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CAMINHOS DA HISTÓRIA

Revista do Departamento de História


Centro de Ciências Humanas – UNIMONTES
v. 17, n. 1 e 2/2012

ISSN 1517-3771 (impressa)


ISSN 2317-0875 (online)

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

CAMINHOS DA HISTÓRIA
Revista do Departamento de História
Centro de Ciências Humanas – UNIMONTES

ISSN 1517-3771 (impressa)


ISSN 2317-0875 (online)
CAMINHOS
DA HISTÓRIA Montes Claros v. 17, n. 1, n. 2 semestral 2012

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

COPIRRAITE©: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS – UNIMONTES


Reitor
João dos Reis Canela
Vice-Reitora
Maria Ivete Soares de Almeida

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CCH


Diretor
Antônio Wagner Rocha
Chefe do Departamento de História
Donizette Lima do Nascimento

CAMINHOS DA HISTÓRIA
Editores
Marcos Fábio Martins de Oliveira e Regina Célia Lima Caleiro (Unimontes)
Carlos Antonio Aguirre Rojas (Unam-México)
Márcia Pereira da Silva (Unesp-Franca)
Comissão Editorial
Alysson Luiz Freitas de Jesus (Unimontes), Carlos Antonio Aguirre Rojas (Unam-México), César
Henrique de Queiroz Porto (Unimontes), Cláudia de Jesus Maia (Unimontes), Filomena Luciene
Cordeiro (Unimontes), Laurindo Mékie Pereira (Unimontes), Márcia Pereira da Silva (Unesp-Franca,
SP), Marcos Fábio Martins de Oliveira (Unimontes), Marta Verônica Vasconcelos Leite (Unimontes),
Regina Célia Lima Caleiro (Unimontes), e, Renato da Silva Dias (Unimontes).
Conselho Consultivo
Alzira Lobo de Arruda Campos (aposentada UNESP. Universidade São Marcos), Ana Maria Sayago de
Warner (Universidad Nacional de Córdoba/Argentina), Ângelo Carrara (UFJF), Carla M. J. Anastasia
(UFMG), Celso Silva Fonseca (UnB), Eliana Regina de Freitas Dutra (UFMG), Estevão Chaves
Rezende Martins (UnB), Fábio Faria Mendes (UFV), Helenice Rodrigues da Silva (UFPR), Heloísa M.
Starling (UFMG), Ida Lewkowicz (UNESP), Laima Mesgravis (aposentada USP/UNESP. Universidade
São Marcos), Marcelo Badaró Mattos (UFF), Marcos Antônio Lopes (UEL), Tarcísio Rodrigues
Botelho (PUC-MG), e, Wilson do Nascimento Barbosa (USP).

Revisão Ortográfica
De responsabilidade dos autores
Publicação semestral
Endereço
UNIMONTES, Campus Universitário “Professor Darcy Ribeiro”
Caixa Postal 126 - Cep: 39401-089 - Montes Claros – MG
Site:<http://sites.google.com/site/revistacaminhosdahistoria>
e-mail: <reitoria@unimontes.br>

Catalogação: Divisão de Biblioteca Central Prof. Antônio Jorge - Unimontes

CAMINHOS DA HISTÓRIA (Universidade Estadual de Montes Claros –


UNIMONTES) Montes Claros, MG – Brasil, 1996 –

1996 - 2012
v. 17, n. 1, n. 2
Semestral
ISSN 1517-3771 (impressa)
ISSN 2317-0875 (online)

1. História. 2. História do Brasil. CDD 901 – História


981 – História do Brasil

Capa: Unimontes - Prédio da Reitoria. Campus Universitário Professor Darcy Ribeiro


Arte/foto da capa: Marta Verônica Vasconcelos Leite
Editoração Gráfica: Maria Rodrigues Mendes

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO...................................................................................... 7

DOSSIÊS
“HISTÓRIA DA UNIMONTES”
“EDUCAÇÃO”
Organizadores: Márcia Pereira da Silva, Regina Célia Lima Caleiro,
Marcos Fábio Martins de Oliveira................................................................... 9

UNIVERSIDADES E DESENVOLVIMENTO REGIONAL: ALGUMAS CON-


TRIBUIÇÕES DA UNIMONTES NO NORTE DE MINAS GERAIS, BRASIL
José Maria Alves Cardoso, Luciene Rodrigues, Maria de Fátima Rocha Maia... 11

NORMAL SUPERIOR MODULAR EMERGENCIAL: UMA ANÁLISE DA EX-


PERIÊNCIA DA UNIMONTES
Andréa Maria Oliveira Versiani Santiago, Regina Célia Lima Caleiro................... 35

IMPLANTAÇÃO DO SISTEMA DE COTAS NA UNIMONTES E ANÁLISE DA


DEPENDÊNCIA ENTRE ALUNOS COTISTAS E NÃO COTISTAS DOS
CURSOS DO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS (CCH)
Maria Elizete Gonçalves, Luciene Rodrigues, Maria Helena de Souza Ide......... 49

A IMPRENSA PERIÓDICA E A EDUCAÇÃO PARA A VIDA MODERNA EM


MONTES CLAROS/MG: 1889-1926
Luciano Pereira da Silva, Brenya Paula Miranda Santos................................. 73

‘ALUMIAR A MENTE’: A INSTRUÇÃO ESCOLAR DOS DISCÍPULOS ANA E


ZEZINHO NAS TERRAS GOIANAS EM FINS DO SÉCULO XIX
Diane Valdez................................................................................................ 95

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

EDUCAR E CIVILIZAR NO SERTÃO: RASTROS DO IMAGINÁRIO SOCI-


AL NA EXPERIÊNCIA DE ESCOLARIZAÇÃO DA PROVÍNCIA DE GOIÁS –
SÉCULO XIX
Thiago F. Sant’Anna................................................................................... 115

EDUCAÇÃO AMBIENTAL SOB O ENFOQUE DA CONSTRUÇÃO DO ESPA-


ÇO GEOGRÁFICO: RECUPERANDO O PASSADO E COMPREENDENDO O
PRESENTE
Analúcia Bueno dos Reis Giometti................................................................... 129

ARTIGOS LIVRES................................................................................... 141

A IMPLANTAÇÃO DO GÁS CANALIZADO NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO


Vanessa Meloni Massara............................................................................. 143

“UMA COISA É VER E OUTRA É O CONTAR”: OS IMPACTOS CAUSADOS


PELAS NOVAS DESCOBERTAS MINERAIS NO NORTE DE MINAS GERAIS
NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII
Raphael Freitas Santos.................................................................................. 157

HISTÓRIA E MEMÓRIA: AS ORIGENS DA DIOCESE DE MONTES CLAROS


NO NORTE DE MINAS GERAIS (1903-1943)
Franscino Oliveira Silva................................................................................ 179

MARC BLOCH E LUCIEN FEBVRE: REVISITANDO A PRIMEIRA GERA-


ÇÃO DOS ANNALES
José D’Assunção Barros................................................................................ 197

CAIAPÓS, ARAXÁS, BOROROS, GERALISTAS... CONFLITOS REVELA-


DOS, IDENTIDADES E MEMÓRIAS CONSTRUÍDAS NO SERTÃO DA FA-
RINHA PODRE NOS SÉCULOS XVIII E XIX
Glaura Teixeira Nogueira Lima, Robert Mori............................................... 217

RESENHA................................................................................................. 239

“FOI ASSIM QUE CONHECI MEU AVÔ...” : AUTOBIOGRAFIA DA CRIANÇA


QUE NASCERÁ PARA SER CARPINTEIRO
Ivaneide Barbosa Ulisses............................................................................. 241

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ORIGINAIS..................................... 247

6
APRESENTAÇÃO

Apresentamos a Revista Caminhos da História, periódico editado desde 1998,


sob a responsabilidade de pesquisadores do Curso de História e do Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Montes Claros –
Unimontes e convidados.

A Unimontes comemora, no ano de 2012, cinquenta anos de existência. Atual-


mente, desenvolve significativas atividades, entre pesquisa, ensino, extensão e
gestão, para o desenvolvimento do norte de Minas Gerais e para todo o Estado
mineiro.

Na oportunidade, organizamos os Dossiês intitulados: “História da Unimontes” e


“Educação” com trabalhos que refletem sobre a Instituição e o papel da educação
nas relações sociais e no desenvolvimento regional. Embora a maioria dos textos
trate da Unimontes e/ou da cidade que a abriga, também integram este Dossiê
três artigos que abordam outros espaços geográficos, o que certamente contribu-
íra para o alargamento de nossas reflexões sobre o papel da educação na História
do Brasil.

Os artigos livres, em consonância com a política de publicação do periódico, tra-


zem contribuições de pesquisadores de diversas regiões do país. Aquilo que os
caracteriza enquanto conjunto é, certamente, a multidisciplinaridade, tanto em re-
lação à temática quanto aos métodos de investigação. Por fim, a resenha do livro
“Uma Arqueologia Social. Autobiografia de um Moleque de Fábrica”, de autoria
de José de Souza Martins, fecha esta edição que, por sua extensão, reúne os
números 1 e 2 do volume 17 da Revista.

Agradecemos, em nome da Comissão Editorial, os colaboradores, autores,


pareceristas e Corpo Técnico, que contribuíram conosco desde 1998. Aproveita-

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

mos para informar aos leitores que a partir da próxima edição, volume 18, editare-
mos a Revista somente na sua forma eletrônica.

Desejamos a todos boa leitura,

Márcia Pereira da Silva


Regina Célia Lima Caleiro

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DOSSIÊS
“HISTÓRIA DA UNIMONTES”
“EDUCAÇÃO”

Organizadores:
Márcia Pereira da Silva,
Regina Célia Lima Caleiro,
Marcos Fábio Martins de Oliveira

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UNIVERSIDADES E DESENVOLVIMENTO REGIONAL:
ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA UNIMONTES NO
NORTE DE MINAS GERAIS, BRASIL1

José Maria Alves Cardoso*


Luciene Rodrigues**
Maria de Fátima Rocha Maia***

Resumo: As Universidades, para além de suas funções de ensino, de pesquisa e


de extensão, constituem unidades dinamizadoras da economia local, ao gerar um
conjunto de externalidades positivas de natureza cultural, social, econômica e
tecnológica em seu meio envolvente. Este artigo apresenta alguns aspectos rela-
tivos à contribuição da Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes em
seu meio envolvente, especificamente no que refere à renda e emprego regional,
por meio do multiplicador Keynesiano. Com base nos dados de 2006, estima-se
que cada R$1,00 aplicado na Unimontes gera, no total dos encadeamentos, um
montante estimado em R$5,72. Mostra também que a Universidade contribui na
qualificação de capital humano e tem importante papel na economia local. A con-

1
Este artigo foi elaborado com base em pesquisa denominada “Terciário superior e desenvolvimento
regional: uma análise do caso da Universidade Estadual dDe Montes Claros – Unimontes”, realizada
pelo Departamento de Economia da Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes com o
apoio da Fundação de Amparo a Pesquisa de Minas Gerais - Fapemig. A equipe responsável pelo estudo
foi composta pelo Professor Coordenador: José Maria Alves Cardoso; pelas Professoras Pesquisadoras:
Luciene Rodrigues; Maria de Fátima Rocha Maia; Tânia Marta Maia Fialho e Andréia Maria Narciso R.
Paula. Contribuíram como estagiários os acadêmicos Jair Alves Pereira Filho, Maria Alice Ferreira,
Roni Carlos Chagas e Ana Márcia R. da Silva.
* Mestre em Economia. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Economia da Unimontes. Professor do
Departamento de Economia – Unimontes / Faculdades Santo Agostinho – FACISA – Brasil.
josehcb21@yahoo.com.br
** Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo – USP. Pesquisadora do CesNova /
UNL - GT: Políticas Públicas e Responsabilidade Social. Professora do Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Social/Depto. de Economia – Unimontes – Brasil. rluciene@unb.br
*** Doutoranda em Sociologia – FCSH - Universidade Nova de Lisboa – Portugal. Pesquisadora do
CesNova /UNL - GT: Políticas Públicas e Responsabilidade Social. Professora do Departamento de
Economia – Unimontes – Brasil.rochamaiaster@gmail.com

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tribuição para a qualificação do capital humano para o desenvolvimento regional


foi obtida por meio do levantamento e análise de diversas estatísticas disponíveis
em diferentes documentos da Instituição e também pela coleta de dados primári-
os, interna e externamente à Universidade.

Palavras-chaves: Desenvolvimento regional, ensino superior, terciário superior,


Unimontes.

Abstract: In addition to their teaching, research and extension functions, universities


are dynamic units of the local economy by generating a set of positive externalities
of cultural, social, economic and technological nature in the place they are
located. This article presents some aspects concerning the contribution of
UNIMONTES – Universidade Estadual de Montes Claros (State University of
Montes Claros) in its location, specifically with respect to regional income and
employment, using the Keynesian multiplier. Based on 2006 data, it is estimated that
for every R$ 1.00 applied on Unimontes generates a total estimated amount of R$
5.72. It also shows that the University contributes to the qualification of human
capital and has an important role in the local economy. The contribution for the
qualification of human capital for the regional development was obtained through
the collection and analysis of several statistic data available in different documents
of the institution and also by primary data collection, both internal and external to the
University.

Keywords: Regional development, higher education, upper tertiary, Unimontes.

1 Introdução

O processo de desenvolvimento social e econômico assenta-se fortemente na


construção do conhecimento científico, fomento de novas idéias, inovação
tecnológica, soluções inovadoras e formação de quadros profissionais de qualida-
de colocados a serviço da comunidade. Esses fatores, por isso mesmo, devem ser
tidos como prioritários pelas Universidades que pretendam contribuir para a melhoria
e a transformação da sociedade. Portanto, é de grande interesse avaliar a contri-
buição que as Instituições de Ensino Superior, em particular as Universidades,
trazem ao desenvolvimento das regiões em que se localizam.

Assim, este artigo tem como objetivo analisar algumas contribuições da Unimontes
ao desenvolvimento do seu território – a região Norte de Minas. O estudo elucida
algumas das contribuições econômicas das atividades da Universidade em sua re-
gião de influência. Ademais, analisa alguns aspectos relacionados a sua contribuição
sociocultural na qualificação do capital humano para o desenvolvimento regional. As
considerações efetuadas se inspiraram em argumentos inerentes ao referencial te-
órico Keynesiano e em idéias relativas à contribuição da qualificação do capital

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Universidades e desenvolvimento regional
CARDOSO, José Maria Alves; RODRIGUES, Luciene; MAIA, Maria de Fátima Rocha

humano para o crescimento regional; Estatísticas e informações relativas a agentes


regionais também foram consideradas com o propósito de subsidiar a interpretação
dos reflexos da Instituição em seu território. O texto encontra-se organizado em
cinco itens, sendo o primeiro esta introdução; o segundo, as considerações teórica e
metodológicas; o terceiro, um breve histórico da Unimontes; o quarto, os aspectos
locais e regionais de naturezas diversas da Unimontes, considerando os fatores eco-
nômicos das atividades da Unimontes na geração de produto, renda e emprego em
sua região de influência e a sua contribuição na qualificação do capital humano para
o desenvolvimento regional. Por último, são feitas as considerações finais.

2 Considerações teóricas e metodológicas

2.1 Referencial Analítico

A análise dos efeitos irradiadores ou transbordamentos de uma Instituição de en-


sino superior pode ser analisada sob várias óticas. Neste trabalho, optou-se por
efetuá-la a partir da observação das operações da Unimontes nas economias
locais e regionais e em seus territórios envolventes de forma a compreender al-
guns de seus possíveis reflexos sociais e econômicos. Deste modo o estudo leva
em conta os pressupostos de teorias que procuram explicar particularidades ine-
rentes às variações nos níveis de atividade e de crescimento das economias como
também no ambiente sociocultural.

No sistema capitalista, grande parte das análises envolvendo especificidades rela-


tivas ao nível de atividade e à desigualdade de renda é tratada como sendo de
inspiração neoclássica e/ou de inspiração keynesiana. Na primeira, os fatores de
oferta são identificados como os principais determinantes dos níveis de renda; na
segunda, as forças de demanda é que são aceitas como sendo as responsáveis
pela definição do nível de renda da economia.

Pela perspectiva dos argumentos fundamentados na teoria keynesiana a determi-


nação dos níveis de atividade vigente nos sistemas econômicos estão relacionadas
aos fatores relativos à demanda (KEYNES, 1982). Nesse entendimento, os in-
vestimentos e os gastos governamentais podem ser vistos como fatores de “inje-
ção” exógena de despesas na economia. E elas têm a capacidade de promover
estímulos, diretos e indiretos, na economia, cujas magnitudes decorrem do efeito
multiplicador e acelerador nela vigente (DUDLEY, 1964).

As idéias inerentes aos argumentos de Keynes motivaram o surgimento de alguns


modelos teóricos, muitas vezes denominados de inspiração Keynesiana. As abor-
dagens adotadas por tais modelos abordam diversos aspectos como, por exemplo,
aqueles relacionados ao emprego, à poupança, ao investimento, à produção, à
renda, ao gasto dentre outros (SOUZA, 1997, p. 155- 172). Como exemplo pode-
se citar os modelos de Harrod e Domar.
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Orientados numa perspectiva neoclássica, alguns teóricos também procuraram com-


preender e explicar aspectos relacionados ao comportamento das economias. Mui-
tos dos seus estudos discutem as disparidades de renda e os determinantes do cres-
cimento econômico; para tanto, incorporaram em suas análises diversas variáveis.

Especialmente na segunda metade da década de 1950, pensadores como Robert


Solow efetuaram relevantes esclarecimentos acerca do crescimento econômico.
A formulação teórica de Solow aborda aspectos relativos à acumulação do capital
físico e ao progresso tecnológico. Ao longo das décadas seguintes, outros teóri-
cos, a exemplo de Paul Romer, Robert Lucas e Robert Barro, desenvolveram
outros estudos dentro dessa linha de abordagem. Eles incorporam em suas análi-
ses variáveis relacionadas à economia das idéias, do capital humano e da tecnologia
(JONES, 2000, p. 1-44).

Essas novas abordagens contribuíram para ampliar a capacidade de investigar e


de explicar alguns fenômenos relacionados ao crescimento econômico como as
desigualdades nas taxas de crescimento verificadas entre conjuntos de países e/
ou conjunto de regiões dentro de um mesmo país.

Essas concepções teóricas têm sua relevância e contribuíram nos debates volta-
dos para a compreensão dos processos de crescimento e desenvolvimento de
sistemas econômicos. Ao longo do desenvolvimento deste estudo verificou-se que
diversas estatísticas desagregadas para os níveis setoriais, regionais e locais não
estavam disponíveis. Apesar de tais limitações as análises efetuadas permitiram
que se chegasse a relevantes inferências.

Vale notar que alguns teóricos não aceitam como adequado e/ou viável adaptar e
estimar, aos níveis de região ou município, modelos Keynesianos de determinação
da renda. Entretanto, no tema em foco, tais modelos podem ser vistos como um
referencial teórico que fornece indicações que auxiliam na compreensão empírica
de alguns dos possíveis efeitos das atividades da Unimontes no contexto da econo-
mia regional. Por isso, resguardadas as limitações relativas à possibilidade de aplica-
ção dos modelos, é aceitável admitir que os argumentos de tais concepções teóricas
possam orientar algumas reflexões relevantes acerca da problemática estudada.

A título de ilustração, foram apontados alguns aspectos inerentes às ações da


Universidade que podem compor uma análise sob tal inspiração teórica. Entre
esses, a folha de pagamento de pessoal, investimentos e custeio que estão implíci-
tos nas despesas totais da Unimontes. Tais variáveis podem ser consideradas
como um componente exógeno da demanda regional, na medida em que são
custeadas, em grande medida, com verbas do orçamento público e, na maioria das
vezes, sem equivalência (nem vinculação) com a renda da região.

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Universidades e desenvolvimento regional
CARDOSO, José Maria Alves; RODRIGUES, Luciene; MAIA, Maria de Fátima Rocha

As análises do “lado da oferta” também auxiliam na compreensão do papel e da


importância da Universidade em sua área de abrangência. Nessa perspectiva foi
observada a oferta de serviços ligados à qualificação de recursos humanos, for-
mação de “capital humano”, campo em que as instituições de ensino superior, têm
grande importância. No caso em tela, a oferta dos serviços relacionados a esse
tipo de formação é proporcionada pela Unimontes, Instituição pública de maior
destaque na oferta desse tipo de serviço na região.

De fato, resguardadas algumas especificidades inerentes à formulação teórica


dos modelos como o de Romer, por exemplo, aceita-se que instituições como
Unimontes têm, implicitamente, significativo destaque no bojo das modernas teori-
as do crescimento econômico. A Universidade é um reduto de atuação e forma-
ção de pesquisadores, cujas atividades são, potencialmente, geradoras de conhe-
cimento (idéias), e, essas são vistas como necessárias para que haja crescimento
de longo prazo (JONES, 2000, p. 80-88)

No modelo de Romer, conforme aponta Jones (2000, p. 101-103), as pessoas são


os insumos chave para o processo criativo. Nessa perspectiva, “uma população
maior (de pesquisadores) tem a capacidade de gerar uma quantidade maior de
idéias. Na medida em que as idéias são “não rivais”, todos na economia acabam
se beneficiando delas”.

Os bens não-rivais, que são essencialmente não-exclusíveis são, com freqüência,


chamados de bens públicos. Esses tipos de Bens permitem substanciais transbor-
damentos de seus benefícios, isto é, de externalidades. Bens com transbordamen-
tos positivos tendem a ser produzidos abaixo das necessidades pelos mercados;
oferecendo, por isso, uma oportunidade para a intervenção governamental (JONES,
2000, p. 65-78).

2.2 Procedimentos metodológicos

A pesquisa, contemplou análises quantitativas e qualitativas e teve por finalidade


investigar a contribuição que a Universidade Estadual de Montes Claros –
Unimontes traz à região em que se insere.

Para tanto foi realizada investigação bibliográfica e documental. Estatísticas le-


vantadas de forma primária e secundária, contribuíram no processo de
contextualização e análises relativas aos possíveis efeitos das políticas e das ativi-
dades da Universidade. Elas se referiam à expansão e às características das
atividades de ensino, de pesquisa e de extensão; à evolução orçamentária; às
estratégias de ação; ao público atendido; aos egressos; à instituição de apoio; ao
pessoal vinculado direta e indiretamente à instituição, entre outras.

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
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Um conjunto de informações foi levantado junto a diversos agentes internos e


externos à Instituição, por meio de entrevistas semi-estruturadas. Alguns dos agen-
tes pesquisados foram selecionados por estarem diretamente envolvidos com as
questões político-administrativas da Instituição na sua sede, em Montes claros e
em suas unidades em Almenara, Brasília de Minas, Joaíma, Salinas, Janaúba,
Januária, Paracatu, Pirapora, Unaí e São Francisco. Adicionalmente foram entre-
vistados agentes externos à instituição, representantes de administrações munici-
pais, gerentes de bancos, funcionários de agências de apoio ao comércio e à in-
dústria, dentre outros. Esses atores por estarem inseridos no espaço de influência
da Universidade, exercendo diferentes funções, têm condições de perceber tanto
as demandas dos meios em que atuam quanto os reflexos dos produtos e dos
serviços ali ofertados pela Instituição. Desta forma, as percepções desses agen-
tes quanto a Instituição foram importantes subsídios para melhor compreensão da
Unimontes e do papel desempenhado por ela em sua área de abrangência.

3 Breves Considerações Sobre o Norte de Minas Gerais e o Surgimento


da Unimontes

Observando os estudos de Cardoso (2000, pp. 173-208), fica evidente que, ao


longo de sua história, a região norte mineira e seu entorno vivenciaram diversas
transformações em sua realidade econômica e social. Algumas atividades se mos-
traram hegemônicas ao longo do tempo. Elas estiveram ordinariamente vincula-
das às demandas extra-regionais; mas, usufruíram significativa sustentabilidade
interna. São exemplos dessas atividades: a pecuária extensiva, o algodão, a mine-
ração e a borracha. Nesse ambiente, as ofertas de produtos e de serviços se
ampliavam e se diversificavam. A demanda pelo serviço de ensino, por exemplo,
tornava-se cada vez maior. Paula (2007, p.116), relata que “[...] desde os primei-
ros tempos os mestres particulares cuidavam de alfabetizar os filhos do arraial de
Formigas2 . [Em] 18 de novembro de 1830, abriu a primeira escola pública”. Esse
e outros fatos registrados por historiadores ajudam a caracterizar a evolução dos
serviços de educação na região. Eles mostram, de forma implícita, a importân-
cia e a necessidade da participação do setor público na oferta desse tipo de
serviço. Deixam evidente também, o esforço das lideranças locais, que percebi-
am a importância de oportunizar serviços de educação à população regional.

Nesse cenário a localidade, conhecida hoje como Montes Claros, soube apro-
veitar sua localização estratégica no espaço regional. Ampliou continuamente a
sua importância relativa, destacando-se como centro coletador e distribuidor de
produtos e serviços na região. Fatos como a expansão ferroviária e a presença

2
Localidade hoje conhecida como Município de Montes Claros.

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Universidades e desenvolvimento regional
CARDOSO, José Maria Alves; RODRIGUES, Luciene; MAIA, Maria de Fátima Rocha

da SUDENE3 contribuíram para ampliar a complexidade das relações nessa e


em outras localidades da região.

Ao analisar as transformações espaciais norte-mineiras, Cardoso (2000) desta-


ca que as deficiências na oferta de serviços de ensino eram graves. O autor
deixa claro que havia uma grande defasagem na oferta de infra-estrutura de
ensino na Região4 .

O ensino de nível superior, por exemplo, só começa a ser oferecido na região no


decorrer da década de 1960. O serviço era incipiente e seu surgimento pode ser
atribuído à capacidade de percepção e organização da comunidade norte minei-
ra. Caleiro e Pereira (2002, p.17-30), ao relatarem o prelúdio do ensino superior,
destacam que foram muitos os debates envolvendo expoentes da coletividade
que viam essa categoria de ensino como imprescindível ao processo de desen-
volvimento regional.

No mesmo documento, os citados autores relatam que, por meio de Projeto de


Lei, o Deputado Cícero Dumont propôs a criação da Universidade Norte de
Minas. O Governador Magalhães Pinto, em 24 de maio de 1962, sancionou a
Lei 2.615, criando tal instituição (CALEIRO; PEREIRA, 2002, p.19). A Lei
previa, ainda, a criação de uma entidade, denominada Fundação Universidade
Norte Mineira – FUNM, que tinha o objetivo de manter a Universidade criada.
Essa, posteriormente, passou por transformações, recebendo a denominação de
Fundação Norte Mineira de Ensino Superior. Nascia, então, a primeira institui-
ção de ensino superior da Região. Vencer as dificuldades físico-geográficas,
reduzir as disparidades intra e inter-regionais, eram necessidades percebidas
por seus idealizadores.

A referida Fundação avançou na busca de seus propósitos. Em 1965, encampou a


Faculdade de Direito - FADIR e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que
ficou conhecida como FAFIL5 . A Faculdade de Medicina – FAMED, a Faculda-

3
Para CARDOSO (2000, p.208-225), a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE,
que foi criada em dezembro de 1959, motivou na região a expectativa de que muitas ações voltadas para
o fomento regional fossem efetivadas. Sua atuação tanto reforçou quanto transformou algumas das
realidades econômicas e sociais norte mineiras. A autarquia procurava viabilizar a expansão capitalista
numa região que para o Estado precisava ser incorporada à dinâmica capitalista do centro e sul; áreas
mais dinâmicas do país.
A autarquia atuou na região e teve um escritório implantado no Município de Montes Claros na década
de 1960.
4
Acredita-se que, se naquela análise outros municípios do Norte de Minas e do Vale do Jequitinhonha
tivessem sido considerados, a conclusão não teria apresentado viés significativo.
5
Destacam citados pesquisadores que a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, já estava em
funcionamento desde 1963; sendo a instituição mantida com recursos da FELP – Fundação Educacional
Luiz de Paula.

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

de de Administração e Finanças – FADEC e a Faculdade de Educação Artística


– FACEART, foram criadas pela Fundação, respectivamente, nos anos de 1969,
1972 e 19866 .

No decorrer da década de 1980, ações concretas foram realizadas com o intuito


de consolidar a criação da Universidade. Em 1989, a FUNM foi transformada em
autarquia estadual. Em 1990, por meio do Decreto de Lei número 30.971, foi
instituída a Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes. Mas, só em 21
de julho de 1994, a Instituição foi reconhecida como Universidade7 . Ela nascia
com a missão de: [...] contribuir para a melhoria e a transformação da sociedade,
atender às aspirações e os interesses de sua comunidade e promover o Ensino, a
Pesquisa e a Extensão com eficácia e qualidade8 .

A Unimontes intensificou suas ações. Expandiu o número de cursos, qualificou e


ampliou os corpos administrativo e docente; seus serviços extrapolaram as dimen-
sões territoriais do município sede.

MAPA 1: Minas Gerais – Mesorregiões do IBGE


Fonte: IBGE – Divisão mesorregional de Minas Gerais

6
Relatório de Gestão da Universidade Estadual de Montes Claros. Dez de 2004 a Dez de 2005
7
Lideranças Norte mineiras e por meio dos seus representantes legislativos participaram ativamente
nesse processo. Para um relato mais pormenorizado ver Caleiro e Pereira (2002, pp. 39-41).
8
UNIMONTES, Relatório de Gestão - Dez de 2005 a Dez de 2006, p.01. É oportuno destacar que o
documento UNIMONTES, Plano de Desenvolvimento Institucional. 2005 – 2009 p.3; citando o
Regimento Geral da instituição diz que a sua missão é: “Contribuir para a melhoria e transformação da
sociedade, atender às aspirações e os interesses de sua comunidade Tornando-se fator de integração
regional”.

18
Universidades e desenvolvimento regional
CARDOSO, José Maria Alves; RODRIGUES, Luciene; MAIA, Maria de Fátima Rocha

O mapa 1 mostra a divisão mesorregional do estado de Minas Gerais em 12


mesorregiões, a Unimontes atua diretamente em 4 das 12 mesorregiões do Esta-
do, a saber: Norte de Minas, Noroeste de Minas, Jequitinhonha e Central Mineira.

MAPA 2: Atuação da Unimontes nos municípios do Norte de Minas

19
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Logo, em nível estadual a Instituição atuava em grande número de municípios de


diversas regiões; abrangendo 44,3% da área estadual, mas sua área de atuação
prioritária era o Norte de Minas e os Vales do Jequitinhonha e do Mucuri.

Especificamente no Norte de Minas a Unimontes opera diretamente nas


microrregiões de Montes Claros, Pirapora, Janaúba, Januária, São Francisco, Brasília
de Minas, Salinas e Espinosa9 , com prováveis efeitos irradiadores nos municípios
que compõem as respectivas microrregiões. Por isso pode-se inferir que, a área
de atuação da Unimontes é bem maior do que aquela sinalizada no mapa 2, ao se
considerar o número de municípios não atendidos diretamente pela instituição,
mas com influência de suas atividades na comunidade.

Para além do Norte de Minas, a Unimontes atende também cidades do Noroeste


de Minas como Paracatu e Unaí e do Vale do Jequitinhonha - Almenara e Joaíma.
Além disso, a instituição passou a atuar ordinária e/ou eventualmente em outras
regiões dentro e fora do Estado e do País.

Seu público potencial compreendia uma população superior a 2,89 milhões de


habitantes10 . No ano de 2001, a Unimontes respondia por 88% do total dos alunos
matriculados na IES11 públicas da Região. No ano de 2003, a única IES públicas
sediadas na Região eram o CEFET, em Januária, a FAFEID, em Diamantina, e a
Unimontes, em Montes Claros. Apenas 3, de um total de 22 IES públicas existen-
tes no Estado de Minas Gerais 12 . No ano de 2005, oferecia mais de 2.000 vagas
distribuídas em mais de 50 cursos regulares de graduação. Além de vagas em
cursos Modulares, Sequenciais, bem como em Pós-Graduações Lato Sensu e
Stricto Sensu. Em 2007 oferecia 10.572 vagas distribuídas em cursos de gradua-
ção, além de Modulares, Sequenciais, Normal Superior, bem como em Pós-Gra-
duações Lato sensu e Stricto sensu. Na ocasião possuía 11 campi além da sede
Montes Claros. A Unimontes se apresenta como importante ofertante de serviço
de educação, atuando com destaque também nas áreas de pesquisa e extensão.

Ao longo das últimas décadas, muitas transformações contextuais ocorreram,


nacionalmente. Nesse ambiente, houve um aumento na oferta de Ensino de Nível
Superior. As Políticas Públicas que viabilizaram a sua expansão infra-estrutural e
motivaram alterações nas regulamentações do setor viabilizando novas modalida-

9
Já se encontravam em implantação em 2007 as unidades de Bocaiúva e Taiobeiras no Norte de Minas
e a unidade de Pompeu na mesorregião Central Mineira.
10
UNIMONTES, Relatório de Gestão - dez de 2004 a dez de 2005, p.05.
11
Instituição de Ensino Superior - IES
12
UNIMONTES (2005, p. 7-8). Aqui, foram considerados as IES do Norte de Minas, do Vale do
Jequitinhonha e do Vale do Mucuri.

20
Universidades e desenvolvimento regional
CARDOSO, José Maria Alves; RODRIGUES, Luciene; MAIA, Maria de Fátima Rocha

des de ensino. Seus reflexos extrapolaram o campo físico e incidiram nas práticas
didático-pedagógicas.

Essas políticas estimularam a implantação de empreendimentos no setor educa-


cional. Cardoso (2003, p. 48-50), por exemplo, mostra que, a partir da década de
1990, o setor terciário havia ganhado força. Situação destacada por diversos
autores como favorável ao processo de desenvolvimento regional. O Prof.
Rinaldo Barros,13 ao debater o tema Universidade e a Promoção do Desenvol-
vimento Sustentável, mostra que para Mayor (1998, p. 46):14

A educação é a chave do desenvolvimento sustentável – uma educação


fornecida a todos os membros da sociedade, segundo modalidades novas e
com a ajuda de tecnologias novas, de tal maneira que cada um se beneficie de
chances reais de se transformar para melhor ao longo da vida.

Investigando alguns aspectos da atuação da Unimontes, é possível afirmar que a


instituição tem, em grande medida, contribuído positivamente no processo de trans-
formações regionais. Os argumentos dos parágrafos seguintes atestam essa per-
cepção.

4 Alguns Reflexos locais e regionais decorrentes das ações da Unimontes

Em termos gerais, a Unimontes, para além de suas funções de ensino, de pesquisa


e de extensão, constitui unidade dinamizadora da economia local, ao gerar um
conjunto de impactos locais e regionais de naturezas diversas. Ela se apresenta
como entidade irradiadora do processo de desenvolvimento e gera externalidades
em seu meio envolvente.

As lideranças locais se manifestaram em relação a importância da Unimontes no


que diz respeito aos aspectos sociais dela decorrente. Para 39% delas a contribui-
ção social das ações da Instituição foi classificada como muito boa, para 17%
como ótima e para 36% como boa; na ocasião apenas 3% dos investigados não se
manifestaram. Quanto as transformações motivadas pela Universidade em seus
municípios, 72% dos citados agentes apontaram que elas ocorreram de forma
expressiva e muito expressiva; para 25% a atuação foi pouco expressiva; apenas
3% dos investigados alegaram não ter essa informação. Para 88% das lideranças

13
Rinaldo Barros foi Debatedor do tema: Universidade e a Promoção do Desenvolvimento Sustentável,
no II Seminário Internacional Sobre Ciência e Tecnologia na América Latina – 09 a 10 de novembro
de 2005 - UNICAMP - São Paulo. Na ocasião era professor adjunto da UERN e diretor da FAPERN.
14
MAYOR, F. Preparar um futuro viável: ensino superior e desenvolvimento sustentável. In: Conferência
mundial sobre o ensino superior. Tendências de educação superior para o século XXI. Anais da
Conferência Mundial do Ensino Superior. Paris: 1998.

21
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

investigadas, o setor econômico mais sensível às atividades da Universidade era o


terciário; apenas 6% dos investigados alegaram que tais ações não eram visíveis,
3% citaram que não havia setores sensíveis e 3% não souberam informar15 .

Segundo os diversos atores entrevistados, as transformações ocorridas direta e/


ou indiretamente das ações da Unimontes, se refletiam nas relações sociais quo-
tidianas das localidades e de seus entornos. Os agentes locais ampliam e enrique-
cem suas relações sociais interagindo com pessoas de outros meios, tanto docen-
tes quanto discentes. Nesse contexto surgem negócios formais e/ou informais
ligados, especialmente ao setor terciário, a exemplo da oferta de alojamentos,
fornecimento de alimentação e transportes. A difusão de novos saberes se pro-
cessa por meios diversos, como o envolvimento dos estudantes em atividades de
ensino, pesquisa e extensão; inserção de diplomados no mercado de trabalho;
análises das atividades dos pesquisadores e a publicação dos seus resultados;
ações que fomentam as inovações e as melhorias no domínio das tecnologias ou
da gestão das organizações; bem como atividades relacionadas à cultura e ao
lazer. De modo geral, a Unimontes cumpre papel importante no desenvolvimento
socioeconómico e cultural na sua região de influência.

Ela contribui na “quebra da pobreza geracional” e na superação da baixa qualifi-


cação da mão-de-obra regional. Esse fato pode ser percebido, quando se analisa
dados referentes aos candidatos a cursos oferecidos por ela e a qualificação dos
seus pais. Os pais dos candidatos tiveram limitado acesso a serviços de ensino.
Foi constatado que 7% dos pais e 7% das mães não possuíam nenhuma instrução;
que 39% dos pais e que 36% das mães tinham primeiro grau incompleto; apenas
2% dos pais e das mães tinham curso superior incompleto e que 5% dos pais e 7%
das mães tinham curso superior completo.

Adicionalmente a esse fato, verificou-se que: 68% dos candidatos procediam de


famílias com renda de até 04 salários mínimos; 63% dos candidatos declararam
não exercer atividades remuneradas e aqueles que as exerciam, desfrutavam de
baixa remuneração; e, 65% dos candidatos estavam na faixa etária de 17 a 29
anos. O fato da maioria do público ser jovem, aliado à sua qualificação pela Insti-
tuição, pode ser visto como aspecto facilitador para a sua futura incorporação na
estrutura produtiva, para a ampliação das suas rendas e para a melhoria da sua
qualidade de vida. Em acordo com a teoria de Sen (1999), contribuindo para am-
pliação de suas oportunidades e capacidades materiais e simbólicas.

15
Pesquisa Financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG

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Universidades e desenvolvimento regional
CARDOSO, José Maria Alves; RODRIGUES, Luciene; MAIA, Maria de Fátima Rocha

4.1 Alguns reflexos econômicos das atividades da Unimontes em sua


região de influência: a geração de produto, renda e emprego

A Universidade Estadual de Montes Claros destaca-se como uma das instituições


de maior relevância no processo de desenvolvimento regional do Norte de Minas
Gerais. Desde sua criação tem funcionado como um dos canais de transferência
exógena de renda para a economia regional e, quando não, como entidade que
captura renda regional e extra-regional, direcionando-a para o meio envolvente.
Foram consideradas como transferência exógena de renda para a região os dis-
pêndios do Estado com pessoal, custeio e investimento na Universidade. Esses
gastos se ampliavam via efeitos multiplicadores; influindo positivamente na eco-
nomia, favorecendo o emprego, o produto e a renda na região. Ademais parte
dessa renda retorna aos cofres públicos, via pagamentos de impostos e tributos.

No período 2000 a 2006, por exemplo, os valores orçamentários da instituição


foram superiores àqueles registrados pelos municípios nos quais ela possuía uni-
dades instaladas, com exceção de Montes Claros, Unaí e Paracatu. No ano de
2000, o orçamento realizado da Instituição superou inclusive os valores realizados
pelos municípios de Unaí e Paracatu.

Ao comparar o orçamento realizado pela Unimontes, no ano de 2005, com aque-


les realizados por todos os municípios das regiões Norte de Minas, Vale do
Jequitinhonha e Mucuri, verifica-se que o valor orçamentário da Universidade só
foi inferior aos de Montes Claros e de Teófilo Otoni. Nesse ano, as transferências
da União e do Estado para cada um dos 89 municípios do Norte de Minas, só não
superaram o valor orçamentário de Montes Claros16 . Essas informações ajudam
a ilustrar o peso da Unimontes, como canal exógeno de injeção de recursos na
região17 .

A Instituição, no ano de 2006, contou com uma receita total de R$ 80,8 milhões de
reais. Trata-se de valor expressivo no cenário econômico regional.

16
Obs: A Unimontes não possui centro instalado no município de Teófilo Otoni.
17
Dados relativos às transferências da União e do Estado para os diversos municípios da região estudada
estão disponíveis no Tribunal de Contas de Minas Gerais (TCEMG). As informações citadas pelo
referido Tribunal têm base nos dados extraídos das prestações de contas apresentadas pelos diversos
Municípios. O objetivo da argumentação aqui apresentada é ilustrar a significância da Unimontes
enquanto agente por meio do qual se realiza ordinariamente gastos públicos. As informações aqui
apresentadas podem ser acessadas no sítio http://www.tce.mg.gov.br/Prestacontas/indexdados.htm

23
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

QUADRO 1
Orçamento Realizado pela Unimontes e as transferências do Estado e da União para os Municípi-
os, no ano de 2005.18 (Valores em Reais Correntes)

Fonte: Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais/ Organização Pesquisa Terciário Superior19

Em 2005 o orçamento da Universidade representou 15,79% do total de valores


transferidos pelas duas esferas de governo para tais municípios20 . A relevância
dessa informação se amplia ao saber que a grande maioria desses municípios
possui significativo peso econômico e se apresentam, inclusive, como micro cen-
tros regionais.

A expansão das despesas totais da Unimontes de 1994 a 2006, a preços de 2006,


mostra que as despesas da Unimontes foram crescentes ao longo dos anos, apre-
sentando um aumento da ordem de 538%, conforme pode ser visualizado no Graf.1.

18
Dados relativos às transferências da União e do Estado para os diversos municípios da região estudada
estão disponíveis no Tribunal de Contas de Minas Gerais (TCEMG).
19
Os dados da tabela são provenientes do Tribunal de Conta do Estado de Minas Gerais e dos Balaços
Orçamentários da Unimontes.
20
Nesse estudo, optou-se por considerar apenas os gastos atribuídos a esses agentes públicos pelo Tribunal
de Contas do Estado de Minas Gerais - TCEMG. As informações citadas pelo referido Tribunal tem base
nos dados extraídos das prestações de contas apresentadas pelos diversos Municípios. O objetivo da
argumentação aqui apresentada é ilustrar a significância da Unimontes enquanto agente por meio do
qual se realiza ordinariamente gastos públicos. As informações aqui apresentadas podem ser acessadas
no sítio http://www.tce.mg.gov.br/Prestacontas/indexdados.htm Vale mencionar que alguns dos gastos
que são realizados de forma eventual pelo Estado e/ou pela União, em benefício dos Municípios
enfocados, apesar de importantes, não representam relevantes vieses às analises desse o estudo.

24
Universidades e desenvolvimento regional
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GRÁFICO 1: Expansão das Despesas Totais da Unimontes 1994 a 2006, a preços de 2006
Fonte: Dados dos Balanços Orçamentários da Unimontes. Atualização monetária segundo IGP-DI
– FGV para dezembro de 2006.

Em 2006 o total das despesas foi de aproximadamente R$ 84,3 milhões, valor que,
comparado ao realizado no ano anterior, representou acréscimo de 28%. Essas
estatísticas associadas às anteriores, corroboram a idéia de que houve na Unimontes
um deliberado esforço para viabilizar a sua missão institucional.

Ademais, a Instituição se apresenta como uma grande empregadora na região. Desta


forma, a força de trabalho nela alocada contribui, via seu consumo, para aquecer as
economias locais. o Graf. 2 expressa os dispêndios totais da Unimontes; ele eviden-
cia que os gastos com pessoal representaram 53% em 1994 e 65,66% em 2006. A
taxa de crescimento dessas despesas, no período de 1994 a 2006, foi de 67%21 .

21
Relatório final pesquisa “Terciário superior e desenvolvimento regional: uma analise do caso da
universidade estadual de montes claros – Unimontes” 2008.

25
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

GRÁFICO 2: Evolução das Despesas com Pessoal da Unimontes de 1994 a 2006


Fonte: Balanços Orçamentários da Unimontes./Atualização monetária segundo IGP-DI – FGV para
dezembro de 2006.

A análise dos possíveis impactos das ações da Universidade sobre o emprego na


sua região de atuação também pode ser estimada ao se observar o volume de
empregos diretos e indiretos gerados por ela. Com base em informações do
BNDES22 , é possível estimar os empregos indiretos gerados no setor de Serviços
Prestados à Família, no qual a atividade de educação está inserida. Por essa pers-
pectiva em 2003 a cada emprego diretamente gerado, 0,15 emprego era, indireta-
mente, criado. Assim, nesse ano a Universidade empregava 893 docentes efeti-
vos e designados, 1.461 servidores técnico administrativos, comissionados, efeti-
vos e designados; ou seja, 2.354 empregos diretos. Portanto, em 2003, entre em-
pregos diretos e indiretos, eram gerados 5.061,10. Essas estatísticas reforçam o
entendimento de que as atividades da Unimontes favoreciam ao emprego, à renda
e ao produto; contribuindo, por isso, para o desenvolvimento regional.

Algumas das estatísticas apresentadas, bem como o comportamento dos consu-


midores brasileiros, ajudam a estimar o efeito multiplicador decorrente dos gastos

22
NAJBERG, S & PEREIRA, R. O.. Novas estimativas do modelo de geração de empregos do BNDES.
Texto publicado na Sinopse Econômica nº 133 de março de 2004, BNDES.

26
Universidades e desenvolvimento regional
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da Unimontes em sua área de abrangência. No ano de 2006, o consumo final das


famílias como percentual do PIB no país foi da ordem de 80,19%. Assim, ao
serem admitidas as hipóteses de que na região de influência da Unimontes este
percentual também tenha sido verificado; que a Instituição seja aceita como agen-
te exógeno e que por meio dela rendas externas sejam transferidas para a região;
que, toda a variação de renda decorrente dos seus gastos seja destinada à pou-
pança ou ao consumo; é possível estimar que, na ocasião, o multiplicador dos
gastos decorrentes da Instituição era da ordem de 5,04.23 . Nesse caso o seu
efeito sobre gastos realizados pela Unimontes de aproximadamente 80 milhões de
Reais, no ano de 2006, seria da ordem de R$ 403 milhões de Reais.

Deste modo, ao se considerar o orçamento realizado pela Unimontes em 2006,


que era de R$84.582.736,22 pode se estimar que, o efeito final do gasto realizado
pela Universidade em sua área de atuação foi da ordem de R$ 484.437.206,30;
isto é, 483,4 milhões de reais. Ao se considerar esses dados e admitindo que a
maioria das demandas realizadas pela Instituição era atendida pelos mercados
locais e regionais, se deduz que os seus dispêndios contribuíam positivamente para
o dinamismo econômico de sua área de influência.

4.2 Considerações sobre a percepção dos atores da Unimontes quanto às


ações da Instituição

Mais do que esse valor quantitativo, é relevante apontar a percepção dos atores
ligados, direta e ou indiretamente, à instituição quanto à irradiação dos efeitos
gerais da Unimontes sobre a realidade local e regional é positiva. Segundo esses
agentes a Universidade oportunizou vivência acadêmica à população local e mo-
tivou a atração e/ou o maior trânsito de pessoas de outros meios em suas localida-
des. Tal fato contribuiu para dinamizar as suas relações sociais e culturais, a pro-
dução, a renda e o emprego. Os reflexos das ações da Unimontes sobre essas
variáveis foram mais evidentes nos locais onde a Instituição possuía centros insta-
lados; portando se manifestaram de forma heterogênea24 .

Os agentes locais davam conta de que diversas transformações foram motivadas


pela Instituição. Para eles as atividades que, direta e/ou indiretamente, davam

23
No ano de 2006, segundo estatísticas do IPEADATA, o consumo das famílias, como percentual do PIB,
foi de 80,19%.
24
Houve dificuldade em se aferir quantitativamente muitos dos reflexos das ações da Instituição, devido
à inexistência de estatísticas desagregadas para os níveis locais e regionais. Muitas das relações econômicas
que decorriam indiretamente da atuação da universidade eram caracterizadas pela informalidade,
especialmente fora da sede. Isso não impediu, porém, que sua relevância fosse constatada e alguns dos
seus reflexos identificados.

27
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v. 17, n.1, n.2/2012

suporte às ações da Unimontes, a exemplo de alimentação, alojamento e transpor-


te, foram as mais afetadas e que a mão-de-obra formada era amplamente ocupa-
da na estrutura produtiva local, especialmente no setor terciário.

É possível inferir que a Universidade tem importância econômica e social em seu


entorno, e que os gastos realizados, por meio dela, contribuem na determinação do
nível de emprego e renda regional. As despesas da Unimontes se traduziram num
componente exógeno da demanda em seu meio envolvente.

4.3 Contribuição da Unimontes na qualificação do capital humano para o


desenvolvimento regional

Resguardadas algumas especificidades inerentes à formulação teórica de mode-


los como o de Romer, verifica-se que Instituições como a Unimontes têm, implici-
tamente, significativo destaque no bojo das modernas teorias do crescimento eco-
nômico. A Universidade é um lócus de atuação e formação de pesquisadores,
cujas atividades são, potencialmente, geradoras de conhecimento (idéias), essen-
ciais ao crescimento de longo prazo (JONES, 2000, p. 80-88). No modelo de
Romer, as pessoas são os insumos chave para o processo criativo. Nessa pers-
pectiva, “uma população maior (de pesquisadores) tem a capacidade de gerar
uma quantidade maior de idéias. Na medida em que as idéias são “não rivais”,
todos na economia acabam se beneficiando delas”.

Por essa perspectiva a Unimontes tem contribuído para o desenvolvimento regio-


nal. Vale notar que em 2005 havia 34 grupos de pesquisa institucionalizados, atu-
ando em diversas linhas e a maioria dos projetos de pesquisas realizadas tinha
enfoque regional. Essa característica constitui fator positivo uma vez que favore-
ce a compreensão da realidade regional e a proposição de políticas voltadas para
o enfrentamento de seus problemas.

A Instituição conseguiu êxito na qualificação de capital humano e isso favoreceu o


desenvolvimento regional. A importância da Instituição na qualificação de capital
humano fica evidente em diversos aspectos. No ano de 2005, por exemplo, do total
de candidatos aos cursos oferecidos pela Instituição, 75,02% eram naturais da pró-
pria região, sendo que 85% residiam nela. Na ocasião 48,56% dos candidatos mani-
festaram que buscavam os cursos oferecidos por motivo vocacional; a facilidade de
obtenção de emprego, bem como a possibilidade de conciliar profissão e interesses
particulares, representaram 26,44% das justificativas mencionadas.

Na percepção de 22% dos acadêmicos25 , havia 50% de possibilidade de atuar


profissionalmente na região após formados; 30% deles acreditavam que havia

25
Em período de conclusão de curso.

28
Universidades e desenvolvimento regional
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80% de possibilidade de permanecer na região, e 25% acreditavam ter 100% de


possibilidade de permanência. Quanto ao tempo necessário à sua inserção no
mercado de trabalho foi constatado que para 58% dos referidos acadêmicos a
inserção seria imediata, para 30% se daria em até 01 ano, para 8% em até 02 anos
e para 4% em tempo superior a 02 anos.

Os dados referentes aos concluintes de curso na Universidade dão conta de que


eles vêem de forma positiva sua qualificação pela Unimontes e mostram que eles
são otimistas quanto a inserção no mercado de trabalho. Eles se sentem prepara-
dos profissionalmente e pretendem atuar profissionalmente na região após forma-
dos. Essas constatações indicam que a instituição é bem vista por esse público
atendido e tem sido bem-sucedida quanto à oferta da mão-de-obra qualificada
para a região.

As afirmações efetuadas nos parágrafos anteriores são, em grande medida, cor-


roboradas por pesquisa que investigou a realidade dos egressos da instituição e foi
concluída no ano de 2000. Nela foi verificado que a absorção dos profissionais
formados pela Universidade, no mercado de trabalho se dava de forma rápida;
96,6% dos egressos do ano 1998, na época da conclusão da pesquisa já se encon-
travam em plena atividade26 . Isso confirma que a qualificação do Capital Huma-
no pela Unimontes tem contribuído positivamente no setor produtivo e no desen-
volvimento regional, o que direta e indiretamente, constitui fator favorável ao em-
prego, ao produto e à renda da região.

O crescimento verificado no número de matrículas efetuadas nos cursos regula-


res da Universidade desde sua criação também é um indicador que aponta para o
contínuo aumento da contribuição da Unimontes para qualificação do capital hu-
mano na região. O número de matrículas avançou de 125 em 1964 para 2.699 em
1994, crescimento de 2.159,2%. Do ano de 1994 para o ano de 2005 quando o
número de matrículas eram 7.157, o crescimento foi da ordem de 446,15%.

Atrelado à expansão física da Instituição ocorreram processos de qualificação e


admissão de mão-de-obra que possibilitaram a melhoria da titulação do seu corpo
docente. Tal conduta além de favorecer a boa conceituação dos cursos da Insti-
tuição, também contribuiu positivamente no processo qualificação de capital hu-
mano. No quadro 03 é possível perceber a contínua melhoria na qualidade da
titulação do corpo docente, no período de 2004 a 2007.

26
Estudo realizado por GONÇALVES (2000) evidencia que houve grande absorção dos egressos da
Unimontes formados nos anos de 1995 a 1998, no mercado de trabalho. Verificou-se também que a
absorção desses pelo mercado de trabalho se dá de forma rápida. Dos egressos do ano mais recente
(1998) na época da pesquisa feita por Gonçalves, percebeu-se que 96,6% deles já se encontravam em
plena atividade de trabalho remunerado. (p.75-76)

29
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QUADRO 2: Titulação do Corpo Docente da Unimontes no Período 1994 a 2007

Fonte: Plano de Desenvolvimento Institucional 2005-2009 e Relatório de Gestão Unimontes 2006 -


200727

Foi verificado que 79% dos chefes de departamentos e coordenadores de curso


qualificam a institucionalização das atividades de ensino na Unimontes como sen-
do de nível bom, muito bom ou ótimo. Essa percepção é ratificada pelos bons
resultados que os cursos da instituição vêm alcançando nas avaliações institucionais,
realizadas junto ao Conselho Estadual de Educação de Minas Gerais nos proces-
sos de reconhecimento e/ou renovação de reconhecimento.

A universidade oferece várias modalidades de estágios e as entendia como sendo


uma forma de treinamento positiva para a formação profissional dos acadêmicos,
especialmente para aqueles beneficiados. Desta maneira, para 81% dos estagiá-
rios as atividades desenvolvidas no estágio contribuem positivamente para a sua
inserção no mercado de trabalho.

A Unimontes também apresentou avanços no campo da pesquisa e da extensão.


No ano de 2005, por exemplo, existiam na Universidade 34 grupos de pesquisa
institucionalizados voltados para diversos campos do conhecimento. Além das
pesquisas institucionalizadas, os trabalhos de conclusão dos diversos cursos con-
tribuíram na produção de conhecimento. Os recursos para tais atividades eram
provenientes de diversas fontes e/ou entidades. A Fundação de Apoio a Pesquisa
de Minas Gerais – Fapemig, no período de 1994 a 2005, por exemplo, concedeu
apoio financeiro a 26% dos projetos de pesquisa concluídos na Instituição.

É relevante destacar que na ocasião o enfoque da maior parte dos projetos das
pesquisas concluídas estava, em larga medida, direcionados para investigação de
questões de interesse local e/ou regional. Isso é fator positivo na medida em que,
o melhor conhecimento da região possibilita a maior eficiência e eficácia das ações

27
As estatísticas utilizadas até o ano de 2003 foram extraídas do Plano de Desenvolvimento Institucional
2005-2009 e a partir do ano de 2004 foram extraídas do Relatório de Gestão Unimontes 2006 – 2007.

30
Universidades e desenvolvimento regional
CARDOSO, José Maria Alves; RODRIGUES, Luciene; MAIA, Maria de Fátima Rocha

da instituição. Este fator favorece, qualitativamente, sua contribuição no processo


de qualificação do capital humano e a maior compreensão da estrutura produtiva
local e regional.

No que se refere à extensão a Unimontes atua em diversas comunidades tanto na


Região quanto fora dela. Ao longo do tempo as atividades de extensão universitá-
ria foram desenvolvidas nas áreas temáticas de comunicação, cultura, direitos
humanos, educação, saúde, meio ambiente, tecnologia e trabalho. Esse tipo de
ação também contribui positivamente para a qualificação de universitários e da
comunidade em geral.

A importância regional da Unimontes pode ser percebida por outras perspectivas


analíticas. No que se refere as condições de oferta de serviços de educação na
região a relevância da Instituição é notória. Basta lembrar que em sua região de
atuação prioritária estão localizadas apenas 3 das 22 IES públicas existentes no
Estado de Minas Gerais. É importante salientar a eminente representatividade da
Unimontes dentre as Instituições de Ensino Superior na região.

Em larga medida, há nos agentes regionais, direta e indiretamente ligados à


Unimontes, a percepção da importância da Universidade no processo de desen-
volvimento regional. Para além disso, existe na instituição um ambiente propício à
reflexão acerca da dinâmica das transformações culturais, sociais e econômicas
inerentes ao processo de desenvolvimento regional. Ademais, apesar das deman-
das da instituição notoriamente superarem a oferta de recursos necessárias para
o enfrentamento mais agressivo de seus desafios, do ponto de vista político, são
explícitos nos discursos dos gestores as indicações de interesse em ampliar e/ou
viabilizar ações que contribuem para o cumprimento da sua missão institucional.

Considerações Finais

Sendo reconhecidamente uma das instituições mais importantes da sociedade, as


Universidades tem-se consolidado como fonte criadora, sistematizadora e difusora
do conhecimento científico e tecnológico. Neste sentido, as Universidades cum-
pre importante papel no processo de desenvolvimento da região onde se inserem,
através do exercício de suas funções de ensino, pesquisa e extensão. A reflexão
efetuada neste trabalho está ligada diretamente à contribuição da Unimontes na
sua região de influência.

Apurou-se no estudo que por meio de suas atividades a Unimontes possibilita


acesso ao ensino, por meio da pesquisa procura compreender a realidade regional
e por meio da extensão desenvolve atividades que favorecem a coletividade, em
diversos aspectos, inclusive na geração de produto, emprego e renda. As ações da

31
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Universidade também contribuíram na qualificação do capital humano, formando


mão-de-obra qualificada, essencial ao processo de desenvolvimento regional.

A Universidade tem relevância em âmbito regional e as suas atividades favore-


cem a região. Os gastos realizados por meio dela, como variável exógena, repre-
sentaram um significativo fator de demanda na estrutura produtiva, e contribuem
positivamente para os níveis de produto, emprego e renda. Com base nos dados
de 2006 e nas hipóteses admitidas foi estimado por meio do Multiplicador
Keynesiano que cada R$1,00 aplicado na Unimontes gera, no total dos encadea-
mentos, um montante de R$5,04. O capital humano por ela qualificado é em gran-
de medida absorvido pela estrutura produtiva regional. Isso contribui para melhoria
de vários aspectos inerentes aos setores econômicos e sociais, o que auxilia o
desenvolvimento regional. A Instituição é efetiva na difusão de novos saberes e
suas ações, geram externalidades positivas, que contribuem para a vitalidade ci-
entífica, econômica e sociocultural na região.

Referências

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UNIMONTES, Universidade Estadual de Montes Claros. Plano de


Desenvolvimento Institucional 2005 – 2009. Montes Claros, 2005. (mímeo)

UNIMONTES, Universidade Estadual de Montes Claros. Relatório de Gestão -


Dez de 2004 a Dez de 2005., Montes Claros: Imprensa Universitária,
UNIMONTES.

UNIMONTES, Universidade Estadual de Montes Claros. Relatório de Gestão da


Universidade Estadual de Montes Claros. Dez de 2005 a Dez de 2006. Montes
Claros: Imprensa Universitária, UNIMONTES.

UNIMONTES, Universidade Estadual de Montes Claros. Plano de


Desenvolvimento Institucional 2005 – 2009. Montes Claros: 2005. (mímeo).

33
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

34
NORMAL SUPERIOR MODULAR EMERGENCIAL:
UMA ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA DA UNIMONTES

Andréa Maria Oliveira Versiani Santiago*


Regina Célia Lima Caleiro**

Resumo: Dentro das atividades comemorativas dos 50 anos da Universidade


Estadual de Montes Claros – UNIMONTES – faz-se imperativa a reflexão acerca
das escolhas e políticas educacionais da instituição. O presente artigo, síntese de
pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social,
tem por objetivo refletir o processo de instalação do Curso Normal Superior Modular
Emergencial e o papel da IES no contexto nacional. Em um primeiro momento,
discute-se o cenário educacional brasileiro emergido das políticas neoliberais,
“ditadas” pelos organismos internacionais. Em um segundo momento, enfoca-se o
processo de instalação do Curso Normal Superior Modular Emergencial, dentro
das reformas educacionais, marcadas pelo contexto econômico capitalista do ano
de 1990. Para fundamentá-lo, utilizaremos um levantamento bibliográfico de
referências do período, incluindo dados obtidos em sites específicos, bem como
uma análise documental.

Palavras-chaves: UNIMONTES, Normal Superior, Formação de Professores,


Neoliberalismo.

* Mestre em Desenvolvimento Social e docente das Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros -
FIP/MOC.
** Doutora em História, docente do Curso de Graduação em História, do Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Social -PPGDS e do Programa de Pós-Graduação em História –PPGH /UNIMONTES.

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Introdução

A Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES - fechou o ano de


2011 com 11.715 alunos matriculados em 164 cursos (graduação à distância, técnico-
profissionalizante e pós-graduação), com conquistas importantes nas avaliações
do Ministério da Educação (MEC). Os dados fazem parte do Relatório de Gestão
20111 disponibilizados para a comunidade acadêmica e meios de comunicação da
cidade de Montes Claros.

A inequívoca importância da UNIMONTES resumida nos dados acima, expressa


sua trajetória ao longo dos 50 anos de existência.

A UNIMONTES resultou da transformação da Fundação Norte-Mineira de Ensino


Superior – FUNM – de acordo com o artigo 82, parágrafo 03, do “Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias”, da Constituição 2 .

A antiga FUNM foi criada pela lei 2.165, em 24 de maio de 1962, a partir de um
projeto do deputado mineiro Cícero Dumont. Sua criação veio atender propósitos
de interiorização do Ensino Superior em Minas.

Abreu (2006, p. 173) afirma que o objetivo da interiorização era “formar pessoas
tanto com potencial para estimular desenvolvimento local quanto para desenvolver
uma maturidade intelectual que as tornasse aptas a construírem novas lideranças”.
Embora não faça referência especificamente à criação da FUNM, a argumentação
permite compreender o propósito do grupo iniciador da instituição. Sobre a criação
da referida instituição, Silva (2008) relata:

As primeiras iniciativas em prol da criação do ensino superior no norte de


Minas, precisamente na cidade de Montes Claros, ocorreram no ano de 1961.
Essa origem está relacionada diretamente com a formação de professores
visando à melhoria da qualidade do ensino de 1º e 2º grau da região, que era
exercido, em sua maioria, por professores leigos. Outro aspecto motivador
para a criação do ensino superior foi o caráter terminal do curso de 2º grau.
Muitos jovens ficavam parados sem estudar, por falta de opção, enquanto
aqueles que tinham melhores condições financeiras migravam para estudar
nos grandes centros e acabavam não retornando à região (SILVA, 2008, p. 48).

1
Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES, Disponível em www.unimontes.br. Acesso em
março de 2012.
2
Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES, Disponível em www.unimontes.br. Acesso em
março de 2012.

36
Normal Superior Modular Emergencial
SANTIAGO, Andréa Maria Oliveira Versiani, CALEIRO, Regina Célia Lima

Embora a primeira unidade de ensino superior constitutiva da FUNM tenha sido a


Faculdade de Direito – FADIR –, em novembro de 1965, em dezembro desse
mesmo ano houve o encampamento da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
pertencente à Fundação Educacional Luiz de Paula – FELP. Desde o início, a
“faculdade das meninas” – como era conhecida – já demonstrara seu pendor para
a formação de professores nas graduações de Pedagogia, Letras, Geografia e
História (MAIA; CORDEIRO, 2002).

Foi no ano de 1990 que o Decreto Estadual nº 30.971 criou a Universidade Estadual
de Montes Claros, no contexto da Constituição Mineira de 1989, em seu parágrafo
3º, Artigo 82, e estabeleceu a transformação da FUNM em autarquia 3 .

A constituição da UNIMONTES como Universidade aconteceu em um momento


histórico marcado pela reestruturação do capitalismo em todo o mundo. O Brasil
foi integrante dessa mudança, assinalada pela aceitação de políticas dos organismos
internacionais, dentre eles o Banco Mundial de Desenvolvimento.

A lógica do mercado passou a influenciar sobremaneira as políticas educacionais


para o ensino superior, onde aspectos como certificação, produtividade,
descentralização, tornaram-se parte do universo acadêmico. A partir de estudos
produzidos por Dermeval Saviani, Gissi (2003) afirma que a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, LDBEN, nº 9.394/96, veio para consolidar o projeto
político defendido pelas autoridades governamentais.

Em consonância com as políticas internacionais e nacionais, o Estado de Minas


Gerais, durante o governo de Eduardo Azeredo (1995-1998), encampou a agenda
de reformas educacionais do presidente Fernando Henrique Cardoso. Nesse
cenário, a educação ganhou centralidade, assentada em premissas de modernização,
nacionalização e privatização. O discurso oficial do governo mineiro tinha como
propósito garantir qualidade e melhorias do ensino nos anos subsequentes.

É dentro dessa realidade que acontece a constituição da Universidade Estadual


de Montes Claros. Muito embora estivesse adentrando na condição de
Universidade, a UNIMONTES, no contexto da apregoada descentralização, institui
novos cursos. Essa realidade permite à UNIMONTES, a partir de 2000, oferecer
o Curso Normal Superior em Montes Claros e cidades adjacentes.

3
A portaria de número 1116, datada de 21/07/1994, homologou, via Ministério da Educação, o
reconhecimento da UNIMONTES como Universidade, conforme o parecer nº 232/94 do Conselho
Estadual de Educação de Minas Gerais (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS, 2009.)

37
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

A política educacional dos anos de 1990

Ao longo da história do Brasil, há diversos exemplos de como as políticas


educacionais estiveram a serviço do modelo político-social estabelecido. Não se
trata de uma mera sincronia, na medida em que inúmeros aspectos da educação
são engendrados nas relações que os homens estabelecem ao produzir sua
existência.

A ordenação das políticas educacionais pelo Estado torna-se elemento ideológico


para a consolidação dos objetivos dos grupos dirigentes, ou seja, “reprodução das
estruturas sociais” (ALTHUSSER, 1983, p. 82).

Dentro das políticas educacionais, a formação de professores ganha especial


atenção para a garantia do estabelecimento do projeto político hegemônico
conservador.

A própria criação de Escolas Normais, ainda no século XIX, conforme Villela


(2003) atende a esses propósitos.

[...] somente pela compreensão desse projeto político mais amplo, de direção da
sociedade, é que foi possível entender a criação da Escola Normal da Província
do Rio de Janeiro não representou apenas a transplantação de um modelo
europeu, mas que pelo seu potencial organizativo e civilizatório, ela se
transformava numa das principais instituições destinadas a consolidar e expandir
a supremacia daquele segmento da classe senhorial que se encontrava no poder.
A primeira Escola Normal brasileira foi criada na Província do Rio de Janeiro,
pela Lei nº 10, de 1835, que determinava:
Haverá na capital da Província uma Escola Normal para nela se habilitarem as
pessoas que se destinarem ao magistério da instrução primária e os professores
atualmente existentes que não tiverem adquirido necessária instrução nas escolas
de ensino mútuo, na conformidade de 15/10/1827 (VILLELA, 2003, p. 28).

