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Salah H. Khaled Jr.

Videogame e violência
Cruzadas morais contra os jogos eletrônicos no
Brasil e no mundo

1ª edição

Rio de Janeiro
2018

J1268-01(CIV.BRAS.).indd 3 26/03/2018 15:40:49


Copyright © Salah H. Khaled Jr., 2018

Design de capa: Anderson Junqueira

Imagens de capa: Andrey Popov/iStock e Natsco/iStock.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Khaled Jr., Salah H.


K21v    Videogame e violência: cruzadas morais contra os jogos
eletrônicos no Brasil e no mundo/Salah H. Khaled Jr. – 1ª ed. –
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
   504 p.: il.; 23 cm.

  Inclui bibliografia
  ISBN 978-85-200-0989-5

   1. Comunicação de massa. 2. Fantasia na comunicação de massa.


3. Violência na comunicação de massa. 4. Criminologia. I. Título.

17-46578 CDU: 343.2

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Impresso no Brasil
2018

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Shall we play a game?

– Joshua (Jogos de guerra, 1983)

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Sumário

Prelúdio: Videogame e violência 13

Fase 1. Pré-história: as primeiras cruzadas morais contra os jogos


eletrônicos
As regras do jogo 25
Os empreendedores morais e as cruzadas contra as
histórias em quadrinhos e o rock 32
Death Race como esboço inicial do pânico moral:
relato da gestação de uma cruzada contra os games 40
Custer’s Revenge e Chiller: micróbios do discurso
de ódio nos jogos eletrônicos 71
Prenúncios de uma criminalização cultural futura:
flertes iniciais com a temática do crime nos games 81
Mortal Kombat, Night Trap e o surgimento da ESRB:
entra em cena o segundo estágio do pânico moral 86
Wolfenstein 3D e Doom: o advento dos “simuladores
de assassinato”? 102
Os ventos do pânico moral chegam aos jogos de
computador: o caso de Phantasmagoria 108
Carmageddon: relato de uma epidemia mundial de
pânico moral 112

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Fase 2. Tiros em Columbine e atentado no Morumbi Shopping: a
consolidação do pânico moral
Doom e a tragédia de Columbine: a acentuação da
criminalização cultural e o advento do terceiro
estágio do pânico moral 127
Os atiradores nas escolas e sua motivação: o limitado
“lugar” dos games na discussão 154
Os músculos judiciais do pânico moral são flexionados:
o processo como campo de disputa de significado e
ritual de luto familiar 162
Duke Nukem 3D e o atentado no Morumbi Shopping:
o pânico moral avança no Brasil 170
O ativismo judicial a serviço da criminalização cultural:
o banimento de Duke Nukem 3D, Doom,
Mortal Kombat, Requiem, Blood e Postal 173
A recepção do pânico moral pelo Legislativo: os projetos
de lei que criminalizam os games no Brasil 183

Fase 3. A mercantilização do crime e a virtualidade real da guerra:


matéria-prima para a circularidade cultural do pânico moral?
O crime como mercadoria e o marketing da transgressão:
o pânico moral adquire uma nova dimensão 197
Grand Theft Auto: a liberdade e a ruptura com o tédio
da vida contemporânea 207
A criminalização cultural e a manufatura intencional
do pânico: uma nova derivação do pânico moral 220
Criminalidade digital e violência real: algumas
considerações com base nas profecias que se
autorrealizam e na teoria da associação diferencial 231
Manhunt e o caso Warren Leblanc 248
A criminalização cultural de Bully e sua proibição
no Brasil 253

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O banimento de The Crims 259
Counter-Strike e os massacres de Virginia Tech e
Northern Illinois: a escalada do pânico moral e a
proibição do jogo no Brasil 262
Call of Duty: guerras virtuais, pânicos propositais e
atentados reais na Rússia, Holanda e Noruega 277
A virtualidade da guerra e a realidade da virtualidade:
os casos de Kuma\War, America’s Army, Under Ash,
Under Siege e Special Forces 288
Quando a fronteira entre o virtual e o real é borrada:
Medal of Honor e Six Days in Fallujah 292
“Não atire nos civis”: para a Cruz Vermelha, a
jogabilidade de games militares deve aderir a leis
internacionais sobre conflitos armados 298

Fase 4. O lado negro da força: quando os discursos de ódio se


hospedam nos games
A utilização dos games como veículos para a disseminação
de ódio 311
RapeLay: o jogo de estupro digital 313
Plataformas virtuais de manifestação de ódio ao
diferente: os casos de Postal, Ethnic Cleansing,
Left Behind: Eternal Forces e Muslim Massacre:
The Game of Modern Religious Genocide 315
JFK Reloaded: o verdadeiro simulador de assassinato? 322
Jogos baseados em massacres escolares: Super
Columbine Massacre RPG!, V-Tech Rampage e
School Shooter: North American Tour 2012 324
Hatred: o próximo estágio dos games estruturados
em torno de massacres? 331

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Fase 5. Videogame, agressividade e dessensibilização: verdade ou
ilusão?
Os jogadores e o que está em disputa neste jogo: panorama
inicial da questão 337
O General Aggression Model e a hipótese de causação: os
games violentos provocam agressividade e
dessensibilização? 340
Molhos picantes e disparos sonoros em adversários
inexistentes: finalmente a comprovação científica
da relação de causa e efeito? 344
Desconstrução das pesquisas que sustentam a relação
de causa e efeito: colocando o General Aggression
Model e seus resultados em questão 359

