culturais, tradições e
identidades (MACIEL, 1996, p.03).
302 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
da história. Isso poderia marcar, de certa forma, a transição da
era Mesolítica para a Neolítica. Era fácil, relativamente simples
e sem nenhum risco para os seres humanos primitivos a criação
desses animais para a alimentação, daí a escolha do prato pela
direção do filme.
Outro costume de época, peculiar às famílias nobres, era o
uso de lavandas em suas mesas, ou seja, um recipiente com água
e limão para lavar os dedos. Normalmente, em mesas postas com
esse recipiente são servidos pratos que devem ser comidos com as
mãos. Esse elemento foi utilizado no filme, justamente para que
o ogro pudesse demonstrar toda a sua falta de civilidade:
303 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Segundo Chion (2011), os componentes da trilha sonora
que subsidiam o processo criativo no cinema são a voz, os ruídos, o
silêncio e a música. Francisco (2017) complementa que ruídos são
necessários à construção das cenas para trazerem maior realidade
à história, uma vez que a associação entre ruído e imagem atua
como campo de testagem do artista, na tentativa de alcançar o
melhor resultado que irá para as telas:
304 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Imagem nº 8 – Storyboard do jantar Imagem nº 9 – Cena do jantar rendenizada
305 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
O momento mais importante, o mais difícil na criação artística é
um momento de saber terminar uma obra, quando é que uma obra
está terminada? Quando todos os componentes, esses detalhes
que estava explicando na própria percepção, tudo isso se encaixa
numa ordem que é justa, onde tudo se justifica (ADAMSON,
2004).
Considerações Finais
306 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
fundamental na equipe de produção, direcionando o trabalho do
grupo, pois transmitem informações que cristalizam momentos
da criação como partes de um organismo em atividade.
Necessário salientar que a animação digital tira a rigidez
das personagens do desenho animado tradicional, uma vez que o
universo criado por computador fica mais convincente e próximo
do real. No entanto, ao detalhismo das cenas contrastam rostos
cartunescos que enfatizam tratar-se de um desenho animado.
Em relação às dificuldades para se conseguir curvas orgânicas e
formas humanas, pudemos constatar a necessidade da moldagem
de estátuas de barro tridimensionais, escaneadas posteriormente
com um digitalizador tridimensional para traduzir os objetos em
dados. Dessa forma, o computador pôde interpretar tais dados,
conectando, assim, os pontos da superfície, pois quando a forma
do modelo é mapeada, pode ser vista de todas as perspectivas.
O cinema passou por uma revisão de paradigmas e, da
mesma forma, o gênero de animação reformatou-se. A ascensão da
computação gráfica contribuiu para o desenvolvimento do cinema
de animação digital, garantindo-lhe maior precisão técnica, como
se pôde perceber ao longo do presente artigo.
Referências
307 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Aron Warner. Califórnia: DreamsWorks Animation, 2004, 1 DVD
(105 min.) son., color.
HAY, Louis. O texto não existe: reflexões sobre a crítica genética. In:
ZULAR, Roberto. Criação em processo: ensaios de crítica genética.
São Paulo: Editora Iluminuras Ltda., 2002, p. 29-44.
308 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
HOPKINS, John. Shrek: from the swamp to the screen. New York:
Harry N. Abrams, 2004.
309 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
PRATOS FRANCESES e modos de servir à mesa. Disponível em:
<https://www.terra.com.br/mulher/infograficos/etiqueta-a-mesa/
etiqueta-a-mesa-05.htm> Acesso em 10 jun. 2020.
310 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
A ARGUMENTATIVIDADE DOS RECURSOS
ENCANTADORES E MOTIVADORES EM
PROPAGANDAS MULTIMODAIS
ABSTRACT: The main objective of this work is to show how the argumentative
resources that make up the multimodal advertising genre cause different impacts
on the interpretation performed by the reader. We propose a study of the multiple
languages used
in the genre and the meanings emanating from them. The analyzes
were performed, considering the theoretical framework of Argumentative Semantics
and Multimodality, defended by Koch (2002), Citelli (2005), Santaella and Nöth
1
Ednéia de Cássia Santos Pinho é Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade
Estadual de Londrina e docente na mesma universidade.
2
Esther Gomes de Oliveira é Doutora em Linguística e Semiótica Geral pela Universidade
de São Paulo (USP). Atualmente é professora Associada C da Universidade Estadual
de Londrina.