O desmonte do regime militar (1964-1985) fez com que os anos de 1980 fossem
marcados pela reorganização dos movimentos sociais, notadamente o sindicalismo
do ABC Paulista. Nesse sentido, as reformas no Estado Brasileiro, a partir de
1990, têm o evidente objetivo de ocupar o poder antes pertencente ao governo
militar. Para Oliveira (1999, p. 70/71), essa reordenação torna-se necessária na
medida em que é preciso reconstituir a relação Estado – Sociedade, perdida com
décadas da crise.

No contexto da promulgação da Constituição de 1988, percebe-se em muitos


aspectos, uma clara articulação entre as políticas neoliberais e a mundialização do
capital. A esfera federal passa a utilizar-se de formas, não menos ditatoriais, de
controle da sociedade civil, com vistas a atender à nova realidade.

38
Normal Superior Modular Emergencial
SANTIAGO, Andréa Maria Oliveira Versiani, CALEIRO, Regina Célia Lima

Nos anos de 1990, a educação ganha centralidade, dentro da lógica da reestruturação


produtiva que impõe o mercado como realidade única, geradora de benefícios e
capaz de garantir o consenso sob o imperativo das vantagens do modelo capitalista.

A implantação do neoliberalismo reproduz a lógica imamente à acumulação


capitalista, que é sem dúvida, a de garantir um modelo de hierarquia social,
permitindo a concentração do capital nas mãos de uma minoria. O Consenso de
Washington, acontecido em 1989 contou com a efetiva participação de diversos
economistas latinos americanos de perfil liberal, do Fundo Monetário Internacional,
do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do governo
norte-americano e tinha como objetivo divulgar e implementar diversas reformas
na América Latina.

Daí porque, no caso brasileiro, os termos deste “consenso” implicam no


abandono definitivo das pretensões nacionalistas de desenvolvimento
autônomo, em favor das novas formas de associação da burguesia nacional
com a grande burguesia internacional, e a execução de uma série de reformas
no sentido de promover essa readaptação necessária do Estado brasileiro às
novas exigências da acumulação. A reforma do Estado caracteriza-se, portanto,
como um processo de crescente descontrole sobre a reprodução social. Eis,
então, o ponto de partida essencial para compreender as políticas para o ensino
superior brasileiro, nos anos 90 (LIMA FILHO, 1999 apud MINTO, 2010).

Com o claro objetivo de garantir esse consenso, diversas estratégias são validadas,
dentre elas investimentos na área educacional evidenciando mostrando uma
mudança de rumo nas políticas dos organismos internacionais divulgadores do
“novo” ideário.

O Banco Mundial é o primeiro a render-se a essa estratégia.

Na década de 1960, um vice-presidente do Banco, Robert Gardner afirmou:


“Nós não podemos emprestar para educação e saúde. Nós somos um banco!”.
Esta situação começou a mudar na gestão de Woods (1963-1968) e, mais
acentuadamente, na presidência de McNamara, quando a ênfase no problema
da pobreza fez a educação sobressair entre as prioridades do Banco. Na década
de 1970, esta instituição considerava o financiamento às escolas primárias e
secundárias de formação geral um contrassenso, defendendo o ensino técnico
e profissional, modalidades tidas como mais adequadas às necessidades
(presumidas) dos países em desenvolvimento. Na virada neoliberal da década
de 1980, a orientação educacional do Banco sofreu uma inflexão em direção ao
ensino elementar. A orientação anterior foi então duramente atacada como
voluntarista e dispendiosa. Na década de 1990, a inflexão neoliberal não apenas
permanece válida, como é radicalizada (LEHER, 1999, p.25-26).

39
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Na década subsequente, o Banco Mundial passou a recomendar maior atenção


na educação básica e na formação de professores. Utilizando como justificativa a
Teoria do Capital Humano, o Banco Mundial defende a capacitação de indivíduos
para atender necessidades mercadológicas, permitindo a empregabilidade, criando
alternativas de trabalho em áreas pouco exploradas pelo capital. A educação torna-
se fator de contenção da pobreza, um “ajuste com caridade”, segundo Marília
Fonseca (1995). Retorna-se à requentada fórmula, que apresenta a educação
como elemento do crescimento econômico e da diminuição da pobreza.

Atendendo a essa política, ganha proeminência a formação das séries iniciais,


compreendida como capacitação pedagógica de caráter técnico.

A atual formação de professores tem como marco legal a promulgação da Lei de


Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB 9394/96. No que concerne à
formação dos profissionais da educação, Título VI, Artigo 62, é estabelecido que:

A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior,


em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos
superiores de educação, admitida como formação mínima para o exercício do
magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino
fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal (BRASIL, 1996).

Historicamente essa formação era oferecida pelos cursos de Pedagogia e a


atividade profissional, estendida aos egressos dos cursos de Magistério de nível
médio e a leigos.

Muito polêmica, seguiu-se a sua promulgação, marcada por intensa discussão dos
setores educacionais sobre sua viabilidade, sua legitimidade e principalmente sobre
o tipo de professor emanado desse processo.

O documento resultante do Fórum Nacional de Defesa da Escola Pública considerou


a nova LDB, como uma “vitória de uma determinada concepção de Estado e de
sociedade que pode ser denominada neoliberal” e completa sua crítica afirmando
que “o fato de o governo conseguir na legalidade institucionalização de mecanismos
antidemocráticos para fazer valer o seu projeto que, portanto, traz um vício de
origem: a falta de legitimidade”. (FÓRUM NACIONAL EM DEFESA (FÓRUM
NACIONAL EM DEFESA DA ESCOLA PÚBLICA, 1997, p. 04 e 05).

Criado na lógica do mercado e dentro da reestruturação que tomou conta do


cenário nacional dos anos de 1990, o Curso Normal Superior tornou-se alvo de
significativas reflexões e críticas por parte de setores representativos dos
movimentos dos profissionais da educação, estudiosos do setor e de parte das
entidades acadêmicas.

40
Normal Superior Modular Emergencial
SANTIAGO, Andréa Maria Oliveira Versiani, CALEIRO, Regina Célia Lima

Elisabeth Macedo (2000, p.24) argumenta que o modelo resulta em “um profissional
ilustrado, de conhecimentos elementares, não preparado para desenvolver pesquisa
que contribua para a sua prática docente”.

A Lei criou uma demanda, permitindo as várias instituições, públicas e privadas,


oferecer a formação em nível superior aos professores das séries iniciais do Ensino
Fundamental. A oferta de novos cursos e a criação de instituições como o curso
Normal Superior e os Institutos Superiores de Educação tornaram-se estratégicas,
para a intervenção do Estado na vida social, garantindo o cumprimento das reformas
educacionais iniciadas nos anos de 1990.

O Curso Normal Superior da Universidade Estadual de Montes Claros

Buscando atender às exigências da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional


– LDB –, a UNIMONTES passou a oferecer, a partir de 2000, o Curso Normal
Superior em duas modalidades: o Regular e o Emergencial Modular.

A modalidade Emergencial Modular, organizada pelo Instituo Superior de Educação


(ISE / UNIMONTES), é objeto de reflexão e análise deste artigo. Utilizamos
como fonte o Projeto Político-Pedagógico 2000/2002. O Curso teve como entidade
mantenedora a Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino Superior do
Norte de Minas – FADENOR – e, como coordenadora, a Pró-Reitoria de Ensino
/ Coordenadoria de Ensino Superior / Instituto Superior de Educação (Universidade
Estadual de Montes Claros, 2002).

A FADENOR veio cumprir diretrizes estabelecidas no documento-base


QUESTÕES CRÍTICAS DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA, que estabelecia que
“a autonomia universitária devia vir acompanhada de práticas de gestão mais
profissionais, com vistas à maior captação de recursos próprios, através tanto de
melhor gestão do patrimônio como de maior cooperação com o sistema produtivo”
(SHIROMA et al., 2007, p. 67)

Atendendo a esse contexto, marcado pelo recrudescimento do Estado mínimo e


amparado pela LDB, a UNIMONTES (prestadora de serviços educacionais),
através da FADENOR (contratada), organizou parcerias com diversos
MUNICÍPIOS (contratante) com o propósito de garantir a operacionalização dos
novos cursos.

No Projeto Político-Pedagógico Institucional, a qualificação de professores do


Ensino Fundamental, via curso Normal Superior, é assim justificada:

Tendo em vista as preocupações advindas dos municípios em atender suas


necessidades, principalmente no que se refere à redução do número de

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

professores leigos ou com apenas o 2º grau, presentes ainda nos seus quadros
funcionais, e em razão da nova legislação, é que os administradores municipais
vêm procurar medidas para alterar o atual quadro desses municípios,
proporcionando-lhes a melhoria do processo educativo. Essa melhoria está
intrinsecamente ligada à formação dos profissionais da educação, e essa
formação é condição fundamental para a melhoria da qualidade de vida, para o
desenvolvimento, de um modo geral, e para o exercício pleno da cidadania. É
importante destacar a necessidade de uma intervenção educacional no sentido
de minimizar o hiato que existe entre a oferta e a demanda no ensino superior
por meio do oferecimento de um curso de formação para os profissionais da
educação capaz de desenvolver a valorização e o prestígio social aos
professores que atuam da 1ª à 4ª série do Ensino Fundamental. O princípio
base deste projeto, que é oferecer uma educação de qualidade, está
fundamentado na prioridade nacional de valorização do magistério, por meio
da recuperação do papel social e pedagógico do professor (UNIVERSIDADE
ESTADUAL DE MONTES CLAROS, 2002, p. 38).

No documento, percebe-se uma reprodução do discurso oficial, que coloca a


educação como fator do crescimento econômico, o que alteraria substancialmente
os indicadores sociais do Norte de Minas e Jequitinhonha.

Os autores do projeto desconsideram reflexões e críticas de entidades educacionais


como a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Educação
(ANPED) e, Associação Nacional pela Formação de Profissionais de Educação
(ANFOP); Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior (ANDES), que
criticavam o modelo por considerá-lo depreciador do papel do professor e do
processo de formação ofertado pela universidade.

Fica claro que a tão propalada “valorização do magistério” – termo largamente


utilizado por aqueles que defendem o modelo de formação empreendido pelas
reformas e citadas no documento UNIMONTES – prendem-se a uma concepção
de “qualidade” definida pelos organismos estrangeiros.

Inicialmente foi oferecido o Curso Normal Superior Emergencial Modular em


sete cidades: Almenara, Janaúba, Januária, Pirapora, Montes Claros, Espinosa e
Paracatu.

Para a implantação do Curso foram estabelecidas parcerias com os municípios,


por meio das prefeituras das cidades acima citadas. “A oferta deste curso, sob
responsabilidade financeira da instituição e do Estado, não seria possível, por não
haver dotação orçamentária para tal fim. Tal feito levou a UNIMONTES a
compartilhar como o setor demandante, as prefeituras municipais, os custos de
implantação e manutenção. (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES
CLAROS, 2002, p. 04).

42
Normal Superior Modular Emergencial
SANTIAGO, Andréa Maria Oliveira Versiani, CALEIRO, Regina Célia Lima

Foram oferecidos módulos presenciais, que aconteciam no período de janeiro e


julho, correspondente a férias escolares. As condições materiais oferecidas por
algumas prefeituras foram bastante precárias e largamente reconhecidas pelos
que participaram do projeto: livros escassos, pouco material didático disponível,
infraestrutura deficiente, assim como outros aspectos.

As parcerias firmadas apontam uma clara sintonia entre sujeitos e instituições


envolvidas. No Normal Superior da UNIMONTES, havia uma significativa
separação entre os aspectos pedagógicos e acadêmicos, de responsabilidade do
Instituto Superior de Educação (ISE) e as questões operacionais / financeiras
tratadas com a FADENOR.

A organização do Curso Normal Superior Modular exemplifica a dicotomia entre


público X privado e aponta o recrudescimento do Estado frente a novas formas de
obtenção de recursos financeiros pela UNIMONTES.

A organização curricular foi dividida em blocos modulares com disciplinas de natureza


teórico-prática e práticas estipuladas em módulos, favorecendo a formação em dois
anos. Esse aceleramento do processo de formação tem sido bastante criticado. De
um lado, possibilita o aumento da escolaridade, a certificação e/ou diplomação de
professores em tempo recorde, permitindo ao Brasil cumprir metas estabelecidas
pelos organismos internacionais. De outro, oferece uma formação não consistente,
favorecendo a própria desqualificação do profissional de ensino. Para Arroyo (2003),
o despreparo do professor está na raiz de sua desfiguração social.

O Projeto Político Pedagógico do referido curso da UNIMONTES, analisado por


nós, utiliza-se de nominações que mostram estarem voltados para o processo de
formação determinado pelas políticas educacionais de 1990 (domínio de conteúdos
gerais, polivalência, inovação tecnológica). Sem dúvida, o modelo de formação
favorece a construção de uma cultura de trabalho, que garante a consolidação de
comportamentos úteis ao sujeito no mercado de trabalho produtivo. A academia
se afasta de princípios éticos, das responsabilidades sociais e de seu compromisso
de formar profissionais cientes do seu papel histórico-social.

Leite (1997) chama atenção para o fato de que o aumento da escolaridade dos
alunos do Normal Superior contribui para uma precarização do trabalho docente,
negando uma antiga crença da Sociologia do Trabalho, que afirma ser a mão-de-
obra mais escolarizada a de melhores condições de trabalho. Infelizmente, a
realidade mostrada aponta em outro caminho.

A partir de 2005, dentro de outro momento vivenciado pela UNIMONTES, os


critérios de ingresso no curso e a sua natureza sofreram alterações. O curso,

43
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

antes ministrado em 24 meses, foi estendido para 36 meses. A condição inicial de


estar atuando em sala de aula da rede pública, não mais será necessária. A natureza
emergencial/modular foi substituída apenas pelo modular, portanto, aberto a qualquer
pessoal que quisesse ingressar no ensino superior. A justificativa é que o fator
emergencial já havia sido sanado, portanto não havia mais a necessidade de o
aluno ter experiência em sala de aula.

Sobre as mudanças acima mencionadas, Silva (2008) se posiciona:

É essa mentalidade que vai reorientar a mudança nos propósitos e objetivos


da UNIMONTES quanto à formação de professores. Nesse momento, o acesso
a essa modalidade de curso se distancia dos propósitos da LDBEN quanto à
formação de professores aprofundando ainda mais o processo de
desqualificação do curso e dos profissionais da educação básica (SILVA, 2008,
p. 86).

Em 18 de agosto de 2006, foi suspenso temporariamente o Curso Normal Superior


em todos os campi e núcleos pertencentes à UNIMONTES4 . A justificativa
apresentada é que a Universidade já havia cumprido as determinações do artigo
62 da LDB 9394/96, de formar, em nível superior, os profissionais da 1ª à 4ª série
do Ensino Fundamental.

Ao longo dos seis anos de vigência do Curso, a UNIMONTES concretizou seu


processo de expansão, garantindo o aspecto emergencial e itinerante. Vale lembrar
que não houve concorrência de outras instituições de nível superior da região que
abalasse, nos primeiros anos, a hegemonia da UNIMONTES, na oferta do Curso
Normal Superior.

Sem dúvida, o propósito explicitado na LDB foi alcançado. A “Década da


Educação” garantiu a formação em nível superior da maioria dos professores
atuantes. A certificação almejada tornou-se realidade. O Brasil cumpriu as agendas
internacionais, integrando-se aos propósitos do modelo neoliberal.

Considerações finais

A Universidade, inserida na complexidade da sociedade contemporânea, tem-se


mostrado multifuncional, com difícil definição de seu papel e inserida em um campo
marcado por interesses contrastantes.

Trata-se de uma instituição essencial, justamente por permitir a mediação do mundo


social com a ciência, ocupando um papel estratégico na dinâmica dos processos

3
Atendendo à Resolução do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão nº. 144.

44
Normal Superior Modular Emergencial
SANTIAGO, Andréa Maria Oliveira Versiani, CALEIRO, Regina Célia Lima

de formação em nível superior, assim como de produção e divulgação da cultura e


da ciência. Os diferentes interesses do Estado, dos diversos setores sócio-
econômicos, da população e dos próprios componentes do universo acadêmico
deveriam promover permanentemente significativas discussões sobre seus fins,
suas especificidades, identidades e trajetórias.

Nesses 50 anos de existência, não podemos ignorar a relevância da UNIMONTES


como fomentadora do ensino e da pesquisa acadêmica na região. Foi e continua
sendo um locus privilegiado para se pensar os problemas do contexto econômico-
social do norte de Minas e onde o conhecimento produzido tem se destacado no
cenário nacional. A “faculdade das meninas” cresceu e amadureceu, dando origem
à UNIMONTES que hoje todos conhecemos.

Ao estabelecer o Curso Normal Superior Modular da UNIMONTES como objetivo


de pesquisa tivemos a intenção de refletir sobre as ações políticas da Universidade.
Julgamos de grande importância que a Universidade possa conhecer-se, ou seja,
que ela se constitua como objeto de pesquisa a todos que se interessam pelo
ensino público.

O descortinar da própria realidade permitirá à Universidade dialogar de forma


mais profícua com o universo acadêmico, compreender ganhos e perdas de médio
e longo prazo evitando assim que a instituição fique atenta apenas em ouvir verdades
iguais às suas, a chamada “desinquisição do saber” (ALVES, 2004).

Como demonstramos acima, a criação do Curso Normal Superior Modular


Emergencial foi marcada por pressões do modelo econômico capitalista legitimado
por nossos governantes a partir de 1990. A UNIMONTES foi a primeira instituição
a oferecer o curso no Estado de Minas Gerais, dentro de uma política maior de
interiorização, e fez exatamente no momento em que se tornava Universidade.
Através da FADENOR, organizou uma complexa operacionalização, que em
parceria com as prefeituras, garantiu a certificação de um significativo número de
docentes na região. A interiorização da UNIMONTES, efetivada através de seu
Programa de Interiorização do Ensino Superior, teve início com o curso Normal
Superior, seguido por outras licenciaturas, não por acaso, todas de baixo custo.

O estabelecimento e o modelo do Curso da UNIMONTES não aconteceram devido


a decisões da comunidade acadêmica da instituição, mas, sim, em função das
reformas que tinham como objetivo atender à reestruturação do cenário político-
econômico brasileiro.

A UNIMONTES soube muito bem ocupar seu lugar no “mercado” a partir da


LDB. Sem dúvida, o Curso permitiu o acesso de um grande número de professores

45
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

leigos ou formados em nível médio ao ensino superior. A interiorização permitiu


que alunos de baixa renda, moradores de municípios carentes, alcançassem o tão
sonhado diploma.

Em contrapartida, houve uma certificação não necessariamente seguida de


qualidade de formação. Tal como ocorreu, a formação, mostrou-se muito mais
preocupada em quantificar diplomas do que permitir que os sujeitos exercessem a
sua autonomia. Em condições escassas, tal formação tornou-se mercadoria. A
oferta dos cursos dentro da realidade descrita tornou-se menor diante do objetivo
da Universidade de certificar o maior número possível de professores em nível
superior, oferecendo uma graduação que não atendeu as reais demandas sociais,
mas, sim, às políticas educacionais, marcadas pelos interesses externos, e omissas
para averiguar as reais condições em que o curso Normal Superior foi ofertado,
em unidades fora da sede pela UNIMONTES.

Por fim, cabe-nos ressaltar que a formação de professores é um aspecto


significativo da realidade educacional brasileira, marcada por inúmeras questões
ainda não respondidas. A diversidade brasileira exige respostas que atendam às
especificidades do país. Urge o estabelecimento de um processo sólido de formação
capaz de atender às demandas da educação brasileira. Uma formação em que a
compulsão pela quantidade não se sobreponha à qualidade.

Acredita-se que a UNIMONTES, com sua vasta experiência no campo do ensino


e pesquisa poderá contribuir, de forma decisiva, para caminhos novos no processo
educacional.

Entretanto, antes de atender a demandas externas deve definir qual é a seu papel
no cenário das universidades públicas brasileiras. Faz-se necessário que professores
e pesquisadores envolvidos com os destinos da UNIMONTES, se organizem com
o propósito de pensar alternativas e uma nova agenda política para o processo de
formação de professores e, principalmente, que sejam ouvidos pelas instâncias
decisórias da Universidade.

Referências

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Criação das Instituições Federais de Ensino de Minas Gerais. Tese de
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Normal Superior Modular Emergencial
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47
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS-UNIMONTES. Pró-


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VILLELA, Heloísa. 500 Anos de Educação no Brasil. In: LOPES, Eliane M.


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48
IMPLANTAÇÃO DO SISTEMA DE COTAS NA
UNIMONTES E ANÁLISE DA DEPENDÊNCIA
ENTRE ALUNOS COTISTAS E NÃO COTISTAS DOS
CURSOS DO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
(CCH)

Maria Elizete Gonçalves*


Luciene Rodrigues**
Maria Helena de Souza Ide***

Resumo: A Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES instituiu o


sistema de reserva de vagas no ano de 2004, por meio da Lei Estadual 15.259;
sendo que o início efetivo do sistema ocorreu no processo seletivo 1/2005. Do
total de vagas dos cursos de graduação, 45% foram destinadas às categorias
“Afro-descendente carente”, “Egresso de escola pública carente” e “Portador de
deficiência e indígena”. A implantação das cotas na Universidade, assim como em
outras universidades do País, foi acompanhada de muitas polêmicas e desafios.
Um desses desafios diz respeito aos fatores que dificultam a permanência dos
alunos cotistas no ensino superior. Entre eles, destacam-se os horários dos cursos,
as grades curriculares e a exigência de um coeficiente de rendimento que
desconsidera o impacto inicial que o ingresso no ensino superior causa na vida
desses alunos (BARBOSA e BRANDÃO, 2007). Esses fatores influenciam o
desempenho acadêmico, a ocorrência da reprovação e consequentemente, da
dependência. Nesse sentido, o objetivo desse artigo é analisar a sobrevivência dos

*
Doutora em Demografia pelo CEDEPLAR/UFMG. Professora do Departamento de Economia
UNIMONTES.
**
Doutora em Ciências pela FCSLH/USP. Professora do Departamento de Economia e do Programa de
Pós-Graduação em Desenvolvimento Social – PPGDS/UNIMONTES.
***
Doutora em Educação pela Georg August Universität Göttingen. Professora do Programa de Pós-
Graduação em Desenvolvimento Social – PPGDS/UNIMONTES.

49
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

alunos à dependência nas disciplinas ministradas nos cursos do Centro de Ciências


Humanas – CCH, da UNIMONTES (processo seletivo 1/2005). A técnica de
análise utilizada foi a Análise de Sobrevivência, adequada a dados longitudinais.
Os resultados apontaram que o menor e maior percentual de dependências foi,
respectivamente, para os alunos do curso de Pedagogia e do curso de Filosofia.
Ao se fazer um recorte segundo as modalidades de ingresso, não foram evidenciadas
diferenças significativas nas probabilidades de sobrevivência ao evento, entre os
acadêmicos dos diferentes cursos. Contudo, para alguns cursos, os alunos cotistas
apresentaram maior tempo e maior probabilidade de sobrevivência à dependência;
para outros, maior tempo e maior probabilidade de sobrevivência ao evento foram
observados para os alunos não cotistas. Como o perfil do aluno pode ser diferente,
conforme o curso, tem-se os diferenciais constatados. O perfil de um aluno cotista
do curso de Historia talvez seja diferente do perfil de um aluno cotista do curso de
Filosofia, por exemplo. Esse fato pode explicar os resultados obtidos nesse estudo.

Palavras-chaves: Sistema de cotas, dependência, UNIMONTES.

Abstract: The State University of Montes Claros - UNIMONTES established


the system of quotas in 2004, through the State Law 15.259, of which the beginning
of the effective system selection process occurred in 1/2005. Of the total vacancies
of undergraduate courses, 45% were for the categories “Afro-descendant poor”
“Egress of Public School poor” and “Bearer of Indigenous and disability.” The
introduction of quotas in the University, as well at other universities in the country,
was accompanied by many controversies and challenges. One such challenge
concerns the limiting factors that difficult the continuation of the shareholder students
in higher education. Among them, stand out the hours of courses, curriculum and
the requirement for a efficiency coefficient that ignores the impact that the initial
entry into higher education cause the lives of these students (Barbosa and Brandão,
2007). These factors influence academic performance, the occurrence of failure
and the dependence. In this sense, the objective of this paper is to analyze the
survival of the students the dependence in the courses at the Center for Humanities
- CCH, UNIMONTES (selection process 1/2005). The analysis technique used
was Analysis of Survival, appropriate for longitudinal data. The results showed
that the lowest and highest percentage of dependencies was, respectively, for the
students of Pedagogy and Philosophy course. When making a cut in the manner
of entry, there were no significant differences in survival probability to the event,
among academics of different courses. However, for some courses, students
shareholders had longer time and greater probability of survival the dependence;
for others, longer time and more likely to survive the event were observed for
students not shareholders. As the student profile may differ depending on the
course has the differences observed. The shareholder profile of a student’s course
of History might be different from the profile of a student’s course Philosophy
shareholder, for example. This may explain the results obtained in this study.

Keywords: system of quotas, dependency, UNIMONTES.

50
Implantação do sistema de cotas na UNIMONTES e análise ...
GONÇALVES, Maria Elizete; RODRIGUES, Luciene; IDE, Maria Helena de Souza

1 Introdução

A adoção de políticas afirmativas não é algo recente no contexto brasileiro. Leis


que beneficiam alguns segmentos populacionais já são há muito desenvolvidas no
País, como o Decreto-lei 5.452/43 que ao querer limitar o número de estrangeiros
nas empresas brasileiras, estabelece cota de 2/3 para brasileiros em empresas
individuais e coletivas; e a Lei 5.465/68, que reserva 50% das vagas em
estabelecimentos de ensino de nível médio agrícola e em escolas superiores de
agricultura e veterinária para candidatos agricultores ou para seus filhos.

Porém, é a partir de 1990 que temos a intensificação de ações afirmativas no


Brasil. Na área da educação, leis foram aprovadas estabelecendo cotas para pardos
e negros na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade
do Norte Fluminense; e para egressos de escolas públicas, negros, índios e
portadores de necessidades especiais na Universidade Estadual de Minas Gerais
(UEMG) e na Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES).

Por meio da Lei 15.259/2004, a UNIMONTES distribuiu 45% do total de vagas


dos seus cursos de graduação às categorias afro-descendente (carente), egresso
de escola pública (carente) e portador de deficiência e indígena.

A implementação do sistema de cotas na Universidade foi seguida de polêmicas e


desafios. Uma série de questionamentos relacionados ao desempenho dos alunos
cotistas foram postos em debate, despertando o interesse dos pesquisadores da
Instituição pela realização de estudos sobre o assunto. Podemos citar o estudo
feito por Barros e Cardoso (2011), em que foi feito uma avaliação de desempenho
entre os alunos dos 39 cursos de graduação ofertados pela UNIMONTES no ano
de 2005, considerando as modalidades de ingresso. O estudo revelou que na maioria
dos cursos analisados, os alunos cujo ingresso foi pelo PAES e pelo sistema
universal alcançaram as melhores médias nas disciplinas cursadas.

Nesta mesma linha, o presente artigo tem por objetivo analisar a ocorrência da
dependência entre alunos cotistas e não cotistas. O desenvolvimento do artigo
baseou-se no acompanhamento retrospectivo da trajetória acadêmica dos alunos
matriculados nos cursos do Centro de Ciências Humanas (C.C.H) da
UNIMONTES, cujo ingresso foi por meio do processo seletivo 1/2005.

A metodologia utilizada foi a Análise de Sobrevivência, adequada a dados


longitudinais. A aplicação dessa técnica resulta em uma importante contribuição
aos estudos na área da educação, que visam uma melhor compreensão sobre os
diferenciais de desempenho do aluno segundo as modalidades de ingresso na
Universidade (sistema universal, PAES, egresso de escola pública, afro-

51
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

descendente carente, deficiente/indígena). Os dados utilizados foram coletados


na Secretaria Geral da Universidade e no Relatório de Barros e Cardoso (2011).

Esse estudo está dividido em quatro seções, além dessa introdução. Na primeira,
é realizada uma revisão de literatura sobre as políticas de ação afirmativa e o
sistema de cotas nas universidades, com ênfase na UNIMONTES. Na segunda,
é apresentada a metodologia de análise. Na terceira, são apresentados os resultados
do estudo e discussão. Por último, são feitas as considerações finais.

2 Políticas afirmativas nas universidades brasileiras

Nos anos recentes, a escola tem participado ativamente do debate relacionado à


diversidade e pluralidade cultural, social, econômica e etnicorraciais. Esse
envolvimento tem tomado corpo por meio de documentos oficiais, como a Lei
10.639/2003 que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana (BRASIL, 2004). Seguindo essa tendência, as diretrizes emanadas do
Ministério da Educação propõem a inclusão do tema transversal Pluralidade Cultural
no currículo das escolas de nível elementar e médio (BRASIL, 1997). Além disso,
diversos projetos têm sido desenvolvidos em várias escolas do país, visando valorizar
e dar visibilidade a formas de expressões culturais de grupos e segmentos sociais
colocados em situação de subalternidade. Como parte dessa mesma estratégia,
temos a implantação do sistema de cotas no ensino superior para segmentos histórico
e socialmente excluídos.

As medidas citadas acima estão alinhadas e se classificam dentro das chamadas


políticas afirmativas, cujo termo pode ser assim definido

O termo Ação Afirmativa refere-se a um conjunto de políticas públicas para


proteger minorias e grupos que, em uma determinada sociedade, tenham sido
discriminados no passado. A ação afirmativa visa remover barreiras, formais e
informais, que impeçam o acesso de certos grupos ao mercado de trabalho,
universidades e posições de liderança (OLIVEN, 2007, p.01)

Gomes (2003) identifica o pioneirismo dessas iniciativas nos Estados Unidos da


América que, nos anos 1960, procuraram solucionar a situação de marginalidade
econômica e política a qual estava submetida a população negra na sociedade
norte-americana.

O autor menciona que as políticas de ação afirmativa representam uma mudança


na postura do Estado, que passa a considerar fatores como raça, cor, sexo, origem
social e compleição física no momento de implementar suas decisões, substituindo
o princípio da igualdade formal pela igualdade substancial, de forma a dar
legitimidade às suas ações.

52
Implantação do sistema de cotas na UNIMONTES e análise ...
GONÇALVES, Maria Elizete; RODRIGUES, Luciene; IDE, Maria Helena de Souza

No seu artigo, Oliven (2007) faz uma comparação considerando a forma como as
políticas afirmativas são implantadas nos Estados Unidos e no Brasil. Segundo a
autora, as diferenças entre esses dois países não está apenas em como tais políticas
são implantadas; a forma como se dá a classificação racial também é diferente.
No Brasil, um país com diversidade etnorracial, o que importa é a aparência das
pessoas, ou seja, o fenótipo, sendo considerada também a classe social; enquanto
na nação norte-americana, o que importa é a descendência, ou seja, o genótipo.
Porém, as diferenças não terminam por aí. Em termos geográficos, a população
negra dos Estados Unidos não chega a 10% da população, enquanto no Brasil a
população é metade negra, metade branca, com grande miscigenação.

Nesse sentido, Suiama (2006) infere que o desenvolvimento das ações afirmativas
no Brasil não pode reproduzir, de forma automática, as experiências bem sucedidas
dos Estados Unidos, devido a grande miscigenação aqui existente. O autor cita o
antropólogo DaMatta (1997), que faz a seguinte consideração sobre o assunto:

[...] não há dúvida de que existem obstáculos muito grandes na individualização


das classes sociais, entrecortadas pelas suas possibilidades de múltipla
interação e classificação social em eixos variados, já que ninguém se fecha em
torno de uma só dimensão classificatória (DaMATTA, 1997, p.194)

No âmbito educacional, também pairam dificuldades e polêmicas com relação à


implantação e concretização das políticas afirmativas. A adoção do sistema de
cotas no ensino superior tem gerado muita polêmica, principalmente no que diz
respeito às cotas para “Afro-descendente carentes”. Pautados nas mais diferentes
posições e argumentos, tais debates têm preenchido a pauta da academia e da
sociedade de modo geral. Afinal, trata-se de conquistar e defender posições e
espaços antes nunca reivindicados e contestados.

Sabemos que são muitas as indagações e implicações que cercam a adoção de


cotas nas universidades. Conforme Gurnieri e Melo-Silva (2007), esse é um assunto
que possui uma agenda intensa de discussões mesmo em um país com longa
tradição na adoção de cotas nas universidades, como os Estados Unidos. No caso
brasileiro, estamos no início desta trajetória, o que requer um grande esforço no
sentido de produzir conhecimentos que nos permitam conhecer esta realidade
para melhor compreender suas dinâmicas, possibilidades e limites.

O Brasil tem um passivo histórico com as camadas populares no que diz respeito
à democratização do seu acesso à educação formal. Temos convivido
historicamente com uma realidade de descaso e exclusão de segmentos
significativos de parte da população do sistema de ensino. No que diz respeito a
universidade a situação é ainda mais dramática.

53
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

A entrada de estudantes egressos da escola pública tem sido acompanhada de


uma série de desafios tanto para a academia quanto para eles. Uma série de
problemas dificulta a permanência desses alunos no ensino superior. Dentre eles,
Barbosa e Brandão (2007) apontam: as grades curriculares; os horários dos cursos;
o limite de idade para ingressar em atividades de pesquisa, desconsiderando o
ingresso tardio desses alunos no ensino superior; a exigência de um coeficiente de
rendimento que não leva em conta o impacto inicial que o ingresso no ensino
superior causa na vida desses alunos e a pouca vivência de atividades de extensão,
o que limita as atividades de aprendizado à sala de aula.

Sabemos que não menos difícil tem sido a entrada e permanência dos estudantes
negros e portadores de necessidades especiais nas instituições de nível superior.
Uma análise da literatura disponível sobre cotas revela que a grande polêmica
parece envolver principalmente estudantes cotistas negros.

A entrada de negros no ensino superior por meio do sistema de cotas tem levantado
muitas discussões tanto na sua defesa (Munanga, 2004, p.49) quanto no seu ataque
(Santos, 2003, p. lll). Ou seja, na literatura não há consenso sobre a adoção de
cotas no ensino superior. Posição semelhante pode ser verificada em conversas
informais e em informações veiculadas pelos meios de comunicação.

Por se tratar de temática de forte impacto social, entendemos que se faz necessário
aprofundar estudos que possibilitem compreender a trajetória de alunos cotistas
no ensino superior de modo a fornecer bases argumentativas que permitam subsidiar
decisões em relação a essas políticas.

2.1 Breve histórico sobre políticas afirmativas na UNIMONTES

Nos anos 1990 uma série de iniciativas em relação às políticas afirmativas foi
adotada nas universidades brasileiras, o que resultou em reserva de parte de suas
vagas para alunos negros, indígenas, egressos de escolas públicas e portadores de
necessidades especiais.

Como exemplo, podemos apontar a iniciativa do estado do Rio de Janeiro que por
meio da Lei Estadual 3.708 de 9 de novembro de 2001 estabelece cotas de 40%
para negros e pardos na UERJ e na Universidade do Norte Fluminense. No estado
de Minas Gerais, a Lei Estadual 15.259 de 27 de julho de 2004 estabelece cotas
para egressos de escolas públicas, negros, índios e portadores de necessidades
especiais na UEMG e na UNIMONTES.

A UNIMONTES instituiu o sistema de reserva de vagas em 2004, distribuindo


45% do total de vagas em cada curso de graduação às seguintes categorias: i)

54
Implantação do sistema de cotas na UNIMONTES e análise ...
GONÇALVES, Maria Elizete; RODRIGUES, Luciene; IDE, Maria Helena de Souza

Afro-descendente carente; ii) Egresso de escola pública carente e; iii) Portador


de deficiência e indígena. Para cada uma das duas primeiras categorias, 20% das
vagas e, para a última, 5%.

O início efetivo do sistema de vagas na Universidade ocorreu no processo seletivo


1/2005, realizado em dezembro de 2004. Dentre as 902 vagas oferecidas entre os
37 cursos de graduação, 428 foram destinadas ao Sistema de Reserva de Vagas.

O GRÁF. 1 apresenta o percentual dos candidatos inscritos no sistema de reserva


de vagas, no total de candidatos inscritos na Universidade, nos processos seletivos
de junho e dezembro, nos anos de 2005 a 20l0.

Gráfico 1: Percentual de candidatos inscritos no sistema de reserva de vagas, no total de inscritos por
ano - UNIMONTES (proc. seletivos de junho e dezembro, 2005-20l0)
Fonte: Barros e Cardoso (20l1).

Nos anos analisados, a menor participação dos candidatos do sistema de reserva


de vagas, no total de candidatos inscritos, foi verificada para o primeiro ano de
vigência do sistema (cerca de ¼ dos candidatos); e a maior participação, no ano
seguinte (cerca de 38%). Entre 2007 e 2010 houve uma queda nos percentuais,
em relação a 2006; mas sem grandes variações entre os anos.

No presente estudo, a ênfase é sobre os alunos dos cursos do C.C.H, que


ingressaram na UNIMONTES pelo processo seletivo 1/2005. A metodologia
utilizada é apresentada a seguir.

3 Metodologia: Análise de Sobrevivência

Apesar da importância da análise de sobrevivência em pesquisas acerca do ciclo


de vida dos indivíduos, esta técnica ainda é pouco utilizada, devido escassez de
bases de dados longitudinais. A base de dados utilizada nesse estudo tem

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

informações retrospectivas sobre as coortes de alunos que ingressaram na


UNIMONTES pelo processo seletivo 1/2005. Esses alunos foram acompanhados
até 2009, ano previsto para conclusão do curso (duração de oito períodos).

Ao término de cada período letivo, é possível saber se o aluno foi aprovado, se


teve dependência, se pediu transferência, se abandonou os estudos, etc. O evento
considerado neste estudo é a dependência. Como ela pode ocorrer várias vezes
ao longo do curso, foi considerado apenas o tempo até a sua ocorrência, pela
primeira vez, entre o 1° e o 8° período.

Dois aspectos relacionados aos dados devem ser mencionados: i) ao fim do período
de acompanhamento, parte dos alunos não experimenta o evento de interesse e;
ii) no período de acompanhamento ocorre uma redução significativa da coorte.
Há diversos casos de transferência e evasão, entre outras situações. Ou seja, o
acompanhamento do aluno é interrompido.

Tanto na situação (i) quanto na situação (ii), os dados são censurados. A censura
corresponde à observação parcial da resposta. Mas, apesar de incompletas, as
observações censuradas dão informações sobre o tempo de sobrevivência dos
alunos. É a presença de dados censurados que requer o uso do método da análise
de sobrevivência.

A variável-resposta é o tempo (T) desde a matrícula do aluno no primeiro período


do curso - no ano de 2005 - até a ocorrência do evento básico, ou seja, até a
ocorrência da primeira dependência. Esta variável é especificada pela função de
sobrevivência. Antes de apresentar esta função, será especificada a função de
densidade acumulada:

(3)

Essa função dá a probabilidade de uma variável T ser menor ou igual a um


determinado valor t, sendo t qualquer número não negativo. A função de
sobrevivência é estreitamente relacionada à função de densidade acumulada, sendo
assim definida:

(4)

Se o objetivo do estudo é determinar a probabilidade de o aluno permanecer no


estado de aprovado (sem dependência) desde o momento em que é acompanhado
até o fim período analisado, a função de sobrevivência dá a probabilidade de
sobrevivência após o tempo t. Nesse estudo, as funções de sobrevivência são
estimadas utilizando-se o método Kaplan-Meier. Trata-se de um estimador não-

56
Implantação do sistema de cotas na UNIMONTES e análise ...
GONÇALVES, Maria Elizete; RODRIGUES, Luciene; IDE, Maria Helena de Souza

paramétrico, assim definido:

(5)

Sendo: t o tempo de ocorrência do evento; nj os alunos sob o risco de um determinado


evento (ainda não experimentaram o evento e nem foram censurados até o tempo
tj) e; rj o número de eventos ocorridos no tempo tj.

Após a estimação das funções de sobrevivência, foi utilizado o teste de Log-Rank


(também conhecido como o teste Mantel-Haenszel) para testar a hipótese nula de
que essas funções são iguais para os alunos das diferentes modalidades de ingresso
no curso.

4 Resultados e discussão

No C.C.H. os cursos analisados foram: Artes Música, Artes Visuais, Filosofia,


Geografia, História, Letras Inglês, Letras Português e Pedagogia. O total de
candidatos por vaga de acordo com a modalidade de ingresso, nesses cursos, é
apresentado na sequência.

TABELA 1
Relação candidatos/vaga nos cursos do CCH-UNIMONTES (Proc.seletivo 1/2005)

Fonte: Elaboração própria. Dados básicos: Barros e Cardoso (2011).

Analisando-se a relação candidatos/vagas nas modalidades Sistema Universal


(SUN), PAES e sistema de reserva de vagas (SRV), verifica-se que essa relação
é maior no curso de Geografia. Nas modalidades PAES e Sistema Universal, o
curso de Filosofia se destaca pelo menor número de candidatos por vaga. Os
cursos de Artes1 apresentaram a menor relação candidatos/vagas pelo sistema
de reserva de vagas.

1
O Curso de Artes Teatro não foi analisado devido à falta de alguns dados.

57
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

4.1 Análise de Sobrevivência

Uma hipótese a ser testada nesse estudo é se as funções de sobrevivência para o


evento de interesse são iguais para os alunos das diferentes modalidades de ingresso
na UNIMONTES. Por meio das curvas estimadas, procura-se verificar se os
alunos cotistas têm uma maior ou menor probabilidade de sobrevivência à
dependência, em relação aos alunos não cotistas.

Na sequência, são apresentados os resultados obtidos para os cursos do C.C.H.

4.1.1 Artes Música

A TAB. 2 revela que cerca de 53% dos acadêmicos do curso de Artes Música
tiveram pelo menos uma dependência entre o 1° e o 8° período; sendo que o maior
percentual de ocorrência do evento ocorreu entre os alunos cujo ingresso foi pelo
PAES (60%). O menor índice de ocorrência do evento foi observado entre os
egressos de escola pública, sendo que cerca de 1/3 desses alunos tiveram pelo
menos uma dependência durante o curso. Metade dos alunos que ingressaram
como afro-descendente carente teve dependência.

TABELA 2
Total e percentual de dependências, segundo a modalidade de ingresso, Curso de Artes
Música - UNIMONTES.

Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.


Nota: SUN: Sistema Universal; PAES: Programa de Avaliação Seriada para Acesso ao Ensino Superior;
EEP: Egresso de Escola Pública; ADC: Afro-descendente carente.

TABELA 3
Tempo médio e mediano de sobrevivência à primeira dependência, segundo
modalidades de ingresso, Curso de Artes Música - UNIMONTES.

Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

58
Implantação do sistema de cotas na UNIMONTES e análise ...
GONÇALVES, Maria Elizete; RODRIGUES, Luciene; IDE, Maria Helena de Souza

De acordo com a TAB. 3, para os alunos do Sistema Universal, o tempo mediano


de sobrevivência à dependência correspondeu a 7 períodos; enquanto que para os
afro-descendentes carentes esse tempo correspondeu a menos da metade daquele
valor (3 períodos).

(a)
(b)
(c)
(d)

(d) (c)
(a) (b)

Gráfico 1: Curvas de Sobrevivência à Primeira Dependência, Curso de Artes Música - UNIMONTES


(Processo Seletivo 01/2005).
Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

O GRÁF. 1 indica que os alunos que ingressaram pela modalidade egresso de


escola pública permaneceram mais tempo sem vivenciar a dependência. Contudo,
não existe diferença estatisticamente significativa entre as curvas estimadas para
as diferentes modalidades de ingresso (teste Log-Rank, p-valor = 0,8111).

4.1.2 Artes Visuais

No curso de Artes Visuais, foi baixo o percentual de acadêmicos com pelo menos
uma dependência ao longo do período de acompanhamento da coorte (23%); sendo
que ele foi maior entre os alunos cujo ingresso foi pelo PAES (33,33%).

TABELA 4
Total e percentual de dependências, segundo a modalidade de ingresso, Curso de Artes
Visuais - UNIMONTES.

Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

59
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

A tabela e o gráfico seguintes apresentam o tempo de ocorrência da dependência;


e as curvas com as probabilidades de sobrevivência ao evento no curso de Artes
Visuais, por modalidade de ingresso.

TABELA 5
Tempo médio e mediano de sobrevivência à primeira dependência, segundo
modalidades de ingresso, Curso de Artes Visuais - UNIMONTES.

Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

(a)

(b)
(c)

(d)

(c) (d)
(b) (a)

Gráfico 2: Curvas de Sobrevivência à Primeira Dependência, Curso de Artes Visuais - UNIMONTES


(Processo Seletivo 01/2005).
Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

O GRÁF. 2 mostra probabilidades de sobrevivência elevadas, para os alunos


matriculados no curso de Artes Visuais. O maior tempo médio de sobrevivência
ao evento foi verificado para os alunos que entraram no curso pelo Sistema
Universal (7,21 períodos). No curso, teve apenas um aluno cujo ingresso foi pela
modalidade afro-descendente carente, sendo que, com base no resultado obtido
por esse aluno, chegou-se a uma probabilidade de sobrevivência ao evento de
100%. As diferenças entre as curvas não foram estatisticamente significativas (p-
valor = 0,8100 para o teste Log-Rank).

60
Implantação do sistema de cotas na UNIMONTES e análise ...
GONÇALVES, Maria Elizete; RODRIGUES, Luciene; IDE, Maria Helena de Souza

4.1.3 Filosofia

A TAB. 6 mostra que foi expressivo o percentual de acadêmicos do curso de


Filosofia com pelo menos uma dependência durante a realização do curso (3/4 dos
alunos vivenciaram o evento). Um resultado interessante é que todos os alunos
cotistas (11 no total) vivenciaram o evento em algum período do curso. Houve
pouca diferença no percentual de ocorrência de dependências entre os alunos não
cotistas (ingressantes pelo Sistema Universal e PAES).

TABELA 6
Total e percentual de dependências, segundo a modalidade de ingresso, Curso de
Filosofia - UNIMONTES.

Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

O tempo e as curvas de sobrevivência ao evento são apresentados a seguir.

TABELA 7
Tempo médio e mediano de sobrevivência à primeira dependência, segundo
modalidades de ingresso, Curso de Filosofia - UNIMONTES.

Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

61
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

(a)
(b)

(d) (c)

(b) (a)
(d) (c)

Gráfico 3: Curvas de Sobrevivência à Primeira Dependência, Curso de Filosofia - UNIMONTES


(Processo Seletivo 01/2005).
Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

Para o curso de Filosofia, constata-se que as curvas de sobrevivência à primeira


dependência caem rapidamente ao longo dos períodos, sendo que a probabilidade
de sobrevivência foi maior para os acadêmicos ingressantes pelo Sistema Universal.
Para esses acadêmicos, o tempo mediano de sobrevivência ao evento foi igual a 4
períodos. O teste Log-Rank (p-valor = 0,4015) indica que não existem diferenças
estatisticamente significativas entre as curvas estimadas.

4.1.4 Geografia

Verifica-se que cerca da metade dos alunos do curso de Geografia teve dependência
ao longo do curso (51,35%). Entre os alunos que vivenciaram o evento, a maior
parte foi de cotistas, principalmente da categoria egresso de escola pública.

TABELA 8
Total e percentual de dependências, segundo a modalidade de ingresso, Curso de
Geografia - UNIMONTES.

Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

62
Implantação do sistema de cotas na UNIMONTES e análise ...
GONÇALVES, Maria Elizete; RODRIGUES, Luciene; IDE, Maria Helena de Souza

TABELA 9
Tempo médio e mediano de sobrevivência à primeira dependência, segundo
modalidades de ingresso, Curso de Geografia - UNIMONTES.

Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

De acordo com a TAB. 9 o menor tempo mediano de sobrevivência à dependência


ocorreu entre os alunos cotistas, igual a 3 períodos; sendo que para os alunos
ingressantes pelo Sistema Universal esse tempo correspondeu ao dobro (6
períodos).

(a)

(b)

(c)
(d)
(e)

(c) (b)
(e) (d)
(a)

Gráfico 4: Curvas de Sobrevivência à Primeira Dependência, Curso de Geografia - UNIMONTES


(Processo Seletivo 01/2005).
Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

No curso, a probabilidade de sobrevivência à primeira dependência entre o 1° e o


8° período foi maior para os alunos cujo ingresso foi pelo PAES (GRÁF. 4), enquanto
as menores probabilidades de sobrevivência foram constatadas para os alunos
cotistas. Contudo, do ponto de vista estatístico, as diferenças entre as curvas não
foram significativas (p-valor = 0,4968 para o teste Log-Rank).

63
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

4.1.5 História

De acordo com a TAB. 10, cerca de 66% dos alunos do curso de História tiveram
pelo menos uma dependência durante o curso. Uma análise segundo as modalidades
de ingresso mostra que o menor percentual de ocorrência do evento ocorreu entre
os alunos cujo ingresso foi pelo Sistema Universal (42,86%). Em contrapartida, o
maior percentual de ocorrência do evento foi observado entre os egressos de
escola pública (83,33%), sendo alto também o índice para os afro-descendentes
carentes (80%).

TABELA 10
Total e percentual de dependências, segundo a modalidade de ingresso, Curso de
História - UNIMONTES.

Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

O tempo e as curvas de sobrevivência à primeira dependência são apresentados


na sequência. O maior tempo mediano de sobrevivência ao evento foi observado
entre os alunos ingressantes pelo Sistema Universal; o menor tempo, para os
alunos do PAES.

TABELA 11
Tempo médio e mediano de sobrevivência à primeira dependência, segundo
modalidades de ingresso, Curso de História - UNIMONTES.

Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

64
Implantação do sistema de cotas na UNIMONTES e análise ...
GONÇALVES, Maria Elizete; RODRIGUES, Luciene; IDE, Maria Helena de Souza

(a)
(b)
(c)
(d)

(a) (b)
(d) (c)

Gráfico 5: Curvas de Sobrevivência à Primeira Dependência, Curso de História - UNIMONTES


(Processo Seletivo 01/2005).
Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

O teste Log-Rank indica que não existem diferenças significativas entre as curvas
de sobrevivência estimadas (p-valor = 0,4416).

4.1.6 Letras Inglês

A TAB. 12 mostra que aproximadamente 44% dos alunos do curso de Letras


Inglês tiveram pelo menos uma dependência durante o curso. Metade dos alunos
que ingressaram na Universidade pelas modalidades PAES e afro-descendente
carente tiveram dependência em alguma disciplina ofertada. O menor percentual
de ocorrência do evento foi verificado entre os alunos cujo ingresso foi pelo Sistema
Universal (cerca de 38%).

TABELA 12
Total e percentual de dependências, segundo a modalidade de ingresso, Curso de Letras
Inglês - UNIMONTES.

Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

O tempo e as curvas de sobrevivência ao evento, no Curso, são apresentadas a


seguir.

65
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

TABELA 13
Tempo médio e mediano de sobrevivência à primeira dependência, segundo
modalidades de ingresso, Curso de Letras Inglês Vespertino - UNIMONTES.

Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

(a)
(b)

(c)

(d)

(b) (a)
(d) (c)

Gráfico 6: Curvas de Sobrevivência à Primeira Dependência, Curso de Letras Inglês Vespertino -


UNIMONTES (Processo Seletivo 01/2005).
Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

Verifica-se que não houve diferença no tempo mediano de ocorrência do evento,


para as modalidades analisadas. Da mesma forma, não houve diferença
estatisticamente significativa entre as curvas estimadas, de acordo com o Log-
Rank (p-valor = 0,9296).

4.1.7 Letras Português

Segundo a TAB. 14 foi baixo o percentual de alunos do curso de Letras Português


com pelo menos uma dependência durante o curso. Pode ser observado que o
maior percentual de ocorrência do evento foi entre os afro-descendentes carentes.
Nenhum aluno cujo ingresso foi pela modalidade egresso de escola pública
vivenciou o evento.

66
Implantação do sistema de cotas na UNIMONTES e análise ...
GONÇALVES, Maria Elizete; RODRIGUES, Luciene; IDE, Maria Helena de Souza

TABELA 14
Total e percentual de dependências, segundo a modalidade de ingresso, Curso de Letras
Português - UNIMONTES.

Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

O tempo médio de sobrevivência ao evento foi maior para os alunos não cotistas
(7,l0 e 7,36 períodos para as categorias Sistema Universal e PAES,
respectivamente); e menor para os acadêmicos afro-descendentes carentes (5,50),
conforme TAB. 15.

TABELA 15
Tempo médio e mediano de sobrevivência à primeira dependência, segundo
modalidades de ingresso, Curso de Letras Português Noturno - UNIMONTES.

Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.


(a) (b)
(c)
(d)

(e)

(d) (c)
(a) (e)
(b)

Gráfico 7: Curvas de Sobrevivência à Primeira Dependência, Curso de Letras Português -


UNIMONTES (Processo Seletivo 01/2005).
Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

67
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

As curvas de sobrevivência estimadas podem ser acompanhadas no GRÁF. 7. À


exceção da modalidade afro-descendente carente, as probabilidades de
sobrevivência foram elevadas para os alunos do curso. Segundo o teste Log-Rank
(p-valor = 0,2448), não existem diferenças significativas entre elas.

4.1.8 Pedagogia

Pode ser verificado pela TAB. 16 que foram registrados somente dois alunos com
dependência ao longo do curso de Pedagogia; um ingressante pelo PAES e o
outro como afro-descendente carente.

TABELA 16
Total e percentual de dependências, segundo a modalidade de ingresso,
Curso de Pedagogia - UNIMONTES.

Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

Na sequencia, são apresentados o tempo de sobrevivência à dependência e


respectivas curvas estimadas, segundo as modalidades de ingresso no Curso.

TABELA 17
Tempo médio e mediano de sobrevivência à primeira dependência, segundo
modalidades de ingresso, Curso de Pedagogia Vespertino - UNIMONTES.

Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

68
Implantação do sistema de cotas na UNIMONTES e análise ...
GONÇALVES, Maria Elizete; RODRIGUES, Luciene; IDE, Maria Helena de Souza

(a)
(b)
(c)
(d)

(a) (c)
(b) (d)

Gráfico 8: Curvas de Sobrevivência à Primeira Dependência, Curso de Pedagogia Vespertino -


UNIMONTES (Processo Seletivo 01/2005).
Fonte: Gonçalves et al. Pesquisa FAPEMIG SHA APQ-01402-09.

Observam-se tempos de sobrevivência ao evento elevados, superiores a 7 períodos.


Observam-se ainda probabilidades de sobrevivência elevadas, para os alunos de
todas as modalidades de ingresso. Não existem diferenças estatisticamente
significativas entre as curvas estimadas, segundo o teste Log-Rank (p-valor =
0,4839).

Considerações finais

A literatura tem apontado as dificuldades relacionadas à entrada e permanência


dos estudantes egressos da escola pública carentes, afro-descendentes carentes
e portadores de necessidades especiais nas instituições de nível superior. Estudos
(a exemplo de BARROS e CARDOSO, 20ll) tem revelado que em muitos cursos
esses estudantes tem tido um desempenho acadêmico inferior em relação aos
seus pares. Como as desigualdades de oportunidades no país foram construídas
antes do ingresso nas universidades, por várias gerações, a desigualdade de
resultado de alguma forma guarda relação com a trajetória anterior de exclusão
social. O simples estabelecimento de cotas pode ser uma forma de contribuir para
a redução dessas desigualdades estruturais de acesso ao ensino superior, mas isso
não é conseguido no curto prazo. Essa discriminação positiva poderá resultar, no
futuro, em ampliação das oportunidades de grupos historicamente desfavorecidos
na sociedade brasileira.

Nesse estudo, constatou-se que o maior percentual de dependências foi verificado


entre os alunos do curso de Filosofia (75%); e o menor percentual, entre os alunos
do curso de Pedagogia (5,88%). Contudo, a análise segundo as categorias de

69
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

ingresso na Universidade não foi conclusiva: em alguns cursos, a dependência foi


mais expressiva entre os alunos não cotistas (do sistema universal e PAES); e em
outros, entre os cotistas (afro-descendentes carentes e egressos de escola pública).
Esse resultado pode estar indicando que não necessariamente os ingressantes
pelo sistema de reserva de vagas tenham pior desempenho acadêmico em relação
aos ingressantes das demais modalidades de ingresso, como demonstrado em
alguns estudos e como julga o censo comum.

Ao aplicar a Análise de Sobrevivência, pretendeu-se verificar: i) se há igualdade


das funções de sobrevivência à primeira dependência entre o 1° e 8° período dos
cursos de graduação analisados e; ii) se alunos ingressantes pelo sistema de cotas
tem um tempo de sobrevivência maior ou menor; bem como uma maior ou menor
probabilidade de sobrevivência ao evento, em relação aos alunos não cotistas.
Com relação à primeira questão, não foram constatadas diferenças estatisticamente
significativas entre as funções estimadas, em nenhum dos cursos analisados. Com
relação à segunda questão, para alguns cursos, os alunos cotistas tiveram maior
tempo e maior probabilidade de sobrevivência à dependência; para outros, maior
tempo e maior probabilidade de sobrevivência ao evento foram observados para
os alunos não cotistas. Como o perfil do aluno pode ser diferente, conforme o
curso, tem-se os diferenciais constatados. O perfil de um aluno cotista do curso de
Historia talvez seja diferente do perfil de um aluno cotista do curso de Filosofia,
por exemplo. Esse fato pode explicar os resultados obtidos nesse estudo.

Entre as diversas universidades públicas do País, a UNIMONTES tem se destacado


pela qualidade do ensino nos seus cursos de graduação. Podemos inferir, portanto,
que a relevância dos resultados deste estudo longitudinal não fica restrita apenas
à Universidade e à comunidade local, embora tais resultados não estejam dissociados
das especificidades e particularidades do corpo discente da Instituição.

Referências

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popular e o difícil caminho para a Universidade. In: BARBOSA, J. L. at al. (org.).
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BARROS, C. e CARDOSO, J.M.A. Uma análise socioeconômica e de


desempenho acadêmico dos selecionados na Unimontes nos Processos Seletivos
1/2005, nas categorias sistema universal, sistema reserva de vagas e sistema seriado
- PAES-, por cursos concluídos (Relatório Final). Montes Claros, abril/2011.

BRASIL (2004). Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade


Racial. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-

70
Implantação do sistema de cotas na UNIMONTES e análise ...
GONÇALVES, Maria Elizete; RODRIGUES, Luciene; IDE, Maria Helena de Souza

Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília:


MEC/SEPPIR.

BRASIL (1997). Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares


Nacionais. Brasília: MEC/SEF, v.1 e 8.

DAMATTA, R. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema


brasileiro. Rio de Janeiro, Rocco, 1997.

GOMES, J. B. (2003). O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In:


SANTOS; R. E.; LOBATO, F. (org.). Ações afirmativas: políticas públicas contra
desigualdades raciais. Rio de janeiro: DP&A.

GONÇALVES, M.E; RODRIGUES, L. IDE, M.H.S. Trajetória acadêmica e


laboral dos alunos dos cursos de graduação da Universidade Estadual de Montes
Claros, com base no ingresso pelo Sistema Universal e pelo sistema de cotas.
Relatório de Pesquisa (Processo SHA APQ-01402-09). Abril/2011.

GURNIERI, F. V. e MELO-SILVA, L. L. (2007). Ações afirmativas na educação


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negra no Brasil: um ponto de vista em defesa das cotas. In: GOMES, N. L. e
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OLIVEN, A.C. Ações afirmativas nas universidades brasileiras: uma questão


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SANTOS, N. B. (2003). As políticas públicas e a questão racial. In: Racismos


contemporâneos. (Coleção Valores e Atitudes. Série Valores, n°1. Não
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SUIAMA, S.G. Notas sobre as políticas de ações afirmativas no Brasil. Documento


apresentado no seminário “Advancing Equity: Economic Inclusion & Building
Opportunities for the Majority”, promovido pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento, realizado no dia 06 de dezembro de 2006, em Washington D.C.

71
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

72
A IMPRENSA PERIÓDICA E A EDUCAÇÃO PARA A
VIDA MODERNA EM MONTES CLAROS/MG:
1889-1926

Luciano Pereira da Silva*


Brenya Paula Miranda Santos* *

Resumo: As primeiras décadas da República configuram-se como um período


assinalado pelo desejo de modernização da sociedade. Para isso, diversas
estratégias educacionais, formais ou não, foram adotadas. Entre tais estratégias,
este estudo destaca a imprensa periódica da mais importante cidade do norte de
Minas Gerais, Montes Claros. A partir da análise de quatro periódicos do município,
foi possível problematizar o papel da imprensa na educação da população e analisar
as peculiaridades da imprensa montesclarense.

Palavras-chaves: modernidade, imprensa, Montes Claros.

The periodical press and the education for the modern life in the city of
Montes Claros, State of Minas Gerais (MG), Brazil (1889-1926)

Abstract: The first decades of the Brazilian Republic were marked by a desire to
modernize society. In order to achieve this goal, various formal and informal
educational strategies were adopted. The present study highlights the periodical
press from the city of Montes Claros (considered the most important city in the
north of the State of Minas Gerais, Brazil) as one of the strategies used for the
purpose of modernization. Based on the analysis of four of the journals from this
particular city, the role of the media in population education is discussed, and the
peculiarities of the press analyzed.

Keywords: modernity, media, Montes Claros.


*
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, docente do Departamento de Educação
Física e do Desporto da Universidade Estadual de Montes Claros.
**
Acadêmica do curso de Educação Física da Universidade Estadual de Montes Claros. Bolsista de Iniciação
Científica PIBIC-UNIMONTES/FAPEMIG

73
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Introdução

Na transição do século XIX para o século XX, diversas transformações sociais


impactam a vida nas cidades. Mesmo em um local distante dos grandes centros
urbanos da época, como Montes Claros, os ventos da modernidade anunciam que
a sociedade está em mutação e que os preceitos da vida moderna deveriam ser
adotados por todos. Para isso, era urgente educar a população. Se a educação via
escola ainda era pouco disseminada, havia outros mecanismos para afinar os hábitos
ao que era visto como moderno e adequado.

Este trabalho tem como objeto de estudo o ideal de modernidade da elite dominante
da mais importante cidade do norte de Minas Gerais, Montes Claros, entre os
anos de 1889-19261 . Adota como pressuposto central a existência de discursos de
modernidade na cidade que foram propagados de diversas formas e, assumindo
um caráter educativo, influenciaram as transformações locais; estes discursos,
oriundos sobretudo das elites, foram partilhados, mesmo que com resistências, por
parcela da população. Dentre as estratégias para educar a população, este trabalho
foca a imprensa periódica impressa e discute o seu papel na disseminação dos
princípios de uma vida moderna.

Os jornais impressos do período permitem investigar as concepções de modernidade


da elite montesclarense visto que integram os instrumentos adotados por esse
grupo para difundir ideais e formar hábitos. Segundo Pallares-Burke (1998, p.
145), “dentre as chamadas ‘obras menores’, o jornalismo, juntamente com o
romance é, a partir do século XVIII, uma das mais importantes fontes para a
história da educação”.

O início da história da imprensa no Brasil relaciona-se com a vinda da família Real


para a então colônia e a permissão de sua instalação através de Carta Régia de D.
João VI. Por iniciativa da Coroa portuguesa, teve princípio ainda em 1808 a
publicação da Gazeta do Rio de Janeiro que, apesar de ser órgão oficial do governo
português, abriu fronteiras para outras publicações, alinhadas ou não aos interesses
do Império português. Nesse processo, “é interessante sublinhar uma especificidade
nem sempre destacada: o surgimento da imprensa no Brasil acompanha e vincula-
se a transformações nos espaços públicos, à modernização política e cultural de
instituições, ao processo de independência e de construção do estado nacional”
(MOREL; BARROS, 2003, p. 7).

1
O recorte temporal justifica-se por dois marcos importantes, um nacional e outro local. A Proclamação
da República em 1889 incrementa o discurso no Brasil da necessidade de modernização. Já a chegada da
ferrovia a Montes Claros em 1926 marca o início de intensas transformações no município.

74
A imprensa periódica e a educação para a vida moderna em Montes Claros/MG: 1889-1926
SILVA, Luciano Pereira da; SANTOS, Brenya Paula Miranda

Todos os processos apontados anteriormente contribuem para a transformação


do espaço público e a formação do que é denominado como opinião pública. A
circulação de jornais, apesar de todos os limites existentes para a época, como a
falta de estrutura das tipografias e o reduzido número de cidadãos alfabetizados,
coopera para que haja o debate público de questões que antes se restringiam ao
julgamento privado. Morel e Barros (2003) afirmam que, apesar do Brasil já receber
publicações vindas da Europa pelo menos desde o século XVIII, o que se lia era
prioritariamente alinhado aos preceitos Absolutistas. Para os autores, foi na criação
de um espaço público de críticas com opiniões políticas destacadas do governo
que se instaurou a opinião pública.

O reconhecimento da imprensa periódica como um instrumento que ajudou a formar


e atuou em espaço público não significa entender que diversos grupos atuavam da
mesma forma nesse espaço. Desde o início do século XIX percebe-se no Brasil o
estabelecimento de diferentes relações entre os grupos sociais e a imprensa. De
uma forma idealizada, se as camadas privilegiadas da população percebiam a
imprensa como um meio de fruição de obras literárias ou de propaganda política,
por exemplo, os contingentes desfavorecidos da população recebiam dela instrução
para adequarem-se ao que se esperava de um cidadão. Porém, na prática, o
desenrolar da “missão” da imprensa não seguia com rigidez um planejamento
prévio e os diferentes grupos sociais poderiam, em alguns aspectos, apropriarem-
se da imprensa de forma similar.

De acordo com Periotto (2004, p. 62), apesar da imprensa brasileira do início do


século XIX, direcionar sua produção sobretudo para a ação político-partidária, ela
também tinha outras funções. “Espalhar luzes, vulgarizar a instrução, disseminar
ideias úteis, etc, compuseram o rosário de intenções que vicejavam ao redor das
prensas finalmente libertas do jugo da Metrópole”.

As fontes históricas acessadas nesta investigação estão disponíveis na Divisão de


Pesquisa e Documentação Regional - DPDOR da Universidade Estadual de Montes
Claros. Para o período em estudo foram encontrados quatro títulos: Jornal Correio
do Norte, Jornal A Verdade, Jornal Montes Claros e Jornal Gazeta do Norte. Além
destes, são utilizadas como fonte de apoio obras de memorialistas da região. A
partir dos dados levantados nas fontes, é possível problematizar o papel da imprensa
periódica na sociedade montesclarense do início da República.

O papel da imprensa periódica na sociedade

Ao adotar a imprensa periódica de Montes Claros como fonte de pesquisa lida-se


com a hipótese de que os jornais locais foram instrumentos privilegiados para
educar a população para a nova realidade social e refletiram com riqueza de

75
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

detalhes as nuances do processo de modernização do período. Para tratar da


dinâmica assumida pela imprensa no local em estudo, além da análise do que era
publicado nos jornais, problematiza-se os atores que estiveram em sua direção,
bacharéis que propagavam os ideias de uma vida moderna, mas ao mesmo tempo
perpetuavam os interesses sociais de uma elite conservadora.

O caráter educativo da imprensa possuiu diversas facetas. Através dos periódicos


foram propagados preceitos higienistas, realizaram-se campanhas educativas para
fins específicos (por exemplo, a importância dos pais matricularem seus filhos em
instituições de ensino) e procurou-se difundir um estilo de vida próprio daquele
que deseja ser civilizado. Para Pallares-Burke (1998, p. 147), assim como na
Europa, o jornalismo latino-americano do final do século XIX e início do XX assumiu
seu veio mais cultural do que noticioso, com o fim de aprimorar a sociedade e
educar o público. Para a autora, “recém-emancipada da ordem política absolutista,
a imprensa passa a ser constantemente referida como o meio mais eficiente e
poderoso de influenciar os costumes e a moral pública, discutindo questões sociais
e políticas”.

Se na Europa era necessária a ação da imprensa para irradiar os preceitos do


Iluminismo e formatar o homem moderno, a partir do início do século XIX tal
missão foi imbuída de maior urgência em territórios como o Brasil, visto como
mais carente de instrução e de cultura. Sobre a atitude educativa da imprensa,
informa Periotto (2004, p. 63):

A propagação dos conhecimentos úteis naquele começo de século tornara-se


questão cara aos defensores do progresso. Na tradição do movimento das
luzes que irradiara pela Europa, os brasileiros que lutavam pela inclusão do
país na “rota da civilização” viam na imprensa o caminho mais fecundo para
a instrução do povo sobre os benefícios resultantes do desenvolvimento da
ciência e daquelas matérias que viessem enriquecer o espírito dos homens.
Era, na verdade, a luta contra a ignorância que comprometia qualquer tentativa
de elevar as condições de vida dos brasileiros nos moldes em que se realizavam
na Europa.

