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Revista Brasileira de
CIÊNCIAS DO ESPORTE
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ARTIGO ORIGINAL
a
7 Departamento de Ginástica, Instituto de Educação Física e Desportos, Centro de Educação e Humanidades,
8 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IEFD/Uerj), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
b
9 Curso de Graduação em Educação Física, Instituto de Educação Física e Desportos, Centro de Educação e Humanidades,
10 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IEFD/Uerj), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
12 PALAVRAS-CHAVE Resumo O objetivo deste artigo é identificar as representações de jovens praticantes de jogos
13 Jogo eletrônico; eletrônicos sobre o modo como se veem e de que forma concebem tais práticas. Foi aplicada
14 Corporeidade; uma entrevista a 12 jovens escolhidos por conveniência na faixa entre 13 e 21 anos que jogam
15 Violência; jogos eletrônicos no mínimo cinco vezes ao dia entre uma a cinco horas. Identificou-se que os
16 Compulsividade sentidos da corporeidade, da violência e da compulsividade só podem ser pensados no contexto
17 da construção imaginária do jogador e, nesse sentido, tal compreensão sinaliza para inúmeras
18 questões do ponto de vista pedagógico.
19 © 2015 Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte. Publicado por Elsevier Editora Ltda. Todos os
20 direitos reservados.
http://dx.doi.org/10.1016/j.rbce.2015.12.006
0101-3289/© 2015 Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte. Publicado por Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados.
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2 Retondar JJM et al.
28 context of the player’s imaginary construction and in this sense, such an understanding signals
29 to many issues from a pedagogical point of view.
30 © 2015 Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte. Published by Elsevier Editora Ltda. All rights
31 reserved.
44 Não é possível falar em jogo sem falar naquele que joga. A a condição para o ato de fabricar, para o ato de produzir 80
45 apropriação do jogo e dos sentidos que remetem os sujeitos coisas, para o ato de produzir bens úteis. Diferentemente 81
46 a jogar não pode ser pensada fora do contexto histórico- do sentido da ciência medieval compreendida como modo 82
48 Benjamin (1984), no livro Reflexões: a criança, o brin- moderna deixa de ser uma visão de mundo para se tornar 84
49 quedo, a educação, ao analisar, na década de 1940, uma um ato técnico e aperfeiçoador na fabricação de coisas e 85
51 museu em Berlim, interpretou que o motivo da constante Levy (1996) irá definir a realidade virtual como aquilo 87
52 lotação de uma sala de brinquedos em miniatura devia-se que existe como potência, mas não em ato. Ou seja, a vir- 88
53 à necessidade de a população alemã evadir-se de uma vida tualidade é a manifestação de uma realidade que não se 89
54 real sofrida, inconstante e sem perspectivas claras do ponto presentifica no aqui e no agora, pois sempre se trata de uma 90
55 de vista socioeconômico, pois, recém-saída da Segunda promessa, de um vir a ser. Pensemos na ideia da semente 91
56 Guerra Mundial. Especificamente quando se refere à histó- como potência, a semente traz dentro de sua constituição 92
57 ria dos brinquedos, o autor mostra que, naquele momento biológica a árvore futura, mas ainda não é uma árvore pro- 93
58 histórico, os brinquedos em miniatura, que até então eram priamente dita, apenas semente, promessa, perspectiva. 94
59 artesanalmente construídos por ferreiros, caldeeiros, car- A realidade virtual é um momento de passagem, um 95
60 pinteiros, confeiteiros, estavam dando lugar aos brinquedos ponto de partida e de deslocamento, e não um ponto de 96
61 de tamanhos maiores e produzidos em larga escala pela chegada. Jogos eletrônicos, jogos virtuais são jogos que 97
63 A esse respeito, Benjamin (1984) argumenta que tal fundamento de fixação: eles mudam ininterruptamente. 99
64 mudança sinaliza de maneira muito clara a consolidação do Pode-se recomeçar o mesmo jogo do mesmo ponto onde se 100
65 modo de produção capitalista e da percepção de uma nova parou, pois o jogador é quem controla, de forma absoluta, 101
