Você está na página 1de 333

BOLETIM 77

REVISTA DA ÁREA DE HUMANAS


jul./dez. 2020

Incluída no SNPG – nível A


(Sistema Nacional de Pós-Graduação)

CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS
REITOR
Sérgio Carlos de Carvalho
VICE-REITOR
Décio Sabbatini Barbosa
DIRETORA DO CLCH
Viviane Bagio Furtoso
VICE-DIRETORA
Ana Heloisa Molina
REDAÇÃO
Isabel Cristina Cordeiro
Esther Gomes de Oliveira

CAPA
Bianca Matos Ferreira

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E COMPOSIÇÃO


Maria de Lourdes Monteiro

CONSELHO EDITORIAL
Volnei Edson dos Santos
Paulo Bassani
Celso Vianna Bezerra de Menezes

PARECERISTAS
Dr. Francisco Moreno Fernandes - Univ. Alcalá de Henares - España
Dr. Aquiles Cortes Guimarães - UFRJ
Dr. Jesús Castilho - Univ. de Valladolid - España
Dr. José Oscar de Almeida Marques - UNICAMP
Dr. José Nicolau Julião - UFRRJ
Dra. Salma Ferraz - UFSC
Dr. Otávio Goes de Andrade - UEL

PUBLICAÇÕES
BOLETIM, CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA – LONDRINA-PR. - BRASIL, 1980

1980, (1) 1993, (24,25) 2005 (48,49) 2018, (72, 73)


1981, (2,3) 1994, (26,27) 2006, (50,51) 2019, (74, 75)
1982, (4,5) 1995, (28,29) 2007, (52,53) 2020, (76, 77)
1983, (6,7) 1996, (30,31) 2008, (54,55)
1985, (8,9) 1997, (32,33) 2009, (56,57)
1986, (10,11) 1998, (34,35) 2010, (58,59)
1987, (12,13) 1999, (36,37) 2011, (60,61)
1988, (14,15) 2000, (38,39) 2012, (62,63)
1989, (16,17) 2001, (40,41) 2013, (64,65)
1990, (18,19) 2002, (42,43) 2014, (66,67)
1991, (20,21) 2003, (44,45) 2016 (68,69)
1992, (22,23) 2004, (46,47) 2017 (70,71)
ISSN 0102-6968

I
BOLETIM 77

REVISTA DA ÁREA DE HUMANAS


jul./dez. 2020
Incluída no SNPG – nível A
(Sistema Nacional de Pós-Graduação)

CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina – nº 77– p. 1-333 - jul./dez. 2020
Indexado por / Indexed by
ISSN 0102-6968
Sociological Abstracts SA
Linguistics and Language Behavior Abstracts LLBA

Toda correspondência deverá ser enviada à

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA


Centro de Letras e Ciências Humanas
Campus Universitário – Cx. Postal, 6001
CEP: 86051-990 – Londrina-PR.

boletimhumanas@uel.br
Fone / Fax:(43) 3371-4408

Publicação semestral / Bi-annual publication


Solicita-se permuta / We ask for exchange

Biblioteca Central da UEL


Ficha Catalográfica

Catalogação na fonte elaborada pela Biblioteca Central da UEL


Boletim / Centro de Letras e Ciências Humanas, Universidade Estadual de

Londrina. – V. 1 (1980)- . – Londrina : a Universidade, 1980- .
v.; 21 cm

Semestral

Descrição baseada em: v. 25 (jan./jun. 1994)

ISSN 0102-6968

1. Sociologia – Periódico. 2. História – Periódico. 3. Letras – Perió-


dico. 4. Filosofia – Periódico. 1. Universidade Estadual de Londrina.

CDD 301.05
CDU 301:4:I(05)
Sumário

BOLETIM CLCH – 40 ANOS....................................................... 7

GEORGE SAND – AURORE DUPIN: UM CORAÇÃO SIMPLES


E UMA MENTE ABERTA (1804-1876).........................................31 13
Liliane Mendonça Duarte; Lúcia Peixoto Cherem

STELA DO PATROCÍNIO, “ESPAÇO VAZIO PURO”................ 43


Sílvio José Stessuk

POIESIS, LETRAMENTO DOMINANTE/LETRAMENTO


VERNACULAR: DIÁLOGO INEVITÁVEL................................. 71
Paulo Roberto Almeida

O FATOR SURPRESA NOS CONTOS DE CONCEIÇÃO


EVARISTO: “INGUITINHA”, “TEIAS DE ARANHA” E “OS PÉS
DO DANÇARINO”........................................................................... 103
Gabriely Menegheti Bertoni; Maria Carolina de Godoy

EDUCAÇÃO SOCIAL EM LONDRINA: PERSPECTIVAS DOS


EDUCADORES SOCIAIS SOBRE SUA PROFISSÃO................ 125
Marcia R. Lemos de Souza; Verônica Regina Müller

H ET ERO GENEI DADE ENUNCIAT IVA E EFEI TOS


DE SENTIDO NA CRÔNICA “RECEITA”, DE CARLOS
DRUMMOND DE ANDRADE...................................................... 155
Mayara Yukari Kato; Rosemeri Passos Baltazar Machado

MONOTONGAÇÃO: UM ESTUDO DE CASO EM IBIPORÃ


SOB A PERSPECTIVA DA SOCIOLINGUÍSTICA.................. 177
Ismael Ribeiro da Silva (PG-UEL); Patrícia Medeiros Galvão (PG-
UEL); Josué Marques Ferreira
CARTA PESSOAL: A IMPORTÂNCIA DA PRODUÇÃO
DE GÊNEROS MANUSCRITOS NAS AULAS DE LÍNGUA
PORTUGUESA.................................................................................. 195
Daiane Aparecida Martins; Givan José Ferreira dos Santos

DIÁLOGOS ENTRE A LINGUÍSTICA TEXTUAL E TEORIA


DA ARGUMENTAÇÃO: ANÁLISE DE UMA SENTENÇA
JUDICIAL ..................................................................................... 217
Mariana Rodrigues Ferreira Fantinelli; Roberto Lima Santos

RESISTÊNCIA FEMININA E HUMOR: UMA ANÁLISE


DISCURSIVO-ARGUMENTATIVA............................................... 239
Ana Carolina Bernardino (PG – UEL); Talita Canônico e Silva (IFPR)

O QUE A ARTE URBANA PODE ENSINAR PARA UMA


CIDADE? ..................................................................................... 261
Danielle de Marchi Tozatti (UEL); Sandra Regina Ferreira de Oliveira
(UEL)

STORYBOARD DA CENA DO JANTAR EM SHREK 2 (2004):


O PERCURSO CONSTRUTIVO NA ANIMAÇÃO DIGITAL... 283
Luiz Antonio Xavier Dias; Edina Regina Pugas Panichi

A A R G U M E N TAT I V I D A D E D O S R E C U R S O S
ENCANTADORES E MOTIVADORES EM PROPAGANDAS
MULTIMODAIS................................................................................ 311
Ednéia de Cássia Santos Pinho; Esther Gomes de Oliveira

NORMAS PARA PUBLICAÇÂO..................................................... 335


Boletim CLCH – 40 anos

O ano de 2020 marca, felizmente, o 40º aniversário do


Boletim de Ciências Humanas, cujo primeiro número foi publicado
em 1980. A vida, no entanto, além de metafórica, é antitética, nós
convivemos com as antíteses, a começar pela dualidade essência/
aparência; o tudo e o nada; o ser e o não ser; o amor e o ódio; o
bem e o mal; e, entre muitas outras dualidades, a mais humana
e irreversível: a Vida e a Morte. Felizmente, celebramos a Vida
com os 40 anos do nosso Boletim; e, infelizmente, também, neste
ano, aconteceu a morte do professor Joaquim Carvalho da Silva,
perseverante editor e cuidador desse periódico que tanto honra
não só o Centro de Letras e Ciências Humanas como também a
Universidade Estadual de Londrina.
Os primeiros Boletins (n.º 1 a 5) eram mimeografados;
do n.º6 ao 31, eram datilografados, geralmente, pelo professor
Joaquim; do n.º 32 ao 67, foram digitados; e, a partir do n.º 68,
o Boletim encontra-se on-line.
O professor Joaquim lecionou na antiga Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Londrina (FAFILON) e, com
a fundação da Universidade Estadual de Londrina, tornou-se
o primeiro diretor do Centro de Letras e Ciências Humanas.
As suas aulas, os seus ensinamentos, os seus conselhos estarão,
eternamente, gravados em nossos corações.
Como editoras do Boletim (a partir do n.º 57, em 2009),
gostaríamos de prestar uma homenagem ao nosso querido
professor Joaquim em nome dos 873 autores que participaram,
nesses 40 anos, das publicações do nosso periódico, totalizando
689 artigos.

7 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 7-12 – jul./dez. 2020
A morte não é nada (Santo Agostinho)
A morte não é nada.
Eu somente passei
para o outro lado do Caminho.

Eu sou eu, vocês são vocês.


O que eu era para vocês,
eu continuarei sendo.

Me dêem o nome
que vocês sempre me deram,
falem comigo
como vocês sempre fizeram.
Vocês continuam vivendo
no mundo das criaturas,
eu estou vivendo
no mundo do Criador.
Não utilizem um tom solene
ou triste, continuem a rir
daquilo que nos fazia rir juntos.

Rezem, sorriam, pensem em mim.


Rezem por mim.

Que meu nome seja pronunciado


como sempre foi,
sem ênfase de nenhum tipo.
Sem nenhum traço de sombra
ou tristeza.

A vida significa tudo


o que ela sempre significou,
o fio não foi cortado.
Por que eu estaria fora
de seus pensamentos,

8 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 7-12 – jul./dez. 2020
agora que estou apenas fora
de suas vistas?

Eu não estou longe,


apenas estou
do outro lado do Caminho…

Você que aí ficou, siga em frente,


a vida continua, linda e bela
como sempre foi.

As editoras
Isabel Cristina Cordeiro
Esther Gomes de Oliveira

9 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 7-12 – jul./dez. 2020
NÚMERO DO NÚMERO DE NÚMERO DE
BOLETIM/ANO ARTIGOS AUTORES

1. 1980 6 7
2. 1981 5 5
3. 1981 11 11
4. 1982 10 10
5. 1982 11 12
6. 1983 8 8
7. 1983 11 11
8. 1985 7 7
9. 1985 5 5
10. 1986 7 7
11. 1986 13 14
12. 1987 9 9
13. 1987 9 9
14. 1988 9 9
15. 1988 7 7
16. 1989 6 6
17. 1989 7 8
18. 1990 6 7
19. 1990 5 5
20. 1991 8 8
21. 1991 8 8
22. 1992 7 8
23. 1992 5 6
24. 1993 8 9
25. 1993 7 7
26. 1994 5 5
27. 1994 9 9
28. 1995 10 11
29. 1995 5 5
30. 1996 9 10
31. 1996 8 9
32. 1997 9 9
33. 1997 9 11
34. 1998 13 14

10 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 7-12 – jul./dez. 2020
35. 1998 15 16
36. 1999 9 13
37. 1999 16 16
38. 2000 13 15
39. 2000 13 17
40. 2001 12 14
41. 2001 11 13
42. 2002 9 10
43. 2002 12 15
45. 2003 10 16
46. 2004 12 17
47. 2004 9 10
48. 2005 8 12
49. 2005 8 10
50. 2006 8 12
51. 2006 9 ‘0
52. 2007 10 13
53. 2007 9 12
54. 2008 9 11
55. 2008 8 11
56. 2009 9 12
57. 2009 9 12
58. 2010 10 10
59. 2010 10 14
60. 2011 8 10
61. 2011 11 14
62. 2012 9 15
63. 2012 10 19
64. 2013 12 19
65. 2013 7 9
66. 2014 9 14
67. 2014 11 19
68. 2016 8 12
69. 2016 7 11
70. 2017 8 12
71. 2017 6 10

11 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 7-12 – jul./dez. 2020
72. 2018 8 19
73. 2018 7 15
74. 2019 7 12
75. 2019 7 14
76. 2020 8 10
77. 2020 13 25

12 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 7-12 – jul./dez. 2020
GEORGE SAND – AURORE DUPIN:
UM CORAÇÃO SIMPLES E UMA MENTE
ABERTA (1804-1876)

Liliane Mendonça Duarte1


Lúcia Peixoto Cherem2

RESUMO: Este artigo tem como foco principal apresentar a escritora, a mulher
George Sand e as recentes traduções de algumas de suas obras para o português ao
público brasileiro. Procura demonstrar o papel que ocupou como autora na sociedade
francesa no século XIX, suas convicções políticas e o contexto histórico dentro do qual
atuou. Além disso, aborda sua relação com outros artistas, muitos dos quais influenciou,
como Gustave Flaubert e Fiodor Dostoiévski. Retrata ainda a adoção do pseudônimo
masculino para poder publicar como escritora, ofício reservado apenas aos homens,
na época.
PALAVRAS-CHAVE: George Sand. Literatura francesa. Século XIX. História-
Sociedade francesa.

ABSTRACT: This article focus is to present a writer, the woman George Sand and
the recent translations of some of its works to Portuguese for the Brazilian audience.
It seeks to demonstrate the role that the writer had in the French society of the XIX
century, her political convictions and the historical context in which she acted. In
addition, it approaches her relations with other artists, many of which influenced by
her, like Gustave Flaubert and Fiodor Dostoiévski. Portrays the adoption of a male
pseudonym as well to publish as a female writer, a craft designated only to men, at
the time.
KEYWORDS: George Sand. French literature. XIX Century. French History-
Society.

Introdução

Aurore Dupin foi uma autora importante, tendo escrito


mais de oitenta romances, além de textos autobiográficos,
1
Liliane Mendonça, graduada em Letras Francês, pela UFPR, e mestranda em Estudos
da Tradução, pela Universidade Federal do Paraná, bolsista CAPES.
2
Lúcia Peixoto Cherem, Professora aposentada de língua e literatura francesa do
Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal do Paraná.

13 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
novelas, livros infantis, diversos contos, artigos em jornais, peças
para o teatro e tendo mantido uma vasta correspondência com
personalidades da época, como Liszt, Alfred de Musset, Balzac,
Delacroix, Pierre Leroux, Lamennais, Gustave Flaubert e Victor
Hugo. Foi uma autora muito presente no meio intelectual francês
do século XIX, mas, infelizmente, é pouco estudada e conhecida
no Brasil. Na Europa, ela começou novamente a suscitar um
interesse maior somente nos últimos quarenta anos.
Depois da sua morte, apesar de ter virado nome de ruas
e escolas pela França, foi praticamente esquecida pela crítica
literária e pelos intelectuais que se debruçaram sobre o século
XIX. Uma das razões para isso é que ela não se encaixou nos
modismos de seu tempo. Tanto naturalistas quanto simbolistas
zombavam dela, “a boa senhora de Nohant”, por ter sido uma
escritora romântica, engajada politicamente, que se colocava
em seus textos, procedimento que se tornou fora de moda com
o realismo. Teve várias discussões sobre o assunto com Gustave
Flaubert. Permanecendo no esquecimento e pouco estudada nas
universidades, foi justamente o contrário do que ocorreu com seus
contemporâneos e amigos, Balzac e Flaubert, considerados, desde
sua época, grandes nomes do romance na França do século XIX.
George Sand publicou suas obras, em capítulos, em jornais como
fez Balzac e obteve o mesmo sucesso de público, tendo também
vivido de sua literatura.
Em 1854, aos 50 anos, publica Histoire de ma vie3,
autobiografia que ela mesma definiu: É uma série de lembranças,
de profissões de fé e de meditações num ambiente cujos detalhes terão

3
Autobiografia de George Sand, publicada pela primeira vez em 1855.

14 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
alguma poesia e muita simplicidade. Não revelarei, no entanto, toda
a minha vida4. (SAND, 2004, p. 9, tradução nossa).
Na verdade, ela mora no interior da França, casa-se aos 18
anos e decide se separar oito anos depois, mudando-se para Paris,
data também de mudanças políticas importantes – a Revolução de
1830 – e indo viver com o jovem Jules Sandeau, sobrenome a partir
do qual cria seu pseudônimo, Sand. Um breve paralelo entre a vida
literária de Sand e sua vida particular pode ser muito esclarecedor,
um facilitador para a compreensão de sua mente aberta.
Michelle Perrot5 fala sobre a participação de Sand na
Revolução de 1830 e sobre esse ano importante de ruptura para
a escritora:

Casada desde 1822 com o barão do Império Casimir Dudevant,


mãe de dois filhos, Maurice e Solange, decepcionada por essa
união inadequada, que a confinava em sua casa de Nohant, saúda
com entusiasmo “as Três Gloriosas” (as jornadas de julho de
1830) e se declara pela primeira vez republicana: “Nós precisamos
de uma bela e boa república [...], de uma constituição mais
generosa, mais proveitosa para as últimas classes da sociedade,
menos explorável pelos ambiciosos”. Sua “conversão” republicana
é definitiva. Estabelecer a República é de agora em diante um
objetivo. 1830 é uma ruptura também no plano privado. Levada
por um romantismo que reivindica a liberdade amorosa, deixa
seu marido, de quem ela vai se separar oficialmente um pouco
mais tarde, “sobe” a Paris com a ajuda de seu compatriota (e
amante) Jules Sandeau. Torna-se jornalista e logo escritora. Em
1832, publica seu primeiro romance, Indiana, que conhece um
imenso sucesso. Torna-se George Sand6 (PERROT, 2014, p. 167).

4
“C’est une série de souvenirs, de professions de foi et de méditations dans un cadre dont
le détails auront quelque poésie et beaucoup de simplicité. Ce ne sera pourtant pas toute
ma vie que je révélerai” (SAND, 2004, p. 9).
5
Historiadora francesa, professora emérita de História Contemporânea da Universidade
Paris VII, autoridade em História do século XIX.
6
Mariée depuis 1822 au baron d’Empire Casimir Dudevant, mère de deux enfants, Maurice

15 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
O rei Carlos X da França, considerado autoritário demais
pelos liberais franceses, foi deposto na Revolução de 1830, que
também ficou conhecida como as Três Gloriosas. A revolução
aconteceu após quatro atos do então rei, Carlos X: “O rei publica
em 25 de julho quatro ordens: proíbe a liberdade de imprensa,
dissolve a Câmara dos deputados, modifica a lei eleitoral
aumentando o cens7 e adia para setembro a eleição da nova
assembleia”8. (BILLARD et al., 1988, p. 206, tradução nossa).
A partir desses atos há uma mobilização de jornalistas,
estudantes, operários e pequenos burgueses que reagem, se
organizam e no dia 27 de julho iniciam a revolta que dura três
dias. Pego de surpresa, o exército não consegue vencer os intensos
ataques. A derrota leva Carlos X ao exílio na Inglaterra.
No seu livro, Histoire de ma vie, citado no início deste artigo,
há um trecho em que a autora relata essa ida a Paris e como ela
se tornou uma flâneuse, disfarçada de homem, durante apenas
alguns anos de sua vida.

et Solange, déçue par cette union désassortie qui la confinait dans sa maison de Nohant, elle
salue avec enthousiasme “les Trois Glorieuses” (les journées de juillet 1830) et se declare pour la
première fois républicaine: “il nous faut une belle et bonne republique [...], une constitution plus
généreuse, plus profitable aux dernières classes de la Société, moins exploitable par les ambitieux.”
Sa “conversion” républicaine est définitive. Établir la République est désormais un objectif. 1830
est une rupture aussi sur le plan privé. Portée par un romantisme qui revendique la liberté
amoureuse, elle quitte son mari, dont elle se séparera officiellement un peu plus tard, “monte” à
Paris avec l’aide de son compatriote (et amant) de La Châtre, Jules Sandeau, se fait journaliste
et bientôt écrivain. En 1832, elle publie son premier roman, Indiana, qui connaît un immense
succès. Elle devient George Sand (PERROT, 2014, p. 167).
7
Valor do imposto a ser pago para se tornar eleitor ou elegível, o cens foi abolido na
França em 1848.
8
Le roi publie le 25 juillet quatre ordonnances: il interdit la liberté de la presse, dissout la
Chambre, modifie la loi électorale en élevant le cens et ajourne jusqu’en septembre l’election de la
nouvelle assemblée (BILLARD et al., 1988, p. 206).

16 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
[...] estava ávida por desfazer-me do provincianismo e colocar-me
a par das novidades que estavam ocorrendo, no que diz respeito
às ideias e às artes do meu tempo […] com exceção das obras
mais famosas, não conhecia nada das artes modernas; tinha
sobretudo sede de teatro.
Sabia muito bem que era impossível a uma mulher pobre
permitir-se esses sonhos […]
Então, mandei fazer para mim um redingote-guarita em tecido
grosso e cinza, calças e colete combinando. Com um chapéu
cinza e uma imensa gravata de lã, transformei-me em um
perfeito estudantezinho do primeiro ano. Não tenho palavras para
expressar o prazer que senti ao calçar minhas botas novas: tinha
vontade de dormir com elas, como fizera meu irmão quando era
garoto ao calçar o seu primeiro par. Com esses pequenos talões
ferrados, ganhei uma firme passada ao caminhar. Eu rodopiava
de um extremo a outro de Paris. Tinha a impressão de ter dado
a volta ao mundo. Além de tudo, com aquelas roupas não receava
nada. Podia andar pelas ruas em todos os climas, voltava para
casa a qualquer hora, frequentava a plateia de todos os teatros.
Ninguém prestava atenção em mim nem suspeitavam do meu
disfarce (SAND, 2017. p. 419- 421).

A estratégia utilizada por Sand, ao deixar a província para


se instalar por alguns meses em Paris, visava acompanhar as ideias
que circulavam na capital e frequentar lugares, como teatros e cafés,
fazendo-se passar por um rapaz, um estudante parisiense, já que
não tinha posses para as roupas femininas que logo se esfacelavam,
pois ela se deslocava a pé.
Sobre a vinda da escritora a Paris, temos a descrição da
personagem principal da Musa do Departamento, romance de
Balzac, baseada na vida de George Sand, uma provinciana que
tentava conhecer a capital.

17 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
Não importa o quanto seja alta, bela ou forte, no seu início,
uma moça nascida numa província qualquer; e se, como Dinah
Piédefer, ela lá se casar e lá permanecer, se tornará logo uma
mulher da província. Apesar dos seus firmes propósitos, o lugar
comum, a mediocridade das ideias, o desleixo com a aparência,
a horticultura das vulgaridades invadirá o ser sublime escondido
nessa alma nova, e está tudo dito, a alma apodrecerá9 (BALZAC,
1843, p. 377).

Ela sabia, no entanto, que não poderia vir a Paris sem


dinheiro e participar da vida cultural sem gastos. Sua estratégia
foi mandar fazer uma roupa de estudante. No início, ela passava
despercebida, mas depois começou a marcar presença pelas ideias
e pela companhia de outros intelectuais e provocou escândalo,
sendo considerada uma figura estranha, uma andrógina10. (NESCI,
2007, p. 249).
Mas não gostaríamos de associar e limitar, de forma alguma,
a visão de mundo da autora a esse aspecto original, pitoresco de sua
biografia. Até porque essa foi apenas uma forma, uma estratégia
da qual ela se utilizou para aproveitar melhor sua estada em Paris.
Por essa época, em 1832, escreve seu primeiro romance,
Indiana, e usa pela primeira vez o pseudônimo “George Sand”,
como estratégia para se inserir definitivamente no meio literário
como escritora, meio este exclusivamente masculino na época.
Nesse romance, mostra o descompasso entre o que a mulher
esperava do casamento e o que o homem tinha quase como

9
“Quelque grande, quelque belle, quelque forte que soit à son début une jeune fille née dans un
département quelconque; si, comme Dinah Piédefer, elle se marie en province et si elle y reste, elle
devient bientôt femme de province. Malgré ses projets arrêtés, les lieux communs, la médiocrité
des idées, l’insouciance de la toilette, l’horticulture des vulgarités envahissent l’être sublime
caché dans cette âme neuve, et tout est dit, la belle plante dépérit” (BALZAC, 1843, p. 377).
10
Legenda da ilustração na época: “Se esse retrato de George Sand deixa o espírito um
pouco perplexo, é que o gênio é abstrato, e como se sabe, não tem sexo!”.(NESCI, 2007,
p. 249).

18 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
certo. Tratava-se da oposição entre a mulher, que procurava um
sentimento absoluto, e o homem, sempre mais vaidoso ou sensual
que propriamente amoroso, apaixonado. Sobre Indiana, ela afirma:
É o amor chocando-se com sua testa cega a todos os obstáculos
da civilização[...]11 (SAND, 1984, p. 40). A autora se refere nesse
trecho ao amor romântico, sentimento que a personagem título
desenvolve mais fortemente ao se formar como leitora de obras
românticas. Ela já havia publicado, em 1831, Rose et Blanche (Rosa
e Branca), romance escrito com Jules Sandeau, o qual os autores
assinaram como Jules Sand.
Seu terceiro romance, Lélia, de 1833, chama muito
atenção do público, provocando escândalo (MAUROIS, 1952).
Nessa época, George defende que o casamento pode ser uma
verdadeira prisão da qual a mulher precisa se libertar para buscar
sua satisfação. No romance, ela discute o lugar da mulher na
sociedade e os problemas psicológicos que enfrenta para modificar
sua condição. Há trechos em que relata os encontros amorosos
de Lélia, revelando sua insatisfação sexual, o que vai explicar sua
procura de novos parceiros porque não se conforma em ficar ao
lado do amante após o gozo dele e a frustração dela.
Vejamos dois trechos de Lélia, em que aparece a tentativa de
Lélia para superar a frigidez ao lado do amante Sténio. Lélia havia
começado uma vida que ela chamou de “sacrifício e abnegação”,
porque aceitava dar prazeres que não podia compartilhar e
suportava mal esse estado. Seguem aqui excertos fundamentais
para a compreensão da personagem Lélia:

O que explica por que eu o amei por muito tempo... foi a


irritação febril produzida, na minha mente, justamente pela
ausência de satisfação pessoal. Perto dele eu tinha uma espécie
11
“C’est l’amour heurtant son front aveugle à tous les obstacles de la civilization [...]” (SAND,
1984, p. 40).

19 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
de avidez estranha e delirante que não poderia ser saciada por
nenhum abraço carnal. Sentia meu peito devorado por um fogo
inesgotável, e seus beijos não vertiam ali nenhum tipo de alívio.
Eu o apertava em meus braços com uma força sobre-humana,
depois caía ao lado dele exausta e desanimada... o desejo que
havia em mim era um ardor da alma que paralisava o poder dos
sentidos antes mesmo de despertá-lo. Era uma fúria selvagem
que se apoderava de meu cérebro e se concentrava exclusivamente
nisso. [...]12 (MAUROIS, 1952, p. 166).

Às vezes, durante o sono, presa a esses ricos êxtases que devoram


os cérebros ascéticos, eu me sentia arrebatada por ele... Eu
nadava então, nas ondas de uma voluptuosidade indescritível e,
passando meus braços indolentes por seu pescoço, caía sobre seu
peito murmurando palavras vagas. Mas ele se acordava e acabava
minha felicidade... eu reencontrava o homem, o homem brutal
e voraz, como uma besta selvagem, e fugia horrorizada. Mas ele
me perseguia, seu sono não teria sido interrompido em vão, e
saboreava seu prazer feroz sobre o seio de uma mulher desfalecida
e meio morta...13 (MAUROIS, 1952, p. 167).

É importante que se compreenda a continuidade da sua


formação política e também que se exponha sua preparação da
Revolução de 1848.
12
Ce qui fit que je l’aimai longtemps, ce fut sans doute l’irritation fébrile produite sur mes
facultés par l’absence de satisfaction personnelle. J’avais près de lui une sorte d’avidité étrange
et délirante qui, prenant sa source dans les plus exquises puissances de mon intelligence, ne
pouvait être assouvie par aucune étreinte charnelle. Je me sentais la poitrine dévorée d’un feu
inextinguible et ses baisers n’y versaient aucun soulagement. Je le pressais dans mes bras avec une
force surhumaine et je tombais près de lui épuisée, découragée ... Le désir chez moi était une ardeur
de l’âme qui paralysait la puissance des sens avant de l’avoir éveillée; c’était une fureur sauvage,
qui s’emparait de mon cerveau et qui s’y concentrait exclusivement (MAUROIS, 1952, p. 166).
13 Quelquefois, dans le sommeil, en proie à ces riches extases qui dévorent les cerveaux
ascétiques, je me sentais emportée avec lui... Je nageais alors dans les flots d’une
indicible volupté; et, passant mes bras indolents à son cou, je tombais sur son sein en
murmurant de vagues paroles. Mais il s’éveillait et c’en était fait de mon bonheur... je
retrouvais l’homme, l’homme brutal et vorace comme une bête fauve et je m’enfuyais
avec horreur. Mais il me poursuivait, il prétendait n’avoir pas été vainement troublé
dans son sommeil et il savourait son farouche plaisir sur le sein d’une femme évanouie
et demi-morte (MAUROIS, 1952, p. 167).

20 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
As sucessivas revoluções marcaram sua existência. A revolução
de 1830, dinástica e liberal, foi para ela uma libertação política
e pessoal. O Antigo Regime tinha sido vencido; a aristocracia
cedia lugar ao que se chamava no passado de “Terceiro Estado”,
a “burguesia” e o “povo”. Sua obra é permeada pelo eco das lutas
de classe no campo14 (PERROT, 2014, p. 166-167).
[...] Michel de Bourges, advogado dos republicanos, a introduz
nos meios radicais e complementa sua educação política. Pierre
Leroux a converte ao socialismo: um socialismo sincrético,
que tenta conciliar igualdade e liberdade, materialismo e
espiritualismo, literatura e política, e que atribui um grande lugar
à igualdade dos sexos e aos artistas. Esta síntese convém a ela. O
socialismo é o objetivo; a República é o meio, diz ela.15(PERROT,
2014, p. 168).
A Revolução de 1848 a surpreende e a conquista. Ela voa a
Paris e apoia com convicção o governo provisório, povoado de
homens políticos aos quais está ligada: Louis Blanc, Emmanuel
Arago, Alexandre Ledru-Rollin, Armand Barbès... Redige
anonimamente uma parte dos Boletins da República, órgão do
governo provisório. Ela ataca “os ricos” com uma veemência
julgada excessiva pelos seus superiores, o que a obriga a renunciar
ao seu exercício que exigia mais discernimento16 (PERROT,
2014, p. 170).

14
Les révolutions successives marquèrent son existence. La révolution de 1830, dynastique
et libérale, fut pour elle une libération politique et personnelle. L’Acien Régime était vaincu;
l’aristocratie cédait la place à ce qu’on appelait jadis “le Tiers État”, la bourgeoisie et le “peuple”. Son
oeuvre est traversée par l’écho des luttes de classe à la campagne (PERROT, 2014, p. 166-167).
15
Michel de Bourges, avocat des républicains, l’introduit dans les milieux radicaux et achève son
éducation politique. Pierre Leroux la convertit au socialisme: um socialisme syncrétique, qui tente
de concilier égalité et liberte, matérialisme et spiritualisme, littérature et politique, et qui acorde
une grande place à l’égalité des sexes et aux artistes. Cette synthèse lui convient. Le socialisme est
le but; la République est le moyen, dit elle. [...] (PERROT, 2014, p. 168).
16
La révolution de 1848 la surprend et la conquiert. Elle vole à Paris et soutient avec conviction
le gouvernement provisoire, peuplé des hommes politiques auxquels elle est liée: Louis Blanc,
Emmanuel Arago, Alexandre Ledru-Rollin, Armand Barbès... Elle rédige anonymament une
partie des Bulletins de la République, organe du gouvernement provisoire. Elle s’em prend “aux
riches” avec une véhémence jugée excessive par ses commanditaires, ce qui l’oblige à renoncer à
cet exercice qui demandait plus de discernement (PERROT, 2014, p. 170).

21 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
Segundo o professor Gabriel Mendes, na revolução
de 1848, que ficou conhecida como A Primavera dos Povos, o
proletariado, explorado pelo patrão, participa mais ativamente com
suas propostas do que em outras revoluções, reivindicando mais
representatividade, bem como mudanças políticas e das condições
de trabalho, muitas vezes insalubres (MENDES, 2018).
A forma de governar de Luís Felipe foi o estopim que
desencadeou a revolução de 1848 na França, já que ele havia
prometido exercer a monarquia constitucional e ouvir mais o
parlamento, mas na prática foi muito autoritário e governou em
favor da alta burguesia, como banqueiros e grandes empresários,
tanto que ficou conhecido como “rei burguês”. A oposição,
formada por bonapartistas, republicanos e socialistas, sentindo-
se enganada, organiza, então, banquetes públicos, entre os vários
grupos revolucionários, para discutir os rumos da revolução, a qual
começa em 24 de fevereiro. É a chegada da Primavera dos Povos
e a consequente queda de Luís Felipe.
E o professor Pedro Rennó ratifica: As promessas de Luís
Felipe não eram cumpridas, os liberais se sentem enganados, como
os republicanos, e os operários que chegavam a trabalhar de 16
a 18 horas por dia, sem descanso remunerado, nem nos finais de
semana (RENNÓ, 2018).
Ainda, segundo o fato histórico de fevereiro de 1848:

Os líderes da oposição tentaram em vão impor ao rei e (ao


ministro) Guizot uma reforma eleitoral. Uma nova manifestação
nesse sentido acabou decidindo pelo 22 de fevereiro em Paris.
Apesar de ter sido proibida, aconteceu de forma tranquila.
No dia seguinte, a agitação volta a tomar conta da capital. A
Guarda Nacional trata Guizot com violência e hostilidade e ele
se demite. Mas a tensão continua. No dia 24 de fevereiro, Paris
se cobre de barricadas. O rei, desencorajado pela deserção da

22 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
Guarda Nacional, e pressionado por sua família, abdica. [...].
Um governo provisório se forma [...]. (O poeta) Lamartine se
torna líder desse governo. A república é proclamada por sufrágio
universal. A escravidão e a pena de morte, por motivos políticos,
são abolidas17 (BILLARD et al., 1988, p. 214).

Com a queda e o exílio do rei Luís Felipe, assume o poder


Luís Bonaparte, o Napoleão III, sobrinho de Napoleão Bonaparte.
O governo dele, em 1848, acaba com a monarquia vigente, e
estabelece a segunda República francesa, com a promulgação de
uma nova constituição, a “Constituição de 1848”; assim, Napoleão
III se torna presidente da França, cargo que ocupa até o final de
1851, quando surpreende a todos dando um golpe dentro do
próprio governo, fechando o congresso e instaurando um novo
Império.
Sand retorna, então, para a região do Berry e para a temática
da vida dos camponeses e sua linguagem. Transforma sua casa num
lugar de efervescência cultural, recebendo várias personalidades
da época, músicos (Chopin, Lizt), escritores (Balzac, Flaubert),
pintores (Delacroix).
George Sand sempre militou pela volta dos valores
norteadores da revolução francesa, uma grande decepção para os
socialistas da época que viram esses valores esquecidos. Como
vimos, ela acompanhou as discussões sobre a Revolução de 1830,
ao lado dos republicanos, e participou ativamente da revolução de

17
Les chefs de l’opposition ont en vain tenté d’imposer et à Guizot une reforme électorale. Une
ultime manifestation dans ce but est décidée pour le 22 février à Paris. Malgré son interdiction, elle
se déroule dans le calme. Le landemain, l’agitation reprend dans la capitale. La garde nationale
se révèle violemment hostile à Guizot qui démissionne. Mais la tension persiste. Le 24 février,
Paris se couvre de barricades. Le roi, découragé par la défection de la Garde nationale, pressé
par son entourage, abdique. [...] Un gouvernement provisoire est formé [...]. Lamartine prend
la tête de ce gouvernement. La republique est proclamée avec le suffrage universel. L’esclavage et
la peine de mort pour motif politique sont abolis (BILLARD et al., 1988, p. 214).

23 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
1848. Como fica muito desapontada com o fracasso desse novo
levante, que de nada adianta, resultando no golpe de 1851, retira-se
da cena parisiense, como já mencionado acima, para se instalar em
Nohant, sua terra natal, seu refúgio, indo cada vez menos a Paris.
No momento do golpe de Estado de dezembro de
1851, pelo qual Luís Napoleão Bonaparte tomou o poder, esta
republicana convicta protestou, mas não se exilou como Victor
Hugo. De volta à sua terra natal, sente grande prazer quando está
em contato com a natureza e também realizando as tarefas de casa,
além das cavalgadas que já fazia vestida de menino, desde jovem
com seus amigos do Berry.
Havia se dedicado, já a partir de 1845, aos contos
tradicionais, orais, e escreve cinco romances campestres dentre os
quais François, le Champi (1850)18, cuja tradução foi publicada no
Brasil em 2017 (SAND, 2017), e é um dos romances de George
Sand dessa fase. A tradução - François, o menino abandonado -
nos faz voltar ao mundo rural da Europa do século XIX com muita
naturalidade e nos proporciona uma leitura prazerosa, ainda que
trate de uma temática triste, dentro do contexto social da época
em que Sand o escreveu – crianças abandonadas ou enjeitadas.
Suas aspirações místicas e seus pendores humanitários irão
se unir para compor esse mundo ideal, rousseauniano, voltado
para o passado e para a cena rural de sua região, o Berry, e não
para o universo operário do meio urbano, muito explorado pelos
escritores românticos e realistas, a partir de 1850 na França. Ela
vai se opor à descrição obsessiva das mazelas sociais, que, se por
um lado, denunciava as injustiças, por outro, acabava reforçando
os argumentos burgueses que aliavam sempre miséria à violência e

18
Os outros são: Le Meunier d´Angibault(1845), La Mare au diable(1846), La Petite Fadette
(1849) e Les maîtres sonneurs(1853).

24 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
criminalidade. George Sand está preocupada, ao retratar sua região,
em expor uma tradição literária rural, com valores autênticos da
população do Berry, o que ela discute já na introdução do romance
– François – em diálogo com um amigo, em que levanta a difícil
questão do resgate da oralidade pela escrita e do estabelecimento
de uma realidade que é e não é a sua ao mesmo tempo: dar a ver
ao leitor um modo simples de viver através de uma língua francesa
(republicana!), que todos entendam, com um texto aqui e ali
permeado de palavras ou expressões da língua local (chéret para
xale, champi para abandonado, de suite para imediatamente, em
vez de tout de suite, o que exasperava Beaudelaire, que a chamava
de Latrina ( Jules Romain a chamava de Vache à romans)19.
É importante ainda lembrar o que Simone de Beauvoir
diz a respeito de Sand em Segundo Sexo, de 1947. A feminista
reconhece a contribuição na parte afetiva e sexual da mulher,
mas não cita a sua participação política e a função cultural que
desempenhou, tendo reunido junto a si muitos nomes importantes
das artes do século XIX. Talvez justamente porque Sand não
tenha apoiado as feministas que solicitaram seu apoio para que as
mulheres tivessem direito ao voto a partir da Revolução de 1848.
Sand não apoiou essa luta pelo sufrágio universal e se justifica
em correspondência, publicada somente em 1904 por sua neta,
Aurore Dupin. Michelle Perrot comenta o fato em seu livro, Des
Femmes rebelles, 2014:

Esta mulher, tão profundamente, consciente da necessidade da


igualdade dos sexos, não reivindicou em 1848 o direito de voto
para as mulheres. [...] Pensava que havia outras prioridades:
as reformas sociais, por exemplo: e, sobretudo, pensava que as
mulheres não estavam maduras. [...] As mulheres não tinham
nenhuma independência de julgamento e votariam como seus

19 Vaca romanceira.

25 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
pais, seus maridos e seus amantes. Um dia, seguramente, as
mulheres votariam. Mas elas deveriam primeiramente se instruir,
essa falta de instrução constituindo o maior crime dos homens
contra as mulheres. E conquistar seus direitos civis. A abolição
do Código Napoleão, “o infame código civil”, monumento
do patriarcado, e o restabelecimento do direito ao divórcio,
eram as premissas indispensáveis. É este o ponto de vista que
Sand defende na sua obra e principalmente nos seus romances
“feministas”: Indiana, Lélia, Jacques, que revelam a infelicidade
das mulheres amordaçadas pela família; ou no seu ensaio, Cartas
a Marcie, que o abade Félicité de Lamennais, mesmo sendo um
contestador, recusou publicar no seu jornal Le monde, porque ela
criticava o casamento. A autonomia individual das mulheres era a
condição da sua cidadania. Direitos civis primeiro: esta é a lógica
sandiana da responsabilidade, uma lógica universalista que leva
a sério os princípios de 1789 e pede sua extensão a todos, sem
distinção de sexo20 (PERROT, 2014, 162-164, tradução nossa).

Em 1952, o escritor francês André Maurois escreveu uma


biografia da autora, Lélia ou la vie de George Sand, mostrando
claramente a busca afetiva e sexual da personagem e da própria
Sand numa época em que essas discussões eram bastante
incômodas (MAUROIS, 1952). O próprio Balzac dizia a ela que

20 Cette femme, si profondément consciente de la nécessité de l’égalité des sexes, n’a pas revendiqué
en 1848 le droit de vote pour les femmes. [...] Elle pensait qu’il y avait d’autres priorités: les
réformes sociales par exemple; et surtout que les femmes n’étaient pas mûres. [...] Les femmes
n’avaient aucune indépendance de jugement et voteraient comme leur père, leur mari ou leur
amant. Un jour, assurément, les femmes voteraient. Mais elles devaient d’abord s’instruire, ce
défaut d’instruction étant “le plus grand crime des hommes envers les femmes”. Et conquérir leurs
droits civils. L’abolition du Code Napoléon , “l’infâme Code civil”, monument du patriarcat, et
le rétablissement du droit au divorce, étaient des préables indispensables. C’est ce point de vue
que Sand défend dans son oeuvre, et notamment dans ses romans “féministes”: Indiana, Lélia,
Jacques, qui montrent le malheur des femmes ligotées par la famille; ou dans son essai, Lettres
à Marcie, que l’abbé Félicité de Lamennais, pourtant constestataire, refusa de publier dans son
journal Le monde, parce qu’elle critiquait le mariage. L’autonomie individuelle des femmes
était la condition de leur citoyenneté. Droits civils d’abord: telle est la logique sandienne de la
responsabilité, une logique universaliste qui prend au sérieux les principes de 1789 et en demande
l’extension à tous, sans distiction de sexe. (PERROT, 2014, p.162-164).

26 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
a mulher não existia fora do casamento, rebatendo os argumentos
de Sand quando esta criticava a instituição e defendia a busca
para a sua libertação.

Dom Juan vai de mulher em mulher porque nenhuma das mil e


três o fez feliz; Lélia vai de homem em homem porque nenhum
deles deu prazer a ela. O romance prova que a luz, no espírito da
autora, se fez e que George, com a aproximação dos trinta anos,
analisava a si mesma com lucidez21 (PERROT, 2014, p. 168).

Outro fato da vida de Sand que chama a atenção é a


amizade, anos mais tarde, com Gustave Flaubert, pois os dois
foram muito próximos, mesmo ele sendo cerca de vinte anos mais
jovem que ela. Trocam uma longa correspondência e Flaubert a
chama, nas cartas, de Chère Maître – Cara Mestre. Nessas cartas
há toda uma discussão sobre a visão de mundo dos escritores em
relação, sobretudo, a dois aspectos: o político e o literário.
Flaubert e Sand desenvolveram uma grande amizade a
partir de 1863, após o lançamento do romance histórico Salammbô,
de Flaubert (1862), que foi reprovado pela crítica especializada
da época, mas agradou muito a George Sand. A autora escreveu
um artigo para o jornal La Presse22 elogiando o livro.
Embora muito diferentes no modo de ver o mundo, a
sociedade, a política e alguns pontos da literatura, entre 1863 e
1876, este o ano da morte de Sand, Sand e Flaubert trocaram
cartas que são verdadeiros documentos históricos de suas vidas,
bem como da França oitocentista, e um rico material literário.
21
Don Juan va de femme en femme parce qu’aucune des Mil et Trois ne lui a donné le bonheur;
Lélia va d’homme en homme parce qu’aucun d’eux ne lui a donné le plaisir. Le roman prouve
que la lumière, dans l’esprit de l’auteur, s’était faite et que George, aux approches de la treintaine,
s’analysait avec lucidité. (PERROT, 2014, p. 168).
22
A imagem desse periódico pode ser vista em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/
bpt6k479685g/f3.item.texteImage.

27 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
Um dos primeiros encontros dos dois escritores foi na
estreia de Villemer, peça teatral de Sand, no camarote do príncipe
Jérôme. O espetáculo fez muito sucesso e o entusiasmo do público
a tocou profundamente. Em carta a Flaubert, de 15 de março de
1864, ela escreve: O senhor foi tão bom e tão simpático comigo na
estreia de Villemer que já não admiro apenas seu grande talento,
mas gosto do senhor de todo o coração ( JACOBS, 1981, p. 56).
A própria Sand resume, numa de suas cartas a Flaubert, a
grande amizade e o carinho que existe entre os dois:

[...]. Nós somos, acho, os dois trabalhadores mais diferentes


que existem. Mas como nos gostamos assim, está tudo bem.
Afinal, pensamos um no outro no mesmo momento, porque
temos necessidade de nosso contrário. Nos completamos nos
identificando em alguns momentos com quem é diferente23
( JACOBS, 1981, p. 213, tradução nossa).

Em sua autobiografia, Histoire de ma vie, ela esclarece por


que decidiu escrevê-la, como podemos verificar no seguinte trecho:

A fonte mais viva e a mais religiosa do progresso do espírito


humano, é, para falar a língua do meu tempo, a noção de
solidariedade. Os homens de todos os tempos sentiram-na
instintiva ou distintamente, e todas as vezes que um indivíduo
se encontra investido do dom mais ou menos desenvolvido
de manifestar sua própria vida, ele tem sido arrastado a essa
manifestação pelo desejo de seus próximos ou por uma voz
interior não menos poderosa. Pareceu-lhe, nesse caso, cumprir
uma obrigação, e era uma, com efeito, seja de que tinha de relatar
os eventos históricos dos quais foi testemunha, seja do que

23
Nous sommes, je crois, les deux travailleurs les plus différents qui existent. Mais puisqu’on
s’aime comme ça, tout va bien. Puisqu’on pense l’un à l’autre à la même heure, c’est qu’on a besoin
de son contraire. On se complète en s’identifiant par moments à ce qui n’est pas soi ( JACOBS,
1981, p. 213).

28 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
presenciou de importantes personalidades, seja, enfim, do que
explorou e apreciou dos homens e das coisas exteriores de um
ponto de vista qualquer (SAND, 2017, p. 25-26).

Podemos compreender que escreve essa autobiografia


por solidariedade (para ela, uma noção mais abrangente que a
fraternidade) a seus contemporâneos e o que é mais surpreendente
é quando fala em vida interior como um valor a ser partilhado
socialmente:

Existe ainda um tipo de trabalho pessoal que tem sido mais


raramente realizado, e que, creio, tem uma utilidade igualmente
grande, aquele que consiste em relatar a vida interior, a vida da
alma, isto é, a história do seu próprio espírito e do seu próprio
coração com o propósito de oferecer um ensinamento fraternal
(SAND, 2017, p. 26).

Trata-se, então, de uma visão pessoal que quer ser fraterna,


nunca desconsiderando o político. E ainda no final da vida,
vemos como ela se posiciona diante da Comuna de Paris, em
1871, quando há o massacre dos revoltosos pelas forças armadas
francesas. Não consegue apoiar o movimento porque tem horror
ao derramamento de sangue. Mas há uma troca de cartas entre
Flaubert e Sand sobre o assunto em que Flaubert deplora o
que acontece na Comuna, mas, ao mesmo tempo, reivindica
sua própria clarividência, falando de seu pessimismo e de seu
elitismo, já que as massas, ao exigirem uma instrução útil e um
outro modo de organização social, forçam a burguesia a discutir
a escola republicana – laica, gratuita e obrigatória. Vejamos o que
diz Flaubert a respeito:

29 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
A instrução gratuita e obrigatória só fará aumentar o número de
imbecis. [...] Do que precisamos, antes de mais nada, é de uma
aristocracia natural, ou seja, legítima. Nada pode ser feito sem
uma cabeça, e o sufrágio universal, tal como existe, é mais estúpido
que o direito divino (VALLÈS, 1992, p. 191).

Ao que Sand responde:

A França agoniza, isso é certo, e estamos todos doentes e


corrompidos, ignorantes e desencorajados; dizer que isso estava
escrito, que deve ser assim e que sempre foi e assim será para
sempre é recomeçar a fábula do pedagogo e da criança que se
afoga. Dá na mesma dizer logo: Tanto faz – mas se acrescentas:
Nada tenho a ver com isso, então te enganas. O dilúvio vem e
a morte toma conta de nós. Podes muito bem ser prudente e
recuar, teu asilo será invadido mesmo assim. [...] Tu dizes que
sabias de tudo isso (que tudo era ilusão) desde a juventude e te
alegras por nunca teres duvidado, pois assim a idade madura
não te trouxe nenhuma decepção: então não foste jovem! Ah!
diferimos bastante, pois não parei de ser jovem, se é que ser jovem
é amar sempre (VALLÈS, 1992, p. 212).

Em grandes discussões literárias que eles desenvolvem até


o fim da vida de George Sand, os dois discordam quanto à forma
de escrever e quanto ao valor estético da literatura. Na verdade,
ele se desola pelas dificuldades encontradas em seu trabalho de
escrita e ela o consola permanentemente numa espécie de terapia
epistolar. Ele se queixa que não consegue ir adiante porque não
atinge a perfeição da forma, seu grande objetivo. Prevalece sua
visão erudita e de homem isolado que o afasta da simplicidade e
da vida cotidiana, como afirma George Sand.

30 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
Então, ela responde: Faz alguma coisa mais terrena e que
caiba em todo mundo24 JACOBS, 1981, p. 505, tradução nossa).
No que diz respeito à arte pela arte, George Sand dá a sua
visão:

Eu sei que tu criticas a intervenção da doutrina pessoal na


literatura. Terás razão? Não seria mais falta de convicção que
princípio estético? Não se pode ter uma filosofia na alma sem que
ela apareça. [...] Eu penso que falta a ti, sobretudo, uma visão bem
focada e bem estendida sobre a vida”25 ( JACOBS, 1981, p. 511).

George Sand fez muito sucesso em seu tempo e escreveu


artigos, em jornais, que eram lidos e respeitados, sobre os livros
que apreciava. Quando não gostava de uma obra demonstrava
seu desapontamento, ou enfado, com um “Oh là là”, mas isso
não era divulgado publicamente. Assim aconteceu com Madame
Gervaisais, de Goncourt, e com L’homme qui rit, de Victor Hugo,
sobre o qual se recusou a escrever um artigo. Seu amigo Balzac
também era julgado severamente e sobre seu livro Le Cousin Pons
ela disse “é bem escrito, mas é horrível”. Ao contrário disso, os
romances de Flaubert a entusiasmavam, principalmente Madame
Bovary e Salammbô (PERROT, 2018).
Isso demonstra que, para Sand, não importava o sucesso
de público ou de crítica que tinha uma obra, mas sim o que ela
mesma pensava dela. Salammbô não fez sucesso com outros
críticos, mas ela realmente gostou do livro. Vale a pena mencionar
que Flaubert fez uma longa pesquisa de campo para escrever seu

24
Fais quelque chose de plus terre à terre et qui aille à tout le monde ( JACOBS, 1981, p. 505).
25
“Je sais que tu blâmes l’intervention de la doctrine personnelle dans la littérature. As-tu raison?
N’est-ce pas plutôt manque de conviction que principe d’esthétique? On ne peut pas avoir une
philosophie dans l’âme sans qu’elle fasse jour […] Seulement je crois qu’il leur manque et à toi
surtout une vision bien arrêtée et bien étendue sur la vie” ( JACOBS, 1981, p. 511).

31 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
romance histórico, tendo ido à cidade de Cartago quatro anos
antes de escrevê-lo.
A tradução recente de três obras de Sand26 pode significar
que este é um ótimo momento para trazer ao alcance de todos
sua personalidade e sua genialidade através deste trabalho – e de
outros – que, certamente, remetem tanto à sua vida particular
quanto ao mundo literário e político ao qual ela pertenceu.
Concluindo, Flaubert, através da escrita do conto Un coeur
simple, com tradução para o português, “Um coração simples”,
dedicado a Sand, acabou chamando nossa atenção, e de muitos
outros leitores, para o pensamento e a obra literária de George
Sand. O conto traz a história de uma empregada doméstica que
dedica sua vida a uma família burguesa do interior da França. Na
sua visão ingênua, torna-se um deles. No entanto, essa família
não considera Félicité como sendo parte dela. A doméstica tem
uma capacidade enorme de amar. Primeiro, apega-se às crianças
da casa, mas uma delas morre e a outra cresce, casa-se e muda-se
para longe dali. Depois, Félicité descobre um sobrinho que acaba
embarcando como marinheiro. Por fim, liga-se a um papagaio
deixado por vizinhos como a um filho que nunca tivera. Quando
o bicho morre, ela o empalha e o coloca numa espécie de altar
caseiro. É fervorosamente religiosa. (FLAUBERT, 2019).
Era difícil entender como Flaubert teria se debruçado
sobre uma mulher tão simples de forma tão intensa, captando
a alma de uma simplória, de um ser desprovido de inteligência,
sensualidade ou beleza. O que o teria levado a isso com essa
visão de mundo expressa em suas cartas logo após a Comuna de
Paris, além da sua inclinação para temas religiosos? Então surgiu

26
O carvalho falante (2014); História da minha vida (2017); François, o menino
abandonado (2017).

32 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
a vontade de pesquisar as circunstâncias da publicação do conto
e a consequente “descoberta” da correspondência de Flaubert e
George Sand. Grande foi a nossa surpresa quando, no final da
Correspondência, Flaubert afirma:

A senhora verá através da minha História de “Um coração


simples” na qual reconhecerá sua influência imediata que eu não
sou tão teimoso quanto a senhora acredita. Creio que a tendência
moral, ou antes o substrato humano desta pequena obra lhe será
agradável27 ( JACOBS, 1981, p. 533).

Lê-se ainda em uma nota do organizador no final da


Correspondência:

Após o enterro de Aurore em Nohant, Flaubert toma o trem para


Paris, e dois dias depois, encontra-se em Croisset (lugar onde se
isola para escrever), morto de tristeza e de desencorajamento. A
partir do dia seguinte, ele se debruça novamente sobre Um coração
simples, “esse conto no qual ela teria reconhecido sua influência
imediata”. Em 1877, quando o conto é publicado, ele envia um
exemplar ao filho de George Sand: “Para Maurice Sand, pensando
em sua querida e ilustre mãe28 ( JACOBS, 1981, p. 535).

Afinal, Flaubert, criador particular de uma forma objetiva


e estética de narrar, tinha também aprendido com George Sand
a ter “uma visão bem focada e bem estendida sobre a vida”.
27
Vous verrez par mon Histoire d´un coeur simple où vous reconnaîtrez votre influence immédiate
que je ne suis pas si entêté que vous le croyez. Je crois que la tendance morale, ou plutôt le dessus
humain de cette petite oeuvre vous sera agréable! ( JACOBS, 1981, p. 533).
28
“Le soir même il reprend le train pour Paris, et deux jours après il retrouve son vieux Croisset,
qu’il avait quitté en septembre, brisé de chagrin et de découragement. Dès le lendemain, il se
penche de nouveau sur Un coeur simple, ce conte qui aurait été si agréable à sa vieille amie, et
où elle aurait dû reconnaître son influence immédiate... Quand Trois Contes paraîtront, à la
fin d’avril 1877, Flaubert enverra à Maurice un exemplaire avec cette dédicace émouvante:
“À Maurice Sand, en pensant profondément à sa chère et illustre mère. Gustave Flaubert”
( JACOBS, 1981, p. 535).

33 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
Victor Hugo, grande romancista francês, que também era
amigo e admirador da autora, não compareceu aos funerais, mas
escreveu um discurso que foi lido por Paul Meurice, no velório
de George Sand:

Eu choro uma morta e saúdo uma imortal, eu a amei, a admirei,


a venerei; hoje, na augusta serenidade da morte, eu a contemplo.
Eu a felicito porque o que ela fez é grande, e a agradeço porque
o que realizou é bom. Lembro-me do dia em que lhe escrevi:
“Eu lhe agradeço por ser uma alma tão grande”. Será que a
perdemos? Não. Essas altas figuras se vão, mas não desaparecem
[...]. (SAND, 2017, p. 647).

Não podemos deixar ainda de citar um outro autor


influenciado por ela: Marcel Proust. François le Champi é
justamente um dos romances que mais marcam suas leituras de
infância. O livro é citado em Um amor de Swann e em O Tempo
redescoberto, início e fim de Em busca do tempo perdido. No início, o
menino recebe quatro dos cinco romances campestres de presente
de Natal. A avó os tinha comprado e a mãe lê para ele François, le
Champi. No último volume de Em busca do tempo perdido, ele fala
da emoção em rever o volume. A primeira leitura é feita por sua
mãe, restituindo-lhe assim a força da oralidade. Esse romance de
Sand parece irrigar toda a sua obra, do começo ao fim. Segundo
Fouque (2009), “não é à toa que o livro conte a história de um
mocinho adotado mais tarde por uma camponesa uns doze
anos mais velha do que ele e que se chama Madeleine [...]” É
também sentindo o gosto de um bolinho chamado madeleine que
o personagem de Proust começa a reviver toda a sua infância em
Cambray, é a partir de uma experiência sensorial. “É uma cena
de oralidade absoluta, no sentido de falar e comer. É, portanto,

34 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
também... em busca da carne perdida”29 (FOUQUE, 2009, p. 25,
tradução nossa). Poderíamos dizer que o texto de Proust está, na
sua natureza, cheio de experiência feminina, doméstica, sensorial,
muito próxima da que nos dá a viver e a ler George Sand em seus
textos.
Depoimento de Fiodor Dostoiévski, escritor do século
XIX, seu contemporâneo:

Foi somente ao saber da sua morte que compreendi toda a


importância que aquele nome ocupava na minha vida, todo o
entusiasmo e a adoração que eu havia devotado a este poeta
e o quanto eu lhe devia de alegria e felicidade. Falo aqui com
determinação, pois é o que eu sentia. [...] George Sand é uma
de nossas contemporâneas, nós, os idealistas russos de 1840, no
sentido mais completo da palavra. [...]. Ao exaltar nomes como
o de George Sand e ao se inclinar diante deles, os Russos não
fazem mais que cumprir o seu dever e saldar uma dívida. Que não
se surpreendam com minhas palavras, quando elas se referirem
a George Sand. Haverá certamente pessoas que zombarão da
grande importância que dou a ela, mas esses zombadores se
enganarão!30 (GUÉNO, DEFORGES; AYALA, 2004, p. 153).

Na biografia, Dostoiévski – um escritor em seu tempo (2018),


Frank relata que, na segunda metade de 1844, Dostoiévski
traduziu A derradeira Aldini, de George Sand. As obras dela eram

29
C´est une scène d´oralité absolue, au sens de parler et manger. C´est donc...à la recherche de la
chair perdue (FOUQUE, 2009, p. 25).
30 C’est seulement en apprenant sa mort que j’ai compris toute la place que ce nom occupait dans
ma vie, tout l’enthousiasme et l’adoration que j’avais voués à ce poète, et combien je lui devais
de joie et de bonheur. Je parle ici avec hardiesse car c’est ce que je ressentais. [...]. George Sand est
une de nos contemporaines à nous autres idéalistes russes de 1840 dans le sens le plus complet du
mot. [...]. En exaltant des noms comme celui de George Sand et en s’inclinant devant eux, les
Russes n’ont fait que remplir leur devoir et s’acquitter d’une dette. Qu’on ne s’étonne pas de mes
paroles, surtout quand elles se rapportent à George Sand. Il se trouvera peut-être des personnes
qui souriront de la grande importance que je donne à George Sand, mas les rieurs auront tort
(GUÉNO, DEFORGES; AYALA, 2004, p. 153).

35 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
sempre bem vendáveis. Depois de trabalhar muito, quando faltava
pouco para concluir sua tradução, Dostoiévski descobriu que o
livro já tinha sido traduzido para o russo.

Nesse romance, ela apresenta a superioridade moral de um


verdadeiro filho do povo – descendente de pescadores – em
relação à aristocracia decadente e covarde de seu país natal. O
livro está repleto de alusões ao cristianismo revolucionário social
que então fazia sua aparição na caudalosa produção de Sand
(FRANK, 2018, p. 111).

E sobre a influência que Sand teve na obra escrita por


Dostoiévski, principalmente em seu ilustre Irmãos Karamázov,
afirma:

Há semelhanças intrigantes entre Spiridion de Sand (1839) [...]


e certas características de Os irmãos Karamázov (1880). Ambas as
histórias se situam num mosteiro; ambas envolvem a transmissão
de uma tradição religiosa antiga e semi-herética; ambas enfatizam
que a verdadeira religião deve depender somente da livre escolha
moral, e não da tirania de dogmas ou instituições. Ambas têm
como personagens centrais um monge velho e moribundo [...]
e um jovem discípulo fervoroso inspirado por sua doutrina e
seu exemplo; ambas dramatizam a luta entre a razão cética e a
fé verdadeira (FRANK, 2018, p. 112).

O autor ratifica que Dostoiévski adorava George Sand na


juventude, e que outro de seus romances, Mauprat, também tinha
semelhanças com a trama de Os irmãos Karamázov. Para ele, “[...]
uma comparação de trechos paralelos das cenas de julgamento,
deixa claro que alguns dos elementos da trama de Mauprat
imprimiram marcas indeléveis na memória de Dostoiévski”
(FRANK, 2018, p. 997).

36 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
A influência de Sand não apenas sobre Dostoiévski, mas
sobre os vários escritores já citados aqui, só contribui para enfatizar
a relevância da escritora nos meios político, intelectual e social
– este principalmente no Berry, onde fazia efetivos atos sociais
– do século XIX. Isso faz com que nos questionemos ainda mais
sobre o fato de que ela ficou esquecida na Europa – e no Brasil
também – durante muitos anos após a sua morte. Por que será?
Seria apenas por ter sido uma escritora romântica na época em
que brilhavam o simbolismo e o naturalismo? Claro que não, isso
nos remete também a questões de gênero, já que Sand foi um
sucesso absoluto no século XIX, tendo vivido dos frutos de sua
arte literária numa época em que só os homens conseguiam essa
proeza. Como bem sabemos, não foi sem motivo que ela adotou
como pseudônimo um nome masculino logo no começo de sua
brilhante carreira de escritora.
Atualmente no Brasil, alguns pesquisadores e tradutores
vêm estudando a vida e a obra de George Sand (Costa, 2015;
Garcia; Aparecida; Morais; Simone; Lee; Oliveira, 2017).
Um desses trabalhos de pesquisa resultou na tradução da obra
autobiográfica de Sand História da minha vida (Histoire de ma
vie). Para Magali Fernandes, prefaciadora da tradução, “Trazê-la
de volta ao público brasileiro, neste momento, tem como objetivo
central a recuperação do lado escritora e personagem de George
Sand”. Mas não só isso, alguns estudos atuais que tratam de sua
obra reconhecendo sua grandeza e representatividade, por parte da
crítica literária francesa e internacional, foram sua outra motivação
para escolher trabalhar com a escritora. Os pesquisadores optaram
por sintetizar os dez volumes da obra num único volume sem
interferir diretamente no texto original (SAND, 2017).

37 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
Outro trabalho sobre a escritora está sendo desenvolvido
por uma das autoras deste artigo. Trata-se de uma pesquisa sobre
aspectos políticos e literários do século XIX, época em que George
Sand viveu e seu lugar em meio a esse contexto31, bem como alguns
aspectos da amizade da autora com Gustave Flaubert. Ambos
trilharam importantes caminhos artísticos, principalmente dentro
da literatura, e intelectuais, devido ao senso crítico de ambos e
à qualidade de sua retórica e de seu trabalho. Não pretendemos
desvendar a atração irresistível de um pelo outro, ainda que apenas
no terreno da amizade, da lealdade e da intelectualidade forte de
ambos. Flaubert sentia necessidade de confiança, acolhimento.
Sand era uma pessoa afetiva, acolhedora, carinhosa.
Como já mencionamos, os dois autores tinham, cada
um, um posicionamento, claro e diferente um do outro, sobre a
literatura, a política e a cultura como um todo. Não é novidade
que a literatura, epistolar ou não, difunde características da época
em que foi escrita, e, de certa forma, da sociedade que a cerca.
Quanto mais livros de Sand forem traduzidos, mais
aumenta o diálogo entre o conhecimento do leitor e seu contato
com a cultura oitocentista francesa, através desse ponto de
vista tão particular da autora, de resto já bem propagada por
contemporâneos de Sand, como Balzac, Victor Hugo e Flaubert,
entre outros. É fundamental aproveitar esse momento em que a
autora voltou a ser estudada e traduzida para fomentar a divulgação
de sua obra através de novas traduções de seus escritos e de novas
reflexões sobre sua representatividade no mundo contemporâneo.
Em A literatura em Perigo, Todorov (2010, p. 33) afirma
que “O conhecimento da literatura não é um fim em si, mas uma
31
Esse estudo faz parte do projeto de pesquisa realizado no mestrado, da discente Liliane
Mendonça Duarte, sob orientação do professor Dr. Maurício Mendonça Cardozo, pelo
Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

38 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
das vias régias que conduzem à realização pessoal de cada um”.
O que nos leva a refletir que “para quem não conhece a língua do
original, a tradução tem o mesmo valor (que pode ser imenso!)”
(MORAES, 2017, p. 50) portanto, ter a oportunidade de ler uma
tradução é provavelmente a maneira mais eficiente de ampliar
conhecimento e adquirir cultura. Para Todorov, “Mais densa e mais
eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente,
a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras
maneiras de concebê-lo e organizá-lo” (TODOROV, 2010, p. 23).
E é nessa formulação, nessa dinâmica do conhecimento
literário e de crescimento pessoal por meio da literatura que
ressaltamos a importância desses trabalhos já citados sobre a autora
e de outros que venham ainda a surgir e exaltar a genialidade dela,
que desde o início da carreira precisou forjar um nome masculino
para ter suas obras publicadas.