311 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
(2011), Dionisio and Vasconcelos (2013), among other scholars. This article presents
part of the results obtained in one of the categories of analysis of the doctoral thesis
entitled “Argumentation and multimodality in teaching reading in the advertising
genre”, (PINHO, 2018). We found that, in advertisements, there are resources with
a more subjective character, called enchanting; and others, with a less emotional
character, considered motivating.
KEY-WORDS: Argumentative resources. Advertisements. Multiple languages.
Introdução
312 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
tese de doutorado3 intitulada “Argumentação e multimodalidade
no ensino de leitura do gênero anúncio publicitário”.
A pesquisa foi realizada com o objetivo de entender
como os leitores, em especial os alunos do ensino fundamental
II (6º ano), reconheciam os recursos argumentativos aplicados
nas propagandas multimodais e interativas. Para isso, foram
realizadas atividades escritas sobre o conteúdo de duas
propagandas: uma impressa e uma digital e interativa de um
mesmo produto, a fim de analisar como as linguagens foram
percebidas pelos jovens leitores. Nessa pesquisa, o objetivo
também era discutir a necessidade de se manter um trabalho em
sala de aula, envolvendo os mais diversos gêneros textuais, de
modo especial o anúncio publicitário.
A seguir, apresentaremos partes dessa pesquisa, trazendo
conceitos relacionados ao gênero propaganda multimodal,
à argumentação e, por fim, às definições e análise do que
denominados “recursos encantadores” e “recursos motivadores”.
3
A pesquisa completa está disponível na Biblioteca Digital da Universidade Estadual
de Londrina e pode ser acessada pelo link: http://www.bibliotecadigital.uel.br/
document/?code=vtls000225301. Acesso em: 19 jan. 2021.
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certezas”. Ainda, segundo a autora, a linguagem é uma forma de
ação dotada de intencionalidade.
Nessa perspectiva, Citelli (2005, p. 6) corrobora tal
posicionamento, declarando que “o elemento persuasivo está
colocado ao discurso como a pele ao corpo. É muito difícil
rastrearmos organizações discursivas que escapem à persuasão”.
Liberali (2013, p. 26-27) afirma que a argumentação tem por
objetivo “criar um novo sistema de convicções e atrair outros
para ele, isto é, convencer outros a mudarem seus pontos de
vista”. Isso se encaixa em todos os gêneros textuais, embora
alguns tenham grau argumentativo maior ou menor.
Nessa direção, as propagandas caminham. Há, sempre,
um jogo persuasivo, visando conduzir o leitor a aceitar uma ideia,
um produto ou um serviço ofertado. As propagandas apresentam
cada elemento, cada imagem, cada palavra, cada ponto, cada cor
de fonte de forma tendenciosa. Além disso, há diversas outras
informações presentes de modo implícito que, também, são de
grande relevância. Para Carvalho (1996, p. 13),
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inconsciente, nos propõe novas experiências, novas atitudes,
novas ações.” (SAMPAIO, 2013, p. 8). Assim, o modo como
são construídas interfere na rapidez em que a mensagem
chegará até o leitor e no seu convencimento. Segundo Citelli
(2003, p. 7), o papel da propaganda é “estabelecer mecanismos
argumentativos capazes de realizar eficientemente os efeitos de
sentido pretendidos”.
Ao refletirmos sobre os novos tempos e os novos contornos
sociais, presentes no século XXI, percebemos que grandes
mudanças ocorreram e outras ainda estão em curso em todos os
segmentos e campos de atuação humana, principalmente no modo
com as pessoas se comunicam e como acessam as informações.
Os próprios textos não circulam mais da mesma forma. Hoje,
temos contato com uma infinidade de modos de apresentação
dos gêneros, há a influência da tecnologia, do hibridismo, da
rapidez de transmissão, do uso de diferentes linguagens como
algo comum e rotineiro. Os anúncios publicitários, em especial,
estão atrelados a essa nova perspectiva para comunicar suas
mensagens, ou seja, mostram-se mais inovadores, tecnológicos,
multimodais e sensoriais. Sobre a comunicação de ideias, Fiorin
(2020, p. 76) atesta
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A escolha da forma como as mensagens publicitárias
se manifestam é repleta de cuidado, uma vez que influenciará
diretamente no resultado. Nesse sentido, a união de diferentes
linguagens em um texto é fator essencial no processo de
convencimento. Esses modos funcionam como um diferencial,
para que determinado anúncio se destaque frente aos demais e
tenha um maior número de adeptos. Sant’Anna (2005, p. 190)
corrobora essa ideia, ao afirmar que “O anúncio para seduzir deve
sempre apresentar uma nova forma de sedução, mais brilhante,
mais culta, mais madura e sempre mais original”. Para Pinho
(2018, p. 32)
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argumentos de venda, embora pareçam lógicos, caracterizam-se
por apelos totalmente emocionais”.