A construção de uma nova sociedade requeria a desvinculação com estigmas do


passado, costumes que poderiam ser superados pela educação da população. Os
novos valores que ganharam força na sociedade, imperativos da modernidade, só
poderiam ser assimilados, segundo Vieira (2007), com instrumentos pedagógicos
eficientes. “Nesse quadro, os impressos de forma geral e os jornais de maneira
particular representaram meios privilegiados para a ação do sacerdócio
modernizador” (VIEIRA, 2007, p. 19).

Notadamente, procura-se estabelecer os limites da ação da imprensa através da


inequívoca constatação da existência de um público letrado restrito no Brasil durante

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A imprensa periódica e a educação para a vida moderna em Montes Claros/MG: 1889-1926
SILVA, Luciano Pereira da; SANTOS, Brenya Paula Miranda

todo o século XIX e parte do século XX. Entretanto, se tal fato limitou a ação da
imprensa foi no sentido de que ela poderia ter sido ainda mais influente do que foi
se atuasse em uma sociedade em que a escolarização fosse disseminada a todos
os setores sociais, pois a relação de um periódico com a população não se restringe
à sua leitura.

Segundo Morel e Barros (2003, p. 103), a noção de que a imprensa era elitista
pode ser relativizada na medida em que não parece possível compreende-la isolada
da sociedade. Ela “influenciava e era influenciada por vozes, falas e gestos não-
escritos, em via de mão dupla, numa complexa teia de circulação, recepção e
retransmissão de conteúdos que ultrapassavam o meio impresso”.

Mesmo que os proprietários e redatores dos periódicos pertencessem a um seleto


grupo social, o que eles produziam não ficava circunscrito a uma elite letrada. Isso
porque o próprio caráter educativo da imprensa deveria propiciar que ela
ultrapassasse as fronteiras que separavam as elites da população em geral, vista
como o grupo que mais necessitava de orientação. Além disso, no limite, pode-se
afirmar que a imprensa relacionava-se com a população externa ao círculo de
pessoas alfabetizadas na medida em que essas próprias pessoas (proprietários e
redatores dos periódicos, por exemplo) estavam em contato diário com a população.

A relação que a população em geral estabelecia com a imprensa perpassava pela


inserção dos indivíduos, alfabetizados ou analfabetos, na cultura escrita. O mundo
das letras, os livros e especialmente os jornais, era uma realidade no início do
século XX e transformava a sociedade brasileira. Entretanto, ao invés da falar da
existência de uma “cultura escrita”, para Galvão (2007), por tratar de algo não
homogêneo, é mais adequado falar de “culturas do escrito”, conceito que, além da
aquisição da habilidade de ler e escrever, deve ser estendido a todo evento ou
prática que tenha como mediação a palavra escrita. Assim, relaciona-se com um
jornal aquele que, mesmo sem saber ler, discute sobre uma notícia que lhe contaram
ter sido publicada.

Nesse processo, é notória a não passividade dos sujeitos nas “culturas do escrito’,
ou seja, mesmo que o que está escrito busque direcionar o receptor (leitor ou
ouvinte) para determinadas direções, as mediações que ocorrem entre o sujeito e
o escrito são diversas. Devido a isso, para Galvão (2007, p. 39), “o uso de verbos
tais como ‘apropriar-se da’, ‘relacionar-se com’ em lugar de ‘inserir-se na’, ‘entrar
na’ ou ‘ter acesso à(s)’ cultura(s) escrita(s) está relacionado com a tentativa de
explicitar o papel ativo dos sujeitos e dos grupos sociais nesse processo”.

Em Montes Claros, diversos hábitos da população relatados por memorialistas


evidenciam a participação das pessoas nas “culturas do escrito”. Mesmo que a

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

prática da leitura individual ocorresse de forma limitada as situações de socialização


permitiam a participação em práticas culturais que estavam relacionados ao que
era escrito. Graça e Vianna destacam, por exemplo, pontos de encontro tradicionais
do montesclarense no início do século XX:

Enquanto isso, as famílias visitavam suas comadres e, assentadas comodamente


em cadeiras de palhinha, habilmente colocadas em círculo, na porta da rua,
entre as pedras da calçada [...]. Enquanto as senhoras se distraíam por este
lado, os senhores também procuravam fazer o mesmo, reunindo-se, todas as
noites, em vários pontos da cidade [...]. A farmácia de “seu” Mário Veloso era
um destes frequentados pontos [...]. Mais adiante, na praça Doutor Carlos,
esquina com a “rua dos Marimbondos”, [...] ficava o “Bar Aliança”, de “seu”
Helvécio [...]. Comentavam política, pontos positivos e negativos do governo,
da política local, perseguições partidárias e dos “coronéis”, intrigas da
oposição, e também a parte social da nossa cidade era lembrada: casamentos
desajustados, namoricos indiscretos (GRAÇA, 2007, p. 96-98).
1920... Lá se vai quase meio século! Amáveis reuniões de porta de rua, com
cadeiras na calçada, havia, então, no Montes Claros do meu tempo. As rodas
começavam a formar-se ao turvar do dia, e os seus frequentadores iam
aparecendo de um em um. Após os cumprimentos de praxe, o recém-chegado
puxava, êle próprio, uma cadeira e assentava-se, sem cerimônia, com a satisfação
e a certeza de ser sempre bem recebido. A conversa prolongava-se noite adentro.
Falava-se de tudo e de nada, apenas conversas simples e vadias para
empurrarem o tempo, difícil de correr. As senhoras comentavam, umas com as
outras, passagens comoventes dos “folhetins” publicados nos rodapés dos
jornais, O Conde de Monte Cristo, A Toutinegra do Moinho, A Filha do Diretor
do Circo, Os Miserávis, Elzira – A Morta Virgem..., sendo também repisadas as
notícias do dia [...] (VIANNA, N., 2007, p. 19).

Além do encontro costumeiro no ambiente doméstico, os estabelecimentos


comerciais (como as farmácias e vendas) eram palco de reuniões. Dessa forma,
o que era publicado nos periódicos locais, as notícias obtidas de outras localidades,
e informações sobre leituras realizadas por indivíduos alfabetizados poderiam ser
difundidas e apropriadas por diversas pessoas. Tal costume também estava presente
na casa comercial da família “dos Anjos”, conforme relato do memorialista:

Ao anoitecer, acabado o brinquedo no Largo ou volvida a família da Chácara, uma


alternativa se me oferecia: intrometer-me no jogo de prendas da sala de visitas,
onde as irmãs se reuniam com as amigas, ou ficar a ouvir a conversa da gente
grande, no círculo da Loja [...]. A roda formava-se junto às portas que abriam para
o Largo de Cima, em face do Mercado Municipal, situado na outra extremidade.
Como a linha de cadeiras se dispusesse em forma de ferradura, podia o número de
frequentadores crescer à vontade, sem que se distanciassem uma da outra as
pontas do arco, tacitamente reservadas aos pró-homens de Santana e ao dono da
casa. Assim, os principais interlocutores se defrontavam, consoante preceituava
a hierarquia e coninha à conversação (ANJOS, 2007, p. 5).

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A imprensa periódica e a educação para a vida moderna em Montes Claros/MG: 1889-1926
SILVA, Luciano Pereira da; SANTOS, Brenya Paula Miranda

Os trechos transcritos anteriormente explicitam hábitos da população que estendiam


a influência dos jornais a um público muito maior do que o grupo alfabetizado que lia
as folhas periódicas que circulavam em Montes Claros na época estudada. Mesmo
a população pobre que, a princípio, não integrava as rodas de conversa da elite local,
certamente também era atingida, por exemplo, pela presença de empregados das
casas comerciais e das residências que ouviam as conversas e por outras práticas
sociais menos hierarquizadas, como a frequência a cultos religiosos.

As palavras escritas e depois as impressas foram difundidas para muitos


semialfabetizados e analfabetos através de processos orais; a informação, as
notícias, a literatura e a religi‹o difundiram-se muito mais amplamente do que
qualquer meio puramente alfabético poderia ter permitido (GRAFF, 1990, p.43).

No contexto social de inserção da população nas “culturas do escrito”, os jornais


publicados nas primeiras décadas do período republicano tornam-se importantes
instrumentos de educação da população, que se relaciona com a imprensa periódica
de forma variada. Para Pallares-Burke (1998), o próprio fato da sobrevivência de
um jornal por muito tempo, revela sua cumplicidade com o público, provavelmente
maior do que uma reduzida minoria letrada, sobretudo em uma época em que os
periódicos eram efêmeros.

Os jornais de Montes Claros do início da República

Para a cidade de Montes Claros, dos 28 periódicos que circularam entre os anos
de 1889 e 1926, conforme informações de memorialistas, metade não chegou ao
número dez e somente um quarto chegou ao número cinqüenta. Entretanto,
publicações locais como o jornal Correio do Norte que durou cerca de sete anos
(343 números) ou como o jornal A Verdade que durou cerca de dez anos (430
números) revelam que a influência desses veículos ultrapassava um grupo pequeno
de leitores.

As chamadas elites culturais, isto é, as letradas e com acesso aos instrumentos


da divulgação da imprensa, se relacionavam com diferentes setores da
população, socialmente abaixo ou acima delas. Aceitar que havia um fosso
irrecuperável e intransponível entre tais elites intelectuais e o restante da
sociedade é, de algum modo, reproduzir criticamente a própria condição que
aquelas a si mesmas atribuíam, de qualitativamente superiores e apartadas da
“massa inculta” ou da “aristocracia ignorante”, numa forma de distinção típica
dos herdeiros da Ilustração. Distinções havia, decerto, mas isso não elimina as
interações sociais que se estabeleciam, formalmente ou não (MOREL; BARROS,
2003, p. 104).

A percepção de que os periódicos também representavam um espaço de conflito


entre classes sociais diversas não impede que eles sejam vistos como propagadores

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v. 17, n.1, n.2/2012

de ideais modernizadores, mas determina o entendimento deste fato como um


processo que se deu em várias direções, a partir do contato e da ressignificação
de diferentes práticas culturais. Como o processo de modernização nas áreas
distantes da Europa central assumiu múltiplas facetas e foi marcado também pela
manutenção e valorização de práticas tradicionais (ou costumeiras), características
defendidas por Marshall Berman (1986) e José Murilo de Carvalho (1998), os
jornais publicados no período estudado expressam tanto o desejo como a resistência
ao que era considerado a priore um “modo de vida moderno”.

A manutenção de muitas características típicas da zona rural mesmo passado


muitas décadas da fundação da cidade de Montes Claros e seu distanciamento
geográfico de grandes cidades são peculiaridades da região norte de Minas Gerais.
Essas características podem significar que o desenvolvimento e a civilidade
desejados por parte da elite para esta região nas primeiras décadas do período
republicano diferem-se em muito do que acontecia em outros centros tidos como
mais importantes.

Montes Claros distancia-se 237 quilômetros de Diamantina, 421 quilômetros de


Belo Horizonte e 506 quilômetros de Ouro Preto, cidades que se destacavam em
Minas Gerais do início da República nos aspectos comerciais e políticos. Tais
distâncias são consideráveis, principalmente em uma época em que o transporte
ocorria, sobretudo, no lombo de animais. Entretanto, é preciso lembrar que os
ideais dos grandes centros chegavam à região de diversos modos, inclusive através
da circulação de pessoas oriundas ou que viveram parte de suas vidas em grandes
centros urbanos.

Assim, o relativo isolamento geográfico da região não era seguido de um isolamento


cultural e muitos hábitos tidos como “modernos” estavam presentes na cidade na
transição do século XIX para o XX. Para Brito (2006, p.106), “a elite da cidade
vivia atenta a todas as notícias vindas da capital do Brasil, ou melhor, a imagem da
‘Belle Èpoque’ que a cidade do Rio de Janeiro vendia para todos os cantos do
país”.

Lessa (1993, p.172) defende que já nas últimas décadas do século XIX diversos
elementos representavam o progresso da cidade. Para a autora, a moderna fábrica
de tecidos Cedro Madureira, o jornal A Gazeta do Norte e o cinema, entre outros,
são exemplos presentes em Montes Claros de “artefatos da modernidade
cosmopolita emergente no mundo”.

O QUADRO a seguir aponta os periódicos que circularam na cidade entre os


anos de 1889 e 1926. Totalizando o número de 28 títulos, eles revelam a ampla
circulação de idéias no município.

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A imprensa periódica e a educação para a vida moderna em Montes Claros/MG: 1889-1926
SILVA, Luciano Pereira da; SANTOS, Brenya Paula Miranda

QUADRO 1
Jornais e revistas publicados em Montes Claros entre 1890 e 1926

Fonte: VIANNA, N., 2007.

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
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Os 28 títulos apresentados no QUADRO puderam ser identificados em obras de


memorialistas da região. Entretanto, boa parte desses periódicos não são mais
encontrados em arquivos públicos ou coleções particulares. Nesta investigação,
foram pesquisados os quatro títulos que tiveram maior circulação no período em
estudo e os únicos existentes e disponibilizados para consulta no arquivo histórico
da Divisão de Pesquisa e Documentação Regional - DPDOR da Universidade
Estadual de Montes Claros: Correio do Norte, primeiro jornal da cidade, A Verdade,
publicação que durante mais de uma década divulgou o trabalho dos padres
premonstatenses, Montes Claros (fundado em 1916) e Gazeta do Norte. Estes
quatro títulos destacam-se também pelo fato de terem possuído tipografia própria,
o que provocou a influência direta destes na produção de outros jornais e revistas
que eram impressos em suas sedes.

Correio do Norte

Primeiro jornal publicado em Montes Claros, o Correio do Norte foi inaugurado


em 24 de fevereiro de 1884. Teve quase sete anos de atividade sendo extinto em
1891. Órgão político do Partido Conservador, o periódico circulava aos domingos
e possuía tipografia própria. Era de propriedade de Antônio Augusto Velloso e
tinha como editor Antônio Pereira dos Anjos.

Antônio Augusto Velloso nasceu em Montes Claros, estudou Humanidades em


Diamantina e Direito em São Paulo onde também foi professor da Escola América
(futuro Instituto Mackenzie). Voltou para Montes Claros em 1880 e, após filiar-se
ao Partido Conservador, foi Deputado da Assembléia Provincial. Com o advento
da República, foi Senador, Juiz de Direito em Diamantina, Ouro Preto e Belo
Horizonte, onde foi promovido a Desembargador. Velloso é considerado o fundador
da imprensa no Norte de Minas Gerais, pois trouxe para a região material tipográfico
para fundar o primeiro jornal da região (VIANNA, N., 2007, p. 96-97, v. 2).

Antônio Pereira dos Anjos foi convidado por Velloso para ser redator do Correio
do Norte. Também foi comerciante, professor e fazendeiro2 . Entre 1923 e 1926,
esteve à frente do poder municipal, ocupando o cargo de Presidente da Câmara e
Agente Executivo (VIANNA, N., 2007, p. 157-158, v. 2).

2
O redator é também pai do memorialista Cyro dos Anjos.

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A imprensa periódica e a educação para a vida moderna em Montes Claros/MG: 1889-1926
SILVA, Luciano Pereira da; SANTOS, Brenya Paula Miranda

A Verdade

Dirigido e redigido pelos cônegos premonstratenses belgas3 , o periódico A Verdade


foi inaugurado no dia 1º. de maio de 1907. Possuía tipografia própria e funcionou
por mais de 10 anos. Durante esse período, promoveu diversas campanhas, com
destaque para a criação do Bispado na cidade. Apesar de oficialmente não possuir
orientação partidária foi redigido entre os anos de 1911 e 1912 pelo deputado
Camilo Philinto Prates, um dos principais representantes no norte de Minas Gerais
do Partido Liberal (durante o Império) e de uma ala do Partido Republicano Mineiro.

A adoção de um jornal como meio de evangelização fundamenta-se nos idéias do


movimento ultramontano. No início do século XX, a parte do clero católico tida
como a mais conservadora assumiu o controle da Cúria Romana, passando a
atuar no combate às teorias da modernidade, como o Iluminismo e o Liberalismo.

O fortalecimento do clero ultramontano permitiu-lhe assumir o poder interno à


Igreja e impor essa sua visão como válida para todo orbe católico. Ancorados
na ideia de ser a Igreja portadora da Verdade, desde sempre estabelecida e
claramente definida no Concílio de Trento, os ultramontanos julgaram que a
salvação da sociedade em geral e do homem individualmente dependia da
recristianização do mundo, tarefa, portanto, da exclusiva competência da Igreja
(grifo meu) (MANOEL, 1996, p. 42).

Oportunamente, um dos principais meios utilizados para propagar os conceitos


religiosos dos premonstratenses em Montes Claros foi o jornal A Verdade. Em
seu primeiro número, publicado em 1º. de maio de 1907, em texto da página inicial
intitulado de “O nosso ideal”, o redator afirma que o jornal é instrumento importante,
pois a vida moderna afasta muitos homens da “audição do Verbo de Deus”.

Neste texto, espécie de editorial do primeiro número do jornal, já percebemos


claramente os ideais do movimento ultramontano, ou seja, o combate àquilo que a
modernidade teria trazido de ruim para a sociedade, os chamados “erros modernos”.

A criação de um jornal para divulgação de preceitos tidos como adequados, insere-


se na estratégia da atuação sobre a imprensa periódica. Ocupar este espaço era
uma linha de ação política importante para a Igreja católica, pois no mundo moderno
a Cúria Romana via a imprensa livre como um dos maiores males da sociedade.

3
Os premonstratenses foram religiosos belgas que chegaram a Montes Claros a partir de 1903 mediante
convite do Papa Leão XIII feito à Ordem de São Norberto em 1894, em virtude da preocupação do
Papa com a penúria do clero no país. Chegaram primeiro a São Paulo e posteriormente a Mariana. Em
1902, abriu-se a perspectiva de um novo campo apostólico, o norte de Minas Gerais, que possuía cerca
de 40 paróquias sem pastores. Montes Claros foi a primeira cidade do norte de Minas Gerais a receber
os missionários.

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
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Ao tratar dos erros perigosos para a própria existência da sociedade humana, o


Papa Gregório XVI (1831-1846) apresenta como principal causa para tais erros a
“monstruosidade da liberdade de imprensa”.

[...] horroriza-nos o considerar que doutrinas monstruosas, que um sem-número


de erros nos assediam, disseminando-se por todas as partes, em inumeráveis
livros, folhetos e artigos, que, se insignificantes por sua extensão, não o são
certamente pela malícia que encerram, e deles provém a maldição que com
pesar vemos espalhar-se por toda a terra (GREGÓRIO XVI, 1947 citado por
MANOEL, 1996, p. 43).

Diante desse quadro, era urgente que missionários católicos assumissem a tarefa
de fazer bom uso da imprensa, pois os “inimigos da igreja” habilmente já utilizavam
de tais instrumentos. Nesta lógica, o jornal A Verdade atribuiu-se o adjetivo de “luz
da publicidade”.

É incontestável que em nossos dias a boa imprensa se torna uma verdadeira


necessidade, porque um sem numero de folhas más e impias engana o povo, e
em vez de lhe repartir o pão da doutrina, propina-lhe o veneno mortifero do
erro da falsidade e da mentira. Podeis edificar Egrejas, pregar missões, abrir
escolas, e fazer todas as mais obras de propaganda, si ao mesmo tempo não
souberdes manejar a grande arma da boa imprensa, arma com que deveis
defender o sagrado deposito de vossa fé, e ao mesmo tempo parar os golpes
da impiedade moderna – os vossos esforços serão vãos, e um dia cahirão por
terra sem menor resultado (A VERDADE, 23 de maio de 1908, ano I, n. 50, p. 1).

A “boa imprensa” desenvolvida pelos premonstratenses caracterizava-se como


instrumento de oposição ao Estado que se tornara laico. Segundo Penna (2008),
num primeiro momento, a Igreja Católica contrariou os detentores do poder político
no Brasil em reação ao carater laico que a nova ordem impôs ao país. Nesse
sentido, o jornal católico adotou a posição de oposição à ordem, “com as
características evidentemente inerentes aos que jamais se bateram frontalmente
contra as instituições, mas que num dado instante fizeram a vez de oposição ao
regime vigente” (PENNA, 2008, p. 6).

O dia santo entre nós


Acha-se em plena execução a reforma da legislação do ensino primário em
nosso Estado [...] que reorganisa satisfatoriamente este importante ramo do
serviço público. Devemos, porem, reclamar sobre um ponto [...]. Manda,
implicitamente, o novo regulamento da instrucção publica - que a escola
funccione nos dias santificados: é um golpe vibrado nos preceitos da santa
religião que professamos [...]. Guardar o domingo e os dias santos é questão
sobre que só o poder ecclesiástico pode legislar [...] Esses choques que
infelizmente vão apparecendo entre a Egreja e o Estado fazem desapparecer o
equilíbrio social, e d‘ahi tristes conseqüências (A VERDADE, 11 de maio de
1907, ano I, n. 2, p. 1).

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A imprensa periódica e a educação para a vida moderna em Montes Claros/MG: 1889-1926
SILVA, Luciano Pereira da; SANTOS, Brenya Paula Miranda

A manutenção do respeito aos dias “santos” era apenas um dos temas que
compuseram o prélio dos religiosos contra o Estado. Apesar de muitas batalhas
não terem sido vencidas pelos católicos (a neutralidade do ensino, por exemplo, foi
mantida), a ação dos religiosos católicos ocupou grande proeminência na educação
da população em tempos de atração e repulsa aos preceitos da modernização.

Montes Claros

O jornal Montes Claros tinha como redator e proprietário, durante quase toda a
sua existência, o farmacêutico Antônio Ferreira de Oliveira. Surgiu em 1916 e, em
seu programa, assumia o compromisso de “bem servir à causa do município que
traz o nome, tratando de sua administração, dos moldes em que devia basear-se,
dos requisitos de administrador, bem como de agitar as questões palpitantes da
lavoura, da pecuária, do comércio, das grandes e pequenas indústrias” (VIANNA,
N., 2007, p. 240, v. 1).

A existência desse periódico pode ser dividida em três fases: a primeira durou até
fevereiro de 1918; a segunda, sob a direção de uma sociedade, durou de julho de
1918 a dezembro de 1920; em sua terceira fase, de curta duração, passou a ser
órgão do Partido Republicano Mineiro – PRM. Durante toda a sua existência
serviu aos interesses do grupo político da cidade ligado aos médicos Honorato
Alves e João Alves.

Antônio Ferreira de Oliveira, fundador e primeiro redator do jornal, era diplomado


em Farmácia pela Escola de Ouro Preto. Chegou a Montes Claros em 1912 para
estabelecer uma farmácia e exerceu também o cargo de vereador (VIANNA,
N., 2007, p. 623-624, v. 2).

Gazeta do Norte

Impresso em tipografia própria, o Gazeta do Norte teve seu primeiro número


publicado em 06 de julho de 1918. Foi fundado pelo Dr. José Tomáz de Oliveira,
pernambucano que se mudou para Montes Claros no final do século XIX. Teve
atuação política destacada, chegando a ser atacado e destruído mais de uma vez
por opositores.

De acordo com Lessa (1993, p. 173), desde o início de sua publicação, este jornal
“já continha as modernas características dos jornais das grandes cidades: fotos,
charges, anúncios com desenhos, a novela com folhetim”.

José Tomás de Oliveira nasceu em Recife, onde diplomou-se pela Faculdade de


Direito. Residiu em Montes Claros, inicialmente, entre os anos de 1905 e 1908,

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quando foi Juiz Municipal e dirigiu o periódico “A Opinião do Norte”. Após residir
em outros municípios, voltou para Montes Claros em 1917 para assumir o cargo
de Delegado de Polícia. Para dedicar-se à advocacia e ao jornalismo pediu
exoneração do cargo (VIANNA, N., 2007, p. 545, v. 2).

Três dos quatro jornais analisados (excetua-se o periódico religioso A Verdade4 )


são de propriedade ou têm como seu redator principal um bacharel. Esse fato,
muito mais do uma coincidência, ilustra a importância social daquele que buscava
esse tipo de formação acadêmica.

Adorno (1988), ao analisar o bacharelismo na política brasileira do Império e início


da República com foco na Faculdade de Direito de São Paulo, afirma que a
formação desse profissional liberal ultrapassou as aulas nos institutos acadêmicos
e foi composta também pelo jornalismo literário e político. Inúmeros acadêmicos
envolveram-se com atividades da imprensa escrita para discutir aspectos das lutas
internas das academias.

O envolvimento com a imprensa durante a academia e o ideário de dirigir a sociedade


que esses profissionais vão assumir sugere como conseqüência o fato de muitos
bacharéis terem se tornado jornalistas. Tal fato é reproduzido na realidade
montesclarense, através do jornal Correio do Norte, de propriedade do bacharel
em direito Antônio Augusto Velloso, do jornal Montes Claros, de propriedade e
redação do farmacêutico Antônio Ferreira de Oliveira, e do jornal Gazeta do Norte,
de propriedade e redação do bacharel em direito José Tomás de Oliveira.

Vieira (2007) afirma que os intelectuais brasileiros do início do século XX, de uma
forma geral, habitualmente envolviam-se com questões públicas, atuando como
líderes das causas da nação. Tais indivíduos, neste ínterim, pregaram a centralidade
do tema educação no projeto de modernidade brasileiro. Esta crença culminou
com o amplo engajamento de intelectuais em duas profissões determinantes para
a educação da população: o magistério e o jornalismo.

Outro aspecto dos proprietários e redatores dos jornais a ser destacado é o comum
vínculo à classe de grandes proprietários rurais. Dessa forma, a adoção de preceitos
progressistas que poderiam estar presentes no mundo acadêmico, pode ter sido
limitada pelos estreitos laços que uniam esses bacharéis ao conservadorismo do
mundo rural. Para Adorno (1988, p. 159), ainda no período Imperial, “as ligações

4
Apesar do redator do jornal A Verdade ter sido, durante a maior parte de sua existência, o Cônego Carlos
Vincart, formado em Filosofia e Ciências pela Universidade de Louvain, por ser belga e ter chegado a
Montes Claros apenas em 1903 em missão religiosa, ele não se enquadra na cultura bacharelesca
brasileira que justificou o exercício do poder por esses profissionais.

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A imprensa periódica e a educação para a vida moderna em Montes Claros/MG: 1889-1926
SILVA, Luciano Pereira da; SANTOS, Brenya Paula Miranda

dos bacharéis com os interesses agrários [...] não foram desprezíveis, haja vista
que não poucos bacharéis provinham do campo e dos estratos sociais
economicamente privilegiados e politicamente associados ao mandonismo local”.

Sobre o vínculo entre bacharéis e proprietários rurais, interessa-nos a realidade


desses profissionais de Montes Claros ligados à imprensa periódica. Antônio
Augusto Velloso (jornal Correio do Norte) era filho de Gregorio José Velloso,
proprietário da fazenda Quebradas. Era casado com Elisa Versiani, filha do Dr.
Carlos Versiani, que também possuía forte relação com o mundo rural, pois seu
avô, Pedro José Versiani, era fazendeiro. Já Antônio Ferreira de Oliveira (jornal
Montes Claros) possuía ligação com os proprietários rurais pelo menos através da
família de sua esposa5 , Cândida Peres de Oliveira. Esta, era filha do fazendeiro
Francisco Peres de Sousa.

A exceção pode ter ficado por conta de José Tomas de Oliveira6 (jornal Gazeta
do Norte), já que não foi identificada nenhuma ligação dele com a economia agrícola.
Era casado com Aura Sarmento de Oliveira, cuja família possuía tradição no
desempenho de atividades comerciais. Seus dois filhos, Ari de Oliveira e Jair de
Oliveira também foram jornalistas.

Não se pode simplificar a análise da atuação desses bacharéis (e de seus jornais)


direcionando-a somente para sua ligação ou não com o ambiente agrário.
Entretanto, é importante levar isso em consideração, pois, devido aos laços
familiares, é plausível a presença em suas atividades de interesses da tradicional
classe que dominava a política local (grandes produtores rurais).

Além de difundir modelos de comportamento avaliados como corretos, fossem


eles com características modernas ou tradicionais, é relevante salientar que os
jornais Gazeta do Norte, Montes Claros e até o periódico religioso A Verdade
refletiram as disputas políticas locais7 .

Essa divisão trouxe com freqüência o debate e a troca de acusações entre redatores
e colaboradores dos periódicos. Em 05 de abril de 1919, por exemplo a matéria
publicada no Jornal Montes Claros acusava o jornal Gazeta do Norte de estar
descumprindo o seu programa por fazer campanha aberta para Ruy Barbosa,

5
Como a família de Antônio Ferreira de Oliveira era de Conceição do Serro, atual município de
Conceição do Mato Dentro, não foi possível identificar se sua família era produtora rural.
6
Nascido em Recife/PE, não foram encontrados dados sobre a ocupação profissional de seus pais.
7
Apesar do jornal Correio do Norte também possuir cunho político, pois estava a serviço do Partido
Conservador, como o outro grupo político da época, os liberais, não detinham de um periódico para
propagar suas idéias, não houve intenso debate entre esses grupos através da imprensa periódica de
Montes Claros durante o século XIX.

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então candidato a presidência da República. Isso, porque, em seu editorial inicial,


o jornal afirmava que era apartidário, não se vinculando a nenhum grupo político
específico.

Já o jornal A Verdade também foi acusado pelo Montes Claros de caracterizar-se


como uma folha política, apesar de apresentar uma proposta religiosa. Em seu
cabeçalho estava inscrito os dizeres: “Semanario religioso, scientifico, litterario e
noticioso, da freguezia de Montes Claros”.

[...] Uma outra cousa que faz mossa na mente e que ficou provado evidentemente
é que “A Verdade” é simplesmente uma folha politica, pois que foi ella propria,
pelo seu redactor ou gerente ou cousa que o valha, que protestou contra
minha referencia. E assim sendo era bem que a auctoridade ecclesiastica
mandasse riscar de seu cabeçalho os dizeres que lá estão e substituil-os por
estes: “Semanario Politico e sobre tudo incensador” [...] (MONTES CLAROS,
14 de junho de 1917, ano II, n.56, p. 2).

Em que pese as desavenças políticas entre os jornais, a percepção da imprensa


escrita como uma importante ferramenta educacional é partilhada pelos redatores.
Membros da elite, possuidores de rara instrução para a época, eles assumem o
papel em suas atividades de formação e transformação da sociedade.

Quando se fala em educação e imprensa como canais dirigidos ao “povo”


(compreendido aqui como carente de conhecimento ou entendimento), não é
difícil verificar quem são os educadores e redatores. Os construtores dessa
opinião pública são, em outras palavras, os membros da chamada República
das Letras, os letrados, os esclarecidos, ou seja, a opinião apontava como
fruto da reflexão dos indivíduos ilustrados e se tornava pública na medida em
que visava à propagação das Luzes do progresso e da civilização – e, por isso,
apresentava-se como defensora da ordem e da moderação (MOREL; BARROS,
2003, p. 29).

Provavelmente foi a crença no poder da palavra escrita que levou às diversas


iniciativas de produção de periódicos no norte de Minas Gerais, apesar das
significativas dificuldades enfrentadas nesse processo. É comum, como ilustração
aos problemas encarados, ler nos jornais da época justificativa para a descontinuidade
na impressão dos números relacionada à falta de papel, ou a explicação da não
entrega do jornal em outra localidade pela insuficiência de selos ou pelo fato de o
serviço de correio não estar funcionando. Mesmo assim, conforme indicado em
quadro anterior, 28 títulos foram publicados em Montes Claros entre os anos de
1889 e 1926, reflexo da fé nos efeitos da divulgação de textos.

O crédito atribuído ao poder da imprensa escrita está presente em textos dos


periódicos analisados. O editorial do primeiro número do jornal A Verdade trata

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A imprensa periódica e a educação para a vida moderna em Montes Claros/MG: 1889-1926
SILVA, Luciano Pereira da; SANTOS, Brenya Paula Miranda

disso, ao afirmar:

A imprensa hoje é quase a única válvula da necessária expansão dos


sentimentos. A imprensa é também a tribuna popular, cadeira de ensino, arauto
do progresso, norte e bússola na rota que segue a humanidade em busca e
alcance de seus destinos immortaes [...]. Com effeito, as circunstancias da
sociedade moderna affastam boa parte dos homens da audição do verbo de
Deus: - é preciso que o jornal va levar ao tugurio do pobre, às águas furtadas,
à officina do operário, aos salões e alcovas do rico, ao armazém do negociante,
ao gabinete do sabio... o pabulo do espírito, que a esses, como a outros muitos
logares não o podem levar os ministros de Deus [...]. Se São Paulo, o Apostolo
das Gentes, voltasse ao mundo hoje elle se faria jornalista [...]. É com esse
programma claro e lealmente definido que apparece hoje a luz da publicidade
(A VERDADE, 1º. de Maio de 1907, ano I, n. 1, p. 1).

No editorial da folha religiosa, chama a atenção também a dicotomia existente no


desenvolvimento da sociedade: é necessária a busca do progresso, mas tal busca
pode desviar o homem do caminho correto. O combate aos perigos da vida moderna
é a marca da ação dos premonstatenses e, desta forma, é constituída também pela
valorização da “boa imprensa”.

Affirmamos porem que serão incompletos todos os nossos esforços, inefficazes


todas as nossas diligencias sem o bom jornal. – O bom jornal actua
quotidianamente com força sobre os espíritos, no meio familiar, sobre todas as
edades e condições sociaes. Affirmamos que aos costumados meios de
evangelisação cumpre accrescentar a boa imprensa [...]. O homem inimigo, o
maçon, o politiqueiro, o livre pensador trabalharam sem nós e contra nós,
lançando o joio muito mais activamente do que nós a boa semente (A
VERDADE, 11 de Maio de 1907, ano I, n. 2, p. 3).

Indiferentes aos ideais religiosos do movimento ultramontano, os jornais Montes


Claros e Gazeta do Norte identificavam suas atividades como importantes
propulsores do progresso da cidade. Com foco nos inúmeros problemas que a
região enfrenta, afirmam que suas tarefas visavam, sobretudo, a evolução da
sociedade e, por isso, exprimiam feições patrióticas.

Despertar energias novas, determinar o apparecimento de iniciativas fecundas,


favorecer o surto do nosso progresso, impulsional-o convenientemente,
encaminhar a solução dos multiplos problemas vitaes, que nos assoberbam –
eis um atarefa sem duvida seductora e nobilissima tanto quanto gigantesca e
patriotica. Tudo isso cabe na alçada do novo jornal (MONTES CLAROS, 11 de
Maio de 1916, ano I, n. 1, p. 1).
[...] Plantar essa semente bendicta aos logares que necessitam de evolução e
de progresso é um acto patriotico e digno de applausos de todos aquelles que
desejam o bem estar do Paiz em que vivem [...]. Não estando ligados a interesses
e nem a partidos politicos não esperando o bafejo official, por subvenções ou

89
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

recompensas de qualquer natureza, contaremos unicamente com o auxilio


popular [...] (GAZETA DO NORTE, 06 de Julho de 1918, ano I, n. 1, p. 1).

Nos trechos reproduzidos, é possível perceber a atribuição de um papel


extraordinário à imprensa escrita, como se sem a sua presença a sociedade estivesse
condenada ao atraso e à ignorância. Para Pallares-Burke (1998, p. 147), “tal função
insubstituível da imprensa é geralmente justificada pela ausência de outros agentes
educativos, como leis e um sistema de escola pública, que, caso existentes, poderiam
fazer mais sistemática e formalmente o que o jornalismo fazia informalmente”.

No que diz respeito à educação formal, para a cidade de Montes Claros, o início
da República caracterizou-se pela ampliação de oferta do ensino por instituições
escolares. Destacou-se, nesse processo a instalação do Grupo Escolar Gonçalves
Chaves em 1909, no contexto das reformas educacionais no estado de Minas
Gerais que buscaram a criação de um novo espaço escolar.8 Entretanto, é evidente
que se continuava “educando” uma parcela restrita da população pela via do ensino
formal e que a ação de outros mecanismos era primordial. Nessa lógica, a imprensa
periódica poderia contribuir para a tarefa.

A adoção de um estilo mais cultural do que noticioso pela imprensa brasileira para
a época, fato já apontado anteriormente, reforça a dimensão formadora dos
periódicos. Uma das características conseqüentes dessa dimensão foi a publicação
de obras literárias nos jornais. Com isso, o leitor acessaria um tipo de literatura
tida como erudita e ainda pouco difundida entre a população. Para Morel e Barros
(2003), a publicação de trechos de uma narrativa fatiada (obra publicada em
pedaços), também contribuiu para o aumento nas tiragens dos periódicos, pois
instigava a curiosidade do leitor.

O jornal Correio do Norte adotou este tipo de estratégia em seus números. Na


leitura de exemplares do ano de 1890, por exemplo, é encontrado na parte inferior
da primeira página, em uma seção denominada “folhetim”, a publicação sucessiva
de trechos da obra O Irmão do Espírito Livre, romance histórico do escritor
alemão Henrique Zschokke. Já no jornal Gazeta do Norte, como outro exemplo,
foram publicados textos literários em uma seção denominada “literatura”, inserida
na segunda ou terceira página do jornal. Diferentemente do caso anterior, nesta
foram publicados textos completos e não uma obra (como um romance) em partes.

8
Ver: FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Dos pardieiros aos palácios: cultura escolar e urbana em Belo
Horizonte na primeira republica. Passo Fundo: UPF, 1996 e DURÃES, Sarah Jane (Org.). A escola
como lugar - grupos escolares no Norte de Minas Gerais (1906-1937). Montes Claros: UNIMONTES,
2009.

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A imprensa periódica e a educação para a vida moderna em Montes Claros/MG: 1889-1926
SILVA, Luciano Pereira da; SANTOS, Brenya Paula Miranda

Os textos literários publicados nos jornais da época eram contribuições de homens


das letras da cidade. No jornal Correio do Norte, que inclusive chegou a ter uma
seção literária independente, Oliva (2009, p. 11) identificou, em 7 anos de
publicações semanais, poemas, crônicas, contos e folhetins, entre outros gêneros.
Para o autor, os escritores montesclarenses relacionavam-se com a literatura das
capitais e de outras nacionalidades (franceses, alemães, portugueses e ingleses),
“pois muitos deles são referidos nos poemas e alguns trechos servem mesmo de
epígrafe para certos autores”.

A opção pela adoção de uma vertente mais cultural do que informativa reforçou o
papel da literatura nos jornais da época. No caso do jornal Correio do Norte, o
próprio editorial do primeiro número evidenciava isso, ao afirmar que “a seção
literária, que será ao mesmo tempo instrutiva – procurando unir o útil ao agradável
– conterá variedades – literatura amena, lendas e poesia, originais e traduzidas”
(CORREIO DO NORTE, 24 de fevereiro de 1884, ano I, n. 1, p. 1).

A educação da população era uma tarefa que a imprensa dividia com outras
agências formadoras, sejam aquelas criadas para esta função, como a escola, ou
aquelas reconhecidas como portadoras de potencial formador, como o teatro e o
cinema. Segundo Pallares-Burke (1998), no combate à ignorância e ao atraso
social, os periódicos acabaram associando-se às agências que poderiam contribuir
para a educação da população.

Em Montes Claros, essa associação ocorreu de diversas formas. Entre a imprensa


e a escola, podemos percebê-la nas campanhas que objetivavam conscientizar os
pais da importância da matrícula de seus filhos nas instituições de ensino, na
publicação constante nos jornais de eventos realizados pelas escolas e de outras
informações, como data do início das aulas, relação de alunos aprovados, menção
aos alunos de se destacaram durante o ano, entre outros.

Veloso (2008) afirma que o jornal Gazeta do Norte possuía uma missão
“desanalfabetizadora” e que este órgão, a partir da associação a uma importante
instituição de ensino da época, a Escola Normal, produziu modificações significativas
em seu empreendimento educativo. Segundo a autora, o jornal assumiu para si um
conjunto de encargos que perfaziam o projeto de modernização da sociedade e
que passava, necessariamente, pela instrução da população que deveria mudar de
mentalidade e comportamento.

No Brasil republicano, a educação apresentou-se como alternativa de solução


para uma série de problemas sociais, econômicos, políticos. Vinculada à idéia
de progresso e civilização, a educação constituiu-se como dispositivo capaz
de preparar, tanto as elites como as populações iletradas, para o trabalho de
transformação da realidade e a construção da nação brasileira. E nesse contexto,

91
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

a imprensa brasileira encontrou espaço e condições para sua consolidação


como empresa educativa. O empreendimento de educar a população e imprimir-
lhe uma nova mentalidade não era tributado apenas à escola, mas a todas as
instituições sociais, como a família e a igreja, nelas incluindo a literatura, o
teatro, o cinema, as revistas e os jornais (VELOSO, 2008, p. 40).

Dentre as estratégias adotadas para educar a população de Montes Claros para


os desafios da vida moderna, destacou-se, a partir de 1918, a realização de diversas
conferências educativas e médicas nas instalações da Escola Normal. Tais
conferências tiveram ampla cobertura da imprensa periódica da época (jornal
Montes Claros e jornal Gazeta do Norte) que as divulgavam e, na maioria das
vezes, reproduziam o conteúdo explanado.

Nas conferências realizadas em Montes Claros, foram apontados os defeitos da


educação doméstica, pois os pais não possuíam conhecimentos médico-higiênicos,
e não educavam segundo diretrizes comuns. Tais eventos, centrados inicialmente
em questões higiênicas, passaram, com o tempo, a se direcionar sobretudo para
temas pedagógicos (VELOSO, 1998).

No período abordado por esta investigação, as fontes pesquisadas noticiam a


ocorrência de sete conferências, cujos temas foram: “Defeitos da educação
doméstica”, “Malária”, “Moléstia de Chagas”, “Ankilostomíase”, “Sífilis”,
“Higiene”, “Saneamento moral” e uma sétima conferência cujo tema não pode
ser aferido.

As notícias publicadas e a profissão dos redatores dos jornais são características


que incrementam a análise dessas fontes e permitem a identificação de indícios
para problematizar o poder desses veículos na sociedade. No conjunto, essas
informações corroboram para o argumento de que a imprensa periódica foi
instrumento privilegiado para provocar ou combater transformações sociais inclusive
pela educação da população influenciada pelos periódicos.

Considerações Finais

A análise das fontes consultadas permite afirmar que a imprensa periódica impressa
foi um instrumento privilegiado para educar a população de Montes Claros nas
primeiras décadas do período republicano. Sua ação estendeu-se para além de
uma reduzida elite alfabetizada, visto que a população em geral relacionava-se
com os jornais de diversas maneiras.

Mesmo propagando preceitos de uma vida moderna os jornais também


demonstraram vinculação com aspectos conservadores da sociedade, pois os
bacharéis que estavam à frente das folhas, via de regra possuíam forte relação

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A imprensa periódica e a educação para a vida moderna em Montes Claros/MG: 1889-1926
SILVA, Luciano Pereira da; SANTOS, Brenya Paula Miranda

com a elite tradicional da cidade formada no desenvolvimento da economia


agropecuarista.

Outra peculiaridade local também esteve expressa nos periódicos: a intensa disputa
política travada por dois grupos locais. Assim, os jornais reproduziram a dinâmica
da bipolarização da sociedade local e também foram instrumentos amplamente
utilizados na afirmação de grupos políticos.

Fontes

Jornal Correio do Norte

Jornal A Verdade

Jornal Montes Claros

Jornal Gazeta do Norte

ANJOS, Cyro dos. A menina do sobrado. Montes Claros, Unimontes, 2007.

GRAÇA, Ruth Tupinambá. Montes Claros era assim.... Montes Claros: Editora
Unimontes, 2007.

VIANNA, Nelson. Efemérides montesclarense. Montes Claros: Ed. Unimontes,


2007 (2 volumes).

Referências

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GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Oralidade, memória e narrativa: elementos para a


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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
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LESSA, Simone Narciso. Trem de ferro: do cosmopolitano ao sertão, 1993. 2525.


Dissertação (Mestrado em História) - Departamento de História do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 1993.

MANOEL, Ivan Aparecido. Igreja e educação feminina (1859-1919): uma face


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MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra, imagem e poder: o


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OLIVA, Osmar Pereira. Literatura Oitocentista Montes-clarense: escrita,


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empresa educativa no século XIX. Cad. Pesq., São Paulo, n. 103, p. 144-161, jul.
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Educação) - Programa de Pós-Graduação Conhecimento e Inclusão em Educação,
Universidade Federal de Minas Gerais. 2008.

VIEIRA, Carlos Eduardo. Jornal diário como fonte e como tema para a pesquisa
em História da Educação: um estuda do relação entre imprensa, intelectuais e
modernidade nos anos de 1920. In: OLIVEIRA, Marcus Aurélio Taborda de (Org.).
Cinco estudos em história e historiografia da educação. Belo Horizonte:
Autêntica, 2007. p. 11-40.

94
‘ALUMIAR A MENTE’: A INSTRUÇÃO ESCOLAR
DOS DISCÍPULOS ANA E ZEZINHO NAS TERRAS
GOIANAS EM FINS DO SÉCULO XIX

Diane Valdez*

Resumo: Esse texto faz parte do projeto de pesquisa intitulado “Infância e


educação nos contos goianos”, desenvolvido na Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Goiás (2010-2012). A pesquisa tem por finalidade ampliar
os estudos de história da educação regional recorrendo à literatura goiana. Optamos,
neste trabalho, pela literatura de Cora Coralina. Trata-se de escritos em formato
de poemas ou contos inspirados nas lembranças da autora que viveu sua infância
no final do século XIX. Os escritos de Cora apresentam várias leituras sobre a
relação da infância com o ensino, a escola, a professora, os livros, as punições etc.
Dados que registramos e propomos discutir neste artigo.

Palavras-chaves: infância; escola; literatura, história da educação.

Abstract: This text belongs to a research project “Childhood and Education in


Goian Tales”, which was developed in the Faculty of Education of the Goiás Federal
University (2010-2012). This research aims to widen studies in regional History of
Education, through its literature. We choose, in at the end of the XIX century.
Writings of Cora show readings about relationships between childhood and education,
school, teacher, books, punishments, etc., data which we registered and we will
discuss in this article.

Keywords: Childhood, School, Literature, History of Education

1
Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG).Mestre em
História (UFG) e doutora em Educação (UNICAMP). Pesquisadora na área de História da Educação e
integrante do Núcleo de Estudos e Documentação, Educação, Sociedade, Cultura (NEDESC). E-mail:
dvaldez@fe.ufg.br

95
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Para impulsionar debates acerca da história da educação local, faz-se necessário


buscar e indagar diferentes fontes e produzir textos para ampliar o acesso a esses
estudos nos cursos de graduação. Diante disso, optamos, no projeto “Infância e
educação nos contos goianos”,por recorrer à literatura como fonte e, neste texto,
elegemos os contos e os poemas da escritora goiana Cora Coralina (1889-1985).
Nascida na Cidade de Goiás, Cora começou a publicar suas obras a partir dos
anos sessenta do século XX, ou seja, ficou amplamenteconhecida quando tinha
mais de setenta anos. Optamos por investigar as obras dessa escritora pelo fato
de ela ser considerada uma referência na literatura, não somente em Goiás, como
também no Brasil e também pelo fato de encontrarmos um número relevante de
poemas referentes à sua infância em diferentes espaços. É importante registrar
que os poemas de Cora são constantemente citados em estudos da História da
Educação, pois essa autora registrou de forma expressiva diversas passagens que
marcaram sua infância no mundo escolar.

Levando em conta os liames da memória e a abrangência poética ficcional desse


tipo de fonte, os escritos fornecem pistas para compreendermos um pouco mais
sobre a relação ‘infância e escola’nesse período da história, sobretudo no que se
refere ao poder dos adultos sobre as crianças que, sob o argumento de educar e
ensinar, puniam e exerciam constante vigilância sobre elas.Ao propormos esta
análise, a intenção é problematizar a respeito de como a literatura apresenta o
exercício escolar para o leitor, ou seja, de que forma os escritos literários
romantizam, criticam, ressaltam, omitem, desqualificam ou enfatizam o aprendizado,
apresentam a relação dos mestres com as crianças, descrevem o ambiente escolar,
o uso de materiais didáticos etc.

Desse modo, este texto organiza-se em temáticas. Na primeira parte, intitulada


‘Velhas lembranças’: a literatura entre a história e a memória, discutiremos
os escritos da poetisa como fonte para a escrita da história levando em conta as
ressalvas presentes na história e na memória. Na segunda parte, Espaço escolar:
lugar de ‘alumiar a mente’, discutiremos a educação da infância nas escolas de
primeiras letras na área rural e na antiga capital do estado, Vila Boa de Goiás. Já
na parte A escola da Mestra Silvina: as letras que entraram e não mais
saíram...abordaremos passagens da escola doméstica urbana que Cora Coralina
frequentou, enfatizando as punições narradas pela poetisa. No item A Escola do
mestre Fidelcino e a Escola Pública do mestre Patroclo:Zezinho e os
números..., focaremos os estudos de Zezinho, primo de Cora, a princípio na escola
rural e doméstica, localizada na Fazenda Paraíso (do avô de Cora) com uma
classe ministrada pelo mestre Fidelcino,em seguida discorreremos sobre a Escola
Pública do mestre Patroclo na Cidade de Goiás, local onde Zezinho foi aluno.

96
‘Alumiar a mente’: a instrução escolar...
VALDEZ, Diane

‘Velhas lembranças’: a literatura entre a história e a memória

Estudar a literatura tendo-a como uma espécie de ‘veículo’ de ideias propagadoras


de um tempo e de um espaço é uma prática que se intensificou no campo das
investigações históricas educacionais, sobretudo nas últimas duas décadas. Sem
dúvida que recorrer à literatura como fonte histórica é uma tarefa complexa, porém
instigante e, particularmente, estimulante, pois, diferente de outras fontes, os textos
literários exercem uma atração sobre o leitor/pesquisador. Fato que torna a pesquisa
atrativa, embora não mais simples ou mais ‘fácil’ de se desempenhar, já que a
literatura é produzida sob o dinamismo e a diversidade da escrita.

Como qualquer outra fonte, corre-se o risco de interpretar os escritos literários de


forma superficial ou torná-los ‘verdades absolutas’ perdendo assim seu caráter
complexo e rico. Para não cairmos em armadilhas anacrônicas, é importante
observar a escrita em seu tempo, espaço, fronteira e outros elementos subjetivos
presentes no tempo e na escrita do autor. O tempo é um elemento precioso e
precisa ser considerado, o que não significa reduzir o passado ao ‘antigamente’ de
forma estreita, como se o passado fosse uma massa homogênea e sem
particularidade. Não é possível exigir de uma sociedade, por exemplo, do final do
século XIX, práticas da atualidade, conjunturas que não faziam parte de um lugar,
de um povo e, sobretudo, de uma época. É preciso assinalar as diferenças do
passado e do presente, como bem afirmou o historiador inglês E. Hobsbawm:

A distinção entre o passado e o presente é um elemento essencial da concepção


do tempo. É, pois, uma operação fundamental da consciência e da ciência
históricas. Como o presente não pode limitar a um instante, a um ponto, a
definição da estrutura do presente, seja ou não consciente, é um problema
primordial da operação histórica. (HOBSBAWM, 2003, p.207).

Na tarefa importante e desafiadora da aproximação da história com a literatura, é


preciso assinalartambém o impacto que a linguagem causa em cada leitor, assim
como os significados que este, aqui incluímos também o leitor/pesquisador, atribui
em sua leitura e interpretação. Sentidos que não são reproduzidos de forma neutra
e nem de forma semelhante, pois a multiplicidade se faz presente sob diferentes
aspectos, afinal, o leitor não é um elemento passivo. Da mesma forma, o conteúdo
presente em uma obra literária não se traduz em um fiel reflexo da história social
do período referido. Para Silva, Cora usa do passado para revigorar o presente:

Entre os cacos de brinquedos sobressaem-se os cacos das lembranças da


anciã. Ela procura remontá-los, transformando-os em um mosaico, encaixando
aqui, ali e acolá, até estruturar, em formas desenhadas de vaivém, uma história
de vida, obedecendo a não linearidade das imagens e dando vazão à renitência
de determinadas cenas. A consciência da finitude da vida parece ser um estímulo

97
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

para revigorar o passado. (SILVA, 1999, p.160).

Portanto, ao recorrer aos poemas de Cora para investigar sobre a educação da


infância no final do século XIX na Vila Boa de Goiás, não podemos perder de vista
que se trata de uma escrita envolvida de lembranças e da memória de uma pessoa
idosa falando de sua infância. Sob o signo da memória, Cora, como registrou
Hobsbawm (2003), faz crescer a história, que por sua vez a alimenta como se
procurasse salvar o passado para que ele tenha uma utilidade no presente e no
futuro. Segundo o mesmo autor:

A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos


em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele
representa como passadas. (HOBSBAWM, 2003, p.419).

As lembranças são sustentadas pelo presente, como se o presente iluminasse o


passado, ou seja, trata-se de uma escrita sobre o passado com argumentos do
presente, como se fosse possível explicar o presente por meio do passado, tal qual
registrou Silva:

Cora Coralina atribui à sua construção poética duas funções: a de explicar o


presente através do passado, o que explica revigorar cenas de sua história
pessoal através das lembranças guardadas na memória; e a de contribuir para
a formação humana, propiciando através do espelhamento, não percorrer
estradas sinuosas de durezas e pedras, palmilhadas por ela. (SILVA, 1999,
p.167).

Outra observação importante se refere ao fato de a autora investigada escrever


fazendo referência à sua história de vida, uma espécie de autobiografia em forma
de poemas. A este respeito Silva destacou:

A escrita autobiográfica vai se definindo a partir dos vários contatos que são
estabelecidos. A sua complexidade não permite limites fechados. Apenas a
estreita relação entre a história e a ficção não é suficiente para afirmar, dar
condições a escrita de ser autobiográfica. Uma escrita cuja identidade se mostrar
entrecortada por vários discursos, apresenta-se uma constituição híbrida e
somente depois de analisar os vários elementos de que é constituída é que vai
ser possível considerá-la enquanto discurso autobiográfico. (SILVA, 1999,
p.154).

Silva (1999) ainda afirma que Cora, sustentada pela memória familiar, projeta
quadros da infância que também se desdobram em outras fases de sua vida -
adolescência, juventude e velhice - denotando um mundo tencionado por desejos
irrealizados e frustrações. Nos escritos de Cora, é possível observar os diferentes

98
‘Alumiar a mente’: a instrução escolar...
VALDEZ, Diane

discursos apontados por Silva, contudo não é nossa intenção investigar sobre
autobiografia como fonte, mas sim destacar e recortar aspectos da infância
retratados ou representados nas linhas dos poemas da escritora goiana. Sobre
isso, Bezerra registrou:

Cora Coralina se insere nessa genealogia de escritoras cuja obra está marcada
por um rememorar que se desloca em ritmo do círculo familiar e de vivências
que são parte de seu dia-a-dia. Em Vintém de cobre: meias confissões de
Aninha, por exemplo, muitos de seus poemas procuram reviver uma infância
que se afasta da imagem tradicionalmente celebrada como um tempo de
inocência e ociosidade. [...] A visão de infância que surge em seus versos, por
conseguinte, recupera diversos tipos de tirania que fazem parte do processo
de crescimento das crianças. Nesse sentido, a memória firma-se como lugar de
interrogação e de re-inscrição do passado como uma forma de entender o
presente e o futuro (BEZERRA, 1999, p.80).

A poetisa não romantiza o passado, sobretudo quando trata de sua infância,


entretanto, romantizar o passado é uma prática comum não somente na produção
literária como também nas falas nostálgicas de pessoas idosas que se referem ao
passado de forma idealizada, um tempo bom que não deveria ser modificado.
Para Le Goff (2003, p. 223), “O gosto romântico pelo passado, que alimenta os
movimentos nacionalistas europeus do século XIX e foi incrementado pelos
nacionalismos, incidiu também sobre a antiguidade jurídica e filosófica e a cultura
popular”.

É comum poetas e escritores, ao escreverem sobre a infância, retratarem-na como


uma fase idílica e plena de felicidade, porém não é uma regra na literatura se
apoiar nessa idealização. Como exemplo dessa não idealização da infância, podemos
citar Graciliano Ramos em sua obra Infância e Cora Coralina em seus diversos
poemas. A poetisa desmistifica o espaço familiar, escolar e os demais espaços
como lugares de proteção, de harmonia e de felicidade, os sentimentos descritos
enfatizam e ‘denunciam’ o poder exercido pelos mais velhos sobre as crianças,
assim como o papel das instituições no cumprimento da tentativa de modelar os
corpos infantis de acordo com as crenças e os costumes da época.

É interessante observar a forma na qual a autora descreve as relações da menina


Aninha (enfatizando o diminutivo como algo pequeno e indefeso) na sociedade da
época, na maior parte das vezes de forma nostálgica. Para a autora, tudo se torna
objeto de narrativa como registrou Joachim:

Pouco importa o ponto de partida: infância, profissão, escola, história, lendas,


dor, miséria, pão, milho, pássaro, música, bolo, prato, rio, boiada, pedra, tudo
aqui é matéria de poesia e ensinamento direto, de linhas de fuga que nos

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v. 17, n.1, n.2/2012

arrasaram para uma luta e uma superação da sombra, assim como para a
solidariedade humana (JOACHIM, 1999 p. 24).

Outro aspecto a ser observado se refere ao regionalismo presente na obra da


referida autora. Apesar de ter passado mais de quarenta anos fora de Goiás, Cora
se apega de forma considerável ao que considera ‘coisas de sua terra’. Isso se
traduz no vocabulário, na descrição da sociedade, nos usos e nos costumes da
terra. No ano de 1956, Cora registrou:

Volto a Goiás, depois de longa ausência e encontro as tais em uso corrente.


Nem se gastaram, nem foram esquecidas, nem relegadas ou trocadas por
expressões novas, incorporadas na língua, nesses longos quarenta anos.
Vejamos: a rica, expressiva e velha palavra – ENZONA – e suas derivadas:
enzonice, enzoneira... Palavra goiana que me lembra a infância passada e
repassada. Palavra marcante, clara como ferro em brasa sobre a sensibilidade
da criança de imaginação viva que saia da bitola estreita, traçada e medida pelo
matriarco das famílias. Só agora depois de ouvir a velha expressão, ela
encontrou nova ressonância na acústica da lembrança, consciente,
inconsciente ou o que seja, e surgiu à flor das recordações da minha figurinha
boba de menina de outros tempos. Enzoneira... eu era uma menina enzoneira.
Encontro novamente a palavra inimiga e detestada, ouvida e sentida na remota
infância. Eu era definida como menina enzoneira. [...] Criança de imaginação,
fazedeira de perguntas, contadeira de sonhos e misturando verdades com
imaginário (CORALINA, 1956 apud BRITO, 2009, p. 28).

Como bem afirmou Joachim (1999, p. 17), “Ela mergulha na sua terra, cava
profundamente nela com o anseio de melhor (re)encontrar-se com todas as
heterogeneidades, então ela é soberbamente regionalista”. Contudo, Cora não se
exime de expor, criticar e censurar a sociedade goiana, é possível notar, além das
críticas, uma ironia nada sutil em sua descrição. De acordo com Curado:

No caso de Cora Coralina, observa-se, em alguns de seus contos, uma crítica


à dissimulada sociedade da época por meio de uma posição mordaz cujo escopo
se pauta não só em desvalorizar certos posicionamentos arraigados, mas
tambémlevar a reflexões de ordem social e registrar condutas muitas vezes
questionáveis. (CURADO, 1999, p. 109).

Enfim, os escritos de Cora oferecem inúmeros elementos para serem investigados,


confrontados, questionados e anotados. Contudo, é preciso levar em conta os
elementos descritos para não os tomarmos de forma descontextualizada e distante
dos debates já produzidos sobre eles.

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‘Alumiar a mente’: a instrução escolar...
VALDEZ, Diane

Espaço escolar: lugar de ‘alumiar a mente’

Recorrendo a uma frase de sua bisavó, a poetisa registrou que a escola era o local
próprio e adequado para se ‘alumiar a mente’. Apesar de traduzir em seus escritos
o ambiente escolar como um lugar sóbrio, frio e ameaçador, desponta-o como um
espaço de extrema relevância para sua formação. Goiás, no final do século XIX,
era uma província de economia baseada na agricultura e na pecuária, e, como
outras províncias colonizadas no século XVIII, considerada distante dos grandes
centros do Brasil, sobretudo do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em função disso,a
carênciade recursos para a instrução públicaé notadaem fontes como os relatórios
dos presidentes da província e de outros profissionais representantes da instrução
da província. As anotações, sempre em tonalidade pessimista, explanam sobre um
estado insatisfatório, sem perspectivas, ausente de livros, professores despreparados
e ordenados insuficientes. Contudo, antes de corroborarmos com essas afirmações,
faz-se necessário lembrar que a afirmação de que o ensino, sobretudo o primário,
era precário, inexistente, ou que a instrução primária no Brasil oitocentista do
século XIX se confinou entre a desastrada política pombalina e o florescimento da
educação na era republicana como explana a obra Cultura Brasileira de Fernando
Azevedo definitivamente ainda não foi superada.

Em boa parte da bibliografia que aborda a história da educação goiana, sobretudo


uma das mais reconhecidas que é História da instrução pública em Goiás do
Professor Genesco Bretas (1991), o século XIX é apresentado como um tempo
sem lugar, sem escolas, sem leitura. Enfim, apoiado por documentos oficiais, por
precários recenseamentos que não consideravam um significativo número de
escolas, especialmente as escolas domésticas particulares rurais e urbanas, assim
como pelos relatos de viajantes europeus que passaram pela província, concluiu-
se que a sociedade goiana por ser predominantemente rural não demonstrava
qualquer interesse pelo mundo escolar.

Contudo, alguns estudos e pesquisas já apresentam dados contrários a essa afirmação


cristalizada nas produções sobre a história da educação goiana. É possível constatar
por fontes, algumas pouco investigadas ainda, assim como pelas últimas produções
científicas, um acalorado debate acerca da necessidade de escolarização da
população. Fontes apontam cartas, abaixo-assinados, pedidos e outras produções,
solicitando escolas, sobretudo na área rural, onde já havia a quantidade de ‘almas’
suficientes para instalar escola. Outros estudos realizados apresentam dados acerca
de escolas para meninos e meninas, professores, materiais escolares, livros, textos
que circulavam em jornais etc.

Não estamos afirmando que Goiás do período oitocentista era um centro de


instrução modelar ou que se destacava pelo número e qualidade de escolas no
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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

período. O que chamamos a atenção é para o perigo da ‘história única’ que muitas
vezes de forma anacrônica usando o presente, ou mesmo o período republicano
como modelo elementar, ignora o tempo e não enfatiza os movimentos pela instrução
no século XIX. Não podemos perder de vista que é nesse período que se assegurou,
sobretudo nos discursos, uma maior preocupação com a instrução primária, pois
era fundamental o papel da instrução na elevação do nível intelectual e moral da
nação. A capacidade redentora da educação era um poderoso instrumento de
regeneração e o Estado era criticado, pois sua falta de atenção para com o ensino
era apontada como causa principal da ‘ignorância’ a que o povo estava submetido.
A instrução era desejável, tanto para os ‘novos’ quanto para os ‘antigos’ liberais,
a diferença era que enquanto os antigos associavam instrução à ‘civilização’ do
povo, tentando incutir-lhe padrões de civilidade, os modernos liberais entendiam
que instrução e ‘progresso’ agregavam conceitos como utilidade, produtividade e
desenvolvimento.

A necessidade da escolarização para se atingir um patamar de país civilizado


estava posta nos discursos oficiais e não oficiais, embora fosse consenso também
que havia limites para a extensão dessa mesma instrução para a maioria da
população. Desde os limites políticos e culturais de uma sociedade escravista,
assim como a ausência de investimento das províncias nesse setor, conforme
encontramos registrados em vários documentos. Apesar deste estudo já se pautar
em tempo republicano, final dos anos oitenta e anos noventa do século XIX,
queremos chamar a atenção para o tipo de escola que configurava na região -
escolas que não se instalavam em edificações próprias, onde o conhecimento
escolar era ministrado em ambientes domésticos, quintais, ranchos e outros lugares.

A escola da Mestra Silvina: as letras que entraram e não mais saíram...

De acordo com as produções que abordam a respeito da vida e da obra de Cora


Coralina, assim como poemas que se referem à sua infância, a vida escolar da
poetisa computou dois anos. A menina Ana estudou em uma escola doméstica e
particular de uma única professora: Silvina Ermelina Xavier de Brito, a mestra
Silvina, professora reconhecida e homenageada nos poemas de Cora. Sobre a
curta passagem de Ana na escola, Tahan (1989), filha e biógrafa da escritora,
registrou que a velha mestra aposentou-se após lecionar por cinquenta anos, em
um período de férias. Diante disso, a Senhora sua mãe retirou de vez as filhas das
aulas, pois considerou que já sabiam o suficiente: ler, escrever e a tabuada, portanto,
já passava da hora de as meninas se aprimorarem nos bordados, nos crivos e nos
quitutes. A mesma biógrafa ainda registrou sobre a vida escolar de Cora:

Aninha teve dois anos de escola. Escola nos moldes antigos – do tempo da
mãe. Cada aluno com sua lousa de escrever, sentados em bancos sem encosto,

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‘Alumiar a mente’: a instrução escolar...
VALDEZ, Diane

de um lado os meninos, do outro lado as meninas. Entre eles a mesa encardida,


suja de tinta das escritas. A mestra impondo castigos, os mais variados, desde
a palmatória para os casos mais graves, aos grãos de milhos no chão, ferindo
os joelhos dos rebeldes que sobre eles tinha que passar um bom tempo
ajoelhados. A carta assustadora, no fim do mês, que deve ser entregue aos
pais e que precisa ser assinada, onde tudo é relatado: comportamento,
aprendizagem, assiduidade. O terror ao levar para casa, esperando a reação do
“Senhor Seu Pai” ou “Senhora Sua Mãe” (TAHAN, 1989, p. 16).

Tahan, baseada nos escritos de Cora e nos relatos de sua memória, descreveu um
modelo de escola do período não distante de outras fontes na história da educação:
separação dos alunos por sexo, bancos sem encosto, mesa coletiva e palmatória.
Segundo Silva (1975), a escola também recebia o nome de aula, pois só havia uma
classe ou aula, regida por um único mestre ou mestra. Algo que chama atenção
nessa passagem é a temida carta de acompanhamento enviada para os ‘senhores’
pais assinarem. Desconhecemos trabalhos sobre esta fonte, um elemento original
da escola, também não notamos o uso deste argumento nas obras de Cora, talvez
tenha sido algo que narrou para a composição de sua biografia, mas não levou
para seus poemas. Coralina ao registrar sua vida escolar não se conteve em somente
descrevê-la, mas também em justificar seu lugar de aluna:

Só tive na vida uma escola primária de uma antiga mestra que já tinha sido
mestra da minha mãe, Mestre Silvina. Aposentada, com aposentadoria pequena,
insuficiente para a sua sobrevivência, abriu uma escolinha particular e suas
ex-alunas matricularam lá seus filhos como no meu caso. Na minha escola
primária, eu nunca fui uma aluna da frente. A escola tinha bancos compridos
sem encostos, afastados da parede porque a mestra não aceitava que a criança
recostasse. Nessa escola, fui sempre do banco das mais atrasadas, sempre!
Tive muita dificuldade para aprender, ou a escola não me servia, ou eu não
servia para a escola, até hoje não defini muito bem. A mestra era sempre muito
paciente, mas cansada, já tinha ensinado a uma geração antes da minha, merecia
um descanso que a condição financeira não lhe permitia. De modo que eu ia
ficando no banco das atrasadas até não sei quando. Um dia aprendi alguma
coisa e fui passando pro banco da frente com muito vagar, muita demora,
muito esforço, acho que mais dela do que meu. Eu me lembro que não me
esforçava tanto, não tinha estímulo. Entrei nessa escola com cinco anos
(CORALINA apud BRITO, 2009, p. 19).

