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INTRODUÇÃO
CRÍTICA AO
DIREITO
PENAL
BRASILEIRO
E d ito ra Rcvun
Nilo Batista
Livre-docente (UERJ) e Mestre (UFRJ) em
direito penal, professor da Faculdade de
Direito Cândido Mendes e da PUC-RJ ,
INTRODUÇÃO
CRÍTICA AO
DIREITO
PENAL
BRASILEIRO
11a edição
Editora Revan
Copyright © 1990 by Nilo Batista
t
C o o r d e n a ç ã o e d ito r ia l
Lilian M. G. Lopes
A r te e p r o d u ç ã o g rá fic a
Ricardo Gosi
R e v is ã o
Miguel Villela
Capa
Danilo Basto Silva
C o m p o s iç ã o
WJ Fotocomposição
Im pressão e a c a b a m e n to
(Em papel O ff-set 75grs. após puginaçiio eletrônica, em üpos Tim e New Ram an, c. 11/13)
D iv is ã o G rá fic a d a E d ito r a R e v a n
CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
8337i
Batista, N ilo
Introdução crítica ao direito penal brasileiro /N ilo Batista.
Rio de Janeiro: Revan, 11a edição, março de 2007
136p.
ISBN 85-7106-023-1.
1. Direito penal - Filosofia. 2. Direito penal - Brasil. I. Título.
90-0484 C D U - 343.2.01
343(81)
2007
Editora Revan Ltda.
Avenida Paulo de Frontin, 163
20260-010 - Rio de Janeiro, RJ
Tel.: 21-2502-7495 - Fax.: 21-2273-6873
Este trabalho fo i escrito quando
Carlos Bruce, Maria Clara e João
Paulo estavam aprendendo a ler. Â
eles, com o carinho afeto de seu pai,
é dedicado o livro.
Do autor:
T e o r ia d q le i p e n a l , S. Paulo, 1974, ed. RT (era colaboração com Aníbal
Bruno).
O e le m e n to s u b je tiv o d o c r im e d e d e n u n c ia ç ã o c a lu n io s a , Rio, 1975, ed.
Liber Juris.
D e c is õ e s c r im in a is c o m e n ta d a s , l! edição. Rio, 1976, ed. Liber Juris; 2:
edição, Rio, 1984, ed. Liber Juris.
A n íb a l B r u n o , p e n a lis ia , Rio, 1978, ed. Liber Juris
A d v o c a c ia c r im in a l, Rio, 1978, ed. Liber Juris (em colaboração com
João Mestieri).
C o n c u r s o d e a g e n te s , Rio, 1979, ed. Liber Juris.
C a s o s d e d ir e ito p e n a l — p a r te e s p e c ia l, Rio, 1980, ed. Liber Juris (em
colaboração com Heitor Costa Jr.).
T e m a s d e d ir e ito p e n a l . Rio, 1984, d. Liber Juris.
P u n id o s e m a l p a g o s (violência, justiça, segurança pública e direitos
humanos no Brasil de hoje), Rio, 1990, ed. Revan.
Biblioteca Central
Introdução crítica ao direito penal brasileiro.
Ac. 224621 - R. 688084 Ex. 2
Compra - Cia dos Livros
Nf.: 141985 R$ 14,75 - 05/10/2007
Direito (Diurno) - Reg. Sem. Ctba
Sumário
Nota Prévia 9
Apresentação 11
CAPÍTULO I
CAPÍTULO n
Bibliografia 123
Nota Prévia
17
a matriz da realidade, a história do direito seria autônoma e
destacada com respeito ao contexto histórico em que tal direito
fora produzido, passando a compor um conjunto de noções
universalmente válidas.
Sem pretender resgatar a surrada imagem da “ base e
su p erestru tu ra” , desacreditada pela voz autorizada de
P o u lan tzas”, é decisiv o ad v ertir-se para a “ essên cia
econômica” que subjaz às definições jurídicas abstratas1,
compreendendo o verdadeiro processo social de criação do
direito.
Uma passagem de Tobias Barreto, escrita há mais de um
século, auxiliará nessa compreensão: “ não existe um direito
natural, mas há uma lei natural do direito” ". Acrescentava
Tobias Barreto que, da mesma forma, não existem linguagem,
indústria ou arte naturais, embora exista aquilo que chama de
lei natural da linguagem, da indústria e da arte: o homem não
fala “ língua alguma, não exerce indústria nem cultiva arte de
qualquer espécie que a natureza lhe houvesse ensinado; tudo é
produto dele mesmo, do seu trabalho, da sua atividade” u. Ao
conceber o direito como algo não revelado ao homem (a
exemplo de uma noção religiosa) nem descoberto por sua
razão (a exemplo de uma regra de lógica formal), mas sim
produzido pelo grupamento humano e pelas condições concre
tas em que esse grupamento se estrutura e se reproduz; ao
ridicularizar a concepção do direito como “ uma lei suprema,
preexistente à humanidade e ao planeta que ela habita” , To-
18
bias Barreto se antecipava extraordinariamente às concepções
jurídicas correntes no Brasil de sua época10.
O direito penal vem ao mundo (ou seja, é legislado) para
cumprir funções concretas dentro de e para uma sociedade que
concretamente se organizou de determinada maneira.
O estudo aprofundado das funções que o direito cumpre
dentro de uma sociedade pertence à sociologia jurídica, mas o
jurista iniciante deve ser advertido da importância de tal es
tudo para a compreensão do próprio direito.
Quem quiser compreender, por exemplo, o direito assírio,
o direito romano, ou o direito brasileiro do século XIX, pro
cure saber como assírios, romanos e brasileiros do século XIX
viviam, como se dividiam e se organizavam para a produção e
distribuição de bens e mercadorias; no marco da proteção e da
continuidade dessa engrenagem econômica, dessa “ Ordem
Política e Social” (não por acaso, designação dos departamen
tos de polícia política entre nós — DOPS) estará a contribui
ção do respectivo direito. Mesmo os penalistas chamados de
“ clássicos” , tão próximos de um processo histórico no qual
foi oportuno extrair da razão conteúdos jurídicos “ natu
rais” ", percebiam às vezes esse caráter “ prático” . Carrara,
desenvolvendo os elementos de sua famosa definição de cri-
me, ao deter-se no “ dano político” , assinalava que o direito
penal (em sentido subjetivo) é atribuído ao estado “ como meio
de mera defesa da ordem externa, não para o fim de aperfei
19
çoamento interno” 12. É a esse viés que se reporta a observa
ção, recprrente em trabalhos introdutórios, da característica
flnalística do direito penal. O direito penal existe para cumprir
finalidades, para que algo se realize,--não para a simples
celebração de valores eternos ou glorificação de paradigmas
morais.
Resulta claro que conhecer essas finalidades é importante
para conhecer o direito penal. Quaisquer que sejam tais finali
dades — inclusive a de evitar que “ prorrompa a guerra de
todos contra todos” , como dizia von Liszt13 — , constituem
elas obviamente matéria que não pode ser estranha às preocu
pações do jurista. Atribuindo-se à figura de von Liszt conota
ções que certamente não possuía, o jurista não pode deixar de
formular algumas indagações, a saber: existirá de fato uma
guerra de todos contra todos, ou, pelo contrário, uma guerra
de alguns contra outros? Que guerra é essa? Por que alguns
desejam guerrear contra outros? Se o direito não cai do céu,
mas é elaborado por homens, qual a posição dos homens que o
editam nessa guerra? Só o direito penal evita que se prorrompa
tal guerra? Não prorromperá ela apesar do direito penal?
Evitada a guerra, quem ganha e quem perde com essa “ paz”
que o direito penal assegurou? Essas e outras perguntas po
derão aproximar-nos, até sem que o percebamos, de certas
chaves centrais no afazer jurídico: jusnaturalismo e positi
vismo jurídico, interpretação da lei, fins da pena, política
criminal, etc.
Afirmamos, portanto, que o direito penal é disposto pelo
estado para a concreta realização de fins; toca-lhe, portanto,
12 P rogram m a, § 13.
13 T ratado de d ireito p e n a l allem ão, tradução J. H ygino, R io , 1899, ed. B riguiet, v.
1, p. 95. A expressão ‘ “g u em i de todos conlra to d o s” rem onta a H obbes; M ontes-
quieu falaria de “ estado de g u e rra ” , eR o u sse au do ‘ ‘d ire ito d o mais fo rte ” . C om o
reg istrado por M arx, no século X V III a ficção segundo a qual o “ estado de
natureza é o verdadeiro estado da nalureza hum ana” alcançou o apogeu (II
m anifesto filosofico delia scuola storica dei diritto, in M arx/Engels, O pere, Roma,
1980, ed. R iuniti, v. I, p. 206).
20
uma missão política, que os autores costumam identificar, de
modo am plo, na garan tia das “ condições de vida da
sociedade” , como M estieri'4, ou na “ finalidade de combater o
crime” , como Damásio13, ou na “ preservação dos interesses do
indivíduo ou do corpo social” , como Heleno Fragoso16. Tais
fórmulas não devem ser aceitas com resignação pelo iniciante.
O direito penal nazista garantia as “ condições de vida da
sociedade” alemã subjugada pelo estado nazista, ou era a
pedra de toque do terrorismo desse mesmo estado, garantindo
em verdade as condições de morte da sociedade? Sem adentrar
a fascinante questão de que o estado primeiro inventa para
depois combater o crime, esse combate não será algo misera
velmente reduzido ao crime acontecido e registrado?11. Ou
seja: o combate que o direito penal pode oferecer ao crime
praticamente se reduz — desde que a pesquisa empírica de-
m onstrou o precário desem penho do cham ado “ efeito
intimidador” da pena, sob cuja égide sistemas inteiros foram
construídos — ao crime acontecido (sendo mínima sua atua
ção p reventiva} e registrado (a chamada crim inalidade
aparente, que, como também a pesquisa empírica revelou, é
muito inferior — em alguns casos, escandalosamente inferior:
pense-se por exemplo no abortamento — à criminalidade real,
sendo a diferença denominada cifra oculta). Por último, que
significarão “ interesses do corpo social” numa sociedade
dividida em classes, na qual os interesses de uma classe são
estrutural e logicamente antagônicos aos da outra?
A função do direito de estruturar e garantir determinada
ordem econômica e social, à qual estamos nos referindo, é
habitualmente chamada de função “ conservadora” ou de
“ controle social” . O controle social, como assinala Lola
21
Aniyar de Castro, “ não passa da predisposição de táticas,
estratégias e forças para a construção da hegemonia, ou seja,
para a busòa da legitimação ou para assegurar o consenso; em
sua falta, para a submissão forçada daqueles que não se inte
gram à ideologia dominante” 18. É fácil perceber o importante
papel que o direito penal desempenha no controle social. Sob
certas condições, pode o direito desempenhar outras funções
(como, por exemplo, a “ educativa” e mesmo a “ transforma
dora” — esta, oposta à “ conservadora” ). A preponderância
da função de controle social é, contudo, inquestionável.
Determinadas, íissim, pela necessidade do poder que con
fere garantia e continuidade às relações materiais de produção
prevalecentes numa dada sociedade, estariam as normas jurí-
dico-penais alijadas de qualquer influência ativa sobre essa
mesma sociedade? A resposta de Aníbal Bruno merece
transcrição: “ sabemos como as sociedades humanas se encon
tram ligadas ao Direito, fazendo-o nascer de suas necessidades
fundamentais e, em seguida, deixando-se disciplinar por ele,
dele recebendo a estabilidade e a própria possibilidade de
sobrevivência” 19. Ou seja, embora o direito penal seja mo
delado pela sociedade — e, em última instância, hão de pre
valecer sempre as variáveis econômicas que determinam suas
linhas fundamentais — ele também interage com essa mesma
sociedade. Como ensina Miranda Rosa, ‘ ‘se o direito é condi
cionado pelas realidades do meio em que se manifesta, entre
tanto, age também como elemento condicionante” 20.
Há marcante congruência entre os fins do estado e os fins
do direito penal, de tal sorte que o conhecimento dos primei
22
ros, não através de fórmulas vagas e ilusórias, como sói fi
gurar nos livros jurídicos11, mas através do exame de suas reais
e concretas funções históricas, econômicas e sociais, é funda
mental para a compreensão dos últimos.
Conhecer as finalidades do direito penal, que é conhecer os
objetivos da criminalização de determinadas condutas pratica
das por determinadas pessoas, e os objetivos das penas e
outras medidas jurídicas de reação ao crime, não é tarefa que
ultrapasse a área do jurista, como às vezes se insinua. Com
toda razão, assinala Cirino dos Santos que “ a definição dos
objetivos do Direito Penal permite clarificar o seu significado
político, como técnica de controle social” 22. Aliás, a indaga
ção sobre fins, que comparece em vários momentos particula
res (na interpretação da lei, na teoria do bem jurídico, no
debate sobre a pena, etc), não poderia deixar de dirigir-se ao
direito penal como um todo.
21 " L o s fines dei E slado son difíciles de determ inar, de m odo absoluto y om ni-
co m p ren siv o " — S anguinetti, C urso de d erech o p o lític o , B. A ires, 19S6, p. 297.
22 D ireito p eitai, R io , 1985, p. 23.
23
§2 a.
Direito penal e sistema penal
24
Condenado o réu a pena privativa de liberdade que deva cum
prir-se sob regim e fechado, serã ele recolhido a uma
“ p en iten ciária” , espécie do gênero “ estabelecim ento
penal” , submetido ao que dispõe a Lei de Execução Penal —
LEP:. Vimos a sucessiva intervenção, em três nítidos estágios,
de três instituições: a instituição policial, a instituição judiciá
ria e a instituição penitenciária. A esse grupo de instituições
que, segundo regras jurídicas pertinentes, se incumbe de reali
zar o direito penal, chamamos sistema penal.
Zaffaroni entende por sistema penal o “ controle social
punitivo institucionalizado” 3, atribuindo à vox “ institucio
nalizado” a acepção de concernente a procedimentos esta
belecidos, ainda que não legais. Isso lhe permite incluir no
conceito de sistema penal casos de ilegalidades estabelecidas
como práticas rotineiras, mais ou menos conhecidas ou tolera
das ( “ esquadrões da m orte” — por ele referidos como
“ ejecuciones sin proceso” 4, tortura para obtenção de confis
sões na polícia, espancamentos “ disciplinares” em estabele
cimentos penais, ou uso ilegal de celas “ surdas” , etc). O
sistema penal a ser conhecido e estudado é uma realidade, e
não aquela abstração dedutível das normas jurídicas que o
delineiam,
Com propriedade, Cirino dos Santos observa que o sistema
penal, segundo ele “ constituído pelos aparelhos judicial, poli
cial e prisional, e operacionalizado nos limites das matrizes
legais” 5, pretende afirmar-se como “ sistema garantidor de
uma ordem social ju sta” , mas seu desempenho real contradiz
essa aparência.
Assim, o sistema penal é apresentado como igualitário,
atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas,
quando na verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo
25
apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados gru
pos sociais, ta pretexto de suas condutas6. (As exceções, além
de confirmarem a regra, são aparatosamente usadas para a
reafirmação do caráter igualitário.) O sistema penal é também
apresentado como justo, na medida em que buscaria prevenir o
delito, restringindo sua intervenção aos limites da necessidade
— na expressão de von Liszt, “ só a pena necessária é justa’ ’7
— , quando de fato seu desempenho é repressivo, seja pela
frustração de suas linhas preventivas, seja pela incapacidade
de regulara intensidade das respostas penais, legais ou ilegais.
Por fim, o sistema penal se apresenta comprometido com a
proteção da dignidade humana — a pena deveria, disse certa
ocasião Roxin, ser vista como o serviço militar ou o paga
mento de impostos* — , quando na verdade é estigmatizante,
promovendo uma degradação na figura social de sua clientela.
O Instituto Interamericano de Direitos Humanos realizou uma
pesquisa sobre sistemas penais e direitos humanos na América
Latina, cujo informe final, redigido pelo diretor da pesquisa,
Zaffaroni, constitui o mais atual e completo documento critico
sobre a realidade de nossos sistemas penais“. Seletividade,
repressividade e estigmatização são algumas características
centrais de sistemas penais como o brasileiro. Não pode o
jurista encerrar-se no estudo — necessário, importante e espe
cífico, sem dúvida — de um mundo normativo, ignorando a
contradição entre as linhas programáticas legais e o real fun
cionamento das instituições que as executam.
6 “ En la realidad, pese ai discurso ju ríd ico , el sistem a penal se dirige casi siem pre
contra ciertas personas m ás que contra ciertas acc io n e s" —• Z affaroni, M anual,
c it., p. 32.
7 La teoria deito scopo n el d iritto p en a le, trad. A. C alvi, M ilão, 1962, p, 46.
8 Apud O rdeig, Tiene un futuro la dogm ática jurídico-penal? in E studios de dererho
p e n a l, M adri, 1976, p. 72,
9 S istem a s pcnates v dercchos hum anos en A m érica Latina — inform e fin a l, B.
A ires, 1986.
26
§3?
Criminologia
27
juristas para com os trabalhos da criminologia” 5.
Tal prevepção, infelizmente, não derivava da percepção
Jo impasse metodológico e dos equívocos positivistas, pre
sentes na consideração da criminologia como simples exame
causal-explicativo do crime e do criminoso, nem das funções
de legitimação de ordens sociais injustas desempenhadas por
tal criminologia6. Tal prevenção estava ligada à prática esqui
zofrênica, haurida de uma vertente neokantista que influen
ciou extraordinariamente o pensamento jurídico, não de dis
tinguir entre o ser e o dever-ser, mas sim de literalmente criar
dois mundos epistemologicamente incomunicáveis. Tal in
fluência, surgida, como lembra Zaffaroni, “ numa época em
que se evidenciou a necessidade de isolar cuidadosamente o
ser e o dever-ser, pois o segundo não guardava harmonia com
o primeiro e o positivismo organicista burguês não lograva
compatibilizá-los” 7, atingiu profundamente o direito penal
brasileiro9, levando-o a um desprezo olímpico pela realidade,
a um intencional isolamento1'. Na verdade, ser e dever-ser
relacionam-se como fato e valor, numa relação de totalidade
5 O p. c it., p. 43.
6 N ão p o r acaso, B asileu G arcia caracteriza as disciplinas crim inológicas com o
aquelas “ que se preocupam com a dciinqüência com o fa to natural, procurando
apontar-lhe as causas, com o em prego do m étodo p o sitiv o , de observação e
e x p erim en tação " — In stitu içõ es de direito p en a l, S. P aulo, s/d , v. I , t. I, p. 25.
B ergalli m enciona o “ serviço que o positivism o crim inológico-, especialm ente
aquele d e cunho lom brosiano, prestou à afirm ação do sistem a social im plantado
pela burguesia triunfante no processa de unificação da Itália” , acrescentando que
tal serviço teve “ exitoso e rápido traslado para a A m érica do S u l” (cf. Pavarini,
M assim o, C ontrol y d o m in a ció n , trad. I. M uãagorri, M éxico, 1983, epílogo, p.
200 ).
7 Las necesidades dei saber penal latinoam ericanò, in rev. Iusta, B ogotá, 1987,
n ? 9 , p . 135.
8 V eja-se, por exem plo, o H eleno Fragoso de C onduta p u n ível (S. P aulo, 1961),
9 R elem bre-se N elson H ungria conclam ando professores c estudantes de direito,
advogados e m agistrados, p ara um a “ doutrina de M onroe” : “ o direito penal é
para os ju ris ta s , exclusivam ente para os ju ristas, A qualquer indébita introm issão
em nosso L cbensraum , façam os ressoar, em toque de rebate, nossos tam bores e
clarin s!” (N ovas q uestões ju ríd ico -p en a is, R io, 1945, p. 15).
28
dialética, como registra P o u l a n t z a s e por essa perspectiva o
saber criminológico e o saber jurídico-penal se comunicam
permanentemente.