Referências

BALZAC, Honoré de. La muse du département. Paris: J. Hetzel, 1843.

BILLARD, Yves. Et al. (org.) Jounal historique de la france. Paris:


Hatier, 1988.

DOSTOIEWSKI, Fiodor. Journal d’un écrivain, juin 1876. Tradução


do russo para o francês por J.-W. Bienstock et John-Antoine Nau. Paris:
Bibliothèque-Charpentier, 1904.

FLAUBERT, Gustave. Três contos. Tradução Milton Hatoum, Samuel


Titan Jr. São Paulo: Editora 34, 2019.

39 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
FOUQUE, Antoinette. Entretiens avec Christophe Bourseiller. Paris:
Bourin Editeur, 2009. (Collection Qui êtes-vous?).

FRANK, Joseph. Dostoiévski: um escritor em seu tempo. Tradução


Pedro Maia Soares. São Paulo: Cia das Letras, 2018.

JACOBS, Alphonse. Correspondance: Gustave Flaubert - George


Sand. Paris: Flammarion, 1981.

GUÉNO, Jean-Pierre; DEFORGES, Régine; AYALA, Roselyne de.


Les plus beaux manuncrits de George Sand. Paris: Perrin, 2004.

MAUROIS, André. Lélia ou la vie de George Sand. Paris: Hatier, 1952.

MENDES, Gabriel. Primavera dos povos (1848). Canal Projeto X, jun.


2018. (Aula de história). Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=CcC_jig3-zM. Acesso em: 10 jun. 2020.

MORAES, Marcelo Jacques de. Língua contra língua. Rio de janeiro,


7Letras, 2017.

NESCI, Catherine. Les flâneurs et les flâneuses. Grenoble: ELLUG,


2007, p. 249.

PERROT, Michelle. George Sand: uma mulher do século (1804-1876).


Des femmes rebelles. Tunis: Elyzad, 2014.

PERROT, Michelle. George Sand à Nohant – Une Maison d’artiste.


SEUIL, 2018.

RENNÓ, Pedro. História geral: primavera dos povos. Parabólica, ago.


2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CxR4Qzn5vak.
Acesso em: 10 jun. 2020.

PERROT, Michelle. Des femmes rebelles. Paris: Editions Elyzad, 2014.

40 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
SAND, George. François, le Champi (1850). Tradução Liliane
Mendonça. São Paulo: Kazuá, 2017.

SAND, George. Histoire de ma vie. Paris: Flammarion, 2004.

SAND, George. História da minha vida. Tradução Marcio Honório de


Godoy e Organização Magali Oliveira Fernandes. São Paulo: Unesp,
2017.

SAND, George, Indiana. Paris: Gallimard, 1984. Préface de l´édition


de 1832.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Portugal: Difel, 2010.

VALLÈS, Jules et al. Crônicas da Comuna. São Paulo: Ensaio, 1992.

41 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 13-41 – jul./dez. 2020
STELA DO PATROCÍNIO,
“ESPAÇO VAZIO PURO”

Sílvio José Stessuk1

RESUMO: Discute-se, com este trabalho, a obra da poetisa carioca Stela do


Patrocínio, sob o prisma do conceito de Poesia pura, sugerido pelo crítico francês
Abade Henri Brémond em 1925. A expectativa é propor subsídios para avanços
tanto no conhecimento prático da obra patrociniana como no desenvolvimento teórico
da nomenclatura bremondiana, pela sua aproximação para com a Literatura na
Contemporaneidade.
PALAVRAS-CHAVE: Stela do Patrocínio; Poesia pura; Henri Brémond.

ABSTRACT: The aim of this research is to discuss the work of the Carioca poet Stela
do Patrocínio, under the conceptual prism of Pure Poetry, suggested by the French critic
Abbot Henri Brémond in 1925. The expectation is to propose subsidies for advances both
in the practical knowledge of the Patrocinian work and in the theoretical development
of the Bremondian nomenclature, by the approach with the Contemporary Literature.
KEYWORDS: Stela do Patrocínio; Pure Poetry; Henri Brémond.

Introdução: “falatório”

A história da poetisa carioca Stela do Patrocínio (1941-


1992) tem início em 1962, quando deu entrada no Centro
Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, sob diagnóstico de
“personalidade psicopática mais esquizofrenia hebefrênica,
evoluindo sob reações psicóticas”. Pouco ou praticamente
nada se sabe sobre seus anos anteriores – o que há são escassos
depoimentos desconexos prestados por ela, insuficientes para se
traçar um rumo seguro. Em 1966, Stela viu-se transferida para o
pavilhão feminino da Colônia Juliano Moreira, onde – salvo por
1 Professor Adjunto de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira na Universidade
Estadual de Londrina.

43 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
breve período em que, no seu último ano, esteve internada no
Hospital Cardoso Fontes em virtude de complicações infeccionais
– passou quase três décadas de sua breve biografia e faleceu.
A longa estadia da poetisa no hospício ainda estaria
condenada ao silêncio, como é a sina de tantos outros que estiveram
nesse ambiente inóspito que, pela sua natureza massificadora,
costumava funcionar como verdadeira máquina de amputação de
subjetividades, pelo menos até antes da reforma antimanicomial
efetivada em tempos mais recentes. Raros foram os usuários que
conseguiriam elevar e manter a sua voz, o seu jeito próprio de
ser e de ver o mundo, a sua personalidade, mais ainda, a sua arte.
Entretanto, Stela conseguiu sobreviver como Stela e mais,
nos legar uma produção estética de alto e surpreendente valor.
Isso se deve ao fato de, em meio ao imenso grupo de centenas
de internos, Stela do Patrocínio ter em mais de uma ocasião se
destacado por empregar um discurso oral – ou, como a própria
se refere, um “falatório” – inusitado mesmo para os padrões de
alienados, pois carregado de forte teor poético. A poetisa, pode-
se afirmar, sobreviveu por conta unicamente de sua fala poética:

Meu passado foi um passado de areia


Em mar de Copacabana
Cachoeira de Paulo Afonso
Bem dentro da Lagoa Rodrigo de Freitas
No Rio de Janeiro

O futuro eu queria
Ser feliz
E encontrar a felicidade sempre
E não perder nunca o gosto de estar gostando

O que eu penso em fazer da minha vida


É encontrar a felicidade, ser feliz

44 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
Ficar gostando e não perder o gosto
Ser feliz
Encontrar a felicidade
E não perder o gosto de estar gostando (PATROCÍNIO, 2001, p. 73)

Em face dos despropósitos, é apenas a partir de meados da


década de 1980 que o discurso poético de Stela começa a chamar
a atenção. Merecem consideração as conjunturas do processo de
seu reconhecimento e resgate.
A abertura ocorreu em 1986, quando a artista plástica
Neli Gutmacher e seus alunos foram convidados, pela psicóloga
Denise Correia, a montar um ateliê com os usuários da Colônia
Juliano Moreira. Embora mais voltados para a expressão pictórica,
a impressão que tiveram com a virtuose poética de Stela do
Patrocínio foi tal que a artista plástica e uma de suas estagiárias,
Carla Guagliardi, tiveram a iniciativa de gravar os diálogos que
mantinham com ela.
Já em 1988, foram colhidas em vídeo algumas cenas de
Stela falando, com sua verve característica, junto com aparições de
outras internas. Os poucos minutos assim obtidos são testemunhos
preciosos de uma poetisa em flagrante atuação produtiva oral e
hoje podem ser acompanhados através do documentário Stela do
Patrocínio – A mulher que falava coisas (2006), do diretor Márcio
de Andrade.
Mais tarde, outras gravações em áudio, desta vez de
atendimentos com Stela, foram feitas em 1991, pela estagiária de
Psicologia Mônica Ribeiro de Souza, que também fez a transcrição
do material colhido. A partir desses trabalhos voluntários, foi
levado avante o projeto que culminaria na publicação do livro
póstumo Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (2001),
que enfeixa a obra patrociniana, organizado e apresentado pela
psicanalista, filósofa e poetisa Viviane Mosé.

45 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
A poética de Stela do Patrocínio ainda é relativamente
pouco conhecida pelo grande público. Sem embargo, dos que
tiveram a oportunidade de ouvi-la ou lê-la – estudantes e
professores de Letras ou de Psicologia, psicanalistas, artistas
plásticos, teatrólogos, atores, cineastas de curtas-metragens –,
muitos parecem compartilhar da opinião entusiasmada de Ricardo
Aquino, que abriu o prefácio de Reino dos bichos e dos animais é
o meu nome com a afirmação: “O texto de Stela do Patrocínio
que vem à luz neste livro já nasce como um marco na literatura
brasileira, revestindo-se da maior importância e significado” (in
PATROCÍNIO, 2001, p. 13).
O simples alvitre de que se trata de “um marco” é
suficiente para instigar à leitura cuidadosa da obra patrociniana.
Contudo, quais motivos poderiam ser elencados para justificar
convincentemente – vale dizer, do ponto de vista amiudado de
uma crítica literária isenta – impressões dessa natureza?
São dois os aspectos que singularizam, de maneira bastante
apreciável, a poética de Stela do Patrocínio, conferindo-lhe
caráter de relevância no panorama da Literatura Brasileira
Contemporânea.
Em primeiro lugar, a circunstância de que, quando se
menciona o “discurso poético” de Stela, de forma alguma está em
pauta uma escrita organizada com método estético consciente,
quer esse método esteja sob o influxo de um insight de inspiração,
quer sob a aplicação de trabalho. Não se observa, nesse caso
porventura único, alguém que se senta à escrivaninha ou ao
computador episodicamente para produzir uma manufatura
artística. O que se tem, ao invés, é a incomuníssima anotação
de uma lírica da oralidade que não se dissocia da fala cotidiana,
ou seja: de acordo com os testemunhos, Stela do Patrocínio não

46 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
se comunicava, verbalmente, senão por poemas ou estruturas
próximas – a integralidade ou quase de seu tempo era ocupada
pelo “discurso poético” in natura, em estado bruto. Pelo menos nos
seus últimos anos, nada importando o peso quer do delírio, quer
da lucidez, a poetisa vivia em estado poético perene e espontâneo.
Se se trouxer à memória as biografias de outros tantos poetas e
escritores que escreveram nos ambientes asilares ou assemelhados,
acossados sob o aguilhão da loucura – Torquato Tasso ou Friedrich
Hölderlin, Ângelo de Lima, Antonin Artaud e, entre nós, Qorpo
Santo, Lima Barreto e Maura Lopes Cançado –, é claro perceber
que sempre havia uma nítida separação entre aqueles instantes
de produção literária e os instantes de comunicação coloquial,
alienados ou não, mas sem traço nenhum de intencionalidade
estética. Certo que, com efeito, em Stela do Patrocínio também
não se vê a tempo algum a intencionalidade estética: porque, sem
solução de continuidade, a expressão poética lhe surge como a
mesma expressão natural do sujeito em seus afazeres do dia a dia.
Isso transporta a lírica oral de Stela do Patrocínio a um grau de
pureza do mais precioso quilate e – quer parecer – absolutamente
inédito, pelo menos nos registros gerais mais noticiados dos
cânones da História da Literatura no Ocidente.
O segundo aspecto que confere ao discurso de Stela o
caráter duma floração única é a particularidade de que brota em
condições de estufa: poética do exílio, ela se asila e se isola, na
perfeita encarnação da marginalidade, como ilha, desse modo
emersa, na medida do possível, dos circundantes históricos de
três décadas, dos movimentos sociais, das intestinações políticas
e econômicas, dos padrões culturais e de todos os -ismos e os
truísmos literários, sem espaço para questões de mercado, moda
ou recepção – todas essas são intervenções de triz, as inevitáveis

47 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
e nada mais. Stela do Patrocínio, em seu mundo próprio, aparece
como uma poetisa incontaminada pelo Zeitgeist ou, ao menos,
tanto quanto alguém possa ser assim. Destarte, intensamente
depurada, essa lírica plena de liberdade alcança, quem sabe, o mais
distante a que qualquer poeta já foi na procura alquímica do graal
de si mesmo: Poesia em-si, Poesia que nem se sabe Poesia, Poesia pura.
Como abordar uma obra assim caracterizada? Uma das
possibilidades é, coerentemente com a sua índole de pureza,
libertando-a dos seus atributos contingenciais e buscando seus
atributos essenciais.
Como toda poética, principalmente as fortes, a de Stela
do Patrocínio aponta para múltiplas dimensões: a poetisa louca,
a poetisa interna/usuária, a mulher, negra, pobre, sexualmente
oprimida, solitária, brasileira, religiosa (etc...) são apenas algumas
das primeiras a chamarem atenção e a se viabilizarem como
objetos perquisitivos de apreço, correspondendo a campos de
análise muitas vezes já abertos e que, com o tempo, servirão para
o erguimento de uma fortuna crítica consistente.
Entretanto, em complemento a tais vieses, o alvo deste
artigo se coloca em campo mais fluido, ao abstrair a poetisa
como personagem da própria obra – ou ao resgatá-la dessa
obra – e procurar visualizar a poeta, sem mais adjetivos: quer-se
ter a observação concentrada na palavra da artista que, durante
décadas, viveu num mundo particularíssimo e poetou não sob
a aura de experiência estética consciente, e sim como expressão
de vivência em ato natural. Alheia à diacronia, desinteressada
da sincronia, desintelectualizada porque independente de
quaisquer preocupações literárias externas, políticas, sociais, éticas,
comportamentais, editoriais, mercadológicas ou de influência
que tenham angustiado o período histórico em questão, Stela

48 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
do Patrocínio ilustra na práxis mais profunda o que um autor
erudito como Manoel de Barros perseguiu conscientemente por
toda a vida: o autêntico e permanente “estado de Poesia”. Aliás,
a excelência em não-ser de Stela espelha a obsessão de não-ser
de Manoel:

Vão dizer que não existo propriamente dito.


Que sou um ente de sílabas.
Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém. (BARROS, 2010, p.
390)

É na volatilidade entre lucidez e translucidez, a estruturar


“um ente de sílabas” com “vocação pra ninguém”, que se justifica a
opção pelo conceito de Poesia pura como instrumento crítico hábil
para o enfrentamento do texto patrociniano, o qual, em termos
de estrita hipótese teórica inicial, pode ser entendido, em certa
medida, como referente apenas a si mesmo. Não que o entorno
social deva ser deixado à parte – uma poética é sempre mais do que
ela mesma, respondendo a comprometimentos humanos diversos,
o que proporcionará questionamentos a outros pesquisadores –,
porém, nesse caso invulgar de Stela, o entorno social pode ser, por
um instante de reflexão atenta, deixado à parte – permitindo,
portanto, uma abordagem pautada pela essencialidade, pelo neutro,
pelo absoluto em oportunidade extrema: assim, para se demandar
o “espaço vazio puro” da poética em rarefação, um dos caminhos
que também se apresenta é o da mais tênue vacuidade teórica –
a aposta na delicadeza da crítica em rarefação solidária, quase
desteoria, tal como Stela é quase despoesia. A própria singularidade
de Stela do Patrocínio enseja uma ferramenta crítica singular.
Consequentemente, o arcabouço teórico da Poesia pura,
tal como exposto por Henri Brémond, denota prestar-se como

49 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
instrumento bastante adequado para lançar novas inquietações
sobre essa singularidade da poética patrociniana, desde que
seja submetido a uma afinação que leve em conta o estado da
contemporaneidade e a situação de solidão extrema da autora.
Vejamos. A elocução Poesia pura intenta, pelo menos em
princípio, responder à seguinte dúvida: o que faz de determinado
objeto algo a ser estimado como poético e que falta a outro que
assim não é estimado? Divagações singelas à volta da atualmente
gasta dicotomia entre a forma e o conteúdo demonstraram-se, com
o tempo, ineficazes. Estrutura é tão-só o texto, tema é tão-só o
pretexto. Mas, positivamente, a serviço de qual âmago a forma
se arquiteta e o conteúdo se invoca? Que é esse poético que a
forma e o conteúdo conseguem captar, quando o conseguem?
Ou, empregando a fórmula poundiana: como se constituem
as “essências e medulas” que possibilitam a certas realizações
humanas se estatuírem como Poesia, linguagem erguida?
São indagações espinhosas: milênios de tarefas infinitas as
têm tentado solver, contudo, o conceito de Poesia pura permanece
como dos mais fugidios. Divulgada na França pelo abade Henri
Brémond em 1925, com referência à obra de Paul Valéry, e daí
ganhando, em meio a acirradas controvérsias, com rapidez a
Europa e o Ocidente, a expressão Poesia pura, na verdade, pretende
abarcar uma vasta problemática que atravessa a História da
Literatura, sob terminologias e pontos de vista diversos, desde
pelo menos o Íon (c. 394-391 a. C.), de Platão, e a Poética (c. 335-
323 a. C.), de Aristóteles. A bem dizer, é, com efeito, justamente
sobre a ideia de pureza da Poesia que se erigiu toda a Teoria da
Literatura. Sem contar a imensa gama de textos metapoéticos,
quase todos os mais importantes documentos teóricos pertinentes
têm discutido, ao longo dos séculos, a questão da Poesia pura, seja

50 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
direta, indireta ou mesmo tangencialmente, por exemplo: a Arte
poética ou Epístola aos Pisões (c. 19-8 a. C.), de Horácio; o Tratado
do sublime, de Longino (séc. I); Do ensino, de Santo Agostinho
(389); trechos das epístolas de Dante Alighieri a Cangrande I della
Scala (1305-1320); e a Arte poética (1674), de Nicolas Boileau.
Especial atenção foi dada ao assunto no séc. XIX, sobretudo pelos
românticos e pelos simbolistas, através de escritos significativos,
como, em citação aleatória: vários dos fragmentos do Pólen (1798-
1801), de Novalis; o ensaio “Uma defesa da Poesia” (1811-1815),
de Percy Shelley; os artigos “A filosofia da composição” (1848)
e “O princípio poético” (1850), de Edgar Allan Poe; O pintor da
vida moderna, texto também conhecido como Sobre a Modernidade
(1863), de Charles Baudelaire; a “Carta dita do vidente” (1871),
de Arthur Rimbaud; e, dentre tantas outras páginas, “Crise
do verso” e “Magia” (c. 1886-1898), de Stéphane Mallarmé,
bem como a sua carta autobiográfica (1885) endereçada a Paul
Verlaine. Nos novecentos, vale mencionar: as querelas formalistas
e depois estruturalistas sobre a literaturnost de Roman Jakobson;
as Cartas a um jovem poeta (1903-1908), de Rainer Maria Rilke;
as conferências “Situação de Baudelaire” (1924), “Primeira aula
do curso de Poética” (1937) e “Poesia e pensamento abstrato”
(1939), mais as “Questões de Poesia” (1935), de Paul Valéry; o
ABC da Literatura (1934), de Ezra Pound; as ponderações de
Walter Benjamin traçadas em Charles Baudelaire – um poeta na
época do capitalismo avançado (1927-1940); a Estrutura da lírica
moderna: da metade do século XIX a meados do século XX (1956),
de Hugo Friedrich; O arco e a lira (1956) e Os filhos do barro
(1972), de Octavio Paz; e praticamente todos os numerosos
manifestos que as Vanguardas proliferaram, desde o Futurismo
de Tommaso Marinetti (1909). Entre nós, é o caso de citar, sem

51 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
pretensa exaustão, o “Prefácio interessantíssimo” (1922) e tópicos
d’A escrava que não é Isaura (1925), de Mário de Andrade; os dois
manifestos de Oswald de Andrade (... da Poesia pau-Brasil, 1924; e
... antropófago, 1928) e o sistema ideológico oswaldiano sucedâneo;
a Teoria da Poesia Concreta (1950-1960), do grupo Noigandres; o
ensaio “À busca da Poesia” (1970), de Pedro Xisto, sobre a obra de
Guimarães Rosa; a linha dorsal d’A arte no horizonte do provável
(1977), de Haroldo de Campos; e, por fim, em foco mais fechado,
alguns capítulos do Convívio poético (1955) e da Vigília poética
(1962), de Henriqueta Lisboa.
Assim, nesta pesquisa, quando se fala em Poesia pura,
quer-se ter em mente o que todos esses arrazoados críticos têm
em comum, a saber, procurar identificar o que faz um poema
ser poema, isto é, o que o faz irradiar Poesia. O que vale dizer:
falar de Poesia é sempre falar de sua pureza, tentar identificá-la
num texto sob uma dada perspectiva. É patente, contudo, que
nenhuma definição é suficiente para dar conta do fenômeno da
Poesia pura. Por sua própria natureza, a Poesia pura é refratária a
qualquer expectativa de se demarcá-la. Propondo-se então como
antidefinição confinante com o mistério, ela é, antes, uma abstração
de contornos extremamente indistintos – para empregar um
tropo, poder-se-ia dizer: é uma nuvem cuja existência se revela
inegável, não sendo, porém, possível encapsulá-la em duras paredes
ou estabelecer qualquer espécie de limite definitivo ou fôrma
durável à sua essência móvel e metamórfica. A única estratégia
prática para se aproximar de sua verdade seria através de uma
recepção crítica que permita um vislumbre holográfico: cada
parte de eventual conceituação sobre as características daquilo
que conhecemos como Poesia pura, embora seja necessariamente
uma informação incompleta, não obstante precisa ser recebida,

52 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
a fim de que sirva como ferramenta prática, como se fosse uma
informação de integralidade. Sirva-nos por ora, portanto, a
afirmação do abade Brémond (1947, p. 14): “Hoy ya no decimos: en
un poema hay vivas pinturas, pensamientos o sentimientos sublimes,
hay esto y aquello, y además hay lo inefable. Decimos: ante todo y sobre
todo hay lo inefable, estrechamente unido por lo demás a esto y aquello.”
No entanto, não se tencione conceder a esse “inefable” algum
matiz tautológico semelhante à literaturnost jakobsoniana. Para
nos acercarmos um pouco mais da Poesia pura, recorra-se a uma
ontologia negativa: Poesia pura é aquela que não é impura. E isso
não seria nova tautologia? Certo que não. Símile: para se lapidar
o puro carbono em cristal que perfaz o diamante, mister antes
limpar toda rocha que polua a gema. Poesia pura, sob tal óptica,
seria aquela que se sustém em liberdade, suspensa no tempo e no
espaço, independente de quaisquer temas e propósitos que lhe
empanem o brilho, sem servir a qualquer imperativo racional ou
sentimental, ao que quer que seja fora de si mesma e de sua crua
cor. Como coloca Julio Cortázar, na orelha de capa da edição em
espanhol de La Poesía pura – referindo-se às “condiciones esenciales
de toda poesía”, extraídas do “irreiterable testamento” de Baudelaire
–, a Poesia pura reclama um total “desgajamiento del compromiso
ético (no de la ética) y del didáctico (no de la verdad)”. E Henriqueta
Lisboa aduz:

Seja como for, libertada das formas elementares da paixão (que não
são formas criadoras), do juízo afeito a discernir o real do irreal
(impróprio à beatitude poética), da cópia servil das coisas, da lógica
prosaica, da eloqüência oratória, do anedótico, do didático, purificada,
em suma, organicamente, a poesia atinge seu mais elevado estágio,
um mundo de perspectivas extraordinárias, onde impera a intuição
(LISBOA, 1955, p. 81).

53 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
Para arrematarmos as explicações sobre este ponto, dê-se
novamente a palavra a Brémond:

Yo lo llamaría contagio, o irradiación, es decir creación o


transformación mágica, por la cual no asumimos en principio
las ideas o los sentimientos del poeta, sino el estado de alma que
lo ha hecho poeta: esa experiencia confusa, sólida, inaccesible a la
conciencia distinta. Las palabras de la prosa excitan, estimulan,
colman nuestras actividades ordinarias; las palabras de la
poesía las sosiegan, desearían suspenderlas. Nos apartan de esas
sombras deslumbrantes que nuestro imperialismo antimístico –
consecuencia del pecado original – nos vuelve harto deleitosas,
para transportarnos a esas dichosas tinieblas donde las garras
de las tres concupiscencias no encuentran ya donde aferrarse
(BRÉMOND, 1947, p. 23; sem grifos no original).

Confirme-se que na lírica de Stela do Patrocínio se


faz flagrante, com frequência, esse vago “estado de alma”, essa
“experiencia confusa, sólida, inaccesible a la consciencia distinta” –
porém, simultânea e paradoxalmente, experiência fluida, quase
informe, tendente à plenitude da absoluta neutralidade:

Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo


Eu era ar, espaço vazio, tempo
E gases puro, assim, ó, espaço vazio, ó
Eu não tinha formação
Não tinha formatura
Não tinha onde fazer cabeça
Fazer braço, fazer corpo
Fazer orelha, fazer nariz
Fazer céu da boca, fazer falatório
Fazer músculo, fazer dente

Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas


Fazer cabeça, pensar em alguma coisa

54 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
Ser útil, inteligente, ser raciocínio
Não tinha onde tirar nada disso
Eu era espaço vazio puro (PATROCÍNIO, 2001, p. 82)

Por outro lado, a terminologia bremondiana Poesia pura


talvez ainda se mostre algo tingida por colorações românticas,
finisseculares, pós-simbolistas – seria então o azo de atualizá-
la. Isto é: o lance-limite de Stela do Patrocínio apresenta a
oportunidade de que a noção de Poesia pura possa se prestar a uma
reelaboração, levando em conta as novas discussões estabelecidas
desde meados do séc. XX até a contemporaneidade. Se se afina
com outros conceitos crítico-literários pretéritos não explorados
a contento, como o fragmento, a rosa azul, a tarefa indeterminada
de Novalis, a alquimia do verbo de Rimbaud, a arte pela arte de
Benjamin Constant, Theóphile Gautier e Oscar Wilde, a musicista
do Silêncio e o livro do Nada de Mallarmé, é correto especular que
a Poesia pura ainda deva diálogos com a literaturnost de Jakobson,
o poeta-em-um-poeta de Harold Bloom, a antropofagia oswaldiana,
a crueza verbivocovisual do Concretismo, a inutilidade do poema de
Manoel de Barros e correto que – nesta investigação – também
possa dialogar com a fluidez gasosa do discurso patrociniano.
Ademais, precisamente pela sua qualidade de não poder ser
simplificada a uma definição em clausura, trata-se de matéria que
ainda comporta largo espaço para novas cogitações, mormente no
Brasil, onde a obra seminal de Brémond, La Poésie pure, sequer
foi traduzida ao vernáculo.
Em suma, defendemos aqui a possibilidade de contribuir
para a recepção da poética de Stela do Patrocínio no âmbito
da Literatura Brasileira contemporânea, ao tempo em que se
contribui, no que couber, para a atualização do postulado teórico
de Poesia pura.

55 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
Poesia pura: quase-silêncio

Cumpre esclarecer que, na maioria das vezes, e na obra


de qualquer poeta, a Poesia pura aparece apenas em poemas
pequenos, ou mesmo num verso ou fragmento esparso de um
poema. Brémond assevera: “Para que ese estado poético se establezca
en nosotros, no hay necesidad alguna de conocer el poema entero, aún si
es de corta extensión. Tres o cuatro versos, hallados al azar de la página
abierta, con frecuencia algunos jirones de verso bastan” (BRÉMOND,
1947, p. 14).
Cuida-se de um átimo, um relampejar ou impressão que
não pode durar por muito tempo – como preceitua Miguel de
Unamuno – e fulge em meio a demais versos em que a Poesia
não aparece em seu máximo brilho e grandeza. A raridade e
a subitaneidade, por conseguinte, são marcas da Poesia Pura, a
qual se configura como um grão de discurso nas vizinhanças do
silêncio, como um quase-silêncio que, frequentemente, aparece nos
instantes mais inesperados, tal o instante de Stela, e nos locais
mais inóspitos, qual um asilo de alienados.
É preciso ainda prevenir que, sendo assim, não se procura,
em momento algum, fazer aqui a análise dos poemas de Stela,
pois isso seria ir contra a própria índole de delicada vacuidade da
Poesia pura. O que se pretende é apenas expor os poemas à luz
de determinadas propriedades da Poesia pura a serem estudadas,
mostrando brevemente como cada uma delas pode ser encontrada
na poética patrociniana.
Com isso, cumpre passar à discussão da obra de Stela do
Patrocínio segundo alguns dos mais importantes predicados que,
no entender de Henri Brémond, fazem parte da noção de Poesia
pura. Seriam seis esses predicados: a inefabilidade; a independência

56 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
de “sentido”; a irredutibilidade “ao conhecimento racional”; a eclosão
misteriosa de uma “experiência que compromete o mais íntimo” do
ser; a transmissão inconsciente “não” das “ideias ou os sentimentos do
poeta, mas” do “estado de alma que o faz poeta”; e o fato de a Poesia
ser associada a um místico “chamado do interior” (BRÉMOND,
1947, p. 168). Versaremos sobre os três primeiros.

Inefabilidade

Poesia é a linguagem do indizível.


Goethe, citado por Guimarães Rosa

Nunca é demais lembrar que definir a Poesia pura é uma


impossibilidade teórica, já que a melhor forma de se falar sobre
um poema é o próprio poema; nesse sentido, qualquer tentativa de
interpretação crítica (conceito) é indefinida e limitada (anticonceito),
pois não alcança o entusiasmo do despertar estético para o belo
ou o grotesco do texto. Se é assim na teoria, o é justamente por
causa da rarefação de seu objeto poético. Não é de se estranhar,
portanto, que a inefabilidade seja a qualidade mais intensa do
conceito de Poesia pura, inefabilidade que também se avizinha
do silêncio no seu quase não dizer nada, todavia um nada que
traz o enlace do tudo, um quase-silêncio que dança com a sílaba.
É assim que o Abade Brémond cita em seu discurso, como base
de suas ponderações, o Padre René Rapin: “hay además en la poesía
ciertas cosas inefables y que no pueden explicarse: tales cosas son como
los misterios. No existen preceptos para enseñar esas gracias secretas,
esos encantos imperceptibles, y todos los ocultos atractivos de la poesía
que alcanzan al corazón” (BRÉMOND, 1947).
“No existen preceptos”: para se situar um flagrante poético,
não existem medidas que o indiquem, isto é, a Poesia está acima

57 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
de quaisquer regras que a queiram identificar, catalogar, manietar
ou pretensamente elucidar. O que representa, até certo ponto, a
inutilidade da própria Teoria Literária em sua tentativa de querer
explicar o poético, ou, noutras palavras: a bem dizer, a tarefa da
Teoria Literária é inexaurível, pois não há o que nem como falar
sobre a Poesia fora da própria Poesia. Um poema não vale tanto
pelo pouco que se diz sobre ele, mas pelo muito que jamais se
conseguirá dizer. A inefabilidade é, por conseguinte, como que
o inestimável atestado de plena liberdade da Poesia diante das
contingências, e é da inefabilidade que decorrem os demais
predicados inerentes à noção de Poesia pura. Noutro excerto
cardeal, cujo caput já foi trazido à colação, Brémond se refere com
mais ênfase a essa propriedade de inefabilidade e à sua importância
para a visão do fenômeno poético:

Hoy ya no decimos: en un poema hay vivas pinturas,


pensamientos o sentimientos sublimes, hay esto y aquello, y
además hay lo inefable. Decimos: ante todo y sobre todo hay lo
inefable, estrechamente unido por lo demás a esto y aquello. Todo
poema debe su carácter propiamente poético a la presencia, a la
irradiación, a la acción transformante y unificante de una realidad
misteriosa que denominamos poesía pura.

“Ante todo e sobre todo”, em última análise, significa


confirmar que o inefável é estritamente o espírito do poema, aquilo
que o faz poema e que tantos séculos de debate tem suscitado,
sem que se tenha chegado – pois isso é felizmente impossível – a
um denominador comum. O “inefable” de Brémond é apenas o
reconhecimento prazeroso dessa impossibilidade, em face da
complexidade que é a Poesia, pois quanto menos se fala do poema,
mais espaço se dá para que o poema fale por si.

58 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
O “falatório” de Stela do Patrocínio está indubitavelmente
pleno desse inefável que é caracterizador de “Todo poema” – todo
verdadeiro poema dotado de “irradiación” –, aquela beleza simples
que, sem poder ser explicada – pois constitui “una realidad
misteriosa” –, faz com que imediatamente se reconheça o texto
patrociniano como texto poético:

Ainda era Rio de Janeiro, Botafogo


Eu me confundi comendo pão
Eu perdi o óculos
Ele ficou com o óculos
Passou a língua no óculos pra tratar o óculos com a língua
Ela na vigilância do pão sem poder ter o pão
Essa troca de sabedoria de idéia de esperteza
Dia tarde noite janeiro fevereiro dezembro
Fico pastando no pasto à vontade
Um homem chamado cavalo é o meu nome
O bom pastor dá a vida pelas ovelhas (PATROCÍNIO, 2001, p. 50)

Olha quantos estão comigo


Estão sozinhos
Estão fingindo que estão sozinhos
Pra poder estar comigo (PATROCÍNIO, 2001, p. 65)

Nesses textos a presença do poético é indiscutível, embora


seja difícil precisar a razão dessa poeticidade. No primeiro deles,
o estranho e inconfundível inefável já aparece na simplicidade do
segundo verso. Porém, talvez o choque entre o estranhamento e o
coloquial em “Passou a língua no óculos pra tratar o óculos com
a língua” seja o moto mais forte, concentrando ao seu redor o
giro do discurso – ou seria o inesperado ready-made que assenta
no deslocamento crítico do verso final? No segundo poema, a
presença do inefável estaria quem sabe na tensão pungente e

59 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
assonante entre o pronome singular “comigo” e o adjetivo plural
“sozinhos”. Seja como for, é possível afirmar que se trata de textos
poéticos não apesar de não se saber por que são poéticos, mas,
também, justamente porque não se sabe a exata razão de serem
poéticos.
Porém, seria ocioso continuar a mencionar mais versos
para classificar a inefabilidade naquilo que é por natureza
inefável. Avançando na proposta do Abade Brémond, podemos
mencionar o apelo não somente ao interesse crítico, mas outrossim
ao interesse estético que a obra patrociniana encerra, ou seja, a
inequívoca capacidade que essa obra tem de, partindo de sua
“realidad misteriosa”, inspirar o surgimento de outras obras de arte.
É desse modo que, embora ainda seja incipiente a crítica sobre
a autora e relativamente recente a divulgação de seu discurso, já
são numerosos os poemas, as peças teatrais, as performances, as
películas e as canções (inclusive uma ópera), que surgem como
testemunho do impacto da “irradiación” da poética de Stela do
Patrocínio, de sua “acción transformante y unificante” – o inefável,
sem poder ser aclarado, tem não obstante a capacidade de
influenciar, dialogar com o outro e de transformá-lo, unificando
emissão e recepção. Pois, se a melhor forma de se falar sobre o
poema é o próprio poema, outra forma apreciável é o despertar
da resposta de outro poema. Ou de como se detectar a efêmera
flor azul do inefável: a novalisiana germinação espiritual.
De maneira que, expressando poeticamente o inexprimível,
Stela do Patrocínio conseguiu irradiar, desde o hospício
e o momento em que se encontrava, uma verdadeira ação
transformante capaz de unificar novas realizações artísticas em
torno de seu “falatório”.

60 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
Independência de “sentido” e irredutibilidade ao “conhecimento
racional”

O poema é antes de tudo um inutensílio.


Manoel de Barros, Arranjos para assobio

A rebeldia é um bem absoluto. Sua manifestação na linguagem


chamamos poesia, inestimável inutensílio.
Paulo Leminski, Ensaios e anseios crípticos

Devido ao estado de alienação mental de Stela do Patrocínio,


seu discurso facilmente foge a todo tempo, com naturalidade, do
raciocínio lógico, atingindo as raias da falta de sentido:

Se eu pegar a família toda de cabeça pra baixo


E perna pra cima
Meter tudo dentro da lata de lixo e fazer um aborto
Será que acontece alguma coisa comigo?
Vão me fazer alguma coisa?

Se eu pegar durante a noite novamente a família


toda de cabeça pra baixo
E perna pra cima
Jogar lá de dentro pra fora
Lá de cima cá pra baixo
Será que ainda vai continuar acontecendo
alguma coisa comigo? (PATROCÍNIO, 2001, p. 131)

A questão da presença ou não da lógica no discurso poético


é um tema de longa data debatido. Sem entrar em celeumas
que aqui não têm razão de ser, fiquemos com a lição do Abade
Brémond sobre o assunto: “para leer un poema como se debe – es
decir, poeticamente – no basta ni es siempre necesario aprehender
su sentido.” (BRÉMOND, 1947, p. 16) Devemos esclarecer que

61 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
afirmar ser um poema independente do sentido não significa
necessariamente que não contenha sentido, mas que pode contê-lo
ou não. Brémond é categórico a respeito:

No es que canonice la ausencia de sentido; me limito a constatar


que no destruye irrevocablemente el encanto de determinado
poema donde se ha insinuado; y ello me permite concluir que, aún
en el más alto poema filosófico, el encantamiento propiamente
poético no reside en su sentido. O bien constato con Flaubert
que “un verso bello que no significa nada es superior a un verso
menos bello que significa alguna cosa”. De donde no concluyo que
sea deseable que un verso no signifique nada, sino simplemente
que no es el sentido allí expresado lo que torna poético un verso.
(BRÉMOND, 1947, p. 37-38)

Nesse concerto, a Poesia não apresenta como justificativa


servir para alguma coisa ou ser compreendida no âmbito prático:
a Poesia não apresenta justificativa nenhuma. Um poema não
é feito para dizer algo racionalmente – embora o possa dizer
–, e sim, antes, para ir além e ser um poema que traz em si o
inefável: palavras tentando alcançar o infinito. Para se utilizar o
termo empregado tanto por Manoel de Barros quanto por Paulo
Leminski, o poema, em sua autossuficiência, é um “inutensílio” a
desdenhar do utilitarismo objetivo e mercantilista que a sociedade
moderna quer impor a todas as coisas, conforme já o denunciava
Walter Benjamin.
No caso de Stela do Patrocínio, sua poética tampouco era
feita tendo em vista algum resultado no mundo prático, a defesa
de algum ideal ou de um ponto de vista ou qualquer ganho, mas
tão-só fluía desprendidamente como linguagem espontânea,
cada texto constituindo um perfeito “inutensílio” em sua densa
sutileza – e, por isso, um em-si valioso. Ademais, seu “falatório”

62 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
refletia a própria “inutilidade” social da pessoa de Stela, como
usuária/interna da instituição manicomial, situação da qual tinha
perfeita consciência:

Você trabalhava com o que no Rio de Janeiro?


Eu trabalhava em casa de família
Fazia todos os serviços
Qualquer um serviço
E você gostava desse trabalho?
Gostava porque era lavar passar encerar engomar cozinhar
E aqui você não tem vontade de lavar, cozinhar?
Não
Por quê?
Porque não suporto mais
Não gosto mais
Você não tem vontade de produzir alguma coisa, de ganhar
dinheiro?
Eu tenho vontade de ganhar dinheiro mas não
tenho vontade de produzir nunca (PATROCÍNIO, 2001, p.
148-149)

Minha vida é só comer beber e fumar


Só presto pra comer beber e fumar (PATROCÍNIO, 2001, p. 103)

Este ponto merece ser realçado: hoje já não se pode dizer


sem ressalvas que o poeta seja um “produtor” de manufaturas
poéticas. Modernamente, a palavra “produção” está por demais
eivada da ideia de serviços materiais e bens industriais destinados
à compra e venda mediante o lucro e a mais-valia. E a Poesia
é a única arte que ainda se furta a condescender ao sistema de
barganha monetária: uma tela ou escultura, um filme e, com
frequência, um grande espetáculo de música ou de dança já
constituem bens ou serviços a serem adquiridos por meio do
desembolso de valor pecuniário para poderem ser devidamente

63 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
usufruídos. O apreciador tem que se tornar dono da obra, de
parte dela ou, pelo menos, dono do direito de contemplá-la. Mas
a Poesia pura, por não ser um “produto” na acepção funcional do
termo – por não ter sentido a ser auferido –, não tem dono: uma
vez posta em circulação, é livremente usufruída a qualquer tempo
e em qualquer lugar por qualquer um que a queira e possa anotar
ou recordar.
Por conseguinte, tal qual sua poética, Stela passou sua
vida, como louca ou como poetisa, feito um ente ausente de
qualquer sentido lógico ou produtivo dentro do panorama social
e mesmo do panorama literário utilitário. Pôde, assim, dedicar-se
à Poesia em tempo integral e com total despreocupação com a
própria circunstância de estar fazendo Poesia, que não era por ela
entendida como um “produto” que servisse para qualquer desígnio,
porém como um ser-em-si, “só história que eu tô contando,
anedota” (PATROCÍNIO, 2001, p. 153). Sem escolas, sem grupos,
sem movimentos que a impressionassem, também nada havia que
a direcionasse às novíssimas formas de expressão do momento.
Ela criou sua poética sozinha, sem que estivesse sob a égide de
quaisquer outros poetas, totalmente liberta – caso único? – da
chamada “angústia da influência” explanada por Harold Bloom.
Não se constituía, portanto, um “sentido” a orientá-la, que não
fosse o da própria expressão pura. Isso se reflete em seus versos,
que o mais das vezes prescindiam da tirania de um “sentido” a
conduzi-los.

Meu nome verdadeiro é caixão enterro


Cemitério defunto cadáver
Esqueleto humano asilo de velhos
Hospital de tudo quanto é doença
Hospício

64 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
Mundo dos bichos e dos animais
Os animais: dinossauro camelo onça
Tigre leão dinossauro
Macacos girafas tartarugas
Reino dos bichos e dos animais é o meu nome
Jardim Zoológico Quinta da Boa Vista
Um verdadeiro jardim zoológico
Quinta da Boa Vista (PATROCÍNIO, 2001, p. 118)

Se a Poesia pura independe de um sentido na emissão,


infere-se que o conhecimento racional não é o método mais
indicado para a sua recepção. Segundo Bremónd, “Reducir la
poesía a los pasos del conocimiento racional, del discurso, es ir contra
la naturaleza misma, es querer un círculo cuadrado” (BRÉMOND,
1947, p. 20) – vale afirmar: pretender que a Poesia se prenda
ao conhecimento racional é ir contra os seus predicados mais
profundos de inefabilidade e desnecessidade de sentido. Além
disso, Brémond ressalta que “Prosa y poesía requieren distintos ritos”
(BRÉMOND, 1947, p. 15) e reserva à impureza daquela o uso
de “nuestras actividades de superficie”, dentre as quais a primeira
é a “razón”:

Impuro es por tanto – ¡oh, no de impureza real sino metafísica! –


todo lo que, en un poema, ocupa o puede ocupar inmediatamente
nuestras actividades de superficie: razón, imaginación,
sensibilidad; todo eso que el poeta parece haber querido expresar
y ha expresado; todo lo que según nosotros nos sugiere; todo lo
que el análisis del gramático o del filósofo separa de ese poema,
todo lo que una traducción conserva. Impuro – es harto evidente
–, el tema o el sumario del poema; y también el sentido de
cada frase, la sucesión lógica de las ideas, el avance del relato, el
detalle de las descripciones, hasta llegar incluso a las emociones
excitadas directamente. Para enseñar, relatar, pintar, producir
un estremecimiento o arrancar lágrimas, basta sobradamente la

65 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
prosa, que tiene allí su objeto natural. Impura, es una palabra, la
elocuencia – entendiendo por ella no sólo el arte de hablar mucho
para no decir nada, sino el arte de hablar para decir alguna cosa
(BRÉMOND, 1947, p. 19).

Entenda-se que “razón, imaginación, sensibilidad” e tudo


o mais podem estar e, na maioria das vezes, com efeito estão
atuantes num poema. Contudo, do ponto de vista de Brémond,
são intervenções que, numa verdadeira leitura empática, devem
ser escoimadas a fim de não se toldar o élan da Poesia pura.
Insistir em colocar tais “actividades de superficie” como guias em
primeiro plano torna a leitura mais afeita ao prosaico do que ao
efetivamente poético.
De qualquer modo, o que se tem em pauta é a prevalência da
intuição sobre a razão como método de recepção aprofundada do
texto poético, o fato de que não é necessário entender racionalmente
a Poesia para se poder recebê-la em sua pureza, e mais, de que
muitas vezes forçar o entendimento é mesmo conspurcar essa
pureza, pois a obra poética consiste em “Contrasentido por una
parte, infalible intuición por otra; victoria de lo puro sobre lo impuro,
de la poesía sobre la razón” (BRÉMOND, 1947, p. 16)
Outrossim, a condição mental de Stela do Patrocínio dá
azo a uma leitura de seu texto que respeite a fuga da racionalidade
empreendida a duras custas pela autora ao longo de sua vida:

Eu sobrevivi do nada, do nada


Eu não existia
Não tinha uma existência
Não tinha uma matéria
Comecei a existir com quinhentos milhões e quinhentos mil anos
Logo de uma vez, já velha
Depois é que eu virei criança

66 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
E agora continuei velha
Me transformei novamente numa velha
Voltei ao que eu era, uma velha (PATROCÍNIO, 2001, p. 80)

Como se pode notar, para Stela, o “nada” de que sobreviveu


é o momento neutro de pureza de onde ela desejava não ter saído
para se constituir em “Carne humana e matéria humana”:

Eu não queria me formar


Não queria nascer
Não queria tomar forma humana
Carne humana e matéria humana
Não queria saber de viver
Não queria saber da vida

Eu não tive querer


Nem vontade pra essas coisas

E até hoje eu não tenho querer


Nem vontade pra essas coisas (PATROCÍNIO, 2001, p. 77)

Seu “falatório” é o ensejo no qual a poetisa consegue


transcender até mesmo o “espaço vazio puro” – beatitude, o não-
onde e não-quando, o não mais estar nem mais ser, o quase não-ser:

Eu não sou da casa, não sou da família


Não sou do ar
Do espaço vazio, do tempo, dos gases
Não sou do tempo, não sou do tempo
Não sou dos gases, não sou do ar
Não sou do espaço vazio, não sou do tempo
Não sou dos gases, não sou da casa
Não sou da família, não sou dos bichos
Não sou dos animais. Sou de Deus
Um anjo bom que Deus fez
Pra sua glória e seu serviço (PATROCÍNIO, 2001, p. 91)

67 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
Conclusão: “Falo, falo, falo, falo o tempo todo”

Por suas particularidades, a obra de Stela do Patrocínio


também pode contribuir para agregar pelo menos um novo atributo
ao conceito de Poesia pura, o qual talvez apenas ela própria possa
apresentar. Seria tal atributo a condição de a página patrociniana
não se constituir como poética ex officio, e sim exsurgir como
poética ex natura, de vivência espontânea, integral e cotidiana. A
constatação se apresenta pelo contraste entre o comportamento e
a história de Stela como artista e o comportamento exemplificado
por Paul Valéry, este indo ao encontro da representação de grande
parte dos poetas contemporâneos, em demanda de láureas e loas.
Explica-se: deve-se lembrar que a palestra “A Poesia
pura” foi proferida pelo Abade Henri Brémond no contexto do
lançamento de Valéry como candidato à Academia Francesa
de Letras. Após, no quarto de seus “Aclaramentos” à palestra,
Brémond se refere ao autor de “O cemitério marinho” como
“poeta apesar de si mesmo” (1947, p. 52-59). Com isso, o Abade
quis chamar a atenção para a circunstância de Valéry ter de fato
conseguido atingir em sua fatura poética, inconscientemente,
vários instantes do inefável, da independência de sentido e dos
outros predicados que perfazem a maior Poesia pura, nada obstante
o empenho do poeta, nos seus escritos teóricos, em ser um artista
altamente intelectualizado e adepto da arquitetura poemática e do
primado do racionalismo sobre a mística intuição. Valéry surge
assim como a figura emblemática do grande poeta de ofício, isto
é, do poeta como profissional das Letras e da Poesia, como se
veem muitos outros poetas. E, como toda profissão, essa também
demanda regras e obrigações, suas cotas de produção, suas folgas
diárias, seus sábados e até mesmo seu prestígio e sua remuneração

68 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
(embora não necessariamente em pecúnia ou espécie), o que, em
princípio, parece ir contra toda a leveza e desprendimento que se
esperaria de um poeta.
Stela do Patrocínio, por seu lado, também se pode definir
como grande “poeta apesar de si mesma”, embora de modo
muito diferente de Valéry. Longe de ser uma poetisa de cátedra
– nem mera diletante –, Stela não compunha sua obra para
ser reconhecida como tal. Importante frisar que Stela nunca se
preocupou em ser poeta, com a publicação de um livro ou mesmo
com a feitura e registro de um poema. Ela simplesmente é poeta
e viveu como poeta de forma imediata e contínua – “Falo, falo,
falo, falo o tempo todo” (PATROCÍNIO, 2001, p. 142) – e desse
modo conseguiu atingir a naturalidade e a maturidade plenas em
seu discurso poético. Logo, o “falatório” de Stela se dissocia do
padrão do poeta como figura produtora de discursos de consumo
para a sociedade moderna e contemporânea, está faminta por
manufaturas de lazer sentimental e de ostentação erudita. Em
lugar de se amoldar a um nicho estreito de cultura centrípeta,
em que as funções poéticas são absorvidas e se adequam às forças
mercadológicas ou acadêmicas, a poética patrociniana instaura um
contradiscurso resistente, centrífugo e explosivo, de afirmação da
subjetividade em face da massificação. Neste século XXI, época
do acomodamento do mainstream e do nivelamento em horizonte
da divulgação textual fanhosa nas redes sociais, a Poesia necessita
de um arejamento para resgatar sua face combativa.
Talvez um discurso contundente como o de Stela de
Patrocínio, oriundo da marginália do manicômio, possa agora
auxiliar nessa recuperação das essências da pureza transgressora
e libertária da Poesia, em seu embate eterno para revelar o mais
profundo do ser humano.

69 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
Referências

BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.

BRÉMOND, Henri. La Poesía pura. Trad. Julio Cortázar. Buenos Aires:


Argos, 1947.

LEMINSKI, Paulo. Ensaios e anseios crípticos. 2ª ed. Campinas, Unicamp,


2012.

LISBOA, Henriqueta. Convívio poético. Belo Horizonte: Secretaria da


Educação do Estado de Minas Gerais, 1955.

LORENZ, Günter. “Diálogo com Guimarães Rosa”. In: COUTINHO,


Eduardo F. (org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1983.

PATROCÍNIO, Stela do. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome.
Org. e apr. Viviane Mosé. Rio de Janeiro: Azougue, 2001.

70 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 43-70 – jul./dez. 2020
POIESIS, LETRAMENTO DOMINANTE/
LETRAMENTO VERNACULAR:
DIÁLOGO INEVITÁVEL

Paulo Roberto Almeida1

RESUMO: A dissociação entre um letramento literário institucionalizado como


canônico, sacralizado como letramento de prestígio e um letramento vernacular,
ideologicamente desprestigiado, possibilita que o “fazer poético” produzido por sujeito
das camadas populares não seja visibilizado, instaurando-se uma forte contradição:
os “fazeres” apontam para um processo de construção de uma poiesis, mas ao diálogo
contrapõe-se o conflito. Diferentes formulações “poéticas” podem ser registradas de
diferentes maneiras, disseminando saberes semelhantes que, dialogando entre si,
contribuirão para desenvolver o letramento literário.
PALAVRAS-CHAVE: Poiesis; Letramento Literário; Ensino de Língua
Portuguesa

ABSTRAC: The dissociation between an institutionalized canonic literary literacy,


which is full of prestige, and a vernacular one, without prestige, produces a process of
invisibilization of poetic art produced by popular class subjects, this way establishing
a strong contradiction: though this art points to the construction of poiesis, there is
the emergence of conflict instead of dialogue between both kinds of literary. Different
poetic formulations may be registered differently, however in fact they spread similar
knowledges, in a dialogic relation, contributing to develop literary literacy.
Keywords: Poiesis; Literary Literacy; Portuguese Language Teaching.

Introdução

O espaço público, demarcado historicamente pela


concepção de urbano e corporificado em cidades como o lugar
da ordem e da organização, constitui um universo heterogêneo,
marcado por uma multiplicidade de ideias e posições conflitantes,
manifestadas por uma pluralidade de configurações discursivas.
Entre as diferentes realizações discursivas, irrompem “maneiras
de dizer” (DE CERTEAU, 1990), materializadas em imagens

71 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
visuais e/ou verbais, que rompem e, fragmentariamente,
disseminam-se, desorganizando o espaço geométrico da cidade-
conceito, instituída pela ordem, pelo racional, pelo burocrático,
quebrando uma suposta hegemonia cultural e social. Esse espaço
simbólico ressignificado constitui-se um espaço em que os sujeitos
produzem sentidos que os constituem.
Nessa perspectiva, a cidade “se vê entregue a movimentos
contraditórios que se compensam e se combinam fora do poder
panóptico” (DE CERTEAU, 1990, p. 174), movimentos revelados
por imagens visuais e/ou verbais inscrições/dizeres/pichações
em muros, paredes, postes e placas de trânsito que manifestam
a inscrição dos sujeitos em situações que eles experienciam
no espaço e no tempo em que estão envolvidos. Constituem
operações culturais que remetem a uma outra dimensão espacial,
que inscrevem os sujeitos numa experiência “poética e mítica do
espaço” (DE CERTEAU, 1990).
Didi-Huberman (2015) compreende a imagem como algo
muito mais do que uma simples forma ou desenho no espaço
visível, constitui “uma marca, um sulco, um rasto visual do tempo
que ela quis tocar [...] (p. 316). E são estas marcas, estes rastos
visuais, imagens visuais e/ou verbais que “ardem” em muros,
paredes, postes, portões e outros e assinalam a forte presença de
uma representação imagística no emaranhado espaço urbano.
Tais imagens, aqui objeto de análise, as chamadas pichações,
dizeres ou inscrições que proliferam pela cidade, constituem, a
nosso ver, práticas do espaço, ou ainda, numa visão coerente com as
formulações de De Certeau, que propõe analisar os procedimentos
de tais práticas no sistema urbanístico, significam

práticas microbianas, singulares e plurais [...] que, muito longe


de ser controladas ou eliminadas pela administração panóptica,

72 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
se reforçaram em uma proliferação ilegitimada, combinadas
segundo táticas ilegíveis mas estáveis que constituem regulações
cotidianas e criatividades subreptícias (DE CERTEAU, 1990,
p. 175).

A pichação2 consiste num gênero discursivo que circula
num contexto de letramento vernacular não legitimado
institucionalmente. É considerado um gênero “menor” nas
instituições legitimadas, entre elas a instituição escolar, e tanto
esse tipo de produção como o sujeito-autor são discriminados,
invisibilizados. Inserido numa cultura popular reprimida e
ignorada por instâncias maiores, num sistema de relações de
poder, busca o sujeito-autor, por meio do trabalho com e sobre
a linguagem, a criação de enunciados com o objetivo de marcar/
denunciar sua posição em seu meio social.
O espaço geométrico é regulado por normas que instituem
procedimentos de controle e vigilância sobre esse tipo de produção
que se dissemina por vários pontos e com diferentes formas de
manifestações. Procedimentos são adotados para “controlar”
essas formas de manifestação. Isso significa dizer que a produção
de sentido “é, ao mesmo tempo, controlada, selecionada e
redistribuída por certo número de procedimentos que tem por
função conjurar seus perigos, dominar seu acontecimento aleatório
[...]” (FOUCAULT, 2010, p.9). As pichações representam formas
de inscrições que subvertem esse espaço burocrático.
Nosso olhar estará, então, voltado para esse espaço
caracterizado pelo entrecruzamento de tramas, pela polivalência
e pela heterogeneidade, por paradoxos e contradições, em que o
conflito é intrinsecamente constitutivo. Um espaço privilegiado

2
Entende-se, aqui, a pichação como forma de expressão escrita, materializada em textos
verbais inscritos em muros, paredes e postes nas ruas das cidades.

73 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
para as identificações culturais emergentes que demandam uma
leitura complexa que ultrapassa o binarismo, sobretudo na relação
sujeito/mundo/língua(gem) e no trabalho de sujeitos na e pela
linguagem. Isso significa olhar para uma dimensão espacial que
demanda do mundo uma releitura em que estão envolvidos/
imersos os sujeitos em suas experiências cotidianas. Com esse
olhar, buscaremos “exumar formas sub-reptícias que são assumidas
pela criatividade dispersa, tática e bricoladora dos grupos ou dos
indivíduos presos [...] nas redes da ‘vigilância’” (DE CERTEAU,
idem, p. 41), ou seja, “imagens verbais”, textos produzidos nas
práticas sociais de letramentos vernaculares. Por letramentos
vernaculares queremos dizer aqueles caracterizados por uma
relativa liberdade do controle formal institucional e que podem
dar origem a novas práticas improvisadas e espontâneas.
Nesse sentido, significa dizer que nosso olhar estará
debruçado sobre as práticas de/sobre linguagem não valorizadas
socialmente e, portanto, pouco investigadas, que revelem a
singularidade ou indícios de autoria de sujeitos falantes, em
seu “trabalho” com e na sua própria língua. Constituirão objeto
de investigação e análise neste trabalho as pichações, dizeres
aleatórios inscritos em uma escrita vernacular (marginalizada e
invisibilizada socialmente) em muros, paredes e postes no espaço
urbano. Sob a ótica de um “fazer” com a língua, observar-se-á o
“trabalho” de sujeitos com e sobre a linguagem, a exploração da
palavra e da escrita num “jogo estético”, ou seja, a exploração e
uso de mecanismos e recursos linguísticos que podem indiciar um
processo de metaforização na “maneira de dizer” a realidade social.

74 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
Os muros “falam”: a poiesis, um fazer-poético nas “falas
desorganizadas”

Da mesma forma que existe uma coerção social para


intimidar certos dizeres como as pichações, por exemplo, há
também, por outro lado, uma forte resistência no movimento de
sujeitos que procuram um espaço para a inscrição de seus dizeres
“caóticos”, que os insira como sujeitos produtores de sentido.
Buscam eles, em muros, paredes, postes, chamar a atenção para
os dramas coletivos, levando sua voz para protestar, denunciar
a injustiça social, solidão, violência, miséria, mas também amor,
amizade, entre outros, constituindo-se subjetivamente em seus
“dizeres”.

FIGURA 1. Poema mural FIGURA 2. Poema mural

Fonte: Pinterest Fonte: Pinterest

Os muros “falam” quando o povo emudece; os muros são o


lugar social que sujeitos sócio-históricos instituem como espaço
discursivo. Assumem o papel de arautos, falando do povo para o
povo e, nos muros, “publicam” seus dizeres:

75 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
FIGURA 3. Escrita vernacular FIGURA 4. Escrita vernacular

Fonte: Pinterest Fonte: Pinterest

Constroem “falas desorganizadas” (ORLANDI, 2004,


p.63), numa escrita híbrida ou vernacular, uma forma de escrita
que, segundo Kalman (2010), pode ser caracterizada pelo não
atendimento aos requisitos formais da escrita prestigiada e pela
forma com que incorpora elementos não valorizados em outro
tipo de textos, como o tipo de léxico, abreviaturas improvisadas,
construções sintáticas e a maneira de usar a pontuação.
Um tipo de escrita estigmatizada e invisibilizada que
“perturba”, mas que

Permite ao falante/escrevente se constituir enquanto agente que


tanto reproduz formas e sentidos [...] quanto altera, tensiona,
torce, subverte e produz o novo, seja percebido como criativo,
revolucionário, ou apenas descabido, torto, mal-ajambrado
(SIGNORINI, 2004, p.94).

FIGURA 5. Escrita “que perturba”

Fonte: Pinterest

76 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
A inscrição acima é um exemplo que desvela um sujeito em
uma prática de letramento situado que aponta para uma escrita
vernacular, ou seja, o uso transgressivo da língua na “violação” do
código: na perda da integridade da palavra “também” [na inscrição
TBM], na forma gráfica dos sintagmas verbais BIXA/PIXA e
que produz de imediato o efeito de sentido de “perturbação” de
uma ordem instituída na ruptura de uma “doxa” - língua padrão
e, ao mesmo tempo, pelo efeito sonoro provocado pelo fonema
fricativo alveolar-palatal/x/, marcado pelo grafema x, em “bixa/
pixa” e também pela alternância dos fonemas consonantais
oclusivos bilabiais p/b, que reforçam o efeito melódico na cadeia
do significante.
Ao manipular com a língua/na língua/sua língua, o sujeito
provoca no leitor um certo sobressalto, instigando-o a olhar mais
detidamente para a construção frasal. A articulação operada
pelo marcador discursivo TBM (também) nos desloca para
uma dimensão de um enunciado. Não se trata de um simples
torneio com formas linguísticas – o sujeito cria um enunciado,
um dizer que tem um sentido em sua posição de mundo: um
sujeito que por sua condição social é alvo de preconceito e,
portanto, marginalizado, busca marcar sua posição – incluir-se
na categoria dos pichadores para, supostamente, ser reconhecido
como alguém que deixa sua marca; quer pertencer a um grupo
social que se impõe; que se significa trabalhando a língua como
acontecimento, produzindo sentidos, o que significa dizer que
os sujeitos são obrigados a tomar posição, a manifestar-se para
marcar-se de forma ativa.
Dessa forma, a perspectiva de um ‘fazer para’, na busca de
uma visibilização no espaço social por meio da escrita, impõe ao
sujeito a mobilização de mecanismos de seu arsenal cognitivo –

77 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
‘como fazer’, num movimento de criação e reelaboração na “arte
de fazer”.
Esse “trabalho” do sujeito na/com a exploração das
potencialidades da linguagem, da palavra e da escrita indicia uma
“fabricação”, ou seja, um “produzir que dá forma, um fabricar
que engendra, uma criação que organiza, ordena e instaura uma
realidade nova, um ser” (NUNES, 1989, p.20), numa arte de
fazer que caracteriza uma poiésis. Do grego poien, poiesi é uma
expressão originária do verbo ποιέω (poiéo= fabricar, executar,
confeccionar, criar), que se traduz por fabricação, confecção,
preparação, produção, criação).
Essa ressignificação, que enfatiza um processo de criação,
abre caminho para a visibilização de um letramento vernacular
- pichações ou formulações, flagrantes no espaço urbano - que
singularizam sujeitos em ação, experienciando o real como
mundo e, construindo um modo próprio de se fazerem donos da
linguagem, “poetizam” a sua forma de ver e de se ver no mundo.

FIGURA 6.