Nota-se que a autora toma como referência um lugar sóbrio e sem atrativos,
descrição coesa com o tempo em que estudou. Nas escolas domésticas, as aulas
eram ministradas em um cômodo da casa da mestra, ou seja, a descrição que a
poetisa faz, de alguma forma com ressentimento, demonstra que ela toma como
menção um ambiente escolar não de seu tempo, mas do tempo em que escreveu
o poema, já na velhice. Em várias passagens, Cora (2001) registrou a penúria de
sua escola. Além do banco pouco cômodo para a criançada, a autora ressaltou

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

outros elementos, como o velho armário, o pote d’água, o prato velho e a velha
caneca enferrujada usada por todas as crianças. Nota-se aqui algo que é constante
em seus escritos: o ‘velho’ contrapondo-se ao ‘novo’. Era a velha escola olhada
de longe e definida como um ambiente monótono, melancólico e ‘antigo’.

É importante assinalar que prédios escolares, tal como conhecemos hoje,


começaram a se tornar realidade nas primeiras décadas do século XX quando os
republicanos, dando continuidade aos debates iniciados no Império, instalaram
pequenas escolas chamadas ‘Grupos escolares’, lugares destinados especificamente
ao ensino primário, pois o ensino secundário, sobretudo os Lyceus e as escolas
normais, assim como o ensino superior, as faculdades, eram instalados em prédios
próprios, muitas vezes valiam-se de suntuosos prédios. A instrução primária era
ministrada em qualquer espaço, pois para entrar no ensino secundário era necessário
passar por uma prova e não se exigia certificado ou outro tipo de documentação.

Silvina, além de mestra, era madrinha de Cora, o que demonstra a frágil fronteira
entre o mundo escolar e o mundo familiar, pois uma madrinha poderia exercer
direitos de alguém da família, sobretudo no exercício da rigidez na educação da
menina. Em seu poema Mestra Silvina, Cora registrou que a sua escola primária
foi seu ponto de partida para o mundo da escrita e da leitura. Quando escritora
defendia que era preciso reverenciar a velha mestra em suas noites de autógrafos,
pois, para a poetisa, a mestra foi a responsável pelo desencantamento:

Eu era menina do banco das mais atrasadas.


Minha escola primária...
Eu era um casulo feio, informe, inexpressivo.
E ela me refez, me desencantou.
Abriu pela paciência e didática da velha mestra
(CORALINA, 2004, p.124).

A mestra é reverenciada pela poetisa e descrita como uma pessoa velha, cansada,
que dedicou sua juventude a ensinar a meninada, pois muitas mestras não se
casavam para se destinar ao magistério. Isso nos remete a uma espécie de destino
natural prometido ao mundo feminino, uma espécie de ‘sacerdócio’, ressaltado
pela poetisa como algo prestimoso e reconhecido. Silvina, de acordo com os relatos
de Cora, era respeitada‘como uma parenta considerada’, os alunos, na porta da
escola, saudavam-na com um “Bença, Mestra”, apontando que a tão sonhada
laicidade escolar preconizada pelos republicanos dificilmente se cumpriria naqueles
primeiros tempos de República em um ambiente escolar, doméstico e religioso.
Vale registrar que a própria poetisa advertiu sobre as aulas de religião aplicadaspelos
freis capuchinhos da cidade nesta mesma escola, encontros que ela apreciava,
pois recebia figuras minúsculas de santos.

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‘Alumiar a mente’: a instrução escolar...
VALDEZ, Diane

Nos registros de Cora, sobressaem-se as contradições postas em seu tempo, apesar


de enfatizar o papel contundente da mestra em sua formação, a poetisa relatou
outra mestra, uma Dona que não era tão paciente e que se valia de castigos físicos
para ensinar. Isso pode ser exemplificado pelo poema AMenina mal amada, em
que Cora registrou que, apesar de muito lhe valer a escola, o que lhe abalizou foi
seu encontro com a palmatória ao gaguejar a lição:

Um dia, certo dia, a mestra se impacientou.


Gaguejava a lição, truncava tudo. Não dava mesmo.
A mestra se alterou de todo, perdeu a paciência.
E mandou enérgica: estende a mão.
Ela se fez gigante no meu medo maior, sem tamanho.
Mandou de novo: estende a mão. Eu de medo encolhia o braço.
Estende a mão! Mão de Aninha, tão pequena!
A meninada, pensando nalguns avulsos para eles,
nem respirava, intimidada. Tensa, espectante, repassada.
Era sempre assim na hora dos bolos em mãos alheias.
Aninha, estende a mão. Mão de Aninha, tão pequena.
A palmatória cresceu no meu medo, seu rodelo se fez maior,
o cabo se fez cabo de machado, a mestra se fez gigante
e o bolo estralou na pequena mão obediente.
Meu berro! E a mijada incontinente, irreprimida.
Só? Não. O coro do banco dos meninos, a vaia impiedosa.
- Mijou de medo... Mijou de medo... Mijou de medo...
A mestra bateu a régua na mesa, enfiou a palmatória na gaveta,
e, receosa de piores consequências, me mandou pra casa, toda mijada,
sofrida, humilhada, soluçando, a mão em fogo (CORALINA, 2004, p. 118-119).

Nota-se que apesar da meninada permanecer receosa, em silêncio para evitar


sobrar punição, no banco masculino, os meninos não abafaram a vivacidade infantil,
fazendo da ocasião um momento de diversão. Em casa, a atitude da mestra foi
consolidada e respeitada, pois, se a escola era uma continuidade do lar, era válido
educar por meio da palmatória:

Em casa ganhei umas admoestações sensatas.


A metade compadecida de uma bolacha das reservas de minha bisavó,
e me valeu a biquinha d’água, o alívio à minha escladada.
Ao meu soluçar respondia a casa: “é pra o seu bem, pra ocê aprender,
senão não aprende, fica burra, só servindo pro pilão”
(CORALINA, 2004, p. 118-119).

A poetisa registrou que no meio da confusão do que era dado como ‘bem’,
representado pelos bolos nas mãos e outros inúmeros castigos físicos aos quais
era submetida, reforçou que o entendimento de‘bem’ era a bolacha dada pela
paciente bisavó e os biscoitos de brevidades dados pela tia Nhorita, o resto ela não

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

tinha noção do que era. A prática de educar a criança por meio da punição é
lembrada pela autora em seus diferentes escritos, como já ressaltamos, punir não
se limitava ao mundo escolar, em casa e em outros espaços a criança era contida
de diferentes formas. Isso não escapou do olhar crítico e ressentido da escritora.
Em seu poema Cora Coralina, quem é você?,ela observou que o ranço do seu
passado se fazia presente:

A brutalidade, a incompreensão,
a ignorância, o carrancismo.
Os castigos corporais.
Nas casas. Nas escolas.
Nos quartéis e nas roças.
A criança não tinha vez,
os adultos eram sádicos
aplicavam castigos humilhantes
(CORALINA, 2004, p.225).

Essa passagem evidencia o olhar crítico sobre a sociedade do passado onde a


punição estava posta em díspares espaços, contudo ressalta que era a criança o
alvo maior dos adultos. A poetisa não deixa de criticar a formação que recebeu
mesmo se considerando feia, atrasada, moleirona e outros predicados que lhes
eram imputados e por ela assumidos. Coralina apresentava momentos de desejo
de conhecer mais, em seu poema Normas de educação registrou que não se
aceitava das meninas de sua época uma linguagem que não fosse corriqueira e
vulgar, linguagem, segundo Cora, típica do mundo doméstico:

Palavrinha diferente apanhada do almanaque ou trazida de fora,


logo a pecha de sabichona, D. Gramática, pernóstica, exibida.
Um dia fui massacrada por ter falado lilás em vez de roxo-claro.
E a gente recolhia a pequena amostragem, melhoria, assimilada de vagas
leituras de calendário, folhinha Garniê e se enquadrava no bastardo doméstico
(CORALINA, 2004, p.156-157).

Apesar dos registros serem caracterizados por queixas e reclames, é possível


notar que, para a autora, a escola trouxe alguma coisa considerada de maior
relevância para sua vida: a leitura aprendida com dificuldade lhe deu outro lugar,
segundo Cora. De forma quase linear, a poetisa anotou que o curto tempo escolar
lhe deu a capacidade de se envolver de forma afetuosa e sem volta com as letras.
No restante de sua infância, em sua adolescência e juventude, Cora leu, segundo
ela, tudo que vinha, fosse sob a luz de lamparinas de querosene e de velas ou
aproveitando os últimos raios da claridade. Não só leu como também escreveu,
rimou e anotou. Era chamada de menina sonsa por gostar de escrever, uma menina
considerada boba que, em meio às lidas domésticas,como dizia a Senhora sua

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‘Alumiar a mente’: a instrução escolar...
VALDEZ, Diane

mãe: “Primeiro a obrigação, depois a distração”, escreveu poemas no correio


elegante nas quermesses, novenas para casar e tertúlia dominical.

Coralina destacou em seus escritos sua relação com as poesias de Olavo Bilac,
Tomás Antônio Gonzaga, Almeida Garret, Gregório de Matos e Basílio da Gama
que lhe inspiraram nas leituras nos serões literários da cidade onde declamava não
só os poemas de autores conhecidos como também os de sua autoria. Na juventude,
escreveu poemas para jornais e utilizou o pseudônimo de Cora Coralina pela primeira
vez. Ler e escrever tinha um preço na sociedade da época, pois de acordo com
Tahan, Cora era alvo das conversas das comadres fuxiqueiras de Vila Boa de
Goiás que sentadas nas conversadeiras das casas coloniais não se cansavam de
falar:

- Aquela não sabe fazer nada. Passa os dias escrevendo...


- Por isso não casa.
- Você já leu alguma coisa que ela escreveu?
- Não li, não quero ler e não gostei...
- Coitada de Senhora! Uma boca inútil em casa para sustentar
(TAHAN, 1989, p.36).

Nos escritos de Cora, é possível notar o lugar de destaque dado ao processo de


aprendizagem na escola. Contudo, vale observar que o uso de punições, mote que
optamos como recorte neste texto, era visto como um método disciplinar que
compunha o cotidiano não só escolar e, aparentemente, era aprovado pela sociedade
da época. Os únicos que não aprovavam e não naturalizavam isso eram os alunos,
que suportavam os abusos cometidos em nome da ordem e da disciplina. A
palmatória era uma extensão da sala de aula, um adereço decorativo e útil na
correção dos que nada sabiam da vida, apesar de uma lei, instituída no ano de
1827, proibir o uso da palmatória e de qualquer outro castigo físico, permitindo
somente os recomendados por Lancaster, como o chapéu de burro e outros. No
entanto, a escola não se configurava sem o uso da palmatória. As crianças eram
controladas em casa, na escola, na rua, na igreja e em outros espaços. Cabia a
elas obedecer ou fugir das regras, escapulir das normas recorrendo aos métodos
infantis, pois notamos também que havia resistência por parte das crianças. A
poetisa, apesar dos registros de sofrimento, como outra criança qualquer, resistia
às normas de educação, fosse mentindo, roubando frutas, empadas, fugindo para
a rua ou imaginando-se livre.

A Escola do mestre Fidelcino e a Escola Pública do mestre Patroclo:


Zezinhoe os números...

Cora não se limitou a descrever somente sua experiência escolar. Em um texto


intitulado Contas de dividir e trinta e seis bolos, a poetisaregistrou a passagem

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

escolar de seu primo Zezinho, um menino de sete anos, filho de sua tia Laudemíria
que após se separar do marido, algo que soava estranho para o período, foi viver
com o filho na Fazenda Paraíso. Propriedade de seu avô e da bisavó Antônia, o
espaço é propagado pela poetisa como um lugar que condizia ao nome, um ambiente
que nos reporta, como leitor, ao modelo de uma casa grande. Como já foi ressaltado,
Cora não floreou seu passado, sobretudo sua infância, porém, quando seus textos
se reportam à Fazenda Paraíso, as palavras marcam um lugar diferente e prazeroso,
nota-se uma clara romantização do ambiente rural, onde tudo parecia harmônico
e idílico.

Na Fazenda Paraíso, onde a menina Ana passava suas férias, havia fartura de
comida, diferente do alimento regrado da cidade e era cheia de gente que cercava
seu avô, um patriarca dono de muita terra goiana, um provável coronel que reunia
ao seu redor compadres, agregados, protegidos e ex-escravos que dali não saíram.
É nesse ambiente que Cora descreve com admiração sua tia Laudemíria como
uma moça nova, zelosa, ativa, espirituosa e alegre, que costurava bonitos vestidos.
A tia demonstrava preocupação com o filho que já tinha idade suficiente para
entrar na escola, porém ela não queria mudar para a cidade e também não queria
enviar Zezinho para o internato do seminário, adiou até quando foi possível, fato
que, para o menino que corria pelos campos da Fazenda, não fazia a menor
diferença.

A solução estava na própria Fazenda, a mãe procurou seu tio Fidelcino, descrito
como um homem nervoso, governado por luas e permanentemente amuado, contudo
um homem de notável conhecimento, como registrou Cora (2002, p. 16): “Sabia
gramática, Francês, Latim, retórica e tinha rudimentos das leis da Física. Estudara
juntamente com outro irmão, no distante e afamado Seminário do Caraça de onde
saiu sem completar o curso, com uma doença grave no olho”. Foi acertada as
aulas com o mestre que, segundo Cora, tinha capacidade para ensinaros rudimentos
ao Zezinho. Todavia houve o esclarecimento de que o mestre só ensinava à “velha
moda”:

Concordou e recomendou que mandasse buscar na cidade: cartilha, abecedário,


papel, lápis, tinta, pedra-lousa, enquanto ele laborava a palmatória. Minha tia,
timidamente, perguntou se não podia ensinar sem essa... ele respondeu com
aspereza: “Laudemiria, a senhora já viu criança aprender sem palmatória? Eu
nunca vi... sem ela eu não ensino. Com ela boto leitura, escrita e as quatro
operações na cabeça de seu menino. Se não quiser, fica lá com seu filho”. Entre
o filho crescer analfabeto e apanhar alguns bolos de palmatória, minha tia
preferiu arriscar. E lá se foi o Zezinho numa segunda-feira para a escola commil
recomendações de estudar bem, prestar muita atenção, não facilitar, não
responder torto ao tio, não contestar suas razões e prestar com ligeireza
qualquer servicinho que ele quisesse (CORALINA, 2002, p. 22).

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‘Alumiar a mente’: a instrução escolar...
VALDEZ, Diane

Nota-se que o material solicitado estava em consonância com o necessário para o


ensino das primeiras letras. Vale destacar o uso da pedra-lousa, também chamada
de ardósia, uma lousa pequena que era dada à criança para fazer, sobretudo as
operações aritméticas, pois papel era um material muito caro e escasso nesse
período. A carta de ABC ou abecedário, segundo Silva (1975, p. 150) familiarizava
o aluno com os diferentes tipos de letras, era um objeto de extrema importância,
pois quem não soubesse ler a carta era considerada “uma pessoa de pouca leitura”,
que entrara “para e escola e não aprendera nada”.

Diante da severidade do mestre, segundo a narrativa de Cora, a tia se empenhou


para facilitar a vida do filho nas aulas de um aluno só, fazia quitutes para suavizar
a brabeza do tio e beneficiar o filho, que, diferentemente da poetisa, não encontrou
empecilho nem com a escrita e nem com a leitura. Por meio das lições passadas
e estudadas, a leitura ia se tornando corrente. Contudo, ao aferir o conhecimento
de acusar o erro da operação e acertar a conta, tirando a prova, Zezinho não
achou a saída, todavia o mestre achou:

A palmatória bem lavrada em cabiúna preta com seu cabo de bom jeito e
comprimento legal, sua palma de três centímetros de espessura e cinco de
diâmetro com um signo de Salomão riscado no meio e cinco furinhos espaçados
saiu do prego e fez sua entrada triunfal. Seis bolos para começar e puxados,
para não caçoar. Da casa-grande ouvia-se o choro alto da criança junto ao
apelo aflitivo – apelo inútil, aliás. Tio Fidelcino tinha uma fé robusta na palmatória
e muita segurança de suas conseqüências (CORALINA, 2002, p. 24).

A fé robusta que o mestre tinha na palmatória é confirmada desde a sua confecção


atéa decoração do signo de Salomão, fazendo alusão de seus provérbios que
ressaltam a punição física como medida educativa com aval divino. Cora registrou
que ninguém censurou o tio e nem perdeu o apetite por causa das palmatoadas,
exceto a mãe e o filho. Em meio às aulas diárias, das oito às onze da manhã,
Zezinho aprendia leitura, escrita, gramática, geografia, latim. No segundo período,
a aula começava uma hora e terminava quando o menino finalizava as lições, só
não havia aulas aos domingos e dias santos quando o mestre Fidelcino ia pescar
ou caçar. O quarto de costura da tia permitia-a ouvir e acompanhar as lições,
sobretudo dos números cantados, assim como as punições suportadas pelo filho.
Na lição das patacas, moeda já superada que os compêndios não substituíam por
tradição, Zezinho se distraiu diante dos atrativos da Fazenda, os números se
embaralharam e não havia jeito de acertar. Foi quando a palmatória entrou em
cena novamente:

“Chega meu tio...”, gritava o menino... “Chega meu tio...” E a palmatória subindo
e descendo no compasso cadenciado da rude punição – um, dois, três, quatro,
cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, ia contando minha tia com o
coração em suspenso, com as mãos no ouvido e o rosto lavado em lágrimas. Aí

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
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minha tia não se conteve e gritou lá da janela: “O que foi meu filho?”. E o
menino de lá soluçando: “São as patacas, mamãe... são as patacas, mamãe...”
(CORALINA, 2002, p.28).

Assim se deu os primeiros contatos de Zezinho com o conhecimento. O menino


ávido do conhecimento vindo da terra, dos pássaros, das frutas e de toda atração
que a Fazenda oferecia virava ‘Seu José’. Ele tinha o primeiro nome consolidado,
imposto, sem diminutivos, para dar ao menino um sentido de responsabilidade.
Atrapalhado nos zeros das contas de dividir, seus gritos e apelos angustiantes
misturavam-se aos barulhos dos bois, vacas e galinhas. Passava o trapinho molhado
nos erros e errava de novo, após muitas palmatoadas e pedidos de ajuda para
nossa senhora e outros argumentos, Cora assinalou:

Na frente do Zezinho a lousa, os números e a palmatória forçaram, afinal, a


porta do entendimento. Acertou a conta e entrou para sempre no ministério da
divisão. Tinha terminado a escola. Foi para casa e passou a tarde toda com as
mãos dentro de uma bacia com água e sal. No dia seguinte tinha os dedos
abertos e as mãos inchadas até o cotovelo mergulhados no colostro
(CORALINA, 2002, p. 33).

Sem alternativa, pensando no futuro escolar de Zezinho, a tia de Cora se mudou


para Vila Boa de Goiás e matriculou o filho na Escola Pública do mestre Patroclo,
caracterizada por uma sala com duas janelas com vidraças de malacacheta. Era
comum neste período a escola receber o nome do mestre ou o nome de aula, pois
só havia uma classe ou uma aula e um único professor. Zezinho foi para o banco
comprido e sem encosto dos atrasados, sem antes ser ridicularizado publicamente
por ser da ‘roça’, experimentando o escárnio de pertencer ao mundo rural caipira
que se contrapunha com o mundo urbano moderno. O mestre Patroclo, segundo
Cora, era um tipo perfeito de pedagogo daquele tempo, gostava de empregar
termos eruditos, andava bem arrumado e, como o professor anterior, não abria
mão da palmatória:

Alguns pais quando assentavam o filho na escola (não se dizia matricular e


sim assentar, fazer o assentamento) inda porfiavam em recomendar: “Casque-
lhe os bolos, mestre”. O mestre Patroclo tinha na sua escola um aluno auxiliar,
escolhido dentre os mais adiantados, com a denominação expressiva e curiosa
de “decurião”. Aliás, todas as escolas antigas tinham esse decurião, inclusive
o próprio Seminário de Goiás, no tempo do Sr. Dom Eduardo, de feliz memória.
Competia ao decurião a regência da classe na falta do mestre ou mesmo com a
presença deste, estribado, decerto, no bom latim docente-discente. O decurião
tomava e passava as lições e fazia argumentação em dia de tabuada. O mestre
supervisionava (CORALINA,2002, p.35).

O método de ensino mútuo, utilizado em algumas escolas goianas, atribuía a


responsabilidade de um alunoconsiderado adiantado, o decurião ou o monitor, auxiliar

110
‘Alumiar a mente’: a instrução escolar...
VALDEZ, Diane

o mestre, ensinando e vigiando os outros alunos - uma prática que provém dos
colégios jesuítas desde o século XVI e que permaneceu na escola até meados do
século XX. De acordo com o texto de Coralina, em uma tarde o decurião requeria
respostas completas e prontas de contas com números variados, quem errasse
passava para trás e ganhava bolos. Não alcançando a resposta certa no banco
dos adiantados, o menino, vigiado pelo mestre e usando de seu cargo superior,
passou para banco dos alunos médios que também não souberam a resposta.
Desanimado, o decurião chegou ao banco dos atrasados onde encontrou Zezinho
com a resposta pronta e na ponta da língua. Cora resumiu o final no conto:

Saiu do banco de trás, passou pelos médios e tomou o primeiro lugar na frente
dos adiantados, com espanto da classe e admiração do mestre. Na semana
seguinte ele tinha tomado o lugar do decurião e com o direito, ainda, de usar a
palmatória. O mestre Patroclo depois de aposentado contava para quem
quisesse ouvir que foi aquele menino Zezinho – o único decurião de dez anos
que teve sua escola. Estava resgatado o tio Fidelcino e a comprovada excelência
de sua palmatória (CORALINA,2002, p.36).

Nota-se que, diferente de Cora, Zezinho permaneceu mais tempo na escola e


chegou ao posto máximo de um menino de dez anos: ser um decurião. Os mestres,
diferentes no estilo, um rural e outro urbano, se encontravam na ordem e na disciplina
rígida imposta, fato que, a despeito das lágrimas e dos soluços do menino,
consideraram, de forma decisiva, a eficiência da palmatória.

Considerações finais

Em seus textos literários, Cora abriu seu baú de lembranças para contar partes de
suas histórias, são fragmentos que a escritora registrou de acordo com as imagens
que ela construiu. A poetisa elegeu fatos da vida escolar de uma infância vivida no
final do período oitocentista, contudo, muito não foi dito, afinal, ninguém consegue
revelar tudo, algumas coisas foram guardadas em outros baús, pois como a própria
poetisa registrou trata-se de ‘meias confissões’ - suficientes para compreendermos,
a despeito das ressalvas, o mundo escolar nesse período.

Podemos, com isso, destacar elementos materiais e emocionais que faziam parte
de um ambiente escolar e que estão postos em várias pesquisas sobre a história da
educação. Primeiro destacamos a importância da escola no período, contradizendo
a perspectiva de que em uma região rural não se atribuía importância a ela. Para
as duas famílias, de Cora e de sua tia, a instituição familiar era respeitável pela
frequência da criança no mundo escolar, pois ao contrário, a vida futura das crianças
estaria limitada ao mundo doméstico sem maiores expectativas e, apesar de o
ambiente escolar ser descrito como um lugar frio e atemorizante, ele é apontado

111
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

como um espaço de extraordinária relevância para a formação da meninada. As


experiências isoladas dos três ambientes podem apontar que tanto no meio rural
como no meio urbano, em proporções diferentes, aprender era algo acentuado,
sobretudo se fosse orientado por mestres considerados capacitados para exercer
tal tarefa.Percebe-se com isso uma atribuição redentora da instrução como um
forte elemento de regeneração da população.

Sobre o papel dos mestres, é notável que eles assumiam um papel proeminente.
No entanto, observa-se, em algumas passagens, características de um exercício
exaustivo e não reconhecido, como a mestra cansada que lecionou várias gerações
por mais de meio século. O papel da mulher no exercício do magistério permeia
uma relação doméstica, dando a essa profissional o poder de punir para conseguir
o resultado esperado ao mesmo tempo em que a autorizava a fazer parte da
família, inclusive exercendo o papel de madrinha. Já o mestre, apesar do primeiro
ser alguém da família do discípulo, ocupava um lugar diferente, mesmo diante de
seus métodos não aprovados pela mãe do aluno, não se questionava o poder
masculino. Nota-se também a curta permanência das crianças na escola, dado
que vinha de encontro com a obrigatoriedade de ensino da época, cursar o ensino
primário era considerado suficiente.

É possível considerar vários outros aspectos do mundo escolar dos fins do século
XIX, contudo não há espaço para isso. O que notamos de mais significativo,
além da contribuição relevante da literatura para a escrita da história, é perceber
que se trata de lembranças de uma pessoa adulta que se reporta à infância. Esta
é uma ressalva importante para analisar até que ponto os relatos se aproximam
do cotidiano escolar do passado e como os valores atuais podem remodelar a
memória. Críticas, laudatórias ou nostálgicas, as lembranças conferiram um lugar
importante ao tempo de aprendizagem escolar, refletindo tanto uma afirmação
do presente, ou mesmo do futuro, quanto uma visão objetiva do passado, muitas
vezes mitificada. A infância é mais representada que descrita, sendo essas
representações marcadas pela ansiedade social, moral e política da obrigatória
seleção trazida pelo tempo e da deformação operada pela memória. Portanto,
reforçamos o registro de partes da vida escolar de Cora Coralina, que pode nos
ajudar a pensar melhor o contraditório e complexo mundo da instrução no final
do século XIX nas terras goianas.

Referências

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Goiás. In: In: BRITO. C. C.; CURADO, M. E.; VELLASCO, M. Moinho do

112
‘Alumiar a mente’: a instrução escolar...
VALDEZ, Diane

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TAHAN, V. B. Cora coragem, Cora poesia. São Paulo: Global, 1989.


113
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

114
EDUCAR E CIVILIZAR NO SERTÃO: RASTROS DO
IMAGINÁRIO SOCIAL NA EXPERIÊNCIA DE
ESCOLARIZAÇÃO DA PROVÍNCIA DE GOIÁS –
SÉCULO XIX

Thiago F. Sant’Anna*

Resumo: O artigo busca fazer emergir os significados da experiência de


escolarização de meninas e meninos na Província de Goiás do século XIX
associados às noções de progresso e civilização. Por meio de categorias oriundas
da Análise de Discurso, procuramos interpelar fontes históricas como os textos
dos relatórios de presidentes de província e artigos de jornais, ao visibilizar
representações sociais que compunham o imaginário social que presidia a
experiência de escolarização.

Palavras-chaves: História, Educação, Imaginário Social, Goiás

Abstract: This paper seeks to emerge the meanings of the experience of schooling
for girls and boys in the Province of Goiás in nineteenth century, associated with
notions of progress and civilization. Using categories derived from the Discourse
Analysis, we seek to question historical sources like texts of the reports of provincial
presidents and newspaper articles, to visualize the social representations that
compose the social imaginary that presided over the experience of schooling.

Keywords: History, Education, Social Imaginary, Goiás.

* Thiago Fernando Sant’Anna é doutor em História pela Universidade de Brasília e professor do Campus
Cidade de Goiás/Universidade Federal de Goiás. Email: tfsantanna@yahoo.com.br

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Ao longo do século XIX, na Província de Goiás, a instrução pública foi sublinhada


como condição de acesso à pretendida posição de país civilizado, com progresso
material e moral. Nos relatórios e nas mensagens trocadas entre os presidentes
de província e as assembleias legislativas, encontramos alguns desses sentidos,
que tomavam a “instrução” como “o ponto de partida”, como “base em que deve
assentar o edifício social”. 1 Assim, por exemplo, em relatório apresentado à
Assembleia Provincial, em 1858, o presidente da província, Dr. Francisco Januario
da Gama Cerqueira destacou que

Avaliando devidamente o immenso alcance que tem sobre os destinos da


sociedade a instrucção publica, especialmente em um paiz livre, onde todos os
cidadãos são chamados a intervir na direção da vida politica e social, tendo-
me preocupado muito com esse ramo da administração, sem que todavia
pudesse ainda atinar com os meios de eleva-lo rapidamente ao gráo de
prosperidade, que é para desejar-se.
Com effeito, senhores, não conheço nas sociedades modernas interesse algum
que deva ser anteposto aos da instrucção e educação do povo. Sendo ella a
condição essencial de todo e verdadeiro progresso e felicidade publica,
justificados estão previamente todos os disvelos e sacrificios, que empregardes
em melhora-la. 2

Como se vê, algumas das imagens afirmadas/reafirmadas para significar a instrução


pública em Goiás reforçavam sua importância para o progresso, para a felicidade
pública, para a modernização da sociedade. Nessa matriz discursiva, encontramos
ainda as significações atribuídas à experiência de escolarização, à moralidade e
ao ambiente higiênico que deveriam nortear o funcionamento das escolas e da
ação educacional. Afinal, “se o Estado obriga o pae de familia a mandar seu filho
para a escola, deve ter bons professores, e escolas em condições hygienicas e
moralisadas” 3 , como definia o Presidente da Província de Goiás, Dr. Aristides de
Souza Spinola, em relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de
Goiás, em março de 1880.

1
RELATORIO que a’ Assemblea Legislativa de Goyaz apresentou na sessão ordinaria de 1845 o Exmo.
Presidente da mesma Provincia Dr. José de Assis Mascarenhas. Goyaz: Typographia Provincial, 1845,
p. 06-07. In: INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS HISTÓRICOS – BRASIL CENTRAL.
Memórias Goianas. Relatórios dos governos da Província de Goiás. 1845-1849. Goiânia: UCG, 1996,
p. 16-17. v. 4.
2
RELATORIO apresentado à Assemblea Legislativa Provincial de Goyaz na Sessão ordinária de 1858
pelo Exmo. Presidente da Provincia Dr. Francisco Januario da Gama Cerqueira. Goyaz: Typographia
Goyazense, 1858, p. 12-14. In: INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS HISTÓRICOS – BRASIL
CENTRAL. Memórias Goianas. Relatórios dos governos da Província de Goiás. 1856-1859. Goiânia:
UCG, 1997, p. 139-141. v. 7.
3
RELATORIO apresentado pelo Illm. e Exm. Sr. Dr. Aristides de Souza Spinola. Presidente da Província
à Assembléa L. Provincial de Goyaz, no dia 1º. de Março de 1880. Goyaz: Typographia Provincial,
1880, p. 22-29. In: INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS HISTÓRICOS – BRASIL CENTRAL.
Memórias Goianas. Relatórios dos governos da Província de Goiás. 1880-1881. Goiânia: UCG, 2001,
p. 32-39. v. 13.

116
Educar e Civilizar no Sertão
SANT’ANNA, Thiago F.

Igualmente nos jornais da Província, as imagens e as representações dessa


formação discursiva eram também veiculadas e disseminadas, como na “Tribuna
Livre”, periódico de tendência liberal, que veiculou um artigo de Félix de Bulhões
sobre a transformação do Liceu em escola normal, no qual este reconhecia que
“teremos um instituto senão a par do que se poderia desejar, ao menos ao nivel dos
reclamos mais urgentes do progresso e civilização da nossa sociedade”
(BULHÕES, 1881, p. 1-2). 4

Também significativo, o texto “A Educação da Mulher”, sem autoria, publicado no


jornal “Tribuna Livre”, em 20 de agosto de 1881, em que se associava à imagem
da educação as de progresso, modernização e civilização, relacionadas à até então
não suposta imagem de “emancipação da mulher”. Afinal, como isso poderia ser
possível numa “sociedade moderna” distanciada das modernas sociedades européias
e norte-americanas cujas mulheres àquela época, 1881, já lutavam pela igualdade
de direitos, pela emancipação da tutela masculina? Segundo o autor ou a autora da
matéria,

É notavel o incremento que vae tomando em todos os payzes civilisados a


generosa Idea da emancipação da mulher.
[...]
Estas idéas são filhas do egoismo e ignorancia do homem e, como preconceitos
sociaes anachronicos, hão de desapparecer totalmente com o pogresso das
luzes.
Os factos attestam que a capacidade intellectual da mulher è egual a do homem.
E quem hoje poderá duvidar dos elevados dotes do espirito da mulher?
[...]
Hoje geralmente se reconhece que a mulher tem o direito de instruir-se, de
conquistar titulos scientificos; em alguns payzes discute-se a intervenção
nos negocios publicos. Não está longe o dia em que todos os seus direitos
serão proclamados e em que ella poderá concorrer com o homem em todos os
cargos, profissões e posições sociaes. 5

Ao postular o direito das mulheres de acesso à instrução, à conquista de “títulos


scientificos”, ressaltando a igualdade de “capacidade intellectual” e a importância
de sua escolarização para o progresso do país, o/a autor/a enfoca a educação
feminina como espécie de passaporte para a emancipação das mulheres. A defesa
explícita do direito das mulheres de acesso à instrução em 1881, por meio da
circulação de enunciados em defesa da emancipação feminina torna perceptível
uma virada insuspeitada para os padrões da época, no que tange às relações de
gênero.

4
Arquivo microfilmado do Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos – Brasil Central.
5
A EDUCAÇÃO da Mulher. A Tribuna Livre: órgão do Club Liberal de Goyaz, Goiás, p. 1-4, 20 ago. 1881.
Arquivo microfilmado do Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos – Brasil Central.

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Nas significações dadas à escolarização de meninas, tal como a dos meninos,


encontramos as imagens de progresso, de modernização e de civilização,
construções caras ao projeto político pensado para o país sob o regime monárquico.
São representações presentes no imaginário social da época, compartilhado pelas
elites políticas empenhadas em tornar o país uma nação que se encaixasse nos
moldes europeus. Esse imaginário, tal como foi pensado por Castoriadis, era o
elemento

[...] que dá à funcionalidade de cada sistema institucional sua orientação


específica, que sobredetermina a escolha e as conexões das redes simbólicas,
criação de cada época histórica, sua singular maneira de viver, de ver e de fazer
sua própria existência, seu mundo e suas relações com ele, esse estruturante
originário, esse significado-significante central, fonte do que se dá cada vez
como sentido indiscutível e indiscutido, suporte das articulações e das
distinções do que importa e do que não importa, origem do aumento da existência
dos objetos de investimento prático, afetivo e intelectual, individual ou
coletivos (CASTORIADIS, 2000, p. 175).

Sob tal referência, podemos perceber que os sentidos atribuídos à educação, à


instrução pública, à escolarização de meninas e de meninos existem a partir da
criação de uma ordem imaginária que orienta a funcionalidade de cada sistema
institucional. Assim, Castoriadis (2000, p. 175), emerge a articulação entre educação,
progresso, modernização e civilização como orientação estruturante da “maneira de
viver, de ver e de fazer a própria existência” da sociedade brasileira do século XIX
e, por desdobramento, da sociedade goiana do período. No discurso de passagem do
antigo para o novo, de sociedade colonial para sociedade monárquica, a educação
feminina era vista e significada como importante, sinônimo de emancipação das
mulheres e civilização da sociedade. Sob tal ótica, imaginário e simbólico estão
intrinsecamente associados, pois, “o imaginário deve utilizar o simbólico, não só para
“exprimir-se””, mas “para “existir””, enquanto, inversamente, “o simbolismo
pressupõe a capacidade imaginária”, ou seja, “a capacidade de ver em uma coisa o
que ela não é, de vê-la diferente do que é. [...] É finalmente a capacidade elementar
e irredutível de evocar uma imagem” (CASTORIADIS, 2000, p. 154).

Para Castoriadis, as relações sociais são percebidas como “instituições”, já que


são socialmente sancionadas e “só podem existir no simbólico, são impossíveis
fora do simbólico em segundo grau e constituem cada qual sua rede simbólica”
(CASTORIADIS, 2000, p. 142). E a escola, as práticas escolares, assim como
as sociais, não estão fora dessa rede simbólica. Nessa mesma direção reflete
Navarro Swain, ao assinalar que o imaginário encontra-se “em toda formação
social como solo elementar de sua construção, traçado simbólico que organiza
as forças constitutivas de um sistema histórico determinado” (NAVARRO
SWAIN, 1994, p. 55).

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Educar e Civilizar no Sertão
SANT’ANNA, Thiago F.

O entendimento compartilhado entre setores das elites goianas era o de que a


difusão da instrução pública entre meninos e meninas daquela sociedade
impulsionaria a província e o país em direção à civilização, com a modernização
de seus costumes, modos e comportamentos, com a ampliação dos espaços de
sociabilidade entre os sexos e também com o progresso material e moral. Observa-
se, assim, que a idéia de civilização incluía a de progresso e de modernização,
processada sob os vieses da moralização e da higienização da sociedade,
proporcionada principalmente pela escola, pelo atendimento escolar à população
da província.

Evocar uma imagem remete-nos ao campo das representações sociais por elas
formado. Representação social percebida, na acepção dada por Jodelet, que a
entende como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada,
com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade
comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p. 22). Trata-se de “sistemas de
interpretação que regem nossa relação com o mundo e com os outros”(JODELET,
2001, p. 22). Tais saberes orientam nossas ações no mundo ao nomearmos,
definirmos e significarmos os diferentes aspectos e dimensões de nossa realidade
diária. São elas que nos permitem interpretar o mundo, tomar decisões e
posicionarmo-nos na realidade social. Elas são social e culturalmente produzidas e
seu objetivo é justamente o de instituir o real em seus aspectos social e individual,
orientando comportamentos e práticas sociais. O espaço escolar orientado por
essa lógica de gênero opera como espaço produtor/reprodutor de corpos masculinos
e femininos, participando, enfim, desse sistema que responde pela partilha binária
e desigual de gênero.

É possível afirmar que prática de escolarização pública foi informada por


representações e por um imaginário social em que as imagens de educação, de
progresso, de civilização e de modernização estiveram associadas e sexualmente
demarcadas. Elas ancoram o projeto de construção da nação brasileira, constituída
sob a lógica da partilha de gênero. São matrizes de inteligibilidade que são criadas
e reiteradas, ao tomarem os investimentos em torno da instrução pública, “a magna
questão do dia”, significada discursivamente como “a primeira condição social” 6 ,
como um “grande movimento social que se experimenta e executa por toda parte,
para, educando o povo, em todas as suas diversas camadas sociaes, abrir mais

6
RELATORIO apresentado a Assembléa Legislativa Provincial de Goyaz pelo Exmo. Sr. Dr. Antero
Cicero de Assis, Presidente da Provincia em o 1º. de Junho de 1871. Goyaz: Typographia Provincial,
1871, p. 7. In: INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS HISTÓRICOS – BRASIL CENTRAL.
Memórias Goianas. Relatórios dos governos da Província de Goiás. 1870-1874. Goiânia: UCG, 1999,
p. 73. v. 11

119
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

vastos horisontes ao aperfeiçoamento humano em todas as suas relações de vida,


quer physica quer moraes”. 7

A preocupação com o progresso moral e material, com o aperfeiçoamento físico e


moral do ser humano, via educação, é construção ancorada em um tempo social e
cultural em que predominam as concepções cientificistas e evolucionistas do século
XIX. 8 Nestas, figuram os pressupostos de que a sociedade, tal como a natureza,
transforma-se sob a lógica evolutiva, sendo que suas mudanças representariam a
passagem de um estágio inferior para outro superior. Tal mudança evolutiva, em
direção ao progresso e à civilização, garantiria a sobrevivência das sociedades e a
dos indivíduos aptos, sendo que a educação seria um dos principais meios para
desenvolver aptidões. Inscrita no âmbito desse imaginário que faz “existir” a
instrução pública sob a ótica cientificista e evolucionista dos estágios de
desenvolvimento social e dos mais aptos, encontra-se a visão do Presidente da
Província de Goiás, Aristides de Souza Spínola, explicitada em mensagem dirigida
à Assembléia Provincial, em 1879. Segundo ele,

O mais digno objetcto da cogitação dos brasileiros é, depois da emancipação


do trabalho, a emancipação do espírito captivo da ignorância. Sob o ponto de
vista da propria instrucção elementar, (e não fallemos do estudo das sciencias)
nosso povo não entrou ainda na orbita do mundo civilizado. 9

Como dirigente “esclarecido pelo saber”, o presidente não se vê como integrante


desse “povo” brasileiro, que “não entrou ainda na orbita do mundo civilizado”, mas
imbuído da tarefa de conduzi-lo ao “mundo civilizado”, via atendimento escolar
proporcionado pelo Estado do qual ele é o principal dirigente. Daí sua preocupação
com a situação precária desse atendimento escolar, quando reclama da pouca
frequência de alunos e de alunas nas escolas elementares. Ele manifesta sua
preocupação com o futuro da província e da nação, pois a instrução pública,
significada como uma das condições para a modernização, o progresso e a

7
RELATORIO apresentado à Assembléa Legislativa Provincial de Goyaz pelo Exmo. Sr. Dr. Antero
Cícero de Assis, Presidente da Provincia em 1º. de Junho de 1875. Goyaz: Typographia Provincial,
1875, p. 28-29. In: INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS HISTÓRICOS – BRASIL CENTRAL.
Memórias Goianas. Relatórios dos governos da Província de Goiás. 1875-1879. Goiânia: UCG, 1999,
p. 16-17. v. 12.
8
Segundo Lília Moritz Schwarcz, “de um lado, o positivismo era nessa época o único conjunto formal de
princípios reconhecido e, por outro, o evolucionismo social de Spencer penetrava de maneira forte,
como que justificando toda a estrutura social vigente”. Cf. SCHWARCZ, Lília M. Retrato em Branco
e Preto: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001, p. 51.
9
RELATORIO apresentado pelo Illm. e Exm. Sr. Dr. Aristides de Souza Spinola, Presidente da Provincia
à Assemblea Provincial de Goyaz no dia 1º. de Junho de 1879. Goyaz: Typographia Provincial, 1879,
p. 15-22 passim. In: INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS HISTÓRICOS – BRASIL CENTRAL.
Memórias Goianas. Relatórios dos governos da Província de Goiás. 1875-1879. Goiânia: UCG, 1999,
p. 247-255 passim. v. 12.

120
Educar e Civilizar no Sertão
SANT’ANNA, Thiago F.

civilização, apresentava-se precariamente instalada e com reduzido número de


alunos e de alunas. Segundo aquele governante, era necessário e indispensável

[...] infiltrar em todas as camadas sociaes a crença dos beneficios da instrucção,


abrir gosto pelo estudo, mostrar a todos os paes, responsaveis pelo futuro de
seos filhos, que tornão-se reos de crimes gravissimos deixando que elles
fundadores de futuras famílias, fiquem sepultados na ignorancia. Se não instruis
a mocidade, esta terra está inevitavelmente condemnada a decadencia.
No grande certamen, diz o Exm. Sr. Ministro do Imperio, que apresenta a vida
moderna em seos variados aspectos e manifestações é fraco todo aquelle que
não possue uma certa somma relativa de conhecimentos e succumbirá
necessariamente em concurrencia com os que se dedicão a mesma carreira ou
exercem o mesmo ramo de actividade, dispondo d’este elemento essencial de
successo. Em qualquer carreira, - diz um escriptor – a supremacia será sempre
dos mais intelligentes, dos mais instruidos. 10

A pouca frequência às escolas públicas era creditada pelo governante ao


desinteresse das famílias pela educação de seus filhos e suas filhas. Além da lei
da obrigatoriedade escolar, cumpria incutir em todas as camadas sociais a
importância da educação escolar, a “crença dos beneficios da instrucçao”. Assim,
ele conclamava as famílias da sociedade goiana a cumprirem seu dever para com
a escolarização de seus meninos e de suas meninas. Segundo o presidente, somente
pela escolarização seria possível evitar que a província fosse “condemnada a
decadência”. O “controle da degeneração da raça” (MUNIZ, 2003, p. 51), na
leitura do governante e das elites letradas da época, mostrava-se indispensável
para a construção da nação e passava pela educação, pelo atendimento escolar
proporcionado pelo Estado.

A difusão da instrução pública era vista como estratégia para arrancar o país do
atraso, retirá-lo do conjunto das nações pobres e bárbaras e colocá-lo entre as
ricas e civilizadas, alinhando-o, portanto, às modernas nações européias e à norte-
americana. Sinal disso é a referência no relatório do referido Presidente Spínola
de que “vasto e complexo assumpto da instrucção publica não é difficil invocar
theorias, que tem sido brilhantemente sustentadas nos Estados-Unidos e na
Allemanha”. 11 Afinal, como nos ensina Orlandi, o que é dito codifica uma

10
RELATORIO apresentado pelo Illm. e Exm. Sr. Dr. Aristides de Souza Spinola, Presidente da Provincia
à Assemblea Provincial de Goyaz no dia 1º. de Junho de 1879. Goyaz: Typographia Provincial, 1879,
p. 15-22 passim. In: INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS HISTÓRICOS – BRASIL CENTRAL.
Memórias Goianas. Relatórios dos governos da Província de Goiás. 1875-1879. Goiânia: UCG, 1999,
p. 247-255 passim. v. 12.
11
RELATORIO apresentado pelo Illm. e Exm. Sr. Dr. Aristides de Souza Spinola. Presidente da Província
à Assembléa L. Provincial de Goyaz, no dia 1º. de Março de 1880. Goyaz: Typographia Provincial,
1880, p. 22-29. In: INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS HISTÓRICOS – BRASIL CENTRAL.
Memórias Goianas. Relatórios dos governos da Província de Goiás. 1880-1881. Goiânia: UCG, 2001,
p. 32-39 passim. v. 13.

121
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

mensagem sobre o que foi dito antes, em outros lugares. Os dizeres não são,
“apenas mensagens a serem decodificadas”, mas

[...] efeitos de sentidos que são produzidos em condições determinadas e que


estão de alguma forma presentes no modo como se diz, deixando vestígios
que o analista de discurso tem de apreender. São pistas que ele aprende a
seguir para compreender os sentidos aí produzidos, pondo em relação o dizer
com sua exterioridade, suas condições de produção. Esses sentidos têm a ver
com o que é dito ali mas também em outros lugares, assim como com o que não
é dito, e com o que poderia ser dito e não foi. Desse modo, as margens do dizer,
do texto, também fazem parte dele (ORLANDI, 2002, p. 30).

O que é dito sobre instrução pública remete-nos ao que não é dito ali, mas que faz
parte de suas condições de produção. Remete-nos, assim, às ideias de modernidade,
civilização, progresso e construção da nação, imagens e significações usadas na
tessitura do projeto político do Brasil Imperial. Elas são reiteradas nos diferentes
discursos governamentais e educacionais do século XIX. Constrói-se uma memória
acerca da educação e de seu papel na construção de nação, projetada como
moderna, civilizada, com progresso material e moral. Orlandi ressalta a importância
da memória e seu efeito de sentido ou interdiscurso, isto é, o que foi dito antes, os
acontecimentos passados:

Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente,
Ou seja, é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que torna
possível todo dizer e que retorna sob a forma do preconstruído, o já-dito que
está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra. O interdiscurso
disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação
discursiva dada (ORLANDI, 2002, p. 31).

Considerar a educação inscrita na formação discursiva de seu contexto implica


considerá-la “numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição
dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser
dito” (ORLANDI, 2002, p. 43). Assim, a noção de instrução pública não podia ser
desvinculada do projeto civilizador e construtor da nação, daí ser identificada como
“estratégia civilizatória”, tal como faz Faria Filho. Também Muniz ressalta esta
posição estratégica da educação no projeto de modernização e de civilização do
Brasil do século XIX. Tal projeto comporia a formação discursiva de onde
emergiriam os dizeres e significados sobre a instrução pública. Segundo a
historiadora,

Modernização entendida como projeto das elites dirigentes cujo propósito


maior consistia em impulsionar o Brasil em direção ao “novo”, à “civilização”
ou, como assinala Chalhoub, “no sentido da constituição de uma ordem social
burguesa”. Uma ordem cuja construção processou-se no contexto social da
consolidação do capitalismo, no incremento da vida urbana, que oferecia novas

122
Educar e Civilizar no Sertão
SANT’ANNA, Thiago F.

alternativas de convivência social, na reorganização das vivências familiares e


doméstica, do tempo e das atividades femininas. Enfim, um conjunto de
transformações significativas que responderiam pela instauração de um novo
estilo de vida, o estilo burguês (MUNIZ, 1999, p. 129-130).

Educação, modernização, progresso e civilização, segundo o ethos burguês,


compunham o modelo de organização da sociedade brasileira, tal como arquitetado
no projeto de construção da nação sob a égide da Monarquia. A instrução pública
seria o caminho priorizado para essa mutação. Seria preciso construir todo o aparato
funcional para o atendimento escolar, regulado por normas e leis, provido de recursos
materiais e humanos e também de instrumentos de controle, de vigilância e de
punição, os quais serão analisados posteriormente. Tal aparelhamento institucional
deveria ser capaz de operar a transformação buscada, a que transformava
indivíduos rudes e ignorantes em pessoas civilizadas e polidas, dignos da designação
de cidadãos e cidadãs.

Após a promulgação da Constituição em 1824, os esforços em torno da definição


dos princípios e das diretrizes do atendimento escolar resultaram na aprovação da
lei de Instrução Pública, de 15 de outubro de 1827. Nessa, seus princípios
orientadores encontravam-se pautados em concepções liberais de educação e de
instrução primária da experiência européia, desatrelada, portanto, da realidade
brasileira daquele momento, em que os quadros docentes mal conheciam e sequer
dominavam os métodos de ensino propostos. Tratava-se de concepções informadas
por um pensamento em que se fundiam tradições do antigo regime, do iluminismo
e do ideário da modernidade capitalista. Conforme Kuhlmann Júnior,

A escola primária desenvolveu-se de maneira distinta das demais instituições


de educação popular, pois, embora sua expansão mais significativa tenha
ocorrido durante a segunda metade do século XIX, ligava-se também às
tradições do Iluminismo e da Revolução Francesa e aos seus ideais de
igualdade, liberdade e fraternidade. Assim, ao lado da vontade de normalizar
as classes trabalhadoras por meio da educação, associava-se a defesa da
universalização do ensino, que promoveria a educação moral para todas as
classes, assim como seria um instrumento de cidadania e de fornecimento dos
conhecimentos básicos necessários aos processos produtivos da sociedade
industrial (KUHLMANN JUNIOR, 2005, p. 73).

Inscrita nessas perspectivas, a instrução pública e gratuita para todos os cidadãos


brasileiros, assegurada pela Constituição de 1824, não buscaria, aqui, “normalizar
as classes trabalhadoras por meio da educação”, pois manteve o trabalho escravo
e este não era objeto de normalização de conduta já que se excluíam os escravos
do atendimento escolar. De modo geral, a teoria e a prática dos homens liberais
que governavam o país, e que visavam “substituir as instituições coloniais por
outras mais adequadas a uma nação independente” (COSTA, 1999, p. 131), incluíam

123
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

um projeto e uma política educacional que conferiam à instrução pública a posição


e o papel de transformar pessoas em meninas e meninos, em cidadãs e cidadãos
educados, isto é, civilizados.

A manutenção da escravidão na ordem monárquica revela as ambiguidades e os


limites do liberalismo e da modernização à brasileira. Segundo Wolkmer, como
elemento indispensável à vida cultural no império brasileiro, o liberalismo “acabou
constituindo-se na proposta de progresso e modernização superadora do
colonialismo, ainda que admitisse a propriedade escrava e convivesse com a
estrutura patrimonialista de poder” (WOLKMER, 2006, p. 10). Nessa direção, de
acordo com Costa,

Contrariamente ao que se tem sugerido às vezes, o compromisso das elites


brasileiras com as idéias liberais não foi um simples gesto de imitação cultural,
expressão de uma cultura colonial e periférica subordinada às idéias e aos
mercados europeus. O liberalismo não foi um simples capricho das elites
brasileiras, e os slogans liberais não foram usados meramente como símbolos
do status “civilizado” dos que os invocavam, se bem que para alguns tenham
sido apenas isso. Para a maioria, no entanto, as idéias liberais eram armas
ideológicas com que pretendiam alcançar metas políticas e econômicas
específicas (COSTA, 1999, p. 134)..

As reflexões de Costa nos permitem, portanto, perceber a adoção do liberalismo


menos do que “simples gesto de imitação cultural”, e provavelmente como “armas
ideológicas”, mas também como formação discursiva mobilizada pelas elites
brasileiras para alcançar suas metas. Dentro desta, incluía-se a extinção de práticas
identificadas com o passado colonial que possibilitassem a aquisição de novos
hábitos e costumes, como o de consumo de produtos e serviços, via escolarização
dos diferentes segmentos da sociedade brasileira.

O liberalismo convinha aos interesses das elites brasileiras porque compunha a


rede de sentidos, ou seja, a formação discursiva que inscrevia seus membros
como sujeitos históricos e políticos, que se arrogavam a função, inclusive, de modelos
e de condutores da nação. O liberalismo integrava, assim, as condições de produção
do discurso educacional do período. Orlandi define as condições de produção
como o contexto sócio-histórico e ideológico de onde emergem os sentidos
(ORLANDI, 2002, p. 30). Tal “contexto”, no entanto, não é dado a priori, mas é
constitutivo do objeto de investigação, fazendo parte dele e emergindo junto dele,
com suas memórias, seus esquecimentos, suas situações e suas posições na ordem
do discurso.

A construção da nação, todavia, era projeto que dividia as elites, pois não havia
consenso quanto ao arranjo institucional que melhor atendesse aos diferentes

124
Educar e Civilizar no Sertão
SANT’ANNA, Thiago F.

interesses locais e regionais (Cf. CARVALHO, 2003). Mesmo depois que se


construiu um consenso em torno da monarquia constitucional, permaneceram sérias
divisões entre as elites quanto aos rumos e encaminhamentos da política e
administração imperiais. Conforme Costa,

A organização do sistema educacional, a legislação agrária, a abolição do


tráfico de escravos, a liberdade de imprensa, a naturalização de estrangeiros, o
recrutamento militar, a liberdade de culto, a organização de conselhos
provinciais e municipais, a composição do poder judicial: estes eram alguns
dos pontos que dividiam os representantes em dois grupos opostos, um liberal
e outro conservador (COSTA, 1999, p. 145).

Reunidos, finalmente, em torno de projetos comuns de construção da nação e de


superação dos entraves coloniais em direção à ordem burguesa, liberais e
conservadores, todavia, dividiam-se quando a questão eram os rumos da política
educacional do Império, pois alguns defendiam a obrigação do Estado de assegurar
a educação ao cidadão, enquanto para outros ela deveria ser deixada por conta da
iniciativa privada, laica ou religiosa, com a interferência mínima do Estado. Essa
divisão esteve presente nas discussões sobre educação no século XIX. 12

Escolarizar via atendimento estatal ou particular significava garantir que a transição


de uma sociedade tradicional para a moderna se processasse dentro da ordem e
da legalidade, sem perigo para a propriedade e livre de maiores problemas causados
pela anarquia dos levantes populares. 13 Escolarizar significava construir futuros
cidadãos e cidadãs e, por efeito, a nação brasileira, fundada nos princípios da
ordem burguesa: patriarcal, androcêntrica, heterossexual, cristã e capitalista.

Referências

A EDUCAÇÃO da Mulher. A Tribuna Livre: órgão do Club Liberal de Goyaz,


Goiás, p. 1-4, 20 ago. 1881. Arquivo microfilmado do Instituto de Pesquisas e
Estudos Históricos – Brasil Central.

12
Cf. SAVIANI, 2008, (Coleção memória da educação); OLIVEIRA, A. de Almeida. O Ensino Publico.
Obra destinada a mostrar o estado, em que se acha, e as reformas que exige a instrucção publica no
Brazil. Vol. Único. Maranhão, 1874; BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Reforma do
Ensino Primário e várias instituições complementares da Instrução Pública. Vol. X, Tomo III. Ministério
da Educação e Saúde: Rio de Janeiro, 1947.
13
VILLELA, Heloisa de O. S. O Mestre-Escola e a Professora. In: LOPES, Elaine Marta Teixeira; FARIA
FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive. (Orgs). 500 Anos de Educação no Brasil. 3 ed.
Autêntica, Belo Horizonte, 2003, p. 103. Sobre o medo das elites em relação à levantes de escravos,
AZEVEDO, Célia Marinho de. Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites. Século
XIX. São Paulo: Annablume, 2004.

125
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

AZEVEDO, Célia Marinho de. Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário
das elites. Século XIX. São Paulo: Annablume, 2004.

BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Reforma do Ensino Primário


e várias instituições complementares da Instrução Pública. Vol. X, Tomo III.
Ministério da Educação e Saúde: Rio de Janeiro, 1947.

BULHÕES, Félix. Instrucção Secundaria. A Tribuna Livre: órgão do Club Liberal


de Goyaz, Goiás, p. 1-2, 11 jun. 1881. Arquivo microfilmado do Instituto de
Pesquisas e Estudos Históricos – Brasil Central.

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial.


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2003.

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COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 7


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JODELET, Denise. Representações Sociais: um domínio em expansão. In: ______


(Org). As Representações Sociais. Tradução de Lílian Ulup. Rio de Janeiro:
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KUHLMANN JUNIOR, Moysés. A educação infantil no século XIX. In:


STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Helena Câmara. (Orgs). Histórias e
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MUNIZ, Diva do Couto Gontijo. O Império, o piano e o ensino da “miserável


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MUNIZ, Diva do Couto Gontijo. Um toque de gênero: história e educação em


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OLIVEIRA, A. de Almeida. O Ensino Publico. Obra destinada a mostrar o estado,


em que se acha, e as reformas que exige a instrucção publica no Brazil. Vol.
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126
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SANT’ANNA, Thiago F.

ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 4 ed.


Campinas, SP: Pontes, 2002, p. 30.

RELATORIO apresentado a Assembléa Legislativa Provincial de Goyaz pelo Exmo.


Sr. Dr. Antero Cicero de Assis, Presidente da Provincia em o 1º. de Junho de
1871. Goyaz: Typographia Provincial, 1871. In: INSTITUTO DE PESQUISAS E
ESTUDOS HISTÓRICOS – BRASIL CENTRAL. Memórias Goianas.
Relatórios dos governos da Província de Goiás. 1870-1874. Goiânia: UCG, 1999.
v. 11

RELATORIO apresentado à Assemblea Legislativa Provincial de Goyaz na Sessão


ordinária de 1858 pelo Exmo. Presidente da Provincia Dr. Francisco Januario da
Gama Cerqueira. Goyaz: Typographia Goyazense, 1858. In: INSTITUTO DE
PESQUISAS E ESTUDOS HISTÓRICOS – BRASIL CENTRAL. Memórias
Goianas. Relatórios dos governos da Província de Goiás. 1856-1859. Goiânia:
UCG, 1997. v. 7.

RELATORIO apresentado à Assembléa Legislativa Provincial de Goyaz pelo Exmo.


Sr. Dr. Antero Cícero de Assis, Presidente da Provincia em 1º. de Junho de 1875.
Goyaz: Typographia Provincial, 1875. In: INSTITUTO DE PESQUISAS E
ESTUDOS HISTÓRICOS – BRASIL CENTRAL. Memórias Goianas.
Relatórios dos governos da Província de Goiás. 1875-1879. Goiânia: UCG, 1999.
v. 12.

RELATORIO apresentado pelo Illm. e Exm. Sr. Dr. Aristides de Souza Spinola.
Presidente da Província à Assembléa L. Provincial de Goyaz, no dia 1º. de Março
de 1880. Goyaz: Typographia Provincial, 1880. In: INSTITUTO DE PESQUISAS
E ESTUDOS HISTÓRICOS – BRASIL CENTRAL. Memórias Goianas.
Relatórios dos governos da Província de Goiás. 1880-1881. Goiânia: UCG, 2001.
v. 13.

RELATORIO apresentado pelo Illm. e Exm. Sr. Dr. Aristides de Souza Spinola,
Presidente da Provincia à Assemblea Provincial de Goyaz no dia 1º. de Junho de
1879. Goyaz: Typographia Provincial, 1879. In: INSTITUTO DE PESQUISAS E
ESTUDOS HISTÓRICOS – BRASIL CENTRAL. Memórias Goianas.
Relatórios dos governos da Província de Goiás. 1875-1879. Goiânia: UCG, 1999.
v. 12.

RELATORIO que a’ Assemblea Legislativa de Goyaz apresentou na sessão


ordinaria de 1845 o Exmo. Presidente da mesma Provincia Dr. José de Assis
Mascarenhas. Goyaz: Typographia Provincial, 1845. In: INSTITUTO DE
PESQUISAS E ESTUDOS HISTÓRICOS – BRASIL CENTRAL. Memórias

127
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Goianas. Relatórios dos governos da Província de Goiás. 1845-1849. Goiânia:


UCG, 1996. v. 4.

SAVIANI, Demerval. História das Idéias Pedagógicas no Brasil. 2ª. ed. Rev. e
ampl. Campinas. SP: Autores Associados, 2008, (Coleção memória da educação).

SCHWARCZ, Lília M. Retrato em Branco e Preto: jornais, escravos e cidadãos


em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

VILLELA, Heloisa de O. S. O Mestre-Escola e a Professora. In: LOPES, Elaine


Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive. (Orgs).
500 Anos de Educação no Brasil. 3 ed. Autêntica, Belo Horizonte, 2003.

WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. 3 ed. Rio de Janeiro:


Forense, 2006.

128
EDUCAÇÃO AMBIENTAL SOB O ENFOQUE DA
CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO GEOGRÁFICO:
RECUPERANDO O PASSADO E COMPREENDENDO
O PRESENTE

Analúcia Bueno dos Reis Giometti*

Resumo: Descreve-se como analisar a paisagem embasada num recorte temporal


e espacial registrando fatos históricos que subsidiem estudos geográficos. As
atividades podem ser aplicadas em qualquer recorte geográfico, desde que se
apoiem em dados históricos. Para saber analisar, interpretar e opinar sobre a
expansão urbana, procurando preservar o meio ambiente onde estão inseridos, é
de suma importância que os alunos tenham conhecimento de como a sua cidade
cresceu e se desenvolveu ao longo do tempo histórico. É possível desenvolver o
olhar crítico do espaço onde vive o aluno, levando-o a avaliar o contexto deste
lugar. Para este diagnóstico utilizam-se recursos didáticos de análise espacial e
temporal, que contribuem para que os alunos compreendam as mudanças ocorridas
durante o processo de ocupação e construção de sua cidade. O conhecimento
geográfico leva os alunos a analisarem as dinâmicas socioculturais, correlacionando-
as com as mudanças que provocam na natureza. O objetivo é propor um programa
de educação ambiental voltado a despertar o interesse dos alunos em reconhecer
os problemas ambientais, que ocorreram e ocorrem no processo de ocupação
espacial. Ao final deste trabalho os alunos foram capazes de: desenvolver ações
que impactem menos o ambiente; descrever os problemas ambientais locais;
explicar e compreender as melhores formas de aproveitamento dos recursos
naturais; analisar a expansão urbana através do estudo das categorias espaço e

* Profa. Dra. em Geografia na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” -UNESP/campus
de Franca na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - FCHS, junto ao Departamento de Educação,
Ciências Sociais e Políticas Públicas (DECSPP). É professora do quadro da Pós-graduação em Serviço
Social. Atualmente exerce a chefia do Departamento DECSPP/ campus de Franca. E-mail:
analucia@franca.unesp.br

129
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

tempo; despertar seu olhar para a compreensão e análise crítica da paisagem


urbana; possibilitar o preparo do aluno para construir conceitos que o levem a
buscar a reversão da degradação paisagística.

Palavras-chaves: Educação ambiental. Análise espacial e temporal. Processo


de ocupação urbana.

Environmental Education under the focus of the construction of


geographical space: recovering the past and understanding the present

Abstract: It describes how to analyze the landscape based in a temporal and


spatial cutout, recording historic facts that subsidize geographical studies. The
activities can be applied in any geographical cutout since they are supported by
historic data. To know how to analyze, interpret, and give opinion about the urban
expansion, seeking the conservation of the environment where they are inserted
in, it is in short importance that the students have knowledge about how their city
has grown and developed along historical time. It is possible to develop the critical
view of the space where the student lives in, leading him to analyze the context of
this place. For this diagnosis, educational material of spatial and temporal analysis
is used, which contribute for the students’ understanding about the changes that
occurred during the process of occupation and construction of their city. The
geographical knowledge leads students to analyze the socio-cultural dynamics,
correlating them with the changes that they cause in nature. The objective is to
propose an environmental education program, aimed to arouse the interest of
students in recognizing the environmental problems that occurred and occur in the
process of spatial education. At the end of this work, the students were able to:
develop actions that impact the environment the less possible; describe the local
environmental problems; explain and understand the best ways of using the natural
resources; analyze the urban expansion through the study of space and time
categories; arouse their view for the understanding and critical analysis of the
urban landscape; prepare the student to construct concepts that lead him to seek
the reversion of landscape degradation.

Keywords: Environmental Education; Spatial and temporal analysis; Process of


urban occupation.

130
Educação Ambiental sob o enfoque da construção do espaço geográfico
GIOMETTI, Analúcia Bueno dos Reis

Introdução

A Proposta Curricular do Estado de São Paulo/Brasil, de 2008, para Geografia no


Ensino Fundamental, tem como princípio central “[...] a escola que aprende, o
currículo como espaço de cultura, as competências como eixo de aprendizagem e
a articulação das competências para aprender e contextualizar o mundo
contemporâneo” (FINI, 2008, p. 11).

Com esta visão: selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações


representadas de diferentes formas constituem noções básicas que levam os
indivíduos a tomar decisões e enfrentar situações-problema. Ler implica também
– além de empregar o raciocínio hipotético-dedutivo, que possibilita a compreensão
de fenômenos – antecipar, de forma comprometida, a ação para intervir no
fenômeno e resolver os problemas decorrentes dele. Escrever, por sua vez, significa
dominar os muitos formatos que a solução do problema comporta (FINI, 2008, p.
20).

Pautando-se nesta visão educacional propõe-se trabalhar a Geografia através de


uma visão dinâmica e preocupada com um mundo dominado pela globalização e
pelas questões ambientais. Esta concepção prioriza os debates que possibilitem
compreender as transformações impostas pelo meio técnico-científico-
informacional, as quais aceleraram os processos degenerativos dos ecossistemas.

Para reverter este quadro desolador há uma crescente busca pela Educação
Ambiental que, ao se respaldar nos avanços tecnológicos e científicos, procura
detectar os problemas ambientais advindos do modelo de desenvolvimento atual,
excludente e esgotante, o qual compromete os recursos naturais. Ao mesmo tempo,
este modelo educacional aponta os caminhos para a reversão dos processos
degenerativos, quando trabalha noções de sustentabilidade ambiental com os alunos,
procurando incutir noções de preservação do meio ambiente.

O atual currículo da disciplina, ao abrir espaço para trabalhos interdisciplinares,


demonstra a importância de se interagir com outras ciências, tendo em vista a
ampliação da visão de mundo dos estudantes.

A proposta curricular de Geografia para o Sexto ano - Quinta série do Ensino


Fundamental - abre espaço para a aplicação desta proposta quando destaca, no
primeiro bimestre, os temas: “A paisagem” e “Escalas da Geografia”. Neste
momento é possível trabalhar com os seguintes conceitos: os ritmos e ciclos da
natureza (os objetos naturais); o tempo histórico (os objetos sociais); a leitura de
paisagens; o lugar (as paisagens da janela); entre o mundo e o lugar, e encerra
com a nova escala dos impactos ambientais sobre o meio ambiente (SÃO PAULO,

131
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

2008, p. 47).

Assim, o aluno desta série já está apto a discutir os conceitos, que envolvem:
primeiro, a compreensão da construção do núcleo urbano no contexto da formação
do Estado de São Paulo/brasil; segundo, a ação antrópica como desencadeadora
da apropriação do espaço; terceiro, a noção espacial - geoambiental do município;
quarto, a noção temporal do município, e o quinto o conceito que envolve o papel
da construção da consciência local/mundial para os problemas ambientais.

Esta é uma abordagem nova para o ensino de Geografia na visão da construção


da educação ambiental, pois parte da compreensão do espaço - tempo, o que
possibilita ao aluno compreender como se deu o processo de apropriação do espaço
pelo homem inserido neste contexto.

A maneira como os conhecimentos serão transmitidos aos alunos, conscientizando-


os para serem futuros agentes transformadores da sociedade, se constitui em uma
das principais justificativas deste projeto. A proposta deste projeto de ensino vem
de encontro com a proposta curricular pedagógica para o Estado de São Paulo/
Brasil.

Natureza do Projeto é pautada na ação didático-pedagógica de caráter


interdisciplinar com vistas à produção de material didático de apoio para o ensino
de Geografia, mas que subsidiará conteúdos das áreas de Biologia, Química e
História.

Tipos de ações empregadas:

1. Procura despertar no aluno responsabilidade ambiental, mostrando a correlação


entre suas intervenções humanas como agente transformador do ambiente, mas,
ao mesmo tempo, discute noções que mostram que estas ações podem desencadear
desequilíbrios nos ecossistemas. Para isto, desenvolve a capacidade do aluno de
pesquisar e procurar soluções para situações-problema.

2. Despertar e estimular ações argumentativas nos alunos através de trabalhos


em grupos que debaterão os temas propostos. Estes debates procurarão estimular
o olhar crítico do aluno quanto à preservação do local onde vive.

3. Fornecer informações sobre o meio ambiente, tendo em vista levantar discussões


que despertem os alunos para a realidade onde habitam.

4. Estimular a compreensão da expansão urbana através do conhecimento da


evolução do sítio urbano.

132
Educação Ambiental sob o enfoque da construção do espaço geográfico
GIOMETTI, Analúcia Bueno dos Reis

Este texto apresenta dois objetivos principais. O primeiro, busca auxiliar os


professores e alunos do Ensino Fundamental a entenderem como se deu o processo
de ocupação do espaço urbano, buscando a compreensão do que está ocorrendo
com a cidade onde residem. Para saber analisar, interpretar e opinar sobre a
expansão urbana em seu município, procurando preservar o meio ambiente onde
estão inseridos, é de suma importância que os alunos tenham conhecimento de
como a sua cidade cresceu e se desenvolveu ao longo do tempo histórico. Com
esta abordagem é possível desenvolver o olhar crítico do entorno do espaço onde
vive o aluno, levando-o a avaliar o contexto deste lugar. Para este diagnóstico
utilizam-se recursos didáticos de análise espacial e temporal, que contribuem para
que os alunos compreendam as mudanças ocorridas durante o processo de
ocupação e construção do espaço urbano.

Com o enfoque das categorias Espaço e Tempo, os alunos passam a compreender


a realidade em que se inserem, tanto numa escala planetária como local. Portanto,
o conhecimento geográfico leva os alunos a analisarem as dinâmicas socioculturais,
correlacionando-as com as mudanças que provocam nos elementos da natureza.

O segundo objetivo deste Projeto propõe a implementação de um programa de


educação ambiental voltado a despertar o interesse dos alunos em reconhecer os
problemas ambientais, que ocorreram e ocorrem ao longo do processo de ocupação
espacial, como assunto de preocupação imediata e emergencial. Como salienta
David Hutchison (2000, p. 15), “[...] as escolas têm a obrigação especial de preparar
os jovens para os desafios que enfrentarão quando adultos.”

Neste contexto, serão realizados trabalhos de campo com a finalidade de avaliar


o espaço urbano da cidade, com a intenção de construir o conhecimento necessário
para o levantamento dos problemas ambientais. Para obter este conhecimento
estão programadas saídas que busquem o resgate da construção do sítio urbano;
saídas que analisem, através de questionários, os pontos de parada de observação
do espaço. Na primeira saída de campo serão percorridos cinco pontos, previamente
demarcados na planta urbana, que irão resgatar o crescimento do sítio urbano,
associado às condições ambientais do local, o que possibilitará ao aluno desenvolver
seu olhar crítico. Já no segundo trabalho de campo, os alunos irão percorrer a pé
três pontos de parada, o que possibilitará a análise da qualidade dos cursos d´água
da zona urbana.

Ao final deste projeto espera-se que os alunos sejam capazes de: trabalhar os
principais conceitos sobre o tema proposto; construir e desenvolver ações que
impactem menos o meio ambiente; aplicar conceitos relativos à preservação do
planeta; descrever (identificar, distinguir, perceber) os problemas ambientais locais,
regionais e globais; explicar e compreender (construir, interpretar e opinar) as

133
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

melhores formas de aproveitamento dos recursos naturais; analisar a expansão


urbana através do estudo das categorias Espaço e Tempo; despertar seu olhar
para a compreensão e análise crítica da paisagem urbana; possibilitar o preparo
do aluno para construir conceitos que o levem a buscar a reversão da degradação
paisagística.

Desta maneira, busca-se, através de uma experiência didática, uma proposta


alternativa que possibilite um outro olhar sobre, principalmente, o ensino de
Geografia, História e Biologia, tornando-o mais motivador e compatível com a
realidade vivenciada pelos alunos. Este ferramental auxiliará na promoção de uma
escola apta a enfrentar os desafios sociais, econômicos, culturais e ambientais do
mundo contemporâneo.

Descrição detalhada da proposta

Neste projeto descreve-se uma aplicação metodológica embasada num recorte


temporal e espacial, registrando fatos históricos que subsidiem estudos geográficos.
Estes passos metodológicos mostram como trabalhar a relação entre o tempo e o
espaço, demonstrando de maneira objetiva e prática um método de trabalho para
análise da evolução de um espaço geográfico. As atividades práticas desenvolvidas
neste texto podem ser aplicadas em qualquer recorte geográfico, desde que se
apoiem em dados históricos que possibilitem analisar o desenvolvimento evolutivo
da espacialização geográfica.

O conteúdo didático da Disciplina Geografia permite o estudo das categorias


Espaço e Tempo. Com este enfoque, possibilita aos alunos compreenderem a
realidade em que se inserem, tanto numa escala planetária como local, portanto,
nas mais diversas escalas espaciais. O conhecimento geográfico leva os alunos a
analisarem as dinâmicas socioculturais correlacionando-as com as mudanças que
provocam nos elementos da natureza.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) da Geografia, no primeiro ciclo,


enfatizam que devem ser abordadas as “[...] questões relativas à presença e ao
papel da natureza e sua relação com a ação dos indivíduos, dos grupos sociais e da
sociedade na construção do espaço geográfico” (BRASIL, 2000, p. 127).

Assim, neste ciclo há a preocupação de se compreenderem as relações entre a


natureza e a sociedade, e como o homem se apropria da paisagem. A Geografia,
ao trabalhar com diferentes noções espaciais e temporais, associadas aos
fenômenos naturais e socioculturais, vai traçando e delineando a compreensão
das dinâmicas paisagísticas.

134
Educação Ambiental sob o enfoque da construção do espaço geográfico
GIOMETTI, Analúcia Bueno dos Reis

Nesse sentido, a análise da paisagem deve refletir as transformações que vão


ocorrendo ao longo do tempo. Para alcançar este intento, é preciso buscar

[...] explicações para aquilo que, [...] permaneceu ou foi transformado, isto é, os
elementos do passado e do presente que podem ser compreendidos mediante a
análise do processo de produção/organização do espaço (BRASIL, 1997, p. 74).

Os Parâmetros Curriculares enfatizam a noção da paisagem como lugar:

[...] a paisagem ganhando significados para aqueles que a vivem e a constroem.


As percepções que os indivíduos, grupos ou sociedades têm do lugar nos
quais se encontram e as relações singulares que com ele estabelecem fazem
parte do processo de construção das representações de imagens do mundo e
do espaço geográfico. As percepções, as vivências e a memória dos indivíduos
e dos grupos sociais são, portanto, elementos importantes na constituição do
saber geográfico (BRASIL, 1997, p. 75).

Essa visão possibilitará que cada criança identifique na paisagem elementos do


passado e sua inter-relação com o tempo em que vive, compreendendo o seu
papel e o de outros atores sociais em relação a diferentes tempos e culturas,
formando pessoas conscientes de suas relações com o presente, com o passado
e com o futuro .

O objetivo deste método é o de resgatar a expansão das cidades através da história


e compreender o processo de ocupação humana/geográfica dos sítios urbanos.
As atividades práticas desenvolvidas podem ser aplicadas em qualquer recorte
geográfico, desde que se apoiem em dados históricos que possibilitem analisar o
desenvolvimento evolutivo da espacialização geográfica, caracterizando a formação
dos núcleos urbanos. O recorte espacial pode se apoiar nos mais variados tamanhos/
escalas, podendo ficar restrito ao espaço escolar; ao quarteirão da escola; ao
bairro que se tem intenção de trabalhar num contexto de construção do urbano,
levantando sua importância espacial; ao município; região geográfica; estado; país,
enfim, dependendo da abordagem histórica que se quer fazer é o recorte que será
trabalhado.

Desta maneira, o primeiro passo é estabelecer o tamanho do recorte geográfico.


Em seguida, determinado o espaço a ser trabalhado, deve-se partir para o
levantamento dos primórdios da ocupação, identificando os primeiros ocupantes
da região estudada. Com este intuito ir traçando toda a história de ocupação do
espaço até chegar nos dias atuais.

Na descrição desta abordagem, como exemplo da aplicação metodológica será


tomado o recorte espacial de um sítio urbano. Os mesmos passos descritos neste

135
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

percurso serão aplicados em qualquer das escolhas feitas em termos de


espacialização.

Assim, identificar, através de uma pesquisa, a trajetória percorrida pela cidade


estudada dentro do processo de constituição e construção geopolítica atual do seu
Estado, ou seja, da região maior onde está inserida a área de trabalho. Tendo em
mãos a construção histórica do urbano é possível perceber como a cidade cresceu,
dinamizou-se e construiu seu espaço.

Nessa trajetória os núcleos urbanos foram deixando suas marcas no tempo e no


espaço, assumindo suas especificidades e peculiaridades, o que cada pesquisa
desenvolvida conjuntamente com os alunos poderá revelar. Em seguida, identificar
a trajetória percorrida pela cidade estudada, dentro deste processo histórico.
Explorar cada momento histórico/geográfico deste crescimento possibilitará aos
alunos compreenderem a apropriação da paisagem pelo homem.

Assim, num primeiro momento deve-se trabalhar o conteúdo da evolução histórica


do município estudado com os alunos. Estes elementos sobre a história local poderão
ser pesquisados em várias fontes. Esse estudo possibilitará identificar as diferentes
etapas do crescimento e desenvolvimento do núcleo estudado. Identificar, através
de uma pesquisa, a trajetória percorrida pela cidade estudada, dentro do processo
de construção de seu espaço. Esses elementos poderão ser pesquisados em livros,
almanaques, poesias, crônicas etc. sobre a história local, bibliotecas, fotos, livros
de atas da Câmara Municipal, Prefeitura, Cartórios locais e também através de
entrevistas com pessoas idosas da cidade utilizando-se, portanto, da metodologia
da história oral, entre outras fontes. Procurar identificar as diferentes etapas do
crescimento e desenvolvimento do núcleo estudado.

Na planta urbana estudada, identificar e localizar o nome dos personagens ilustres


que deram nomes às ruas e praças. Trabalhar na identificação dos atores sociais
que atuaram nesse contexto, resgatando a sua história. Numa fase posterior,
localizar: o local da primeira igreja, do primeiro prédio da Câmara Municipal, da
primeira casa de comércio, do primeiro mercado, das ruas comerciais, as primeiras
lojas, o jardim principal, córregos etc., procurando, junto com os alunos, reconstruir
o desenvolvimento do urbano.

Ao final desta atividade, o aluno terá demarcado as áreas de expansão urbana nos
diversos períodos históricos. Procurar demarcar zonas de crescimento desta malha
por períodos mais expressivos, associando o deslocamento deste crescimento a
fatores econômicos, sociais, políticos. Tomar como base geográfica a rosa-dos-
ventos, que norteará a tendência deste crescimento, partindo da área central.

136
Educação Ambiental sob o enfoque da construção do espaço geográfico
GIOMETTI, Analúcia Bueno dos Reis

Assim, trabalhar o conteúdo do texto com os alunos, tendo como suporte de estudo
o texto da evolução histórica do município estudado. Os alunos vão demarcando
com cores a expansão da zona urbana, seguindo a planta guia deste crescimento.
Ao final desta atividade construirão uma planta que demarcará o processo de
expansão do sítio urbano demarcado as áreas de expansão urbana nos diversos
períodos históricos de evolução da malha urbana.

Este módulo se encerra com visitas de campo. Na excursão, os alunos irão percorrer
estes pontos da zona urbana, respeitando os períodos cronológicos, iniciando pela
área onde se deu o início do povoamento da cidade estudada. Para uma melhor
compreensão histórico-geográfica, recorrer ao auxílio da planta urbana para que
os alunos se orientem durante os trabalhos desenvolvidos. A professora demarca
previamente os pontos de paradas mais representativos da espacialização da
expansão urbana.

É importante percorrer os diversos períodos de expansão respeitando a cronologia


espaço-tempo, de tal modo que o aluno vá compreendendo como ocorreu o processo
de expansão da malha urbana. Em cada ponto de parada, o professor deverá
chamar a atenção dos seus alunos para a caracterização geográfica e histórica do
local.

Assim, escolher estes pontos segundo a visão espaço e tempo, procurando iniciar
os trabalhos pela área pioneira do núcleo urbano, destacando a importância deste
local, por ser a área onde teve origem a expansão da malha urbana. Fazer uma
descrição do meio ambiente despertando a atenção do aluno, seguindo o roteiro da
caracterização geográfico-histórica abaixo discriminada.

Em cada ponto de parada observar/espacializar:

1. em primeiro lugar espacializar os pontos de parada na planta urbana.

2. em seguida observar as características arquitetônicas dos pontos observados.

3. comparar a cidade ontem e hoje.

4. analisar a conservação dos prédios históricos.

5. descrever a função ocupacional dos prédios históricos: mantiveram a função


de quando foram projetados: prédios bancários, residenciais, comerciais,
educacionais, hospitalares, cadeia, fórum ...; houve mudança de função; se houve
mudança, qual foi.

137
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

6. observar as condições do bairro quanto ao saneamento básico: descrever as


condições das vias expressas: observar qual a função do bairro, tais como comercial;
residencial; comercial/residencial; industrial ...; levantar as condições das moradias:
bem conservadas ou mal conservadas.

7. assinalar no bairro a presença de: escolas, creches, igrejas, comércio, posto de


saúde... Localizar na planta o local da sua escola. Nas séries mais avançadas, ir
demarcando na planta urbana estes pontos.

8. o bairro apresenta linhas de ônibus circular.

9. o bairro apresenta pichações nos prédios públicos e/ou particulares.

10. analisar o relevo do bairro: relevo plano; relevo suavemente ondulado; relevo
fortemente ondulado (apresentando grandes diferenças altimétricas expressas
em ruas e avenidas com muita subida e descida).

11. quando houver presença de cursos d´água observar: aparência da água:


clara, parda, leitosa, lamacenta, espumosa, blocos de espumas, outros (especificar).
A cor: alta (cor de coca-cola ou outra coloração), média (chá forte), baixa (cor de
champanhe ou de palha), ausente (cristalina). A presença de barreira: diques;
cascata / queda d´água / saltos / corredeiras; represa; outros tipos de obstáculos
(especificar). As condições das margens: desmatadas, erodidas; com
desbarrancamento; apresentando uso e ocupação urbana; preservadas; com
exploração mineral; outra condição (especificar). A vegetação das margens:
sem cobertura vegetal; presença só de vegetação rasteira; presença de vegetação
arbustiva; presença de vegetação arbórea; presença de mata ciliar. As condições
do leito canalizado e/ou as condições do leito a céu aberto. O uso e ocupação
das terras das margens e/ou entorno: florestadas; sítio urbano; fábricas
(especificar); mineradora (especificar); agrícola (especificar); pecuária. As
emissários de esgoto e/ou captação: emissários de efluentes (quantos?); tubos
de captação (quantos?).

12. presença de processos erosivos: sulcos (ranhuras no solo de aproximadamente


30cm de profundidade); ravinas (ranhuras no solo com profundidades maiores
que 30cm) e vossorocas (erosões no solo de grandes profundidades).

13. junto ao ponto de parada há presença de depósito de lixo e/ou aterro sanitário.

A utilização dos procedimentos acima irá permitir aos professores e alunos


observarem mais concretamente a forma como a cidade cresceu, se desenvolveu
e como ocorreu a ocupação da área urbana. Essas observações possibilitam o

138
Educação Ambiental sob o enfoque da construção do espaço geográfico
GIOMETTI, Analúcia Bueno dos Reis

reconhecimento espacial e temporal da cidade e, consequentemente, a identificação


dos problemas atuais relacionados com a urbanização e com o desenvolvimento
econômico do município estudado.

Nas séries iniciais, encerrar os trabalhos de campo com atividades orais, buscando
o resgate do que foi vivenciado na excursão, estimulando os alunos a colocarem
no papel suas impressões mais marcantes, através de desenhos e esquemas do
roteiro da excursão.

Para as séries mais avançadas, estimular redações, confecção do roteiro da


excursão no mapa do município e na planta urbana, assinalando os pontos de
parada. Buscar analisar as condições ambientais dos pontos de parada. Resgatar
fotos antigas dos pontos observados e comparar com a espacialização de hoje,
procurando destacar as mudanças visuais da paisagem. Organizar uma exposição
dos trabalhos.

Finalização dos trabalhos

Os trabalhos se encerraram com as seguintes propostas: estruturou-se com os


alunos os conteúdos abordados procurando construir um texto histórico. Atividades
diversas foram elaboradas com os alunos: desenhos, cantos, fotos, murais, maquetes
etc..., lembrando sempre a importância da interdisciplinaridade. Montou-se um
Workshop com os trabalhos realizados com os alunos com exposição de fotografias,
maquetes e plantas com os melhores trabalhos desenvolvidos pelos participantes
das atividades práticas. Num painel foram demarcados os locais que apresentaram
impactos humanos negativos e positivos na paisagem estudada. Foram expostos
os trabalhos de redação de textos e apresentado uma peça de teatro.

Referências

BACELLAR, Carlos Almeida Prado; BRIOSCHI, Lucila Reis. (Org.). Na estrada


do Anhanguera: uma visão regional da história paulista. São Paulo:
Humanitas,1999.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares


Nacionais: história, geografia. Brasília, DF: MEC : SEF, 1997.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares


Nacionais: história, geografia. Brasília, DF: MEC : SEF, 2000.

FINI, Maria Inês. (Coord.) Proposta Curricular do Estado de São Paulo:


geografia. São Paulo: SEE, 2008.

139
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

HUTCHISON, David. Educação ecológica: idéias sobre consciência ambiental.


Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Caderno do professor:


geografia, ensino fundamental - 5ªsérie, 1º bimestre. Coordenação geral, Maria
Inês Fini. São Paulo: SEE, 2008.

140
ARTIGOS LIVRES

141
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

142
A IMPLANTAÇÃO DO GÁS CANALIZADO NO
MUNICÍPIO DE SÃO PAULO

Vanessa Meloni Massara*

Resumo: Considerando a importância que o gás natural ganhou após as recentes


descobertas de grandes reservas no país, o artigo aborda a implantação da rede
canalizada e sua evolução durante o século XX e na última década, tendo como
base de um estudo de caso, a dinâmica de expansão do serviço nos 96 distritos
utilizados oficialmente pela Prefeitura da Cidade de São Paulo desde 1991. Como
conclusão, verifica-se que a escolha do local a servir considera fatores como
renda, verticalização, densidade construída e tipo de uso do solo, partindo do cha-
mado “centro expandido” e se tornando difusa ao longo das periferias principal-
mente das regiões sul e leste da cidade.

Palavras-chaves: gás natural; infraestrutura; cidade de São Paulo; energia.

Abstract: Considering the importance that natural gas gained after the recent
discovery of large reserves in the country, the article discusses the implementation
of the piped network and its evolution during the twentieth century and in the last
decade, based on a case study, the dynamics of expansion of the service in 96
districts used officially by the City of São Paulo since 1991. In conclusion, it appears
that the choice of location to serve considers factors such as income, vertical, built
density and type of land use, based on the so-called “expanded center” and becoming
diffuse mainly along the periphery of the southern and eastern regions city??.

Keywords: natural gás; infraestructure; city of São Paulo; energy.

* Pesquisadora Pós-Doutoranda em Engenharia - USP (Linha de Pesquisa: Infraestruturas urbanas e


regionais e sustentabilidade). Eng.Civil, Mestre em Eng. Urbana - USP (Linha de Pesquisa: Infraestruturas
urbanas e regionais); Doutora em Energia - USP (Linha de Pesquisa: Planejamento Energético).

143
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Introdução

No Brasil as reservas provadas de gás natural, tiveram aumento de 15,23% na


comparação entre 2009 e 2010, passando de 367.095 milhões de metros cúbicos
para 423.003 milhões de metros cúbicos superior apenas à elevação de 32,9% de
2004 em relação a 2003 (ANP, 2011).

O consumo de gás natural reflete as características econômicas estruturais e


conjunturais das diferentes regiões do mundo, mas também é fortemente influen-
ciado pela distribuição geográfica das reservas.

Com isso espera-se que o país, computando o volume das descobertas recentes,
passe a consumir o gás natural de forma mais intensa, não somente nos setores
automotivo e industrial, mas também em usos cotidianos no comércio, prestação
de serviços e residencial.

Para a distribuição do gás natural canalizado, foram criadas agências estaduais


que formulam normas próprias condizentes com a realidade de cada mercado. O
artigo 25 da Constituição Federal de 1988 (com o texto dado pela Emenda Cons-
titucional nº5, de 15/08/1995), traduz legalmente o papel de cada Estado: “Cabe
aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão à empresa estatal, com
exclusividade de distribuição, os serviços de distribuição de gás canalizado”.

Existem atualmente no Brasil, 27 distribuidoras de gás natural, todas em plena


expansão. Os únicos estados que não possuem concessionárias são: Acre, Roraima
e Tocantins (UDAETA et al, 2010).

Em particular no Estado de São Paulo, após as descobertas de petróleo e gás


natural na Bacia de Santos, há grande expectativa de oferta e necessidade da
criação de demanda como mostra a figura 1 no período de janeiro/2007 a julho de
2011.

144
A implantação do gás canalizado no município de São Paulo
MASSARA, anessa Meloni

FIGURA 1 - Consumo e produção de gás natural no Estado de São Paulo – 2007-2011.


Fonte: ANP, 2011.

O maior mercado do país conta com três distribuidoras: Comgás, Gás Natural
Fenosa e Gas Brasiliano.

Em maio de 1999, a Comgás assinou o contrato de concessão através do qual o


BG group e a Shell assumiram seu controle.

A Comgás é hoje a maior distribuidora de gás natural canalizado do país. Está


presente em todos os segmentos e está enfatizando o investimento em ramais
para capilarizar a rede voltada às residências e comércio. Sua atuação integra as
regiões administrativas da Grande São Paulo, São José dos Campo, Santos e Cam-
pinas, compreendendo 117 municípios.

Já as outras duas concessionárias estão começando a captação de mercados e se


concentram atualmente na utilização para indústrias.

Em 26 de abril de 2000, a empresa Gas Natural SPS (São Paulo Sul S/A) ganhou
a licitação convocada pela Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE) do
Estado de São Paulo, para outorga de concessão para a exploração de serviços de
distribuição de gás canalizado na área sul do referido Estado.

A zona adquirida tem a extensão de 53.000 Km2, com uma população em torno de
2,7 milhões de habitantes e que compreende 93 municípios entre as regiões admi-
nistrativas de Sorocaba e Registro.

145
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

A Gas Natural SPS se tornou em 2010 a Gas Natural Fenosa, que é um Grupo
energético voltado à prestação de serviços à comunidade, com intenção de ser
uma empresa integrada, líder na Espanha e com projeção internacional.

A Gas Brasiliano GBD é uma companhia controlada pelas empresas ENI


International B.V. e Italgas (Grupo ENI), responde pela distribuição e tecnologia
de gás natural em toda a área noroeste do Estado de São Paulo, aproveitando a
proximidade de sua área de concessão do GASBOL, o gasoduto Brasil-Bolívia
(UDAETA et al, 2010). Seu contrato de concessão foi firmado em dezembro/
1999, compreendendo as regiões administrativas de Ribeirão Preto, Bauru, São
José do Rio Preto, Araçatuba, Presidente Prudente, Marília, Barretos e Franca,
comprrendendo 375 municípios.

Também a Gas Brasiliano, prevê além do GNC destinado a atender as indústrias


cerâmicas na sua área de concessão, aumentar a rede canalizada em todos os
segmentos.

No atual momento, a Comgás detem 85% da área de concessão do Estado de São


Paulo, a Gas Brasiliano, 6% e a Gás Natural Fenosa os 9% restantes.

Breve histórico de uso do gás canalizado

O uso de energia elétrica e gás canalizado, além de favorecer aspectos de como-


didade e segurança, é a base de apoio a produção, alimentando indústrias e o
comércio, conforme enfatiza Mascaró (1987, p.29): “as redes de gás e eletricida-
de permitem que as cidades mudem de função e passem de centros administrati-
vos ou de intercâmbio a centros de produção”.

Em 1812, surge na Inglaterra, a primeira companhia de distribuição de gás, primei-


ro com a finalidade de iluminação pública, depois para a iluminação residencial e
para aquecimento; três anos mais tarde, são feitas tentativas em algumas cidades
dos Estados Unidos. No Brasil, existe uma controvérsia sobre qual foi a primeira
cidade com iluminação a gás: São Paulo ou Rio de Janeiro; a primeira é conside-
rada por vários autores a precursora, datando as primeiras experiências de 1860/
70, embora Telles (1984), mencione que em 1834, já havia sido iluminado o Largo
do Paço (atual Praça XV de Novembro) nessa outra cidade. Outras cidades como
por exemplo, Porto Alegre, passaram a ser iluminadas por gás canalizado ainda na
antepenúltima década do século XIX1 . No final desse período, também possuíam
o serviço: Belém, São Luiz, Fortaleza, Salvador, entre outras.

1
Lembrando que no final do século XIX, teve início a introdução da energia elétrica.

146
A implantação do gás canalizado no município de São Paulo
MASSARA, anessa Meloni

Na década de 70, através da construção de gasodutos, ligando países e continen-


tes houve grande expansão da rede formando as chamadas “rotas mundiais de
gás natural” (UDAETA et al, 2010).

A rede de Gás na Cidade de São Paulo

A história do fornecimento de gás em São Paulo se confunde com a da iluminação


Pública. No início do século XIX são feitos os primeiros ensaios para a iluminação
usando azeite. Em 1847 começa a iluminação a gás hidrogênio na cidade, através
de contrato entre a Câmara Municipal e Afonso Milliet (dono de uma fábrica de
gás). Um pouco depois, por volta de 1862, Camilo Bourroul propôs iluminar a
cidade por meio de lampiões com azeite fotogênico resinoso sem aceitação; em
1863, Francisco Taques Alvim é contratado pelo governo para executar a ilumina-
ção pública e residencial através de gás de hulha o que foi levado a vante pela
Companhia The San Paulo Gas Company Ltd., em 1869, formada pelo capital de
empresários ingleses; em 1870 já existiam encanamentos destinados a conduzir
gás e neste mesmo ano é construída a Usina de Gás da Várzea do Carmo.

Em 1872, surgiram os primeiros lampiões, abastecidos pela “Casa das Retortas”


com gás oriundo de carvão vegetal importado e são iluminadas a antiga catedral e
o Palácio do Governo e nove anos mais tarde, o Jardim da Luz.

Em 1880, teve início a distribuição de gás domiciliar, somente para iluminação. Na


década seguinte é construído o gasômetro da Rua da Figueira no Brás (que teve
sua capacidade aumentada em 1908).

O contrato estabelecido entre essa companhia e o Governo do Estado foi renova-


do por trinta anos em 1897. Mas, em 1905 foram instaladas algumas lâmpadas
elétricas pela “São Paulo Tramway, Light and Power Company” (de origem ca-
nadense), na Rua Barão de Itapetininga e tempos depois nas ruas do Triângulo e,
em 1911 ocorre o primeiro contrato da Light com o Governo, usando o argumento
que o contrato celebrado com a empresa de gás lhe dava o privilégio de explorar
o serviço de iluminação a gás mas, não impedia que outro sistema fosse implanta-
do. Durante a década de 1910, coexistiam lâmpadas elétricas e lampiões a gás,
numa proporção de 864 lâmpadas para 8605 lampiões (ELETROPAULO, 1990,
p.18).

A oposição da Companhia de Gás se deu por meio de requerimento aprovado para


o trabalho com iluminação à eletricidade. Assim o “bico de gás incandescente”
entrou em concorrência com as lâmpadas incandescentes de filamento de carvão
até que se tornou impossível para a empresa de gás sustentar a disputa, pelo
aparecimento das lâmpadas com “filamento de tungstênio estirado”; em 1912 a

147
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

“Light” assume o controle acionário da San Paulo Gas Company; em 1918 o


Governo autoriza o uso de gás misto (água e outra substância, como hulha, por
exemplo). “A luta comercial entre a Light e a companhia de gás foi longa. Em
1929... foi feito um acordo incumbindo-se a Light dos serviços de iluminação,
ficando o gás só com o aquecimento” (ZMITROWICZ, 1984, p. 81). Os últimos
lampiões foram desativados em 1936.2

Em síntese, a cronologia de concessão dos serviços de gás canalizado é a seguinte


(considerando a iluminação a gás e o período posterior para uso residencial, co-
mercial e industrial):

1872: The San Paulo Gas Company Ltd.

1912: controle pela São Paulo Tramway, Light and Power Company Ltd.

1929: iluminação a eletricidade contratando terceiros e distribuição de gás para


uso particular assume o controle a empresa Brazilian Traction do grupo da Light

1959: é nacionalizada e se torna: Companhia paulista de Serviços de Gás

1968: passa para o controle do município e recebe o nome Companhia Municipal


de Gás, autorizada a constituição de sociedade anônima

1974: mudança de nome: de Companhia Municipal de gás para Companhia de Gás


de São Paulo - Comgás

1983: controle pelo governo do Estado

1984: controle passa para a estatal Cesp – Companhia Energética de São Paulo

1999: controle acionário passa para a British Gas e pela Shell.

Distribuição territorial da rede: uso residencial, comercial e industrial

A rede em 1900 para esse fim era pouco desenvolvida; em 1901 aparece o primei-
ro fogão a gás, no Palácio do Governo.

2
Mantendo a lembrança do uso de lampiões a gás, foram conservados aqueles localizados no Pátio do
Colégio. Em 1995, estes lampiões foram desativados, passando por reforma dos postes e adequação
para o uso do gás natural, incluindo detalhada revisão da rede subterrânea, implantada no final do século
XIX, sendo reinaugurados em 2000, na ocasião do 447° aniversário da Cidade.

148
A implantação do gás canalizado no município de São Paulo
MASSARA, anessa Meloni

No final da década de 20, quando as lâmpadas elétricas começaram a dominar o


mercado de iluminação, a rede de gás iniciou sua expansão para o serviço de
distribuição em residências para a finalidade de aquecimento, com a construção
no final desse decênio de canalizações para alta pressão e do Gasômetro da Mooca.
Em 1929 é celebrado contrato para a San Paulo Gas Company executar rede de
fornecimento de gás (MORSE, 1954).

Na década de 50, levantamento (PMSP, 1961, s.p.) mostra que pouco havia se
expandido esse serviço; situação confirmada em 1968, pelo Plano Urbanístico
Básico, mostrando a concentração na região central da cidade, caminhando para
os Jardins e Vila Mariana.

Em 1967, a concessão de alvarás fica submetida a previsão dos construtores de


instalações de gás. Em 1971 é feita a ampliação da sede da Mooca seguida da
execução da Usina Massinet Sorcinelli (gás de nafta) e do Sistema para alta
pressão incluindo municípios vizinhos de São Paulo (IBGE, 1970).

Na metade da década de 70, decreto municipal obriga que todas as construções


tenham instalações de gás canalizado. Nesse período (PMSP, 1975), a rede avan-
ça um pouco mais nas direções já comentadas no período de 1950/60, e também
para a Lapa e Santana, mas sem dados expressivos.

Até 1976, só existe rede por gás de nafta ainda em ferro fundido, intitulado
“subsistema I” servindo comércio e residências e pequena indústria. Em 1976 é
criado o chamado “subsistema II”, primeiro servindo média e grande indústria e
pequena quantidade de comércio.

Nos anos 80, ocorre expansão da capacidade, oriunda da exploração da Bacia de


Campos.

A Secretaria Municipal de Planejamento – SEMPLA, em 1983, descreve a condi-


ção do sistema naquela época:

O gás canalizado constitui um dos serviços mais atingidos oferecido aos


munícipes pela prefeitura. Atualmente o número de ligações é de aproximada-
mente 170.000, dos quais 160.000 são habitações localizadas, principalmente na
região de urbanização, consolidada em torno do centro, representando cerca de
10% da demanda potencial. O restante da cidade utiliza gás liquefeito de petró-
leo, recebido em botijões, o qual, embora transportado por caminhões, ainda é
menos oneroso para o consumidor que o gás encanado (SEMPLA, 1983, p.16).

Em 1989 é executada a conversão a gás natural das primeiras residências na zona


oeste do Município.

149
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Na década de 90 a população atendida não passa de 8%, cobrindo grande parte


do centro expandido, sendo 70% do volume produzido para uso industrial, 10%
para uso comercial e 20% para uso residencial (EMPLASA, 1977-1998).

Em 1993, a Usina Massinet Sorcinelli começa a produzir gás natural e tem início o
programa de conversão em comércio e residências em larga escala (iniciado em
89).

Após a privatização em 1999, a empresa expande seus planos de abastecimento


em todo o Estado de São Paulo, visando incrementar o fornecimento para usinas
termelétricas e ampliar o uso em áreas industriais.

No Município, outro ponto da expansão da rede é a substituição da tubulação de


ferro fundido por polietileno, suportando as maiores pressões advindas do uso de
gás natural, iniciada na região central da cidade (a rede mais antiga).

Também a utilização de aquecedores a gás, para o uso residencial na calefação,


produção de água quente e lareiras, vêm incrementando o uso de gás canalizado
na região central da cidade.

Já, os estabelecimentos comerciais devem respeitar a legislação e executar obri-


gatoriamente ligações a gás e sendo a rede existente, utilizar o gás natural.

No caso de indústrias, principalmente dos ramos petroquímico, siderúrgico, vidro,


papel, cerâmicas, bebida e alumínio o consumo vem aumentando, com a verifica-
ção prévia pela concessionária da rede externa existente e sua distância até a
entrada da indústria.

A figura 2 mostra três momentos de implantação da infraestrutura de gás subter-


râneo na cidade de São Paulo. O período entre 1958 e 1975 tem pouca evolução;
já em 1999 a rede cobre o centro expandido3 e inicia sua expansão ao sul.

3
O Centro expandido é delimitado pelo chamado mini-anel viário, composto pelas marginais Tietê e
Pinheiros, mais as avenidas Salim Farah Maluf, Afonso d’Escragnolle Taunay, Bandeirantes, Juntas
Provisórias, Presidente Tancredo Neves, Luís Inácio de Anhaia Melo e o Complexo Viário Maria
Maluf.

150
151
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

O avanço na implantação da rede nos anos 2000

A cidade de São Paulo conta com 96 distritos dos quais 28 deles localizados em
seu centro geográfico já possuem rede de gás canalizado. Os outros 68 distritos
também foram subdivididos conforme a situação da rede gerando três agrupa-
mentos distintos e que se destacaram na coleta de informações.

(a) Grupo 1 (b) Grupo 2 (c) Grupo 3


(50% de rede ou mais) (entre 30 e 50% de rede) (menos que 30% de rede)
Legenda: Grupo 1 Legenda: Grupo 2 Legenda: Grupo 3
1-Cachoeirinha 1- Água Rasa 17- São Lucas 1- Anhanguera 17- José
2-Casa Verde 2- Campo Grande 18- São Miguel Bonifácio
3-Cursino 3- Campo Limpo 19- Vila Formosa 2- Aricanduva 18- Lageado
4-Ipiranga 4- Cangaíba 20- Vila Guilherme 3- Artur Alvim 19- Marsilac
5-Jabaquara 5- Capão Redondo 21- Vila Jacuí 4-Brasilândia 20- Parelheiros
6-Jaguará 6- Cidade Dutra 22- Vila Maria 5- Carrão 21- Perus
7-Mandaqui 7- E.Matarazzo 23- Vila Matilde 6- Cidade Ademar 22- Ponte Rasa
8-Raposo Tavares 8- Freguesia do Ó 24-Vila Prudente 7- Cidade Líder 23- São Mateus
9-Rio Pequeno 9- Itaquera 8- Cid. Tiradentes 24- São Rafael
10-Sacomã 10- Jaçanã 9- Grajaú 25- Sapopemba
11-Santana 11- Limão 10- Guaianazes 26- Socorro
12-Tatuapé 12- Parque do Carmo 11- Iguatemi 27-Tremembé
13-Tucuruvi 13- Pedreira 12- Itaim Paulista 28- Vila Curuçá
14-Vila Andrade 14- Penha 13- Jaraguá
15-Vila Medeiros 15- Pirituba 14- Jardim Ângela
16-Vila Sônia 16- São Domingos 15- Jardim Helena
16- Jardim São Luís

Figura 3 Localização dos distritos por condição da rede de gás no município de São Paulo. Fonte:
MASSARA, 2007; COMGÁS, 2010. Nota: mapa base adaptado de SEMPLA, 2001; figura mera-
mente ilustrativa. Sem escala.

152
A implantação do gás canalizado no município de São Paulo
MASSARA, anessa Meloni

O primeiro grupo de expansão da rede, que conta com 16 distritos com parte de
seu território já coberto pela rede de gás natural (aproximadamente 50% ou mais
de sua área). São em sua maioria distritos que mesclam usos residenciais horizon-
tais e verticais, com galpões industriais, sendo substituídos por comércio e servi-
ços sofisticados. Concentram lançamentos imobiliários e chances de desenvolvi-
mento urbano (figura 3a).

O segundo grupo de expansão concentra 24 distritos que possuem a rede em até


15% do seu território e que são representados por menor concentração residencial
verticalizada, comércio e indústrias disperso e menor prestação de serviço. É um
grupo intermediário entre as boas perspectivas de expansão do primeiro grupo e a
ausência quase total do terceiro grupo (figura 3b).

O terceiro grupo é formado por 28 distritos que não possuem rede de GN. São em
sua maioria, distritos basicamente residenciais, caracterizados por casas muito
simples ou por conjuntos habitacionais. Com o advento de conjuntos do CDHU
com instalações prediais para gás, talvez venha a se tornar atraente a implantação
da rede, porém concentra áreas com problemas na coleta de esgotos e iluminação
e baixa renda (figura 3c) (IBGE, 2000).

Considerações Finais

Na análise da Cidade de São Paulo, Massara (2007) aponta que os distritos com
melhores características urbanas são àqueles que recebem primeiro o serviço4 .
Essa conclusão (figura 4) pode ser feita imaginando a cidade como uma série de
escamas com diferentes camadas, sendo o centro das escamas, associado ao
centro expandido, que compreende os primeiros bairros da cidade a usarem o gás
em rede.

A próxima lamina é constituída por um anel que envolve o centro é que coincide
com um misto entre a área servida em até 30% e a área servida em até 15% por
rede de gás natural, que respectivamente vai se distanciando do centro, se tornan-
do menos sofisticado em termos de usos residenciais, de comércio e serviços, mas
que ainda concentra indústrias que podem atrair o uso do gás canalizado. A lâmina
externa representa os distritos periféricos que embora muitas vezes com alta con-
centração populacional e verticalização residencial, perdem em qualidade de vida,
renda, projeções de expansão e sofisticação de usos (e consequente demanda por
energia) e estão mais distantes da área coberta pela rede, dificultando e onerando
sua implantação.

4
Vale ressaltar que a expansão da rede é bastante dinâmica; portanto a condição de 2011 pode ser
diferente da demonstrada até o último levantamento da autora.

153
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Em resumo, a figura 4 mostra que a rede foi implantada e continua sendo, em


torno dos 28 distritos inicialmente servidos (na cor cinza), respeitando a presença
de melhores características urbanas. Os 16 distritos, com mais ou menos 50% de
sua área coberta fazem um semicontorno sobre a região inicial, e assim também
os 24 distritos servidos no intervalo de 30 a 50% de seus territórios e por fim, no
contorno externo os 28 servidos em menos que 30% e com menor incidência de
verticalização e renda familiar média/alta.

Figura 4 Situação aproximada da implantação da rede de gás natural na cidade de São Paulo. Fonte:
Massara, 2007; Comgás 2010. Nota: Mapa base adaptado de SEMPLA, 2001. figura meramente
ilustrativa. Sem escala.

Através desta breve análise, fica explícito que existe uma relação de maior peso
envolvendo as transformações de uso do solo e conseqüente implantação das
infra-estruturas. Essa relação é baseada no conjunto de características da cidade
a começar pela implantação de seu núcleo inicial e consolidação do “centro” cul-
minando com o direcionamento de investimentos visando o setor imobiliário e sua
valorização no setor oeste da cidade.

A localização e concentração de renda não são necessariamente preponderantes


na determinação dos locais que receberão os serviços e na rapidez com os quais
serão instalados.

154
A implantação do gás canalizado no município de São Paulo
MASSARA, anessa Meloni

Concluí-se que o processo de implantação das redes é dependente de diversos


fatores que geram um círculo complexo de interesses e real necessidade dos
serviços.

Agradecimentos

A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento do CNPq e orien-
tação do Prof. Witold Zmitrowicz, Arquiteto Urbanista, Prof. Livre-Docente apo-
sentado do curso de Engenharia Urbana e Ambiental-USP e Vice-Diretor do Centro
Interunidade de História da Ciência – USP.

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155
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
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156
“UMA COISA É VER E OUTRA É O CONTAR”: OS
IMPACTOS CAUSADOS PELAS NOVAS
DESCOBERTAS MINERAIS NO NORTE DE MINAS
GERAIS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII

Raphael Freitas Santos*

Resumo: Com a proibição dos caminhos dos Currais e dos Sertões da Bahia e
com a construção do Caminho Novo para o Rio de Janeiro, as localidades
transpassadas pelos circuitos mercantis que ligavam por terra a capitania da Bahia
à região mineradora foram perdendo dinamismo e importância econômica. Mas
quais teriam sido as conseqüências trazidas pelas novas descobertas minerais em
Minas Novas, no Serro do Frio e em Paracatu? Este artigo pretende mapear
melhor essas conjunturas econômicas e verificar os impactos decorrentes dos
novos descobrimentos minerais no Norte de Minas Gerais. Para tanto, nos vale-
mos das cartas que o comerciante português Francisco Pinheiro trocou com um
correspondente em Sabará, de diversos documentos remetidos ao Conselho Ul-
tramarino português e de alguns processos de habilitação para o Santo Ofício.
Tudo isso foi analisado de forma conjugada a fontes inéditas, tais como mais de
1.000 escrituras de procuração e outras escrituras registradas nos cartórios da
Vila de Sabará ao longo da primeira metade do século XVIIII.

Palavras-chaves: Minas Gerais, Conjunturas Econômicas, Mineração.

Abstract: The prohibitions of trade beyond the Bahia route and the making of a
new route between Rio de Janeiro and the mining area, leaded to an economic
decrease of the trading routes between Bahia and Minas Gerais. But what were

* Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, Doutorando em História pela Univer-
sidade Federal Fluminense e Bolsista Capes (REUNI e PDEE).

157
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

the consequences of some new minerals founds in Minas Novas, Serro do Frio,
and Paracatu? The aim of this article is to analyze the changes caused by the new
mineral discoveries in North Minas Gerais. For these purpose we use some letters
written to an important Portuguese merchant, Francisco Pinheiro; some official
documents made by the Church and by the Portuguese crow; and many unpublished
sources, as more than 1000 proxies and some others documents recorded in the
notary offices of Sabará. All these documents were produced over the first half of
the eighteenth century.

Keywords: Minas Gerais, Economic Juncture; Mining Activity

Introdução

Durante os primeiros anos da ocupação e exploração das Minas, segundo Maria


Odila Leite Dias, o emaranhado de rotas e estradas que ligavam o porto de Salva-
dor e os sertões baianos à região mineradora “foi o caminho por excelência dos
que se enriqueceram nas minas” (DIAS, 2002, 69). Mas as restrições impostas
pela coroa portuguesa ao comércio entre as minas de ouro e a capitania da Bahia
entre os anos de 1702 e 1711,1 em consonância com uma política de estímulos ao
abastecimento das Minas através de um Caminho Novo do Rio de Janeiro, aca-
bou representando um impedimento para a realização dos interesses econômicos
de muitos daqueles que atuavam e/ou viviam nas áreas entrecortadas pelos Cami-
nhos dos Currais e pelos Caminhos dos Sertões da Bahia (NEVES, 2007). Mes-
mo assim, através desse circuito mercantil circulou uma parcela significativa dos
escravizados africanos utilizados em Minas Gerais e a maior parte das “fazendas
sertanejas” – sal, cera, sola, sabão, couro, peixe-seco, entre outros produtos – que
abasteciam as minas e os currais da Capitania (CARRARA, 2007; IVO, 2009).

Segundo Charles Boxer, “os arraiais mineiros que se enfileiravam ao longo do rio
das Velhas, depressa estavam interligados por uma rede de trilhas e passagens,
inclusive com os remotos postos avançados estabelecidos no inabordável Serro do
Frio” (BOXER, 2000, 63). Relatos coevos atestavam o volume e a importância do

1
De acordo com o artigo 17, do comércio com a Bahia “pode seguir o descaminho de meus quintos –
porque, como o que se vende é a troco do ouro em pó, toda aquela quantia se há de descaminhar”. Por
isso passou a ser proibido o comércio de escravos e demais gêneros (com exceção do gado) por aquele
circuito. Ver: REGIMENTO das Minas de 1702. APUD: FIGUEIREDO, Luciano R. de A.; CAMPOS,
Maria Verônica (Org.). Códice Costa Matoso. ColeçaÞo das notiìcias dos primeiros descobrimentos das
minas na Ameìrica que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto,
de que tomou posse em fevereiro de 1749, & vaìrios papeìis. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro,
1999, p. 318.

158
“Uma coisa é ver e outra é o contar”
SANTOS, Raphael Freitas

comércio praticado nos caminhos às margens dos rios das Velhas e do São Fran-
cisco. Conforme foi escrito em 1705 nas “Informações Sobre as Minas do Bra-
sil”, “não só é grande, mas precisamente como necessária a que eles [os mora-
dores das minas] têm no comércio do rio de São Francisco” (Cf. Anais da Bibli-
oteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. 57, p. 172-186, 1939, p. 178 (grifos
nossos).

Segundo o cronista anônimo, seria “grande porque lhe entram por ele fazendas de
todo o gênero, escravos, e mais coisas necessárias para seu uso com menor valor
do que lhe custam no Rio de Janeiro” (Cf. Anais da Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro, vol. 57, p. 172-186, 1939, p. 178).

Além disso, aquele comércio seria ainda necessário porque

pelo dito rio ou pelo seu caminho lhe entram os gados de que se sustentam o
grande povo que está nas minas (...), da mesma sorte se prove pelo dito rio
caminho de cavalos para suas viagens, de sal feito de terra no rio de São
Francisco, de farinha e de outras coisas, todas precisas para o trato e sustento
da vida(Cf. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1939, p. 179).

Mas, ao final da primeira década do século XVIII, houve uma importante mudan-
ça na política de ocupação e de exploração das áreas mineradoras, em grande
medida devido a Guerra dos Emboabas. Para Adriana Romeiro, “nas deliberações
[do Conselho Ultramarino] sobre o conflito fica evidente a mudança de orienta-
ção” (ROMEIRO, 2005, 212). Nessa perspectiva, as criações de vilas, a introdu-
ção de novas formas de tributação e as proibições sobre algumas das mais lucra-
tivas operações mercantis realizadas entre a Bahia e as Minas fizeram com que
houvesse um deslocamento do eixo econômico da região mineradora de Sabará,
Caeté e adjacências – visceralmente ligadas aos Caminhos dos Currais e dos
Sertões da Bahia – para as minas de Ouro Preto, de Vila do Carmo e demais
arraiais próximos (CAMPOS, 2002).2 É evidente que as localidades nos sertões
ao norte de Minas Gerais, ligados à Bahia e às rotas mercantis que vinham dessa
capitania, também foram bastante atingidas pelos impactos dessa reorientação
político-econômica.

Cabe ressaltar que as proibições ao comércio pelos Caminhos dos Currais e dos
Sertões da Bahia, somada à política que privilegiava o abastecimento da região
mineradora através do Caminho Novo do Rio de Janeiro, promoveram importan-

2
Vale à pena lembrar que antes de 1709 a sede da Intendência das Minas era em Sabará, onde vivia Manoel
de Borba Gato; e que, nesse período, a região era provavelmente a mais povoada e rica de todo o
território que seria, mais tarde, a capitania de Minas Gerais (DERBY, 1899; ANDRADE, 2008).

159
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

tes mudanças econômicas e políticas não só em Minas Gerais, mas na América


portuguesa de uma maneira geral. No longo prazo (e em uma escala ampliada),
essas medidas contribuíram para um deslocamento do centro do poder econômico
e político para o sul da Colônia – culminando com a transferência da sede do
Vice-Reino para a cidade do Rio de Janeiro (BOXER, 1969). A partir de uma
análise seriada das escrituras de procuração, registradas nos cartórios da vila de
Sabará, foi possível verificar com bastante nitidez esse processo de fortalecimen-
to político-econômico do Rio de Janeiro e, em contrapartida, de um recrudesci-
mento na importância da capitania da Bahia (c.f. Gráfico 1).

Antes de tudo, vale salientar que o registro em cartório de escrituras de procura-


ção foi um expediente muito utilizado tanto por pessoas que mantinham interesses
econômicos, políticos ou familiares em regiões distantes de onde habitavam, como
por aqueles que precisavam responder por demandas fazendárias, cíveis e crimi-
nais em vilas e cidades sedes do poder colonial. De posse de uma procuração, os
procuradores tinham prerrogativas, por exemplo, para contrair e cobrar dívidas
em nome do outorgante, efetuar pagamentos, testemunhar em seu nome e, inclu-
sive, para jurar pela sua alma em ações dessa natureza.

A partir da análise quantitativa de 1.011 “escrituras de procuração bastante”,


registradas ao longo da primeira metade do século XVIII nos cartórios da Vila
Real de Sabará, foi possível mapear os lugares onde se concentravam os interes-
ses políticos, econômicos e familiares dos habitantes de uma importante região
mineradora, trazendo à tona tendências representativas de transformações políti-
cas e econômicas em Minas Gerais. Infelizmente, não foi possível elaborar uma
série completa de escrituras para todo o período pesquisado devido ao problema
mais comum dos arquivos brasileiros: a deteriorização e perda de documentos.
Por isso, são várias as lacunas temporais, principalmente entre os anos de 1722 e
1727, para cujo período não resta sequer um Livro de Notas preservado e dispo-
nível para consulta no arquivo. Apesar da fragmentação dos dados, acreditamos
que as escrituras de procuração serviram como valiosos indícios a partir dos quais
nos permitiu avaliar o grau de importância de determinadas localidades em rela-
ção aos interesses econômicos, políticos, jurídicos e familiares dos indivíduos que
viviam ou estavam de passagem pela capitania de Minas Gerais. As escrituras de
procuração nos forneceram, portanto, as informações quantificáveis através das
quais foi possível apontar tendências e ritmos de algumas mudanças estruturais e
conjunturais na Colônia.

Mas não nos restringimos ao uso das escrituras notariais. A utilização de uma
expressiva diversidade de fontes, analisadas de forma conjugada, nos possibilitou
uma perspectiva integradora do sujeito individual ao movimento mais amplo da
história. Conforme afirmou certa vez Carlo Ginzburg, inspirado nos estudos de

160
“Uma coisa é ver e outra é o contar”
SANTOS, Raphael Freitas

Clifford Gertz, o cruzamento de fontes variadas nos permite chegar às relações


vivenciadas pelos sujeitos e pelos grupos sociais em que estão inseridos, abrindo
assim uma porta para o entendimento de sua cultura (GINZBURG, 1991). Essa
alternativa de pesquisa possibilitou articular as experiências individuais às proposi-
ções globalizantes e tornar mais complexa nossa compreensão das conjunturas
econômicas.

Nesse sentido, foi possível fazer vários apontamentos a respeito dos ritmos com
que mudaram as relações entre Minas Gerais e os portos de Salvador e do Rio de
Janeiro, por exemplo (c.f. Gráfico 1). Até o início da década de 1730, o percentual
de procuradores nomeados para o Rio de Janeiro era muito menor do que daque-
les nomeados para atuar na capitania da Bahia, sinalizando para a proeminência
política e econômica de Salvador em relação à praça carioca. Durante esse perí-
odo, os baianos representavam, em média, 26% dos procuradores registrados em
cartório, enquanto a média de procuradores sediados no Rio de Janeiro, para o
mesmo período, era de 9%.3 Porém, esse quadro começou a sofrer alterações a
partir de meados da década de 1730, marcando o início de uma mudança irreversível
na orientação política e econômica da América portuguesa em torno do povoa-
mento e exploração da porção meridional da Colônia – consolidada em 1763 com
a mudança da sede do Vice-Reino para o Rio de Janeiro. Não existem registros
de escrituras de procuração para o período que compreende os anos de 1732 e
1734. Mas sabemos que em 1735 o percentual de procuradores “fluminenses”
(11%) se aproximou pela primeira vez dos “baianos” (13%). Depois disso, a ten-
dência foi de crescimento na proporção de procuradores nomeados para atuar no
Rio de Janeiro e de recrudescimento nos índices de procuradores atuantes na
Bahia, principalmente aqueles nomeados para agir nos sertões e no recôncavo da
Capitania (SANTOS, 2011).

Com base nessa mesma documentação também foi possível identificar algumas
conjunturas mais localizadas, como as descobertas minerais na porção setentrio-
nal da capitania de Minas Gerais. Embora elas tenham sido decisivas para a ocu-
pação e colonização dos sertões da América portuguesa, não foram capazes de
transformar estruturalmente a economia mineira da mesma forma que as mudan-
ças na exploração e no abastecimento das chamadas “Minas dos Cataguazes”.
Vejamos a partir de agora os ritmos das novas descobertas minerais no norte de
Minas Gerais e algumas das conseqüências dessas alterações conjunturais para
Minas Gerais.

3
Não por acaso, até o início da década de 1730, a média do percentual de procuradores que se encontrava
em Pernambuco, Piauí e Paraíba também não era nada desprezível (2,5%) e superava em muito a
quantidade de procuradores que se encontravam, por exemplo, em São Paulo, Rio Grande e Sacramento
(0,5%). FONTE: MO/IBRAM – Casa Borba Gato: LN (CPO e CSO) – 1717-1750

161
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

O ouro das Minas Novas e o diamante do Serro do Frio

Em um contexto de poucas opções de negócios, assim que surgia uma conjuntura


favorável, muitos negociantes passavam a diversificar sua atuação, dedicando
seu tempo, cabedal e energia ao aproveitamento das novas oportunidades. Um
bom exemplo disso pode ser visto quando do descobrimento das Minas Novas do
Araçuaí, nos últimos anos da década de 1720. De acordo com relatos oficiais,
teria sido durante uma prospecção próxima ao rio Manso, empreendida pela ban-
deira de Sebastião Leme do Prado, que os novos achados minerais haviam sido
feitos. Quando o bandeirante seguia rumo ao Norte, atravessando os rios Araçuaí
e o Itamarandiba, teria encontrando, no dia 29 de junho de 1727, ouro em abun-
dância em um ribeiro que depois receberia o nome de Bom Sucesso (BARBOSA,
1995, 204).

Ao comunicar os novos descobrimentos à coroa portuguesa, o Vice-Rei do Esta-


do do Brasil e governador da Bahia, D. Vasco Fernandes César, ordenou que a
região fosse controlada pelo governador da Bahia.4 Mas logo ficou decidido que,
no âmbito judicial, a vila estaria sujeita à Ouvidoria da Comarca do Serro do Frio
e, no foro militar e eclesiástico, à Bahia.5 Ao povoamento criado nas “Minas
Novas” deram o nome de São Pedro do Fanado e cerca de um ano e meio depois
do anúncio oficial, milhares de pessoas já haviam se dirigido para recém-desco-
bertas minas no norte da capitania de Minas Gerais. Assim, em de 21 de maio de
1729 foi criada a Vila de Bom Sucesso das Minas Novas do Araçuaí. E como a
nova vila estava localizada em uma área cujas fronteiras eram ainda bastante
indefinidas, ela permaneceu quase todo o século XVIII entre a jurisdição da capi-
tania da Bahia e de Minas Gerais (MORENO, 2001).

A partir das informações retiradas dos registros notariais, percebemos que em


pouco mais de um ano após o anúncio oficial da mais nova descoberta mineral, os
cartórios de Sabará foram invadidos por pessoas querendo registrar em escritura
o nome de procuradores que se dirigiam ou já estavam nas Minas Novas (c.f.
gráfico 2). Ao que tudo indica, foi realmente uma verdadeira febre do ouro. No
ano de 1729 mais de 18% dos procuradores nomeados para Minas Gerais esta-
vam ou se dirigiam para as Minas Novas. No ano seguinte, a coisa pouco mudou

4
Em um bando o Vice-Rei ordenou “que não obedecessem aqueles mineiros, nem ao governo destas
Minas nem ao ouvidor geral da dita comarca, entendendo que o tal descobrimento era pertencente a
jurisdição da Bahia”. CARTA de D. Lourenço de Almeida, governador das Minas Gerais, sobre a
deserção dos mineiros para Novas minas e sobre o descaminho do ouro. AHU – Cons. Ultram. – Brasil/
Minas Gerais –: cx. 13 doc. 40 – 30/11/1728.
5
PARECER do Conselho Ultramarino sobre a informação do ouvidor geral da Comarca do Serro do Frio,
António ferreira do vale, relativa aos descobrimentos das Minas nos sertões da Bahia. AHU – Cons.
Ultram. – Brasil/Minas Gerais –: cx. 14 doc. 14 – 14/03/1729.

162
“Uma coisa é ver e outra é o contar”
SANTOS, Raphael Freitas

e esse percentual foi de 15%. Isso significa que muitas pessoas migraram para as
recém-descobertas minas de ouro, diamante e outras pedras preciosas a fim de
enriquecer com a mineração, com o abastecimento da região, com a prestação de
serviços e/ou para representar os interesses econômicos de outrem. Portanto, não
restam dúvidas de que o descobrimento das Minas Novas levou a uma verdadeira
corrida do ouro para o norte de Minas Gerais.

No ano seguinte ao anúncio oficial do descobrimento das “Minas Novas” os refle-


xos das novas descobertas minerais podiam ser sentidos também no Rio de Janei-
ro, conforme relatou em carta o governador carioca:

acham todas as fazendas empatadas e esta praça com poucas esperanças de


cobrar de seus devedores os grossos cabedais com que se passam para as
ditas minas novas; e muitos negociantes das minas que tinham as suas cargas
feitas as deixam nesta cidade por falta de cavalos para o seu transporte, por-
que toda a cavalaria das minas serviu em carregar mantimentos para as do
Serro do Frio 6

Portanto, as impressões que o governador do Rio de Janeiro e o governador da


Bahia tinham sobre os reflexos das novas descobertas minerais não eram nada
boas. O Vice-Rei do Brasil encaminhou a carta escrita pelo governador carioca e
ainda escreveu lastimando as “consequências que seguem da deserção dos minei-
ros das Minas Gerais para aqueles descobrimentos, (...) porque a opulência deles
arrasta os ânimos de sorte que nenhuma diligência que respeite a impedir-lhe
aquela jornada será bem executada”.7

Se os impactos das novas descobertas minerais foram sentidos no porto do Rio de


Janeiro, o que dizer sobre os reflexos sentidos em Minas Gerais e na Bahia?
Devido a sua localização limítrofe e as indefinições administrativas já relatadas,
muitos agentes sediados tanto em uma capitania quanto na outra se dirigiram para
as “Minas Novas” em busca de bons negócios. João Gomes do Rego foi um
desses milhares de indivíduos que migraram para as novas minas norte mineiras
em busca de riqueza.

“Em tenra idade”, João Gomes do Rego abandonou a freguesia de Santa Eulália
de Passos, próxima à cidade do Porto, e embarcou para a Bahia. Porém “passado
ano e meio pouco mais ou menos, de assistência nesta cidade que teve, o habili-
tando se passou para as Minas”. De acordo com uma testemunha, que “com ele

6
CARTA do [vice-rei e capitão-general do estado do Brasil], conde de Sabugosa, Vasco Fernandes César
de Meneses ao rei [D. João V] sobre a deserção dos mineiros das Minas Gerais. AHU – Cons. Ultram.
– Brasil/Bahia –: cx. 27 doc. 106 – 12/10/1728.
7
Ibidem.

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

veio embarcado para esta Bahia”, depois de ter acumulado cabedal com a nego-
ciação de comboios e carregações para as Minas Gerais, João Gomes do Rego
viajou de volta para Portugal a fim de se casar com “Micaela Maria, e com ela
voltando outra vez para esta cidade [da Bahia] fez várias viagens com seu negó-
cio para as mesmas minas, até que ultimamente levou consigo a dita sua mulher
para as minas do Serro do Frio, onde está de assento e morador”. Contudo, con-
forme relataram os informantes do Santo Ofício, depois das descobertas das “Mi-
nas Novas”, João Gomes do Rego “deixou suas roças no Serro do Frio onde
assistia” e “de presente assiste nas novas [minas] chamadas dos Fanados”.8

De acordo com um dos correspondentes do importante negociante português Fran-


cisco Pinheiro,9 a quantidade de pessoas que migravam para os novos achados
era tão grande que o Serro do Frio “se acha já sem moradores na sua vila, poucos
pela sua comarca, e de todas estas partes se tem retirado a maior parte da gente
que nelas habitavam (...), pois todos vão buscar maiores conveniências” nos no-
vos descobrimentos. Segundo o informante de Pinheiro, “a distância das minas
passa de ter 80 léguas e estarem já nelas passante de dois mil homens brancos e
negros”.10 Nessa mesma carta, escrita em de 17 de julho de 1728, sentenciou:
“vejo que daqui a ano e meio ficará esta comarca sem gente, pois uma coisa é
ver e outra é o contar as muitas tropas que todos os dias partem para elas, que
estão distantes a estas 21 dias de viagem”.11

O resultado desse processo, de acordo com o correspondente de Francisco Pi-


nheiro, foi a diminuição da demanda pela compra de produtos importados, de es-
cravos e de imóveis nas principais vilas e arraiais da Capitania. Em carta, Francis-
co da Cruz escreveu que “a causa das Minas Novas, fez com a retirada da gente
desta vila, dar-se as casas de graça, com umas de preço de 100 oitavas de ouro a
vender essa a um taverneiro por uns calções encarnados e outras por um freio de
cavalo”.12 Por isso, na época em que pretendia seguir para as Minas Novas, ele
escreveu para Francisco Pinheiro dizendo “que as casas ficam ainda por vender,

8
HABILITAÇÃO para o Santo Ofício de João Gomes Rego. ANTT/HSO: João, mç. 62 doc. 1170 –
1731.
9
Francisco Pinheiro foi um fidalgo-mercador português que mantinha intensas relações comerciais com
o norte da Europa, com a África e com várias partes da América. Nesse continente, ele contava com
correspondentes nas principais praças mercantis, como Bahia, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Com
a expansão aurífera, durante a primeira metade do século XVIII, Francisco Pinheiro também contou
com uma rede de correspondentes em Minas Gerais (GUIMARÃES, 2007; FURTADO, 2008).
10
CARTA de Francisco da Cruz para Francisco Pinheiro. Vila Real 17 de junho de 1728. IN: LISANTI, F.
Luís. Negócios Coloniais: uma correspondência comercial do século XVIII. Vol. I. Brasília: Ministério
da Fazenda, 1973, p. 300.
11
Ibidem (grifos nossos).
12
CARTA de Francisco da Cruz para Francisco Pinheiro. Vila Real, 17 de julho de 1728. IN: LISANTI, F.
Luís. Negócios Coloniais... op. cit., p. 301-302

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“Uma coisa é ver e outra é o contar”
SANTOS, Raphael Freitas

pois não acho quem as compre e só digo que há nesta vila quem quer vender
outras que lhe custaram 500 oitavas de ouro, as estão metendo pelos olhos por 200
oitavas com os trastes de casa e não há quem as queira”. Segundo Francisco da
Cruz, isso teria acontecido por “todos quererem ir para as Minas Novas, que
muitos se tem ido e deixam seus engenhos e fazendas que valem mais de meia
arroba de ouro”.13

O próprio Francisco da Cruz, que ocupava o ofício de tabelião da Ouvidoria da


Vila de Sabará também pretendia migrar para as Minas Novas. Em carta já cita-
da, escrita a seu compadre, ele relatou:

armando meu cunhado e dez amigos uma tropa de quarenta negros e quatro
homens brancos lhe foi preciso valer-se de mim para o seu nesta vila [de
Sabará] os preparar de que lhe fosse necessário cuja tropa já se há de achar
nelas a perto de mês e meio, e espero por novas delas até o fim de agosto a
princípio de setembro que vem para eles e mais eu passarmos para elas.14

Não foi possível saber se o empreendimento de Francisco da Cruz foi levado


adiante, pois ele nunca mais tocou nesse assunto em suas cartas enviadas ao
fidalgo-mercador português. Mas foi possível saber que a partir de 1731 houve
uma súbita redução no percentual de procuradores “mineiros”, sediados em Mi-
nas Novas. Se, no ano de 1730, 15% dos procuradores nomeados para Minas
Gerais atuava em Minas Novas, no ano seguinte esse percentual caiu para a
incrível cifra de 3%. E o mesmo percentual foi encontrado para o ano de 1733.
Tamanha foi a redução que, nos últimos anos da primeira metade do século XVIII,
não encontramos mais nenhum registro de procurador nomeado para aquelas pa-
ragens. O que teria levado a um recuo tão acintoso e em tão pouco tempo no
número de procuradores nomeados para atuar nas Minas Novas?

O volume de ouro extraído e dos negócios realizados pode não ter correspondido
à quantidade de pessoas que se dirigiram aos novos descobrimentos. A adminis-
tração daquelas minas, sob os cuidados da Bahia, também poderia ter limitado a
atuação de agentes residentes em Minas Gerais. Todas essas hipóteses, de algu-
ma forma, ajudam a explicar esse processo. Mas as descobertas diamantíferas

13
Ibidem.
14
Ibidem. Seu cunhado era Manoel Mendes da Costa, que também era um dos correspondentes de
Francisco Pinheiro. Ao que tudo indica, ele e seu irmão Francisco Mendes da Costa partiram para as
Minas Novas em 1729. Foi possível encontrar seu nome como procurador nomeado em Minas Novas
e em Vila Rica. Ver, respectivamente: ESCRITURA de procuração bastante feita por João Marinho de
Queiros. MO/IBRAM – Casa Borba Gato: LN, CPO 04(03), fls. 62-63 – 22/02/1729; ESCRITURA de
procuração bastante feita por Manoel Leitão Cardoso. MO/IBRAM – Casa Borba Gato: LN, CPO
05(04), fls. 105-106 – 27/05/1730.

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em um território próximo, dentro dos limites da comarca do Serro do Frio, também


contribuíram para acelerar a queda no número de procuradores atuantes em Mi-
nas Novas.15

Apesar de retirarem pedras de diamante em ribeirões próximos ao arraial do Tijuco


(como em Caeté-mirim, Santo Antônio e ribeirão do Inferno) desde o início da
década de 1720, foi em 1729 que a notícia da descoberta de diamantes foi oficia-
lizada (FURTADO, 1996). No ano de 1730 – isto é, ainda durante o boom minerador
na região das Minas Novas –, já foi possível observar um aumento substancial no
número de procuradores nomeados para atuar na Vila do Príncipe e em outras
localidades da comarca do Serro do Frio. Nesse ano o percentual de procuradores
“mineiros” nomeados para essas cercanias foi de 8% e, no ano seguinte, de 10%.
Ao que tudo indica, ao contrário do que aconteceu nas Minas Novas, o percentual
de procuradores sediados nas regiões diamantíferas se manteve estável por muito
tempo. Entre 1730 e 1734, o percentual médio de procuradores “mineiros” sediados
no Serro do Frio (excetuando-se as Minas Novas) foi superior a 9%. Vale lembrar
que durante esse momento a exploração do ouro e do diamante podia ser feita
livremente na região – apesar do acesso às lavras ter sido dificultado pelas cons-
tantes elevações nas taxas de capitação (FURTADO, 1996).

Junto com uma carta escrita na Vila de Sabará, no dia 03 de agosto de 1729,
Francisco da Cruz enviou para Francisco Pinheiro uma amostra do que possivel-
mente seria um diamante, com um pedido para “lapidar e mandar-me o preço em
que o avaliam para eu poder me governar no negócio deles”.16 No ano seguinte,
antes mesmo de obter resposta de seu patrono e compadre, Cruz escreveu dizen-
do que “no que toca serem eles (os diamantes) finos não temos dúvida porque da
cidade da Bahia vem muitos sujeitos acima a comprá-los por todo o custo”.17

15
Em 1731, o Vice-Rei escreveu uma carta relatando a falta de mantimento, os preços excessivos dos
produtos “por não chover” naquela região e, sobretudo, chamando atenção para a quantidade de
pessoas que tem “desertado para o Serro do Frio por causa dos diamantes”. Dois anos depois, em outra
carta dirigida ao monarca, o Conde de Sabugosa descreve um cenário ainda mais grave de “deserção” e
“decadência” em Minas Novas. Ver, respectivamente: CARTA do vice-rei e capitão-general do Brasil,
conde de Sabugosa, Vasco Fernandes César de Menezes ao rei [D. João V] comunicando o estado em que
se encontra as Minas novas, com preços excessivos dos mantimentos, morte de muita gente por
doenças, deserção de pessoas para o Serro Frio em busca de diamantes. AHU – Cons. Ultram. – Brasil/
Bahia –: cx. 36, doc. 1 – 02/10/1731; CARTA do [vice-rei e capitão-general do estado do Brasil], conde
de Sabugosa, Vasco Fernandes César de Meneses ao rei [D. João V] sobre os motivos para a decadência
das Minas Novas. AHU – Cons. Ultram. – Brasil/Bahia –: cx. 44 doc. 41 – 19/09/1733.
16
CARTA de Francisco da Cruz para Francisco Pinheiro. Vila Real, 03 de agosto de 1729. IN: LISANTI,
F. Luís. Negócios Coloniais... op. cit., p. 322.
17
CARTA de Francisco da Cruz para Francisco Pinheiro. Vila Real, 17 de maio de 1730. IN: LISANTI, F.
Luís. Negócios Coloniais... op. cit., p. 324.

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“Uma coisa é ver e outra é o contar”
SANTOS, Raphael Freitas

Para Francisco da Cruz, a descoberta dos diamantes parecia ser outra boa opor-
tunidade de negócio. Mas, para que fosse levado a cabo, seria necessário o finan-
ciamento de alguém com cabedal e influência como o fidalgo-mercador Francisco
Pinheiro. Por isso, Cruz tentou convencer o homem de negócios português das
possibilidades reais de ganho que aquele empreendimento poderia gerar. Em carta
relatou que, há menos de 15 dias,

esteve em minha casa um amigo bem nomeado nestas terras, e nessa corte por
nome José da Silva, ou Candeias de alcunha, e me persuadiu me retirar-se para
o dito Serro se queria fazer fortuna pois ele bem pobre passara para lá com uma
companhia de amigos de Vila Rica e se considerava já com algum cabedal (...).
Meu compadre estive na mão uma pedra que ele tirou que tem o peso como
quem na pesou uma oitava e quarto, e me disse que tinham oferecido sessenta
mil cruzados a vista o que não porei dúvida pela muita azafama que há a elas.18

Sabendo das intempéries ocorridas nas Minas Novas, Francisco da Cruz se ante-
cipou às possíveis desconfianças e contou ter lhe dito “um amigo que a gente era
muita, mas que se tinham descoberto oito córregos, e por outro nome rios, aonde
se estavam tirando com grandeza” os diamantes. Sem rodeios, propôs para Fran-
cisco Pinheiro “fazer comigo alguma sociedade com seis negros seus a ver a
fortuna que fazemos”.19 Mas o projeto de Francisco da Cruz de fazer fortuna nas
regiões diamantíferas não foi para frente. Em parte devido à desconfiança que
Francisco Pinheiro aparentava ter sobre seu correspondente sediado em Sabará,
mas, sobretudo, por causa da decisão da coroa portuguesa de demarcar o distrito
diamantino e proibir a exploração dentro desse território. Essa proibição durou
entre os anos de 1734 e 1739. Vale lembrar que essa medida visava salvaguardar
as áreas não exploradas para o futuro e restringir a oferta do diamante no merca-
do internacional, uma vez que o grande aumento da produção havia causado uma
redução no preço da pedra.20 Foi decepcionante para Francisco da Cruz ter co-
nhecimento sobre essa matéria. Em tom lamentoso escreveu para Francisco Pi-
nheiro, relatando que “segundo o que se diz por dizerem que Sua Majestade man-
da ordem para que se fechem as minas dos diamantes”. Mas o próprio correspon-
dente de Francisco Pinheiro ponderou diante da notícia e sugeriu que essa medida

18
CARTA de Francisco da Cruz para Francisco Pinheiro. Vila Real, 17 de maio de 1730. IN: LISANTI, F.
Luís. Negócios Coloniais... op. cit., p. 324.
19
Segundo Cruz, outros correspondentes de Francisco Pinheiro já havia se enveredado por esses negócios,
como foi o caso do italiano João Francisco Muzi, “que este entendo já tem a sua sociedade”. Ibidem.
20
A estratégia da demarcação de um território que deveria ser exclusivo para a exploração do diamante
revelou-se insuficiente. Por isso, em sua reabertura, as lavras passaram a ser exploradas por particulares,
sob os cuidados de um único contratador, que tinha o direito de explorar a área por um período de
quatro anos – o tempo de duração dos contratos. Esse sistema vigorou até 1771, quando foi criada com
a Real Extração dos Diamantes. A partir desse momento a Coroa passou então a monopolizar a
exploração do diamante (FURTADO, 1996).

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“não terá efeito, pois o povo sempre os há de tirar as escondidas e nas ditas terras
há de habitar sempre gente bastante”.21

Tanto no caso de Minas Novas, quanto no caso Distrito Diamantino, os negocian-


tes sediados no norte de Minas Gerais estiveram diante de boas oportunidades de
negócios. Mas por decisões políticas tomadas pela coroa portuguesa, a iniciativa
desses agentes acabou sendo limitada ou interrompida. No primeiro caso, o boom
de procurações para as Minas Novas (ocorrido nos anos de 1729 e 1730) sinaliza
para a volatilidade dos negócios naquela nova frente de povoamento. As indefinições
administrativas e os conflitos de interesses conduziram a uma situação de instabi-
lidade que não era boa para a maioria das atividades econômicas e, por isso,
aquela centelha acabou não incendiando economicamente o norte mineiro. Afinal,
conforme alertou o Superintendente das Minas Novas, Pedro Leolino Mariz, so-
bre as diferentes políticas adotadas pelos governos de Minas Gerais e da Bahia no
que tange à extração diamantífera, “só posso assegurar a Vossa Excelência que
proibidos aqui e livre os do Serro será o mesmo que despir, ou melhor direi, forçar
aos povos que deixem esta terra por uma vez”.22

Já no caso da região diamantífera, não foram as indefinições e as contendas


jurisdicionais que levaram à instabilidade dos negócios, mas a maneira com que foi
conduzida, posteriormente, a ocupação e a exploração da região. Com o fecha-
mento das minas e com as novas regulamentações que funcionavam exclusiva-
mente dentro do Distrito Diamantino, os pequenos empreendimentos foram
rechaçados e/ou marginalizados – o que contribuiu para o crescimento no número
de faiscadores, garimpeiros e contrabandistas (FERREIRA, 2004). Apesar das
especificidades de cada uma dessas experiências, tanto em um lugar quanto no
outro, as decisões tomadas pela coroa favoreceu apenas a um pequeno grupo de
pessoas que, a partir de contatos privilegiados e/ou de um cabedal acumulado
pregressamente, monopolizaram os negócios mais lucrativos nessas novas frentes
de colonização.

21
CARTA de Francisco da Cruz para Francisco Pinheiro. Vila Real, 15 de abril de 1734. IN: LISANTI, F.
Luís. Negócios Coloniais... op. cit., p. 353.
22
CARTA do [vice-rei e capitão-general do estado do Brasil], conde de Sabugosa, Vasco Fernandes César
de Meneses ao rei [D. João V] sobre os motivos para a decadência das Minas Novas ... op. cit. Nessa
mesma carta, escrita em 07 de agosto de 1733, o Superintendente relatou que: “feita a cobrança do ano
passado imediatamente a da nova capitulação, e recolhidas ao cofre aquela grande soma de dinheiro,
logo se experimentou a falta dele na decadência do negócio”. Por causa das “desordens dos litigantes,
e muito prejuízo pela ruína dos serviços de Jequitinhonha, e desarranjo de muitos mineiros, se acha ao
presente aquela Minas muito debilitada, e a maior parte dos moradores com bastante consternação”.

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“Uma coisa é ver e outra é o contar”
SANTOS, Raphael Freitas

As últimas esperanças: as novas minas de Paracatu

A partir das procurações registradas nos cartórios da vila de Sabará foi possível
avaliar também os impactos de outro boom minerador no norte de Minas Gerais,
ocorrido na primeira metade do século XVIII: a descoberta das minas de Paracatu,
localizadas nos sertões da comarca do Rio de Velhas, no caminho que ligava
Minas Gerais às minas de Goiás e Mato Grosso.

De acordo com os dados coletados nos Livros de Nota dos cartórios da vila de
Sabará, após as descobertas das minas “nos sertões dos Goyases” (1725), apenas
no ano de 1731 – portanto, bem no início da ocupação dessa região – não foram
encontrados em nossa amostragem procuradores que assistiam nesses descobri-
mentos minerais. Para todos os demais anos havia ao menos um procurador no-
meado para atuar naquelas paragens. É claro que os procuradores nomeados
para Goiás e Mato Grosso representavam uma percentagem mínima dos procura-
dores registrados em cartório naquele período (em média 1,2%). Mas, apesar da
pouca representatividade, não restam dúvidas de que essas descobertas causa-
ram um significativo impacto para a economia de Minas Gerais.

Em carta a Francisco Pinheiro, Francisco da Cruz contou que ia seguir viagem um


“ouvidor para as minas novas do Cuiabá”. Vendo ali uma boa oportunidade de
negócio, solicitou ao fidalgo-mercador português “fazer mercê com o seu parecer
que eu vá com ele com a escrivaninha de ouvidoria delas, pois tais lugares são
novos para lá, porque correm tão boas novas de muito ouro”. Mesmo assim, Fran-
cisco da Cruz estava inseguro de partir de Sabará rumo àquele território, porque a
viagem se fazia “com grande risco de vida, o caminho para elas são ainda por
grandes matos, e dizem gastar-se mais de seis meses segundo dizem os paulistas,
e a maior parte do caminho é andar por rios e se não come por ele senão caça”.23
Mesmo com todos os perigos e com toda a distância, de acordo com Francisco da
Cruz, “quando parte gente para elas (para as minas do Cuiabá) vão quatrocentas
pessoas a quinhentas; que das Minas Gerais passam de ter ido mais de quatro mil
pessoas, estas pela maior parte todos mineiros [e] todos estes vão a fazer fortu-
na”.24

23
CARTA de Francisco da Cruz para Francisco Pinheiro. Vila Real, 22 de maio de 1726. IN: LISANTI, F.
Luís. Negócios Coloniais... op. cit., p. 291.
24
Ibidem. Essas informações foram confirmadas por outro correspondente de Pinheiro na vila de Sabará.
Segundo Antônio da Costa Mendes, “enquanto ao estado destas terras, tenho visto neste pouco tempo
(...) muita gente [indo] para o Cuiabá, e só depois que estou nas [Minas Gerais] se tem contado passante
[mais] de duas mil e tantas pessoas, e já a monção passada dizem foram bastante”. Ver: CARTA de
Antônio Mendes da Costa para Francisco Pinheiro. Vila Real, 20 de maio de 1726. IN: LISANTI, F.
Luís. Negócios Coloniais... op. cit., p. 284.

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Uma das mais importantes estradas reais criadas para abastecer a região de Goiás
ficou conhecida como “Estrada das Nascentes”. Ela ligava Vila Boa, em Goiás, a
Paracatu, em Minas Gerais. Isso significa, portanto, que uma importante rota para
abastecer as minas de Goiás e Mato Grosso de produtos e escravos desembarca-
dos no porto do Rio de Janeiro eram os Caminhos dos Currais. Teria sido justa-
mente durante uma dessas viagens para os “Goiazes” que as minas do vale do rio
Paracatu foram descobertas pelo bandeirante Felisberto Caldeira Brant. Ele, jun-
tamente com José Rodrigues Frois, comunicou à Coroa, em 1744, essa que seria
a última grande descoberta aurífera da primeira metade do século XVIII (OLI-
VEIRA MELLO, 1994). Em pouco menos de um ano, naquelas paragens “se
juntaram de todas as comarcas das Minas Gerais, Goiás, São Paulo, Bahia e Rio,
mais de 10 mil almas”,25 transformando o pequeno arraial de São Luiz e Santana
das Minas de Paracatu em um mar de gente. Esse talvez tenha sido o principal
impacto da descoberta das minas de Goiás e Mato Grosso para a economia da
capitania de Minas Gerais.

As minas de Paracatu estavam localizadas em uma região pouco povoada, que


fazia limites com as capitanias de São Paulo, Pernambuco e Minas Gerais. Por-
tanto, assim como aconteceu com Minas Novas, havia muitas indefinições se o
vale do rio Paracatu pertencia à capitania de Pernambuco, de São Paulo ou de
Minas Gerais. A solução para o impasse também foi semelhante ao caso de Minas
Novas: administrativamente, o território fazia parte da jurisdição da comarca do
Rio das Velhas (Minas Gerais) e, eclesiasticamente, do Bispado de Pernambuco.26

As novas descobertas em Paracatu causaram um grande alvoroço nos principais


arraiais e vilas mineiras, reascendendo a chama da fortuna dourada. Segundo
Renato Pinto Venâncio, em 1744, no ano do anúncio oficial da descoberta aurífera
na região, o vale do rio Paracatu foi tomado por levas de pessoas que deixaram o
Distrito Diamantino em razão do decreto que estabelecia o monopólio da extração
dos diamantes (VENÂNCIO, 1998). Em Sabará, a descoberta de ouro nos ser-
tões do Paracatu motivou negociantes e mineradores a procurar os cartórios da
Vila para registrar o nome de procuradores que viviam ou se dirigiam para os
novos descobrimentos. Por volta do ano de 1744 foram contabilizados nos cartó-

25
CARTA do Governador Gomes Freire de Andrade. APM, SC 45 (1744-1749) fl. 67. APUD: BARBOSA,
Waldemar de A. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1995, p.
237.
26
Depois da criação das casas de fundição, “viandantes e moradores” de Minas Novas deveria remeter o
ouro em pó à vila de Sabará para então fundi-los. Para evitar que eles fossem “obrigados a vir a esta vila
do Sabará rodear tantas léguas, ou expor se a perder o seu ouro levando-o em pó aos portos do mar”,
o governador Gomes Freire ordenou “remeter barras de ouro correntes desta casa de fundição do Sabará
para o distrito do Paracatu”. Ver: ORDEM do Governador Gomes Freire de Andrade. APM, SC 93
(1749-1753), f. 98-98v – 13/10/1751.

170
“Uma coisa é ver e outra é o contar”
SANTOS, Raphael Freitas

rios de Sabará pelo menos 66 registros de procuradores nomeados para atuar em


Paracatu, o que correspondia a 18% de todos os procuradores nomeados para
atuar na capitania de Minas Gerais. Contudo foi, de fato, em 1746 que as escritu-
ras de procuração foram invadidas por nomes de procuradores que assistiam em
Paracatu, na comarca do Rio das Velhas. Contabilizamos 85 registros de procura-
dores nomeados para aquelas cercanias nesse ano, perfazendo 12% do total de
procuradores nomeados para a Capitania (c.f Gráfico 2).

O novo fôlego para os negócios no norte de Minas Gerais que as descobertas


minerais em Paracatu proporcionaram pode ser exemplificado pela escritura de
sociedade celebrada entre Bento Francisco Vasquez Feijó e Diogo Ferreira Cu-
nha. No ano de 1745, eles foram ao cartório e registraram que “nós ambos nos
ajustamos nesta vila do Sabará a fazer uma sociedade, e com efeito a fizemos,
para o Paracatu em que entramos os dois com 1435 oitavas e meia de ouro: valor
de sete escravos e cinco cavalos, ferramentas e mais gastos para o caminho”.27
No arranjo feito entre os sócios, “Bento Francisco Vasquez Feijó leva os ditos
escravos para tirar ouro e fazer roça e tomar conta dos mesmos escravos e dar
conta ao dito sócio Diogo Ferreira Cunha dos lucros ou perdas”.28 Como Feijó
não tinha dinheiro algum para entrar na sociedade, ele além de entrar com o
trabalho, precisou pedir emprestado ao seu sócio a parte que lhe cabia na socieda-
de. Por isso, eles registraram em cartório também uma letra de crédito na qual
Feijó se comprometia a pagar seu sócio, no prazo de 30 meses, o valor correspon-
dente a sua parte no negócio.29

Nesse caso, um dos integrantes da sociedade acabou se dirigindo à região para


tomar conta dos negócios. Mas, algumas vezes, o controle dos negócios poderia
ser feito simplesmente a partir da nomeação de procuradores, que também desen-
volviam suas atividades paralelamente às de seus outorgantes. Entre os morado-
res do arraial de Santana do Paracatu nomeados como procuradores, destaca-
ram-se os nomes de Domingos Dias Torres, João Duarte Pinho, do coronel José
Velho Barreto, além, é claro, dos irmãos Joaquim e Felisberto Caldeira Brant, de
João Jorge Rangel e do capitão Paulo Mendes Campelo.

27
ESCRITURA de sociedade que fizeram Bento Francisco Vasquez Feijó e Diogo Ferreira Cunha. MO/
IBRAM – Casa Borba Gato: LN, CPO 11(35), fls. 32v-33v – 05/03/1745.
28
Ibidem.
29
Na letra de crédito lê-se: “Devo que pagarei a Diogo Ferreira Cunha 587 oitavas e um quarto de ouro
limpo capaz de receber procedida de metade de seis negros e três cavalos e ferramentas e outros gastos
que tudo lhe comprei e recebi a meu contento assim em preço como em bondade a qual quantia pagarei
a ele dito ou a quem este me mostrar da feitura deste a 2 anos e meio sem isso por dúvida alguma e por
cuja satisfação obrigo minha pessoa e os próprios bens que aqui se faz menção e por verdade lhe passei
este de minha letra e sinal . Vila de Sabará 16 de setembro de 1744. Bento Francisco Vasquez Feijó”. Ver:
TRESLADO de um crédito apresentado por Diogo Ferreira Cunha. MO/IBRAM – Casa Borba Gato:
LN, CPO 11(35), fls. 33v-34 – 05/03/1745.

171
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Paulo Mendes Campelo, semelhante ao correspondente de Francisco Pinheiro,


Francisco da Cruz, foi escrivão na vila de Sabará; mas o primeiro foi escrivão da
Câmara e o segundo da Ouvidoria.30 A partir de informações privilegiadas adqui-
ridas no exercício de seu trabalho, esses agentes tinham um conhecimento muito
mais seguro sobre as novas descobertas minerais no norte de Minas Gerais que a
maioria das pessoas. Mesmo assim, tanto Cruz quanto Campelo não apostaram
todas as suas fichas nas novas oportunidades de negócios. Apesar do ex-escrivão
da Câmara de Sabará ter se dirigido para o arraial de São Luiz e Santana logo em
seguida ao anúncio oficial dos novos achados minerais, sua migração só foi conso-
lidada no ano seguinte, quando vendeu via procuração “umas moradas de casas
na Rua do Fogo” que possuía na vila de Sabará.31

Se por um lado as grandes distâncias entre as novas descobertas minerais e os


centros político-econômicos a que estavam subordinados permitiu angariar “fortu-
na esperando-a tão favorável, como outros a tiveram, ficando ricos de repente” –
conforme escreveu Pedro Leolino Mariz a respeito das Minas Novas;32 por outro,
contribuiu para uma instabilidade que não era favorável a maioria dos investimen-
tos econômicos. Por esse e outros motivos o governador de Minas Gerais reiterou
no ano de 1753 “a necessidade que havia de ministros para o Paracatu”, devido à
“grande distância que faz do Sabará, Cabeça da Comarca, aquele que são mais de
cem léguas”.33

Nesse sentido, uma das mais importantes razões para parco desenvolvimento eco-
nômico e para a fragilidade dos circuitos mercantis integrados a nova descoberta
aurífera em Paracatu reside nas indefinições administrativas e jurisdicionais nos
sertões da capitania de Minas Gerais. A exploração aurífera poderia ter o poder
de transformar a economia local, na medida em que criava as condições necessá-
rias para uma ampla circulação de moedas no mercado. Mas o dinheiro produzido

30
CERTIDÃO feita por Paulo Mendes Campelo, escrivão da Câmara de Vila Real de Nossa Senhora da
Conceição do Sabará, de algumas folhas dos livros de contas, que se tomarem, em cada ano, aos
procuradores. AHU – Cons. Ultram. – Brasil/Minas Gerais –: cx. 44 doc. 75 – 21/08/1744.
31
ESCRITURA de venda feita pelo capitão Paulo Mendes Campelo ao licenciado José Corrêa e Silva.
MO/IBRAM – Casa Borba Gato: LN, CPO 11(35), fls. 78-78v – 12/04/1745.
32
CARTA de José António Freire de Andrada, governador de Minas, informando Diogo de Mendonça
Corte-Real acerca das medidas cautelares que tem tomado no sentido de evitar a introdução de ouro
falso assim como da necessidade que há em se nomear um ministro para Paracatu. AHU – Cons.
Ultram. – Brasil/Minas Gerais –: cx. 61 doc. 27 – 20/02/1753.
33
CARTA de José António Freire de Andrada, governador de Minas, informando Diogo de Mendonça
Corte-Real acerca das medidas cautelares que tem tomado no sentido de evitar a introdução de ouro
falso assim como da necessidade que há em se nomear um ministro para Paracatu. AHU – Cons.
Ultram. – Brasil/Minas Gerais –: cx. 61 doc. 27 – 20/02/1753. Além disso, a qualidade do mineral
encontrado nessas novas descobertas não era tão boa quanto nas minas chamadas antigamente de
“Cataguazes”, “em razão da inferioridade do toque do ouro naquele continente”.

172
“Uma coisa é ver e outra é o contar”
SANTOS, Raphael Freitas

em Paracatu, por exemplo, circulou apenas pelas mãos de poucos indivíduos. E o


benefício de poucos resultou em um limitado crescimento de toda a região já “que
há de não correr o ouro, que é o dinheiro provincial que permite S. Majestade
dentro de todas as minas”.34

Além disso, os moradores mais antigos de Paracatu, que tinham roças, sítios e fa-
zendas na região reclamavam que “querem os contratadores que os suplicantes
estando perto do arraial as suas roças paguem direitos dos víveres e mantimentos
que vão vender ao arraial”. Isso acontecia justamente porque não havia uma defini-
ção clara se “nestes termos ou o Paracatu se considere como parte das Minas, ou
como território Extraminas”.35 O resultado dessa indefinição foi, de um lado, a
miséria dos pequenos proprietários, comerciantes e mineradores; e, de outro, os
“rendeiros e administradores, de que todos em breve tempo se tem visto opulentos
com muita soma de mil cruzados, uns nessas minas e outros no Reino”.36 A trajetó-
ria de Antônio Manoel Granja parece ser bastante emblemática nesse sentido.

Natural da freguesia de São Martinho de Mondom, no Arcebispado de Braga,


com aproximadamente 16 anos de idade Antônio Manoel Granja “se ausentou
para as partes do Brasil”. De acordo com um dos informantes do Santo Ofício em
Minas Gerais, Granja “foi caixeiro de loja de fazendas em Vila Rica dessas Minas
Gerais, depois cobrador de um registro entre Goiás e Paracatu e há alguns
anos mercador com loja de fazenda seca no dito arraial de Paracatu”.37 “Mane-
jando um cabedal superior a 50 mil cruzados”, entre dinheiro seu e crédito capita-
neado nas Minas e no Rio de Janeiro,38 Antônio Manoel Granja foi considerado
em 1756 como um dos “homens abastados da capitania de Minas Gerais” – de
acordo com uma lista produzida pelo intendente Domingos Nunes Vieira com
objetivo de mapear as pessoas que poderiam contribuir financeiramente com a
reconstrução de Lisboa, atingida no ano anterior por um terrível terremoto que
devastou a cidade.39 Por tudo isso Antônio Manoel Granja acabou se tornando

34
Isso porque, tanto aqueles que levavam o ouro das lavras para gastar das minas, como as “pessoas
negociantes que vão aos engenhos e fazendas dos suplicantes compra-lhes os seus efeitos”, acabavam
tendo o dinheiro confiscado pelos rendeiros e administradores. REPRESENTAÇÃO dos oficiais da
Câmara de Vila Real do Sabará, dando conta das extorsões de que são vítimas os moradores das minas
de Paracatu, e solicitando providências para o caso. AHU – Cons. Ultram. – Brasil/Minas Gerais –: cx.
66 doc. 22 – 11/11/1754.
35
Ibidem.
36
Ibidem.
37
HABILITAÇÃO para o Santo Ofício de Antônio Manoel Granja. ANTT/H.S.O: António, mç. 136,
doc. 2254 – 1760 (grifos nossos).
38
Ibidem.
39
CARTA de Domingues Nunes Vieira, desembargador e intendente da Comarca de Sabará, informando
Diogo de Mendonça Corte-Real sobre a remessa da relação das fazendas que entravam nas Minas assim
como sobre a relação dos homens abastados da referida capitania AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG-
: cx. 70, doc. 40 –24/07/1756.

173
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Juiz Ordinário e Tesoureiro da Fazenda Real no arraial de São Luiz e Santana,


reforçando ainda mais o seu controle sobre os mineradores e produtores rurais da
região.40

Considerações finais

O ouro extraído nas Minas Novas e em Paracatu não circulou com muita intensi-
dade naquelas regiões. Mais escasso, de pior qualidade, e restrito a poucas pesso-
as, o ouro encontrado nos sertões ao norte da capitania de Minas Gerais não foi
capaz de produzir o efeito de arraste característico desse fenômeno econômico
(ASSADOURIAN, 1979; CARRARA, 2010). Em outras palavras, nas minas
norte mineiras o ouro não permitiu o fomento da produção, do comércio, dos ser-
viços, enfim, dos circuitos mercantis com a mesma amplitude que ocorreu nas
minas na região central da capitania de Minas Gerais. As razões para esse fato
podem ser encontrados nas reorientações no abastecimento das minas promovi-
das pela coroa portuguesa, que tornaram proibidas por algum tempo as rotas mer-
cantis que ligavam a Bahia às Minas Gerais e estimularam o comércio pelo Cami-
nho Novo do Rio de Janeiro; e, principalmente, nos favorecimentos por parte da
coroa portuguesa ao desenvolvimento de práticas monopolísticas no que tange a
alguns dos negócios mais lucrativos operados em Minas Gerais, como eram os
contratos régios (dízimos, entradas, passagens e outros tributos) e a mineração do
diamante.

Mas, parafraseando o correspondente de Francisco Pinheiro na vila de Sabará,


Francisco da Cruz, “uma coisa é o ver e outra é o contar”.41 Uma coisa é identi-
ficar e analisar as conjunturas econômicas a partir de narrativas registradas em
cartas pessoais, em relatos coevos e em correspondências trocadas entre as auto-
ridades coloniais. Outra coisa bem diferente é “o contar”, isto é, verificar os rit-
mos e impactos dessas mesmas conjunturas econômicas a partir de informações
que não possuem qualquer aspecto discursivo. Se os procuradores eram nomea-
dos simplesmente para representar os interesses econômicos, políticos, jurídicos e
familiares dos outorgantes, as oscilações no percentual de procuradores nomea-
dos para atuar nas minas do norte da capitania de Minas Gerais apontam para o
caráter volátil e especulativo da ocupação e da exploração dessas regiões. E a
análise serial de registros cartorários, conjugada com narrativas e trajetórias indi-
viduais, tornou ainda mais clara as características que marcaram essas conjuntu-
ras econômicas.

40
REQUERIMENTO do capitão Antônio Manoel Granja, solicitando a expulsão dos três sacerdotes que
perturbavam a paz e o sossego dos povos. AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG-: cx. 84, doc. 30 – 13/08/
1764.
41
CARTA de Francisco da Cruz para Francisco Pinheiro. Vila Real 17 de junho de 1728... op. cit.

174
“Uma coisa é ver e outra é o contar”
SANTOS, Raphael Freitas

GRÁFICO 1: Percentual de procuradores nomeados para a Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo,
registrados nos cartórios da vila de Sabará
Fonte: MO/IBRAM – Casa Borba Gato: LN (CPO e CSO) – 1717-1750

GRÁFICO 2: Percentual de procuradores nomeados para Minas Gerais, registrados nos cartórios da
vila de Sabará
Fonte: MO/IBRAM – Casa Borba Gato: LN (CPO e CSO) – 1717-1750

OBS: Apesar de apenas na segunda metade do século XVIII Minas Novas ter
sido incorporada efetivamente à Comarca do Serro e à Capitania de Minas Gerais
– conforme a resolução do Conselho Ultramarino de 13 de maio de 1757 –, con-
tamos a região como parte da comarca do Serro do Frio, uma vez que vila estava
subordinada a Ouvidoria da Comarca (PARECER do Conselho Ultramarino so-
bre a informação do ouvidor geral da Comarca do Serro do Frio, António ferreira

175
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v. 17, n.1, n.2/2012

do vale, relativa aos descobrimentos das Minas nos sertões da Bahia. AHU –
Cons. Ultram. – Brasil/Minas Gerais –: cx. 14 doc. 14 – 14/03/1729)

FONTES

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178
HISTÓRIA E MEMÓRIA: AS ORIGENS DA DIOCESE
DE MONTES CLAROS NO NORTE DE MINAS
GERAIS (1903-1943)

Franscino Oliveira Silva*

Resumo: O texto aborda como se deu a criação da Diocese de Montes Claros no


Norte de Minas Gerais pelo Papa Pio X, com a Bula Postulat Sane, inserida no
processo de crescimento do número de dioceses no Brasil a partir do período em
que gozava de liberdade, graças à separação entre Igreja e Estado em 1890.

Palavras-Chave: Diocese. Igreja Católica. Montes Claros. Romanização.

Resumen: El texto aborda como se dio la creación de la Diócesis de Montes


Claros en el Norte de Minas Gerais por el Papa Pio X, com la Bula Postulat Sane,
insertada en proceso de crecimiento del número de diócesis en Brasil a partir del
periodo en el que gozaba de libertad, gracias a la separación entre la Iglesia y el
Estado en 1890.

Palabras-claves: Diócesis. Iglesia Católica. Montes Claros. Romanización.

* Professor do Programa de Pós-Graduação em História – PPGH e do Departamento de História da


Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes.

179
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Introdução

A criação da diocese de Montes Claros, situada no norte de Minas Gerais, ocorreu


num período em que a Igreja no Brasil trabalhava pela sua reestruturação. D.
Joaquim Silvério de Souza, bispo de Diamantina, desde o início de seu episcopado,
ainda como bispo coadjutor, não mediu esforços para que o espírito de reforma
católica1 beneficiasse o extremo norte de Minas, onde o povo na sua grande
maioria professava o catolicismo, mas estava sem receber a devida assistência
espiritual. Fazia-se necessário arrancar o povo da indiferença e superficialidade
religiosa que o envolvia para levá-lo à prática de uma vida verdadeiramente cristã.
O bispo reconhecia ser para ele impossível governar tão extenso território marcado
por populações espalhadas.

Diante da necessidade de construir um patrimônio para a nova diocese, não se


pode desconhecer a contribuição dos premonstratenses belgas, sobretudo
considerando os esforços realizados pelo cônego Maurice Gaspar, que através de
várias viagens, enquanto arrecadava as contribuições do povo, ele o conscientizava
a respeito dos benefícios que iria trazer a criação do bispado. Um dos grandes
memorialistas da história de Montes Claros, Hermes de Paula, paroquiano dos
premonstratenses, sempre atribuiu a esses padres a autoria da criação da diocese
com sede em Montes Claros, entretanto alguns documentos existentes no Arquivo
Vaticano não oferecem razões para permanecer nessa única interpretação. Na
verdade, Montes Claros e suas paróquias vizinhas davam um certo privilégio aos
cônegos belgas para viverem uma vida mais independente da distante Abadia do
Park na Bélgica. A presença de um bispo iria melhorar, sim, a vida da Igreja, mas
certamente traria algumas desvantagens para aqueles que estavam como primeiros
responsáveis de um extenso território.

Aos ouvidos do bispo de Diamantina chegou a notícia de que os religiosos belgas


ameaçavam a deixar a paróquia tão logo fosse criada a diocese, por isso D. Joaquim
pediu a eles que se pusessem à frente da obra que seria vantajosa não somente
para os fiéis mas também para a vida da missão premonstratense que se encontrava
ali, com possibilidades de um maior crescimento.

1
Com essas palavras queremos compreender os desejos e empenhos para melhorar a situação da Igreja
no Brasil a fim de atender às diretrizes provenientes de Roma. Essa «reforma» não permanece pois no
mesmo nível daquela tridentina, mas é peculiar ao Brasil. Segundo Riolando Azzi, «a palavra «reforma»
foi utilizada pelos próprios bispos do século passado, e aparece com freqüência em seus documentos
pastorais. Na realidade, ela lembrava de perto a reforma tridentina, na qual os prelados buscavam sua
inspiração. O termo era utilizado em sua acepção comum, significando basicamente a substituição de
elementos considerados deficientes ou sem vitalidade por novas formas que permitissem à fé católica
apresentar-se com nova face» (R. AZZI, O altar unido ao trono: um projeto conservador, São Paulo
1992, 29).

180
História e Memória: As origens da diocese de Montes Claros...
SILVA, Franscino Oliveira

O bispo de Diamantina se apoiava nas resoluções tomadas pelos bispos da Província


Eclesiástica Meridional do Brasil, em 1901 (BARBOSA, 1945, p. 151-152}. Entre
as resoluções figurava a de se aumentarem as dioceses de conformidade com as
necessidades dos fiéis para incremento da religião. Junto ao Núncio apostólico
Dom Alessandro Bavona (1906-1910) 2 , os argumentos mais importantes
apresentados pelo bispo de Diamantina eram os seguintes: a sua diocese era muito
extensa territorialmente; os protestantes provenientes sobretudo do sul da Bahia
estavam pouco a pouco ganhando espaço junto às famílias norte-mineiras; a
maçonaria, através de uma circular, já havia anunciado a sua intenção de fundar
novas casas ou lojas para «combater o clericalismo que haveria de propagar o
romanismo pela fundação do bispado do Norte.

Para falar da criação dessa diocese, é necessário levar em consideração o amplo


contexto sócio-político, cultural e eclesiástico da época. A criação da diocese no
extremo Norte de Minas ocorre no período que marca a metade da chamada
Primeira República (1890-1930). Numa retrospectiva histórica dessa época que
precede a fundação da diocese em 1910, observa-se que a sociedade brasileira
conservava muitas coisas da estrutura do período imperial (1822-1889). Trata-se
de uma fase histórica de transição em que o antigo e o novo coexistiam. Conforme
a historiografia brasileira contemporânea3 , a entrada do Brasil no período
republicano não foi marcada por grande entusiasmo em toda a sociedade brasileira.
Essa República nasceu sob o influxo liberal-positivista e foi composta por uma
elite indiferente ao substrato cultural e religioso do povo brasileiro4 . Dentre as
reações contrárias encontra-se a manifestação do episcopado em relação à
separação entre a Igreja e Estado desde 1890.

É nesse quadro histórico da Primeira República que homens de prestígio político


e econômico atuam nas regiões do extremo norte de Minas. Nessa região,
mormente Montes Claros conta com representantes políticos em nível estadual

2
Alessandro Bavona nasceu em 1856. Foi Núncio do Brasil no período Roccadicambio (Aquila) aos 11 de
maio 1906-1910. Aos 2 de fevereiro de 1910 foi nomeado Núncio da Áustria. Morreu aos 19 de janeiro
de 1912 em Viena (Cf. G. DE MARCHI, Le Nunziature Apostoliche, 80).
3
Cf. algumas obras relevantes, dentre outras, a esse respeito: E. CARONE, A República Velha: instituições
e classes sociais. São Paulo 1975; ID., A República Velha: evolução política (1889-1930), São Paulo
1985; B. FAUSTO, O Brasil republicano: estrutura de poder e economia (1889-1930), São Paulo 1985;
T. BRUNEAU, O Catolicismo em época de transição, São Paulo 1974.
4
No dístico «Ordem e Progresso», presente na Bandeira Nacional e na elaboração da Primeira Constituição
Federal do Brasil verifica-se a influência liberal-positivista. Embora os seguidores do positivismo não
consigam implantar uma ditadura republicana no Brasil, seus seguidores persistem através de um
positivismo difuso, influenciando na doutrina e na prática de certos grupos políticos (Cf. J. C. COSTA,
Contribuição à história das idéias no Brasil, Rio de Janeiro 1967, 21-52).

181
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

e federal. Em Januária estava o deputado Lindolpho Caetano5 . Ele tinha sido


seminarista durante alguns anos no Seminário de Diamantina. Montes Claros
contava então com outros deputados como Celestino Soares da Cruz6 , deputado
estadual, Camilo Prates7 e Honorato Alves8 , deputados federais e outros. Em

geral eram grandes fazendeiros e políticos. Foi nos mecanismos desse sistema
que o chamado «coronelismo» tornou-se a base de uma possível política dos
Estados. Nesse período, os coronéis, chefes locais distribuídos nas várias regiões
do país, foram importantes na manutenção da tradicional composição do poder
político, baseado no princípio das trocas de interesses com o Estado, surgindo daí
uma legitimação recíproca entre o poder central e o poder regional.

Como se sabe, o ideal político do liberalismo pretendia uma forma de governo em


que a liberdade fosse prioritária e o Estado se tornasse seu guardião, porém no

5
Lindolpho Caetano de Souza e Silva Filho, nasceu aos 12 de janeiro de 1855 em Januária. Filho de
Manuel Caetano de Souza e Silva e Anna Lúcia de Souza Menezes. Ele entrou no seminário de
Diamantina aos 11 de outubro de 1873. Depois de alguns anos retirou-se porque seu pai estava muito
doente. Após a morte de seu pai ele não retornou ao seminário (Cf. Livro de Matrículas I [1867-1886],
n. 240, in ASMD). Quando acontecia a fase de integração republicana, no município de Januária, surgiu
Lindolpho Caetano de Souza e Silva, no cenário político local, projetando-se como chefe partidário de
grande influência. Nesta mesma época era companheiro do Cônego Levínio José Torres Jatobá.
Quando Lindolpho Caetano foi para a Câmara Estadual (1891-1897), o cônego ficou como Chefe
Executivo de Januária. Depois este deputado foi para a Câmara Federal (1897-1910) (Cf. J. V. LIMA ,
«Januária e seu passado político», in Primeiro Centenário de Januária [1860-1960], Belo Horizonte
1960, 51-58).
6
Nasceu no município de Paus Pretos, em 1844. Filho de Jacinto Soares de Oliveira e de Montes Claros
aos 3 de maio de Caetana de Jesus e Barros. Como representante comercial conseguiu construir um
patrimônio financeiro considerável e depois o perdeu todo na política. Ocupou vários cargos políticos
na cidade de Montes Claros. Foi Presidente do Conselho da Intendência Municipal de Montes Claros,
em substituição a Camilo Prates, que se exonerara. Elegeu-se deputado estadual (1896-1906). Faleceu
em Teófilo Ottoni aos 21 de setembro de 1918 (Cf. N. VIANNA, Efemérides Montesclarenses, 463-464).
7
Nasceu aos 29 de dezembro de 1859, na fazenda Santo André. Filho de Hermenegildo Rodrigues Prates
e Francisca Ambrosina Prates Sá. Ele fez o curso de Humanidades em Ouro Preto. Ingressou na política
aos 22 anos quando foi eleito Deputado Provincial. Foi um dos constituintes de 1891, da Constituição
Estadual e Senador Estadual. Na sua carreira política foi o chefe liberal de Montes Claros e líder no
Norte de Minas. Em 1911 foi eleito Deputado Federal, sendo reeleito até 1930, quando foi dissolvido
o Congresso Nacional. Em Montes Claros enfrentou um forte adversário político que era Dr. Honorato
Alves. Seu partido – camilista, partido de baixo, estrepe – era constituído pelas famílias Prates, Chaves
e os remanescentes celestinistas – Teixeira, Paula, Guimarães, Souto etc. Faleceu em Belo Horizonte
em dezembro de 1940 (Cf. H. A. PAULA, Montes Claros, I, Montes Claros 1979, 170).
8
Honorato José Alves nasceu em Mendanha, Minas Gerais, a 10 de novembro de 1868. Filho do Coronel
Marciano José Alves e Antônia Josefina Alves que mudaram para Montes Claros no ano de 1877. Fez
medicina no Rio de Janeiro, diplomando-se em Ciências Médico-cirúrgicas a 30 de novembro de 1890.
Formado, chegou a Montes Claros em princípios de 1891, exercendo a profissão e filiando-se aos
remanescentes do partido Conservador, obtendo apoio do Dr. Carlos Versiani, também médico e chefe
do tradicional partido. Foi eleito Deputado Estadual em 1903, e Presidente da Câmara de Municipal de
Montes Claros em 1904, quando já exercia o mandato. Eleito Deputado Federal em 1906, conseguiu
reeleições sucessivas até 1930. Quando se elegeu Deputado Federal transferiu-se para Belo Horizonte
e, depois para o Rio de Janeiro onde faleceu aos 23 de março de 1948 (Cf. N. VIANNA, Efemérides
Montesclarenses, 150).

182
História e Memória: As origens da diocese de Montes Claros...
SILVA, Franscino Oliveira

Brasil ocorreu que as classes privilegiadas assimilaram esse ideário, e em função


de suas expectativas exigiram do Estado um posicionamento que fosse compatível
com essa doutrina política. As classes privilegiadas e os Estados mais desenvolvidos
tiraram proveito dessa situação, o que levou os demais a uma reação a partir da
década de 1920 nas cidades maiores9 . Em Montes Claros, chegam apenas as
notícias dessas reações que ocorriam no país até a Revolução de 1930, das quais
as lideranças políticas locais do extremo Norte de Minas sabiam usar em proveito
de seus próprios benefícios. O caráter marcadamente rural da diocese de Montes
Claros nessa época não dá ao povo em geral motivos claros para um envolvimento
no processo político republicano. É nesse contexto histórico que nasce a diocese
de Montes Claros com um bispo que, na sua atuação pastoral, procura se manter,
como ele mesmo diz, numa atitude sensata de neutralidade.

1 Primeiros esforços para a criação da diocese de Montes Claros

No ano de 1899 já era ventilada a ideia da criação de uma nova diocese no extremo
Norte de Minas10 . Fala-se de dois professores públicos Manoel Ambrósio11 e
Antônio Nascimento que reivindicavam para Januária a sede episcopal da futura
diocese. Certamente pensavam que, dentro dos projetos de melhoramentos para a
região, a criação de um novo bispado seria de grande significado (GASPAR, 1925,
p. 5). Foi num antigo semanário local de 1903, intitulado A Luz que o professor
Manoel Ambrósio lançou o primeiro artigo em favor do bispado de São Francisco,
durante a visita pastoral de Dom Joaquim à cidade de Januária (A Luz, 20 de
setembro 1903, p. 51).

Com a visita do bispo coadjutor de Diamantina, Dom Joaquim Silvério de Souza, à


Januária em agosto de 1903, aqueles que alimentavam esse sonho receberam um
grande incentivo. Dom Joaquim não escondia a sua simpatia pela cidade de
Januária, entretanto foi Montes Claros o lugar em que tal sonho se transformou
em realidade. A historiografia montes-clarense 12 atribui aos cônegos

9
Uma série de revoltas militares culminou com a força rebelde conhecida começou no Rio de Janeiro em
1922 e como «Coluna Prestes» (Cf. E. CARONE , Revoluções do Brasil Contemporâneo [1922-1938],
São Paulo 1989). Cf. também A. L. PRESTES, A Coluna Prestes, São Paulo 1990; V. P. BORGES, Tenentismo
e Revolução Brasileira, São Paulo 1992.
10
Nesse mesmo ano, o Papa Leão XIII numa carta dirigida ao Episcopado brasileiro voltou a insistir na
conveniência da criação de novos bispados no Brasil (Cf. LEO PP. XIII, «Epistola Paternae Providaeque»
[18 setembro 1899], in ASS 32 [1899-1900] 214-217).
11
Neste período existiam dois partidos políticos em Januária: Luzeiro e Escureiro. O Partido da Luz,
vinculado ao jornal A Luz, no qual pontificava Manuel Ambrósio, panfletário ardente, crescia sob um
impulso de mudança e renovação (Cf. J. V. LIMA , «Januária e seu passado político», in Primeiro
Centenário de Januária [1860-1960], Belo Horizonte 1960, 56).
12
Citamos aqui alguns livros da historiografia montes-clarense: VIANNA , Efemérides Montesclarenses
1707-1962, Rio de Janeiro 1964; U. VIANNA, Montes Claros. Monographia do Município de Montes
Claros, Belo Horizonte 1918; H. A. PAULA, Montes Claros – sua história, sua gente, seus costumes, III,
Montes Claros 1979.

183
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

premonstratenses a maior parte do esforço para a criação da Diocese de Montes


Claros, os documentos, porém, desabonam essa afirmação historiográfica.

Depois de sua visita à Januária, Dom Joaquim escreveu ao Núncio Apostólico


Dom Giulio Tonti (1902-1906) a respeito da necessidade da criação de um nova
diocese no Norte de Minas13 . Ele disse que se encontrava empenhado para esta
criação o deputado federal Lindolpho Caetano, residente na cidade de Januária. O
bispo de Diamantina reconheceu que se tratava de uma necessidade inadiável.
Para ele era muito difícil acudir aquela região a 100 léguas da sede do bispado, por
isso propôs ao núncio que entrasse em entendimento com o deputado a fim de que
ele pudesse promover a aquisição da casa para Palácio e Seminário.

O núncio acolheu com interesse aquele projeto de constituição de uma nova diocese
e se prontificou imediatamente a executá-lo, apresentando duas exigências iniciais:
1 o. O consenso dos três bispos das dioceses cujo território deveria ser
desmembrado, isto é, Bahia, Goiás e Diamantina. 2o. Obtido o consenso,
apresentassem as oportunas garantias requeridas no caso. E desde já se prontificou
para informar a Santa Sé a respeito do desejo da ereção da nova diocese. Em
1907 veio um outro núncio para o Brasil, Dom Alessandro Bavona (1906-1910).
Aos 28 de agosto de 1907 Dom Joaquim escreveu ao núncio para falar sobre os
trabalhos dele pela ereção da nova diocese (Nunziatura Apostolica in Brasile,
1907, fasc. 611, p. 2), apresentando-lhe as resoluções tomadas pelos bispos da
Província Eclesiástica Meridional do Brasil, nas conferências celebradas, há 6
anos, na capital de São Paulo. Entre as resoluções figurava a de se aumentarem
as dioceses de conformidade com as necessidades dos fiéis para incremento da
religião.

Ele explicou que se tratava de uma região pobre composta de um território muito
extenso. Deste modo, pediu a atenção do novo núncio ao projeto da criação da
diocese norte-mineira no bispado de Diamantina. Para a nova diocese iriam passar
todas as povoações compreendidas dentro dos limites da arquidiocese da Bahia
com Diamantina pelo rio Jequitinhonha, Itacambirussú, Congonhas Grande, Jequitaí,
São Francisco até o Urucuia, que dividirá a nova diocese com a do triângulo, e,
passada a foz do Urucuia, São Francisco abaixo de um e do outro lado, dividindo
com Goiás e Bahia. Seriam 23 paróquias com possibilidade de criação de outras e
sete cidades para a constituição da nova diocese. Como a região sertaneja é
pobre, seria difícil oferecer as doações para o novo bispado. A cidade de Januária

13
Carta de Dom Joaquim ao Núncio Apostólico Dom Giulio Tonti aos 21 de novembro de 1903, in ASV,
Nunziatura Apostólica in Brasile, (1903) fasc. 495, 39-41: «Quando visitei o valle de São Francisco,
indo quasi até a divisa com o Arcebispado da Bahia tocaram-me lá na creação d’um Bispado, composto
de parte da Diocese de Diamantina, de parte do Arcebispado da Bahia e de parte de Goyaz».

184
História e Memória: As origens da diocese de Montes Claros...
SILVA, Franscino Oliveira

possuía a estrutura necessária para ser sede do bispado. Até essa época, Dom
Joaquim, quando fala a respeito da nova diocese, sempre se refere à cidade de
Januária14 .

Porém, conta-se que em 1907, quando a idéia da criação de um novo bispado ia


deixando de ser um distante ideal, os padres premonstratenses, reunidos no edifício,
onde atualmente funciona o Grupo Escolar Gonçalves Chaves, Bento Maussen,
Maurício Gaspar e Paulo Lenaerts, sabedores da vastidão da diocese de Diamantina
que atingia toda a superfície do Norte de Minas, resolveram lançar pela imprensa
a idéia de que a sede do novo bispado deveria ser em Montes Claros (GASPAR,
1930, p. 114). Sendo assim, no dia 21 de dezembro de 1907, o deputado Camilo
Prates lançou um artigo no número 28 do jornal A Verdade, sobre a necessidade e
importância da criação da nova diocese no Norte de Minas. Nesse artigo ele
aplaude as iniciativas do bispo de Diamantina para a criação de um novo bispado
no Norte de Minas. Ele afirma demagogicamente que os norte-mineiros «não
precisam de catequese» porque já são todos católicos, mas é para ser atendido «o
anseio dos católicos pelos sacramentos da Igreja» (A Verdade, 21 de dezemro
1907, p. 1).

Não é de provocar admiração esse pensamento de Camilo Prates, pois nesse


período a ação pastoral da Igreja é acentuadamente sacramentalista. Ele ressalta
a impossibilidade de somente um bispo diocesano atender todo o Norte de Minas:

Os meios de comunicação que dispomos são ainda e unicamente os primitivos:


cavalgar por péssimos caminhos, abertos, em sua quasi totalidade, pelos cascos
das montarias, transpondo rios e corregos sem pontes, atravessando serras e
montanhas em veredas que mais parecem caminho de cabras do que estrada
de homens (A Verdade, 21 de dezembro de 1907, p. 1).

Dificuldades essas que convenciam a todos a respeito da necessidade de uma


nova diocese. E nessa época representantes de Montes Claros estão convencidos
que essa cidade é a que melhor atendia às exigências necessárias para a sede do
novo bispado, ou seja, posição geográfica, facilidade de comunicação com os centros
civilizados, recursos materiais para a manutenção de instituições acessórias a um
bispado, clima e outros. Acreditavam que nenhum outro lugar poderia superá-los
porque para atender às exigências citadas, eles já possuíam dois colégios religiosos,
o dos premonstratenses e o das religiosas de Berlaar.

14
Distância da capital de Minas Gerais, em linha direta: Januária 490 Km, Montes Claros 352 Km (Cf.
SECRETARIA DA AGRICULTRA, Annuario Estatistico (Situação physica), I, Belo Horizonte 1924, 65). Quanto
à população, no recenseamento de 1900, o município de Januária contava com 30.468 habitantes e o
de Montes Claros com 54.356 habitantes (Cf. SECRETARIA DA AGRICULTURA, Annuario Estatistico (Situação
demografica), II, Belo Horizonte 1925, 54).

185
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
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Nesta época o secretário da diocese de Diamantina, o cônego Lúcio Antunes de


Souza, ex-vigário e amigo de Montes Claros, já eleito bispo de Botucatu-SP,
manifestou o seu desejo de ajudar naquilo que fosse necessário para a realização
desse projeto. Neste movimento em favor da realização do projeto foi realizada
uma reunião presidida pelo deputado Dr. Honorato Alves para discutir as
possibilidades para a realização desse intento. Comissões foram nomeadas para
angariar donativos. Os premonstratenses ofereceram a importância de um conto
de réis e a quantia necessária era 25 contos de réis (PAULA, 1979, p. 268).

É certo que a partir de 1908 foi formada uma comissão para a criação do bispado de
Montes Claros. Era composta dos seguintes membros: Dr. João José Alves, Antônio
Narciso Soares, Sílvio Teixeira de Carvalho, Joaquim José da Costa, Celestino Soares
da Cruz, Antônio dos Anjos, José Antônio Pereira e Antônio Augusto Spyer
(Nunziatura Apostólica in Brasile, 1911, fasc. 611, p. 18-19). Esses homens tinham
prestígio político na cidade de Montes Claros. Aos 5 de março de 1909, membros da
comissão escreveram ao bispo de Diamantina para comunicar-lhe que haviam
começado a arrecadar as quantias prometidas, e que verificaram logo a impossibilidade
da arrecadação integral, já que, naquela época uma seca tremenda tinha assolado a
região, impossibilitando as pessoas de satisfazerem o compromisso.

E afirmam nessa carta: «Já temos fome e, dentro em breve, com a imigração
baiana que começa, vamos presenciar horrores, se Deus, pela sua infinita
misericórdia, não se compadecer de nós» (Nunziatura in Brasile, 1909, fasc. 611,
p. 18-19). Enfim, a comissão apresenta as desculpas e eles deixam claro que não
podem realizar em dinheiro a importância do patrimônio.

Dom Joaquim respondeu à carta e disse que esteve em Roma, e ali Dom Lúcio
havia recebido um telegrama de Montes Claros, afirmando que eles tinham
arranjado o patrimônio. O telegrama já estava com o núncio, mas mesmo assim
iria escrever-lhe, pedindo que ele esperasse um pouco. O bispo encorajou os
membros da comissão e observou que a quantia exigida era pequena em
comparação com aquelas que eram exigidas em São Paulo. Ele pediu que as
subcomissões constituídas nos povoados continuassem o trabalho começado
(Nunziatura Apostólica in Brasile, 1909, fasc. 611, p. 20-21). Na mesma data
enviou uma carta aos cônegos premonstratenses. Nesta carta aparece uma
contribuição importante para os estudos da criação da diocese de Montes Claros.
O desinteresse por parte dos cônegos é conhecido pelo bispo. Dom Joaquim escreve
que eles devem ter interesse pela criação do bispado, pois muito lucrarão com
este melhoramento. Ele exorta aos premonstratenses que

se ponham à frente da obra, animem, falem, concorram eficazmente, e o Bispado


será criado para vantagem não só dos fiéis, mas da Ordem a que pertencem

186
História e Memória: As origens da diocese de Montes Claros...
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Vossas Reverendíssimas a qual desejo ver próspera no Brasil e particularmente


no Norte de Minas, onde já se acham Vossas Reverendíssimas (Nunziatura
Apostólica in Brasile, 1909, fasc. 611, p. 22).

Reconhecendo que não podia contar com a quantia exigida, aos 19 de outubro de
1909, Dom Joaquim escreveu ao núncio, pedindo-lhe que tratasse da criação da
diocese, ainda que não pudesse contar com o patrimônio de 25 contos de réis.
Explicou que o Norte de Minas é pobre e, além disto, a vontade dos fiéis era
pouca, ele desabafa com o núncio ao dizer que a criação se tornara uma «urgente
necessidade», pois era dificílimo a um bispo servir tão extensa zona.

Na mesma carta Dom Joaquim tocou no assunto do possível bispo para a nova
diocese, sugerindo que fosse um padre religioso ou Dom João Pimenta:

Si houver padre de Comunidade Religiosa que possa ser nomeado para a nova
diocese, então a sua comunidade ajudará, como tem acontecido com os Padres
Lazaristas assumptos ao episcopado. Si não, parece que o D. Pimenta (Rio
Grande do Sul) aceitaria, caso, saindo eu, elle não me venha substituir
(Nunziatura Apostólica in Brasile, 1909, fasc. 611, p. 30).

No ano seguinte, aos 21 de julho, numa carta escrita ao núncio, Dom Joaquim
narra uma de suas viagens pastorais a uma zona que iria pertencer ao bispado de
Montes Claros. Naquela época, devido à grande seca no sertão baiano, muitos
deles migrantes chegavam a Minas. Muitos deles, segundo Dom Joaquim, vinham
ceivados de idéias protestantes ou já protestantes formados em Canavieiras-BA.
Somente no distrito de Vigia já habitavam mais de 10 famílias protestantes. Dom
Joaquim se mostrou também muito preocupado, pois um deputado maçom havia
feito uma circular, distribuiu-a reservadamente na região de Montes Claros,
convidando os seus companheiros a fundarem casas ou lojas da seita, para
«combater o clericalismo que haveria de propagar o romanismo pela
fundação do Bispado do Norte» (Nunziatura Apostólica in Brasile, 1911, fasc.
611, p. 52-53). Deste modo, deixou clara a urgência da fundação do bispado para
o bem da Igreja. Ainda nesta carta, Dom Joaquim fez saber ao núncio que um
cônego havia comunicado que tal criação estava longe de tornar-se realidade, e
quando isso viesse acontecer, os cônegos queriam estar longe de Montes Claros.
Em toda a correspondência mantida com o núncio, o bispo de Diamantina insiste
para que a nova diocese seja criada.

2 A Bula Postulat Sane (10 dezembro 1910)

No dia 10 de dezembro de 1910, o Papa Pio X com a Bula Postulat Sane criou a
diocese de Montes Claros que compreende toda a parte do Extremo Norte de Minas,
limitando-se ao norte com o arcebispado da Bahia, pelas divisas do Estado de Minas
Gerais com o da Bahia, isto é: Pelo rio Carinhanha desde de sua nascente até sua

187
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
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foz no São Francisco; pelo São Francisco acima até a barra do Rio Verde Grande;
pelo Rio Verde Grande até a barra do Rio Verde Pequeno; pelo Rio Verde Pequeno
até sua cabeceira na serra das Almas; daí, por quatro linhas retas: a 1a. ao Morro do
Condiuba15 ; a 2a. do Morro do Condiuba ao Vale Fundo; a 3a. do Vale Fundo à barra
do Mosquito, no Rio Pardo; a 4a., finalmente da barra do Mosquito à cachoeira do
Salto Grande no Jequitinhonha, ou com mais exatidão, ao Poço do Italiano, na parte
inferior da cachoeira. Ao sul com o bispado de Diamantina (do qual foi em grande
parte desmembrada): pelo Jequitinhonha, a partir do Salto Grande, até a confluência
do ribeirão de Macaúbas, pouco acima do arraial de Terra Branca; daí pelo Macaúbas,
por montes interpostos, e pelo Jequitinhonha até a sua barra no São Francisco. Ao
oeste com o bispado de Goiás: pelas divisas do Estado de Minas Gerais com o de
Goiás, isto é, pelas serras das Arrependidas e de Santa Maria e a sudoeste com o
bispado de Uberaba: Pelo São Francisco, a partir da barra do Jequitaí até a barra do
Urucuia; daí, pelo Urucuia acima até a barra do Rio Claro; por este acima até as
divisas do distrito do Formoso, que ficou pertencendo à diocese de Uberaba.

2.1 Das paróquias ricas às mais pobres

O quadro histórico das paróquias que compõem a Diocese de Montes Claros no


ato de sua criação, informa que todas elas foram criadas durante o período imperial,
ou seja, no século XIX16 . A maior parte delas ocorreu durante o episcopado de D.
João Antônio dos Santos, discípulo de D. Viçoso. A diocese de Montes Claros
herda os frutos provenientes do período de início da reforma católica no Brasil que
tinha como preocupação melhorar a qualidade de seus membros.

O primeiro bispo de Montes Claros, D. João Antônio Pimenta, teve logo o interesse
e conhecimento da formação de todas essas paróquias. No ano de 1915, D. João
Pimenta escreveu sobre a realidade territorial da diocese. O resultado de seu trabalho
foi oferecido ao escritor Urbino de Souza Vianna para ser publicado em uma obra
que ele estava elaborando, e publicou sob o título «Monographia do município de
Montes Claros». Ele o fez, porém, com a condição que o escritor, publicando-o no
seu livro, declarasse em nota tê-lo obtido da Secretaria Eclesiástica Diocesana como

15
Morro do Condiuba, a 20 Km mais ou menos da cidade do Condiuba, antigo Santo Antônio da Barra,
Estado da Bahia. Condiuba corresponde a Caranda-yba, a palmeira copernica cerífera (Cf. «Condiuba»,
in Anuário de Minas, ano II, Belo Horizonte 1907, 340).
16
Num estudo realizado sobre algumas paróquias do século XIX, Anna Amélia Vieira Nascimento ressalta
o relevante papel social das freguesias em geral: «Constituía-se a freguesia no centro de muitos
diferentes aspectos. Era, em primeiro lugar, o núcleo de atividades religiosas, naturais à sua própria
concepção, dirigidas pelos párocos, tanto dentro da Igreja como nas suas dependências, espalhando-se
essas funções religiosas pelas ruas através de procissões, dos viáticos, das extrema-unções, das visitas de
santos às casas particulares. Funções políticas eram também inerentes às freguesias, pois nos seus
consistórios reuniam-se as comissões a fim de compor ou rever as listas de qualificação temporal. As
próprias eleições primárias se realizavam na Igreja […]» (A. A. V. N ASCIMENTO, Dez Freguesias da
Cidade do Salvador: aspectos sociais e urbanos do século XIX, Salvador 1986, 29-30).

188
História e Memória: As origens da diocese de Montes Claros...
SILVA, Franscino Oliveira

subsídio para a parte de sua obra relativa ao Bispado. D. João lamentou que «o Sr.
Urbino, aproveitando-se do trabalho, esqueceu-se da nota promettida». Sendo assim,
o bispo mesmo transcreveu seu trabalho no livro do tombo que segundo ele, «está
publicado verbo ad verbum na «Monographia» de Urbino Vianna, de fls. 260 a 277,
com exceção das referências aos vigários e pequenas modificações necessárias
para que este perdesse as feições próprias e pudesse figurar na obra como parte de
um todo harmonico» (Livro de Tombo I, p. 4-5).

Nessa apresentação das paróquias a maior parte da informações encontra-se no


Arquivo Arquidiocesano de Montes Claros, graças à preocupação de D. João no
seu trabalho de organização da diocese. Para outras informações foi necessário ir
aos próprios arquivos paroquiais, quando existentes, e ao Anuário Católico. Como
é sabido, durante o período imperial, os sacerdotes recebiam seu sustento através
do governo imperial. Para muitos o sacerdócio tornava-se então uma profissão,
uma carreira de progressão remunerada. As paróquias com maiores recursos
atraíam maior interesse dos recém-ordenados. As paróquias aqui seguem uma
classificação do ponto de vista financeiro, uma vez que a diocese é criada no
período da Primeira República e a sustentação torna-se responsabilidade de cada
padre17 . As paróquias de classe A eram: Nossa Senhora e São José de Montes
Claros, Senhor do Bom Fim de Bocaiúva, Santa Ana de Vila Brasília, Nossa Senhora
das Dores de Januária, Sagrado Coração de Jesus de Vila Inconfidência, Santo
Antônio de Grão Mogol, Santo Antônio de Salinas, Santo Antônio de Paracatu. As
de classe B eram: Nossa Senhora do Amparo do Brejo Salgado, Nossa Senhora
da Conceição do Rio Pardo, Nossa Senhora da Graça do Tremedal, São Sebastião
de Lençóis do Rio Verde, Santo Antônio de Itacambira, São Gonçalo do Brejo das
Almas, Santo Antônio de Boa Vista, Nossa Senhora da Conceição de Morrinhos,
São José das Pedras dos Angicos. As de classe C: Nossa Senhora da Pena dos
Buritis, Nossa Senhora da Conceição do Rio Preto, Sant’ana dos Alegres, Santo
Antônio de Mato Verde, Santo Antônio de Itinga, Santo Antônio do Gorutuba, São
José do Gorutuba, São João Batista de Terra Branca, Nossa Senhora da Conceição
de Jequitaí, Santo Antônio do Riacho dos Machados, São Sebastião de Água
Vermelha, compreendendo a Vila de Fortaleza e o distrito de Pajeú, Santo Antônio
da Manga de São Romão, Sant’Ana do Capão Redondo.

2.2 O clero diocesano da nova Diocese de Montes Claros

Durante seu episcopado (1911-1943), na diocese de Montes Claros, D. João


Antônio Pimenta contou com aproximadamente 103 padres. Alguns padres
estrangeiros, na maioria portugueses, passaram alguns anos pela diocese, sem

17
Essa classificação foi feita pelo primeiro bispo de Montes Claros quando teve que exigir a contribuição
de cada paróquia num período de maiores dificuldades financeiras do bispado (Cf. M. M. GASPAR, O
Bispado de Montes Claros, 23-24).

189
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incardinação. Graças ao livro de provisões, ainda é possível ter conhecimento da


passagem de muitos desses sacerdotes pela diocese, cujos nomes caíram no
esquecimento popular. Os religiosos que estiveram na diocese nessa ocasião foram
somente os premonstratenses, e já no final do episcopado de D. João, os
franciscanos da Ordem dos Frades Menores. Quando D. João chegou a Montes
Claros o cônego Carlos Vincart era o pároco dessa cidade e o cônego Maurice
Gaspar era o seu coadjutor. Em Bocaiúva estavam os cônegos Francisco Moureau
e Clemente Laurens. O cônego Bento Maussen estava em Extrema. Esses eram
os cônegos que se encontravam na diocese de Montes Claros no início do
episcopado de seu primeiro bispo (GASPAR, 1930, p. 124-126).

O bispo Dom João Antônio Pimenta e os padres diocesanos que se encontravam


no território na inauguração da nova diocese receberam a sua formação dos Padres
da Missão, no Seminário de Diamantina. O regimento interno do Seminário era
bastante severo, proporcionando ao internato ordem, respeito e moralidade. Em
geral, no Seminário dominava um regime autoritário em termos de disciplina. Naquela
época, as penalidades impostas aos alunos vadios ou rebeldes variavam na seguinte
escala: copiar várias vezes a lição ou o Miserere; ficar de capim na aula
(completamente abandonado pelo lente); ficar de joelhos; cubículo simples (ficar
privado de conversar até segunda ordem); cubículo rigoroso (a mesma pena,
agravada pelo afastamento do delinqüente do convívio dos colegas); bolos de
palmatória e expulsão.

Para favorecer a segregação do mundo profano, os vocacionados entravam logo


cedo no Seminário, e assim eram introduzidos no mundo sagrado. Naquela época,
os alunos chegavam para o internato ainda meninos. Abandonando o lar paterno,
sacrificavam sua liberdade, deixavam os anseios naturais da idade, o apelo do que
há de amável e sedutor na vida; abandonavam estas e muitas outras coisas para,
no fim, na grande maioria dos casos, vir a ser um simples vigário de uma pequena
localidade, vivendo entre gente simples e ignorante, passando horas no
confessionário, madrugando durante todo o ano. Entre os alunos do seminário
poucos chegaram ao sacerdócio18 . Aqueles que trabalhavam no território da nova

18
Entre aqueles que não chegaram ao sacerdócio, muitos se tornaram notórios em várias atividades:
Medicina, Engenharia, Farmácia, Política, Comércio, etc. Entre eles um Governador do Estado de Minas
Gerais e Presidente da República (1956-1961): Juscelino Kubitschek de Oliveira (Cf. P. K. C. MOURÃO, O
Seminário de Diamantina de 1867 a 1930, 27-32). Muitos ex-alunos manifestaram através de escritos
sobre a experiência que fizeram no Seminário de Diamantina. No ano de 2003, como parte da comemoração
do sesquicentenário da criação da diocese de Diamantina, foi publicado um livro do Mons. Otacílio
Augusto de Sena Queiroz. Ele nasceu em 1918 e entrou para o Seminário em 1938. Neste livro ele relata
como era a vida no Seminário de Diamantina. Nos escritos dos ex-alunos, é sempre possível constatar um
reconhecimento pela boa formação dada pelos padres lazaristas: «Para nós, o Seminário era um mundo
completo, independente, auto-suficiente. O Mundo exterior nós o considerávamos como errado,
desorientado, objeto de irrisão, e, pior, sedutor. Comprazíamo-nos, talvez com excesso, em «nossa
formação». A fama do Seminário de Diamantina e do Caraça, parece, reforçava esta mentalidade. Ensino
era o nosso (Cf. O. A. S. QUEIRÓZ, Um padre, sua gente, sua terra, Belo Horizonte 2003, 294).