Releia-se o conceito de criminologia de Lola Aniyar de
Castro, com o qual foi aberto este parágrafo, comparando-o ao
c o n c e i t o a b s o l u t a m e n t e p r e d o m i n a n t e nos aut ores
brasileiros11. Devemos fugir à tentação de supor que a di
ferença esteja apenas na amplitude. Para a professora vene
zuelana, a criminologia englobaria os seguintes aspectos: 1, a
sociologia do direito penal e do comportamento desviante; 2. a
etiologia do comportamento delitivo e do comportamento
desviante; 3. a reação social, compreendendo a psicologia
social correspondente, as penas e outras medidas, bem como a
análise das instituições que as executam1-. Para a criminologia
positivista, o alcance se limitaria à metade do segundo aspecto
(etiologiado comportamento delitivo). Não é essa, contudo, a
diferença importante.
Quando a criminologia positivista não questiona a constru
ção política do direito penal (como, por quê e para quê se
ameaçam penalmente determinadas condutas, e não outras,
que atingem determinados interesses, e não outros, com o
resultado prático, estatisticamente demonstrável, de se alcan
çar sempre pessoas de determinada classe, e não de outra),
29
nem a aparição social de comportamentos desviantes (seja
pelo silêncio estratégico do legislador, que não converte aqui
lo que a maioria desaprova — desviante — em delituoso, seja
pelo descompasso entre vetustas bases morais, a partir das
quais se instalaram instrumentos de controle social, e sua
incessante transformação histórica, seja até pela própria etio-
logia enquanto processo social individualizável), nem a rea
ção social (desde as representações do delito, do desvio, da
pena e do sistema penal, dispersas no movimento social, ou
sinalizadas na opinião pública e nos meios de comunicação,
até o exame das funções, aparentes e ocultas, que a pena
desempenha, nomeadamente a pena privativa da liberdade, tal
como existe e é executada pelas diversas instituições que dela
participam); quando a criminologia positivista não questiona
nada disso, ela cumpre um importante papel político, de legiti
mação da ordem estabelecida. Como anota com precisão
Quinney, “ a realidade oficial é a realidade com a qual o
positivista opera — e a realidade que ele aceita e suporta. O
positivista toma por dada a ideologia dominante, que enfatiza
a racionalidade burocrática, a tecnologia moderna, a autori
dade centralizada e o controle científico” 13. Tal criminologia
necessariamente tende a tratar o episódio criminal como episó
dio individual e a respaldar a ordem legal como ordem natural:
não por acaso, seus precursores procuraram tematizar um
"homem delinqüente” , que, ao lado dos “ loucos morais” 14,
viola a ordem legal, ou um “ delito natural” , que atinge
30
“ sentimentos” encontráveis nas “ raças superiores” , indis
pensáveis pàra a “ adaptação do indivíduo à sociedade” 15, isto
é, pára a manutenção da ordem legal. Se alguma abertura
social se acrescenta a essa perspectiva, como se deu com
F erri'\ o resultado é, como precisou, espirituosamente, Lyra
Filho, “ uma espécie de progressismo idílico” 11. A racionali
dade ou a justiça da ordem legal e das instituições que inte
gram o sistema penal, bem como as funções por elas desempe
nhadas numa sociedade dividida em classes, não são absoluta
mente inquiridas pelo criminólogo positivista.
A essa “ falha política” !B do positivismo (à qual, por in-
serir-se num trabalho de introdução ao direito penal, conce
deu-se primazia) somam-se outras, que colocam em cheque o
valor de suas premissas, seus métodos e conclusões. Simplifi-
cadamente, resumiremos essas falhas em: a) supor que na
transcrição da objetividade cognoscível não se imprime a
experiência do sujeito cognoscente; b ) reduzir a objetividade
cognoscível ao que nela for em pírica e sensivelm ente
demonstrável; c) ter, portanto, na metodologia o centro e o
limite inexorável de sua atividade científica; d ) conceber de
forma mecanicista os fatos sociais, produzindo explicações
com base em relações causais151. Frise-se que daquele suposto
“ distanciamento” entre o objeto cognoscível e o sujeito cog
noscente, com a interveniência da mitificação metodológica,
o positivismo extrai outra conseqüência política: a aparente
15 O " d e lito n atu rai” , n a d e fin iç ã o d e G a ro fa lo , ‘‘é um a lesáo daquela parte do senso
m o ral q u e c o n s iste n o s se n tim e n to s a ltru ís tic o s fu n d a m e n ta is (p ied ad e e
probidade) segundo a proporção m édia cin que se encontram nas raças hum anas
superiores, proporção essa necessária para a adaptação do indivíduo à sociedade'*
(C rim in o lo g ia , T urim , 1885, p. 30).
16 P rin cíp io s d e d ireito crim inal, trad. L . d ’01iveira, S . Paulo, 1931.
17 C rim inologia d ia lética . R io, 1972, p. 16.
18 Q uinney, loc. cit.
19 P ara ura exam e am plo dessas falh as, cf. Juarez C irino dos S antos, A crim inologia
da repressão, R io, 1979, p. 47 ss.; Q uinney, op. c it., p. 223 ss; L ola A niyar de
C astro , op, c it., p. 2 ss.
31
“ neutralidade” do cientista social, que seria um simples pro
dutor de saberes, indiferente às tensões da realidade social,
A criminologia conheceu, nos últimos vinte anos, uma
verdadeira revolução, que lhe permitiu superar o impasse
positivista. Chamemos, de modo genérico, Criminologia Crí
tica ao conjunto das tendências — ‘ ‘espécie de frente ampla” ,
como registra Araújo Jr.20 — que realizaram tal superação e
tornaram acessível ao estudioso do direito penal conhecimen
tos até então camuflados ou distorcidos, inclusive sobre seu
próprio ofício21. Ao contrário da Criminologia Tradicional, a
Criminologia Crítica não aceita, qual a priori inquestionável,
o código penal, mas investiga como, por quê e para quem (em
ambas as direções: contra quem e em favor de quem) se ela
borou este código e não outro. A Criminologia Crítica, por
tanto, não se autodelimita pelas definições legais de crime
(comportamentos delituosos), interessando-se igualmente por
comportamentos que implicam forte desaprovação social
(desviantes). A Criminologia Crítica procura verificar o de
sempenho prático do sistema penal, a missão que efetivamente
lhe corresponde, em cotejo funcional e estrutural com outros
instrumentos formais de controle social (hospícios, escolas,
institutos de menores, etc). A Criminologia Crítica insere o
sistema penal — e sua base normativa, o direito penal — na
disciplina de uma sociedade de classes historicamente deter
20 Os gra n d es m ovim entos da p o lítica crim inal de nosso tem po. R io, 1986, p. 4.
21 N ão cab e, em m ero tópico de introdução no direito p enal, um a exposição das
diversas crim inologias de cariz p o sitiv ista, nem daquelas q u e, certam ente a p artir
dos estu d as precursores da crim inologia interacionista, estam os reunindo sob o
ró tulo geral de C rim inologia C rítica. Por não haverem influenciado qualquer
p en alista brasileiro , não nos referim os às direções co nstrucionista social e fenom e-
n ológica. A lém das obras citadas, rem etem os o leito r interessado a: T aylor,
W allon e Y oung, T he now crim inology: f o r a so c ia l theory o f devia n ce, N. Y ork,
1974; Traverso e V erde, C rim inologia critica, P ádua, 1981; B aratta, A ., Crim i-
n o lagía c r ític a y crítica d e i d e re c h o p e n a l, trad . A . B unster, M éxico, 19B6;C irino
dos S an to s, A crim inologia ra d ica l. R io , 1981; L ola A n iy ar de C astro, C rim inolo-
g(a d e Ia liberación. M aracaib o , 1987; B e rg alli, R ., C rítica a la crim inologia,
B ogotá, 1982; R osa dei O lm o, A m érica L ati nu y sii crim inologia, M éxico, 1981,
32
minada e trata de investigar, no discurso penal, as funções
ideológicas de proclamar uma igualdade e neutralidade des
mentidas pela prática22. Como toda teoria crítica, cabe-lhe a
tarefa de “ fazer aparecer o invisível’” 3
22 "C o m p re e n d e r que □ sistem a legal não serve à sociedade com o um todo, m as serve
os interesses da classe dom inante, é o com eço de um a com preensão crítica do
d ireito crim in al, na sociedade ca p ita lista ” — Q uinney, op. c it., p. 240.
23 M iaille, op. c it., p . 17.
33
§4?
Política criminal
34
à política criminal nada tem a ver com compromissos teóricos
de um certo movimento, liderado por von Liszt no final do
século XIX, que chegou a ser chamado de “ escola da política
criminal” 2.
O campo da política criminal tem hoje uma amplitude
enorme. Não cabe mais reduzi-la ao papel de “ conselheira da
sanção penal” , que se limitaria a indicar ao legislador onde e
quando criminalizar condutas3. Nem se pode aceitar a primitiva
fórmula lisztiana de sua relação com a política social: esta se
ocuparia de suprimir ou limitar as condições sociais do crime,
enquanto a política criminal só teria por objeto o delinqüente
individualmente considerado4. Em ambos os casos, estão sendo
pagas elevadas taxas à criminologia positivista: taxa política no
primeiro caso (a aceitação legitimante da ordem legal não per
mite que a política criminal visite o outro lado, circunscrevendo-
a às funções de “ conselheira da sanção penal” ), taxa teórica no
segundo caso (a segregação arbitrária do indivíduo delinqüente
das condições sociais do crime sugere o reconhecimento de
processos causais distintos — ainda que ao gênero “ fatorialista”
— de ordem social e individual, tendo como seqüela que a
política criminal também deve distingitir-se da política social). A
política criminal será, como diz Szabó, a prima pobre da política
2 Sobre as características desses com prom issos teóricos: B ergalli, op. c it., p. 90;
F rag o so , L içõ es, p. 48; A . B runo, op. c it., p. 111.
3 Para A. B runo, a política crim inal é “ um conjunto de princípios de orientação da
E stad o na luta c o n tra a c rim in a lid a d e , atrav és de m edidas aplicáv eis aos
crim in o so s” (op. c it., p. 33). P ara B asileu G arcia, " a política crim inal exam ina o
d ireito em v igor, apreciando a sua idoneidade na proteção social, contra os
crim inosos e , em resultado dessa crítica, sugere as reform as necessárias. V erifi
cado se a legislação vigenle alcança sua finalidade, trata de aperfeiçoar a defesa
ju ríd ico -p en al contra a d elin q ü e n c ia '' (op. c it., p. 37). Para M arc A ncel, "to d o
m undo parece con co rd ar com que a política crim inai tem de início por objeto,
indiscutivelm ente, a repressão do crim e, p elas m eios e procedim entos do direito
penal (ou, m ais am plam ente, do sistem a penal) em v ig o r” (P our une elude
system atique des probiem es de politique crim inelle. in A rchivcs de politique
c rim in elle, n" 1, P aris, 1975, p. 16).
4 von L iszt, Tratada, p. 112.
35
social5, mas está indissoluvelmente ligada a ela. Por isso mesmo,
muito nlais do que a histórica tensão entre a política criminal
(concebida como aquela “ conselheira” ,que procura aprimorar a
funcionalidade repressiva do sistema penal) e o direito penal
(concebido pela perspectiva garantístico-liberal), tão lapidar-
mente expressa por von Liszt (“ o direito penal é a barreira
infranqueável da política criminal” ), os grandes debates se tra
vam entre finalidades políticas diversas que pretendam modelar o
instrumento jurídico6, ou seja, entre políticas criminais diversas.
É ilustrativo perceber a influência do fracasso da pena priva
tiva de liberdade em concretas propostas de política criminal. Há
um século, von Liszt preconizava a suspensão condicional, subs
titutivos de caráter pedagógico para criminosos jovens, e se
insurgia contra as penas curtas, que “ não corrigem, não
intimidam’’ e, “ muitas vezes, encaminham definitivamente para
o crime o delinqüente novel” 7, A constatação, pela pesquisa
empírica nos últimos cinqüenta anos, do fracasso da pena priva
tiva da liberdade com respeito a seus objetivos proclamados,
levou a uma autêntica inversão de sinal: uma política criminal
que postula a permanente redução do âmbito de incidência do
sistema penal. Assim se entende Fragoso: “ uma política criminal
moderna orienta-se no sentido da descriminalização e da desjudi-
cialização, ou seja, no sentido de contrair ao máximo o sistema
punitivo do Estado, dele retirando todas as condutas anti-sociais
que podem ser reprimidas e controladas sem o emprego de
sanções criminais” 8, isto é, no sentido de uma “ conselheira da
sanção não-penal ” .
Baratta propõe quatro indicações “ estratégicas” para uma
política criminal das classes dominadas9, das quais apresentare
36
mos a seguir um resumo. Em primeiroíugar, numa sociedade de
classes a política criminal não pode reduzir-se a uma “ política
penal” , limitada ao âmbito da função punitiva do estado, nem a
uma “ política de substitutivos penais” , vagamente reformista e
humanitária, mas deve estruturar-se como política de transformação
social e institucional, para a construção da igualdade, da democracia
e de modos de vida comunitária e civil mais humanos. Em se
gundo lugar, a partir da consideração do direito penal como direito
desigual, deve-se empreender dois movimentos: 1?) instituir a
tutela penal em campos que afetem interesses essenciais para a
vida, a saúde e o bem-estar da comunidade (o chamado “ uso
alternativo do direito” ): criminalidade econômica e financeira,
crimes contra a saúde pública, o meio ambiente, a segurança do
trabalho, etc; 2?) contrair ao máximo o sistema punitivo, obser-
vando-se que muitos dos códigos penais vigentes foram elabora
dos sob o signo de uma concepção autoritária e ética do estado
(para o Brasil, basta Ier a Exposição de Motivos do vigente
Código Penal), descriminalizando pura e simplesmente ou subs
tituindo por formas de controle legal não estigmatizantes
(sanções administrativas ou civis)1". A esses objetivos correspon
deria uma profunda transformação no processo e na organização
judiciária, bem como na instituição policial81. Em terceiro lugar,
10 S òbre descrim in alização, cf. The d ecrim inaliiation, M ilão, 1975 (que contém as
atas do colóquio de B ellagio de 1973 sobre a tem a; o relatório H ulsm an faí
traduzido e publicado na R evista de D ireito P enal (RD P) n? 9-10, p. 7 ss); R eport
on ílt'crim iniüizíitiun,C nunc'ü o f Europc, E strasburgo, 1980; Peris R iera, J.M . ,£ '/
pro c eso d esp en a liza dor, V aléncia, 1 9 8 3 ;M ig u e lR e a le Jr., D escrim inalização, in
Rev. do In stitu to dos A dvogados B rasileiros (IA B ), ano V II, n" 29, p. 189 ss;
Iv etteS en ise F erreira, P olítica crim inal e descrim inalização, in fle v . IA B , ano VII,
nf 29, p. 196 ss; N ilo B atista, A lgum as palavras sobre descrim inalização, in RDP
n? 13, p. 28 ss. C om o acentuou F igueiredo D ias, “ um a Políticu C rim inal que sc
queira válid a para o presente e o futuro próxim o e para ura E stado de D ireito
m aterial, de cariz social e dem ocrático, deve exigir do direito penal que só
interv en h a co m os seus instrum entos próprios de atuação ali onde se verifiquem
lesões insuportáveis das condições com unitárias essenciais de livre realização c
d esenvolvim ento da personalidade de cada hom em ’ ’ (O s novos rum os da política
crim in a l e o direito p en a l po rtu g u ês do fu tu ro , L isboa, 1983, p. I I ) .
11 A esse p ro p ó sito , m erecem leitura e reflexão as recom endações concretas form ula
das p o r Z affaro n i, era seu estudo sobre o que denom inou, adequadam ente, de
37
e tendo como premissa o fracasso histórico da prisão, em suas
ftmções de controlar a criminalidade e promover a reinserção
social do condenado, bem como os verdadeiros fins que tem
exercido, pugnar pela abolição da pena privativa de liberdade12;
para aproximar-se desse objetivo, sugerem-se as seguintes
táticas: a) implantação de “ substitutivos penais” ; b) ampliação
de formas de suspensão condicional de execução e livramento
condicional; c) introdução de formas de execução em regime de
semiliberdade; d) reavaliação do trabalho carcerário; e) abertura
da prisão para a sociedade, mediante a colaboração de órgãos
locais. Por essa linha, a alternativa oferecida ao mito da reeduca
ção consistiria na criação de condições que levassem o conde
nado a compreender as contradições sociais que o conduziram a
uma reação individual e egoística (o cometimento do crime),
que, desenvolvida nele a consciência de classe, se transformaria
em participação no movimento coletivo. Em quarto e último
lugar, preocupado com os processos ideológicos e psicológicos
que se desenvolvem em tomo da opinião pública, ao escopo de
legitimação do direito penal desigual (com referência especial
aos processos de indução de alarma social, que se apresentam em
“ campanhas de lei e ordem” manipuladas por forças políticas,
" n o v a defesa in d iv id u a l" (P olítica crim inal latinoam ericana, B. A ires, 1982,
pp. 2B a 30).
12 O abolicionism o penal, caracterizado po r S cheerer com o um a ' 'leoría sensibiliza-
d o ra” , na acepção que S cheff atribuiu ao interacionism o, ou seja, com o um a
" t e o r i a '' que, dispondo da capacidade de superar de algum a form a as classifica-
ções, pressupostos e m odelos tradicionais, não consegue, entretanto, proporcio
nar, com seus p róprios instrum entos m etodológicos e conceituais, a adequada
v erificação das novas idéias produzidas (Scheerer, S ebastían, La abolición dei
sistem a penal: u n a perspectiva en la crim inologia contem porânea, in R e v . D erecho
P enal y C rim inologia, v . V III, n? 2fi, B ogotá, 1985, p. 205), tem seu m ais
m ilitante p rofela em L ouk H ulsm an, para quem o sistem a dc reação social form al
penal é algo com pletam ente inútil e problem ático em si m esmo, podendo, à
m íngua de qualquer função, se r deixado de lado (Sistem a p en a l y seguridad
ciudadana: hacia una a lternativa, trad . S. P olitoff, B arcelona, 19B4). Para
o utros, com o N ils C h ristie, só após alterações estruturais nas sociedades pós-ín-
du striais, com a reorganização dos processos de controle social, será possível a
abolição ÍL im its to p a in , O slo, 1983).
38
produzindo a falsa representação de uma solidariedade social
gerâl contra um comum “ inimigo interno” ), propõe Baratta uma
“ batalha cultural e ideológica em favor do desenvolvimento de
uma consciência alternativa no campo das condutas desviantes e
da criminalidade” , tentando-se inverter as ‘‘relações da hegemo
nia cultural com um trabalho de decidida crítica ideológica, de
produção científica e de informação” 13.
Um pequeno, mas decisivo, capítulo dessa batalha pode ser
travado nos livros dedicados ao ensino do direito penal.
13 O p. c it., p. 219. Farto m aterial sobre política crim inal pode ser encontrado na
ftevu e In ternationale de D roit P ênal, n? 1, 1978, contenda i»s atas do colóquio de
M adri sobre PoKtica C rim inal e D ireito Penal.
39
Capítulo II
A DESIGNAÇÃO “DIREITO
PENAL” E SUAS ACEPÇÕES.
PRINCÍPIOS BÁSICOS DO
DIREITO PENAL. MISSÃO DO
DIREITO PENAL. A CIÊNCIA
DO DIREITO PENAL.
§ 5v
1 Cf, R affo , J ,, In tro d ução ao conhecim ento ju ríd ic o . R io, 1983, p. 16.
2 As sanções ju ríd icas tém geralm ente caráter reintegrativo (visando, real au sim
bolicam ente, a restabelecer a situação jurídica anterior ao ilícito) oü com pensa
tório (visando, na im possibilidade da reintegração do stato t/uo ante, a um a
reparação). A p en a tem caráter retributivo: ela im plica in flig irão responsável pelo
crim e, sob a form a d e perda ou restrição de bens ju ríd ico s ou direitos subjetivos,
um mal que excede a sim ples possível reintegração ou a com pensação devidas.