Fonte: Pinterest

Na figura acima, o enunciado chama a atenção para uma


dimensão visual da escrita em uso criativo e transgressivo da língua,

78 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
num jogo em que o sujeito se vale da materialidade linguística
como recurso para a constituição de uma poiesis. Estruturado a
partir de uma escrita híbrida, que revela “uma rasura na linguagem
instituída” (WALTY; VALESKA, 2010), pelo deslocamento e
condensação de elementos heterogêneos, o sujeito explora a cadeia
do significante, extrai expressividade da combinação de palavras
“justapostas numa colagem” que apresentam semelhança fônica
e mórfica (AULAS/JAULAS).
O sujeito trabalha com uma estratégia discursiva que
materializa um enunciado por meio de uma frase “sem texto”, ou
seja, por uma aforização primária (MAINGUENEAU, 2014)
constituída de um slogan, com uma frase nominal + AULAS
/ - JAULAS, buscando defender uma posição em torno de um
tema social.
Na dimensão semântico-discursiva, esse arranjo dos
constituintes morfológico/fônico tem como efeito a polarização
por meio da construção de uma metonímia, a partir dos referentes
“aulas / jaulas”, com uma manobra em que coloca em cena
situações controversas: AULAS está para EDUCAÇÃO e
JAULAS para PRESÍDIO.
O enunciado é constituído de uma materialidade linguística
que registra um acontecimento discursivo; materialidade e
acontecimento são inseparáveis e se fundem para produzir
efeitos de sentido. O enunciado se concretiza por meio de um
jogo opositivo marcado pelo uso dos pronomes intensificadores
+/- na relação sintática com os sintagmas AULAS / JAULAS,
respectivamente.
Inferimos uma proposição implícita, subentendida,
evidenciado pelo confronto do enunciado com um dos possíveis

79 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
contextos da enunciação, desencadeada pela pergunta “Por que
o sujeito diz o que diz?” Pode-se subentender que diz o que
diz, em um tom reivindicatório implícito num verbo potencial:
“O que quero ao enunciar tal enunciado?” / “Quero + aulas e -
jaulas”. O uso dos pronomes desvela um conteúdo avaliativo com
valor de intensidade, apontando a posição defendida pelo que é
positivo e o que é negativo. Atuam os pronomes na dimensão
ilocutória do discurso, com a finalidade de transformar uma
parte do enunciado em foco da enunciação, introduzindo um
juízo de valor: o investimento em educação deve ter maior peso
que o investimento em presídios, o que pode suscitar o seguinte
desdobramento – quanto maior for o investimento em educação,
menor será a necessidade de construção de presídios.
A nosso ver, num movimento em que o eixo norteador é
a poiesis como processo criador no uso da língua, numa operação
estética em que “uma prática cotidiana abre um espaço próprio
numa ordem imposta, exatamente como faz o gesto poético que
dobra ao seu desejo o uso da língua comum num reemprego
transformante” (DE CERTEAU, 1996, p.339), é possível
correlacionar práticas de linguagem em que se aproximam,
ideologicamente, formas de escrita tidas como diferentes,
circunscritas a lugares sociais distintos, a grupos sociais distintos.
A título de exemplo, comparemos o jogo jogado pelo
sujeito-autor do texto pichado em muro com o modo de
fazer, de produzir uma poiesis, de um sujeito-autor consagrado
institucionalmente, amplamente divulgado em livros, entre eles,
os livros escolares.
O “fazer poético” do enunciado pichado, “fabricado”
numa escrita vernacular, híbrida, invisibilizada e estigmatizada
socialmente, opera no mesmo nível de complexidade no

80 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
processo de elaboração de um “fazer poético”, inscrito e aceito
institucionalmente no cânone literário3:

Amor + AULAS Cronologia


Humor - JAULAS A.C
(Oswald de Andrade) (pichador anônimo) D. C

W.C ( José P. Paes)

Explorando a polissemia e o lúdico, os textos configuram
um fenômeno “poético” em que se operam transformações e
manifestações com o objetivo de provocar no leitor uma percepção
nova sobre determinada maneira de ver o mundo. Nessa
perspectiva, os sujeitos
[trabalham] preferentemente com reduções, com rarefações
e abreviaturas estilísticas, de tal audácia que o contexto omitido
compensa a dimensão escrita do texto; seu método consistiria
em ‘enfileirar frases justapostas’, entre as quais o leitor, para
compreender o texto, deve inserir articulações ( JENS, 1960 apud
CAMPOS, 1970, p. 21).
Rompendo a expectativa do leitor, instigam-no a participar
do movimento criativo e de sua intensa carga de sentido. Ao
mesmo tempo em que promovem um espanto, os textos poéticos
demandam desse leitor uma nova forma de ler as entrelinhas, os
subentendidos.

É no discurso que a palavra se ressignifica, materializada em


enunciados. Na perspectiva bakhtiniana, um enunciado manifesta
sempre uma forma de intervir ativamente no mundo, mas nunca se
limita a representar o mundo de modo neutro, o que significa dizer

81 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
que a função representativa ou referencial da linguagem suscitará
de uma maneira ou de outra aspectos emocionais que desvelam
uma apreciação valorativa na forma de ver o mundo.

FIGURA 7. “O fazer poético”

Fonte: Pinterest

Dessa forma, no enunciado pichado acima, o sujeito-


enunciador produz “seu discurso em uma rede de memória –
constrói o sentido como um sujeito na história [...] Esse domínio
da memória constitui a exterioridade do enunciável (COURTINE,
apud GREGOLIN; BARONAS, 2001, p.71-72), mas faz com que
a mensagem se focalize nos próprios signos, pondo em destaque
sua integralidade de significante e significado, propiciando
que as características físicas, fonéticas, dos seus significantes se
distingam. Realça um singular arranjo de seus constituintes sob
a perspectiva fônica, utilizando o recurso da assonância na cadeia
verbal, assinalando uma estrutura rímica.
A mensagem enfatiza o especial arranjo de seus constituintes
do ponto de vista fônico; a construção desse efeito sonoro tem
como preocupação atrair o leitor para o “como” da mensagem,
isto é, como ela foi construída, que recursos linguísticos foram
acionados para sua materialização.
Sob essa ótica, entendendo as funções dialógicas da
linguagem e a língua como meio de comunicação coletiva, a ênfase

82 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
da construção de uma mensagem sobre o processo de criação em
si, Jakobson (1969) define como função poética da linguagem ou
ainda, como uma função estética: causa uma reação pelo arranjo,
pela “fabricação” da mensagem.
Estética tem origem no termo grego aisthetiké e significa
o que é perceptível pelos sentidos, tudo o que pode ser percebido
como agradável e belo pelos sentidos. A percepção da realidade
se dá de forma subjetiva, carregada pelas emoções e atitudes do
enunciador diante do fenômeno apreendido. Nessa perspectiva,
a dimensão poética se constitui esteticamente por meio de
procedimentos que ultrapassam o uso automático dos significados
previsíveis, mas supõem a emergência de um sentido diferente.

FIGURA 8. “O fazer poético”

Fonte: Pinterest

Esse efeito constitui uma das estratégias estruturadoras do


enunciado pichado acima. A estratégia do sujeito caracteriza um
movimento que pode traduzir que “a atribuição de ‘sentido’ a um
objeto (a uma palavra) não é uma operação de etiquetagem, mas

83 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
sim o produto de uma relação que cada indivíduo, cada locutor
ou interlocutor constrói a seu modo (FAITA apud CRUVINEL,
2001, p.190).”
Por meio do sintagma verbal “QUERO SABER”, na
1ª pessoa, em forma de uma interrogativa indireta, o “eu” faz
um questionamento, uma reflexão pessoal, em tom de lamento:
queixa-se para si mesmo, manifestando seu estarrecimento/
sua incredulidade pela condição em que se encontra. Na cena
enunciativa, o sujeito recorre aos procedimentos semânticos da
discursivização, interligados, da figurativização e da tematização,
conforme concepções de Fiorin (2000), ancoradas na teoria
semiótica de A.J. Greimas, no campo da semântica discursiva.
Nessa linha, para Fiorin, a figurativização traduz-se
por figuras, expressões do mundo natural, do mundo físico,
como substantivos concretos, verbos que apontem ações físicas
e adjetivos que marcam características físicas, enquanto a
tematização refere-se a traços semânticos ligados ao mundo
abstrato, que categorizam, estruturam a realidade apreendida
pelos sentidos. As figuras, articuladas no interior de um texto
estruturado, ao serem organizadas numa sequência, traduzem os
temas subentendidos ao texto.
No enunciado, ao se interrogar, o sujeito tece uma sequência
encadeada no plano sintático-discursivo por um percurso
figurativo constituído a partir dos substantivos concretos “ônibus” /
“ponto” e dos verbos “pegar” / “chegar”, organizados nos sintagmas
“que ônibus eu peguei” (conforme expressão popular “pegar ou
tomar o ônibus”), “pra chegar nesse ponto”.
A ordenação sequencial lógica, no plano referencial, indica
o deslocamento de alguém que embarca em um veículo (ônibus),
num determinado ponto e chega a seu destino em outro ponto. Os
traços semânticos visuais produzem um efeito de realidade obtido

84 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
pelo uso da iconização, pois leva ao reconhecimento de figuras do
mundo, dando concretude a um micro relato do enunciador. Mas
o sintagma adjetival “que eu tô hoje”, modificador do substantivo
“ponto”, rompe com um enunciado puramente referencial,
remetendo a um nível de abstração, a uma leitura que revela o
estado emocional do enunciador: faz uma autorreflexão sobre
os rumos tomados em sua vida, em que as figuras concretizam,
sensorialmente, perplexidade, frustração e desapontamento,
sentimentos que o afligem e o angustiam em sua vida presente.
O sujeito-pichador materializa seu questionamento sobre
sua relação com o mundo exterior e. metaforicamente, recorrendo
aos equívocos, aos desvios e às ambiguidades inerentes à língua,
produz um enunciado fruto da criatividade da figurativização e
seus efeitos estéticos, por meio da manobra de recursos linguístico-
discursivos.
A título de exemplo, em outro contexto sócio-histórico,
sob diferentes perspectivas, outros sujeitos/renomados escritores
produzem enunciados que buscam refletir sobre a realidade,
buscando construir interpretações acerca de temas sociais que os
instigam no mundo. Para isso, mobilizam, igualmente, os recursos
expressivos da figurativização no processo de construção poética,
na materialização de uma poiesis:

1. Poema tirado de uma notícia de jornal


João gostoso era carregador de feira livre e morava no morro
[da Babilônia num barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
BebeuCantouDançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
(Manuel Bandeira, 1983:214)

85 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
2.Política literária
O poeta municipal 
discute com o poeta estadual 
qual deles é capaz de bater o poeta federal.
Enquanto isso o poeta federal 
tira ouro do nariz.
(Carlos Drummond de Andrade, 1977:6)
  
Constituem operações e procedimentos que singularizam
uma busca do estético, da aisthesis, uma busca daquilo que é
perceptível pelos sentidos; de tudo o que pode ser percebido
como agradável e belo pelos sentidos. Para os gregos, sobretudo
para Aristóteles, a arte significa uma forma de sublimação
do espírito humano, que se manifestaria por meio do prazer
estético, externado pelo ato criador, a poiesis. Esta se produz por
meio de mecanismos estéticos (aisthesis), que deve ter um efeito
transformador, libertador (katarsis).
Tomando por base o enfoque da tradição clássica sobre
o conceito de estética e arte, segundo o ponto de vista da teoria
estética da recepção, Jauss (2002) reelabora as três categorias
poíesis, aisthesis e kátharsis para o processo da fruição estética,
considerando sua função comunicativa:

A poiesis é o prazer ante a obra que nós mesmos realizamos; [...]


a aisthesis designa o prazer estético da percepção reconhecedora
e do reconhecimento perceptivo, ou seja, um   conhecimento
através da experiência e da percepção sensíveis; [...]e a katharsis é
o prazer dos afetos provocados pelo discurso ou pela poesia, capaz
de conduzir o ouvinte e o telespectador tanto à transformação
de suas convicções, quanto à liberação de sua psique ( JAUSS,
2002, p. 100-101).

86 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
Nesse sentido, na poiesis, o prazer se manifesta no domínio
da produção, que pode impelir o indivíduo a uma dimensão do
mundo interior ou a ficar no mundo real em busca da criação
artística; a aisthesis é concebida pelo prazer conquistado por meio
de uma “experiência estética receptiva”, em que as expectativas
do indivíduo leitor se modificam ou se expandem; a katharsis se
configura a partir de uma efetiva modificação das concepções de
mundo e de vida do leitor diante de uma obra de arte.
No âmbito da linguagem verbal, a literatura configura esse
processo criativo que se dá a partir da percepção de um fenômeno
da realidade, da expressão de emoções e ideias, em que se observa
a manifestação de uma função estética, contempladora, que instiga
um esforço de interpretação do mundo. A linguagem literária
constitui um arranjo singular no processo de construção de
sentidos, capaz de “tornar o mundo compreensível transformando
a sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas
intensamente humanas” (COSSON, 2006, p.17).
Nessa direção, num trabalho que envolve a língua, os
sujeitos e seu mundo social, os sujeitos-pichadores buscam
ocupar o espaço da invisibilidade no espaço urbano. Aí produzem
textos que expressam uma concepção da realidade em que
buscam significar e ao mesmo tempo também se significarem e
se constituírem intersubjetivamente por meio de suas posições
discursivas.
Conhecedores competentes das regras e mecanismos de sua
língua, os sujeitos imiscuem-se no texto do outro e descontroem,
dessacralizam enunciados dominantes no senso comum, no
universo do saber popular, explorando a camada de superfície dos
enunciados por meio de um jogo de palavras.

87 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
FIGURA 9. “O fazer poético”

Fonte: Pinterest

Na figura acima, ao enunciar “Em terra de cego é melhor


se fazer de mudo”, o enunciador provoca um “estranhamento” para
o leitor, uma vez que ao inscrever o segmento inicial ele pressupõe
que o leitor se mostre capaz de identificar, a partir do fragmento,
uma frase cristalizada no universo da sabedoria popular, ou seja,
o provérbio “Em terra de cego quem tem um olho é rei”.
Na perspectiva de Maingueneau (2014), o provérbio
constitui uma aforização sentenciosa, isto é, uma frase “sem
texto” (p.30) que se caracteriza como um enunciado breve de
cunho generalizante e moralizante, com duplo sentido (literal e
figurado), facilmente memorizável, que tem por finalidade captar
a atenção do outro. Para o autor, “um fragmento fechado sobre
si [...]. É uma palavra imemorial, que remete à imagem de um
mundo estabilizado, e sua sintaxe arcaizante está diretamente
ligado a esse estatuto” (p.72).
Dessa forma, no movimento de “fazer com”, busca o sujeito/
pichador um “fazer como”: promove/mobiliza um deslocamento
semântico no eixo paradigmático, com a substituição dos
sintagmas:

88 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
Fig.1 – Em terra de cego → [quem tem um olho] é rei”
↓ ↓ ↓
Sintagma adv. Sintagma adj. SN

“melhor se fazer de mudo”

A substituição não significa somente uma alteração de


ordem semântica; a quebra da previsibilidade provoca um novo
efeito de sentido, construído por meio de paradoxo, isto é, por
uma construção que apresenta uma aparente incoerência ou
falta de nexo no nível semântico. A topicalização do sintagma
adverbial remete ao enunciado proverbial “Em terra de cego,
quem tem um olho é rei”. Apoiando-se, ao mesmo tempo, nas
propriedades linguísticas do enunciado de base, “trabalhando”
sobre esse enunciado de base, subverte-o, na permuta por “melhor
se fazer de mudo”.
Ainda conforme Maingueneau (2014), o provérbio pode
ser considerado um “enunciado generalizante”, que busca trazer
o outro para determinado ponto de vista que constitui a voz de
todos os sujeitos, um enunciado partilhado e compartilhado por
todos como uma verdade universal, como o exemplo em questão
(“Em terra de cego, quem tem um olho é rei”). É na ruptura com
um dizer cristalizado, consolidado pela memória social, que o
enunciador provoca um deslocamento da posição enunciativa e do
sentido. Em “melhor se fazer de mudo”, o enunciador assume uma
posição frente ao enunciado pela escolha vocabular, caracterizado
por uma atitude subjetiva naquilo que diz, por meio da expressão
cristalizada com o adjetivo, com função predicativa, “é melhor”
(em oposição a “é pior”), em relação à oração subjetiva [a gente]
“se fazer de mudo, em terra de cego”.

89 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
Ao subverter o provérbio, inscreve sua posição valorativa
num discurso ressignificado, evoca um acontecimento que já foi
objeto de discurso e ressuscita “no espírito dos ouvintes o discurso
no qual este acontecimento era alegado, com as ‘deformações’
que a situação presente introduz e da qual pode tirar partido”
(PÊCHEUX, 1969, p.77). A deformação ocorre na ruptura da
correlação semântica “cego ↔ olho” por uma contradição em “cego
≠ mudo”. Na perspectiva do ato produtor, “a poiesis enquanto co-
produção con-duz do velamento para o desvelamento” (CASTRO,
2004, p. 8), movimento que desfaz a aparente transgressão quando
projetada para o nível enunciativo.
O deslocamento indiciado na oposição semântica “cego ≠
mudo”, que aponta para o nonsense, gera um efeito polissêmico:
cego deixa de ser um deficiente visual, mas aquele que “não quer se
intrometer no que vê”. Diante disso, para um interlocutor que se
supõe exigente, crítico, o “melhor” é a gente “se fazer de mudo” (se
fingir de mudo) para evitar desentendimento, conflito, desavença.
Valendo-se do paradoxo como procedimento estético, com
o objetivo de produzir no leitor um efeito catártico, de forma
impactante, inscreve assim o sujeito, o “diferente”, um diferente
que se acentua na geração de novos sentidos, uma poiesis, em que
mostra uma capacidade criativa e a força de uma escrita literária.
Um modo de produzir uma poiesis pode traduzir um jogo estético
em que o sujeito mobiliza, centraliza esse jogo sobre o ‘como fazer’,
criando uma ambiência semântica.
Comparemos o jogo jogado pelos sujeitos-autores dos
textos pichados em muro com o modo de fazer, de produzir
uma poiesis de sujeitos-autores consagrados institucionalmente,
em que o “fazer poético” se instaura a partir de uma quebra de
expectativa, pela imprevisibilidade, construído por meio da ruptura

90 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
do esperado, como se pode perceber nos poemas abaixo:

1.Poeminha do Contra,
Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!
(Mário Quintana)

Essa estratégia é desvelada na alteração processada no eixo


paradigmático, pela plurissignificação do signo “passarão” (v.
passar, 3ª pessoa, plural, futuro do presente, indicativo / substantivo
“pássaro”, grau aumentativo). “Eles passarão” “predispõe” o leitor
para o “contra”, para a manutenção do paralelismo sintático
(pronome + sintagma verbal) com o uso do pronome pessoal –
“Eu”. A escolha do substantivo diminutivo “passarinho” provoca
uma tensão entre a realidade esperada e a realidade construída na
ambiguidade no paralelismo sintático “passarão” / “passarinho”,
gerada pelo jogo sonoro do radical dos cognatos e dos sufixos
aumentativo/diminutivo.

2.Amor é um fogo que arde sem se ver;


É ferida que dói, e não se sente; 
É um contentamento descontente; 
É dor que desatina sem doer. 
É um não querer mais que bem querer; 
É um andar solitário entre a gente; 
É nunca contentar-se e contente; 
É um cuidar que ganha em se perder; 
É querer estar preso por vontade; 
É servir a quem vence, o vencedor; 
É ter com quem nos mata, lealdade. 
Mas como causar pode seu favor 
Nos corações humanos amizade, 

91 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
Se tão contrário a si é o mesmo Amor? 
(Luís Vaz de Camões)

Aqui, a estética do desvio se dá a partir de uma estruturação


léxico-sintática, baseada num jogo antitético que põe em evidência
a ideia de contradição ou paradoxo com que se busca definir o
conceito de Amor em sua dualidade.
Os sujeitos trabalham, visibilizam o seu texto; marcam uma
posição numa ação comunicativa, ou conforme Possenti (1998,
p. 126), numa operação que “mostra a presença de um sujeito
operando para produzir peculiares efeitos de sentido”.
Os textos em tela, neste trabalho, caracterizam-se pela
“fabricação” de uma poiesis em que os sujeitos demonstram uma
capacidade de mobilização de procedimentos estéticos com
que metaforizam a forma de se verem e de verem o seu mundo,
por meio de um especial arranjo dos componentes sintáticos e
semânticos. A experiência estética aí esboçada, constituída a partir
de uma dimensão emocional, (pre)dispõe os sujeitos/pichadores,
ainda que incipientemente, a um nível de potencialidade dos
“poetés”, dos poetas, no plano da criação literária.
Cremos que seja possível dizer que os textos configuram
um fenômeno poético, em que se operam transformações e
manifestações, com o objetivo de provocar no leitor uma percepção
nova sobre determinada experiência, vivenciada ou não pelos
sujeitos autores.

Poiesis, letramento literário e ensino de língua portuguesa



Na relação sujeito/mundo/língua(gem) e o trabalho de
sujeitos na e pela linguagem, procuramos focalizar o conceito de

92 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
poiesis como ato criador, processo desencadeador da elaboração
estética de uma realidade simbólica e ficcional na constituição
de textos literários.
Produções escritas em muros, paredes, postes – pichações
- no espaço urbano, universo heterogeneamente constituído,
caracterizadas por uma escrita vernacular, são estigmatizadas
e marginalizadas e por isso invisibilizadas para os padrões
legitimados e institucionalizados pelos letramentos dominantes.
A análise de alguns desses enunciados/pichações, nesse trabalho,
possibilitou-nos ver nessas produções escritas as táticas utilizadas
pelos sujeitos pichadores no “trabalho” de um fazer poético de
dizer o mundo, os modos de um “fazer poético”:

FIGURA 10. “Os muros falam”

Fonte: Pinterest

Em outro espaço - espaço escolar - contexto


institucionalizado, constituído por um hibridismo cultural e
linguístico, numa dimensão mais acentuada, fenômeno semelhante
se evidencia: trava-se um conflito em que forças desiguais se
digladiam, marcando uma relação de poder, sobretudo no que se
refere ao ensino-aprendizagem de língua materna. Materializam-
se posições que refletem profundas divergências, que se polemizam,
principalmente quando se trata da questão da escrita.

93 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
A posição defendida por um letramento dominante impõe
uma verdade ou doxa baseada na premissa de uma modalidade
de língua, uma língua padrão, institucionalizada e legitimada por
um segmento social privilegiado, que imprime uma relação de
poder com a prescrição de uma língua única, homogênea, estável e
transparente. A referência é a língua usada por escritores tomados
como clássicos nas literaturas portuguesa e brasileira, versados na
arte de escrever “em bom português”. O ensino da língua sofre a
influência do sistema escolar, que, por sua vez, sofre a interferência
do sistema social.
Na perspectiva de Foucault (2010), a produção do discurso
é selecionada de tal forma que impõe mecanismos para a
apropriação dos saberes e a escola se coloca como o lugar em que
se demarca a competência para o domínio desses saberes; define
por meio de um ensino de língua uma minoria autorizada a receber
os conhecimentos, excluindo uma grande maioria.
Tal visão, premeditada, despreza a ideia de heterogeneidade,
de diferença e de modalidades, constitutiva de toda e qualquer
língua. Com isso, as atividades de letramentos vernaculares,
práticas de escrita não reguladas, controladas ou sistematizadas
por instituições ou organizações sociais, mas que têm sua
origem na vida cotidiana, nas culturas locais, são marginalizadas,
desvalorizadas, invisibilizadas e a escrita vernacular concebida
como desvio ou erro é estigmatizada. A consequência de tal
posicionamento é o apagamento de subjetividades e indivíduos
rotulados como incompetentes em sua própria língua materna
e incompetentes, sobretudo, para a apropriação de construções
simbólicas do universo literário como um processo de interpretação
do real e como forma de intervenção ativa no mundo. Promove-se
um apagamento do ler e do criar um saber literário e se incute a

94 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
noção de que o domínio de uma escrita literária é para uns poucos
privilegiados.
A “verdadeira” compreensão do ato agonístico, “dramatizado”
pelo confronto/conflito entre elementos oposicionais e
antagonísticos (num cenário acentuadamente híbrido em que se
digladiam saberes, ideologicamente postos em confronto/conflito
e ideologicamente materializados pelas diferenças linguísticas),
passa por um olhar que leve em conta a composição e justaposição
de saberes que, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que se
antagonizam se aproximam, se relacionam (cf. BHABHA, 1998).
Num processo de ressignificação, é necessário entender
que, ao invés da negação e antagonismo no conflito, constitutivo
do heterogêneo, entre “verdades” que se põem e se opõem,
impõe-se um olhar que requer um processo de desconstrução
de posições (SOUZA, 2004). Esse olhar pode tornar visível o
hibridismo constitutivo de saberes tanto numa posição dominante,
privilegiada institucionalmente pela/na instituição escolar/saber
instituído por uma variedade linguística legitimada quanto na
construção de contra-saberes numa posição não dominante,
desprivilegiada institucionalmente/saber não legitimado marcado
por variedade linguística estigmatizada.
Nessa perspectiva, as reflexões teórico-metodológicas aqui
desenvolvidas, num movimento dialógico entre os conceitos
de letramento e poiesis, tendo como objeto de análise dizeres
aleatórios, ou seja, pichações em muros, paredes e postes,
possibilitaram a construção de um fazer discursivo que faz
vir à tona os “silêncios articulados” (BHABHA, 1998), numa
perspectiva crítica, o que pode contribuir para o desvelamento
de posições num processo permeado por elementos linguísticos
e culturais contraditórios e conflitantes.

95 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
No espaço escolar, em que irrompem conflitos e contradições
no confronto de representações de linguagem, torna-se
fundamental redimensionar a ideia de diferença, o que pressupõe
instaurar um processo que considere os valores culturais aí em jogo,
negociando-se criticamente com a “diferença do outro”.
A noção de “poiesis” como ato criador traz como
pressuposto a ideia de processo criador e pode constituir uma
estratégia linguístico-discursiva que rompe com uma “verdade”
única, que produz e institui conflitos e contradições, no que diz
respeito ao ensino de língua materna para falantes dessa língua,
na produção de saberes pela leitura e pela escrita. Nesse sentido,
pode traduzir um movimento que produza uma desconstrução
de posições, com o deslocamento do olhar para outros saberes em
circulação, constituídos socialmente.
Esse deslocamento do olhar para uma posição que vê
a “poiesis” como um fazer poético, um fazer herdado, mas
também construído socialmente por sujeitos, contribui para
uma apropriação literária do mundo, criando condições para que
falantes naturais se vejam/se sintam competentes no trabalho
com e pela sua própria língua. Por meio da ludicidade nas
interações linguísticas, como elemento motivador e impulsionador,
inscritos no espaço simbólico da leitura literária e da escrita
literária, os sujeitos podem construir experiências estéticas que
desvelem, visibilizem um potencial criativo, que possibilite o
desenvolvimento da força de uma escrita e de uma leitura literária,
constituidora de sujeitos autores.
Nesse sentido, dentro desse aporte teórico, a produção
de uma “poiesis”, concebida como uma experiência estética e
cognitiva capaz de transformar e enriquecer a realidade pessoal
do sujeito, na dimensão literária do contexto de letramento, seja

96 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
oriunda dos letramentos vernaculares ou dos letramentos de
prestígio, embora constituindo diferentes modos de enunciação,
guarda procedimentos comuns de elaboração, caracteriza os
procedimentos geradores e capacitadores da apropriação do
mundo da escrita literária pelos leitores, em todos níveis, seja
professor, seja aluno, sejam sobretudo os indivíduos inseridos
precariamente nos círculos da educação formal (CHIARETTO,
2003, p.235).
Constitui o trabalho de sujeitos com e sobre a linguagem,
específico do fazer poético, que indicia a exploração das
potencialidades da linguagem num “jogo estético”. Ainda, segundo
Chiaretto (2003, p.236), esse letramento literário contemplaria
dois âmbitos primordiais, a sociedade e o indivíduo, ou seja,
diante dos mecanismos ordenados para organizar de forma
pública e previsível a sociedade como um todo homogêneo, há a
imprevisibilidade do sujeito, isto é, sua carga subjetiva conformada
em um caos de experiências, sentimentos, pensamentos e desejos.
Em última instância, o letramento (e o letramento
literário) deve se constituir sob uma perspectiva de uma ação
pedagógica que busque, exaustivamente, a inserção dos alunos no
domínio do letramento literário, por meio do contato cada vez
mais acentuado com diferentes textos literários, fazendo ver que
tais textos não compreendem somente uma outra forma do uso
social da escrita, mas também a possibilidade de um real domínio
dessa escrita por meio de uma educação literária.

(In)conclusões

Ao desmi(s)tificar posições e verdades paradoxalmente


estáveis e polemizar posições e verdades dadas como transparentes,

97 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
paradoxalmente estabelecidas num universo social e discursivo
constitutivamente heterogêneo como o espaço escolar, buscamos,
com as reflexões aqui instauradas, desnaturalizar posições
arraigadas e fomentar uma proposta de ação educativa norteada
para colocar em diálogo os textos/enunciados/discursos das
diversas culturas locais, vernaculares, com aqueles das culturas
valorizadas, canônicos, ou seja, “transformar patrimônios
em fratrimônios” (ROJO, 2009, p.115), e com isso formar,
efetivamente sujeitos “que sejam multiculturais em sua cultura e
poliglotas em sua língua (ROJO, 2009, p.115).
Ao ampliar-se o conceito de “poesia”, do fenômeno
poético como um motor de elicitação de um processo básico de
conhecimento, que, no dizer de Osakabe (2005), dá-se, como
qualquer acontecimento se dá, amplia-se a ressignificação para a
visibilização de outras produções culturais, em diferentes gêneros
discursivos, que singularizam os sujeitos na construção de um
modo próprio de se fazerem donos da linguagem. A inserção
nas interações literárias pode contribuir para um processo de
construção de subjetividades e possibilitar que os sujeitos, por
meio da negociação de saberes, sejam capazes de se moverem
com independência.
Sob esse viés, esperamos, com esse trabalho, oferecer
subsídios para sujeitos professores em formação do curso de
licenciatura em Língua Portuguesa, na área de ensino de língua
e literatura, bem como para os cursos de formação continuada de
professores. Com isso, buscamos contribuir para o desenvolvimento
das áreas de estudos de letramento literário e para o ensino da
literatura como uma prática significativa para professores e alunos,
visando à constituição de uma educação literária.

98 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
Referências

ANDRADE, CARLOS DRUMMOND DE. Alguma poesia. In:


Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: RJ, Editora Nova Aguilar, 1977.

ANDRADE, OSWALD. Primeiro caderno de poesia do aluno. São


Paulo: Globo, 1991.

BANDEIRA, MANUEL. Libertinagem. In: Poesia completa e prosa.


Rio de Janeiro: RJ, Editora Nova Aguilar, 1983.

BHABHA, HOMI. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila,


Eliana Lourenço de Lima

Reis, Gláucia Renate Gonçalves, Belo Horizonte-MG: Ed. UFMG,


1998.

CAMPOS, HAROLDO. Uma poética da radicalidade. In: CHAVES,


FLÁVIO LOUREIRO. et alii. Aspectos do modernismo brasileiro.
Porto Alegre: UFRGS, 1970, p.9-59.

CASTRO, MANUEL ANTONIO DE. A natureza do fenômeno


literário. In: Manual de teoria literária. SAMUEL, ROGEL. (Org.).
Petrópolis: Vozes, 1984.

CHIARETTO, MARCELO. A leitura literária diante da visão


moderna de progresso. In: Literatura e letramento: espaço, suportes e
interfaces – o jogo do livro. Org. Aparecida Paiva, Aracy Martins, Graça
Paulino, Zélia Versiane. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

COSSON, RILDO. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo:


Contexto, 2006.

CRUVINEL, MARIA DE FÁTIMA. O caso da maleta. In: Análise


do discurso: as materialidades do sentido. GREGOLIN, MARIA
DO ROSÁRIO. e BARONAS, ROBERTO (Orgs.). São Carlos, SP:
Claraluz, 2001.

99 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
DE CERTEAU, MICHEL A invenção do cotidiano. Trad. Ephraim
Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1990.

DE CERTEAU, MICHEL. A invenção do cotidiano 2. Morar,


cozinhar. Trad. Ephraim Ferreira Alves e Lúcia Endlich Orth.
Petrópolis: Vozes, 1996.

DIDI-HUBERMAN, GEORGES. Falenas: Ensaios sobre aparição.


Trad. Antonio Preto. Lisboa: KKYM, 2015.

FIORIN, JOSÉ LUÍS. Elementos de análise do discurso. São Paulo:


Contexto, 2000.

FOUCAULT, MICHEL. A ordem do discurso. Trad. Aula inaugural no


College de France. Pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução
de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola: 2015.

GREGOLIN, MARIA DO ROSÁRIO, BARONAS, ROBERTO.


(Orgs.). Análise do discurso: as materialidades do sentido. São Carlos,
SP: Claraluz, 2001.

JAKOBSON, ROMAN. Linguística e comunicação. Trad. Izidoro


Blikstein e José Paulo Paes.  São Paulo: Cultrix, 1969.

JAUSS, HANS ROBERT. A estética da recepção: colocações gerais.


Trad. de Luiz Costa Lima. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). A literatura
e o leitor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 43-62.

KALMAN, JUDITH. Querido santo Antônio: Escrita Vernácula e


Instabilidade Social. In: MARINHO, MARILDES e CARVALHO,
GILCINEI TEODORO. (Org.). Cultura Escrita e Letramento, Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2010.

MAINGUENEAU, DOMINIQUE. Frases sem texto. Trad. Sírio


Possenti [et al.]. 1ª ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.

100 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
NUNES, BENEDITO. Passagem para o poético: filosofia e poder em
Heideger. São Paulo: Ática, 1989, p.20.

ORLANDI, ENI PUCINELI. Cidade dos sentidos. Campinas, SP:


Pontes Editores, 2004.

OSAKABE, HAQUIRA. Poesia e indiferença. In: Leituras literárias:


discursos transitivos. Aparecida Paiva, Aracy Martins (Org.). Belo
Horizonte: Ceale, Autêntica, 2005.

PAES, JOSÉ PAULO. Anatomias. Ilustr. Moby. São Paulo: Cultrix,


1967.

PÊCHEUX, MICHEL. Análise automática do discurso (AAD-69).


In: Gadet, Françoise e Hak,Tony (orgs.) Por uma análise automática
do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução: Eni
Orlandi. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1993.

POSSENTI, SIRIO. et al. Discurso do outro: lá onde o sujeito trabalha.


Alfa, São Paulo, 42:113-131, 1998.

QUINTANA, MÁRIO. Caderno H. Poesia Completa, Editora Nova


Aguilar, p. 257.

ROJO, ROXANE. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social.


São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

SIGNORINI, INÊS. Por uma teoria da desregulamentação linguística.


In: BAGNO, MARCOS Linguística da norma. São Paulo: Parábola
Editorial, 2004.

SOUZA, LYNN MÁRIO MENEZES de. Hibridismo e tradução


cultural em Bhabha. In: ABDALA, JUNIOR (ed.). Margens da cultura.
São Paulo: Boitempo, 2004.

101 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
WALTY, IVETE LARA, OLGA VALESKA, O. Por uma leitura
literária do mundo. In: MARINHO, MARILDES. e CARVALHO,
GILCINEI TEODORO (Org). Cultura Escrita e Letramento, Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2010.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Concretismo, acessado em 21/02/2021.

102 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 71-102 – jul./dez. 2020
O FATOR SURPRESA NOS CONTOS DE
CONCEIÇÃO EVARISTO: “INGUITINHA”,
“TEIAS DE ARANHA” E “OS PÉS DO
DANÇARINO”

Gabriely Menegheti Bertoni1


Maria Carolina de Godoy2

RESUMO: O trabalho tem como objetivo refletir sobre o fator surpresa em três
dos doze contos que englobam a obra Histórias de leves enganos e parecenças (2016),
de Conceição Evaristo: “Inguitinha”, “Teias de aranha” e “Os pés do dançarino”,
fundamentando-se em autores e estudiosos da área como Júlio Cortázar (1993),
Fábio Lucas (1983) e Ricardo Piglia (2004). O realismo animista, introduzido por
Pepetela em 1989 na obra Lueji, relata aspectos culturais africanos muito diferentes dos
elementos encontrados na cultura ocidental e, nos contos estudados, é possível perceber
esses aspectos realizando o fator surpresa nos contos.
PALAVRAS-CHAVE: Fator Surpresa; Conceição Evaristo; Realismo Animista.

ABSTRACT: The purpose of this paper is to reflect on the surprise factor in three of the
twelve short stories that encompass the work “Histórias de leves enganos e parecenças”
(2016), by Conceição Evaristo: “Inguitinha”, “Teias de aranha” and “Os pés do
dançarino ”, based on authors and scholars in the field such as Júlio Cortázar (1993),
Fábio Lucas (1983) and Ricardo Piglia (2004). The animist realism, introduced by
Pepetela in 1989 in the literary work Lueji, describes African cultural aspects very
different from the elements found in Western culture and, in the stories studied, it is
possible to perceive these aspects performing the surprise factor in the stories.
KEYWORDS: Surprise Factor; Conceição Evaristo; Animist Realism.

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Estadual
de Londrina. E-mail: gabrielymenegheti@gmail.com.
2
Docente do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas e do Programa de Pós-
Graduação em Letras, Universidade Estadual de Londrina. E-mail: mcdegodoy@uol.
com.br.

103 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
Introdução

“Escrevo. Deponho. Um depoimento em que as imagens


se confundem, um eu-agora a puxar um eu-menina pelas ruas de
Belo Horizonte. E como a escrita e o viver se con(fundem), sigo eu
nessa escrevivência [...]” (EVARISTO, 2009). Conceição Evaristo,
escritora mineira graduada em Letras, relata suas “escrevivências”
com base em suas experiências e as que ouviu. As histórias de
sofrimento, dor e superação, marcas deixadas por séculos de
escravidão são recuperadas pelas narrativas de mulheres e homens
negros, que relatam suas experiências vividas, a partir da condição
social oriunda desse período escravocrata. Cortázar (1993) afirma
que os contos devem ser relacionados a uma “profunda vivência”
em que a motivação para a escrita desse entrecho transforma-o
em mais que pura estética.
Não tão dessemelhante à afirmativa de Cortázar é o livro
de contos Histórias de leves enganos e parecenças, dividido em
apresentação, doze contos, uma novela e posfácio, publicado pela
editora Malê em 2016. Não “tão” dessemelhante, pois existe um
ponto bastante diferente de suas outras obras: surpreendentes
vínculos animistas entre as causas e consequências das narrativas
que, como a autora afirma, são relatos colhidos das histórias que
lhe contam:

Ouço pelo prazer da confirmação. Ouço pela partição da


experiência de quem conta comigo e comigo conta. Outro dia
me indagaram sobre a verdade das histórias que registro. Digo
isto apenas: escrevo o que a vida me fala, o que capto de muitas
vivências. Escrevivências. Ah, digo mais. Cada qual crê em seus
próprios mistérios. Cuidado tenho. Sei que a vida está para além
do que pode ser visto, dito ou escrito. A razão pode profanar o
enigma e não conseguir esgotar o profundo sentido da parábola
(EVARISTO, 2017, p. 17).

104 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
No conjunto da obra de Conceição Evaristo, este livro
de contos mantém os temas explorados em outras narrativas,
como denúncia social, a força e dificuldade das mães solteiras,
a religiosidade, todavia insere uma particularidade: o realismo
animista que, “através de uma concepção animista da realidade e
de mundo, as estórias africanas buscam ressignificar os modos de
vida dos antepassados e ampliar as possibilidades de significação
da relação entre a tradição e a modernidade” (GARUBA apud
WITTMANN, 2012, p. 36). A alma se mistura com a natureza;
a morte não é a separação iminente entre as famílias, enfim, para
Rodrigues (2018), o animista está relacionado ao espírito como
forma de perpetuidade da vida, apesar de ser mais complexo
que isso. Mas, o importante aqui é saber que a forma com que
Conceição escreve estes contos intriga e revela fatores surpresas
em praticamente todas as histórias.
Os contos analisados, neste trabalho, são três: “Inguitinha”,
“Teias de aranha” e “Os pés do dançarino”, não havendo possibilidades
de explorar todos os doze contos da obra pela intensidade do
material em questão. O interesse não é apenas identificar o
momento do fator surpresa, mas também compreender como a
autora chegou a esse ponto, quais as relações entre a história e
o fator surpresa e o significado dessas representações. Cortázar
(1993) alega que o contista sabe que não tem muito espaço para
que toda sua história seja relatada de forma explícita, portanto
deve utilizar de histórias sobrepostas, ou seja,

trabalhar em profundidade, verticalmente, seja para cima ou para


baixo do espaço literário. E isto que assim expresso parece uma
metáfora, exprime, contudo, o essencial do método. O tempo e
espaço do conto têm de estar como condensados, submetidos a
uma alta pressão espiritual e formal [...] (CORTÁZAR, 1993,
p. 152).

105 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
Cortázar identifica algumas características do conto, pois
entende essa forma de difícil classificação. Relaciona o romance
ao filme, por ser mais extenso, ter uma amplitude de cenários e
poder se dividir conforme os personagens vão se desdobrando, e
o conto à fotografia pela brevidade, personagens reduzidas e que
se desenrolam conforme o fato específico que as englobam,

o conto parte da noção de limite, e, em primeiro lugar, de limite


físico. [...] Nesse sentido, o romance e o conto se deixam comparar
analogicamente com o cinema e a fotografia, na medida em
que um filme é em princípio uma “ordem aberta”, romanesca,
enquanto que uma fotografia bem realizada pressupõe uma
justa limitação prévia, imposta em parte pelo reduzido campo
que a câmera abrange e pela forma com que o fotógrafo utiliza
esteticamente essa limitação (CORTÁZAR, 1993, p. 151).

O que faz lembrar do trecho da música de Leoni, Fotografia


(1993), “O que vai ficar na fotografia são os laços invisíveis que
havia”, por mais que o conto seja conciso, existem as entrelinhas
que aprofundam e que fazem ser necessária uma análise de
forma vertical, mais atenta aos fatos e às escolhas da autora para
construir as narrativas que ali foram expostas para o leitor.

Alguns aspectos teóricos

Os contos normalmente se caracterizam por sua brevidade,


pelas análises horizontais e pelos pequenos focos temáticos e,
assim, são os contos de Conceição Evaristo, breves, de temáticas
diretas e simples, acrescentando grande intensidade significativa
às representações literárias do povo negro e valor histórico a esses
registros. Suas narrativas contam com um destaque a mais: o efeito
surpresa. Para Ricardo Piglia: “Um relato visível esconde um relato

106 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
secreto, narrado de um modo elíptico e fragmentário. O efeito
surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na
superfície” (2004, p. 90), identificando as razões e inserindo um
fechamento para a história que, como o próprio nome já diz, é uma
surpresa, algo que foge à lógica. Piglia (2004) ainda afirma que
esse efeito surpresa ocorrido no final do conto é uma propriedade
do conto clássico em que duas histórias se passam:

[...] narra em primeiro plano a história 1 [...] e constrói em


segredo a história 2 [...]. A arte do contista consiste em saber
decifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Um relato
visível esconde um relato secreto, narrado de um modo elíptico
e fragmentário. O efeito de surpresa se produz quando o final
da história secreta aparece na superfície do conto (PIGLIA,
2004, p. 90).

Nos contos escolhidos para esta análise, esse efeito é


retratado entre a história narrada em primeiro plano, a história 1,
e a história narrada em segundo plano, a história 2, por meio de
aspectos do realismo animista. Dentre esses aspectos, destacam-
se as tradições e crenças carregadas desde os antepassados e
que formulam uma identidade própria da cultura africana e
afrodescendente recuperada, principalmente, pelas vozes das
mulheres mais velhas de cada comunidade.
Tábita Wittmann (2012) alega que a filosofia europeia
abrange a ideia de linearidade teológica da cultura ocidental em
que a vida tem seu fim na morte; já a cultura africana acredita
que a morte é uma continuação da existência humana, é parte
integrante da vida e subentende o sobrenatural de forma diferente
daquela imposta pelos colonizadores europeus. Ainda, segundo
a autora, no realismo animista, há a interação entre o antes e o
depois, entre a morte e a vida, pois o mundo dos vivos, dos mortos

107 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
e dos que ainda não nasceram estão no mesmo estágio, transitando
simultaneamente. Neste trabalho, a relação entre o passado e o
presente tem uma força muito grande, quando se trata de uma
abordagem animista, e o conhecimento da mulher mais velha é
transmitido conforme lhe fora passado anteriormente, através da
crença da força daqueles que já não estão vivos, mas ainda exercem
papel fundamental em toda sociedade. Rodrigues, ao referir-se a
Garuba, assim define realismo animista:
.
Animismo, palavra que vem do latim animu, quer dizer espírito,
vida. Harry Garuba (2014) irá considerar que o animismo é
um modo de pensar a vida, sem os dualismos do modernismo.
Sendo assim, as fronteiras entre natureza e sociedade, mundo
dos objetos e dos sujeitos, mundo material e o de significados
agenciados e simbólicos são menos confiáveis do que o projeto
modernista havia decretado” (GARUBA, 2014, p. 2). Portanto,
para o filósofo, o animismo seria uma lógica que subverte
binarismos e “desestabiliza a hierarquia da ciência sobre a magia e
da narrativa secularista da modernidade através da reabsorção do
tempo histórico nas matrizes do mito e do mágico” (GARUBA,
2012, p. 42 apud RODRIGUES, 2018, p. 29).

As relações entre velho e novo, morto e vivo, natureza e


homem permitem que façamos a leitura dos contos de Conceição
Evaristo por meio de uma tendência ao realismo animista, ainda
que ela seja uma escritora brasileira com predisposição à literatura
de cunho ocidental, o que, por outro lado, poder-se-ia dizer de
uma literatura em que o insólito também se configure. Não se
pretende partir do pressuposto de que os contos aqui analisados
sejam inteiramente animistas, assim como afirmar que os textos
fazem parte singularmente de uma estética em que apenas o
insólito se apresente. Assim sendo, cabe a observação de quais
são os traços animistas que compõem o efeito surpresa nos três

108 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
contos de Evaristo, tendo como base teórica alguns estudiosos
dessas vertentes, como a dissertação de Tábita Wittmann (2012):

[...] dos antepassados fundadores emanava e ainda emana a força


de sustentação simbólica dos sujeitos culturais. É necessário
lembrar que os escravos tinham um passado, uma memória
que os seguiu na travessia pelo Oceano Atlântico. Com eles,
portanto, viajaram mitos, lendas, provérbios, músicas, danças e a
força de suas convicções. Vale ainda lembrar, pensando o mundo
colonial, que o imaginário recalcado pelo etnocentrismo nunca
se rasurou totalmente, ressurgindo nas manifestações culturais,
muitas vezes clandestinas e sempre comandadas pela memória
ancestral (WITTMANN, 2012, p. 55).

O fator surpresa nos contos

No conto “Inguitinha”, a autora retrata uma moça que


sempre foi taxada como fraca e frágil pelo seu nome Inguitinha
Minuzinha Paredes e, por isso, era zombada. A narrativa conta
que Inguitinha sempre fora apequenada por causa de seu nome,
o “inha” que a acompanhava até no sobrenome, um “quase nada”
(EVARISTO, 2017, p. 21) que criava um desconforto descomunal.
A Novíssima Gramática da Língua Portuguesa de Cegalla (2010,
p. 103) traz que o sufixo -inho, por indicar ideia de diminutivo,
evidencia uma tonalidade depreciativa, o que acontece com a
desdenha de algumas pessoas para com Inguitinha. Felizmente,
a menina se rebela e, depois de uma última ridicularização, uma
“[...] parede imensa repentinamente desabou, tão misteriosamente
como havia surgido entre os dois, jogando o sujeito por terra”
(EVARISTO, 2017, p. 21).
O sofrimento da menina Inguitinha agravava-se com a
zombaria e a minimização de seu próprio ser, o questionamento

109 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
constante de seu nome levava a um caminho de mágoa, aflição,
angústia, mesmo tentando não transparecer tais sentimentos:
“Moça, qual é a sua graça? Inguitinha Minuzinha Paredes –
respondia ela – como se nem percebesse a insolência do ato”
(EVARISTO, 2017, p. 21, sem grifo no original). Ela sabia que
essa pergunta era carregada de maldade, intimidação e humilhação,
sendo sempre perseguida. Mas, o que ninguém sabia era de uma
habilidade, a força do sobrenome Paredes, o que não era levado
em consideração quando toda essa importunação ocorria.
A moça sofre tanto com os insultos pejorativos acometidos
em vida que, quando isso se torna insuportável, ela quebra todos
os estereótipos até então lançados sobre ela e sobre a própria
semântica gramatical. A finalização -inha, além de ser denominada
como sufixo diminutivo (CEGALLA, 2010, p. 113) e trazer a
percepção de algo pequeno, frágil, reduzido de algo, ainda cria
um ambiente onde Inguitinha padece até o momento em que
seu outro sobrenome se revela maior que todos os preconceitos
nela depositados. No momento em que a moça levanta uma
parede absolutamente do zero, por meio de uma força interior, ela
representa a quebra do comum, daquele que é sofredor e continua
sofrendo, e daquele que é o valentão e continua provocando, para
implantar o inusitado. É possível observar que, desde o início do
conto, a construção linguística contribui para a dicotomia frágil/
forte e instaura indícios de uma transformação.
Nesse instante, podemos compreender o fator surpresa:
Inguitinha levanta uma parede que, ergue-se, cai e afasta a
personagem que a importuna; todavia, não machuca o antagonista,
nem Inguitinha se revela cruel numa tentativa de fazê-lo sofrer
como ela sofrera desde sempre, o que aparece é o modo com que
a personagem consegue fazer para que as impertinências parem
de acontecer. Piglia (2004) exemplifica essa teoria utilizando

110 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
um conto de Edgar Allan Poe e é possível transportá-la para
os contos de Conceição. A história 1 refere-se ao relato da
situação inconveniente que Inguitinha passa por causa de seu
nome; a história 2 descreve um relato secreto, a força e poder
de Inguitinha, ao levantar uma parede subitamente. As histórias
1 e 2, entrelaçadas, são indicadas pelo próprio sobrenome da
personagem, embora apenas no final o efeito surpresa apareça.
A instauração do clima inicial, para que o efeito surpresa
rompa os limites do texto, dá-se desde o parágrafo em que a
narradora começa a apresentar o nome de Inguitinha e afirma
que todos “achavam que apelido era” (EVARISTO, 2017, p. 21),
configurando o primeiro passo da demonstração de fragilidade
da menina. “Era só Inguitinha sair de casa, mal dava os primeiros
passos, vinha um, dois, depois passavam outros mais a perguntar:
Moça qual é a sua graça?” (EVARISTO, 2017, p. 21), aos poucos
a narrativa vai criando mais tensão com o cansaço por aturar a
insistência de tanta zombaria, pois Inguitinha sabia que essas
pessoas não perguntavam sobre seu nome porque queriam
conhecê-la, mas porque queriam escutar de sua boca o nome de
que todos debochavam.
“Mas um dia, Inguitinha deveras cansada de tanta zombaria
resolveu reagir” (EVARISTO, 2017, p. 21), a partir daí a narrativa
começa a indicar que a história 1 resultou em tamanha opressão
que não haveria mais jeito de conter os sentimentos e Inguitinha
resolve revidar as palavras duras que ouviu durante toda sua vida.
A resposta de praxe foi tomada por uma reação que ninguém
imaginava, porém estava a todo momento declarada em seu nome
“Paredes”. Inicia-se, então, a história 2, o relato secreto que a moça
guardara para si mesma e que representa a força de sua identidade,
não mais a fraqueza que todos achavam que conhecia. O momento
em que a parede é erguida, por meio da força de Inguitinha, e o

111 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
ofensor é surpreendido e confrontado torna-se o ápice do fator
surpresa, ao desconcertar tanto aquele que a estava provocando,
como também o leitor, pois em nenhum momento explícito
durante a narrativa da história 1 é conduzido para esta situação.
O modo de narrar dos contos cria, no campo da organização
narrativa, o efeito surpresa que, relido no contexto de produção
da literatura de Conceição Evaristo e da afro-brasilidade, remete
à força de resistência do oprimido contra o opressor de forma
inesperada. Há o pressuposto, construído a partir do olhar do
outro, de que Inguitinha é frágil. De certa forma, o nome mantém
a dicotomia fragilidade/força. A zombaria, advinda de outros
que imaginam estar diante do subjugado, é destruída pela força
inesperada. O acontecimento inusitado revisto no campo mais
amplo da produção afro torna-se imagem representativa da força
contra a opressão.
O mesmo acontece no conto “Teias de aranha”, numa
família em que a mãe, sozinha, precisa cuidar de todos os filhos;
à noite, os que chegam mais cedo pegam redes para dormir,
enquanto os demais ficam no chão. O mais novo, sem destreza,
chora amargamente e a mãe, cansada do dia, pede ao mais velho
que ceda a sua rede e durma no chão. Nessa cena, a mistura entre
sonho e realidade traz a imagem das teias de aranha: “Todas as
noites, aranhas teciam fios, dos fios a rede para acalentar o corpo
sofrido do maiorzinho” (EVARISTO, 2017, p. 22). Acatar as
ordens da mãe torna-se uma obrigação, mesmo porque o mais
novo, bastante insistente em sua vontade, chora até que o mais
velho ceda sua rede, “E não adiantava nada os maiores chamarem
o caçulinha para se aninhar na rede com qualquer um deles.
Quanto mais tentavam consolá-lo, mais ele se aprofundava em
sua intenção. Queria uma rede só para ele” (EVARISTO, 2017, p.
22). Para Piglia (2004), sobre o entrelaçamento das histórias, diz:

112 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
Cada uma das duas histórias é contada de modo distinto.
Trabalhar com duas histórias significa trabalhar com dois
sistemas diferentes de causalidade. Os mesmos acontecimentos
entram simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas.
Os elementos essenciais de um conto têm dupla função e são
empregados de maneira diferente em cada uma das duas histórias.
Os pontos de interseção são o fundamento da construção
(PIGLIA, 2004, p. 90).

A história 1 narra as dificuldades da família; a história 2


relata o conforto recompensador – na imagem das teias - para
aquele que ampara os irmãos, ou seja, existe aqui um fator
expressivo de dependência entre as duas histórias. Caso o menino
mais velho não se portasse com obediência à mãe, possivelmente
não haveria o fator de recompensa sustentado pelas teias de
aranha. Além disso, há a preservação de costumes, hábitos e cultura
praticada pela família: “É a lei da proteção. Os maiores, mesmo
se desprotegidos estão, devem acolher o menor desamparado”
(EVARISTO, 2017, p. 22). Essa convergência, no conto de
Evaristo, é imprescindível para que as duas histórias se cruzem e
despontem em algum momento.
O “ponto de intersecção”, conforme aponta Piglia (2004, p.
90), é a imagem da teia de aranha. Na história 1, o entrelaçamento
de redes e pernas em disputa pelo lugar para dormir lembram uma
teia de aranha, tecido que acolhe. O fato de a teia de aranha de
algumas espécies ser considerada um dos materiais mais resistentes
do mundo3 parece ganhar relevância em detrimento da sua
3
Dados de uma reportagem da BBC News, em 2015, mostram estudos sobre teias de
aranha: [...] Em 2010, uma equipe internacional de biólogos anunciou a descoberta das
maiores teias de aranha do mundo em Madagascar. A espécie responsável por elas foi
oficialmente descrita no 150º aniversário da publicação de A Origem das Espécies, de
Charles Darwin, e recebeu o nome de Caerostris darwini, ou aranha da casca de árvore de
Darwin. [...] “Nossa hipótese é de que essa combinação era uma predisposição da aranha
em ser capaz de dominar esse habitat particular. Nenhuma outra aranha usa a coluna de

113 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
natureza de armadilha. Essa significação torna-se mais concreta
à medida que o leitor se aproxima da história 2, contada a partir
do ponto de vista do filho mais velho que precisa ceder a rede ao
caçula, já que ele não consegue chegar antes dos maiores ao lugar
de proteção. Entre a amargura e a compreensão da necessidade de
proteger o irmão mais novo, o mais velho cria seu próprio campo
de proteção e resistência, no limiar entre sonho e realidade: “Mas
um dia, um sonho. Acho que um sonho, nem ele sabia. Todas as
noites, aranhas teciam fios, dos fios a rede para acalentar o corpo
sofrido do maiorzinho”. (Evaristo, 2017, p. 22). Essa narrativa,
em diálogo com a anterior, representa a importância da tomada
de consciência da força e a necessidade da criação de barreiras de
proteção, desta vez, na coletividade.
Embora os contos de Conceição remetam a representações
cotidianas - “Nada de choro, nada de vela nada de fita amarela”
(EVARISTO, 2017, p. 22) - como o momento de dormir dos
meninos em “Teias de aranha”, revelam significações mais
profundas. Inguitinha configura uma moça aparentemente
desamparada que mostra sua grandiosa força interna; o menino
mais velho, dentre os irmãos, simboliza a fraternal proteção para
com seu irmão mais novo, quando fica em um lugar desconfortável
para dormir, mesmo não sabendo se haverá uma compensação
por este amparo. Dessa maneira, podemos entender que não são
narrativas simples e corriqueiras, mas a reprodução da compreensão
ampla das vivências, conforme o termo “escrevivência” da autora,

ar sobre as águas abertas, então provavelmente o tamanho da teia e as propriedades do


material serviram à adaptação ao habitat”, diz Gregorič. Para descobrir se essa tese está
correta, os biólogos estão estudando as aranhas e sua seda. Para testar as propriedades da
seda, eles usam uma máquina de tensão, descrita por Gregorič como “uma máquina que
agarra o fio nas duas extremidades e vai puxando até que o material rompa, medindo a
força quando isso ocorre”. Com esse método, eles descobriram que a seda é mais forte que
o aço. Ela também já foi descrita como o material biológico mais resistente já conhecido

114 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
partilhadas por pessoas conhecedoras da mesma cultura. Para
Cortázar (1993), a notabilidade de um conto deve ser baseada
naquilo que se vê e vive:

Parece-me que o tema do qual sairá um bom conto é sempre


excepcional, mas não quero dizer com isso que um tema deva ser
extraordinário, fora do comum, misterioso ou insólito. Muito pelo
contrário, pode tratar-se de uma história perfeitamente trivial e
cotidiana. O excepcional reside numa qualidade parecida à do
imã; um bom tema atrai todo um sistema de relações conexas,
coagula no autor, e mais tarde no leitor, uma imensa quantidade
de noções, entrevisões, sentimentos e até ideias que lhe flutuavam
virtualmente na memória ou na sensibilidade. (CORTÁZAR,
1993, p. 154).

Cortázar (1993) destaca que a procura por temas fora da


lógica comum, extraordinária, não é certeza de fazer do conto
uma bela produção que atenderá às expectativas de um leitor
crítico em busca de referências sociais para, por exemplo, acalentar
as emoções do cotidiano. Ele ressalta a necessidade de fazer
com que os temas abordados no dia a dia do ser humano sejam
mais poéticos. O enredo de temática comum, nos contos aqui
apresentados, desenrolados a partir de uma visão das experiências
incomuns das personagens, pode levar o leitor a compartilhar,
também, emoções corriqueiras no campo do inusitado. Cortázar
(1993) afirma que o conto precisa intrigar no leitor uma dinâmica
de experiência a partir de relações complexas, as quais são visíveis
nas narrativas selecionadas. O terceiro conto dessa análise vai
realçar novamente o que Cortázar (1993) teoriza.
Em “Os pés do dançarino”, encontramos o protagonista
Davenir, nascido na Dançolândia, que desde os sete anos se
encantava pela dança e era sempre muito habilidoso. Sua família

115 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
e as anciãs apoiaram-no e ele foi se especializando em vários
ritmos até ganhar uma bolsa de estudos. Foi sucesso em muitos
lugares, principalmente em sua cidade. Certo dia, quando voltou
à sua cidade natal, havia uma grande festa lhe esperando. Ele
se apresentou, foi aclamado com muitas lágrimas de emoção e,
ao descer do palco, avistou a mais velha de todas as anciãs: sua
avó. Além dela, outras também lhe esperavam de braços abertos.
Davenir passou reto, mesmo lembrando que não teria chegado tão
longe como dançarino se não fosse a ajuda delas. De repente ele
foi tomado por uma dor estranha nas pernas, um amolecimento
e o sumiço de suas partes inferiores.

Nesse mesmo instante recebeu de alguém da casa um recado


da Bisa, a mais velha das velhas. Os pés dele tinham ficado
esquecidos no tempo, mas que ficasse tranquilo. Era só ele fazer
o caminho de volta, para chegar novamente ao princípio de tudo
(EVARISTO, 2017, p. 44).

Piglia (2004) afirma que a narrativa da história 1 é


acompanhada nas entrelinhas, em segredo, pela composição
da história 2. No conto “Os pés do dançarino”, a história 1 é
composta pela informação sobre como o bailarino Davenir
tornou-se um rapaz tão conhecido no meio artístico; a história
2 compreende o efeito surpresa que é o acontecimento da perda
dos membros inferiores e a força das anciãs. A narrativa mostra,
no primeiro parágrafo do texto, a vida do moço, suas conquistas,
habilidades e seu final trágico em forma de resumo em que o
leitor se engaja dos acontecimentos de maneira mais ampla e
generalizada; o desenrolar da narrativa engloba a volta de Davenir
para Dançolândia, descreve sua chegada, o baile, a soberba que o
acomete e os detalhes da perda dos pés.

116 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
Durante a primeira parte, é possível identificar alguns
elementos da história 1 que apontam para o quanto a família o
ajudou, embora não haja citação direta da presença das anciãs: “A
família, adivinhando para ele um futuro profissional, enfrentou
todos os comentários jocosos e colocou o menino em aulas de
balé” (EVARISTO, 2017, p. 41). Todo apoio e enfrentamento da
sociedade para que Davenir se torne um bailarino profissional
demonstra o esforço exterior para que o moço perceba as
circunstâncias e seja grato, mas, pouco depois, nessa mesma
primeira parte, a narrativa já desenha um final trágico, uma
oposição àquilo que se espera de reconhecimento: “E com tanto
sucesso merecido, o moço esqueceu alguns sentimentos e ganhou
outros não tão aconselháveis” (EVARISTO, 2017, p. 42). Neste
instante, fica sugerido que na história 2 está caracterizada a
ingratidão.
No desenrolar da narrativa, há a chegada do moço à cidade
e como sua apresentação se realizou com esplendor. Essa parte
mostra todas as benfeitorias que as anciãs realizaram para Davenir
e explicita o sentimento de ingratidão que o acomete. Logo a
construção da história 2 começa a aparecer: “E, na vaidade do
momento, Davenir nem prestou atenção em três mulheres, as
mais velhas da cidade [...]. Passou por elas, sem sinal de qualquer
reconhecimento” (EVARISTO, 2017, p. 43). Os traços peculiares
da história 2 constroem o desaparecimento dos pés do moço
através de um sentimento de angústia e abatimento físico, pois
perde seus membros inferiores. Enfim, chega um recado da Bisa,
a mais velha das velhas, afirmando que o efeito surpresa do conto
fora arquitetado pela falta de humildade do rapaz.
Davenir, mesmo sabendo que não teria as oportunidades
se não fosse a ajuda de sua família e insistência das anciãs, passou

117 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
reto por elas e não lhes deu a devida atenção, um gracejo, um
agradecimento, ou mesmo uma certa representação de afeto de tão
grande que era sua arrogância e vaidade. O texto traça a história
2, nas entrelinhas, a todo momento afirmando a habilidade de
Davenir com seus pés e, ao mesmo tempo, a dependência pelas
anciãs, revelando, ao final, o fator surpresa inesperado pelo leitor.
Piglia (2004) alega que o conto é produzido para externalizar uma
narrativa oculta aos poucos, de forma com que o leitor só perceba
através do fator surpresa que ela estava ali o tempo todo e faça,
com isso, uma análise de seu próprio conhecimento.

O conto é construído para revelar artificialmente algo que estava


oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência
única que nos permite ver, sob a superfície opaca da vida, uma
verdade secreta. “A visão instantânea que nos faz descobrir o
desconhecido, não numa remota terra incógnita, mas no próprio
coração do imediato”, dizia Rimbaud (PIGLIA, 2004, p. 94).

A narrativa aqui conta duas histórias: uma relacionada à


habilidade de Davenir em dançar; a segunda associada à crença
de respeito aos mais velhos, às anciãs. A primeira expõe todo
apoio que o protagonista teve para seguir sua carreira, mesmo
a família tendo que enfrentar comentários irônicos relativos ao
moço, suas conquistas, tal como conseguir uma bolsa de estudo,
e a felicidade da cidade por ter um representante tão magnífico
em sua profissão. Em meio a tantas vitórias, outra circunstância
que é clara neste primeiro momento é sua vaidade por achar “[...]
que outras celebrações deveriam acontecer. Para Davenir, a cidade
deveria curvar-se a seus pés, pois tinha sido graças a sua arte
que um lugarzinho como aquele tinha se tornado conhecido no
mundo” (EVARISTO, 2017, p. 43). Neste conto, mais claramente

118 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
do que nos anteriores, a cultura afro apresenta-se na figura da
sabedoria da anciã e do necessário reconhecimento de sua força
na comunidade. As consequências desse não-reconhecimento
são sentidas pelo protagonista que, castigado, perde sua força, seu
poder de dançar, porque perde os pés.
Inguitinha reconhece o poder do seu sobrenome e vence
o opressor; o irmão mais velho em “Teias de aranha” constrói
sua força para proteger a família e vê seu papel na coletividade;
Davenir, conhecedor de sua força advinda da comunidade, sai do
lugar de origem, coloca-se em movimento, tanto no sentido de
mudar como de dançar. Seus pés, simbolicamente, levaram-no
a tornar-se vencedor, mas ao esquecer a origem da sua força na
coletividade, é castigado pelas ancestrais. No contexto mais amplo
da produção afro-brasileira, a ancestralidade (sabedoria da mais
velha e das magias do passado) e o poder do coletivo para vencer
a opressão e ganhar espaço estão representados nos três contos.
A inter-relação cuidadosa entre duas histórias não só prende o
leitor, criando a atmosfera para o efeito surpresa, como também
engendra significações literárias mais amplas, relacionadas às lutas
e às resistências representadas pelas personagens negras, relidas
no contexto da produção afro-brasileira.

Considerações Finais

Embora os contos de Conceição Evaristo em Histórias


de leves enganos e parecenças (2016) busquem narrar histórias de
fatos cotidianos, o fator surpresa incita a compreensão de outros
significados. Cortázar (1993) propõe que o bom conto provoca
no leitor sensações e emoções que ele carregará para sempre:

119 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
“Todo conto perdurável é como a semente onde dorme a árvore
gigante. Essa árvore crescerá em nós, inscreverá seu nome em
nossa memória” (CORTÁZAR, 1993, p. 155) e assim são os
contos de Conceição Evaristo, embrenham no leitor sensações
de pertencimento às histórias narradas. “Inguitinha”, “Teias de
aranha” e “Os pés do dançarino” são apenas três dos doze contos
da obra da autora que apresentam fatores surpresas de formidáveis
leituras e análises e de diferentes concepções. Essa relação de
conflito eterno entre o ser humano e a vida já é um dos princípios
para o conto.

um conto, em última análise, se move nesse plano do homem


onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha
fraternal, se me for permitido o termo; e o resultado dessa batalha
é o próprio conto, uma síntese viva ao mesmo tempo que uma
vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de
um cristal, uma fugacidade numa permanência. Só com imagens
se pode transmitir essa alquimia secreta que explica a profunda
ressonância que um grande conto tem em nós, e que explica
também porque há tão poucos contos verdadeiramente grandes
(CORTÁZAR, 1993, p. 150-151).

A narrativa de Conceição Evaristo penetra o insólito e


ecoa numa dimensão animista por se referir também à cultura
afrodescendente num contexto ocidental. Inguitinha sofre com
o preconceito proveniente de seu nome e deve recomeçar depois
de se apresentar tão forte e destemida, pois, no momento em que
ela desvenda seu segredo e expõe sua natural força advinda de
uma capacidade insólita, sua realidade se transforma. Na história
2, o insólito se sobrepõe na réplica da moça à humilhação que
vem sofrendo durante anos. Toda convicção em sua força fora
transportada para seu corpo até que ela se rebelou contra aqueles

120 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
que lhe faziam mal. Não é possível afirmar uma característica
concreta do realismo animista nesta história, mas é possível
assegurar que não foi surpresa nenhuma para a menina o
acontecimento e, portanto, ela já carregava consigo a consciência
de toda essa força. O conto alega que o nome “graça”, sempre
utilizado nas frases para importunar Inguitinha, vem do uso
habitual dos mais velhos, o que leva à presença da memória e da
ancestralidade.
Em “Teias de aranha”, o menino mais velho precisa ser
persistente no amparo a seus irmãos que, por mais que pareça um
evento cotidiano em que os mais velhos protegem os mais novos,
o realismo animista apresentado através das teias de aranha que
o amparam remete à noção de que ele não está sozinho e a sua
resistência nesses momentos de dificuldades serão amparadas. Ele
é confortado à noite pelos fios tecidos pelas aranhas, isso porque
ele protege os seus e esse papel de protetor que ele exerce por sua
família é uma tradição cultural que, aparentemente, vem sendo
praticada por esta família por gerações. Aqui ele é recompensado
pelo seu sofrimento através de uma manifestação simbólica em
que os fios tecidos pelas aranhas se entrelaçam à força que ele
carrega para poder amparar os mais fracos. Esse aspecto insólito
se faz presente juntamente com uma tradição descendente dos
antepassados, que Wittmann (2012) afirma ser um dos traços que
compõem o realismo animista.
Por fim, no terceiro conto, Davenir carece de aprender
a ser mais humilde para que seu papel na coletividade seja
desempenhado com dedicação, pois ele não é apenas um bom
dançarino, ele representa uma sociedade que fora erguida na luta
contra o preconceito através da ajuda das anciãs. O rapaz perde
suas possibilidades como dançarino por um período indeterminado

121 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
por não se dar conta dos seus deveres e funções para com a
sociedade em que nasceu. As anciãs fazem parte claramente das
características do realismo animista e o insólito que se apresenta
neste conto faz referência ao poder e à importância que elas têm
para dar continuidade de forma íntegra à comunidade, assim como
afirma Rodrigues (2018), concentrando-se no tempo histórico e
transferindo a sabedoria dos antepassados para o presente.
Portanto, nestes três contos, a autora utiliza da ancestralidade,
da tradição cultural transmitida através das gerações e do insólito
para compor o entrelaçamento entre a história 1 e a história 2
que Piglia (2004) afirma ser importante para construir o conto
moderno. O insólito, sempre presente na história 2, realça as
composições culturais afrodescendentes que podem se alinhar
com algumas particularidades herdadas do realismo animista.

Referências

CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática de língua


portuguesa. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2010.

CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: Valise de cronópio.


Trad. Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo:
Perspectiva, 1993.

DAVIES, Ella. A pequena aranha que constrói a maior e a mais forte


teia do mundo. BBC News/Brasil. 3 de dezembro de 2015. Disponível
em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151202_vert_
earth_aranha_teia_maior_domundo_rw. Acesso em: 15 set. 2020.

EVARISTO, Conceição. Histórias de leves enganos e parecenças. Rio de


Janeiro: Malê, 2017.

122 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
EVARISTO, Conceição. Conceição Evaristo por Conceição Evaristo.
Literafro: o portal da literatura afro-brasileira. UFMG: 2009. Disponível
em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-
Evaristo. Acesso em: 09 set. 2020.

LUCAS, Fábio. O conto no Brasil moderno: 1922-1982. In: PROENÇA


FILHO, D. (org.). O livro do seminário: ensaios. São Paulo: L. R. Editores,
1983. p. 103-164.

PIGLIA, Ricardo. Formas breves. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

RODRIGUES, Eni Alves. Considerações sobre o realismo animista a


partir da leitura do conto “A morte do velho Kipacaça”, de Boaventura
Cardoso. Cadernos Cespuc: Realismos, Belo Horizonte, MG: ed. 32, p.
28-34, 14 fev. 2018.

SIQUEIRA JUNIOR, Carlos Leoni Rodrigues; JAIME, Leonardo.


Fotografia. São Paulo: EMI Music Brasil, 1993. Disponível em: https://
www.letras.mus.br/leoni/69309/. Acesso em 21 set. 2020.

WITTMANN, Tábita. O realismo animista presente nos contos africanos


(Angola, Moçambique e Cabo Verde). Orientador: Dra. Jane Fraga Tutikian.
2012. 172 p. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.

123 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 103-123 – jul./dez. 2020
EDUCAÇÃO SOCIAL EM LONDRINA:
PERSPECTIVAS DOS EDUCADORES
SOCIAIS SOBRE SUA PROFISSÃO1

Marcia R. Lemos de Souza2


Verônica Regina Müller3

RESUMO: Este texto analisa a Educação Social em Londrina com foco na


profissionalização do Educador Social que atua nos projetos socioeducativos desta
região. Problematiza a discussão em torno do que pensam estes sujeitos sobre o seu
fazer profissional. A coleta de dados foi feita por meio de pesquisa documental e recurso
de questionário do formulário Google. Trata-se de pesquisa qualitativa com aporte
teórico de Nuñez (1999), Freire (1989) e Bauli (2018). Os resultados apontam para
a necessidade de repensar os processos de formação e atuação destes profissionais, seus
respectivos planos de carreira, bem como suas políticas de contratação e valorização.
PALAVRAS-CHAVE: Formação e Atuação do Educador. Profissionalização do
Educador Social. Educação Social. Políticas Públicas. Trabalho.

ABSTRACT: This text analyze Social Education in Londrina-PR, focusing on


the professionalization of social educators who work in this region’s socio-educational
projects. The project problematizes the discussion about what these subjects matter to
their professional careers. Data collection was done through a documentary search and
questionnaire feature Google Form. This is qualitative research with the theoretical
contribution of Nuñez (1999), Freire (1979), and Bauli (2018). The results point
to the need to rethink the processes of training and performance of these professionals, 
individual career plans, and the policies of hiring and valuing them. 
KEYWORDS: Training and Performance of the Educator. Professionalization of
the Social Educator. Social Education. Public Policy. Work.

1
Este artigo é fruto da investigação da primeira autora orientada pela segunda por ocasião
de seu pós-doutorado no programa de Pós-graduação em Educação da Universidade
Estadual de Maringá em 2019. Fizemos a opção pelo uso da expressão educador social
por questões de fluência na leitura, no entanto, reconhecemos a luta pela linguagem que
inclua todos os gêneros na expressão escrita.
2
Docente da Universidade Estadual de Londrina (UEL/PR)
3
Docente da Universidade Estadual de Maringá (UEM/PR)

125 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
Introdução

Se estivesse claro para nós que foi aprendendo que percebemos ser
possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância
das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas
salas de aula das escolas, nos pátios dos recreios, em que variados
gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se
cruzam cheios de significação. Há uma natureza testemunhal nos
espaços tão lamentavelmente relegados das escolas (Freire, 1996).

A perspectiva de Freire (1996), citada nesta epígrafe, traduz


o reconhecimento de um conceito de Educação enquanto processo
amplo de formação do ser humano, que acontece em todo lugar e
a todo momento, e se efetiva nas relações humanas mediatizadas
pelo mundo. Neste sentido, ele destaca a relação entre ensinar
e aprender, ao afirmar que a clareza quanto ao fato de que nós
humanos somos capazes de aprender leva-nos à percepção de
que é possível ensinar. Desta forma, Freire evidencia os espaços
de formação que se constituem nas diferentes relações humanas
e que muitas vezes são relegados e, portanto, desconsiderados por
cidadãos, instituições e políticas públicas como espaços potenciais
de aprendizagem.
A discussão sobre o tema é tarefa difícil, mas ganha
relevância pelo fato de que aprender o exercício da cidadania e
a lutar por direitos é uma condição da vida humana e da ordem
social. Está presente em diferentes tempos, diferentes áreas do
saber e desenvolve-se de diferentes formas. A necessidade de
sobrevivência evidencia o mundo do trabalho e a necessidade
de formação para seu exercício. Com o Educador Social não é
diferente, porque este profissional (sobretudo em outros países)
tem um papel importante no processo de formação dos sujeitos
em situação de opressão, exclusão e vulnerabilidades sociais.

126 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
Com este texto, temos o objetivo de apresentar aspectos
gerais da Educação Social em Londrina e analisar suas
características, principalmente, a partir da consulta a Educadores
Sociais desta região. A estrutura argumentativa trata dos conceitos
de Educação Social, da oferta de Educação Social em Londrina
e dos resultados da pesquisa de campo, precedidos da explicação
metodológica e subdivididos em aspectos gerais dos participantes
e apresentação das ideias e discussões dos conteúdos trazidos por
eles.

Educação Social: Conceitos

A Educação Social é uma modalidade de Educação e


se constitui como uma forma de contribuir com a formação e
emancipação do sujeito. Surge como possibilidade de promoção,
reconhecimento e defesa e promoção dos direitos humanos.
Segundo Nuñez (1999), a Educação Social é uma intervenção
educativa que age na vida e no contexto dos sujeitos para que
eles se entendam como sujeitos de direitos. Portanto, o trabalho
do Educador Social precisa despertar nele e, por extensão, na
sua categoria, o pensar sobre o que fazem e sobre sua condição
profissional.
O texto da LDBEN 9394/96, no Art. 1º, Título I,
corrobora este conceito ampliado de Educação, pois a concebe
como “atividade que abrange os processos formativos que se
desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho,
nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais,
nas organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”
(BRASIL, 1996). A referida lei, prioritariamente, disciplina sobre

127 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
a Educação Escolar que se desenvolve, predominantemente, por
meio do ensino, em instituições escolares consideradas próprias
e que deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social.
Compreendemos a Educação Social como complementar
à Educação Escolar e o texto da lei contempla o sentido da
Educação Social ao afirmar que a Escola tem por finalidade
preparar os sujeitos para o exercício da cidadania, e também
reconhece como Educação as diferentes atividades de formação
que acontecem em todos os contextos da sociedade.
Nestes espaços se desenvolvem práticas educativas que
partem da realidade do grupo, daquilo que é significativo para as
pessoas que participam destes espaços. São práticas comprometidas
com questões importantes para o próprio grupo; fruto de vivências
sociais que reforçam o contato coletivo e estabelecem vínculos
e laços de afetividade. Evidencia-se a vivência de atividades
lúdicas e provocativas que permitem o movimento, a expansão, o
improviso e a troca de experiências. Neste sentido, a organização
dos processos educativos desenvolvidos nos projetos de Educação
Social é pautada por princípios que são percebidos nas atividades
pedagógicas dos Educadores Sociais e, consequentemente,
revelam sua própria formação (em serviço) e profissionalização
que acontece não descolada da sua atuação.
Defendemos, neste trabalho, que o acesso e a permanência
na Escola Formal se constitui como uma das dimensões do
processo de emancipação do ser humano, considerando o exposto
na lei, bem como as exigências de uma sociedade letrada. É
sobretudo neste sentido que compreendemos a Educação Social
como complementar à Educação Escolar, conforme afirma Nuñez
(2003, p.30):

128 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
[...] la educación social trabaja para que la asistencia de niños
y de adolescentes a las escuelas pueda sostenerse, realizarse y
mantenerse en el tiempo com las mejores posibilidades. Pero
para que ello sea posible, compete a la educación social construir
um vínculo educativo entre el agente y el sujeto de la educación,
esto es, trabajar para que –a partir de la confianza que el agente
deposita en el sujeto, en sus posibilidades y en su responsabilidad–,
se pueda producir un nuevo encuentro del sujeto con el mundo,
abriéndose para aquél um lugar nuevo.

Assim como o texto da LDBEN, Nuñez (2003) nos


mostra que devemos também “construir um vínculo entre os
agentes e sujeitos da educação.” Para a autora, a Educação Social
permite a articulação das diferenças para que essa articulação seja
possível, além do vínculo entre agente e sujeito, um profissional
especializado se faz necessário.
A terminologia utilizada para o que chamamos de Educação
Social muda confome os autores aqui citados. No entanto, as
propostas e objetivos são em geral os mesmos, especialmente
quanto ao compromisso com a emancipação dos sujeitos que
dela precisam. Sobretudo nossa escolha se justifica pela opção
política de compromisso com tais sujeitos que encontra suporte
teórico nos estudos de Freire (1989) e Nuñez (1999), utilizados
com mais frequência nesta pesquisa. Desse modo, Nuñez (2003,
p. 19) nos diz que:

Aquí se puede retomar a los clásicos para insistir en que la escuela


no es coextensiva a la educación. Esta se despliega en diversos
espacios, que pueden ser gestionados, promovidos y reinventados
desde la responsabilidad pública, y redefinidos por los propios
sujetos y agentes de la educación. A esas prácticas es posible
denominarlas educación social.

129 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
Esta autora também defende que a Educação Social é
um termo utilizado pela União Europeia, cujo objetivo é de
caracterizá-la como um conjunto de práticas de ensinos diferentes,
é também possibilitar que essas práticas se tornem visíveis, ou seja,
existente no campo da Educação e na sociedade. A Educação
Social se constitui como uma forma de contribuir com a formação
e emancipação do sujeito e surge como possibilidade de promoção,
reconhecimento e defesa dos direitos humanos. É, portanto, a ação
baseada no reconhecimento e amparo dos direitos humanos, uma
intervenção educativa que age na vida e no contexto dos sujeitos,
conforme afirma Nuñez (1999, p. 26):

Una práctica educativa que opera sobre lo que lo social define


como problema. Es decir, trabaja en territorios de frontera entre lo
que las lógicas económicas y sociales van definiendo en términos
de inclusión/exclusión social, con el fin de paliar o, em su caso,
transformar los efectos segregativos en los sujetos.

Na direção desta autora, as características e respectivos


conceitos sobre o que é a Educação Social no contexto brasileiro
podem ser encontrados em diferentes estudos que tratam do
tema. Atribuímos destaque para as pesquisas de Natali (2016),
Rodrigues (2014) Souza (2010, 2016), Bauli (2018), Muller
(2002, 2012, 2016), realizadas no contexto do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá
(UEM).

130 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
A Oferta de Educação Social em Londrina

Apresentar o serviço que o município de Londrina oferta


na área de Educação Social implica em identificar em que termos
o Educador Social é requisitado, valorizado e respeitado nas
ofertas de responsabilidade do poder público e de entidades da
sociedade civil.
Londrina é um polo de desenvolvimento que liga o
Sul ao Sudeste do país e está localizada na Região Sul do Brasil,
mais especificamente no norte do Paraná. Com uma população
estimada em torno de 570 mil habitantes4, é considerada a segunda
cidade mais populosa do estado e a quarta da Região Sul.
Antes mesmo da colonização extensiva do Norte do Paraná,
havia, entre seus habitantes, além dos índios Caingangues, uma
população pobre instalada na floresta e que já derrubara parte dela
para a criação de animais e o plantio de produtos agrícolas para
sua sobrevivência. Ao lado de pessoas nessa situação, na década
de 1920, havia ricos proprietários de terras, que já iniciavam a
abertura e formação de grandes fazendas.
A Companhia de Terras Norte do Paraná foi um tipo de
loteadora que, após comprar terras, derrubou parte da floresta,
abriu estradas e organizou a divisão desse espaço em lotes urbanos
e rurais, que foram vendidos. No processo de expansão da cidade,
em muito pouco tempo, nas décadas de 1950 e 1960, Londrina
obteve um desenvolvimento econômico impressionante, sobretudo
pelo plantio de café.
Os fazendeiros, proprietários de grandes extensões de terra,
construíram casarões e ficaram conhecidos como os “Barões do
Café”, e os grãos do café eram conhecidos como “Ouro Verde”.

4
Fonte: «estimativa_dou_2019.xls». ibge.gov.br. Consultado em 28 de agosto de 2019

131 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
No entanto, em 1975, houve uma grande geada, que atingiu todo o
norte do Paraná, arruinando as plantações de café. Alguns iniciaram
novamente o trabalho com café, enquanto outros investiram em
outros negócios. Londrina perdeu o posto de grande produtor de
café, mas já tinha desenvolvido um crescimento urbano razoável
com indústrias, universidades e prestação de serviços.
Quanto à composição étnica da cidade, os grupos
imigratórios de Londrina reconhecidos são italianos, portugueses,
japoneses, alemães e espanhóis. Outros grupos considerados
menores são os árabes, judeus, britânicos, chineses, argentinos,
holandeses, poloneses, ucranianos, tchecos e húngaros. Portanto,
a literatura, ao falar da etnia da cidade, reconhece os grupos de
outros países e, particularmente, as pessoas de outras regiões e
estados do país que se deslocaram são silenciadas, especialmente
os da região norte e nordeste.
Os dados refletem um desafio vivenciado na cidade que
diz respeito a uma cultura considerada majoritária e dominante
e o silenciamento de uma cultura considerada inferior, que, no
entanto, constitui parcela significativa dos trabalhadores de
Londrina, inclusive de pessoas que precisam dos serviços públicos
muitas vezes negligenciados pelo estado e procurados em projetos
socioeducativos.
Com o tema da religião não é diferente, a literatura afirma
que em Londrina encontram-se templos de diversos credos e
religiões, entre eles: budistas, muçulmanos, católicos, evangélicos e
espíritas (XAVIER, 2003). A mesma visibilidade não observamos
nos grupos de matriz africana, que são muitos na cidade (SILVA;
LANZA, 2019). Nesta mesma perspectiva da etnia, percebemos
certo silenciamento na literatura que se traduz na forma como
estes grupos são tratados e assistidos pelo poder público no

132 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
contexto trabalhado. Por outro lado, também percebemos um
processo de resistência destes grupos que insistem em ganhar
visibilidade através da organização de associações e movimentos
sociais, que na sua dinâmica são potenciais campos de ação da
Educação Social, a exemplo das oficinas de capoeira e outras
atividades de matriz africana.
Quanto à Educação Formal, Londrina se destaca pela
elevada e qualificada oferta de serviços nesta área, sendo referência
regional e ponto de convergência para a Educação Básica e
Superior. A Rede Municipal de Educação possui 120 unidades
(74 escolas urbanas, 13 escolas rurais, 33 Centros Municipais de
Educação Infantil, 52 Centros de Educação Infantil, 41 Centros
de Educação de Jovens e Adultos, 07 Escolas de Educação
Especial). A Rede Estadual é composta por 73 escolas e colégios.
O Ensino Superior oferta mais de 120 cursos de graduação e
240 de pós-graduação, incluindo mestrados e doutorados. Apesar
desta configuração, ainda merecem destaque e atenção os índices
que apontamos a seguir:

[...] os índices relativos ao analfabetismo (cuja taxa, segundo


o IBGE/Censo 2010, apud IPARDES, é de 4,51%) e evasão
escolar no Município, tendo em vista que, segundo o Atlas do
Desenvolvimento Humano no Brasil, o indicador expectativa
de anos de estudo [...] mostra que Londrina conta com 56%
das crianças de 0 a 5 anos e 2,66% das crianças e adolescentes
de 6 a 14 anos fora da escola. Dados do IPARDES/2016,
apud publicação “Informações Municipais para Planejamento
Institucional” do Ministério Público do Estado do Paraná,
2018, indicam que as taxas de abandono escolar em Londrina
são de 0,1% nas séries iniciais do ensino fundamental, passando
a 1,6% nas séries finais e a 4% no ensino médio. A realidade do
público potencialmente usuário da política de assistência social
no Município é ainda delicada, pois dados extraídos do IRSAS

133 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
em agosto de 2018 demonstram que, do total de 46.984 crianças
e adolescentes em idade escolar com algum registro nesse sistema
nos últimos 5 anos, 8.285, ou seja 17,63%, possuem no campo
de identificação a informação “não estuda” (LONDRINA, 2018,
p. 37).

Estes dados são relevantes e têm impacto sobre a temática


da pesquisa, considerando que a maioria dos projetos sociais de
Londrina tem como premissa para participação a exigência de que
as crianças e adolescente estejam frequentando a Escola Formal,
portanto cabe ao Educador Social, enquanto agente mediador
deste processo conhecer a realidade do contexto no qual trabalha.5

A Trilha Metodológica

Quanto à metodologia, desenvolvemos pesquisa de campo


e a coleta dos dados envolveu: 1. Pesquisa documental e entrevista
com gestores de algumas Secretarias e respectivos Conselhos do
Município de Londrina com o objetivo de analisar a conjuntura
de constituição da história e da política desta área nesta região nos
últimos anos; 2. Levantamento via internet das instituições que
ofertam a modalidade de Educação Social e respectivos serviços;
3. Identificação dos Educadores Sociais que nelas atuam usando
recurso de questionário, entrevista, observação e registro em diário
de campo. Optamos, porém, por seguir a trilha teórica deixada pelo
pesquisador Regis Bauli (2018), tendo como lócus de investigação
o município de Londrina. Sendo assim, nos ocupamos a princípio
de identificar e ler o levantamento bibliográfico feito por ele,
conforme segue.

5
No relatório da pesquisa, elencamos entidades e instituições de Londrina que ofertam
diferentes projetos com recursos e responsabilidade do poder público, de ONGs, iniciativa
privada e filantrópicas.

134 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
Os locais consultados foram: banco de periódicos, dissertações
e teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES), Google Acadêmico, Portal Scientific
Electronic Library Online (Scielo); portal eletrônico da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
(ANPEd) e Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e
Tecnologia (IBICT) (p. 21).

Diante do que constatamos com tal pesquisador,


organizamos um questionário com perguntas sobre o tema,
reunidas em quatro eixos (dados pessoais, formação, atuação e
normatização), via online (facebook, Messenger, whatsapp e email)
para diferentes pessoas e diferentes instituições. Laurence Bardin
(1977), com sua análise de conteúdo, foi a autora utilizada para
a organização das categorias encontradas.
O questionário foi endereçado a Educadores Sociais,
no entanto, identificamos a dificuldade de entendimento que as
pessoas têm sobre o que é Educação Social, e mais ainda sobre
quem é o Educador Social. À medida que questões como essas
foram aparecendo, retornamos à trilha teórica desenvolvida
por Bauli (2018, p.19), quando ele observa sobre critérios para
organização das perguntas do questionário.

Quando tratamos do Educador Social no mercado de trabalho


nacional, diante do volume de informações e dados, separamos
em duas abordagens distintas: inicialmente, o profissional do setor
público, pertencente ao primeiro setor socioeconômico e, depois,
o profissional do setor privado e organizações não governamentais
[...] referenciando o nível de formação exigido, carga horária,
previsão salarial e atribuições indicados nas amostras consultadas.

O segundo procedimento foi reorganizar as perguntas,


sem seguir literalmente os critérios estabelecidos na citação de

135 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
Bauli (2018). Priorizamos o atendimento das demandas locais
dos sujeitos envolvidos no envio e retorno do questionário em
Londrina. Decidimos retirar o caráter obrigatório de algumas
perguntas e o critério de que apenas Educadores Sociais o
respondessem, o que resultou no aumento do número de respostas
que identificamos como significativas para o que queríamos
saber. Ainda assim, os questionários foram chegando lentamente.
Um terceiro procedimento foi o de esclarecer as dúvidas que os
sujeitos nos mandavam, o que foi feito em encontros presenciais
que acabaram se caracterizando como entrevistas com anotação
em diário de campo. Mas também trilhamos este caminho pelas
redes sociais em ambiente privado .
Em síntese, na coleta dos dados fizemos pesquisa
documental, entrevista com gestores e coordenadores com o
objetivo de analisar a história e a política desta área nesta região
nos últimos anos, levantamento via internet das instituições que
ofertam esta modalidade educativa e respectivos serviços; e a
identificação dos Educadores Sociais que nelas atuam usando
recurso de questionário, entrevista, observação e registro em
diário de campo.

Os/as Educadores/as Sociais em Londrina e Profissão:


características gerais e opiniões

Ao todo foram respondidos 43 questionários. As pessoas


que responderam a nossos questionamentos têm idade entre
22 e 65 anos, dos quais 13 são homens, 29 são mulheres e 2
são LGBTi. Destes, 25 são naturais de outros municípios do
Paraná, e 18 de outros estados do Brasil, contudo todos moram e

136 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
trabalham em Londrina. Quanto à função que desempenham ou
já desempenharam, são 12 Educadores Sociais, 3 Orientadores
Sociais, 1 Pedagogo, 2 Assistentes Sociais, 5 Gestores Pedagógicos,
4 Gestores Administrativos, 1 Diretor de Unidade, 1 Mãe Social, 1
Coordenadora SFV, 1 Professora e Diretora Geral, 1 Conselheira,
1 Pesquisadora, 1 Auxiliar Educativo, 1 Coordenadora e 2
Oficineiros.
Quanto à formação dos sujeitos desta pesquisa, identificamos
4 pessoas com formação em doutorado, 14 com formação em
mestrado, 28 com especialização, 39 pessoas com Ensino Superior,
42 com Ensino Médio e todos com Ensino Fundamental
concluido.
No que se refere à população atendida por estes profissionais,
a maioria são crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade
social, alguns inclusive cumprindo medida socioeducativa. Ao
pedirmos para que estes profissionais marcassem por ordem de
importância as dificuldades encontradas por eles na instituição
que trabalharam ou trabalham atualmente, a dificuldade com o
público-alvo aparece em terceiro lugar, perdendo apenas para
os baixos salários e a violência no local de trabalho. A maioria
dos participantes trabalha ou trabalhou em instiuições não
governamentais (26 pessoas, 72,2 %) e a minoria em instituições
governamentais (11 pessoas, 30,6 %).
Quanto à Formação, quando perguntamos aos sujeitos se
fariam e/ou gostariam de cursar uma graduação em Educação
Social, obtivemos 43 (quarenta e três) respostas e a maioria (29
sujeitos que equivale a 67,4 %) respondeu que sim com as seguintes
justificativas:

137 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
Já tenho formação superior mas gostaria de atuar na área - é
uma área de atuação muito complexa e importante, que carece
de uma formação mais aprofundada - Para aprofundar meus
conhecimentos na área - Para ampliar o conhecimento e qualificar
a atuação que já realizo - Para subsídio em meu trabalho e por
mais conhecimento - Seria um ótimo complemento a minha
área de atuação que é a Educação Física - Por ser relevante
para função que ocupo - Para complementar minha formação e
aperfeiçoar meu trabalho como educadora social - Compreender
com especificidade o perfil e área de atuação deste profissional -
Trabalho na área social e gosto - Ampliação de conhecimento na
área - Porque complementaria minha formação em Serviço Social
- Em todas as áreas que atuo existem aplicações para a Educação
Social: unidades de acolhimento institucional, abordagem de
pessoas em situação de rua, unidades de acolhimento para adultos.

As pessoas que responderam negativamente a esta questão


justificaram o seguinte:

Faria se não tivesse formação de ensino superior compatível com


a educação social - Já aposentei - Não tenho aptidão - Falta de
vocação - Não tenho perfil profissional - Não tenho interesse
- Não me encaixo em nenhuma graduação das que já existem,
além do que o Educador Social precisa de conhecimentos que vão
além da pedagogia, é preciso estar preparado para o que iremos
enfrentar, e muitas vezes são crianças em situação de risco.

Ao serem questionados se faziam formação continuada na


área de Educação Social, 15 pessoas responderam negativamente
e 28 pessoas afirmaram que sim. Estas últimas revelaram que
faziam leitura, participação em grupo de estudo ou pesquisa,
viagens, experiências e/ou vivências de cunho prático, cursos de
extensão, pela Internet. Contudo constatamos que a maioria dos
sujeitos apontou “as experiências de cunho prático” como as mais
significativas no processo de formação continuada.

138 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
Considerando os dados apontados nesta pesquisa, nos
referimos ao Educador Social não como uma ocupação e sim
como uma profissão, conforme indica Bauli (2018):

O profissional que desenvolve a Educação Social no Brasil já tem


reconhecimento no contexto social. Sua atividade é organizada,
existe um conjunto de atribuições que lhe são inerentes. Para
exercício dela são necessários conhecimentos e técnicas que o
capacitem para seu desenvolvimento. Portanto, Educador Social
é uma profissão, a qual, frise-se, carece de normatização (p. 47).

Bauli (2018) situa o Educador Social na Classificação


Brasileira de Ocupações (CBO). Esta é uma sistematização
técnica elaborada pela Secretaria de Políticas Públicas de Emprego
(SPPE) do Ministério do Trabalho, que reconhece, nomeia,
codifica os títulos e descreve as características das ocupações do
mercado de trabalho brasileiro.

O Educador Social passou a integrar a CBO em 21/01/2009.


O ideário da CBO é a Classificação Internacional Uniforme
de Ocupações (CIOU), divulgada em 1968, pela Organização
Internacional do Trabalho (OIT), vinculada à Organização das
Nações Unidas (ONU). A estrutura base do texto vigente foi
elaborada em 1977 e sua atualização compete ao Ministério do
Trabalho, por força das Portarias n. 3.654 de 24/11/1977, 1.334
de 21/12/1994 e 397 de 09/10/200279 (p. 53).

Achamos relevante destacar a explicação que o citado


pesquisador apresenta sobre as semelhanças e diferenças entre o
que é uma ocupação e o que é uma profissão.

Ocupação significa uma atividade, serviço, trabalho intelectual


ou manual que é desenvolvida por uma pessoa. É o que ela faz
no dia-a-dia. Profissão é uma habilitação que se tem a partir de

139 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
conhecimentos adquiridos, que possibilita o exercício de uma
atividade, que pode ou não ser a ocupação dessa pessoa. Um
profissional pode, portanto, se ocupar de atividades diferentes
da sua área de formação profissional (p. 46).

Neste sentido, inferimos na realidade atual afirmando


que muitos Educadores Sociais têm suas profissões como
“ocupações”, tanto no sentido das atividades que desenvolvem
quanto no sentido da valorização que a sociedade e o poder
público dispensam a estes profissionais. Um fator que materializa
esta realidade é a ideologia do voluntariado, quando justifica que
diferentes profissionais podem exercer tal atividade, ainda que
não estejam habilitados para tal.
A propósito da prática do Educador Social ser uma
atividade desenvolvida em muitos espaços, em diferentes relações
humanas, de diferentes formas, Bauli (2018, p.15, 16) afirma que
muitas pessoas sequer ouviram falar deste profissional em nosso
país.

O desconhecimento sobre o profissional e sua atividade se repetiu


quando suscitamos junto a vários colegas de cátedra a existência
do Educador Social e, igualmente, os questionamentos foram
os semelhantes: quem é esse profissional? O que ele faz? Com
quem e onde ele trabalha? [...] três aspectos causaram-nos grande
inquietação motivadora: a) o grau de desconhecimento pela
população de uma atividade tão importante; b) a morosidade no
trâmite da proposta legislativa de regulamentação da profissão;
c) o grau de dissenso entre profissionais, pesquisadores e
interessados em relação aos direitos e deveres que estariam sendo
normatizados.

A normatização da profissão de Educador Social vem sendo


discutida por meio de dois Projetos de Lei, o PL 5.346/2009 e o

140 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
PL 328/2015, e Bauli (2018) alude ao Dicionário da Educação
Profissional para explicar como ocorre a profissionalização de
uma atividade:

As atividades se profissionalizam à medida de sua organização


e das relações que estabelecem com o Estado e a Sociedade. A
profissionalização é um processo de construção social e ocorre
em contextos socioeconômicos diversos. Resulta de construtos
mentais, mas sobretudo de lutas políticas e ideológicas. Depende
do sistema social e das definições que esse sistema faz dos papeis
sociais. No processo de profissionalização, a imagem social da
categoria dos profissionais é construída, moldando aspectos da
organização e da prática profissional. Nesse movimento, ocorre
também a assimilação do meio profissional pelas instituições
que o representam (FIDALGO; MACHADO apud BAULI,
2018, p. 46)

Seguindo tal perspectiva, no contexto de Londrina,


encontramos demandas semelhantes, pois logo de início quando
entrevistamos os sujeitos sobre o tema e indicamos o desejo de
que respondessem ao questionário, as perguntas que mais ouvimos
foram: mas será que eu me encaixo neste questionário? Eu sou
um Educador Social? O que faz um Educador Social?
Na nossa pesquisa, perguntamos aos sujeitos se tinham
conhecimento dos projetos legislativos que visam regulamentar
a profissão de Educador Social. Dos 43 entrevistados, 38
responderam que não tinham conhecimento e 5 responderam
afirmativamente, que tinham conhecimento da existência de
tais leis, no entanto apenas 2 pessoas citaram a lei, ainda assim
uma pessoa falou apenas do Projeto de Lei 328/2015 e uma
outra pessoa falou dos dois PLs. Estes dados são significativos
e demonstram que a ignorância sobre a legislação dificulta a
mobilização destes profissionais no sentido de pressionar o poder

141 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
público para a aprovação do Projeto, o que consequentemente
desvaloriza o profissional bem como seu trabalho.
Ao questionarmos o fazer do Educador Social e implicações
com o critério necessário para normatizar e regulamentar a
profissão, esclarecemos que o PL 5.346/2009 propõe como
escolaridade mínima apenas o Ensino Médio, conforme consta em
Parágrafo único: “Fica estabelecido o Ensino Médio como o nível de
escolarização mínima para o exercício desta profissão”. Nestes termos,
nos posicionamos contrários a este PL, e para tanto justificamos
que o Educador Social trabalha com pessoas e com alto grau de
comprexidade, o que exige excelente formação.
Quanto à indagação sobre a formação necessária para a
função de Educação Social, em porcentagem, 46,5 % responderam
“Ensino Superior Específico (Graduação em Educação Social),
26,6 % responderam “Ensino Superior”, 11,6 % responderam
“Ensino Médio Profissionalizante” e 9,3 % “Apenas o Ensino
Médio”. Observamos, nas investigações de Bauli (2018), que vários
editais de seleção no Brasil pedem como critério de formação
somente o Ensino Médio e alguns apenas o Ensino Fundamental.
Com o propósito de compararmos a realidade com aquilo
que prevê a legislação, pedimos que os sujeitos apontassem pelo
menos 3 aspectos positivos da profissão do Educador Social, os
quais responderam:

Possibilidades de conhecer a realidade das instituições


socioeducativa - Capacidade de transformar realidades, ampla
possibilidade na realização de atividades e incentivo na criação
de vínculo com as crianças – transformador pois intervém nos
problemas e auxilia pessoas em situação de risco - A profissão
do educador social é fundamental para o trabalho na educação,
dentro e fora das escolas, bem como, possibilitar aos seus
profissionais competências e pesquisas para fundamentar suas

142 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
ações – ajuda no processo de humanização – tem compromisso
político e compromisso com a mudança social - Ensinar,
orientar e conscientizar as pessoas no processo de aprendizado
– Potencial de transformação. Movimento histórico que busca
a emancipação dos trabalhadores, das pessoas que vivem as
expressões da desigualdade social e econômica - Vínculo, empatia
e a possibilidade de mudar os olhares diante das vulnerabilidades
encontradas e sair dessa condição oportunizando a criança
e adolescente a buscar a realização de seus objetivos de vida
- Propiciar momentos de interação social dentro do bairro,
Interação com as crianças e adolescentes - Ajudar na formação
cidadã de crianças e adolescentes, sendo uma referência positiva
na vida de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade,
sensibilizando-os a se ver como detentores de direitos, deveres e a
escolher o seu próprio caminho - Aprende quando ensina, amor
no que faz, luta por direitos - Contribuição para melhor qualidade
de vida do público atendido - Dinamismo frente ao atendimento
dos educandos - Formação humana dos educandos, Potencializar
os sonhos de melhoria contínua dos educandos - Transformar
o contexto social - trabalho com presidiários, trabalho com
jovens em internação - oportunidade de crescimento pessoal
– Motivação através da experiência; Senso de responsabilidade
social; Interação direta com o público-alvo - Público que atende,
trabalho social, contribuição na vida de outros - Busca conhecer a
realidade social; atua com público e comunidades vulneráveis; tem
por objetivo a promoção da dignidade da pessoa humana; conhece
a rede de serviços da sua comunidade; articula e fomenta a rede
de serviços; colabora para a construção das políticas públicas;
Essencial para a execução de projetos sociais governamentais e
não governamentais - Vínculo mais próximo com os familiares
- Amar seu público, conhecer o contexto que veio esse educando
- Trabalho em equipe - Respeito à realidade.

As respostas foram muitas e diversas. Bauli (2018)


referencia que o exercício ocorre em locais públicos (rua) ou em
instituições, sendo as atividades exercidas com alguma forma de

143 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
supervisão, geralmente em equipes multidisciplinares. Os horários
de trabalho são variados, podendo ser integral, com revezamento
de turno ou períodos determinados.

Aponta a Classificação Brasileira de Ocupações que os


trabalhadores desta Família lidam diariamente com situações
de risco, assistindo pessoas em situação de vulnerabilidade, com
alteração comportamental e que podem ter atitudes agressivas
[...] No site do Ministério do Trabalho, acessando a CBO, é
possível obter um relatório por Família Ocupacional, que aponta a
relação de todas as atividades que o Educador Social e os demais
profissionais da Família 5153 tem por incumbência desenvolver,
a seguir abordada. Essa descrição é importante para se conhecer
o perfil do Profissional Educador Social para aludido mistério.
A CBO define nove linhas gerais de atuação que, por sua vez,
apresentam ações específicas passíveis de desenvolvimento
pelos profissionais da Família, sendo elas: A) Desenvolver ações
para garantir direitos dos assistidos, usuários e educandos; B)
Sensibilizar assistidos, usuários; C) Identificar necessidades
e demandas; D) Abordar assistidos/usuários/educandos; E)
Desenvolver atividades socioeducativas; F) Planejar trabalho; G)
Avaliar processo de trabalho; Y) Comunicar-se; Z) Demonstrar
competências pessoais. Em cada linha geral de atuação, estão
apontadas as ações específicas passíveis de desenvolvimento pelos
profissionais da Família em que estão inseridos o Educador Social
e demais afins (Agente de Ação Social, Monitor de Dependente
Químico, Conselheiro Tutelar, Socioeducador e Monitor de
ressocialização prisional) (p. 62,63).

Na sequência, pedimos que os sujeitos marcassem por


ordem de importância as dificuldades encontradas nas instituições
que trabalharam ou ainda trabalham atualmente. De todos os
motivos apontados, destacamos os 6 (seis) mais expressivos porque
apontados pelos sujeitos por ordem de importância, quais sejam:
baixos salários 41,6 %, falta de formação adequada às demandas da

144 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
profissão 42,6 %, estrutura física 24,2 %, falta de regulamento da
profissão 18,2 %, violência no local de trabalho 15,5, falta de políticas
públicas 15,2 %. Estes dados corroboram o que Bauli (2018) diz
a respeito das atividades a serem desenvolvidas pelos Educadores
Sociais, conforme segue:

O profissional Educador Social deve receber informações


sobre violação de direitos, dialogar e observar necessidades
de assistidos/usuários/educandos, estabelecer contatos com
familiares e vizinhança, levantar dados estatísticos, pesquisar
histórico familiar e, também, monitorar comportamentos. A
CBO promove a distinção quanto à “denúncia” e “informações”
sobre violações. As primeiras devem ser concentradas nas pessoas
do Conselheiro Tutelar e do Socioeducador. O Educador Social
é destinatário apenas de informações sobre violações de direitos.
Considerando a especificidade das atividades, são resguardadas
aos Monitores de Dependentes Químicos a avaliação quanto
à adesão ao tratamento, bem como, aos Socioeducadores a
participação na elaboração do diagnóstico polidimensional e
avaliação da adesão à medida socioeducativa. Abordar assistidos,
usuários e educandos (Bauli, 2018, p. 66).

No contexto de Londrina, questionamos os sujeitos sobre


qual era ou é a função e/ou cargo na instituição em que atuaram
ou atuam, e observamos que eles exerceram diferentes funções.
A maioria era de Educadores Sociais (31,6 %) e um número
considerável de funções correlatas ao de Educadores Sociais
como “Mães Sociais”, “Instrutores”, “Agente Social” e “Orientador
Social”, em uma porcentagem de 2,6 %; 2,6 %; 13,2 %; 7,9 %,
respectivamente.
Quanto à remuneração destes profissionais, os dados
revelam que dos 43 entrevistados, 17,3% ganham menos de um
salário mínimo, 22,9% ganham em torno de um salário mínimo,

145 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
37,1% ganham mais de um salário mínimo, 11,4 % ganham
mais de dois salários mínimos, 11,4 ganham mais de três salários
mínimos e 11,4 % ganham mais de 5 salários mínimos. Aqueles
que indicam os menores salários são justamente os evidenciados
no parágrafo acima.
Observamos no contexto de Londrina (o que não é
muito diferente em outros lugares de onde se localizam os
respondentes) certa contradição com a valorização do fazer
deste profissional, visto que a profissão não é normatizada no
Brasil o que consequentemente dificulta, e muito, o acesso aos
direitos trabalhistas, como salários compatíveis com a função
que desenvolvem, inclusive compatível com o salário dos demais
profissionais, já que trabalham em equipe.
Referente à profissionalização, questionamos os sujeitos
desta pesquisa se achavam importante a existência de uma
associação e/ou sindicato de Educadores Sociais e por quê? A
maioria concorda com a existência de uma entidade e para tanto
justificam o seguinte:

Para garantia de direitos – porque é uma área bastante


desassistida – porque é importante para representação de classe,
troca de experiências e busca por melhorias – porque faz-se
necessário cuidar melhor dos profissionais que atuam nessa área,
em todos os sentidos - Para defender os interesses da categoria
- Para defender os direitos dos educadores – Trata-se de uma
categoria de trabalhadores. Essa característica já prerroga a
organização sindical que tem por responsabilidade representar os
interesses dos trabalhadores junto aos empregadores do educador
social - Porque a classe trabalhadora precisa estar coletivamente
organizada - Para que tenhamos representatividade e garantia
da manutenção saudável e justa de nosso trabalho em suas
especificidades, assim como também melhor direcionamento
acerca de nossos deveres e direitos - pois um sindicato é a

146 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
expressão de uma categoria de trabalhadores minimamente
organizada que criou um órgão para a promoção e defesa dos
seus direitos.

Os resultados evidenciam certa maturidade, demonstrando


por parte dos sujeitos a necessidade de organização de uma
associação que agregue tais profissionais, sobretudo para garantia
de direitos, entre eles a mobilização em torno da normatização
da profissão.
Quanto à existência de uma entidade associativa em
Londrina, os dados revelam que 65,1 % dizem que não sabem, 23,3
% responderam categoricamente que não existe tal entidade e 11,6
responderam categoricamente que existe. Diante das respostas
afirmativas, ainda perguntamos qual é a referida entidade, ao que
responderam “SENALBA”.
Diante dos dados fomos pesquisar a natureza do
SENALBA6 (Sindicato dos Empregados em Entidades Culturais
Recreativas, de Assistência Social, de Orientação e Formação
Profissional) que reúne Congregações, Irmandades ou Institutos
Religiosos e Mitras Diocesanas e de Cunho Assistencial, Apae’s
e Casas de Assistência aos Deficientes Físicos, Casa Lares,
Geriatrias ou Asilo de Velhice, Clube de Mães, Casa de Retiro
e Lojas Maçônicas, Associações de Pais e Mestres, Associações
Comercial e Industrial, Associação de qualquer Natureza.
O SENALBA não se caracteriza como uma associação ou
sindicato que busca a garantia dos direitos dos Educadores Sociais,
bem como sua mobilização enquanto classe de trabalhadores,
conforme exposto nos depoimentos acima citados. A natureza
do SENALBA consiste na organização e oferta de atividades
recreativas e de lazer.

6
VER: http://senalbalondrina.com.br/

147 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
Os dados aqui expostos apontam para a necessidade de
um olhar mais apurado para os desafios vivenciados na Educação
Social que se desenvolve no contexto de Londrina. Tal olhar
é extensivo aos Educadores Sociais enquanto profissionais
da Educação e torna-se apurado à medida que abarca as
problemáticas tanto do processo de atuação, quanto do processo
de formação destes sujeitos.
Em seus estudos desenvolvidos sobre a Educação Social
no Brasil, Natali (2016) identifica três problemáticas que cercam
a área atualmente:

a) a invisibilidade da área nas proposições acadêmicas, em


instâncias de discussão e produção científica, que ainda são
incipientes; b) a falta de conhecimento da sociedade em geral
sobre os meandros da área, e também à falta da construção e da
presença de um olhar positivo sobre a atuação do voluntariado, o
que distancia a população em geral da preeminência da formação
profissional na área; c) insatisfação da maioria dos profissionais
com o cenário formativo atual na área da Educação Social e, na
sequência, já relaciona as seguintes providências que entende
como soluções: Organização coletiva de educadores sociais em
associações, redes e movimentos sociais; ações dos profissionais
e de seus grupos organizados em espaços políticos e instâncias
institucionalizadas, buscando fomentar os debates em torno da
possível regulamentação da profissão e constituição da área; ações
potencializadoras da Educação Social por meio de debates e da
produção e divulgação de trabalhos científicos e livros em espaços
acadêmicos ou não (p. 177, 178).

O texto da pesquisadora corrobora os dados apresentados


na nossa pesquisa, indicando que, ao refletirem sobre o seu fazer
profissional, os Educadores Sociais de Londrina apontam lacunas
existentes no próprio processo de atuação e formação. Por outro
lado, estes sujeitos também indicam possíveis caminhos a serem

148 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
trilhados para o reconhecimento, a valorização e o respeito destes
trabalhadores.

Reflexões a modo de conclusão

Entendemos que a realidade identificada nos dados da


nossa pesquisa demanda a criação de uma trilha constituída de
muitos caminhos que se bifurcam, entre eles, citamos a necessidade
da Academia se envolver com esta questão e buscar por meio da
pesquisa, do ensino e da extensão conscientizar a comunidade
da importância desta área de atuação, no caso a Educação Social,
e sobretudo ressaltar a importância da atuação dos Educadores
Sociais. Sobre este aspecto, o PL 328/2015, que regulamenta a
profissão de Educador Social, cita como justificativa para sua
aprovação o movimento feito por um grupo de pesquisadores,
docentes e militantes da cidade de Maringá, no Paraná:

No período de 24 a 26 de maio de 2015, a cidade de Maringá,


Paraná, sediou o II Congresso Internacional de Pesquisadores
e Profissionais de Educação Social e XIII Semana da Criança
Cidadã de Maringá 2015 – Tema: Educação Social: valorização
da infância. Naquele evento foram divulgadas as ações dos
educadores sociais em diversos países como Bolívia e Senegal,
ali representados, bem como os trabalhos desenvolvidos por
educadores sociais brasileiros […] do Programa Multidisciplinar
de Estudo, Pesquisa e Defesa da Criança e do Adolescente
(PCA).

Como estamos falando da cidade de Londrina, não


identificamos nela um movimento equivalente, no entanto a
Universidade Estadual de Londrina, mais especificamente o Curso

149 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
de Pedagogia, vem ao longo de mais ou menos uma década criando
espaços de formação e atuação sobre esta temática, usando para
tanto a terminologia “Educação Não Formal”.
Freire (1996) faz considerações sobre os saberes que
julga indispensáveis para a tarefa de educar e diz que “ensinar,
exige rigorosidade metódica”. Para ele, um dos trabalhos da
universidade é fornecer subsídios teóricos para que educadores
e educandos, em diálogo, construam a própria prática educativa.
Tal rigorosidade está relacionada com a capacidade de buscar
maiores aprofundamentos, um comprometimento com os menos
favorecidos por meio de formação e informação permanentes, de
dar encaminhamento às ações educativas nesta área a partir da
reflexão constante.
Durante o tempo desta pesquisa, observamos como o
processo de conscientização da comunidade sobre a importância
desta área de atuação funcionou, pois, ao mesmo tempo que
desenvolvíamos o levantamento de dados, éramos questionados
de diversas maneiras e com diferentes questões sobre a Educação
Social e a atuação do Educador Social, desta forma, esclarecíamos
desde a caracterização do profissional até sua importância e a
necessidade de um olhar mais apurado para esta temática. Deste
processo surgiu, por parte de algumas instituições, o desejo e
convite para que desenvolvêssemos e ofertássemos cursos de
formação para os Educadores em serviço, de forma que fossem
envolvidos também todos os profissionais que trabalham na
instituição.
Quando falamos da necessidade da criação de uma trilha
constituída de muitos caminhos que se bifurcam, observamos
a necessidade, no contexto de Londrina, de uma associação
ou sindicato que agregue os profissionais da Educação Social,

150 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
especialmente o Educador. O sindicato só é possível uma vez
que a profissão esteja normatizada. Mas uma associação pode ser
organizada, se houver interesse e mobilização destes profissionais
e durante esta pesquisa observamos tal interesse.
A falta de normatização também deixa a desejar o
desenvolvimento e a obrigatoriedade de uma formação que
capacite o profissional para a atuação prevista no texto da lei,
conforme consta no CBO. Tal situação, de alguma forma, causa
certo conformismo por parte dos profissionais, que por sua vez
não buscam uma formação de nível superior, ou mesmo uma
pós-graduação, já que estas não são contempladas no plano de
carreira. Mais comprometedor é a possibilidade de uma legislação
ser aprovada com exigência mínima de formação, que não
atende a complexidade do trabalho que os Educadores Sociais
desenvolvem. Por isso, ressaltamos a importância da aprovação
do PL 4921/2019 que prevê o Ensino Superior como formação
mínima para este profissional no Brasil.

Referências

BARDIN Laurence. Análise de Conteúdo. Trad. Luís Antero Reto e


Augusto Pinheiro (Trad.). Lisboa: Edições 70, 1977.

BAULI, Régis Alan. Educador Social no Brasil: Profissionalização e


Normatização. 315 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade
Estadual de Maringá. Orientadora: Prof. Dra. Verônica Regina Müller.
Maringá, 2018.

BRASIL. Lei n. 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece


diretrizes e bases da educação nacional. LEX: Coletânea de Legislação
e Jurisprudência, São Paulo, v. 60, p. 3719-3739, dez. 1996.

151 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
FREIRE, Paulo. Educadores de rua: uma abordagem crítica. Alternativas
de atendimentos aos meninos de rua. Bogotá: Gente Nueva. 1989.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. São Paulo: Paz e Terra. 1996.

LONDRINA. Plano Municipal de Assistência Social 2018-2021.


Prefeitura do Município de Londrina/ Secretaria Municipal de
Assistência Social, Londrina, 2018.

MÜLLER, Verônica Regina; RODRIGUES, Patrícia Cruzelino.


Reflexões de quem navega na Educação Social: uma viagem com
crianças e adolescentes. Maringá: Clichetec, 2002.

MÜLLER, Verônica Regina. Participação Social e a Formação Política:


territórios a desbravar. Dynamo Internacional Street Workers Network.
Bruxelas – Bélgica. 2012.

MULER, Verônica Regina. Pedagogia Social e Educação Social:


reflexões sobre as práticas educativas no Brasil, Uruguay e Argentina.
(174 f.). Maringá: Appris, 2016.

NATALI, Paula Marçal. Formação Profissional na Educação Social:


Subsídios a Partir de Experiências de Educadores Sociais Latino
Americanos. (243f.). Tese (Doutorado em Educação) – Universidade
Estadual de Maringá. Orientador: (Verônica Regina Müller). Maringá,
2016.

NUÑEZ, Violeta. Pedagogía Social: cartas para navegar en el nuevo


milenio. Buenos Aires: Santillana.1999.

NUÑEZ, Violeta. Los Nuevos sentidos de la tarea de enseñar. Más


allá de la dicotomía enseñar Vs. asistir. Revista Iberoamericana De
Educación, n. 33, p. 17-35, nov. 2003.

152 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
RODRIGUES, Patricia Cruzelino. Participação política de meninos
e meninas: expedições de experiências e reflexões em curso. 197 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de
Maringá. Orientadora: Verônica Regina Müller. Maringá, 2014.

SILVA, Cláudia Neves; LANZA, Fabio. A intolerância religiosa


à brasileira: estudo de caso na cidade de Londrina / Paraná.
Sociologia, Volume 37, Porto, junho de 2019. In: http://dx.doi.
org/10.21747/08723419/soc37a5 Atualizado em julho de 2020.

SOUZA, Cléia Renata Teixeira de Souza. O Projeto Futuro Hoje em


Maraingá/Pr: desafios da Educação Social rumo à política pública.
Dissertação de Mestrado. Programa de Pós graduação em Educação,
Universidade Estadual de Maringá. 2010.

SOUZA, Cléia Renata Teixeira de Souza. Educadores Sociais e


Avaliação: indicadores para contextos Educativos Diversos. 219 f.: Tese
(Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Maringá-Pr.
Maringá-Pr, 2016.

XAVIER, Marcia Rejania Souza. Educação e Religião: os entre-lugares


da educação de adultos na ação educativa do PEACE. 2003. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis. 2003 

153 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 125-153 – jul./dez. 2020
HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA
E EFEITOS DE SENTIDO NA CRÔNICA
“RECEITA”, DE CARLOS DRUMMOND
DE ANDRADE

Mayara Yukari Kato1


Rosemeri Passos Baltazar Machado2

RESUMO: Este estudo é um recorte da dissertação defendida no Mestrado


em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina, em 2016.
Trata-se de uma pesquisa afiliada à Análise do Discurso de orientação francesa,
com foco na teoria da heterogeneidade enunciativa, cunhada por Authier-
Revuz (1990; 2004). Desse modo, o objetivo é aplicar essa teoria na crônica
“Receita”, escrita por Carlos Drummond de Andrade (2007), e recuperar
os efeitos de sentido dos discursos ali presentes, visando identificar de que
forma(s) a alteridade participa do processo discursivo. Em meio a esse jogo
discursivo, observamos que a presença da ironia e dos aspectos relacionados à
heterogeneidade se fazem muito fortes nos discursos analisados devido à própria
funcionalidade do gênero em questão: crônica.
PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso. Crônica. Efeitos de sentido.
Heterogeneidade enunciativa.

ABSTRACT: This study is an excerpt from the dissertation defended in the


master’s degree in Language Studies at the State University of Londrina, in
2016. It is a research affiliated to the Discourse Analysis of French orientation,
focusing on the theory of enunciative heterogeneity, coined by Authier-Revuz
(1990; 2004). Thus, the objective is to apply this theory in the chronicle “Receita”,
written by Carlos Drummond de Andrade (2007), and to recover the effects
of meaning from the speeches, aiming to identify in which way(s) the alterity
participates in the discursive process. In the midst of this discursive game, we
observed that the presence of irony and aspects related to heterogeneity are very
strong in the discourses analyzed due to the very functionality of the genre in
question: chronicle.
KEYWORDS: CHRONICLE. Discourse Analysis. Chronicle. Effects of
meaning. Enunciative heterogeneity.

1
Aluna de doutorado em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina
(UEL).
2
Docente do departamento de Letras da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

155 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
Introdução

A articulação entre língua e história perpassa o sujeito,


uma vez que ele se constitui por meio da interação com outros
sujeitos e com os discursos produzidos na e pela sociedade.
Assim, a alteridade é importante para a constituição do sujeito,
pois a identidade se constitui a partir da diferença com o outro
(WOODWARD, 2012). Além disso, o sujeito é um ser político,
pois tem como característica fundamental a necessidade de viver
em sociedade.
Pensando nesses aspectos, pretendemos analisar as formas
da heterogeneidade enunciativa, proposta por Jacqueline Authier-
Revuz (1990; 2004), bem como os efeitos de sentido que a
crônica “Receita” apresenta. Essa crônica foi escrita por Carlos
Drummond de Andrade e publicada originalmente no Jornal do
Brasil, na década de 1970, e posteriormente compilada com outras
crônicas do autor, no livro De notícias e não notícias faz-se a crônica,
de onde foi retirada para a análise neste artigo.
Para esse estudo, o qual diz respeito à reformulação de uma
análise apresentada na dissertação de Mestrado defendido em
2016, seguiremos a linha francesa da Análise de Discurso. Além
da AD, será necessário recuperar os conceitos de Authier-Revuz
(2004) quanto à heterogeneidade enunciativa, que se divide
em heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada.
Entretanto, buscaremos atrelar tais conceitos à análise da crônica,
pois acreditamos que aliar teoria à prática facilitará a compreensão,
nesse caso.
Além disso, devemos nos atentar também para o fato de
que alguns conceitos, como condição de produção (CPs) e sujeito
inconsciente, serão mencionados no artigo, pois serão importantes

156 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
para a análise da crônica, principalmente em relação aos efeitos
de sentido. Trata-se de uma rica obra de Drummond, que oferece
muitas possibilidades de interpretação e apresenta diversos efeitos
de sentido, provenientes dos discursos que circulam nesse espaço
literário.

Heterogeneidade enunciativa: perspectivas gerais

A concepção de heterogeneidade enunciativa de que nos


apropriamos neste estudo é em relação àquela sistematizada pela
linguista Authier-Revuz (1990; 2004), cuja teoria é embasada pelo
dialogismo de Bakhtin (1981; 2004) e pela psicanálise lacaniana,
a qual, por sua vez, provém de análise e ampliação de conceitos
freudianos.
Tendo em vista que Authier-Revuz não é analista do
discurso, é necessário ressaltar que seu estudo aborda questões
linguísticas, como as formas mostradas de heterogeneidade, por
exemplo, o uso das aspas, da ironia e do discurso relatado. No
entanto, consideramos que sua teoria é relevante para a AD, ainda
que parta de princípios teóricos diferentes. Isso porque, dentro
dessa disciplina, a questão da heterogeneidade ganhou força com
a tematização das “formas linguístico-discursivas do discurso-
outro” (PÊCHEUX, 2014, p. 313), e o diálogo com os estudos
de Authier-Revuz (1990; 1998; 2004) foi de grande importância
para que isso se concretizasse.
Uma vez que a alteridade é um dos pilares que sustentam
os estudos da AD de orientação francesa, a heterogeneidade
enunciativa, que une a perspectiva dialógica da língua, o
inconsciente e o interdiscurso, vem a calhar com a disciplina.

157 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
A princípio, devemos considerar que o dialogismo diz respeito
à concepção de que a língua e, por conseguinte, os discursos,
resulta da interação verbal que ocorre no nível da enunciação,
isto é, “A interação verbal constitui assim a realidade fundamental
da língua” (BAKHTIN, 2004, p. 123). Portanto, o outro faz-se
necessariamente presente no discurso do sujeito.
Por outro lado, somando-se ao dialogismo, Authier-
Revuz (2004) traz à tona o sujeito de Lacan (1988), para quem
o inconsciente era estruturado como linguagem. Visto que o
sujeito “não sabe o que diz, nem mesmo que fala” (LACAN, 1988,
p. 283), ele então não controla as situações de comunicação de
forma consciente, ou seja, não é, desse modo, a fonte primária
do dizer, pois o que diz é reflexo de seu inconsciente. Assim, o
“eu” constitui-se em relação e a partir do “outro”. Não se trata,
porém, de considerar que o sujeito seja inocente, mesmo porque
a opacidade lhe é necessária. Opera-se com um sujeito que é
perpassado pelo outro, pela historicidade e pelo simbólico, e por
isso mesmo inconsciente.
Ao lado do dialogismo e do sujeito inconsciente, a autora
recupera a noção de interdiscurso, assinalado por Pêcheux (2014,
p. 310) como “um ‘além’ exterior e anterior” ao discurso, um lugar
em que os dizeres filiados às diversas formações discursivas se
chocam e se abrigam. Trata-se de uma instância recalcada no
inconsciente do sujeito, para que possa retornar, como um já-
dito, sob uma memória discursiva, no dizer. É por meio desse
gancho com o pré-construído que Authier-Revuz (2004) trabalha
sua concepção de heterogeneidade mostrada, em contraponto à
heterogeneidade constitutiva.
Por heterogeneidade constitutiva, a autora compreende
que é a partir da alteridade, da relação do sujeito com o outro,
que se constitui o discurso. Essa heterogeneidade atravessa, então,

158 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
o processo discursivo e, ao mesmo tempo, o sujeito responsável
por ele:

Todo discurso se mostra constitutivamente atravessado pelos


“outros discursos” e pelo “discurso do Outro”. O outro não é um
objeto (exterior, do qual se fala), mas uma condição (constitutiva,
para que se fale) do discurso de um sujeito falante que não é
fonte-primeira desse discurso (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.
69, grifos da autora).

Posto que as formas de heterogeneidade (constitutiva e


mostrada) não são inseparáveis, pois uma diz respeito à condição
de existência do discurso e a outra às formas como o outro se
coloca ali, exploraremos, na análise, as formas marcadas e não
marcadas da heterogeneidade mostrada considerando implícita
a constitutiva, que não é palpável, observável na materialidade
linguística.
Na heterogeneidade mostrada, o outro é recuperável pelo
fio discursivo. A partir disso, Authier-Revuz (2004) subdivide
esse tipo de heterogeneidade em marcada e não marcada. A
primeira expõe o outro de forma delimitada, como no discurso
relatado (DR). Nesse sentido, segundo a autora, tem-se a ideia
de que o discurso direto (DD) é uma reprodução fiel do dizer de
um sujeito quanto ao campo semântico-enunciativo, porém seu
funcionamento no plano sintático ocorre de maneira simples. Por
outro lado, em relação ao discurso indireto (DI), entendemos que
ele é subordinado ao DD, como uma reformulação decorrente
do próprio DD. Assim, mudam-se a pessoa e o tempo em que
tal dizer é relatado. Já o discurso indireto livre (DIL) seria uma
junção entre DD e DI, forma bastante utilizada na literatura, e,
não obstante, na crônica de Drummond.

159 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
Em relação às aspas, o itálico, o travessão e outros recursos
gráficos que delimitam o outro no dizer do sujeito, essas marcações
estão ligadas ao implícito, necessitando de interpretação para
que a referência ao outro seja compreendida no discurso. Assim,
não há ruptura sintática no caso das aspas, por exemplo, pois
“a expressão aspeada é, ao mesmo tempo usada e mencionada,
dependendo, conseqüentemente, da ‘conotação autonímica’”
(MAINGUENEAU, 1997, p. 89), isto é, dos comentários que
se faz acerca do dito.
Por outro lado, em contraponto à heterogeneidade
mostrada marcada, segundo Authier-Revuz (1998), as formas
de heterogeneidade mostrada não marcada são puramente
interpretativas, visto que não há marcas na superfície textual
que explicitam a heterogeneidade. Trata-se do caso do discurso
indireto livre, da ironia, da alusão, da imitação, entre outras, ou
seja, opera-se com o espaço do implícito e do sugerido, dando
margem à incerteza que cerca a presença do outro no discurso.

No caso do (ou, sem dúvida, “dos”) discurso(s) indireto(s) livre(s),


da ironia, da antífrase, da imitação, da alusão, da reminiscência,
do estereótipo..., formas discursivas que me parecem poder
ser ligadas à estrutura enunciativa da conotação autonímica, a
presença do outro, em compensação, não é explicitada por marcas
unívocas na frase: a “menção” que duplica “o uso” que é feito das
palavras só é dada a reconhecer, a interpretar, a partir de índices
recuperáveis no discurso em função de seu exterior (AUTHIER-
REVUZ, 2004, p. 17-18).

Portanto, na heterogeneidade mostrada não marcada, o


outro não é delimitado por meio de marcas linguísticas, sendo
necessário acessar o contexto, as condições de produção, o exterior
do discurso para que ele seja recuperado na fala do sujeito. Desse

160 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
modo, dificulta-se a distinção do limiar entre as vozes que
compõem o enunciado – a do eu e a do outro.
Na análise a seguir, recuperaremos as formas marcadas e
não marcadas da heterogeneidade mostrada na crônica “Receita”,
visando destrinchar – mas não esgotar – as possibilidades de
interpretação do texto, juntamente com os efeitos de sentido
dos discursos ali produzidos. Trata-se de uma rica obra, cuja
materialidade fornece os elementos necessários para a análise
(como a ironia, as aspas, o discurso relatado etc.) e permite, ao
mesmo tempo, a identificação desses elementos por meio dos
quais ressoam efeitos de sentido variados.

Análise da crônica “Receita”

A primeira frase da crônica “Receita” já apresenta uma


demarcação do outro:

‒ “Tonerre de Dieu!” (ANDRADE, 2007, p. 94).

Há aqui duas marcas da heterogeneidade mostrada: o


travessão, representação gráfica do diálogo, e as aspas. Ambas
indicam o afastamento do dizer pelo sujeito que o profere,
apontando que o que ali foi dito remete, na realidade, ao dizer do
outro. Portanto, as aspas sugerem que o sujeito não assume o dizer
inteiramente como seu, pois trata-se, antes, de uma autonímia
simples, isto é, um comentário acerca do dizer:

O elemento autonímico constitui, no enunciado em que figura,


um corpo estranho, um objeto “mostrado” ao receptor; nesse
sentido, pode-se considerar essas palavras aspeadas como

161 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
“mantidas a distância”, em um primeiro sentido, como se mantém
afastado um objeto que se olha e que se mostra (AUTHIER-
REVUZ, 2004, p. 218).

A expressão aspeada provém da língua francesa (“tonnerre


de Dieu”) e significa, literalmente, “trovão de Deus”, remetendo à
figura de Zeus, o deus do trovão da mitologia grega, por meio do
dizer que irrompe abruptamente no diálogo. Percebemos, então,
um sentido construído a partir de certos aspectos sinalizados
dentro do próprio texto. Tal intertextualidade3 é confirmada no
parágrafo seguinte:

Blasfêmia? Não era blasfêmia. Pronunciada com ênfase, que


carregava no “eeerre” mas excluía a idéia de desafio à divindade,
a exclamação tinha caráter informativo. Do meu canto, no bar,
prestando ouvidos à roda movimentada, aprendi a receita de um
drinque (ANDRADE, 2007, p. 94).

Nesse trecho, torna-se evidente que “Tonerre de Dieu” é,


então, um drinque solicitado pelo sujeito no bar, e que essa bebida
é forte, encorpada e poderosa, como a figura de Zeus. Quanto
à heterogeneidade, o eeerre é uma reprodução do fonema /r/ da
língua francesa, um som prolongado e carregado, ressoando como
um trovão. Portanto, retoma-se a interdiscursividade para com o
deus grego, anulando “a ideia de desafio à divindade”, pois o que
se verifica é uma aproximação ao fenômeno da natureza e à força
divina, em um tom de apreciação, e não um confronto ao deus
propriamente dito.
3
Embora os princípios voltados à textualidade não sejam o foco desse estudo, faz-se
necessário comentar a respeito do fator intertextual, pois assume importante papel na
construção dos sentidos e, consequentemente, na construção argumentativa dos enunciados.
De acordo com Koch e Elias (2008, p. 85), “necessário se faz também considerar que a
retomada de texto(s) em outro(s) texto(s) propicia a construção de novos sentidos, uma
vez que são inseridos em uma outra situação de comunicação com outras configurações
e objetivos.

162 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
Nesse caso, Authier-Revuz (2004, p. 223) fala de “aspas de
condescendência”, isto é, “o locutor utiliza palavras que atribui
ao interlocutor para ‘colocar-se ao seu alcance’, frequentemente
como uma etapa para conduzi-lo às ‘verdadeiras’ palavras, às
quais o locutor adere plenamente, sem aspas”. Trata-se de aspas
“pedagógicas, de vulgarização”, conforme as palavras da autora,
pois explicam o termo para o interlocutor.
Ainda em relação ao excerto, destacamos o discurso indireto
livre (DIL) em “Blasfêmia?”, uma forma de heterogeneidade
mostrada não marcada. Por outro lado, há outro enunciador
nesse discurso, que responde: “Não era blasfêmia”. Soma-se a
eles o terceiro enunciador em “Do meu canto, no bar, prestando
ouvidos à roda movimentada, aprendi a receita de um drinque”.
Desse modo, a mistura de vozes e posicionamentos pode, a
princípio, causar confusão, mas deve-se lembrar que os discursos
são polifônicos por natureza, assim não há discurso que seja livre
desse aparente caos enunciativo.
Adiantamos que o termo “receita”, título da crônica, é
polissêmica nesse contexto, pois apresenta possibilidades de
sentido como: a) receita culinária, no caso, do drinque; b) receita
médica e c) receita econômica. Isso fica claro no seguinte trecho:

‒ Tonerre de Dieu é assim – explicou o que sabia das coisas. –


Dois pontos: 1/4 de uísque, 1/4 de gim, 1/4 de conhaque, 1/8
de vodca, 1/8 de absinto.
‒ E caninha?
‒ Caninha pra quê?
‒ Não bota 1/4 de caninha pra reforçar a pauta? (ANDRADE,
2007, p. 94).

A receita culinária é mais evidente, pois indica as medidas


de cada componente do drinque, próprias do gênero. Já em relação

163 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
à receita médica, fatores médicos entram em jogo no discurso
ao longo da crônica (“por que não incluir o quantum satis num
elenco assim prestigioso?”). Por fim, nos termos econômicos da
palavra “receita”, há aspectos políticos e financeiros envolvidos
no decorrer do discurso (“Fórmula internacional. Ótimo. Você
me deu o argumento em favor da caninha. Justamente por ser
internacional, por que não incluir o Brasil nessa jogada?”).
Antes de partirmos para a análise dos aspectos heterogêneos
do trecho acima, é importante considerarmos a condição de
produção da crônica, a fim de entendermos melhor a polissemia
descrita, uma vez que os efeitos de sentido dependem desse
conhecimento. A década de 1970, provável data de publicação
da crônica “Receita”, foi marcada por uma efervescência política
e social: a Guerra Fria, com os EUA e a extinta URSS em busca
da supremacia política e ideológica, estava em pleno vapor,
bem como a tecnologia, que se desenvolvia sobretudo na área
armamentista, uma vez que os arsenais bélicos e nucleares eram
de suma importância nesse período.
De acordo com Barbiero e Chaloult (2001, p. 1), “Marcados
pela crise do Estado providência, os anos 70 assistirão à ascensão
dos liberais não-intervencionistas, denominados de neoliberais”,
cujas ideias principais são a liberdade de mercado e a restrição da
intervenção do Estado na economia dos países. No caso do Brasil,
fomos um dos últimos a “limitar o papel do Estado, desencadear
um programa de privatização, diminuir os gastos públicos,
eliminar a inflação, estabilizar a moeda, aumentar as exportações
e abrir suas economias ao mercado mundial” (BARBIERO;
CHALOULT, 2001, p. 1), visto que nosso país ainda estava sob
o comando dos militares, após o golpe de 1964.

164 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
Portanto, “1/4 de uísque, 1/4 de gim, 1/4 de conhaque,
1/8 de vodca, 1/8 de absinto” pode indicar uma relação com a
receita econômica, pois tais bebidas são originárias de países
economicamente fortalecidos. Além disso, o drinque é composto
por substâncias de teor alcoólico elevado e sabores fortes, como
uma alusão à economia desses países. Deve-se lembrar que a alusão
é um processo interdiscursivo “que ocorre quando se incorporam
temas e/ou figuras de um discurso que vai servir de contexto
(unidade maior) para a compreensão do que foi incorporado”
(FIORIN, 1994, p. 34). Nesse caso, conforme mencionado, a
função da alusão é servir de contexto para que os efeitos de sentido
possam ser apreendidos.
O fato de o uísque ter origem escocesa, o gim ter raízes
holandesas e o conhaque ser proveniente da França (ABB, s/d),
enquanto as bebidas de menor representatividade no drinque
serem de origem russa (no caso da vodca) e suíça (absinto), sugere
que a receita (econômica) do drinque é poderosa. Assim, seria
no mínimo incoerente acrescentar o Brasil a essa receita, pois a
disparidade entre o país e o grupo (Escócia, França, Holanda,
URSS e Suíça) é grande.
Notamos que o contexto político é criticado nesse trecho,
sobretudo quando o enunciador diz: “Não bota 1/4 de caninha
pra reforçar a pauta?”, dando a entender que o Brasil, produtor da
cana que dá origem à caninha/cachaça, não tem representatividade
política no cenário mundial necessária para figurar nesse grupo. Há
também um desejo de ampliar os horizontes e o desenvolvimento
do país, mas, conforme as condições de produção da época, isso
não seria possível tão cedo, por conta do poder dos militares. Desse
modo, a ironia, uma forma de heterogeneidade mostrada não
marcada, faz-se presente nesse trecho. Segundo Brait (1996, p. 96),

165 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
Se a partir dos ensinamentos de Bakhtin é possível pensar todo
discurso como o processo de edificação do sentido, da significação
como interação, a ironia pode ser pensada justamente como o
discurso que coloca em cena, que dramatiza e tematiza esse
aspecto.

A ironia opera com as contradições, e, por isso, a opacificação


do discurso é necessária, pois o enunciador põe em evidência não
apenas o que é dito, mas também a forma de dizer e as contradições
que existem entre essas dimensões. No caso deste trecho, estar no
mesmo patamar que esses países, ou melhor, misturar-se a eles
seria, de fato, irônico, uma vez que a receita econômica do Brasil
não seria suficiente para pertencer a esse elenco, metaforizado por
meio do drinque, ou seja, o contraste entre a economia brasileira
e a economia desses países gera um efeito irônico.
Para finalizar a análise do excerto acima, destacamos o
itálico e os “dois pontos”. O primeiro marca o “outro estrangeiro”,
a “realização do discurso em uma língua ou em uma variedade
de língua (técnica, regional, familiar, “standard”...) adequada
aos interlocutores e à situação” (AUTHIER-REVUZ, 2004,
p. 14). Assim, o itálico normalmente é agrupado nos estudos
das aspas, por terem um funcionamento similar nos discursos.
No entanto, “o itálico emprega-se de maneira preferencial para
as palavras estrangeiras e para insistir sobre algumas unidades”
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2012, p. 67), enquanto
as aspas são mais utilizadas para evidenciar a não coincidência
do dizer do sujeito com o dizer do outro. Em “Receita”, o itálico
serve tanto para denotar uma expressão estrangeira quanto para
reforçar o seu emprego no discurso.
A outra forma de heterogeneidade mostrada e marcada
presente no excerto é a representação metaenunciativa do dizer:

166 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
“Dois pontos” ressalta a metaenunciação, o discurso dentro de
outro discurso. Os dois pontos, de fato, são uma característica do
próprio gênero receita culinária, que os utiliza para apresentar os
ingredientes ou o passo a passo de um prato ou bebida. Assim,
segundo Maingueneau (1997, p. 93), a heterogeneidade enunciativa
“pode resultar da construção pelo locutor de níveis distintos no interior
de seu próprio discurso”, qualificando o metadiscurso, resultante das
glosas do enunciado.
Trata-se do fato de o discurso falar sobre si mesmo,
como uma autorreferência. Esse é o caso dos “Dois pontos”,
que se referem ao próprio discurso do enunciador da crônica.
As glosas, comentários que “acompanham o que o locutor
diz” (MAINGUENEAU, 1997, p. 93), por sua vez, podem ser
brevemente apresentadas como explicações sutis e rápidas, a fim
de esclarecer determinado aspecto ou apresentar possíveis efeitos
de sentido do enunciado.
Recuperamos aqui o trecho que apresenta a polissemia
com a receita médica:

Mas o opinante não se conformava. Caninha sim. 1/4 de caninha


era absolutamente imprescindível para conferir largo espectro à
composição, cujo mérito ele não discutia, a coisa deve ser legal,
não digo que não, mas tenha paciência, por que não incluir
o quantum satis de caninha num elenco assim prestigioso?
(ANDRADE, 2007, p. 94).

A locução latina quantum satis é bastante recorrente na


literatura médica e farmacêutica, e significa “quanto baste”. A
recuperação do gênero receita médica pode indicar o efeito de
sentido de que o enunciador implora pela inclusão do Brasil nesse
grupo o quantum satis, ou seja, o país poderia contribuir para o

167 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
grupo mesmo tendo pouca relevância econômica. Além disso, a
presença do latim sugere o cunho nacionalista do discurso, sendo
a língua de origem do português, e não das nacionalidades dos
demais ingredientes, à exceção do francês.
Mais à frente, em outro trecho da crônica, o gênero é
recuperado quando os enunciadores debatem os efeitos do absinto
no organismo (“Absinto é veneno. Faz um mal danado à gente”,
“Absinto é o que há de mais estomacal. Veja os tratados“, “Produz
exacerbação dolorosa das sensações táteis”, “Absinto é tônico.
Não sou eu quem diz. É a medicina”). Claramente, o debate, em
segundo plano, diz respeito muito mais à política da época do
que à medicina ou à bebida em si, ou seja, recorre-se à primeira
como forma de embasar o argumento por meio do discurso
institucionalizado.
Assim, o cunho político é evidenciado no trecho por
meio do absinto, que era associado aos efeitos alucinógenos
(“Produz exacerbação dolorosa das sensações táteis”). Acentua-
se, então, a ironia do discurso, pois os tratados econômicos
acabavam por provocar dores estomacais no sujeito, como se o
país, metaforicamente, levasse um soco no estômago por ficar à
margem da economia.
Já em relação ao itálico, nesse caso, por ressaltar um
estrangeirismo, demarca-se o outro, ao mesmo tempo em que
é incorporado pelo enunciado, ao contrário das aspas, as quais
se juntam ao próprio enunciado, ao invés de serem por ele
incorporadas. Além do itálico, outra forma de heterogeneidade
que aparece nesse excerto é, novamente, o discurso indireto livre:
“a coisa deve ser legal, não digo que não, mas tenha paciência”
indica um enunciador diferente do que enunciava antes. Isso pode
ser percebido na materialidade linguística por meio da alteração

168 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
do tempo verbal, além da mudança da terceira pessoa do singular
para a primeira do singular.
Outra forma de discurso indireto livre (DIL) é em “Caninha
sim”, uma vez que expõe um pensamento que dá continuidade
à afirmação de que “o opinante não se conformava”. Entretanto,
vale lembrar que ambos os enunciados se encontram em planos
enunciativos diferentes. Isso porque a afirmação “Caninha sim”
denota o pensamento do enunciador que entra em cena na
primeira forma de DIL do trecho analisado, em contestação
quanto à decisão do outro enunciador, ou seja, a decisão de não
incluir a caninha no drinque.

‒ Você quer que eu modifique a fórmula internacional


devidamente estudada pelos peritos e testada por gente de
gabarito? É isso que você quer?
‒ Fórmula internacional. Ótimo. Você me deu o argumento em
favor da caninha. Justamente por ser internacional, por que não
incluir o Brasil nessa jogada? (ANDRADE, 2007, p. 94).

Nesse excerto, a heterogeneidade mostrada é marcada


por meio dos travessões, isto é, pelo discurso direto. Desse
modo, o primeiro enunciador argumenta em prol da “fórmula
internacional”, resgatando um discurso institucionalizado para
denotar um argumento de autoridade, como um respaldo para o
seu dizer. Por esse viés, trata-se, então, de uma heterogeneidade
não evidenciada linguisticamente, pois o interlocutor é levado a
descobrir por conta própria a alteridade que se faz presente no
enunciado.
Portanto, caso a “fórmula internacional” estivesse marcada
pelas aspas no texto, poderíamos relacioná-las ao que Authier-
Revuz (2004) denomina de “ilhota textual”, um fato que ocorre

169 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
quando o discurso outro é posto no discurso direto, ou seja, trata-se
de um “fragmento X que aparece – donde o nome de ilhota textual
– como um elemento da mensagem (m) de l tendo ‘resistido’ na
sua literalidade à operação de reformulação-tradução contida na
mensagem M” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 194). Nesse caso,
o fragmento que representa o discurso outro, entre aspas, se faria
presente no discurso do locutor.
Mais adiante, o diálogo continua:

‒ Tirar o absinto?! Não diga besteira. Por que tonerre eu vou tirar
o absinto?! (ANDRADE, 2007, p. 95).

No excerto, notamos que a sinalização gráfica de ponto de


interrogação, seguida por um ponto de exclamação, representa o
deboche por meio da sátira, “uma forma de ironia que consiste em
encarnar determinado tipo e torná-lo ridículo” (PAIVA, 1961, p.
13). Dessa forma, ao fazer uma pergunta retórica ao interlocutor
(“Tirar o absinto?!”), o primeiro enunciador retoma o dizer do
outro enunciador para depreciá-lo, assim, a voz do outro é notada
no fio do discurso do primeiro enunciador.
Esse mesmo enunciador, nesse caso, utiliza-se de “tonerre”
como forma de ironizar a fala do outro, ao mesmo tempo que
corrobora o próprio deboche. A expressão “por que raios?”,
bastante utilizada pelos brasileiros, é substituída no discurso pela
palavra francesa – evidencia-se o outro por meio do itálico –,
recuperando o nome do drinque, ao mesmo tempo que ironiza a
“besteira” de alterar a receita da bebida.
Por outro lado, a presença do discurso direto, representado
pelo travessão, resgata a heterogeneidade mostrada e marcada, isto
é, “é significativo que um fragmento tem, na cadeia discursiva, um
estatuto outro que releva da autonímia” (AUTHIER-REVUZ,

170 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
1990, p. 29), uma vez que o outro é marcado no discurso. Isso fica
bastante evidente no trecho final da crônica:

‒ Pois eu não acredito. E mantenho a fórmula. Intocável. Sem


corrupção. Sem caninha.
‒ Bota caninha, bota...
‒ Nunca!
Um terceiro, meio bêbado, deu uma de mediador:
‒ Atende a ele, Fernando. Só que em lugar de caninha, bota
caipirinha nessa tal de trovoada de Deus (ANDRADE, 2007,
p. 96).

Nesse excerto, vemos que o primeiro enunciador levanta


uma questão: a corrupção que, possivelmente, estaria enraizada
no Brasil, numa tentativa de combatê-la (“Sem corrupção. Sem
caninha”). Trata-se de um posicionamento ideológico, um discurso
que denuncia um comportamento com o qual o enunciador não
compactua.
Por outro lado, tem-se a presença de um terceiro sujeito
enunciador do discurso, “meio bêbado”, enunciador que,
ironicamente, aparenta ser o mais lúcido entre os três enunciadores,
pois consegue equilibrar as forças resultantes dos posicionamentos
dos enunciadores até então predominantes na crônica. Há aqui
uma ironia por conta da lucidez de alguém que, teoricamente, está
entorpecido pela bebida alcoólica, porém esse sujeito encontra-se
menos cego pelas ideologias de ambas as partes, uma vez que não
existe neutralidade discursiva no âmbito da AD.
Portanto, incluir a caipirinha, e não a caninha, ao drinque
do início da crônica é incluir não somente um país, mas uma nação
cheia de misturas, “um outro drinque a esse drinque”, reforçando
a firmação de ideologia, visto que a caipirinha é um drinque que
mistura a cachaça, ou caninha, a outros elementos, tais como

171 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
frutas cítricas. Por fim, a crônica é encerrada com a tradução da
expressão francesa “tonnerre de Dieu”, isto é, “trovoada de Deus”,
uma recuperação da heterogeneidade que acaba por referenciar
a si mesma.

Algumas considerações

A análise da crônica “Receita” nos mostrou que, em termos


de efeitos de sentido, o que promoveu a percepção clara da não
neutralidade do discurso foi o uso da ironia. Assim, esse aspecto
ficou mais evidente quando se verificou a sua presença no discurso,
além de outra série de aspectos, como a polissemia. Destacamos
também a importância da memória discursiva como suporte para
a existência e perpetuação do discurso (ainda que frágil, pois é
impossível manter uma regularidade discursiva de forma plena e
fixa) e do sujeito inconsciente, pois isso possibilitou a recuperação
dos discursos outros no discurso do sujeito.
Em relação à heterogeneidade enunciativa, pudemos
observar que, na crônica, as formas de heterogeneidade mostrada
e marcada estão muito presentes, e atribuímos essa presença ao
gênero, que opera com o cotidiano, com os fatos triviais, embora
apresentem efeitos de sentido profícuos. Desse modo, as aspas,
o itálico, o discurso direto e o travessão, por exemplo, demarcam
o outro na materialidade discursiva, e na crônica desempenham
papéis importantes, a fim de organizar a textualidade.
Por outro lado, a heterogeneidade mostrada não marcada,
sobretudo por meio da ironia e do discurso indireto livre, recupera
a alteridade do discurso sem mostrá-lo em sua superfície textual
e discursiva. De fato, conforme mencionado por Authier-Revuz

172 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
(2004), esse tipo de heterogeneidade é puramente interpretativo,
necessitando do exterior do discurso para que a alteridade possa
ser recuperada. Aqui, enfatizamos a importância do entendimento
das condições de produção para que a ironia, a alusão, o DIL,
entre outros, pudessem ser percebidos na crônica, pois não se
trata apenas de uma questão de situação ou circunstância, mas
sim de questão que envolve o contexto sócio-histórico e o aspecto
ideológico. Retomando Pêcheux (2014, p. 76), “um discurso é
sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas”.
Ademais, foi relevante notar que as formas de
heterogeneidade enunciativa se entrelaçam, atuando juntas
no discurso; afinal, devemos nos atentar para o fato de que “o
sentido de um texto não está, pois, jamais pronto, uma vez que
ele se produz nas situações dialógicas ilimitadas que constituem
suas leituras possíveis: pensa-se, evidentemente, na leitura plural”
(AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 26) e nos aspectos linguísticos,
históricos e sociais envolvidos na produção/significação/
ressignificação dos dizeres.
Em determinados trechos da crônica, identificamos, a
título de exemplo, que a ironia, uma forma de heterogeneidade
mostrada não marcada, ocorria justamente por conta do itálico,
uma forma de heterogeneidade mostrada e marcada, além da
própria heterogeneidade constitutiva, que se faz presente mesmo
não sendo mostrada no discurso.
Por fim, gostaríamos de esclarecer que não esgotamos as
possibilidades de efeitos de sentido da crônica e as explanações
sobre as formas de heterogeneidade, até mesmo dos trechos que
selecionamos para a análise, uma vez que o espaço não comportaria
todas elas. Além disso, são muitas as possibilidades, portanto
apresentamos as que pudemos identificar e as que julgamos mais
relevantes para esta exposição.

173 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
REFERÊNCIAS

ABB. Associação Brasileira de Bartenders. s/d. Disponível em: http://www.


assbb.org.br/portal/home.html. Acesso em 25 ago. 2015.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Receita. In: ANDRADE, Carlos


Drummond de. De notícias e não notícias faz-se a crônica. 10. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2007.

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s).


Tradução Celene M. Cruz; João Wanderley Geraldi. Cadernos de
Estudos Lingüísticos, Campinas, (19), p. 25-42, jul./dez. 1990. Disponível
em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/
view/8636824/4545. Acesso em 27 jul. 2020.

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as não-coincidências


do dizer. Campinas: Editora da Unicamp, 1998.

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Entre a transparência e a opacidade: um


estudo enunciativo do sentido. Revisão técnica da traduçã: Leci Borges
Barbisan e Valdir Nascimento Flores. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução Paulo


Bezerra. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1981.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução Michel


Lahud e Yara Frateschi Vieira. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004.

BARBIERO, Alan; CHALOULT, Yves. O Mercosul e a Nova Ordem


Econômica Internacional. Revista Brasileira de Política Internacional,
Brasília, v. 44, n. 1, jan./jun. 2001. On-line version. Disponível em: http://
www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-73292001000100003&script=sci_
arttext. Acesso em 27 jul. 2020.

BRAIT, Beth. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas: Editora da


UNICAMP, 1996. (Coleção Viagens da Voz).

174 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário
de Análise do Discurso. Tradução Fabiana Komesu (Coord.). 3. ed. São
Paulo: Contexto, 2012.

FIORIN, José Luiz. Polifonia textual e discursiva. In: BARROS,


Diana Pessoa de; FIORIN, José Luiz (Org.). Dialogismo, polifonia,
intertextualidade: em torno de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1994,
p. 29-36. (Ensaios de Cultura, 7).

KOCH, Ingedore, Villaça; ELIAS, Vanda, Maria. Ler e compreender os


sentidos do texto. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008.

LACAN, Jacques. Escritos. Tradução Inês Oseki-Depré. São Paulo:


Editora Perspectiva, 1988.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do


Discurso. Tradução Freda Indursky. 3. ed. Campinas: Pontes/Editora da
Universidade Estadual de Campinas, 1997.

PAIVA, Maria Helena de Novais. Contribuição para uma estilística da


ironia. Lisboa: Centro de Estudos Filológicos, 1961.

PÊCHEUX, Michel. A análise de discurso: três épocas (1983). In:


GADET; Françoise; HAK, Tony. (Org.). Por uma análise automática
do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução Eni
Pulcinelli Orlandi. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução


teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 12. ed. Petrópolis: Vozes,
2012.

175 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 155-175 – jul./dez. 2020
MONOTONGAÇÃO: UM ESTUDO DE CASO
EM IBIPORÃ SOB A PERSPECTIVA DA
SOCIOLINGUÍSTICA

Ismael Ribeiro da Silva (PG-UEL)1


Patrícia Medeiros Galvão (PG-UEL)2
Josué Marques Ferreira3

RESUMO: Este artigo apresenta um estudo sobre o fenômeno da monotongação


(apagamento de semivogais em ditongos) no português falado e/ou escrito de
Ibiporã – PR; a comunidade linguística por meio da qual realizamos este trabalho
consiste em um grupo de 196 alunos, estudantes da Educação Básica (9º ano do
Ensino Fundamental e 1º, 2º e 3º anos do Ensino Médio). A idade dos alunos
varia entre 14 (9º ano do EF) e 28 anos (3º ano do EM). Para isso, parte-se
de fundamentos teóricos da Sociolinguística. Os resultados demonstraram que
fatores estruturais, o nível de escolaridade e o sexo do informante influenciam
na realização desse fenômeno.
PALAVRAS-CHAVE: Monotongação; Variação Linguística; Sociolinguística.

ABSTRACT: This article presents a study about the phenomenon of the


monophthongization (elimination of semivowels in diphthongs) in Portuguese
spoken and/or written of Ibiporã – PR. The linguistic community through
which we carry out this work consists of a group of 196 pupils, students of
Basic Education (9th grade of elementary school and 1st, 2nd and 3rd grades
of high school). The students’ ages varies from 14 years old (9th grade of ES)
to 28 years old (3rd year of HS). For such purpose, it is based on theoretical
foundations of Sociolinguistics. The results showed that structural factors, the
level of schooling and gender of the informant influence the accomplishment
of this phenomenon.
KEYWORDS: Monophthongization; Linguistic Variation; Sociolinguistics.

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (UEL). E-mail:
ismaelgramatica@uol.com.br
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (UEL). E-mail:
patriciamedeiros.cristo@gmail.com
3
Mestrando em Estudos da Linguagem pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos
da Linguagem (UEL). E-mail: jhosuemferreira@hotmail.com

177 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
Considerações iniciais

A importância da linguagem para a evolução do ser humano


é indiscutível, visto que a humanidade conseguiu sobreviver
e chegou ao estágio atual de sua evolução, pelo fato de ter
desenvolvido a capacidade comunicativa, mediante a apropriação
e o aprimoramento da linguagem.
Nesse sentido, a linguagem/língua é dinâmica, viva e, por
sua natureza, está sujeita a transformações e ressignificações. Em
qualquer momento, quando se combinam elementos para formar
palavras, frases, enfim, textos, ocorre uma série de modificações,
determinadas por fatores fonéticos, morfológicos, sintáticos e
semânticos.

Os estudos linguísticos: pressupostos teóricos

A linguagem é parte constitutiva e constituinte do ser


humano, sendo que decorre da necessidade de interação e da vida
em sociedade do homem com o(s) outro(s). “O homem procura
manter contato com outro em diversas circunstâncias de sua
vida, na tentativa de manter, com seu semelhante, relações tanto
culturais quanto linguísticas, com o objetivo de viver em sociedade”
(ROSA; DAMKE, 2011, p. 217).
A língua apresenta caráter heterogêneo, não como um
sistema dotado de regras fixas, imutáveis e categóricas, mas, ao
contrário, considerando sua natureza, é dinâmica e flexível. Dessa
forma, está sujeita a variações linguísticas (fatores inerentes ao
sistema linguístico) e extralinguísticas - (advindas da comunidade
de fala na qual os/as falantes estão inserido(a)s, como a faixa
etária, o gênero e o nível de escolaridade).

178 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
Trata-se da Sociolinguística - também conhecida como
Teoria da Variação - enquanto ciência preocupada com a variação/
mudança linguística, buscando entender as relações existentes
entre linguagem e sociedade. Ela se volta para a busca dos fatores
geradores da diversidade e da variação linguística existente na fala
de uma comunidade, ou seja, para o uso da língua na comunidade
de fala. Nessa perspectiva, a língua está sujeita a variações, de
maneira que elimina a concepção de falante ideal e de uma
comunidade linguística homogênea. Ou seja, seu objeto de estudo
é a língua falada, em um contexto social, em uma situação real de
uso. Nesse sentido, Micheletti reitera:

À ciência que se destina estudar a linguagem, considerando as


variáveis lingüísticas e extralingüísticas, atribui-se o nome de
Sociolingüística. É esta uma parte da própria lingüística que
se desenvolveu a partir da segunda metade do século XX. A
lingüística, como a própria terminologia diz, engloba as áreas-
centro da gramática: fonética, fonologia, morfologia, sintaxe
e semântica. Atualmente acrescentam-se os aspectos sociais e
psicológicos (MICHELETTI, 2007, pp.10-11).

A Sociolinguística estuda os padrões de comportamento


linguístico perceptíveis num determinado grupo de falantes e
entende a variação como um fenômeno normal do sistema da
língua, o que está em concordância com a sociedade atual, marcada
pela complexidade, heterogeneidade e propensa às mutações.
Dessa forma, o papel central da Sociolinguística é
investigar em que medida as variações apresentam estabilidade
ou mutabilidade, também analisar as variáveis e suas repercussões
nos fenômenos alternativos, além de inferir sobre comportamento
regular e sistemático. Acredita-se que os estudos sociolinguísticos
têm dado uma grande contribuição no que concerne à Língua

179 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
Portuguesa no Brasil, revelando o verdadeiro comportamento da
língua usada efetivamente pelas pessoas em contexto concreto.

Processos fonológicos: o fenômeno da monotongação

Dentre alguns dos processos de variação observáveis na


língua, destacam-se os processos fonológicos, os quais se referem
às modificações sofridas pelos fonemas no início, no meio ou no
fim da palavra e que são responsáveis pelas mudanças linguísticas,
logo, pela evolução da língua (CALLOU; LEITE, 2001).
No entendimento dessas autoras, é preciso considerar
ao mesmo tempo os processos fônicos que ocorrem, tanto nas
palavras isoladamente, quanto nas modificações que sofrem os
vocábulos por influência de outros com os quais estão em contato
na frase. Nesse sentido, o comportamento fonológico não é
amorfo, mas, ao contrário, o aspecto mais estruturado da língua.
Para tanto, justifica-se o surgimento da fonética, preocupada com
o estudo científico das línguas e, portanto, destaca-se como ciência
auxiliar da linguística.
Conforme Bisol (2001), em relação à tipologia dos
processos, destacam-se diferentes possibilidades, a saber: por
inserção de um segmento vocálico ou consonantal a uma palavra,
como a prótese, epêntese, paragoge; por suspensão na articulação
de uma palavra, como a aférese, síncope, apócope; por mudança de
um fonema para outro lugar da sílaba, como a metátese, hipértese;
e ainda por mudança sofrida por alguns fonemas em resultado da
influência de outros que lhe são próximos, processo encontrado na
assimilação, na nasalização, na palatalização e na monotongação.

180 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
Vale destacar que o processo relevante neste estudo é a
monotongação, ou seja, o processo fonológico pelo qual um
ditongo é convertido em monotongo. Conforme Câmara Jr., a
monotongação é:

Mudança fonética que consiste na passagem de um ditongo a uma


vogal simples. Para pôr em relevo o fenômeno da monotongação
chama-se, muitas vezes, monotongo, à vogal simples resultante,
principalmente quando a grafia continua a indicar o ditongo e
ele ainda se realiza numa linguagem mais cuidadosa (CÂMARA
JR., 1957, p. 100).

A esse apagamento, ou melhor, processo de simplificação


de um ditongo por meio da supressão da semivogal, em que sobra
apenas o som da vogal, dá-se o nome de monotongação, um termo
frequentemente encontrado em vários trabalhos linguísticos,
principalmente os que tratam de variação linguística.
A monotongação diz respeito a um processo de redução
de um ditongo a um monotongo (uma vogal que não muda
de qualidade na sua realização). Em outras palavras, ocorre
monotongação quando um ditongo (vogal + glide) é realizado
como uma vogal simples, ou seja, a semivogal4 da sequência é
apagada.
O fenômeno da monotongação e os estudos a ele
relacionados não são eventos recentes, haja vista que Aragão, em
seu artigo “Ditongação x Monotongação no falar de Fortaleza”,
apresenta uma análise sociolinguística através de entrevistas,
4
As semivogais são vogais assilábicas, ou seja, elas ocupam a margem do núcleo silábico,
pois não apresentam proeminência acentual para ser o centro da sílaba, como as vogais.
O português apresenta dois segmentos que se caracterizam como semivogal: o [j], que
muitas vezes é representado pelo [y], e o [w]. (cf. Oliveira, Dermeval da Hora. Fonética
e Fonologia. http://portal.virtual.ufpb.br/biblioteca-virtual/files/pub_1291085011.pdf ).

181 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
conversas espontâneas e interação médico-paciente. A autora
afirma que outros estudiosos já haviam investigado o fenômeno:

A hipótese de variante regional cearense ou mesmo nordestina


está totalmente descartada, uma vez que os mesmos fenômenos
ocorrem em diferentes regiões do país, comprovados por trabalhos
de estudiosos que analisaram esses falares regionais, como o de
Amaral (1920), para São Paulo; Monteiro (1933), para o Ceará;
Marroquim (1934), para Alagoas e Pernambuco; Teixeira (1938),
para Minas Gerais; Paes (1938) para o Rio Grande do Sul;
Teixeira (1944), para Goiás; Nascentes (1953), para o Rio de
Janeiro; e mais modernamente, Veado (1983), para Minas Gerais;
Meneghini (1983) para Ibiriçá - RS; Mota (1986), para Sergipe;
Paladino Neto (1990), para o Rio de Janeiro; Silva (1994) para
o Rio de Janeiro; Paiva (1996) para o Rio de Janeiro; Cabreira
(1996), para Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre; Silva (1997),
para a Paraíba e Araújo (2000) para o Ceará. (Aragão, 2000, p.
118).

A comunidade linguística investigada

A comunidade linguística por meio da qual realizamos


este trabalho consiste em um grupo de 196 alunos da cidade
de Ibiporã – PR. São estudantes da educação básica (9º ano do
Ensino Fundamental e 1º, 2º e 3º anos do Ensino Médio). A
idade dos alunos varia entre 14 (9º ano do EF) e 28 anos (3º
ano do EM).
Para verificar o processo da monotongação na fala,
dividimos os informantes por nível de escolarização, sendo
76 alunos do Ensino Fundamental (9º ano) e 120 estudantes
do Ensino Médio (1º, 2º e 3º anos). Elaboramos perguntas
estratégicas, de maneira que a resposta do aluno se resumisse a

182 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
uma palavra com ditongo decrescente, particularmente a sequência
/ej/. Ex.: Tudo que não é falso é... O homem que constrói casas
é... Quem nasce no Brasil é... Vendedor de pipocas é... Vendedor
de sorvetes é...

Apresentação de alguns resultados

a) A monotongação na fala dos alunos do Ensino


Fundamental
Dos 76 alunos desse nível de ensino, apenas 2 não
monotongaram na fala, isto é, pronunciaram as palavras leiteiro e
hoteleiro “corretamente”, do ponto de vista estrutural. Enquanto
2,64% dos alunos não monotongaram, 97,36% “aderiram” ao
processo de monotongação. Um fato curioso é que, mesmo sem
ter ciência da natureza da pesquisa, um aluno, ao responder a uma
pergunta cuja resposta foi a palavra “relojero”, disse em seguida:
“Professor, dexa ir no banhero”. Teria sido influência?

b) A monotongação na fala dos alunos do Ensino Médio


Dos 120 alunos, 16 não monotongaram na fala,
pronunciando as palavras trabalhadeira, companheiro, madeireira,
fuxiqueiro, passageiro, mensageiro, carpinteiro, funileiro, hoteleiro,
lixeiro, brasileiro, leite, leitura, prefeitura, respeito e baleia sem o
apagamento do iode. Enquanto 13,33% dos alunos do EM não
monotongaram na fala, 86,67% realizaram o apagamento do iode.
Nas palavras cujo contexto posterior é a consoante dental /t/ ou
consiste na vogal /a/, formando hiato com o segmento /ej/, o
ditongo permanece. Não houve um caso sequer da pronúncia de
“lete”, “letura”, “prefetura”, “respeto” e “balea”, por exemplo. Porém,

183 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
nas palavras cujo contexto seguinte é a vibrante /r/, houve a
ocorrência de 87% do fenômeno da monotongação. As palavras
cujo contexto posterior é a chiante [ʃ] apresentaram 100% de
monotongação. Todos pronunciaram as palavras “bejo” e “quejo”.

c) A monotongação na escrita das meninas do Ensino


Fundamental
Investigamos a monotongação na escrita por intermédio da
seguinte estratégia: solicitamos aos alunos que elaborassem uma
lista de 40 (quarenta) profissões. Depois selecionamos as palavras
que apresentam ditongo em sua estrutura. As 38 meninas desse
nível de ensino forneceram um total de 441 palavras. Dentre as
441 palavras, houve 28 ocorrências de pedreiro e nenhum registro
de “pedrero”.
Houve somente 1 ocorrência de cabeleireiro e 25 ocorrências
de “cabelereiro”, ou seja, 3% de manutenção do ditongo, contra
97% do apagamento do iode no primeiro ditongo da palavra:
“cabelereiro”. Verificamos 11 ocorrências da palavra enfermeiro,
todas com a manutenção do ditongo. Houve 27 ocorrências
de cozinheiro; 18 ocorrências de sorveteiro; 20 ocorrências
de marceneiro; 23 ocorrências de engenheiro; 22 ocorrências
de lixeiro; 15 ocorrências de carpinteiro; 14 ocorrências de
jardineiro; 6 ocorrências de carteiro; 9 ocorrências de banqueiro;
31 ocorrências de padeiro (todas com a manutenção do ditongo);
1 ocorrência de açougueiro contra 7 ocorrências de “açogueiro”,
com o apagamento da semivogal no primeiro ditongo da palavra;
17 ocorrências de costureira; 9 ocorrências de farmacêutico; 9
ocorrências de enfermeira; 7 ocorrências de feirante; 5 ocorrências
de fisioterapeuta; 4 ocorrências de costureiro; 3 ocorrências
de autônomo; 6 ocorrências de cozinheira; 2 ocorrências de

184 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
terapeuta; 1 ocorrência de farmacêutica; 19 ocorrências de
bombeiro; 1 ocorrência de oleiro; 2 ocorrências de doutor; 9
ocorrências de caminhoneiro; 9 de caseiro; 6 de faxineira; 1 de
churrasqueiro; 6 de coveiro; 2 de camareira; 1 de bandeirinha; 1
de confeiteiro; 1 de borracheiro; 5 de sapateiro; 11 de prefeito; 1
de vidraceiro; 1 de pasteleiro; 13 de porteiro; 5 de faxineiro; 6 de
“cabelereira”, com o apagamento do iode no primeiro ditongo;
9 de barbeiro; 2 registros de “madereiro”, com o apagamento do
iode no primeiro ditongo; 2 registros de ferreiro; 2 registros de
“bombero”, com o apagamento do iode; 2 de auxiliar; 1 registro
de autor; 1 registro de pacoteiro e 1 de funileiro.

d) A monotongação na escrita das meninas do Ensino


Médio
As 72 meninas do Ensino Médio forneceram um total
de 811 palavras. Dentre as 811 palavras, houve 62 ocorrências
de pedreiro e nenhum registro de “pedrero”. 23 ocorrências de
auxiliar; 32 de costureira; 43 de padeiro, contra 2 de “padero”,
com o apagamento do iode; 22 de caminhoneiro; 5 de leiteiro;
28 de lixeiro; 7 de chaveiro; 12 de caixa; 26 de sorveteiro, contra
2 ocorrências de “sorvetero”, com o apagamento do iode; 12 de
cozinheira; 16 de jardineiro; 25 de carpinteiro; 33 de cozinheiro;
49 de engenheiro, contra 1 de “engenhero”, com o apagamento
do iode; 41 de bombeiro; 7 de confeiteiro; 3 de sacoleiro; 3 de
costureiro; 7 de porteiro; 2 de caseiro; 10 de cabeleireiro contra
26 ocorrências de “cabelereiro”, com o apagamento do iode no
primeiro ditongo da palavra; 31 de farmacêutico; 16 de coveiro; 31
de marceneiro; 17 de enfermeira; 1 de treinador; 8 de fisioterapeuta;
1 de confeiteira; 6 de pamonheiro; 9 de faxineiro; 22 de carteiro;
2 de carcereiro; 3 de serralheiro, contra 1 de “serralhero”, com

185 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
o apagamento do iode; 3 de banqueiro; 1 de “covero”, com o
apagamento da semivogal; 3 de ferreiro; 14 de prefeito; 18 de
enfermeiro; 7 de açougueiro, contra 23 ocorrências de “açogueiro”,
com o apagamento da semivogal no primeiro ditongo da palavra;
2 de marinheiro; 1 de “funilero”, com o apagamento do iode; 1
de “calhero”, com o apagamento do iode; 1 de tintureiro; 1 de
“ferramentero”, com o apagamento do iode; 1 de farmacêutica; 2
de borracheiro; 2 de fazendeiro; 1 de autor; 4 de hoteleiro; 1 de
“açogueira”, com o apagamento da semivogal no primeiro ditongo;
5 de faxineira; 3 de funileiro; 2 de fruteiro; 1 de arrumadeira;
2 de verdureiro; 6 de sapateiro; 1 de copeiro; 6 de terapeuta; 6
de pacoteiro; 1 de pasteleiro; 2 de barbeiro; 1 de torneiro; 1 de
confeitero, com o apagamento do iode no segundo ditongo da
palavra; 1 de biscatero, com o apagamento do iode; 3 de vidraceiro;
2 de madereiro, com o apagamento do iode no primeiro ditongo;
1 de “pexero’, com o apagamento do iode nos dois ditongos; 1 de
mensageiro; 1 de carreteiro; 2 de pipoqueiro; 1 de leiloeiro; 2 de
engenheira; 1 de bailarina; 1 de astronauta; 1 de motoqueiro; 2 de
juiz de direito; 1 de gestor financeiro; 1 de tapeceiro; 1 de doceira;
1 de gerente de restaurante; 1 de atendente de restaurante; 1 de
auxiliar de cozinha; 1 de açoguero, com o apagamento da semivogal
nos dois ditongos da palavra e 1 ocorrência de forneiro.

e) A monotongação na escrita dos meninos do Ensino


Fundamental
Os 24 meninos dessa modalidade de ensino foram
informantes de um total de 266 palavras. Dentre as 266
palavras, houve 16 ocorrências de lixeiro, 10 de sorveteiro; 1
ocorrência de cabeleireiro contra 13 ocorrências de cabelereiro,
com o apagamento do iode no primeiro ditongo da palavra; 10

186 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
ocorrências de marceneiro; 10 de jardineiro; 12 de padeiro; 12 de
cozinheiro; 20 de pedreiro; 5 de costureira, 9 de enfermeiro; 12 de
engenheiro; 4 de terapeuta; 11 de carpinteiro; 14 de bombeiro; 5 de
enfermeira; 7 de caminhoneiro; 3 de banqueiro; 1 de garimpeiro
contra 1 de garimpero, com o apagamento do iode; 2 de feirante;
2 de marinheiro; 1 de faxineira; 2 de carteiro; 1 de açougueiro;
6 de barbeiro; 7 de prefeito; 5 de porteiro; 4 de serralheiro; 1 de
bicicleteiro; 1 ocorrência de cozinhero, com o apagamento do
iode; 1 de leiteiro, contra 2 de leitero, com o apagamento do iode
no segundo ditongo da palavra, confirmando uma das “regras
internas” da língua, que é a manutenção do ditongo diante da
consoante dental /t/ e a eliminação do iode com a vibrante /r/
em contexto posterior; 1 de cabelereira, com o apagamento do
iode no primeiro ditongo; 4 de sapateiro; 2 de madereiro, com o
apagamento do iode no primeiro ditongo da palavra; 5 de caseiro;
1 de ferreiro; 2 de faxineiro; 1 de treinador; 1 de marcenero, com o
apagamento do iode; 1 de costureiro; 4 de funileiro; 1 de auxiliar
- é interessante registrar dois possíveis motivos pelos quais não
houve o processo de monotongação na palavra auxiliar: neste
caso a letra x não representa o fonema [ʃ] e também não temos
a presença do segmento /ej/; 3 de chaveiro; 3 de pipeiro; 1 de
forneiro, contra 2 de fornero, com o apagamento do iode diante
da vibrante /r/; 1 de engenhero, com o apagamento do iode; 2 de
borracheiro; 3 de açogueiro, com o apagamento da semivogal no
primeiro ditongo; 1 de pacotero, com o apagamento do iode; 2
de doutor; 2 de carcereiro; 3 de coveiro, contra 1 de covero, com
o apagamento do iode; 2 de bandeirinha contra 1 de banderinha,
com o apagamento do iode; 1 de seleiro; 1 de padero, com o
apagamento do iode diante da vibrante /r/; 1 de garimpeiro; 1 de
caminhonero, com o apagamento do iode; 1 de fisioterapeuta; 1
de carreteiro e 1 de fazendeiro.

187 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
f ) A monotongação na escrita dos meninos do Ensino
Médio
Os 62 meninos do Ensino Médio foram informantes de um
total de 738 palavras. Dentre as 738 palavras, houve 24 ocorrências
de marceneiro; 55 de pedreiro, contra 1 registro de pedrero, com o
apagamento do iode diante da vibrante /r/; 25 de carpinteiro, 45
de engenheiro, contra 1 de engenhero, com o apagamento do iode
diante da vibrante /r/; 40 de padeiro, contra 3 de padero, com o
apagamento do iode diante da vibrante /r/; 7 de confeiteiro; 6 de
leiteiro, contra 1 de leitero, com o apagamento do iode diante da
vibrante /r/; 29 de lixeiro; 3 de operador de caixa; 14 de jardineiro;
6 de costureiro; 22 de caminhoneiro; 8 de chaveiro; 3 de sacoleiro;
9 de porteiro; 6 de leiteiro, com a manutenção do iode diante da
consoante dental /t/ e diante da vibrante /r/; 12 de caixa, com
a manutenção do iode diante da consoante chiante [ʃ]; 18 de
cozinheiro; 45 de bombeiro; 13 de coveiro; 10 de costureira; 10
de faxineiro; 5 de faxineira; 2 de blogueiro; 1 de sacoleira; 18 de
sorveteiro; 17 de enfermeiro; 5 de enfermeira; 13 de funileiro; 1
de copeiro; 1 de alfaiate, com a manutenção do ditongo diante
da vogal /a/; 3 de carcereiro; 10 de açougueiro, com a manutenção
do vau diante da oclusiva vozeada /g/ e a manutenção do iode
diante da vibrante /r/, contra 24 de açogueiro, com o apagamento
do vau diante da oclusiva vozeada /g/ e a manutenção do iode
diante da vibrante /r/; também houve 1 registro de açoguero, com
o apagamento do vau diante da oclusiva vozeada /g/ e do iode
diante da vibrante /r/; 1 de juiz de direito; 9 de serralheiro; 25 de
farmacêutico; 9 de cabeleireiro, com a manutenção do iode nos
dois ditongos, contra 22 de cabelereiro, com o apagamento do iode
no primeiro ditongo; 16 de borracheiro, contra 2 de borrachero,
com o apagamento do iode; 3 de cozinheira; 6 de relojoeiro; 2 de

188 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
banqueiro; 3 de fisioterapeuta; 1 de sucateiro; 13 de auxiliar; 1 de
auxiliar geral; 2 de fazendeiro; 1 de escoteiro; 2 de covero, com o
apagamento do iode; 4 de tapeceiro; 4 de torneiro; 3 de autor; 1
de neurologista; 17 de prefeito; 1 de carvoeiro; 6 de marinheiro;
5 de ferreiro; 3 de sapateiro; 1 de butineiro; 1 de conselheiro; 1
de lenheiro; 1 de boiadeiro; 1 de terapeuta; 1 de madereiro, com o
apagamento do iode no primeiro ditongo; 1 de hoteleiro, contra
1 de hotelero, com o apagamento do iode diante da vibrante
/r/ ; 1 de lixero, com o apagamento do iode; 9 de pacoteiro,
contra 1 de pacotero, com o apagamento do iode; 3 de barbeiro;
1 de estaleiro; 3 de vidraceiro; 3 de calheiro; 8 de carteiro; 1 de
latoeiro; 1 de astronauta; 1 de leiloeiro, com a manutenção do
iode diante da consoante lateral /l/ e diante da vibrante /r/; 1
de confeitero, com a manutenção do iode diante da consoante
dental /t/ e o apagamento diante da vibrante /r/; 2 de pipoqueiro;
1 de garimpeiro; 1 de doutor, com a manutenção do vau diante
da consoante dental /t/; 1 registro de atendente de açougue, com
a manutenção do vau diante da consoante oclusiva vozeada /g/;
1 de doceiro; 3 de pasteleiro; 1 de gesseiro; 1 de jornaleiro e 1 de
lancheiro.

Considerações finais

Podemos afirmar que, após uma apuração mais detalhada


dos resultados, chegamos à seguinte verificação: entre as 441
(quatrocentas e quarenta e uma) palavras informadas pelas 38
(trinta e oito) meninas do Ensino Fundamental na escrita, 351
(trezentas e cinquenta e uma) palavras trazem a terminação eiro.
Das 351 (trezentas e cinquenta e uma), houve somente 2 (dois)

189 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
casos de monotongação, perfazendo um total de apenas 1% (um
por cento) do registro de palavras (terminadas em eiro) que foram
monotongadas na escrita do grupo pesquisado.
Entre o total de palavras informadas, 17 (dezessete) são
vocábulos que trazem o ditongo eu diante da consoante dental
/t/, com 0% (zero por cento) de monotongação; 10 (dez) palavras
trazem o ditongo ou, apresentando 70% (setenta por cento) de
monotongação; 25 (vinte e cinco) são palavras que terminam com
o sufixo eira, apresentando 100% (cem por cento) da manutenção
do ditongo, ou seja, 0% (zero por cento) de monotongação; 6
(seis) palavras são portadoras do ditongo au, diante da consoante
dental /t/, com 0% (zero por cento) de monotongação; 7 (sete) são
palavras que trazem o ditongo ei na primeira sílaba (pretônica),
com 0% (zero por cento) de monotongação; 12 (doze) são palavras
com o ditongo ei diante da consoante dental /t/, com 0% (zero por
cento) de monotongação; 1 (uma) palavra é portadora do ditongo
ei na sílaba pretônica, não sofrendo monotongação; 4 (quatro) são
palavras portadoras do ditongo au, diante da consoante dental
/t/, com 0% (zero por cento) de monotongação; 2 (duas) são
portadoras do ditongo ou, diante da consoante dental /t/, com
0% (zero por cento) de monotongação; Dentre as 72 (setenta
e duas) meninas do Ensino Médio, das 811 (oitocentas e onze)
palavras fornecidas por esse grupo de informantes, 622 (seiscentas
e vinte e duas) são portadoras do ditongo ei na terminação eiro,
apresentando um total de 3% (três por cento) de monotongação,
contra 97% (noventa e sete por cento) da manutenção do
ditongo diante da consoante vibrante /r/; 72 (setenta e duas)
palavras são portadoras do sufixo eira, com 0% (zero por cento)
de monotongação; 27 (vinte e sete) são portadoras do ditongo au,
como em autor, auxiliar e astronauta, com 0% (zero por cento) de

190 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
monotongação; 7 (sete) são portadoras do ditongo ou, diante da
oclusiva vozeada /g/, com 0% (zero por cento) de monotongação;
46 (quarenta e seis) são portadoras do ditongo eu, diante da
consoante dental /t/, com 0% (zero por cento) de monotongação;
13 (treze) são portadoras do ditongo ai, diante da consoante
chiante [ʃ] ou da consoante lateral /l/, com 0% (zero por cento)
de monotongação; 24 (vinte e quatro) são palavras portadoras do
ditongo ei, diante da consoante dental /t/, com 100% (cem por
cento) da manutenção do ditongo.
Dentre os 24 (vinte e quatro) meninos do Ensino
Fundamental, das 266 (duzentas e sessenta e seis) palavras
fornecidas por esse grupo de informantes, constatou-se que 234
(duzentas e trinta e quatro) palavras trazem em sua estrutura o
sufixo eiro, apresentando 5% (cinco por cento) de monotongação;
2 (duas) são portadoras do ditongo ei na sílaba pretônica, com
0% (zero por cento) de monotongação; 1 (uma) é portadora
do ditongo au, como em auxiliar, com 0% (zero por cento) de
monotongação; 2 (duas) são portadoras do ditongo ou, diante da
consoante dental /t/ com 0% (zero por cento) de monotongação; 4
(quatro) são portadoras do ditongo ou, diante da oclusiva vozeada
/g/, com 0% (zero por cento) de monotongação; 4 (quatro) são
portadoras do ditongo eu, diante da consoante dental /t/, com
0% (zero por cento) de monotongação; 7 (sete) são portadoras
do ditongo ei, diante da consoante dental /t/, com 0% (zero por
cento) de monotongação; 1 (uma) palavra é portadora do ditongo
ei, diante da consoante dental /n/, com 0% (zero por cento) de
monotongação; 3 (três) são portadoras do ditongo ei, na sílaba
pretônica e diante da consoante vibrante /r/, com 33% (trinta e
três por cento) de monotongação.

191 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
Dentre os 62 (sessenta e dois) estudantes do gênero
masculino do Ensino Médio, das 738 (setecentas e trinta e oito)
palavras fornecidas por esse grupo de informantes, constatou-se
que 618 (seiscentas e dezoito) palavras trazem em sua estrutura o
sufixo eiro, apresentando 3% (três por cento) de monotongação; 24
(vinte e quatro) são portadoras do sufixo eira, com 100% (cem por
cento) da manutenção do ditongo; 17 (dezessete) são portadoras
do ditongo au, com 0% (zero por cento) de monotongação;
30 (trinta) são portadoras do ditongo eu, diante da consoante
dental /t/ ou da consoante vibrante /r/, com 0% (zero por cento)
de monotongação; 18 (dezoito) são portadoras do ditongo ei,
diante da consoante dental /t/, com 0% (zero por cento) de
monotongação; 16 (dezesseis) são portadoras do ditongo ai,
diante da chiante [ʃ] com 0% (zero por cento) de monotongação;
15 (quinze) são portadoras do ditongo ou, diante da consoante
dental /t/ ou da oclusiva vozeada /g/, com 5% (cinco por cento)
de monotongação.
Esta investigação não pretende apresentar uma definição
exata de como se realiza o processo da monotongação na fala ou na
escrita. Trata-se de um trabalho que talvez possa oferecer subsídios
para potenciais interessados, que ainda sejam iniciantes no tema.
Como todas as áreas do conhecimento humano, a Fonética é um
campo de inesgotáveis descobertas, haja vista a complexidade
da língua nos aspectos que são estudados pela Sociolinguística,
conforme já foi apresentado no início do trabalho.
Considerando os resultados da pesquisa, constatamos
que, embora o ditongo /ej/ tenha praticamente desaparecido na
oralidade em palavras que trazem as consoantes [r], [ʃ] ou [Ʒ]
como contexto posterior, ainda persiste na escrita, salvo algumas
exceções. Verificamos também que, com a consoante dental /t/ em

192 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
posição imediatamente posterior ao ditongo /ej/, o apagamento
da semivogal não se realiza na fala nem na escrita. Em se tratando
dos ditongos au, oi, eu, como em auxiliar, boiadeiro, fisioterapeuta
ou farmacêutico, o fenômeno da monotongação praticamente
não existe.

Referências

ARAGÃO, Maria do Socorro Silva. Ditongação X monotongação no falar


de Fortaleza. In: Graphos, João Pessoa: PB, v. V, n. 1, p. 109-122, 2000.

BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolinguística. 17ª ed. 1ª


reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2012, pp. 80-93.

BISOL, Leda. Introdução aos estudos de fonologia do português brasileiro.


Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

CALLOU, Dinah; LEITE, Yonne. Iniciação à fonética e à fonologia. RJ:


Jorge Zahar, 2001.

CÂMARA JUNIOR. Joaquim Mattoso. Para o estudo da fonêmica


Portuguesa. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1957.

MICHELETTI, Wérica Dias. A monotongação de /ej/ e /ow/ no Português


do Brasil: uma pesquisa sociolinguística nos eixos diatópico, diastrático
e diafásico. Londrina. Monografia, UEL-PR, 2007.

ROSA, Eliane Kreutz; DAMKE, Ciro. Os caminhos da linguagem: uma


revisão histórica. Revista Línguas e Letras. vol. 12, nº 22, 1º semestre de
2011, p. 217-240.

193 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
SILVA, Giselle Machline de Oliveira; SCHERRE, Maria Marta
Pereira (orgs). Padrões sociolinguísticos: análise de fenômenos variáveis
do português falado na cidade do Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, Departamento de Linguística e Filologia, UFRJ,
1998, pp. 217-236.

TOLEDO, Eduardo Elisalde; MONARETTO, Valéria Neto de


Oliveira. A redução de ditongos orais decrescentes no português
brasileiro do sul do Brasil: descrição e generalização. Anais do IX Encontro
do CELSUL. Universidade do Sul de Santa Catarina, Palhoça: SC, out.
2010. Disponível em: http://www.celsul.org.br/Encontros/09/artigos/
Eduardo%20Toledo.pdf.. Acesso em: 17 dez. 2012.

194 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 177-194 – jul./dez. 2020
CARTA PESSOAL: A IMPORTÂNCIA DA
PRODUÇÃO DE GÊNEROS MANUSCRITOS
NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Daiane Aparecida Martins1


Givan José Ferreira dos Santos2

RESUMO: Esta pesquisa apresenta uma reflexão acerca da importância de


se estudar os gêneros textuais que deram origem aos meios de comunicação
utilizados na atualidade, através de uma proposta de atividade com o gênero
carta pessoal, onde se evidenciou a subjetividade e o levantamento de traços
característicos, levando-se em consideração as produções feitas por alunos
de sétimo ano do Ensino Fundamental de uma escola pública da cidade de
Londrina. Na fase final, em termos de resultado, traz-se uma comprovação da
teoria, enfatizando que os discentes foram capazes de compreender a importância
do equilíbrio em termos de tecnologia e gêneros manuscritos.
PALAVRAS-CHAVE: Carta pessoal. Prática docente. Subjetividade.

ABSTRACT: This research presents a reflection on the importance of studying


the textual genres that gave rise to the means of communication used today,
through an activity proposal with the genre personal letter, where subjectivity
and the survey of characteristic traits became evident, leading we take into
account the productions made by seventh-grade students in a public school in
the city of Londrina. In the final phase, in terms of results, there is evidence of
the theory emphasizing that students were able to understand the importance
of balance in terms of technology and manuscript genres.
KEYWORDS: Personal letter. Teaching practice. Subjectivity.

1
Professora da rede pública paranaense. Mestre em Ensino de Ciências Humanas, Sociais
e da Natureza pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná - Campus Londrina.
Pesquisadora na área dos gêneros discursivos, multiletramentos, práticas pedagógicas e
Educação do Campo.
2
Professor adjunto da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Desenvolve trabalhos
em diversos cursos de graduação, com enfoque nas disciplinas de Comunicação Linguística
e Metodologia da Pesquisa Científica, e no Programa de Pós-Graduação em Ensino de
Ciências Humanas, Sociais e da Natureza - PPGEN.

195 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Introdução

Atualmente, no contexto educacional, notamos a presença


de alguns desafios com relação ao ensino de Língua Portuguesa
no que se refere aos gêneros textuais manuscritos. Isso se dá
marcadamente pela constante presença do uso das tecnologias na
vida do alunado. Em decorrência desse fato, há uma desvalorização
gradativa de produções textuais que prezem o contato do aluno
com o papel e a caneta.
Não podemos deixar de citar que o uso das Tecnologias
de Informação e Comunicação (TIC) tem contribuído
consideravelmente com os processos de ensino e aprendizagem,
haja vista que, a partir de tal perspectiva, o professor passa a ser
visto como um mediador do conhecimento e o discente tem papel
colaborativo pelo fato de ter várias ferramentas que possibilitem
a busca por conteúdos de diferentes naturezas ao alcance de
suas mãos. Entretanto, a partir da perspectiva de pensamento
de Tom Chatifield (2016), há um individualismo causado pelo
uso excessivo das máquinas na era tecnológica. Os indivíduos
participam mais culturalmente através de publicações escritas e/ou
gravadas, a fim de obter autoafirmação intelectual e de consciência,
porém há uma desvalorização da sociedade como um todo, seus
sentimentos, desejos e contextos de produção de tais publicações.
Em alguns contextos sociais ainda se preserva o costume
de enviar um cartão manuscrito, uma carta de amor inesperada,
um bilhete engraçado, dentre outros gêneros produzidos a mão,
mas quando se propõe um trabalho assim em sala de aula, o aluno
considerado um comunicador das redes sociais, na maior parte
das vezes, não vê sentido em mandar uma carta quando se pode
ter conversas simultâneas com qualquer pessoa utilizando seus
aparelhos de celular.

196 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Portanto, em vista dessas considerações, o presente artigo
tem como principal problemática a busca pela forma produtiva de
proporcionar um trabalho com o gênero carta pessoal em uma turma
de sétimo ano, objetivando promover a subjetividade na produção
textual, levando-se em conta a discussão acerca da importância
das produções manuscritas como elemento potencializador da
expressão de sentimentos a partir da comunicação. Para tanto, por
intermédio de uma pesquisa bibliográfica, no primeiro momento
será discutido o papel da escola no resgate de tais gêneros, bem
como a importância de se equilibrar o uso das tecnologias às
formas ditas antigas de se comunicar. Na sequência, em caráter
descritivo, serão abordadas algumas reflexões acerca dos gêneros
textuais na perspectiva de como se ensinar de forma a valorizar os
sentimentos e particularidades dos discentes produtores de textos.
Após tais definições, este estudo apresentará uma caracterização
específica do gênero carta pessoal no intuito de promover a
valorização desse gênero. A fim de ilustrar tal abordagem, a partir
de uma pesquisa de campo em sala de aula, será feito o relato de
uma atividade desenvolvida numa sequência de aulas de Língua
Portuguesa com alunos de sétimo ano do Ensino Fundamental.
Nas análises e considerações finais, os resultados de
tal atividade serão interpretados e ilustrados com trechos das
produções feitas pelos alunos e de depoimentos escritos por eles.

O ensino e a tecnologia

Adotando-se um conceito amplo, tecnologias são “técnicas,


processos, métodos, meios e instrumentos de um ou mais ofícios
ou domínios da atividade humana” (AURÉLIO, 2018). Desde

197 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
os primórdios, o ser humano cria e usa novas técnicas, buscando
facilitar e tornar seus fazeres mais práticos. Atualmente, é evidente
o quanto o homem moderno depende das tecnologias, sobretudo
as que envolvem as comunicações. Com as crianças e jovens não
é diferente, interagir com qualquer lugar do mundo através de
pequenas máquinas se tornou atividade corriqueira. Além de
estarem 24 horas conectados, os jovens costumam postar nas
redes sociais a maioria de suas atividades diárias, depoimentos
emocionantes de aniversários para amigos e familiares, legendas
de imagens expondo sensações, dentre outras formas de expressar
seus sentimentos. De acordo com a perspectiva de Chatifield
(2016), a quantidade de publicações é cada vez maior, todavia há
uma perda no que diz respeito à qualidade e o papel social dos
textos, haja vista que a maioria das publicações busca apenas a
autoafirmação do indivíduo.
Já em 1975, o filósofo e sociólogo Erick Fromm abordava
tal temática, dizendo que a crescente evolução tecnológica, em
função da produção máxima para alimentar o consumismo,
atrapalha a evolução humana no sentido de que o surgimento
de novas ideias é prejudicado pela insegurança das pessoas no
que tange aos processos de criação, “a razão surge da fusão do
pensamento racional com o sentimento” (FROMM, 1975, p.56).
Ao tentar aproximar a máquina das características próprias do ser
humano, é o ser humano que está se aproximando das máquinas,
deixando de priorizar seus sentimentos, pensar no próximo e dar
sentido à vida, já que

o presente já nos mostra homens que agem como robôs (...)


o computador pode servir à intensificação da vida em muitos
aspectos. Mas a idéia de que ele substitui o homem e a vida é a
manifestação da patologia de hoje (FROMM, 1975, p.59).

198 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Estando o aluno acostumado com a facilidade da
máquina, notamos um certo desprezo com relação aos meios de
comunicação que deram origem aos que eles usam hoje, aliás
poucos sabem como surgiram e funcionavam ferramentas de
diálogo que eram comuns na época de seus pais, por exemplo.
Falar de gêneros textuais ligados à interação escrita já remete
diretamente aos aplicativos de conversa simultânea, portanto é
na escola que se deve esclarecer as origens e as formas usadas em
outros tempos, tendo em vista que

Como qualquer outro produto social, os gêneros textuais não


são formas fixas, mas estão sujeitos a mudanças, decorrentes das
transformações sociais, de novos procedimentos de organização
e acabamento da arquitetura verbal, bem como de modificações
conforme o lugar atribuído ao ouvinte (KOCH; ELIAS, 2010,
p.58).

A partir de tais afirmações, consideramos que é nas aulas


de Língua Portuguesa que o aluno, tendo vivências e experiências
baseadas em trabalhos com diferentes gêneros textuais, terá a
oportunidade de conviver com textos que já não fazem mais parte
de suas interações sociais. Além disso, uma sequência didática
bem pensada e embasada teoricamente pode proporcionar uma
reflexão ainda maior em se tratando da subjetividade dos textos
produzidos, sem falar nas diferentes sensações que a leitura e a
escrita podem propiciar ao discente quando ele compreende o
gênero textual em seus múltiplos aspectos.

199 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Gêneros textuais e suas particularidades

Intitulados de gêneros do discurso por Mikhail Bakhtin


(1997), e de gêneros textuais por Marcuschi (2003), o tema teve
seu primeiro conceito apresentado por Bakhtin:

A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais


e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes
duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado
reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma
dessas esferas [...] cada esfera de utilização da língua elabora
seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que
denominamos gêneros do discurso (BAKHTIN, 1997, p.290).

Segundo o autor, a língua, o enunciado e os gêneros estão


intimamente relacionados, em se tratando de um funcionamento
satisfatório da comunicação. Ele considera também que os gêneros
são oriundos das mais variadas atividades humanas e podem sofrer
mudanças de acordo com o contexto de produção.
Metodológica e teoricamente, no que se refere ao ensino
de Língua Portuguesa, é cada vez mais evidenciada a importância
de se trabalhar com os gêneros textuais numa perspectiva ampla,
levando-se em conta uma série de fatores essenciais que devem
ser considerados antes mesmo que um pequeno texto seja lido
pelo discente. Nos documentos oficiais que norteiam os objetivos
e práticas pedagógicas, notam-se pontos que tornam evidente a
importância do ensino baseado nas propostas de trabalho com
gêneros no âmbito da formação social do indivíduo:

Todo texto se organiza dentro de determinado gênero em


função das intenções comunicativas, como parte das condições

200 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
de produção dos discursos, as quais geram usos sociais que os
determinam [...]
Toda educação verdadeiramente comprometida como exercício
da cidadania precisa criar condições para o desenvolvimento
da capacidade de uso eficaz da linguagem que satisfaça suas
necessidades pessoais – que podem estar relacionadas às ações
efetivas do cotidiano, à transmissão e busca de informação, ao
exercício da reflexão [...]
no processo de ensino e aprendizagem dos diferentes ciclos do
ensino fundamental espera-se que o aluno amplie o domínio ativo
do discurso nas diversas situações comunicativas, sobretudo nas
instâncias públicas de uso da linguagem, de modo a possibilitar
sua inserção efetiva no mundo da escrita, ampliando suas
possibilidades de participação social no exercício da cidadania
(BRASIL, 1998, p.21-32).

Quando se usa o espaço escolar para desenvolver as


capacidades linguísticas no sentido de compreender os enunciados
e seus respectivos contextos, o aluno consequentemente terá uma
formação social, visto que “cada pessoa, através da comunicação
por gêneros textuais, aprende mais sobre suas possibilidades
pessoais, desenvolve habilidades comunicativas e compreende
melhor o mundo com que está se comunicando” (BAZERMAN,
2005, p.106). Portanto, nas aulas de Língua Portuguesa, se faz
necessário ter uma abordagem que leve em consideração o fato
de que a linguagem é fruto de uma produção humana, possui
finalidades específicas, características próprias, dentre outros
fatores determinados pelo contexto de produção.
Para que se realize trabalhos baseados em tais perspectivas,
o docente, no papel de mediador do conhecimento, deverá detalhar
o texto a ser lido, citando a importância de se compreender o
contexto de produção, ou seja, quem escreveu, para quem o texto
foi escrito, qual foi seu objetivo, qual o lugar de produção, entre

201 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
outros aspectos. A partir de tal entendimento, o discente será capaz
de compreender o gênero textual em questão de forma ampla e terá
autonomia de produzi-lo, aliando os conhecimentos adquiridos
à sua vivência, realizando assim uma produção baseada em suas
práticas sociais de comunicação. Como afirma Antunes (2016),
a escola não pode se isentar da responsabilidade de apresentar
ao aluno as práticas sociais que acontecem a partir das trocas
efetivadas pela linguagem e isso se dá a partir do entendimento
de diferentes gêneros que circulam em diferentes esferas do
cotidiano das pessoas.
O discente hoje é considerado um colaborador na construção
dos saberes, ele contribui de acordo com sua experiência de vida
e faz participações com variados tipos de comentários durante as
aulas. Portanto, ao produzir um texto, após ter trabalhado com a
compreensão do gênero, sua subjetividade estará presente, seja por
meio de marcas linguísticas ou semânticas. A partir do momento
em que o autor expressa suas marcas, estando apto a se fazer
comunicar/entender por meio de gêneros textuais adequados ao
contexto, podemos afirmar que parte da sua formação, almejada
pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), está se fazendo
de maneira satisfatória.

Carta pessoal: histórico e características

A carta é considerada por alguns estudiosos como o meio


de comunicação escrita mais antigo do mundo, pois era por elas
que os mensageiros do antigo Egito, há 4 mil anos antes de Cristo,
saiam a pé, a cavalo ou em camelos para levar recados a pessoas
distantes. Na Bíblia, por exemplo, há 21 cartas escritas por Paulo e

202 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
outros seguidores de Cristo destinadas a povos romanos e gregos.
No Brasil, esse meio de comunicação chegou já no momento
do descobrimento, quando Pero Vaz de Caminha enviou uma
carta que comunicava o descobrimento de novas terras. A partir
daí, costumavam enviá-las ao rei, a fim de que ele se mantivesse
informado acerca das notícias da colônia. Em 1840, foi criado
o primeiro serviço postal na Inglaterra, chegando ao Brasil em
meados de 1843. Então, o uso das cartas se tornou comum e
essencial na comunicação entre as pessoas até a chegada do
telefone e outros meios que facilitaram e agilizaram a interação
entre as pessoas.
Com o passar dos anos, a carta passou por transmutações,
levando-se em consideração que as situações de produção e
circulação mudaram com a chegada da tecnologia e a mudança nos
domínios discursivos, criando-se assim uma grande variedade de
subgêneros. Neste estudo, será dado ênfase à carta pessoal, texto
analisado e proposto em sala de aula.
Em se tratando de suas características, Bortolin et al. (2017)
cita Köche et al. (2012), Kaufman e Rodriguez (1995), enfatizando
que a carta pessoal deve conter um remetente e um destinatário
que possuem certo grau de intimidade e estabelecem uma
comunicação a distância. É de acordo com o grau de intimidade
também que se determina a linguagem que, na maioria das vezes,
apresenta marcas da oralidade, pontuação diferenciada e com
pouca formalidade. Sua estrutura costuma ter local, data, vocativo,
corpo do texto e assinatura, podendo conter ainda o “P.S” (post-
scripitum) que é definido como uma nota final constando algo que
foi esquecido de mencionar no corpo da carta. Caso seja enviada
pelo correio, ela é colocada em um envelope que deve conter os
dados do remetente e destinatário.

203 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Marcuschi (2003), ao afirmar que um texto é tipologicamente
heterogêneo, enfatiza que a carta pessoal “pode conter uma
seqüência narrativa (conta uma historinha), uma argumentação
(argumenta em função de algo), uma descrição (descreve uma
situação)”, além de contar ainda com sequências, expositivas
(apresenta conceitos, explicações) e injuntivas (instrui e orienta).
Acerca do trabalho com o gênero textual em questão,
Bertolin et al. (2017) mencionam um roteiro proposto por
Santos (2013) e adaptado pelos autores do artigo “Carta pessoal:
do diálogo ao monólogo como meio de expressão, reflexão,
enfrentamento dos medos e humanização” que torna mais prático
os procedimentos de análise:

Levantamento de traços característicos do gênero textual


“Carta pessoal”

1. Nome específico:
Carta pessoal.

2. Contexto de produção e recepção:


a) autor:
Alguém querendo se comunicar com amigos ou familiares.
Nível de autoria: elevado, visto que tanto o conteúdo quanto a linguagem
precisam ser pensadas e construídas pelo autor.
b) Leitor preferencial:
Familiares e amigos.
c) Suporte:
Papel e envelope.

204 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
d) Tempo:
Produção sem um tempo determinado; se enviada pelo sistema postal, o tempo
de leitura ficará sujeito à data de entrega.
e) Lugar:
Produção: sem lugar determinado (podendo ser escrita em sala de aula como
exercício).
Recepção: Geralmente, na residência do destinatário.
f ) Evento deflagrador:
Contar eventos particulares da vida do emissor, expressar emoções, sentimentos
e perguntar sobre acontecimentos da vida do destinatário.

3. Tema/objeto de estudo:
Assuntos particulares e pessoais da vida do emissor; questionamentos ao
destinatário; expressão de emoções e pontos de vista.

4. Função/objetivo:
Dialogar (a distância) com o destinatário que faz parte de suas relações.

5. Linguagem/estilo:
Linguagem familiar, informal, espontânea e com marcas da oralidade.

6. Organização/estrutura:
Organizada em parágrafos.
Estrutura: local e data; vocativo; corpo do texto; despedida e assinatura
(podendo acrescentar o P.S – post-scriptum – para apresentar informações
adicionais esquecidos de mencionar no corpo do texto).

Fonte: Bortolin et al. (2017, p. 124-125)

205 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Esse levantamento de traços característicos condiz com as
propostas de trabalho acerca dos gêneros textuais, pois permite que
o discente seja capaz de identificar as particularidades essenciais
da carta, levando-se em consideração seu contexto de produção,
autoria, domínio discursivo, funções, dentre outros aspectos. A
atividade proposta, a ser analisada a seguir, tem como base tais
princípios, todavia o destinatário ficou a cargo dos alunos para
que eles pudessem ter liberdade e grau de subjetividade maior na
hora da produção.

Experiência em sala de aula

As atividades pedagógicas doravante reportadas foram


realizadas pela coautora deste artigo numa escola da rede estadual
da cidade de Londrina, com 50 alunos de duas turmas de sétimo
ano do Ensino Fundamental com idade entre 13 e 14 anos. A
maioria possui smartphones e fazia uso desses aparelhos para se
comunicar, de forma simultânea, com amigos e familiares sobre os
mais variados assuntos. Na intenção de contextualizar a carta às suas
realidades, de início, foi construído na lousa um pequeno esquema,
baseado nas conversas de whatsapp, que lembrou a estrutura de
uma carta pessoal, levando-se em consideração que eles iniciam
suas conversas com uma saudação, fazem perguntas, contam coisas
e interagem com quem está do outro lado, terminando com uma
despedida. Além do mais, o próprio aplicativo mostra o mês, o dia
e a hora que as mensagens foram trocadas. A partir daí, através de
uma exposição oral, foi apresentado um breve histórico de como
eram feitas as comunicações desde a época dos mensageiros,
passando pelos telegramas e os e-mails, até chegar aos meios de
comunicação atuais e simultâneos.

206 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Ao serem questionados se já tinham recebido alguma
carta, nenhum aluno se manifestou positivamente. Então lhes
foi apresentado um texto intitulado “Carta Aberta ao Homem-
Aranha”, de Lourenço Diaferia (1983), que, apesar de ser uma
crônica, tem a estrutura de carta. Após a leitura, houve uma roda
de conversa, a fim de explicar-lhes que é possível um gênero textual
apresentar a estrutura de outro e que, partindo-se do pressuposto
de que a carta pessoal deve ser lida primeiramente – e muitas
vezes - pelo destinatário, seria mais fácil encontrar uma carta
como aquela nos livros.
Em termos de conteúdo, a carta era de uma criança,
moradora da cidade de São Paulo que tentava contato com o
Homem-Aranha, buscando ajuda com relação ao comportamento
de seus pais que estavam “subindo pelas paredes” pela crise
financeira que afetava a sociedade da época. Além de se apresentar,
falar o quanto admirava o super-herói e seus feitos, o menino
lhe questionava sobre suas ocupações, relatava fatos e pedia
uma resposta acerca de suas dúvidas sobre os pais também se
ocuparem com feitos heroicos já que seus empregos não eram
financeiramente satisfatórios. A carta acaba com uma despedida
e na assinatura o autor coloca apenas suas iniciais.
Após a discussão do assunto onde, dentre outros debates,
abordou-se o uso do termo “subir pelas paredes” e seus significados
no texto, foi feito um levantamento com base nas questões
propostas por Santos (citado por BORTOLIN et al, 2017), onde
os alunos, de forma supervisionada, puderam identificar pontos
relevantes da carta lida. Durante a correção da atividade, numa
conversa informal, a pergunta de um discente chamou a atenção:
“Professora, pra quê temos que aprender a escrever carta se nem
usamos mais esse tipo de comunicação?”. A partir dessa pergunta,

207 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
além de se comentar os tipos de cartas que ainda circulam nas
esferas sociais da atualidade, foi dado início às discussões acerca
do papel da subjetividade impressa nos manuscritos, citando
os bilhetes, os diários, as mensagens nas capas de cadernos, as
pichações nas paredes da escola e até mesmo as camisetas que
eles costumam assinar quando o ano letivo está se findando. Ao
serem questionados sobre tais produções, uma das funções mais
enfatizadas foi o fato de que um registro manuscrito pode servir
como lembrança de alguém.
Na intenção de ilustrar a subjetividade, lhes foi passado o
filme “Cartas para Deus” (2010), no qual um menino de 8 anos
que tinha câncer buscava, através das cartas pessoais destinadas
a Deus, fazer suas orações, contar sua luta diária e pedir por ele e
pelas pessoas que viviam ao seu redor. As cartas eram entregues
a um carteiro que não sabia o destino que deveria dar a elas, haja
vista que o destinatário não tinha um endereço físico. A história
tem seu desfecho quando o carteiro resolve abrir as cartas do
menino e percebe que cada uma, além de falar dos problemas
e passar uma mensagem, pedia por uma pessoa diferente da
vizinhança. O homem resolve entregá-las a cada um, momento
que causa comoção na trama. Ao ler, as pessoas resolvem guardar
a carta como uma lembrança do menino e herdam seu costume
de destinar suas orações em forma de manuscrito, dando
continuidade à prática da escrita como forma de desabafo.
Depois de assistirem ao longa-metragem, foi proporcionado
um momento de discussão, no qual se possibilitou assimilar a
importância do sentimentalismo e da sensibilidade na produção
de textos manuscritos, tendo como base os trechos de algumas
cartas escritas pelo menino. Discutiu-se também o contexto de
produção, o papel do autor e do destinatário, assunto, organização

208 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
e preenchimento de envelope (este trazia marcas particulares do
menino). Na sequência, lhes foi proposta a seguinte atividade:

Análise dos resultados

Levando-se em consideração as características do gênero


textual que devem ser assimiladas segundo Santos (2013, apud
BERTOLIN et al. 2017), em termos de nome específico e
organização/estrutura, todos os discentes foram capazes de
produzir uma carta pessoal. Em se tratando do contexto de
produção, apenas um aluno copiou a carta da internet, todavia
ao ser questionado, concordou que deveria produzir sua própria
carta e assim o fez. Os leitores preferenciais em sua maioria
eram familiares vivos ou falecidos. Todas as produções foram
colocadas em envelope com o endereço da escola e entregues à
professora com o prazo de alguns meses para serem devolvidas.
Todas continham local de produção, data e vocativo, neste
foram utilizadas várias formas de tratamento, de acordo com
o destinatário. Segue exemplo do início de um dos rascunhos
produzidos ainda sem as correções:

209 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Figura 1 – Registro de rascunho de aluno

Fonte: Arquivo dos autores, 2018.

Sobre o evento deflagrador, este se deu pela proposta


apresentada pela docente. Os temas foram dos mais variados pois
continham desabafos sentidos e/ou revoltados, perguntas das mais
variadas espécies, histórias do cotidiano dos autores, pedidos de
desculpas, trechos explicando o porquê de estarem escrevendo
cartas, características as quais ilustram também os objetivos
pretendidos pelos alunos em relação aos seus destinatários. No
que tange à linguagem/estilo, os discentes ficaram livres para
fazer o uso de linguagem informal e espontânea, inclusive com
palavras abreviadas conforme estão acostumados a escrever. A
fim de demonstração, apresentamos uma produção estudantil que
ilustra o que foi elencado acima:

210 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Figura 2 – Registro de rascunho de aluno

Fonte: Arquivo dos autores, 2018.

No exemplo que segue, revela-se de forma explícita a


subjetividade desde as características da escrita até a inserção de
caracteres e sentimento de revolta.

Figura 3 – Registro de rascunho do aluno

Fonte: Arquivo dos autores, 2018.

Ao traçar um panorama geral da atividade, constatamos


que foi possível aos adolescentes perceberem a importância de

211 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
se produzir uma carta pessoal e o quanto a privacidade oferecida
por esse gênero possibilita a subjetividade e o sentimentalismo.
Durante a produção em sala, alguns alunos se emocionaram ao
perceber que tal atividade possibilitava a comunicação, ainda
que imaginária, com destinatários que já não faziam mais parte
de seus convívios. No caso das produções para familiares vivos,
notamos um certo encorajamento para dizer coisas as quais os
discentes não se sentiam à vontade de dizer pessoalmente. No
próximo exemplo de texto de aluno, verificamos a maioria das
características da carta pessoal trabalhadas em sala de aula, bem
como as ideias defendidas por esta pesquisa.

Figura 4 – Carta de aluno

Fonte: Arquivo dos autores, 2018.

212 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
Considerações finais

A presente pesquisa, tendo como referência a ideia proposta


por Antunes (2016) de que os trabalhos com gêneros textuais
devem ir além das estruturas e marcas linguísticas, buscou ilustrar
e contribuir no ensino do gênero carta pessoal, enfatizando a
subjetividade e a valorização das produções manuscritas. A partir
das atividades propostas, foi possível aos alunos refletirem acerca
da mudança nas formas de comunicação com o passar dos anos,
bem como a importância de se expressar através da escrita manual.
Os discentes, que de início demonstraram um certo
desprezo pelo gênero a ser estudado, questionando o fato de terem
que estudar algo que não é usado no dia a dia deles, terminaram
esse processo de construção sendo receptivos e produzindo suas
cartas de acordo com o previsto. Depois dos trabalhos entregues,
fez-se um feedback e as respostas foram positivas, como pode ser
visto no exemplo abaixo:

Figura 5 – Avaliação de aluno

Fonte: Arquivo dos autores, 2018.

Portanto, como se demonstrou, os alunos, comunicadores


ativos das redes sociais, foram capazes de compreender a
importância de se escrever algo pessoal e manuscrito que
desse ênfase aos seus sentimentos e ao mesmo tempo fosse

213 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
contextualizado às suas respectivas realidades, mantendo assim
um equilíbrio entre o uso das tecnologias e as formas mais antigas
de comunicação.

Referências

ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São


Paulo: Parábola, 2016.

AURÉLIO. Dicionário Online de Língua Portuguesa: tecnologia.


2018.Disponível em: <https://dicionarioaurelio.com/tecnologia>Acesso
em: 12/05/2018

BAKHTIN, Mikhail. Estética e criação verbal. São Paulo: Martins


Fontes, 1997.

BAZERMAN, Charles. Atos de fala, gêneros textuais e sistemas


de atividades: como os textos organizam as atividades e pessoas. In:
Gêneros textuais, tipificação e interação. Trad. e org: A.P. Dionísio;
J.C. Hoffnagel. São Paulo: Cortez, 2005.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Língua


Portuguesa. Ensino Fundamental. Brasilia. MEC/SEF, 1998.

BORTOLIN, Rogério N. CATELÃO, Evandro M. SANTOS, Givan.


J. F. Carta pessoal: do diálogo ao monólogo como meio de expressão,
reflexão, enfrentamento dos medos e humanização. Revista Percursos
Linguísticos. nº17. Vitória, 2017. Disponível em: http://periodicos.ufes.
br/percursos/article/view/17342/12543Acesso: 10/05/2018

CARTAS para Deus. Direção: David Nixon. Produção: Possibility


Pictures. Estados Unidos da América. 2010.

214 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
CHATFIELD, Tom. Homens na era da tecnologia. São Paulo:
Carta Capital. 2016.Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/
revista/889/homens-na-era-da-tecnologiaAcesso: 23/04/2018.

DIAFERIA, Lourenço. A morte sem colete. São Paulo: Moderna, 1983.

FROMM, Erich. A revolução da esperança. Trad. Edmond Jorge. São


Paulo: Círculo do Livro, 1975.

KOCH, Ingdore V. ELIAS Vanda M. Ler e escrever: estratégias de


produção textual. São Paulo: Contexto, 2010.

MARCUSCHI, Luiz. A. Gêneros Textuais: definição e funcionalidade.


In: DIONÍSIO, Angela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA,
Maria Auxiliadora (Org.) Gêneros textuais e ensino. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2003.

SANTOS, Givan José Ferreira dos. Da dissertação ao ensaio escolar:


uma nota sobre essa transformação. Entretextos. V. 13, 2013, p. 128-146.

215 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 195-215 – jul./dez. 2020
DIÁLOGOS ENTRE A LINGUÍSTICA TEXTUAL
E TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO: ANÁLISE DE
UMA SENTENÇA JUDICIAL

Mariana Rodrigues Ferreira Fantinelli1


Roberto Lima Santos2

RESUMO: Esse artigo procura discutir a relação entre texto e argumentação


na construção de um gênero textual jurídico (sentença). O caso refere-se a
uma ação de indenização por danos morais movida por uma mulher que sofreu
agressões físicas e ameaças de outra, em virtude da disputa de um homem que
mantinha relações com ambas. A metodologia empregada consiste na análise
de corpus, que é constituído da transcrição de fragmentos da sentença judicial
e de uma carta divulgada pelo próprio juiz sobre a repercussão do caso. Os
fundamentos teóricos adotados são os da Semântica Argumentativa, a qual
propõe que a argumentatividade insere-se na própria língua e da Linguística
Textual que postula que a língua não tem autonomia sintática, semântica e
cognitiva, fazendo a distinção entre sentido e conteúdo. Procura-se evidenciar as
estratégias de progressão temática/referencial e as hipóteses de intencionalidade
do produtor do texto, bem como se a funcionalidade da modalidade do gênero
textual foi atingida.
PALAVRAS-CHAVE: Linguística Textual; Semântica Argumentativa;
Sentença judicial.

Introdução

A Linguística Textual (doravante LT) trata atualmente


tanto da produção quanto da compreensão de textos, e não se
limita ao nível da frase. A LT, além de priorizar o uso, reafirma
o texto como unidade de análise linguística.

1
Mestre em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina – UEL.
2
Doutorando em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina – UEL.
Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná- UENP,
Juiz Federal.

217 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Marcuschi propõe que se veja a LT como o “estudo das
operações lingüísticas e cognitivas reguladoras e controladoras
da produção, construção, funcionamento e recepção de textos
escritos ou orais” (2008, p. 73). Não é objeto da LT o conteúdo,
que o distingue do sentido. “O conteúdo é aquilo que se diz
ou descreve ou designa no mundo, mas o sentido é um efeito
produzido pelo fato de se dizer uma ou outra forma esse conteúdo”
(MARCUSCHI, 2008, p. 74).
Para o autor, “as relações que possibilitam a continuidade
textual e semântico-cognitiva (coesividade e coerência) não se
esgotam nas propriedades léxico-gramaticas imanentes à língua
enquanto código”, mas exigem, ainda, “atividades lingüísticas,
cognitivas e interacionais integradas e convergentes que permitam
a construção de sentidos partilhados, ou pelo menos dêem pistas
para seu acesso” (MARCUSCHI, 2008, p. 120).
Para Ducrot, em sua proposta conhecida como Semântica
Argumentativa, o ato linguístico fundamental é o de argumentar,
pois, por meio da língua, o falante encaminha o interlocutor a
determinada conclusão. Assim, a compreensão de uma enunciação
implica apreender os vestígios deixados na superfície linguística.
Na esteira de Cabral (2017), pretendemos mostrar as
relações que podem ser estabelecidas entre a LT e a Teoria da
Argumentação na língua, estabelecendo um diálogo possível entre
as questões envolvendo a textualidade e a língua, notadamente pelo
conceito de intencionalidade (coerência) e a progressão textual/
sequenciação (coesão) do produtor de uma sentença judicial.
Ainda, procuramos verificar se, ao construí-la, o produtor do
texto jurídico atendeu a funcionalidade intrínseca a esse gênero.

218 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Fundamentação teórica

“Os textos, sendo geralmente unidades complexas, são


usados em situações (situacionalidade) para resolver problemas
na sociedade (intencionalidade/função textual)” (SANDIG, 2009,
p. 57). Com base no postulado de Sandig, Cabral (2017, p. 242)
afirma que “há uma intrínseca relação entre argumentação e
intencionalidade, o texto argumentativo é aquele produzido com
a intenção/função de fazer crer, fazer alguma coisa ao outro”. No
mesmo sentido, Koch e Travaglia (2012, p. 99) afirmam:

A intencionalidade tem relação estreita com o que se tem


chamado de argumentatividade. Se aceitamos como verdade
que não existem textos neutros, que há sempre alguma intenção
ou objetivo da parte de quem produz um texto, e que este não
é jamais uma “cópia” do mundo real, pois o mundo é recriado
no texto através da mediação de nossas crenças, convicções,
perspectivas e propósitos, então somos obrigados a admitir que
existe uma argumentatividade subjacente ao uso da linguagem.

A intencionalidade refere-se ao modo como os produtores


de textos fazem para perseguir e realizar suas intenções,
produzindo textos adequados à obtenção dos efeitos desejados,
ou seja, daquilo que pretendiam, tinham em mente ou queriam
que o leitor fizesse com aquilo (KOCH; TRAVAGLIA, 2012;
MARCUSCHI, 2008).
Marcuschi (2008, p. 127) esclarece, no entanto, ser “difícil
identificar a intencionalidade porque não se sabe ao certo o que
observar. Também não se sabe se ela se deve ao autor ou ao leitor,
pois ambos têm intenções”.
O problema é ainda maior quando se pretende analisar
a intencionalidade inserida no plano global e nos processos

219 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
produtores de coerência, pois as relações “de coerência devem ser
concebidas como uma entidade cognitiva. Isto faz com que essas
relações, em geral, não estejam marcadas na superfície textual e
que não tenham algum tipo de explicitude imediatamente visível”
(MARCUSCHI, 2008, p. 122).

A intencionalidade

não é uma propriedade empírica do texto em si (não se pode


apontar para coerência), mas ela é um trabalho do leitor sobre as
possibilidades interpretativas do texto. É claro que o texto deve
permitir o acesso à coerência, pois, do contrário, não haveria
possibilidade de entendimento (MARCUSCHI, 2008, p. 122).

Antes de pensarmos a intencionalidade do produtor do


texto analisado, e as possibilidades oferecidas pela língua para
ele atingir seus objetivos argumentativos, são necessários alguns
esclarecimentos sobre a finalidade da atividade jurisdicional.
Desde que o Estado assumiu o monopólio da força, a
resolução de conflitos sociais deveria ocorrer por meio de um
terceiro imparcial, o Estado-juiz, para evitar que as pessoas
fizessem justiça com as próprias mãos. Assim, a finalidade da
jurisdição é a pacificação social. No entanto, jurisdição é inerte, ou
seja, ela só age quando é provocada por uma das partes, de maneira
que o processo só se inicia quando a parte ou o interessado vai
acioná-la. Mas, uma vez acionado, o juiz deve agir por impulso
oficial e não pode se recusar a julgar uma causa.
O gênero aqui analisado é a sentença, modalidade de
gênero discursivo jurídico e espécie de ato processual, cuja peça
argumentativa constitui o produto final e a razão de ser do

220 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
processo judicial, enquanto mecanismo de resolução de conflitos
e aplicação do direito pelo juiz.
O gênero discursivo refere-se a formas típicas de enunciados
que se realizam em condições e com finalidades específicas nas
distintas situações de interação social (BAKHTIN, 2003). Os
gêneros são fenômenos históricos, fortemente vinculados à vida
cultural e social. Resultado de um trabalho coletivo, os gêneros
contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas
do dia a dia. São entidades sociodiscursivas e formas de ação
social incontornáveis em qualquer situação comunicativa
(MARCUSCHI, 2010).
Maingueneau (2011, p. 69) recorre a metáforas tomadas de
três domínios para caracterizar os gêneros do discurso: o jurídico,
o teatral, e o lúdico (ou jogo). O jurídico é fundamentalmente
cooperativo e regido por normas. O teatral está diretamente
relacionado às interações sociais, concebidas como um grande
teatro onde tudo o que se faz é “representar papéis”. O lúdico cruza
as metáforas do jurídico com o teatral, a fim de enfatizar as regras
envolvidas na participação semelhantes a um jogo, um gênero
implica certas regras preestabelecidas e mutuamente conhecidas
e cuja transgressão põe “fim ao jogo”.
Os elementos essenciais do gênero jurídico analisado
estão previstos na legislação3. Uma vez que a função primária
da linguagem jurídica é a referencial, centrada no contexto, o
estilo usualmente esperado é o da objetividade até mesmo como
imperativo do princípio da imparcialidade que deve nortear a
atividade jurisdicional.
Conforme dispõe o artigo 58 dos Princípios de Bangalore da
Magistratura (documento da ONU sobre integridade judiciária)
são consideradas manifestações de parcialidade e preconceito:

221 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
epítetos, injúria, apelidos humilhantes, estereótipos negativos,
humor baseado em estereótipos, talvez relacionado a gênero,
cultura ou raça, ameaça, intimidação ou atos hostis sugerindo
uma conexão entre raça, nacionalidade e crime e referências
irrelevantes a características pessoais são alguns dos exemplos.

Neste aspecto, por exemplo, Estrela (2010, p.10) analisou em


sua dissertação de mestrado o uso das modalizações em sentenças
judiciais, demonstrando que pode haver “comprometimento do
gênero sentença judicial quando o autor/magistrado passa a
imprimir nesses textos-discursos suas marcas de subjetividades”.
Já a progressão textual, analisada sob a ótica do movimento
de prospecção que garante a correta tessitura textual, será
percebida no nível da coesão, já que é responsável por garantir
sentido àquilo que é expresso (de forma oral ou escrita) quer em
grau de linha, sentença, parágrafo, capítulo ou estrofe.
Koch (2002, p. 121) explica que

A progressão textual (seqüenciação) diz respeito aos


procedimentos lingüísticos por meio dos quais se estabelecem,
entre segmentos do texto (enunciados, partes de enunciados,
parágrafos, e mesmo seqüências textuais), diversos tipos de
relações semânticas e/ou pragmático-discursivas, à medida que
se faz o texto progredir. O texto é, como diz Weinrich (1964),
uma “estrutura determinativa”, cujas partes são interdependentes,
sendo cada uma necessária para a compreensão das demais. Esta
interdependência é garantida, em parte, pelo uso dos diversos
mecanismos de seqüenciação existentes na língua e, em parte,
pelo que se denomina encadeamento tópico.
Para Costa Val (1999, p. 23-24), a progressão do texto pode
ser percebida sob o plano da coerência e da coesão:

coesão, a língua dispõe de mecanismos especiais para manifestar


as relações entre o dado e o novo.[...] A progressão pode se

222 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
fazer pelo acréscimo de novos comentários a um tópico, ou pela
transformação dos comentários em novos tópicos.

Como é fundamental para a conservação da comunicação


eficaz e plena entre locutor e interlocutor, a progressão textual
pode ser introduzida com recorrências de vários tipos ou sem
recorrências estritas. Listamos, abaixo, os cinco principais tipos
de recorrências:

1. reiteração ou repetição de itens lexicais: cada item


acrescenta novas instruções ao termo anterior;
2. paralelismo: em nível sintático, quando há a construção
da mesma estrutura com itens lexicais diferentes.
Na poesia, é comum que venha acompanhado da
similicadência ou paralelismo rítmico. Na propaganda,
a intenção é persuadir o leitor;
3. paráfrase: o mesmo conteúdo semântico é apresentado
com algum ajustamento ou reformulação por meio de
expressões como: isto é, ou melhor, em outras palavras;
4. recorrência de recursos fonológicos segmentais e/ou
suprassegmentais: relacionado às rimas, ao ritmo, ao
metro, às assonâncias ou às aliterações;
5. recorrência de um mesmo tempo verbal: será verificada
se a intenção foi narrar, opinar, comentar, sugerir.

Para a autora, estes elementos de recorrência têm a função


de intensificar ou dar ênfase nas informações para que o ouvinte/
leitor torne a mensagem significativa para si ao aceitar aquilo que
lhe é proposto.
Em se tratando daquelas sem recorrência estrita, as quais
sustentarão a construção da coerência do texto, está a manutenção

223 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
temática, utilizada a fim de garantir que o leitor, por meio de
frames, ative constantemente o tema abordado para manter viva
a conversação.
Já a progressão temática trabalha em nível de organização e
hierarquia de maneira sucessiva ao dividir os enunciados em tema
e rema. O tema, de maneira resumida, é a informação dada, a base
do que é dito, é o chamado tópico. O rema é a informação nova,
dita pela primeira vez acerca do tema. Divide-se em:

1. tema constante: a cada tema são incluídas novidades


remáticas;
2. linear: o rema anterior passa a ser o tema do enunciado
seguinte;
3. por subdivisão de hipertema/rema: há divisão de temas/
remas parciais;
4. com salto temático: passa-se a considerar informações
sobre o último rema.

Koch (2002, p. 125) faz um importante alerta acerca da


progressão temática quando diz haver certas “preferências” por
um ou outro uso de acordo com a tipologia textual predominante:

[...] a progressão temática com tema constante adapta-se com


perfeição às seqüências descritivas; a progressão com subdivisão
do tema ou do rema é bastante apropriada às sequências
expositivas ou argumentativas (stricto sensu). Já a progressão
linear (inclusive a com salto temático é comum a todos os tipos
de texto, exercendo [...] importante papel de estruturação textual.

Apenas como propósito elucidativo, a LT, ao tratar da


sequenciação, também se ocupará das relações de encadeamento

224 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
entre os enunciados, dividindo em encadeamento por justaposição
e encadeamento por conexão. O primeiro não se utiliza de
elementos articuladores e o segundo emprega os diversos tipos
de conectores presentes na língua.

Tais articuladores podem relacionar elementos de conteúdo,


ou seja, situar os estados de coisas de que fala o enunciado no
espaço e/ou tempo, bem como estabelecer relações de tipo lógico-
semântico; podem estabelecer relações entre dois ou mais atos de
fala; e podem, ainda, desempenhar, no texto, funções de ordem
meta-enunciativos (KOCH, 2002, p.133).

O desejo das partes que estão inseridas em uma situação


comunicativa é que não haja rupturas ou longas pausas entre os
turnos conversacionais, por isso é importante que se instale a
progressão/continuidade tópica com o objetivo de não prejudicar
a coerência e a coesão nos textos orais ou escritos. Se houver
interferências nestes aspectos, haverá prejuízo na organização e
hierarquia dos tópicos abordados. Ao utilizar-se de estratégias,
podem ser empregadas de maneira contínua (quando se mantém
o tópico introduzido) ou descontínua (quando há ruptura,
digressões, mudança temática, chamadas shift). É importante que
as rupturas sejam sempre justificadas, quando muito longas, para
que o texto não perca seu fio condutor.
Ao tratar o texto como situação comunicativa na qual
convergem ações cognitivas, discursivas e sociais é de fundamental
importância que as diversas estratégias propostas pela progressão
textual sejam colocadas em prática pelos agentes participantes das
situações comunicativas, a fim de que sejam sustentadas coerência
e coesão na construção de sentidos dos textos.

225 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Análise do corpus

A sentença julgou uma ação de indenização por danos


morais movida por uma mulher que sofreu agressões físicas e
ameaças de outra, em virtude da disputa de um homem que
mantinha relações com ambas. O pedido foi julgado procedente,
condenando a ré ao pagamento de indenização no valor de R
3.000,00 (três mil reais) à autora e, ainda, fez recomendações ao
homem, pivô da disputa.
Embora o processo não tenha tramitado sob sigilo, optamos
por anonimizar as partes envolvidas. O caso foi julgado pelo 3º
Juiz da Unidade Jurisdicional do Juizado Especial da Comarca
de Divinópolis/MG, em 16 de março de 2012.
Por questões de espaço, apresentaremos apenas os
fragmentos da sentença que mais interessam à nossa análise. Ao
tratar da sequenciação, investigaremos como principal recurso
extraído as expressões nominais, uma vez que são encontradas
em grande quantidade nas linhas que se seguem.
A primeira passagem é a ementa4 do julgado, que é uma
síntese conclusiva do resultado do julgamento e dá um panorama
geral do caso, mas só é obrigatória para os julgamentos realizados
pela segunda instância do Poder Judiciário, onde são lavrados
acórdãos5.
A construção da decisão judicial consiste na “avaliação e
na valoração da linguagem com que é apresentada a narrativa da
4
CPC: Art. 943. Os votos, os acórdãos e os demais atos processuais podem ser registrados
em documento eletrônico inviolável e assinados eletronicamente, na forma da lei, devendo
ser impressos para juntada aos autos do processo quando este não for eletrônico.
§ 1º Todo acórdão conterá ementa.
§ 2º Lavrado o acórdão, sua ementa será publicada no órgão oficial no prazo de 10 (dez)
dias.
5
Art. 204. Acórdão é o julgamento colegiado proferido pelos tribunais (Código de
Processo Civil).

226 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
pretensão e a contranarrativa da defesa, cujo resultado é a narrativa
qualificada do próprio juiz que se revela como sobrelinguagem
em relação à linguagem utilizada pelo autor e réu” (BEZERRA
NETO, 2018, p.104).
Neste caso, o relatório formal era dispensável por força da
Lei 9.099/95 do Juizado Especial, que é um rito processual mais
simplificado, mas o texto selecionado para análise é uma síntese
dos fatos, feita pelo juiz, a partir das narrativas apresentadas pelo
advogado da parte autora, na petição inicial, e pelo advogado da
ré, na contestação e no pedido contraposto6, e das ocorrências
havidas na AIJ (Audiência de Instrução e Julgamento).

6
O pedido contraposto é uma espécie de contra-ataque. Consiste em um pedido formulado
pelo réu contra o autor, na mesma peça da contestação, cuja fundamentação baseia-se nos
mesmos fatos que são objeto da lide.

227 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Texto para análise
Sentença Judicial

Em primeiro lugar, é importante considerar o uso


das expressões nominais definidas como estratégias de
construção de sentido do texto, ligadas à noção de referenciação
postuladas pela LT e, também, participantes dos elementos
que compõem a textualidade, a saber: coerência, coesão,
informatividade, situacionalidade, intertextualidade, aceitabilidade
e intencionalidade.

228 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Relembramos que para garantir a manutenção e a
progressão do texto é possível contarmos com a sua realização
em cadeias coesivas, ocorridas por meio de recursos gramaticais
(pronomes, elipses, numerais, etc) ou recursos lexicais (sinônimos,
hiperônimos, expressões nominais). Koch e Travaglia (2012, p.
30-31) afirmam que a “coesão referencial envolve a remissão de
um elemento a outros no universo textual e pode ocorrer para trás
(anáfora) ou para frente (catáfora)”, ou seja, há certa relação com
dados já especificados ou explícitos no texto ou, ainda, expansão
do sintagma nominal, quando este é modificado ou alterado por
um sintagma nominal antecedente.
As expressões nominais abordadas nos fragmentos revelam,
implícita ou explicitamente, informações primordiais sobre as
opiniões, crenças e atitudes do sujeito produtor do texto. Listamos
os exemplos encontrados:

a) “briga” (l. 1), “surra” (l. 1), “escoriações, unhadas, socos, puxões
de cabelo” (l. 2), “ serviço” (l. 4), “agressões recíprocas” (l.
19). (Referentes à agressão);
b) “quiproquó” (l. 4), “rolo” (l. 7), “baixaria” (l. 7), “descontentamento,
desgraça, amargura” (l. 26), “espinho pontiagudo e venenoso”
(l. 28). (Referentes à situação difícil);
c) “sujeito do desejo ardente das duas mulheres” (l. 5), “solteiro”
(l. 6), “amante das duas” (l. 6), “agente disputado” (l. 9), “senhor
das moças lá do Halim Souki” (l. 29). (Referentes ao homem);
d) “indenização” (l. 8), “Justiça” (l. 11), “danos morais” (l. 15),
“defesa” (l. 24), “depoimentos” e “sentença” (l. 33). (Referentes
ao universo do Direito).
e) “requerida” (l. 12), “agressora” (l. 14) – (Referentes à ré);

229 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
f ) “gente graúda de sapiência” (l. 22) (Referente aos
desembargadores);
g) “gente” (l. 23), “magistrado” (l. 31) (Referentes ao juiz);
h) “mulheres briguentas” (l. 24), “moças” (l. 32) (Referente às
mulheres);
i) “bem bom” (l.14) (Referente ao momento do flagrante
amoroso).

Embora seja difícil assegurar a real intencionalidade do


autor de um enunciado, “é plausível imaginar que o sujeito-
analisante, com o objetivo de erigir os possíveis interpretativos
de um enunciado, busque, com base em sua intuição, descrever
a intencionalidade do sujeito falante” (VALE, 2014, p. 144). Tal
intuição é baseada, como sugere Charaudeau (2009, p. 89), em
representações sociodiscursivas do que seja a norma prevista para
determinado ato, instaurada no mesmo momento que se estabelece
o contrato de comunicação.
Dessa forma, levantaremos algumas possibilidades em uma
carta divulgada pelo próprio juiz num site especializado, dirigida
à imprensa sobre o seu estilo pessoal de formular as sentenças7.
Uma das intenções do autor do texto foi criticar a
prolixidade ou a falta de concisão dos operadores do direito. Isso
é percebido quando diz que a advogada da ré “já despejou logo
uma preliminar de inépcia da inicial”. Percebemos a contrariedade
do julgador com relação a esse tipo de defesa numa ação dos
Juizados Especiais, quando utilizou o verbo “despejar”, cujo um
dos significados é “dizer de modo abrupto o que se pensa, se

7
Disponível em:< https://m.migalhas.com.br/quentes/154884/juiz-que-escreveu-sobre-
lei-dos-namoros-em-sentenca-divulga-carta>. Acesso em: 28 nov.2019

230 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
sente”8, quando o usual seria “alegar”9 “arguir”, “invocar”. Isso é
confirmado adiante, quando, na fundamentação, indaga: “E isso
não é inépcia. Afinal, pra quê tanto enciclopedismo inútil nos
processos dos Juizados”?
Como estamos tratando de um texto da seara jurídica
que precisa ter uma sólida base argumentativa, encontramos
recorrência a diversos doutrinadores e desembargadores, a fim de
evocar o recurso da intertextualidade por meio de argumentos de
autoridade. A advogada de uma das partes cita alguns dos nomes
mais prestigiosos do Direito como “Ada Pelegrini Grinover e
Maria Helena Diniz e Clayton Reis e Carlos Alberto Bittar e
Yussef Said Cahali e S. J. de Assis Neto [...]” porque acreditava,
desta forma, garantir que seu pedido fosse acolhido pelo
magistrado, já que são “gente graúda de sapiência”. O argumento
não foi considerado pelo julgador, uma vez que critica a postura
da procuradora. De fato, esse é um vício dos operadores do direito
no Brasil, onde prevalece “a articulação de opiniões acompanhadas
da citação, sem contextualização ou análise, de uma série de
‘jurisprudências’ e ‘doutrinas’ a título de argumento de autoridade”
(RODRIGUES, 2013, p. 77).
Silva (2006) traz uma importante contribuição para a nossa
pesquisa acerca da inter-relação entre o argumento de autoridade
e a intertextualidade. A autora assim declara:

8
Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?id=yXNm>. Acesso em 12 dez. 2019.
9
Art. 337. Incumbe ao réu, antes de discutir o mérito, alegar: IV - inépcia da petição
inicial; Art. 330. A petição inicial será indeferida quando: I - for inepta; ... § 1º Considera-
se inepta a petição inicial quando: I - lhe faltar pedido ou causa de pedir; II - o pedido
for indeterminado, ressalvadas as hipóteses legais em que se permite o pedido genérico;
III - da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão; IV - contiver pedidos
incompatíveis entre si.

231 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Os enunciadores, ao selecionarem os argumentos de autoridade,
o fazem consoante ao acordo prévio com o auditório. E para
consagrar o seu dizer, citam essas autoridades no interior da
enunciação que constroem para legitimá-la. [...] Seja pelo
discurso direto ou indireto, os enunciadores reformulam o
enunciado do outro para introduzi-lo nos seus discursos, de
acordo com o que se deseja (SILVA, 2006, p. 70)

O juiz, por meio da utilização de uma linguagem direta,


objetiva, simples, sem o emprego de termos técnicos rebuscados,
dirige-se às partes envolvidas no conflito, que são os destinatários
finais da prestação jurisdicional. Ele, também, explicou o propósito
final de seu estilo e escolhas pessoais neste fragmento da carta
(2012) que, seguramente, podem ser apontados como propositais:

Assim, cada palavrinha, cada expressão da sentença foi lá colocada


da maneira mais pertinente, mais ajustadinha possível com o que
havia ocorrido na audiência. Para mim, a sentença não poderia ter
cara diferente do processo, pois isso não era Justiça, era hipocrisia
travestida de Direito, Só isso. Utilizar aquelas expressões que eu
estava usando na sentença anterior era pedantismo para com as
partes, que nem queriam ouvir nada do Juiz, só queriam sentença.
No final das contas, o que ambas queriam era apenas saber quem
ganhou e quem perdeu. Só isso. Ninguém estava ali para discutir
teses, teses e mais teses; montanhas de injustiças. Então a sentença
não poderia ser outra. Foi aquela que foi.

Cabe, neste ponto, ressaltar a seleção lexical escolhida pelo


magistrado, para compor a sentença ora analisada. Este é um
recurso retórico de relevante importância, já que as escolhas são
feitas de maneira estratégica para favorecer a força argumentativa.
O recorte de texto permite a compreensão de que o juiz tenha
optado por aproximar seu discurso da realidade comunicativa
daqueles que eram alvos da sua sentença.

232 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Tendo em vista determinado objetivo a atingir, imbuído de
determinadas ideologias, o produtor do texto seleciona as palavras
que lhe convêm. Segundo Aquino (2003,p. 199) ao tomarmos a
escolha lexical como ferramenta que define situações em que os
falantes criam o contexto no qual irão interagir, então poderemos
entendê-la não como algo que ocorre fortuitamente no discurso,
mas perfeitamente concatenada aos demais elementos que o
organizam (AQUINO, 2003, p. 199).

Já com relação ao homem, pivô da disputa entre as mulheres,


houve uma reprimenda moral do que ele fez “seja feio, muito feio”
e uma advertência jurídica: “Fica esperto: da próxima vez que você
fizer isso você poderá ser condenado por danos morais. Qualquer
advogado vai achar alguma jurisprudência nesse sentido, isso vai.
Tem jurisprudência prá tudo!”.
No entanto, foi feita também uma recomendação para:
“Quando tiver na casa de uma e a outra ligar para ele, ao invés de
falar a verdade, [...] ele diga que está na pescaria com os amigos.
Evita briga, litígio, quiproquó e não tem importância nenhuma.
Isso não é crime.”.
Essa recomendação para que seja mais “esperto” e minta
numa próxima vez pode ser interpretada como um assentimento
de uma conduta praticada pelos homens que ainda seria tolerada
pela sociedade. Nesse aspecto, numa matéria sobre essa sentença,
veiculada por outro site jurídico, a manchete para o assunto era
“Juiz ensina homem a mentir quando estiver com outra”10.
Por fim, quanto à funcionalidade do gênero sentença
judicial, concordamos com Estrela (2010) de que as sentenças
fazem parte de um tipo de gênero padronizado que não comporta
muito espaço para o reflexo da individualidade do sujeito que,
10
Disponível em:< https://www.conjur.com.br/2012-abr-27/juiz-ensina-homem-mentir-
mulher-quando-estiver-outra>. Acesso em: 29 nov. 2019

233 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
quando é extrapolado, acaba por comprometer a funcionalidade
desse tipo de gênero.
Como afirma Perelman (2004, p.191): “a paz judicial só
se restabelece definitivamente quando a solução, a mais aceitável
socialmente, é acompanhada de uma argumentação jurídica
suficientemente sólida”. No caso analisado, embora juridicamente
válida, a fundamentação irônica e sarcástica, cuja aceitabilidade
social é discutível, tem potencial para perpetuar o conflito.

Considerações Finais

Segundo o magistrado divulgou em sua carta, suas


“sentenças diferentes fazem parte do seu estilo pessoal”. De
fato, não se nega a possibilidade de julgadores possuírem estilo
próprio. No entanto, deve haver parcimônia na exteriorização de
subjetividades e representações individuais do mundo, sob pena
de, como ocorreu no caso analisado, uma substituição ilegítima
da linguagem pública (da lei) pela linguagem particular (do juiz),
ter repercussões negativas da funcionalidade do gênero discursivo
em questão.
O texto é o suporte onde vemos retratada toda a
argumentatividade que o locutor pretende expressar e se fazer
compreendido pelo interlocutor. O que vai favorecer tal relação
comunicativa é a correta aplicação das estratégias de textualização
e dos fatores de progressão textual mais adequados a fim de
garantir perfeição quanto à coesão e à coerência textuais. O juiz
de direito aplicou ao gênero sentença os recursos necessários para
se fazer compreender pelas partes, mesmo que tenha fugido à
norma imposta pelo universo jurídico, o qual pede formalidade e
decoro neste documento.

234 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Portanto, houve relação dialógica entre LT e Teoria da
Argumentação no fazer textual e na construção da textualidade,
pois vemos as marcas desses aportes teóricos refletidos nos
exemplos extraídos dos fragmentos analisados.

Referências

AQUINO, Zilda Gaspar Oliveira de. O léxico no discurso político. In:


PRETI, Dino. (Org.) Léxico na língua oral e na escrita. São Paulo:
Humanitas/FFLCH/USP, 2003. p. 195-210.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra.


São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BEZERRA NETO, Bianor Arruda. O que define um julgamento e


quais são os limites do juiz? 1 ed. São Paulo: Noeses, 2018.

BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Institui o Código de


Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 17 mar. 2015.

CABRAL, Ana Lúcia Tinoco. Linguística e Teoria da Argumentação


na Língua: texto e língua em diálogo. In: CAPISTRANOS JÚNIOR
et al (org.). Línguística textual: diálogos interdisciplinares. Vitória; São
Paulo: PPGEL-UFES; Labrador, 2017.

CHARAUDEAU, Patrick. Trad. Angela M. S. Correa. Discurso das


mídias. São Paulo: Contexto, 2009.

COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. São Paulo:


Martins Fontes,1999.

235 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
ESTRELA, Simone da Costa. As Modalizações em Sentenças
Judiciais: a Ação de Linguagem na Representação dos Mundos
Formais. 2010. Dissertação (Mestrado em Linguística). João Pessoa:
UFPB, 2010.

KOCH, Ingedore G. Villaça. Desvendando os segredos do texto. São


Paulo: Cortez, 2002.

KOCH, Ingedore Villaça; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A coerência


textual. 18ª ed. Sâo Paulo: Contexto, 2012.

MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA,


Ana Raquel; SALGADO, Luciana (org). Ethos discursivo. 2 ed. São
Paulo: Contexto, 2011.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual: análise de gêneros e


compreensão. São Paulo, Parábola, 2008.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros Textuais: definição e


funcionalidade. In: DIONÍSIO, Angêla Paiva; MACHADO, Anna
Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (Org.). Gêneros textuais e
ensino. São Paulo, Parábola, 2010.

PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. Trad. Vergínia K. Pupi. 2ª ed.


São Paulo: Martins Fontes, 2004

REDAÇÃO DO MIGALHAS. Fazer Justiça não é fazer Direito.


Migalhas [s.l] 2012. Disponível em:< https://m.migalhas.com.br/
quentes/154884/juiz-que-escreveu-sobre-lei-dos-namoros-em-
sentenca-divulga-carta>. Acesso em: 28 nov.2019

RODRIGUES, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Para uma


crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro: Editora FGV. 2013.

SANDIG, Bárbara. O texto como conceito prototípico. In: WIESER,


Hans Peter; KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça (Org). Lingüística

236 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
Textual: perspectivas alemãs. Trad. Hans Peter Wieser. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2009.

SILVA, Rita de Cássia da. Argumentação e modalidade: o discurso da


incerteza nas questões do desemprego. In: MOSCA, Lineide do Lago
Salvador. (Org.). Discurso, argumentação e produção de sentido. São
Paulo: Humanitas, 2006. p. 61-81.

VALE, Rony Petterson Gomes. Intencionalidade, finalidades e visadas


na análise do discurso humorístico. DLCV – João Pessoa, v. 11, n.1,
jan/jun 2014.

237 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 217-237 – jul./dez. 2020
RESISTÊNCIA FEMININA E HUMOR: UMA
ANÁLISE DISCURSIVO-ARGUMENTATIVA

Ana Carolina BERNARDINO1 (PG – UEL)


a.carolina.bernardino@gmail.com
Talita Canônico e SILVA2 (IFPR)
talita.canonico@gmail.com

RESUMO: Em muitos discursos, há vozes que falam a respeito da mulher, a partir de


formações discursivas e ideológicas que, representadas na/pela linguagem, possibilitam
a apreensão de sentidos capazes de refletir posições sociais, resistências, transformações
e representação de valores. Com base na Análise do Discurso (de linha francesa) e
na Semântica Argumentativa, estudaremos os processos de construção dos efeitos de
sentido, considerando os atravessamentos ideológicos e os sentidos emitidos/captados
pelos recursos argumentativos presentes em três tirinhas retiradas da internet. Por
meio desse gênero discursivo, pertencente ao campo do humor, é possível depreender os
discursos de resistência da mulher na sociedade moderna e, a partir deles, considerar
alternativas para desenvolver e questionar novos sentidos.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Argumentação; Humor; Resistência.

ABSTRACT: In each discourse, there are voices that speak about women, from
discursive and ideological formations that, represented in / by language, enable the
apprehension of meanings capable of reflecting social positions, resistances, changes
and representation of values. Based on Discourse Analysis (by French line) and on
Argumentative Semantics, we study the processes of construction of meaning effects,
considering the ideological crossings and the meanings emitted / captured by the
argumentative resources present in three comic strips taken from the internet. Through
this humor’s discursive genre, it is possible to observe the discourses of resistance of
women in modern society and, from them, consider alternatives to develop and
question by new meanings.
KEYWORDS: Discourse; Argumentation; Humor; Resistance.

1
Ana Carolina Bernardino, Doutoranda do Programa de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Londrina – UEL – Londrina, Paraná, Brasil. Integrante do
projeto de pesquisa PAD II – Pesquisas em Análise do Discurso (UEL).
2
Talita Canônico e Silva, Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual
de Londrina – UEL – Londrina, Paraná, Brasil. Docente do Ensino Básico, Técnico e
Tecnológico no Instituto Federal do Paraná – IFPR – Campus Londrina, Paraná, Brasil.
Integrante do projeto de pesquisa PAD II – Pesquisas em Análise do Discurso (UEL).

239 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
Introdução

Diante dos expressivos momentos e dos embates históricos


nos quais a mulher foi e tem sido representada, torna-se relevante
o trabalho de análise do tratamento da mídia quanto à resistência
feminina. Este trabalho pretende evidenciar a diversidade e a
desigualdade social que exclui/inclui o sujeito mulher na/pela
história, em especial, a posição sujeito mulher.
Com base teórica respaldada na Análise do Discurso, de
linha francesa, e na Semântica Argumentativa, nosso trabalho
tem como objetivo analisar os discursos extraídos de uma tirinha,
gênero do campo do humor, com temática do discurso feminino,
mais especificamente a luta das mulheres, marcada pelo dia
internacional das mulheres.
Segundo Souza (2006, p. 106), “a linguagem [...] é
atravessada pelo histórico, pelo social, pela ideologia. E onde
há seres humanos, há linguagem”. Dessa forma, nesta análise,
pesquisamos os efeitos de sentido produzidos pela tirinha,
apreendidos a partir dos atravessamentos ideológicos, sócio-
históricos e, também, por meio da materialidade linguística.
Focalizaremos os jogos de linguagem e os recursos
argumentativos ligados à persuasão, à construção e à veiculação
da ideologia, aos ditos e aos não ditos proferidos no discurso,
produzidos em condições de produção específicas, e, portanto,
entender o funcionamento da língua no campo do humor,
desvendando os possíveis sentidos.
Para tanto, organizamos nosso trabalho da seguinte
maneira: primeiramente, discutimos a questão dos atravessamentos
ideológicos, das condições de produção e do silenciamento, com
base na AD e, também, a relação dos recursos argumentativos com

240 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
a produção de sentidos, pelo viés da Semântica Argumentativa.
A seguir, consideramos alguns traços do campo do humor.
Iniciamos, então, a análise do corpus, uma tirinha do personagem
Armandinho, em que refletimos a respeito dos diversos efeitos
de sentido produzidos, levando em consideração os diferentes
atravessamentos. Por fim, elaboramos algumas reflexões acerca
do trabalho empreendido.

Análise de Discurso

A Análise do Discurso surge na França, na década de


1960, com Michel Pêcheux, como uma ciência para analisar a
exterioridade da língua, levando em consideração as ideologias, as
condições de produção e os fatores sócio-históricos, aspectos sob
os quais os discursos são produzidos, justificando, assim, os diversos
efeitos de sentido que podem ser captados. Compreendemos a AD
como uma transdisciplina de interpretação, ou seja, são diversos os
sentidos apreendidos a partir de um mesmo objeto, possibilitando
a ampliação do quadro metodológico e uma fundamentação
teórica ampla que permite estudar os fenômenos da linguagem
sobre perspectivas múltiplas. Desse modo, obtêm-se abordagens
cada vez mais completas e orientadas para as pesquisas que
envolvem o universo do discurso. A AD abarca, em sua construção
teórica, aspectos como processo enunciativo, processo histórico,
processo interativo e, também, processo linguístico, ou seja, garante
uma gama teórica para diversas pesquisas e diversos olhares acerca
dos discursos que circulam em nossa sociedade.

241 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
A Ideologia e as Condições de Produção: constituição do sujeito

Para a AD, a exterioridade é peça fundamental para a


produção/apreensão dos múltiplos efeitos de sentido, pois cada
sujeito é clivado por atravessamentos diversos, fazendo com que
os sentidos tornem-se vários. Segundo Orlandi (2015, p.30), “o
dizer não é particular. As palavras não são nossas. Elas significam
pela história e pela língua”, ou seja, os sujeitos não controlam a
maneira pela qual os sentidos se constituem em si. Nesse sentido,
os atravessamentos ideológicos são responsáveis por fazer com que
o sujeito assuma determinado posicionamento e não outro. Logo,
a formação ideológica (FI) define sua forma de comportamento e
os modos de dizer e não dizer. De acordo com Althusser (1985,
p. 102),

a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos. Como a
ideologia é eterna, vamos suprimir a forma da temporalidade na
qual representamos o funcionamento da ideologia e afirmar: a
ideologia sempre-já interpelou os indivíduos como sujeitos, o que
nos leva a precisar que os indivíduos são sempre-já interpelados
pela ideologia como sujeitos, e nos conduz necessariamente a uma
última proposição: os indivíduos são sempre-já sujeitos. Portanto,
os indivíduos são «abstractos» relativamente aos sujeitos que
sempre-já são.

Conforme Charaudeau e Maingueneau (2014), as


Condições de Produção (CPs) são consideradas as circunstâncias
nas quais o discurso se manifesta, é o contexto do momento da
enunciação, isto é, elas envolvem as relações externas ao discurso.
Para Brandão (1997, p. 37), “[...] as circunstâncias onde interagem
os ‘sujeitos do discurso’, que passam a constituir a fonte das

242 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
relações discursivas das quais, na verdade, não são senão o portador
ou o efeito”.
Sendo assim, o discurso é mediador entre o sujeito e o
social, uma vez que todo sujeito é atravessado por uma ideologia
e está inserido em dada condição sócio-histórica; portanto, são
múltiplas as possibilidades de efeitos de sentido, pois os sujeitos
não são constituídos da mesma forma. Para compreendermos os
sentidos produzidos pelos discursos, é necessário estabelecermos
uma relação entre a língua, a história e a própria ideologia.
Não há sentido sem interpretação e a compreensão do sentido
é depreendida a partir dos atravessamentos ideológicos que
interpelam cada indivíduo, por esse motivo os sentidos são
múltiplos e diversos.
Orlandi (2015, p. 45) esclarece:

O sentido é assim uma relação determinada do sujeito – afetado


pela língua – com a história. É o gesto de interpretação que
realiza essa relação do sujeito com a língua, com a história, com
os sentidos. Esta é a marca da subjetivação e, ao mesmo tempo,
o traço da relação da língua com a exterioridade: não há discurso
sem sujeito. E não há sujeito sem ideologia.

Por fim, fica evidente que as palavras não possuem sentido
por si só, os sentidos construídos estão sempre à deriva, serão
determinados de uma forma ou de outra, segundo as regras que
regulam os discursos, ou seja, a partir de uma formação discursiva
(FD) determinada. Por esse motivo, os efeitos de sentido podem
ser múltiplos, pois irão depender dos atravessamentos e dos
posicionamentos assumidos pelos sujeitos.

243 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
Memória discursiva e silenciamento: os múltiplos efeitos de
sentido

A memória discursiva funciona como um conjunto de


já-ditos que sustentam novos dizeres; logo, o acionamento da
memória discursiva está diretamente atrelado aos atravessamentos
ideológicos e às condições de produção, pois alguma coisa fala
antes, em outro lugar, independente do sujeito do discurso,
que, de acordo com Orlandi (2015), é a reativação do dizer, o
conhecimento discursivo ao qual não temos controle e que cliva
o sujeito na constituição dos discursos. Para a autora, a memória

tem suas características, quando pensada em relação ao discurso. E,


nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso. Este é definido
como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente.
Ou seja, é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo
que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-
construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando
cada tomada da palavra (ORLANDI, 2015, p. 29).

Portanto, todo discurso que dizemos já foi dito em algum


momento da história, por alguém, em algum lugar, comprovando
o fato de que nada é novo, nem mesmo único, porque o discurso é
o ponto de articulação entre os processos ideológicos, é a evidência
da linguagem como interação social, que não é neutra, pois é a
manifestação da própria ideologia. Nesse sentido, Orlandi (2015,
p. 30) acrescenta que

o dizer não é propriedade particular. As palavras não são nossas.