190
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diocese estavam espalhados em paróquias com uma extensão quase desumana.


Trabalhar com tão poucos padres e oferecer-lhes uma orientação para que
exercessem bem seu ministério foi um dos maiores desafios durante o episcopado
de D. João.

3 O Bispo que preferiu Montes Claros e sua especial Carta de


saudação a seus diocesanos

A Diocese de Montes Claros, criada em 10 de dezembro de 1910, inicialmente


ficou sob a administração de D. Joaquim Silvério de Souza. No ano seguinte houve
a nomeação do bispo da diocese. No dia 07 de março de 1911, com a Bula
Commissum humilitati nostrae, o Papa Pio X nomeou Dom João Antônio Pimenta
como primeiro bispo de Montes Claros.

O primeiro bispo nasceu na cidade de Capelinha a 12 de dezembro de 1859, quando


essa cidade era ainda o arraial de Capelinha de Nossa Senhora da Graça, e que
então fazia parte do município de Minas Novas. Filho de Domingos Pimenta e
Maria Cândida Soares Pimenta. Foi criado no arraial de chapada por sua avó
materna D. Maria Soares da Silva Pereira desde a idade de 11 meses. Ainda
criança ficou órfão de pai. Seus primeiros estudos foram em Minas Novas (1869-
1870) e mais tarde no Colégio Caraça (1872-1878). Ali, em abril de 1878, sobreveio-
lhe uma grave enfermidade que o obrigou a suspender seus estudos por mais de
um ano. Naquela época ele era um rapaz de constituição física delicada e enfermiça,
e somente com muita força de vontade conseguiu se dedicar aos estudos. Em
1879, matriculou-se no curso Teológico do Seminário de Diamantina e foi ordenado
sacerdote no dia 10 de junho de 1883.

Inicialmente ele foi vigário em Capelinha (1883-1896). No ano de 1892 ele mudou
para Água Boa, pertencente à Capelinha a fim de construir uma Igreja. Em 1897,
foi transferido para a paróquia de Piedade e em 1899 foi ocupar a importante
paróquia de Teófilo Ottoni. Em 1905, foi escolhido para coadjutor sucessor de
Dom Cláudio Gonçalves Ponce de Leão19 , bispo do Rio Grande do Sul, tendo sido
preconizado bispo titular da Pentacômia (na Ásia Menor) a 21 de fevereiro de
1906. O programa dos bispos em geral é um só, mas cada um procura determinar
seu modo de agir, mais em particular por meio de sua divisa episcopal

19
Nasceu em Salvador no ano de 1841. Filho de um rico e aristocrático desembargador, esteve matriculado
na Escola Politécnica em Paris antes de iniciar seu noviciado lazarista no Seminário de São Sulpício.
Foi bispo de Goiás nove anos (1881-1890) e vinte e dois anos de Porto Alegre (1890-1912), sendo seu
primeiro arcebispo, resignou ao cargo por idade avançada (71 anos) e estado de saúde (Cf. N. SOUZA,
«Uma Fisionomia do Episcopado Brasileiro», in PONTIFICIA COMMISSIO PRO AMERICA LATINA, Os últimos cem
anos da evangelização na América Latina, 639).

191
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

e do seu escudo de armas. A divisa escolhida por D. João foi Sub umbra alarum
tuarum20 . Dessa maneira queria marcar seu episcopado por um acolhimento ao
povo, marcado pelo amor, pela defesa e proteção como faz a galinha com seus
pintinhos contra possíveis inimigos (Mt 23, 37). Ele foi ordenado bispo em Barreiras
a 20 de maio de 1906, por D. Joaquim Silvério de Souza e no dia 8 de setembro do
mesmo ano fez a sua entrada em Porto Alegre. Ali ele permaneceu até a sua
partida para Montes Claros.

Nesse período, a região norte-mineira apresentava vários problemas. Em 1909


ocorreu uma seca que provocou um grande êxodo rural. Nesse território, mesmo
antes da seca de 1909, encontravam-se regiões e regiões inteiramente despovoadas.
Não havia estradas de ferro, era uma zona mal cuidada. Eram várias carências,
desde a instrução rudimentar suficientemente difusa, muitas cidades eram
monótonas, onde a instrução evoluía lentamente. Enfim o progresso parecia longe
daquela região. A iluminação elétrica só seria inaugurada em 20 de janeiro de
1917 na cidade de Montes Claros.

A transferência de D. João de Porto Alegre para Montes Claros foi sempre


lembrada nas manifestações de apreço que ele recebia como um ato de heroísmo
em prol do Norte de Minas. Ele que ocupava a função de bispo coadjutor de Porto
Alegre com direito à sucessão, aceitou uma diocese ainda nos seus inícios e com
tão poucos recursos. Em 1900, Porto Alegre, se comparada à cidade de Montes
Claros, já era uma cidade bem desenvolvida e contava com mais de 70 mil
habitantes21 , enquanto o município de Montes Claros contava com apenas 54 mil
habitantes. Mas o que estaria levando a Santa Sé a deslocar D. João Pimenta
para uma função de categoria inferior? A sua transferência possibilita levantar
vários questionamentos. Um deles é o fato de ser a diocese do Rio Grande do Sul,
cujos limites eram até então os mesmos do Estado, caracterizada pela presença
dos ítalos-germânicos. Dom João conhecia bem as línguas francesa, italiana e

20
Essas palavras, em latim, encontram-se literalmente no salmo 16, 8b (Cf. Bibliorum Sacrorum iuxta
vulgatam clementinam nova editio, Cittá del Vaticano 1951, 476). Mais tarde, no centenário do
nascimento de D. João Antônio Pimenta, em 1959, as palavras sub umbra alarum tuarum tornaram-
se a divisa do Brasão de Armas do município de Montes Claros, oficializado pela Lei n. 430, de 25 de
março de 1959.
21
Porto Alegre na época de Dom João se comparada com Montes Claros já era uma cidade muito
desenvolvida; Desde de 1866 já tinha o fornecimento de água encanada. Em 1874 a iluminação pública
a gás. Em 1880 iniciou-se o sistema de esgotos. Possuía Mercado Municipal, Teatro, etc. No início do
século XX, Porto Alegre já contava com vários estabelecimentos de ensino como a Faculdade de
Engenharia (1896), o Instituto Astronômico (1906-1908), a Faculdade de Direito (1908-1909), o
Instituto Eletro-Técnico (1908-1909), a Escola Técnica-Profissional (1907-1908) e outros. O tempo
de D. João era marcado por uma modernização que ia recebendo novos estímulos (Cf. A. W. DOBERSTEIN,
Estatuários, Catolicismo e Gauchismo, Porto Alegre 2002, 38-40).

192
História e Memória: As origens da diocese de Montes Claros...
SILVA, Franscino Oliveira

latina, mas desconhecia a língua alemã. Algumas cidades como Caxias, Santa
Cruz, São Leopoldo e Novo Hamburgo eram de colonização ítalo-germânica22 .

Um outro motivo que pode ter confirmado a vontade de D. João de ser transferido
de Porto Alegre foi porque D. Cláudio conseguiu da Santa Sé a divisão eclesiástica
da diocese de São Pedro do Rio Grande do Sul, com a sede de uma Arcebispado
em Porto Alegre. O Papa Pio X, pelo decreto de 15 de agosto de 1910, dividiu o
Rio Grande do Sul em quatro circunscrições, nomeando D. Cláudio José primeiro
Arcebispo da Arquidiocese de Porto Alegre e criando mais os bispados de Pelotas,
Uruguaiana e Santa Maria, as quais com a diocese de Florianópolis no Estado de
Santa Catarina criada em 19 de março de 1908, passaram a formar a nova Província
Eclesiástica de Porto Alegre. Sem muitas explicações, D. João preferiu fazer seu
pedido de transferência para Montes Claros, «sob alegação e fundamento de
dificuldade de aclimação no Rio Grande do Sul por causa de sua baixa temperatura
no inverno» (PIMENTA, 1928). Após a sua nomeação para Montes Claros em 7
de março de 1911, ele escreveu, no dia 25 de maio de 1911, a sua primeira Carta
Pastoral saudando os seus diocesanos. Nesta carta pastoral, ele narra a sua trajetória
em busca da realização da vontade de Deus. Sua permanência em Porto Alegre
lhe havia permitido uma experiência positiva nos inícios de seu episcopado. Quando
chega o tempo de assumir a nova missão, ele se manifesta muito pesaroso, porém,
é conhecido que, desde os primeiros passos para a criação da Diocese de Montes
Claros, ele já havia manifestado ao bispo de Diamantina o seu desejo de ser
nomeado para a nova diocese, como já foi dito anteriormente, desde que não
houvesse o perigo de vir a substituí-lo em Diamantina, caso fosse necessário.

No período da criação da diocese, a principal postura da Igreja do Brasil, afirmamos


que se trata de uma restauração católica. Desde meados do século XIX surgiu
com alguns bispos do Brasil um movimento de reforma católica nos moldes
tridentinos. Essa reforma foi fortalecida com a realização do Concílio Plenário
Latino-Americano que se colocou em continuidade com a política restauracionista
iniciada pelo Papa Pio IX, continuada pelo Papa Leão XIII, cujo esforço maior era
devolver à Igreja seu protagonismo central na vida social. A partir do Concílio
Vaticano I (1869-1870), emergiu uma imagem de Igreja acentuadamente
clericalizada, junto com o «culto da uniformidade». A frequência regular aos
sacramentos e a obediência às autoridades são particularmente valorizadas. O
catolicismo popular é visto como não condizente com os novos tempos e é
submetido a uma purificação. No início do século XX, para uma profunda
reorganização católica do Brasil, numerosas congregações religiosas chegaram

22
Existia uma acusação desde o início da imigração em 1824 repetida contra os alemães e descendentes,
que era a não-integração, tomada como antipatriotismo e anticidadania (Cf. A. W. D OBERSTEIN ,
Estatuários, Catolicismo e Gauchismo, 117).

193
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

às dioceses brasileiras. Esses religiosos estrangeiros colaboraram ativamente na


implantação do chamado modelo romanizador, trazendo suas devoções e santos
preferidos.

Considerações finais

Ao terminar esta pesquisa sobre as origens da Diocese de Montes Claros, torna-


se necessário apresentar os resultados deste trabalho que ajudam a esclarecer o
processo de criação e início dessa diocese que contou com a iniciativa de D.
Joaquim Silvério de Sousa, bispo de Diamantina, com a participação dos cônegos
premonstratenses da Abadia do Parc (Bélgica) residentes em Montes Claros e
com a atuação pastoral de D. João Antônio Pimenta, seu primeiro bispo diocesano
(1911-1943).

Esta pesquisa esclareceu que a diocese de Montes Claros foi criada numa situação
de precariedade. Era difícil levantar um patrimônio que permitisse o funcionamento
de uma nova diocese no extremo Norte de Minas. Coube ao bispo de Diamantina
uma atuação constante e insistente em prol da criação dessa diocese. Dom Joaquim
não escondia a sua simpatia pela cidade de Januária como sede para a nova
diocese, entretanto foi Montes Claros o lugar em que tal sonho se transformou em
realidade. A historiografia montes-clarense atribui aos cônegos premonstratenses
a maior parte do esforço para a criação da Diocese de Montes Claros, os
documentos, porém, desabonam essa afirmação historiográfica. De fato, os
documentos existentes no Arquivo Vaticano comprovam que foi necessária uma
advertência do bispo de Diamantina aos padres belgas para que eles se envolvessem
mais seriamente com o processo de criação dessa Diocese.

Para sediar a nova diocese, a cidade de Montes Claros foi escolhida porque,
desde o século XIX, já era apreciada pela sua posição geográfica que lhe dava o
caráter de porta do sertão no extremo Norte de Minas. Com o tempo, torna-se
comum apresentá-la como capital do Norte de Minas, pela sua posição geográfica,
pelo seu progresso, pela sua vida. Tudo isso devido à sua vitalidade na sociedade,
no comércio. Ao decidir-se pela cidade de Montes Claros como sede da diocese,
o bispo de Diamantina desejou transformá-la também numa capital religiosa, a fim
de que a vitalidade religiosa pudesse abranger toda a região norte-mineira. Além
de sua privilegiada posição geográfica, a cidade contava com a presença dos
religiosos belgas e a Igreja do Brasil esperava deles uma colaboração espiritual e
material significativa, para a organização interna da Igreja.

194
História e Memória: As origens da diocese de Montes Claros...
SILVA, Franscino Oliveira

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195
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

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Belo Horizonte: 1918.

196
MARC BLOCH E LUCIEN FEBVRE: REVISITANDO
A PRIMEIRA GERAÇÃO DOS ANNALES

José D’Assunção Barros*

Resumo: Este artigo visa examinar as especificidades dos modelos historiográficos


dos dois principais autores pertencentes à primeira fase do movimento dos
Annales:Marc Bloch e Lucien Febvre. Depois de uma discussão inicial sobre a
importância do movimento habitualmente designado “Escola dos Annales” para a
historiografia, discutem-se as especificidades das práticas e pensamentos
historiográficos de Marc Bloch e Lucien Febvre, com uma preocupação inicial de
situar as influências trazidas por estes autores.

Palavras-chaves: Annales; Historiografia; Bloch; Febvre.

Abstract: This article aims to examine specificities of the historiographic models


of the two principal historians belonged to the first faze of the Annales movement:
Marc Bloch end Lucien Febvre. After an initial discussion about the importance of
the movement habitually called “Annales School”, the specificities of historiographic
practices and thoughts of Marc Bloch and Lucien Febvre are discussed, with a
initial preoccupation in to site the influences caught by these authors.

Keywords: Annales; Historiography; Bloch; Febvre.

* Professor-Adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, nos cursos de Graduação e Pós-
Graduação em História. Professor-Colaborador do Programa de Pós-Graduação em História Compara-
da da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense.

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Introdução: os Annales – entre mitos e realidades

A Escola dos Annales, em países como o Brasil, alcançou quase a posição de um


mito, no sentido popular desta expressão. Os historiadores desta escola estende-
ram sobre a historiografia brasileira uma influência só comparável ao marxismo,
e, mais recentemente, à micro-história italiana. Os livros produzidos pelos annalistas
tornaram-se sucessos de vendagem entre os leitores brasileiros. No ambiente de
estudantes e profissionais de História, alguns dos maiores nomes do movimento
dos Annales deixaram muitos admiradores, e mesmo seguidores. Essa projeção
dos historiadores dos Annales, de um lado, ocorreu porque a sua contribuição
historiográfica foi inovadora e importante para as demandas de nosso tempo; de
outra parte, ela também se deveu à enorme capacidade que estes mesmos histo-
riadores revelaram para cultivar a sua própria imagem e a de seu movimento. Por
isso, falar em “mito”, para os Annales, também nos permite tocar em um segundo
sentido desta expressão. Um mito também é construído, e frequentemente opo-
mos a palavra mito à ideia de realidade, no sentido de que as coisas podem ter se
passado de uma outra maneira.

Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956) são os dois grandes funda-
dores da escola dos Annales; Fernando Braudel (1902-1985), o grande arquiteto
que consolida o movimento e que o estrutura como uma instituição definitiva, na
geração seguinte. Inúmeros outros personagens, aos quais voltaremos oportuna-
mente, fazem parte desta história que atravessa todo o século passado, uma vez
que a herança dos Annales foi posteriormente reivindicada por historiadores fran-
ceses que deram continuidade ao projeto de publicação da célebre Revista dos
Annales, que foi desde 1929 o grande meio e instrumento de divulgação do grupo,
existindo até os dias de hoje. Nomes como o de Pierre Chaunu, Georges Duby,
Jacques Le Goff, Jacques Revel, Le Roy Ladurie, Marc Ferro, Philippe Ariès e
Michel Vovelle indicam apenas algumas das várias figuras historiográficas que
são associadas à herança de Bloch, Febvre, Braudel e Ernst Labrousse, embora
também abundem as análises que se empenham em mostrar que este novo grupo
de historiadores franceses – que assumiu desde os anos 1970 o epíteto de Nouvelle
Histoire – mais estaria em relação de ruptura com os projetos iniciais dos primei-
ros Annales, do que em continuidade com os mesmos1 .

1
A mais conhecida destas análises é a apresentada em História em Migalhas, de François Dosse (1987).
O modelo contrário, da continuidade entre os Annales e a Nouvelle Histoire, está representado pela
obra Escola dos Annales (1990) de Peter Burke.

198
Marc Bloch e Lucien Febvre: revisitando...
BARROS, José D’Assunção

Com relação a Bloch e a Febvre, suas relações em vida foram permeadas por
ambigüidades: eles passaram à história da historiografia com a imagem de dois
espíritos unidos por um inabalável objetivo comum, mas as relações pessoais entre
os dois nem sempre foram tão fraternas como as que aparecem em algumas
sínteses sobre o movimento, particularmente as que assumem o ponto de vista do
‘mito fundador’ construído por alguns dos próprios historiadores dos Annales e da
Nouvelle Histoire. De todo modo, Marc Bloch e Lucien Febvre foram compa-
nheiros no grande projeto que encaminharam juntos: a consolidação de um novo
grupo historiográfico, e de uma nova contribuição para a historiografia europeia.
Após a morte prematura de Marc Bloch nas mãos de nazistas, em 1944, Lucien
Febvre publicou um generoso memorial sobre o companheiro de projetos
historiográficos (FEBVRE, 1953, p.391-407).

Independente das oscilações nas relações pessoais de Bloch e Febvre, ou dos


lances biográficos pertinentes à trajetória individual de cada um destes grandes
historiadores, a parceria entre os dois fundadores do movimento dos Annales tor-
nou-se efetivamente uma incontornável imagem de força na história da historiografia
contemporânea. Essa rara sintonia produziu-se precisamente porque os dois his-
toriadores encontraram um “programa” em comum, ainda que as perspectivas
historiográficas e teóricas de Marc Bloch e Lucien Febvre fossem algo diferenci-
adas – Bloch iniciando exemplarmente uma tendência a se concentrar quase que
exclusivamente na típica análise histórica dos grupos sociais e estruturas coleti-
vas, que logo seria a tendência dominante nos Annales, e Febvre incluindo, em seu
modo historiográfico de ver as coisas, uma inovadora atenção ao papel social dos
indivíduos, mas não mais à maneira da antiga historiografia dos “grandes homens”,
e sim antecipando uma perspectiva sobre o indivíduo que retornaria nos anos
19802 . Destarte, apesar das diferenças pessoais e epistemológicas, e apoiados
em um programa que conseguiram conceber e construir em conjunto – e que mais
tarde continuou a ser elaborado pelos demais historiadores que se agregaram à
escola – Bloch e Febvre conseguiram dar inicio a um movimento que terminou por
se tornar um dos mais instigantes fenômenos da historiografia moderna.

Outro ponto capital no conjunto de estratégias e de gestos que foram bem sucedi-
dos em consolidar os Annales como movimento historiográfico renovador – além
do “programa” que definiu um certo modelo de historiografia – foi a constituição
de um meio eficaz para difusão das idéias do grupo. Um meio de divulgação é

2
Em uma resenha sobre o recém publicado livro A Sociedade Feudal, de Marc Bloch (1939-40), Febvre
insere, ao lado de elogios mais superficiais à obra, uma crítica bastante reveladora sobre a “ausência do
indivíduo” (do ser humano específico) na obra de Bloch, dando a entender que o seu parceiro no
programa historiográfico dos Annales recaíra em um “sociologismo abstrato”. Sobre isto, ver
DUMOULIN, 2000, p.16.

199
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

frequentemente uma demanda das escolas de pensamento – sejam históricas,


filosóficas, sociológicas ou outras – no mundo contemporâneo. As antigas escolas
filosóficas gregas, por exemplo, podiam se dar ao luxo de uma difusão de idéias
baseada na oralidade. No mundo moderno, um mundo complexo, letrado e super-
povoado – mundo este que também é o dos saberes profissionalizados, no qual a
própria cultura tornou-se um dos mais atraentes produtos de consumo – possuir
um meio de divulgação é fundamental para as escolas voluntariamente formadas
por grupos de intelectuais. Uma revista, com freqüência, é um poderoso meio de
divulgação para uma escola. Os Annales são um exemplo claro disto. Em 1929 é
fundada a Revista dos Annales, que mudou de nome algumas vezes, mas quase
sempre conservando a palavra “annales” em sua designação. A importância que a
ela e à sua continuidade era atribuída por Lucien Febvre pode ser surpreendida
logo no princípio de um texto-manifesto que ele escreve em 1946, dezessete anos
depois da publicação do primeiro número revista:

Desde 1929, a publicação dos Annales jamais foi interrompida. / Nem um ano
sequer, quaisquer que fossem as dificuldades que se abatiam sobre a França e
o mundo, os Annales renunciaram a sua dupla tarefa científica e educacional.
/ Os Annales continuam. Num clima novo, com fórmulas novas. E com um
novo título. [...]. [FEBVRE, Contra o Vento: Manifesto dos Novos Annales,
1946]

A história dos Annales praticamente se superpõe à história da produção e recep-


ção da Revista dos Annales. Depois de uma fase inicial que conheceu muitas
dificuldades e oscilações, os Annales consolidariam sua expansão e conseguiriam
fazer triunfar o seu projeto no período do Pós-Guerra, já sem a presença da Marc
Bloch, que apenas conheceu a sua fase mais árdua de luta. A Revista dos Annales
finalmente conquista um número mais significativo de leitores e começa desde
então a impactar o meio acadêmico, ao mesmo tempo em que o grupo de histori-
adores e cientistas sociais a ela vinculados encontra o seu lugar – um lugar físico,
institucional – com a fundação de uma sexta seção dedicada à história na École
Pratique de Hautes Etudes. Este momento é decerto “refundador”. Quase tão
importante como ter uma revista, foi a conquista, no ano de 1946, deste lugar
concreto, que multiplica os meios de difusão para o grupo dos Annales. Assim se
expressa Jacques Le Goff (n.1924), um dos herdeiros do movimento, sobre aque-
le acontecimento refundador que recolocaria os Annales em uma nova fase:

Tratava-se de fundar, ao lado da velha Sorbonne e mais ou menos contra seu


ensino magisterial, um ensino fundamentado na pesquisa, na prática erudita
ou experimental, no sistema germânico dos seminários [...] Essa seção, cujo
programa – interdisciplinar, aberto ao mundo inteiro, baseado na pesquisa e
na investigação coletiva – é o dos Annales, e no qual a história desempenha
um papel inspirador e propedêutico. Acontecimento capital para a história
nova, que, a partir de então, é transmitida pelo ensino, pela pesquisa e pela

200
Marc Bloch e Lucien Febvre: revisitando...
BARROS, José D’Assunção

discussão – ao lado de disciplinas irmãs – e acaba dando origem a uma insti-


tuição (LE GOFF, 2011. p.143).

Uma segunda instituição, que complementará a École des Hautes Études foi a
Maison des Sciences de l’homme (1962). Com estas duas instituições, controla-
das pelos historiadores dos Annales, as bases materiais e institucionais do grupo
estavam lançadas. Havia uma Revista e instituições concretas que poderiam as-
segurar os objetivos tanto de difusão de idéias como de formação de novos qua-
dros de historiadores; havia ainda um sistema annalista de ensino que faria dos
Annales uma escola, no sentido mais estrito do termo, e cargos institucionais que
agora passavam a se afirmar como oportunidades de poder. O movimento dos
Annales – ou a “Escola dos Annales”, conforme a designação mais utilizada –
tornar-se-ia, com o tempo, um dos símbolos maiores de toda uma nova historiografia,
a tal ponto que se costuma empregar também a designação “Nova História” ex-
tensivamente às duas primeiras gerações dos Annales, embora a expressão
Nouvelle Histoire tenha se tornado a marca registrada mais específica da gera-
ção de historiadores franceses que, a partir dos anos 1970, assume a direção da
mesma revista que havia sido fundada em 1929 por Febvre e Bloch.

Neste artigo, examinaremos as contribuições centrais da Escola dos Annales, o


contexto em que elas se estabeleceram, as linhas de força contra as quais se esta
escola se confrontou ou a partir de cujas alianças se fortaleceu. Examinaremos
também o “programa” da Escola dos Annales: as idéias-força e os itens
programáticos que trouxeram uma identidade ao grupo, ou ajudaram a forjá-la.
Vamos nos aproximar também das contribuições mais específicas de alguns dos
principais historiadores da escola, sobretudo as contribuições de Lucien Febvre,
Marc Bloch e Fernando Braudel. Começaremos por resumir, ou antes indicar, os
grandes debates e questões que têm motivado diversos autores a escrever mais e
mais textos sobre esta escola que se tornou um dos preferidos temas da história
da historiografia em nosso país.

Lucien Febvre e Marc Bloch

Lucien Febvre e Marc Bloch, além de terem sido os grandes fundadores do movi-
mento dos Annales, foram também os nomes mais importantes da primeira fase
deste movimento, devendo ser também lembrada como outra contribuição impor-
tante a história quantitativa, que já começa a ser introduzida na década de 1930
por Ernst Labrousse. Neste artigo, pretendemos rever a especificidade da produ-
ção dos dois fundadores, procurando identificar as influências que participam da
formação de uma identidade teórica específica em cada um destes historiadores
franceses. Começaremos por lembrar que a atmosfera política que impulsiona
estes historiadores é a da passagem da Belle Époque ao período das duas Guer-

201
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

ras Mundiais, e o contexto econômico no qual eles estarão mergulhados é aquele


que logo culminará com a crise de 1929. O ambiente intelectual é simultaneamen-
te o de entusiasmo pelas recentes novidades científicas, como a da renovação
trazida pela teoria da relatividade e pela física quântica, e o desespero de perceber
que inventos fascinantes, como o avião, poderiam ser empregados também para
promover a destruição em massa. Lucien Febvre, que também viveria o primeiro
ato de segunda fase do movimento dos Annales, conviveria ainda com a explosão
da primeira bomba atômica. Em contrapartida, seus projetos de renovar a
historiografia através dos Annales seriam beneficiados, após o fim da Segunda
Guerra, por uma “fase de ouro” e de prosperidade da economia. Entre as ruínas
dos grandes conflitos mundiais e o reavivamento da economia, os Annales encon-
trariam seu tempo de crescimento.

Esta história, todavia, tem também as suas origens. Os dois líderes-fundadores,


Marc Bloch e Lucien Febvre, encontram-se pela primeira vez na Universidade de
Estrasburgo, instituição estabelecida em uma região fronteiriça que vivia um con-
texto muito específico: a desanexação da Alemanha e reintegração à França após
a Primeira Guerra Mundial. Devido a estas peculiaridades políticas, a Universida-
de de Estrasburgo respirava um clima intelectual renovado e particularmente aberto
a mudanças, fora o vivo diálogo interdisciplinar que se tornara possível nesta ins-
tituição em virtude da concentração de diversos historiadores, sociólogos, filóso-
fos e geógrafos no mesmo ambiente acadêmico. Passaram pela Universidade de
Estrasburgo, no mesmo período em que Bloch e Febvre lá estiveram, nomes como
o do sociólogo Maurice Halbwachs (1877-1945), autor de um importante livro
sobre a “memória coletiva” (1925) que praticamente funda um novo campo de
saber (a Memória Social). Também iremos encontrar, na mesma Universidade de
Estrasburgo, o filósofo e teólogo Henri Bremond (1865-1933), estudioso da histó-
ria das religiosidades que seria um dos pioneiros nos estudos de psicologia históri-
ca, além de outros como os historiadores Georges Lefebvre (1874-1959) e André
Piganiol (1883-1968). Não nos deteremos tanto na narrativa relacionada a este
efervescente ambiente que já faz parte da história da Escola dos Annales, ou da
sua pré-história, se preferirmos, e passaremos a examinar mais diretamente a
contribuição historiográfica dos fundadores do movimento.

Lucien Febvre (1878-1956) ocupa um lugar bastante singular na Escola dos Annales.
Sempre fora um autor aberto a influências bem diversas, que então conseguia
reverter de forma original à sua própria singularidade e estilo pessoal. Em seu
acorde historiográfico é possível entreouvir algumas destas influências, apreender
uma complexa e sofisticada rede inter-autoral que conecta Febvre tanto a autores
com os quais conviveu pessoalmente, como a pensadores e pesquisadores de
outras épocas que foram importantes na formação do seu pensamento e no seu
modo de ver a História e as demais ciências humanas. A nota de

202
Marc Bloch e Lucien Febvre: revisitando...
BARROS, José D’Assunção

‘interdisciplinaridade’ que preside o seu acorde historiográfico, assim como o de


Bloch, quase obriga à apreensão desta rede inter-autoral em maior detalhe, pois
os diálogos interdisciplinares não chegaram desencarnados a Febvre ou a Bloch.
As ressonâncias geográficas, antropológicas, sociológicas, psicológicas e lingüísti-
cas têm cada qual um rosto na formação da identidade teórica de Bloch ou Febvre.
A interdisciplinaridade com a geografia mostra o rosto de Vidal de La Blache
(neste geógrafo se encontram tanto Febvre como Bloch). O diálogo com a
Linguística estabelece-se, em Febvre, através da obra de Antoine Meillet (1866-
1936). À Antropologia, Febvre chega através das obras de Lévy-Bruhl (1857-
1939). Talvez o impiedoso estilo crítico e polemista nos revele o secreto harmôni-
co que o liga ao filósofo Friedrich Nietzsche, nunca declarado mas mencionado
aqui ou ali. Afora encontros interdisciplinares como estes, destacam-se também
as influências que vêm dos próprios historiadores, de sua época (Henri Pirenne é
a grande referência) e de outras épocas (Michelet e Burckhardt).

Quando recuamos ao nível mais profundo da arqueologia acórdica relativa aos


fundadores dos Annales, podemos perceber que, através de caminhos completa-
mente diversos, Febvre e Bloch vão se encontrar em dois autores fundamentais
do século XIX: Marx e Michelet. Talvez por isso mesmo tenha sido possível o
pleno diálogo entre estas duas personalidades tão distintas que foram a de Febvre
e Bloch. De Marx, pioneiro de uma leitura da história que afrontava o ritmo nervo-
so e vazio de boa parte de historiografia política tradicional que predominava em
sua época, Febvre e Bloch apreenderam a possibilidade de enxergar a história
como um grande devir de estruturas de longo termo, a partir de uma perspectiva
que logo seria refinada por Braudel no conceito de “longa duração”. De Michelet,
ambos apreenderam a possibilidade de investir na multiplicação temática, na ultra-
passagem do estreito universo de temas que era oferecido pela história política
tradicional, no desprezo pela parcelarização positivista do saber que logo obrigaria
ao contramovimento da interdisciplinaridade. Vejamos cada uma destas duas res-
sonâncias nos seus próprios termos.

O que seria a leitura da história como sucessão de ‘modos de produção’ senão a


possibilidade de enxergar o movimento histórico como uma série de encadeamen-
tos de estruturas, umas deslizando para outras, algumas bruscamente interrom-
pendo a estrutura anterior? E o que seria a história da ‘luta de classes’, história na
qual se faziam personagens não os indivíduos, mas grupos sociais e realidades
coletivas, senão uma franca ruptura em relação à historiografia fundada na “histó-
ria dos grandes homens”? Quando contrastamos, contra a historiografia tradicio-
nal do século XIX, a leitura materialista histórica de Marx e Engels, e simultanea-
mente nos lembramos das críticas que os fundadores dos Annales dirigiam contra
a história factual – a história que encontrava um sentido histórico na sucessão de
fatos, e não em unidades maiores de significado – subitamente os fundadores do

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Materialismo Histórico parecem assemelhar-se mais com os fundadores dos


Annales do que com a maioria dos historiadores de sua própria época. Tanto
Marc Bloch como Lucien Febvre parecem ter reconhecido esta profundidade
última de seus acordes. Bloch (2011). irá explicitar o reconhecimento de Marx
como um dos precursores dos Annales em textos como L’Étrange Défaite (1946).
Febvre registra o elogio a Marx em artigos como “Técnicas, ciências e marxis-
mo” (FEBVRE, 1962), e frisa bem a distinção entre Marx e os autores marxistas
que o seguiram, muitas vezes des-complexando ou deformando o pensamento
original de Marx, radicalizando um determinismo que termina por se tornar unilinear
e unilateral. Marx, ou o pensamento marxiano (mas não o marxismo) constituem
uma ressonância assumida tanto por Bloch como por Febvre, e depois por Braudel.

Michelet é o outro grande nome através do qual Febvre e Bloch se encontram. A


multiplicidade de temáticas que Jules Michelet propõe-se a investigar e a sua
abertura para as diversas instâncias da vida social e do mundo histórico contras-
tam surpreendentemente com a orientação para a história política que vemos em
boa parte dos historiadores de sua época. Mesmo com relação aos poucos auto-
res do século XIX que escolheram a cultura, ainda minoritariamente (como
Burckhardt), também temos um contraste, uma vez que Michelet não opõe ao
“político” uma outra instância, mas sim a totalidade das instâncias da vida social (o
próprio político também não foi negligenciado por Michelet, de modo que no caso
dele não se tratava de algo como uma tomada de posição no embate entre histo-
riadores culturais e historiadores políticos, como aquele que acontece na Alema-
nha das últimas décadas do século XIX). É esta atenção de Michelet ao tudo e ao
todo, e também àquilo que não era percebido como tema importante pela
historiografia tradicional (a mulher, a feiticeira), e mesmo a centralidade histórica
que atribui ao “povo”, como que antecipando a ainda distante “história vista de
baixo”, o que fez com que Michelet fosse lembrado e reconhecido pelas três
gerações dos Annales como um precursor do seu movimento. Marc Bloch e Lucien
Febvre, naturalmente, foram os primeiros a lhe prestar homenagem. Michelet os
une (BLOCH, 2011).

Durante toda a sua vida, Febvre reconheceu sua dívida historiográfica para com
Michelet, e com relação a Marx, explicitou o reconhecimento de sua importância
algumas vezes. Se avançarmos um pouco na história da historiografia, para a
geração anterior à de Febvre, encontraremos um outro autor no qual Marx e
Michelet também estavam presentes. Trata-se do historiador socialista Jean Jaurès
(1859-1914). Conforme salientou Peter Burke em seu breve estudo sobre os
Annales (1991, p.25), Jaurès dizia-se, a um só tempo, “materialista como Marx e
místico como Michelet” (JAURÈS, 1901, p.65). É quase uma sensação de recu-
perar um elo perdido em uma árvore genealógica, ou de descobrir a nota musical
na qual se combinam duas outras, quando verificamos que Febvre foi leitor ávido

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Marc Bloch e Lucien Febvre: revisitando...
BARROS, José D’Assunção

da História Socialista da Revolução Francesa, de Jaurès. Terão as primeiras


impressões de Marx e Michelet chegado a Febvre através de uma leitura de
Jaurès? Difícil saber. Mas, de um modo ou de outro, Marx e Michelet estão lá, em
Jaurès. São duas notas que passam por Jaurès – por esta 3ª nota que será, ela
mesma, elemento fundamental do acorde-Febvre.

O pioneirismo no desbravamento de novos eixos temáticos, herança de seu


antecessor Jules Michelet – já de per si um desbravador nos limites de sua época
– é de resto uma nota bastante importante no acorde historiográfico de Lucien
Febvre, que chega a antecipar algumas modalidades históricas que só se configu-
rariam como campos bem definidos algumas décadas depois. Massicotte, que
estudou a obra de Febvre em profundidade no livro L’Histoire-Problème: La
mèthode de Lucien Febvre (1981), deixa entrever como os três grandes estudos
biográficos do autor – o Philippe II, o Lutero, e o Rabelais – sinalizam para um
certo caminho em direção à perspectiva das mentalidades, uma modalidade
historiográfica da qual falaremos ao fim deste capítulo. Em Philippe II (1911),
mas também em Lutero, parte-se da singularidade individual para compreender,
ato contínuo, a coletividade, as grandes bases econômicas, sociais e mentais. Mas
em Rabelais a perspectiva já se encontra invertida, uma vez que se busca dar a
perceber como a consciência coletiva, através da utensilhagem mental de sua
época, incide sobre a obra individual. (MASSICOTTE, 1981, p.82). O indivíduo,
por mais singular e criativo que seja em comparação a outros homens de sua
época, dissolve-se no coletivo, e há limites que a sua singularidade não pode trans-
por: não é possível ser descrente, no mesmo sentido que se dá a esta expressão
nos dias de hoje, nos tempos de Rabelais.

O novo tratamento biográfico proposto por Febvre – não mais visando realizar a
história de uma vida ilustre por si mesma, mas sim utilizando a história de vida
como caminho para examinar um problema histórico bem definido – constitui inte-
ressante antecipação da tendência de tratamento biográfico que iria se afirmar
muito depois, nos anos 1980. Até a época dos primeiros Annales, a biografia fora
um gênero muito apreciado, sobretudo pelos historiadores do século XIX, notan-
do-se que passaria a ser bem menos percorrido pelos novos historiadores das seis
primeiras décadas do século XX, inclusive por influência de correntes comprome-
tidas com a renovação historiográfica, como a dos Annales. Vimos atrás que a
biografia tradicional coadunava bastante com a História Política tradicional (pois
os biografados não raramente eram figuras políticas importantes, como reis ou
generais), e que a história factual rondava em torno do mais habitual modelo de
tratamento biográfico – uma história linear na qual todos os fatos eram escolhidos
e reordenados para contar uma boa e coerente história, muitas vezes laudatória,
na qual o que interessava era conhecer a vida do biografado por ela mesma. A
decisão de percorrer esse território no qual tanto se compraziam os antigos histo-

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
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riadores políticos e factuais – a Biografia – poderia parecer estranha em um


historiador como Febvre. Todavia, a leitura de qualquer uma das três obras de
Febvre que tomaram como eixo de investigação a vida de indivíduos – Lutero,
Philippe II ou Rabelais – revela que estes empreendimentos eram orientados por
uma concepção totalmente distinta. Inclusive, Febvre sempre insistiu em justificar,
com plena razão, que estas obras não constituíam propriamente biografias, mas
sim caminhos para elaborar um problema histórico. A relação entre o indivíduo e a
sociedade, as pressões e contrapressões que uma instância exerce sobre a outra,
o confronto entre as “iniciativas pessoais” e as “necessidades sociais” – eis aqui
questões que atraíam a curiosidade historiográfica de Febvre, e que ele costuma-
va expor nos prefácios dos livros que tomavam a vida humana como fio condutor
para uma questão histórica. O prefácio de Lutero indica que o objetivo do livro é
investigar a relação entre os indivíduos e os grupos sociais, entre as iniciativas
individuais e as sociedades, perceber como a burguesia recebe e reelabora as
idéias de Lutero, e como estas surgem em um ambiente social que as demanda.

Outro aspecto importante trazido pela historiografia de Febvre, já desde os primei-


ros tempos, é a valorização do quadro geográfico – um traço de escrita da história
que, aperfeiçoado por Fernando Braudel na geração seguinte, seria transmitido
nos anos 1960, quase como uma regra de exposição a ser seguida pelas monografias
regionais ou nacionais, a toda uma geração de historiadores que se habituaria a
iniciar seus estudos historiográficos com a descrição geográfica. Em Febvre, já
desde a sua tese de doutorado sobre Philippe II et Le Franche-Comté (1911)
isto já ocorre, notando-se ainda uma predileção que também seria a de Braudel: o
probabilismo geográfico de Vidal de La Blache (1845-1918) em detrimento do
determinismo geográfico de Ratzel (1844-1904). La Blache, desta maneira, cons-
tituirá uma nota de influência particularmente importante no acorde-Febvre.

Talvez a mais impactante contribuição de Lucien Febvre seja mesmo o ensaio O


Problema da Descrença no século XVI: a religião de Rabelais (1942), e pode-
mos considerá-lo como um verdadeiro modelo para a História-Problema a partir
de cuja inspiração os primeiros annalistas buscaram se confrontar contra os mo-
delos historiográficos factuais. Esta obra, além de abrir futuros caminhos para
uma História das Mentalidades que não tardaria a despontar nos anos 60, será um
ponto de apoio para que Febvre discuta uma questão historiográfica que o preocu-
pava particularmente: o Anacronismo. O interesse de escrever este estudo sobre
Rabelais e a Descrença no século XVI surge em Febvre a partir de uma crítica
historiográfica bem definida. Abel Lefranc (1863-1952) havia sugerido em uma
edição de Pantagruel – uma das mais famosas obras de François Rabelais (1494-
1553) – que este intelectual renascentista era um ateu que buscava, através de
suas mordazes sátiras e paródias, abalar o cristianismo. Febvre irá se propor a
demonstrar, sistematicamente, que este era um erro de “anacronismo” – isto é, de

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Marc Bloch e Lucien Febvre: revisitando...
BARROS, José D’Assunção

projeção injustificada de categorias do presente no passado – uma vez que o


ateísmo na verdade não poderia ser postulado para os homens do século XVI, já
que estes sequer possuíam a utensilhagem mental que os possibilitaria serem ateus.

Daí que o ponto de partida em Rabelais é a análise filológica – uma rigorosa


análise não apenas da expressão “ateu”, que aparece em textos da época e que,
de acordo com a demonstração de Febvre, não teria o mesmo significado de hoje
– como também uma análise da ausência de inúmeras outras palavras ou concei-
tos que seriam fundamentais para que se possa falar no ateísmo como um modo
de pensar, tal como ocorre hoje. Empreendida esta análise, Febvre intentou de-
monstrar que as piadas blasfemas, ou aparentemente blasfemas, que apareciam
largamente nos textos de Rabelais, não eram de modo algum recursos em apoio
de um racionalismo ateu, mas sim heranças de uma antiga tradição parodística
medieval. A “impossibilidade do ateísmo no século XVI” era para Lucien Febvre
o resultado de um “instrumental mental” específico (hoje se diria, de uma determi-
nada mentalidade que fixava aos homens os limites do que eles poderiam pensar).
Desta maneira, o seu empenho foi examinar em detalhe o que faltaria à
utensilhagem mental da época para que pudesse surgir efetivamente um ateísmo
filosófico e racionalista, sendo o seu ponto de partida identificar todo um vocabu-
lário ausente que conformaria um claro índice de que o problema do ateísmo não
estava de modo algum colocado para os intelectuais renascentistas. Mais do que
isto, certos limites foram percebidos por Febvre nos homens renascentistas, como
a sua imprecisão no trato com o tempo.

Hoje, passados mais de setenta anos da publicação do Rabelais de Febvre (1942),


a obra é mais valorizada pelas perguntas que colocou, pelas demandas
interdisciplinares que apontou, e pelos desafios que enfrentou no contexto de re-
novação historiográfica de sua própria época. Uma crítica eficiente do livro de
Febvre, acompanhada de uma rigorosa investigação histórica sobre o mesmo tema,
pode ser encontrada na obra de Jean Wirth intitulada Libertinos e Epicuristas:
aspectos da irreligiosidade no século XVI (1977, p.601-627). Wirth chega à
conclusão que havia de fato intelectuais irreligiosos no século XVI, qualificáveis
como ateus, e também aponta um certo exagero de Febvre no reducionismo de
Rabelais aos limites de sua época, desconsiderando seus potenciais de criatividade
e de ultrapassagem de forças de inércia. Posto isto, as novas perguntas propostas
por Febvre, e as novas demandas interdisciplinares por ele reivindicadas, enrique-
ceram consideravelmente os caminhos historiográficos de sua geração e das que
lhe seguiram.

A contribuição de Marc Bloch é talvez ainda mais decisiva para as subseqüentes


gerações dos Annales. Além de traços em comum com os de Febvre, dos quais se
destaca o interesse interdisciplinar, e da já mencionada singularidade que expõe a

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
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influência conjunta de Marx e Michelet, ou mesmo de outras influências compar-


tilhadas como a de Meillet e Lévy-Bruhl, uma nota de influência importante no
acorde historiográfico de Marc Bloch é a que o sintoniza com a sociologia de
Durkheim, um sociólogo positivista que, com vistas aos próprios interesses de seu
campo disciplinar, já vinha produzindo uma leitura da historiografia tradicional de
sua época como um campo de saber limitado, superficial e estreito, e aprisionado
pelo padrão da história factual (a diferença em relação a Bloch é que Durkheim
sustentava que o destino da historiografia deveria ser este mesmo, pois a
problematização deveria ficar a cargo dos sociólogos, para os quais a História
poderia funcionar como uma espécie de ciência auxiliar, mera coletora de dados
para serem trabalhados depois pela sociologia histórica). Alguns conceitos desen-
volvidos por Durkheim, de fato, tem um papel bastante importante em algumas
obras de Bloch, como os de “representação coletiva” e “coesão social”. Outra
nota de influência importante é a leitura específica da “memória coletiva” empre-
endida por Maurice Halbwachs (1925), consolidada no livro de mesmo nome, que
logo produziria ressonâncias importantes no pensamento de Marc Bloch e em
pelo menos uma obra mais específica: a Sociedade Feudal (1939). Lembrare-
mos ainda as ressonâncias de Henri Bergson nas considerações de Marc Bloch
sobre o tempo, reconhecidas pelo próprio historiador na Apologia da História
(BLOCH, 2001, p.153). Historiograficamente, não há dúvidas de que a influência
mais altissonante no acorde-Bloch é a de Pirenne, historiador belga a quem Bloch
rende homenagens e que menciona algumas vezes em Apologia da História
(2001, p.65).

O primeiro estudo histórico de Bloch publicado foi de caráter regional – um estudo


sobre a Ile-de-France (1913), no qual já questionava o conceito fechado de re-
gião em áreas administrativas pré-estabelecidas, argumentando que o que deveria
definir o recorte da região em estudo era o problema examinado. Mas a grande
obra viria com Os Reis Taumaturgos (1924), um ensaio que abre muitos cami-
nhos para as gerações posteriores. De um lado, foi uma experiência efetiva no
campo da História Comparada, uma vez que Marc Bloch se propôs a examinar
duas dinastias europeias – a Capetíngia e a Plantageneta – de modo a perceber
como na França e na Inglaterra desenvolvera-se uma singular crença no poder
taumatúrgico dos reis, particularmente no que se refere à cura das escrófulas.
Esse aspecto da obra – o comparativismo histórico – trouxe a Bloch a possibilida-
de de tematizar mais tarde, em um artigo de 1928 para a Revue de Sinthèse
Historique, e outro datado de 1930, sobre um novo campo historiográfico que
posteriormente se desenvolveria: a História Comparada.

Por outro lado, Os Reis Taumaturgos (1924) constituiu uma experiência pioneira
que, de alguma maneira, pode ser relacionada a um novo campo que apenas se
desenvolveria a partir dos anos 1960: a História das Mentalidades (tanto Bloch

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Marc Bloch e Lucien Febvre: revisitando...
BARROS, José D’Assunção

como Febvre trataram seus investimentos neste campo como experiências na


área de psicologia coletiva, ou como temas relacionados aos “modos de sentir e de
pensar” – uma designação que aparece mais claramente na Sociedade Feudal
(1939), de Marc Bloch. Vale lembrar ainda que Bloch também concebia seus Reis
Taumaturgos (1924) como uma contribuição para a História Política, mas de todo
modo uma “nova” História Política, atenta não à descrição de eventos, mas sim
aos modos como se estabelecia o poder a partir de práticas e representações
coletivas. O problema examinado, por fim, era tratado em uma amplitude e de
acordo com um enfoque que já começava a desenvolver a perspectiva da longa
duração.

É um recorte extenso (séculos XIII-XVII), associado à perspectiva de análise de


permanências relacionadas à “longa duração”, o que teremos em Les Caractàres
Origineaux de l’histoire rurale française (1931), obra na qual também reapa-
rece o recurso comparativo, esta nota recorrente no acorde historiográfico de
Bloch. O elemento mais notável da obra é o desenvolvimento daquilo a que, no
livro póstumo Apologia da História (1949), Marc Bloch chamaria de “método
regressivo” – um método que se empenhava em ler a história ao inverso, indo das
temporalidades mais próximas à época do historiador, e portanto mais conhecidas,
até os tempos mais afastados, e por isto mesmo mais obscurecidos. A obra prima
de Bloch, contudo, viria com A Sociedade Feudal (1939), um livro que já realiza
o projeto dos Annales de construir uma História Total. Nada escapa, aqui, às
análises de Marc Bloch: do sistema de laços de dependência que consubstancia a
“coesão social” na Idade Média aos “modos de pensar e de sentir”, dos aspectos
econômicos às relações políticas, da demografia às relações de parentesco, do
comércio à concepção sagrada da realeza.

A obra que nos interessará mais é aquela que revela as concepções teórico-
metodológicas de Bloch, suas relações historiográficas, seu diálogo com outros
campos de saber, suas opiniões sobre o ofício do historiador. Elaborada entre 1941
e 1942 – nas difíceis condições da clandestinidade impostas por sua luta contra a
ocupação nazista – a Apologia da História de Bloch seria sempre citada pelos
futuros historiadores ligados aos Annales, e por outros de correntes igualmente
renovadoras, como um dos grandes clássicos da Historiografia. A principal luta
desta obra é contra a historiografia estreita e superficial de diversos setores da
historiografia de sua época, contra os quais Bloch opunha uma historiografia si-
multaneamente mais ampla e profunda. “Ampla” por preconizar tal diversidade
de temas e de dimensões de estudo que fazia a História Política tradicional pare-
cer extremamente estreita, na sua limitação a apenas uma pequena fatia do polí-
tico (o poder relacionado às instituições e ao estado, os confrontos bélicos e alian-
ças, e a vida dos grandes políticos). “Profunda” por combater a superficialidade
da história factual, opondo-lhe a densidade e a profundidade que só pode ser

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
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alcançadas a partir da formulação de problemas históricos e da percepção de que


os acontecimentos nada mais são do que a parte mais visível e fulgurante de
processos e estruturas históricas muito mais profundas.

Trata-se também de um programa (Bloch reconhece que, em seu livro, há uma


“parte de programa” (BLOCH, 2001, p.49) no qual, à amplidão e profundidade
desta nova história, acrescenta-se a possibilidade do “olhar longo”, capaz de al-
cançar grandes extensões de tempo (mas também de espaço), para perceber
igualmente aquilo que muda mais lentamente, ou que se oculta sob a mais facil-
mente apreensível curta duração dos acontecimentos políticos. Por fim, uma his-
tória aberta, em construção, que não pretende encontrar a verdade definitiva, mas
sim constituir uma verdade histórica relativa aos pontos de vista que a revelam. A
História, para Bloch, aquela que ele pretende opor ao seu “outro” historiográfico,
é uma História ampla, profunda, longa, aberta, e ... comparada, esta pedra de
toque que fez deste historiador francês um dos precursores deste futuro campo
histórico. Por fim, a História, o seu modelo de História, estabelece-se no encontro
entre o individual e o coletivo, ou entre o historiador individual e a comunidade dos
historiadores3 .

Eis a pergunta fundadora: “O que é a História?”. Ou, ainda mais especificamente,


“Para que serve a História?”. Escrita entre 1941 e 1942, após a entrada dos
alemães em Paris no mês de junho de 1940, e sob o impacto da conseqüente
ocupação nazista do território francês, a Apologia não deixa de trazer dentro de
si os ecos da decepção e perplexidade vivida pelos franceses invadidos. Em uma
das primeiras páginas de seu livro, Marc Bloch resume este contexto trágico, que
foi o tema de outro de seus livros – A Estranha Derrota (1940) – produzido no
momento anterior ao de Apologia da História. Ele lembra na Apologia que,
acerca da história, muitos então se perguntavam, tentando compreender aquela
estranha derrota: “terá a história nos enganado”? (BLOCH, 2001, p.43).

Entre as questões suscitadas por Apologia da História, algumas seriam somente


retomadas muitas décadas depois. Uma delas refere-se à dimensão estética da
História. Bloch escreve sua apologia após um século e meio de desenvolvimento
dos dois primeiros paradigmas científicos da História – o Positivismo e o Historicismo
– e um século depois das primeiras formulações do Materialismo Histórico. A
maior parte dos historiadores habituara-se a ver a História como ciência. Isso
podia variar um pouco. Febvre acreditava que a História era um tipo de conheci-

3
Para uma síntese da proposta de Bloch – “história ampla, profunda, longa, aberta, comparativa”, e, por
fim “coletiva”, porque feita a muitas mãos – ver o prefácio de Le Goff para a edição de 1993 (BLOCH,
2001, p.26).

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Marc Bloch e Lucien Febvre: revisitando...
BARROS, José D’Assunção

mento cientificamente produzido, e Marc Bloch a definira como “ciência dos ho-
mens no tempo”. Os positivistas e historicistas poderiam discordar sobre que tipo
de ciência era a História – se uma ciência aparentada às ciências naturais, ou se
totalmente distinta, conformando uma espécie própria de ciência – mas poucos
questionariam, naquela época, que a História tinha uma dimensão científica. Marc
Bloch também não o fez. Reconhecer a cientificidade da História, contudo, não o
impediu de indagar se a História não teria também a sua parcela de arte e poesia:

Resguardemo-nos de retirar de nossa ciência sua parte de poesia,


Resguardemo-nos, sobretudo, já surpreendi essa sensação em alguns, de
enrubescer por isso. Seria espantosa tolice acreditar que, por exercer sobre a
sensibilidade um apelo tão poderoso, ela [História] deveria ser menos capaz
de satisfazer também nossa inteligência (BLOCH, 2001, p.44).

A História permite a conjunção entre Ciência e Arte – é o que se depreende das


considerações de Marc Bloch, para quem “a história tem seus gozos estéticos pró-
prios, que não se parecem com os de nenhuma outra disciplina” (2001, p.44). Natu-
ralmente que, ainda que a estética e discursividade da História nem sempre se
apresentem como questões confortavelmente explicitadas em várias das correntes
historiográficas, grandes historiadores de diversos credos e filiações paradigmáticas
não deixaram de ser exímios artistas do discurso histórico. Ranke, que insistia na
ideia de que o historiador deveria se esmerar em apresentar os fatos sem “ornamen-
tos”, era, destarte, um hábil artesão da palavra. Sua prática historiográfica desmen-
te, de algum modo, a austeridade de seu discurso sobre o seu próprio ofício. Marc
Bloch, todavia, não fugiu ao reconhecimento da poesia que se abriga na História.
Admitir uma dimensão estética na História não o enrubescia.

Posto isto, a História para Marc Bloch será mesmo uma ciência – uma “ciência
em construção”, tal como já discutimos anteriormente (ver o capítulo sobre o
“Programa dos Annales”). Em Apologia da História, Marc Bloch se esmera em
definir o que seria essa ciência, qual seria a sua singularidade. Chega à definição,
que até hoje é a mais aceita, de que “a história é a ciência dos homens no tempo”.
Dos “homens”, e não do “Homem”, para evitar a ideia abstrata de homem, já que
o que a História busca é a vida, em sua agitação, em sua especificidade, em seu
entrelaçado de cultura, política, economia e mentalidade, mas sempre concretiza-
da em homens reais que viveram a história. Há outra frase da Apologia da Histó-
ria, que se tornou célebre, na qual Marc Bloch diz: “O historiador é como o ogro
da lenda; onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça” (BLOCH,
2001, p.54). De igual maneira, “uma ciência do tempo” (“dos homens no tempo”),
e não uma “ciência do passado humano”.

Uma das mais célebres discussões de Apologia da História é aquela que se


desenvolve em torno do tema da ‘obsessão pelas origens na historiografia’. Marc

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Bloch discute este tema sob o rótulo de “ídolo faz origens”. Fascinado por “com-
preender o mais próximo pelo mais distante”, mas às vezes presa fácil dos aspec-
tos mais simplórios deste fascínio, o historiador facilmente pode ser conduzido
pela ideia de que a origem tudo explica. A própria palavra “origem” parece reme-
ter à ideia de um “começo” que se explica; ou, com sentido ainda mais perigoso,
“um começo que tudo explica”. O ídolo das origens é o canto de sereia para os
historiadores que se deixam naufragar na sua viagem de busca pelo acontecimen-
to primordial. Mas, “de onde fazer partir o Cristianismo? Da atmosfera sentimen-
tal em que se elaboraram, no mundo mediterrânico ou iraniano, as religiões da
salvação? De Jesus? De Paulo? Ou das gerações que vieram se fixar nas linhas
essenciais do dogma?” (BLOCH, 2001, p.56). Perigo maior, contudo, a sereia das
sereias, é quando essa busca é contaminada pelo traiçoeiro canto das “causas e
efeitos”. O extremo perigo, abismo que tem tragado frotas de historiadores, é o
tratamento linear e teleológico da dinâmica de causa-efeito, que produz a ilusão de
que a história é uma só via, e de mão única. Esta escolha de um ponto no passado
para servir de origem a uma linha reta que vai dar em outro ponto mais à frente (o
acontecimento que se quer explicar, ou mesmo o nosso próprio presente), confor-
mando uma explicação que exclui as outras possíveis, e configurando uma história
que elimina todas as outras que poderiam ter sido traçadas a partir de outros
começos e elaboradas conforme itinerários distintos, constitui a prática que depois
seria denominada “retrodição”..

Para além dos elementos teóricos, que nos interessaram até aqui, é preciso dizer
que Apologia da História discute com especial interesse questões metodológicas,
como a ‘mediação’ do conhecimento historiográfico ou a natureza das fontes his-
tóricas, tratadas por Marc Bloch sob o signo de “vestígios”, o que já o aproxima de
uma abordagem mais moderna do documento histórico (BLOCH, 2001, p.73).
Aspectos discutidos na Apologia, como a necessidade de buscar também os ‘tes-
temunhos involuntários’, para além da documentação ou dos aspectos de um dis-
curso que revelam a intencionalidade (p.72), ou ainda como a menção da possibi-
lidade de consulta aos “relatos de testemunhas” (p.74), prenunciando vagamente
o que muito mais tarde constituiria a modalidade da História Oral, fazem deste
livro um dos registros mais expressivos sobre a abertura metodológica proposta
pelos Annales. A preocupação de Marc Bloch com a temática da Memória, aliás,
empresta ao seu livro mais um dos seus tons de pioneirismo, o que não o impede
de recomendar a necessária cautela que devem ter os historiadores que lidarão
com as reconstituições que se valem da memória (tanto as que encontraram seu
registro a partir de depoimentos colhidos através do historiador, como aquelas que,
registradas no interior de documentos, chegam aos historiadores já recolhidas por
outros ou prestadas espontaneamente). Posto isto, a grande questão que nos colo-
ca Marc Bloch é a da percepção do “voluntário” e do “não-voluntário” no univer-
so das fontes históricas (a riqueza de suas considerações residem, aliás, em dar a

212
Marc Bloch e Lucien Febvre: revisitando...
BARROS, José D’Assunção

perceber que existe uma margem de “não-voluntário” mesmo na documentação


emitida voluntariamente com vistas a comover ou informar um leitor previamente
identificado pelo emitente do discurso). Vejamos, inicialmente, o que nos diz Bloch
da primeira divisão que pode dividir o universo de fontes históricas em dois hemis-
férios: os “testemunhos involuntários” e os “testemunhos involuntários”:

Quando, com efeito, lemos, para nos informar, Heródoto ou Froissart, as me-
mórias do marechal Joffre ou as notícias, aliás completamente contraditórias,
dadas pelos jornais alemães e britânicos, sobre o ataque a um comboio no
Mediterrâneo, o que fazemos senão nos conformar exatamente ao que os
autores destes escritos esperavam de nós? Ao contrário, as fórmulas dos
pairos dos mortos eram destinadas a serem recitadas apenas pela alma em
perigo e ouvidas tão somente pelos deuses; o homem das palafitas que, no
lago vizinho onde o arqueólogo os remexe atualmente, jogava fora os dejetos
de sua cozinha, queria apenas poupar sujeira à sua cabana; a bula de isenção
pontifical só era tão precavidamente preservada nos cofres do mosteiro a fim
de ser, chegado o momento, brandida aos olhos de um bispo importuno (BLOCH,
2001, p.24-25).

Os testemunhos não-voluntários também são descritos por Marc Bloch nos ter-
mos de “testemunhos à revelia” (2001, p.77). A maestria do historiador francês,
contudo, está em dar a perceber que há uma dimensão de testemunho não-volun-
tário que pode ser igualmente apreendida nos documentos que foram motivados
por certa intencionalidade. Sito de outra forma, o documento que pertence à cate-
goria dos gêneros de testemunhos voluntários, também traz a sua margem do
involuntário, da informação que escapa sem que o seu enunciador se dê conta, ou
mesmo sem que o próprio enunciador do discurso tenha qualquer consciência
maior de que ela está ali. Uma hagiografia, por mais que tenha sido construída em
torno da fantasia dos milagres e do cuidadoso ato de esculpir uma personalidade
destinada a servir de exempla, ao mesmo tempo em que formatada para atender
aos interesses de uma das muitas ordens da Igreja medieval, possui um registro
involuntário que escapa das entrelinhas do que o hagiógrafo se propôs a dizer. Há
uma cultura material que a informa, modos de pensar e de sentir que a atraves-
sam, informações que o autor do texto não pensava trazer, ou nem sabia que
estava trazendo, e que constituem esta sombra de involuntário que sempre termi-
na por impregnar qualquer testemunho voluntário:

Até nos testemunhos mais resolutamente voluntários, o que os textos dizem


expressamente deixou hoje em dia de ser o objeto predileto de nossa atenção.
Apegamo-nos geralmente com muito mais ardor ao que ele nos deixa entender,
sem haver pretendido dizê-lo. Em Saint-Simon, o que descobrimos de mais
instrutivo? Suas informações, frequentemente inventadas, sobre os aconteci-
mentos do reino? Ou a espantosa luz que as Memórias nos lançam sobre a
mentalidade de um grande senhor, na corte do Rei-Sol? Entre as vidas dos

213
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

santos da Ala Idade Média, pelo menos três quartos são incapazes de nos
ensinar qualquer coisa de concreto sobre os piedosos personagens cujo des-
tino pretendem nos retraçar. Interroguemo-las, ao contrário, sobre as maneiras
de viver ou de pensar particulares às épocas em que foram escritas, todas as
coisas que o hagiógrafo não tinha o menor desejo de nos expor (BLOCH, 2001,
p.78).

Para extrair de um texto os materiais que serão úteis à historiografia, portanto, é


preciso atentar para dois aspectos. Quando tratamos da dimensão voluntária do
texto, é preciso transformar o testemunho em discurso, compreendê-lo como dis-
curso, como texto que contém distorções, manipulações, enganos e auto-enganos,
cargas ideológicas a serem apreendidas Para apreender a dimensão involuntária,
inclusive nos documentos que poderiam ser categorizados como “testemunhos
voluntários”, é preciso uma atenção especial. Sobretudo, compreender que “os
documentos não falam, senão quando sabemos interrogá-los” (BLOCH, 2001,
p.79). Retornamos, aqui, à questão fundadora da História-Problema.

Concluiremos frisando mais uma vez o ambiente teórico que se estabelece a partir
da produção historiográfica de Marc Bloch. No que concerne às conexões
paradigmáticas deste historiador francês, através da Apologia da História e de
suas outras obras podemos perceber interações bastante ambíguas com relação
aos paradigmas Positivista e Historicista, para não mencionar o Materialismo His-
tórico. Já mostramos anteriormente que, do Positivismo, Marc Bloch havia se
apropriado bem claramente de alguns conceitos durkheimianos – como os de “re-
presentações coletivas” e de “coesão social” (Sociedade Feudal, 1939). Ao mesmo
tempo, tal como também já foi discutido, o historiador francês dirige uma respeito-
sa crítica à escola durkheimiana em diversas passagens da Apologia da História
(2001, p.47, p.51) – e isto ao lado de sua incontornável luta nos quadros de uma
disputa territorial que visava combater o projeto durkheimiano de secundarização
da História. Por outro lado, com relação à antiga sugestão de ‘imutabilidade da
natureza humana’, presente em certo número de filósofos iluministas e, depois,
em outro tanto de sociólogos positivistas, a posição de Marc Bloch mostra-se
oscilante e ambígua, situando-se entre a ideia da existência de um “fundo perma-
nente” da experiência humana e, no pólo oposto, a tendência Historicista a colo-
car em relevo a radical mutabilidade do homem nas diversas sociedades. Em um
aspecto, por outro lado, a herança historicista é bastante clara: a ideia de que o
historiador deve se aproximar da alteridade histórica através do gesto de “com-
preender” (BLOCH, 2001, p.128). Marc Bloch, enfim, soube lidar com as
dissonâncias de seu tempo em seu acorde historiográfico. Não foi um pensador
vinculado diretamente a nenhum paradigma teórico, mas sim um historiador asso-
ciado a uma escola que não propõe, em seu programa, nenhuma associação teó-
rica mais específica, deixando as escolhas teóricas a cargo dos seus membros.

214
Marc Bloch e Lucien Febvre: revisitando...
BARROS, José D’Assunção

Marc Bloch exerceu essa liberdade de maneira criativa, produzindo a sua própria
coerência teórica.

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215
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
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216
CAIAPÓS, ARAXÁS, BOROROS, GERALISTAS...
CONFLITOS REVELADOS, IDENTIDADES E
MEMÓRIAS CONSTRUÍDAS NO SERTÃO DA
FARINHA PODRE NOS SÉCULOS XVIII E XIX

Glaura Teixeira Nogueira Lima*


Robert Mori**

Resumo: Este artigo pretende discutir/analisar as relações de contato entre índi-


os e entre estes e os geralistas, empreendidas no Sertão da Farinha Podre, atuais
regiões do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, durante os séculos XVIII e XIX.
Para tal propósito, além de abordar a produção historiográfica existente acerca
deste assunto, serão trabalhadas algumas fontes arquivísticas do Arquivo Ultra-
marino, disponibilizadas on-line pelo Centro de Memória Digital (CMD) da Uni-
versidade de Brasília (UnB). A partir da utilização destes referenciais acima cita-
dos, podemos afirmar que as relações interétnicas decorrentes do contato entre
estes grupos mostraram-se, historicamente, conflituosas e violentas.

Palavras-chaves: História Indígena, Historiografia, Identidades

Abstract: This article intends to discuss/analyze the contact relations among Indians
and between Indians and geralistas (natives or inhabitants of Minas Gerais),
undertaken at Sertão da Farinha Podre, current regions of the Triângulo Mineiro
and Alto Paranaiba, during XVIII and XIX centuries. For such purpose, besides
broaching the existing historiographical production, as regards this matter, it is

*
Doutora em História pela PUC/ SP, atualmente é Professora Adjunta do Departamento de História da
Universidade Federal do Triângulo Mineiro – UFTM – Uberaba – MG.
**
Graduando em História – Universidade Federal do Triângulo Mineiro – UFTM – Uberaba – MG.

217
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

going to be worked some sources of Ultramarine Archive, available on-line by


Centro de Memória Digital (CMD) of the University of Brasília (UnB). From the
usage of these above mentioned references, we can say that the interethnic relations,
resulting from the contact between these groups, were historically conflicting and
violent.

Keywords: Indian History, Historiography, Identities

O presente artigo objetiva promover a análise das relações de contato entre os


povos indígenas e entre estes e os primeiros colonizadores “brancos” do Sertão da
Farinha Podre (atuais regiões do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, pertencen-
tes ao Estado de Minas Gerais), durante os séculos XVIII e XIX. Estas popula-
ções “brancas”, compreendidas principalmente pelos “geralistas”, foram as ocu-
pantes desta região das gerais, vindos de outra, a das minas. Discutiremos tam-
bém o processo de aproximação de culturas diversas, o que gerou um ambiente
altamente conflituoso e violento.

Localizada entre dois grandes rios, o Grande e o Paranaíba (formadores do Rio


Paraná), o Sertão da Farinha Podre foi, durante séculos, ponto de passagem de
entradas e bandeiras que geralmente saíam da Capitania de São Paulo. Estas
expedições, que objetivavam adentrar o interior da colônia portuguesa, procura-
vam minas de pedras e metais preciosos e o apresamento de índios, visando sua
escravização. Hildebrando Pontes afirma que, possivelmente, a primeira bandeira
a cruzar este sertão foi a do Capitão Sebastião Marinho, em 1590, que, saindo de
São Paulo, atingiu as nascentes do rio Tocantins (PONTES, 1978).