66 subjetividade que começa a ser construída sob o signo da o seu contato com as imagens, alterando-as, retomando-as, 102
67 individualidade, do efêmero, da tecnologia, denominada por congelando-as ou deletando-as quando melhor lhe convier. 103
68 ele modernidade. Nesse novo contexto, novos imaginários sociais passam 104
69 No contexto da modernidade e de sua crescente a ser impulsionadores das ações, repercutem também nos 105
70 sofisticação tecnológica, a partir da década de 1960, espaços das aulas nas quais o corpo, o movimento e a 106
71 novas tecnologias de comunicação virtual entram em cena, interação social são prementes e remetem a inúmeras con- 107
73 edade que não deve voltar-se mais para os meios a serem Nesse sentido, o objetivo deste artigo é identificar as 109
74 perseguidos, mas, antes, somente para os seus resultados, representações sobre o modo como jovens praticantes de 110
75 isto é, para os impactos daquilo que será compreendido e jogos eletrônicos se veem e como concebem suas práticas de 111
76 apreendido no mundo da vida, considerando a relação entre jogo --- no caso deste artigo, práticas entre cinco e seis horas 112
77 causa e efeito, entre ciência e tecnologia. diárias, de cinco a sete dias por semana. Pensar os jogos 113
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Q1 Jogos eletrônicos: corporeidade, violência e compulsividade 3
114 virtuais como possível componente de condição catártica e Quando vivemos a experiência da decepção, da dor, da 174
115 projetiva, bem como motivador no decorrer do processo de frustração em face das interações que estabelecemos no 175
116 ensino e aprendizagem nas aulas, significa pensar a reali- mundo, tais experiências são enraizadas em nossas vidas e 176
117 dade virtual como inerente à cultura e à sociedade atual e, são acompanhadas da imagem daquele outro que se encon- 177
118 consequentemente, como componente da atualidade pre- trava enredado na cena daquilo que foi vivido, se torna uma 178
119 sente no universo imaginário dos jovens. referência que deve ou que não deve ser repetida. Isso é 179
120 A noção de representação social, na perspectiva conce- compreender o corpo como a história de vida encarnada, 180
121 bida, estabelece uma relação mais íntima com os estudos pois o perfume da mulher amada, o sorriso fraterno e o 181
122 no campo do imaginário social, pois se apresenta como rea- calor de um abraço jamais poderão ser digitalizados, pois 182
123 lidade que fixa, simbolicamente, o sujeito no mundo. A transcendem a dimensão lógica, racional e matemática de 183
124 fixação simbólica é um amálgama de sentidos que incor- percepção do mundo. 184
125 pora os vetores ideológicos, de classe social, religiosos e No mundo virtual vive-se a onipotência infantil de poder 185
126 de senso comum. O discurso racional não abrange o símbolo controlar o mundo e a realidade em volta. Por isso, ter 186
127 em sua totalidade, uma vez que o simbólico compreende 300 ‘‘amigos’’ nos sites de relacionamentos ou ser capaz 187
128 uma forma indireta de linguagem que aponta racionalmente de matar e de renascer tantas vezes quantas forem neces- 188
129 numa direção e, ao mesmo tempo, silencia na outra. Daí o sárias em um jogo de guerra, é a condição psíquica 189
130 símbolo apontar e encobrir, apresentar e silenciar simulta- para se ‘‘relacionar’’ sem se expor. Tem-se então uma 190
131
neamente. ‘‘experiência’’ subjetiva asséptica, limpa de qualquer impu- 191
gigantes sem sair de casa, sem ter de contar com o suor 194
133 Le Breton, 2003Breton (2003, p.124) aponta que no con- do outro, com a bola que bate na canela, com o pontapé 195
134 texto das novas tecnologias o corpo tenderia a desaparecer, que provoca dor e raiva diante da covardia de ser atingido 196
135 uma vez que ‘‘o cibernauta abandona a prisão do corpo e por trás, culminando com a derrota no último momento do 197
136 entra num mundo de sensações digitais’’. jogo. Da mesma forma que é possível matar transeuntes ido- 198
137 O ciberespaço é o universo construído pelo cruzamento sos com carros velozes e com nossa premência constante de 199
138 de milhares de computadores que conectam indivíduos afas- tempo sem qualquer sentimento de culpa. 200
139 tados no tempo e no espaço. Nesse ambiente o corpo se Quando um sujeito passa horas do seu dia diante da tela 201
140 apaga, cede lugar aos dados, a separação entre corpo e e começa a qualificar tal comportamento como o predomi- 202
141 mente se dá de maneira integral, o que vai de encontro à nante na sua vida, ele hipertrofia o seu espaço privado em 203
142 ideia do corpo que aprisiona o sujeito em relação ao cons- detrimento do espaço público: o espaço das interações soci- 204
143 tante ‘‘olhar’’ do outro. ais, o espaço do mundo da vida no qual se constroem de fato 205
144 O corpo enquanto construção cultural expressa as marcas os laços e os vínculos duradouros. 206
145 de seu tempo, de seus costumes, de seus hábitos, de seus Por outro lado, um corpo indesejado pelo próprio sujeito, 207
146 ritos e de seus mitos por meio da forma de se movimentar, um corpo representado de maneira insuficiente, vergonhoso, 208
147 da forma de se vestir, da maneira como fala, das escolhas com deficiências, no universo virtual se liberta de tais impe- 209
148 morais, estéticas, religiosas, ideológicas, ou seja, o corpo dimentos. E isso coloca os internautas em pé de igualdade, 210
149 expressa o modo como agimos e reagimos no contexto da pois, como se trata de dados digitalizados, o sujeito pode 211
150 interação com o outro no mundo imprevisível da vida. perfeitamente se manter conectado sem ser incomodado ou 212
151 Já o corpo virtual, que circula nas redes das comuni- avaliado pelo corpo que tem e isso garante um grau de auto- 213
152 dades cibernéticas, nas salas de ‘‘bate-papo’’, nos sites nomia e de liberdade que muito provavelmente milhares de 214
153 de relacionamentos e que participa dos jogos eletrônicos sujeitos não conseguem experimentar no mundo da vida. 215
154 é um corpo sem ‘‘alma’’, na medida em que é projeção Se o universo virtual é uma realidade que potencializa 216
155 de desejos e fantasias que independem do ‘‘outro’’ e que a onipotência infantil e leva o sujeito a se fechar cada vez 217
156 garantem ao jogador controle total sobre a imprevisibili- mais dentro dele mesmo e de suas fantasias, por outro lado 218
157 dade do ‘‘encontro’’. Não se trata mais de interação, mas também se apresenta como um lugar opcional passível de 219
158 de contato por meio de signos digitalizados. democratizar as conexões entre indivíduos, pois permite 220
159 No universo virtual, o corpo se torna prescindível, uma compensar a realidade brutalizante e impedidora de um 221
160 vez que o tempo e o espaço não constituem o tempo da mundo no qual a apologia das formas ideais é inegável. 222
161 experiência, da troca e do contato com o imprevisível. Daí a Como afirma Goldemberg (2002), na sociedade atual o 223
162 intimidade e o partilhamento daquilo que poderia ser inaces- corpo obeso não é um corpo que merece a atenção por 224
163 sível numa interação social acaba sendo possível no universo conta das suas possibilidades de contrair doenças ou de ser 225
164 virtual, pois a ‘‘amizade’’ e o investimento afetivo se dão um risco para o sujeito, mas, principalmente, porque é um 226
165 pela ausência do outro. corpo feio, inadequado, que ao expor publicamente suas 227
166 Se aquele que está em contato do outro lado da tela digi- dobras e seu contorno choca e incomoda aquilo que se define 228
167 tando se mostrar crítico às considerações do digitador, esse hoje como padrão mínimo de beleza. Diz-se então que o 229
168 simplesmente o ‘‘deleta’’ de seu circuito de contatos. Da obeso é um preguiçoso, um irresponsável um comedor com- 230
169 mesma forma ocorre quando se perde no jogo ou quando pulsivo que não tem disciplina ou autocontrole. Ou seja, 231
170 se está sendo malsucedido durante uma partida, é possível desloca-se o problema da gordura do campo da saúde para o 232
171 apagar e recomeçar tantas vezes quantas convir ao jogador. campo da moral. O corpo gordo ou magro em excesso é inde- 233
172 Mas como apagar aquele que o ouve e que o vê no campo da cente não porque se encontra exposto, mas porque expõe a 234
173 experiência no mundo da vida? sua desproporcionalidade. 235
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236 Existe uma nova realidade imaginária que vigora instituídos pela sociedade na qual ele se encontra soci- 295
237 no universo daqueles que praticam sistematicamente o alizado não o permite fazer, Daí, ao mesmo tempo, a 296
238 ciberespaço e, dentre inúmeras possibilidades de se pensar e emergência da angústia e de um certo sofrimento diante 297
239 de se interpretar a prática sistemática dos jogos eletrônicos, da impossibilidade do revide que ele, sujeito social, terá de 298
240 a associação entre jogos eletrônicos e violência não pode pagar para viver na civilização. 299
241 deixar de ser considerada no contexto de uma intervenção Nesse caso, a opção de escape para o mundo virtual vio- 300
242 pedagógica. lento é aquilo que em vez de detonar a violência irá refrear 301
apaziguado. 305
244 Ao pensar em um sujeito que dedica parte de seu dia, de sua Por outro lado, a sistemática do contato com imagens 306
245 semana e de seu mês à vivência de jogos nos quais a violência violentas, com tiros, com explosões e com sangue também 307
246 é o enredo dominante, não podemos deixar de pensar, num pode se associar a uma história de vida que cultua, desde 308
247 primeiro momento, que tal influência irá penetrar na sub- muito tempo, desejos de vingança, de morte e de assassi- 309
248 jetividade desse jogador e culminar em atitudes violentas. nato, em face de inúmeras privações, de sofrimentos e de 310
249 Uma vez que a busca por tais jogos pode remeter à ideia de humilhações vividas no mundo da vida que não conseguiram 311
250 que se um sujeito já tem certa inclinação para atos violen- serem escoadas nas interações sociais vividas nas diferentes 312
251 tos, ou se aprendeu a cultivá-los e aderiu à violência como instituições sociais, como a religião, a moral, a família, o 313
252 uma forma de linguagem, provavelmente tornar-se-á muito trabalho, os meios de comunicação de massa. Nesse caso, é 314
253 mais motivado e chegará, por meio dos estímulos dos jogos possível que os jogos eletrônicos, em vez de serem apropria- 315
254 eletrônicos, às vias de fato. dos como fuga, como compensação da realidade, possam ser 316
255 Assim, tudo indica que há uma relação de causa e efeito apropriados como projeto, isto é, como aperfeiçoamento, 317
256 entre gostar de jogar jogos eletrônicos violentos e ser vio- como treino, como potencializador da transformação do 318
257 lento com as pessoas no mundo da vida. Considerando essa desejo em ato. 319
258 lógica mecânica e causal, o jogo se apresenta como causa- No entanto, isso não significa dizer que sem os jogos ele- 320
259 dor ou motivador de atos de violência explícitos por parte trônicos violentos a presença da violência urbana e mundial 321
260 de sujeitos adeptos de tal prática. Todavia, entendemos mudaria, pois há outros meios disponíveis cotidianamente 322
261 que os sentidos que motivam os sujeitos a jogarem jogos de acalentar-se e fortalecer-se para tomadas de atitudes em 323
262 eletrônicos violentos podem ser diversos e não apenas um nome da vida e da integridade física. Violência, corrupção, 324
263 único, haja vista existirem inúmeras pessoas que jogam tráfico de drogas, pobreza, desamparo, guerra, abuso de 325
264 esses mesmo jogos e não necessariamente deixam de ser poder não deixam de ser também poderosos ingredientes 326
265 carinhosas e amáveis com os seus no mundo da vida. motivadores de inúmeras tomadas de atitudes por parte de 327
266 O universo virtual, compreendido como uma dimensão sujeitos que já têm uma biografia com tais marcas e que se 328
267 da realidade que se opõe ao atual, ao presente, e não como encaixam em outras e podem detonar surtos de violência 329
268 oposição a realidade, é ainda uma promessa de vir a ser, incomensuráveis. 330
269 do que está para acontecer, profundamente impulsionado A prática regular de jogos eletrônicos cujo enredo seja 331
270 pelos desejos e por um quantum de investimento afetivo, a violência não irá produzir, de maneira mecânica e auto- 332
271 destituído de valores morais por parte do jogador. mática, um sujeito apaziguado ou motivado para a prática 333
272 No contexto dos jogos eletrônicos, podemos afirmar, num da violência, mas antes, tal vivência, na medida em que 334
273 primeiro momento, o mesmo que Retondar (2007) definiu começa a se inscrever como um dado significativo na vida do 335
274 como evasão da vida real, ou seja, fuga e escape de uma sujeito, poderá reforçar determinadas condições e marcas 336
275 realidade que pode estar sendo representada como uma biográficas que foram inscritas nele ao longo do processo de 337