Sobre o tem a, cf. Soler, Conceito e objeto do direito penal, in R DP 4/30 ss;
F ragoso, L içõ es, p. 292. P ara H art, o prim eiro elem ento da definição de pena
reside na im plicação de “ dor ou outras conseqüências norm alm ente consideradas
d esag ra d áv eis" (P unishm ent and responsability, L ondres, 1973, p. 4 ). Cf. ainda
R oss, On gu ill, responsability, a n d p u n ish m e n t, L ondres, 1975, p . 36. Diz
Jesch ec k q u e “ neg ar o caráter de mal à pena eqüivaleria a negar o próprio conceito
de p e n a ” (Tratado d e derecho pen a l, trad. P uig-C onde, B arcelona, 1981, v. I, p,
9 1). D iz nosso A níbal Bruno: “ é de sua essência o caráter aflitivo e re trib u tiv o ''
(op. c it., t. 3?, p. 23). E im portante ter presente que o caráter retributivo, em bora
o fereça um critério relativam ente seguro para distinguir a pena das dem ais san
ções, nem , p o r um lado, esgota ou lim ita a discussão sobre objetivos e funções da
pena, n em , p o r outro, circunscreve-a com exclusividade ao cam po do direito
43
Vemos, portanto, que o elemento que transforma o ilícito
em crime é a decisão política — o ato legislativo — que o
vincula a uma pena. Esse é o substrato das definições formais
de crim e3, e ele nos revela que a pena não é simples
“ conseqüência jurídica” do crime, mas sim, antes disso, sua
própria condição de existência jurídicaJ. Se nos dermos conta
de que, no momento da aplicação da norma penal, através de
44
uma decisão judiciária — que é também um ato político — , o
crime se põe como condição de existência jurídica da pena5,
compreenderemos a relação dialética que continuamente as
socia e distingue esses conceitos opostos, que se fundamentam
e se negam reciprocamente.
Assim vistas as coisas, o debate sobre a designação direito
“ penal’ ’ ou direito “ criminal” poderia sugerir o debate sobre
o ovo ou a galinha, não fosse o concurso de três variáveis, que
examinaremos a seguir.
A expressão “ direito crim inal” é mais antiga, e historica
mente se observa uma gradual prevalência da expressão
“ direito penal” , que teria sido empregada pela primeira vez,
segundo Mezger6, por Regnerus Engelhard, em 1756, popula
rizando-se, segundo Bustos, após a promulgação do código
penal francês de 18107.
A primeira variável que se deve considerar é a influência
da. opção do legislador. Entre nós, no Império, a Constituição
recomendou que se elaborasse um código criminal\ no que foi
obçdecida com o Código Criminal de 1830. Já o primeiro
código da república, de 1890, se chamou Código Penal, ainda
que a Constituição republicana de 1891 viesse a referir-se a
“ direito crim inai” 1'. As demais constituições adotaram a de
signação direito penal10, e o código de 1940 se chamou Código
5 N avarrete fala era “ c a u s a " : “ O crim e é a causa ju ríd ica da pena, e m ais exata
m ente o seu fu n d am en to " (D erecho p e n a l, P .G ., B arcelona, 1984, p. 28).
6 T ratado de d erecho p en a l, trad. R . M unoz, M adri, v. I, p. 27.
7 Intro d u cciâ n al derecho p e n a l, B ogotá, 1986, p. 3.
8 C onstituição de 1824, art. 169, inc. XV III: "ó rg an izar-se-á quanto antes um
código civil, e criminal, fundado nas sólidas bases da Justiça e Eqüidade” ,
9 N o inciso 23 do artigo 34, que previa a com petência do C ongresso Nacional:
' ‘leg islar sobre o direito c iv il, com ercial e crim inal da R epública e o processual da
ju stiç a f e d e ra l" .
10 1934— art. 5?, inc. X IX , al. a; 1937 — art. 16, inc. XVI; 1946— art. 5?, inc. X V ,
al. a; 1967 — a rt. 8 :, inc. X V II, al. b (m antido na E m enda n° 1 de 1969); 1988 —
art. 22, inc. I. E ntre nós, foi- R oberto L yra quem cham ou a atenção para a
im portância do texto co n stitu cio n al, num livro q u e , por influência do positivism o
ferrian o , se cham ava Introdução ao estudo do direito crim inal, R io, 1946, p. 47.
45
Penal. Tal influência é perceptível em Damásio", Mayrink da
Costa12, Batsileu Garcia13, M irabete14 e Magalhães Noronha15.
A segunda variável diz respeito a paradigmas doutrinários
que impliquem nomear o direito penal dessa ou daquela ma
neira. No processo histórico de prevalência da expressão direi
to penal, Bustos vê certa intenção de “ acentuar o caráter
sancionador deste direito como seu traço mais distintivo e
definitório” 16. Partilha dessa linha, entre nós, Brito Alves,
que privilegia a locução direito penal por ver na punibilidade a
“ nota específica do crime, a sua conseqüência jurídica mais
natural ou lógica, como a circunstância predominante, como a
característica maior” 17. É sempre lembrada a designação Có
digo de Defesa Social, introduzida (1936) em Cuba18. O uso da
expressão direito criminal, em 1946, por Roberto Lyra, expri
me a influência que sobre ele exercia o pensamento de Ferri” .
46
Outras designações de regência doutrinária costumam ser
evocadas20.
A variável mais importante, contudo, diz respeito ao al
cance descritivo da designação proposta, isto é, à sua capaci
dade de compreender determinados conteúdos. Mestieri, por
exemplo, opta por Direito Criminal porque deseja abranger
também o direito processual penal e respectiva organização
judiciária21. Aqui, a principal objeção à designação direito
penal foi oposta pelo advento, no final do século XIX, das
medidas de segurança22. Como diz Mir Puig, “ o direito penal
20 T ais designações nem sem pre significam nom ear, senão orientar o direito, ao
contrário do que pode supor o iniciante. D erecho p ro te cto r de tos crím inales,
sem pre lem brado em textos brasileiros de iniciação, não é o nom e de um antepro
je to de código elaborado por D orado M ontero, e sim o nom e da segunda edição
revista e aum entada, em dois volum es (1915), de seus E stúdios de derecho penal
p reven tivo . A trás d essa designação estav a a m ais hum antstica e generosa vertente
que □ positivism o consentiu — po r isso m esm o, rom pida com ele na vulgaridade
d etsrm infstica do hom em delinqüente — , capaz de pretender da adm inistração da
ju stiç a um a função de m edicina social, fraternalm ente com prom etida com o
crim in aso -p acien te, com quem deve repartir, enquanto agente social, a responsa
b ilidade — solidária e coletiva — pelo crim e-doença (B ases p a ra um nuevo
derecho p e n a l, B . A ires, 1973, pp. 65 ss). Do m esm o m odo, “ direito repressivo”
é apenas titulo de um livro publicado, em 1883, cm T urim , pelo positivista
Ferdinando Puglia (P rolegom eni alio studio dei diritto repressivo).
21 O p. c it., p . 4 . Frosali reuniu num a só obra o estudo do d ire ito e do processo penal
sem renunciar a esta designação, porém atribuiu à obra o titulo geral de Sistem a
p e n a l ita lia n o , e d e s ig n o u os trê s p rim e iro s v o lu m e s .d e " d ir e ito penal
su b stan cial” e o últim o de ‘‘direito processual penal” (Frosali, R .A ., Sistem a
p en a le italiano, T u rim , 1958).
22 Da verificação do fracasso prático da pena (expresso na m ulti-reincidência e na
ascensão d a crim inalidade) e do determ inism o positivista, que lhe questionava os
fundam entos, surgiram as m edidas de segurança com o segunda ordem de reação
ju ríd ica ao crim e, aplicáveis n o pressuposto da perigosidade e não, com o a pena,
da cu lpabilidade do indivíduo. A o lado das penas, autonom am ente aplicáveis, as
m edidas de segurança com poriam um regim e binário (pena e m edida). R ecebidas
no direito brasileiro pelo C ódigo Penal de 1940, po r direta influência do Código
R occo, co m desem penho inteiram ente ineficaz, foram consideravelm ente reduzi
d as em 1984, suprim indo-se seu aspecto m ais polêm ico (m edida de segurança
d eten tiv a p ara im putãveis). H oje, subsistem som ente a internação em hospital de
custódia e tratam ento psiquiátrico e o tratam ento am bulatorial para inim putáveis
ou, sob regim e vicariante (pena ou m edida), para sem i-im patáveis.
47
já não é hoje apenas o direito da pena’ ’; diante das medidas de
segurança, “ direito penal parece expressão demasiado estreita
para abranger tudo o que pretende significar hoje” 23. E essa a
razão que levava Costa e Silva a dizer que “ a denominação de
código penal não se adapta com exatidão à matéria contida
nesse diploma” 24, ou Magalhães Noronha a reconhecer que a
expressão código criminal “ é mais compreensiva” ’5, ou Ba-
sileu Garcia a referir-se ao “ plausível fundamento” da locu
ção “ direito crim inal” 36.
Deve prevalecer a expressão direito penal. Em primeiro
lugar, porque, como vimos, a pena é condição de existência
jurídica do crime — ainda que ao crime, posteriormente, o
direito reaja também ou apenas com uma medida de se
gurança. Pode-se, portanto, afirmar com Mir Puig que a pena
“ não apenas é o conceito central de nossa disciplina, mas
também que sua presença é sempre o limite daquilo que a ela
pertence” 37. Em segundo lugar, porque as medidas de se
gurança constituem juridicamente sanções com caráter retri
butivo, e portanto com indiscutível matiz penal. Na Exposição
de Motivos da lei que reformou a Parte Geral do Código28,
representando a opinião comum no Brasil, está registrado que
a medida detentiva para imputáveis é “ na prática uma fração
de pena eufemisticamente denominada medida de seguran
ça” . Afirma Zaffaroni que, “ salvo o caso dos inimputáveis,
48
sem pre que se tira a liberdade do homem por um fato por ele
praticado, o que existe é uma pena” 25.
Contudo, não hesitamos em afirmar que mesmo as medi
das concernentes a inimputáveis, ainda que se orientem para
fins de proteção e melhoramento,"operam pela via retributiva
da perda ou restrição de bens jurídicos ou direitos subjetivos, e
ostentam igualmente matiz penal. Neste sentido, peremptória-
mente, Fragoso: “ Não existe diferença ontológica entre pena e
medida de segurança” 30.
Em todo caso, quem não quisesse ir tão longe poderia
contentar-se na verificação de que mesmo a imposição dessas
medidas pressupõe o cometimento de um crime — algo que só
se constitui juridicamente a partir da pena. Por tudo isso, e
também porque, histórica e antropologicamente, são as penas,
tais como efetivamente executadas, que definem objetivos e
perfil da categorização jurídica de condutas humanas como
crimes e de seu correspondente tratamento político, o melhor
nome para nossa disciplina é direito penal.
49
§6
50
pressão, aí, numa acepção de ciência do direito penal, ou direi to
penal-ciência. Já foi muito observado que, especialmente para
o iniciante, o fato de a ciência e de seu objeto terem o mesmo
nome (“ direito penal é a ciência que estuda o direito penal” )
pode gerar alguma perplexidade e confusão.
Nos próximos parágrafos, procuraremos desenvolver al
guns aspectos essenciais dessas três chaves de abóbada que, nos
planos normativo, político e científico, se relacionam e se dis
tinguem, embora usem o mesmo nome.
51
§ 7?
O direito penal como direito público
1 Op. cit., p. 4.
2 O p. c it., p . 12.
3 L ições p re lim in a res de direito, S. P auto, 1973, p. 385: "q u a n d o um a norm a
proíbe que alguém se aproprie de um bem alheio, não está cuidando apenas do
interesse da vítim a, m as, im ediata e prevalecentem ente, do interesse s o c ia l" .
52
tivas, Fragoso fundamenta a inclusão dodireito penal no direito
público não só porque sua proteção “ refere-se sempre a interes
ses da coletividade” como também porque “ o estado detém o
monopólio do magistério punitivo, mesmo quando a acusação é
promovida pelo ofendido” 4.
Uma revisão dessas perspectivas fundamentadoras supõe a
intervenção de três linhas críticas: 1? critica da distinção a-
histórica entre direito público e direito privado; 2; critica do
estado como abstração a-histórica; 3? crítica do positivismo
jurídico-penal.
Em primeiro lugar, portanto, cumpre verificar que a distin
ção direito privado— direito público era completamente des
conhecida das práticas penais primitivas, nem faria sentido
perante elas5, aparecendo pela primeira vez no direito romano,
na famosa passagem de Ulpiano6. Sabemos como se deu, em
Roma, a superação do regime gentílico pelo incoercível movi
mento da plebe afluente, que conduziu à “ destruição da antiga
ordem social fundamentada nos vínculos de sangue” 7, substi
4 L içõ es, c it., p. 2. S o bre o aspecto, A níbal Bruno: " se em certos casos a atuação do
direito punitivo fica dependente de queixa do ofendido e só este pode provocar o
m ovim ento da ju stiç a , isso é m era condição do processo, que não altera o caráter
público d a definição e com inação penal c da aplicação e execução da sanção
p u n itiv a " (op. c it., v. I, t. XV, p. 25).
5 M ax W eber, E co n o m ia y so c ied a d , trad. J. E chavarría et a i., B ogotá, 1977, v. I,
p. 503; M achado N eto, C om pêndio de introdução à ciência do direito, S. Paulo,
1975, p. 241; L osano, op. c it., p. 140.
6 D ig esto , liv. 1", tit. I, 1, § 2": “ E direito público aquele que se refere ao estado da
cc isa R om ana (a d statum rei R om anae specm i); privado, aquele (que se refere) à
utilidade d e cada in divíduo (q u o d a d singuloritm urilitatem ); pois um as coisas süo
úteis p ública e outras privadam ente. O direito público consiste nas coisas sagra
d as, as d os sacerdotes c as dos m agistrados (in sacerdotibus, in m agistratibus
co nsistit). O d ireito privado é trip artíd o , pois está com posto dos preceitos naturais,
ou dos das gen tes, ou dos civis (e.t naturalibus p ra ecep lis, aui gem ium , aut
civiiib u s) ' '. C om o o bserva B onfante, a expressão res publica rom ana corresponde
ao term o " e s t a d o " , em sentido político, enquanto status corresponde ao m esm o
term o em sentido an to ló g ico ou natural (In stim cio n es de derecho rom ano, trad. L.
Braci et a l., M ad ri, 1965, p. 13).
7 Engels, F ., A origem da fam ília, da propriedade privada e do estado, trad. L. Konder,
in O bras escolhidas, R io, Í963, v. 3, p. 104. O term o "d estru íd o ” (distrutlo) é
tam bém em pregado por Guarini.t (La rivoluzione delia plebe, N ápoles, 1975, p. 256).
53
tuída por uma ordem de estado, baseada na representação de
classes áociais diferenciadas pela riqueza e na divisão terri
torial. A distinção direito privado—direito público, no processo
histórico que estatui e conduz a república romana, não conse
gue disfarçar que interesses privados do patriciado se conver
terão, pela mediação do estado, em interesses públicos: a ado
tar-se essa fórmula da utilidade (Ulpiano), nada foi mais útil
para a sobrevivência do patriciado do que o surgimento históri
co do estado, e, neste sentido, nada nasceu maisprivado do que
o público®. De qualquer sorte, estabelece-se uma tendência a
que o poder {imperium) seja o eixo do direito público, enquanto
a propriedade (dominium) seja o eixo do direito privado, e efeti
vamente o estado tende a monopolizar a titularidade e o exercí
cio de direitos públicos, discemíndo-se entre as atribuições
políticas do monarca e seus direitos privados9. A Idade Média
assistiria à superposição daqueles dois eixos — imperium e do
minium — na pessoa do senhor feudal, cujo poder político deri
vava da propriedade da terra e da form a peculiar de sua
exploração10. Com a dissolução do mundo feudal, dando par
tida à ascensão social da burguesia e ao processo político de
formação dos estados nacionais, reanima-se a distinção. Rad-
8 Obviam ente m uito distante dessa linha, D el Vccchio registrava que “ o critério dessa
utilidade é assoz incerto. Não podem separar-se, de um m odo seguro e nítido, os
interesses gerais dos interesses particulares” (Lições dejilosofia do direito, írad. A.
Brandão, C oim bra, 1979, p. 390). Pode dem onstrá-lo a longa convivência rom ana
entre o direito penal privado e o direito penal público, bem com o a gradativa
transm igração de m atéria crim inal do prim eiro para o segundo, desde que não nos
conform emos com o distingo processual, e tentem os capturar sua filogenia substan
cial a partir respectivam ente da disciplina penal dom éstica e do direito de guerra.
V eja-se, amplamente inform ativo, M om m sen, Le droit p énat romain, trad. Du-
guesne. Paris, 1907, t. I, p. 16 a 73.
9 Herm es U m a , Introdução à ciência do direito. Rio, 1955, p. 64,
10 Sobre o aspecto, Leo Huberm an, H istória da riqueza do homem, trad. W . Dutra, Rio,
1979, cap. 1. Registra Pasukanis que " o s direitos públicos do senhor feudal sobre os
servos eram ao m esm o tem po seus direitos com o proprietário privado; de modo
recíproco, seus direitos e interesses privados podem ser interpretados, se se quiser,
com o direitos políticos, isto é , públicos” (Teoria general det derecho y marxismo,
trad. V. Z apatero, Barcelona, 1976, p. 116).
54
bruch dirá que “ a superação do feudalismo coincidiu com o
aparecimento da consciência dessa distinção entre direito pú
blico e privado” " . A burguesia revolucionária destruirá o ab-
solutismo, conferindo positividade jurídica aos direitos de seu
imediato interesse econômico e político, até então deduzidos da
razão como “ direitos naturais” , e logo os instalará nos textos
constitucionais como direitos subjetivos públicos12. A distin
ção direito privado— direito público novamente será chamada a
proclamar como de utilidade geral aquilo que na véspera da pro
clamação legal era do interesse particular de uma classe social.
Com o advento de revoluções socialistas, e com alterações
operadas no capitalismo (do capitalismo competitivo, corres
pondente ao estado gendarme, ao capitalismo monopolista, ao
crescente intervencionismo, ao Welfare State), surgem em nos
so século novas propostas para equacionar a relação direito pú
blico— direito privado. De qualquer modo, assiste toda razão a
M achado N eto q u an d o a s sin a la “ o c a rá te r h istó ric o -
condicionado dos dois conceitos e da distinção” 13.
Em segundo lugar, e como entrevisto anteriormente, im
porta questionar esse estado promotor da “ harmonia e esta
bilidade sociais, que visa a “ assegurar bens essenciais à cole
tividade toda” , permanente defensor dos “ interesses da
coletividade” ; importa, em suma, “ desmítificar o papel do
estado” 14. Para isso, é preciso ter presente que o estado, como
historiograficamente demonstrou Engels, foi um produto de
sociedades que, em certo grau de desenvolvimento, se enre
daram em contradições, advindas de antagonismos inconciliá
veis, e para que as classes com interesses econômicos coliden-
55
tes não se entredevorassem, estabeleceu-se, dentro do espec
tro político no qual concretamente podiam resolver-se tais
contradições, um poder aparentemente acima da sociedade —
mas dela originado— , que é o estado15, o qual adquiriu logo
uma “ configuração autônoma de interesse geral” , embora, na
sociedade de classes, isso não passe de uma “ ilusória comuni
dade de interesses” 16. Por isso, através da deformação ideoló
gica, como lembra Guastini, o estado pode aparecer “ como
encarnação do interesse universal-abstrato, distinto e superior
aos interesses particulares-concretos antagônicos, que se agi
tam na sociedade civil” 17. O direito e o estado — ensina
Munoz Conde — “ não são expressões de um consenso geral
de vontades, e sim reflexões de um modo de produção, formas
de proteção de interesses de classe, da classe dominante no
grupo social ao qual esse direito e esse estado pertencem1". Ou,
nas palavras de Lyra Filho, “ na sociedade de classes, o estado,
como sistema de órgãos que regem a sociedade politica
mente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam
o processo econômico, na qualidade de proprietários dos
meios de produção” 19. Em conseqüência, o poder político do
estado tem limites e orientação no poder da propriedade
privada dos meios de produção; Leandro Konder transcreve
um excerto de Marx, segundo o qual apenas sobra para o
estado “ a ilusão de que determina, quando na verdade é
determinado” 2". Diante disso, convém não só reavaliar a fun
ção ideológica muita vez desempenhada pela distinção direito
privado— direito público, como também receber com reservas
56
proposições que tenham como premissa um estado abstrato,
a-histórico, neutro e igualitário guardião dos interesses de
todos. Diante da colocação citada de Miguel Reale (a crimi-
nalização da apropriação indébita não atende apenas ao in
teresse da vítima, e sim ao interesse social), devemos pergun
tar-nos — sem que isso implique incondicional oposição a
alguma tutela penal da propriedade — se a criminal ização da
apropriação indébita atende igualmente ao interesse de proprie
tários e de não-proprietários.