Atrelado a isso, apresenta-se, também, a tecnologia, mais
acessível e constante nos lares, escolas e ambientes diversos. Ela
interfere de modo significativo tanto nas estratégias aplicadas
nos textos, uma vez que sua simples presença já funciona
como um recurso de diferenciação e argumentação; quanto na
recepção e leitura dos gêneros. Podemos mencionar, inclusive,
a interatividade dos anúncios publicitários que confere ao leitor
maior sensação de proximidade, de ação, de controle, de viver
novas experiências, por meio dos cinco sentidos (visão, audição,
olfato, paladar e tato). Já as empresas que se propõem a fazer
uso desse recurso, alcançam maior fixação e assimilação das
mensagens, devido às novas experiências que são oportunizadas
aos leitores com a ativação sensorial (CAMPOS; VALLE, 2004).
Frente a essas colocações, concluímos que o principal
ingrediente para que a engrenagem do convencimento se
mova na direção pretendida é um recurso argumentativo bem
aplicado. Nesse sentido, avançaremos, na sequência, para o que
denominamos “Recursos Motivadores e Recursos Encantadores”
na composição do anúncio publicitário.
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Os procedimentos que culminaram nos dados aqui expostos
comportam a análise de quatro anúncios publicitários (duas
propagandas impressas e duas propagandas em suporte digital
e interativo), sendo assim divididas: Propaganda 1: Bradesco
Seguros (suporte impresso); Propaganda 2: Bradesco Seguros
(suporte digital); Propaganda 3: Centro de Integração da Mulher
(suporte impresso) e Propaganda 4: Centro de Integração da
Mulher (suporte digital).
As propagandas 1 e 3 são impressas e construídas por
meio das linguagens imagética e verbal; as propagandas 2 e 4 são
digitais interativas e foram compostas por múltiplas linguagens.
Para melhor visualização e compreensão das nossas colocações,
seguem as propagandas utilizadas.
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Propaganda 2: Bradesco Seguros (suporte digital)
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Propaganda 3: Centro de Integração da Mulher (suporte
impresso)
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Propaganda 4: Centro de Integração da Mulher (suporte
digital).
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A partir do contato com esses anúncios, diversas questões
a respeito da composição e interpretação dos textos foram
realizadas e nos permitiram agrupar os recursos empregados,
estabelecendo categorias de análise.
Quando mencionamos os recursos argumentativos,
estamos nos referindo a toda gama de possibilidades linguísticas,
discursivas, gramaticais, sensoriais, gráficas, semânticas,
tecnológicas e imagéticas que se pode aplicar em um texto,
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considerando determinada intenção. Para Fiorin (2020, p. 69),
“Argumentar é, pois, construir um discurso que tem a finalidade
de persuadir” e “persuadir é levar o outro a aderir ao que se diz”
(p. 77). Assim, segundo Pinho,
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Os recursos encantadores, nos textos publicitários, são
aqueles que atraem, seduzem e causam prazer pelas experiências
afetivas e emocionais que proporcionam. O impacto desses
recursos está ligado às sensações que eles provocam, por meio
das mais variadas formas de linguagens aplicadas. Santaella e
Nöth (2011, p. 175) afirmam que “Há também efeitos sensórios
que nos atingem como seres biológicos, despertando ritmos
vitais de aceleração, repouso, excitação, equilíbrio etc.” A questão
sensorial é muito presente nessa classificação, uma vez que os
sentidos são responsáveis pela ativação das emoções humanas.
Destacamos diversos modos ou linguagens que se enquadram
nessa categoria.
A primeira linguagem identificada como capaz de
despertar as emoções dos leitores é o som, pois a sua aplicação
faz com que haja comunicação entre o emocional do leitor com
o contexto que o cerca, criando impressões. (PEREZ, 2004).
Há diversos sons que podem compor os anúncios publicitários,
mas, em especial nas propagandas digitais interativas analisadas,
foram aplicados: a) a melodia contínua; b) o grito humano; e c) o
alarme de automóvel. Segundo os resultados obtidos, a melodia
constante presente na propaganda digital sobre violência contra
mulher e o grito da moça que foi “tocada” pelo leitor provocaram
sensações de tristeza, medo, angústia e ansiedade nos leitores.