276 ameaça, como condição brutalizante, entediante, cansa- sua formação e de constituição de sua personalidade, mas 338
277 tiva, da qual é preciso afastar-se para poder suportá-la que se encontram constantemente em movimento, isto é, 339
278 novamente em outro momento. Sair da atualidade da vida e sujeitas à mudança, a transformações e a ressignificações 340
279 das circunstâncias que enredam o sujeito para a virtualidade imprevisíveis. 341
280 das possibilidades no contexto das circunstâncias imaginá- O primeiro lugar de socialização da criança é a família. 342
281 rias, ficcionais e fantásticas pode ser considerado uma forma É por meio de seu núcleo primeiro de formação que ela 343
282 de compensação e, ao mesmo tempo, de manutenção e de vai aprender a interiorizar as noções de certo e de errado, 344
283 autorregulação do próprio sujeito diante das pressões que daquilo que é permitido e daquilo que não é permitido, 345
284 sofre no seu cotidiano. aprender o sentido do sim e o sentido do não e adquirir cada 346
285 A violência, a morte, o tiro, o atropelamento, as explo- vez mais autocontrole diante de seus impulsos. 347
286 sões e o vermelho do sangue que mancha a tela dos jogos Não é possível apontar de maneira categórica e direta que 348
287 eletrônicos e que absorve o jogador diante de tamanha uma ou outra causa determinou o comportamento do sujeito 349
288 excitação vivenciada imaginariamente podem, ao contrá- em uma dada direção, uma vez que há inúmeras possibili- 350
289 rio do que apressadamente se pensa, proporcionar um dades de se pensar diversas causas e diversas informações 351
290 alívio psíquico e um apaziguamento do sujeito diante de e fatos que influenciam o comportamento humano. Mais 352
291 desejos de violência, de vingança, de hostilidade e de ainda, as diversas influências ou marcas, que foram regis- 353
292 morte. tradas como significativas na constituição do sujeito quando 354
293 De fato, ele gostaria, intimamente, de colocar em prá- pensadas no contexto das correlações psíquicas que ele 355
294 tica tais atos, mas a força coercitiva dos valores morais estabelece e no contexto das circunstâncias sociais, podem 356
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357 remeter a inúmeros sentidos sobre como o sujeito se vê e O comportamento compulsivo que promove sofrimento psí- 416
358 como vê o mundo. quico naquele que joga acomete pessoas pertencentes a 417
359 O fato de termos consciência racional sobre o que é diferentes classes sociais, de diferentes idades, de ambos 418
360 ser justo e sobre como devemos nos comportar para que os sexos e de hábitos bem distintos e o que sustenta o ritual 419
361 a justiça se efetive em nosso mundo não significa que agi- repetitivo de jogar é a produção imaginária dos próprios 420
362 remos com as pessoas de maneira justa. Ter consciência jogadores. 421
363 não significa necessariamente agir por intermédio da cons- Castoriadis (1982) define o imaginário como um magma 422
364 ciência. Se assim fosse, não haveria corrupção, abuso de de significações derivadas da tensão entre a sociedade ins- 423
365 poder, egoísmo, desigualdade social, injustiça, maus tratos, tituinte e a sociedade instituída, isto é, entre o futuro a 424
366 humilhações, subjugações e toda sorte de ações humanas ser feito e o presente possível e vivido. Assim, a produção 425
367 que não passam necessariamente pela consciência, muito imaginária se manifesta no simbólico, mas não se reduz a 426
368 pelo contrário, passam pela ordem do desejo, das paixões, ele, uma vez que o imaginário é aquilo que ultrapassa o 427
369 das crenças, das fantasias, de tal maneira que a razão tende próprio sujeito, pois tem relativa autonomia ao domínio da 428
370 a fornecer somente os meios para se atingir tais fins. consciência e da razão, já que sua motivação se dá pela 429
371 É nesse sentido que se tem de relativizar qualquer tipo de força dos desejos, dos sonhos, das paixões. Daí não ser pos- 430
372 conclusão precipitada advinda de uma percepção de causa sível compreender as representações dos jogadores de jogos 431
373 e efeito. O que não significa dizer que aquele que joga não eletrônicos sem considerar que essas são um mosaico de ima- 432
374 aprende ou não internaliza nada, pelo contrário, o que está gens móveis, pois toda representação é, por definição, ideias 433
375 em jogo é a possibilidade de o conteúdo de tal aprendizado acrescidas de afetos, ideias acrescidas de desejos, conscien- 434
376 ser potencializado, minimizado ou mesmo desconsiderado tes e inconscientes: imagens que se formam e que remetem 435
377 em nome da diversão, do passatempo, que pode também sempre a outras imagens, apresentação perpétua que ao 436
378 apenas buscar efeitos momentâneos de pequenos prazeres. mesmo tempo pertence e faz parte do próprio sujeito. 437
próprios atores: o que eles têm a dizer sobre si e sobre o seu 441
386 argumentativo da evasão de uma realidade que pressiona vas, do tipo descritiva e que faz uso da análise do discurso, 445
387 constantemente o sujeito a agir pela via do escape, essas e na perspectiva da Escola Francesai , como recorte metodo- 446
388 outras possíveis abordagens não são capazes de dar conta, lógico e conceitual para analisar o modo de produção dos 447
389 na sua totalidade, de uma explicação definitiva para o com- sentidos construídos pelos informantes em seus discursos. 448
390 portamento da compulsão em geral. Assim, foi aplicada uma entrevista com cinco perguntas 449
391 O que podemos demarcar inicialmente, e considerando abertas a 12 jovens, entre homens e mulheres, na faixa entre 450
392 o alcance deste artigo, é que quando algum tipo de ativi- 13 e 21 anos, escolhidos por conveniência, uma vez que aten- 451
393 dade ou manifestação humana passa a vigorar como algo diam o perfil de informantes da pesquisa, a saber, jovens 452
394 que orienta e preenche a vida do sujeito como uma das que jogam jogos eletrônicos no mínimo cinco vezes ao dia 453
395 poucas coisas que lhe importam, estamos diante de uma no período de uma a cinco horas. 454
396 atitude compulsiva. Isso não necessariamente se inscreve Esse público foi entrevistado no ambiente do cotidiano 455
397 em uma realidade patológica, uma vez que os critérios e todos assinaram o Termo de Livre Consentimento, garan- 456
398 para se definir o que venha a ser normal e o que venha a tiram a privacidade de suas identidades e aceitaram que 457
399 ser patológico só podem ser pensados no contexto especí- a finalidade das informações por nós coletadas teria como 458
400 fico de um caso, isto é, considerando a singularidade do fim o trabalho acadêmico. As entrevistas foram gravadas em 459
401 sujeito e o significado pregnante que tal comportamento gravador do tipo MP3 e similares e posteriormente foram 460
402 desperta em sua vida. Caso contrário, podemos, de maneira transcritas e comparadas entre si, com intuito de identificar 461
403 arbitrária, criar uma espécie de psiquiatrização do social as marcas linguísticas mais recorrentes nos discursos. 462
404 e estigmatizar as atitudes que, por não serem previsíveis O roteiro da entrevista constou das seguintes perguntas: 463
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466 2) Que tipo de diferenciação você faz entre jogar um jogo com o companheiro ocorrerá, ou seja, atitudes incontrola- 524
467 eletrônico e jogar um jogo na ‘‘realidade’’? das geram consequências. 525
468 3) Se você tivesse muito tempo livre e ainda dispusesse de A prática sistemática de acessar o computador e ficar 526
469 tudo o que você sonha, o que você faria? jogando entre uma e cinco horas por dia, durante sete dias 527
470 4) Quando você se comunica com alguém pela internet, o na semana, indica que estamos diante de um comporta- 528
471 que você acha que difere em relação ao contato que você mento repetitivo, do tipo compulsivo. O que não significa 529
472 estabelece com as pessoas presencialmente? dizer que compulsão ou repetição sistemática de maneira 530
473 5) Quantas pessoas jogam com você? Se, jogam, fale um obstinada seja uma doença ou patologia como afirmara ante- 531
474 pouco sobre essa relação com elas. riormente Retondar (2004). 532
475 Na perspectiva da análise do discurso, interessa o modo joga, pois o que está em jogo são as sensações, as emoções, 534
476 de produção dos sentidos, e não os conteúdos explícitos que as fantasias, os desejos, as crenças. Real no sentido de mobi- 535
477 se apresentam de maneira manifesta, pois partimos do pres- lizador da força imaginária daquele que joga e que o mantém 536