Por último — e agora implicando também o direito pe-
nal-ciência — , cabe a crítica do positivismo jurídico-penal,
assim entendido como a postura que reduz o objeto de estudo
do penalista exclusivamente ao direito estatal, a partir da
afirmação de que “ não existe outro direito além do direito
positivo” 21. Partimos da premissa de que o trabalho do cien
tista e, em certa medida, a fronteira de seus resultados, princi
piam pela eleição e construção do objeto do afazer científico.
Não se pretende aqui aviventar a polaridade jusnaturalis-
mo-positivismo jurídico. Há textos de iniciação que fazem
profissão de fé jusnaturalista, como o de Baumann: “ a essên
cia do au tên tic o d ire ito penal co n co rd a com os dez
mandamentos” ” . A ferocidade irracional da legislação penal
nazista suscitou importante polêmica sobre o tema1J, que ora
não abordaremos. Como técnica jurídica de garantia (a famosa
57
‘ ‘barreira infranqueável da política criminal” ), o direito penal
tem que jungir-se à lei penal: não se pode infligir pena sem
cominação legal anterior ao fato (princípio da reserva legal, ou
da leg alid ad e). A “ necessidade de lim itar o risco da
arbitrariedade” 34 deve manter distante do direito penal esse
“ fantasma proteiforme” que Fassò divisa no direito natural15:
isso nem deve significar que o ofício do penalista se converta
num culto votivo às normas estatais, nem exclui de nosso
interesse o que há de penal para além dessas normas. “ A
percepção da lei como objeto único do fenômeno jurídico nada
mais é do que um reducionismo vinculado a uma tradição
ideológica identificável com a consolidação do estado
liberal” , ensina José Eduardo Faria36. Como frisava, com seu
peculiar vigor, Lyra Filho, “ se o direito é reduzido à pura
legalidade, já representa a dominação ilegítima, por força
desta mesma suposta identidade; e este ‘direito’ passa, então,
das normas estatais, castrado, morto e embalsamado, para o
necrotério de uma pseudociência, que os juristas conserva
dores, não à toa, chamam de dogmática” 37. Sem dúvida, o
objeto privilegiado do direito penal são as normas jurídicas
estatais, tal como von Liszt apontou em sua influente defini
ção (staatlichen Rechtsregeln). Entretanto, pode o estudioso
do direito penal brasileiro do século XIX ignorar o direito
penal doméstico, o grande sócio oculto — e majoritário — do
direito penal comum no controle terrorífico da escravaria? Quais
as verdadeiras normas processuais da ditadura militar, duran
te nossos “ anos de chumbo” : aquelas que constavam do Código
de Processo Penal Militar e de dispositivos da Lei de Se
gurança Nacional, ou outras, que nunca puderam ser lidas em
nenhuma biblioteca, mas permitiam a tortura, a morte e a
24 Figueiredo D ias, D ireito p en a l (sum ária das Lições), Coim bra, 1975, p. 3.
25 Socielà, tegge e ragione, M ilão, 1974, p. 202.
26 Paradigm a jurídico e senso com um : para um a critica da dogm ática jurídica, in Araújo
Lyra, D esordem e processa, c it., p. 63.
27 Op. c it., p. 12.
58
ocultação do cadáver de indiciados? A face ilegal do sistema
penal18-, com suas detenções arbitrárias, espancamentos e exe
cuções capitais, em nada nos interessa? Somente as formas
penalmente típicas (seqüestro qualificado, custódia indevida,
maus-tratos, violência arbitrária, por exemplo) do exercício
abusivo dos controles psiquiátricos e disciplinares nos dizem
respeito, e não a urdidura normativa subterrânea que articula
sua aplicação intensiva contra grupos m inoritários ou
dissidentes? O estudo do direito penal que inclua este contra
ponto, através do qual as normas e práticas penais de determi
nada sociedade podem ser entrevistas em sua globalidade, sem
circunscrever-se ao discurso legal do estado, não deve sacrifi
car a qualidade técnica da reconstrução do direito positivo,
perdendo-se no labirinto ilusório da polaridade jusnaturalis-
mo-positivismo. Com rara precisão, sentenciou Marilena
Chauí: “ Abstrações gêmeas, o positivismo jurídico toma o
direito como um fato, enquanto o jusnaturalismo o apreende
como idéia. Ancorado na positividade imediata da Ordem, o
positivista dissimula a significação social de seu conceito-cha-
ve, isto é, que em sociedades divididas em classes a ‘ordem’ é
apenas o que a classe dominante ordena. Apoiado na ideali-
dade imediata da Justiça, o jusnaturalista mantém a gênese do
justo fora do movimento social que o constitui ou que o
dissimula. A crença na positividade do ‘dado’ e a confiança na
imobilidade da ‘idéia’ fazem com que o positivista e o jusna
turalista percam o movimento histórico pelo qual os dados se
cristalizam em conceitos e as idéias se petrificam em institui
ções, perda que deixa a ambos na impossibilidade de compre
ender como a ordem ‘dada’ se converte em ordem necessária e
com o a ju s tiç a ‘p e n s a d a ’ se co n v erte em legalidade
instituída” 29. Aquela “ lei natural do direito” a que se referia
Tobias Barreto (cf. § 1?) restará melhor esclarecida se nos
59
dermos conta, como Fassò, de que “ a natureza do homem é a
história, que se realiza na multiplicidade do devir dos indiví
duos e dos povos” 30; um direito antropomórfico não procura
radicar-se nem na coercitividade cega de sua própria validade,
nem na miragem de uma justiça algébrica e intemporal, senão
no concreto processo histórico em que se insere.
Ressalvado, portanto, o caráter histórico-condicionado da
distinção entre direito privado e direito público; empreendida
a crítica do estado como abstração a-histórica; e verificadas as
limitações do positivismo jurídico-penal, é correto afirmar-se
que o direito penai pertence ao direito público interno.
30 O p. c it., p. 229.
60
§ 8?
Princípios básicos do direito penal
61
possa elaborar-se o direito penal de um estado de direito
democrático.
É comum que os autores procurem deduzir tais princípios,
seja de seus conceitos de direito penal, seja das conexões deste
com outros ramos do direito, seja de “ características” do
próprio direito penal, ou ainda situá-los como princípios inter-
pretativos. Assim, para Navarrete o princípio da intervenção
mínima seria uma nova dimensão do fundamento da afirmação
do caráter fragmentário do direito penal3. Para Mir Puig, o
princípio da legalidade configura um limite de intervenção
derivado do fundamento político do direito penal subjetivo4; é
também da perspectiva de limites ao ju s puniendi que Bustos
extrai, entre outros, os princípios da intervenção mínima e da
legalidade3. A subsidiariedade do direito penal, característica
que sem dúvida se relaciona com o princípio da intervenção
mínima, é examinada por Maurach a partir das conexões entre
o direito penal e os demais ramos do direito6. Para Zaffaroni, o
princípio da humanidade integra um conjunto de cânones a
serem observados na interpretação da lei penal, ainda que o
houvesse anteriormente deduzido, sob a expressão da propor
cionalidade da pena, de seu refinado conceito de “ segurança
jurídica” 7.
O que, inicialmente, reuniu esses princípios básicos, de
origem, estrutura e objeto tão diversificados, foi sua natureza
axiomática e a amplitude de sua expansão lógica. Quanto ao
p rim e iro a s p e c to , é co m u m serem re fe rid o s com o
“ postulados” 8ou “ dogmas f u n d a m e n ta is C o m efeito, não
3 O p. cit., p. 100.
4 O p. c it., p. 141.
5 O p. c it., pp. 25 e 32.
6 Tratado de derecho penal, trad. Cdrdoba Roda, B arcelona, 1962, v. I, pp. 30 e 31.
7 M anual, cit., p. 134 e p. 50.
8 M aurach, op. cit., p. 31: “ do ponto de vista dc polttica jurídica, a seleção e a
acum ulação dessas medidas se encontram subm etidas ao postulado de que não se
justifica aplicar um recurso m ais gruveq uando é cabível esperar-se o mesmo resultado
de um mais suave” .
9 Everardo da Cunha Luna, Capítulos de direito penal, S. Paulo, 1985, p. 31.
são eles dedutíveis logicamente de quaisquer outros e tampou
co demonstráveis. Sua larga aceitação, que a progressiva con
quista histórica sedimentou, e as negações frontais episódicas
(como no direito penal da segurança nacional) ou dissimuladas
permanentes (como no desempenho do sistema penal nas so
ciedades de classes) só fazem aviventar, confere-lhes, a des
peito de seu cunho prescritivo, um cariz de opiniões acredita
das e verossímeis fendoxa), no sentido aristotélico retomado
por Viehweg10, que os habilita a funcionar como premissas
arbitrariamente tomadas, a partir das quais, contudo, no escla
recimento e reconstrução das normas jurídicas, se podem esta
belecer articulações lógicas. De fato, “ não há crime sem lei
anterior” é uma proposição cuja conveniência política e cuja
densidade moral são amplamente aceitas tanto pelo homem
comum quanto pelo especialista, embora seja possível cons
truir um direito penal sobre um princípio oposto — como fez o
nazismo". Quanto à amplitude referida, os princípios básicos
comprometem o legislador, transitando assim pela política
criminal, e os aplícadores da lei — do juiz da Corte Suprema
ao mais humilde guarda de presídio — , devendo ser obriga
toriamente considerados| pelos que se propõem a estudá-la.
Mais tarde, alguns dos princípios básicos lograram obter
reconhecimento em nível internacional (interessam-nos, espe
cialmente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, da
ONU, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos) ou
em nível interno (vendo-se consagrados no texto da Constitui
ção, como, com respeito a alguns deles, ocorre entre nós).
Como os princípios básicos implicam também caracteri
zar o direito penal, devemos, ao procurá-los, descartar desde
10 Tópica e jurisprudência, trud, Tércio Sam paio Ferraz J r., Brasília, 1979, p. 25.
11 Lei de 28.jun.35 alterou o § 2? do em ão vigente código penal alem ão, que proibia a
analogia, afirm ando se r “ punida quem comete um fato que a lei declara punível ou
que é m erecedor de punição segundo o conceito que dá fundam ento a um a lei penal e
segundo o são sentim ento do povo; se ao fato não se puder aplicar nenhuma norma
penal determ inada, deverá ele ser punido de acordo com a norma cuja conceito
fundam ental m elhor lhe seja aplicável".
63
logo duas linhas. A primeira está nos atributos de todo o
ordenam ento ju ríd ico , com o, por exem plo, seu caráter
“ finalista” 12. Como diz Zaffaroni, “ o direito penal, por ser
direito, participa de todos os caracteres do direito em geral: é
cultural, é normativo, é valorativo, etc” 13; por isso mesmo,
tais atributos não nos interessam aqui. A segunda linha a
descartar-se é aquela que se detém diante da própria sanção
com a qual opera o direito penal — a pena — , para tomá-la
como sua característica essencial1,1, não porque não o seja, mas
porque ficaremos perigosamente imobilizados numa redun
dância.
Em nossa opinião, são cinco os princípios básicos do
direito penal: 1. princípio da legalidade (ou da reserva legal,
ou da intervenção legalizada); 2. princípio da intervenção
m ínim a; 3. p rin c íp io da le siv id a d e ; 4. p rin c íp io da
humanidade; 5. princípio da culpabilidade. Nos próximos
parágrafos, forneceremos algumas indicações sobre cada um
deles, em nível genérico que corresponde a seu tratamento no
âmbito de uma introdução ao direito penal.
12 M irabete, op. c it., p. 15; M agalhães Norcmha, op. c it., p. 5; A súa, Tratado de
derecho penal, B. A ires, 1964, v. I, p. 35. Advirta-se que o term o ''fin a lista " é aqui
em pregado no sentido de que o direito penai se orienta teieologicam ente — com o,
entre outras, a teoria dos bens jurídicos dem onstraria — e persegue, através da
com inação, aplicação e execução da pena, fins; von Liszt, que m ais conseqüente
mente trouxe, inspirando-se em Jhering, a idéia de fim para o direito penal, falava
num a “ pena de fim ” , em oposição a uma pena que se esgotasse na retributividade.
Tal em prego do term o finalista nada tem a ver com as transform ações na teoria do
crim e, elaboradas na metade deste século, principalm ente por Hans W elzel, que
receberam o nom e de “ teoria da ação fin a l" , ou “ teoria fin alista", ou ainda sim ples
mente “ finalism o” .
13 M anual, c it., p . 55. Tam bém a “ coatividade" é um atributo geral do direito
(N avarrete, op. c it., p. 106).'
14 Registra Zaffaroni que a característica que distingue o direito penal de outros ramos
não está senão “ no m eio m ediante o qual provè à segurança jurídica: a p ena’’
(Manual, c it., p. 55).
B ib lio te c a C flfrtra l-P lM
§ 9?
O princípio da legalidade
1 Essa a preferência dc Fragoso, Lições, cit., p. 84. M unoz C onde usa a designação
“ princípio da intervenção legalizada” , o que lhe perm ite em parelhá-lo ao princípio
da intervenção m ínim a num quadro geral de lim itação do poder punitivo estatal
(Intrnducdún, c it., p. 58).
2 IntroduçãoàH istória, trad. M . M anuel e R. Grácio, ed. E uropa-A m érica, 4.‘ e d .,s /d ,
p. 43.
65
mera garantia processual restrita aos poucos ‘ ‘homens livres”
— , à procura de um antecedente3.
O artigo 9? da D eclaração de D ireitos da V irgínia
(12.jun.1776) afirmava que as leis com efeito retroativo, fei
tas para punir delitos anteriores a sua existência, são opressi
vas e não devem ser promulgadas. A seção 9í do artigo I da
Constituição americana (L7.set.1787) proíbe a promulgação
de decreto de proscrição (Bill ofAttainder) ou de lei retroativa
(exp o stfa cto Law). O artigo VIII da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão (26.ago.1789) prescrevia que nin
guém fosse punido senão em virtude de uma lei estabelecida e
promulgada anteriormente ao crime (loi établie et promulguée
anterieurement au délit). Parece que o primeiro corpo de leis
penais a incluir o princípio foi a codificação de D. José II da
Áustria, de 1787 (Josephina).
A fórmula latina foi cunhada e introduzida na linguagem
jurídica pelo professor alemão Paulo João Anselmo Feuerbach
(1775-1833), especialmente em seu Tratado que veio a lume
em 1801'*. Ao contrário do que se difunde freqüentemente, das
obras de Feuerbach não consta a fórmula ampla “ nullum
crimen nulla poena sine lege” ; nelas se encontra, sim, uma
articulação das fórmulas “ nulla poena sine lege” , “ nullum
crimen sine poena legali” e “ nulla poena (legalis) sine
crimine” 5. Um dos pilares sobre os quais se assentava a cons
trução feuerbachiana estava em sua concepção preventivo-ge-
ral da pena, entendida como “ coação psicológica” . Se a
intimidação era a mais relevante função da pena, e sua inflição
6 Cüttaneo, op. c it., p. 452; Frngnsn, Lições, cit,, p. 93; M uíioz C o n d e ,Introducáón,
c it., p. 87.
7 E m sí Bloch, D erecho natural y dignidad humana, trad. F. V irceu, M adri, 1980, p.
265.
8 “ Apenas as leis podem Fixar as penas com relação aos delitos praticados; e esta
autoridade não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a
sociedade agrupada prtr um contrato social. N enhum magistrado (que também faz
parte da sociedade) pode, com justiça, infligir penas contra outro m embro da mesma
sociedade” (.Dos delitos e das penas, trad. A. Carlos Cam pana, S. Paulo, 1978, p,
. 109).
9 Roxin, Iniciaciân nl derecho penal de hoy, trad. M. Conde e Luzón Pena, Sevilha,
1981, p. 98; Zaffaroni, M anual, c it., p . 49.
10 Art. X I, 2: "N inguém poderá ser cujpadü por qualquer ação ou om issão que, no
m om ento, não constituíam delito perante o direito nacionai ou internacional. Tam bém
não será im posta pena mais forte do que aquela que, no m om ento da prática, era
aplicável ao ato delituoso” .
11 A rt. 9.°: ‘ ‘Ninguém pode ser condenado p o r ações ou om issões au e, no m om ento cm
67
Entre nós, o princípio figura na Constituição, entre os
direitos e garantias fundamentais12 e no artigo 1? do Código
Penal, com a seguinte redação: “ Não há crime sem lei anterior
que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal” . A
abrangência do princípio inclui a pena cominada pelo legisla
dor, a pena aplicada pelo juiz e a pena executada pela adminis
tração, vedando-se que critérios de aplicação ou regimes de
execução mais severos possam retroagir. No que tange à exe
cução da pena, até mesmo a matéria disciplinar está agora
comprometida com o princípio da legalidade, como se vê do
artigo 45 da Lei de Execução Penal13,.
Sem dúvida, a principal função do princípio da legalidade
é a função constitutiva, através da qual se estabelece a positi
vidade jurídico-penal, com a criação do crime (pela associa
ção de uma pena qualquer a um ilícito qualquer). Nem sempre
se percebe que o princípio da legalidade não apenas exclui as
penas ilegais (função de garantia), porém ao mesmo tempo
constitui a pena legal (função constitutiva).
Pode o princípio da legalidade, visto pelo prisma de garan
tia individual, ser decomposto em quatro funções, que exami
naremos a seguir.
que forem com etidas, não sejam delituosas, de ncordo com o direito aplicável.
Tam pouco se pode im por pena mais grave que u aplicável no momento da perpctração
do d elito.”
12 Art. 5?, inc. XXXIX: “ não há crim e sem lei anterior que o defina, nem pena sem
p rév ia com inação le g a l” . T odas as C onstituições brasileiras proclam aram o
principio: C . 1824, art. 149, n? 1 1;C . 1891, art. 72, § 1 5 ; C . 1934, art. 113, n ? 26; C.
1937, art. 122, n? 13; C. 1946, art. 141, 8 27; C. 1967/E. 69, art. 153, 8 16 (cuja
redação, nas palavras de Pontes de M iranda, constituiu "docum ento histórico da
insuperada mediocridade governante de 1964-1967 " (C om entários à Constituição de
1967, S. Paulo, 1971, t. V , p. 242).
13 Lei n? 7.210, de 1 1.ju l.8 4 — Lei de Execução Penal (LEP), art. 45: “ N ão haverá falta
nem sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulam entar” .