Já o alarme do carro que dispara ao chocar-se contra a parede
provocou susto e espanto.
A segunda linguagem capaz de despertar as emoções
dos leitores é a luz, (presença ou ausência proposital) que pode,
segundo Perez (2004), assim como as cores, despertar tanto
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reações físicas quanto psicológicas. Na propaganda digital do
Bradesco Seguros, havia o acendimento dos faróis assim que
o carro sofria a batida 4 “provocada” pelo leitor e, segundo os
resultados colhidos, a presença dessa luz forte e ofuscante,
atrelada ao som do disparar do alarme, propiciou um simulacro
do mundo real, ou seja, os leitores sentiram-se levados a viver
o calor da emoção de um acidente de trânsito, ficando mais
atentos. Já o contrário, a diminuição da luminosidade, no cenário
da propaganda sobre violência contra mulher, foi compreendida
como sinal de perigo, de medo e de maldade. Segundo Pinho
(2018), o cenário mais escuro favoreceu a construção de uma
interpretação voltada para a vulnerabilidade da mulher naquela
situação, para o perigo a que ela estava exposta, enfatizando o
assédio sofrido.
A terceira linguagem capaz de despertar as emoções dos
leitores são as expressões faciais e corporais e o movimento. Essas,
de fato, não apenas no gênero anúncio publicitário, despertam
em nós sensações, impulsionam conclusões e direcionam a
interpretação que fazemos das situações. Por exemplo, uma
resposta positiva expressa de modo verbal pode não ser bem
aceita ou compreendida se estiver atrelada a uma manifestação
corporal ou facial negativa. No caso da propaganda analisada de
violência contra a mulher, essa linguagem aplicada, ou seja, os
movimentos da mulher tentando se autoproteger e a expressão
de medo e repúdio corroboraram a intenção do produtor.
Segundo Pinho (2018, p. 230), “as ações da mulher atraíram a
atenção do leitor de modo emocional, direcionando-o ao que era
4
Na propaganda, quando o leitor passava os dedos sobre a tela do tablet para mudar a
página, o veículo se locomovia e se chocava contra a parede.
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a intenção do publicitário: chocar”. Na propaganda digital do
Bradesco, o carro em movimento, chegando ao ponto de chocar-
se contra a página da revista, foi percebido pelos leitores como
um elemento de grande força persuasiva, ou seja, um recurso
capaz de despertar emoções, sensações, ficando gravado na
memória no leitor e sendo lembrado pelos participantes como
um acontecimento significativo.
Ressaltamos, também, a presença da cor e das imagens
como recursos encantadores, uma vez que sua aplicação é dotada
de significação e ambas são capazes de despertar emoções. Em
relação à primeira, de acordo com Farina (1990, p. 27) “[...], a
cor exerce uma ação tríplice: a de impressionar, a de expressar e
a de construir.” Ou seja, “A cor é vista: impressiona a retina. É
sentida: provoca uma emoção. E é construtiva, pois, tendo um
significado próprio, tem valor de símbolo e capacidade, portanto,
de construir uma linguagem que comunique uma idéia”. Para
Pinho (2018, p. 233),
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relevantes para a maioria dos anúncios. “As linguagens escolhidas
exerceram impacto persuasivo sobre os indivíduos, funcionando
como recursos tão encantadores que os moveriam a uma futura
ação de consumo” (PINHO, 2018, p. 232).
Outra linguagem capaz de despertar as emoções dos
leitores é a verbal, de modo específico, o uso do modo imperativo
atrelado à ambiguidade de sentidos. Sobre a força da palavra,
(KOCH, 2000, p. 156) afirma que sua aplicação “pode servir de
índice de distinção, de familiaridade, de simplicidade, ou pode
estar a serviço da argumentação, situando melhor o objeto do
discurso dentro de determinada categoria, do que o faria o uso
de um sinônimo.”
Na propaganda de violência contra a mulher, ao final do
anúncio, havia o seguinte enunciado: “Para continuar sua leitura
mostre respeito. Não toque nela”. Frente a todo o texto lido, nesta
parte da propaganda, já inteirados do propósito do anúncio, os
alunos compreenderam o enunciado como algo mais subjetivo
(não tocar na moça/mulher, não cometer violência), não apenas
mecânico simplesmente, como o ato de virar a página (PINHO,
2018). Ou seja, a ordem e a polissemia presente na palavra
“tocar” despertou a sensação de que o leitor deveria ter cuidado,
deveria respeitar a mulher, deveria protegê-la. Sobre os termos
polissêmicos, Martins (1997, p. 60) esclarece que eles servem
“para despertar a atenção e a curiosidade dos leitores- este seria
o primeiro passo ou objetivo de um anúncio - quanto para fazer
gostar da marca e, consequentemente, do produto”.