478 suposto de que todo dito tem um não dito e é justamente o jogando, motivando-o a retornar ao jogo. 537
479 que não está dito que garante a sustentação do discurso e Ainda sabendo que a compulsão, o vício e a paixão não 538
480 aponta para vários sentidos. têm classe social, não podemos desconsiderar que aquele 539
481 Segundo Orlandi (1993), na análise do discurso não há que joga e que acessa a tecnologia se encontra no mundo, 540
482 um conteúdo subjacente ao discurso que seria passível de e não fora dele: um mundo estratificado em classes sociais, 541
483 interpretação e de apontamento como o único suporte e fun- o que também deve ser considerado em uma análise. 542
484 damento da fala, mas, antes, um entrecruzamento de não Em relação à diferenciação entre os jogos virtuais e os 543
485 ditos do tipo ideológico, mítico, religioso, desejante, simbó- jogos jogados na concretude da vida, há uma difundida 544
486 lico, que, juntos, ancoram e apontam os inúmeros sentidos apologia, por muitos jogadores de jogos eletrônicos, em 545
487 que os discursos tendem a remeter. considerar que no mundo virtual se potencializa à força da 546
Como citar este artigo: Retondar JJM, et al. Jogos eletrônicos: corporeidade, violência e compulsividade. RevRBCE
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Jogos eletrônicos: corporeidade, violência e compulsividade 7
586 todas as condições financeiras e materiais houve uma entediante e cansativa, na qual a força de sua imaginação 645
587 polarização nas respostas: (a) grupo que faria uso de seu orienta e determina esse mundo ideal, limpo, asséptico e 646
588 tempo viajando, conhecendo novos lugares, novas culturas, sem surpresas. 647
589 novas pessoas; (b) grupo que centraria toda a sua atenção Acessar conteúdos violentos, hostis e de vingança pos- 648
590 para aperfeiçoar formas variadas de jogar, adquirindo novos sibilita uma realização no plano do imaginário daquilo que 649
591 equipamentos de jogos virtuais, ampliando significativa- muito provavelmente gostaria de ter sido feito no mundo 650
592 mente seu tempo para jogar jogos eletrônicos. da vida, transforma-se em apenas um passatempo e uma 651
593 Não há um resultado consensual ou predominante nas res- válvula de escape compensatória da realidade. Por outro 652
594 postas e isso sinaliza de maneira clara que a apropriação dos lado, considerando as biografias específicas de sujeitos, 653
595 jogos virtuais tem a ver com o modo como os sujeitos se tal conteúdo também poderá se apresentar como pro- 654
596 apropriam de tal prática em circunstâncias bem específicas. jeto da realidade, isto é, como uma fomentação, uma 655
597 A apropriação do tempo livre por parte do sujeito e sua motivação e um aperfeiçoamento para se fazer a passagem 656
598 relação com a prática de jogos eletrônicos só pode ser pen- da imaginação ao ato propriamente dito. 657
599 sada considerando que o ato de jogar é uma manifestação Aquele que joga tem uma história de vida singular, que se 658
600 polissêmica, isto é, suscetível a vários sentidos. encontra em um contexto determinado e que sofre constan- 659
601 O poder de que o jogador se investe no contexto de sua temente influências várias do mundo da vida, não é possível 660
602 ‘‘interação’’ virtual permite-lhe, do ponto de vista simbó- reduzir e resumir um ato a partir de uma única causa ou de 661
603 lico, o resgate de seu universo infantil, no qual ele se via algumas causas. 662
604 investido de poderes sobre si e sobre o mundo. A onipotência O fato de serem jogadores não significa que a sua siste- 663
605 infantil, expressão tomada por empréstimo na obra intitu- mática, e até certo ponto compulsividade, de jogar inscreva 664
606 lada Além do princípio do prazer (Freud, 1996), é resgatada esses jovens como patológicos, pois além de a fronteira 665
607 durante os jogos virtuais. O mundo do jogo é controlado pelo entre o normal e o patológico não ser tão simples, classi- 666
608 jogador. ficar um comportamento como patológico requer uma gama 667
609 Ter que lidar com a perda do poder é o que faz a criança de informações colhidas de maneira sistemática e que em 668
610 se inserir na cultura, socializar valores, administrar fragi- linhas gerais aponta para um sujeito cujo ato de jogar se 669
