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Ano 6 / Número 63 R$ 9,90

4 6 32
EM DEFESA DA CRÍTICA estados unidos ASSANGE OU PINOCHET

OS DESAFIOS DE UM o que conta desiguais perante


JORNAL INDEPENDENTE nas eleições a lei BRITÂNICA
POR SERGE HALIMI POR BENOÎT BRÉVILLE POR MAURICE LEMOINE

le monde

diplomatique
Brasil

Um novo olhar sobre o mundo. um novo olhar sobre o brasil.

A Onda
conservadora

RUMOS DO DESENVOLVIMENTO
PRIVATIZAR OU ESTATIZAR?
POR AMIR KHAIR, SONIA FLEURY E EDSON APARECIDO DA SILVA

18 POR UMA EUROPA DE ESQUERDA


DESOBEDIÊNCIA CIVIL
POR BERNARD CASSEN 29 ÁFRICA DO SUL
O MASSACRE DE MARIKANA
POR GREG MARINOVICH 34 paz na COLÔMBIA
por que ACREDITAR?
POR GREGORY WILPERT
2 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

sumário canal direto


le monde

diplomatique
Brasil

A dependência redobrada
Ano 6 – Número 63 – Outubro 2012 Professora Leda Paulani, li bastante empolgado seu
www.diplomatique.org.br
texto. Gostei muitíssimo da abordagem e do panora-
Diretor e Editor-chefe
ma histórico. Parabéns! Um dos melhores que já li, e
Silvio Caccia Bava quero ousar contribuir com sua abordagem. Em
1999, foi publicada uma medida provisória – conver-
Editor
Luís Brasilino 3 EDITORIAL
Uma eleição que disputa valores tida em lei no ano seguinte − que alterou as regras de
Editores de Arte controle fiscal dos preços de transferência no Brasil,
Por Silvio Caccia Bava
Adriana Fernandes e Daniel Kondo
para efeito de imposto sobre a renda. A alteração le-
Editora web e pesquisa iconográfica
Francele Cocco 4 NOSSO COMBATE
“Não temos tempo”
gislativa prevê a necessidade de as indústrias locais,
Revisão
que utilizam matéria-prima importada de empresas
Por Serge Halimi
Lara Milani e Maitê Ribeiro do grupo, auferirem um lucro de 60%, considerada
somente a proporção do preço de venda relativa aos
Marketing e comunicação
Antonio Marcio 6 ELEIÇÕES NOS ESTADOS UNIDOS
Os dois Sul produtos importados. Com isso, exige-se aproxima-
Gestão administrativo-financeira damente margem de 150% sobre o custo da impor-
Paula Duarte
Por Benoît Bréville
Romney, diplomacia na ponta do fuzil tação. Essa mudança impactou principalmente a in-
Assinaturas
Douglas Leonel F. Ferreira e Djoyner Kryslei de Carvalho
Por Johann Hari dústria automobilística e a indústria farmacêutica,
Recrudescimento do aparato de segurança tornando menos onerosa a importação de mercado-
Secretaria
Arlete Martins
norte-americano rias prontas para a revenda, em detrimento do de-
Por Chase Madar
Circulação senvolvimento de um parque industrial nacional.
Tarcisio Perroni
Ainda sobre o mesmo assunto (controle fiscal dos
Apoio 11 DÉFICIT HERDADO DO CRASH ASIÁTICO
Uma causa negligenciada da crise norte-americana preços de transferência), no início deste ano foi pu-
Eric Michel Ângelo
Por Dean Baker blicada outra medida provisória que, entre as várias
Tradutores desta edição
Carolina M. de Paula, Celina Olga, Frank de Oliveira, alterações promovidas na legislação tributária, mu-
Livia Chede Almendary e Rita Grillo
12 DESENVOLVIMENTO
Privatizar ou estatizar?
dou as regras relativas às commodities. Aliás, as ope-
Assessoria Jurídica rações com commodities foram as mais prejudica-
Rubens Naves, Santos Jr., Hesketh Por Amir Khair
Escritórios Associados de Advocacia
das por essas mudanças na lei do imposto sobre a
Um remédio para matar ou salvar o SUS?
Conselho Editorial Por Sonia Fleury
renda. São apenas dois exemplos concretos de como
Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Ana Cláudia Teixeira, A farsa das concessões privadas seu texto tem razão: não há planejamento econômi-
Ana Toni, Anna Luiza Salles Souto, Ariovaldo Ramos,
Betty Mindlin, Caco Barcellos, Claudius Ceccon, Danilo Por Edson Aparecido da Silva co de médio e longo prazo, além de a pauta cotidia-
Miranda, Fernando Gabeira, Ferréz, Heródoto Barbeiro, na e eterna do governo ser a arrecadação tributária.
Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jaime Pinsky,
Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano, José Eduardo 16 CRISE NA EUROPA
Competitividade, símbolo dos paradoxos da globalização
Edison Carlos Fernandes
Martins Cardozo, José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor,
Leonardo Boff, Marcio Pochmann, Nabil Bonduki, Por Gilles Ardinat Alerta aos candidatos
Nilton Bonder, Plinio de Arruda Sampaio, Raquel Rolnik, Desobediência civil para uma Europa de esquerda?
Ricardo Abramovay, Ricardo Azevedo, Roberto de Muito bom o artigo! Parece que há uma questão
Andrade Martins, Rubens Naves, Ruy Cezar do Espírito Por Bernard Cassen
Santo, Sebastião Salgado, Silvia Dias Alcântara Machado,
pouco falada e que é da maior importância para aju-
Soninha, Tânia Bacelar de Araújo, Vera da Silva Telles
20 ONDA CONSERVADORA
Novas expressões do conservadorismo brasileiro
dar no enfrentamento da colossal injustiça fiscal e
tributária em nosso país: a lei de (ir)responsabilida-
Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação Por Luís Brasilino de fiscal, imposta pela herança tucana. Mas depois
da associação Palavra Livre, em parceria com o A mídia contra a democracia disso nem Lula nem Dilma abordaram o assunto.
Instituto Pólis. Por Francisco Fonseca Por quê? Ah, são vários os porquês, infelizmente!
Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque “Pode deixar que eu cuido disso”: a infantilização do voto
São Paulo/SP – 01220-020
Diva Moreira
Por Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida
Tel.: 11. 2174-2005
diplomatique@diplomatique.org.br Incrível retrocesso na educação superior
Por César Augusto Minto e Lalo Watanabe Minto Em defesa da habitação em áreas centrais
Assinaturas Conservadores ou liberais? O Brasil vivenciou, ao longo do século passado, um
assinaturas@diplomatique.org.br
Tel.: 11. 2174-2000 Por Nancy Cardia processo acelerado de urbanização, que trouxe con-
O agronegócio e os territórios dos povos tradicionais sigo problemas estruturais variados a serem enfren-
Impressão
Divisão Gráfica da Editora Abril S/A. Por Henri Acselrad tados pelos diversos atores sociais. Do ponto de vista
Av. Otaviano Alves de Lima, 4400
legal, o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001) fixou
São Paulo/SP – 02909-900
29 MASSACRE NA ÁFRICA DO SUL
Trinta e quatro mineiros mortos
as diretrizes gerais de política urbana, com o objeti-
Distribuição nacional
FC Comercial e Distribuidora S.A. Por Greg Marinovich vo de sanar as distorções próprias de um crescimen-
Av. Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678 – Jd. Belmonte – to urbano desordenado e os efeitos negativos dele
30
Osasco/SP – 06045-390 – Tel .: 11. 3789-1624
O MURO DAS ILEGALIDADES decorrentes. O texto traz propostas refletidas e pal-
Índia-Bangladesh, uma fronteira desastrosa páveis para a melhoria da habitação urbana atual.
Le Monde Diplomatique (França) Por Elizabeth Rush Amanda C. Montanari
Fundador:
Hubert Beuve-Méry 32 ASSANGE, PINOCHET... E OS OUTROS
Embaixadas, direito de asilo e extradições
O processo de libertação na América Latina
e o papel de Hugo Chávez
Presidente do Diretório, Diretor da Por Maurice Lemoine
Publicação e Diretor de Redação Como é bom ter acesso a informação limpa. Eu tinha
33
Serge Halimi uma ideia totalmente contrária sobre Chávez − acho
A INOCÊNCIA DOS MUÇULMANOS
Redator-Chefe Singular seletividade dos manifestantes árabes que é a ideia que interessa às falsas democracias.
Maurice Lemoine Por As’ad Abu Khalil Miralda Ribeiro Campos
1-3, rue Stephen-Pichon 75013 Paris | Tel 33-1-53 94 96 01
Fax 33-1-53 94 96 26 | secretariat@monde-diplomatique.fr
34 NEGOCIAÇÕES ENTRE AS FARC E O GOVERNO
Por que a paz na Colômbia é possível Participe de Le Monde Diplomatique Brasil: envie suas
Por Gregory Wilpert críticas e sugestões para diplomatique@diplomatique.org.br
As cartas são publicadas por ordem de recebimento e,
Le Monde Diplomatique tem 51 edições internacionais
produzidas em 30 idiomas, com uma tiragem mensal de 2,4
milhões de exemplares em todo o mundo.
36 OS POBRES E OS POBRES DEMAIS
Quando os africanos migram para o Sul
se necessário, resumidas para a publicação.
Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus
Por Guillaume Pitron autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação
ISSN: 1981-7525
do periódico.
39 LIVROS
Capa: Samuel Casal
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 3

editorial

© Claudius
Uma eleição que disputa valores
por silvio caccia bava

U
m dos fundamentos da demo- pastores e obreiros e milhões de fiéis es- Esses dados tentam demonstrar Tomemos o exemplo de São Paulo.
cracia moderna é a separação palhados por quatro continentes. A Iurd que, mesmo se os eleitores do PRB fo- Como um prefeito que é umbilical-
entre a Igreja e o Estado e a ga- cresce também no Brasil e adentra o rem para além do mundo de seus fiéis, mente ligado à Iurd e à Record vai tra-
rantia de que o exercício da cida- mundo da política, integrando o PRB, que estão entre os 16 milhões de evan- tar a diversidade sexual, a Parada Gay?
dania política independe das crenças que tinha como presidente de honra o gélicos brasileiros, quem se fortalece Como serão geridas as relações da pre-
religiosas de cada um. Em contraparti- vice-presidente da República, José Alen- nesse processo, elegendo seus pasto- feitura com as entidades assistenciais
da, o Estado assegura a imparcialidade car, um católico fervoroso. Em 2006, na res ou seus representantes, é a Iurd. que prestam serviços às comunida-
no trato com as diferentes Igrejas, a li- primeira eleição disputada pelo PRB, o Se o PRB é controlado pela Igreja des? Serão privilegiadas as entidades
berdade religiosa e a convivência res- único deputado federal eleito foi o pas- Universal do Reino de Deus, sua Exe- assistenciais afins com a Iurd? Haverá
peitosa entre as diferentes religiões. tor da Iurd, Léo Vivas. Nas eleições de cutiva Nacional e seus presidentes proselitismo religioso? E a questão do
Curiosamente estamos vivendo 2010, o número de deputados federais estaduais são da Iurd, as bancadas fe- aborto? Da gravidez precoce?
uma situação singular nestas eleições, eleitos passou para oito e foram eleitos deral e estaduais eleitas pelo PRB são Não se trata de criminalizar esta ou
no Brasil. Uma situação que desafia es- dezessete deputados estaduais. Atual- em sua esmagadora maioria de pas- aquela Igreja. Essas questões, aliás,
se fundamento da democracia. Uma mente, a bancada do PRB no Congresso tores da Iurd, podemos e devemos co- não se referem unicamente aos evan-
Igreja disputa as eleições: a Igreja Uni- tem nove deputados federais, sete dos locar em questão se esses candidatos, gélicos, mas apontam para uma ne-
versal do Reino de Deus (Iurd) quer ele- quais pastores da Iurd. quando eleitos, defenderão os inte- cessária distinção entre a natureza da
ger prefeitos e vereadores através de sua No plano da vida partidária, em resses públicos ou os interesses de política pública, que deve se orientar
sigla partidária, o Partido Republicano 2011, com a morte de José Alencar, a Iurd sua Igreja. pela garantia de direitos para todos, e
Brasileiro (PRB). Essa afirmação requer consolidou seu controle sobre o partido. Nestas eleições municipais, o a natureza das religiões, que afirmam
duas coisas: primeiro, sua comprova- Marcos Pereira, da Iurd e da TV Record, PRB tem candidaturas próprias em valores morais e regras de conduta
ção; segundo, uma reflexão sobre suas assumiu sua presidência; pelo menos quatro capitais: São Paulo, com Cel- que, em muitos casos, se chocam com
implicações. O que significa uma Igreja dez dos dezoito membros da Executiva so Russomano; Salvador, com o bis- a necessária pluralidade cultural e de
à frente do poder político? E por que Nacional do PRB são da Iurd ou da Re- po Márcio Marinho; Maceió, com valores que são riqueza e patrimônio
uma Igreja quereria eleger um prefeito? cord; os sete cargos mais importantes Galba Novaes; e Boa Vista, com Me- de cidades como São Paulo. Afinal,
Já no final dos anos 1980, a Iurd era da Executiva estão nas mãos de pasto- cias de Jesus. A legenda pretende ele- qual é a cidade que a gente quer?
uma potência. Tinha adquirido a Rede res da Iurd; 23 dos 27 presidentes esta- ger de sessenta a oitenta prefeitos e
Record de televisão e possuía, segundo duais têm vínculos formais ou com a dobrar a bancada de deputados fe- 1 Ler Cláudio Gonçalves Couto, “Russomano, o ca-
seu fundador, Edir Macedo, milhares de Iurd, ou com a Record.1 derais em 2014. tólico”, O Estado de S. Paulo, 18 set. 2012, p.A2.
4 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

NOSSO COMBATE

“Não temos tempo”


A audiência on-line não dá muito retorno financeiro aos que pesquisam, editam, corrigem e verificam a informação.
Assim, pouco a pouco, constrói-se uma estrutura econômica parasitária que concentra em apenas alguns todos os lucros
do comércio – enquanto os outros arcam com os custos da “gratuidade”
POR SERGE HALIMI*

A
queles que sofrem com a falta de aos lugares mais remotos. De resto, acreditam que essas medidas podem
atenção à sua causa, ou ativida- muitos jornais concebidos com o úni- atrair a atenção de leitores por algumas
de, em geral deparam com a co objetivo de aumentar os lucros (ou a horas. Mas, se é assim, como conven-
mesma explicação: “Não temos influência) de seus proprietários po- cer o leitor a pagar por algo que ele po-
tempo”. Não temos mais tempo de deriam muito bem sucumbir sem ne- de encontrar – gratuitamente e em pro-
mergulhar em um livro “muito longo”, nhuma perda para a democracia. A di- fusão – em outras partes?
de passear sem rumo por uma rua ou ferença, contudo, é que as novas Em particular na internet. Hoje, aos
por um museu, ver um filme com mais tecnologias da informação não asse- 35 milhões de franceses que leem um
de noventa minutos. Nem de ler um guram ao jornalista um emprego ou jornal diariamente, somam-se ou se
artigo que aborda um assunto fami- uma renda estável como a forma ante- superpõem 25 milhões de internautas
liar, envolver-se com militância ou fa- rior dos jornais e meios de comunica- que consultam pelo menos um site de
zer qualquer outra coisa sem ser inter- ção impressos. A menos que seja exer- imprensa por mês. Mas os internautas
rompido, em toda parte, por algo que cida de forma gratuita, ou seja, com foram habituados a acreditar que o rei-
finalmente desvia nossa atenção para outras fontes de renda, como a maioria no da sociedade sem dinheiro havia
outra coisa. dos blogueiros, a profissão está amea- chegado – salvo pelo fato de precisa-
De um lado, essa falta de tempo de- çada pelo pior: o fato de não saber se rem comprar, a preços altos, um com-
corre da aparição de tecnologias que tem um futuro pela frente. putador, um smartphone ou um tablet
nos permitem ganhar mais tempo e do No trem, no metrô, em um café, em que permitam o acesso à imprensa na
aumento da velocidade dos desloca- um congresso político: em outra épo- rede mundial. A audiência on-line,
mentos, das pesquisas, da transmis- ca, a imprensa reinava nesses ambien- portanto, não dá muito retorno finan-
são de informação e correspondências tes; hoje, quantas pessoas exibem um ceiro aos que pesquisam, editam, cor-
– facilidades acessíveis a custos baixos jornal que não seja gratuito nesses lu- rigem e verificam a informação. Assim,
e até irrisórios. Mas, simultaneamen- gares? Não se trata de uma impressão: pouco a pouco, constrói-se uma estru-
te, a exigência de velocidade atua so- números confirmam a realidade dessa tura econômica parasitária que con-
bre o tempo de cada um, e o número deserção. Na Europa ocidental e nos centra em apenas alguns todos os lu-
de tarefas a serem realizadas aumen- Estados Unidos, a distribuição de jor- cros do comércio – enquanto os outros
tou vertiginosamente. Sempre conec- nais impressos caiu 17% nos últimos arcam com os custos da “gratuidade”.2
tados. Proibidos de se descontrair. Não cinco anos. E esse recuo aumenta. Na Um jornal como o The Guardian,
temos tempo.1 França, o período de febre eleitoral já por exemplo, tornou-se gratuito gra-
Às vezes, é o dinheiro que falta: não não provoca corridas às bancas de jor- ças a seu site na internet, audiência
temos mais os meios. Se por um lado nal; de janeiro a agosto de 2012, os pe- número um no Reino Unido e terceiro
um jornal como o Le Monde Diploma- riódicos que abrangem temas gerais no mundo, mas isso não impediu – ao
tique ainda custa mais barato que um sofreram um recuo de 7,6% em relação contrário – que perdesse 57 milhões de
maço de cigarros na França, por outro ao ano passado. Durante as Olimpía- euros no ano passado e demitisse uma
implica uma despesa que assalaria- das, em julho e agosto, até um jornal es- centena de jornalistas. Apesar da ne-
dos, desempregados, trabalhadores portivo como o L’Équipe – em situação de cessidade de cada vez mais investi-
em situação precária e aposentados monopólio – viu suas vendas caírem. mentos no setor, o crescimento dos
não julgam pertinente. Na esperança de impedir essa que- jornais em versão digital coincide, em
Entre outras, essas razões explicam da, meios com jornalismo de qualidade geral, com a redução das vendas em
o desinteresse pela imprensa escrita. e crítico se veem obrigados a publicar bancas. Sem dúvida, cerca de 6 mi-
Parte de seus antigos leitores a abando- manchetes que chamem mais atenção, lhões de britânicos leem pelo menos
na à medida que a janela de papel aber- como as que invadem a intimidade das um artigo do Guardian por semana,
ta para o mundo se transforma em pessoas, e artigos sobre qualquer coisa mas apenas 211 mil o compram coti-
uma obrigação de leitura suplementar – inclusive com provocações isoladas dianamente. É essa pequena popula-
em uma agenda sobrecarregada – prin- de caricaturistas direcionadas a fun- ção de compradores, em declínio, que
cipalmente se for necessário pagar por damentalistas. São os “anos mais som- financia a leitura gratuita dos inter-
isso. Um dos proprietários de Free e do brios de nossa história”. Os canais de nautas. Um dia, certamente, essa via-
Le Monde, Xavier Niel, antecipa que os notícias continuam amplificando es- gem terá de ser interrompida pela falta
jornais desaparecerão no espaço de tardalhaços. Adivinhar qual excesso de combustível.
uma geração. mobilizará a atenção da mídia ou ocul- O páreo perdido dos editores tam-
Se o financiamento desses meios tar uma informação que exige do leitor bém está relacionado à publicidade.
fosse para as telas e tablets, não haveria um pouco mais que um “curtir” tor- No início, o modelo da “gratuidade”
© Daniel Kondo

com o que se alarmar: um substitui o nou-se uma brincadeira infantil. As- on-line imitava a lógica econômica da
outro. E mais: nesses suportes, a ciên- sim, continua crescendo a parcela de rádio comercial, depois, a dos jornais
cia, a cultura, o lazer e a informação se vulgaridades e catastrofismos em di- gratuitos distribuídos em estações de
propagariam mais rápido e chegariam versos jornais – cujos proprietários metrô por trabalhadores precarizados.
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 5

No caso de rádios privadas (RTL, Euro- Sejamos sinceros também sobre a cas e livrarias diminui à medida que a
pe 1, NRJ etc.), o retorno vem dos spots situação da nossa franquia: desde ja- rede de distribuição se deteriora. Es-
publicitários que martirizam os tím- neiro deste ano, a distribuição do Le cravos da profissão situada na ponta
panos em meio aos programas. Mas, Monde Diplomatique caiu 7,2% na da cadeia, submetidos a horários e
no segundo caso, se Vincent Bolloré e França. A falta de tempo e de dinheiro; condições de trabalhos exaustivos,
TF1, respectivamente proprietários de o desencorajamento diante de uma acossados pela concorrência da im-
Direct Matin e Métro, têm como projeto crise que prevemos bem antes dos ou- prensa chamada “gratuita”, centenas
uma sociedade da gratuidade, é com a tros, mas que não podemos remediar de donos de bancas de jornal e peque-
condição de que esta seja mais lucrati- sozinhos; a contestação da ordem eco- nas livrarias de imprensa fecharam as
va. Para isso, cobra-se diretamente do nômica e social que raramente encon- portas nos últimos anos (918 apenas
anunciante, que, em troca, ganha fei- tra eco na política: todos esses fatores em 2011). Contudo, graças a esses tra-
xes de leitores e audiência. contribuem para nosso recuo. balhadores, os leitores estabelecem re-
Com a informação on-line, o fiasco À degradação de nossa situação fi- lações com nosso jornal pela primeira
dessa estrutura tornou-se patente. Por nanceira, soma-se uma nova baixa em vez. Como fazer chegar nossas publi-
mais que um site de imprensa seja um nossas receitas publicitárias. Aos nos- cações em que tal pesquisa, análise ou
sucesso de audiência, os recursos ad- sos numerosos leitores, que em geral reportagem foi publicada àqueles que
vindos da publicidade vêm em conta- não aprovam esse tipo de recurso, pro- ainda não são assinantes? Centenas de donos
-gotas, porque o setor tem muito mais metemos que a publicidade não ultra- Quando se trata do Le Monde Diplo- de bancas de jornal
interesse em anunciar em mecanismos passaria o teto de 5% de nossos negó- matique, a promoção fraternal e as ci- e pequenas livrarias
de busca – que, segundo Marc Feuillée, cios. Em 2012, contudo, esse número tações entre os meios de comunicação
presidente do Sindicato da Imprensa não chegava a 2%. Graças a uma políti- são simplesmente silenciadas. Assim,
de imprensa
Cotidiana Nacional, se tornaram “me- ca intransigente sobre a tarifa de nossas entre 19 de março e 20 de abril de 2012, fecharam as portas
gavitrines publicitárias, engolindo a assinaturas – não liquidamos nossas período escolhido ao acaso por um de nos últimos anos
quase totalidade dos recursos de nossos publicações nem oferecemos outra coi- nossos estagiários, as citações de im- (918 apenas em 2011)
anunciantes”. Feuillée precisa com nú- sa além dos jornais encomendados pe- prensa de Europe 1, RTL e France Inter
meros: “Entre 2000 e 2010, os negócios los assinantes – e também à campanha evocaram 133 títulos, entre eles Le Fi-
publicitários envolvendo mecanismos de doações que relançamos cada ano garo (124 vezes), Libération (121 vezes),
de busca cresceram de 0 a 14 bilhões de na mesma época e que ajuda a financiar sem mencionar France Football e Pic- vas relações sociais, econômicas, eco-
euros, enquanto na imprensa on-line o nossos projetos de desenvolvimento, sou Magazine. O Le Monde Diplomati- lógicas.4 Para provocar e estimular so-
crescimento no mesmo período foi de 0 nossas perdas permaneceram modes- que não foi citado nem sequer uma vez. ciais-democratas, sem trégua. Foram
a 250 milhões de euros”.3 Informado tas. Mas, em 2012, este jornal vai termi- Difícil ser menos presente que o princi- eles, por exemplo, que a partir de nos-
com detalhes dos gostos e leituras de nar em déficit. E nada garante que a ten- pal jornal francês publicado no mundo sas análises lançaram a ideia de taxar
cada um de nós, capaz (como Face- dência será revertida no ano que vem. inteiro (51 edições em trinta idiomas). transações financeiras,5 depois a de es-
book) de vender, assim que possível, es- No fundo, pouco importa: nossa re- tabelecer um teto para a renda.6 Os
sa avalanche de dados pessoais aos pu- Raios de luz de social é você. Portanto, contamos dois temas levantaram polêmicas que
blicitários que os utilizarão para “focar” No entanto, alguns raios de luz cla- com você para encorajar outras pessoas ainda persistem, e segundo o relato de
melhor seu público-alvo, o Google tam- reiam a paisagem. Uma nova edição a viverem nossas aventuras intelectu- vários jornalistas, nosso artigo da edi-
bém se tornou mestre na arte de fazer eletrônica será lançada nos próximos ais e compromissos, para tornar este ção de fevereiro último inspirou Fran-
“otimização fiscal” na Irlanda e nas meses. Ela permitirá ao leitor passar jornal e seus valores mais conhecidos, çois Hollande a propor a criação de um
Ilhas Bermudas. Gigante, essa multina- instantaneamente de um formato que convencer as pessoas a seu redor que imposto de 75% para rendas superiores
cional quase não paga impostos. reflete o jornal em papel, com sua se- não é urgente nem necessário reagir a a 1 milhão de euros. Um jornal pode
Se a imprensa está mal, a maior quência e paginação, a outro mais todas as “polêmicas”, abraçar o mun- também, portanto, lembrar que a im-
parte dos títulos dissimula essa situa- adaptado a todas as telas. Uma edição do para no fim não ter nada, percorrer prensa nem sempre está do lado da in-
ção, maquiando seus indicadores. As- específica destinada aos tablets e ou- todos os caminhos, sem poder se lem- dústria ou de empresários contra aque-
sim, parte da difusão proclamada pa- tros dispositivos de leitura digital está brar de todos. E que é bom – por exem- les que lutam obstinadamente para
ga – mais de 20% no caso de Échos, em preparação. Além disso, observa- plo, uma vez por mês? – abandonar a salvar o planeta e mudar o mundo.
Libération ou Figaro – é em realidade mos que nossos arquivos suscitavam sala onde pessoas vociferam e decidir A existência e o desenvolvimento de
ofertada em estações, companhias aé- um interesse excepcional – as vendas parar um pouco para refletir. um jornal com essas características não
reas, armazéns de luxo, hotéis, escolas de nosso último DVD superaram to- Para que pode servir um jornal? podem depender apenas do trabalho
de comércio, estacionamentos. O nú- das as expectativas. Em breve, tam- Para aprender e compreender. Dar um da equipe reduzida que o produz, por
mero reivindicado de assinantes, por bém proporemos a nossos assinantes, pouco de coerência a um mundo onde mais entusiasta que seja. Mas sabemos
sua vez, seria muito mais baixo se não por uma soma módica, o acesso ins- outros empilham informação sem pa- que podemos contar com você. Juntos,
fossem as técnicas de hard discount, tantâneo a qualquer um de nossos ar- rar. Pensar criticamente em nossas lu- tomaremos o tempo necessário.
como o exemplo do jovem diretor do tigos publicados entre o nascimento tas, identificar e tornar conhecidos
Nouvel Observateur, que se já não bas- do Le Monde Diplomatique em maio seus atores. Não continuar solidário a *Serge Halimi é diretor do Le Monde
tasse propor treze números de sua re- de 1954 e a edição atual. Finalmente, um poder em nome de referências traí- Diplomatique.
vista por 15 euros, também agregou ao será possível a todos, assinantes ou das por suas próprias ações. Recusar
pacote um “relógio da coleção Lip clás- não, acessar nossos arquivos de docu- fundamentalismos identitários que 1 Cf. “La tyrannie de la vitesse” [A tirania da velocida-
de], Sciences Humaines, jul. 2012.
sicos”. O dono da L’Express com suas mentos durante alguns dias mediante esquecem que a herança do “Ociden- 2 Ler “L’information gratuite n’existe pas” [A informa-
echarpes coloridas fez melhor: assina- o pagamento de uma taxa. Essas novas te” é o Palácio de Verão, a destruição ção gratuita não existe]. Disponível em: www.mon-
tura de 45 números por 45 euros, que funcionalidades do site, que espera- do meio ambiente, mas também o sin- de-diplomatique.fr/carnet/2010-10-07-information.
3 Correspondance de la presse, Paris, 17 set. 2012.
tinha como bônus um “despertador mos inaugurar até o início do próximo dicalismo, a ecologia, o feminismo – a 4 Ler, por exemplo, Bernard Friot, “La cotisation, le-
com visor luminoso e sonoro”. ano, demandaram um longo e pesado Guerra da Argélia e os “carregadores vier d’émancipation” [A cotização, alavanca da
Outras astúcias permitem fortale- investimento de nossa parte. Espera- de bagagem”. E que o “Sul”, os países emancipação], Le Monde Diplomatique, fev. 2012;
“Le temps des utopies” [O tempo das utopias],
cer a audiência desses sites. Assim, mos, agora, a entrada de recursos mais emergentes que desarticulam a ordem Manière de Voir, n.112, ago./set. 2010.
quando um título da imprensa que regulares: eles contribuirão para a de- colonial, engloba forças medievais, 5 Cf. Ibrahim Warde, “Le projet de taxe Tobin, bête
pertence a Serge Dassault adquire um fesa de nossa independência. elites predadoras e movimentos que as noire des spéculateurs, cible des censeurs” [O
projeto da taxa Tobin, ameaça aos especuladores,
site especializado em espetáculos ou Mas também é preciso, juntos, combatem – a gigante taiwanesa Fox- alvo dos censores], e Ignacio Ramonet, “Désarmer
meteorologia, aproveita para incluir manter as vendas do jornal. Isso impli- conn e os trabalhadores de Shenzhen. les marchés” [Desarmar os mercados], respectiva-
cada internauta preocupado com o sol ca, em primeiro lugar, que as pessoas Para que pode servir um jornal? Em mente, Le Monde Diplomatique, fev. e dez. 1997.
6 Ler Sam Pizzigati, “Plafonner les revenus, une idée
em suas férias no grupo de leitores da saibam de sua existência. A visibilida- tempos de recuo e resignação, pode américaine” [Teto para a renda, uma ideia norte-
“marca” Le Figaro. de do Le Monde Diplomatique em ban- servir para mostrar caminhos de no- -americana], Le Monde Diplomatique, fev. 2012.
6 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