Fase 6. A batalha decisiva e o contra-ataque dos empreendedores


morais
O veredito da Suprema Corte dos Estados Unidos: estado da
Califórnia (Edmund G. Brown, governador) versus The
Entertainment Merchants Association e Entertainment
Software Association 395
O massacre na escola de Sandy Hook e o reaparecimento
do pânico moral 409
O atentado na base naval de Washington: causa para que
os gamers sejam submetidos a monitoramento estatal? 417
O massacre de Realengo 422
O caso Pesseghini e a criminalização cultural de
Assassin’s Creed 426
O pânico persiste. Até quando? 448

Epílogo
Em defesa de uma inigualável experiência do impossível 459

Agradecimentos 463
Créditos finais 465

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Prelúdio

Videogame e violência

Praticamente todo livro que investiga um problema relativo aos games


começa com uma espécie de justificativa. É preciso explicar por que
o autor optou ou não pelo contato direto com seu objeto de pesquisa.
Em outras palavras, ele jogou games extensivamente como parte do
processo de reunião de subsídios para a elaboração da obra em ques-
tão? Participou, mesmo que apenas por alguns momentos, do universo
gamer, compartilhando experiências com jogadores? Como justificar
perante o leitor a opção escolhida, seja ela pela imersão direta, seja pelo
distanciamento científico, que supostamente garantiria a objetividade
necessária para uma análise imparcial?
Confesso que para mim isso não representa um problema. Não abor-
recerei o leitor com uma extensa exposição sobre os méritos da opção
analítica escolhida. Não preciso me preocupar com justificativas por um
motivo muito simples: não tive alternativa. Os games me acompanharam
durante praticamente toda a vida. Sou Doutor em Ciências Criminais,
pesquisador e professor universitário, e gamer há mais de trinta anos.
Não observo a tribo com um olhar estrangeiro, pois faço parte da
subcultura gamer. Assumo essa condição sem reservas, deixando claro
de que lugar de fala parte meu horizonte compreensivo e efetivamente
colocando as cartas na mesa antes que o jogo sequer comece.
Não acredito que essa condição comprometa a objetividade da aná-
lise que aqui desenvolvo. Pelo contrário, ela permite que a relação entre

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videogame e violência seja abordada de forma qualificada, conectando


dois universos distintos (jogos eletrônicos e criminologia) sem que noções
típicas do senso comum, como a de que games são apenas para crian-
ças ou adolescentes, interfiram na apreciação da temática em questão.
Inclusive não vejo como seria possível que alguém que não conheça a
fundo os games possa escrever com autoridade sobre eles. Uma análise
assim sem dúvida soaria oportunista para o leitor, que facilmente iden-
tificaria essa flagrante falta de familiaridade. Essa é uma crítica que não
poderá ser levantada contra a obra, embora muitas com certeza virão,
em especial por parte de quem sucumbiu ao discurso sobre o tema que
é disseminado pela imprensa, ou que porventura dê crédito a pesquisas
cuja credibilidade científica é muito questionável.
Esclarecida essa questão, posso apresentar a obra, que discute a co-
nexão entre videogame e violência com base em dois vetores: a suposta
relação de causa e efeito e a disseminação do pânico moral. Minha po-
sição quanto ao tema é clara e vou deixá-la explícita desde o princípio:
não há nenhuma evidência concreta de que jogos eletrônicos provocam
violência, ou seja, de que existe uma relação de causa e efeito entre video-
game e violência. A suposta conexão entre games e violência não é mais
que um discurso produzido pela imprensa, recepcionado por políticos e
grupos de pressão e, de certo modo, “certificado como verdadeiro” por
alguns pesquisadores, cujo resultado conduz à criminalização cultural
dos games, e também dos criadores e dos jogadores. Trata-se de um
complexo processo de difusão de pânico moral por reacionários culturais.
Esse tema é de particular interesse para o leitor brasileiro. Não só
porque o Brasil é o quarto maior mercado consumidor de games do
mundo, como pelo fato de que recentemente um episódio de pânico
moral de grandes proporções foi desencadeado no país: a criminalização
cultural do jogo Assassin’s Creed, com base em seus supostos efeitos
criminógenos, no caso Pesseghini. Mas existe outro fator que merece
ainda mais atenção: em fevereiro de 2015 foi desarquivado o projeto
de lei 1.654/1996, de autoria do deputado Herculano Anghinetti (PPB/
MG). Seu objetivo é nada menos que proibir a “fabricação, importação
e comercialização de jogos eletrônicos e programas de computador de

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conteúdo obsceno ou violento”. O argumento empregado é de que jogos


violentos conformam “indução à violência ou ao crime” e há previsão
de detenção de seis meses a dois anos para quem praticar as condutas
referidas. O projeto não traz uma definição objetiva do que consistiria
conteúdo violento: apenas fala genericamente em situações de violência,
simulação de agressão e uso de armas de fogo nos games. O projeto de
lei em questão representa uma ameaça concreta de banimento de séries
consolidadas como Grand Theft Auto, Call of Duty, Battlefield, Halo,
Gears of War, Assassin’s Creed e inúmeros outros games indicados para
o público adulto.
É evidente que o conteúdo do projeto é criminalizante e ataca di-
retamente o direito fundamental de liberdade de expressão artística.
Como se isso não bastasse, no fim de 2016 o então ministro da Justiça
do governo Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo, chegou a declarar
que a “apologia à violência” nos games alimenta a criminalidade. Tudo
parece indicar que uma grande cruzada contra os games pode estar
sendo preparada pelos autointitulados gestores da moral alheia, e a
discussão que desenvolvo aqui é de extrema importância para um de-
bate que certamente virá: o deputado federal Jair Bolsonaro e seu filho,
Eduardo Bolsonaro, também se manifestaram publicamente contra os
ditos “jogos violentos”.
Como o leitor terá oportunidade de conhecer, foram três as grandes
ondas de pânico moral que atingiram os games no Brasil: a primeira delas
foi deflagrada com a proibição de Carmageddon e o posterior banimento
de vários games em razão do atentado protagonizado por Mateus da
Costa Meira, no cinema do Morumbi Shopping; a segunda é produto
do ativismo judicial que proibiu Bully, The Crims, Counter-Strike e
EverQuest; por fim, a terceira onda foi produto da criminalização
cultural dos games promovida pela imprensa em virtude da abordagem
irresponsável do Massacre de Realengo e do Caso Pesseghini.
Nesse sentido, você encontrará neste livro uma análise que enfrenta
e desconstrói as duas facetas do discurso moralista que condena os
games: o ciclo vital de disseminação do pânico moral sobre videogame
e violência e as pesquisas que indicam que agressividade e dessensibili-

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zação são efeitos decorrentes dos jogos violentos e, com isso, reforçam
de modo argumentativo as guerras culturais contra a indústria dos
games. Como o leitor certamente percebeu, a obra é escrita por um autor
engajado e o tom é de denúncia contra a criminalização simbólica dos
games, criadores e gamers. Não são poucos os motivos para resistir: como
o leitor terá a oportunidade de constatar, os games foram considerados
indiretamente responsáveis pelos três maiores massacres em escolas da
história dos Estados Unidos. A abordagem utilizada pela imprensa nos
atentados de Columbine, Virginia Tech, Sandy Hook e no Massacre de
Realengo demonstra de forma impactante quanto é perigoso o discurso
irresponsável que criminaliza os games.
O somatório de cobertura jornalística e pesquisa acadêmica conforma
uma problemática convergência de interesses que dissemina em conjun-
to o discurso que relaciona videogame e violência, difundindo pânico
moral. Trata-se de um fenômeno complexo e que exige uma análise
aprofundada para que sua compreensão seja minimamente qualificada.
O ciclo vital do pânico moral contempla vários estágios, uma vez que o
formato do pânico em torno dos games sofreu alterações significativas
durante cinco décadas de história.
Ao longo da obra você descobrirá como o pânico moral em torno
dos games surgiu na segunda metade dos anos 1970 e se disseminou nas
décadas seguintes, bem como terá contato com inúmeros casos nos quais
a relação de causa e efeito entre videogame e violência foi suscitada pela
imprensa, por meio de uma irresponsável atribuição de rótulos. Não é
por acaso que no senso comum predomina a ideia de que videogame
e violência mantêm uma relação de afinidade: isso em grande medida
pode ser explicado pela cobertura jornalística e por uma série de casos
nos quais se afirmou a existência dessa relação. A insistência nessa hi-
pótese desafia as premissas mais básicas da racionalidade e é digna de
uma desconstrução que efetivamente revele como se reproduz de modo
contínuo o ciclo vital do pânico moral em torno dos games.
As razões que fizeram com que a crença na relação de causa e efeito
entre videogame e violência se tornasse dominante principalmente nos
Estados Unidos, mas também no Brasil, compõem boa parte da pro-

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videogame e violência

blemática deste livro, que não se restringe à desconstrução da conexão


entre videogame e violência, uma vez que o tema é complexo e abrange
muitos fatores.
Nesse sentido, não é somente a alegada relação entre videogame e
violência que interessa, mas também o discurso que se forma a partir
da exploração dessa possível conexão, de modo que também é preciso
abordar o histórico da questão e a maneira com que ela foi respondida
por diversos atores sociais em inúmeros casos emblemáticos de violência.
Muitos interesses gravitam em torno do discurso sobre os supostos
efeitos nocivos dos games: advogados ativistas em busca de projeção,
pesquisadores desejosos de reconhecimento acadêmico e verbas, orga-
nizações religiosas e conservadoras, pacifistas iludidos, lobby de setores
contrários ao aumento do controle sobre a venda de armas e, principal-
mente, a imprensa, como discutirei em detalhes mais adiante.
Mas as coisas não são tão simples quanto uma leitura inicial pode
sugerir. Não se trata de um simples confronto entre o bem e o mal. O
leitor perceberá que diversas vezes a polêmica não só beneficiou as pro-
dutoras de games, como elas mesmas a procuraram deliberadamente em
busca de publicidade e credibilidade junto ao público gamer. Este é um
elemento importante para a compreensão efetiva dos pânicos morais
contemporâneos que envolvem os games. A questão sem dúvida é
mais complexa do que pode aparentar inicialmente.
As controvérsias em torno dos jogos eletrônicos violentos se confun-
dem com a própria história dos games. A partir do final da década de
1990, os games alcançaram em definitivo as páginas dos grandes jornais,
particularmente os norte-americanos. A cobertura jornalística conferiu,
de maneira deliberada, um sentido peculiar a inúmeras tragédias: o
elemento central das reportagens rotineiramente consistiu na respon-
sabilidade atribuída a um autor desequilibrado no aspecto mental, e o
fator determinante da perturbação teria sido um jogo eletrônico violento.
Tornou-se cada vez mais comum relacionar videogame e violência, como
se a violência pudesse ser considerada consequência direta da influência
de jogos eletrônicos, particularmente – mas não exclusivamente – em
jovens. Dentre todos os fatores possíveis, a suposta relação de causa e