Temos aqui a função “ histórica” do princípio da legali
dade, que surgiu exatamente para reagir contra leis ex post
facto. Tudo que se refira ao crime {por exemplo, supressão de
um elemento integrante de uma justificativa, qual a vox
“ iminente” na legítima defesa) e tudo que se refira à pena (por
exemplo, retificação gravosa na disciplina da prescrição) não
pode retroagir em detrimento do acusado. É hoje opinião
doutrinária dominante que a irretroatividade deva aplicar-se
também às medidas de segurança14. Note-se que a lei penal
retroagirá sempre que beneficiar o acusado, seja pela revoga
ção da norma incriminadora (abolitio criminis), seja por qual
quer outro modo (art. 2‘.’CP)'í , excetuando-se as chamadas leis
excepcionais (promulgadas em face de situações especial
m ente calam ito sas ou co n flitiv as) e leis tem porárias
(promulgadas com termo de vigência) — (art. 3" CP). O
aprofundamento dessas questões, bem como a caracterização
do que seja, na hipótese de concurso, a lei mais favorável,
pertencem à teoria da lei penal.
Sustentou-se que o chamado Tribunal de Nuremberg vio
lou o princípio da legalidade, sob o aspecto da irretroatividade
da lei penal. No Brasil, o caso mais escandaloso foi a imposi
ção, por decreto, da pena de banimento a presos cuja liberdade
era reclamada como resgate de diplomatas seqüestrados por
organizações políticas clandestinas, durante a ditadura mili
tar. Sem reserva legal e sem processo, os presos — que nada
haviam feito — eram atingidos por autêntico bill ofcittainder,
impondo-se-lhes uma pena não contemplada previamente em
lei.
14 Não entre nós; anteriorm ente, através do argum ento positivista dc que as medidas de
segurança deviam ser usadas com o um rem édio; agora, porquanto reduzidas a interna
ção ou tratam ento de inim putáveis ou sem i-im putáveis. C f. Fragoso, L ifõ e j, c it., p.
94.
15 Por força do inc. XL do art. 5? C R , a rctroatividade da lei mais benéfica tem caráter de
garantia individual, im pondo-se ao legislador penal.
69
Segunda: proibir a criação de crimes e penas pelo costume
(málum crimen nulla poena sine lege scripta).
70
esteja positivamente regulamentada de modo exaustivo20,
como também em justificativas (pense-se no exercício regular
do direito — art. 23, inc. IU CP — enquanto aplicação de
castigos físicos na correção educacional de menores). Nega-
se, geralm ente, uma função derfogatória aos costumes
{desuetudo penal); Oscar Stevenson a reconheceu em hipóte
ses que trataríamos hoje como “ adequação social da ação”
(perfuração de orelhas para uso de brincos, circuncisão), dele
dissentindo Hungria1’. A verdade é que a adequação social da
ação, seja enquanto justificativa de caráter consuetudinário
(assim a concebeu Welzel durante longo período), seja en
quanto princípio de interpretação que reinsere os tipos penais
numa sociedade historicamente determinada (como a conce
beu o último W elzel), está indissoluvelmente ligada aos
costumes22. Podemos, assim, concluir que o princípio da le
galidade proíbe a intervenção dos costumes apenas — porém
incondicional e totaÜzantemente — no que concerne à criação
(definição ou agravamento) de crimes e penas.
Inscreve-se aqui a questão das fontes. Fonte de produção
(ou material) do direito penal é o Congresso Nacional, ao qual,
com exclusividade, a Constituição da República defere o po
der de legislar em matéria penal (art. 22, inc. Ie 4 8 ). Segundo
Aníbal Bruno, em passagem de matiz historicista, muito aco
lhida, por trás dos órgãos estatais que ditam o direito estaria
71
“ a consciência do povo em dado momento do seu desenvolvi
mento históriço, consciência onde se fazem sentir as necessi
dades sociais e as aspirações da cultura, da qual uma das
expressões é o fenômeno jurídico” 23. Essa linha de especula
ção, que substitui a modesta verificação da produção objetiva
do direito pela mística inconsistente de um “ espírito nacio
nal” , ou cumpre, se desenvolvida, uma função ideológica
de fazer passar por vontade do conjunto do corpo social a
vontade de uma classe, ou estimula, se contraditada, uma
simplificação mecanicista que — com muito maiores razões
— pode situar no modo de produção as verdadeiras fontes do
direito24. Fonte direta de conhecimento (ou formal) de normas
que definem crimes e cominam ou agravam penas é apenas e
tão-somente a lei; muito adequadamente frisa Mestieri ser a lei
penal “ a fonte ou forma de expressão única do direito criminal
quando se trata de definir infrações penais e cominar penas” 25.
Além desse campo — porém muitas vezes, indireta ou suple-
mentarmente, neste mesmo campo, como vimos acima —
temos os costumes e os princípios gerais do direito penal, um
dos quais estamos exatamente estudando neste momento. Es
pecial importância têm os princípios constantes de documen
tos internacionais de direitos humanos, como a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, resolução da Organização das
Nações Unidas, de 10 de dezembro de 1948, e a Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem, recomendação
da IX Conferência Interamericana, de 2 de maio de 1948. Em
novembro de 1969 foi firmada, em San José, Costa Rica, a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida
como ‘‘Pacto de San José da Costa Rica ’’, que é o documento
23 Op. cit., p. 187; endossam -lhe as palavras Dam ásio (op. cit., p. 8) c Mirabcte (op.
c it., p. 29), entre outros.
24 Cirino dos Santos, D ireito penal, c it., p. 24. C f. ainda Konstantin Stoyonovitch, La
p ensée m arxista et le droit, V endóm e, 1974, p. 45, para quem a vontade da classe
dom inante é fonte fo rm a l do direito.
25 Op. c it., p. 8 1. Afirma Bustos que a lei é a única fonte “ para o poder punitivo estatal’1
(Introducción, c it., p. 35).
fundamental da proteção internacional dos direitos humanos
no âmbito americano25; o Brasil a subscreveu em 1986, já lhe
havendo concedido o Congresso N acional a aprovação
constitucional117.
Fala-se em “ reserva absoluta” e “ reserva relativa” de lei
para aprofundar o entendimento de dispositivos constitucio
nais concernentes à reserva legal. A concepção de “ reserva
absoluta” postula que a lei penal resulte sempre do debate
democrático parlamentar, cujos procedimentos legislativos, e
só eles, teriam idoneidade para ponderar e garantir os interes
ses da liberdade individual e da segurança pública, cumprindo
à lei proceder a uma “ integral formulação do tipo” 211; dessa
forma, só a lei em sentido formal poderia criar crimes e
cominar penas, com “ a obrigação de disciplinar de modo
direto a matéria reservada” 20. A concepção de reserva relativa
nega o monopólio do poder legislativo em assuntos penais311e
admite que a matéria de proibição possa ser parcialmente
definida por outras fontes de produção normativa, cabível que
o legislador estabeleça estruturas gerais e diretrizes, a serem
complementadas, as primeiras com observância das segundas,
pelo regulamento31. A constitucionalidade das normas penais
em branco de complementação heteróloga32 seria discutível à
26 Cf. Fragoso, D ireito p e n a i e direitos hum anos, c it., p . 1 19 ss; Z affaroni, M anual.
c it., p. 94 ss; L yra F ilho, op. c it., p . 1 1 e 109.
27 D ecreto L egislativo nl’ 5 /8 9 , D .C .N . de 2 .ju n .8 9 .
28 B ricola, F ranco, L ’art. 25, cam m i 2 " e 3V delia C ostituzione revisitato alia fine
degli anni ‘70, in La questione crim inate, nl’ 2/3, B olonha, 1980, p. 210; do
m esmo autor, L a discreiionalità nel dirillo penale, M ilão, 1965, p. 233.
29 Siniscalco, M arco, Irretroatività delle leggi in matéria penale, M ilão, 1969, p.
85.
30 Para um a concepção absoluta da reserva Segai, não pode o P residente da R epública
editar m edida provisória (art. 5 9 , inc. V CR) sobre m atéria penal.
31 Nilo Batista, Bases constitucionais do princípio da reserva legal, in RDP n? 35, p.
57.
32 C ham am -se norm as penais em branco aquelas nas quais a conduta incrim inada não
eslá integralm ente descrita, necessitando de um a com plem enlação que se apre
senta em outro dispositivo de lei (com plem entação hom óloga), seja da própria lei
p e n a l ( c o m p le m e n ta ç ã o h o m ó lo g a h o m o v ii e l in a ) , s e ja d e le i d iv e rs a
73
luz da reserva absoluta da lei. Em todo caso, como ensina
Petrocelli, o complemento administrativo que passa a integrar
uma norma penal está sujeito a todas as exigências que deri
vam do princípio da legalidade: o contrário significa violação
do próprio princípio33
(com plem entação hom óloga h eterovitelina), ou era fontes legislativas de hierar
quia constitucional inferior, com o o ato ad m in istrativ a, ou a lei estadual ou
m unicipal (com plem entação heteróloga). Foi o penalista alem ão K arl Binding
quem , dentro de seu p ro jeto teórico de rem eter a lei p enal a um conjunto de norm as
d istintas do próprio ordenam ento ju ríd ico -p en al, em preendeu a prim eira teoriza-
ção im portante a resp eito de tais n orm as, cunhando-lhes a designação q u e, leve
m ente alterada, ainda perdura (B iankeitstrafgeseiz), e ainda form ulando a seu
respeito um a fam osa expressão: dizia ele que, sem a proibição do com pletivo da
norm a, a lei penal p areceria ura corpo errante que busca sua alm a (ein irrender
K õ rp er seine Seele su c h t). C f. B inding, D ie N orm en und ihre Q bertretm g,
U trccht, 1965, v. I ,p . 162; T hom pson, A ugusto, Lei penal em branco eretro a tiv i-
dade benéfica, in R v. D ir. Procuradoria Geral E . Guanabara, Rio, 1968, v. 19, p,
223; Nilo Batista, Observações sobre a norm a penal e sua interpretação, RDP nP
17/18, p. 87. O estudo das norm as penais era branco pertence à teoria da lei penal.
33 N orm a penaie e regolam ento, in S a g g i di d iriito p e n a le , 2 ; série, P ádua, 1965, p.
161.
34 M aritain, L ógica m enor, trad. I. N eves, Rio, 1972, p. 308; Puiganiau fala de
indução reconstruíiva (Lógica p a ra ju ris ta s, B arcelona, 1969, p. 127).
35 Sobre la analogia en ei derecho, M adri, 1986, p. 48. —
74
e “ S” representarão condutas humanas e “ P ” representará
não apenas proibido, mas proibido sob cominação de pena:
(1) M é P
(2) S é semelhante a M
(3) S é P
75
pública, os bens públicos, os bens coletivos das massas traba
lhadoras e os bens pessoais dos cidadãos, os direitos indivi
duais e democráticos dos cidadãos e ainda todo ato social
mente nocivo, deixa as portas abertas ao indiscriminado em
prego da analogia38.
No Brasil, muitas vezes admitiu-se e praticou-se a analo
gia vedada. Rememora Fragoso um decreto-lei do Estado
Novo ( t i ? 4.166, de 11.mar.42) que “ expressamente autori
zava o recurso à analogia” 39. A punição do apoderamento
ilícito de aeronaves (então fato atípico entre nós) a título de
seqüestro, pelos tribunais, durante a ditadura militar, impli
cou analogia. Em seu importante trabalho, Rosa Cardoso de
monstra como a admissão de pessoas jurídicas na posição de
sujeito passivo do crime de difamação previsto no Código
Penal (art. 139, entre os “ crimes contra a pessoa” , e usando a
vox “ alguém” , caracterizadora de pessoa humana) represen
tou emprego de analogia'10.
Vedado o acesso da analogia naquilo que Aníbal Bruno
chamava de “ direito penal estrito” , ou seja, o direito penal
criador de crimes e cominador de penas, tem ela as portas
abertas para cumprir suas funções integrativas em todo o
restante ordenamento jurídico-penal; e como este se estrutura
numa dualidade tensiva (opondo às normas que definem cri
mes e cominam ou agravam penas outras que, sob as mais
diversas circunstâncias, excluem ou reduzem a punibilidade,
na mais ampla acepção deste termo), segue-se que é possível
formular um critério prático e constatável para essa analogia
41 C f. T o led o , op. c it., p. 25; A . B runo, op. c il., p. 2 0 9 ;F ra g o so ,L ições, c it., p. 83;
M irabete, op. c it., p. 30; D am ásio, op. c it., p . 48. D issentia do entendim ento,
isoladam ente, N élson H ungria (op. c it., p. 91).
42 A norm a excepcional instaura um regim e distinto e especial para determ inada
hipótese: regula a exceção, subtrai o caso ao qual se destina da disciplina gemi. E
óbvio que adm itir, aqui, n analogia, é destruir o próprio conceito de norm a
ex cep cio n al. C onvém registrar que as causas gerais de exclusão da antijuridici-
dnde e da cu lpabilidade não são norm as excepcionais, com o supunha H ungria, até
p o r serem g erais: adm item , portanto, o exercício analógico.
43 O p. c it., p . 368 (§ 890, nota 1, in fin e ).
44 O p. c it., p. 42.
77
A função de garantia individual exercida pelo princípio da
legalidade estaria seriamente comprometida se as normas que
definem os crimes não dispusessem de clareza denotativa na
significação de seus elementos, inteligível por todos os cida
dãos. Formular tipos penais “ genéricos ou vazios” , valen-
do-se de “ cláusulas gerais” ou “ conceitos indeterminados”
ou “ ambíguos” 45, eqüivale teoricamente a nada formular, mas
é prática e politicamente muito mais nefasto e perigoso. Não
por acaso, em épocas e países diversos, legislações penais
votadas à repressão e controle de dissidentes políticos escolhe
ram precisamente esse caminho para a perseguição judicial de
opositores do governo. Soler registrou que se recorre com
freqüência a esse expediente em caso de delitos criados deli
beradamente com intenção política-16. No Brasil, as famigera
das leis de segurança nacional compunham autêntico florilé-
gio de tipos penais violadores, pela construção de crimes
vagos, do princípio da legalidade, e coube especialmente a
Fragoso, em inúmeros trabalhos, profligar-Ihes tal vício47. A
vigente lei de segurança nacional (lei ní’ 7.170, de 14.dez.83),
45 T o led o , op. c it., p . 28; M irP u ig , op. c it., p. 146; M ufioz C onde, Introducción,
c it., p. 96; R oque de B rito A lves, op. c it., p. 226. E m sua origem h istórica, a
clareza do texto iegal estava associada ao princípio liberal da autodeterm inação da
conduta a p artir do conhecim ento da lei (intim idação); M arat preconizava “ q u 'il
n 'y a i t r ie n d ’obscur, d 'in c e rta in , d 'a rb itra ire ” em tem a de crim es e p e n a s , por ser
n ecessário “ que chacun entende parfaitem ent Ies loix, et sache à quoi il s ’expose
en les v io lan t” (P lan de iegislation crim inelle, P aris, 1974, p. 68),
46 La formulnción actual dei princípio nullum crim en, in F e en ei derecho, B. A ires,
1956, p . 284.
47 Em diversos artig o s, relatórios da OAB e defesas de presos políticos. H eleno
Fragoso se deteve na denúncia da violação do princípio da legalidade pela criação
de tipos penais vagos e indeterm inados; cf. L ei de segurança n acional — uma
experiência antidem o.crática, P. A leg re, 1980; Terrorism o e crim inalidade p o lí
tica , R io , 1981; D ire ito p e n a l e direitos hum anos. R io, 1977; A dvocacia da
liberdade. R io, 1984. S obre a legislação de segurança nacional, no B rasil, cf.
ainda E varisto de M orais F ilho, A ., L e i de segurança nacional — um atentado à
liberdade. R io, 1982; R oberto M artins, Segurança nacional, S. P aulo, 1986; N ilo
B atista, Lei de seg u ran ça nacional; o direito da tortura e da m orte, in Tem as de
direito p e n a l. R io , 1984, p, 11 ss.
78
considerada por muitas como palatável forma evolutiva das
anteriores, incrimina, em seu artigo 15, “ praticar sabotagem
contra instalações militares, meios de comunicação, meios e
vias de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fábricas,
usinas, barragens, depósitos e outras instalações congêne
res” , estabelecendo seu §.2í a punição dos “ atos preparatórios
de sabotagem” . Se ‘‘praticar sabotagem’ ’ configura, já por si,
um núcleo bastante indeterminado para o tipo, seus atos pre
paratórios são infinitamente multiformes; por outro lado,
quem, em estado de sanidade mental, será capaz de definir
“ instalações congêneres” , a um só tempo, de uma estrada,
uma fábrica, uma usina e um depósito?^
Alguns autores deslocam a ênfase para a subjetivização da
imprecisão do preceito, isto é, para o aspecto de que o preceito
deve ser ‘ ‘determinado e especificado de modo tal a fazer ver
claramente ao cidadão a conduta a seguir, e os limites do
próprio livre comportamento” 45. Tal aspecto, importante sem
dúvida, erá predominante nas teorias preventivo-gerais, mais
ou menc^ remontáveis a Feuerbach, que se construam a partir
da idéia de intimidação penal; sua crítica deverá considerar os
problemas da ineficácia motivadora da norma penal (que per
tence à criminologia) e da ficção da presunção do conheci
79
mento da lei (que é estudado na teoria do crime, ao tratar-se do
erro). De qualquer modo, é correto extrair-se, do texto consti
tucional brasileiro ( “ lei anterior que o defina” ), um direito
subjetivo público de conhecer o crime, correlacionando-o a
um dever do Congresso Nacional de legislar em matéria crimi
nal sem contornos semânticos difusos. Com toda a procedên
cia se observa, diante das graves medidas restritivas que se
abatem sobre o acusado num processo criminal, que a criação
de incriminações vagas e indeterminadas transcende a viola
ção do princípio da legalidade para ofender diversos direitos
humanos fundamentais30.
Não é permitido, igualmente, tratando-se de penas graduá-
veis, que o legislador não estabeleça uma escala de mereci
mento penal, com pólos mínimo e máximo, ou a estabeleça
com extensão tão ampla que instaure na prática a insegurança
jurídica, diante de soluções radicalmente diferentes para fatos
pelo menos tipicamente assimiláveis, favorecendo um peri
goso arbítrio judicial. A individualização legal da pena, atra
vés da criteriosa cominação — o que supõe uma distribuição
ponderada de penas (mantendo correspondência com a maior
ou menor gravidade dos crimes), limites (mínimo e máximo)
claramente fixados para cada crime, e um nítido sistema de
atenuação/agravação — , abre perspectivas para a fértil mo
bilidade da individualização judicial, com a consideração da
quela conduta humana na aplicaço da pena, e garante em tese
os limites e o sentido da individualização administrativa,
quando deveria ocorrer, na execução da pena, a mais próxima
e frutuosa consideração daquele homem. A individualização
da pena tem, no Brasil, o status de garantia individual expres
samente contemplada (art. 5.°, inc. XLVI CR). A clareza na
cominação da pena, desse modo, expande os efeitos do princí
pio da legalidade, impedindo sua violação no nível da aplica
80
ção e da execução, sem negar — antes, reafirmando, pela
positividade jurídica — a idéia de individualização.
É possível distinguir, como fez Zaffaroni51, algumas mo
dalidades mais freqüentes de violação do princípio da legali
dade pela criação de incriminações vagas e indeterminadas, tal
como se segue.
a) Ocultação do núcleo do tipo. O verbo que exprime a
ação, nos crimes comissivos dolosos, pode ser chamado de
núcleo do tipo penal correspondente. Esse verbo pode estar
oculto por completo, como no art. 110 do decreto-lei n? 73, de
21.nov.66” , ou pode ocultar-se atrás de outro verbo que de
note tão-somente um agir vago e indeterminado, como no
artigo 240 CP33. Quase sempre, tais vícios são devidos ao
equívoco observado por Soler: ter sido o tipo “ construído
sobre a conseqüência” 5J e não sobre a ação. Veja-se, por
exemplo, o artigo 149 CP55, inteiramente construído sobre o
resultado lesivo da liberdade individual que pretende tutelar.
b) Emprego de elementos do tipo sem precisão semântica.