ELEIÇÕES NOS ESTADOS UNIDOS

Os dois Sul
Longe de ser realmente disputada em todo o país, as eleições de 6 de novembro se decidirão em um
punhado de estados. Os demais, com domínio já consolidado por um dos campos, são negligenciados pelos candidatos.
É o que se vê na Carolina do Norte e na Geórgia
POR BENOÎT BRÉVILLE*, ENVIADO ESPECIAL

T
oda manhã, às 6 horas, Russell mais velho. Jenna e o namorado tenta- ram se unindo ao campo conserva- Nessa pequena cidade, assim como
Stanton senta-se ao volante de ram alugar um apartamento, mas não dor”, explica Kevin Bennett, engenhei- em outros lugares da Geórgia, a cam-
sua picape e vagueia pelas fazen- conseguiram pagar o aluguel. Desse ro aposentado e ativista republicano panha presidencial é particularmente
das ao redor, na esperança de en- período, a jovem guarda um sabor do Alabama. Partidários de Obama discreta – sem propagandas políticas
contrar trabalho para o dia. Colher amargo: “Por quatro anos, Obama não culpam as redivisões dos distritos elei- na televisão nem encontros porta a
pêssego, amendoim, milho, tudo que fez nada por nós. Eu, que sou pobre, torais realizadas pelos governadores porta de ativistas ou comícios de can-
lhe oferecerem. No calor úmido dessa voto a favor dos republicanos, porque republicanos desde 2010: “Eles agrupa- didatos. Enquanto os cartazes eleito-
noite de agosto, esse homem de uns 40 os democratas não se preocupam com ram os negros em um número restrito rais dos aspirantes a xerife invadem os
anos sai regularmente de seu quarto os brancos pobres como eu”. de distritos a fim de melhor dispersá- vilarejos de alguns condados, o rosto
com ar-condicionado para fumar um -los em outros”, indica Billy Mitchell, de Obama e o de Romney estão ausen-
cigarro no estacionamento do motel. democrata eleito – negro – para a Câ- tes do espaço público. Outros estados
Ele vive em Darien, Geórgia, há três mara dos Representantes da Geórgia. norte-americanos também são igno-
anos: “É mais barato do que alugar um “Obama não fez nada Na Carolina do Norte, por exemplo, rados pelos pretendentes à Casa Bran-
apartamento. Tem energia elétrica, TV por nós. Eu, que sou metade dos 2,2 milhões de afro-ameri- ca. Desde junho de 2012, Romney e seu
a cabo e até uma pessoa que vem arru- pobre, voto a favor dos canos está concentrada em um quinto companheiro de chapa, Paul Ryan,
mar a cama todos os dias”, e ri voltan- dos distritos eleitorais. No Texas, a pro- não foram nem uma única vez a Ma-
do-se para a irmã Jenna, a empregada
republicanos, porque porção de brancos na população total ryland, Connecticut, Nebraska, Kan-
do estabelecimento. Instalada com o os democratas não se passou de 52% para 45% entre 2000 e sas, Maine, Vermont...; Obama e Jose-
marido e os filhos em dois quartos preocupam com os 2010; mas, graças a uma redistribuição ph Biden têm irritado o Arizona, Novo
conjugados, ela só trabalha uma ou brancos pobres” inteligente, eles são a maioria em 70% México, Oklahoma, Mississípi, Alaba-
duas horas por dia. “O motel não tem dos distritos do Congresso. ma, Montana, Idaho... “O presidente só
muitos clientes, a maioria são morado- Em Darien, onde os negros são um vem à Geórgia para captar recursos”,
res permanentes. As pessoas que ape- pouco menos numerosos do que os nos confia, um pouco envergonhado, o
nas passam preferem parar na beira Ao final do atual mandato presi- brancos (44,2% contra 52,9%), a bata- democrata Mitchell. “É inútil fazer
da estrada.” Os candidatos à Casa dencial, a polarização racial da vida lha se anuncia apertada. Stanton, campanha aqui: é quase certo que vai
Branca também não se preocupam em política é ainda muito presente, em es- contudo, pretende desafiar as estatís- perder. Então se pede aos militantes
parar na Geórgia: eles preferem ir à pecial no sul. “Voltamos à situação que ticas: “Vou votar em Obama. Como que viajem pela Carolina do Norte, pe-
Carolina do Norte ou à Flórida. prevalecia quarenta anos atrás, quan- não tenho filhos, não tenho direito ao la Flórida, para organizar comícios.” É
Localizado a poucos quilômetros do só negros podiam representar os Medicaid [o programa de assistência a mesma história do lado da Carolina
da rodovia Interstate 95, que corre ao eleitores negros, e brancos, os eleitores aos pobres]. Se ele ganhar, poderei tal- do Sul, onde Melissa Watson, professo-
longo da costa atlântica da Flórida ao brancos”, estima Eric Mansfield, eleito vez ter um seguro-saúde...”. Vindo de ra negra, do Partido Democrata, expli-
Canadá, esse sossegado vilarejo do sul republicano no Senado da Carolina do um homem que diz “adorar” o jorna- ca: “O presidente tem recursos limita-
dos Estados Unidos nada tem de desti- Sul. Enquanto a Louisiana, o Alabama lista de ultradireita Rush Limbaugh, dos. Um bilhão de dólares é muito
no turístico: uma ampla avenida, uma e o Mississípi já aplicam essa regra ao “porque faz as perguntas certas”, a de- dinheiro, mas é uma soma finita. E sa-
multidão de ruas perpendiculares, pé da letra – seus representantes elei- claração pode surpreender. De qual- bemos que as chances de ganhar na
postos de gasolina, mercearias des- tos no Congresso são ou democratas quer forma, ele provoca um sorriso na Carolina do Sul são muito escassas.
providas de frutas e legumes e, sobre- negros ou republicanos brancos –, o irmã: “Você já tinha dito isso na últi- Ele optou por concentrar sua campa-
tudo, inúmeras casas à venda. Das último representante democrata bran- ma vez [em 2008], mas mesmo assim nha onde a concorrência é feroz. Exis-
1.090 habitações do município, 292 es- co da Geórgia pode perder seu assento ainda não tem seguro!”. Apesar das tem apenas dez ou onze estados real-
tão vagas. Já afetados pela crise na in- nas eleições legislativas de novembro. convicções exibidas por eles, os Stan- mente disputados”.
dústria têxtil, seus 2 mil habitantes “Não é bom para nenhuma das par- ton não estão certos se vão votar em 6 Estes são Ohio, visitado 21 vezes pela
também sofreram o impacto do sub- tes”, lamenta o senador republicano da de novembro: ainda não estão regis- dupla democrata (22 pelo par republi-
prime. No condado de McIntosh, a ta- Carolina do Sul, Lindsey Graham. “Os trados nas listas eleitorais; também cano), Iowa (respectivamente 17 e 13),
xa de desemprego é superior a 10% e a republicanos precisam entender que não sabem a data da eleição, nem Flórida, Carolina do Norte, Nevada... É
renda média anual caiu de US$ 25.739 podemos seduzir nossos eleitores com mesmo o nome do candidato republi- lá que a quase totalidade dos 605.996
para US$ 21.771 entre 2007 e 2009, an- os candidatos egressos das minorias cano... E não é lendo o Tribune & Geor- pontos eleitorais adquiridos pelos can-
tes de se recuperar ligeiramente. [...]. E os democratas precisam enten- gian que poderiam ficar sabendo. No didatos (ou por grupos que os apoiam)
Os irmãos Stanton desembarca- der que o Partido Democrata não pode dia seguinte à designação oficial de entre 10 de abril e 4 de setembro de 2012
ram no Fort King George Motel depois perder 75% do voto branco.”1 Mitt Romney, o jornal local não dedi- foram distribuídos, para grande alegria
do confisco de sua casa. “Eu vivia de Para a direita, essa divisão resulta cou nenhuma linha ao evento; prefe- dos proprietários de canais de TV: em
biscates e minha mãe teve de parar de das posições frouxas de seus adversá- riu falar de uma mulher de 59 anos, um ano, o preço de trinta segundos de
trabalhar. Os pagamentos da hipoteca rios em questões como aborto ou casa- presa bêbada em uma rua em Wood- publicidade aumentou 44% em Char-
estavam muito altos, por isso fomos mento gay. “Alguns anos atrás, muitos bine, e do homem de cerca de 30 anos lotte e 34% em Las Vegas.2
obrigados a sair. Fui para o Texas e lá brancos ainda votavam pelo Partido surpreendido pela polícia com uma Ao promover o bipartidarismo, o
fiquei por um ano para tentar a sorte, Democrata. Mas o partido se voltou garrafa de cerveja aberta na mão nu- modo de votação norte-americano
então voltei para cá”, conta o irmão tanto para a esquerda que eles acaba- ma rua de Saint-Mary’s. (sufrágio indireto em um turno) pro-
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 7

republicanos: mobilizados por um um dos mais pobres da cidade, experi-


exército de voluntários, os recém- menta a caridade no cotidiano. Toda
-chegados – muitos estudantes, jo- quarta-feira, o pastor Larry Mobley e
vens, trabalhadores qualificados, mi- Linda Burcham, uma fiel muito ativa,
norias – votaram maciçamente nele; o organizam a distribuição de cestas de
democrata avançou então um mínimo alimentos. Funciona como uma admi-
sobre seu adversário em 2008, John nistração pública: entre as 11 e as 15
McCain, apoiado pelos brancos pou- horas, cem pessoas retiram uma se-
co graduados e pelos moradores das nha, preenchem um formulário e
áreas rurais. aguardam em uma sala de espera mo-
A Geórgia – como o Alabama, a Ca- derna e com ar-condicionado, às vezes
rolina do Sul, o Mississípi e o Arkansas por horas. Quando todos os pacotes
– se parece mais com Gaston do que são distribuídos, os retardatários saem
© Jonathan Ernst / Reuters

com Mecklenburg: os democratas de mãos vazias.


têm, portanto, poucas chances de se Liana Kelley é uma das pessoas
impor ali. “Fora Atlanta, esse é um es- que está sempre lá. Depois de uma vi-
tado pobre, rural, religioso”, analisa da inteira cuidando dos filhos, essa
Mitchell para explicar as repetidas imigrante cubana de 63 anos se di-
derrotas de seu partido. “As pessoas vorciou do marido, de origem irlan-
são muito conservadoras: estamos no desa, há três anos. Ela se viu sem di-
Bandeira dos EUA decora placa de casa à venda em Capitol Hill, perto de Washington coração do ‘Bible Belt’ [Cinturão da Bí- nheiro e mudou-se para Downtown
blia]”. A denominação tem sentido: so- Tampa. “A assistência social que eu
zinha, a Geórgia e seus 10 milhões de recebia [US$ 377 por mês] mal dava
habitantes totalizam 12.292 igrejas (e para pagar meu aluguel, a energia
duziu um sistema eleitoral com duas Durante a convenção democrata, 3,3 milhões de membros ativos), sejam elétrica e a TV a cabo”, diz. “Então, fui
velocidades em que uma voz não tem que ocorreu precisamente em Char- elas metodistas, batistas, presbiteria- para a loja de penhores no bairro,
um mesmo valor conforme ela se ex- lotte, no início de setembro, o ex-go- nas, pentecostais, episcopais... Da- vendi minhas joias e meus objetos de
presse num safe state – os Estados vernador Jim Hunt mostrou-se mais rien, sozinho, perfaz uma dezena. A valor. Depois de um tempo, eles se
conquistados com certeza por um positivo quando falou sobre a evolução maioria dessas igrejas está lutando ofereceram para me contratar.” Há
dos dois partidos – ou num swing sta- do seu estado: “Vocês já viram os arra- contra o “pecado” – o aborto, a contra- dezoito meses, no calor desgastante
te, aqueles que oscilam de um lado nha-céus e tudo o que Charlotte tem cepção, a homossexualidade, o jogo –, da Flórida, os braços cobertos por um
para o outro em cada eleição e con- para oferecer”, anunciou à multidão. mas também desempenha papel im- pano para evitar queimaduras sola-
centram a atenção dos candidatos. O “Talvez vocês tenham ouvido falar so- portante na vida social, distribuindo res, Liana fica na calçada da Busch
sul dos Estados Unidos por muito bre nosso Research Triangle Park,4 tal- comida aos pobres, cuidando de ido- Boulevard e exibe um cartaz, à vista
tempo pertenceu à primeira catego- vez seus filhos tenham postulado uma sos etc. Tudo a preços baixos, por meio dos motoristas: “Cash for gold” (Com-
ria. Reduto democrata por quase um vaga em uma de nossas faculdades. Es- do trabalho de voluntários e com di- pro ouro). Esse trabalho de letreiro
século,3 mudou para o lado republi- tamos orgulhosos por tudo o que te- nheiro doado pelos fiéis. humano lhe rende US$ 7 por hora.
cano no início dos anos 1970: antes mos feito na Carolina do Norte. Cin- No sul, o fervor religioso junta-se “Eles me chamam quando precisam
de Obama, apenas Jimmy Carter e quenta anos atrás, era um estado por vezes à hostilidade contra o Esta- e eu venho. O problema é que às vezes
Bill Clinton – democratas, mas origi- pobre, rural, segregado. Mas tivemos do. E se confunde com a política: há coincide com a distribuição de ali-
nários do sul – tinham conseguido se um governador chamado Terry San- uma ideia de que as estruturas de cari- mentos. Aí, trabalho por três horas
impor em estados outrora pertencen- ford [1961-1965]. Ele trabalhou com lí- dade são mais aptas para resolver os para ganhar US$ 21, mas perdi um
tes aos Confederados. deres empresariais, políticos e profes- problemas sociais do que o poder pú- cartão que valia o dobro!”
Por que, desde 2008, os democra- sores para construir nossas faculdades blico. “Para resolver os problemas so- Em 6 de novembro, Liana, embora
tas decidiram fazer campanha na Ca- maravilhosas, nossos 58 ‘community ciais, o setor privado é mais eficiente: cubana, vai votar em Obama. Talvez
rolina do Norte e não na Carolina do colleges’5 e nossas escolas públicas. O você tem muitas pessoas que tentam ela tenha ouvido o candidato republi-
Sul, se esses dois estados pareciam es- resultado é a economia em expansão e soluções múltiplas e é a melhor que cano julgar que ela e os milhões de
tar ligados por um mesmo destino altamente qualificada que vocês po- vence. Por definição, o Estado não po- pessoas em sua condição eram muito
eleitoral? A resposta se vê nas ruas. dem admirar hoje.” de agir assim: ele desenha uma solu- dependentes do Estado para não votar
Criados há dez ou vinte anos, os novos ção única que é imposta a todos. [...] nos democratas.
subúrbios da Carolina do Norte con- Você nunca teve tantos pobres nos Es-
trastam com as paisagens rurais da tados Unidos quanto desde o início da *Benoît Bréville é jornalista.
Carolina do Sul, que continua a viver, “Não podemos ‘guerra contra a pobreza’ do presiden-
bastante mal, de suas indústrias tradi- continuar a aumentar as te Johnson.6 Logo se vê que essa é uma
cionais (têxtil, automotiva, química...) solução que não funciona. Não pode-
e da agricultura (tabaco, criação de
despesas públicas! Como mos continuar a aumentar as despe-
aves...). No “bairro” de Old Stone Cros- conservador, acho que a sas públicas! [...] Como conservador,
sing, a leste de Charlotte, na Carolina Igreja deve desempenhar acho que a Igreja deve desempenhar 1 Citado por Jonathan Martin, “Obama’s problems in
the South” [Os problemas de Obama no sul], Po-
do Norte, nem as ruas propositada- um papel preponderante um papel preponderante na ajuda so- litico, Washington, 2 ago. 2012.
mente sinuosas nem as “pedras anti- cial. Ela permite estar mais perto da 2 Amy Scatz e Suzanne Vranica, “Swing-state sta-
gas” das casas conseguem mascarar o
na ajuda social” pessoa necessitada, para entender su- tions are election winners” [Emissoras de swing
states são vencedoras das eleições], The Wall
brilho moderno dos lugares. Surgido as necessidades, criar uma interação Street Journal, 9 set. 2012.
no meio de campos abandonados, ro- entre os que ajudam e os que são aju- 3 Com algumas notáveis exceções: os candidatos
dovias e zonas comerciais, enxertado A Carolina do Norte tem, efetiva- dados: ela torna as pessoas responsá- republicanos Hayes (1876), Harding (1920) e so-
bretudo Hoover (1928) conseguiram ganhar em
no centro por um labirinto de vias rá- mente, três das trinta melhores uni- veis”, explicou Matt Arnolds, delegado vários estados do sul.
pidas, caminhos arborizados e ruas versidades norte-americanas e a sede republicano da Carolina do Norte, na 4 Polo de indústrias de ponta criado em 1959 para
desertas, esse loteamento é pouco ilu- de catorze das quinhentas maiores convenção de Tampa. conferir novo dinamismo ao “Velho Sul”.
5 Ler Dominique Godrèche, “Popularização do ensi-
minado à noite; não abriga nenhuma empresas do país. Por força desse di- A cerca de 8 quilômetros de rodovia no”, Le Monde Diplomatique Brasil, jun. 2010.
loja, nenhum lugar público. “A Caroli- namismo, ela viu sua população do- do bairro de negócios de Tampa, na 6 Lançada em 1964 pelo presidente democrata Lyn-
na do Norte é um campo de milho re- brar desde os anos 1990. Foi essa revi- Flórida, encravada entre um posto de don Johnson, a “guerra contra a pobreza” permitiu
a adoção de diversos dispositivos de proteção so-
coberto por subúrbios”, explica um ravolta demográfica que levou Obama gasolina e um bazar, a First Church of cial, entre os quais os programas Medicare e Medi-
morador local. a tentar disputar esse estado com os God do bairro de Downtown Tampa, caid.
8 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

ELEIÇÕES NOS ESTADOS UNIDOS

Romney, diplomacia na ponta do fuzil


Concebida como uma acusação contra a política externa dos
democratas, o livro de campanha de Romney vale sobretudo
pelo que revela do âmago da doutrina do candidato. As páginas
dedicadas aos acontecimentos ocorridos em Honduras em
2009 e suas declarações sobre a Indonésia de Suharto são
particularmente dignas de atenção
POR JOHANN HARI*

F
ormado pela Universidade Har- de terras, especializado em silvicultu- desagrado, “[Barack Obama] proibiu”.5
vard e com postura de bom pai ra e pecuária bovina, era o candidato Em seu livro, o candidato republicano
de família, Willard Mitt Romney do Partido Liberal, um dos dois polos à Casa Branca vai mais longe, descre-
nada tem em seu percurso que tradicionais da oligarquia hondure- vendo Zelaya como um “autocrata cor-
faça supor um gosto especial para a nha”.2 À frente do segundo país mais rupto [...] legalmente retirado do poder
derrubada de presidentes democrati- pobre do Hemisfério Norte, ele não pelo Supremo Tribunal de Honduras.
camente eleitos ou para a instalação deixou de tentar melhorar a vida da [...] É surpreendente constatar que o
no poder de tiranos responsáveis pela maioria da população: aumentou o sa- presidente dos Estados Unidos tenha
morte de centenas de milhares de pes- lário mínimo em 60% e investiu em podido forçar Honduras a agir de for-

© Benett
soas. No entanto, o recurso a tais práti- programas sociais inspirados pelas po- ma incompatível com suas próprias
cas constitui um dos pilares do mode- líticas colocadas em prática no Brasil leis, para restaurar o poder de um líder
lo de política externa defendida, com pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da repressivo e antiamericano”.6 Graças a
toda indiferença, pelo candidato repu- Silva. Essas iniciativas foram suficien- documentos revelados pelo WikiLe-
blicano à presidência dos Estados Uni- tes para enfurecer a oposição de direi- aks, agora sabemos que ninguém fora sia era então um país importante em
dos. Criticado em círculos progressis- ta, que se apressou em tachá-lo como dos círculos conservadores mais radi- virtude de seu papel como “grande
tas por ter liquidado muitas empresas um novo “caudilho”, fazendo referên- cais adere a essa tese. Prova disso são fornecedor de matérias-primas essen-
quando dirigia o fundo de investimen- cia à demagogia e à ditadura. Assim, os telegramas diplomáticos da embai- ciais”: ela produzia “cerca de 85% da
tos Bain Capital, Romney também me- quando Zelaya anunciou a organiza- xada dos Estados Unidos em Teguci- borracha natural mundial, 65% do
receria sê-lo por sua apologia aos co- ção de um referendo sobre a possível galpa que relatam “sem sombra de dú- óleo de copra e detinha 45% dos esto-
veiros da democracia. convocação de uma Assembleia Cons- vida” um “golpe de Estado ilegal e ques de estanho e 23% de minério de
Uma crítica frequentemente feita tituinte – a Constituição em vigor, que inconstitucional”, culminando no “se- cromo”.9 Nos anos 1950 e 1960, ela foi
ao ex-governador de Massachusetts é a datava de 1980, tinha sido elaborada questro” do presidente eleito.7 dirigida por Achmed Sukarno, um pre-
de ser um oportunista sem convicções pelos militares –, a direita gritou, falan- sidente autocrático que rejeitava o im-
reais, que iria à caça de votos sem um do em golpe de Estado: alta noite, ho- Brutal e autoritário perialismo norte-americano e soviéti-
projeto claro. Porém, se ele de fato mui- mens armados de metralhadoras inva- Eis os métodos recomendados por co para traçar seu próprio caminho e
tas vezes se contradiz sobre questões diram o palácio presidencial para dali Romney para conduzir a futura políti- preservar os recursos naturais do país.
sociais (aborto, mudanças climáticas, retirar o chefe de Estado e sua filha.3 ca exterior norte-americana. Durante Um desejo de independência que ob-
seguro-saúde...), o mesmo não vale pa- Levado à força a uma base militar um debate organizado em novembro viamente não era do agrado das multi-
ra sua carreira: forte defensor da orto- dos Estados Unidos, Zelaya foi em se- de 2011 pela CNN e pela Heritage Foun- nacionais norte-americanas. Quando
doxia neoliberal, nunca vacilou quanto guida abandonado na pista de um ae- dation, ele se mostrou ainda mais pre- Romney elogia a Indonésia, é na era de
a esse ponto. Aquele que respondia em roporto na Costa Rica, com ordens de ciso e dessa vez fez o elogio “daquilo Suharto que ele está pensando – um
2011 a um adversário “mas, meu caro, nunca mais voltar a seu país. Enquan- que aconteceu na Indonésia, nos anos personagem muito mais brutal e auto-
as empresas são as pessoas!” nunca to isso, em Honduras, as rádios tinham 1960, quando ajudamos o país a entrar ritário do que seu antecessor e levado
deixou de exigir, para as multinacio- parado de transmitir, as conexões de na modernidade graças a um novo re- ao poder com a ajuda dos serviços se-
nais norte-americanas, a liberdade de telefone estavam interrompidas e gime”. Um período da história particu- cretos dos Estados Unidos.
agir como bem entendessem, sem ne- atrocidades se espalhavam por todo o larmente esplendoroso a seus olhos e Na Indonésia, a CIA trabalhou du-
nhum entrave, em todo o mundo. país. A Anistia Internacional falou de no qual os Estados Unidos deveriam se rante muito tempo na preparação do
A esse respeito, seu livro de campa- “prisões em massa, espancamentos, inspirar para gerir suas relações com o golpe. Ela formou e equipou o Exército
nha, No apology,1 é instrutivo em mais tortura”.4 Mas rapidamente Romney Paquistão e, por extensão, com o resto até fazer dele um Estado dentro do Es-
de uma maneira. Concebida como pôde se alegrar: poucos meses depois do mundo. Outra maneira de encarar tado. Então, quando os militares fica-
uma acusação contra a política externa do golpe, o novo governo organizou os eventos que ocorreram na Indonésia ram em posição de tomar o poder, ela
dos democratas, a obra vale sobretudo um fórum internacional com o tema durante os anos 1960 seria dar crédito lhes enviou uma lista de 5 mil nomes
pelo que revela do âmago da doutrina “Honduras está aberta para o merca- à versão sustentada pelas notas inter- de supostos comunistas. Joseph La-
do candidato Romney. As páginas de- do”. Os capitais privados afluíram. nas da CIA, que defende que os Estados zarsky, que dirigia então o escritório
dicadas aos acontecimentos ocorridos O desenrolar dos fatos, contudo, Unidos contribuíram para dar plenos local da CIA, acredita que essas infor-
em Honduras em 2009 e suas declara- enraiveceu Romney. Não em nome da poderes a um homem que “figura na mações foram usadas como “licença
ções sobre a Indonésia de Suharto são democracia violada, mas, pelo contrá- lista de honra de um dos maiores cri- para matar”.10 Esse primeiro massacre
particularmente dignas de atenção. rio, porque – diferentemente do costu- minosos de massa do século XX”.8 deu início a uma purgação generaliza-
Eleito pelo povo hondurenho em me – os Estados Unidos não assumi- O que tinha essa política de tão ex- da de comunistas (ou presumidos
uma eleição livre, o presidente Manuel ram a iniciativa de derrubar um cepcional para que meio século depois consumistas), que eliminou meio mi-
Zelaya (2006-2009) dificilmente pode- regime de centro-esquerda na Améri- ainda despertasse a admiração do lhão de pessoas, na maioria agriculto-
ria ser chamado de radical. Como des- ca Latina. “Quando Honduras quis se candidato conservador na Casa Bran- res. Mais tarde, Suharto invadiria o Ti-
taca Richard Gott, especialista em livrar de seu presidente marxista”, de- ca? Como assinala um telegrama di- mor Leste, onde exterminaria um
América Latina, esse “rico proprietário clarou à imprensa demonstrando seu plomático britânico de 1964, a Indoné- terço da população.
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 9

De acordo com Romney, esse méto- Vocês têm os mesmos problemas que a eles eram um “peso morto”. Já o déspota *Johann Hari é jornalista.
do mostrou sua eficiência porque per- General Electric”.11 Para apoiar sua teo- permitiu que empresas privadas enri-
mitiu à Indonésia ter acesso à “moder- ria, ele apresentou uma “matriz BCG” quecessem. Em tal sistema de pensa- 1 Mitt Romney, No apology. The case for American
greatness [Sem desculpas. O caso para a grande-
nidade”, isto é, abrir amplamente suas – um gráfico comumente usado na es- mento, a escolha é feita rapidamente: za norte-americana], MacMillan, Nova York, 2010
portas para as multinacionais que se tratégia de negócios no qual os diver- ficar ao lado do povo contra seu algoz é 2 Richard Gott, “Honduras: back to the bad old
tornavam mais livres para prosperar sos setores de uma empresa são repre- ilógico. Romney erigiu a maximização days?” [Honduras: de volta aos maus velhos tem-
pos?], The Guardian, Londres, 29 jun. 2009.
ali à medida que os movimentos de re- sentados por círculos, cujo tamanho é dos lucros em valor que ele aplica igual- 3 Ler o dossiê “Honduras”, no site do Le Monde Di-
sistência popular eram subjugados de proporcional às receitas geradas. Apli- mente a todas as instituições humanas, plomatique: www.monde-diplomatique.fr/index/
forma sangrenta pela junta militar. De cado à esfera privada, o gráfico inclui da família à presidência. pays/honduras.
4 “Honduras failing to tackle coup rights abuses”
fato, logo após a cruel repressão, o pre- três bolas: uma representa o trabalho, Longe do vazio ideológico de que [Honduras falha em derrubar os abusos de direitos],
sidente Suharto convidou grandes gru- a outra, a família; e a última, a religião. é muitas vezes acusado, Romney é ao 28 jun. 2010. Disponível em: www.amnesty.org.
pos internacionais de industriais para “O tempo gasto no trabalho”, diz Rom- contrário um ideólogo puro e duro, 5 Gail Collins, “Mitt’s rest for zings”, The New York
Times, 14 dez. 2011.
participar de uma conferência em que ney, “tem consequências tangíveis, já capaz de esconder os sofrimentos 6 Mitt Romney, op.cit.
lhes concedeu os direitos de explora- que ele rende dinheiro. [...] Seus filhos, que suas crenças podem gerar. Como 7 Robert Naiman, “WikiLeaks Honduras: State De-
ção de porções inteiras de território. porém, não vão lhe render nada duran- Joseph Stalin, também convencido partment busted on support of coup” [WikiLeaks
Honduras: Departamento de Estado flagrado apoi-
As relações internacionais não são te vinte anos.” Pior ainda, se os pais de “ajudar seu país a entrar na mo- ando golpe], 29 nov. 2010. Disponível em: www.
a única área que o candidato republi- não lhes consagrarem tempo suficien- dernidade, com um novo regime”, e huffingtonpost.com.
cano considera sob o prisma exclusivo te, eles podem mesmo tornar-se um que não ouviu o grito de fome da 8 Citado em Stephen R. Shalom, Noam Chomsky e
Michael Albert, “East Timor. Questions and
da busca do lucro. Essa grade de leitura “peso morto” para a família e para o Ucrânia, Romney não ouviu o baque answers” [Timor Leste. Perguntas e respostas], Z
se aplica segundo ele às áreas mais ín- resto da sociedade. surdo da queda dos corpos dos dissi- Magazine, out. 1999.
timas da vida. Assim, poucos anos de- Se é permitido avaliar o próprio filho dentes hondurenhos e dos professo- 9 John Pilger, “Spoils of a massacre” [Espólios de um
massacre], The Guardian Weekend, 14 jul. 2001.
pois de se formar na Harvard Business de acordo com critérios de produtivida- res indonésios assassinados. Na 10 Citado por Noam Chomsky, Year 501. The con-
School, Romney voltou à universidade de, por que o mesmo não valeria para “América” do candidato republicano, quest continues [Ano 501. A conquista continua],
para dar uma palestra a uma plateia de um tirano? O meio milhão de campone- a empresa tem todos os direitos e sa- South End Press, Cambridge, 1999.
11 Jodi Kantor, “At Harvard, a master’s in problem sol-
estudantes: “Vocês [enquanto indiví- ses mortos sob o regime de Suharto não be como fazê-los valer, se necessário ving” [Em Harvard, um mestre em resolver proble-
duos] são como uma multinacional. rendia nada para os Estados Unidos; na ponta de um fuzil. mas], The New York Times, 24 dez. 2011.

Recrudescimento do aparato
de segurança norte-americano
O complexo de Guantánamo e seus corolários (detenção por tempo indeterminado, tribunais militares) recebem cada vez
mais apoio incondicional do Congresso. Seria equivocado, portanto, interpretar a reviravolta securitária de Obama como sintoma
de uma “presidência imperialista” que espezinha os poderes legislativo e judiciário
POR CHASE MADAR*

E
m 2008, o candidato Barack precedentes. Além disso, a lista de pas- concepção expeditiva de segurança – Gerald Ford tentava ampliar – por mais
Obama prometeu fechar a pri- sageiros proibidos de voar sobre terri- como o caso do adolescente norte- que a contrarresposta tenha sido a ex-
são de Guantánamo, anular a lei tório norte-americano, estabelecida -americano de 16 anos, filho de um su- tensão das prerrogativas do Executivo
de 2001 sobre segurança interior em função de critérios em geral arbi- posto responsável da Al-Qaeda, no âmbito militar, notadamente em
(“Patriot Act”) e proteger de qualquer trários e sistematicamente opacos, assassinado por engano em setembro operações secretas no exterior. Os elei-
represália os militares ou membros de mais que dobrou entre 2011 e 2012, de 2011 no Iêmen –, Obama intensifi- tores de Obama possuíam, assim, fun-
serviços de informação que denun- contando atualmente 21 mil nomes. cou o programa “secreto” de execu- damentos para dar um crédito às pro-
ciassem abusos da administração. O No fim de 2011, Washington promul- ções sumárias de cidadãos estrangei- messas do candidato democrata.
candidato democrata à Casa Branca se gou a Lei de Autorização de Defesa Na- ros, como mostra a utilização cada vez Mas se decepcionaram. Na vida co-
dizia capaz de domar um aparato de cional (NDAA, na sigla em inglês), que mais frequente de ações secretas para tidiana dos norte-americanos, a ques-
segurança que, desde o atentado de 11 permite ao governo federal decretar a levantar informação no Paquistão, no tão da segurança está cada dia mais
de setembro de 2001, se transformou prisão – sem julgamento e por tempo Iêmen e na Somália. presente, como demonstram os escâ-
em uma burocracia hipertrofiada e, indeterminado – de qualquer cidadão Seria ingênuo acreditar que Obama neres corporais instalados em 140 ae-
em geral, incontrolável. norte-americano suspeito de terroris- de fato poderia ter acabado com a ex- roportos do país. Segundo a opinião
Quatro anos depois, no entanto, mo, em detrimento do princípio de ha- pansão do aparelho de segurança nor- de alguns especialistas, essas práticas
Guantánamo continua funcionando, beas corpus1 e da separação dos pode- te-americano? Sua promessa, antes de constroem um “teatro securitário”
seus tribunais militares retomaram as res. Por fim, a administração Obama tudo, se apoiava sobre um precedente que, em vez de proteger realmente os
audiências e o Patriot Act está ativo. autorizou a eliminação física, fora de histórico. Em meados da década de usuários, os faz perder mais tempo.
Decidido a punir toda divulgação de suas fronteiras, de pessoas classifica- 1970, em plena confusão do Caso Wa- Um relatório da Administração de Se-
informação sensível, o Departamento das mais ou menos ativamente como tergate e da Guerra do Vietnã, a maioria gurança dos Transportes (TSA, na si-
de Justiça entrou com seis processos “terroristas”, mesmo que não partici- democrata do Congresso havia restrin- gla em inglês) indica, além disso, que
por violação da lei de espionagem – pem diretamente de ações armadas. gido os poderes de polícia e vigilância esses escâneres são “vulneráveis” e fá-
duas vezes mais que todos os governos Apesar dos atropelos inerentes a essa interior que o presidente republicano ceis de ludibriar.2 O passageiro pode
10 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

até se recusar a passar pelo aparelho, Esse aparelho colossal que devora xam de aplaudir o presidente por sua políticas intrusivas levadas a cabo
mas à custa da revisão completa de fortunas apresenta, porém, algumas dedicação à segurança nacional pós- em nome da segurança nacional.
sua bagagem, em geral vivida como falhas em sua impermeabilidade. Em 11 de Setembro. Hoje, a resistência contra a ideolo-
uma humilhação. primeiro lugar, a proliferação das “au- No início de seu mandato, Obama gia securitária está fragmentada em
Ainda mais surpreendente é o refor- torizações de segurança” (security cle- parecia firme na manutenção de suas pequenos grupos dispersos tanto à es-
ço da vigilância interior durante a presi- arances) – atualmente, 854 mil norte- promessas. Rapidamente, porém, se querda como à direita. Estável e dotada
dência de Obama: a administração fe- -americanos dispõem de acesso viu confrontado com a hostilidade do de meios consequentes, a União Ame-
deral emprega hoje 30 mil pessoas em parcial às informações confidenciais Parlamento. No dia 21 de maio de ricana das Liberdades Civis (ACLU, na
escutas telefônicas nos Estados Unidos. – coloca em questão a própria noção 2009, o Congresso se recusou a liberar sigla em inglês), de centro-esquerda,
O Departamento de Segurança Interna, de secreto. Além disso, é comum que os US$ 80 milhões necessários para milita há décadas contra a vigilância
criado em 2002, tornou-se a terceira bu- material classificado como secreto realizar esse projeto. Sem levar em ilegal, o segredo de Estado e os abusos
rocracia mais forte do país – depois do transite de computadores portáteis à conta essa obstrução, o procurador- de poder. Curiosamente, a única per-
Pentágono e do Departamento de As- internet graças a programas peer-to- -geral dos Estados Unidos, Eric Hol- sonalidade política nacionalmente co-
suntos dos Veteranos de Guerra – em -peer geralmente instalados por filhos der, anunciou discretamente que cin- nhecida que tomou uma posição clara
apenas uma década. Para armazenar os de um ou outro alto funcionário grisa- co detentos de Guantánamo seriam contra o exagero securitário é o repu-
dados recolhidos por esse dispositivo lho e pouco familiarizado com a rede.4 transferidos para Nova York para res- blicano Ronald (“Ron”) Paul, que foi
tentacular, está sendo construída uma Matthew M. Aid, historiador da espio- ponder diante de uma corte de justiça candidato à investidura de seu partido
nova sede em Bluffdale, no estado de nagem dos Estados Unidos, surpreen- civil. Controversa, a decisão se choca- para as eleições presidenciais de no-
Utah, em um terreno de 9 hectares e deu-se ao encontrar computadores do va com a oposição arisca dos repre- vembro. Eleito do Texas à Câmara dos
com custo de US$ 2 bilhões. Exército norte-americano à venda nos sentantes nova-iorquinos, obrigando Representantes, esse liberal radical en-
É difícil medir em que proporções mercados de Cabul, com seus discos rí- Obama a admitir que ele não poderia carna uma pitoresca mistura de dis-
o Estado de segurança aumentou. gidos intactos e repletos de arquivos fechar a prisão no prazo anunciado. curso anti-imperialista e ortodoxia ul-
Desde o atentado de 11 de setembro, classificados.5 E, apesar da repressão Desde então, o complexo de Guantá- traliberal. Contudo, do lugar de onde
uma intrincada malha de feudos buro- cada vez mais severa, os altos funcioná- namo e seus corolários (detenção por vêm, todas as tentativas de defender as
cráticos, dotados de orçamentos cada rios da administração norte-americana tempo indeterminado, tribunais mili- liberdades civis fracassaram. Se en-
vez mais opulentos (aos quais se so- continuam a fornecer informação con- tares) recebem cada vez mais apoio contram algum eco eleitoral, é em cer-
mam financiamentos privados escu- siderada secreta a jornalistas. O confi- incondicional do Congresso, notada- tas zonas pouco habitadas, situadas no
sos), desencadeou um boom imobiliá- dencial “Relatório de Inteligência Na- mente entre os democratas. Seria interior do país (estados montanhosos,
rio no centro de Washington com a cional sobre o Afeganistão” vazou em equivocado, portanto, interpretar a sudoeste e norte do Meio-Oeste), e não
construção de 33 edifícios espalhados janeiro passado, e as ações secretas no reviravolta securitária de Obama co- nas aglomerações costeiras. Tanto na
sobre uma superfície total de mais de Paquistão são objetos frequentes de in- mo sintoma de uma “presidência im- Califórnia como em Nova York, os se-
150 hectares – o equivalente a três discrição na imprensa. perialista” que espezinha os poderes nadores democratas possuem notoria-
pentágonos ou 22 capitólios. Esse novo legislativo e judiciário. mente a tendência de andar de mãos
sistema de vigilância e controle produz, De todo modo, a expansão rápida dadas com as pontas da segurança na-
por ano, 50 mil relatórios, ou seja, 136 da segurança nacional não é um fenô- cional e com os empresários das tele-
por dia. Segundo a jornalista do The Desde o atentado meno novo na história dos Estados comunicações, grandes provedores de
Washington Post Dana Priest, laureada de 11 de setembro, uma Unidos. O atual presidente perde nes- tecnologia para os programas de vigi-
com um prêmio Pulitzer e especialista intrincada malha se quesito se comparado ao distante lância estatais.
em questões de segurança interior, a predecessor Harry Truman (1945- A expansão da burocracia securitá-
“festa das despesas securitárias” che-
de feudos burocráticos 1953), democrata que, embebido no ria se dá no mesmo ritmo das inter-
gou a US$ 2 trilhões3 em dez anos. E is- desencadeou um boom anticomunismo em voga após a Se- venções militares norte-americanas
so sem qualquer autoridade hierárqui- imobiliário no centro gunda Guerra Mundial, aumentou no exterior. Enquanto os Estados Uni-
ca que supervisione os vigilantes: o de Washington consideravelmente o arsenal de vigi- dos se confrontam com uma grave cri-
único superior das agências de infor- lância e repressão internas. Essa polí- se orçamentária, alguns políticos, no
mação é o diretor do Departamento de tica recrudesceu sob a presidência de seio do próprio Partido Republicano,
Inteligência Nacional (DNI, na sigla John F. Kennedy (1961-1963) e Ronald buscam reduzir os orçamentos do
em inglês), que na prática não exerce Durante os dois mandatos de George Reagan (1981-1989). Em tempos de Exército. Os dispositivos de vigilância
nenhum poder. W. Bush, a intensificação da seguran- Guerra Fria, a segurança de Estado ob- serão também objeto das políticas de
Ao mesmo tempo, Washington ça nacional foi considerada uma tinha todos os fundos e a autonomia austeridade fiscal?
recrudesceu sua “política do secre- ameaça por numerosos norte-ameri- que reivindicasse.
to”. Em 2011, 77 milhões de docu- canos; hoje, já não é assim. Desde a Se por um lado os norte-america- *Chase Madar é advogado de direitos civis.
mentos foram classificados como Segunda Guerra Mundial, parece que nos execram qualquer forma de inge-
confidenciais – 40% a mais em rela- a defesa das liberdades civis progride rência do Estado em sua vida privada,
ção ao ano anterior. Somente o pro- nos Estados Unidos somente quando por outro se adaptam bem às disposi-
cesso de “classificação” custa US$ 10 o Partido Democrata está na oposi- ções de segurança. Os liberais (fac-
1 Princípio jurídico que impede a prisão de uma pes-
bilhões por ano, segundo estimati- ção, como no início da década de ção minoritária do Partido Republi- soa sem julgamento ou prova.
vas de William Bosanko, ex-diretor 1970. Mas, quando chega ao poder, o cano) nutriram esperanças de que o 2 David Kravets, “Homeland Security concedes air-
do Escritório de Vigilância e da Se- movimento parece se dissipar. Atual- Tea Party, particularmente diligente port body scanner ‘vulnerabilities’” [Segurança
Nacional diz que escâneres corporais dos aeropor-
gurança da Informação. Não surpre- mente, vários intelectuais pró-demo- em relação à liberdade individual, tos são “vulneráveis”], Wired, São Francisco, 7
ende, portanto, que as desqualifica- cratas se empenham em explicar ao conseguiria brecar o aparelho de maio 2012. Disponível em: www.wired.com.
ções sejam feitas a conta-gotas. No público que suas objeções não se di- controle e reduzir as intervenções 3 James Bamford, “The NSA is building the country’s
biggest spy center (watch what you say)” [A NSA
ano passado, a Agência de Seguran- rigem ao aparelho de segurança esta- militares norte-americanas no exte- está construindo o maior centro de espionagem
ça Nacional (NSA, na sigla em inglês) tal enquanto tal, e sim à utilização do rior. Mas esqueceram que o liberalis- do país (cuidado com o que você diz)], Wired, 15
tornou públicos os dossiês em rela- dispositivo pelo partido “mau”. “Esse mo de direita desse partido está par- mar. 2012.
4 Dana Priest e William M. Arkin, Top secret Ameri-
ção à guerra... de 1812 contra a Grã- argumento é comum entre os pro- ticularmente preocupado com a ca: the rise of the new American security State
-Bretanha. Apenas organizações só- gressistas que se recusam a criticar defesa do direito de propriedade, ra- [América secreta: o surgimento de um novo Esta-
lidas e suficientemente ricas para Obama, como o faziam com Bush”, zão pela qual seus representantes no do de segurança norte-americano], Little Brown,
Nova York, 2011.
oferecer um batalhão de advogados lamenta o jurista Jonathan Turley.6 Congresso votaram em uníssono a 5 Matthew M. Aid, Intel wars [Guerras da Intel],
experientes conseguem transpor o Se as críticas de esquerda se desta- favor da retomada do Patriot Act em Bloomsbury, Nova York, 2012.
muro do secreto, invocando a lei de cam pela timidez, os ex-responsá- 2011. Por mais floreada que seja sua 6 Jonathan Turley, “10 reasons why the U.S. is no lon-
ger the land of the free” [10 razões pelas quais os
liberdade de informação – embora veis da administração Bush – como retórica anti-Washington, o Tea Party Estados Unidos não são mais a terra dos livres],
com sucesso limitado. Richard (“Dick”) Cheney – não dei- está perfeitamente à vontade com as The Washington Post, 4 jan. 2012.
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 11

DÉFICIT HERDADO DO CRASH ASIÁTICO

Uma causa negligenciada


da crise norte-americana
Os EUA reclamam frequentemente da concorrência industrial dos países do Sudeste Asiático. Os norte-americanos
esquecem que em 1997, quando a crise financeira abalou a região, eles impuseram tal tratamento de choque que os países
atingidos juraram nunca mais ficar em posição de falência e decidiram acumular divisas... exportando para os EUA
POR DEAN BAKER*

A
o analisarem os desequilíbrios Sentimento de riqueza
na economia dos Estados Uni- A relação entre esse cenário e a
dos, os economistas, em geral, bolha imobiliária? Os déficits comer-
minoram – ou descartam – o ciais criam um desequilíbrio na de-
impacto do déficit comercial do país, manda interna: em vez de consumir
embora seja um elemento fundamen- produtos nacionais, a população
tal em seus problemas financeiros. compra bens importados. Essa ca-
Ainda menos comentada é a origem rência foi, em parte, mascarada pelo
desse déficit, consequência direta do boom da construção, fomentada pe-
plano de salvamento elaborado pelo los empréstimos a juros baixos para a
Tesouro norte-americano por ocasião compra de bens imobiliários cujo va-
da crise asiática de 1997. Esse progra- lor parecia crescer indefinidamente.
ma, colocado em prática pelo FMI, Ademais, a falta relativa de demanda
conduziu ao crescimento da bolha por produtos nacionais foi amortiza-
imobiliária cuja explosão, em 2007, da pelo aumento do consumo, ali-
abalou o sistema financeiro. mentado pela sensação de riqueza
Antes de 1997, os Estados Unidos que os norte-americanos experimen-
registravam déficits comerciais de taram ao ver seus bens imobiliários
pouco mais de 1% do PIB. No espírito supervalorizarem. Esse “efeito ri-
da administração Clinton, um dos queza” aumentou quando os preços
objetivos principais da redução do dos imóveis estavam no auge. Com a
déficit orçamentário era provocar a balança comercial mais equilibrada,
queda das taxas de juros, que, por sua a bolha pararia de crescer, pois a
vez, acarretaria a queda do dólar e pressão da inflação – contida pelas
tornaria os produtos norte-america- importações a baixo preço – teria,
nos mais competitivos no mercado Migrante birmanesa trabalha em fábrica de roupas taiwanesa no noroeste da Tailândia provavelmente, conduzido o Federal
internacional. Ao mesmo tempo, a Reserve (FED) a aumentar suas ta-
medida melhorava o saldo da balan- xas de juros.
ça comercial e estimulava a econo- Contudo, em um contexto em que
mia. De fato, esse foi o cenário econô- ximavam das normas europeias. Con- mentar a mesma situação dos países o déficit comercial atingia seu auge, o
mico dos Estados Unidos nos dois tudo, com a crise financeira de 1997, do Leste Asiático era aumentar a reser- Banco Central norte-americano pa-
anos seguintes à eleição de Bill Clin- esses Estados foram acusados de va de divisas a título de precaução recia considerar a bolha imobiliária
ton para a Casa Branca: o dólar caiu clientelismo e corrupção. contra um rebote da conjuntura. Para uma muleta capaz de sustentar a ati-
em 1993 e 1994; pouco a pouco, redu- atingir esse objetivo, a medida mais vidade econômica. Alan Greenspan,
ziu-se o déficit em relação ao PIB, que Desvalorizar para exportar simples é desvalorizar a moeda o sufi- então presidente do FED, acreditava,
naquele momento estava em proces- O FMI impôs reformas drásticas ciente para fortalecer as exportações e ademais, que o crescimento do nú-
so de crescimento de 3% ao ano. com a finalidade de adequar a econo- produzir altos excedentes comerciais: mero de pequenos proprietários fa-
Robert Rubin, nomeado secretário mia desses países ao modelo norte- dessa forma, os dólares dos países im- vorecia a adesão firme dos norte-
do Tesouro em 1995, não escondia o -americano, ao mesmo tempo que os portadores fluem para os caixas dos -americanos à economia liberal.
desejo de uma política com o dólar for- Estados Unidos os obrigavam a pagar Estados exportadores. Foi exatamente O déficit comercial norte-ameri-
te. A simples declaração dessa intenção integralmente suas dívidas e abriam o que aconteceu a partir de 1997. Essa cano criou um ambiente propício
provocou a revalorização da moeda as portas de seu mercado consumi- supervalorização do dólar contribuiu para o aumento da bolha imobiliá-
em meados desse mesmo ano, mas foi dor às suas exportações asiáticas. As para a explosão do déficit comercial ria na última década. Ao projetar
em 1997, com o plano de salvamento moedas desses Estados degringola- norte-americano, que, no último tri- essa situação no futuro, é difícil
da crise asiática, que o aumento da dí- ram em relação ao dólar, e as expor- mestre de 2000, ultrapassava 4% do imaginar a retomada do crescimen-
© Sukree Sukplang / Reuters

vida norte-americana se consolidou. tações decolaram. PIB. O rombo diminuiu ligeiramente to vigoroso da economia norte-
Até então, os Estados do Leste Asiá- A crise, porém, ultrapassou as fron- com a recessão de 2001, mas voltou a -americana sem a desvalorização
tico se construíam segundo os mode- teiras da região e os termos severos do subir à medida que a economia recu- do dólar e sem o reequilíbrio de sua
los econômicos de países em via de plano de salvamento inquietaram ou- perou o dinamismo, chegando a 6% do balança comercial.
desenvolvimento: havia décadas, sus- tros países em via de desenvolvimen- PIB (US$ 805,7 bilhões) no segundo
tentavam altas taxas de crescimento, to. Essas nações concluíram que seria trimestre de 2006 – justamente quan- *Dean Baker é economista e codiretor do
e, nos mais avançados (Taiwan, Co- melhor não ter de negociar com o FMI, do a bolha econômica atingia seu pon- Center for Economic and Policy Research
reia do Sul), os níveis de vida se apro- e a forma mais segura de não experi- to culminante. (Washington, DC).
12 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

DESENVOLVIMENTO

Privatizar ou estatizar?
Debate ganha novo impulso após a divulgação no dia 15 de agosto do primeiro pacote de privatização da
infraestrutura contemplando a concessão para o setor privado de investimentos e operações para a construção
de 7,5 mil quilômetros de rodovias e 10 mil quilômetros de ferrovias, num investimento de R$ 133 bilhões
POR AMIR KHAIR*

E
stá em pauta a discussão da instituições financeiras, a maioria em programa de privatizações. Foi além, Ocorreram também outras privati-
privatização, que, em nosso mãos do capital estrangeiro. ao condicionar as transferências de zações: Banco do Estado do Ceará,
país, ganha dimensões parti- O processo de criação de empresas recursos da União para os estados à Banco do Estado do Maranhão, hidre-
culares pelas contradições que estatais ocorreu também durante o regi- submissão dos governadores às políti- létricas Santo Antônio e Jirau.
encerra, com movimentos constan- me militar (1964-1985), em setores estra- cas recomendadas pelo FMI. Foram
tes de interpenetração do espaço tégicos e em outros de menor importân- privatizados os principais bancos es- Debate
público pelo privado. É um debate cia, como hotelaria e supermercados. taduais, Light, Vale do Rio Doce, Tele- Esse debate ganhou novo impulso
que comporta um grande elenco de O processo de privatização no Brasil brás e Eletropaulo. após a divulgação no dia 15 de agosto
argumentos sócio-históricos, cuja representou uma mudança radical do Os leilões de privatização de FHC do primeiro pacote de privatização da
dimensão, sem dúvida, não cabe no papel até então reservado ao Estado na foram objeto de protestos em razão de infraestrutura contemplando a con-
âmbito deste artigo. atividade econômica, em contexto histó- irregularidades e duas grandes falhas: cessão para o setor privado de investi-
As recentes medidas da presidenta rico de ascenso do pensamento neolibe- uso de moedas podres3 e permissão mentos e operações para a construção
Dilma Rousseff de privatização de em- ral, cujas postulações enfatizam o valor para que o BNDES financiasse parte do de 7,5 mil quilômetros de rodovias e 10
presas estatais reacende a crítica à do mercado e de suas leis a reger a socie- preço de compra, inclusive a investido- mil quilômetros de ferrovias, num in-
agenda liberal, demolidora da inter- dade e suas condições de desenvolvi- res estrangeiros, o que levaria a privile- vestimento de R$ 133 bilhões, banca-
venção do Estado no plano econômico mento, devendo o Estado ser reduzido ao giar grupos privados específicos.4 dos na maior parte por recursos públi-
e social, demarcada no país por sua as- mínimo necessário (Estado mínimo). cos (80% pelo BNDES).
censão à modernidade capitalista. Contraditoriamente no Brasil, a Os contrários à privatização se di-
Especialmente em decorrência da Constituição Federal de 1988 intro- vidiram em dois grupos: os que afir-
crise mundial de 1929 a 1931, ocorreu duziu e ampliou direitos e expandiu No caso das prestadoras maram não se tratar de privatização,
no Brasil o combate à depressão me- as responsabilidades públicas por pois não ocorreria venda de patrimô-
diante a elevação do gasto público, sua objetivação.
de serviços públicos, nio público, e os que defenderam que
tendo como uma de suas consequên- O ressurgimento de valores libe- a sociedade é sacrificada essa passagem para o setor privado
cias uma forte reorganização econô- rais incitou reformas, e uma de suas pelo uso abusivo de em nada poderia ser diferente de uma
mica, com a transformação do sistema expressões está no chamado “Con- tarifas − a principal privatização.
produtivo nacional. senso de Washington”,2 reação contra O centro do debate não é se a con-
Foi um período marcado pela ace- o Estado interventor.
fonte de ganho cessão é privatização, mas se o que foi
leração da industrialização e a substi- Novas crises econômicas mundiais dessas empresas concedido ao setor privado deveria sê-
tuição das importações, com signifi- fizeram emergir com força a crítica ao -lo ou não. Os fatos mostraram com
cativa intervenção do Estado na vida funcionamento do Estado e à sua ca- clareza os problemas criados pela pri-
econômica e social, vasta expansão pacidade de prover políticas públicas, A maior parte dos valores usados vatização açodada.
dos serviços governamentais e estru- por seu gigantismo, ineficiência e bu- para as privatizações veio de emprés- Uma vez privatizada, a empresa es-
turação de setores estratégicos. rocratismo. Esse debate fertilizou o timos do BNDES e dos fundos de pen- tatal foge do controle do Estado e fica
Essa experiência não se afasta da- terreno para a introdução de medidas, são das próprias empresas estatais livre para praticar a política que mais
quela de outros países, quando a in- entre elas as várias formas de privati- (como no caso da Vale). lhe interessar. Pode, por exemplo, con-
dustrialização e os conflitos gerados zações e desregulamentações. Nos oito anos de mandato de FHC, taminar toda a cadeia produtiva na
pela desigualdade de seus frutos pro- Fernando Collor (1990-1992) foi o as privatizações atingiram US$ 78,6 qual se situa no topo. Foi o caso da Vale
vocaram também a presença do Esta- primeiro presidente a adotar as priva- bilhões, dos quais 28% no setor elétri- do Rio Doce, que, aproveitando o pre-
do no âmbito das legislações previ- tizações, ao instituir o Programa Na- co e 38% em telecomunicações. A dívi- ço internacional elevado do minério
denciária e do trabalho. cional de Desestatização (PND) pela da pública era de 28% do PIB e passou de ferro, mais do que dobrou o preço
Dessa forma, a economia foi resga- Lei n. 8.031, de 12 de abril de 1990. Os no final para 60%! E isso apesar dos re- interno, impondo elevação de custos a
tada da crise por uma ação deliberada principais objetivos foram transferir à cursos provenientes das privatizações. todas as empresas dessa cadeia, atin-
do Estado, modelo que fortaleceu e iniciativa privada atividades indevida- Isso ocorreu pelo uso da Selic elevada gindo os consumidores e inquilinos
expandiu o setor público e incorporou mente exploradas pelo Estado e usar para não deixar ruir o Plano Real. nos aluguéis, influenciados que foram
demandas sociais, concomitante- os recursos da privatização para redu- No governo Lula, 2,6 mil quilô- pela forte elevação causada no IGP-
mente às demandas do capital de se zir a dívida pública. metros de rodovias foram leiloadas -DM, usado como índice de correção
manter reciclado.1 A privatização iniciou-se em 24 de em 9 de outubro de 2007. O grande das locações de imóveis.
É da era Vargas a criação da Com- outubro de 1991, com a venda da side- vencedor do leilão para explorar pe- A empresa privatizada tem o direi-
panhia Siderúrgica Nacional (1940), rúrgica Usiminas, uma das estatais dágios por 25 anos foi o grupo espa- to de vender seu controle acionário pa-
da Vale do Rio Doce (1942) e da Com- mais lucrativas, seguida por várias si- nhol OHL. Nessas concessões, foi ra uma transnacional, cuja política de
panhia Hidro Elétrica do São Francis- derúrgicas e petroquímicas. adotado o critério da menor tarifa produção e comercialização responde
co (1945). Em seu segundo governo No governo de Itamar Franco (1992- nas licitações. As empresas vitorio- aos interesses da matriz, podendo pre-
(1951-1954), foram fundados o Banco 1995), concluiu-se a privatização de sas ofereceram-se para administrar judicar o país.
Nacional de Desenvolvimento Econô- empresas do setor siderúrgico e petro- as estradas por um pedágio médio No caso das prestadoras de servi-
mico (1952) e a Petrobrás (1953). químico e foi leiloada a Embraer (1994). de R$ 0,02 por quilômetro, seis vezes ços públicos, a sociedade é sacrificada
Já existiam havia tempo o Banco O governo FHC (1995-2002) adotou inferior ao cobrado nas rodovias pelo uso abusivo de tarifas − a princi-
do Brasil e a Caixa Econômica Fede- as recomendações do Consenso de Anhanguera e Imigrantes, privatiza- pal fonte de ganho dessas empresas −,
ral, atuando ao lado de outras poucas Washington, que pregava um amplo das na década anterior. que ocorre em sequência à privatiza-
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 13

© Orlando
ção. Essas tarifas deveriam ser contro- so, carece de recursos necessários pa- sistema de pregão. Para os demais ca- criar estatal em cada setor estratégico
ladas pelas agências reguladoras, mas ra investimentos em infraestrutura. sos, o que determina é o custo da mão que não a possua.
na prática não é o que se observa. Se o Estado não está preparado, o de obra, em geral cerca de 80% do to- Só com estatais fortes operacional
Além disso, o serviço ofertado é cam- caminho não é sua demolição, mas fa- tal. Caso sejam adotados salários em e financeiramente é possível garantir
peão de reclamações nos órgãos de zer que tenha condição para assumir o nível de mercado e adequada gestão de de forma eficaz os objetivos estratégi-
defesa do consumidor. papel que a sociedade lhe delegou. As pessoal, os custos podem se equiparar cos do país. A desestatização foi em
fragilidades do poder público preci- aos da iniciativa privada. Caso o Esta- sua maior parte um atraso. É funda-
Novos tempos sam ser enfrentadas. É necessário que do não fiscalize o que é feito pela ini- mental um choque na economia e na
Estamos em uma época bem diver- seja construído um plano estratégico ciativa privada – fato comum –, os ser- política para acelerar e engrandecer o
sa daquela do início das privatizações, de desenvolvimento econômico, so- viços podem ficar mais caros do que os processo do desenvolvimento econô-
em 1990. O mito do mercado desabou cial e ambiental e, nele, os instrumen- feitos diretamente pelo Estado. mico e social de que o país necessita.
com a quebra do banco norte-america- tos de sua efetivação. Nas obras, o Estado pode ter custos
no Lehman Brothers em 15 de setem- Trata-se de fortalecer e reorientar a competitivos, pois pode comprar a pre- *Amir Khair é mestre em finanças públicas
bro de 2008, o estopim da maior crise ação do Estado, com maior benefício ços melhores, dado seu porte. Em gran- pela FGV, consultor e membro do núcleo Pla-
vivida pelo sistema capitalista desde para a sociedade; transformar o custo des obras, há que se tomar cuidado, já taforma Política Social – Agenda para o Bra-
1929. Se não fosse o Estado, o sistema elevado de suas ações, o uso indevido que o setor privado opera com poucas sil do Século XXI. E-mail: akhair@uol.com.br.
capitalista ruiria após o colapso gene- de cargos públicos para o suporte polí- empresas, nas quais a ocorrência de su-
ralizado do sistema financeiro, o qual o tico e o populismo de tarifas e preços, perfaturamento é bem conhecida. 1 No plano da teoria econômica, quem inspirou tais
neoliberalismo acreditava que se au- que acabam inviabilizando a autos- 3. Cabide e uso político – O inchaço medidas foi John Maynard Keynes, que publicou,
em 1936, Teoria geral do emprego, do juro e do
torregularia diante das crises. sustentação das atividades. e a prática de usar cargos públicos para dinheiro, obra na qual demoliu os pressupostos li-
Agora mais do que nunca se impõe Vale analisar os principais argu- garantir apoio nas matérias de aprova- berais e demonstrou que emprego e produção
uma rediscussão do papel do Estado e mentos usados pelos privatistas: 1) falta ção legislativa são grandes atrasos na dependem, em cada país, da demanda efetiva (a
totalidade das compras de meios de consumo e
da iniciativa privada na economia e na de recursos no Estado; 2) custos mais independência que se espera do Estado de produção). Quando a demanda efetiva não é
sociedade. Ao Estado, competem a de- elevados do Estado; 3) cabide de empre- para escolher bons quadros técnicos. suficiente, parte dos trabalhadores fica desempre-
fesa e a promoção do desenvolvimento go e uso político de cargos; e 4) uso po- O sucesso na política de desenvolvi- gada involuntariamente.
2 Conforme José Eduardo Faria, citado por Dinorá A.
econômico e social. Ao setor privado, o pulista na fixação de preços e tarifas. mento pavimenta a maior indepen- M. Grotti em O serviço público e a constituição bra-
que interessa é maximizar o lucro das 1. Falta de recursos – A falta de re- dência ao Poder Executivo para reali- sileira de 1988, São Paulo, Malheiros Editores,
empresas. Objetivos diferentes e por cursos atinge todas as áreas de atua- zar seus objetivos. Reestruturações são 2003, p.67, “é a opinião partilhada pelo Departamen-
to do Tesouro, pelo Federal Reserve e pelo Departa-
vezes antagônicos. ção do Estado, especialmente a social, necessárias para adequar o orgânico mento de Estado dos Estados Unidos, pelos ministé-
Na crise citada, esses objetivos fo- na qual o déficit elevado sacrifica a de pessoal às reais necessidades da or- rios das finanças dos demais países do Grupo dos
ram expostos. O que protegeu a econo- maioria da população. Mas sua rever- ganização. Contratos de gestão podem Sete e pelos presidentes dos vinte maiores bancos
internacionais [...] constituído por dez reformas bási-
mia e o emprego foram as ações de- são é possível, pois: a redução da Se- ser o instrumento adequado para o cas: 1) disciplina fiscal para eliminação do déficit
sencadeadas pelo Estado, por meio de lic vai permitir economizar mais de cumprimento dos objetivos definidos público; 2) mudança das prioridades em relação às
suas instituições oficiais de crédito, R$ 100 bilhões por ano; com o cresci- para cada órgão ou empresa. despesas públicas, com a superação de subsídios;
3) reforma tributária, mediante a universalização dos
com estímulos à economia feitos pelo mento acima de 4% ao ano, a arreca- 4. Preços e tarifas – Devem ser fixa- contribuintes e o aumento de impostos. 4) adoção
BNDES, Banco Central e governo fede- dação tende a crescer de 3 a 4 pontos dos de forma a garantir os recursos pa- de taxas de juros positivas; 5) determinação da taxa
ral. Em lado oposto situou-se o sistema acima do PIB pela redução da inadim- ra atingir os objetivos do plano estra- de câmbio pelo mercado; 6) liberalização do comér-
cio exterior; 7) extinção de restrições para os investi-
financeiro privado, que, à semelhança plência; se usar corretamente suas es- tégico acordado com o governo. O mentos diretos; 8) privatização das empresas públi-
do que fez internacionalmente, tran- tatais, sem os nefastos populismos na desvirtuamento dessa diretriz dá o cas; 9) desregulação das atividades produtivas; e
cou o crédito e elevou os juros. fixação de preços, como no caso da Pe- combustível político aos privatistas, 10) ampliação da segurança patrimonial, por meio
do fortalecimento do direito à propriedade”.
As falhas cometidas nas privatiza- trobras, os dividendos crescerão. que argumentam que tudo que fica 3 Títulos da dívida pública emitidos para resolver cri-
ções de empresas estratégicas, feitas 2. Custos – Podem ser para compras com o Estado fracassa e na mão da ini- ses financeiras e cujo valor de mercado era quase
especialmente no governo FHC, e a de bens, prestação de serviços e obras. ciativa privada prospera. As compara- nulo. Foram usados para as compras do patrimô-
nio público por seus valores de face. Isso represen-
nova conjuntura internacional im- Para compras, os custos dependem da ções não têm fim. tou grave lesão ao erário, mas ninguém foi julgado
põem novas reflexões e ações para for- modalidade de aquisição. Se adotado o Em sentido inverso às proposições nem punido por isso.
talecer o Estado. pregão eletrônico ou presencial, e co- de privatizações, o poder público de- 4 Conversas gravadas na sede do BNDES revela-
ram esquema de favorecimento de empresas no
É necessário discutir o argumento mo em geral as quantidades adquiridas veria ainda capitalizar adequadamen- leilão de privatização da Telebrás, conduzido pelo
central pró-privatização de que o Esta- são grandes, eles podem ficar até me- te suas estatais; fixar os preços que ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendon-
do torna tudo mais caro para a socie- lhores que na iniciativa privada. viabilizam os planos estratégicos; ad- ça de Barros, com o presidente do BNDES, André
Lara Resende, e com a anuência do presidente da
dade em relação ao que pode ser feito A maior parte dos serviços é padro- quirir ações em Bolsa de Valores para República, Fernando Henrique Cardoso, que tam-
pela iniciativa privada e que, além dis- nizada e passível de ser licitada pelo reforçar sua posição de comando; e bém aparece nas gravações.
14 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

DESENVOLVIMENTO

Um remédio para matar ou salvar o SUS?


Em entrevista recente, Richard Sennet apontou a tendência atual de adoção de um modelo em que as organizações já não
empregam trabalhadores, mas compram trabalho. O mesmo estaria se passando com o Estado?
POR SONIA FLEURY*

S
erá possível pensar um Estado interior do SUS. Em sua modalidade profissionais, atuando, às vezes, na com as PPPs mostraram-se inflexí-
sem funcionários, carreiras, sa- mais completa, implicam a construção mesma unidade com diferentes víncu- veis, acarretando um ônus maior para
beres e instituições próprias que e o equipamento das unidades hospi- los, gerando uma subversão de hierar- cortes em outros setores da adminis-
sejam a materialização do inte- talares pelo setor privado e posterior quias e da lógica do planejamento. Os tração pública. Usuários e especialis-
resse público em áreas que até mesmo contratação de seus serviços pelo go- pacientes do SUS tendem a ser discri- tas reclamam que a transparência le-
a Constituição define como de relevân- verno. Isso só se tornou realidade com minados em unidades privadas, em galmente assegurada no setor público
cia pública, como a saúde? Para alguns a primeira PPP hospitalar do Hospital função do valor da tabela de pagamen- não se aplica aos contratos das PPPs,
gestores governamentais, a resposta do Subúrbio, estabelecida pelo gover- to do Sistema − situação que se preten- que justificam ser segredo parte do
afirmativa a essas questões funda- no do PT da Bahia, sendo, porém, uma de perpetuar por meio da reserva legal negócio privado.
menta-se em algumas premissas: a) a tendência em expansão, com editais de leitos hospitalares para convênios, Por fim, a alegação maior de que as
perene convivência entre público e pri- abertos em Minas, São Paulo e Rio. prevista em São Paulo. PPPs seriam uma solução para o setor
vado na saúde; b) o aperfeiçoamento Antes, predominou o modelo pau- O financiamento público a unida- da saúde não só por resolver o proble-
dessas relações por meio de mecanis- lista, no qual o governo provê a unida- des privadas tem aumentado sistema- ma da gestão, mas também o do fi-
mos contratuais; c) a inexorabilidade de de serviço e contrata uma entidade ticamente, justificado pelos aportes nanciamento, ao injetar recursos pri-
da integração entre público e privado gestora (Organização Social de Saúde de conhecimentos que elas trarão ao vados, parece ser uma grande falácia.
em um sistema nacional de saúde. − OSS). Nesse caso, houve preocupa- sistema público. No entanto, ao não Se os problemas começaram com a
A primeira premissa tende a con- ção de exigir experiência de no míni- investirem na rede pública, esses re- sistemática redução do financiamen-
fundir a existência pioneira das orga- mo cinco anos na administração dos cursos podem estar aumentando sua to da União para a saúde – DRU, paga-
nizações filantrópicas, hoje integradas serviços próprios de saúde e aprova- defasagem em relação à rede privada, mentos indevidos, redução da porcen-
como prestadoras do Sistema Único de ção do contrato pelo Conselho Estadu- situação até agora não avaliada. A de- tagem do PIB –, comprometendo a
Saúde (SUS), com a recente emergên- al de Saúde. Já no Rio de Janeiro nem fesa das parcerias enfatiza a definição gestão e a qualidade dos serviços pú-
cia do setor empresarial de serviços de mesmo essas precauções foram toma- de metas, flexibilidade e eficiência co- blicos, a solução encontrada parece
saúde. A criação do mercado de saúde das, o que permitiu a confluência per- mo principais argumentos em favor acentuar tais problemas.
no Brasil não se deu de forma espontâ- versa entre os interesses do Estado em da execução das ações pelo setor pri- Para ver se o fluxo de recursos ca-
nea, sendo resultante da política dos busca da redução de encargos e a ne- vado. Por meio de um contrato trans- minha do privado para o público, co-
governos militares ao subsidiarem o cessidade de captação de recursos pú- parente, as PPPs aumentarão a capa- mo apregoado na PPP ou ao contrário,
financiamento da construção da rede blicos por parte de organizações so- cidade estatal de fazer uma gestão basta fazer um exercício e identificar
privada, garantindo sua expansão por ciais. Assim, instituições vistas como mais flexível, reduzir a politização e os que as empresas vencedoras das par-
meio de contratos com o setor público, bastiões na defesa do interesse público custos, monitorar metas e qualidade. cerias são também as principais fi-
em detrimento da rede pública exis- passam a ser gestoras privadas de ser- No entanto, a experiência internacio- nanciadoras das campanhas políticas.
tente. A naturalização da relação pú- viços públicos terceirizados, como o nal nos ensina que o resultado pode Não por acaso, são também as princi-
blico-privada nos serviços de saúde Viva Rio, ou a intermediar contratos ser o oposto do desejado. pais beneficiárias de financiamento
procura obscurecer o caráter político terceirizados, como a Fiotec. Os principais problemas aponta- público subsidiado via BNDES, para o
da construção desse mercado, do qual O pragmatismo envolto em interes- dos na literatura internacional são: qual a União emite títulos públicos,
o SUS se tornou prisioneiro. se público não consegue acobertar o Processos de precificação em saúde aumentando a dívida pública e redu-
A segunda premissa sustenta-se comprometimento dessas instituições são extremamente complexos, visto ser zindo a capacidade de financiamento
na inevitabilidade da convivência e com interesses particulares. Já a nova um dos setores mais dinâmicos em in- dos sistemas universais de educação e
nas vantagens da redução do Estado, modalidade inaugurada com a primei- corporação tecnológica. Contratos lon- saúde. Além disso, as beneficiárias das
delegando a prestação a um ente pri- ra PPP vai além da terceirização, ao gos, de 25 anos, tendem a fracassar na PPPs são isentas de contribuições que
vado, com mais agilidade no trato do prever a construção do hospital pela estimativa de preços, sendo o prejuízo financiam a seguridade social, fe-
pessoal e liberdade para compras e iniciativa privada e sua contratação assumido ou pelo governo, com maior chando-se assim o círculo.
investimentos sem licitações. Ou se- pelo governo com base em metas de re- ônus financeiro, ou pelo paciente, Enfim, ao igualar o público e o pri-
ja, de um só golpe livra-se do entulho muneração por produção e qualitati- quando o provedor reduz a qualidade. vado em busca de crescente interação
democrático, criado para proteção vas. Essa parece ser a nova tendência A atenção em hospitais públicos no rumo a um projeto de nacionalização
dos servidores e da administração que se consolida e amplifica os proble- Reino Unido custou menos que em do sistema de saúde, o que se está fa-
pública – do Regime Jurídico Único mas já existentes na relação de parce- Hospitais PFI (PPP). O impacto das zendo é reduzir progressivamente o
(RJU) à Lei n. 8.666 – evitando, de ria em saúde. PPPs sobre as desigualdades em saúde papel do Estado a financiador e com-
quebra, os controles internos, exter- Quais seriam esses problemas? foi nulo. O gasto público com saúde prador, o que seria decretar a morte
nos e sociais. Todos esses instrumen- Muitos deles já fazem parte de nossa aumentou em vez de reduzir. progressiva do SUS.
tos, considerados imprescindíveis experiência na relação com o setor pri- A politização ocorre na medida em
para fazer valer a primazia do inte- vado e outros podem ser deduzidos da que o governo atual se beneficia da *Sonia Fleury é doutora em Ciência Política,
resse público sobre o privado, dei- experiência internacional das PPPs em inauguração de unidades de serviços, professora titular da Escola Brasileira de Ad-
xam de importar quando se parte da saúde, que conseguiram abalar até as cujos custos serão amortizados nas ministração Pública e de Empresas (Ebape/
falácia da indistinção entre os dois. sólidas bases financeiras do sistema décadas seguintes. Agências interna- FGV), onde coordena o Programa de Estu-
As parcerias público-privadas de saúde inglês, sem aumentar a equi- cionais patrocinaram as PPPs, inclu- dos da Esfera Pública (Peep), ex-presidente
(PPPs) em saúde seriam mais um pas- dade ou a eficiência. sive com a exclusão dos contratos de do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
so nessa trajetória rumo à consolida- Diferenciações ocorrem nas moda- leasing do cálculo da dívida pública. (Cebes) e membro da Plataforma Política
ção das relações do setor privado no lidades de contrato e remuneração de Na crise europeia, os contratos Social – Agenda para o Brasil do Século XXI.
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 15

DESENVOLVIMENTO

A farsa das concessões privadas


Parceria público-privada para o sistema de esgotamento sanitário da Região Metropolitana de Recife ameaça entregar
parte do patrimônio comum pernambucano. Além disso, 110 mil moradores de regiões mais pobres continuarão sem os
serviços de saneamento, já que esse “mercado” não ofereceria condições vantajosas para os investidores
POR EDSON APARECIDO DA SILVA*

G
overnos e empresas privadas Ambiental (FNSA), como a Central de
vêm defendendo as parcerias Movimentos Populares (CMP), a Con-
público-privadas (PPPs) e as federação Nacional das Associações
concessões como a solução pa- de Moradores (Conam), a Federação
ra o saneamento básico no Brasil. A Interestadual de Sindicatos de Enge-
principal justificativa seria a falta de nheiros (Fisenge), a Associação Nacio-
capacidade de endividamento de esta- nal dos Serviços Municipais de Sanea-
dos, municípios e outros operadores mento (Assemae) e o Movimento dos
públicos. Além disso, o setor privado Atingidos por Barragens (MAB), lan-
teria maior facilidade em acessar re- çaram, em novembro de 2011, uma
cursos públicos. campanha nacional contra as PPPs.1

© André Dahmer
Cidades do Rio Grande do Sul co- Esse grupo de entidades e movi-
mo Uruguaiana, São Gabriel e São mentos entende que o saneamento no
Francisco de Paula já concederam Brasil passa por um momento privile-
seus serviços a operadores privados. Já giado, em que uma legislação nacional
Rio Grande, Santa Cruz do Sul, Santa (Lei n. 11.445/07) definiu suas diretri-
Maria e São Borja ainda trilham o ca- sa, que poderá, inclusive, utilizar-se de forma de impostos. Em resumo, inves- zes. O Programa de Aceleração do
minho da privatização. São Paulo en- recursos a fundo perdido para esse fim. te-se pouco mais de R$ 3 bilhões em tro- Crescimento (PAC) vem destinando
tregou a ampliação e operação de uma Investimento total de R$ 4,5 bilhões. A ca de uma receita de mais de R$ 13 bi- grandes somas de recursos para o se-
estação de tratamento de água ao setor justificativa para o aporte de recursos lhões. O empreendimento prevê uma tor, o que possibilita a ampliação dos
privado por meio de uma PPP. Belém públicos é que, dessa forma, não seria Taxa Interna de Retorno (TIR) de 8,4%. índices de atendimento em água e es-
aprovou a municipalização dos servi- necessário, de imediato, o reajuste de Mais escandaloso ainda é o fato de goto, e acabou com o contingencia-
ços com vistas à privatização. Em Ron- tarifas. Vale ressaltar, porém, que entre áreas urbanizadas dentro da RMR não mento de recursos que sufocava essa
dônia, Ariquemes, Jaru, Ji-paraná, Pi- 2008 e 2011, segundo dados da própria terem sido contempladas com investi- área desde os anos 1990.
menta Bueno e Rolim de Moura atuam Compesa, foram investidos pelo estado mentos em sistemas de esgotamento Apesar dos avanços, há muito por
na perspectiva de entregar seus servi- R$ 1,3 bilhão em obras de abastecimen- sanitário. Os locais excluídos são jus- fazer, sobretudo no que tange à coleta
ços a empresas privadas. O mesmo de- to de água e esgotamento sanitário. Se tamente aqueles em que o retorno do e ao tratamento dos esgotos, à destina-
ve ocorrer na Região Metropolitana de considerarmos investimento seme- investimento não é vantajoso, ou seja, ção e coleta dos resíduos sólidos e à
Belo Horizonte, Grande Vitória e Re- lhante em doze anos (período no qual o onde vivem as populações mais po- drenagem urbana. É preciso que o Pla-
gião Metropolitana de Recife (RMR). agente privado se compromete a uni- bres, como as ocupações de margens no Nacional de Saneamento (Plan-
Este artigo pretende analisar a pro- versalizar a coleta e o tratamento de es- de rios e córregos, terrenos com alto sab), instrumento estruturante das
posta de PPP para o sistema de esgota- gotos), chega-se a R$ 3,9 bilhões, valor grau de aglomeração e áreas de favela. políticas de saneamento, que se en-
mento sanitário da RMR, composta de maior do que será investido diretamen- Essas ocupações representam aproxi- contra em consulta pública, seja colo-
catorze municípios, mais a cidade de te pelas empreiteiras na proposta em madamente 1% da área da RMR e 2,5% cado em prática o quanto antes.
Goiana. Trata-se da segunda maior re- andamento. Além disso, o setor privado de sua população. Assim, cerca de 110 O saneamento básico ainda requer
gião metropolitana do Nordeste e a se aproveitará de investimentos públi- mil moradores continuarão sem os grandes somas de investimento até
sexta do Brasil, com aproximadamen- cos aportados na melhoria dos indica- serviços de saneamento. que se atinja a universalização do aces-
te 4,5 milhões de habitantes. dores de saneamento. O Sindicato dos Urbanitários de so, principalmente em áreas carentes
O modelo de PPP proposto é na mo- Também há uma diferença funda- Pernambuco construiu uma grande onde vivem as pessoas de mais baixa
dalidade concessão administrativa, na mental: a operação do sistema e o fatu- unidade com sindicatos de outras cate- renda. Essas áreas, pelas quais o setor
qual o parceiro privado deve operar, ramento decorrente, em caso da não gorias e entidades do movimento po- privado não tem interesse, só terão sua
manter, ampliar e recuperar o sistema privatização, ficariam em poder do pular e vem lutando de todas as formas realidade transformada com forte pre-
de coleta e tratamento de esgoto, além público. Já na PPP, a operação vai ficar para evitar que a privatização avance, sença do Estado, indutor do desenvol-
de introduzir a infraestrutura necessá- sob controle de empresas privadas du- apesar da correlação de forças desfavo- vimento e da melhoria da qualidade de
ria para a ampliação dos serviços. rante 35 anos, e todo o faturamento do rável, já que o governo tem colocado a vida. A busca incessante do lucro é in-
Essa é uma opção equivocada do sistema de esgoto vai para o caixa das máquina da administração na defesa compatível com a necessidade de su-
governo de Pernambuco, que, caso se empreiteiras, restando somente o for- desse projeto. A audiência pública que peração dos desafios da universaliza-
efetive, entregará parte de um patri- necimento de água para o estado. tinha por objetivo debater a proposta ção. Nesse sentido, é preciso reafirmar
mônio do povo pernambucano, ope- Deixemos claro que todas as obras foi uma farsa, aconteceu durante o dia o papel insubstituível do poder público
rado pela Companhia Pernambucana executadas sob responsabilidade da e dentro da empresa, dificultando a na gestão e operação dos serviços pú-
de Saneamento (Compesa), para em- Compesa serão transferidas, ao seu participação da população. blicos de saneamento básico.
preendedores privados, já que o prazo término, à concessionária privada, in- Para enfrentar essas ameaças de
da PPP é de 35 anos, podendo ser reno- cluindo o direito de exploração dos no- privatização, a Federação Nacional *Edson Aparecido da Silva, sociólogo, é
vado por igual período. vos ativos até o fim da concessão. dos Urbanitários, entidade sindical coordenador da Frente Nacional pelo Sanea-
O compromisso de investimentos É previsto que, ao longo dos 35 anos nacional que representa os trabalha- mento Ambiental (FNSA) e assessor de sa-
do “parceiro” privado será de R$ 3,1 bi- do contrato, o total de receitas a ser dores dos setores de água e saneamen- neamento da Federação Nacional dos Urba-
lhões mais R$ 1,4 bilhão de responsabi- apropriado pelo parceiro privado será to, energia, gás e meio ambiente, e vá- nitários (FNU/CUT).
lidade do parceiro público, no caso, o de R$ 16,6 bilhões, dos quais R$ 3,1 bi- rias outras entidades que integram a
governo estadual, por meio da Compe- lhões serão repassados ao governo na Frente Nacional pelo Saneamento 1 Ver www.aguaparaobrasil.com.br.
16 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

CRISE NA EUROPA

Competitividade, símbolo
dos paradoxos da globalização
A palavra “competitividade” figura em todas as bocas e já não se restringe ao meio empresarial. Agora cidades, regiões
e até mesmo as nações devem concentrar suas energias nesse objetivo. Com esse fim, nossos governantes são convidados
a se inspirar nas teorias de administração desenvolvidas pelas escolas de comércio norte-americanas
POR GILLES ARDINAT*

vel de inserção na geografia econômi-


ca mundial. Contudo, basta consultar
obras e artigos – abundantes – consa-
grados ao tema para identificar um
primeiro paradoxo: apesar do entu-
siasmo que suscita, esse conceito se
revela particularmente frágil no âmbi-
to científico. Isso acontece porque
transpõe uma noção microeconômica
(a competitividade de produtos e em-
presas) à esfera política (a competitivi-
dade de territórios). Essa analogia é
denunciada pelo economista Paul
Krugman, agraciado em 2008 pelo
Banco Central da Suécia com o Prêmio
de Ciências Econômicas em Memória
de Alfred Nobel: “A competitividade é
uma palavra vazia de sentido até o mo-
mento em que é aplicada às econo-
mias nacionais. A obsessão pela com-
petitividade é, ao mesmo tempo, falsa
e perigosa”.4
Numerosos especialistas tentaram
remediar essa carência construindo
uma definição mais consensual para o
© Alves

termo, como a do economista austría-


co Karl Aiginger, para quem esse con-
ceito descreve cada vez mais uma “ap-
tidão para gerar bem-estar” no meio
concorrencial. Ele indica que “o salá-
rio e o emprego são gerados em pro-
cessos nos quais a rivalidade e a per-
formance relativa desempenham um

S
ingular unanimidade. Diante dente François Hollande identificou a concentrar suas energias nesse objeti- papel”.5 Essa concepção, aplicada ao
do anúncio da demissão de 8 competitividade como o principal ei- vo prioritário. Com esse fim, nossos cenário atual, supõe que a concorrên-
mil funcionários da Peugeot em xo de trabalho. E, 48 horas antes, o pri- magistrados e governantes são convi- cia generalizada entre territórios seja
12 de julho de 2012, Jean-Fran- meiro-ministro Jean-Marc Ayrault ha- dados a se inspirar nas teorias de ad- compatível com o melhoramento do
çois Copé, secretário-geral da União via definido um objetivo fundamental ministração desenvolvidas pelas esco- nível de vida.
por um Movimento Popular (UMP), para a nação: “Melhorar a competitivi- las de comércio norte-americanas e Ainda assim, permanece a ques-
identificou uma “prioridade absoluta”: dade de nossas empresas”. colocar em prática seus conceitos:2 tão: é possível considerar territórios e
“a competitividade de nossa indús- Da estratégia de Lisboa, que em controle de custos de produção (“com- empresas como instituições de mes-
tria”. Momentos antes, o ex-ministro 2000 definiu um “novo objetivo” para a petitividade-custo”), benchmarking ma natureza? Um território, espaço
do Trabalho Xavier Bertrand observa- União Europeia (“transformar a eco- (os países são comparados e classifica- apropriado e delimitado por uma fron-
va: “Não é apenas uma questão de nomia do conhecimento na economia dos como empresas em um meio con- teira, oferece a um povo suporte físico,
quantidade, mas também de custo de mais competitiva e dinâmica do mun- correncial), marketing territorial (os assim como boa parte de suas referên-
trabalho e competitividade”.1 Outro do”), aos “acordos de competitividade territórios devem “vender-se”)3 e pes- cias culturais e políticas. Ele não se re-
argumento retomado no mesmo dia e emprego” lançados pelo presidente quisa de financiamento (atração de ca- duz a dados macroeconômicos: as no-
pelo senador e ex-primeiro-ministro Nicolas Sarkozy no fim de seu manda- pitais). Ao passo que o uso dessa caixa tas (papel das agências de risco), as
Jean-Pierre Raffarin apelava para um to; das injunções para a “competitivi- de ferramentas aumenta, a competiti- taxas (inflação, juros, desemprego) ou
“choque de competitividade”, a única dade fiscal” do patronato britânico aos vidade se impõe como o novo padrão os salários (comerciais, orçamentá-
forma de aquecer a economia france- planos de “competitividade industrial” de performance dos territórios na glo- rios) refletem apenas um aspecto – su-
sa, segundo ele. de seu homólogo espanhol, a palavra balização. Mas como ela é medida? perficial e material – da nação. Contra-
Assim ecoava o perfeito coro de te- “competitividade” figura em todas as Em sentido amplo, a competitivi- riamente a uma empresa, o objetivo
nores formado pelos dirigentes da bocas e já não se restringe ao meio em- dade designa a capacidade de enfren- maior de um território não é lucrar.
UMP e políticos dos salões dos palá- presarial. A partir de agora, cidades, re- tar com êxito a concorrência. Aplicada Sua ação se inscreve no tempo longo
cios do Eliseu e de Matignon. O presi- giões e até mesmo as nações devem aos territórios, essa noção mede o ní- da história, não no imediatismo dos
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 17

mercados. Enfim, uma nação não faz “estrutural” e países de “competitivi- sição aos territórios apresenta alguns dos. Sem mencionar que, se os países
balanços nem pode ser liquidada. dade-preço”, condenados a ser apenas problemas. Em primeiro lugar, não decidissem simultaneamente impor
É sobre essa assimilação, contudo, o lado mais fraco da globalização? O existe nenhuma autoridade de regula- suas demandas, precipitariam uma
que se constrói a teoria da competitivi- relatório Blanc de 2004,7 que inspirou a ção confiável para a concorrência en- grave depressão. Analogicamente, no
dade, um dos pilares da globalização. política francesa dos polos de compe- tre nações. Nem a Organização Mun- “mercado dos territórios” os exceden-
Aplicada aos territórios, essa noção titividade, afirmava que, “para reto- dial do Comércio (OMC) nem a tes comerciais não poderiam ser retira-
marca uma nova etapa da “mercantili- mar uma vantagem significativa, a Organização Internacional do Traba- dos todos de uma vez: é preciso neces-
zação do mundo”, porque subentende economia deve escolher entre alinhar- lho (OIT) parecem estar em condições sariamente países no vermelho para
que existe um “mercado de territórios” -se ao modelo social asiático ou tomar de regulamentar os diferentes dum- que outros estejam no verde.10 A obses-
em que as empresas podem escolher a dianteira na inovação”. Com base pings. Assim, a China pode acumular são de uma “convergência de competi-
suas bases a partir do jogo da concor- nessa visão binária, os dirigentes da livremente dumping social (baixos sa- tividades” segundo o modelo alemão,
rência. Em um mundo onde tudo, ou zona atlântica do euro retificaram os lários), ambiental (livre poluição pelas portanto, não passa de uma fábula.
quase tudo, pode ser cotizado na Bolsa deslocamentos das últimas décadas. indústrias), monetário (desvaloriza- A partir do momento em que se
(direitos de poluir, títulos de dívidas, E, em seus discursos, raramente figu- ção deliberada do yuan), regulamen- constata a fragilidade teórica do dis-
matérias-primas), a competitividade rava a ideia de repatriar os milhões de tário (flexibilidade das leis) e fiscal curso sobre a competitividade – por-
faz as vezes de bússola para os investi- empregos perdidos no setor têxtil, si- (restrições nos serviços sociais esta- que conduz a diagnósticos enganosos e
dores ao avaliar a suposta performan- derúrgico ou na indústria de brinque- tais e multiplicação de zonas isentas ao dumping dissimulado –, como expli-
ce de um território. dos. Os países cuja produção se respal- de impostos). A lei do mercado, ao ser car seu enaltecimento por parte de di-
Detenhamo-nos às declarações ofi- dou no Estado seriam condenados por aplicada aos territórios, se revela fun- rigentes políticos? Talvez porque essa
ciais: alimentar a competitividade es- “falência econômica”, teriam de reim- damentalmente distorcida. noção responda às exigências das em-
timularia o emprego, a produtividade e portar esses produtos e se especializar presas e dos mercados internacionais.
o nível de vida. Segundo os especialis- em serviços e pesquisa. Sem meios de controlar uns aos outros,
tas delegados pela Comissão Europeia, Mas a estratégia da competitivida- os eleitos se adaptam às suas exigên-
“a concorrência é aliada, e não inimiga, de estrutural não seria outra forma de A concorrência cias. O objetivo da competitividade
do diálogo social”.6 A globalização ofe- designar a renúncia política? Para frontal dos sistemas mascara a perda de autoridade e de so-
receria ao Ocidente a possibilidade de além da frivolidade do “todos ga- berania dos Estados-nação, e permite
se livrar das atividades manufatureiras nham” e da promessa de melhorar
produtivos gera um eliminar da ação política qualquer pos-
e da fabricação de produtos de pouco quantitativa e qualitativamente o em- efeito depressivo inerente sibilidade de proteção social. Enquan-
valor agregado em favor de empregos prego, em geral se trata da imposição sobre os salários, to isso, o território – tradicionalmente
altamente qualificados e mais bem re- de medidas impopulares: aumento de a arrecadação de impostos considerado uma barreira contra as
munerados. Em resumo, uma opera- imposto, arrocho salarial, austeridade ameaças exteriores (sejam elas milita-
ção vantajosa para todas as partes: de fiscal. Assim, foi em nome da competi-
e a proteção social res ou comerciais) com suas fronteiras
um lado, os países industrializados se tividade que a União Europeia e o FMI e instituições políticas – perde gradual-
beneficiariam com a especialização de exigiram a redução dos salários na mente essa função protetora com o en-
serviços e da alta tecnologia (“compe- Grécia.8 Menos performático que seus O discurso sobre a competitivida- fraquecimento das barreiras aduanei-
titividade estrutural”, que depende da vizinhos, o país deveria baixar signifi- de tenta mascarar esse panorama com ras e prerrogativas do Estado.
capacidade de inovação e exploração cativamente a remuneração do traba- a correção das disparidades entre os
da propriedade intelectual); do outro, o lho, enquanto os planos de salvamen- diferentes locais de produção. Esses *Gilles Ardinat é geógrafo. Este artigo se
Terceiro Mundo sairia da pobreza gra- to garantiriam provisoriamente a esforços parecem irrisórios quando as apoia em sua tese de doutorado, intitulada
ças aos deslocamentos de empresas remuneração do capital, ou seja, o pa- abismais diferenças de custos são leva- Geografia da competitividade, medida e re-
para seus territórios (guiados pela gamento dos juros ao sistema finan- das em conta: o bloqueio dos salários presentação da performance econômica das
“competitividade-preço”, ou seja, pela ceiro. Nesse sentido, a competitivida- no Ocidente, por exemplo, permite re- nações na globalização e defendida em 2011
diminuição dos preços dos produtos de mascara o que, em realidade, almente que o salário dos trabalhado- na Universidade Paul-Valéry Montpellier 3.
em função dos baixos salários, da des- parece um dumping generalizado. res franceses seja comparado ao de
valorização da moeda e do crédito com Na década de 1980, a expressão seus homólogos vietnamitas? Para
juros baixos). “dumping monetário” foi abandonada cumprirem esse objetivo oficial (“ga- 1 Agência France Presse (AFP), 12 jul. 2012.
2 Michael Porter, L’avantage concurrentiel des na-
Esse cenário – que certos “países (em teoria, denunciada pelo FMI) para nhar a batalha da competitividade”), tions [A vantagem concorrencial das nações],
cobaias”, considerados simplesmente dar lugar ao termo “desvalorização essas políticas respondem às tentati- Inter-Editions, Paris, 1993.
territórios low cost, não considerariam competitiva” – operação que consiste vas do setor empresarial de reduzir os 3 Ler François Cusset, “La foire aux fiefs” [A feira nos
feudos], Le Monde Diplomatique, maio 2007.
muito vantajoso – corresponde à reali- em manter o câmbio de uma moeda custos do trabalho. Surpreendente 4 Paul Krugman, “Competitiveness: a dangerous ob-
dade? Nenhuma economia, por mais artificialmente baixo para favorecer as coincidência, a busca pela competiti- session” [Competitividade: uma perigosa obses-
sofisticada que seja, pode se emanci- exportações. O termo dumping con- vidade, pouco contundente em sua lu- são], Foreign Affairs, Tampa, v.73, n.2, mar.-abr.
1994; “The competition myth” [O mito da competi-
par dos problemas de custos. A Alema- servava uma característica pejorativa, ta contra os deslocamentos de indús- tividade], The New York Times, 23 jan. 2011.
nha, muito usada como exemplo, é um razão pela qual foi substituído por trias, constituiria, assim, um álibi 5 Aiginger Karl, “From a dangerous obsession to a
país de forte tradição industrial. No “competitividade”, suficientemente cômodo para garantir ou aumentar a welfare creative ability with positive externalities”
[De uma perigosa obsessão à habilidade criativa
entanto, aumentou sua competitivida- respeitável para autorizar um governo remuneração do capital. Nesse senti- para gerar bem-estar com externalidades positi-
de por meio da estagnação salarial e a tomar medidas antissociais sem ser do, evocar os termos “território” ou vas], Journal of Industry, Competition and Trade,
de um imposto sobre o consumo con- estigmatizado. Em resumo, essa pala- “nação” constitui um artifício retóri- v.6, n.2, jun. 2006.
6 Alexis Jacquemin e Lucio Pench, Pour une compé-
siderado “social” (uma redução das vra permite formular de maneira poli- co, porque os benefícios não são cole- titivité européenne. Rapport du groupe consultatif
contribuições patronais compensadas ticamente aceitável a imposição de se tivos (noção de interesse geral ou na- sur la compétitivité [Por uma competitividade euro-
pelo aumento das taxas sobre o consu- adaptar à concorrência, estratégia que cional), e sim categorizados (aumento peia. Relatório do grupo de consultoria sobre a
competitividade], De Boeck, Bruxelas, 1997.
mo de bens duráveis). Essas medidas a população não necessariamente es- do lucro de alguns). 7 Christian Blanc, “Pour un écosystème de la crois-
unilaterais coincidem com a decola- colheu, mas que é um dos pilares da Por outro lado, a concorrência fron- sance. Rapport au premier ministre” [Por um ecos-
gem de seus excedentes comerciais. globalização neoliberal. tal dos sistemas produtivos gera um sistema do crescimento. Relatório ao primeiro-mi-
nistro], La Documentation Française, Paris, 2004.
Além disso, apesar dos mitos sobre o Promessa de prosperidade que de- efeito depressivo inerente sobre os sa- 8 Ler Anne Dufresne, “Le consensus de Berlin” [O
atraso insuperável, os países emergen- semboca em políticas de dumping: es- lários, a arrecadação de impostos e a consenso de Berlim], Le Monde Diplomatique,
tes se mostram cada vez mais compe- se discurso paradoxal de duplo senti- proteção social – todos eles com ten- fev. 2012.
9 Os Estados Unidos votaram, por exemplo, no Ato
titivos pelas inovações em filões im- do repousa sobre o dogma da dência ao reajuste para baixo. Esse fe- Antitruste de Sherman (1890) e o no Ato Antitruste
portantes do mercado (informática na concorrência entre sistemas produti- nômeno não prejudica apenas os assa- de Clayton (1914), para melhorar o funcionamento
Índia, energias renováveis na China). vos. Se a ideia de uma “concorrência lariados (perda do poder de compra) e do mercado.
10 Ler Till van Treeck, “Victoire à la Pyrrhus pour
Não seria ilusório, então, dividir o livre e perfeita” guiou diversas leis an- os Estados (redução da receita fiscal): l’économie allemande” [Vitória de Pirro para a eco-
mundo em países de competitividade titruste e antidumping,9 sua transpo- também reduz a demanda dos merca- nomia alemã], Le Monde Diplomatique, set. 2010.
18 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

CRISE NA EUROPA

Desobediência civil para


uma Europa de esquerda?
Após ratificar o Tratado de Lisboa, o Parlamento francês deve aprovar em outubro o Tratado sobre a Estabilidade, a Coordenação
e a Governança. A revolta de deputados e os protestos populares têm poucas chances de impedir uma operação que coloca as
finanças públicas à mercê de organismos internacionais. Porém, as vias para uma Europa progressista existem
POR BERNARD CASSEN*

U
ma Europa de esquerda – quer decisões. Os liberais nem sequer fa- cialmente hostis para obrigá-los a se distanciou do euroliberalismo – ela
dizer, realmente democrática, zem mistério a respeito. Como reco- realizar uma injeção de “social”. As- se pronunciou contra o TECG –, mas
social, solidária e ecológica, nhece um dos mais loquazes entre sim, o Pacto pelo Crescimento e o será difícil, vista sua heterogeneidade,
rompendo radicalmente com eles, Elie Cohen, administrador do Emprego, adotado, por iniciativa de que ela seja a instigadora de uma mo-
as políticas liberais – é possível? Te- grupo Pages Jaunes, de Electricité de Hollande, pelos 27 países no dia 28 bilização popular generalizada contra
mos boas razões para pensar que France-Energies Nouvelles e de Ste- de junho passado, que deveria in- as formas atuais da construção euro-
François Hollande nunca acreditou ria,2 “a aparelhagem de conjunto das fluenciar o Tratado sobre a Estabili- peia. Um teste de sua determinação
nisso. No dia 6 de maio de 1992, então políticas de mercado representa a re- dade, a Coordenação e a Governança acontecerá durante sua assembleia ge-
simples deputado, declarava ele na tri- gra que os países-membros da União (TECG), é apenas um arranjo políti- ral no dia 17 de outubro. Alguns de
buna da Assembleia Nacional: “Foi Europeia fabricaram para si, mais co sem mudança significativa. seus membros (principalmente os sin-
porque aceitamos a globalização que particularmente as nações latinas dicatos espanhóis) desejam que ela
nos submetemos hoje a restrições mo- (França, Espanha, Itália), para refor- decida ali grandes manifestações con-
netárias, orçamentárias, financeiras. A mar suas políticas nos setores protegi- tra a austeridade em todas as capitais
partir de então, o único debate que dos, nos quais o sindicalismo ainda A eventualidade de um antes da reunião de dezembro do Con-
conta é saber se aceitamos ou não as era forte e o consenso político proibia aumento significativo do selho Europeu.
regras do capitalismo internacional. Se as adaptações maiores”.3 Não poderia A eventualidade de um aumento
orçamento comunitário
entramos no jogo da globalização, en- ser mais claro... significativo do orçamento comunitá-
tão essas restrições financeiras, mone- É, portanto, razoável fingir desen- é excluída pelos rio é excluída pelos governos em sua
tárias e, subsidiariamente, europeias volver um projeto político de esquer- governos em sua busca busca febril por economias orçamen-
se impõem”.1 Em outros termos, a da dentro das estruturas atuais da febril por economias tárias e também – sem dúvida – por
construção europeia seria apenas um União, já que estas foram precisa- populações europeias cada vez mais
orçamentárias
subconjunto da globalização liberal. mente concebidas para se proteger hostis a tudo o que vem de “Bruxelas”.
contra essa eventualidade? Se res- Fingir que um novo tratado “de es-
pondermos negativamente a essa querda” é possível sem balançar o
pergunta, uma conclusão lógica se Para outras correntes de pensa- quadro institucional atual parece, en-
“A aparelhagem de impõe: é preciso mudar os tratados, mento, encontradas na França no seio tão, uma forma de ilusionismo.
por completo. Mas como, mesmo tra- da Frente de Esquerda – mesmo que
conjunto das políticas tando-se de um único parágrafo, se seus componentes não sejam unâni- Mudar o curso da história
de mercado representa modifica um tratado? Resposta: utili- mes a respeito do assunto – e nos Ver- Ainda resta outro procedimento
a regra que os países- zando as cláusulas de revisão que ele des, seria preciso contar com a emer- possível, que passa pelas urnas: em
-membros da União contém. Porém, no caso em questão, gência de um poderoso movimento um dado país, se as eleições conferi-
essas cláusulas preveem a regra da social europeu para refundar a União rem esse mandato, o governo pode fa-
Europeia fabricaram unanimidade... Basta então que o go- em bases progressistas. Medida-chave zer uma ruptura franca com as políti-
para si” verno de apenas um dos 27 Estados- nessa perspectiva: um forte aumento cas da União e, em um mesmo
-membros da União diga “não” para do orçamento comunitário (atual- movimento, estabelecer novos princí-
bloquear todo o procedimento de re- mente de 1% do PIB da União), permi- pios regendo o funcionamento nacio-
Quando, vinte anos depois, o ho- visão proposto por outro Estado e tindo transferências financeiras de nal e as relações com os países euro-
mem que se tornou presidente da Re- que não seja de sua conveniência. modo a fazer convergir as economias e peus que não fazem parte da União.
pública promete “reorientar” essa Com algumas exceções, e quais- as normas sociais dos Estados-mem- Tratar-se-ia de desobedecer à UE (sem
construção, ele sabe que não é possí- quer que sejam suas divergências,4 bros e a neutralizar todas as formas de necessariamente sair dela) e construir
vel, exceto nas margens... Toda velei- os partidos, movimentos e dirigen- dumping interno. ao mesmo tempo outro modelo que
dade de “reorientação” se choca con- tes que se reclamam de esquerda fe- O problema é que esse grande pas- poderia se tornar uma mancha de óleo
tra o dispositivo ideológico e cham os olhos a respeito desse en- so rumo a um “federalismo de esquer- para além das fronteiras nacionais. A
institucional da União Europeia (UE). trave institucional. Eles continuam da” parece utópico no atual horizonte. noção de desobediência europeia6 não
Não se trata apenas de tratados que raciocinando – ao menos publica- E não somente em razão da aparelha- implica obrigatoriamente a saída da
instauram a “concorrência livre e não mente – como se, em uma União de gem institucional descrita acima. Po- União, cuja possibilidade é reconheci-
falseada” como princípio organizador 27, e em breve mais de 30, 5 um novo demos lamentar, mas por enquanto da agora pelo Tratado de Lisboa. Um
de todas as políticas. Trata-se também tratado repousando sobre princípios existem apenas ilhas de espaço públi- governo “desobediente” teria interesse
de sua tradução concreta nas dezenas diferentes do de Lisboa pudesse ser co europeu. Em particular, a noção de em adotar uma estratégia “do fraco
de milhares de páginas do “acervo co- adotado. Para os dirigentes social- movimento social europeu não repou- contra o forte”, até mesmo chegando a
munitário” (base comum de direitos e -democratas, a “reorientação” pro- sa em uma realidade concreta. Nestes exasperar seus parceiros ao entravar
obrigações que vinculam os Estados metida por Hollande passaria por últimos tempos, a Confederação Euro- as engrenagens comunitárias – per-
da União Europeia): diretivas, regras, uma negociação com governos ini- peia dos Sindicatos (CES) com certeza manecendo nelas o maior tempo pos-
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 19

Ela poderia conduzir ao estabeleci-


© Thomas Peter / Reuters

mento de duas zonas monetárias rela-


tivamente homogêneas, mas articula-
das entre si; ou seja, de uma moeda
comum europeia (e não única), con-
versível em moedas estrangeiras, com
dispositivos de ajuste em acordo com
as moedas nacionais. Essa última so-
lução lembraria o Sistema Monetário
Europeu (SME), com apenas uma dife-
rença capital: no SME, o ecu,8 contra-
riamente ao euro, era uma moeda vir-
tual, e as moedas nacionais é que eram
convertidas. Sobre esse assunto, Jean-
-Pierre Chevènement, ex-ministro e
senador do território de Belfort, consi-
dera que “a única mudança razoável
seria uma saída organizada e acorda-
da em escala europeia do sistema da
moeda única”.9 No entanto, acrescen-
ta: “Essa mudança é impronunciável
por razões ideológicas e ainda mais
práticas”. O que é impronunciável nu-
ma dada conjectura deve sê-lo eterna-
mente? O aprofundamento da crise
poderia também libertar a palavra...
Esses terrenos explosivos impli-
cam um grande salto no desconheci-
do. O que é conhecido, por outro lado,
Angela Merkel e François Hollande conversam antes de reunião em Berlim é o preço a pagar, tão explosivo quan-
to, pela continuidade das políticas
atuais: uma austeridade com duração
sível – a fim de interromper a prolifera- inédita: de um lado, um ou diversos resto do mundo um modelo alterna- indeterminada lançando por terra as
ção de medidas liberais. Antes de governos “desobedientes”, apoiados tivo de vida em sociedade: um poten- conquistas sociais de muitas décadas
passar à ofensiva, convém primeiro por sua opinião pública, assim como cial de pensamento crítico, forças so- e a relegação programada da maioria
parar de perder terreno... por movimentos sociais de outros paí- ciais colocadas em movimento pela dos países da União ao status de regi-
Como se traduziria essa estratégia? ses; do outro, instituições (Comissão, crise e um peso demográfico e econô- mes vivendo sob a tutela da “troika”
Pela recusa em transpor em direito na- CJUE, Banco Central Europeu – BCE) mico significativo. Na América Lati- Comissão/BCE/FMI. Poderíamos en-
cional as diretivas de liberalização e sem nenhuma legitimidade democrá- na, uma construção interestados com- tão falar no passado sobre a democra-
“desmembramento” das conquistas tica, apoiadas por outros governos que partilhando essa lógica política de cia europeia e talvez até mesmo sobre
sociais já adotadas, pela não aplicação teriam muita dificuldade em levar ruptura com o liberalismo − claro, nu- a ideia de Europa.
das já transpostas e pela invocação do seus cidadãos em massa às ruas para ma escala muito mais reduzida − já
compromisso de Luxemburgo7 para apoiá-los. Nunca vimos os cidadãos passou do estágio de projeto ao de rea- *Bernard Cassen é professor emérito do
impedir a adoção daquelas em prepa- desfilarem para defender os bônus dos lização: a Aliança Bolivariana para os Instituto de Estudos Europeus da Universida-
ração. O mesmo tratamento seria re- banqueiros ou a diminuição dos salá- Povos de Nossa América (Alba). Ainda de Paris 8 e secretário-geral da associação
servado aos tratados assinados e, em rios e das aposentadorias! que o contexto regional seja muito di- Mémoire des Luttes.
alguns países, já ratificados – o Meca- ferente, essa experiência seria certa-
nismo Europeu de Estabilidade (MEE) mente uma fonte de inspiração útil.
e o TECG –, com o objetivo de salvar os Da mesma forma que, na América 1 Citado por Christophe Deloire e Christophe Dubois,
Circus politicus, Albin Michel, Paris, 2012, p.82.
bancos e impor a austeridade à perpe- Retorquimos que do Sul, a Alba coexiste com Mercosul, 2 Elie Cohen também é orientador no Centro Nacio-
tuidade aos povos europeus. Alguns sempre procurando influenciar seu
existe um valor superior: nal de Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em
francês) e professor da faculdade de Ciências Po-
vão objetar com razão que essa linha conteúdo, poderíamos imaginar a co-
de conduta equivale a desrespeitar a o respeito à soberania existência de duas configurações eu-
líticas. Ler Renaud Lambert, “Les économistes à
gages” [Os economistas engajados], Le Monde
“legalidade” comunitária. Retorqui- de cada povo, ropeias. Por exemplo, uma “de esquer- Diplomatique, mar. 2012.
mos que existe um valor superior: o regularmente deixado da”, inicialmente muito minoritária e, 3 La tentation hexagonale [A tentação hexagonal],
Fayard, Paris, 1996.
respeito à soberania de cada povo, re- no pior dos casos, reduzida a apenas
de lado pelos mecanismos 4 Ler Antoine Schwartz, “La gauche française bute
gularmente deixado de lado pelos me- um membro, mas com potencial para sur l’Europe” [A esquerda francesa mira a Europa],
canismos europeus, em particular pe- europeus crescer; e a outra liberal, como é o caso Le Monde Diplomatique, jun. 2011.
5 A Croácia entrará na União em 2013.
los mandatos da Corte de Justiça da hoje. Inevitavelmente, essa coexistên- 6 Ler Aurélien Bernier, Désobéissons à l’Union euro-
União Europeia (CJUE) de Luxembur- cia não seria de maneira nenhuma péenne! [Vamos desobedecer à União Europeia!],
go e por seus intermediários obrigados Esse confronto interviria em um calma e necessitaria de arranjos, se Mille et Une Nuits, Paris, 2011.
7 Trata-se da política dita da “cadeira vazia” pratica-
que se tornaram os juízes nacionais. momento histórico crítico: aquele em possível concertados, do mercado úni- da pelo general De Gaulle de junho de 1965 a ja-
Há espaço para pensar que essa que, apesar do enfraquecimento rela- co, chegando até a medidas de prote- neiro de 1966 para exigir o estabelecimento do fi-
contestação teria um grande eco em tivo de seu peso geopolítico, a Euro- ção comercial. Se as experiências de nanciamento da política agrícola comum (PAC),
regida pelo procedimento de maioria qualificada.
todo o continente e desembocaria em pa, sob o impulso de alguns gover- esquerda fossem bem-sucedidas, elas Pelo compromisso de Luxemburgo de 30 de janei-
uma crise política europeia sem pre- nos, teria ainda a capacidade de poderiam ter um efeito de treinamen- ro de 1966, o presidente francês obteve o restabe-
cedentes, provocando uma moratória influenciar o curso da história. Se, de to, permitindo, por fim, se tornar ma- lecimento da unanimidade e, portanto, do direito de
veto. Ler “La France hors du consensus européen”
sobre todas as medidas de liberaliza- fato, revisarmos os grandes Estados e joritárias na Europa. [A França fora do consenso europeu], Le Monde
ção cuja preparação e estabelecimen- conjuntos regionais, constataremos Que a zona do euro seja ou não de- Diplomatique, jan. 2007.
to constituem o cotidiano do trabalho que o Velho Continente poderia reu- sintegrada enquanto isso, a existência 8 “Ecu” é a redução de European Currency Unit
(Unidade de Moeda Europeia).
da Comissão. Essa crise se desenvolve- nir as três condições necessárias pa- de dois conjuntos europeus distintos 9 La Newsletter de Jean-Pierre Chevènement, 11
ria, no entanto, numa relação de forças ra tentar colocar em ação e propor ao levantaria a questão da moeda única. set. 2012.
20 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

ONDA CONSERVADORA

Novas expressões
do conservadorismo brasileiro
Segundo o cientista político André Singer, a quebra da hegemonia da esquerda no plano cultural e a
resistência aos programas sociais do lulismo e à resultante ascensão social estão na raiz das ondas conversadoras
que prosperam atualmente no Brasil
POR LUÍS BRASILINO*

DIPLOMATIQUE – Em debate na USP tenha sido a campanha das “Diretas não quero dizer que ela necessaria- tem o que perder, portanto, há motivos
realizado em agosto, o senhor identifi- já”. Só que, no plano mundial, come- mente vai se tornar hegemônica, mas para uma inclinação no sentido da
cou que a esquerda brasileira perdeu a çou a crescer o neoliberalismo, um fe- passou a haver uma competição. manutenção da situação que a benefi-
hegemonia no plano cultural que pos- nômeno ideológico que o [historiador cia. Porém, o que aconteceu é que uma
suía nas décadas de 1960 a 1980. Como inglês] Perry Anderson classifica como DIPLOMATIQUE – Qual é o papel das parte desse segmento, que estou cha-
se deu esse processo? o de maior sucesso de toda a história. Igrejas nesse processo? mando de classe média tradicional,
ANDRÉ SINGER – Parto de artigo fa- Ou seja, não é apenas um conjunto de ANDRÉ SINGER – Esse é um fator ex- entrou e participou da frente antidita-
moso do professor Roberto Schwarz1 políticas governamentais, mas uma tremamente importante, porque o dura durante os anos 1970 e 1980, ge-
em que ele sugere a ideia de que houve concepção de mundo que ganhou co- Brasil é um país onde o catolicismo rando uma simpatia por posições mais
um fenômeno inesperado depois do rações e mentes. Finalmente, entre o era e continua sendo muito forte. É à esquerda. Isso explica também certa
golpe de 1964: em lugar de uma retra- fim dos anos 1980 e começo dos 1990, visível que a inflexão da Igreja Católi- entrada que o PT chegou a ter nesses
ção da cultura de esquerda, tivemos o neoliberalismo entrou no Brasil. ca para a esquerda nos anos 1960 e segmentos no começo de sua trajetó-
um período de expansão e até de hege- 1970 impactou muito no sentido des- ria. Essa situação mudou radicalmen-
monia cultural – não política − da es- sa hegemonia cultural. A influência te com o surgimento do lulismo, um
querda. Fiquei com isso na cabeça e da Igreja Católica no Brasil era enor- processo dos últimos dez anos.
me ocorreu, embora nunca tenha po-
“A inflexão da me, continua sendo muito grande, e,
dido escrever a respeito, que talvez es- Igreja Católica para quando ela virou para a esquerda, ar- DIPLOMATIQUE – É desse realinha-
sa hegemonia cultural tenha persisti- a esquerda nos rastou camadas extensas da socieda- mento que o senhor trata em seu novo
do até o final dos anos 1980. Isso anos 1960 e 1970 de. Nos anos 1980, a onda neoliberal livro?2
porque, passado o período mais duro influenciou a Igreja com uma virada ANDRÉ SINGER – Tem a ver, mas nes-
da repressão, que começou com o AI-5
impactou muito para a direita que começou com o pa- se caso é um fenômeno particular
em dezembro de 1968 e foi até a cha- no sentido dessa pa João Paulo II e lentamente foi en- dentro do realinhamento: a classe mé-
mada abertura com o [Ernesto] Geisel hegemonia cultural” trando no Brasil. Isso é muito impor- dia tradicional se fechou em bloco
em 1974, essa hegemonia cultural da tante para entender a presença da contra as políticas sociais promovidas
esquerda voltou. Lembro bem que, no hegemonia cultural da esquerda e pelo lulismo. Parece ser uma reação
final dos anos 1970 e começo dos 1980, depois sua quebra. A esse fator se so- ao processo de ascensão social de se-
praticamente não se encontravam DIPLOMATIQUE – A eleição de 1989 é ma um segundo, que é a avalanche tores que antes estavam estagnados
pensadores, articulistas e ideólogos um marco dessa inflexão? pentecostal e neopentecostal no Bra- numa condição de muita pobreza. É
que tomassem posições abertamente ANDRÉ SINGER – É um marco desse sil. O crescimento das confissões um fenômeno muito recente e não es-
de direita. Estávamos sob hegemonia processo, que depois foi aprofundado evangélicas parece ser compatível tá bem pesquisado, mas a gente vê,
política da direita, mas no plano cultu- pelas políticas do governo Fernando com a proliferação de uma ideologia ouve conversas, lê no jornal essa rea-
ral a hegemonia da esquerda conti- Henrique Cardoso. Mas não é só isso, mais conservadora. É difícil fazer ção à presença de pessoas de renda
nuou e até se acentuou no final dos porque estamos falando de hegemo- afirmações categóricas, porque esse mais baixa nos aeroportos. O que isso
anos 1970, quando se iniciou o que tal- nia cultural. O que acontece é que os universo é muito diversificado, mas a significa? Esses espaços eram exclusi-
vez tenha sido, por sua capilaridade, o valores de mercado, de ascensão indi- impressão que tenho é que as confis- vos; só pessoas com renda mais alta
maior movimento grevista ocorrido vidual, de competição e os valores li- sões pentecostais e neopentecostais podiam frequentar.
no Brasil. Esse movimento de base ge- gados a uma intensa mercantilização tendem a favorecer uma percepção
rou o que chamo de “onde democráti- dos espaços públicos começaram a se de que a melhora das condições de vi- DIPLOMATIQUE – Sintomático disso
ca”, aproximadamente de 1978 a 1988, tornar correntes, sobretudo na cha- da depende do esforço individual, são as reclamações por parte das clas-
com uma profusão de movimentos or- mada classe média tradicional e de- não de movimentos coletivos. ses média e alta sobre uma crescente
ganizados configurando uma demo- pois em estratos médios mais amplos. dificuldade de encontrar empregados
cratização da sociedade por baixo, e Então, passamos a assistir ao surgi- DIPLOMATIQUE – O senhor também domésticos.
isso acentuou ainda mais a hegemonia mento de manifestações ideológicas, identifica outras ondas conservadoras ANDRÉ SINGER – É, isso é o elemento
cultural da esquerda. Paralelamente, com articulistas, autores de livros e até que extrapolam o plano cultural, es- que coloquei no meu livro Sentidos do
no final dos anos 1970, começo dos artistas, produtores influentes, que pecialmente entre a classe média pau- lulismo. Chama muito minha atenção
1980, tem início no mundo a onda defendiam abertamente esses pontos listana. Quais são elas? também porque houve realmente uma
neoliberal. de vista, algo que não se encontrava ANDRÉ SINGER – Em termos de classe mudança no trabalho doméstico, com
até meados dos anos 1980. Assim, a propriamente, não há dúvida de que elevação da renda e melhora das con-
DIPLOMATIQUE – E o Brasil estava presença quase total que a esquerda ti- esse segmento tem uma propensão dições de trabalho. Isso tem a ver com
em descompasso com essa tendência. nha no plano da cultura foi quebrada e conservadora por razões materiais. o fato de que caiu o desemprego e en-
ANDRÉ SINGER – O neoliberalismo passou a haver uma competição na Trata-se de uma parcela dentro de traram em cena programas sociais
no Brasil foi retardado por essa con- qual continua existindo uma esquer- uma sociedade muito desigual como a que criaram um piso, dando a essas
juntura, cujo emblema maior talvez da, mas a direita é crescente. Com isso, brasileira, que tem privilégios, que pessoas a possibilidade de escolher
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 21

não trabalhar por menos de certa país, a oposição foi obrigada a jogar ferro a cada momento em que se preci- que, como eu disse em 2010, continuo
quantia, o que é extremamente impor- com as regras do jogo impostas por es- sa baixar os juros, aumentar o gasto acreditando que este momento é espe-
tante se considerarmos que existem se movimento. Essa é a principal con- público ou controlar o câmbio. Essas cial, porque se abriu uma janela de
cerca de 6 milhões de empregados do- sequência do realinhamento. Ele fixa decisões passam por um tremendo oportunidade para o diálogo da es-
mésticos no Brasil. É um elemento uma agenda, por isso o lulismo é tão embate político que não está nas ruas; querda com os segmentos mais pobres
desse conjunto de mudanças que está importante, porque determinou uma é preciso ler o jornal com atenção para da população. Isso é muito interessan-
ocorrendo no Brasil e, aparentemente, agenda no país, e esta é, fundamental- perceber. O lulismo propõe mudan- te porque, sobretudo no Nordeste, esse
há uma reação a isso por parte da clas- mente, a redução da pobreza. Sendo ças, mas sem radicalização, sem um era o setor que votava normalmente
se média. Há também uma terceira essa a agenda, a oposição não pode ex- confronto extremado com o capital e, com o conservadorismo e agora está
onda, que é ainda menos conhecida e pressar nitidamente o ponto de vista portanto, com a manutenção da or- com o lulismo. É uma oportunidade
mais recente: um neoconservadoris- de sua base social, porque assim ela dem. Nesse sentido, é um fenômeno ímpar de politizar esses setores, no
mo em uma parcela bem pequena do perderia as eleições. Essa é a razão pela híbrido, que captura um tanto desse sentido da transformação social. No
conjunto das 30 milhões de pessoas qual o candidato do PSDB em 2010, o conservadorismo. Por isso uma análi- entanto, de 2010 para cá, passados
que ultrapassaram a linha de pobreza ex-governador José Serra, propôs du- se mais simplista e dicotômica não quase dois anos, não vejo o PT muito
nos anos Lula, um segmento que deu plicar o número de pessoas atendidas consegue dar conta da complexidade engajado nesse tipo de trabalho. Eu às
um passo além, subindo não um, mas pelo Bolsa Família, em lugar de com- da situação que estamos vivendo. vezes temo que essa oportunidade seja
dois ou três degraus. Um fator disso batê-lo, como gostaria a classe média perdida, uma oportunidade que está
tem a ver com o medo da mudança. Es- tradicional. Desse modo, ocorre um aberta para toda a esquerda. Porém, os
sas pessoas teriam certa consciência fenômeno curioso: há um crescimento setores da esquerda que não estão no
de que o processo de ascensão não du- da ideologia conservadora na socieda- “O lulismo é uma PT têm tido dificuldade para compre-
rará para sempre e, portanto, não se- de, mas ela não encontra expressão na nova síntese que junta ender os avanços sociais e simultanea-
riam simpáticas a políticas para pro- política. Quanto aos meios de comuni- elementos conservadores mente o impacto conservador que o
mover a ascensão de novas camadas, cação, nós precisamos entender o se- lulismo representa. Há que se entender
pondo em risco aquilo que já ganha- guinte: o conservadorismo no Brasil é
e não conservadores. essa contradição e, ao não entender,
ram. Outro elemento desse neocon- muito antigo e tem um lastro histórico Por isso é tão perde-se a plataforma de diálogo com
servadorismo é que, às vezes, se nota profundo. O diferente nessa história contraditório e difícil os setores que estão sendo beneficia-
entre aqueles que sofreram um pro- foi o período de hegemonia cultural da de entender” dos por essas políticas.
cesso de ascensão social uma antipa- esquerda. Agora, estamos voltando
tia com os programas sociais. É para um momento anterior, mas que é *Luís Brasilino, jornalista, é editor do Le
curioso. É como se essas pessoas se de uma certa normalidade, porque o Monde Diplomatique Brasil.
“dessolidarizassem” daquelas que Brasil tem esse lastro conservador. Os DIPLOMATIQUE – Em 2010, o senhor
ainda precisam da transferência de meios de comunicação têm um papel deu uma entrevista destacando a im-
renda, compartilhando uma impres- nisso? Certamente. Mas é preciso tam- portância de o PT se manter na es- 1 “Cultura e política, 1964-69”. In: Roberto
Schwartz, O pai de família e outros estudos, Rio de
são de que o processo de ascensão so- bém considerar que a análise dos querda para politizar esse subproleta- Janeiro, Paz e Terra, 1978.
cial decorre do esforço individual, e meios de comunicação não deve ser riado.3 É isso que pode frear essas 2 Singer identifica que, desde a reeleição do presi-
não de políticas coletivas. Um tercei- feita em bloco; eles não são uma coisa ondas conservadoras? dente Lula em 2006, houve uma aproximação do
subproletariado em direção ao lulismo e um distan-
ro fator, mais específico da cidade de só, há certa heterogeneidade. [Porém,] ANDRÉ SINGER – O Brasil ainda tem ciamento do PT por parte da classe média tradicio-
São Paulo, é a questão do empreende- Partes do sistema de mídia certamente uma herança daquilo que chamei de nal. Ver Os sentidos do lulismo, Companhia das
dorismo. Isto é, há uma quantidade compõem essa primeira onda conser- grande onda democrática dos anos Letras, São Paulo, 2012.
3 “Cabe ao PT politizar o subproletariado”, Brasil de
de pessoas envolvidas com pequenos vadora que está quebrando a hegemo- 1980. Que herança é essa? Primeiro a Fato, São Paulo, n.374, 29 abr.-5 maio 2010.
negócios e tentando melhorar de vida nia cultural da esquerda. Constituição, com mecanismos de
por meio deles. Bom, esse pequeno participação direta e, além disso, dis-
empreendedor tem uma tendência DIPLOMATIQUE – Como o lulismo, positivos efetivos de organização da
conservadora, justamente porque ele um fenômeno tão contraditório, opera sociedade. Grandes movimentos so-
só conta consigo mesmo, diferente- nessa chave? ciais se organizaram e uma parte deles
mente de um assalariado. ANDRÉ SINGER – O lulismo é uma no- segue atuando na sociedade, enquan-
va síntese que junta elementos conser- to novos surgem, embora também seja
vadores e não conservadores. Por isso possível identificar certos movimen-
é tão contraditório e difícil de enten- tos que declinaram. O Brasil ainda tem
“Esse pequeno der. O lulismo pegou um apreço pela energia organizativa de baixo para ci-
empreendedor tem uma manutenção da ordem que tem resso- ma. Segundo pesquisas que li, [essa
tendência conservadora, nância nos setores mais pobres da po- energia] foi incrementada pelo Bolsa
justamente porque ele pulação. Nesse ponto, retomo a ques- Família. Principalmente em comuni-
tão de que, na formação social dades do interior, as mulheres estão
só conta consigo mesmo, brasileira, se tem um vasto subproleta- adquirindo certa autonomia a partir
diferentemente de riado que, por estar aquém da condi- do momento em que têm um cartão,
um assalariado” ção de proletário, não tem como parti- não dependem de mais ninguém e re-
cipar da luta de classes, a não ser em cebem uma quantia de dinheiro por
situações muito especiais e definidas. mês, recurso a que elas nunca tiveram
Assim, o que o lulismo fez foi juntar es- acesso e que é, sobretudo, constante,
DIPLOMATIQUE – O que organiza es- se apreço pela ordem com a ideia de com o qual elas podem contar. Há indi-
se movimento conservador? Não há que é preciso mudar. Que tipo de mu- cações de que essas mulheres estão se
um partido que canalize essas ondas. dança? A redução da pobreza por meio organizando, por exemplo, em coope-
Pode-se dizer que a mídia cumpre es- da incorporação do subproletariado rativas, empreendimentos igualitários
se papel? ao que chamo de cidadania trabalhis- de mudança de sua condição de vida.
ANDRÉ SINGER – Essas ondas conser- ta. Desse modo, o lulismo propõe Tudo que seja organização da socieda-
© Daniel Kondo

vadoras não estão sendo expressas no transformações por meio de uma ação de pela base ajuda a frear essas ondas
plano da política, sobretudo da políti- do Estado, mas que encontra resistên- conservadoras. Não há motivo para
ca partidária. Por quê? Porque nesse cia do outro lado. Basta prestar aten- imaginar que essa onda conservadora
ponto entra em jogo outro fator, que é ção no noticiário para ver como o em- venha de maneira avassaladora, que
o realinhamento eleitoral. À medida bate político está posto o tempo todo não há nada do outro lado. Sobre a
que o lulismo obteve uma maioria no nas decisões econômicas, no braço de questão do PT, gostaria de observar
22 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

ONDA CONSERVADORA

A mídia contra a democracia


No caso brasileiro, um verdadeiro “consenso forjado” foi paulatinamente se formando entre os órgãos da mídia
desde a chamada “Nova República” (1985), influenciando decisivamente a reversão do modelo econômico brasileiro
instalado – embora com transformações – desde os anos 1930
POR FRANCISCO FONSECA*

Os ventos neoliberais e conservadores aos valores religiosos (em alguns ca- mentos entre a década de 1980 até o biente nebuloso, porque, além do
sos, em acordo com as tradições da crash de 2008, sem que, mesmo nos mais, procuram se legitimar de modo

R
e o papel da mídia
efletir sobre o conjunto dos “democracia cristã”), com implicações dias atuais, tenha sido inteiramente permanente em nome da ideologia da
meios de comunicação – a “mí- no papel da família na constituição de superada, teve e tem nos órgãos da mí- “opinião pública”, conceito fugidio,
dia” – implica mobilizar teo- políticas públicas; papel crucial, vin- dia o papel primordial como “apare- maleável e marcado fundamental-
rias, conceitos e a história com culado aos interesses do G7, desempe- lho privado de hegemonia”: conceito mente pela opinião de determinados
vistas a caracterizá-los e a compreen- nhado pelas chamadas “agências mul- criado por Antonio Gramsci que sinte- grupos capazes de expressar opiniões
der seu papel na sociedade capitalista, tilaterais”, tais como o FMI, o BID e o tiza a atuação desses órgãos como específicas, por meio da própria mí-
particularmente no Brasil. Bird na aplicação concreta dessas polí- agentes político-ideológicos voltados à dia, adquirindo dessa forma o status
Observando os fenômenos que se ticas nos “países periféricos”;1 fusão e organização dos interesses de deter- de “verdade”, pois potencialmente ca-
desenvolvem desde a década de 1980, concentração de empresas dos mais minadas classes e segmentos sociais, paz de se tornar dominante. Essa ima-
percebe-se uma notável guinada con- distintos setores, o que inclui a própria assim como à formação e vetos das nente confusão entre as esferas priva-
servadora (em termos econômicos, po- mídia, criando-se poderosos oligopó- agendas dos governos. da e pública define a atuação da mídia,
líticos, sociais e ideológicos) em dife- lios empresariais; extrema liberaliza- Deve-se notar que, além da referida sobretudo no Brasil.
rentes sociedades, que assim se ção dos mercados financeiros, cujas atuação como aparelho de hegemo-
expressam: desmonte, embora parcial consequências são sentidas até hoje; nia, estruturalmente a mídia privada Emergência histórica de direitos versus
em razão das resistências sociais, do entre diversos outros aspectos. Esses opera numa zona cinzenta entre os in- o modus operandi da mídia no Brasil
Estado de bem-estar social; revaloriza- são elementos gerais da agenda neoli- teresses privatistas (dela própria como Historicamente, a mídia privada
ção ideológica da “meritocracia”, sinte- beral/conservadora que, contudo, foi empresa capitalista que objetiva o lu- nasce e se desenvolve como decorrên-
tizada pela ideia mítica do self made adotada de formas distintas em cada cro) e privados (de grupos sociais e cia da sociedade capitalista, represen-
man, desconsiderando-se as estrutu- sociedade específica. econômicos representados pelos tando os novos segmentos dominan-
ras sociais; efetivação de um conjunto Nenhuma dessas mudanças pode meios de comunicação) e a esfera pú- tes. Contudo, desde a Revolução
de “reformas orientadas para o merca- ser compreendida sem o atuante pa- blica.3 A defesa de interesses privados Francesa a preocupação com o direito
do”, sintetizadas pela ideologia neoli- pel da mídia nas mais diversas socie- – notadamente o das classes médias e à informação – num contexto do reco-
beral, tais como a reforma gerencial do dades. No caso brasileiro, foco deste do capital – no âmbito da esfera públi- nhecimento de direitos em sociedades
Estado (no que tange a seu núcleo ideo- artigo, um verdadeiro “consenso for- ca, lócus em que diversos interesses se desiguais – constitui fator crucial ao
lógico privado) e os amplos processos jado” foi paulatinamente se formando contrapõem e onde a ideologia do próprio conceito do “Estado de direito
de abertura dos mercados nacionais, entre os órgãos da mídia desde a cha- “bem comum” e do “interesse geral” democrático”. No artigo 11º da “Decla-
de privatização e de desnacionaliza- mada “Nova República” (1985), in- procuram se colocar ideologicamente ração dos Direitos do Homem e do Ci-
ção; ênfase em políticas sociais tercei- fluenciando decisivamente a reversão acima dos diversos interesses específi- dadão” da Revolução Francesa, assim
rizadas (à iniciativa privada) e focaliza- do modelo econômico brasileiro ins- cos, marca a atuação da mídia. Em ou- é tratado o tema da comunicação: “A
© Daniel Kondo

das em oposição à universalização de talado – embora com transformações tras palavras, são agentes privados livre comunicação dos pensamentos e
direitos; desconfiança quanto à parti- – desde os anos 1930.2 que procuram representar o “todo”, o opiniões é um dos direitos mais pre-
cipação popular na tomada de deci- A “era neoliberal e conservadora”, “público”, ocultando seus verdadeiros ciosos do homem: todo cidadão pode,
sões públicas; aproximação da política como foram considerados os aconteci- interesses. Logo, transitam num am- portanto, falar, escrever, imprimir li-
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 23

vremente, embora deva responder pe- comunitários foram apropriados far- Estado, portanto contrário ao caráter *Francisco Fonseca é mestre em Ciência Po-
lo abuso dessa liberdade nos casos de- tamente por igrejas que se confundem monopolista deste; poder esse que, lítica e doutor em História, professor de Ciência
terminados pela lei”. Já no século XX, com empreendimentos empresariais, reitere-se, é constituído por e dirigi- Política na FGV-SP e autor de diversos arti-
após a Segunda Guerra Mundial, a impondo às diversas faces do país (es- do a interesses privados e voltados à gos e livros, entre os quais O consenso forja-
“Declaração Universal dos Direitos tético-cultural, racial, regional e polí- conservação do statu quo. Apesar do – A grande imprensa e a formação da
Humanos”, em seu artigo 19º, assim tica etc.) a não representação de seus dessas características, a ideologia da agenda ultraliberal no Brasil (2005) e Libera-
define o direito à comunicação: “Todo universos simbólicos na mídia. Quem “neutralidade”, da “independência”, lismo autoritário – Discurso liberal e práxis
indivíduo tem direito à liberdade de se informa apenas pelos grandes veí- do “apartidarismo” (lato e estrito) e autoritária na imprensa brasileira (2011), am-
opinião e de expressão, o que implica culos de comunicação privados (jor- da busca pelo “bem comum” faz par- bos pela Editora Hucitec.
o direito de não ser inquietado pelas nais, revistas, rádios, TVs e mesmo os te da retórica “pública” desses agen-
suas opiniões e o de procurar, receber grandes portais da internet vincula- tes político-ideológicos privados, que
e difundir, sem consideração de fron- dos a esses meios) tem visão parcial e erigem estratégias retóricas como 1 O caso da privatização da água – inclusive da chu-
teiras, informações e ideias por qual- relativamente homogênea do país, em “opinião pública”, “liberdade de ex- va – na Bolívia, por pressão dos bancos multilate-
rais, o que gerou a famosa “revolta das águas de
quer meio de expressão”.4 Embora am- contraste à sua enorme diversidade; e pressão”, “defesa da sociedade”, “sen- Cochabamba”, é sintomático. Ver www.youtube.
bas expressem momentos históricos c) a seletividade de suas coberturas, is- timento nacional”, entre tantos ou- com/watch?v=aTKn17uZRAE.
específicos e novas correlações de for- to é, por razões políticas conjunturais tros, para se legitimar. 2 Analisei a construção desse “consenso” e o intitu-
lei como “forjado”, uma vez que se tornou hegemô-
ça (predominância do capitalismo e (o que inclui apoios e vetos partidários nico, no livro O consenso forjado – A grande im-
da filosofia política liberal), as declara- e eleitorais), ideológicas ou relaciona- A democratização do sistema midiático prensa e a formação da agenda ultraliberal no
ções representam ainda hoje marcos das a interesses que defendem, ques- como pressuposto à democracia no Brasil7 Brasil, Hucitec, São Paulo, 2005.
3 Esfera pública é uma terminologia polissêmica e
no pensamento político, jurídico e fi- tões e problemas ou não retratados ou O conjunto dos aspectos analisa- controvertida, tendo em vista os pressupostos
losófico ocidental e são tomadas como retratados com ênfases completamente dos neste artigo leva à conclusão de adotados por matrizes teóricas distintas. O marxis-
balizas para a democratização das so- distintas. Exemplos marcantes refe- que não haverá democracia sem a re- mo nega esse conceito.
4 O artigo 19 dessa declaração inspirou a criação da
ciedades no que tange ao direito à ex- rem-se à omissão das coberturas das forma democratizante do sistema mi- ONG Article 19: www.article19.org, também pre-
pressão de ideias, à informação e à co- mazelas do processo de privatização diático, desconcentrando-se sua pro- sente no Brasil: artigo19.org.
municação. Em outras palavras, durante os governos Collor e FHC, as- priedade, revendo-se o processo de 5 Particularmente o descumprimento e/ou não regu-
lamentação dos artigos 220 (proibição de monopó-
exprimem a lógica da “democracia li- sim como dos escândalos “não investi- concessão e renovação, permitindo-se, lios), 221 (exigências para programação) e 223
beral” em termos políticos. gados” pela mídia em relação a este úl- por meios político-institucionais, que (complementaridade entre os sistemas público,
timo: casos da “emenda da reeleição”, vozes distintas e plurais tenham aces- privado e estatal) da Constituição Federal. Esse
quadro levou recentemente à constituição de blogs
do “Banestado”, entre tantos outros, so à comunicação e à informação, en- e fóruns digitais alternativos que se contrapõem aos
em contraste à sanha investigativa nos tre inúmeras outras bandeiras levanta- órgãos da grande mídia, que é chamada, criativa e
Cerca de onze famílias governos Lula. No caso deste, o cha- das, por exemplo, pelos movimentos sintomaticamente por esses blogs, de “PIG”: Parti-
do da Imprensa Golpista. Já na Argentina foi apro-
controlam, mesmo depois mado escândalo do “mensalão” é re- sociais em prol da democratização da vada há pouco tempo a importante Ley de Medios,
da redemocratização, tratado como inédito na vida política comunicação, tais como o Fórum Na- que democratiza o sistema midiático: www.argenti-
brasileira (forma e conteúdo) e, mais cional pela Democratização da Comu- na.ar/_es/pais/nueva-ley-de-medios/C2396-nue-
um número ainda, como o “mais sórdido” já pro- nicação (FNDC – www.fndc.org.br).8
va-ley-de-medios-punto-por-punto.php.
6 Deve-se ressaltar, além do mais, que o papel de
incrivelmente grande duzido “por um partido político”. É Deve-se ressaltar que a democra- investigar é prerrogativa do Estado, cujas funções
de meios e modalidades curioso como toda a lógica privatizan- cia é concebida como um sistema po- são conferidas pela Constituição à luz do conceito
maior do Estado de direito democrático, por meio
de comunicação te, no sentido de predominância de in- lítico garantidor de direitos individu- de instituições oficiais e impessoais, tais como, no
teresses privados, do sistema político ais e coletivos amplos e diversos, entre plano federal, o Ministério Público (no âmbito crimi-
brasileiro (casos do financiamento os quais os vinculados à manifestação nal e de direitos difusos), a Corregedoria Geral da
União (quanto à fiscalização de verbas e contratos
privado, notadamente extralegal de de interesses e de opiniões, o que im- federais), a Polícia Federal (no tocante a crimes
Essa tradição “liberal-democráti- campanhas, do multipartidarismo ex- plica a possibilidade de pessoas e gru- federais, de naturezas diversas) e o Conselho de
ca” tem sido, no Brasil, reiteradamente tremamente flexível que leva à neces- pos se comunicarem e se informarem Controle de Atividades Financeiras (Coaf), relacio-
nado à fiscalização de movimentações financeiras.
contrastada, uma vez que o sistema sidade de coligações para vencer e go- por meios distintos, garantindo a plu- A lógica do Estado democrático, baseada nos con-
midiático organizado pela ditadura vernar, com toda sorte de barganhas, e ralidade de pontos de vista de uma da- troles internos e externos, que constam do direito
militar instaurada em 1964 não foi es- da facilidade em criar e fundir parti- da sociedade. constitucional e administrativo, e, mais moderna-
mente, no chamado “controle social” (da socieda-
sencialmente transformado. Cerca de dos, entre outros aspectos) é desconsi- O conservadorismo político (pres- de politicamente organizada perante o Estado e
onze famílias controlam, mesmo de- derada em nome da acusação de um são pela diminuição dos direitos so- mesmo perante entidades privadas, como a mídia),
pois da redemocratização, um núme- agrupamento político. A seletividade é, ciais e da participação popular nas de- são os instrumentos de investigação e fiscalização
nos quais cada sociedade deve se fiar.
ro incrivelmente grande de meios e portanto, política, ideológica e edito- cisõespúblicas), econômico-financeiro 7 O mundo digital (possibilidades abertas pela inter-
modalidades (legais e “cruzadas”) de rial, e marca decisivamente o modus (a adesão maciça à agenda neoliberal net e pelas redes sociais) não é, até o momento,
comunicação, acarretando um con- operandi da mídia brasileira desde os “orientada para o mercado”), simbóli- significativamente distinto dos meios tradicionais
aqui analisados, pois, sobretudo no Brasil, os por-
junto de poderes que se opõe aos pres- anos 1940. Deve-se observar, dessa co-comportamental (ênfase na merito- tais são dominados pelas mesmas empresas de
supostos teórico-filosóficos tanto da forma, o contraste entre a cantilena – cracia individual em detrimento de di- comunicação tradicionais; o acesso ao mundo di-
democracia quanto do próprio “libe- professada pelos meios de comunica- reitos coletivos), entre outras formas gital é reduzido, comparativamente à população, e
localizado nas classes médias; além de a utiliza-
ralismo democrático”. ção, pelos “liberais” e pelos crentes da de manifestação da agenda conserva- ção, pela maior parte dos usuários, concentrar-se
Vejamos algumas dessas consequên- “sociedade civil” liberal – de que a mí- dora mundial e brasileira, teve e tem na em fins interpessoais e de entretenimento.
cias concretas no Brasil: a) o sistema de dia pratica um “jornalismo investiga- mídia um ator político-ideológico que 8 Ver também outros movimentos que lutam pela de-
mocratização da mídia: www.comunicacaodemo-
concessão e renovação das concessões tivo”, por sua vez crucial e pressuposto vem atuando de forma uníssona em fa- cratica.org.br, www.paraexpressaraliberdade.org.
de rádios e TVs é controlado politica- à democracia.6 Embora na democracia vor do retrocesso político e social. br, www.direitoacomunicacao.org.br, www.intervo-
mente pelo Congresso Nacional, e par- deva haver liberdade de fiscalizar e O sistema midiático brasileiro, zes.org.br, www.cartamaior.com.br e www.tver.
org.br. A agenda da comunicação democrática é
celas dos parlamentares são também mesmo de investigar algo ou alguém constituído por órgãos privados, co- ampla e inclui acesso digital (equipamentos,
proprietárias desses meios, processo por qualquer pessoa ou instituição, merciais, partidários (em sentido lato combate ao analfabetismo digital, gratuidade da
que implica simultaneamente brutal sua legalidade e legitimidade estão su- e/ou estrito), sem freios e contrapesos, banda larga etc.), entre inúmeras outras bandei-
ras: todas fundamentais, sobretudo aos mais po-
intransparência decisória, promiscui- jeitas essencialmente à contestação, à elitizados e oligopolizados, tem contri- bres e excluídos na sociedade brasileira.
dade política entre detentores de revisão e à aceitação ou não do poder buído fortemente para o retardo da 9 Elaborei reflexões teóricas e empíricas acerca de
meios de comunicação e do poder po- público como “provas válidas”. Por is- democracia brasileira, que, quando uma agenda de reforma da mídia no Brasil, compa-
rativamente a outros países: “Mídia e poder: interes-
lítico e descumprimento de normas so, aceitar a mídia como agente de in- comparada a outras sociedades, tem ses privados na esfera pública e alternativas para
constitucionais que regulam a comu- vestigação, sem mediações conceitu- muito a se desenvolver.9 A experiência sua democratização”. In: Fábio de Sá e Silva et al.
nicação; 5 b) majoritariamente, a mídia ais e proteção aos envolvidos, como o histórica permite afirmar que tais ór- (orgs.), Estado, instituições e democracia: demo-
cracia, Brasília, Ipea, 2010, Livro 9, v.2. Disponível
brasileira é privada e comercial, isto é, direito de resposta, por exemplo, im- gãos atuam conservadoramente con- em: www.ipea.gov.br/sites/000/2/livros/2010/Li-
há ainda poucos meios estatais, e os plica conceber um poder paralelo ao tra a democracia! vro_estadoinstituicoes_vol2.pdf.
24 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

ONDA CONSERVADORA

“Pode deixar que eu cuido disso”:


a infantilização do voto
A “despolitização” induz a maioria das classes populares a perceber as eleições como o único meio legítimo de fazer política.
Essa contração foi acompanhada por um deslocamento: as eleições “acontecem” principalmente na TV e no rádio. Lá chegando,
incorporaram-se a um dispositivo que, além do conteúdo conservador, transforma tudo em entretenimento
POR LÚCIO FLÁVIO RODRIGUES DE ALMEIDA*