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efeito sempre foi eleita como objeto de predileção e destaque em repor-


tagens repletas de argumentos sensacionalistas.
Em muitos casos a crença é tão forte que a cobertura jornalística
imediatamente destaca os efeitos maléficos dos games como elemento
central de dada tragédia, apesar de o fato de o agressor jogar videogame
ser apenas um elemento dentro de sua história de vida e do contexto de
um episódio complexo de violência.
O resultado da insistência nessa abordagem é visível: para muitas
pessoas, os games são motivo de desconfiança e devem ser combatidos
implacavelmente. O fato de esses juízos morais não estarem embasados em
qualquer elemento comprovável pouco parece importar para os adeptos
dessa linha de pensamento: os games devem ser objeto de veemente re-
púdio, como outrora foram as histórias em quadrinhos nos anos 1950
ou as letras de músicas de muitas bandas e artistas da década de 1980.
Ainda que posteriormente a suposta relação de causa e efeito tenha
permanecido indeterminada ou explicada de forma insatisfatória,
sempre persistiu na imprensa, com raras exceções, a ideia de que existe
um vínculo entre videogame e violência, mesmo que jamais tenha sido
aceito nos tribunais, pelo menos nos Estados Unidos, berço da contro-
vérsia em questão.
Nesse sentido, a história das polêmicas em torno da relação entre vi-
deogame e violência é também, em boa medida, uma história de disputas
judiciais. Advogados moveram ações milionárias contra a indústria dos
games, sem alcançar nenhum sucesso: inúmeras sentenças rejeitaram
por completo qualquer vínculo entre violência virtual e violência real.
Como será visto ao longo desta obra, os juízes dos casos em questão
atentaram estritamente para os fatos e perceberam que o suposto vínculo
não passa de mera especulação, não preenchendo os requisitos neces-
sários para reconhecimento judicial de qualquer responsabilidade dos
desenvolvedores. Discutirei como essa diferença de apreciação guarda
relação com o alto grau de exigência probatória das práticas judiciais,
algo que as diferencia claramente dos critérios empregados pelos jorna-
listas para definir o que é ou não aceito como verdadeiro.
Por outro lado, juízes proibiram jogos no Brasil e emitiram sentenças
repletas de valores morais, sem qualquer embasamento que de fato com-

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provasse o prejuízo que os games supostamente poderiam causar para


a sociedade e, em especial, para o desenvolvimento sadio de crianças e
adolescentes.
Mas o sensacionalismo e os discursos apaixonados de combate aos
efeitos nefastos dos games não se restringem ao âmbito da imprensa e
do judiciário. Políticos americanos e britânicos sucumbiram ao pânico
moral e tornaram-se notórios por suas posições contrárias aos games:
diversas vezes defenderam a censura e o banimento de jogos eletrônicos,
considerando insuficientes os sistemas de classificação etária estabele-
cidos por órgãos oficiais e pela própria indústria dos games. No Brasil
não é diferente: tramitam inúmeros projetos de lei que refletem as con-
cepções morais de seus autores, que, inadvertidamente ou não, estão se
arvorando no papel de censores culturais.
Como se isso já não fosse surpreendente, para muitos policiais parece
não haver dúvida de que os games têm efeitos criminógenos, ou seja, de
que estimulam a criminalidade. Policiais ingleses e americanos muitas
vezes condenaram o que chamam de apologia da violência nos games e
literalmente afirmaram que eles induzem jovens ao cometimento de crimes.
Tudo isso faz com que a relação entre videogame e violência repre-
sente um objeto privilegiado de estudo para a Criminologia, uma vez
que é a ciência ou o saber que por excelência estuda a criminalidade e
os discursos sobre ela: integram seu objeto de análise o autor, a vítima,
o delito e a maneira como se atribui social e juridicamente esse status,
além da reação social e jurídica à criminalidade; a criminalização sim-
bólica de formas de cultura; bem como a linguagem sobre o crime e
a criminalidade nas mais variadas instâncias, ou seja, no pensamento
científico, na política, na imprensa e – por que não? – nos games e sobre
os games. Nesse sentido, a compreensão da percepção veiculada pela
cobertura jornalística a respeito dos jogos eletrônicos e de sua conexão
com a violência real certamente pode se beneficiar de uma análise de viés
criminológico. Essa justificativa ganha ainda mais força quando se per-
cebe que o contradiscurso que desenvolvo na obra é voltado contra nada
mais nada menos do que a criminalização cultural dos games, criadores
e gamers, e contra isso é preciso esboçar uma resistência intelectual no
âmbito de uma Criminologia abertamente engajada.