Elas significam pela história e pela língua. O que é dito em outro
lugar também significa nas “nossas” palavras. O sujeito diz, pensa
que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo
pelo qual os sentidos se constituem nele.

244 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
Dessa forma, o discurso é compreendido a partir de
atravessamentos sócio-históricos, como um efeito de sentido entre
os sujeitos, portanto, o sentido é construído a partir da construção
do discurso. Não existe um sentido pronto, eles são determinados
pelas posições que cada sujeito ocupa no processo enunciativo.
Logo, a AD está em constante processo de desconstrução, de
reconfiguração e, até mesmo, de experimentação, pois os efeitos
de sentido, decorrentes das relações sócio-histórico-ideológicas,
são múltiplos e diversos. Sucintamente, a memória discursiva
funciona antes do sujeito e, também, é independente do sujeito.
Em outras palavras, é necessário que exista um sentido anterior
para que novos sentidos possam ser construídos.
Além disso, os sentidos não estão apenas nos ditos, mas,
também, nos não ditos, ou seja, no silenciamento; o silêncio tem
sua própria maneira de significar, uma vez que estar em silêncio
é estar no sentido. Segundo Orlandi (2007), o silêncio é disperso
e contínuo e é essa continuidade que permite que o sujeito possa
mover as significações e percorrer os múltiplos efeitos de sentido
provenientes dos discursos. O movimento de silenciamento e de
sair do silenciamento proporciona interpretação à medida que nos
insta na origem do próprio sujeito e dos seus sentidos. Assim, para
Orlandi (2007), o silêncio é fundante e fundador dos sentidos.
O silêncio é a capacidade do sujeito trabalhar sua
contradição constitutiva, sua relação com o outro. É ele que o faz se
situar na relação do «um» com o «múltiplo». Sob esta perspectiva,
seria possível entendê-Io como o não dito que é a história, à
medida que estabelece a relação do sentido com o imaginário, com
a língua e com a ideologia. Deste modo, é possível falar sobre os
efeitos de sentido pois o que está em jogo é a relação de diferentes
formações discursivas com diferentes sentidos.

245 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
Semântica Argumentativa

Segundo Vogt (2015), a linguagem é argumentativa por


caracterizar ideologias e mediar as relações entre indivíduos
e meio social. Os estudos argumentativos são provenientes
da Antiguidade, a partir da retórica, e, após séculos, foram
revalorizados por estudiosos como Perelman e Olbrechts-Tyteca
(1996). A argumentação estuda além das palavras, pois revela
conteúdos implícitos, e a captação dos sentidos dependerá de
muitos fatores, como a situação, os seres envolvidos, a época, entre
outros. Os efeitos de sentido apreendidos em um discurso são
estudados pela Semântica Argumentativa por meio de recursos
argumentativos, denominados por Koch (2011, p. 25) como
“marcas linguísticas”.
Sistematizada por Anscombre e Ducrot (1976), a
Semântica Argumentativa pretende compreender a subjetividade
dos enunciados pelo teor argumentativo provocado pelos termos
utilizados no discurso, por exemplo: operadores argumentativos,
modalizadores, intensificadores, dêiticos, adjetivação, entre outros.
Em nosso corpus, identificaremos a adjetivação e os operadores
argumentativos para verificar como esses mecanismos linguísticos
direcionam a argumentação e viabilizam a absorção dos efeitos
de sentido.
A adjetivação possibilita que a emoção do sujeito
transpareça, permitindo a avaliação do que está sendo dito.
Os adjetivos caracterizam o substantivo, indicam afetividade e
orientam a interpretação do conteúdo, pois também expressam
sentimentos, potencializando a carga argumentativa do texto.
Vilela e Koch (2001) salientam que o adjetivo é a segunda classe
gramatical mais reproduzida e seus valores semânticos demonstram

246 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
relações, propriedades ou qualidades, dependendo do substantivo
para completar seu sentido e apresentando diferentes efeitos ao
ser anteposto ou posposto. Segundo Malheiros (1982, p. 14), o
adjetivo é “um termo que atribui ao substantivo características
objetivas de significação ou de realce afetivo ou expressivo”.
Os operadores argumentativos, segundo Koch (2012)
indicam a força argumentativa dos enunciados, eles expressam
valores semânticos distintos conforme a condição em que são
produzidos, estruturando o texto e direcionando a argumentação.
Tais operadores são tratados por alguns estudiosos como um
dos principais recursos persuasivos, e foram sistematizados, em
mais ou menos vinte tipos, dependendo dos efeitos de sentidos
vinculados: adição, comparação, disjunção, explicação, conclusão,
concessão, condição, entre outros.
Em nosso corpus, focalizaremos quatro operadores
argumentativos: porque, se, já e ainda, que serão analisados
posteriormente.

Representação da mulher no campo do humor

A mulher, no decorrer dos séculos, foi conquistando,


paulatinamente, e com muitas lutas, o seu lugar na sociedade,
pois sempre teve poucos direitos, e não era valorizada por seu
desempenho. Novas configurações ocorreram ao longo do tempo,
atualmente, a mulher desenvolve muitas funções tanto na esfera
pública quanto na privada, mas para chegar a este quadro, muitas
manifestações foram travadas, reivindicando direitos e resistindo
ao controle político e social.

247 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
A sociedade posiciona o sujeito feminino em lugares
culturalmente demarcados e este controle exige que padrões
sejam idealizados e seguidos. As movimentações femininas,
como acontecimento discursivo, vêm produzindo alterações/
deslocamentos a respeito da feminilidade, ou seja, ressignificando
sentidos e promovendo conquistas, como direitos civis, ingresso no
mercado de trabalho, uso da pílula anticoncepcional, entre outras.
O Dia Internacional da Mulher, assunto chave de nossa
análise, foi efetivado em agosto de 1910, no II Congresso
Internacional de Mulheres Socialistas, em Copenhague
(Dinamarca). Dentre as propostas discutidas, destacamos o
sufrágio, os direitos para maternidade, as novas leis para carga
horária de trabalho, para insalubridade, entre outras. Em 1921, o
dia 08 de março foi definido como o Dia Internacional da Mulher,
mas a data só foi oficializada em 1970, pela ONU.
Essa data foi escolhida em homenagem às mais de
cem mulheres, que estavam em greve e morreram devido ao
incêndio em uma fábrica de Nova Iorque, em meados de 1800.
Posteriormente, o assunto foi questionado por alguns estudiosos
como não verdadeiro em relação ao ocorrido e às datas. Se a
história é real ou inventada, o Dia Internacional da Mulher
tornou-se significativo, ampliou o sentido de um acontecimento e
o fez símbolo de cultura e de resistência, constituindo a memória
social, que se concretiza, especialmente, por situações de disputa
e de conflito.
A tirinha que analisaremos é um gênero do campo do
humor e dentre as suas características, para a efetivação do
sentido, é preciso haver representação social do tema abordado,
envolvendo, de acordo com Possenti (2014), linguagem, história,
cultura e ideologia. O discurso do humor trata de temas polêmicos,

248 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
manifesta cultura e visão estereotipada, conforme valores
estabelecidos, por isso é relevante trabalhar essa esfera em Estudos
da Linguagem. Para Possenti (1998), de forma ambígua, irônica
ou por imitação, o discurso humorístico resume problemas sociais
de forma livre, pois o sujeito não se responsabiliza pelo que diz,
dentro da justificativa de que é para trazer humor.
As tiras circulam em vários espaços, como revistas, jornais,
internet, e seus temas envolvem política, economia, educação
e entre outros. Segundo Silva (2012), os contextos descritos
pelas tiras representam cenários e expressões de personagens;
seu conteúdo pode ser manifestado verbalmente ou não, dito
ou implícito, produzindo, pelas vozes articuladas no discurso, a
ironia, o riso, o humor. Para compreender o discurso humorístico,
é preciso ativar o conhecimento de mundo e o linguístico, pois a
língua estará sempre relacionada a um contexto efetivo. Pelo jogo
da linguagem, pelo duplo sentido e pela quebra de expectativa o
humor é concretizado e isso será possível por meio dos recursos
linguísticos e imagéticos. Conforme Amaral (2002), os textos de
humor trazem vestígios, por meio da linguagem, que indicam
assujeitamento imposto pela ideologia; as vozes transmitem o
discurso do sujeito que, por sua vez, é produzido em condições
preestabelecidas por certa formação discursiva.
A tirinha selecionada para análise faz analogia à
comemoração do Dia Internacional da Mulher e, pela linguagem,
revela a resistência, a transformação e a representação de valores,
captados pelas formações ideológicas, pelas condições de
produção, pela memória discursiva e pela denúncia de práticas
silenciadas. Nesse sentido, estudaremos a movimentação
discursivo-argumentativa.

249 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
Análise do Corpus

Compreender os efeitos de sentido significa que, de acordo


com Possenti (2009, p. 14)

aprendemos a nunca ler um texto isoladamente (não se faz análise


do discurso de um texto), a nunca ler um texto considerando seu
material verbal (aprendemos a relacioná-lo a seu “exterior”), a
nunca tratar a linguagem como se fosse transparente (aprendemos
a supor sempre que a interpretação é um trabalho, já que as
palavras não remetem jamais às coisas e não têm sentidos
unívocos), a nunca supor que o texto (ou mesmo vários) fornece
todas as condições de sua leitura (aprendemos sempre a supor
que, mesmo no domínio textual ou até mesmo no do enunciado
mais restrito, é necessário acionar mais de um fator relevante –
considerar os pressupostos, a intertextualidade...) etc.

A tirinha escolhida para compor o corpus dessa análise


foi retirada da página do Facebook intitulada “Armandinho”,
publicada em março de 2017 como homenagem ao Dia
Internacional da Mulher. Segundo Pereira e Garcia (2018), os
movimentos femininos se fundam como forma de resistência ao
controle da mulher exercido pelas instâncias sociais, que demarcam
e limitam as mulheres a determinados posicionamentos. Dessa
forma, esses movimentos são necessários para que discursos
estigmatizados, de limitação feminina, sejam ressignificados,
sendo que a resistência é uma forma de ressignificação.

250 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
No nível textual, verificamos a predominância da
adjetivação e dos operadores argumentativos.

SUBSTANTIVO ADJETIVO
Luta das mulheres
Mundo Todo
Condições Dignas
de consciência política e solidariedade
Dia
internacional
Consciência Política
Solidariedade Internacional

Os adjetivos são afetivos, pois enfatizam a importância do


Dia Internacional da Mulher: a luta, a marcha. O contexto retoma,
pela memória discursiva, dizeres já ditos, como a situação insalubre,
desigual e injusta, principalmente, no ambiente de trabalho, pois
o salário da mulher, além de inferior aos vencimentos de um
homem na mesma função, era encarado como complementar e a
carga horária era elevada.

251 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
Nesse sentido, observamos a resistência como forma
de ressignificação, ou seja, o desejo em sair da submissão, do
apagamento instaurado sócio-histórica e ideologicamente, uma
vez que o discurso da tirinha vai em busca de igualdade e respeito,
reafirmando a luta e a resistência, pois, apesar das mudanças, a
igualdade ainda está longe de ser alcançada.
Chaui (1980, p. 31) acrescenta que a

ideologia [...] é um “fato” social justamente porque é produzida


pelas relações sociais, possui razões muito determinadas para
surgir e se conservar, não sendo um amontoado de idéias falsas
que prejudicam a ciência, mas uma certa maneira da produção
de idéias pela sociedade, ou melhor, por formas históricas
determinadas pelas relações sociais.

Ademais, o substantivo “solidariedade” acompanhado pelo


adjetivo “internacional” imprime a sensação de dor e de sofrimento:
a memória do incêndio na fábrica de Nova Iorque respalda a luta
das mulheres e o discurso da dor/da solidariedade sensibiliza as
pessoas. Portanto, os adjetivos não só qualificam os substantivos,
mas também permitem que a emoção dos sujeitos transpareça,
seus efeitos de sentido valorizam a causa de abrangência mundial,
corroboram o sentido da luta feminina ter tomado corpo e voz,
resultando em grandes conquistas.
E, segundo Silva, Oliveira e Oliveira (2013, p. 208): “Os
valores ideológicos e socioculturais assumidos pelo locutor são
disseminados pelo uso da classe dos adjetivos, palavras que
concretizam a significação total de um texto”.
A marcha é retomada, a luta é retomada e isso é possibilitado
pela memória discursiva nas CPs de comemoração ao dia da
mulher. A posição de marcha faz circular sentidos, pois se inscreve

252 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
em algumas formações discursivas, se é preciso marchar (FD da
tomada de atitude) é porque a sociedade entende as mulheres
com determinados sentidos possíveis: frágil, não tem voz, não
pertence ao espaço público, não vai às ruas (formação discursiva
histórica e social). A posição de marcha tenta romper com sentidos
cristalizados, romper com o círculo de repetição da condição das
mulheres, ou seja, sair do silenciamento. De acordo com Zoppi-
Fontana e Ferrari (2017, p. 15), “as lutas pelo conhecimento e as
práticas de resistência às diversas formas de dominação surgem no
interior do processo de interpelação ideológica e não fora dele”.
Dessa forma, segundo Paveau (2013, p. 91), a memória
está diretamente ligada

às condições sociais, históricas e cognitivas de produções de


discursos, aos dados extralinguísticos e sobretudo pré-discursivos
que participam plenamente da elaboração, da produção, da
difusão e da circulação de produções verbais de sujeitos em
situação [...], o discurso se constrói, efetivamente, a partir da
memória de discursos anteriores e falas de outros.

Aqui, o discurso é compreendido a partir de atravessamentos


sócio-históricos, como um efeito de sentido entre os sujeitos,
portanto, o sentido é construído a partir da concretização do
discurso: a marca de um dia para celebrar as mulheres, pois durante
toda a história a participação feminina foi abafada. Ressaltamos
que, apesar de todas as conquistas e mudanças, as CPs atuais
colocam em questionamento o desejo de reconquistar o que já
foi conquistado ou simplesmente manter o que a classe conseguiu
até aqui.

253 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
As condições de produção, que constituem os discursos,
funcionam de acordo com certos fatores. Um deles é o que
chamamos relação de sentidos[...] Não há discurso que não se
relacione com outros. Em outras palavras, os sentidos resultam
das relações: um discurso aponta para outros que o sustentam,
assim como para dizeres futuros (ORLANDI, 2015, p. 37).

Com ênfase na materialidade linguística, os operadores


argumentativos dos dois últimos quadrinhos orientam,
persuasivamente, a significação, direcionando os sentidos. Vejamos
seus efeitos de sentido:

OPERADOR EFEITO DE SENTIDO


ARGUMENTATIVO
PORQUE justifica o enunciado anterior
SE indica condição
JÁ indica conteúdo pressuposto
AINDA indica conteúdo pressuposto

Esses operadores argumentativos reforçam a intensificação


promovida pelo “muito”, ao indicar que “muito já foi percorrido”,
pressupondo conteúdos e revelando o interdiscurso, ou seja, algo
fala antes, em outro lugar e é retomado para ser ressignificado. A
partir de “muito ainda temos pela frente”, a continuidade da luta
é pressuposta, pois ainda há circulação do discurso estereotipado
sobre a mulher.
Nesse sentido, Brandão (1997, p.76) afirma que

é a memória discursiva que torna possível a toda formação


discursiva fazer circular formulações anteriores, já enunciadas.
É ela que permite, na rede de formulações que constitui
o intradiscurso de uma FD, o aparecimento, a rejeição ou

254 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
a transformação de enunciados pertencentes a formações
discursivas historicamente contíguas. Não se trata, portanto, de
uma memória psicológica, mas de uma memória que supõe o
enunciado inscrito na história.

Por isso, o discurso é mutável e instável, é resultado


de outros discursos, originando um novo discurso, formando
infinitas possibilidades de construções. Afinal, sempre há algo
para explicar, estudar e explorar, evidenciado pelos componentes
sociais, históricos e políticos.

Considerações

Segundo Orlandi (2004), os corpos exteriorizam a


correspondência entre linguagem e sujeito e tornam-se lugar da
significação, dessa forma, as marchas ressignificam os sentidos do
posicionamento feminino: mulher que luta, que tem vontades e
que resiste. A linguagem, através dos recursos argumentativos,
promove efeito de verdade, de valor ao tema; eles indicam marcas
subjetivas, pois o sujeito é ideológico e dá pistas de sua relação
com o discurso. E esse discurso demonstra persistência em dizer
e em sair da sua posição de sujeito silenciado, indo além, ou
seja, não precisar lutar por já ter. A luta, ativada pela memória
discursiva, é a forma de dizer, de buscar a liberdade. A necessidade
de dizer demonstra a importância da resistência, uma vez que os
abafamentos ainda existem.
Pelo gesto corporal de manifestar, lutar, erguer placas é
possível ver um corpo discursivo (que exterioriza) e não biológico;
se é um corpo discursivo, não há transparência, ele é atravessado
por formações discursivas e por formações ideológicas anteriores

255 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
e, como símbolo de resistência, denuncia as práticas que foram
silenciadas. Nesse sentido, a resistência contra o que é instaurado
sócio-historicamente: as mulheres continuam lutando, como no
século XIX, pelos seus direitos e, principalmente, nas CPs atuais,
por respeito.
O sujeito é um indivíduo concreto, que irá se constituir por
meio da interação social. É na sociedade que ele encontra lugar
para sua prática de ser. Esse processo ocorre devido à linguagem,
por meio do sistema de valores no qual ele é marcado socialmente,
pela memória discursiva que o sustenta, pelos atravessamentos
ideológicos que o determinam.
Desde a instituição do dia da mulher até hoje, quantas
mulheres silenciaram e quantas se apropriaram do discurso de
luta? Hoje, o dia da mulher significa no comércio, nos movimentos
feministas e, até mesmo, para quem desconhece a história de luta
por direitos (sufrágio, leis trabalhistas, entre outros). A luta, hoje,
envolve e denuncia questões como a falta de respeito, a violência,
as relações de poder, entre outras, assim consideramos que os
sentidos estão e sempre estarão em circulação.
Além disso, o silêncio que existiu por anos era, também,
uma forma de resistência e de luta. O silêncio é a resistência: a
mulher está lutando e, ao mesmo tempo saindo da posição de não
lutar. Portanto, os atravessamentos ideológicos são responsáveis
por fazer com que os sujeitos signifiquem e ressignifiquem a partir
das suas relações. Também, as condições de produção demonstram
a necessidade de continuar despertando reflexões sociais nesse
novo momento sócio-histórico (em que as minorias estão sendo
abafadas novamente) acerca da posição sujeito mulher.
O discurso presente na tirinha ilustra muitos dos discursos
atuais: é o desejo de falar, de exteriorizar, de resistir. A luta tem
função de resgate e de reflexão social. Que possamos seguir!

256 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
Referências

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. Trad. de Valter


José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. 2 ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1985.

AMARAL, Nair Ferreira Gurgel do. Um pouco de humor na análise


do discurso: resgatando a subjetividade discursiva. Primeira versão.
Ano I, nº 34, Janeiro. Porto Velho: Editora Universidade Federal de
Rondônia, 2002.

ANSCOMBRE, Jean-Claude; DUCROT, Oswald. L’Argumentation


dans la langue. Langages, 42, 1976.

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 6ª


ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.

CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário


de análise do discurso. Trad. Fabiana Komesu. 3 ed. São Paulo: Contexto,
2014.

KOCH, Ingedore Villaça. Argumentação e linguagem. 13ª ed. São Paulo:


Cortez, 2011.

KOCH, Ingedore Villaça. A inter-ação pela linguagem. 11ª ed. São Paulo:
Contexto, 2012.

MALHEIROS, Iraci de Jesus Barros. Aspectos estilísticos na colocação do


adjetivo. São Luís, MA: UFMA, 1982.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Cidade dos sentidos. Campinas, SP: Pontes,


2004.

257 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos
sentidos. 6ª ed. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2007.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e


procedimentos. 12ª ed. Campinas: Pontes, 2015.

PAVEAU, Marie-Anne. Sentido, memória e cognição. Trad. Greciely Costa


e Débora Massmann. Campinas, SP: Pontes Editora, 2013.

PEREIRA, Fernanda. GARCIA, Dantielli Assumpção. No ranger


da memória: o movimento feminista e o FEMEN. In: TARINI, Ana
Maria de Fátima Leme; ORSATTO, Franciele Luzia de Oliveira (Org.).
Mulheres sobre mulheres: reflexões à luz da análise de discurso. Curitiba:
Editora IFPR, 2018.

PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de


argumentação: a nova retórica. Tradução Maria Ermantina de Almeida
Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

POSSENTI, Sírio. Os humores da língua: análises lingüísticas de piadas.


Campinas, SP: Mercado das Letras, 1998.

POSSENTI, Sírio. Questões para analistas do discurso. São Paulo: Parábola


Editorial, 2009.

POSSENTI, Sírio. Entrevista com o Professor Sírio Possenti, da


Unicamp. Rio de Janeiro, 2014. disponível em http://www.pgletras.uerj.
br/palimpsesto/num19/entrevista/palimpsesto19entrevista01.Acesso em
10 de dezembro de 2019.

SILVA, José Ricardo Carvalho da. O gênero tira de humor e os recursos


enunciativos que geram o efeito risível. 2012. Disponível em: http://www.
filologia.org.br. Acesso em: 18/12/2019.

258 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
SILVA, Suzete; OLIVEIRA, Esther Gomes de; OLIVEIRA, Lolyane
Cristina Guerreiro de. A expressividade argumentativa do adjetivo no
texto publicitário. Signum: Estudos da Linguagem. V. 16, n.º 1/2013.

SOUZA, Sérgio Augusto Freire. Conhecendo análise de discurso:


linguagem, sociedade e ideologia. Manaus: Editora Valer, 2006.

VILELA, Mario; KOCH, Ingedore Villaça. Gramática da Língua


Portuguesa. Portugal: Almedina, 2001.

VOGT, Carlos. Linguagem, pragmática e ideologia. 3ª ed. São Paulo:


Hucitec: Editora da Unicam, 2015.

ZOPPI-FONTANA, Mónica G.; FERRARI, Ana Josefina (Org.).


Mulheres em discurso: gênero, linguagem e ideologia. Volume 1. Campinas,
SP: Pontes, 2017.

259 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 239-259 – jul./dez. 2020
O QUE A ARTE URBANA PODE ENSINAR
PARA UMA CIDADE?

Danielle de Marchi Tozatti (UEL)


Sandra Regina Ferreira de Oliveira (UEL)

RESUMO: Este artigo apresenta a cidade como campo formador, princípios do


conceito de Cidade Educadora e seu desenvolvimento no Brasil. Nesse contexto, a
cidade dá continuidade à educação escolar e, em específico, busca vincular as imagens da
cidade exploradas por meio da arte urbana presente nas pinturas murais e nos grafites
das escolas públicas e estabelecer suas relações com o contexto e com o desenvolvimento
social. Apresenta-se um estudo bibliográfico com aporte nos autores que inspiraram
as Cidades Educadoras brasileiras, auxiliando a compreender o conceito além dos
ditames políticos e econômicos sobre o desenvolvimento das Cidades Educadoras e
aproximando o conceito da realidade explorada nos projetos, nas leis e nas pesquisas
dos autores, também explicitando suas experiências práticas. Intenta-se a interação
entre cidade, escola e arte urbana, associando os conceitos na tentativa de propor
um olhar diferente sobre as imagens urbanas. Trata-se de imagens que educam, que
transformam o ambiente, que propõem o pensamento, a curiosidade e a conscientização
para determinados assuntos vigentes, imagens que nos perturbam e nos fazem procurar
conhecer mais sobre o tema explorado na arte urbana.
PALAVRAS-CHAVE: Educação; Arte urbana; Cidade Educadora.

ABSTRACT: THis article presents the city as a formative field, principles of the
concept of the Educating City and its development in Brazil. In this context, the city
continues with school education and specifically seeks to link the images of the city
explored through the urban art present in the murals and graffiti of public schools
and to establish their relations with the context and social development. We present a
bibliographic study with contributions from the authors that inspired the Brazilian
educating cities, helping to understand the concept beyond the political and economic
dictates about the development of the educating cities, bringing the concept closer to the
reality explored in the projects, laws and research of the authors mentioned, in addition
to explain their practical experiences. Seeking the interaction between city, school and
urban art, bringing concepts together in an attempt to propose a different look at urban
images. Images that educate, that transform the environment, that propose thinking,
curiosity and awareness for certain current issues, images that disturb us and make
us seek to know more about the theme explored in urban art.
KEY WORDS: education; urban art; Educating City.

261 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
Introdução

Um rosto negro com sorriso aberto olhando para o alto através de seus
grandes óculos; no balão que sai de seus lábios carnudos a frase: seja
você mesmo (Descrição do grafite de Carão em um muro escolar, 2017).

Essa e outras tantas imagens espalhadas pelas cidades nos


fazem refletir e questionar: a cidade educa? Como a arte urbana
disposta nas empenas (paredes de edifícios sem janelas, capazes de
abrigar obras com dezenas de metros), nos muros, nas calçadas e
afins educam? Por que não educa o que vemos nas ruas? Precisa-se
compreender a relação entre educação e arte urbana presente na
cidade, como forma de expressão da sociedade, utilizando-se da
ferramenta de comunicação que é a arte expressa nas ruas.

Habitamos um mundo que vem trocando sua paisagem natural


por um cenário criado pelo homem, pelo qual circulam pessoas,
produtos, informações e principalmente imagens. E, se temos
que conviver diariamente com essa produção infinita, melhor
será aprendermos a avaliar essa paisagem, sua função, sua forma
e seu conteúdo, o que exige o uso de nossa sensibilidade estética.
Só assim poderemos deixar de ser observadores passivos para
nos tornarmos espectadores críticos, participantes e exigentes
(COSTA, 2001, p. 9).

A imagem nos emociona, ao vermos arte na rua, paramos,


recordamos, memoriamos. Algumas imagens se destacam pela
forte emoção que expressam, pela agressividade ou pela repulsa,
a arte urbana revela a habilidade do artista de despertar a emoção
de quem está passando pela rua. Normalmente, esse tipo de arte
extrapola o tamanho do habitual, é tão grande que é impossível
não ver, pode ocupar empenas inteiras de prédios.

262 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
[...] o artístico desperta necessariamente no público uma
emoção especial, de encantamento e enlevo ou até mesmo de
medo, que pode ser identificada como prazer estético, pois
surge da contemplação e da fruição da obra, de suas qualidades
formais e de linguagem. Essa emoção difere daquela que temos
cotidianamente diante dos fatos da vida, porque sabemos que
ela é fruto da imaginação do autor e da nossa também, que é
capaz de entendê-la. Assim, tanto o prazer que sentimos diante
de uma paisagem agradável como a sensação de suspense que
temos ao ver alguns filmes resultam do domínio do autor sobre a
arte com a qual se expressa, das qualidades estéticas de sua obra
(COSTA, 2001, p. 19-20).

A imagem não somente cristaliza uma dada realidade


social, mas responde ativamente às solicitações de seu meio, às
exigências de sua classe, aos problemas morais, sociais e políticos
de sua época. “Sua resposta importa num desvendamento ou
numa constatação, numa descoberta ou numa recusa, sem excluir
a própria aceitação daquilo que existe e que, no entanto, recebe,
na obra, uma expressão reveladora e ampla dirigida a todas as
consciências” (NUNES, 1991, p. 98).
Como frequentemente insistia o sociólogo da Literatura
Lucien Goldman (apud Sayre; Löwy 2001), a teoria formula os
conceitos, as leis, as análises, e a obra literária ganha vida por
meio dos personagens e das situações. Se a primeira segue a lógica
da racionalidade científica, a segunda segue a da imaginação e,
dessa forma, produz um “efeito de conhecimento” insubstituível,
iluminando, por assim dizer, o “interior”, os contornos e as formas
da realidade social. Isso implica uma complementaridade possível
e desejável entre as formas de discurso. Podemos também incluir
as imagens desenvolvidas pela arte urbana neste discurso, elas
recriam o ambiente, o personagem retratado, fazendo com que
o transeunte reinterprete a sua realidade e o seu contexto social.

263 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
Temos como exemplo, nesse âmbito, a experiência do
grafiteiro Kobra (2020), que utilizou, no painel desenvolvido
na Universidade do Vale do Taquari (RS), os rostos de Darcy
Ribeiro, Clarice Lispector e Paulo Freire, na série Olhares da
Educação (2020), a fim de retratar personalidades que lutaram
pela educação no Brasil e influenciaram muitas gerações; há
outras séries de grafites, como Etnias (2006) e Muro das Memórias
(2007), em que reproduziu fotos antigas de São Paulo em tons
de sépia e preto e branco; Green Pincel (2011), em prol de causas
ecológicas; Realidade Aumentada (2015), com questões particulares
importantes, como um morador de rua que escreve poemas;
mais recentemente e atual, Recortes da História, com releituras
de momentos históricos importantes em grandes murais; entre
tantos outros grafites desenvolvidos, os quais relatam, por meio das
imagens, a história, o cotidiano e as etnias. O artista deseja que o
leitor pare e pense, busque e reflita sobre, observe além da beleza
de sua produção e continue aguçado na tentativa de aumentar seu
repertório em relação ao assunto.
Em entrevista, o grafiteiro Eduardo Kobra (2020) coloca:
“Todos os murais que realizo não são apenas pinturas, são portais
para que as novas gerações busquem conhecer mais da história
do que está em cada painel”. Para ele, a “arte muda a vida das
cidades, faz as pessoas conhecerem um universo muito maior de
informações”.
Diante do exposto sobre a arte urbana, consideramos que
a Cidade Educadora seja explorada como conceito e literatura
basilar para o desenvolvimento desta pesquisa, que tem por
objeto as representações artísticas denominadas aqui “arte urbana”
ou “arte de rua”, alocadas nos muros das escolas. Intentamos
compreender como e por que esses espaços de interface entre a

264 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
escola e a cidade são ocupados pela comunidade escolar e em que
medida podem ser compreendidos como “pontes” entre a escola e a
cidade. Para tanto, interessa sobremaneira entender o conceito de
Cidade Educadora, considerando-o em sua historicidade. Neste
texto, apresentamos o resultado de um estudo bibliográfico com
aporte em autores que nos auxiliam a compreender o conceito
para além dos ditames políticos e econômicos.
Esse conceito ganhou força e notoriedade com o
movimento das Cidades Educadoras, que teve início em 1990 com
o I Congresso Internacional de Cidades Educadoras, realizado
em Barcelona, na Espanha. Nesse encontro, um grupo de cidades
pactuou um conjunto de princípios centrados no desenvolvimento
dos seus habitantes que orientariam a administração pública.
Produziu-se uma Carta, a qual foi revista no III e no XIII
Congresso Internacional, de Bolonha (1994) e de Génova (2004),
respectivamente, a fim de adaptar as suas abordagens aos novos
desafios e às necessidades sociais, priorizando o desenvolvimento
dos habitantes das cidades, pois eles não podiam ser deixados ao
acaso.
Em 2020, o movimento alargou-se por vários países do
mundo e cidades que desejam receber o selo de educadoras
precisam comprovar o efetivo desenvolvimento de ações e políticas
públicas elencadas no documento que regulamenta o que se define
por Cidade Educadora.
Para discorrer sobre o conceito, foram definidos os
autores do campo teórico: Sonia Miranda, Andrea Medeiros e
Fabiana Almeida (2016) ; Silvia Alderoqui (2003), Yi-Fu Tuan
(2013), Adriana Fontes (2017), Jaqueline Moll (2013), Zygmunt
Bauman (2005); e os inspiradores do campo teórico das Cidades
Educadoras: Anísio Teixeira apud Ferrari (2008), Mário de

265 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
Andrade apud Faria (1999), Paulo Freire apud Menezes e Santos
(2001), Milton Santos (2007), Moacir Gadotti (1992) e Ladislau
Dowbor (2006), a fim de compor o cenário teórico com aspirações
práticas das Cidades Educadoras brasileiras.
“Uma Cidade Educadora é aquela que, para além de
suas funções tradicionais, reconhece, promove e exerce um
papel educador na vida dos sujeitos, assumindo como desafio
permanente a formação integral de seus habitantes” (Educação e
Território. https://cidadeseducadoras.org.br/conceito, acesso em
dez/2019). Na Cidade Educadora, então, os diferentes espaços,
políticas, tempos e atores são compreendidos como agentes
pedagógicos, capazes de apoiar o desenvolvimento de todo
potencial humano. 
A Cidade Educadora deve ocupar-se prioritariamente com as
crianças e jovens, mas com a vontade decidida de incorporar pessoas de
todas as idades, numa formação ao longo da vida. A Carta supracitada
é, ainda hoje, o referencial mais importante da  Associação
Internacional de Cidades Educadoras, que reúne 470 cidades de
36 países em todo o mundo. Atualmente, 20 municípios compõem
a Rede Brasileira de Cidades Educadoras. 

Propostas e estudos sobre as Cidades Educadoras

De acordo com Miranda, Medeiros e Almeida (2016) no


livro A cidade para professores, que é resultado do Projeto Cidade
para Professores, voltado à “problematização da Cidade em
relação às suas dimensões de Tempo, Cultura, Sociabilidades e
Sensibilidades” (p. 12), pesquisou-se a potência educadora capaz
de colocar em evidência a cidade como eixo privilegiado para

266 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
o tratamento do currículo escolar, provendo uma perspectiva
humanista.

O espaço urbano constitui uma experiência primordial, plural e


universalmente posta. Nos dias de hoje, todos somos, de certo
modo, marcados por elementos visíveis e invisíveis envolvendo
nossa localização e nossos deslocamentos pela cidade. Somos
distinguidos positiva ou negativamente, pelo local onde vivemos;
nossas escolas são qualificadas ou desqualificadas em função dos
bairros nos quais se situam; os grupos juvenis são associados aos
seus espaços de sociabilidade, atuação e tensão. Em todas essas
relações, comparecem modos de ver e qualificar a cidade. Além
disso é na cidade que se organizam, muitas vezes de modo pouco
visível e tangível, nossas experiências mais primordiais no tocante
à compreensão da passagem do tempo, a partir da materialidade
assumida pelas múltiplas camadas temporais que se dispõem ao
nosso olhar, seja na dimensão física ou visual das paisagens, dos
monumentos e construções, seja no tocante às praticas sociais
e ofícios urbanos que resistem em torno de reminiscências
do passado, sejam elas materiais ou simbólicas (MIRANDA;
MEDEIROS; ALMEIDA, 2016, p. 19).

De acordo com as autoras citadas, no intuito de refletir


sobre o currículo escolar na tentativa de contribuir para a formação
de uma cidade mais “plural e humana”, conclui-se:

O espaço urbano projeta-se como um espaço prenhe de conexões


envolvendo múltiplas temporalidades e experiências sociais.
Converte-se em uma ferramenta potente para promover o
necessário movimento de dilatação da consciência temporal em
face do instante presente. Por isso, a capacidade de olhar e inquirir
o urbano ganha força em termos educativos na medida em que a
defesa do Direito à cidade em sua pluralidade representa também
o direito à Memória, à formação da consciência histórica, o
direito aos usos sociais e políticos do território urbano, de modo
a convertê-lo em espaço público, o direito ao conhecimento na

267 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
relação direta com os elementos da cultura visual (MIRANDA;
MEDEIROS; ALMEIDA, 2016, p. 19).

Sendo assim, a abundância de novas possibilidades de


exploração da arte urbana na escola pede novas estratégias, novos
conteúdos, novas formas de contextualização e de participação,
afinal, “Educar com e pela cidade é educar o Olhar” (MIRANDA;
MEDEIROS; ALMEIDA, 2016, p. 30). Ademais, carece-se
de “Educar as sensibilidades em relação ao presente vivido.
Acreditamos que é no presente experienciado que somos capazes
de educar o olhar, de educar para a observação, de educar a
condição de estabelecer relações e comparações (MIRANDA;
MEDEIROS; ALMEIDA, 2016, p. 37).
Com o olhar redirecionado, sensível a estabelecer
interpretações, conexões e contextualizações, o geógrafo Tuan
(2013, p. 204) propõe que, nas cidades,

A arte e a arquitetura buscam visibilidade. São tentativas de dar


forma sensível aos estados de espírito, sentimentos e ritmos da
vida diária. A maioria dos lugares são criações deliberadas, eles
são construídos para satisfazer necessidades práticas. Como é
que adquirem visibilidade tanto para os habitantes locais como
para os de fora?

As imagens causam impacto aos olhos, permitindo que


estes se fixem em determinados pontos e repousem o olhar, sendo
habitantes, estudantes ou visitantes desses lugares. Essas imagens
podem gerar sentimentos, emoções, necessidade de pertencimento
ou de repulsa a determinado local.
Em relação às cidades contemporâneas, segundo Medeiros
(2004), são feitas de inserções sociais que ensejam uma
multiplicidade de práticas coletivas, sendo a atividade estética uma

268 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
delas, pois: “Assim, como a cidade não é apenas uma estrutura
externa a seus habitantes, mas é produzida por eles, a arte pública
contemporânea se propõe a ser uma força constitutiva no modo de
construção das interações sociais, tornando-se parte significativa
da vida urbana” (p. 349).
A imagem não somente cristaliza uma dada realidade
social, mas responde ativamente às solicitações de seu meio, às
exigências de sua classe, aos problemas morais, sociais e políticos
de sua época. “Sua resposta importa num desvendamento ou numa
constatação, numa descoberta ou numa recusa, sem excluir-se a
própria aceitação daquilo que existe e que, no entanto, recebe,
na obra, uma expressão reveladora e ampla dirigida a todas as
consciências” (NUNES, 1991, p. 98).
Em seu artigo publicado em comemoração aos 20 anos
das cidades educadoras, intitulado “A cidade e os seus caminhos
educativos: escola, rua e itinerários juvenis” (2013), Jaqueline Moll
faz a seguinte pergunta: “será possível compreender a rua como
uma grande escola ignorada?” (p. 216). A autora trilha seu artigo
procurando respostas em pesquisas que nos levam a compreender
que a rua pode ser educativa quando permeada de ações educativas
coletivas, ações intencionais e identitárias de grupos que habitam
e exploram pedagógica, política e culturalmente a cidade e seus
múltiplos territórios.
Conceitos de Cidade Educadora podem alargar nossa
compreensão de educação, reinventar a escola e reinventar a cidade.
Pretende-se que esses movimentos ousem na intencionalidade das
ações desenvolvidas, convertendo a cidade em território educativo
e fazendo da cidade uma pedagogia. “A cidade democrática e
educadora, espaço de muitas trilhas é, portanto, uma utopia a ser
reanimada, porque mais uma vez nos remete aos sonhos coletivos
de uma vida feliz, sustentável e solidária neste planeta” (p. 224).

269 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
Para Silvia Alderoqui, em “La ciudad um território que
educa” (2003, p. 154), “a cidade se converte em potencial espaço
simbólico da construção da cidadania, um espaço físico, um lugar
que é uma ‘trincheira da identidade’”. No mais, a autora busca
relacionar a cidade e a cidadania. Diferenciando como produtora
da vida cotidiana a cidadania, exemplifica que nas grandes cidades,
como São Paulo, México e Buenos Aires, “os espaços de identidade
se converteram em lugar hostil e talvez inimigo da cidadania”
(Alderoqui, p. 155). Enquanto a cidade se refere ao contexto
educativo, pois as escolas estão dentro da cidade, aprende-se na
cidade. Sendo assim, a cidade seria agente da educação informal.
Para Alderoqui (2003), ainda, não pode haver cidade que
educa se não há projeto urbano estruturado, ou seja, um espaço
público urbano. Ao mesmo tempo, a cidade é uma construção social
contraditória e pluridimensional. A autora acredita, além disso,
que a sociedade deve reconquistar os espaços públicos, garantir
a segurança viária, fazer uso inovador das escolas, transformar a
cidade como espaço de experiências urbanas. “Deste modo, todas
as instituições, empresas profissionais se corresponsabilizem e se
façam solidárias com um projeto educativo da cidade para que ‘as
diferenças não sejam sede das desigualdades’” (FRIGERIO, 2001,
apud ALDEROQUI, 2003, p. 174), para que todos os “cidadãos
mereçam sua cidade, para que as cidades voltem a serem lugares de
esperança e riqueza onde, em vez de crianças de rua, haja crianças
pelas ruas” (p. 174).
Essas são etapas fundamentais no processo pelo qual
nos tornamos quem somos. Trata-se de uma relação complexa
entre o individual e o coletivo, que envolve a participação ativa
na transformação de si, do outro e do mundo. Cria-se, então, a
possibilidade de falar, aprofundar, questionar, esclarecer, explicitar
ideias e compreensões sobre a leitura e outros temas grafitados

270 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
e pintados nos muros da escola. As imagens desenvolvidas nos
muros escolares podem redimensionar o olhar e a condição dos
estudantes ao observarem o mundo.

Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a


“identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos
para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as
decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre,
a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo
isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto
para a “identidade”. Em outras palavras, a idéia de “ter uma
identidade” não vai ocorrer às pessoas enquanto o “pertencimento”
continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa
(BAUMAN, 2005, p. 17-18).

Formação do conceito no Brasil

Para se compreender as bases dos conceitos brasileiros


sobre as Cidades Educadoras, foram elencados alguns autores:
Moacir Gadotti, por meio de “Escola Cidadã” (1992); Milton
Santos, Território (2007); Mário de Andrade apud Faria (1999),
Parques Infantis; Ladislau Dowbor, Educação e desenvolvimento
local (2006); Anísio Teixeira, Escolas Parque apud Ferrari (2008);
e Paulo Freire, Educação Cidadã apud Menezes e Santos (2001).
Em Escola Cidadã: uma aula sobre a autonomia da escola,
Moacir Gadotti (1992) faz uma crítica ao sistema educacional
brasileiro, além de levantar algumas sugestões. Para o autor, o locus
fundamental da educação é a escola e a sala de aula, possibilitando
a tomada de decisão pela comunidade escolar. A descentralização
seria a tendência atual mais forte dos sistemas de ensino, para tal,
Gadotti (1992, p. 65) faz quatro sugestões:

271 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
1 Gestão democrática garantindo a autonomia administrativa e
financeira; 2 Comunicação direta com as escolas – pólo irradiador
da cultura para construir e elaborar cultura; 3 Da autonomia
da escola – cada escola poderia escrever seu próprio Projeto
Pedagógico; 4 Da avaliação permanente do desempenho escolar,
o princípio da avaliação remete ao primeiro princípio, o da gestão
democrática.

Gadotti (1992) utiliza o conceito de utopia para reforçar


o retorno à comunidade onde surgiu a escola e ratifica que a
“questão essencial da escola hoje refere-se a sua qualidade” (p.
69). Ademais, coloca que somente as escolas conhecem “de perto”
a comunidade e seus projetos e podem dar respostas concretas
a problemas concretos de cada uma delas. Assim sendo, podem
respeitar as particularidades éticas e culturais de cada região.
Possibilitaria à comunidade avaliar os resultados e diminuiria os
gastos com a burocracia.
Essa nova escola já está sendo construída na resistência
concreta de muitos educadores, pais, alunos e funcionários. São
escolas em que as crianças estão sentindo “prazer em ir, prazer em
estudar, prazer em construir a cultura elaborada. [...] Essa escola
não será abandonada pelas crianças. Porque ninguém abandona
o que é seu e o que gosta” (SNYDERS apud GADOTTI, 1992,
p. 69).
A intervenção e a participação da comunidade na escola
possibilita o reconhecimento das particularidades de cada região,
gerando o sentimento de pertencimento aos alunos, professores
e funcionários.

Enquanto a intervenção temporária representa uma ruptura


positiva na linha contínua da vida cotidiana, a amabilidade
representa a ruptura de hábitos individuais cristalizados no espaço

272 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
coletivo, e surge como um importante legado das intervenções
temporárias praticadas nos espaços coletivos. Esse aporte teórico
pode contribuir para o projeto de novos espaços coletivos que
permitam, e estimulem, mais intervenções temporárias, sempre
visando à cidade como a reunião de espaços coletivos mais
amáveis (FONTES, 2017, p. 69).

Para Santos (2007, p. 13), “o território é o lugar em que se


desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes,
todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem
plenamente se realiza a partir das manifestações da sua existência”.
Desse modo, “é o território que ajuda a fabricar a nação, para que
a nação depois o afeiçoe” (p. 14).
O poeta Mário de Andrade criou, em 1935, o Parque
Infantil (PI) para crianças de 3 a 12 anos, filhos dos operários
de São Paulo, enquanto Secretário da Educação do estado. Os
PI foram considerados a origem da rede de educação infantil
paulistana: “a primeira experiência pública municipal de educação,
embora não escolar, para crianças de famílias de operários que
tiveram a oportunidade de brincar, de ser educadas e cuidadas,
de conviver com a natureza e de movimentarem-se em grandes
espaços” (FARIA, 1999, p. 61-62).
Segundo Faria (1999), o tríplice objetivo parqueano era:
educar, assistir e recrear. Os fundamentos do PI correspondiam
a ideias existentes também fora do Brasil nos anos 1920 e 1930,
algumas delas ainda pouco estudadas, como por exemplo, as
proposições sobre arte e imaginário infantil do soviético Vygotsky
e sobre teatro proletário (entre outros tantos textos sobre criança
e infância) de Walter Benjamin, semelhantes a algumas ideias de
Mário de Andrade e dos modernistas brasileiros.

273 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
“Enquanto as crianças estavam no parque, não estavam
trabalhando, estavam conhecendo várias manifestações da cultura
brasileira” (FARIA, 1999, p. 63). O PI garantia o direito ao espaço
público para o operariado, fazendo parte do projeto municipal de
urbanização da cidade. A educação deveria ser: moral, higiênica e
estética. As instrutoras deveriam brincar com as crianças, ensiná-
las a brincar e a preservar as brincadeiras tradicionais. Assim, a
criança, para Mário de Andrade, é portadora da cultura de sua
classe e o PI é um local privilegiado para conhecê-la.
Mário de Andrade pode ser visto também como um
“pioneiro das idéias relativas ao desenho como antecipação da
escrita, como forma de grafismo, como uma das linguagens”
(FARIA, 1999, p. 73). O poeta, preocupado com a identidade
nacional, pretendia fazer com que a cultura popular estivesse
presente na formação da identidade brasileira.
Para Dowbor (2006, p. 2), a título de complementação, “a
educação não deve servir apenas como trampolim para uma pessoa
escapar da sua região: deve dar-lhe os conhecimentos necessários
para ajudar a transformá-la”.
Determinadas características físicas podem resultar tanto
em um espaço hostil quanto em um espaço potencialmente
atraente. A qualidade urbana se cria, portanto, por meio da
união dos atributos do lugar. Sendo assim, a “possibilidade da
amabilidade se transforma em uma situação real quando ocorre
sobre um espaço potencialmente atraente uma intervenção
temporária bem sucedida, tornando-o um espaço amável”
(FONTES, 2017, p. 72).
Em outros termos, um bom conhecimento da realidade,
sólidos sistemas de informação e transparência na sua divulgação
podem permitir iniciativas inteligentes por parte de todos. Uma

274 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
“educação que insira nas suas formas de educar uma maior
compreensão da realidade local terá de organizar com os diversos
atores sociais que constroem a dinâmica social” (DOWBOR,
2006, p. 6-7).

Neste sentido, todas as organizações, e não só as escolas,


se tornaram instituições onde se aprende, se reconsidera os
dados da realidade. A escola precisa estar articulada com
estes diversos espaços de aprendizagem, para ser uma parceira
das transformações necessárias. O que visamos é uma escola
um pouco menos lecionadora, e um pouco mais articuladora
dos diversos espaços do conhecimento que existem em cada
localidade, em cada região. Educar os alunos de forma a que se
sintam familiarizados e inseridos nesta realidade (DOWBOR,
2006, p. 8).

De acordo com Dowbor (2006), modifica-se profundamente


a função do educando, em particular do adulto, que deve se tornar
sujeito da própria formação frente à diferenciação e à riqueza
dos espaços de conhecimento dos quais deverá participar. “A luta
pelo acesso aos espaços do conhecimento vincula-se ainda mais
profundamente ao resgate da cidadania, em particular para a
maioria pobre da população, como parte integrante das condições
de vida e de trabalho” (DOWBOR, 2006, p. 11).
Anísio Teixeira, por sua vez, foi o inventor da escola
pública em todos os níveis no Brasil, além de grande defensor da
democratização do ensino brasileiro e da experiência do aluno
como base do aprendizado. Idealizador das mudanças educacionais
brasileiras do século XX, seu maior objetivo foi a educação
gratuita para todos, “uma educação em mudança permanente,
em permanente reconstrução” (1957, p. 20).

275 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
As novas responsabilidades da escola eram, portanto, educar
em vez de instruir; formar homens livres em vez de homens dóceis;
preparar para um futuro incerto em vez de transmitir um passado
claro; e ensinar a viver com mais inteligência, mais tolerância
e mais felicidade. Para isso, seria preciso reformar a escola,
começando por dar-lhe uma nova visão da psicologia infantil.
O próprio ato de aprender, afirma Anísio, durante muito
tempo significou simples memorização; depois, seu sentido passou
a incluir a compreensão e a expressão do que fora ensinado;
por último, envolveu algo a mais: ganhar um modo de agir. Só
aprendemos quando assimilamos um conteúdo de tal maneira
que, chegado o momento oportuno, sabemos agir de acordo com
o aprendido.
Para o pensador, não se aprendem apenas ideias ou fatos,
mas também atitudes, ideais e senso crítico – desde que a escola
disponha de condições para exercitá-los. Assim, uma criança só
pode praticar a bondade em uma escola onde haja condições reais
para desenvolver o sentimento. A nova psicologia da aprendizagem
obriga a escola a se transformar em um local onde se vive, não em
um centro preparatório para a vida. Como não aprendemos tudo
o que praticamos, mas aquilo que nos dá satisfação, o interesse
do aluno deve orientar o que ele vai aprender. Portanto, é preciso
que ele escolha suas atividades.
Quanto à disciplina, Anísio afirma que o homem educado é
aquele que sabe ir e vir com segurança, pensar com clareza, querer
com firmeza e agir com tenacidade. Numa escola democrática,
mestres e alunos devem trabalhar em liberdade, desenvolvendo a
confiança mútua, e o professor deve incentivar o aluno a pensar
e a julgar por si mesmo. “Estamos passando de uma civilização
baseada em uma autoridade externa para uma baseada na

276 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
autoridade interna de cada um de nós”, coloca ele em seu livro
Pequena introdução à filosofia da educação (1968, p. 53).
Para ser eficiente, ressalta Anísio, a escola pública para
todos deve ser de tempo integral para professores e alunos, como
a Escola Parque por ele fundada em 1950 em Salvador, que mais
tarde inspiraria os Centros Integrados de Educação Pública
(CIEPs) do Rio de Janeiro e as demais propostas de escolas de
tempo integral que se sucederam.
Cuidando desde a higiene e a saúde da criança até sua
preparação para a cidadania, essa escola é apontada como solução
para a educação primária no livro Educação não é privilégio,
também publicado em 1968. Além de integral, pública, laica e
obrigatória, a escola deveria ser municipalizada, para atender
aos interesses de cada comunidade. O ensino público deveria ser
articulado numa rede até a universidade. Anísio propôs, ainda,
a criação de fundos financeiros para a educação, o atual Fundo
de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de
Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).
Segundo o Instituto Paulo Freire (IPF), a Escola Cidadã
defende a educação permanente e tem uma formatação própria
para cada realidade local, de modo a respeitar as características
histórico-culturais, os ritmos e as conjunturas específicas de cada
comunidade, sem perder de vista a dimensão global do mundo
em que vivemos.
Para tanto, o seu projeto político-pedagógico é elaborado
com base na realização de um diagnóstico da realidade escolar
chamado Etnografia da Escola, que possibilita a construção
de um currículo escolar fundamentado na criação de espaços
interculturais, por sua vez, trabalhado nas perspectivas inter
e transdisciplinar, que levam em conta a dimensão da razão e

277 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
da emoção, portanto, a técnica, a sensibilidade e a criatividade.
“Nesse sentido, a Escola Cidadã é democraticamente organizada
e pedagogicamente alegre, criativa e ousada” (MENEZES;
SANTOS, 2001).

Considerações finais

Na atualidade, vive-se na chamada “civilização da imagem”,


na era da visualidade, da cultura visual, há imagens por toda parte.
Com a produção maciça de imagens, tendo como exemplo a arte
urbana, modificaram-se as bases do conhecimento humano. A
arte urbana muda o ritmo de quem passa, os passos apressados
param quando se deparam com algo interessante, que pode ser
admirado ou fazer pensar, refletir.
A arte urbana faz a gente enxergar com novo olhar para
o lugar de sempre. Tem-se outra perspectiva para um lugar
onde nem se reparava mais. Interrompe a rotina e faz reparar. E
apreciação não é necessariamente aprovação. Você pode estranhar,
achar diferente. As pessoas começam a identificar, perceber que
tem cena, o traço do artista, a mensagem descrita pela pintura
ou pelo grafite, a relação com seu cotidiano, a beleza e o colorido
que enobrece a cidade.
Os muros e as empenas se transformam em verdadeiras
telas urbanas, podemos comprovar que a arte urbana construiu
um novo conceito de muro, de fachada. Assim, todos os cidadãos
– crianças, jovens, adultos e idosos – podem ser promovidos ao
papel de educadores da cidade, pois a arte urbana extrapola os
museus e as galerias e permite que todos tenham acesso ao seu
papel educativo.

278 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
O conceito de Cidade Educadora procura articular os
espaços da cidade que promovem o conhecimento, buscando, na
perspectiva humanista, as sensibilidades e as sociabilidades de cada
lugar, de cada cidade, possibilitando a formação da consciência no
espaço público, posto aqui pela cultura visual, produzida pela arte
urbana. Cada cidade gera seus próprios símbolos, cria as imagens
que julga necessário comunicar e explicitar, como uma forma
de revelação ampla a todas as consciências, formando, assim, os
espaços coletivos desse local, possibilitando a todos os cidadãos
a alegria, a ousadia e o prazer da identidade local.
Diante de todos os argumentos e fundamentações
apresentados, podemos afirmar que a arte urbana é ponto fundante
para uma Cidade Educadora, emprenhada de múltiplas leituras,
reinterpretando os espaços e elegendo-os como grandes páginas
de livros que inundam a cidade, convidando todos a lerem. Dessa
maneira, a arte urbana entra na sala de aula, da mesma forma
que a sala de aula se apropria da arte urbana para promover a
cultura, a história, diagnosticar os problemas sociais, raciais,
econômicos, entre tantos outros temas explorados nessa arte capaz
de sensibilizar para novos horizontes.

279 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
Imagem 1 – Grafite de Carão em um muro escolar de Londrina-
PR (2017)

Referências

ALDEROQUI, Silvia. La ciudad um território que educa. Caderno


CRH, Salvador, n. 38, p. 153-176, jan/jun. 2003.

280 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

COSTA, Cristina. Questões de arte: a natureza do belo, da percepção e


do prazer estético. São Paulo: Ed. Moderna, 2001.

DOWBOR, Ladislau. Educação e desenvolvimento local. abr. 2006.


Disponível em http://dowbor.org

FARIA, Ana Lucia G. A contribuição dos parques infantis de Mário


de Andrade para a construção de uma pedagogia da educação infantil.
Revista Educação & Sociedade. UNICAMP, ano XX, p. 60-91, dez. 1999.

FONTES, Adriana Sansão. Amabilidade urbana: marcas das


intervenções temporárias na cidade contemporânea. URBS. Revista de
Estudios urbanos y ciências sociales, v. 2, n. 1, p. 69-93, set. 2017.

FERRARI, Marcio. Anísio Teixeira, o inventor da escola pública no Brasil.


out. 2008. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/1375/
anisio-teixeira-o-inventor-da-escola-publica-no-brasil. Acesso em
dez/2019.

GADOTTI, Moacir. Escola Cidadã: uma aula sobre a autonomia da


escola. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1992.

KOBRA, Eduardo. “A arte muda a vidas das cidades”, diz Kobra, que
pintou muro com Clarice Lispector, Darcy Ribeiro e Paulo Freire.
Entrevista concedida a Luiza Piffero. Gauchazh, Rio Grande do
Sul. Disponível em https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/
noticia/2020/02/a-arte-muda-a-vida-das-cidades-diz-kobra-que-
pintou-muro-com-clarice-lispector-darcy-ribeiro-e-paulo-freire-
ck6l2uqa70gt301mvtu27t0he.html. Acesso em: fev. 2020.

281 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
MENEZES, Ebenezer Takuno de; SANTOS, Thais Helena dos. Verbete
escola cidadã. Dicionário Interativo da Educação Brasileira - Educabrasil.
São Paulo: Midiamix, 2001. Disponível em: <https://www.educabrasil.
com.br/escola-cidada/>. Acesso em: 29 de mar. 2020.

MOLL, Jaqueline. A cidade e os seus caminhos educativos: escola,


rua e itinerários juvenis. In: Educação e Vida urbana: 20 anos de cidades
educadoras. X Congresso da Associação Internacional das cidades
educadoras (AICE). Torres Novas, Portugal, 2013.

MIRANDA, Sonia. R.; MEDEIROS, Andrea B.; ALMEIDA, Fabiana


R. A cidade para professores. Juiz de Fora, Minas Gerais: FUNALFA, 2016.

MEDEIROS, Maria Beatriz (Org.). Arte em pesquisa: especificidades.


v. I. Brasília: Pós-graduação em Arte Universidade de Brasília, 2004.

NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Editora


Ática, 1991.

SANTOS, Milton (Org.) Território, territórios: ensaios sobre o


andamento territorial. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007.

SAYRE, Robert; LÖWY, Michael. Reificação e Consumismo


Ostentatório no Gatsby O Magnífico. Revista Estudos de Sociologia.
Araraquara, n. 11, ano 6, p. 7-21, 2001.

TEIXEIRA, Anísio. Pequena introdução à filosofia da educação: a escola


progressiva ou a transferência da escola. São Paulo: Cia. Editora
Nacional, 1968.

TEIXEIRA, Anísio. A escola brasileira e a estabilidade social. Revista


Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, v. 28, n. 67, p. 3-29, jul./set.
1957.

TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Londrina:


EDUEL, 2013.

282 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 261-282 – jul./dez. 2020
STORYBOARD DA CENA DO JANTAR EM
SHREK 2 (2004): O PERCURSO CONSTRUTIVO
NA ANIMAÇÃO DIGITAL

Luiz Antonio Xavier Dias1


Edina Regina Pugas Panichi2

RESUMO: Diversos estudos repensam abordagens teóricas no campo da Crítica


Genética ao atestarem que a criação artística envolve procedimentos que estão além
de textos manuscritos, esboços e rascunhos. Cada texto, verbal ou não verbal, seja ele
em seu mais particular gênero, demanda um percurso muitas vezes minucioso, desde
a sua idealização até a sua conclusão. O presente artigo investiga o processo criativo
fílmico por meio da análise do storyboard de uma cena da obra cinematográfica Shrek
2 (2004). Por depender do desempenho simultâneo de diversos artistas e profissionais
animadores, pode-se afirmar que a animação é uma arte coletiva que advém, muitas
vezes, da literatura, e transpõe barreiras na tela. Dessa forma, objetivamos investigar
os rascunhos dos personagens, seu processo construtivo até a rendenização da obra
fílmica. A partir dos pressupostos da gênese da criação, de abordagens teóricas sobre
cinematografia e de uma abordagem semiótica, será possível desvendar o percurso
criativo para a construção de sentidos na obra.
PALAVRAS-CHAVE: Crítica Genética; Animação digital; Storyboard; Gênese
da criação.

ABSTRACT: A lot of studies rethink theoretical approaches in the field of Genetic


Criticism by attesting that artistic creation involves procedures beyond manuscripts,
sketches, and drafts. Each text, considering the particularities of its genre, demands a
meticulous and detailed route from its idealization to its conclusion. The present paper
investigates the filmic creative process by analyzing the storyboard of a scene from the
cinematographic work Shrek 2 (2004). Once the movie depends on the simultaneous
performance of several entertainers and animators, it can be said that animation is
a collective art that often comes from literature, and transposes barriers on the screen.
Thus, we aim to investigate the sketches of the characters, their constructive process
until the rendering of the film work. It will be possible to unveil the creative path for

1
Doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina. Professor do
Curso de Letras da UniFil – EAD e da Secretaria do Estado da Educação do PR-SEED.
2
Doutora em Letras pela UNESP/Assis e Pós-doutoramento em Teoria/Crítica Literária
pela UFMG. Professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem –
PPGEL da Universidade Estadual de Londrina.

283 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
the construction of meanings in the aforementioned movie through the postulates of the
genesis of creation, theoretical approaches to cinematography, and a semiotic approach.
KEYWORDS: Genetic Criticism; Computer Animation; Storyboard; Genesis of
creation.

Introdução

O processo de criação é sustentado pela lógica da incerteza,


e a busca do artista pela concretização de seu projeto se embasa
em experiências e pesquisas que nos permitem acompanhar o
percurso da criação, a relação entre os documentos armazenados
para o alcance dos objetivos, até a obra entregue ao público.
Apenas o texto escrito, por exemplo, não traz todo o dinamismo
da linguagem, como também não revela todas as suas significações
e não atende a todas as indagações do leitor. Assim, contamos
com os pressupostos da Crítica Genética para trilhar o processo
de criação de uma obra fílmica e trazer esclarecimentos ao leitor
sobre a chegada ao produto final, pois

o estudo de arquivos deixados tanto por escritores como por


outros artistas constituem material adequado para abordagens
de natureza cognitiva, dentre outras. Compreende-se melhor,
por meio do contato com arquivos de criação, o sentido de
deixar de operar apenas com a idéia de produto e passar a adotar,
permanentemente, a noção de processo (PANICHI; CONTANI,
2003, p.03).

Nesta direção, sendo o cinema uma obra de arte, sua


concretização também passou por todo um processo de construção
textual/imagético e a investigação de tal processo faz jus à
justificativa de nosso estudo, pois a partir das reflexões que esses

284 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
documentos nos oferecem, é possível aproximar-se do movimento
criador.
Salles (2006) defende a obra de arte como processo em
construção, sem início nem fim e com características marcantes
como simultaneidade de ações, dinamicidade, associações,
transformações que transcorrem à margem da memória, dos
registros de percepção e da pluralidade individual, portanto
relacionada ao conceito de rede. O objeto de pesquisa da referida
autora lida com anotações provindas de linguagens verbais e
visuais e destaca determinadas relações que se imbricam na
construção da obra.
Com a dilatação das fronteiras dos estudos genéticos,
amplia-se o significado de manuscrito. Lida-se, assim, com índices
de materialidades diversas: rascunhos, roteiros, esboços, plantas,
maquetes, copiões, ensaios, storyboards, cadernos de artistas, dentre
outros. O presente artigo investiga o processo criativo fílmico por
meio da análise do storyboard de uma cena da obra cinematográfica
Shrek 2 (2004).
Salles (2008) justifica a ampliação de documentos de
processo na Crítica Genética já que o interesse do crítico genético
é o movimento criador em sentido amplo, uma vez que ele tem
que se desvencilhar da relação direta Crítica Genética e rasura
verbal ou Crítica Genética e rascunho literário, relação essa
estabelecida pela origem dos estudos genéticos. Para que esses
estudos avancem, o parâmetro tem que deixar de ser a palavra e ser
deslocado para alguns aspectos de natureza geral. Os documentos
de processo são, portanto, registros materiais do processo criador.
São retratos temporais de uma gênese que agem como índices
do processo criativo.

285 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Crítica genética

A Crítica Genética nasce da constatação de que a obra


é resultado de um trabalho que passa por transformações
progressivas. Trata-se de uma investigação que indaga a obra de
arte a partir de sua fabricação, a partir de sua gênese. Seu interesse
está voltado para o processo criativo artístico, uma vez que a obra
surge a partir de investimento de tempo, dedicação e disciplina por
parte do escritor e passa por um processo de correções, pesquisas,
esboços que, muitas vezes, não deixam vestígios, causando a
impressão de que nasce pronta.
Essa área de estudos caracteriza-se pela investigação
que vê a obra de arte a partir de sua construção. Acompanhando
seu planejamento execução e crescimento, o crítico genético se
preocupa com a melhor compreensão do processo de criação.
Conforme aponta Salles:

A Crítica Genética utiliza-se do processo de criação para


desmontá-lo e, em seguida, colocá-lo em ação novamente. [...]
o percurso é o rastro deixado pelo artista e pelo cientista em
seu caminhar em direção a obra entregue ao público (SALLES,
2008, p. 13).

A inicial curiosidade de se conhecer e entender a escritura


em processamento, visto que a Crítica Genética se limitava a
manuscritos literários, abriu espaço à indagação a respeito de
outros processos artísticos – dentre eles, o cinema. O progresso dos
estudos genéticos apoia-se na ideia da travessia das fronteiras dos
gêneros e das artes, expandindo-se para os mais diversos tipos de
obras, ampliando a valorização dos aportes científicos dos estudos
genéticos, no século em curso. Desse modo, os estudos genéticos

286 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
buscam compreender os mecanismos da produção, elucidar os
caminhos seguidos pelo escritor e entender o nascimento da obra.