P
rocessos de infantilização das nador; que é administrador experiente

© Daniel Kondo
campanhas eleitorais sempre e competente; que, assim como foi o
ocorrem nas democracias de maior ministro de tal área, será o
massa. No esforço para captu- maior prefeito. E que, ao contrário do
rar os votos da maioria em sociedades adversário, não é amigo do Maluf.
em que o poder político e econômico é É claro que existem diferenças po-
detido por uma minoria, algum tipo líticas entre as candidaturas relevan-
de manipulação é imprescindível. Re- tes, aí se incluindo partidos cuja com-
ferindo-se ao século XIX, quando sur- petitividade eleitoral é ínfima. E,
giram as primeiras democracias elei- mesmo em seus melhores momentos,
torais, Eric Hobsbawm observou as as disputas eleitorais filtram e refra-
afinidades entre a era da democratiza- tam os principais interesses das forças
ção e a hipocrisia política.1 sociais. Mas um importante aspecto
Estudiosos sofisticados não apenas comum em uma cidade altamente po-
teorizaram como justificaram esse litizada como São Paulo consiste no
processo, considerando-o um compo- peso extraordinário que adquire a in-
nente positivo de qualquer democra- vel que o fantasma de Schumpeter ron- bem como por que, historicamente, tu- terpelação do eleitorado como essen-
cia possível. Foi o caso de Joseph de as atuais eleições brasileiras, do isso desaparece assim que se encer- cialmente passivo. Lutas populares,
Schumpeter, em seu clássico Capitalis- especialmente no “horário político” da ra a estação de caça aos votos. nem pensar. Basta o voto (claro que
mo, socialismo e democracia,2 publica- TV e nas matérias publicadas pela Na vida real, os “patrões” não costu- em mim!) para mudar o destino da
do em 1942 e hoje mais influente do grande imprensa. Até porque, como se mam rasgar dinheiro. Não gastam seu maioria daqueles a quem a propagan-
que nunca. Para esse autor austríaco trata de pleitos municipais, é mais fácil precioso tempo assistindo ao show dos da eleitoral se dirige. Um grande autor,
exilado nos Estados Unidos, é teorica- a disseminação da ideia de que basta horários eleitorais em que um promete em sua fase juvenil, fez uma crítica
mente incorreto e politicamente arris- um bom gerente para que os principais mudar aeroportos ou erguer aerotrens; mordaz desse duplo mundo, o “celes-
cado levar a sério a etimologia de de- “problemas” estejam em boas mãos. outro afirma com a maior seriedade tial”, onde, apagadas as diferenças, to-
mocracia (poder do povo). O povo Não exageremos nas simplifica- que eliminará congestionamentos de dos viram “cidadãos”; e o “terreno”,
jamais teve ou terá o poder, que sem- ções. Para além da manipulação – e trânsito aproximando locais de traba- onde o homem é o lobo do homem.3
pre foi e será das elites. Nesse sentido, para que esta funcione em maior ou lho e de moradia (e vice-versa); um ter- Nas grandes metrópoles brasileiras,
a democracia se define como um con- menor grau –, existem fortes determi- ceiro garante que nomeará um minis- essa dupla vida nos incomoda quando
junto de procedimentos que assegu- nações estruturais. É o caso da cons- tério do nível de ministros (grito deparamos com homens e mulheres
ram a concorrência entre elites orga- trução altamente ideologizada de uma socorro?) e que os serviços públicos pobres, expostos ao sol inclemente
nizadas em empresas políticas, ou comunidade de indivíduos-cidadãos funcionarão porque ele aparecerá onde deste inverno surreal, segurando car-
seja, partidos, que concorrem pela livres e iguais, inclusive quanto ao não o esperam (Jânio vem aí?). tazes de candidatos com os quais não
preferência do consumidor político, acesso à informação política, em so- Nenhum se refere a um aspecto têm nenhuma afinidade político-elei-
isto é, o eleitor. Este, como qualquer ciedades marcadas por ferozes rela- importantíssimo para a aplicação de toral, até porque isso é o que menos
consumidor, não é um exemplo de ra- ções de exploração e dominação. Uma políticas, inclusive no plano munici- importa. Para quem paga, é tirar parti-
cionalidade ao fazer sua escolha. Daí propaganda do TSE que apresenta o pal: nessa situação de crise capitalista do de mão de obra sobrante e, portan-
algumas condições para que a demo- eleitor como “patrão” expressa, de mo- que se aprofunda e de forte compro- to, barata. Para quem segura o rojão,
cracia prospere, como, por exemplo, do enviesado e um tanto confuso, essa metimento das contas nacionais com também tanto faz ser placa de empre-
um debate político que não coloque construção. Não ficaria mais próximo o pagamento da dívida pública a boa endimento imobiliário ou de qualquer
questões estruturais em pauta. E que o da vida como ela é apresentar a maio- parte dos grandes “patrões” (bancos, “político”. Melhor do que “compro ou-
eleitor deixe o eleito em paz. A este, e ria dos eleitores como “não patrões”? fundos de pensão, grandes empresas ro”. Para todos nós que passamos de
não àquele, o mandato pertence. Essa maioria não patronal é o gran- industriais brasileiras e transnacio- carro, por que se indignar? No melhor
Essa concepção dita procedimental de alvo do “horário político”. A ela se nais), é quase nula a capacidade do Es- dos casos, cumpriremos nosso dever
da democracia, ao traçar uma forte dirigem os candidatos travestidos de tado, em seus distintos níveis, de colo- cívico, depositando o voto na urna, e
analogia entre a política e o mercado super-heróis, prometendo, a cada qua- car em prática políticas sérias, esperamos – quem sabe até cobrando
(idealizando este último), contribui tro anos, resolver os “problemas” de especialmente sociais. Poupa-se o – que as “autoridades” resolvam a situ-
para legitimar a superficialização do moradia, assistência médico-hospita- eleitor desse assunto enfadonho, até ação dessa gente com as quais (situa-
debate político, o alijamento da maior lar, creche, esgoto, água tratada, em- porque – reza o saudável senso comum ção e gente) nada temos a ver.
parte da população de questões mais prego, habitação etc. Só não explicam a – crise capitalista não é assunto de Exatamente devido aos impactos
sérias e a forte presença dos profissio- origem de seus superpoderes ungidos prefeito ou vereador. Melhor destacar que produz no sentido de desorgani-
nais em propaganda eleitoral. É prová- de espírito público e amor ao próximo, que é amigo da presidenta e do gover- zar a ação coletiva e autônoma dos do-
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 25

minados – inclusive no que se refere à Campos (SP), também organizados na esquerda, com a esquerda.”4 Não por tulava, em 1993, pelo espraiamento
produção e circulação de informações luta política por direitos constitucio- mera coincidência, assinou-se a “Car- desse regime por grande parte do pla-
–, esse processo de “despolitização” nais elementares. Enquanto isso, o es- ta aos brasileiros”; apesar de algumas neta.5 Todavia, no atual contexto de
não é politicamente neutro. Ao contrá- peculador não tem do que se queixar, e rusgas passageiras, houve forte apoio profunda crise capitalista, tendem a
rio, contribui, em São Paulo ou em São um candidato “do bem” se vangloria empresarial; e o partido concluiu sua aumentar os desencontros entre esse
Luís, para a reprodução de um dos pa- de, quando secretário estadual da passagem para a idade da razão. regime e a participação popular. Se
drões de dominação e exploração mais Educação, jamais ter deparado com Os impactos “despolitizadores” so- Schumpeter e tantos outros negam a
predatórios do planeta. uma greve de professores. bre os processos induzem a grande possibilidade do poder do povo, diver-
Também cabe evitar a ideia igual- Sorte dos trabalhadores e trabalha- maioria das classes populares a perce- sos estudiosos, como Slavoj Žižek, ao
mente simplista de que o esforço de doras que não se metem em confusão, ber as eleições como o único meio legí- abordar uma questão bem mais espe-
manipulação opera sobre um terreno até porque esse processo de despoliti- timo de fazer política. Essa contração cífica, recorrem a uma expressão cada
vazio e passivo (um espécie de folha de zação segue pari passu com o de judi- foi acompanhada por um desloca- vez mais em voga para nos referirmos
papel em branco) e sempre obtém os cialização da vida política. Mas por mento: as eleições “acontecem” prin- a essa reviravolta sinistra: a democra-
mesmos resultados. No fundamental, que nos preocuparmos? Afinal, a es- cipalmente na televisão e no rádio (as cia se volta contra os povos.6
o que está em jogo é, em cada conjun- sência da maioria dos candidatos pode chamadas redes sociais ainda engati- Diante dos riscos de que o modelo
tura, a maior ou menor capacidade de se resumir no refrão de um deles: passa nham nesse processo). Lá chegando, schumpeteriano de democracia che-
intervenção popular na vida política. o tempo todo pensando nos pobres. incorporaram-se a um dispositivo gue ao seu esgotamento no bojo da
Essa capacidade sofreu drástica re- Com essa drástica redução da ca- que, além do conteúdo abertamente atual crise, é urgente inventar novas e
dução nos últimos anos. Partidos an- pacidade de ação popular coletiva, conservador, transforma tudo em en- profundas formas de efetiva participa-
tes combativos passaram por fortes não é mais necessário, como foi em tretenimento. Em outros termos, o ção popular na política.
mutações, ao longo das quais oblitera- 1989, que um importante dirigente in- centro da atividade eleitoral mais visí- Resta saber se isso é possível sem
ram seus espaços de participação (in- dustrial, Mário Amato, alerte que, caso vel se transfere para meios de comuni- reinventar a sociedade.
clusive debates internos). Políticas so- determinado candidato vencesse, 800 cação tremendamente oligopolizados
ciais importantes para, em caráter mil empresários abandonariam o Bra- e que reproduzem, na imensa maioria *Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida é pro-
emergencial, melhorar as condições sil; ou, no pleito seguinte, outro peso das transmissões, (novelas, noticiá- fessor do Departamento de Política da PUC-SP.
de vida de populações que estavam em pesado dos industriais advertisse que rios, propagandas) processos de in-
extrema miséria tampouco amplia- a eleição do mesmo candidato seria o fantilização. Lutas pelo aprofunda-
ram aquela capacidade. Ao contrário, equivalente a uma bomba de hidrogê- mento da participação política no
1 E. Hobsbawm, A era dos impérios, Paz e Terra, Rio
reforçaram a percepção de que o go- nio despencar sobre este país abenço- Brasil requerem democratizar e diver- de Janeiro, 1988, p.130.
vernante é um pai (ou uma mãe), com ado por Deus. Na campanha eleitoral sificar os meios de comunicação. 2 J. A. Schumpeter, Capitalismo, socialismo e demo-
especial carinho para com os mais de 2002, o marqueteiro-mor do mes- Quando Schumpeter escreveu seu cracia, Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1961.
3 Karl Marx, A questão judaica, Boitempo, São Pau-
desprotegidos. E, como vimos, no pla- mo candidato, ao coordenar impor- célebre livro sobre democracia, o des- lo, 2010.
no nacional, sem tempo para negociar tantes figuras políticas na feitura de fecho da Segunda Guerra Mundial, 4 A sequência aparece no documentário Entreatos,
com a totalidade dos professores das uma propaganda televisiva, disse para fortemente articulada a uma crise do de João Moreira Salles.
5 Samuel Huntington, A terceira onda: a democrati-
universidades federais envolvidos nu- todos erguerem a mão em forma de L. capitalismo, ainda estava incerto e zação no final do século XX, Ática, São Paulo,
ma ação coletiva (uma greve) durante “A mão direita ou a esquerda?”, per- restavam poucas democracias liberais 1994.
mais de cem dias; e, no estadual/mu- guntou alguém. “Como quiser”, res- no planeta. Em um livro schumpete- 6 Slavoj Žižek, “Democracy versus the people. A new
account of Haiti’s recent history shows how the ge-
nicipal, o bárbaro massacre dos mora- pondeu o pragmático guru, “quem for riano bem mais simplista, A terceira nuinely radical politics of Lavalas and its”, New Sta-
dores do Pinheirinho, em São José dos de direita, com a direita; quem for de onda, Samuel Huntington se congra- tesman, 14 ago. 2008.

Incrível retrocesso na educação superior


O que explica a primazia do ensino superior privado no país? Esse processo advém da ditadura civil-militar, que fez da
privatização um projeto dominante, utilizando-a até mesmo para estancar pressões sociais dos “excedentes” no vestibular
(aprovados, mas sem garantia de vaga) e da força do movimento estudantil na época
POR CÉSAR AUGUSTO MINTO E LALO WATANABE MINTO*

A
educação brasileira está organi- racterizam como universidades: parti- O quadro esboçado é preocupante, O que explica a primazia do ensino
zada em dois níveis: básica e su- culares, comunitárias, confessionais e mais ainda se considerarmos que, há superior privado no país? Esse processo
perior. Por razões de espaço, des- filantrópicas.1 Em geral, com exceção muito, setores sociais conservadores advém da ditadura civil-militar, que fez
tacamos aqui o segundo nível. O das IES públicas (sobretudo federais e têm defendido a “flexibilização” da da privatização um projeto dominante,
país adota formalmente um modelo de estaduais, pois as municipais se asse- indissociabilidade ensino-pesquisa- utilizando-a até mesmo para estancar
universidade que realiza ensino, pes- melham às privadas), as demais não -extensão, sob duas alegações: 1) a pressões sociais dos “excedentes” no
quisa e extensão de forma indissocia- realizam pesquisas, grande parte de- diversidade do povo brasileiro, que su- vestibular (aprovados, mas sem garan-
da. As universidades públicas produ- las oferece ensino de qualidade ques- postamente demandaria a variedade tia de vaga) e da força do movimento
zem, quantitativa e qualitativamente, tionável e a quase totalidade visa ex- de modelos; e 2) nem toda formação estudantil na época. Desde então, for-
o que há de mais avançado em todas as clusivamente ao lucro. De 1999 a 2009, precisa da pesquisa, curiosamente a taleceu-se uma concepção tecnicista
áreas de conhecimento, contribuindo as matrículas de graduação presencial função que viabiliza a construção de de ensino superior que reforçou a sepa-
para o desenvolvimento científico, tec- públicas cresceram 62%; as particula- conhecimento e a mais cara das três.3 A ração entre ensino de elite (em parte
nológico e cultural do país e para a pro- res, 345%; e as privadas sem fins lucra- partir do governo Collor, essa visão ga- das IES públicas e das privadas mais
moção do bem-estar de seu povo. tivos diminuíram 2%; as matrículas nhou status de “oficial”, ao mesmo tem- tradicionais) e ensino de massa, priva-
Contudo, esse modelo convive com em IES não universitárias passaram po que se interrompeu uma salutar ten- do, para atendimento de demandas
a existência de inúmeras instituições de 31,7% para 46,9% do total, sendo dência a avanços sociais iniciada com a emergentes, sobretudo da classe média
de ensino superior (IES) que não se ca- 80,9% nas particulares.2 Constituição Federal de 1988. e de setores da classe trabalhadora.
26 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

© Daniel Kondo
Anos depois, a opção política pela dita, a legislação em vigor permite que gãos colegiados sem ampla represen- em todas as áreas, formar profissio-
resposta privatista às necessidades de IES ditas sem fins lucrativos recebam tação dos envolvidos (a USP, por nais capazes de formular perguntas e
expansão do ensino superior resultou recursos estatais na forma de: a) sub- exemplo). Nas particulares, a situação respostas originais, antes de ser uma
no agravamento das desigualdades do venção social; b) auxílio; c) contri- é dramática: em 2009, 53% dos docen- demanda do mundo em que se vive, é
setor. Tendo, de um lado, uma univer- buição; d) convênio; e) termo de tes eram horistas, enquanto 25,5% uma necessidade da sociedade que se
sidade pública de qualidade reconhe- parceria; f) imunidade de impostos; atuavam em tempo parcial. almeja construir. Conhecimentos ape-
cida, mas restrita a poucos, e, de outro, g) imunidade de contribuições so- Soma-se a isso o recrudescimento nas adaptados a ritmos e forças do
uma porção de IES privadas de quali- ciais; h) isenção; i) incentivo fiscal ao do autoritarismo. Em nome de garan- mundo atual não bastam. É preciso
dade duvidosa, esse ensino tornou-se doador; j) voluntariado.7 tir um ambiente propício à pereniza- abrir portas para o futuro.
sempre mais desigual, afetando em A partir de meados da década de ção de muitas funções privadas às A recente greve dos servidores fe-
especial as áreas efetivamente menos 2000, o governo federal passou a viabi- quais as universidades públicas foram derais na área da educação pode ser
valorizadas, entre as quais se destaca a lizar duas formas principais de expan- sendo submetidas (fundações, convê- tomada como exemplo: 1) de descaso
da formação de professores. são do ensino superior: nios com empresas, contratos de ter- governamental, que permite a situa-
Um novo impulso à privatização a) estatal, via ampliação de vagas e ceirização, cursos pagos etc.), a onda ção chegar a limites intoleráveis (sua
ocorreu a partir dos anos 1990, no bojo criação de novas IES por meio do Pro- repressiva se espalha e, de certo modo, proposta desestrutura a carreira, des-
da reestruturação capitalista global, e grama de Apoio a Planos de Reestrutu- se naturaliza. As formas de controle de caracteriza o regime de trabalho de
materializou-se por meio da doutrina ração e Expansão das Universidades movimentos organizados, vozes dis- dedicação exclusiva, fere a autonomia
de reforma do Estado.4 Tendo a privati- Federais (Reuni, 2007), que condiciona sonantes e contestadoras, ocultam os universitária e sinaliza a retirada de
zação, a terceirização e a publicização os recursos ao atendimento de metas fundamentos reais dos problemas direitos expressos em legislação ante-
como meios e a administração pública nos cursos de graduação presenciais: educacionais, buscando “resolvê-los” rior); 9 e 2) de resistência dos trabalha-
gerencial como fim, a reforma do Esta- dezoito estudantes por docente e taxa com medidas duras. Não raro, confli- dores organizados em contraposição a
do realizou algumas inversões concei- de conclusão média de 90%, entre ou- tos políticos tornam-se casos de crimi- situações adversas, o que demonstra a
tuais importantes, entre elas a substi- tras. Ocorre que a relação 18/1 não se nalização judicial, para não dizer do possibilidade de construir as alterna-
tuição de direito por serviço. Essa coaduna com o modelo da indissocia- reavivamento de práticas ditatoriais: tivas necessárias.
doutrina aponta claramente para a bilidade ensino-pesquisa-extensão, e espionagem, incursões policiais e É urgente reverter o retrocesso na
mercantilização. não se tem notícia de que a taxa citada crescente militarização do espaço físi- educação superior!
As diretrizes da reforma passaram seja atingida, nem sequer nas melho- co dos campi (cancelas, catracas, câ-
a ser positivadas em leis a partir da res universidades mundo afora; meras de vigilância),8 criando uma *César Augusto Minto é professor da Fa-
Emenda Constitucional n. 19, de 1998, b) privada, via criação do Programa tendência torpe de as universidades se culdade de Educação da USP e vice-presi-
reforçando o caminho da mercantili- Universidade para Todos (ProUni, 2004- parecerem cada vez mais com presí- dente da Associação dos Docentes da USP
zação dos direitos sociais. Terceiriza- 2005), que utiliza recursos públicos pa- dios do que com locais de produção e (Adusp); Lalo Watanabe Minto é professor
ção é a “execução indireta de serviços ra comprar vagas “ociosas” de IES priva- disseminação de conhecimento. da Faculdade de Filosofia e Ciências da
públicos, mediada por contratos sub- das, incluindo as com fins lucrativos. Diante da atual tendência de mer- Unesp, campus de Marília.
metidos a licitações supostamente Ademais, registre-se o uso indiscrimi- cantilização – agravada pela entrada
isentas, do que deriva o ingresso de nado do ensino a distância, sobretudo das IES particulares nas Bolsas de Va-
trabalhadores sub-remunerados em na formação inicial e de docentes. lores e por práticas como os fundos 1 Ver Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996
atribuições públicas sem o devido Projetos desse tipo fragilizam ain- privados de captação de recursos (en- (LDB), art. 20, incisos I a IV.
2 A Sinopse estatística da educação superior 2010
concurso”.5 Já a publicização implica a da mais as condições de funciona- dowments) nas IES públicas – e de su- (Inep) não traz dados que permitam diferenciar as
transferência dos serviços sociais e mento das instituições. Por um lado, focamento dos conflitos nas universi- IES privadas.
científicos então prestados pelo Esta- corroboram a tendência de separação dades, o ensino superior que está 3 Atende-se, assim, aos “critérios do mercado”, em
duplo sentido: a flexibilização da formação resulta
do para o setor público não estatal; entre IES de ensino e IES de pesquisa, sendo construído corresponde aos an- em mão de obra precarizada e com custo rebaixa-
vale dizer, promove a indistinção en- assim como acirram as divisões entre seios da sociedade? do, da mesma forma que permite a operação mais
tre estatal e privado/mercantil à me- as áreas de conhecimento, sobretudo Para que cumpram um papel eman- lucrativa das próprias IES privadas, as grandes
responsáveis por esse tipo de formação.
dida que desconsidera os meios e ob- pela disputa por recursos. Por outro la- cipador, é preciso propiciar condições 4 Consulte os dezessete volumes dos Cadernos
jetivos específicos do processo do, distanciam o país da construção às IES: recursos adequados, pessoal Mare da Reforma do Estado, Brasília, 1997-1998.
educativo, ressaltando apenas seus de um efetivo sistema nacional de bem formado, autonomia. Indivíduos 5 Rudi Cassel, “Terceirização no serviço público”,
Valor Econômico, 18 jul. 2012, p.E2.
resultados quantitativos.6 educação (menos desigual e mais or- com formação crítica podem tornar-se 6 “Em síntese, a estratégia de publicização visa a au-
Explicitamente assumida ou não, a gânico e adequado às necessidades re- protagonistas de sua própria história, mentar a eficiência e a qualidade dos serviços,
reforma atinge corações e mentes ou- gionais). Também pioram as condi- individual e coletiva. A pesquisa precisa atendendo melhor o cidadão-cliente a um custo
menor” (Cadernos Mare n.2, Brasília, 1998, p.12).
trora insuspeitos, e passa a orientar ções de trabalho dos servidores e de ser patrocinada e não pode ser submeti- 7 Sugerimos ver a “justificação” do Projeto de Lei n.
também as políticas para o ensino su- estudo dos alunos, ao passo que se re- da a retornos rápidos, encurtamento 7.639, de 2010, da deputada Maria do Rosário
perior. Nesse caso, a empreitada foi duzem os espaços para contestação dos prazos de formação na pós-gradua- (PT-RS) e outros. Trata das Instituições Comunitá-
rias de Educação Superior (Ices).
energizada pela insuficiência crônica institucional, uma vez que boa parte ção, enxugamento curricular, interes- 8 A maior parte também decorre de contratos (ter-
de recursos que resultou, por exemplo, das IES públicas mantém estruturas ses próprios do mercado e do tempo da ceirizações) com a iniciativa privada.
em um grande desequilíbrio entre oligárquicas e anacrônicas, algumas lucratividade das empresas. 9 Decreto n. 94.664, de 23 de julho de 1987 (PU-
CRCE). Aprova o Plano Único de Classificação e
candidatos e vagas no setor público. com eleição indireta de dirigentes (rei- Numa era em que o saber se torna Retribuição de Cargos e Empregos de que trata a
Além da privatização propriamente tores e diretores) e composição de ór- cada vez mais fluido e fragmentário Lei n. 7.596, de 10 de abril de 1987.
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 27

ONDA CONSERVADORA

Conservadores ou liberais?
O que mudou e o que não mudou na última década em algumas percepções dos brasileiros?
A análise comparada dos dados de 1999 com 2010 revela um quadro eivado de ambiguidades, que, no entanto,
não necessariamente descrevem um crescimento do conservadorismo
POR NANCY CARDIA*

E
m 1999, no Núcleo de Estudos da núcleos de autoritarismo que se mani- socialmente implantado”, algo como jovens sobre valores em relação ao
Violência da Universidade de festam como apoio à punitividade, in- uma introjeção coletiva não de princí- futuro − o que consideram sinal de
São Paulo (NEV-USP), realiza- cluindo-se aqui a punição física, o uso pios de respeito às leis (o processo civi- sucesso e o que é importante con-
mos um estudo em dez capitais da força física para resolução de con- lizatório de Norbert Elias), mas sim de quistar na vida −, observamos que as
estaduais sobre o contato das pessoas flitos e o uso da violência por parte da aceitação de um arbítrio exercido em respostas, quando comparadas àque-
com a violência e seus possíveis im- polícia em relação a pessoas identifi- nome da segurança ou do disciplina- las de 1999, revelam que houve no pe-
pactos sobre atitudes, crenças e valo- cadas como suspeitas. Apesar de a mento do indivíduo. ríodo uma crescente valorização de
res em relação a instituições responsá- maioria ainda rejeitar esses comporta- Isso fica claro nas respostas dadas símbolos de sucesso bastante con-
veis pela segurança pública, ao uso da mentos, aumentou o apoio à polícia pelos entrevistados sobre medidas que vencionais, com ênfase na ampliação
força para resolver conflitos e em par- poder invadir uma casa, bater em um adotariam para disciplinar seus filhos, da capacidade de consumo e de gera-
ticular a alguns direitos humanos.1 suspeito e em um preso que tenham caso estes apresentassem problemas ção de renda do indivíduo. Valores
Também buscamos examinar um tentado fugir ou atirar em um suspeito de comportamento com variados mais coletivos, como bem-estar da
possível reflexo dessas experiências ainda que desarmado. Certamente graus de gravidade: da indisciplina em comunidade e solidariedade de gru-
sobre comportamentos. A pesquisa foi não é isso que se espera em uma de- sala de aula ao grafitar, do fumar ma- po, parecem ter menos relevância.
repetida em 2010, dessa vez em onze mocracia consolidada, na qual as leis e conha ao chegar tarde em casa. Au- Entre alguns jovens, elementos e
capitais, e o questionário ampliado as instituições funcionam e o contexto mentou no período o número de en- comportamentos associados à violên-
em relação a alguns temas como a re- social e econômico tem se apresenta- trevistados que “bateriam muito” no cia vêm adquirindo crescente aprova-
lação entre violência e percepção do do como muito favorável para que se filho/filha caso eles apresentassem es- ção, na contramão do debate público.
bairro, capital social, percepção da desenvolva uma cultura de apoio ao ses comportamentos. Ainda que sejam uma minoria, o fato é
polícia, penas e punições e direitos Estado democrático de direito, com Esse aumento entre os mais jovens que cresceu substancialmente a valo-
humanos, incluído o direito à liberda- ampla aprovação das garantias de pro- é substancial e não é acompanhado rização de ter uma arma, de provocar
de de expressão, de manifestação de teção do cidadão contra um potencial pela experiência de terem sido vítimas medo nos professores e/ou ter fama de
dissidência política, da proteção con- poder estatal abusivo. de punição corporal pelos pais, ou se- “durão”, ser alguém com quem a polí-
tra a tortura etc. Esse quadro é perturbador pelo fa- ja, esse padrão não parece expressar cia “não se mete”. Ou seja, apesar da
O período de pouco mais de uma to de, nesse período, ter diminuído a uma transmissão de valores entre ge- queda da exposição à violência, o gru-
década entre as duas pesquisas é sin- exposição à violência mais grave − por rações. O fato é que dobrou o percen- po de maior risco de ser vítima, quer
gular, caracterizando-se por várias exemplo, ter sido vítima de agressão fí- tual de jovens que dizem nunca ter pelo fato de ser jovem, quer pelas atitu-
melhorias: a economia do país se esta- sica, ter perdido um parente assassi- apanhado na infância, mas que afir- des em relação à violência, não dimi-
bilizou e passou a crescer, partidos po- nado, ter tido de mudar de casa por mam que “bateriam muito” no filho nuiu. Aqui está o grande desafio: o que
líticos se alternaram no poder tanto medo da violência, entre outros. Essa nas situações apresentadas. Essa so- alimenta essas atitudes e valores? Por
em eleições majoritárias como locais, queda foi acompanhada por uma me- brevivência de atitudes autoritárias e que a democracia não conseguiu, até o
a desigualdade diminuiu, a escolari- lhoria na imagem das instituições de punitivas não se limita a temas sobre momento, promover entre as novas ge-
dade da população cresceu, a mortali- justiça – polícias (federal, civil e mili- como disciplinar os filhos, mas apare- rações valores mais condizentes com
dade infantil declinou, o desemprego tar), Defensoria Pública e Judiciário. ce também nas respostas a questões uma cultura de respeito aos direitos
caiu etc. Seria legítimo esperar que es- O aumento da punitividade ocor- sobre tortura e pena de morte. Surpre- humanos e de valorização de um Esta-
ses ganhos se refletissem em uma que- reu em todas as faixas etárias, o que ende muito o apoio dessas medidas, o do de direito democrático? Por que so-
da nos índices de violência de modo significa que os mais jovens, que nas- qual não parece decorrer apenas de brevivem indícios de um “autoritaris-
transversal no país e que esta, por sua ceram após o retorno do país à demo- padrões de avaliação de riscos e con- mo socialmente implantado” – aquele
vez, tivesse algum efeito sobre as atitu- cracia, também apresentam sinais da sequências, supostamente menos que, ainda segundo O’Donnell, permi-
des da população em relação ao tema presença daquilo que Guillermo acurados entre os mais jovens. tiu que a ditadura militar sobrevivesse
da violência e segurança, dos direitos O’Donnell intitulou de “autoritarismo Ao analisarmos as opiniões dos por tanto tempo com tão pouca resis-
humanos e de instituições do sistema tência? Essas são questões que devem
de justiça, entre outros. ser respondidas se quisermos garantir
Essa expectativa é rompida pelo fa- que as novas gerações possam enfim
to de que infelizmente essas melhorias romper com práticas do passado, que
não foram acompanhadas por uma só garantem o perverso círculo de vio-
queda transversal dos índices de vio- lência e violação de direitos.
lência, por uma melhoria substancial
no apoio aos direitos humanos ou pelo *Nancy Cardia é vice-coordenadora do Nú-
aumento da rejeição a práticas arbitrá- cleo de Estudos da Violência da Universidade
rias, por parte das instituições de justi- de São Paulo (NEV-USP).
ça. A análise comparada dos dados de
1999 com 2010 revela um quadro eiva- 1 “Pesquisa nacional por amostragem domiciliar so-
© Daniel Kondo

do de ambiguidades, que, no entanto, bre atitudes, normas culturais e valores em relação


não necessariamente descrevem um à violação de direitos humanos e violência, 2010.
Um estudo em 11 capitais”, Nancy Cardia (coord.),
crescimento do conservadorismo. Os NEV-USP/INCT-Cepid/Secretaria de Direitos Hu-
dados sugerem, sim, a persistência de manos/Unfa, 2011.
28 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