Os recursos motivadores, nos anúncios publicitários,
são aqueles mais ligados à ação, à razão, incentivando o mover
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do leitor em determinada direção de modo proposital. Nessa
categoria de recursos, estão os mecanismos considerados
propositais, inseridos de modo pensado, de forma lógica. Por
exemplo: quando os alunos, ao serem questionados sobre como
reconheciam o movimento do carro e o que isso significava,
responderam (em sua maioria), atribuindo responsabilidade ao
leitor (o leitor foi responsável por empurrar o carro; o leitor clicou
na tela) ou ao criador do anúncio (o movimento servia para
mostrar o que podia acontecer; servia para mostrar a propaganda)
(PINHO, 2018, p. 223). Portanto, há uma percepção do recurso
como algo lógico, menos afetivo.
O mesmo fato ocorreu na propaganda de violência contra
mulher em que, ao clicar sobre a página com presença da imagem
da mulher, a alça de seu vestido cai. Ao serem questionados
a respeito do significado da ação, ou seja, o reconhecimento
semântico dessa linguagem empregada, os alunos detectaram
o ato como uma ação menos subjetiva, focando, apenas, na
consequência física da vestimenta (cair a alça) e não como
algo que agride ou que representa e desperta algo mais afetivo,
emocional [..]”. Ou seja, “há uma avaliação “técnica” por parte do
aluno, ele compreende que aquele recurso é proposital, portanto,
seu caráter é menos subjetivo, emocional, logo, trata-se da
presença de um recurso motivador” (PINHO, 2018, p. 224).
Ademais, um mesmo recurso pode ser identificado como
“encantador”e, quando analisado de modo mais distante e racional
pelo leitor, desempenhar um papel “motivador”, alterando o seu
impacto. Em outras palavras, o efeito da linguagem empregada
(som, cor, aroma, movimento, luz, imagem, expressões) é
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inquestionável e inevitável, mas pode ser tomada como algo
proposital, posto ali por um determinado motivo e que, portanto,
pretende levar a uma determinada conclusão ou ser percebido
como um elemento puramente sedutor, que provoca emoções,
que arrebata. Afinal, para Marcondes Filho (1997, p. 86), a
propaganda “de fato usa os recursos mais inacreditáveis, buscando
falar ao inconsciente das pessoas, à dimensão dos sonhos e dos
atos emocionais impensados.”
Em suma, os recursos encantadores proporcionam
as primeiras sensações, emoções e interpretações ao serem
aplicados. Já os recursos motivadores são aqueles considerados
a partir de uma interpretação lógica por parte do leitor como
algo intencional e menos afetivo. Essas percepções de impacto
só se revelaram possíveis porque os alunos pesquisados foram
questionados a respeito de cada um dos recursos aplicados,
por meio de um amplo questionário, envolvendo os textos
publicitários.
Considerações finais
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Não há recurso mais ou menos importante, pois o foco não
é estabelecer competição entre eles, mas sim a complementação
que ambos oportunizam. De fato, as sensações provocadas
pela multimodalidade, ou seja, pela junção de vários códigos
de linguagens em prol de um determinado sentido garante
maior interesse do leitor para com a mensagem comunicada.
“Em outras palavras, como seres humanos, somos impactados,
movidos e encantados pelo que lemos, vemos, tocamos e
ouvimos” (PINHO, 2018, p. 231). Porém a presença exclusiva
de uma linguagem única, como uma imagem, uma determinada
cor ou uma palavra tem, também, o poder de convencer o leitor
de modo arrebatador.
O impacto que os recursos argumentativos exercem
no leitor está ligado à sua percepção, e quando eles são
compreendidos com maior grau de subjetividade e provocam
reações emocionais, afetivas, de modo natural, são considerados
encantadores; quando são interpretados e analisados como
algo proposital, com objetivo determinado, são considerados
motivadores.
REFERÊNCIAS
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CITELLI, Adilson. O texto argumentativo. São Paulo: Scipione, 2003.
331 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
PEREZ, Clotilde. Signos da marca: expressividade e sensorialidade.
São Paulo: Thomson Learning, 2004.
332 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO