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O que é cidadania e o que falta no

Brasil?
Cidadania pode ser definida como a posse de diversos tipos de
direitos, que ainda precisam evoluir em nosso país.

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Por que os brasileiros vivem descontentes com a política? Por que


nossa democracia tem tanta dificuldade para se estabelecer na
prática? Por que, apesar de avanços recentes, parecemos tão longe
de resolver nossos principais problemas como sociedade?

Responder essas perguntas não é tarefa simples e requer análises


por vários ângulos diferentes. O historiador e cientista político José
Murilo de Carvalho, no já clássico livro “Cidadania no Brasil: o longo
caminho” faz uma tentativa ao estudar o desenvolvimento da
cidadania e dos direitos em nosso país.

O título do livro traz uma pista do seu diagnóstico: ainda temos


muito a percorrer para termos uma cidadania plena. Leia o artigo
para entender por quê!

O que é cidadania?
José Murilo de Carvalho adota em sua obra a teoria criada pelo
sociólogo britânico Thomas Humphrey Marshall. Segundo este, a
cidadania é uma condição na qual o indivíduo tem a posse de três
tipos de direitos.

Direitos civis. São aqueles que garantem a vida, a segurança, a


propriedade, a possibilidade de ir e vir, a igualdade perante à lei, o
acesso à justiça, a escolha do trabalho, a inviolabilidade do lar. Eles
estão relacionados à liberdade individual.

Direitos políticos. Se referem ao direito de participar da política e da


administração pública. Sua forma mais óbvia é o voto, mas eles
incluem também a organização de partidos políticos, a existência de
instituições representativas e legítimas, entre outros.

Direitos sociais. Garantem ao cidadão usufruir de educação, saúde,


aposentadoria, salário justo e serviços públicos de qualidade em
geral. Eles são baseados na ideia de justiça social e de participação
de todas as pessoas nas riquezas produzidas pela sociedade.

Segundo Marshall, existe uma ordem lógica na conquista desses três


tipos de direitos. Os civis são os mais básicos, que possibilitam mais
à frente a conquista dos políticos e, por meio da participação
política, os sociais.

Essa sequência aconteceu na Inglaterra, de forma gradual, com a


implantação dos direitos civis no século XVIII, dos políticos no século
XIX e dos sociais no XX. No Brasil, a história foi bem mais
complicada.

Idas e voltas, avanços e retrocessos


José Murilo de Carvalho investiga a história brasileira para entender
como os direitos foram implantados por aqui. Vamos relembrar
brevemente os principais acontecimentos para entender seu
argumento.

Da Independência à Primeira República

O primeiro período analisado vai de 1822, na Independência, até o


fim da Primeira República, em 1930. Nele, a cidadania foi muito
incipiente.

Os maiores obstáculos eram a escravidão e o domínio dos grandes


proprietários rurais. A escravidão colocava como subumanos grande
parte da população e os donos de terras tinham poder maior do que
a lei e o Estado em seus domínios. Portanto, a cidadania era
totalmente suprimida.

Existiam eleições para cargos legislativos durante o período imperial,


mas o direito ao voto começou limitado à elite. Ao longo das décadas
e durante a República, ele foi estendido a mais pessoas, mas
passava longe das mulheres e escravizados.

Movimentos políticos eram quase sempre compostos por revoltas


pontuais contra alguma medida do governo, e não por reivindicações
de direitos.

O período Vargas
O golpe que levou Getúlio Vargas ao poder em 1930 mudou bastante
esse cenário. Os direitos civis e políticos tiveram alguns avanços
entre 1934 e 1937, principalmente com a expansão do voto às
mulheres no começo da década. Depois disso, a ditadura do Estado
Novo imprimiu muitos retrocessos, com repressão política e
restrições de liberdades.

Por outro lado, os direitos sociais tiveram grande destaque. O


governo passou a focar nos benefícios aos trabalhadores urbanos,
concedendo a eles a possibilidade de se organizar em sindicatos,
reivindicar melhores condições, usufruir de aposentadorias e
pensões. O Ministério do Trabalho foi criado em 1930 e a Justiça do
Trabalho, em 1939.

Contudo, o Estado tinha grande influência nas relações trabalhistas e


os sindicatos só poderiam existir com a sua permissão. Dessa forma,
o gozo dos direitos sociais tinha um forte traço paternalista e
autoritário. Não à toa, na propaganda oficial, Getúlio era retratado
como “o pai dos pobres”.

Primeiros passos da democracia

Com a derrubada de Vargas, o Brasil viveu um período democrático,


com avanços importantes nos direitos políticos. A cada eleição, o
voto era concedido a mais e mais pessoas. Em 1962, havia 14,7
milhões de eleitores no país.