O que será exatamente o estado de “ perigo moral” do artigo
245 CP, ou a “ casa mal-afamada” à qual não se deve permitir
o acesso do menor de 18 anos, que nela poderá conviver com
“ pessoa viciosa ou de má vida” , e talvez assistir a um
“ espetáculo capaz de pervertê-lo” (art. 247, inc. I e II CP)?
81
Tais elementos normativos não dispõem de um sistema de
referência que permita um nível aceitável de ‘‘certeza típica’’,
o que já não ocorrerá com elementos normativos jurídicos que
remetam a conceitos anteriormente delineados56. Costuma ser
freqüente a imprecisão, mesmo em elementos descritivos, nas
legislações de caráter político: pense-se nos “ serviços públi
cos reputados essenciais para a defesa, a segurança ou a eco
nomia do país” , ou na incitação “ à subversão da ordem
política ou sociai” dos artigos 15,§ 1", al. b e 23, inc. I da lei
n? 7.170, de 14.dez.83.
c) Tipificações abertas e exemplificativas. Adverte com
propriedade Everardo da Cunha Luna que “ o maior perigo
atual para o princípio da legalidade, em virtude da forma com
que se apresenta, são os chamados tipos penais abertos ou
amplos” , que, se alcançaram nos crimes culposos um nível de
caracterização orgânica bastante seguro, têm, como lembra
Zaffaroni, “ limites muito perigosos nos crimes dolosos de
perigo” 57. Riscos existem também nos crimes comissivos por
omissão, a despeito da previsão legal das fontes do dever
jurídico de agir (art. 13, § 2% al. a, b e c CP). Formulações
típicas ou majorantes de pena que se valem da enunciação
descritiva de alguns elementos, seguida de uma cláusula de
caráter analógico, são igualmente perigosas; para o primeiro
caso, veja-se o artigo 147 CP; para o segundo, o artigo 226,
inc. II CP5B.
56 Z affaro n i, Sistem as ... — inform e fin a l, c it., p. 18. Fragoso adm ite que os
elem entos norm ativos “ enfraquecem a função de garantia da lei p e n a l” , em bora
não violem o princípio da legalidade {Lições, c it., p. 97).
57 Cunhu L una, C apítulos, c it., p. 33; Z affaroni, S iste m a s... — inform e fin a l, c it., p.
18.
58 A rt. 147: “ A m eaçar alguém , p a r palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro
m eio sim bólico de causar-lhe mal injusto e g ra v e .” A rt. 226: “ A pena é aum en
tada de quarta parte: (...) II — se o agente é ascendente, pai adotivo, padrasto,
irm ão .tu to r ou curador, preceptor ou em pregador da vítim a ou p o r qualquer outro
título tem autoridade sobre e la . " D am ásio reuniu todos os casos que se apresentam
no código penal brasileiro (op. c it., p. 39).
Partindo de elementos da lingüística, particularmente de
Saussure, Rosa Cardoso questiona na linguagem jurídica a
pretensão de estabelecer sentidos originários e unívocos para
as expressões legais, com o que a proibição de incriminações
vagas e indeterminadas tomar-se-ia inviável, “ pela dependên
cia que a significação jurídica possui de termos que integram
campos associativos ausentes em seu discurso” 59, O exame
dessa atraente contribuição deve situar-se no campo da inter
pretação da lei, que integra a teoria da lei penal.
83
§10
O princípio da intervenção mínima
84
não-penais” , como leciona Quintero Olivares4. O conheci
mento de que a pena é, nas palavras deste último autor, uma
“ solução im perfeita” — conhecimento que, de Howard3até a
mais recente pesquisa empírica, a instituição penitenciária só
logrou fortalecer — firmou a concepção da pena como ultima
ratio: o “ direito penal só deve intervir nos casos de ataques
muito graves aos bens jurídicos mais importantes, e as pertur
bações mais leves da ordem jurídica são objeto de outros
ramos do direito” 6. O princípio da intervenção mínima não
está expressamente7 inscrito no texto constitucional (de onde
perm itiria o controle judicial das iniciativas legislativas
penais) nem no código penal, integrando a política criminal;
não obstante, impõe-se ele ao legislador e ao intérprete da lei,
como um daqueles princípios imanentes a que se referia Cunha
Luna8, por sua compatibilidade e conexões lógicas com outros
princípios jurídico-penais, dotados de positividade, e com
pressupostos políticos do estado de direito democrático’.
Ao princípio da intervenção mínima se relacionam duas
características do direito penal: afragmentariedade e a sub si-
diariedade..Esta última, por seu turno, introduz o debate sobre
a autonomia do direito penal, sobre sua natureza constitutiva
ou sancionadora.
85
Quem registrou pela primeira yez o caráter fragmentário
do direito penal foi Binding, em seu Tratado de Direito Penal
Alemão Comum — Parte Especial (1896), e desde então esse
tema sempre se faz presente na introdução ao estudo da parte
especial do código penal (que costuma ser chamada de “ parte
geral da parte especial” ). Mas enquanto Binding se preocu
pava com a superação do caráter fragmentário das leis penais,
das lacunas daí decorrentes e seus efeitos na proteção dos bens
jurídicos, implicando a questão da analogia10, modernamente
se reconhecem-as virtudes políticas da fragmentariedade, ca
bendo a exata observação de Mir Puig, sobre a influência,
nessa mudança, da passagem de concepções penais absolutas,
como a de Binding, para concepções penais relativas11. De
fato, se o fim da pena é fazer justiça, toda e qualquer ofensa ao
bem jurídico deve ser castigada; se o fim da pena é evitar o
crime, cabe indagar da necessidade, da eficiência e da oportu
nidade de cominá-la para tal ou qual ofensa. Constitui-se
assim o direito penal como um sistema descontínuo de ilicitu-
des, bastando folhear a parte especial do Código Penal para
percebê-lo. Supor que a legislação e a interpretação tenham
como objetivo preencher suas lacunas e garantir-lhe uma to
talidade é, como frisa Navarrete, “ falso em seus fundamentos
e incorreto enquanto método interpretativo, seja do ângulo
político-criminal, seja do ângulo científico” 13. Como ensina
Bricola, a fragmentariedade se opõe a “ uma visão onicompre-
ensiva da tutela penal, e impõe uma seleção seja dos bens
ju ríd ico s ofendidos a p ro teg er-se, seja das form as de
ofensa” 13.
A subsidiariedade do direito penal, que pressupõe sua
frag m e n tarie d ad e14, deriya de sua consideração como
86
“ remédio sancionador extremo” 15, que deve portanto ser mi
nistrado apenas quando qualquer outro se revele ineficiente;
sua intervenção se dá “ unicamente quando fracassam as de
mais barreiras protetoras do bem jurídico predispostas por
outros ramos do direito” 16, Como ensina Maurach, não se
justifica “ aplicar um recurso mais grave quando se obtém o
mesmo resultado através de um mais suave: seria tão absurdo e
reprovável criminalizar infrações contratuais civis quanto co-
minar ao homicídio tão-só o pagamento das despesas funerá
rias” 17. Foi observado por Roxin que a utilização do direito
penal “ onde bastem outros procedimentos mais suaves para
preservar ou reinstaurar a ordem jurídica” não dispõe da
“ legitimação da necessidade social” e perturba “ a paz
jurídica” 18, produzindo efeitos que afinal contrariam os obje
tivos do direito.
Entre nós, existe uma curiosa aplicação contra legem do
princípio da subsidiariedade no crime de desobediência (art.
330 CP), Embora a lei não faça qualquer ressalva, a doutrina
(Hungria, Fragoso, Noronha) e os tribunais (sucessivas e rei
teradas decisões) entendem que, se concorrer uma sanção
administrativa ou civil para a desobediência, não cabe aplicar
a pena. Essa opinião dominante, ainda que jamais fundamen
tada, deu ensejo a um emprego bem temperado da autoritária
disposição penal.
A subsidiariedade coloca a questão da autonomia do direi
to penal, que se resolve em saber se é ele constitutivo ou
sancionador. Predomina no Brasil o entendimento de ser ele
constitutivo, afirmando Fragoso que, “ mesmo quando o direi
87
to penal tutela bens e interesses jurídicos já tutelados pelo
direito privado, o faz de forma peculiar e autônoma” 19. Tam
bém Aníbal Bruno, sob o fundamento de que “ mesmo quando
0 preceito penal se encontra expresso em outro ramo do
direito” não se pode daí extrair “ uma posterioridade temporal
ou lógica” , e acrescentando que tal preceito será submetido
pelo direito penal “ à sua própria elaboração” , tem-no por
constitutivo20. Noronha31 e Damásio22 consideram-no sancio
nador.
Os principais argumentos da corrente constitutivista estão:
1 ?) no caráter original do tratamento penal; 2 “) na convivência
de conceitos jurídicos com distintos conteúdos; e 3?) na exis
tência de matéria só versada pelo direito penal, O primeiro
argumento23 a nada conduz: ninguém questiona seja a pena
algo exclusivo do direito penal, e sim se ela opera sobre
preceitos primários também exclusivos. O segundo argumento
se baseia na existência de conceitos jurídicos com distintos
conteúdos no direito penal e em outros ramos: assim, o concei
to amplo de bem imóvel do direito privado (ver especialmente
o art. 46 CC) e o conceito restritivo que se usa na teoria dos
crimes contra o patrimônio, ou o conceito jurídico-penal de
funcionário público (art. 327 CP) e o mesmo conceito no
direito administrativo. Não cremos que essas adaptações fun
cionais, que incidem muita vez sobre conceitos chaves para
certos grupos de casos, demonstrem uma desvinculação: pelo
contrário, é através delas que se estabelecem linhas de relação
que nunca — e eis o que importa — fazem confrontar-se em
termos de contradição o direito penal e qualquer outro ramo.
O terceiro argumento se reporta quase sempre a hipóteses
88
exóticas, como a crueldade contra animais24, ou, recorrentemente,
ao crime de omissão de socorro (art. 135 CP). As primeiras são
associáveis a um legislador que ignorou o princípio da interven
ção mínima ao deferir apenas e principalmente ao direito penal a
tutela pretendida: é razóvel contar com que, progredindo-se na
transferência para o direito administrativo dos ilícitos de polícia e
— pensando agora também na oniissão de socorro — dentro de
um quadro legislativo que estabeleça deveres gerais de solidarie
dade social e proteja eficientemente os bens públicos, o argumen
to simplesmente desapareça.
Se a essas considerações se acrescenta o caráter unitário do
ilícito perante todo o ordenamento jurídico, que é hoje concepção
predominante11, a conclusão no sentido de ser o direito penal
sancionadorse impõe20. Consigna Luis Carlos Pérez que na Cons
tituição estão as raízes do ordenamento jurídico como um todo e,
portanto, também do ilícito como unidade; integra aquele
ordenamento, como seu braço armado, o direito penal27. Mais do
que como resultado do exame objetivo das relações entre o direito
penal e a totalidade do ordenamento jurídico, o caráter sancionador
deve constituir uma recomendação político-criminul u qual esteja
permanentemente atento o legislador. Especial cuidado deve ter o le
gislador da intervenção econômica do estado, evitando a tentação de
socorrer-se permanentemente do direito penal; essa tendência penalís-
Para o direito brasileiro, não cabe o exemplo da crueldade contra animais, prevista
no artigo 64 da Lei dc Contravenções Penais (LCP). porque o decreto nu 24,645,
dc 10. jul. 34, estabeleceu medidas de proteção aos animais. Foi esse o texto
invocado por Sohral Pinto, num dos mais gloriosos momentos da advocacia
brasileira, em lavor do líder comunista Harry Bcrger, preso c torturado durante
o Estado Novo. Evislcm normas penais na legislação que protege a fauna (lei nu
5.1 91, de 3. jan. 67), disciplina a pesca (dccreto-lci n“ 221, dc 28.rev.67) e regu
lamenta a vivissecção dc animais (lei n116.638, de 8. mai. 79}.
Maurach, op. cit., p. 34 ss; ZalTaroni, Manual, cit., p. 57.
Jl' Reformulamos aqui, completamente, opinião anterior {O bservações sobre a
nonnet pen al e stta interpretação, cit.).
11 D erecho penal, Bogotá, 1987, 1.1, p. 53.
89
tica ‘'inflacionária” , como a denominou Bricola, pode questio
nar o princípio da intervenção mínima21*.
As relações que o direito penal mantém com outros ramos
do direito são na verdade relações das normas jurídico-penaiscom
outras normas, da perspectiva de sua validade (por exemplo, o
inc. XLV do artigo 51CR em confronto com tipificações que pro
põem uma responsabilidade penal coletiva, como por exemplo o §
2Üdo artigo 73 da lei 4.728, de 14. jul. 65)-J ou da perspectiva de
sua interpretação (por exemplo, o conceito privatistico de posse
indireta — art. 486 CC — e o tipo da apropriação indébita — art.
168 CP — ou do peculato — art. 312 CP). Devem por isso, em
nossa opinião, ser estudadas na teoria da lei penal. Conviria ape
nas remarcar que, além de suas funções de fundamento e contro
le, o texto constitucional seleciona situações a serem necessaria
mente tratadas pelo legislador penal, naqueles casos de bens es
senciais à vida, à saúde e ao bem-estar do povo: chama-se a isso
“imposição constitucional de tutela penal” . Entre nós, a Consti
tuição de 1946 empregara em vão o termo "repressão” para o
abuso do poder econômico: jamais o legislador ordinário atendeu
à “imposição constitucional da tutela penal” -11’. O caráter classista
da legislação penal se manifesta também na omissão ou pachorra
da elaboração legislativa de crimes que podem ser praticados pe
los membros da classe dominante.
90
§11
O princípio da lesividade
J Del V ecch io , op. c it., p. 371; R udbruch, F ilosofia d o d ireito , c it., v. I, p. 115;
M achado N etto, op. c it., p. 91.
2 Iniciación, cit., p. 25 e 28.
91
na a dissidência política toma as cores de “ inimigo interno” e
provoca “ um processo de criminalização” 3.
Podemos admitir quatro principais funções do princípio da
lesividade.
Primeira: proibir a incriminação de uma atitude interna.
As idéias e convicções, os desejos, aspirações e sentimentos
dos homens não podem constituir- o fundamento de um tipo
penal, nem mesmo quando se orientem para a prática de um
crime: o projeto m ental do com etim ento de um crime
(cogitação) não é punível (cogitationispoenam nemo patitur).
Isso não significa absolutamente que o direito penal se desin
teresse da atitude interna do homem, como já se verá ao
tratarmos do princípio da culpabilidade. Antes da perspectiva
da culpabilidade, encontraremos esse interesse no dolo (isto é,
na consciência e vontade do autor acerca da conduta objetiva
proibida), bem como em intenções, motivos e certos estados
especiais de ânimo. Em qualquer hipótese, todavia, é impres
cindível que a atitude interna esteja nitidamente associada a
uma conduta externa.
Segunda: proibir a incriminação de uma conduta que não
exceda o âmbito do próprio autor. Os atos preparatórios para o
cometimento de um crime cuja execução, entretanto, não é
iniciada (art. 14, inc. II CP) não são punidos. Da mesma
forma, o simples conluio entre duas ou mais pessoas para a
prática de um crime não será punido, se sua execução não for
iniciada (art, 31 CP). Temos aí aplicações legislativas dessa
função do princípio da lesividade, que também comparece
como fundamento parcial da impunibilidade do chamado cri
me impossível (art. 17 CP). O mesmo fundamento veda a
punibilidade da autolesão, ou seja, a conduta externa que,
„ embora vulnerando formalmente um bem jurídico, não ultra
passa o âmbito do próprio autor; como por exemplo o suicídio,
a automutilação e o uso de drogas. No Brasil, o artigo 16 da lei
92
n? 6.368, de 21.out.76, incrimina o uso de drogas, em franca
oposição ao princípio da lesividade e às mais atuais recomen
dações político-criminais4.
Terceira: proibir a incriminação de simples estados ou
condições existenciais. Como diz Zaffaroni, “ um direito que
reconheça e ao mesmo tempo respeite a autonomia moral da
pessoa jamais pode apenar o ser, senão o fazer dessa pessoa,
já que o próprio direito é uma ordem reguladora de conduta” 5.
O direito penal só pode ser um direito penal da ação, e não um
direito penal do autor, como eventualmente se pretendeu. “ O
homem responde pelo que faz e não pelo que é ” , frisa Cunha
Luna6, Com exatidão lembra Mayrink da Costa que “ o direito
penal do autor é incompatível com as exigências de certeza e
segurança jurídicas próprias do estado de direito” 7. Isso não
significa que o sujeito determinado não interesse de nenhuma
forma. Ao contrário, o homem e sua existência social concreta
devem estar no centro da experiência jurídico-penal, parti
cularmente nas áreas da culpabilidade e da aplicação e execu
ção da pena. O que é vedado pelo princípio da lesividade é a
imposição de pena (isto é, a constituição de um crime) a um
simples estado ou condição desse homem, refutando-se, pois,
as propostas de um direito penal de autor e suas derivações
mais ou menos dissimuladas (tipos penais de autor, culpabili
dade pela conduta ao longo da vida, etc). Levada às últimas
conseqüências, essa função do princípio da lesividade implica
excluir do campo do direito penal as medidas de segurança,
4 Sobre este últim o aspeclo, ainda polêm ico entre nós, cf. H obbing, P eter, Straf-
w iirdigkeií derS elb siverleízu n g : D er D ragenkonsum in deutschen und brasilianis-
c/ten R eclu, F rankfurt am M ain, 1982; Nilo B atista, O prazer e aleipenal, in
Tem as, c it., p. 304 5 S . C f. ainda G arcía-P ablos, A ntônio, Bases para una política
crim inal de la droga, in La problem ática de la droga en E spana, M adri, 19B6, p.
377 ss.
5 M anu a l, c it., p. 73.
6 O p. c it., p. 34.
7 O p. c it., p. 158.
93
uma vez que, como acentua Zaffaroni, um direito penal funda
mentado na perigosidade é um direito penal de autor.
Quarta:proibir a incriminação de condutas desviadas que
não afetem qualquer bem jurídico. A expressão desviada foi
aqui empregada na acepção de Clinard, como conduta orien
tada em direção, fortemente desaprovada pela coletividade.
Estamos aqui falando do “ direito à diferença” 8, de práticas e
hábitos de grupos minoritários que não podem ser criminaliza
dos. Como diz Zaffaroni, “ não se pode castigar ninguém
porque use barba ou deixe de usá-la, porque corte ou não o
cabelo, pois com isso não se ofende qualquer bem jurídico, e o
direito não pode pretender legitimamente formar cidadãos
com ou sem barba, cabeludos ou tonsurados, mais ou menos
vestidos, mas tão-só cidadãos que não ofendam bens jurídicos
alheios’ ’5. Estamos falando também de condutas que só podem
ser objeto de apreciação moral (como práticas sexuais, quais
quer que sejam, entre adultos consencientes, ou como a sim
ples mentira).
Certamente percebeu-se, das linhas anteriores, a impor
tância do conceito de bem jurídico. O espaço teórico para o
conceito de bem jurídico surgiu quando, na primeira metade
do século XIX, contestou-se a concepção clássica corrente do
crime como ofensa de um direito subjetivo, em favor de uma
concepção do crime como ofensa a bens (Bimbaum). A partir
daí, inúmeras teorias foram elaboradas para a compreensão do
bem jurídico ofendido pelo crim e10: ora se retornava aos direi
tos subjetivos, ora se propunha um direito público subjetivo do
estado, aqui o próprio direito objetivo, ali uma obrigação
94
jurídica, logo os interesses, adiante os valores. Para uns, o
bem jurídico é criado pelo direito, através de seleção exercida
pelo legislador (Binding); para outros, o bem jurídico é um
“ interesse da vida” , que o legislador toma de uma realidade
social que Iho impõe (von Liszt). Houve quem deslocasse o
bem jurídico estritamente para a tarefa de critério de interpre
tação teleológica da norma, no movimento que ficou conhe
cido como “ direção metodológica” (Honig), O direito penal
nazista procurou fundamentar o crime na violação do dever de
obediência ao estado (o chamado “ direito penal da vontade” )
e, para isso, desfez-se, em sua fase inicial, do conceito de bem
jurídico (Schaffstein). Posteriormente, retoma-se a perspec
tiva lisztiana do “ interesse da vida” , seja através de um
conceito idealista de “ situação social desejável” (Welzel),
seja vendo no bem jurídico uma “ fórmula normativa sistemá
tica concreta de uma relação social dinâmica determinada”
(Bustos). Recentemente, intenta-se “ positivizar” os bens
jurídicos, deduzindo-os do texto constitucional (Angioni).