611 lidades e impossibilidades diante das inúmeras interações tornou a única coisa que importa em sua vida, interfere 670
612 sociais. Retornar, de alguma forma, ao poder que fora per- de maneira objetiva e subjetiva em todas as suas relações 671
614 prazer e de satisfação de se sentir sujeito. O ato de jogar o jogo virtual com e/ou contra outros 673
615 Os informantes, ao afirmar que o encontro face a face parceiros apontou que a preferência de jogar com pessoas 674
616 pode gerar sofrimento, pois é imprevisível, remeteram ao conhecidas se dá porque ao encontrá-las o jogo é o motivo 675
617 gosto de muitos jogadores de jogar com pessoas conheci- inicial para a conversa, para o diálogo, para a brincadeira, 676
618 das, para terem assunto em outros momentos. Ainda que enfim, para a interação social. 677
619 houvesse a ressalva de que ao jogar ou ao se comunicar com Se por um lado o jogo eletrônico pode ser visto como 678
620 pessoas conhecidas o jogador se sente mais inseguro e com uma maneira de isolamento social e de controle absoluto da 679
621 maior autocontrole na seleção do que dizer e do como dizer. realidade por parte daquele que joga em face de um senti- 680
622 Quando se está conectado a um estranho, se está livre para mento de insegurança e de intolerância com o imprevisível 681
623 fantasiar sem qualquer sentimento de culpa, de vergonha, da vida que lhe é inerente, por outro lado o acesso virtual 682
624 uma vez que, provavelmente, o jogador jamais conhecerá o pode ser percebido como um lugar de aproximação, de cone- 683
625 adversário. xão, visando à interação no mundo da vida. E esse último 684
626 Conclusão les que representam seu próprio corpo como um empecilho, 687
632 podemos dizer que esses jovens se veem como sujeitos apai-
633 xonados pelo universo virtual, uma vez que em tal realidade Bibliografia não citada 691
634 se sentem mais seguros para se expor em relação ao contato
635 com o outro, são capazes de fazer valer seu universo imagi-
Breton, 2011, Caillois, 1980, Kischimoto, 1983, Levy, 2007 692
636 nário, ficcional e desejante, sem o julgamento cerceador e
and Medeiros, 2010. Q3 693
637 frustrante possível na interação face a face.
638 O controle da situação em uma situação de jogo ele-
639 trônico ou de jogo comunicativo que ocorre nos sites de Referências 694
640 relacionamentos e nas comunidades virtuais evidencia uma
641 dimensão da onipotência infantil perdida na infância e res- Benjamin W. A criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Sum- 695
642 gatada de maneira simbólica pelo sujeito. mus; 1984. 696
643 O ato de jogar sistematicamente jogos eletrônicos é uma Le Breton D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: 697
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8 Retondar JJM et al.
699 BRETON, D. Adeus ao corpo. In: NOVAES, Adauto. (Org.). O homem MEDEIROS, M.D. Jogos eletrônicos e subjetivação: reflexões a luz 711
700 máquina --- A ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia da teoria Crítica. Ceará: Universidade Federal do Ceará, 2010. 712
701 das Letras, 2003. ORLANDI, E. P. (org.). Discurso fundador --- a formação do país e a 713
702 Caillois R. Os jogos e os homens. Lisboa: Cotovia; 1980. construção da identidade nacional. Campinas: Pontes, 1993. 714
703 Castoriadis C. A instituição imaginária da sociedade. 2 ed Rio de Orlandi EP. Análise de discurso --- Princípios e procedimentos. 11a . 715
704 Janeiro: Paz e Terra; 1982. ed São Paulo: Pontes; 2013. 716
705 Freud S. Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago; 1996, Retondar JJM. A produção imaginária dos jogadores compulsivos: 717
706 Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. a poética do espaço do jogo. São Paulo: Vetor; 2004. 718
707 GOLDEMBERG, M. (Org.) Nu e vestido. São Paulo: Record, 2002. Retondar JJM. Teoria do jogo: a dimensão lúdica da existência 719
708 Kischimoto TM. Jogos tradicionais infantis. Petrópolis: Vozes; humana. Petrópolis: Vozes; 2007. 720
709 1983. Ribeiro RJ. Novas fronteiras entre natureza e cultura. In: 721
710 Levy P. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34; 1996. Novaes A, editor. O homem máquina --- A ciência manipula o 722
Levy P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34; 2007. corpo. São Paulo: Companhia das Letras; 2003. 723
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