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Mas, antes que se tenha uma expectativa equivocada em relação ao


livro, é preciso dizer que não tenho aqui qualquer pretensão de desen-
volver uma teoria criminológica sobre a questão, que aborde o tema de
maneira exaustiva e estritamente acadêmica. Minha intenção consiste
em investigar a relação entre videogame e violência como discurso pro-
duzido por inúmeros atores sociais, mas de forma acessível a todos os
interessados no assunto, mesmo que não tenham familiaridade com a
abordagem da Criminologia. Este não é um livro estritamente acadê-
mico, e seria equivocado julgá-lo como tal ou nutrir expectativas nesse
sentido. Isso não impede que alguém que tenha familiaridade com a
Criminologia identifique com maior facilidade certas questões do que
um leitor leigo. Mas não é um livro dirigido a criminologistas ou a estu-
dantes dessa área do conhecimento. Eu me empenhei em resistir a essa
tentação, e em muitas oportunidades propositalmente procurei ser o mais
claro possível, mesmo que para isso as convenções acadêmicas fossem
deixadas de lado. Espero que tenha sido bem-sucedido na tarefa. Caso
não tenha, não foi por falta de tentativa. O juízo sobre a acessibilidade
do livro será do público leitor. Penso que é uma obra para quem gosta
ou ao menos tem interesse em videogame e, logo, despreza o processo de
criminalização dos games, como também é um livro para quem possa ter
interesse nos efeitos que jogos violentos podem ter no comportamento
das pessoas. Não é um estudo dirigido a pais preocupados com o que
os filhos jogam. Não foi escrito com essa intenção, ainda que o contato
com a discussão que desenvolvo aqui possa ajudar nessa tarefa, como
um desejável efeito colateral.
Como observei anteriormente, a análise não está restrita ao discurso
jornalístico: hipóteses científicas de aumento de agressividade e dessen-
sibilização foram desenvolvidas por inúmeros pesquisadores. Carreiras
acadêmicas foram construídas e polpudas verbas governamentais e não
governamentais foram e continuam sendo concedidas para autores de
pesquisas que partem de pressupostos que são no mínimo muito ques-
tionáveis, tanto no que diz respeito à metodologia empregada quanto
aos resultados produzidos. É comum que convicções morais recebam
verniz científico para ganhar aparência de verdade, configurando uma

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relação promíscua de troca entre a academia e os moralistas de plantão


que fazem da imprensa veículo para divulgação de seus pontos de vista.
O leitor não encontrará aqui qualquer concordância com esses juízos
morais ou devaneios cientificistas.
Uma parcela da comunidade científica municia os argumentos con-
trários aos games com uma espécie de legitimidade que somente estu-
dos científicos podem reivindicar. Muitos ainda pensam que ciência e
verdade são equivalentes, ou que a ciência é um meio para a revelação
da verdade. Colocam a ciência no topo do edifício do saber, conferindo
a ela capacidades sobrenaturais para a promoção de milagres. Como
acadêmico, tenho profunda desconfiança das “verdades” produzidas por
uma concepção superada de ciência, que adota o que já foi chamado de
paradigma simplificador.
Nesse sentido, posso afirmar, como já o fiz em outros escritos, que me
posiciono como herege diante dessas crenças infundadas, me propondo
a profaná-las. O esforço de profanação pode ser compreendido como
intenção de desmascarar mitos que são aceitos como se fossem realidade,
ainda que não passem de mera fantasia.
No entanto, mesmo um discurso falso pode produzir resultados
assombrosos na realidade, como bem sabem os próprios gamers, que
muitas vezes acabam sendo objeto de reservas e discriminação.
Nesta obra o leitor encontrará um espírito de desconfiança acerca da
ciência ou, para ser mais claro, de certo tipo de ciência, que desconsidera
a complexidade da realidade: as pesquisas sobre o tema não atingiram
qualquer resultado universalmente aceito, não sendo possível falar em
consenso e muito menos em uma “verdade” sobre o tema.
De um lado, pesquisadores afirmam que jogos violentos provocam
agressividade e dessensibilização. Embora não sustentem que há uma
relação direta de causa e efeito, argumentam que definitivamente existe
um incremento nos níveis de agressividade dos indivíduos que jogam
games violentos e que eles perdem boa parte de sua sensibilidade diante
da violência. De outro lado, um grupo de pesquisadores defende que as
pesquisas que apontam aumento nos níveis de agressividade apresentam
falhas metodológicas e não são capazes de apontar com segurança ne-

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nhuma relação causal entre os games e os níveis de agressão, quem dirá


perda de sensibilidade diante da violência real. Para eles, não há nenhum
motivo para crer que os jogos eletrônicos tenham qualquer capacidade
para motivar atos de violência, o que soa muito mais convincente do que
a hipótese contrária. No entanto, rotineiramente apenas uma faceta das
pesquisas é divulgada pela imprensa: justamente a que coincide com a
hipótese de causação por ela insistentemente veiculada.
Mas não tenha uma impressão equivocada: não me contento apenas
em reproduzir as investigações realizadas por outros pesquisadores. A
rejeição da suposta relação de causa e efeito será sustentada aqui a partir
de um horizonte compreensivo muito peculiar, dado por minha formação
acadêmica no âmbito da Criminologia, do Direito e da História, o que
faz com que o estudo apresentado aqui seja fundamentalmente inédito.
E isso não diz respeito somente ao referencial teórico: também guarda
relação com o extensivo emprego de fontes de pesquisa, que incluiu a
grande imprensa e também a especializada em games. Afinal, se o objeto
do livro consiste no discurso de causa e efeito entre videogame e vio-
lência, nada mais apropriado do que apreciar esse discurso nos campos
político, científico, judicial e jornalístico, o que obviamente deve incluir
os veículos dedicados à cobertura de jogos eletrônicos, assim como as
falas dos designers e representantes da indústria dos games. É preciso
examinar a forma como se desenvolvem e se inter-relacionam os discur-
sos sobre videogame e violência, e isso impõe uma análise abrangente.
No entanto, é evidente que este livro não pretende esgotar um tema tão
complexo. A humildade é uma exigência prévia para quem dialoga com
um objeto tão rico. A intenção é bem mais modesta: apresentar a questão
ao leitor brasileiro – gamer ou não gamer –, tornando possível que ele
faça um juízo sobre a relação entre videogame e violência, que não precisa
necessariamente se ajustar ao ponto de vista sustentado nesta obra, mas
que deve ser qualificado por uma pesquisa séria, que não compartilha do
sensacionalismo que costuma predominar na cobertura da imprensa sobre
o tema. Explorarei um conjunto de jogos e casos, procurando situar o leitor
na questão e abrindo espaço para que chegue às suas próprias conclusões,
mesmo que não coincidam necessariamente com as minhas.