As dificuldades das quais o itinerário acima esboçado
presta testemunho estão ligadas à diversidade categorial dos
bens jurídicos, que podem ser uma pessoa, uma conduta, uma
coisa, um atributo jurídico ou social da pessoa, da conduta ou
da coisa, uma relação vital, uma relação jurídica, um estado de
fato, um valor, um sentimento, etc". Isso enseja diversas
classificações dos bens jurídicos (físicos e morais, individuais
e coletivos, etc).
O bem ju ríd ic o p õ e-se com o sin al da lesiv id ad e
(exterioridade e alteridade) do crime que o nega, “ revelando”
e demarcando a ofensa. Essa materialização da ofensa, de um
lado, contribui para a limitação legal da intervenção penal, e
de outro a legitima. Por isso mesmo, como parece ter perce
bido von Liszt, o bem jurídico se situa na fronteira entre a
política criminal e o direito penal. Não há um catálogo de bens
11 W elzel, op. c it., p. 15; F ragoso, op. c it., p. 39; R occo, op. c il., p. 261.
95
jurídicos imutáveis à espera do legislador, mas há relações
sociais complexas que o legislador se interessa em preservar e
reproduzir. São múltiplos e irredutíveis os aspectos dessas
relações sociais, aos quais pode o legislador outorgar proteção
penal, convertendo-os em bens jurídicos. O bem jurídico,
portanto, resulta da criação política do crime (mediante a
imposição de pena a determinada conduta), e sua substância
guarda a mais estrita dependência daquilo que o tipo ou tipos
penais criados possam informar sobre os objetivos do legisla
dor. Em qualquer caso, o bem jurídico não pode formalmente
opor-se à disciplina que o texto constitucional, explícita ou
implicitamente, defere ao aspecto da relação social questio
nada, funcionando a Constituição particularmente como um
controle negativo (um aspecto valorado negativamente pela
C o n stitu ição não pode ser erig id o bem ju ríd ico pelo
legislador). Numa sociedade de classes, os bens jurídicos hão
de expressar, de modo mais ou menos explícito, porém inevi
tavelmente, os interesses da classe dominante, e o sentido
geral de sua seleção será o de garantir a reprodução das rela
ções de dominação vigentes, muito especialmente das relações
econômicas estruturais.
O bem jurídico cumpre, no direito penal, cinco funções: 1i1
axiológica (indicadora das valorações que presidiram a sèle-
ção do legislador); 2“ sistemático-classificatória (como im
portante princípio fundamentador da construção de um sis
tema para a ciência do direito penal e como o mais prestigiado
critério para o agrupamento de crimes, adotado por nosso
código penal); 3? exegética (ainda que não circunscrito a ela, é
inegável que o bem jurídico, como disse Aníbal Bruno, é “ o
elemento central do preceito’ ’, constituindo-se em importante
instrumento metodológico na interpretação das normas jurídi-
co-penais); 4? dogmática (em inúmeros momentos, o bem
jurídico se oferece como uma cunha epistemológica para a
teoria do crime: pense-se nos conceitos de resultado, tenta
tiva, dano/perigo, etc); 5? crítica (a indicação dos bens jurídi
cos permite, para além das generalizações legais, verificar as
96
concretas opções e finalidades do legislador, criando, nas
palavras de Bustos, oportunidade para “ a participação crítica
dos cidadãos em sua fixação e revisão” )12.
97
§12
O princípio da humanidade
1 M om m sen, op. c it,, t. 3?, p . 252 ss; F oucault, Su rveiller el p u n ir, 1975, ed.
G ailim urd.
98
que se originaram os princípios da legalidade, da intervenção
mínima e até mesmo — sob o prisma da ‘ ‘danosidade social”
— o princípio da lesividade. Montesquieu se referia à “ justa
proporção das penas com os crimes’” , e Beccaria dizia que
atribuir a pena de morte para quem mata um faisão ou falsifica
um documento conduz a uma destruição de sentimentos
morais5. Marat observava que s’il est de Véqidté que lespeines
soient toujours proportionnées aux délits, il est de Vhumanité
qu’elles ne soient jam ais a tro c e s"\ Quando, em 1793, a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, foi
retomada e proclamada pela Convenção Nacional, o artigo XV
mencionava que ‘‘as penas devem ser proporcionais ao delito e
úteis à sociedade” . A Emenda VIII à Constituição Americana,
ratificada, como todas as dez primeiras, em 1791, proibia a
inflição de penas cruéis e incomuns. E este hoje um princípio
largamente aceito, que consta da Declaração Universal dos
Direitos do Homem3 e da Convenção Americana sobre Direi
tos Humanos6.
A pena nem “ visa fazer sofrer o condenado ’’, como obser
vou Fragoso, nem pode desconhecer o réu enquanto pessoa
humana, como assinala Zaffaroni7, e esse é o fundamento do
princípio da humanidade. N ãoporacáso, os documentos inter
nacionais consideram desumanas as penas como aquela execu
tada em Damiens. O princípio pertence à política criminal8,
porém é proclamado por vários ordenamentos jurídicos positi
vos, Entre nós, está o princípio da humanidade reconhecido
99
explicitamente pela Constituição, nos incisos III (proibição de
to rtu ra e de tratam e n to cru el ou d e g ra d a n te ), XLVI
(individualização — ou seja, “ proporcionalização” — da
pena) e XLVII (proibição de penas de morte, cruéis ou
peipétuas) do artigo 5" CR. Como lembra Munoz Conde, a idéia
de “ proporcionalidade integra a idéia de justiça, imanente ao
direito” ; a hipertrofia do direito penal caracteriza o “ estado
totalitário que procura afiançar-se através de brutais ameaças
penais” ’. Disso tivemos no Brasil expressivos exemplos
durante a ditadura militar.
O princípio da humanidade intervém na cominação, na
aplicação e na execução da pena, e neste último terreno tem
hoje, face à posição dominante da pena privativa da liberdade,
um campo de intervenção especialmente importante10.
A racionalidade da pena implica tenha ela um sentido
compatível com o humano e suas cambiantes aspirações. A
pena não pode, pois, exaurir-se num rito de expiação e opró-
brio, não pode ser uma coerção puramente negativa". Isso não
significa, de modo algum, questionar o caráter retributivo,
timbre real e inegável da pena. Contudo, a pena que se detém
na simples retributividade, e portanto converte seu modo em
seu fim , em nada se distingue da vingança. A pena de morte,
estritamente retributiva e negativa (além de ineficaz, do ponto
de vista da prevenção geral), violenta essa racionalidade. São
também inaceitáveis, porque desconsideram a auto-regulação
como atributo da pessoa humana, penas que pretendam inter
ferir fisicamente numa “ metamorfose” do réu: castração ou
esterilização, lobotomia, etc. Um sistema igualitário na distri
buição da pena (o que significa que, sob os mesmos pressupos
100
tos, duas pessoas deveriam receber penas semelhantes, cor-
rendo as diferenças tão-só à conta da individualização), ne
gado pelo direito há duzentos anos, e negado — apesar do
direito — pelo sistema penal ainda hoje, é outro imperativo da
racionalidade. Seria perfeitamente possível derivar a propor
cionalidade da racionalidade, mas convém destacá-la por sua
importância no surgimento histórico do princípio da humani
dade e por sua importância prática. Zaffaroni lembra que as
penas d esp ro p o rcio n ais produzem m ais alarm a social
(afetando o que ele considera o aspecto subjetivo da segurança
jurídica) do que o próprio crime e formula a hipótese do que se
passaria nesse terreno se uma lei impusesse a pena de mutila
ção aos punguistas12. Da proporcionalidade pode extrair-se,
igualmente, a proibição de penas perpétuas. Como registrou
com exatidão Cattaneo, a prisão perpétua, com “ seu caráter de
definitividade, ou seja, de eliminação da esperança, contraria
o senso da humanidade” Nossa Constituição, como já visto,
proíbe a imposição de penas de caráter perpétuo (art. 5“, inc
XLVII, al. h CR).
101
t
§ 13
O princípio da culpabilidade
102
consciente, seja de uma relevante negligência (como os arti
gos 18 è 19 CP), devemos compreender que um longo proces
so, certamente inconcluso, transformou radicalmente as bases
da responsabilidade penal. O ponto mais importante desse
processo é a produção histórica do princípio da culpabilidade.
O princípio da culpabilidade deve ser entendido, em pri
meiro lugar, como repúdio a qualquer espécie de responsabili
dade pelo resultado, ou responsabilidade objetiva. Mas deve
igualmente ser entendido como exigência de que a pena não
seja infligida senão quando a conduta do sujeito, mesmo asso
ciada causalmente a um resultado, lhe seja reprovável. Vol
tando ao exemplo do pedreiro, isso representaria que o desaba
mento só funcionaria como um limite exterior preliminar e que
seria indispensável verificar se o pedreiro reprovável mente
quis a morte do morador e seu filho, predispondo nesse sentido
sua construção; ou quis o desabamento — também predis
pondo nesse sentido a sua construção — ainda que não quises
se diretamente a morte provável do morador e seu filho, ou
construiu a casa com imperícia inescusável. Para além de
simples laços subjetivos entre o autor e o resultado objetivo de
sua conduta, assinala-se a reprovabilidade da conduta como
núcleo da idéia de culpabilidade, que passa a funcionar como
fundamento e limite da pena. As relações entre culpabilidade e
pena constituem matéria polêmica, que integra a teoria do
crime, onde a estrutura e as funções dogmáticas da culpabili
dade, seja na economia do crime, seja na fundamentação da
pena, são minuciosamente examinadas1.
103
Em primeiro lugar, pois, o princípio da culpabilidade impõe a
subjetividade d/i responsabilidade penal. Não cabe, em direito pe
nal, uma responsabilidade objetiva, derivada tão-só de uma associa
ção causai entre a conduta e um resultado de lesão ou perigo para um
bem jurídico. É indispensável a culpabilidade. No nível do processo
penal, a exigência de provas quanto a esse aspecto conduz ao
aforisma “ a culpabilidade não se presume” , que, no terreno dos
crimes culposos (negligentes), nos quais os riscos de uma considera
ção puramente causai entre a conduta e o resultado são maiores,
figura como constante estribilho em decisões judiciais: “ a culpa não
se presume” . A responsabilidade penal é sempre subjetiva.
Em segundo lugar, temos a personalidade da responsabilidade
penal, da qual derivam duas conseqüências: a intranscendên-
cia e a individualização da pena. A intranscendência impede que a
pena ultrapasse a pessoa do autor do crime (ou, mais analiticamente,
dos autores e partícipes do crime). A responsabilidade penal é
sempre pessoal. Não há, no direito penal, responsabilidade coletiva,
subsidiária, solidária ou sucessiva2. Nada pode, hoje, evocar a
infâmia do réu que se transmitia a seus sucessores. A intranscendên
cia da pena coloca a questão da família do condenado pobre (art. 5°,
inc. XLV CR), e fundamenta a existência, no sistema de seguridade
social, de um “ auxílio-reclusão” . Por individualização se entende
aqui especialmente a individualização judicial, ou seja, a exigência
104
de que a pena aplicada considere aquela pessoa concreta à qual se
destina. Neste campo, o tema mais atual é a chamada co-culpabili-
dade. Trata-se de considerar, no juízo de reprovabilidade que é a
essência da culpabilidade, a concreta experiência social dos réus, as
oportunidades que se lhes depararam e a assistência que lhes foi
ministrada, correlacionando sua própria responsabilidade a uma
responsabilidade geral do estado que vai impor-lhes a pena; em certa
medida, a co-culpabilidade faz sentar no banco dos réus, ao lado dos
mesmos réus, a sociedade que os produziu, como queria Emst
Bloch3. Como diz Zaffaroni, “ reprovar com a mesma intensidade a
pessoas que ocupam situações de privilégio e a outras que se acham
em situação de extrema penúria é uma clara violação ao princípio da
igualdade corretamente entendido” 4. “ O direito realmente igual”
— anota Cirino5— “ é o que considera desigualmente indivíduos
concretamente desiguais’’. O artigo 5?, inciso 1 do código penal da
República Democrática da Alemanha, de 1968, abre as portas a essa
orientação: “ uma ação é cometida de forma reprovável quando seu
autor, não obstante as possibilidades de uma conduta socialmente
adaptada que lhe tenham sido oferecidas, realiza, por atos irrespon
sáveis, os elementos legalmente constitutivos de um delito ou de um
crime” .
3 O p. c it., p . 261.
4 S istem a s p en a les ... — inform e fin a l, c it., p. 58; c f. tam bém P olítica crim inal
la tinoam ericana, cit-, p. 161 ss.
5 D ireito p en a l, c it., p . 219.
105
§14
Um direito penal subjetivo?
106
jurídico, só é pensável por duas vias: a do contrato social4 e a
do direito naturais. Como a teoria do contrato social é hoje uma
vinheta historiográfica, e como, valha-nos a lição de Novoa,
se o jus puniendi poderia fundamentar-se nos “ princípios e
c a ra c te rístic a s atrib u íd o s trad icio n alm en te ao d ireito
natural” , não logra fazê-lo nos ‘‘princípios do estado seculari-
zado que hoje se admite” 6, mesmo os autores que perfilham o
direito penal subjetivo passaram a negá-lo antes do momento
legislativo. Assim, Bettiol dizia ser “ tecnicamente impróprio
falar de um direito de punir que caiba ao estado nas vestes de
legislador” 7, e Fragoso anotava que “ anteriormente ao surgi
mento da norma penal, não há falar em direito subjetivo do
estado. Somente seria possível falar aqui de direitos recorren
do-se ao direito natural” 8.
A consideração do ju s puniendi em seu momento judicial,
isto é, após a violação da lei penal, implica deduzir o direito
penal subjetivo do direito penal objetivo, comoRocco: “ não é
o direito subjetivo que preexiste e dá causa ao direito objetivo, e sim
este que gera, no mesmo parto, a obrigação jurídica e o direito
subjetivo” 9. As dificuldades passam a ser duas: caracterizar e con
ferir conteúdo à “ faculdade” do estadoe à “ obrigação” do súdito.
Ferri ridicularizava a elaboração teórica dessa facultas
agendi, dando por absurdo que ela pudesse consistir “ na
faculdade do estado de agir em conformidade com as normas
4 .P u Iitan ò lem bra q u e, cm suas origens ilum inísticas, o direito de punir estava
"co lig a d o à idéia co n tratu alística” [op. c it., p. 10).
5 C am argo H em ández literalm ente adm ite que o “ fundam ento da faculdade do
estado p ara ditar norm as ju rtd ico -p cn ais se encontra no direito n atu ral” (op. c it.,
p . 4 7 ). C o m o lem bra T arso G en ro , historicam ente a im plantação da ordem bur
g uesa se fez fundam entando-a “ em direitos subjetivos que não se am paravam
n u m a norm atividade p reex isten te” (Introdução crítica ao direito, P. A legre,
1988, p. 43).
6 N ovoa M onreal, A lgunas reflexiones sobre el derecho de castigar dei estado, in
H o m en a g e a H ild e K aufm ann, B . A ires, 1985, p . 202.
7 D ireito p e n a l, trad. C osta Jr. e S ilva F ranco, S. P aulo, 1966, v. I, p. 193.
8 L içõ es, c it., p. 275.
9 O p. c it,, p . 134.
107
de direito objetivo postas (...) pelo mesmo estado, e por ele
só” 10. De fato, atribuir à auto-obrigação jurídica, que carac
teriza o estado 'de direito, os matizes de faculdade é inquietan-
temente metafórico. Por outro lado, o dever (indisponível e
inalienável por um lado, e limitado e vinculado por outro) da
persecução penal que cabe ao estado, enquanto agente históri
co do que Weber chamaria de monopólio do poder punitivo
legítimo, é algo extremamente distinto de uma faculdade de
agir, ainda que se a designasse por dever de agir.
Não é menos problem ática a elaboração teórica da
“ obrigação jurídica” . Descarte-se, desde logo, a idéia bin-
dinguiana de um vago dever genérico, sem conteúdo fixado,
de obediência à lei penal, hoje inaceitável, como lembra
Bettiol1’. Não obstante, o mesmo Bettiol admite uma obriga
ção do indivíduo de abster-se da prática do crime12, o que vem
a ser rigorosamente a mesma coisa. Essas contradições le
varam a que se tentasse elaborara “ obrigação jurídica” como
“ obrigação de sofrer a pena’’, o que em verdade levou a uma
agravação das dificuldades. Como disse Antolisei, “ o réu não
tem o dever de submeter-se à pena, e sim é a ela submetido” 13.
A nenhuma intervenção da vontade do réu (ou seja, o caráter
juridicamente necessário da pena) e a inexistência de sanção
para a “ in a d im p lê n c ia ” q u estio n am igualm ente uma
“ obrigação de sofrer a pena” 14. Apropriadamente dizia Aní
108
bal Bruno que “ se o poder do estado de assegurar as condições
de vida social não pode ser equiparado a um direito subjetivo,
menos ainda a submissão do réu à pena pode ser tomada como
cumprimento de uma obrigação jurídica” 15.
Lembra Vemengo que “ a noção de direito subjetivo é útil
quando podemos identificar um credor frente a um devedor de
uma obrigação” 16, o que, de resto, é perfeitamente compatível
com sua aparição histórica enquanto “ manifestação da técnica
jurídica do sistema capitalista moderno que tem por fim permi
tir um certo tipo de troca” 17. De fato, confundido no direito
objetivo (se baseado nas teorias da vontade ou da garantia), e
simplesmente absurdo, como Kelsen1"ressaltou (se baseado na
teoria do interesse), o direito penal subjetivo acaba por resul
tar tecnicamente inútil19 e politicamente perigoso20.
15 O p. c it., v. 1, t. I, p. 21.
16 Curso de teoria general dei derecho, B. A ires, 1976, p. 230.
17 M iaille, op. c it., p . 144.
IS “ No caso de um a sanção p e n al, não pode ser um interesse nem , portanto, um
d ireito do agente aquilo que é protegido pelo deve r d e o punir que im pende sobre o
órgão aplicador do direito ” — escreve K elsen, levando às últim as conseqüências
o caráter reflexo do direito subjetivo com o interesse juridicam ente protegido
(Teoria p u ra do direito, trad. J.B . M achado, C oim bra, 1962, p. 258).
19 A ele se refere T ércio S am paio F erraz Jr, com o “ im precisa m etáfo ra” (Introdução
a o estudo do d ireito , S . P aulo, 1988, ed. A tlas, p. 143).
20 A idéia d e ju s pu n ien d l, particularm ente quando referida ao m om ento legislativo
(e sobrevive assim em inúm eros trabalhos brasileiros, com o vim os), transform a-se
no eixo de um a concepção autoritária do estado. O estado realiza um a “ prodigiosa
acum ulação de m eios de coação c o rp o ra l” (Poulantzas, O e s ta d o ..., c it., p. 90),
ex p ressa n a “ c e n tra liz a ç ã o ex clu d e n te de seu aparato político de poder e
v io lên cia” (B usios, Introducciôn, c it ., p. 25). N egar um direito penal subjetivo,
ainda que pelas fórm ulas do im perium ou “ poder de dom inação do estad o ” (A .