Durante os séculos XVII e XVIII, outras bandeiras e entradas adentraram esta


região. Porém, a mais importante ocorreu entre os anos de 1722 e 1725: a bandei-
ra de Bartolomeu Bueno da Silva (o Anhanguera II) e João Leite da Silva Ortiz,
que construiu uma via de acesso para o interior da colônia, a Estrada do Anhanguera
ou dos Goiases.

Os índios que habitavam o Sertão da Farinha Podre, os Caiapós meridionais, pos-


sivelmente empreenderam seu primeiro contato com os colonizadores “brancos”
por meio destas entradas e bandeiras. O território destes índios Caiapós era bem
vasto. Sua área compreendia o “sul e sudoeste do atual estado de Goiás, o atual
Triângulo Mineiro, parte norte de São Paulo, o leste do atual estado do Mato
Grosso e leste e sudeste do atual Mato Grosso do Sul” (GIRALDIN, 1997, p. 57).
Era, portanto, uma área de ocupação onde predominava o Sistema Biogeográfico
do Cerrado, que se estende por grande área do Brasil.

218
Caiapós, Araxás, Bororos, Geralistas...
LIMA, Glaura Teixeira Nogueira; MORI, Lima, Robert

Como este trabalho objetiva promover o estudo e a análise dos povos indígenas
que residiam nas atuais regiões do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, podemos
afirmar que os Caiapós que habitavam esta região possuíam como seus inimigos,
localizados a leste, apenas os Araxás, população indígena que será tratada poste-
riormente. Além de possuírem como território uma vasta área do Brasil central,
eram também a população predominante do Sertão da Farinha Podre.

Basicamente, as populações indígenas brasileiras estão agrupadas em quatro gran-


des troncos linguísticos. São eles: o Macro Tupi, o Arawak, o Karib e o Macro Jê.
Há também uma diversidade de outras línguas cuja singularidade possibilita a sua
classificação em famílias menores ou em línguas isoladas. Os Caiapós meridio-
nais ou Caiapós do sul estão agrupados linguisticamente ao tronco Macro Jê. Este
tronco linguístico concentra-se “na parte oriental e central do planalto brasileiro”
(URBAN, 1992, p. 90).

Convém ressaltar que a ocupação desta região por populações pré-históricas é


bastante antiga. Os primeiros povos aldeões são classificados como pertencentes
“a uma Tradição chamada Sapucaí em Minas Gerais (e Aratu, nos estados vizi-
nhos da Bahia e Goiás)” (PROUS, 2006, p. 85).

Com a descoberta das jazidas auríferas na Capitania de Goiás, no século XVIII, a


coroa portuguesa buscou, mediante inúmeras tentativas, proteger os locais onde
era possível levar adiante a atividade mineradora. Com esse intuito, a Estrada dos
Goiases, mediante o bando de 2 de outubro de 1732, foi reconhecida como único
meio de acesso entre São Paulo e Goiás, sendo que “os transgressores que se
utilizassem de outro caminho que não o oficial sofreriam severas penalidades,
como sequestro e confisco dos bens ou prisão” (CHAIM, 1983, p. 23).

O bandeirante Anhanguera, assim como seus descendentes (três gerações) usu-


fruíram da cobrança de pedágio dos que circulavam por esta via até o século XIX
(SAINT HILAIRE, 1975). A concessão da exploração econômica desta estrada
foi uma maneira encontrada pelas autoridades portuguesas de recompensar o
bandeirante pelo seu empreendedorismo.

Com o aumento do fluxo de “colonizadores” e comerciantes para as regiões


mineradoras goianas, os índios Caiapós iniciaram uma série de ataques aos que
trafegavam pela Estrada do Anhanguera. Estas investidas dos Caiapós não eram
motivadas apenas em decorrência da defesa do seu território ou da luta contra sua
possível escravização. Veremos posteriormente quais os motivos que levaram estes
índios a entrar em combate com outros povos indígenas ou “colonizadores brancos”.

Os bandeirantes paulistas certamente já possuíam conhecimento da resistência dos


Caiapós desde as primeiras bandeiras em territórios do interior da colônia portugue-

219
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

sa, e, em um primeiro momento, o não povoamento “branco” desta região pode


estar diretamente relacionado aos ataques promovidos por estes indígenas. Ao que
parece, este temor provocado pela presença dos Caiapós pode ter sido utilizado a
favor dos interesses da coroa portuguesa, pois “esses ‘vazios’ povoados por índios,
tais como a Caiapônia, funcionavam como grandes barreiras naturais aos fluxos
clandestinos, um desestímulo ao contrabando.” (LOURENÇO, 2005, p. 63-64).

Provavelmente, os ataques desencadeados pelos Caiapós foram vistos pela coroa


portuguesa sob duas óticas. A primeira, favorável aos seus interesses, utilizando
para isso o temor que estes indígenas desencadeavam no imaginário da popula-
ção, com o intuito de desencorajar a utilização de outros caminhos que não fosse
a Estrada do Anhanguera, e, consequentemente, desestimular o contrabando de
metais e pedras preciosas.

Por outro lado, com a intensificação dos ataques não apenas ao longo da Estrada
dos Goiases, mas também aos arraiais e fazendas, e, por consequência, colocando
em risco a arrecadação do quinto e a execução da atividade mineradora, os Caiapós
foram vistos pelas autoridades coloniais como um “problema”.

Na primeira metade do século XVIII, entre 1737 e 1740, os Caiapós destruíram


um núcleo aurífero denominado Tabuleiro, erguido “onde terminam os eriçados e
agressivos cantões da serra da Canastra, e (...) começam os planos denominados
“chapadões” (NABUT, 1986, p. 22). Anos mais tarde, três léguas abaixo do extin-
to núcleo populacional do Tabuleiro, os sobreviventes deste ataque fundaram o
Arraial de Nossa Senhora do Desterro da Cabeceira do Rio das Abelhas, posteri-
ormente Arraial de Nossa Senhora do Desterro do Desemboque, importante nú-
cleo populacional do Sertão da Farinha Podre.

Para compreendermos os motivos que desencadeavam os ataques dos Caiapós


aos colonizadores e a outros povos indígenas, assim como alguns aspectos de sua
cultura, teremos que avançar no tempo. Descreveremos a seguir alguns momen-
tos históricos que permitirão compreender a história e a cultura Caiapó do sul.

No ano de 1910, a Comissão Geológica e Geográfica do Estado de São Paulo,


explorando o rio Grande e seus afluentes, encontrou em território pertencente ao
Triângulo Mineiro um grupo de índios Caiapós. Deste encontro restou a fotografia
de um garoto que ficou como testemunho, sendo esta informação “considerada
por muito tempo como a última que se teve sobre este grupo indígena, conhecido
também como Kayapó do Sul ou Kayapó Meridionais (GIRALDIN, 1997, p. 30).

Um ano depois, em 1911, nesta mesma região, na confluência dos rios Grande e
Paranaíba, no pontal do Triângulo Mineiro, Alexandre de Souza Barbosa, morador

220
Caiapós, Araxás, Bororos, Geralistas...
LIMA, Glaura Teixeira Nogueira; MORI, Lima, Robert

de Uberaba, estava realizando serviços de agrimensura na fazenda Bom Sucesso.


Durante este trabalho, ele encontrou índios Caiapós da aldeia de Água Vermelha
(situada acima do ribeirão do Cuiabano, território da atual cidade de São Francis-
co de Sales) e um índio da aldeia de Areré, localizada às margens do Paranaíba,
em território do atual Estado de Mato Grosso do Sul. Estes índios se
autodenominavam “Panarás” (BARBOSA, 1918).

Curioso, Alexandre Barbosa decidiu coligir um vocabulário da língua panará. Quan-


do iniciou esta tarefa, ele notou que os três índios da Aldeia de Água Vermelha
não a conheciam satisfatoriamente. Quando não sabiam o significado de alguma
palavra, afirmavam que a mãe deles sabia versar muito bem sobre a língua de
seus antepassados (BARBOSA, 1918). Com muito custo e mediante a doação de
presentes, a mãe destes índios, de nome Cândida, enfim foi ao encontro do agri-
mensor. Em dois dias, Alexandre Barbosa reuniu com o auxílio desta índia, um
vocabulário com mais de setecentas palavras e frases da língua Caiapó (Ibid.).
Realizou também um pequeno histórico e, juntamente com o vocabulário coligido,
remeteu o trabalho intitulado “Cayapó e Panará”, em 1918, ao Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (IHGB). Possivelmente, este manuscrito confeccionado
por Alexandre Barbosa foi o último trabalho sobre os índios Caiapós que ainda
habitavam a região do Triângulo Mineiro. Este importante documento só seria
reencontrado pelo pesquisador Odair Giraldin na década de 1990.

Retrocedamos no tempo, mais precisamente no século XIX, ano de 1819. Saint


Hilaire, viajante e naturalista, passando pelo aldeamento de São José de
Mossâmedes, na Província de Goiás, onde estavam aldeados alguns índios Caiapós,
afirmou:

Os portugueses deram, não sei porque, o nome de Coiapós ou Caiapós a esses


indígenas. Pelo que me disseram, parece que um grupo deles, que ainda vive
nas matas, sem nenhuma outra tribo nas vizinhanças, não tinha nome que os
identificasse, e por isso passaram a usar a palavra panariá a fim de se distingui-
rem, como raça, dos negros e dos brancos.” (SAINT HILAIRE, 1975, p. 66).

Note que Saint Hilaire, francês, afirma que ouviu no aldeamento de Mossâmedes
que os Caiapós se autodenominavam “panariá”, termo muito próximo do termo
“panará” descrito por Alexandre Barbosa.

Avancemos no tempo. Ditadura militar, “milagre econômico.” Na década de 1970,


o governo brasileiro, financiado por capital estrangeiro (principalmente america-
no), iniciou um grande projeto que visava à integração nacional. Na região amazô-
nica, este programa objetivava a construção de estradas e a sua posterior “coloni-
zação” (DAVIS, 1978). Uma destas grandes obras de integração rodoviária era a
Cuiabá-Santarém, ou BR 163. O início da construção desta estrada impulsionou o

221
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

contato com uma população indígena isolada, conhecida pelos seus inimigos, os
txucarramães, como kreen akarore (kran iakarare, que significa “cabeça cortada
redonda”) uma referência ao corte de cabelo utilizada por estes índios (ARNT et
al., 1998).

Constitui-se uma frente de atração encabeçada pelos irmãos Villas Boas, Cláudio
e Orlando que, após seis anos de tentativas, enfim, realizaram o primeiro contato
com estes índios isolados (DAVIS, 1978). O local deste encontro foram as mar-
gens do rio Peixoto de Azevedo, na região norte de Mato Grosso (GIRALDIN,
1997). Conhecidos como kreen akarore, eles se autodenominavam Panará.

Este contato com os Panarás levou o grupo a uma queda populacional muito drás-
tica, motivada principalmente por doenças contra as quais os índios não possuíam
defesa imunológica. A população que, anteriormente ao contato, estava compre-
endida entre 300 e 600 índios, dois anos depois, em 1975, contavam com apenas
79 sobreviventes que, por sua vez, foram transferidos para o Parque Indígena do
Xingu (ARNT et al., 1998).

Nestes breves relatos ocorridos nos séculos XIX e XX, pudemos perceber que
tanto os Caiapós como os kreen akarore possuíam uma maneira própria de se
autodenominarem: Panará. Portanto Caiapó e Panará são o mesmo povo? Vere-
mos a seguir algumas considerações acerca deste assunto.

Após o desastroso contato com os Panarás no norte do Mato Grosso no ano de


1973 e sua posterior transferência para o Parque Indígena do Xingu, dois impor-
tantes trabalhos científicos com os Panarás foram realizadas: o primeiro, feito
pelo antropólogo inglês Richard Heelas, na década de 1970. Posteriormente, na
década de 1980, o americano Stephan Schwartzman realizou o segundo trabalho
antropológico sobre os Panarás. Ambos apontaram semelhanças entre os Caiapós
meridionais e os Panarás, citando aspectos da cultura material e imaterial, como
evidências sólidas de uma possível “continuidade histórica e cultural entre eles”
(GIRALDIN, 1997, p. 19).

A principal evidência, talvez, seja a língua. A partir da análise do vocabulário coli-


gido por Alexandre Barbosa, e posterior comparação com outras listas existentes
de palavras Caiapós (reunidas principalmente por viajantes como Pohl e Saint
Hilaire), assim como a língua falada atualmente pelos Panarás, foi possível afir-
mar que “as palavras (...) são semelhantes, e em alguns casos, são idênticas. Isto
sugere, então, que se trata do mesmo grupo” (GIRALDIN, 1997, p. 36).

Outro ponto de convergência entre os Caiapós meridionais e os Panarás é a tradi-


ção oral deste último grupo. As tradições orais “transmitem oralmente e ao longo

222
Caiapós, Araxás, Bororos, Geralistas...
LIMA, Glaura Teixeira Nogueira; MORI, Lima, Robert

do tempo informações que provêm do passado” (PISCITELLI, 1993, 150), por-


tanto, estão intrinsecamente relacionadas à memória. Memória que pode ser com-
preendida como a “propriedade de conservar certas informações, [e] remete-nos
em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem
pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como
passadas” (LE GOFF, 1990, p. 423).

Segundo a tradição oral dos índios Panarás, seus antepassados vieram do leste, de
uma área de campo aberto (como vimos, os Caiapós habitavam o sistema
biogeográfico do cerrado, constituído por vegetação de pequeno porte com galhos
retorcidos e folhas grossas) e seus inimigos eram os “brancos”, que também se
encontravam no leste e possuíam armas de fogo (ARNT et al., 1998).

A partir destas evidências, mostrou-se possível avançar no preenchimento de la-


cunas da história caiapó a partir da utilização de dados da etnografia panará. Mas
e os ataques dos Caiapós que tanto preocuparam as autoridades coloniais, princi-
palmente da Capitania de Goiás? Utilizando-se dos trabalhos de Heelas e
Schwartzman, e avançando ainda mais nesta hipótese a partir da descoberta do
vocabulário compilado por Alexandre Barbosa, Odair Giraldin concluiu e apontou
que estas investidas permitiram o:

contato com um “inimigo” (hi’pe ou kahen), o qual pertencia a uma categoria


que era definida como hostil e, portanto deveria ser morta. Segundo, porque
ao combater os “inimigos”, eles lhes forneciam bens como a “bravura” neces-
sária para que os homens pudessem realizar as cerimônias de escarificação de
peito e costas, e perfuração de lábios e orelhas e tornava o homem “bravo”,
uma condição ideal para (...) relações sexuais, a partir das quais as mulheres
ficariam “tristes”, podendo engravidar. Terceiro, os inimigos eram fontes de
bens materiais, como plantas, armas (...) Quarto, estavam, também, vingando
seus mortos, ou as pessoas capturadas pelos “brancos”. Finalmente, não
faziam cativos dos seus “inimigos” porque não havia a possibilidade de serem
incorporados em seus (...) “clãs” (GIRALDIN, 1997, p. 50).

Uma destas cerimônias praticadas pelos Panarás era o nôpeyn, “que consistia na
escarificação com dente de paca de regiões do tórax e das costas, após expedi-
ções guerreiras, objetivando transmitir aos jovens a força e a bravura dos inimi-
gos” (ARNT et al., 1998, p. 2). Portanto, a prática da guerra na sociedade Caiapó/
Panará possuía/possui um valor muito importante.

Podemos afirmar que estas investidas dos Caiapós não foram motivadas apenas
porque “defendiam seu território” confome aponta Ataídes (ATAÍDES, 1998, p.
23). A formação da identidade panará, o desencadeamento de rituais, a apropria-
ção de bens dos inimigos e a vingança, assim como não podemos negligenciar a

223
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

defesa do seu território, são os motivos que promoviam a realização destes ata-
ques a outros povos indígenas ou aos primeiros colonizadores do Brasil central.

O êxito das incursões guerreiras dos Caiapós ocorria por diferentes motivos. Pri-
meiramente, conheciam muito bem o ambiente onde viviam há séculos, ou seja, o
cerrado e as matas que o compõem. Outro fator importante era seu aparato béli-
co, relativamente simples, inferior aos dos colonizadores “brancos”, porém bas-
tante funcional. Como exemplo, podemos citar o viajante Johann Emanuel Pohl,
que chamou a atenção para o tamanho do arco caiapó, com quase dois metros de
comprimento, assim como a destreza com que manejavam e acertavam o alvo,
mesmo a considerável distância (POHL, 1976).

Esta série de ataques ocasionou na capitania de Goiás a morte de escravos, crian-


ças, mulheres e animais. Estes acontecimentos desencadearam um ambiente
conflituoso, onde a população pedia a interferência do governo para que medidas
eficientes fossem tomadas contra os índios Caiapós.

Esta pressão da população teria como objetivo justificar as ações violentas e pro-
mover a guerra justa ofensiva ou a guerra justa defensiva. A primeira modalidade
“caracterizava-se por ser lícito atacar aldeias indígenas e somente poderia ser
realizada por ordem do Rei”. Já a segunda modalidade permitia o ataque a: “grupo
de guerreiros encontrados em atitude que caracterizasse um ataque iminente”.
Ou seja, proibia que as aldeias fossem atacadas. As autoridades coloniais utiliza-
ram destas duas modalidades para tentar conter os ataques e exterminar os Caiapós.
(GIRALDIN, 1997, p. 69).

Buscando uma ação mais efetiva no intuito de contê-los e/ou exterminá-los, Dom
Luís de Mascarenhas, em 1742, baixou um regimento que regulamentou “a ação
dos Capitães de Cavalos da conquista do Kayapó” (ATAÍDES, 1998, p. 24), cuja
função consistia em patrulhar regiões onde os índios estavam estabelecidos, buscan-
do contê-los ou exterminá-los. Fracassada esta tentativa, as autoridades coloniais
buscaram nos trabalhos empreendidos pelos sertanistas, meios mais efetivos de
combate aos Caiapós. Após constantes solicitações por parte do governador da
capitania de São Paulo, Dom Luis de Mascarenhas, finalmente em 1746 foi auto-
rizada as ações contra os Caiapós (LOURENÇO, 2005). Tentou-se para este fim,
a contratação de Ângelo Preto de Cuiabá, que impossibilitado de comparecer, foi
substituído por Antônio Pires de Campos e seu 500 Bororos (CHAIM, 1983).
Neste contrato, o sertanista se comprometia a aldear os Bororos ao longo da
estrada do Anhanguera (GIRALDIN, 1997).

A utilização de índios no combate a outros índios, além de incitar a rivalidade já


existente, também foi motivada pelo conhecimento que possuíam do ambiente, a

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Caiapós, Araxás, Bororos, Geralistas...
LIMA, Glaura Teixeira Nogueira; MORI, Lima, Robert

facilidade com que encontravam alimentos e, principalmente, pelo tipo de armas


que utilizavam: arcos e flechas. Nas transposições de grandes cursos d’água, as
armas de fogo poderiam sofrer danos, ao contrário do aparato de guerra indígena.

Possivelmente os combates mais violentos entre os Caiapós e os Bororos ocorre-


ram na região do Sertão da Farinha Podre, entre os rios Grande e Paranaíba. Um
dos possíveis indicativos desta afirmação seria a formação de aldeamentos habi-
tados pelos Bororos com a função de proteger a estrada do Anhanguera e os
viajantes que por ela transitavam e servirem de base de apoio às incursões guer-
reiras a outros indígenas.

Márcia Amantino afirma que “o coronel Antonio Pires de Campos conseguiu ob-
ter a autorização para estabelecer aldeias de índios Bororos na área hoje conheci-
da como o Triângulo Mineiro para servir de escudo contra os Caiapós”
(AMANTINO, 2006, p. 198). Esta afirmação é confirmada pelo ofício do gover-
nador e capitão general de Goiás, Conde dos Arcos, Dom Marcos de Noronha ao
rei Dom José, datada de 25-01-1752, onde o dirigente da capitania escreve:

Em 15 de Julho de 1748, celebrou o governador Dom Luís Mascarenhas este


ajuste com o coronel Antônio Pires de Campos a quem deo o Regimento, que
por copia remetto (...) com observância della se estabeleceo o mesmo coronel
no caminho que vem de São Paulo (AHU. Cx. 7, Doc.: 502).

Criou-se, então, o primeiro aldeamento, denominado Rio das Pedras, no território


da atual cidade de Cascalho Rico, na região do Triângulo Mineiro, que passou a
exercer as funções preconizadas a este tipo de construção, sendo habitado pelos
Bororos: defesa do território, pouso de tropas e ponto de partida para incursões
guerreiras. Do governador da capitania de Goiás, Antônio Pires de Campos rece-
beu uma faixa de terras de uma légua e meia de cada lado da Estrada do
Anhanguera, totalizando, portanto, três léguas. Nesta área outros aldeamentos e
sítios indígenas foram erguidos e serão tratados posteriormente.

Estas lutas encabeçadas por Antônio Pires de Campos contra os Caiapós dura-
ram até por volta do ano de 1751, quando flechado em combate, morreu em de-
corrência de complicações deste ferimento na região de Paracatu. Historicamen-
te, este sertanista mostrou-se empenhado em exterminar os Caiapós, trabalhando
durante anos para atingir tal objetivo. Não logrou êxito, sendo posteriormente subs-
tituído nesta empreitada, pelo seu irmão, Manuel de Campos Bicudo, em troca do
perdão das dívidas contraídas por Pires de Campos (CHAIM, 1983).

Mas foi por meio dele, ou melhor, a partir de um possível pedido de aldeamento
feito a ele por uma população indígena habitante do Sertão da Farinha Podre, e
posteriormente, pelas cartas e provisão escritas a partir deste fato, que foi permi-

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

tido chegar a nós quatro documentos importantes, acondicionados no Arquivo Ul-


tramarino, sobre os índios Araxás.

A história do povo indígena Araxás ou Arachás, cuja grafia utilizando-se do “x” ou


do “ch”, não implica em diferenças conceituais,1 até o presente momento foi
construída a partir de textos e estudos de memorialistas do Triângulo Mineiro, Alto
Paranaíba e demais regiões do Estado de Minas Gerais.

O autor Oiliam José em sua obra “Indígenas de Minas Gerais” afirma que os
índios Araxás habitavam “o Oeste de Minas e extinguiram-se desde muito. Sofre-
ram severíssimo ataque da bandeira de Lourenço Castanho Taques. Pertenciam
ao bloco dos Cataguás e dominavam vasta zona até o Triângulo Mineiro” (JOSÉ,
1965, p. 19).

Para outros autores, ao contrário do que afirma Oiliam José, a primeira notícia
sobre os Araxás, foi fornecida por Lourenço Castanho Taques, mas não foi credi-
tada a ele a dizimação destes indígenas, mas sim a Inácio Corrêa Pamplona (SIL-
VA, CARDOSO, s/d.), (CARVALHO, 1928), (PONTES, 1928), (COSTA, 1987).

Trabalhos até então produzidos e editados sobre a história do município de Araxá,


afirmam que os antepassados dos índios homônimos foram os Cataguás, e que os
sobreviventes do ataque promovido por Pamplona, foram se miscigenando com os
geralistas empenhados na colonização das terras para a criação de fazendas (SIL-
VA, CARDOSO, s/d.), (CARVALHO, 1928), (PONTES, 1928), (COSTA, 1987).
Afirma a historiadora Glaura Teixeira Nogueira Lima que até o momento não
“existe, ainda, um estudo específico sobre os índios Araxás” (LIMA, 1999, p. 27).
Esta, portanto, é a primeira pesquisa de cunho acadêmico que tratará e inserirá
esta população indígena na história brasileira.

Nessa perspectiva, avançaremos até o ano de 1995, quando o então presidente


Fernando Henrique Cardoso, através de um protocolo assinado entre Brasil e
Portugal no âmbito da Comissão Bilateral Luso-Brasileira de Salvaguarda e Di-
vulgação do Patrimônio Documental (COLUSO), instituiu o Projeto Resgate de
Documentação Histórica Barão do Rio Branco. Foram digitalizados mais de 150.000
documentos referentes principalmente ao período colonial brasileiro que estavam
acondicionados no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (AHU).

1
Utilizarei neste trabalho o termo araxás, com “x” por ser este vocábulo o mesmo da cidade-balneário
homônima, famosa por suas águas minerais utilizadas para o tratamento de inúmeras enfermidades do
corpo.

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Caiapós, Araxás, Bororos, Geralistas...
LIMA, Glaura Teixeira Nogueira; MORI, Lima, Robert

Em 2003, o Ministério da Cultura (MinC) juntamente com o Centro de Memória


Digital (CMD) da Universidade de Brasília (UnB), com o patrocínio da
PETROBRÁS, disponibilizou um banco de dados on-line, oriundos do Projeto
Resgate. Neste banco de dados encontram-se quatro documentos compreendidos
entre o período de 29 de dezembro de 1749 e 08 de maio de1753, que descrevem
passagens referentes à existência dos índios Araxás.

O primeiro documento a ser analisado é uma carta do governador e capitão gene-


ral de Goiás, D. Marcos de Noronha, o Conde dos Arcos, ao rei D.João V, datada
de 29 de dezembro de 1749 (AHU. Cx.: 5, Doc.: 427). Nesta correspondência, a
autoridade goiana informa a chegada de dois padres missionários da Companhia
de Jesus, que juntos iriam estabelecer um aldeamento que seria habitado pelos
índios Araxás. Aponta o mesmo documento o local em que estes índios habitavam
“a passagem do Rio Grande no caminho que vay para São Paulo” (AHU. Cx.: 5,
Doc.: 427) próximo, portanto, da estrada do Anhanguera ou dos Goiases, local de
constante trânsito e via de acesso para a região central da colônia e para a Capi-
tania de São Paulo.

Segundo esta carta, os Araxás pediram a Antônio Pires de Campos que “querem
Missionário, e que querem ser governados por homens brancos” (AHU. Cx.: 5,
Doc.: 427). O que podemos perceber é que para terem o conhecimento do traba-
lho missionário e para desejarem se estabelecer em um aldeamento, presume-se
que estes índios já estavam mantendo algum tipo de contato com os primeiros
colonizadores, possivelmente com o próprio Pires de Campos, que um ano antes
estabelecera o primeiro aldeamento da região, Rio das Pedras, habitado pelos
Bororos. O próprio local em que habitavam, próximo à estrada do Anhanguera,
possivelmente facilitou o contato entre estes índios e os “brancos”. Uma segunda
hipótese levantada, poderia ser a vontade do sertanista em subjugá-los, assim
como fez com os Bororos, que viveriam em um regime de escravidão perante o
sertanista. Sobre as relações entre os Bororos e o Pires de Campos, há indícios de
que os índios viviam sob o jugo do sertanista “num regime de escravidão diante do
comandante” (ATAÍDES, 1998, p. 73).

Também no ano de 1749, o governador Dom Marcos de Noronha havia recebido


instruções através de uma carta da rainha D. Maria, sobre o tratamento que deve-
ria ser conferido aos índios que habitavam a capitania:

E assim a respeito das nações já descobertas, como das que se descobrirem de


novo, havendo aparência de poderem reduzir-se à civilidade, e a viverem
aldeados, pedireis ao Provincial da Companhia de Jesus do Brasil, missionári-
os para os doutrinarem e aldearem nas mesmas terras em que forem achados,
sem permitir que sejam mudados para outras, salvo no caso que por serem
poucos queiram voluntariamente unir-se a outras aldeias da mesma língua
(PALACIN, GARCIA, AMADO, 1995, p. 70).

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

Havia a intenção, por parte das autoridades portuguesas, em aldear os índios na


própria região em que se encontravam, deslocando-os para outras aldeias apenas
quando a população fosse numericamente pequena; que no local de destino hou-
vesse outros índios que falassem a mesma língua e/ou que voluntariamente reque-
ressem esta mudança.

Na correspondência de D. Marcos de Noronha ao rei D. João V, de 29/12/1749, a


autoridade da capitania de Goiás afirma que os dois padres já se encontravam em
Vila Boa, capital da província de Goiás e aguardavam Antônio Pires de Campos
para que “partão (...) a cuidarem da Redução deste gentio, fazendo logo diligencias
pello aldearem, que se julga que elles não terão duvidas” (AHU. Cx.: 5, Doc.:
427).

As reduções eram:

aldeamentos controlados por padres jesuítas com a finalidade de desenvolver


o trabalho de disseminação de hábitos e de costumes europeus e a catequese.
A redução era uma forma de retirar os índios de seu convívio comum e natural
entre os nativos e lhes dar a oportunidade de se transformarem em bons
cristãos (MARTINS, 2006).

Quanto ao local escolhido para instalar esta redução a carta do governante aponta
que seria “junto ao Rio das Velhas [atual Rio Araguari], porque com ella se segu-
rará melhor aquelle caminho e ficasse menos exposto às hostilidades que nelle
tem feyto repetidas vezes o gentio Cayapó” (AHU. Cx.: 5, Doc.: 427).

Este aldeamento, além de receber os índios Araxás, teria também como função a
defesa da estrada dos Goiases das constantes incursões guerreiras realizadas
pelos Caiapós. Seria o segundo construído na região para este propósito, pois em
1748, o aldeamento de Rio das Pedras já havia recebido os Bororos.

Se partirmos do pressuposto analisado anteriormente com ressalvas, diga-se de


passagem, sobre a solicitação da construção de um aldeamento feito pelos índios
Araxás ao Pires de Campos, os ataques dos Caiapós poderia ter motivado este
pedido encaminhado às autoridades da Capitania de Goiás. A construção deste
aldeamento poderia significar, para os Araxás, maior segurança, já que estariam
contando com o auxílio dos “brancos”. Particularmente, ainda acreditamos que
haveria, por parte do sertanista, a vontade de subjugá-los assim como havia feito
com os Bororos.

Em 24 de Janeiro de 1751 Dom Marcos de Noronha remete uma carta ao rei


Dom José. Nela, a autoridade da capitania de Goiás reafirmou que o local mais
apropriado para o estabelecimento da aldeia dos índios Araxás seria “junto ao Rio

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Caiapós, Araxás, Bororos, Geralistas...
LIMA, Glaura Teixeira Nogueira; MORI, Lima, Robert

das Velhas, no mesmo caminho de São Paulo”. Os motivos da escolha deste local
foram sendo posteriormente enumerados pelo governador, pois o “cítio tinha todas
as comodidades que costumão agradar os gentios, como seja abundância de caça,
de peyxe e muitos cocos e todas as mais frutas silvestres de que utilizão e o país
hé abundante”. Este fragmento da carta nos permite notar a riqueza da fauna e da
flora da região, característica que obviamente era necessária para a subsistência
dos indígenas (AHU. Cx.: 6, Doc.: 465)

Em outra carta de Dom Marcos de Noronha endereçada ao rei Dom José, datada
de 13 de Abril de 1751, o governante da capitania de Goiás forneceu notícias
sobre a chegada dos dois padres que, juntamente com Antônio Pires de Campos
iriam cuidar da redução dos Araxás. A utilização deste aldeamento como ponto de
defesa da estrada do Anhanguera também foi reafirmado, pois:

a tal aldeia naquelle distrito ficaria no mesmo caminho que vem de São Paulo
para esta vila, defendido das grandes hostilidades que tem feito o gentio
Cayapó, não só aos moradores que nelle assistião, mas também aos viandan-
tes que por ele passavão” (AHU. Cx.: 6, Doc. 473).

Na correspondência de 29-12-1749 foi noticiada a chegada a Vila Boa de dois


padres da Companhia de Jesus que deveriam seguir para a região próxima ao Rio
das Velhas para que promovessem a redução dos Araxás (AHU. Cx.: 5, Doc.:
427). Na carta de 24/01/1751 consta que após a chegada do pedido de construção
do aldeamento feito pelos índios Araxás, as autoridades coloniais determinaram
“que o padre [jesuíta] José de Castilho passasse para o Rio das Velhas” (AHU.
Cx.: 6, Doc.: 465). Segue ainda uma descrição das benfeitorias que deveriam ser
construídas, determinando a ele “que fizesse cazas, huma capella, plantasse rossa
para que no tempo que se recolhesse o gentio achasse logo mantimentos [...]”
(AHU. Cx.: 6, Doc.: 465). Não há referência à existência de outro padre.

Os jesuítas chegaram ao Brasil em 1549, juntamente com Tomé de Sousa, primei-


ro governador geral, capitaneados por Manuel da Nóbrega. Buscavam a renova-
ção espiritual, a purificação das almas, a correção da ignorância das doutrinas, o
expurgo dos pecados e das superstições e, principalmente, defesa e a propagação
da fé católica. No Brasil os seus principais objetivos eram a catequese dos índios
e a construção das reduções (WRIGHT, 2006).

Em uma Provisão (cópia) do rei D. José, ao governador e capitão-general de


Goiás, conde dos Arcos, D. Marcos de Noronha, datada de 28 de Maio de 1753, o
rei afirma estar ciente “sobre as hostilidades q. o gentio Cayapó fizera ao da
nação Araxás estando para Aldeár (sic)”. (AHU. Cx.: 8, Doc.: 569). Portanto, os
índios Araxás não chegaram a habitar o aldeamento que estava sendo construído
para recebê-los, às margens do Rio das Velhas. A correspondência de 24/01/1751,

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

endereçada ao rei D. José por D. Marcos de Noronha, mostra-se esclarecedora


ao apontar os motivos que impediram os Araxás de serem aldeados, pois

o gentio Cayapó tinha feito tal hostilidade aos gentios Arachás, que não só lhe
fizerão huma grande mortandade, mas depois lhe cativarão todas as mulheres e
crianças as quais levarão para o seu alojamento, para as comerem porque sem-
pre que tem ocasião, se sustentão de carne humana (...) porque da nação Arachás
(...) os homens extinguiu o gentio Cayapó totalmente (AHU. Cx.: 6, Doc.: 465).

Portanto a dizimação dos Araxás ocorreu por intermédio dos Caiapós, ao contrá-
rio da versão até agora vigente, construída pelos memorialistas, que creditavam a
Inácio Correia Pamplona ou a Lourenço Castanho Taques tal feito. Veremos ago-
ra os motivos que nos levaram a esta conclusão.

Entre 1764 e 1765, Pamplona foi convidado pelo governador da capitania de Minas
para explorar os sertões localizados a oeste, próximos ao Sertão da Farinha Podre.
A autoridade política mineira estava interessada em promover a ocupação de novas
áreas mediante a utilização de gente ociosa, procurando também aumentar os rendi-
mentos auríferos da coroa com possíveis descobertas de novas jazidas. Após 1765,
Pamplona ainda realizou mais cinco entradas nesta região (SOUZA, 1999).

Por volta de 1782, Inácio Correia Pamplona estava atacando os Caiapós na cabe-
ceira do Rio das Velhas, atual Rio Araguari (GIRALDIN, 1997), portanto, em
região próxima à Serra da Canastra, onde se localizam as nascentes deste curso
d’água. Se analisarmos a primeira entrada deste sertanista, em 1765, decorreram
no mínimo 15 anos da dizimação dos Araxás, ocorrida a partir de informações
contidas nas documentações do Arquivo Ultramarino, entre 1749 e 1750, pelas
mãos dos índios Caiapós.

Se em 1782 Pamplona estava atacando uma população de índios Caiapós nas


cabeceiras do Rio das Velhas, em região ainda mais próxima do local habitado
pelos Araxás, o espaço temporal entre o extermínio destes índios e esta expedição
aumenta para, no mínimo, 32 anos. Mediante tais evidências, podemos concluir
ser bastante difícil creditar a Inácio Correia Pamplona a dizimação dos Araxás.

Conforme o trabalho de Odair Giraldin (1997), podemos afirmar que os Caiapós


não realizavam raptos nem adoções, ao contrário de outros povos indígenas, devi-
do à existência dos “grupos de descendência espacial” ou “clãs”. Mediante tais
características inerentes a este grupo étnico, seria impossível a integração de
estranhos ao grupo.

Também ao contrário do que afirma a carta do governador da Capitania de Goiás


de 24/01/1751, as mulheres e crianças não teriam sido raptadas para serem devo-

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radas (AHU. Cx.: 6, Doc.: 465) . Temos que considerar que as populações indíge-
nas do grupo lingüístico Macro Jê não realizam o ritual antropofágico. Este ritual
era praticado principalmente pelos povos Tupis, como os Tupinambás, que habita-
vam, principalmente a região da costa brasileira.

Devemos encarar estes relatos coloniais sobre o extermínio dos Araxás, com
parcimônia. O período em que esta documentação foi produzida, meados do sécu-
lo XVIII, coincidiu com o período mais intenso de combate aos Caiapós. Portanto,
poderia ser um meio utilizado pelas autoridades e sociedade coloniais, para justifi-
car os ataques através da utilização das guerra justas, as quais nos referimos
anteriormente, tratando dos Caiapós.

Concomitantemente aos embates ocorridos entre os Bororos capitaneados por


Antônio Pires de Campos e os Caiapós, e mesmo após estes confrontos, outros
aldeamentos e sítios indígenas foram surgindo ao longo da estrada do Anhanguera,
entre os rios Grande e Paranaíba. O número destes aldeamentos e sítios indígenas
ainda é controverso.

Em 1750, o aldeamento no Rio das Velhas que estava sendo construído pelo padre
José de Castilho para os índios Araxás, que como vimos não chegaram a ser
aldeados, recebeu os índios Bororos, e passou a ser denominado Santana do Rio
das Velhas.

Além de Rio das Pedras e Santana do Rio das Velhas, foi edificado o aldeamento
de Lanhoso, atualmente extinto, com recursos oriundos da Fazenda Real da Capi-
tania de Goiás (CHAIM, 1983). Convém ressaltar que entre 1748 e 1816, as
atuais regiões do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba constituíam a parte sul da
então capitania goiana.

Como se observa, os primeiros aldeamentos no Sertão da Farinha Podre foram


construídos para abrigar os índios “mansos”, principalmente os Bororos, traslada-
dos da Capitania de Mato Grosso por Pires de Campos. Sua criação coincidiu
com o período de “plena abundância das minas auríferas e florescimento febril
dos arraiais” (RAVAGNANI, 1986-7, p. 120). Daí sua importância na defesa dos
caminhos que ligavam Goiás à Capitania de São Paulo, tendo em vista a coloniza-
ção e o escoamento de pedras e metais preciosos.

Outros aldeamentos foram surgindo ao longo do traçado da estrada do Anhanguera,


como Piçarrão, Estiva, Boa Vista, Rocinha, Lanhoso, Uberaba Falsa e Baixa. Rio
das Pedras, Santana do Rio das Velhas e Piçarrão contavam com capelas, o que
indicava sua oficialidade, pois indicava reconhecimento por parte das autoridades
religiosas. As outras povoações indígenas podem ser consideradas como “desta-

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
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camento dos núcleos originais, resultado de um processo de dispersão centrífuga


da população aldeada” (LOURENÇO, 2005, p. 56).

Com o advento do “Diretório que se deve observar na Povoações dos Índios do


Pará e Maranhão”, publicado em 1754 pelo Marquês de Pombal para estas capi-
tanias e estendidas, em 1758, para as demais existentes na colônia portuguesa, os
índios foram retirados da tutela dos jesuítas. O controle dos aldeamentos foi re-
passado ao controle secular e o casamento entre índios e “brancos” foram incen-
tivados, assim como a presença destes em terras indígenas.

Os índios passaram a ser “cidadãos ativos na tarefa do povoamento” (CHAIM,


1983, 76) a partir do intuito de transformar “os núcleos indígenas em povoados e
vilas” (LOURENÇO, 2005, p. 71). Transferências ou êxodos de populações indí-
genas ocorreram no Sertão da Farinha Podre. Como exemplo, temos a ocupação
do aldeamento de Santana do Rio das Velhas pelos Xacriabás, vindos do aldeamento
de São Francisco Xavier do Duro (CHAIM, 1983). Assim como também relatou
Saint Hilaire, sobre a transferência mal sucedida de índios de Rio das Pedras para
o aldeamento de Nova Beira, na Ilha do Bananal, no início do século XIX (SAINT
HILAIRE, 1975).

O século XIX foi o período em que a “questão indígena’ (...) deixou de ser uma
questão de mão-de-obra, para se converter essencialmente numa questão de ter-
ras” (CUNHA, 1992b, p. 4). Houve, portanto, uma mudança no foco da explora-
ção dos indígenas, do âmbito do trabalho escravo, que não se extinguiu, passando
para as questões relacionadas à posse e espoliação de suas terras.

A questão da terra foi exatamente o ponto central da “colonização” do Sertão da


Farinha Podre pelos “brancos”, ocorrendo embates entre índios e não índios, aqui
compreendidos como a população geralista, que migrava em decorrência do esgo-
tamento das terras de cultura e da queda da mineração. No ano de 1809, o gover-
nador da Capitania de Goiás, Marquês de São João da Palma, nomeou o sargento-
mor Antônio Eustáquio da Silva e Oliveira, “Comandante Regente dos Sertões da
Farinha Podre” (PONTES, 1978). Partindo do Arraial de Nossa Senhora do Des-
terro do Desemboque, importante núcleo povoador do século XVIII do Sertão da
Farinha Podre (porém já em processo de decadência), ele empreendeu duas ex-
pedições com destino à região oeste deste local.

A primeira ocorreu possivelmente em 1810. Nesta primeira incursão, durante o


percurso, enfrentaram o ataque de animais silvestres e dos índios Caiapós. A
presença destes indígenas era confirmada pelas queimadas e pelos ranchos en-
contrados nos campos (SAMPAIO, 2001).

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Caiapós, Araxás, Bororos, Geralistas...
LIMA, Glaura Teixeira Nogueira; MORI, Lima, Robert

Dois anos mais tarde, Antônio Eustáquio decide empreender nova expedição no-
vamente na direção oeste do Desemboque. Nesta ocasião, o sargento-mor visitou
o Arraial da Capelinha, fundado por José Francisco de Azevedo às margens do
Ribeirão do Lajeado, constituído por aproximadamente uma dezena de choupanas
e uma capela destinada a Santo Antônio e São Sebastião (PONTES, 1978). No-
tando a ausência de solos férteis e de boas aguadas, o comandante decidiu avan-
çar cerca de 15 quilômetros a oeste e, na confluência do Córrego das Lajes com
o Rio Uberaba, estabeleceu a “Chácara Boa Vista”, que localizava-se bem próxi-
mo do aldeamento de Uberaba Falsa, habitado pelos descendentes dos índios
Bororos, aldeados por Antônio Pires de Campos em meados do século XVIII.
Antônio Eustáquio, portanto, instalou-se em terras aldeanas, dentro daquela faixa
de três léguas em torno da estrada do Anhanguera. Estas terras concedidas aos
índios “eram inalienáveis [mas] os luso-brasileiros podiam estabelecer-se nelas na
qualidade de agregados, com o consentimento de seus legítimos donos e a ratifica-
ção dos chefes destes” (SAINT HILAIRE, 1975, p. 131).

Posteriormente, inúmeras famílias convidadas por Antônio Eustáquio decidiram


instalar-se nas proximidades das terras do potentado, dando origem ao Arraial
da Farinha Podre, futura cidade de Uberaba. Enquanto Farinha Podre crescia
paulatinamente, o Arraial da Capelinha entrava em processo de decadência,
inclusive sendo palco de um processo de êxodo, cujas causas ainda são contro-
versas.

Borges Sampaio aponta como causa desta mudança, as águas e a fertilidade do


solo (SAMPAIO, 2001). Hildebrando Pontes cita que a preponderância dos negó-
cios públicos assim como a elevada posição social de Antônio Eustáquio, motiva-
ram a mudança do Lajeado para Farinha Podre (PONTES, 1978). Outro motivo
apontado por Edelweiss Teixeira, colhido mediante relato oral, diz respeito a um
ataque de índios Caiapós ao Arraial da Capelinha, tendo sido morto o capelão
(TEIXEIRA, 2001). Em 1817 são transferidos os oratórios da Capelinha para
Farinha Podre (PONTES, 1978).

Convém ressaltar que já em 1816 o Sertão da Farinha Podre havia sido transferi-
do para a jurisdição da Capitania de Minas Gerais. Em 1819, nomeado como juiz
de sesmarias, foi concedido a Antônio Eustáquio “o poder de estabelecer os limi-
tes das sesmarias e posses, o que foi usado em favor dos fazendeiros – e em
prejuízo dos índios” (LOURENÇO, 2005, p. 156). Esta foi uma das característi-
cas da política indigenista no século XIX, pois a “desenvoltura do poder local
aumenta na razão direta da distância da corte” (CUNHA, 1992a, p. 134). Ou seja,
os governos locais exerciam importante papel na espoliação das terras indígenas,
atendendo aos mais diversos interesses.

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
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As ações de Antônio Eustáquio contaram com a conivência não só do governo da


Capitania de Minas Gerais como também dos colonizadores geralistas que aqui
estavam se instalando nas terras aldeanas. Na primeira metade do século XIX,

a população indígena assentada nos aldeamentos, foi expulsa por sitiantes e


fazendeiros com o apoio das câmaras municipais, e as terras da faixa aldeana
expropriadas. Até 1823, os índios haviam perdido a porção situada ao sul do
Rio das Velhas. Na segunda metade do século XIX, fazendeiros araxaenses os
retiraram da área que lhes havia restado entre o Rios das Velhas e o Paranaíba
(LOURENÇO, 2010, p. 22).

Possivelmente, os índios destes aldeamentos cujas terras estavam sendo espolia-


das pelos geralistas sofreram um processo de “caboclização, isto é, a fusão com o
campesinato pobre da região. Ao emigrar dos aldeamentos, fugiam da pobreza, do
esgotamento das terras, da violência e do estigma de casta de índios” (LOUREN-
ÇO, 2005, p. 168)

Quanto aos Caiapós remanescentes, uma parte considerável destes indígenas fo-
ram aldeados pelo padre da Congregação da Missão de São Vicente de Paulo,
Leandro Rabelo Peixoto e Castro (PONTES, 1978) ainda na década de 1820, no
pontal do Triângulo Mineiro, em Campo Belo, atual cidade de Campina Verde.

Após o aldeamento destes índios que opuseram tenaz resistência aos colonizado-
res “brancos”, foi possível liberar terras para a colonização, permitindo também a
abertura da estrada do Piquiri, que ligava Uberaba a Campo Grande da Vacaria,
atual cidade de Campo Grande, hoje localizada no estado de Mato Grosso do Sul
(LOURENÇO, 2005).

Segundo o já citado trabalho de Alexandre Barbosa (1918), em 1830 existiram


alguns aldeamentos habitados pelos Caiapós na região do Triângulo Mineiro:
Macaúba, localizada às margens do Rio Paranaíba; São Francisco de Sales (no
atual território da cidade homônima), cujos Caiapós que o habitavam se transferi-
ram para a Aldeia Nova e depois para Água Vermelha, em território da atual
cidade de Iturama. Os descendentes destes índios Caiapós viveram neste local
até por volta da década de 1950.

Assim, as relações interétnicas ocorridas no Sertão da Farinha Podre, decorren-


tes do contato entre indígenas e entre estes e os “brancos”, mostraram-se
conflituosas e violentas. A dizimação dos índios Araxás pelos Caiapós; os Bororos,
a serviço dos “brancos” e capitaneados por Antônio Pires de Campos, dizimando
e afastando os Caiapós da região da estrada do Anhanguera, sendo aqueles pos-
teriormente alojados em aldeamentos ao longo desta via; e o que era “solução”
(para as autoridades coloniais) em meados do século XVIII, a construção destes

234
Caiapós, Araxás, Bororos, Geralistas...
LIMA, Glaura Teixeira Nogueira; MORI, Lima, Robert

aldeamentos, torna-se um “empecilho” (para os geralistas) durante a colonização


“branca” da região no início do século XIX, na medida em que ocorrem os confli-
tos entre estes e os índios.

Estes acontecimentos históricos configuraram as atuais regiões do Triângulo Mi-


neiro e Alto Paranaíba, geo-sócio-historicamente. Geograficamente, na medida
em que cidades foram constituídas próximas aos aldeamentos estabelecidos ao
longo da estrada do Anhanguera, como Indianópolis (aldeamento de Santana do
Rio das Velhas) e Cascalho Rico (aldeamento de Rio das Pedras), e mesmo Uberaba
(Uberaba Falsa). Socialmente, a partir do processo de caboclização, ocorrendo a
mestiçagem entre as etnias branca e indígena. E por fim, historicamente, com o
desenrolar do processo histórico que, partindo do presente em direção ao passado,
permite a produção de conhecimento acerca da história indígena, das identidades,
das memórias construídas e, por fim, da historiografia relacionada à temática.

Fontes Manuscritas

Arquivo Ultramarino – Projeto Resgate – Goiás. AHU – Cx.: 6, Doc.: 427. (1749);
AHU – Cx.: 6, Doc.: 465. (1751); AHU – Cx.: 6, Doc.: 473. (1751); AHU – Cx.:
7, Doc.: 502. (1752); AHU – Cx.: 8, Doc.: 569. (1753);

Referências

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
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238
RESENHA

239
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v. 17, n.1, n.2/2012

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“FOI ASSIM QUE CONHECI MEU AVÔ...”1 :
AUTOBIOGRAFIA DA CRIANÇA QUE NASCERÁ
PARA SER CARPINTEIRO

ULISSES, Ivaneide Barbosa*

MARTINS, José de Souza. Uma Arqueologia da Memória Social. Autobio-


grafia de um Moleque de Fábrica. São Paulo: Ateliêr Editorial, 2011. 464 p.

O escritor da obra supracitada é um conhecidíssimo intelectual brasileiro, dono de


um privilegiado currículo como professor de sociologia e pesquisador. José de
Souza Martins aposentou-se como professor da Universidade de São Paulo (USP)
– Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – em 2003, mas continua na
ativa enquanto pesquisador e escritor. Talvez a obra mais conhecida deste soció-
logo seja o “O Poder do Atraso” (MARTINS, 1994). Mas, além desta, são mais
de vinte publicações desde o primeiro livro, quando José de Souza Martins tinha
18 anos e ainda era trabalhador numa fábrica de cerâmica em São Paulo.

A obra, aqui resenhada, é o seu mais recente livro e recebido (por essa, sua leitora)
com grata alegria, pois se trata de uma “escrita de si”, sensível, em que o autor
articula trajetória pessoal, familiar, por meio de sua concepção de cultura, cultura
coletiva ou social. José de Souza Martins nos entrega, publicamente, sentimentos,
segreda impressões sobre outros e sobre si mesmo em um “despudor” paradoxal, ou
seja, maravilhoso e respeitoso. Ao terminar de ler, ficamos com a impressão de que,
em alguma medida, a memória narrada por ele, a nós também pertence (ou pelo
menos, não é estranha a boa parte dos brasileiros que viveram o século XX).

* Doutorada em História/UFMG. E-mail: ivaulisses@yahoo.com.br.

241
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v. 17, n.1, n.2/2012

Minha geração é a dos filhos da Era Vargas, a geração dos que viveram a
grande e complicada transição do Brasil pós-escravista do café para o Brasil
da grande indústria; a geração das crianças e adolescentes que nasceram para
o trabalho precoce, de diferentes modos, segundo a situação social de cada
um, presas do labirinto da transição social (MARTINS, 1994, p. 447).

A obra, em apreço, se divide em 14 partes, tendo ainda um prólogo e uma conclu-


são, em que, numa teia intrincada de fatos e acontecimentos, José de Souza Martins
vai desvendando a trama das memórias de sua família (portugueses, espanhóis e
certa descendência muçulmana), “expulsa” da Europa pela pobreza, para traba-
lhar no Brasil na lavoura do café em São Paulo. O Sociólogo saiu à cata de saber
quem é comboiando o sentimento de ausência deixada com a morte do pai, quan-
do o autor ainda tinha cinco anos de idade, comboiando silêncios em torno de
curiosidades do mundo da infância não respondidas na época. E acrescenta ainda:

Nós que procedemos do grande e ignorado mundo dos pobres, seres residu-
ais da sociedade tradicional e pré-moderna que foi largando suas gentes por
caminhos e veredas da transição para o mundo moderno, nascemos coadju-
vantes da trama da vida, no meio do drama que já estava sendo encenado.
Nossas pressas pessoais só têm sentido na lentidão do acontecer histórico
(MARTINS, 1994, p. 443)

A narrativa de José de Souza Martins combina com as possíveis análises sobre “o


ato de narrar”, como nas dimensões traçadas por Paul Ricouer (2010), sendo que
para o filósofo, o vivido só faz sentido quando narrado, pois a narração apresenta
uma compreensão desse mesmo vivido a quem narra, mas também a quem lê/
escuta.

E, é assim, que não falta na narrativa autobiográfica de Martins a análise acadêmica


de seu autor, seus preceitos teóricos, metodológicos, suas visões de mundo. Nessa
construção criativa, a todo o momento, José Martins coloca os trajetos pessoais
dentro de uma perspectiva do social, o “eu” é ao mesmo tempo o “nós”, e nesse rico
processo, nos explica a lenta ascensão familiar e assevera categoricamente:

Ninguém subia na vida sozinho [...] O progresso individual como marco da


modernização e das possibilidades pessoais na sociedade industrial é ficção.
Só família, nunca sozinhas, ligadas a grupos sociais e instituições, como a
vizinhança e, eventualmente, uma igreja, qualquer que seja ela. Sem essas
referencias, a vida fica muito complicada (MARTINS, 1994, p. 281)

Retomamos, outrossim, Paul Ricoeur (2010) nas palavras do professor mineiro


José Carlos Reis, no que concerne ao seu entendimento sobre a narrativa
ricoueriana: “A necessidade em mim e fora de mim não é só percebida, represen-
tada, mas assumida como minha situação, minha condição desejante no mundo”

242
Resenha: “Foi assim que conheci meu avô...” :
ULISSES, Ivaneide Barbosa

(REIS, 2011, p. 259). É assim, que nos parece, que o Sociólogo narra a sua
história; ele cria, simultaneamente, uma teia social que denúncia e anuncia as suas
próprias ideias para o futuro, diz-nos qual a sua “condição desejante no mundo”.

Esta narrativa autobiográfica é [...] uma narrativa etnográfica, um documento e


uma explicação, um entendimento do que se passou na formação da classe
trabalhadora no Brasil, na perspectiva do testemunho e da experiência pessoal
[...] O passado não está tão longe assim [...] (MARTINS, 1994, p. 441)

É um Sociólogo militante. Ao narrar a sua trajetória, parece, ele mesmo, não acre-
ditar que tenha chegado tão longe do destino posto ao “moleque de fábrica”, que
ao nascer foi levantado ao alto pelos braços do pai e vaticinado por este como
futuro trabalhador de carpintaria. Tal história, contada muitas vezes por familia-
res, foi lembrada no momento do juramento em 1993 ao assumir a Cátedra Simón
Bolivar da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Escreve:

Descobriríamos, então, que favelas, cortiços, bairros operários, vilarejos ru-


rais, habitações isoladas da roça, estão cheios de crianças promissoras, que
só precisam de uma oportunidade, como a que eu tive, para irem além dos
limites sociais de seu nascimento. Certamente há, até mesmo, gênios potenci-
ais nesses lugares do supostamente negativo (MARTINS, 1994, p. 453)

A narrativa começa em um lugarejo em Portugal, em 1974, quando já pesquisador,


participa de um evento naquele país, decide, por conta própria, viajar para o inte-
rior, com o objetivo de conhecer a cidade de nascimento do pai. Ao chegar ao
vilarejo, realiza a primeira das descobertas que exibirá ao longo do enredo do livro:
seu pai era filho de padre. Descobre-se, em meio a uma história de tabus, e com-
preende o silêncio dos familiares: “silêncio constrangedor”, “envergonhado”. E,
nesse ponto da narração, mais precisamente na página 56 da obra em destaque,
ele expõe a fotografia do avô padre, no caixão de morte e nos deixa comovidos
confidenciando: “foi assim que conheci meu avô” (MARTINS, 1994, p. 57).

A partir daí, José de Souza Martins, desenrola uma narrativa que apresenta os
dois lados da família (paterna e materna), por meio de encontros com pessoas e
objetos. Sua família se constrói no que o sociólogo diz ser um mundo de “[...] certo
realismo fantástico da cultura e nas mentalidades populares” (MARTINS, 1994,
p. 10); são pessoas (o autor, igualmente) que atravessam o século XX, no limiar
de representações de mundos díspares: o industrial e o artesanal; o urbano e o
rural; o letrado e o analfabeto.

Trajetórias inseridas na problemática dos des-territorializados que são os migrantes


(os simples, os pobres, os corridos), que perdem as referências de espaço e tempo
coletivos e têm que refazer-se cultural e socialmente para darem conta de novas

243
REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

demandas. José Martins de Souza reflete:

A cronologia dos simples estende-se pelo longo e lento tempo da formação da


sociedade moderna, o tempo que nos junta e nos separa. Por isso, o voltar
atrás para compreender o incompreensível agora e o possível adiante. Bem
pensadas as coisas, é a finitude que dá sentido ao que começa na vida e na
história (MARTINS, 1994, p. 10)

A história do pobre ganha sentido na história lenta e de longa duração, ocorrida no


cotidiano do trabalho; o cientista social a desenha por meio das suas próprias
experiências e de familiares no quadro, denominado pelo professor, como da cul-
tura popular. Como no exemplo, da avó materna, da qual ouvia a crônica familiar
que chegava até o século XVIII, memórias dela e de outros que a mesma ouvira
contar ou ouvira dizer.

Encontra, o autor, dimensões culturais do cotidiano como a divisão do mundo do


trabalho por gênero, mulher na cozinha e homem na roça. O trabalho infantil, dado
certo na aprendizagem do pobre. Os laços de compadrio, entre fazendeiros e
colonos, na Europa e depois no Brasil, esticados para o paternalismo nas relações
operário e patrão, já no mundo da fábrica e do urbano. É o escritor de “Poder do
Atraso” (1994) nos alertando na sua condição de “desejante” para a continuidade
de uma Sociedade e Estado marcados pelo mando dos donos da terra e manten-
do-se conservadora e clientelista na transição do mundo rural para o urbano.

Lembra-nos do “infanticídio involuntário” comum na vida dos pobres, exemplifica


com um caso da própria mãe, que “furtara” o remédio para vermes reservado à
irmã, pois o dinheiro só dava para comprar o purgante para uma das filhas. Na
sequência, o autor divaga contando-nos, quando aluno do curso de Ciências Soci-
ais e trabalhava no setor de pesquisas de mercado de uma grande empresa de
leite em pó, teve evidências que o leite de um programa social destinado ao Nor-
deste do Brasil às crianças pobres, acabava consumido pelo marido/pai, com o
argumento que era ele que trabalhava, portanto a necessidade de priorizá-lo com
o melhor alimento.

Enfim, a obra de José de Souza Martins se propõe a ser uma autobiografia de uma
criança e de um jovem, pois a narrativa se encerra pouco depois da sua saída da
fábrica para tentar uma educação distante do mundo do operariado, escreve-nos,
“Memórias de operários, sobretudo de operários-crianças, são certamente raras,
se é que existem” (MARTINS, 1994, p. 448). Alguns trabalhos hoje vêm
problematizando a “invisibilidade” da criança e do jovem nas pesquisas acadêmi-
cas como de Helena Abramo e Lúcia Rabello Castro, ambas da psicologia. As
Ciências Sociais também tem se interessado pelo tema, inclusive com a presença
de simpósios temáticos e cursos de curta duração, em encontros da área e

244
Resenha: “Foi assim que conheci meu avô...” :
ULISSES, Ivaneide Barbosa

exemplificamos com o trabalho organizado pela historiadora Mary Del Priori “His-
tória da Criança no Brasil” (1999).

É inegável que, entre os muitos aspectos na obra de José de Souza Martins que
podem chamar a curiosidade ou a atenção privilegiada do leitor, salientei dois, que
me comoveram mais fortemente na leitura desta obra: os aspectos relacionados à
própria narrativa de si do autor e a sua perspectiva de dar visibilidade a uma fase
da vida do ser humano considerada “nublada”, tanto no que diz respeito à
historiografia quanto na experiência de vida de cada um de nós.

Mas, existem ainda outros aspectos significativos no livro do sociólogo que mere-
cem ser conferidos por diferentes leitores, como é caso das grandes personagens
que surgem página a página como o avô postiço, o próprio pai, sua tia Anna e
tantos outros; mas também o próprio autor o “moleque de fábrica” com sua astú-
cia diária.

Referências

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RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. SP: Martins Fontes, 2010.

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

246
NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ORIGINAIS

Informações gerais

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tória, inéditos, em português, de autores (discentes, docentes e funcionários) da
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 artigos;

 resenhas;

 traduções de artigos recentes (prazo de 2 anos da primeira publicação), de inte-

resse relevante e acompanhadas de autorização do autor(es) e da revista em


que o mesmo foi originalmente publicado;
 comunicações;

 entrevistas de reconhecido valor acadêmico.

Somente serão aceitas, quando houver, uma resenha, uma tradução, uma comuni-
cação e uma entrevista em cada edição.

Apresentação dos originais


Os trabalhos deverão ser entregues em duas vias, constando apenas em uma
delas a identificação do(s) autor(es), e em um CD; apresentados em letra 12,
fonte Times New Roman, espaço um e meio, folha A4, margens 2,5 cm, versão
Word for Windows 7.0 ou inferior, de dez a vinte laudas para os artigos e tradu-
ções, até oito para as entrevistas, até cinco para as resenhas e três para as comu-
nicações. A Revista aceita contribuições em fluxo contínuo.

Estrutura do trabalho
Os artigos e traduções deverão obedecer à seguinte seqüência:
 Título;

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v. 17, n.1, n.2/2012

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 Resumo; Abstract;
 Palavras-chaves; Keywords;
 Texto - usar para as citações, bem como para as referências a autores
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texto entre aspas; com mais de três linhas devem vir destacadas do texto, em
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mos serão destruídos.

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 Escolha do tema, no caso de edições temáticas (dossiês)

 Relevância do tema

 Coerência do artigo

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
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CAMINHOS DA HISTÓRIA Montes Claros v.15, n.2 p.1-152 2010


COMUNICAÇÕES E CLIENTELISMO NO BRASIL (1964-1989)
Eduardo Mei; Suzeley Kalil Mathias............................................................................................................................................................................. 7
LIBERDADE E LIBERTAÇÃO: UMA LEITURA DA INCONFIDÊNCIA MINEIRA
Marco Antonio Silveira.............................................................................................................................................................................................. 27
A CASA DE MISSÃO NA REESTRUTURAÇÃO DO CATOLICISMO NO BRASIL. UMA ABORDAGEM
Franscino Oliveira Silva............................................................................................................................................................................................... 41
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Murilo Fahel; João Gabriel Teixeira; Bruno Cabral................................................................................................................................................... 81
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A “CARTA FILOSÓFICA” DE CHAADAEV: O “TIRO NO ESCURO” QUE DETONOU O DEBATE ENTRE OCIDENTALISTAS E
ESLAVÓFILOS NA RÚSSIA
Angelo Segrillo..............................................................................................................................................................................................................113
O ACORDE-DROYSEN: ANÁLISE DE UM PERFIL HISTORIOGRÁFICO A PARTIR DE UMA METÁFORA MUSICAL
José D’Assunção Barros................................................................................................................................................................................................123
O ENIGMÁTICO MUNDO DE FRANZ KAFKA (1883-1924) - Diogo da Silva Roriz.............................................................................................143

CAMINHOS DA HISTÓRIA Montes Claros v.16, n.1 p.1-177 2011


AS CRUZADAS E O REINO CRISTÃO ARMÊNIO DA CILÍCIA - Lincoln ETCHEBÉHÈRE-Júnior; Thiago Pereira de Sousa LEPINSKI.............. 7
ARBÍTRIO E DESMANDO NO MÉDIO SOLIMÕES - Luís Carlos Valois........................................................................................................... 25
A PRESENÇA INDÍGENA EM RORAIMA: DA COLONIZAÇÃO À CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO
Raimunda Maria Rodrigues Santos; Marília Gomes Ghizzi Godoy............................................................................................................................ 41
PODER, TRADIÇÃO MILITAR E ARMAS NO CONTEXTO DAS MINAS SETECENTISTAS: INFLUÊNCIAS EUROPÉIAS E INDÍGE-
NAS - Izabella Fátima Oliveira de Sales; Arnaldo José Zangelmi............................................................................................................................. 61
PERMANÊNCIAS E DESCONTINUIDADES NAS BARRANCAS DO VELHO CHICO: UM ESTUDO DE HISTÓRIA LOCAL NO MU-
NICÍPIO DE JANUÁRIA(MG) - Iara Toscano Correia; Maria Clara T. Machado.................................................................................................. 77
FAZENDA DAS QUEBRADAS – PATRIMÔNIO CULTURAL - Simone Narciso Lessa; Áurea Viviane Fagundes Silveira.................................. 103
CAMPANHA DA LEGALIDADE: SIGNIFICADO E SIMBOLISMO PARA O ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (RS)
Daniel Arruda Coronel; Airton Lopes Amorim.............................................................................................................................................................. 117
OS NÓS DE CULTURAS: EXPERIÊNCIAS DE DESIGUALDADE NOS MODOS DE VIVER A CIDADE - Sheille Soares de Freitas........ 127
TRABALHADORES POBRES (?): NOTAÇÕES SOBRE PESQUISA EM HISTÓRIA, VIDA URBANA E CONDIÇÕES DE CLASSES
(UBERLÂNDIA/ MG) - Sérgio Paulo Morais.......................................................................................................................................................... 147
FATORES EXPLICATIVOS DA MOBILIDADE SOCIAL E DA REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES DE RENDA NO BRASIL: 1981 A
2007 - Luciene Rodrigues.............................................................................................................................................................................................. 161

CAMINHOS DA HISTÓRIA Montes Claros v.16, n.2 p.1-157 2011


DOSSIÊ: “COISAS DE CIDADE: DIÁLOGOS CULTURAIS E INTERDISCIPLINARES”
Organizadores: Márcia Pereira da Silva; Carlos Martins Junior........................................................................................................................... 9
A CIDADE DESEJADA E A CIDADE POSSÍVEL: A CONSTRUÇÃO DA URBE REPUBLICANA - Jadir Peçanha Rostoldo....................
OS ÁLIBIS DO CONSUMO: ANÁLISE SOBRE A MENSAGEM PUBLICITÁRIA DE ELETRODOMÉSTICOS EM PERIÓDICOS DO
RECIFE DOS ANOS 1930 - Kátia Medeiros de Araujo; Tiaggo Correia Cavalcanti de Morais................................................................................ 11
LIMA BARRETO E A “RECONSTRUÇÃO” DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: UMA ANÁLISE HISTÓRICA DO ROMANCE VIDA
E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ - Carlos Alberto Machado Noronha; Rinaldo Cesar Nascimento............................................................ 25
O INTENDENTE E A CIDADE: MODERNIZAÇÃO E URBANIZAÇÃO EM CAMPO GRANDE (1921-1923)
Márcia Pereira Silva; Carlos Alexandre Barros Trubiliano...................................................................................................................................... 43
O SERTÃO DAS MINAS E O PROGRESSO CITADINO: REFLEXÕES SOBRE A AÇÃO POLÍTICA POPULAR NO INÍCIO DA REPÚ-
BLICA - Alysson Luiz Freitas de Jesus........................................................................................................................................................................ 59
OS ARMAZÉNS DE SECOS E MOLHADOS E A CÂMARA MUNICIPAL DA CIDADE DE IRATI-PR, 1907-1920
Neli Maria Teleginski; Valter Martins........................................................................................................................................................................... 71
VIAGEM DAS COISAS E DAS IDÉIAS: PORTO, EMBARCAÇÕES E PRODUTOS IMPORTADOS NOS MEADOS DA BELÉM
OITOCENTISTA - Mábia Aline Freitas Sales; Leila Mourão.................................................................................................................................... 87
UMA CIDADE SOB MÚLTIPLOS OLHARES: AUTORIDADES PÚBLICAS, SENHORES E ESCRAVOS EM BELÉM DO GRÃO-PARÁ
(1871-1888) - José Maia Bezerra Neto; Luiz Carlos Laurindo Junior......................................................................................................................... 101
ARTIGO
OS REGIMES DE WELFARE DE ESPING-ANDERSEN E SUA DEMONSTRAÇÃO NO COTIDIANO DE EUA, CANADA, FRANÇA,
INGLATERRA, CUBA E IRLANDA – UMA ANÁLISE DE SICKO E INSIDE I’M DANCING
Gerson Oscar de Menezes Júnior............................................................................................................................................................................ 139

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REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA
v. 17, n.1, n.2/2012

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