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videogame e violência

Por fim, esclareço que o que proponho não é de modo algum uma
história exaustiva dos games violentos e dos casos nos quais eles foram
implicados, ainda que seja suficientemente abrangente para satisfazer
minha formação como historiador. Creio que consegui compilar uma
seleção compreensiva dos games, das tragédias a eles relacionadas e
do desenvolvimento de discursos sobre o tema no âmbito da impren-
sa, da política, do sistema judicial e da academia. Videogame e violência
desfrutam, em alguma medida, de uma relação de proximidade, uma
vez que são inúmeros os jogos com uma dinâmica que pode ser tida
como violenta. A própria origem dos games nos sistemas de simulação
militar da Guerra Fria não pode ser negada, assim como o fato de que o
joystick foi desenvolvido para finalidades militares na primeira metade
do século XX. Por uma questão de objeto de pesquisa, é evidente que o
foco estará direcionado para os jogos com conotação violenta, uma vez
que o que me interessa é a suposta relação de causa e efeito entre eles
e a violência real. Mas os games têm uma diversidade de conteúdo tão
grande quanto a de outras formas de entretenimento, como os filmes, os
seriados e os livros. Não há dúvida de que a maioria dos games sequer
pode ser considerada violenta, a não ser que o critério de violência se
estenda ao de um desenho animado, um nível que considero irrelevante
para os fins desta análise.
Espero que goste da obra. Que os jogos comecem. Boa leitura!

Salah H. Khaled Jr.


Verão de 2018

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Fase 1. Pré-história: as primeiras cruzadas
morais contra os jogos eletrônicos

As regras do jogo

Começo com algumas definições importantes.


Em primeiro lugar, como o leitor certamente percebeu pelo título da
obra, optei por utilizar a forma videogame, empregada pelo Dicionário
Houaiss da língua portuguesa, e não vídeo game, como figura no Novo
Dicionário Aurélio da língua portuguesa. Apesar de ser uma inovação
inusitada do original em inglês (video game), o termo videogame está
consolidado no vocabulário dos brasileiros, motivo pelo qual se justifica
seu emprego.
No entanto, isso não basta para esclarecer inteiramente seu sentido, já
que videogame é coloquialmente o nome dado ao console de videogame
no Brasil e não aos jogos, que costumam ser chamados apenas de games,
ao passo que no original em inglês video game designa o jogo eletrônico
em si mesmo. Em outras palavras, quando um brasileiro diz que “com-
prou um videogame”, isso significa que adquiriu um console – como o
Playstation 4, por exemplo – e não um jogo, como Grand Theft Auto.

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Salah H. Khaled JR.

A expressão videogame também é usada em referência ao universo


dos games em sentido amplo, como no título do livro que você tem em
mãos. Nesse sentido, quem gosta de videogame é adepto e entusiasta do
universo dos jogos eletrônicos: um gamer.
Seguirei a nomenclatura com que os brasileiros estão familiarizados,
referindo os jogos eletrônicos como games, os jogadores como gamers
e o console de videogame como o sistema para o qual os jogos foram
feitos (com a óbvia exceção dos jogos desenvolvidos para computadores).
Em segundo lugar, para efeito do que discuto nesta obra, uma defi-
nição bastante simples e restritiva de violência basta, visto que é basi-
camente em torno dela que transitam os debates sobre o entretenimento
interativo e seus possíveis efeitos: violência é o dano físico deliberado
(doloso, ou seja, intencional) causado a pessoas, animais ou propriedade
pública e privada, ou dito de outra forma, contra a vida, a integridade física
e o patrimônio. Definições semelhantes são empregadas nos estudos que
problematizam a suposta conexão entre videogame e violência: Olson e
Kutner conceituam violência como “uma pessoa ou coisa é fisicamente
atacada com intenção de ferir ou danificar”.1
Dito de modo simples, o que está em questão aqui é se os games
causam essa espécie de violência e fazem com que os gamers percam a
sensibilidade a ela ou não. Como deixei claro no prelúdio, penso que
não: não há nenhuma evidência concreta de que a tão suscitada relação
de causa e efeito entre videogame e violência tenha validade, ainda que
existam pesquisas científicas que sugerem a existência dessa conexão,
indicando que os games provocam aumentos nos níveis de agressividade
e dessensibilização.
Esta é a hipótese inicial da qual eu parto e que será testada ao lon-
go do livro.2 E para isso, como referi na introdução, creio que minha
condição de gamer contribui de forma significativa. Como disse Becker,
“particularmente, me parece que, uma vez que o objeto de pesquisa da
sociologia é a vida social na qual estamos todos envolvidos, a capacidade
de fazer uso imaginativo da experiência pessoal e a própria experiência
pessoal de alguém serão contribuições importantes para a capacitação
técnica dessa pessoa”.3