B runo, op. c it., v . I, t. I, p. 22), ou do “ atributo da so b e ra n ia " (M anzini,
Trattato, c it., v. I, p. 81), ou de um " p o d e r ju ríd ic o " (A ntolísei, op. c it., p. 38), é
ch am ar a atenção para a indectinabilidade da regulação juríd ico -o b jetiv a do poder
penal es ta ta l, bem com o ab rir as perspectivas para o exam e das relações sociais em
cu ja preserv ação e reprodução está com prom etido o estado. Bem ao contrário de
u m direito penal subjetivo (direito público subjetivo do estado), os direitos subjeti
vos públicos dos indivíduos, que vieram a inscrever-se nos docum entos interna
cionais com o direitos hum anos fundam entais e nas constituições com o garantias
109
Observando que a técnica do direito público subjetivo não
era praticamente usada pelo moderno direito penal, Kelsen
assinalava que a vítima do crime foi substituída por “ um órgão
estatal que, como parte autora ou acusadora por dever de
ofício, põe em movimento o processo que leva à execução da
sanção” 21. Em nossa opinião, corresponde à teoria do proces
so compreender, seja enquanto um interesse de agir, autô
nomo ou ínsito na própria acusação, como quer Grinover12,
seja enquanto conteúdo necessário da ação penal, diante do
princípio da jurisdição, seja enquanto condição da ação do
ângulo da legitimação, a natureza e funções dos deveres do
estado com relação aos crimes cometidos, e sua articulação
instrumental.
110
§15
A missão (fins) do direito penal
111
justiça, ou bem intimidará a todos (pela ameaça de sua comi-
nação e pela execução exemplar) para que não se cometam
(mais) crimes, ou tratará de conter e tratar o criminoso. Os
objetivos referidos vinculam interativamente um criminoso
predominantemente “ acontecido” , a pena e a sociedade, e
dispõem de um “ sinal social negativo” que efetivamente
timbra a pena; a mais nobre observação possível será tê-la
como “ uma amarga necessidade” , Um iniciante estaria ten
tado a considerar até que os fins do direito penal e os fins da
pena habitam a mesma casa, porém os primeiros na sala de
visitas e os segundos na cozinha.
Essa descrição comparativa, algo caricata, das mais usuáis
respostas oferecidas às perguntas sobre a missão do direito
penal e os objetivos da pena, põe de manifesto que, se os
penalistas não sucumbem à tentação de substituir a missão do
direito penal que devem descrever pelo direito penal de seus
sonhos, ou existem diferenças entre aquilo que pretende o
direito penal e aquilo que pretende seu instrumento essencial e
característico — a p en a— , ou este é o ponto mais densamente
turvo, do ponto de vista ideológico, do discurso jurídico-pe-
nal. Mais do que em qualquer outra passagem, a ideologia
transforma aqui fins particulares em fins universais, encobre
as tarefas que o direito penal desempenha para a classe domi
nante, travestindo-as de um interesse social geral, e empre
ende a mais essencial inversão, ao colocar o homem na linha
de fins da lei: o homem existindo para a lei, e não a lei
existindo para o homem.
Se os fins da pena, expostos nas tradicionais teorias ab
solutas e relativas (essas, divididas entre a prevenção geral e a
prevenção especial) e nas teorias mistas (que visam a conciliar
" ou superar a contradição das anteriores) aproximam os fins do
direito penal de sua realidade penal, é ilusório imaginar que
tais teorias escapem a um idealismo impeditivo do conheci
mento das funções que concretamente a pena desempenha
numa sociedade determinada. Como lapidarmente disseram
Rusche e Kirchheimer, “ a pena como tal não existe; existem
112
apenas concretas formas punitivas e específicas praxes
penais” 3. Uma teoria da pena generalizante e esquemática,
que tenha a pretensão de apreender, com os mesmos instru
mentos, por exemplo as práticas penais do escravismo colonial
brasileiro, cujos pontos cardiais estavam na utilidade imediata
do criminoso ( = açoites) e no terror ( = morte e penas
domésticas), e de nosso capitalismo ao início do século, cujo
princípio era, como diria Em st Bloch, a “ conservação útil”
do criminoso, está pagando à abstração um preço altíssimo,
cuja moeda é conhecimento. Por isso mesmo, ao lado das
funções aparentes da pena, que se extraem de uma verificação
da compatibilidade, semelhança ou oposição entre normas do
direito positivo e o eterno esquema das teorias absolutas,
relativas e mistas, fala-se hoje nas funções ocultas ou não
declaradas da pena. Diante do art. 1? L E P \ podemos afirmar
que desde 1985 a legislação brasileira adotou a prevenção
especial: isso não esgotará o conhecimento possível sobre as
funções da execução da pena privativa de liberdade, no Brasil,
nem sobre o que possa significar hoje a “ tarefa ressocializado-
ra” da prisão4. Sandoval Huertas organizou as funções não
declaradas da pena privativa de liberdade em três níveis: a) o
nível psicossocial (funções vindicativa e de cobertura
ideológica); b) o nível econômico-social (funções de reprodu
ção da criminalidade, controle coadjuvante do mercado de
trabalho, e reforço protetivo à propriedade privada); c) o nível
político (funções de manutenção do stato quo, controle sobre
113
as classes sociais dom inadas e controle de opositores
políticos)5. Estp maneira de conceber os fins da pena é cha
mada por Baratta de concepção “ materialística ou políti-
co-econômica” , em oposição à concepção “ ideológica ou
idealista” das teorias absoluta e relativa6. O estudo aprofun
dado da pena, chamado “ teoria da pena” , tem sua sede na
ocasião em que o conjunto das penas previstas pelo código
penal é objeto de exposição e análise.
Pensamos que numa sociedade verdadeiramente justa e
democratizada os fins do direito penal e da pena constituirão,
transparentemente expostos e debatidos, um só e indivisível
projeto. Entrementes, cabe um esforço, a exemplo do que
ocorreu na área das funções da pena, no sentido de desmitifi-
car os fins do direito penal, questionando as respostas usuais.
Esse esforço vem sendo empreendido por inúmeros penalistas
de perspectiva crítica; entre nós, situa-se nesse endereço Ciri-
no dos Santos7.
Entre os autores brasileiros, prevalece o entendimento de
que o fim do direito penal é a defesa de bens jurídicos: assim
Aníbal Bruno, Fragoso, Damásio, Toledo, Mirabete. Alguns
colocam a defesa de bens jurídicos como o meio empregado
para a defesa da sociedade (Bruno, Fragoso), concebida even
tualmente como combate ao crime (Mirabete); outros pro
curam enfatizar a defesa dos valores sociais que subjazem nos
bens jurídicos (Brito Alves) ou o “ robustecimento na cons
ciência social” desses valores (Damásio). Muito adequada
mente, Toledo promove uma depuração no conceito de bem
jurídico, expurgando-o de volúveis subordinações eticizantes,
114
com o que pode afirmar que a “ tarefa imediata” do direito
penal é sua proteção. A proteção de valores da vida comuni
tária é autonomamente referida, bem como uma função, certa
mente mais próxima do direito privado, de regular a convivên
cia humana (Mayrink).
O inter-relacionamento dos conceitos de bem jurídico,
interesse e valor, sobre o qual Welzel concebe a missão do
direito penal como defesa de valores ético-sociais elementares
da consciência jurídica e só por inclusão defesa dos bens
jurídicos, entendidos como estados sociais de preservação
juridicamente desejáveis (por esta p o rta— “ desejável” — o
argumento do interesse se reapresenta)®, e que levou Bau-
mann, num momento de justamente extenuada simplificação,
a escrever que o direito penal tem por função a ‘ ‘proteção de
bens jurídicos especialmente importantes = valores jurídicos
— interesses' ’9, ensejou a Aníbal Bruno perceber que a esco
lha dos bens jurídicos tem um agente histórico; tratando dos
fins do direito penal, referiu-se aos bens jurídicos como
“ interesses fundamentais do indivíduo ou da sociedade que,
pelo seu valor social, a consciência comum do grupo ou das
camadas sociais nele dominantes eleva à categoria de bens
jurídicos” "1. Embora percebendo a existência de um agente
histórico (as “ camadas sociais dominantes” no grupo humano
— sociedade civil — que, organizando-se como estado, edi
tará o direito penal), Aníbal Bruno supõe uma sociedade uni
tária, vivenciada e apreendida por uma consciência social
também unitária. A noção de classe social não é chamada a
participar. Veja-se a seguinte passagem de Fragoso: “ o fim do
direito é a tutela e a preservação dos interesses do indivíduo e
do corpo social. E evidente que os interesses que o direito
tutela correspondem sempre às exigências da cultura de deter
8 O p. c it., pp. 13-17. N ão nos esqueçam os de que W elzel atribui uo direito penal
um a “ função de form ação é tic a ” (p. 16),
9 O p. c it., p. 9.
10 O p. c it., v. I, t. I, p. 15.
115
minada época e de determinado povo” 11. A criminalização da
arte negra da çapoeira, dois anos após a abolição da escrava
tura, pelo artigo 402 do código penal de 1890, correspondia às
“ exigências de cultura” de “ determinado povo” ?12
Para Cirino dos Santos, os objetivos aparentes do direito
penal, expressos na “ proteção dos interesses e necessidades
(conhecidos como valores) essenciais para a existência do
indivíduo e da sociedade” , têm certos pressupostos, como
‘‘as noções de unidade (e não de divisão) social, de identidade (e
não de contradição) de classes, de igualdade (e não de desi
gualdade real) entre os componentes das classes sociais, e de
liberdade (e não de opressão) individual” 13. Definitivamente
é inegável que numa sociedade dividida, o bem jurídico, que
opera nos lindes entre a política criminal e o direito penal, tem
caráter de classe1'*. Tal constatação permite o aproveitamento
crítico do conceito de bem jurídico, no amplo espectro de
funções que, como vimos, lhe corresponde,
Podemos, assim, dizer que a missão do direito penal é a
proteção de bens jurídicos, através da cominação, aplicação e
execução da pena, Numa sociedade dividida em classes, o
d ire ito penal e sta rá p ro teg en d o rela çõ es so ciais (ou
“ interesses” , ou “ estados sociais” , ou “ valores” ) escolhi
dos pela classe dominante, ainda que aparentem certa univer
salidade, e contribuindo para a reprodução dessas relações.
Efeitos sociais não declarados da pena também configuram,
nessas sociedades, uma espécie de “ missão secreta” do direi
to penal.
11 Lições, c it., p. 2.
12 Código penal de. 1890 (dec. n? 847, de 11 .o u t.8 9 0 ), art. 402: “ F azer nas ruas e
praças p úblicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela deno
m inação de capoeiragem ; andar em correrias ( ...) : pena — de prisão celular por 2 a
6 m eses".
13 D ireito p en a l, c it., p . 23.
14 CF. Pena C abrera, B ien ju ríd ic o y relaciones sociafes de producción, in D ebate
p en a l, n? 2, L im a, 1987, p. 139.
116
§ 16
A ciência do direito penal
117
fronto valorativo que transcenda sua descrição, explicação e
organização. Em outras palavras, o afazer dogmático não
interpela a norma: acata-a (dogma) como objeto do conheci
mento. Uma lei básica da dogmática está no princípio da
proibição da negação; ao jurista é vedado, como diz Tércio
Sampaio Ferraz Jr., negar os “ pontos de partida das séries
argumentativas” 3. Podemos pretender que o auto-abortamen-
to seja indiferente perante a lei, ou que seja punido com branda
multa: o direito penal brasileiro comina-lhe detenção de um a
três anos (art. 124 CP), e isso, no que concerne à pena, é
unicamente o que deve ser considerado nas hipóteses em que
concorra um caso de auto-abortamento.
A dogmática não é, por certo, uma leitura pontilhada da
lei; sua técnica procura reconstruir os variados elementos que
integram a lei, organizando-os como sistema. Essa é uma
palavra chave no surgimento histórico da dogmática, bem
como na angústia de seu futuro. A idéia de sistema, como
assinala Luhmann, chegou à ciência do direito no início do
século XVII, vinda da astronomia e da teoria musical4. De
fato, as legislações anteriores a esse período consistiam na
justaposição seqüencial de textos, “ compilações” cujo co
nhecimento era haurido pelo exame individual-circular de
cada texto (glosa). De modo análogo, “ até meados do século
XVII” — como lembra Foucault — “ o historiador tinha por
tarefa estabelecer a grande compilação dos documentos e dos
signos” 5; a partir de então, sob a regência da “ classificação”
como instrumento metodológico central, estavamfranqueadas
as rotas gnosiológicas que conduziriam à “ história natural” e
sua aparente aptidão para apreender num só 1‘quadro” as mais
distintas e contraditórias “ classes” . Não por acaso, Ihering,
« reputado fundador do método dogmático, caracterizava a
construção jurídica como “ a aplicação do método da história
3 O p. c it., p. 4 9.
4 Sistem a g iurídico e dogm atica giurídico, trad. A. F ebbrajo, B olonha, 1978, p, 35.
5 A s p a la v ra s e as coisas, trad. S .T . M üchail, S, P au lo , 1 98!, p. 144.
118
natural à matéria jurídica” 6. Paia Ihering, a sistematização
configura o nível superior da jurisprudência, enquanto a his
tória e a interpretação configuram seu nível inferior. O tributo
ao positivismo se exprime em suas reiteradas comparações do
direito com a química, ou no esforço de categorização de
“ corpos jurídicos” 7. A influência dessas idéias é ainda hoje
absolutamente visível: dir-se-á que “ frente a um conjunto de
disposições legais, o jurista se comporta como um físico” 8.
Entre nós, Nélson Hungria proclamará que “ o sistema é a mais
perfeita forma do conhecimento científico” 5.
As etapas do método dogmático são: 1? demarcação do
universo jurídico (catalogação completa dos textos legais vi
gentes na área objeto de interesse); 2? análise e ordenação (as
leis válidas são de início apreciadas individualmente, e logo, a
partir de semelhanças e disparidades, submetidas a exercícios
de agrupamento que permitirão estabelecer uma ainda que
provisória ordem lógica); 3? simplificação e categorização (o
material resultante das etapas anteriores é simplificado, quan
titativa e qualitativamente, dando origem aos princípios clas-
sificatórios, que funcionarão como eixos categoriais); 4? re
construção dogmática (a dogmática, pela classificação e reor
ganização da “ matéria’ ’ legal, assim reconstruída, produz um
sistema que revelará e demarcará conteúdo e inter-relaciona-
mento lógico dos textos legais, “ devolvidos” sob a condição
de serem conhecidos através da mediação desse sistema).
Tais etapas devem ser vencidas com a obediência de duas
leis ou princípios: a) lei de proibição da negação (já referida,
exprime o caráter de dogma que o texto legal deve ter, para que
o trabalho de desenvolvimento lógico não induza a erros sobre
o conteúdo do direito); b) lei de proibição da contradição
119
(também chamada por Ihering de “ unidade sistemática” , ex
prime a incompossibilidade de princípios ou proposições
contraditórias; por exemplo, ou o abortamento necessário —
art. 128, inc. I CP — tem caráter justificativo ou tem caráter
exculpante, não podendo conviver ambas as conclusões no
mesmo sistema, sendo certo que a contradição se apresentaria
também nas respectivas fundamentações)*0.
A dogmática “ fechada” foi duramente questionada, quer
da perspectiva metodológica, quer da perspectiva política.
Metodologicamente, sua dependência da lógica formal e a
entronização do sistema foram duramente fustigadas. “ Como
qualquer estudante sabe” — disparam Warat e Russo — “ a
verdade, em lógica formal, se adquire ao preço de renunciar ao
conhecimento do mundo” ; a proposta da dogmática de produ
zir, através do estudo da legislação vigente, um saber que
realize funções jurídicas distintas das realizadas pela própria
legislação seria “ uma ilusão infecunda e obscurantista” 11.
Efetivamente, o sistema é um instrumento do saber discrimi
natório c seletivo: as diferenças e peculiaridades que não
incidam sobre os princípios classificatórios por ele eleitos são
reputadas indiferentes (Foucault); nessa linha, o saber penal
tende a transformar-se numa geometria (Novoa) excludente.
A superação aparente de uma dogmática positivista por uma
dogmática neokantista12 só agravou esses problemas. A se
10 A cham ada lei da estética ju ríd ic a , inconvincentem ente incluída po r Ihering (op.
c it., p. 149), não passava em nossa opinião de um a válvula aberta para o real.
Ihering dizia que um as leis agradavam , por “ seu caráter, sua transparência,
sim plicidade e claridade; outras repugnavum , porque carecem de tais predicados e
nos p a recem violentas e pou co n a tu ra is, sem que possam os declará-las v ic io sa s"
(ibidem ). T al “ le i” estã vinculada a dados da realidade social que devem im por-se
ao afazer dogm ático, e m elhor seria cham á-la de lei da ética jurídica; em algum
fu tu ro , poderá co n verter-se em lei da estética ju ríd ica.
11 Interpretación d e la le y , B . A ire s, 1987, p p . 9 e 14. N osso A níbal Bruno advertia
que “ o ju ris ta deve prevenir-se contra o poder absorvente da lógica form al” (op.
c it., v. I, t. I, p. 29).
12 Sobre o neokantism o n a dogm ática jurídico-penal, cf. M ir Puig, op. c it., pp. 227
ss; M unoz C onde, In tro d u cciõ n , c it., pp. 110 ss.
120
paração irredutível entre as ciências da natureza e as ciências
culturais abriu o campo não só ao dualismo metodológico, mas
a uma autêntica “ esquizofrenia” (Munoz Conde) gnosiológi-
ca; como disse Zaffaroni, os “ mastins metodológicos” se
encarregavam de manter a realidade fora do sistema. Tudo isso
sem que jamais a “ disparidade absoluta entre ser e dever-ser”
tenha sido provada, como objurga Larenz a Kelsen13. De outro
lado, a dogmática indiretamente pode reafirmar certos mitos,
que desempenham relevantes funções ideológicas: o mito da
sabedoria da lei (supor um legislador racional e arguto, de cuja
coerência, precisão, economia e previdência jamais proviriam
palavras inúteis ou dúbias, contradições, etc)14 que esconde a
reificação da lei; o mito da neutralidade da ciência (supor que
a gramática, a historiografia jurídica e a lógica formal abolem
a consciência de ciasse), fundamental na legitimação da ordem
jurídica'5. Por certo, sua função ideológica mais importante é
afiançar a possibilidade de uma construção harmonizante das
relações sociais (representadas no jurídico), na qual “ todos os
antagonismos são conciliáveis pela ordem jurídica” (José
Eduardo Faria). Daí, Lola Aniyar de Castro dizer que a dog
mática tradicional constitui uma “ filosofia da dominação” 16.
Efetivamente, o dogma da “ completude” do direito reforça o
monopólio jurídico do estado moderno e impede a considera
ção de direitos concorrentes17.
A dogmática pode libertar-se dessas acusações se lograr,
como preconizava Fragoso, superar o esquema apresentado
pelo tecnicismo jurídico, que “ tende à compreensão e justifi
cação do direito penal vigente” 18, “ A construção dos concei
121
tos dogmáticos deve incorporar os dados da realidade”
(Zaffaroni) e a constatação de seus efeitos sociais concretos.
Não se quer uma critica posterior, fora da dogmática, como
Rocco19. “ A incorporação à dogmática penal das finalidades
político-criminais transforma-a de um sistema fechado em um
sistema aberto” , ensina Bustos, e assim em “ permanente
renovação e criação” 10.
Faraco de Azevedo adverte que a dogmática penal, “ a
menos que se converta em instrumento ideológico destinado a
dissimular ou falsear a realidade, precisa manter-se rente à
vida, recebendo seu influxo e sobre ela atuando, atenta à
configuração da situação humana global a que se destina” ,
sem “ perder de vista sua dimensão histórica e crítica” 2'.
No momento atual, não podemos abrir mão da dogmática
jurídico-penal, porque, como assinala Gimbemat Ordeig em
seu festejado trabalho, “ temos que conviver com o direito
penal” 22. Transformá-la numa dogmática aberta é o desafio
que o penalista brasileiro tem, hoje, diante de si.
122
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