Animação digital e tecnologia

Para Cris Webster, a ilusão do movimento em animação


pode ser compreendida como o processo

and it is through this that we experience moving images made up


of individual frames on a film strip. The secret of this illusion is
to be found in the remarkable capability of a part of the human
eye, the retina, of momentarily retaining any image it receives.
Imagine, if you will, a light being shone into the eye only briefly
and appearing on the retina as a bright spot. This bright image
would appear to remain for a brief period even after the light had
been turned off. It’s this slight period of retention or delay that
allows for separate sequential images, if seen in quick succession,
to appear as a moving image, and it’s upon this principle that film
and video projection works (WEBSTER, 2005, p. 04)3.

Para Chong (2011), a animação é uma técnica em que são


filmados desenhos ou posições de modelos sucessivos para criar
a ilusão de movimento, ligando-se à tecnologia e à computação.
Nesse sentido, Dennis (2007, p. 07) assinala que “a animação é
uma ferramenta multiforme e inconstante, em função dos desejos
do realizador e do produtor”. Já Nogueira (2010) expõe a distinção
entre o cinema convencional e o de animação:

3
Tradução nossa: “através do qual somos capazes de dar movimento a imagens feitas de
frames individuais. O segredo dessa ilusão está na notável capacidade de uma parte do olho
humano, a retina, de momentaneamente reter qualquer imagem que recebe. É esse ligeiro
espaço de tempo de retenção ou atraso que permite a separação de imagens sequenciais,
se vistas em rápida sucessão, transformando-as em imagens em movimento e é baseado
nesse princípio que funciona a projeção de filmes e vídeos” (WEBSTER, 2005, p. 04).

287 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
de um ponto de vista técnico, o facto de, no primeiro, as imagens
serem registadas fotograma a fotograma e não de uma forma
contínua. Daí que a ilusão de movimento a que nos referimos
seja não apenas uma consequência da dinâmica representada em
cada imagem, mas sobretudo – como refere Norman McLaren,
um dos mais ilustres criadores desta forma de expressão – dos
movimentos entre as imagens (NOGUEIRA, 2010, p. 59).

Nogueira (2010, p. 59) ressalta, ainda, que “a animação não é


a arte do desenho que se move, mas, antes, a arte dos movimentos
que são desenhados”. Na animação os criadores querem dar a
impressão de realidade, enquanto no cinema convencional, a
intenção é representar a realidade. Assim, a base da animação
parece ser predominantemente fisiológica (e não tanto química,
como sucede na imagem real) e tem a ver, sobretudo, com a
persistência na retina.
Dennis (2007, p. 11) defende que “a animação ajuda a
franquear as fronteiras estabelecidas entre o real e imaginário,
mesmo que os objetivos dessa operação sejam diferentes”,
enquanto Nogueira afirma que as categorias de tempo e espaço
são comuns na narrativa ficcional do cinema convencional e nas
animações. Entretanto, devido à liberdade de criação própria
do gênero, os animadores têm muito mais possibilidades de
recriação de mundos fantásticos do que no cinema tradicional. Em
decorrência disso, aproximam-se da ficção, isto é, da capacidade
de dar vida a seres e mundos puramente imaginários.
Nessa perspectiva, ao retomar a plasticidade da animação,
Nogueira complementa:

Na animação tudo pode ganhar vida e personalidade: objectos,


marionetas, fantoches ou desenhos, por exemplo, revelam-se
capazes de exprimir sentimentos, de manifestar vontades, de agir

288 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
e de reagir. O inorgânico torna-se orgânico, o material torna-se
espiritual (NOGUEIRA, 2010, p. 60).

Fossati (2011) pondera que existe um potencial educativo
no mundo animado, já que o mundo dos sonhos e da fantasia
se converte em uma doce e branda maneira de se refletir sobre
o mundo, por pertencer o desenho animado ao mundo feérico.
As etapas do processo de animação de um filme longa-
metragem 3D CGI, de acordo com o site da Pixar Animation
(2020), são divididas em sete fases. A primeira desenvolve-se das
versões preliminares do roteiro, quando são elaborados desenhos
de conceito de todos os personagens e cenários.
A segunda é a produção do Storyboard, ou seja, o esboço
das sequências de cenas em preto e branco, com o objetivo de
se estudar e compreender a visualidade, o ritmo e a dinâmica
dos episódios. O storyboard também informa ao roteirista o
“comportamento” do roteiro que, nesta fase, já foi criado, mesmo
que ainda não tenha chegado à versão final;
A terceira fase é o Animatic. Nela, o storyboard é colocado
em movimento, ou seja, os quadros desenhados são fotografados
e editados para que se possa ter uma primeira noção acerca do
tempo de duração das cenas e o ritmo geral de todo o programa.
Já na quarta fase, acontece a Modelagem de personagens e
cenários, fase em que se transfere o que foi feito na arte conceitual
(desenhos/ilustrações) para a forma 3D em wireframe.
A quinta fase é a texturização e colorização de personagens
e cenários.
Na fase seis, acontece a composição das cenas e animação,
sendo esse o momento de dar vida aos personagens, tornando seus
movimentos o mais real possível, registrando esses movimentos na

289 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
tela do computador e combinando-os com cálculos matemáticos.
A última fase, a sétima, é denominada Iluminação e render, ou
seja, é a transformação dos dados matemáticos do computador
em vídeo digital.

A relevância do storyboard

Ao assistirmos produções cinematográficas como Shrek 2


(2004), não imaginamos o trabalho por trás daquela obra e todo
o seu percurso de criação. O processo de produção é exaustivo,
os longa-metragens podem demorar anos para serem feitos,
entretanto, tudo começa a tomar forma no storyboard, ou seja, “para
cumprir uma finalidade criativa, é indispensável que a imaginação
seja associada a alguma forma de materialidade” (PANICHI;
CONTANI, 2003, p. 102). Neste intento, entendemos que a
materialidade, aqui, é o storyboard.
O storyboard é a versão em desenhos do roteiro de um
filme. Contém todo o seu conceito visual como o enquadramento,
cortes, movimento de câmera, além de localizar os ambientes e
inserir as personagens em cena. São estes desenhos em sequência
que transportam as ideias do abstrato para o real. É a primeira
oportunidade para observar se o que o diretor imaginava irá
funcionar, o que permite uma melhor preparação para as filmagens.
Braga e Silveira (2018, p. 01) definem storyboards como
“ferramentas poderosas para planejamento de animações,
produções televisivas ou cinematográficas”. É o documento que
faz a transição entre palavra escrita e narrativa visual ou produção
digital. Os autores defendem ser tal ferramenta não apenas
uma arte gráfica de transição entre o escrito e o visual, mas um

290 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
documento carregado de intenções do diretor ou produtor, sendo
essencial para o diretor em seu processo de criação.
Existem alguns elementos presentes em todos os
storyboards, ainda que com diferentes formas e significados, como
a demarcação de enquadramentos e indicadores de movimento
como setas e linhas direcionais. Uma seta, por exemplo, pode
significar para um documento a movimentação de um personagem,
uma mudança de close, a direção de uma fonte sonora, ou mesmo
a entrada de novas fontes de iluminação.
A produção do storyboard também ganha importância
quando se leva em conta que realizar um vídeo é uma atividade
essencialmente coletiva. Por isso, a equipe deve estar em sintonia
quanto ao projeto que está desenvolvendo. Se isso não ocorrer,
cada membro terá um filme diferente na cabeça, e a consequência
será uma obra de arte pouco coesa.
Também é importante que o artista de storyboard tenha
uma ideia precisa sobre as condições econômicas do projeto. Isso
porque, no caso da animação, é ele quem deve ser capaz de manter
um equilíbrio entre as sequências que necessitam de full-animation
– processo mais caro e trabalhoso – e as sequências de animação
mais modestas. É ele também o responsável pelo planejamento
dos cenários, podendo reaproveitá-los e assim economizar tempo
e energia dos profissionais envolvidos. Como na animação todos
os ambientes são criados, as ações podem se dar em mundos
paralelos, em um país diferente a cada plano, e até mesmo em
planetas diferentes. Mas, mesmo assim, uma abundância de
cenários distintos pode ser sinônimo de custos altos.

291 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Conrad vernon e a produção do storyboard

Como podemos observar, o processo construtivo de um


filme de animação digital compõe-se de várias fases. A produção
do storyboard é a segunda. Segundo Hopkins, a animação em
CGI, técnica usada no filme de animação Shrek 2, o primeiro
momento de produção do filme foi a construção do roteiro. Após
esta fase, houve a elaboração de esboços iniciais da história. Nesse
momento, os criadores dos storyboards estavam prontos para
manter sequências individuais dos artistas da história.
Hopkins (2004, p. 78-79), a partir de depoimento de
Conrad Vernon, artista do storyboard analisado neste artigo,
esclarece que um artista de storyboard precisa ser muito criativo,
pois além de ilustrador, ele necessita recriar as ideias verbais e
visuais que se acumulam para transmitir os pontos da história que
envolvem a cena e também fornecer uma representação, precisa
do movimento, da composição, do humor e da emoção.
Durante o processo construtivo do storyboard, Conrad
Vernon precisou convencer o Diretor de que as suas sequências
individuais eram as mais adequadas e, para tanto, o artista lançou
mão de gestos, dramatizações e criou vozes para que seu esboço
fosse o escolhido. Entre as fases de preparação dos rascunhos,
o artista procurou todas as referências que conseguiu, tanto
em castelos, roupas, gaviões e outros elementos constitutivos,
e também observou os movimentos dos animais que estariam
presentes nas cenas. Os movimentos do personagem Burro e do
próprio Shrek foram absorvidos do cotidiano do animador. Para o
artista, buscar todas as referências foi essencial para trazer vida aos
personagens. Um outro ponto a ser observado no filme referia-se
à comida que deveria ser apresentada como elemento importante

292 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
de sentido, pois ela teria que ser, literalmente rasgada, com o
propósito de demonstrar o ódio momentâneo dos personagens.
Para este trabalho, analisamos a relevância do storyboard
da cena do jantar entre Shrek e o Rei Harold. Após serem
apresentados ao genro, Harold e Lílian oferecem um jantar
especial de boas-vindas para Shrek e Fiona, mas Shrek não está
habituado à etiqueta real. Ele engole os escargôs servidos com
concha e tudo, bebe a água de lavar os dedos pensando ser sopa
e, sem querer, engole uma colher, para logo em seguida cuspi-la.
Seus hábitos de ogro parecem ofender o Rei Harold e incomodar
Fiona; já o Burro, fiel escudeiro, fica feliz com toda aquela comida.
Rei Harold não aceita um ogro na família e Shrek acha que o Rei
foi um mau pai.
Como método de análise, apresentaremos o storyboard
retirado do DVD especial da DreamWorks, composto por 109
desenhos. Para essa amostra de análise, trinta e três deles serão
apresentados e dispostos na sequência (da esquerda para a direita,
horizontalmente).

293 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Imagem 1 - Storyboard - Cena do jantar (Shrek 2 2004).

4
Fonte: Shrek 2 (2004) – DVD bônus

Os storyboards resultaram em uma cena de três minutos e


cinquenta e cinco segundos, editada por Asbury e Vernon, diretores
de criação da obra. Essa cena foi pautada no conhecimento de
vida de Adamson, e como era para ser extremamente cômica, o
diretor comenta:

Essa é a verdadeira cena “conheça os pais” no filme. Queríamos


fazer algo diferente do que tínhamos visto antes, mas também
algo com que todos se identificassem. Todos podem se identificar

294 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
com aquele primeiro jantar com os sogros, quando ninguém está
confortável e ninguém se conhece.

Para projetar a cena levada para o filme, Adamson (2004)


utilizou-se do recurso de memória, ou seja, o Diretor apresenta
alguma vivência sentida ou experimentada, trazida de sua memória
para as telas do cinema, como observa Ostrower (1999, p. 261):
“Passando tão livremente entre vivências através de espaços e
tempos, e relacionando-as, a memória nos permite guardar uma
espécie de acervo de nossas ações e experiências”.
Após o primeiro impacto, quando todos os personagens
se conhecem e reconhecem por meio de olhares em uma
situação artificial, houve uma quebra de expectativa uma vez que,
convencionalmente, em um jantar real, jamais um burro se sentaria
à mesa. A esse respeito, Vernon comenta: “Adicionar o Burro ali
realmente modifica as coisas”. Nesta relação grotesca, houve a
inserção do inusitado, já que o efeito do humor

pode se dar através das mais diversas formas, sejam elas críticas,
escárnio, quebra de expectativa, ou outras. Independente da
forma em que se dê [...], o humor é uma forma de revelar e de
flagrar possibilidades de visão do mundo e das realidades culturais
que nos cercam. Assim sendo, o humor é uma manifestação
comunicativa por excelência (VERNON, 2004).

Como o processo criativo é extremamente complexo, os


elementos cênicos não estão dispostos sem um propósito. No
início da cena percebemos uma ave de rapina pendurada na parede.
Ela serviu, segundo os diretores, para construir o clima de receio
que Shrek enfrentava naquele momento:
Aquele gavião foi ideia do Dave Smith.
-Eu disse: como vamos fazer para entrar nessa cena?
Eu tinha escolhido uma fusão na imagem atrás do Shrek, mas o

295 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Dave disse: você deveria ter uma ave de rapina enorme, pronta
para atacar o Shrek, bem atrás dele, o tempo todo. Achei a idéia
bárbara!
Aquelas garras ameaçadoras atrás dele o tempo todo, durante o
jantar (VERNON, 2004).

Na cena do jantar, os storyboards foram decisivos para traçar


detalhes do olhar, expressões dos personagens e até para derrubar
as máscaras deles, pois cada um vai mostrar a que veio, expor suas
antipatias, preconceitos, agressividades, ou seja, suas essências,
como explica McKee (2004):

é como se tudo fosse possível nos momentos iniciais da história,


porém, chegando ao clímax, o público precisa olhar para trás
e reconhecer que aquele era o único caminho que a narrativa
poderia tomar.

A surpresa está na maneira como o clímax foi estruturado


e a forma como os acontecimentos se desenvolveram. Este pôde
ser um momento de grande revelação do personagem, pois nos
períodos de maior dificuldade, as pessoas revelam quem são,
máscaras caem, seus defeitos vêm à tona, do mesmo modo que
suas qualidades também podem ficar mais evidentes. O olhar do
rei Harold, na cena a seguir, surpreendeu até mesmo os diretores:

- A animação nisso aqui, as expressões faciais, particularmente,


no rei, são maravilhosas! Tão realistas e tão expressivas!
É uma grande cena desconfortável que cresce até o caos.
Muito bem-sucedida (VERNON, 2004).

Abaixo, selecionamos os registros do olhar do Rei Harold,


para captar suas reações. Após Fiona soltar um arroto, o pai fica
nervoso com os maus modos da filha à mesa.

296 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Imagem 2 – Storyboard olhar de Rei Harold Imagem nº 3- Cena
finalizada

Fonte: DreamWorks 2004 Fonte: Shrek 2 PDI/DreamWorks 2004

No processo construtivo de uma obra fílmica, o Diretor faz


uso da tradução intersemiótica, ou seja, transita de uma linguagem
para outra, no caso, da linguagem dos quadrinhos, para o filme.
Da mesma forma, há uma transposição de semioses que brotam
do rascunho, no caso, o storyboard. Plaza explica esse processo:

Como sistema padrão organizado culturalmente, cada linguagem


nos faz perceber o real de forma diferenciada, organizando nosso
pensamento e constituindo nossa consciência. A mediação
do mundo pelo signo não se faz sem profundas modificações
na consciência, visto que cada sistema padrão de linguagem
[cinema, literatura, vídeo] nos impõe suas normas, cânones, ora
enrijecendo, ora liberando a consciência, ora colocando a sua
sintaxe como moldura que se interpõe entre nós e o mundo real
(PLAZA, 2001, p. 19).

Os signos visuais utilizados pertencem, na verdade,


à linguagem da criação. A representação pictórica, aqui, é o
paradigma absoluto de toda semelhança. O critério de semelhança
que possibilita a definição do valor representativo da imagem
revela-se, então, suficiente para dar conta do valor de verdade da
representação. Em relação aos entraves técnicos, Adamson explica
que a duração da cena é bem complexa, sem cortes, com muitos

297 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
componentes, angulações e elementos que auxiliam na narrativa
e na ambientação:

Se você pensar num filme de animação, ter uma cena de refeição


tão longa assim não é algo que se sustentaria normalmente. Não
é algo que se sustentaria nem mesmo num filme com atores
(ADAMSON, 2004).

Salles (2011, p.48-65) explica que, durante um trabalho com


cinema, é necessário que haja afinidade com o objeto pesquisado e
entrosamento entre as equipes para que o objeto cultural (filme)
aconteça. Dessa maneira, Adamson (2004) sentiu-se motivado
com sua equipe técnica em razão do desafio de produzir uma cena
longa e complexa na animação digital, pois “a grandiosidade do
projeto se dá em muitos sentidos: em suas propostas estéticas e
no tempo de produção que, por sua vez, se reflete no tempo de
exibição do filme”.
Outro ponto técnico desafiador para o trabalho dos
diretores foi o uso das angulações. Em razão disso, usaram uma
técnica para demarcar a voz do personagem:

- Podem acreditar, quatro pessoas jantando em uma mesa, é uma


cena muito difícil de fazer, e você quer saber onde quem está.
Você meio que se perde... É por isso que usamos esses ombros,
assim sempre se sabe com quem estão falando. Ainda tem uma
tomada aí, que, se prestar atenção, ainda não consigo saber se a
Fiona está olhando para Shrek ou para o Rei.

- Quando ela diz, Shrek! Parece que está falando com o rei. Faz
sentido, mas na verdade engana os olhos.

Olhar por trás dos ombros, quando falavam, facilitou o


trabalho da equipe no que diz respeito ao posicionamento e à

298 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
fala dos personagens em relação aos interlocutores. Fica evidente,
na cena, a importância dos registros de experimentação que
possibilitam que as tomadas possam se concretizar em diferentes
formas e ângulos, ou seja, são tentativas presentes no ato criador.
Ao estudarmos a origem da cena, descobrimos que era para
ser outra, ou seja, uma cena de festa de boas-vindas ao casal
protagonista. Entretanto, devido a muitos problemas com os
elementos técnicos, a equipe resolveu optar pela cena do jantar:

Ao invés disso, tínhamos uma festa surpresa. Shrek e Fiona


entravam nessa enorme festa surpresa, mas descobrimos que
tínhamos coisas demais com que lidar na cena. Tínhamos que
ver como o rei e a rainha eram juntos, como Fiona era com eles.
O que eles achavam do Shrek. Também tínhamos a multidão de
gente da cidade que estava lá. Tínhamos que ver como agiam. Daí
então tínhamos a Fada Madrinha aparecendo na cena, atirando
chocolates na multidão. Todos [os membros da equipe] diziam:
não conseguimos conciliar tudo o que está acontecendo.
Ótimo. Dessa cena é que se estabelecem regras entre os
personagens. Cada um dos personagens fica muito claro e muito
bem estabelecido. Você fica sabendo que tipo de pais Fiona tem,
sabe que tipo de relacionamento Shrek e o pai terão. Você vê o
quanto Fiona quer que as coisas dêem certo (ADAMSON, 2004).

Aqui nos deparamos com um passo importante na criação


artística: o ato de decidir. As escolhas feitas pelos criadores
trazem a marca da especialização do olhar e ganham clareza na
experimentação, nos erros e acertos e na busca da melhor forma
para alcançar o objetivo traçado. O ato de escolher é baseado
em critérios que envolvem várias nuances como, por exemplo, os
recursos disponíveis e as opções mais adequadas àquela situação
dada. O trabalho de criação se dá em meio a recusas e aceitações,
possibilidades e potencialidades, escolhas e descartes.

299 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Outro ponto importante da cena foi a comida e a maneira
francesa de se distribuírem os talheres à mesa. Como se pode
visualizar, a seguir, um recorte do storyboard mostra os talheres
colocados conforme a etiqueta mencionada:

Imagem 4-Storyboard - Cena do jantar Imagem nº 5- Cena do


Filme

Fonte: DreamWorks 2004 Fonte: Shrek 2 PDI/DreamWorks 2004

Imagem 5 – Modo de servir à francesa

Fonte: Disponível em: <https://www.casadevalentina.com.br/blog/servico-a-


francesa-1338/> Acesso em: 10 jul. 2020.
Talheres, pratos e copos
- Os talheres são dispostos de acordo com a ordem em que o
cardápio será servido e devemos sempre começar a utilizá-los de
fora para dentro, em relação ao prato.

300 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
- O garfinho de ostras, menor que os demais, é o único que fica à
direita com as facas, antes da colher de sopa. Afinal, caso servido,
deve ser o primeiro prato.
- Caso seja servido algum fruto do mar que possa ser degustado
com as mãos, deve-se colocar lavanda com limão à mesa para
limpar os dedos.
Fonte: Como servir à francesa: <https://www.terra.com.br/
mulher/infograficos/etiqueta-a-mesa/etiqueta-a-mesa-05.htm>
Acesso em: 12 jun. 2020.

Adamson (2004) relata, também, a dificuldade de se


trabalhar com tantos elementos e, posteriormente, construir o
processo de continuidade: “Toda a comida foi tecnicamente difícil.
Não a comida em si, mas cortar e atirar a comida, foi um grande
desafio”. E continua: “Tivemos problemas de continuidade, do
que tinha sido derramado numa tomada, e não na outra”.
A dificuldade enfrentada pela equipe técnica surgiu
em razão do desfecho da cena. Shrek e rei Harold começam
a discutir e os dois agem igualmente, repetindo um padrão de
comportamento agressivo, destruindo e espalhando a comida, de
forma violenta. A leitura dessa crescente tensão que a sequência
associativa carrega foi possível em virtude da seleção dos recursos
empregados ao longo do processo de montagem do filme. Como
Salles (2008) e Hay (2002, p. 34) esclarecem, é na experimentação,
ou seja, durante a tentativa de acertos e erros que a cena vai sendo
construída. Sem esses acertos técnicos não há filme coeso, nem
alcance de sucesso.
Não menos importante são os alimentos dispostos à mesa,
uma vez que na visão de Maciel o ato de comer carrega consigo
inúmeras representações culturais e simbólicas:

301 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
O “comer” é um ato portador de inúmeras representações
simbólicas e, portanto, é preciso compreender que determinadas
práticas, assim como determinados alimentos, são símbolos
máximos de complexidade cultural para distintos grupos sociais.
Por vezes, estes símbolos denunciam muito das estruturas sociais
vigentes, territorialidades, patrimônios culturais, tradições e
identidades (MACIEL, 1996, p.03).

Conforme aponta Maciel (1996), comer escargôs


representa, no contexto, o poder financeiro dos pais de Fiona,
além de ser um teste para que o ogro cometa ações grotescas e,
por consequência, tenha sua imagem denegrida. No artigo “Os
caracóis terrestres comestíveis no mediterrâneo pré-histórico”,
o antropólogo David Lubell (2004) esclarece que caracóis eram
frequentes em sítios arqueológicos da região do Mediterrâneo,
desde o final da Era Glacial, até metade do Holoceno, período
que se iniciou há 11,5 mil anos. Em regiões que vão da Tunísia
até o sul da França, passando pela Grécia, Ucrânia, Portugal e
Espanha, foram encontrados muitos sítios com concentração
abundante de conchas de caracóis que representam restos de
refeições pré-históricas. Há, inclusive, ferramentas nesses sítios
arqueológicos. A hipótese é que eram empregadas para remover os
caracóis das conchas. Uma pesquisa independente, no Irã, testou
tais ferramentas, com sucesso.
Segundo Lubell (2004), os caracóis tornaram-se tão
populares na região mediterrânea, muito antes do surgimento
da agricultura, exatamente por causa das grandes mudanças
climáticas do período pós-glacial, com o surgimento de florestas
nessa região, entre 15 mil e 6 mil anos atrás, condições que
aumentaram as populações de caracóis. Além disso, segundo o
autor (2004), os caracóis foram os primeiros animais comestíveis

302 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
da história. Isso poderia marcar, de certa forma, a transição da
era Mesolítica para a Neolítica. Era fácil, relativamente simples
e sem nenhum risco para os seres humanos primitivos a criação
desses animais para a alimentação, daí a escolha do prato pela
direção do filme.
Outro costume de época, peculiar às famílias nobres, era o
uso de lavandas em suas mesas, ou seja, um recipiente com água
e limão para lavar os dedos. Normalmente, em mesas postas com
esse recipiente são servidos pratos que devem ser comidos com as
mãos. Esse elemento foi utilizado no filme, justamente para que
o ogro pudesse demonstrar toda a sua falta de civilidade:

Imagem 6- Storyboard – lavanda Imagem nº 7 – Lavanda no filme

Fonte: DreamWorks 2004 Fonte: Shrek2 (2004)

Destacamos, ainda, a relevância dos ruídos na construção


significativa da cena. Para a equipe de produção, os sons de
fundo foram decisivos para a manutenção do clima de rivalidade
existente entre os personagens, como demonstra Adamson:

Muita discussão sobre o barulho do fundo na hora da mixagem,


o volume e o volume do som das mordidas dele [Shrek]. Todo
o trabalho do Foley é muito bom. Acho que estavam partindo e
atirando comida de verdade no estúdio, partindo a comida em
pedaços, tentando achar o som certo (ADAMSON, 2004).

303 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Segundo Chion (2011), os componentes da trilha sonora
que subsidiam o processo criativo no cinema são a voz, os ruídos, o
silêncio e a música. Francisco (2017) complementa que ruídos são
necessários à construção das cenas para trazerem maior realidade
à história, uma vez que a associação entre ruído e imagem atua
como campo de testagem do artista, na tentativa de alcançar o
melhor resultado que irá para as telas:

Os ruídos são os sons que não são musicais nem linguísticos. Na


categoria dos ruídos eles se subdividem em: ruídos de ambiente,
que se referem aos sons da natureza que fazem parte da cena, tais
como trovões e sons de animais; ruídos de efeitos, que procedem
de objetos participantes do cenário do filme, como buzinas, carros
e explosões e os ruídos de sala que se referem a movimentos e
ações dos personagens da cena, tais como passos, socos, o som de
arrastar um móvel, entre outros (FRANCISCO, 2017, p. 53-75).

No contexto de um filme de animação, por exemplo, uma


linguagem pode representar outra, ou seja, quando observamos
os desenhos do storyboard de Shrek rasgando a comida e sua
posterior utilização no filme, conforme imagem 08, percebemos
mais uma vez que houve a tradução de uma linguagem para outra.
Diante disso, os signos em foco acabam formando “novos objetos
imediatos, novos sentidos e novas estruturas que, pela sua própria
característica diferencial, tendem a se desvincular do original”
(PLAZA, 2001, p. 30).

304 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Imagem nº 8 – Storyboard do jantar Imagem nº 9 – Cena do jantar rendenizada

Fonte: DreamWorks 2004 Fonte: Shrek 2 (2004)

É importante comentar a importância do storyboard na


execução da obra fílmica, pois este carrega formas em estado
germinal e a expansão dessas ideias podem se dar em diferentes
direções:

Quando montamos essas seqüências e storyboards, enlouquecemos


e montamos todos os efeitos também. Montamos a trilha para
que quando víssemos o filme, pudéssemos avaliar o que fizemos
a cada seis semanas, por dois anos. Mais uma vez os storybords
de Vernon, um dos diretores, e a seqüência acabaram bem fiéis
ao storyboard final; ao fim poucas mudanças aconteceram entre
os rascunhos e o produto final, apenas tiramos algumas extras
(ADAMSON, 2004).

O posicionamento de Ostrower (2020) vai ao encontro das


colocações de Adamson (2004), já que, para ambos, o mais difícil
em uma obra é sua finalização, pois a concretização satisfatória é
um passo a ser dado em direção ao plano final e, por essa razão,
é preciso estar aberto a experimentações para o aperfeiçoamento
de técnicas de trabalho, buscando tirar delas o melhor resultado:

305 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
O momento mais importante, o mais difícil na criação artística é
um momento de saber terminar uma obra, quando é que uma obra
está terminada? Quando todos os componentes, esses detalhes
que estava explicando na própria percepção, tudo isso se encaixa
numa ordem que é justa, onde tudo se justifica (ADAMSON,
2004).

Dessa forma, o projeto em construção vai alterando o seu


ritmo original por meio de substituições, alternância de cenas,
contextualizações e adições responsáveis pela concretização da
obra entregue ao público. Toda obra é resultado de decisões
direcionadas pelo artista e que o levam a expandir ideias e
selecionar os recursos que melhor respondam às suas necessidades
de expressão.

Considerações Finais

Ao longo do filme Shrek 2 (2004), são várias as


desconstruções de estereótipos, promovendo múltiplas quebras
de expectativa, rupturas que convidam o espectador à reflexão
sobre condutas padronizadas e papéis cristalizados pelo coletivo.
O filme nada mais representa que o retrato da sociedade atual,
reproduzindo conflitos, sentimentos e ideologias da própria
humanidade. Com eficiência, a obra utiliza o humor e o riso
como ferramentas para tratar de assuntos complexos, convidando
o interlocutor a pensar sobre si mesmo e sobre a sociedade em
que vive.
Os desenhos preparatórios do storyboard aos quais
tivemos acesso, além de constituírem um documento importante
para a pesquisa do percurso criativo, desempenham um papel

306 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
fundamental na equipe de produção, direcionando o trabalho do
grupo, pois transmitem informações que cristalizam momentos
da criação como partes de um organismo em atividade.
Necessário salientar que a animação digital tira a rigidez
das personagens do desenho animado tradicional, uma vez que o
universo criado por computador fica mais convincente e próximo
do real. No entanto, ao detalhismo das cenas contrastam rostos
cartunescos que enfatizam tratar-se de um desenho animado.
Em relação às dificuldades para se conseguir curvas orgânicas e
formas humanas, pudemos constatar a necessidade da moldagem
de estátuas de barro tridimensionais, escaneadas posteriormente
com um digitalizador tridimensional para traduzir os objetos em
dados. Dessa forma, o computador pôde interpretar tais dados,
conectando, assim, os pontos da superfície, pois quando a forma
do modelo é mapeada, pode ser vista de todas as perspectivas.
O cinema passou por uma revisão de paradigmas e, da
mesma forma, o gênero de animação reformatou-se. A ascensão da
computação gráfica contribuiu para o desenvolvimento do cinema
de animação digital, garantindo-lhe maior precisão técnica, como
se pôde perceber ao longo do presente artigo.

Referências

ADAMSON. Andrew. Assista ao filme com o comentário dos diretores


e dos produtores – DVD – Extras. In: SHREK 2. Direção : Andrew
Adamson. Produção : Jeffrey Katzenberg; Aron Warner. Califórnia:
DreamsWorks Animation, 2004, 1 DVD (105 min.) son., color.

ADAMSON. Andrew; VERNON, Conrad. Assista ao filme com


o comentário dos diretores e dos produtores – DVD – Extras. In:
SHREK 2. Direção : Andrew Adamson. Produção : Jeffrey Katzenberg;

307 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
Aron Warner. Califórnia: DreamsWorks Animation, 2004, 1 DVD
(105 min.) son., color.

ANIMAÇÃO CGI. Roteiro descrito em Pixar Animation .Disponível


em: <http://www.pixar.com/howwedoit/index.html> Acesso em: 17
jun. 2020.

BRAGA, Pedro Henrique Cacique;  SILVEIRA, Ismar. SLAP:


uma linguagem de padrões utilizados em storyboards para geração
semiautomática de animações digitais. In: Simpósio Brasileiro de Jogos
e Entretenimento Digital, SBGames, 2018, Foz do Iguaçu. Simpósio
Brasileiro de Jogos e Entretenimento Digital, SBGames, 2018.

CHION, Michel. A audiovisão. Tradução de Pedro Elói Duarte. Lisboa:


Edições, Texto e Grafia, 2011.

CHONG, Andrew. Animação digital. Tradução de João Eduardo


Nóbrega Tortello. Porto Alegre: Bookman, 2011.

DENNIS, Sebastian. O cinema de animação. Tradução de Marcelo


Félix. Lisboa: Texto & Gráfica, 2007

ESCARGÔS. Disponível em:<http://consultorakarynedavila.com.br/


etiqueta/como-comer- e-servir-escargot/.>. Acesso em: 10 jun. 2020.

FRANCISCO, Eva Cristina. O papel da música no processo (re)criativo


cinematográfico. Signum: Estudos da Linguagem, Londrina, v. 20, n.
2, p. 53-75, ago. 2017.

FOSSATTI, Carolina Lanner. Cinema de animação: um diálogo ético


no mundo encantado das histórias infantis. Porto Alegre: Sulina, 2011.

HAY, Louis. O texto não existe: reflexões sobre a crítica genética. In:
ZULAR, Roberto. Criação em processo: ensaios de crítica genética.
São Paulo: Editora Iluminuras Ltda., 2002, p. 29-44.

308 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
HOPKINS, John. Shrek: from the swamp to the screen. New York:
Harry N. Abrams, 2004.

LUBELL, David. Petits animaux et sociétés humaines. du complément


alimentaire aux ressources utilitaires XXIVe rencontres internationales
d’archéologie et d’histoire d’Antibes Sous la direction de J.-P. Brugal
et J. Desse Éditions APDCA, Antibes, 2004.

MACIEL, Márcio. Comida: uma introdução. Revista Horizontes


Antropológicos. Porto Alegre, ano 2, n. 4, jan/jun. 1996.

MACKEE, Harry. Assista ao filme com o comentário dos diretores


e dos produtores – DVD – Extras. In: SHREK 2. Direção: Andrew
Adamson. Produção : Jeffrey Katzenberg; Aron Warner. Califórnia:
DreamsWorks Animation, 2004, 1 DVD (105 min.) son., color.

NOGUEIRA, Luís. Géneros cinematográficos. Covilhã: LabCom


Livros, 2010.

OSTROWER, Fayga. Acasos e criação artística. Rio de Janeiro:


Campus, 1999.

OSTROWER, Fayga. A intuição, a criação e a beleza. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=3X-1_mB7UTY> Acesso em 17
jun. 2020.

PANICHI, Edina; CONTANI, Miguel Luiz. Pedro Nava e a


construção do texto. Londrina: Eduel; São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Ed. Perspectiva,


2001.

PRATOS FRANCESES e modos de servir à mesa. Disponível em:


<https://www.casadevalentina.com.br/blog/servico-a-francesa-1338/>
Acesso em 10 jun. 2020.

309 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
PRATOS FRANCESES e modos de servir à mesa. Disponível em:
<https://www.terra.com.br/mulher/infograficos/etiqueta-a-mesa/
etiqueta-a-mesa-05.htm> Acesso em 10 jun. 2020.

SALLES, Cecília Almeida. Redes da criação: construção da obra de


arte. Vinhedo: Editora Horizonte, 2006.

SALLES, Cecília Almeida. Crítica genética: fundamentos dos estudos


genéticos sobre o processo de criação artística. 3. ed. São Paulo: EDUC,
2008.

SALLES, Cecília Almeida. O diário de David Carradine: Kill Bill de


Quentin Tarantino. Manuscrítica São Paulo: Humanitas, v. 19, p. 48-
65, 2011.

SHREK 2. Direção: Andrew Adamson. Produção: Jeffrey Katzenberg;


Aron Warner. California DreamsWorks Animation, 2004, 1 DVD (105
min.) son., color.

STORYBOARD DE SHREK 2 (2004). Disponível em: < Disponível


em: <https://www.youtube.com/watch?v=V8pd6Gg2o54> Acesso em:
10 fev. 2018.

VERNON, Conrad. Assista ao filme com o comentário dos diretores


e dos produtores – DVD – Extras. In: SHREK 2.Direção: Andrew
Adamson. Produção: Jeffrey Katzenberg; Aron Warner. California
DreamsWorks Animation, 2004, 1 DVD (105 min.) son., color.

WEBSTER, Chris. Animation: the mecanics of motion. Burlington,


MA: Focal Press, 2005.

310 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 283-310 – jul./dez. 2020
A ARGUMENTATIVIDADE DOS RECURSOS
ENCANTADORES E MOTIVADORES EM
PROPAGANDAS MULTIMODAIS

Ednéia de Cássia Santos Pinho1


Esther Gomes de Oliveira2

“O texto, quando considerado como unidade,


é uma unidade de sentido e não unidade linguística”
(MARCUSCHI, 2008, p. 97)

RESUMO: O objetivo central deste trabalho é mostrar como os recursos


argumentativos constituintes do gênero anúncio publicitário multimodal causam
diferentes impactos na interpretação realizada pelo leitor. Propomos um estudo das
múltiplas linguagens empregadas no gênero e os sentidos emanados por elas. As análises
foram realizadas, considerando o referencial teórico da Semântica Argumentativa e
da Multimodalidade, defendido por Koch (2002), Citelli (2005), Santaella e Nöth
(2011), Dionisio e Vasconcelos (2013), entre outros estudiosos. Este artigo apresenta
parte dos resultados obtidos em uma das categorias de análise da tese de doutorado
intitulada “Argumentação e multimodalidade no ensino de leitura do gênero anúncio
publicitário”, (PINHO, 2018). Constatamos que, nas propagandas, há recursos
com caráter mais subjetivo, denominados encantadores; e outros, com caráter menos
emocional, considerados motivadores.
PALAVRAS-CHAVE: Recursos argumentativos. Propagandas. Múltiplas
linguagens.

ABSTRACT: The main objective of this work is to show how the argumentative
resources that make up the multimodal advertising genre cause different impacts
on the interpretation performed by the reader. We propose a study of the multiple
languages used
​​ in the genre and the meanings emanating from them. The analyzes
were performed, considering the theoretical framework of Argumentative Semantics
and Multimodality, defended by Koch (2002), Citelli (2005), Santaella and Nöth

1
Ednéia de Cássia Santos Pinho é Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade
Estadual de Londrina e docente na mesma universidade.
2
Esther Gomes de Oliveira é Doutora em Linguística e Semiótica Geral pela Universidade
de São Paulo (USP). Atualmente é professora Associada C da Universidade Estadual
de Londrina.

311 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
(2011), Dionisio and Vasconcelos (2013), among other scholars. This article presents
part of the results obtained in one of the categories of analysis of the doctoral thesis
entitled “Argumentation and multimodality in teaching reading in the advertising
genre”, (PINHO, 2018). We found that, in advertisements, there are resources with
a more subjective character, called enchanting; and others, with a less emotional
character, considered motivating.
KEY-WORDS: Argumentative resources. Advertisements. Multiple languages.

Introdução

A circulação dos gêneros textuais em sociedade é algo


constante e essencial para que a comunicação entre os indivíduos,
em todos as esferas, ocorra de maneira organizada e clara. Hoje,
sabemos que, cada vez mais, os textos são múltiplos em diversos
sentidos, desde o volume e o vasto conteúdo que carregam até as
inúmeras formas composicionais como se manifestam. O gênero
anúncio publicitário é um dos exemplos que circula diariamente
em todos as mídias, sejam elas mais ou menos tecnológicas,
e seu objetivo continua sendo único: conduzir o leitor a uma
determinada ação. Para alcançar esse propósito, os criadores se
encarregam de aplicar os mais diversos recursos em favor da
persuasão, sempre atentos ao que o contexto demanda.
Mas será que os recursos aplicados, considerando a
infinidade de possibilidades, têm o mesmo impacto sobre todos
os que com eles têm contato? Ou seja, há recursos com grau
persuasivo captado de modo diferente? A multimodalidade
desses textos interfere no processo de convencimento? Frente a
essas questões é que este artigo se coloca, apresentando parte das
reflexões e conclusões obtidas em uma das categorias de análise da

312 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
tese de doutorado3 intitulada “Argumentação e multimodalidade
no ensino de leitura do gênero anúncio publicitário”.
A pesquisa foi realizada com o objetivo de entender
como os leitores, em especial os alunos do ensino fundamental
II (6º ano), reconheciam os recursos argumentativos aplicados
nas propagandas multimodais e interativas. Para isso, foram
realizadas atividades escritas sobre o conteúdo de duas
propagandas: uma impressa e uma digital e interativa de um
mesmo produto, a fim de analisar como as linguagens foram
percebidas pelos jovens leitores. Nessa pesquisa, o objetivo
também era discutir a necessidade de se manter um trabalho em
sala de aula, envolvendo os mais diversos gêneros textuais, de
modo especial o anúncio publicitário.
A seguir, apresentaremos partes dessa pesquisa, trazendo
conceitos relacionados ao gênero propaganda multimodal,
à argumentação e, por fim, às definições e análise do que
denominados “recursos encantadores” e “recursos motivadores”.

Argumentação na publicidade multimodal

A presença da argumentação na língua é algo inquestionável,


uma vez que, em sociedade, agimos para convencer. Para Koch
(2002, p. 10), “o ato de argumentar é visto como o ato de persuadir
que procura atingir a vontade, envolvendo a subjetividade, os
sentimentos, a temporalidade, buscando adesão e não criando

3
A pesquisa completa está disponível na Biblioteca Digital da Universidade Estadual
de Londrina e pode ser acessada pelo link: http://www.bibliotecadigital.uel.br/
document/?code=vtls000225301. Acesso em: 19 jan. 2021.

313 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
certezas”. Ainda, segundo a autora, a linguagem é uma forma de
ação dotada de intencionalidade.
Nessa perspectiva, Citelli (2005, p. 6) corrobora tal
posicionamento, declarando que “o elemento persuasivo está
colocado ao discurso como a pele ao corpo. É muito difícil
rastrearmos organizações discursivas que escapem à persuasão”.
Liberali (2013, p. 26-27) afirma que a argumentação tem por
objetivo “criar um novo sistema de convicções e atrair outros
para ele, isto é, convencer outros a mudarem seus pontos de
vista”. Isso se encaixa em todos os gêneros textuais, embora
alguns tenham grau argumentativo maior ou menor.
Nessa direção, as propagandas caminham. Há, sempre,
um jogo persuasivo, visando conduzir o leitor a aceitar uma ideia,
um produto ou um serviço ofertado. As propagandas apresentam
cada elemento, cada imagem, cada palavra, cada ponto, cada cor
de fonte de forma tendenciosa. Além disso, há diversas outras
informações presentes de modo implícito que, também, são de
grande relevância. Para Carvalho (1996, p. 13),

Organizada de forma diferente das demais mensagens, a


publicidade impõe, nas linhas e nas entrelinhas, valores, mitos,
ideais e outras elaborações simbólicas, utilizando os recursos
próprios da língua que lhe serve de veículo, sejam eles fonéticos,
léxico-semânticos ou morfossintáticos.

As propagandas nos atraem, nos faz sentir necessidades


que antes não tínhamos e por mais que tentemos não ser
influenciados por elas, sempre há aquelas que ultrapassam as
barreiras e nos convencem. “[...] seduz nossos sentidos, mexe
com nossos desejos, revolve nossas aspirações, fala com nosso

314 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
inconsciente, nos propõe novas experiências, novas atitudes,
novas ações.” (SAMPAIO, 2013, p. 8). Assim, o modo como
são construídas interfere na rapidez em que a mensagem
chegará até o leitor e no seu convencimento. Segundo Citelli
(2003, p. 7), o papel da propaganda é “estabelecer mecanismos
argumentativos capazes de realizar eficientemente os efeitos de
sentido pretendidos”.
Ao refletirmos sobre os novos tempos e os novos contornos
sociais, presentes no século XXI, percebemos que grandes
mudanças ocorreram e outras ainda estão em curso em todos os
segmentos e campos de atuação humana, principalmente no modo
com as pessoas se comunicam e como acessam as informações.
Os próprios textos não circulam mais da mesma forma. Hoje,
temos contato com uma infinidade de modos de apresentação
dos gêneros, há a influência da tecnologia, do hibridismo, da
rapidez de transmissão, do uso de diferentes linguagens como
algo comum e rotineiro. Os anúncios publicitários, em especial,
estão atrelados a essa nova perspectiva para comunicar suas
mensagens, ou seja, mostram-se mais inovadores, tecnológicos,
multimodais e sensoriais. Sobre a comunicação de ideias, Fiorin
(2020, p. 76) atesta

Comunicar é agir sobre o outro e, por conseguinte, não só levá-


lo a receber e compreender mensagens, mas é fazê-lo aceitar o
que é transmitido, crer naquilo que se diz, fazer aquilo que se
propõe. Isso quer dizer que comunicar não é fazer saber, mas
principalmente fazer crer e fazer. Comunicar significa obter
adesão.

315 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
A escolha da forma como as mensagens publicitárias
se manifestam é repleta de cuidado, uma vez que influenciará
diretamente no resultado. Nesse sentido, a união de diferentes
linguagens em um texto é fator essencial no processo de
convencimento. Esses modos funcionam como um diferencial,
para que determinado anúncio se destaque frente aos demais e
tenha um maior número de adeptos. Sant’Anna (2005, p. 190)
corrobora essa ideia, ao afirmar que “O anúncio para seduzir deve
sempre apresentar uma nova forma de sedução, mais brilhante,
mais culta, mais madura e sempre mais original”. Para Pinho
(2018, p. 32)

a linguagem aplicada no gênero anúncio publicitário caracteriza-


se por sua tentativa de fuga ao comum, isto é, a construção exige
criatividade e aplicação de recursos que tenham o potencial, em
primeiro lugar, de chamar a atenção do leitor em meio a tantos
outros anúncios e, posteriormente, manter a propaganda pelo
tempo necessário para que a mensagem seja completada.

A multimodalidade, mencionada como característica dos


textos contemporâneos, é a união de linguagens ou modos que
direcionam para um todo significativo, pois, segundo Dionísio
e Vasconcelos (2013, p. 19), “a sociedade na qual estamos
inseridos se constitui como um grande ambiente multimodal, no
qual palavras, imagens, sons, cores, músicas, aromas, movimentos
variados, texturas, formas diversas se combinam e estruturam um
grande mosaico multissemiótico”. Afunilando as considerações,
Costa (2014, p. 196) afirma que o gênero anúncio publicitário
é considerado “essencialmente multissemiótico, em que os

316 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
argumentos de venda, embora pareçam lógicos, caracterizam-se
por apelos totalmente emocionais”.
Atrelado a isso, apresenta-se, também, a tecnologia, mais
acessível e constante nos lares, escolas e ambientes diversos. Ela
interfere de modo significativo tanto nas estratégias aplicadas
nos textos, uma vez que sua simples presença já funciona
como um recurso de diferenciação e argumentação; quanto na
recepção e leitura dos gêneros. Podemos mencionar, inclusive,
a interatividade dos anúncios publicitários que confere ao leitor
maior sensação de proximidade, de ação, de controle, de viver
novas experiências, por meio dos cinco sentidos (visão, audição,
olfato, paladar e tato). Já as empresas que se propõem a fazer
uso desse recurso, alcançam maior fixação e assimilação das
mensagens, devido às novas experiências que são oportunizadas
aos leitores com a ativação sensorial (CAMPOS; VALLE, 2004).
Frente a essas colocações, concluímos que o principal
ingrediente para que a engrenagem do convencimento se
mova na direção pretendida é um recurso argumentativo bem
aplicado. Nesse sentido, avançaremos, na sequência, para o que
denominamos “Recursos Motivadores e Recursos Encantadores”
na composição do anúncio publicitário.

Recursos motivadores e encantadores



Nosso objetivo, nesta seção, é apresentar a diferença de
percepção, por parte dos leitores (alunos do 6º ano do ensino
fundamental II), dos mecanismos empregados nas propagandas.

317 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
Os procedimentos que culminaram nos dados aqui expostos
comportam a análise de quatro anúncios publicitários (duas
propagandas impressas e duas propagandas em suporte digital
e interativo), sendo assim divididas: Propaganda 1: Bradesco
Seguros (suporte impresso); Propaganda 2: Bradesco Seguros
(suporte digital); Propaganda 3: Centro de Integração da Mulher
(suporte impresso) e Propaganda 4: Centro de Integração da
Mulher (suporte digital).
As propagandas 1 e 3 são impressas e construídas por
meio das linguagens imagética e verbal; as propagandas 2 e 4 são
digitais interativas e foram compostas por múltiplas linguagens.
Para melhor visualização e compreensão das nossas colocações,
seguem as propagandas utilizadas.

Propaganda 1: Bradesco Seguros (suporte impresso)

318 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
Propaganda 2: Bradesco Seguros (suporte digital)

319 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
Propaganda 3: Centro de Integração da Mulher (suporte
impresso)

320 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
Propaganda 4: Centro de Integração da Mulher (suporte
digital).

321 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
A partir do contato com esses anúncios, diversas questões
a respeito da composição e interpretação dos textos foram
realizadas e nos permitiram agrupar os recursos empregados,
estabelecendo categorias de análise.
Quando mencionamos os recursos argumentativos,
estamos nos referindo a toda gama de possibilidades linguísticas,
discursivas, gramaticais, sensoriais, gráficas, semânticas,
tecnológicas e imagéticas que se pode aplicar em um texto,

322 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
considerando determinada intenção. Para Fiorin (2020, p. 69),
“Argumentar é, pois, construir um discurso que tem a finalidade
de persuadir” e “persuadir é levar o outro a aderir ao que se diz”
(p. 77). Assim, segundo Pinho,

quem produz o texto deve considerar que as ilustrações, os


elementos linguísticos, as cores aplicadas, o suporte, o estilo
tipográfico, a disposição das informações e o tipo de linguagem
veiculam sentidos e devem ser explorados com maestria para
estreitar os laços entre produto, serviço ou marca com o leitor.
(PINHO, 2018, p. 44)

Nesse sentido, ainda segundo Pinho (2018), o


entendimento de alguns recursos pode ocorrer de modo diferente
pelos leitores, uma vez que, embora apresentem o mesmo papel
persuasivo, o grau de subjetividade é diferente entre um tipo
e outro. Dessa forma, a partir de definições dicionarizadas e
etimológicas pesquisadas, foi possível identificar diferentes
percepções semânticas (sentido) proporcionadas pelo emprego
das linguagens a que se denominou “recursos encantadores” e
“recursos motivadores”. Para a autora, assim os termos foram
definidos e diferenciados:

o termo “encantador”, [...], não significa apenas bonito,


maravilhoso, e sim algo que “encanta” (como “o canto das sereias”),
trata-se daquilo que chama a atenção “muito afetivamente”.
[...] O termo motivador, por sua vez, apresenta caráter menos
subjetivo, menos ligado à emoção e mais ligado à ação (PINHO,
2018, p. 220-222).

323 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
Os recursos encantadores, nos textos publicitários, são
aqueles que atraem, seduzem e causam prazer pelas experiências
afetivas e emocionais que proporcionam. O impacto desses
recursos está ligado às sensações que eles provocam, por meio
das mais variadas formas de linguagens aplicadas. Santaella e
Nöth (2011, p. 175) afirmam que “Há também efeitos sensórios
que nos atingem como seres biológicos, despertando ritmos
vitais de aceleração, repouso, excitação, equilíbrio etc.” A questão
sensorial é muito presente nessa classificação, uma vez que os
sentidos são responsáveis pela ativação das emoções humanas.
Destacamos diversos modos ou linguagens que se enquadram
nessa categoria.
A primeira linguagem identificada como capaz de
despertar as emoções dos leitores é o som, pois a sua aplicação
faz com que haja comunicação entre o emocional do leitor com
o contexto que o cerca, criando impressões. (PEREZ, 2004).
Há diversos sons que podem compor os anúncios publicitários,
mas, em especial nas propagandas digitais interativas analisadas,
foram aplicados: a) a melodia contínua; b) o grito humano; e c) o
alarme de automóvel. Segundo os resultados obtidos, a melodia
constante presente na propaganda digital sobre violência contra
mulher e o grito da moça que foi “tocada” pelo leitor provocaram
sensações de tristeza, medo, angústia e ansiedade nos leitores.
Já o alarme do carro que dispara ao chocar-se contra a parede
provocou susto e espanto.
A segunda linguagem capaz de despertar as emoções
dos leitores é a luz, (presença ou ausência proposital) que pode,
segundo Perez (2004), assim como as cores, despertar tanto

324 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
reações físicas quanto psicológicas. Na propaganda digital do
Bradesco Seguros, havia o acendimento dos faróis assim que
o carro sofria a batida 4 “provocada” pelo leitor e, segundo os
resultados colhidos, a presença dessa luz forte e ofuscante,
atrelada ao som do disparar do alarme, propiciou um simulacro
do mundo real, ou seja, os leitores sentiram-se levados a viver
o calor da emoção de um acidente de trânsito, ficando mais
atentos. Já o contrário, a diminuição da luminosidade, no cenário
da propaganda sobre violência contra mulher, foi compreendida
como sinal de perigo, de medo e de maldade. Segundo Pinho
(2018), o cenário mais escuro favoreceu a construção de uma
interpretação voltada para a vulnerabilidade da mulher naquela
situação, para o perigo a que ela estava exposta, enfatizando o
assédio sofrido.
A terceira linguagem capaz de despertar as emoções dos
leitores são as expressões faciais e corporais e o movimento. Essas,
de fato, não apenas no gênero anúncio publicitário, despertam
em nós sensações, impulsionam conclusões e direcionam a
interpretação que fazemos das situações. Por exemplo, uma
resposta positiva expressa de modo verbal pode não ser bem
aceita ou compreendida se estiver atrelada a uma manifestação
corporal ou facial negativa. No caso da propaganda analisada de
violência contra a mulher, essa linguagem aplicada, ou seja, os
movimentos da mulher tentando se autoproteger e a expressão
de medo e repúdio corroboraram a intenção do produtor.
Segundo Pinho (2018, p. 230), “as ações da mulher atraíram a
atenção do leitor de modo emocional, direcionando-o ao que era
4
Na propaganda, quando o leitor passava os dedos sobre a tela do tablet para mudar a
página, o veículo se locomovia e se chocava contra a parede.

325 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
a intenção do publicitário: chocar”. Na propaganda digital do
Bradesco, o carro em movimento, chegando ao ponto de chocar-
se contra a página da revista, foi percebido pelos leitores como
um elemento de grande força persuasiva, ou seja, um recurso
capaz de despertar emoções, sensações, ficando gravado na
memória no leitor e sendo lembrado pelos participantes como
um acontecimento significativo.
Ressaltamos, também, a presença da cor e das imagens
como recursos encantadores, uma vez que sua aplicação é dotada
de significação e ambas são capazes de despertar emoções. Em
relação à primeira, de acordo com Farina (1990, p. 27) “[...], a
cor exerce uma ação tríplice: a de impressionar, a de expressar e
a de construir.” Ou seja, “A cor é vista: impressiona a retina. É
sentida: provoca uma emoção. E é construtiva, pois, tendo um
significado próprio, tem valor de símbolo e capacidade, portanto,
de construir uma linguagem que comunique uma idéia”. Para
Pinho (2018, p. 233),

[...] as ideias são transmitidas, inclusive, por meio das cores


adotadas. Trata-se de uma força expressiva significativa e,
embora não haja, cientificamente, a comprovação fisiológica
desse processo, há reações corporais provocadas por elas. A cor
é componente de muitas imagens e seus efeitos são inegáveis.

As imagens, com seu papel persuasivo indiscutível,


colocam-se como um elemento essencial na composição das peças
publicitárias, impressas e/ou digitais. Elas são uma ferramenta de
convencimento extremamente importante e, sozinhas ou ligadas
a outras linguagens, comunicam ideias, evocam lembranças,
emoções, sensações, proporcionam experiências e, portanto, são

326 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
relevantes para a maioria dos anúncios. “As linguagens escolhidas
exerceram impacto persuasivo sobre os indivíduos, funcionando
como recursos tão encantadores que os moveriam a uma futura
ação de consumo” (PINHO, 2018, p. 232).
Outra linguagem capaz de despertar as emoções dos
leitores é a verbal, de modo específico, o uso do modo imperativo
atrelado à ambiguidade de sentidos. Sobre a força da palavra,
(KOCH, 2000, p. 156) afirma que sua aplicação “pode servir de
índice de distinção, de familiaridade, de simplicidade, ou pode
estar a serviço da argumentação, situando melhor o objeto do
discurso dentro de determinada categoria, do que o faria o uso
de um sinônimo.”
Na propaganda de violência contra a mulher, ao final do
anúncio, havia o seguinte enunciado: “Para continuar sua leitura
mostre respeito. Não toque nela”. Frente a todo o texto lido, nesta
parte da propaganda, já inteirados do propósito do anúncio, os
alunos compreenderam o enunciado como algo mais subjetivo
(não tocar na moça/mulher, não cometer violência), não apenas
mecânico simplesmente, como o ato de virar a página (PINHO,
2018). Ou seja, a ordem e a polissemia presente na palavra
“tocar” despertou a sensação de que o leitor deveria ter cuidado,
deveria respeitar a mulher, deveria protegê-la. Sobre os termos
polissêmicos, Martins (1997, p. 60) esclarece que eles servem
“para despertar a atenção e a curiosidade dos leitores- este seria
o primeiro passo ou objetivo de um anúncio - quanto para fazer
gostar da marca e, consequentemente, do produto”.
Os recursos motivadores, nos anúncios publicitários,
são aqueles mais ligados à ação, à razão, incentivando o mover

327 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
do leitor em determinada direção de modo proposital. Nessa
categoria de recursos, estão os mecanismos considerados
propositais, inseridos de modo pensado, de forma lógica. Por
exemplo: quando os alunos, ao serem questionados sobre como
reconheciam o movimento do carro e o que isso significava,
responderam (em sua maioria), atribuindo responsabilidade ao
leitor (o leitor foi responsável por empurrar o carro; o leitor clicou
na tela) ou ao criador do anúncio (o movimento servia para
mostrar o que podia acontecer; servia para mostrar a propaganda)
(PINHO, 2018, p. 223). Portanto, há uma percepção do recurso
como algo lógico, menos afetivo.
O mesmo fato ocorreu na propaganda de violência contra
mulher em que, ao clicar sobre a página com presença da imagem
da mulher, a alça de seu vestido cai. Ao serem questionados
a respeito do significado da ação, ou seja, o reconhecimento
semântico dessa linguagem empregada, os alunos detectaram
o ato como uma ação menos subjetiva, focando, apenas, na
consequência física da vestimenta (cair a alça) e não como
algo que agride ou que representa e desperta algo mais afetivo,
emocional [..]”. Ou seja, “há uma avaliação “técnica” por parte do
aluno, ele compreende que aquele recurso é proposital, portanto,
seu caráter é menos subjetivo, emocional, logo, trata-se da
presença de um recurso motivador” (PINHO, 2018, p. 224).
Ademais, um mesmo recurso pode ser identificado como
“encantador”e, quando analisado de modo mais distante e racional
pelo leitor, desempenhar um papel “motivador”, alterando o seu
impacto. Em outras palavras, o efeito da linguagem empregada
(som, cor, aroma, movimento, luz, imagem, expressões) é

328 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
inquestionável e inevitável, mas pode ser tomada como algo
proposital, posto ali por um determinado motivo e que, portanto,
pretende levar a uma determinada conclusão ou ser percebido
como um elemento puramente sedutor, que provoca emoções,
que arrebata. Afinal, para Marcondes Filho (1997, p. 86), a
propaganda “de fato usa os recursos mais inacreditáveis, buscando
falar ao inconsciente das pessoas, à dimensão dos sonhos e dos
atos emocionais impensados.”
Em suma, os recursos encantadores proporcionam
as primeiras sensações, emoções e interpretações ao serem
aplicados. Já os recursos motivadores são aqueles considerados
a partir de uma interpretação lógica por parte do leitor como
algo intencional e menos afetivo. Essas percepções de impacto
só se revelaram possíveis porque os alunos pesquisados foram
questionados a respeito de cada um dos recursos aplicados,
por meio de um amplo questionário, envolvendo os textos
publicitários.

Considerações finais

Constamos que, embora o recurso encantador seja “mais


subjetivo, atrelado às emoções, à afetividade e o recurso motivador
menos subjetivo, atrelado a questões mais físicas e concretas”
(PINHO, 2018, p. 219), a junção de ambos é determinante no
processo de convencimento do leitor, trabalhando em prol da
adesão à mensagem comunicada, seja ela a venda de um produto,
serviço ou ideia.

329 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
Não há recurso mais ou menos importante, pois o foco não
é estabelecer competição entre eles, mas sim a complementação
que ambos oportunizam. De fato, as sensações provocadas
pela multimodalidade, ou seja, pela junção de vários códigos
de linguagens em prol de um determinado sentido garante
maior interesse do leitor para com a mensagem comunicada.
“Em outras palavras, como seres humanos, somos impactados,
movidos e encantados pelo que lemos, vemos, tocamos e
ouvimos” (PINHO, 2018, p. 231). Porém a presença exclusiva
de uma linguagem única, como uma imagem, uma determinada
cor ou uma palavra tem, também, o poder de convencer o leitor
de modo arrebatador.
O impacto que os recursos argumentativos exercem
no leitor está ligado à sua percepção, e quando eles são
compreendidos com maior grau de subjetividade e provocam
reações emocionais, afetivas, de modo natural, são considerados
encantadores; quando são interpretados e analisados como
algo proposital, com objetivo determinado, são considerados
motivadores.

REFERÊNCIAS

CAMPOS, Luis Paulo de; VALLE, Luciane Ribeiro do. Propagandas


interativas em mídia impressa. Revista Brasileira Multidisciplinar, v.
8, n. 2, p. 43-52, jul. 2004. Disponível em: http://www.revistarebram.
com/index.php/revistauniara/article/view/305. Acesso em: 12 jul. 2018.

CARVALHO, Nelly. Publicidade: a linguagem da sedução. 2 ed. São


Paulo: Ática, 1996.

330 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
CITELLI, Adilson. O texto argumentativo. São Paulo: Scipione, 2003.

CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. São Paulo: Ática, 2005.

COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. 3. ed. rev. e


ampl.; 1ª reimpressão. Belo Horizonte, Autêntica, 2014.

DIONISIO, Angela Paiva; VASCONCELOS, Leila Janot de.


Multimodalidade, gênero textual e leitura. In. BUNZEN, Clécio;
MENDONÇA, Márcia. (org.). Múltiplas linguagens para o ensino
médio. São Paulo: Parábola, 2013, p. 19-42.

FARINA, Modesto. Psicodinâmica das cores em comunicação. 4. ed.


São Paulo: Edgar Blücher, 1990.

FIORIN, José Luiz. Argumentação. São Paulo: Contexto, 2020.

KOCH, Ingedore Villaça. A Inter-ação pela linguagem. São Paulo:


Contexto, 1998.

KOCH, Ingedore Villaça. Argumentação e linguagem. 6 ed. São


Paulo: Cortez, 2000.

KOCH, Ingedore Villaça.  Desvendando os segredos do texto. São


Paulo: Cortez, 2002.

LIBERALI, Fernanda Coelho. Argumentação em contexto escolar.


Campinas: Pontes, 2013.

MARCONDES FILHO, Ciro. Ideologia. 9 ed. São Paulo: Global, 1997

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros


e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.

MARTINS, Jorge S. Redação publicitária: teoria e prática. 2 ed. São


Paulo: Atlas, 1997.

331 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
PEREZ, Clotilde. Signos da marca: expressividade e sensorialidade.
São Paulo: Thomson Learning, 2004.

PINHO, Ednéia de Cássia Santos. Argumentação e multimodalidade


no ensino de leitura do gênero anúncio publicitário. 291 f. Tese
(Doutorado em Estudos da Linguagem) – Centro de Letras e Ciências
Humanas Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2018.

SAMPAIO, Rafael. Propaganda de A a Z: como usar a propaganda


para construir marcas e empresas de sucesso. 4. ed. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2013.

SANTAELLA, Lucia; NÖTH, Winfried. Estratégias semióticas da


publicidade. São Paulo: Cencage Learning, 2011.

SANT’ANNA, Armando. Propaganda: teoria, técnica e prática. 7. ed.


São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.

332 Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 77 – p. 311-332 – jul./dez. 2020
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

Os trabalhos deverão ser digitados em espaço simples, em


fonte 12, letra Times New Roman.
O trabalho deverá ter de 10 a 15 páginas.
A primeira página deverá conter o título do trabalho em
destaque (caixa alta e negrito). Dar um espaço e colocar o nome
do autor. Em nota de rodapé identificar a instituição a que
pertence e e-mail.
Fazer um resumo de, no máximo, oito linhas, em português
e em inglês (espanhol ou francês), mais palavras-chave.
As grandezas, unidades e símbolos deverão obedecer às
normas da ABNT.
As referências deverão estar imediatamente após o texto,
obedecendo às normas vigentes da ABNT, com sobrenome e
nome completos dos autores.

Os trabalhos deverão ser enviados para:


E-MAIL: isacris@uel.br

Você também pode gostar