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videogame e violência

O autor aponta para o risco de que pesquisadores alimentem hipóte-


ses patentemente falsas sobre outros grupos sociais por falta de contato
com membros desses grupos e, portanto, que nutram noções esdrúxulas
acerca deles.4
Penso que isso é suficiente para justificar teoricamente meu lugar
de fala como pesquisador engajado do tema. Como observa Ferrell, “a
análise da relação entre crime e cultura não é um mero exercício inte-
lectual abstrato; é, antes de tudo, um exercício de cidadania engajada e
ativismo informado”.5
Em terceiro lugar, tenho uma última questão metodológica a enfren-
tar: muitos dos autores que utilizei nesta obra não escreveram especifi-
camente sobre os games, ou escreveram muito pouco sobre eles, como é
o caso dos que transitam no âmbito da chamada Criminologia Cultural.
Isso significa que um extenso processo de “apropriação criativa” foi usa-
do na elaboração deste livro. Trata-se de um método que empreguei na
minha tese de doutorado em Ciências Criminais, que discutiu a questão
da verdade no processo penal a partir de uma linguagem interdisciplinar
e foi muito bem recebida no mercado e no meio acadêmico.6
Por outro lado, existem pessoas que têm uma relação de fidelidade
tão grande com certos autores e doutrinas que qualquer reimaginação
criativa do que eles propõem soa como heresia. Como não me contento
em simplesmente reproduzir o “já dito”, é possível que o texto cause
algum dissabor a leitores com essas características. Espero que não seja
o seu caso.
Em quarto lugar, talvez o leitor tenha percebido que no prelúdio eu
evitei usar a palavra “mídia” e empreguei no lugar dela “imprensa”. O
motivo dessa opção inicial é a necessidade de definir o significado de
“mídia” para efeito deste livro antes de utilizá-lo, para evitar futuras
incompreensões. No Brasil, é comum que o termo “mídia” seja empre-
gado quase que como sinônimo de jornais e revistas, como meios de
comunicação social, seja na forma impressa ou digital. Fala-se, assim,
em “grande mídia” e até em “mídia alternativa”. Utilizarei a expressão
“grande mídia” com esse sentido na obra. Mas a expressão “mídia” é
muito mais rica. O Dicionário Houaiss da língua portuguesa traz a se-

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Salah H. Khaled JR.

guinte definição: “Todo suporte de difusão da informação que constitui


um meio intermediário de expressão capaz de transmitir mensagens;
meio de comunicação social de massas não diretamente interpessoais tais
quais as conversas, diálogos públicos e privados. Abrange esses meios o
rádio, o cinema, a televisão, a escrita impressa (manuscrito no passado),
em livros, revistas, boletins, jornais, o computador, o videocassete ou
videogame, os satélites de comunicação e, de um modo geral, os meios
eletrônicos e telemáticos de comunicação em que incluem também as
diversas telefonias...”

Portanto, o videogame também é mídia: um suporte de difusão de


informação que constitui um meio intermediário de expressão capaz
de transmitir mensagens. Nesse sentido, quando se fala em relação de
causa e efeito entre videogame e violência, o que está sendo dito é que
a mensagem mediada por um game para o jogador de algum modo o
estimula à prática de atos violentos no sentido que referi anteriormente:
danos intencionais a pessoas, animais ou patrimônio.
A versão científica da relação de causa e efeito certamente é mais sutil:
sustenta que a informação mediada pelos games provoca aumento nos
níveis de agressividade e dessensibilização, sem dizer pura e simplesmente
que causa violência diretamente, como discutirei a seu tempo.
Como referi no prelúdio, a hipótese de causação tem sido sustentada
com insistência pela grande mídia nas últimas décadas, conformando
um cenário de contínua instalação e reiteração de pânico moral sobre
os games no público em geral. Trata-se de um processo extensivo de
criminalização de uma forma de expressão artística, o que atinge obras,
criadores e consumidores, ainda que não com a mesma intensidade.
De particular importância nesse sentido é a contribuição da Crimino-
logia Cultural para o debate. Ferrell discute a noção de “cultura como
crime”, que indica a reconstrução discursiva de um empreendimento
cultural como empreendimento criminal, por exemplo, a criminalização
de produtores culturais por meio de canais midiáticos e legais. Ferrell
aponta que bandas de heavy metal e punk, assim como as respectivas
gravadoras, distribuidoras e os lojistas, enfrentaram acusações de obsce-

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videogame e violência

nidade, processos civis e criminais, batidas policiais e interferência das


autoridades em shows. Artistas, produtores, distribuidores e lojistas de
rap e “gangsta rap” enfrentaram prisões, condenações por obscenidade,
confisco legal de álbuns, protestos públicos, boicotes, audiências públicas
organizadas por políticos e policiais e contínuas campanhas da grande
mídia e processos nos quais foram acusados de promover – e até mesmo
de causar diretamente – crime e delinquência.7 Como observa Oxley da
Rocha, produtores culturais “nunca estão livres de terem seus produtos
redefinidos como criminosos, e serem, conforme a época, acusados de
disseminar obscenidades, pornografia, violência, estimulando o com-
portamento social criminoso, influenciando, especialmente os jovens,
a cometer estupros, consumir drogas, cometer assaltos, homicídios ou
suicídios, ou, ainda, a cometer crimes copiando ou imitando os conteúdos
disseminados pela mídia”.8
Penso que dois casos ajudam a ilustrar o fenômeno em questão. Eles
foram relatados com luzes sensacionalistas por inúmeros tabloides que
deram crédito a discursos infundados de causa e efeito e contribuíram
– inadvertidamente ou não – para a criminalização cultural das músicas
e dos criadores referidos a seguir.
Embora não tenha sido um processo criminal, destaca-se o julgamen-
to da banda Judas Priest, em 1990. O processo foi movido pelas famílias
de James Vance e Raymond Belknap. Em 1985 os rapazes, de 20 e 18
anos, respectivamente, se dirigiram a uma igreja em Sparks, Nevada, nos
Estados Unidos, após terem passado horas bebendo cerveja, fumando
maconha e supostamente ouvindo Judas Priest. O objetivo deles era o
suicídio, e utilizaram uma espingarda para essa finalidade. Belknap
morreu na hora, após colocar a arma sob o queixo e disparar. Vance
sobreviveu, mas sofreu inúmeras lesões. O rapaz faleceu três anos após
o pacto de suicídio. A alegação de causação tinha como base a suposta
existência de uma mensagem subliminar na canção “Better by you,
better than me”, do álbum Stained Class, de 1978. Ela supostamente
teria provocado o suicídio dos rapazes, e o processo tinha como base
justamente a alegação dessa relação de causa e efeito.