Os partidos políticos começaram a se consolidar e ganhar a


preferência da população, especialmente o PTB, o PSD e a UDN. A
efervescência política ofuscou o desenvolvimento dos direitos
sociais e ajudou a criar o ambiente de polarização e antagonismo
que culminou do golpe militar de 1964.
Regime Militar

Na nova ditadura, houve eleições regulares para diversos cargos e


novos eleitores foram incorporados a elas. Entretanto, a
participação política acontecia de forma muito limitada, uma vez
que não era possível eleger o presidente, políticos oposicionistas
foram cassados e o sistema de dois partidos (ARENA e MDB)
tornava praticamente impossível diminuir o poder dos militares.

O maior retrocesso do período aconteceu nos direitos civis, com


o Ato Institucional Nº 5, o famoso AI-5, durante o governo de Costa e
Silva. O decreto fechou o Congresso, instituiu a censura prévia à
imprensa, suspendeu o habeas corpus, possibilitou a perseguição e
cassação de opositores, entre outras medidas repressivas.

Nova República

Por fim, o último período analisado por José Murilo de Carvalho


começa em 1985 e termina em 2013, data da última atualização do
livro.

A Constituição de 1988, chamada de Constituição Cidadã,


consolidou conquistas anteriores e oficializou os direitos civis,
com a promessa de dar um fim aos abusos do Estados e às ameaças
às liberdades individuais.

Houve avanços nos direitos sociais, principalmente com a


estabilização da economia e os programas sociais que ela
possibilitou. O acesso à educação cresceu e o analfabetismo
minguou. Por meio do SUS, o Estado passou a prover, pelo menos
em teoria, saúde universal.

Em relação à participação política, as eleições diretas e regulares


voltaram a fazer parte da vida dos brasileiros. O multipartidarismo
voltou com tudo e houve uma multiplicação no número de legendas.

Porém, os protestos de junho de 2013 mostraram que os inegáveis


passos para a frente não resolveram problemas estruturais. A
desigualdade, a pobreza e a corrupção seguem como parte
integrante do país. A sensação de distanciamento entre sociedade
civil e classe política ainda é onipresente.

Já os direitos civis ainda têm aplicação desigual e limitada. O


acesso à justiça é precário para a maior parte da população. O
número de homicídios disparou e fez da segurança pública uma das
maiores preocupações nacionais. A violência policial faz vítimas nas
periferias, principalmente a população negra. Segundo pesquisas
citadas no livro, boa parte das pessoas desconhece a maioria dos
seus direitos e os limites do Estado.

Uma história diferente

Marshall afirmou que o desenvolvimento lógico da cidadania


acontece na sequência vista na história inglesa: primeiro vêm os
direitos civis, depois os políticos e, em seguida, os sociais.

No Brasil, aconteceu o contrário. O primeiro tipo de direitos a ser


praticado verdadeiramente foram os sociais, principalmente na Era
Vargas. Enquanto isso, os civis e os políticos eram atacados.

Não existe apenas um caminho certo na implantação da cidadania,


como o próprio Marshall reconhece, mas o modo como isso
acontece dá origem a diferentes tipos de cultura cidadã. Em nosso
país, essa mistura de um Estado provedor e autoritário criou uma
relação paternalista, em que direitos não são universais, mas dados
como favores.

“O Estado é sempre visto como todo-poderoso, na pior hipótese


como repressor e cobrador de impostos; na melhor, como um
distribuidor paternalista de empregos e favores. […] Essa cultura
orientada mais para o Estado do que para a representação é o que
chamamos de ‘estadania’, em contraste com a cidadania.”

Como a provisão vem do poder Executivo, este também passou a ter


mais destaque e visibilidade que o Legislativo e o Judiciário. A figura
do presidente é extremamente poderosa no imaginário popular, o
que aumenta a busca por um salvador que resolva todos os
problemas rapidamente.

Durante outro período autoritário, a ditadura militar, houve o


paradoxo da participação política: o direito ao voto foi ampliado
enquanto instituições, como o Congresso e o judiciário, e a oposição
eram esvaziadas.

Tudo isso gerou, segundo José Murilo de Carvalho, uma cultura


política de pouca organização civil e de busca por privilégios, ou
seja, a demanda por benefícios apenas para determinados grupos. É
um cenário que atrapalha a consolidação universal dos direitos e
causa essa enorme frustração entre a população.

Por isso, o autor argumenta que é necessária a participação ativa


do povo para conquistar a cidadania plena e resolver a
“incapacidade do sistema representativo de produzir resultados que
impliquem a redução da desigualdade e o fim da divisão dos
brasileiros em castas separadas pela educação, pela renda, pela
cor.”

Referências

Cidadania no Brasil: o longo caminho – José Murilo de Carvalho

Os direitos de cidadania (T. H. Marshall).Disponível em: http://pgp-


cp.blogspot.com/2006/10/os-direitos-de-cidadania-t-h-
marshall.html?utm_source=pocket_mylist

Jus.com.br – Direitos civis, políticos e sociais no Brasil: uma inversão


lógica. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64742/direitos-
civis-politicos-e-sociais-no-brasil-uma-inversao-logica?
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