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Salah H. Khaled JR.

O julgamento durou dois meses. As partes concordaram em não


submeter o caso ao júri. A decisão do magistrado singular apontou que
não havia evidência de mensagens subliminares na música, inocentando
os membros da banda e sua gravadora, a CBS.9
Uma das testemunhas de defesa, o Dr. Timothy E. Moore, escreveu
um artigo detalhando o julgamento. Ele foi incisivo: “Não existe e nunca
existiu evidência empírica de que a estimulação subliminar pode produzir
mais do que breves e inconsequentes reações.”10
Ozzy Osbourne também enfrentou processos semelhantes. Em 1984,
o adolescente John McCollum cometeu suicídio enquanto ouvia “Suici-
de Solution”, do álbum Blizzard of Ozz, de 1980. A música discute os
perigos do abuso do álcool. A morte do rapaz fez com que surgissem
acusações de induzimento contra Ozzy. Apesar de saber que o filho
sofria de depressão, os pais processaram o artista, sustentando que a
letra da música teria motivado o suicídio. O advogado da família che-
gou a sugerir que Ozzy fosse processado criminalmente por encorajar
o ato de John. Osbourne insistiu que a mensagem da música era contra
o suicídio. O julgamento o favoreceu: nenhuma conexão foi encontrada
entre a canção e a morte do rapaz.11
Ele foi processado outra vez pela mesma razão em 1991 pelos pais de
Michael Waller, que pediram nove milhões de dólares de indenização.
Mas o julgamento novamente favoreceu Ozzy. Em sede de apelação, a
Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que os direitos de liberdade
de expressão protegiam Ozzy contra processos que alegassem que sua
música encorajava o suicídio.12
De modo mais amplo, muitos programas de televisão, filmes e dese-
nhos animados tornaram-se alvos de campanhas públicas que alegam
que eles incitam delinquência, provocam crimes “por imitação” e servem
como forças criminógenas, ou seja, impulsionadoras da criminalidade.13
Como o leitor terá oportunidade de ver, incontáveis processos judiciais
dessa natureza foram movidos contra a indústria dos games.
O processo de criminalização de formas e criadores de cultura é
gestado pela grande mídia. Com base nele, advogados, policiais, líderes
religiosos, jornalistas e outros produzem imagens criminalizadas dos

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videogame e violência

trabalhos de artistas, músicos e cineastas. Com isso, constroem os pró-


prios significados e efeitos que supostamente pretendem combater. Em
virtude disso, os criminólogos ampliaram a noção de “criminalização”
para incluir mais do que a simples criação e aplicação da lei penal. Cada
vez mais é investigado o processo mais amplo de “criminalização cultu-
ral”, ou seja, a reconstrução mediada de significado e de percepção em
torno das questões de cultura e crime.14
Presdee define a criminalização como um processo cultural por meio
do qual quem tem poder define e molda as formas dominantes de vida e
lhes dá significados especiais. É o meio pelo qual os poderosos definem
como e o que vemos, e, assim, como percebemos o comportamento
social dos demais. Eles definem o que é uma perversão e, portanto, o
que é considerado desviante e o que é considerado criminoso. Seu poder
influencia os processos de elaboração da lei para definir quais são os
prazeres e passatempos aceitáveis e quais são os proibidos e considerados
ilegais e criminais. Os poderosos também definem por meio da cultura
quais estilos de música são criminalizados ou não; onde ela pode ser
tocada ou não; onde podemos pintar e no quê; onde podemos caminhar e
quando; o que é erótico e o que não é.15 A criminalização contemporânea
da cultura pop emergiu como parte de “guerras culturais” empreendidas
por políticos conservadores e reacionários culturais, interessados em
definir como desviantes determinadas expressões culturais, com base
em seus próprios critérios morais. Como é um processo conduzido em
grande medida no espaço público, a criminalização cultural contribui
para percepções populares e pânicos, bem como para a marginalização
da forma de expressão cultural eleita como alvo. Quando é bem-sucedida,
constrói um nível de desconforto social que se estende da cultura pop
para as práticas da vida cotidiana.16
Diante desse cenário, não seria exagero falar em um verdadeiro
policiamento cultural por parte de inúmeros atores sociais que são ver-
dadeiros reacionários culturais.
A intenção por trás da obra consiste na denúncia dos processos de
disseminação de pânicos morais, por meio da produção de um con-
tradiscurso que denuncia a criminalização cultural empreendida pelos
refletores midiáticos contra os games, criadores e gamers.

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