ONDA CONSERVADORA

Agronegócio e povos tradicionais


São as terras tradicionalmente ocupadas o novo alvo dos grandes interesses econômicos do agronegócio.
As comunidades que as ocupam passam a ser objeto de investidas para sua deslegitimação, assim como de esforços
destinados a isolá-las das demais forças sociais e políticas
POR HENRI ACSELRAD*

A
s políticas do Estado brasileiro construir “bases militares, estradas ou tantes do ruralismo passarem a identi- recurso a um manejo irônico da lin-
para as áreas de fronteira de ex- hidrelétricas em áreas demarcadas in- ficar os povos e comunidades tradicio- guagem – “empresas de monocultura
pansão do mercado no espaço dependentemente de consulta às co- nais como os novos adversários de seu do eucalipto ensinam agroecologia ao
territorial do país sempre estive- munidades indígenas”. pretenso projeto de “combate à fome campesinato sem terra” – por parte de
ram apoiadas em dois tipos de dis- Fato é que a lógica dos interesses pelo agronegócio”. São as terras tradi- corporações cujos negócios dependem
curso: o da necessidade de exercer a vem estendendo sua vigência de forma cionalmente ocupadas o novo alvo dos fortemente da subtração ou subordi-
soberania sobre o território e o da ne- acelerada sobre áreas que estiveram grandes interesses econômicos do nação dos espaços ocupados pelo cam-
cessidade de desenvolver o país explo- até aqui mais ou menos ao abrigo dos agronegócio. As comunidades que as pesinato e os povos tradicionais. Trata-
rando os recursos desse território. mecanismos de mercado. É o que de- ocupam passam a ser objeto de investi- -se de recurso análogo ao dos projetos
Desde o fim da ditadura, militares, oli- monstram, ao lado da acima mencio- das para sua deslegitimação, assim co- ditos de “educação ambiental” ofereci-
garquias regionais e grupos ligados a nada portaria da AGU, as investidas mo de esforços destinados a isolá-las dos a pescadores impossibilitados de
grandes projetos agropecuários arti- dos representantes do agronegócio das demais forças sociais e políticas, pescar pelo avanço territorial da ca-
cularam regularmente suas retóricas: contra o Código Florestal e os debates inclusive daquelas situadas no próprio deia do petróleo-petroquímica ou das
ora argumentaram que há ameaças de em curso para a reconfiguração do campo dos grupos subalternos. empresas do setor elétrico que dizem
internacionalização da Amazônia e de Código de Mineração. Um papel esta- Segundo esses ideólogos, os povos oferecer projetos de “desenvolvimento
ataque à soberania nacional por trás tal mais ativo se está procurando dese- tradicionais estariam protagonizando sustentável” para os índios do Xingu,
das demandas por direitos indígenas, nhar, de modo a redefinir as condições uma “inversão de direitos”, pois “o con- rio cujas águas, em certas áreas, deixa-
ora que inimigos do desenvolvimento de extensão dos limites socioterritoriais ceito de quilombo estaria golpeando o rão de correr em razão da construção
nacional, sob a roupagem de defensores onde vigorarão regras mercantis, seja já combalido direito de propriedade”, de Belo Monte. Esses são alguns exem-
do meio ambiente, faziam críticas ao para os mercados de terras, da explora- fazendo que a propriedade se torne plos de como muitas corporações têm,
desmatamento para impedir que a po- ção mineral ou energética e, ao mesmo “tribal, coletiva ou comunitária, para com frequência, recorrido ao que Vladi-
pulação local pudesse competir no tempo, onde essas regras não vigorarão não dizer neocomunista”.1 Tal investi- mir Safatle considera o “cinismo como
mercado. De um lado, evoca-se o exercí- – ou delas estarão de algum modo pro- da ideológica teria por finalidade modo hegemônico de racionalização
cio da soberania sobre o território para tegidas –, como em reservas extrativis- atrair setores da pequena propriedade nas esferas de interação social do capi-
justificar estratégias geopolíticas; de tas, quilombos e áreas de reserva legal. rural para cerrar fileiras contra os di- talismo contemporâneo, conformando
outro, o exercício dos interesses sobre as reitos territoriais específicos – plena- procedimentos de justificação a inte-
coisas que o território contém, em nome mente reconhecidos na Constituição resses que não podem ser revelados”.3
de estratégias de desenvolvimento. de 1988 – pleiteados por comunidades A experiência recente mostra, po-
Desde os anos 1980, esses dois tipos A lógica dos interesses étnicas e tradicionais. Procuram divi- rém, que os diferentes esforços desti-
de discurso se combinaram procuran- vem estendendo sua dir o bloco dos subalternos, tentando nados a dissociar e opor entre si as
do influenciar as políticas territoriais, opor direitos universais à terra a direi- perspectivas dos diferentes movimen-
fundiárias e ambientais delineadas
vigência de forma tos específicos a territórios. Ações dessa tos sociais no campo têm se chocado
para tais áreas. Mas, pouco a pouco, o acelerada sobre áreas ordem são, por sua vez, complementa- com a adesão destes a um duplo crité-
discurso do interesse veio ganhando que estiveram até aqui ao res aos esforços de atrair o Movimento rio de justiça, no sentido de Nancy Fra-
peso ante o discurso da soberania. Essa abrigo dos mecanismos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ser – aquele que articula lutas por dis-
inflexão ocorreu, por certo, paralela- para acordos com agentes do agrone- tribuição a lutas por reconhecimento.4
mente às mudanças verificadas no
de mercado gócio, como é o caso do projeto “Assen- São os próprios atores sociais que dão
próprio seio do Estado. As políticas de tamentos Sustentáveis com Agroflores- sinais de estar efetuando essa articula-
liberalização das economias materia- tas e Biodiversidade”, pelo qual uma ção, tal como configurado no Encontro
lizaram-se em privatizações e quebra Não por acaso, as terras hoje vistas grande empresa monocultora de euca- dos Trabalhadores e Trabalhadoras e
de barreiras comerciais; grandes cor- como tendo maiores perspectivas de lipto alega pretender ensinar às famí- Povos do Campo, das Águas e das Flo-
porações brasileiras se internacionali- valorização no país, segundo consul- lias de sem-terra assentadas processos restas, realizado em Brasília em agos-
zaram. Assim, a retórica da soberania tores de investimento em terras, são técnicos e organizacionais que as em- to, que incluiu em sua pauta, ao lado da
com relação a potências estrangeiras aquelas ao mesmo tempo próprias pa- presas, elas próprias, se recusam a apli- “reforma agrária ampla e de qualidade
foi se atenuando, embora ela tenha ra o plantio de grãos e situadas nessas car em suas propriedades, a saber, a com transição agroecológica”, a garan-
continuado a ser evocada e ressignifi- áreas de fronteira. Isso porque, a partir “produção de alimentos com base nos tia dos direitos territoriais dos povos
cada, por exemplo, quando aplicada às de 2008, com a elevação dos preços dos princípios agroflorestais e agroecológi- indígenas e quilombolas, assim como
demandas dos povos indígenas por ter- alimentos e da demanda mundial por cos e na organização social”. Segundo o das comunidades tradicionais que têm
ra, servindo para justificar tanto ações agrocombustíveis, os monopólios do site dessa empresa, “o histórico proces- a terra como meio de vida e de afirma-
militares como desenvolvimentistas agro se “territorializaram” – ou me- so de desenvolvimento rural brasileiro, ção de sua identidade sociocultural.
nas áreas tradicionalmente ocupadas lhor, “aterrizaram” –, admitindo imo- a luta pela Reforma Agrária no Extremo
por esses povos. A Portaria n. 303, de 16 bilizar capital em terras, a despeito da Sul da Bahia e a ocupação de seis fazen- *Henri Acselrad é professor do Ippur-UFRJ
de julho de 2012, da Advocacia Geral da baixa liquidez desse mercado, atuan- das da Empresa Fibria Celulose, pelo e pesquisador do CNPq.
União (AGU), por exemplo, contestada do, assim, simultaneamente, no con- MST, desencadeou um diálogo entre a
como inconstitucional por todas as en- trole da propriedade privada da terra, empresa e as famílias acampadas”2 que 1 Nelson Ramos Barretto, A revolução quilombola,
Artpress, São Paulo, 2008, p.12-13.
tidades de representação dos povos in- do processo produtivo no campo e do teria resultado na transferência – pode- 2 Disponível em: www.fibria.com.br/web/pt/midia/
dígenas e temporariamente suspensa processamento industrial da produ- ríamos dizer, desse “não saber” – da noticias/noticia_2012mai31d.htm.
por solicitação da Funai, procura, a es- ção agropecuária. empresa para os camponeses. 3 Vladimir Safatle, Cinismo e falência da crítica, Boi-
tempo, São Paulo, 2008.
se propósito, afirmar que, em respeito É nesse contexto que temos visto, Num esforço de dividir o bloco dos 4 Nancy Fraser, “Igualdade, identidades e justiça so-
à “soberania nacional”, dever-se-iam com frequência crescente, represen- trabalhadores do campo, observa-se o cial”, Le Monde Diplomatique Brasil, jun. 2012.
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 29

MASSACRE NA ÁFRICA DO SUL

Trinta e quatro mineiros mortos


O choque provocado pelo massacre de Marikana se espalhou muito além das fronteiras da África do Sul.
Dezoito anos após o renascimento democrático, a polícia atirou em mineiros em greve, com a intenção de matar
POR GREG MARINOVICH*

S
ob o olhar das câmeras, cercados Diante das câmeras, pelo menos
por uma fita de aço e vigiados por doze homens caíram. De acordo com
unidades especiais de interven- depoimentos e provas coletadas na ce-
ção da polícia, milhares de ho- na do crime, eles seriam ainda mais
mens em trajes tradicionais estavam numerosos, mortos fora da vista dos
reunidos para ocupar a mina laranja de jornalistas. Catorze mineiros perde-
rocha vulcânica que se derramava so- ram dessa forma a vida em um lugar
bre a savana ressequida no pé da colina. chamado Small Koppie (pequena coli-
Eles entoavam antigos cantos de guer- na), a maior parte quando tentava se
ra. Oito homens e duas mulheres já es- render às forças de segurança. “Lem-
tavam mortos perto desse refúgio geo- bro que um dos nossos disse ‘nós nos
lógico. O violento confronto entre rendemos’, levantando os braços para
mineiros e o gigante britânico Lonmin o alto”, declarou uma testemunha. “Os
não parecia querer parar. A morte de policiais o atingiram nos dedos. Ele se
dois policiais durante uma altercação abaixou. Depois, levantou-se de novo
iria precipitar os acontecimentos. e disse: ‘Senhores, nós nos rendemos’.
Nesse dia 16 de agosto, a Won- Na segunda vez, a bala o atingiu no
derkop – a colina das maravilhas – es- peito e ele caiu de joelhos. Ele tentou se
tava cercada por policiais antitumulto levantar ainda uma vez, e a terceira
e uma dezena de veículos blindados. bala o atingiu na lateral. Então, ele
Um pouco mais abaixo, na estrada es- caiu, mas ainda estava tentando se
buracada que leva ao vilarejo mineiro mover... O homem atrás dele, que tam-
de Marikana, mais de duzentos ou- bém tentava se render, levou um tiro
tros, além de agentes de segurança bem na cabeça e caiu ao seu lado”.
© Siphiwe Sibeko / Reuters

privada, faziam sua refeição em mar- Várias testemunhas disseram ter


mitas de plástico. Alguns jogaram os ouvido a polícia dizer que aquilo era a
recipientes vazios no chão e urinaram justiça para aqueles “assassinos de po-
tranquilamente sobre a grama seca da liciais”. Como tal execução extrajudi-
savana, um gesto ritual, fundamental cial em grande escala pôde acontecer?
antes do assalto, que os coletes à prova Em algum lugar nos altos escalões da
de balas e as armas tornam difícil. polícia, e certamente na política, al-
Na colina, os mineiros se desloca- Mineiros exibem retrato de colega assassinado em Marikana guém decidiu que os mineiros não po-
vam com cartazes que mal se conse- diam ganhar. A grande maioria dos po-
guia decifrar. Eles são perfuradores, liciais tinha sido equipada com rifles
malaishas (os que retiram os escom- broca de 25 quilos que vibra louca- pregador a nos ouvir. Vamos aplicar de assalto, e não com o equipamento
bros) e chisaboys (assistentes do res- mente, sem nunca conseguirem ficar uma violência objetiva até que ouçam utilizado em caso de tumultos. Ainda
ponsável pelos explosivos); saem das em pé. Em caso de deslizamento de nossas reivindicações”. Daí a greve, a ignoramos quais eram suas ordens.
entranhas da terra, onde extraem, da terra, eles podem perder os dedos ou marcha e os assassinatos. Em Marikana, 34 mineiros foram
rocha fumegante, alguns preciosos até mesmo a vida. Esse é o trabalho Dispostos a suportar a violência, os mortos, 78 feridos. Nenhum policial
gramas de platina. mais perigoso na mina. No entanto, grevistas, nesse 16 de agosto, espera- foi processado até o momento, mas,
Desde 10 de agosto, os empregados eles só ganham 4 mil rands por mês. vam em frente à mina, como diante de por uma aberração jurídica com base
do poço de Marikana tinham entrado Os mineiros se sentem insultados um altar, que sua humanidade lhes em uma lei da era do apartheid, mais
em greve para apoiar os que entre eles e denegridos pela administração, que fosse devolvida. Eles se voltaram para de duzentos mineiros foram acusados
recebiam salários mais baixos. Sua os ignora, e por seus representantes as tradições. Em uma cavidade na par- de matar seus próprios companheiros.
reivindicação: aumentar o salário mí- sindicais, que não os defendem. “Mes- te inferior da colina, longe da vista, Apesar de o processo ter sido rapida-
nimo para 12.500 rands por mês (cerca mo que eu pertença a um sindicato”, participavam de antigos rituais secre- mente retirado, as operações policiais
de R$ 3 mil). O de um perfurador está explica um perfurador, “não me sinto tos para obter imunidade contra seus continuaram, com devassas nos aloja-
entre 4.350 e 5.100 rands, bonificações representado. Quando expresso mi- inimigos, para que as balas das forças mentos dos trabalhadores. E, embora
e deduções incluídas. Como esperado, nhas preocupações, elas não são re- da ordem se transformassem em água. a escalada da violência pareça ter di-
a direção recusou, posto que o contra- passadas, e não tenho nenhuma influ- Na parte da tarde, a polícia apertou minuído, a Lonmin anunciou planos
to salarial assinado com o Sindicato ência. Nunca me beneficio com as o cerco ao redor dos mineiros, os quais para demitir 1,2 mil funcionários. In-
Nacional dos Mineiros (NUM, na sigla decisões tomadas. Sinto-me o tempo perceberam que um espaço permane- tensas discussões entre a indústria, os
em inglês) – o mais importante dos todo violado e tenho de trabalhar sub- cia livre entre o círculo e os blindados. sindicatos e o poder deveriam permi-
sindicatos do Congress of South Afri- metendo-me a uma violência pessoal. Quando os líderes se aproximaram tir salvaguardar as aparências e reto-
can Trade Unions (Cosatu) – só deve- Apesar da minha força, sou impoten- dessa única porta de saída, a polícia mar a atividade mineradora, vital para
ria terminar em 2013. te. [...] Se nós não fizéssemos nosso começou a dar tiros de gás lacrimogê- o país; mas os mineiros temem ser os
Foram os operadores de perfura- horrível trabalho, será que os outros neo e balas de borracha. Um mineiro grandes perdedores nesse episódio.
ção que convocaram a greve. Esses ho- trabalhadores mais bem remunera- respondeu com uma pistola; uma dú-
mens trabalham em contato com a pa- dos da mina poderiam fazê-lo? Vamos zia de policiais sacou então suas ar- *Greg Marinovich é jornalista e fotógrafo
rede, oito horas por dia, com uma obrigar nosso sindicato e nosso em- mas automáticas e abriu fogo. em Johannesburgo.
30 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

O MURO DAS ILEGALIDADES

Índia-Bangladesh,
uma fronteira desastrosa
Após 25 anos de trabalho, a Índia espera completar, neste ano, o fechamento de sua fronteira com Bangladesh: 3.286 km,
a barreira geopolítica mais longa do mundo. Porém, este muro se revela menos intransponível do que se imagina. Muitas coisas
o atravessam: pessoas, um idioma comum, gado, temperos e quatro milênios de história bengali
POR ELIZABETH RUSH*, ENVIADA ESPECIAL*

zomba da política nacionalista e das


falsas identidades que ela inventa.
Um cordão de casebres com telha-
do de palha beira a estrada que mar-
geia a fronteira. A cada 300 metros,
uma nova guarita e um guarda de uni-
forme com uma espingarda no ombro.
A Força de Segurança Fronteiriça (Bor-
der Security Force, BSF) conta com 240
mil membros. Seus acampamentos se
prolongam por 3 mil quilômetros, pa-
ra controlar uma linha traçada no pa-
pel meio século atrás.
Se acreditarmos no brigadeiro Sin-
gh, engajado na BSF há 25 anos, “nada
passa a fronteira, ninguém, nenhuma
mercadoria, nada”. Já os habitantes
contam uma história completamente
diferente: um mercador de gado de La-
gola, pequena cidade fronteiriça de
Bengala Ocidental, estima que cerca
de 80% dos habitantes estejam envol-
vidos no comércio entre fronteiras.
A noite cai rapidamente nos trópi-
cos, e com a escuridão surge outro
mundo. A cada noite, dezenas e até
centenas de pessoas transportam mi-
lhões de dólares em mercadoria con-
trabandeada até Bangladesh. E a qua-

B
engala Ocidental, Índia. Ao lon- critérios religiosos: os muçulmanos de Interior consagra US$ 1,3 bilhão suple- se totalidade dos guardas fronteiriços
ge, duas pessoas caminham um lado e os não muçulmanos do ou- mentares à sua manutenção, assim co- tem um lucro inacreditável, facilitan-
próximas da fronteira, uma tro, criando uma fronteira internacio- mo ao pessoal encarregado desse pro- do o que deveriam impedir.
vestida de branco, a outra, de nal traçada na pressa e jogada no meio grama de defesa nacional tão caro Um século atrás, Bengala era o lar do
laranja. A primeira escorrega pela ter- de uma zona que nunca antes havia quanto ineficiente. Ele é apresentado renascimento cultural indiano e de sua
ra da encosta, estendendo as mãos pa- conhecido tal conceito. como a Grande Muralha da China dos identidade moderna. Mas a prosperida-
ra ajudar a segunda. Juntas, elas pati- O Bengala indiano, que antes pos- tempos modernos: uma barreira her- de ao mesmo tempo intelectual e agrí-
nam num canal estreito, com água até suía uma unidade regional, cultural e mética destinada a conter os bengalis. cola que distinguia essa região repousa-
a cintura, no meio de aguapés violeta. econômica, foi dividido em duas par- Mas a realidade não tem muito a ver va na complementaridade de suas
Quinhentos metros à esquerda delas, tes desiguais: o Bengala Ocidental com a imagem oficial. Em muitos lo- duas metades: as indústrias da capital
ergue-se um trecho da famosa frontei- (que ainda pertence à Índia) e o Pa- cais, o famoso muro se resume a algu- colonial, Calcutá, transformavam as
ra. Mas não há nada ali. Apenas uma quistão Oriental. Este último, que era mas fileiras de arame farpado estendi- matérias-primas originárias das ter-
luz crepuscular na qual tudo se dissol- ligado ao Paquistão e se libertou de- dos entre acampamentos esparsos. Ele ras aluviais que hoje chamamos de
ve. As duas minúsculas silhuetas so- pois da guerra de independência de se interrompe regularmente, é retoma- Bangladesh. Quando Bengala foi des-
bem por um caminho de terra o decli- 1971, foi rebatizado de Bangladesh. do mais adiante, garantindo espaços membrado, os fazendeiros do leste
ve ao longe. E pronto, passaram, Enquanto a Índia emerge como uma para tudo que puder atravessar: cam- perderam não apenas a destinação de
desaparecendo nas curvas do terreno das grandes potências planetárias, poneses cultivando essa terra de nin- seus produtos brutos, como também
de outro país. Custo total da viagem: Bangladesh continua batalhando pa- guém entre os dois países, refugiados, os meios de convertê-los em insumos
de 500 a 1.000 rúpias (entre R$ 19 e R$ ra se dotar de infraestruturas de base mulheres e crianças vítimas de tráfico acabados prontos para a comercializa-
38), só ida1 – tudo depende do grau de e se livrar da corrupção. e centenas de milhões de dólares de ção. As fábricas de bolsas com a juta e
intimidade com os guardas suborna- mercadoria contrabandeada que re- com o algodão se encontravam do outro
dos. “Bangladesh se encontra logo Tão caro quanto ineficiente presentam três quartos do comércio lado de uma fronteira internacional.
atrás”, indica-nos Shoun,2 mostrando Nos últimos 25 anos, Nova Délhi oficial entre a Índia e Bangladesh. A Depois da divisão, o novo estado
uma fileira de tamareiras. Esse país fez injetou bilhões de dólares na constru- fronteira é permeável, flexível, porosa. indiano de Bengala Ocidental (assim
parte da Índia até 1947, data na qual os ção do muro fronteiriço mais longo do A prova perfeita de que a necessidade é rebatizado em 1947) foi confrontado
britânicos dividiram a região segundo mundo. A cada ano, o Ministério do a lei e de que a realidade do terreno com as penúrias de alimentação que
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 31

devastaram Calcutá. Depois, nos anos explica: “Você encosta um copo cheio gheital para fazer vista grossa, recupe- na. “Os guardas da BSF não falam
1960, Nova Délhi lançou a “Revolução de água no arame farpado para abafar ra os documentos falsos diretamente bengali”, constata Roy. “É um grande
Verde”: irrigando os estados de Bihar, o barulho quando cortamos e pronto, no haat, esse mercado do gado pelo problema.” A duração de seu contrato,
Haryana, Punjab e Uttar Pradesh, ela já está do outro lado. Não é muito difí- qual Rahman teve de derramar di- de três meses a um ano, é curta de-
transformou o norte do país numa cil! Com cerca ou sem cerca, pouco im- nheiro e, talvez, sangue. mais para que eles tenham a oportu-
plantação de trigo, compensando as- porta, basta pagar as pessoas certas!”. nidade de simpatizar com a comuni-
sim a perda sofrida de um dia para o Em Lagola, há gado por todos os la- Simples gesto nacionalista dade bengali.
outro, quando metade de Bengala se dos. Em Rajshahi, logo do outro lado Bastaram duas semanas para que A prostituição floresce na fronteira,
tornou outro país. Enquanto 18% das do rio ou às vezes da cerca, seu comér- aqueles que controlam o comércio do e as moças, tanto indianas quanto
importações declaradas de Bangla- cio é uma verdadeira instituição. Os gado em Rajshahi colocassem fim aos bengalis, contam os homens da BSF
desh provêm da Índia, apenas 0,01% mercados (haat) de muitas cidades esforços de Islam e seu amigo: “Uns entre seus maiores clientes. Em janei-
do que entra na Índia é de origem ben- fronteiriças são concebidos para po- homens fortes vieram e levaram Esha- ro de 2012, um vídeo mostrando al-
gali. O antigo Paquistão Oriental tam- der acolher quantidades inacreditá- mel para uma ilha no meio do rio. Eles guns entre eles despindo publicamen-
bém tem, no entanto, suas especiali- veis de bovinos. No City Haat (merca- quebraram suas mãos e suas pernas. A te um boiadeiro e lhe infligindo
dades – sendo a primeira, a despeito do municipal) de Rajshahi, um dos dez polícia não fez nada, pois ela tinha sido diversos abusos foi manchete na im-
do que a história poderia fazer pensar, do distrito, 3 mil cabeças são vendidas paga. Eshamel era barqueiro, mas ago- prensa nacional. Apesar da ordem re-
nem a juta nem o algodão, mas um fer- por semana, e até mesmo quatro vezes ra ele não pode mais remar. Nem an- cente proibindo que atirassem sem
tilizante tóxico chamado amoníaco mais durante o mês que precede a fes- dar...”. O olhar de Islam se volta para o motivo, sua impunidade continua to-
anidro. As novas condições permiti- ta muçulmana de Aid. rio e a ilha entre os dois países, lá onde tal. O tédio, o racismo, o machismo ou
ram alimentar seu desenvolvimento Atiqur Rahman obteve a concessão seu amigo foi espancado, lá onde, o esquecimento desafortunado da
industrial. Mas mesmo se Bengladesh do City Haat, um encargo governa- quando a noite cai, as vacas atraves- gorjeta regulamentar são constante-
exporta roupas e matérias-primas des- mental que custa a ele milhões de ta- sam aos milhares... mente invocados quando a violência
tinadas à indústria têxtil do mundo in- cas por ano. Correm rumores que ele Em Bangladesh, quase todos os ob- explode. Raros são aqueles que se dão
teiro, a Índia não compra quase nada. mandou matar alguns rivais para ob- jetos entram ilegalmente: um sári de conta de uma realidade pelo menos
Bangladesh precisa desesperada- ter o precioso arrendamento. Quando noiva cintilante, uma pitada de comi- evidente: a Índia envia esses homens a
mente do que se encontra do outro la- a metade do PIB provém de vantagens nho ou uma porção de goru bhuna.4 uma região onde não entendem a lín-
do da fronteira. O couro, por exemplo, ou medidas ilegais, a violência e a cor- Muito ampla, a rede que protege essa gua e cuja história e cultura são estra-
uma das indústrias nacionais mais rupção gangrenam todas as institui- fonte de bens importados torna o país nhas para eles.
rentáveis, vem quase que exclusiva- ções. Oficialmente, o haat ganha uma dependente desse contrabando. A pon- A BSF e, em menor medida, sua ho-
mente da Índia. O abate e a exportação comissão de 3% sobre cada venda – o to de comprometer qualquer chance móloga bengali, a Guarda Fronteiriça
são proibidos na maioria do território que, com 3 mil cabeças por semana, é de desenvolvimento sem o dinheiro do Bengali (Border Guard Bangladesh,
indiano, mas, apesar dessas leis, que muito dinheiro, ou como dizem os mercado negro, que se insinua por to- BGB), menos brutal e menos impor-
tiveram sua origem nos preceitos reli- bengalis, “Bohoot taca!”. E todo mun- dos os lados, de cima a baixo da escala tante, poderiam colocar um fim aos
giosos, todos os dias dezenas de mi- do na cidade sabe que é apenas um dos social. No caso de Islam, não apenas a movimentos transfronteiriços ilegais.
lhares de cabeças de gado chegam mi- meios para Rahman rentabilizar sua polícia, mas também a justiça é cúm- Mas muitos no seio dessas instituições
lagrosamente. “O contrabando é a posição dominante no maior corredor plice: quando Kinu Mia, o padrinho da pagaram pelo privilégio de trabalhar
segunda maior indústria do país”, diz de animais do país. máfia do gado responsável pela violên- na fronteira, pois sabem perfeitamen-
Aminal Ehsan, diretor de comunica- Em outubro de 2011, Nurul Islam, cia contra Eshamel, quis “discutir” te que “controlá-la” é o mesmo que ter
ção de Rupantar, uma ONG de Khulna. vendedor de chapatis3 em um dos com ele, bastou mandar emitir um o poder de dar “direitos de passagem”.
“Sim, claro, há tráfico ilegal na Índia, cais (ghât) mais frequentados de Ra- mandato para trazê-lo. No escritório “Em Délhi ou Dacca, os soldados e os
mas não tanto quanto aqui, onde ele jshahi, colocou na cabeça a ideia de do comissário do 9º distrito, ele soltou: oficiais negociam para ser alocados
representa metade de tudo” – tudo que fazer o inventário dos animais em “Você é arraia-miúda e eu sou peixe nesse local que tem reputação de ser
é comprado, vendido, consumido. trânsito: “Não suportava mais ver grande. Fique no seu lugar, senão eu ‘rentável’”, diz um funcionário da al-
que os que enchem o bolso graças às corto sua carcaça em milhares de pe- fândega de Benapole, o maior porto
Violência e corrupção vacas são todos estrangeiros. Eles ga- dacinhos e espalho pelo tanque”. fluvial de Bangladesh.
Se o comércio de gado vivo é proi- nham seu dinheiro em Rajshahi e Quando Eshamel foi agredido, a im- O que acontece na fronteira está
bido do lado indiano, a vaca hindu guardam para si!”, diz. Segundo Is- prensa local se recusou a cobrir o caso. mais ligado à demonstração de força
vendida a um Bangladesh muçulma- lam, um “padrinho” local se arranja Mesmo que o tráfico seja quase ou à gesticulação do que a uma verda-
no não é mais considerada ilícita. Bas- com um gheital (preposto do cais, ou- institucional, ou talvez por essa ra- deira tentativa de controlar o fluxo de
ta pagar, na chegada, uma taxa de 500 tro cargo governamental lucrativo) zão, a fronteira entre a Índia e Ban- bens e pessoas. “Que comédia!”, suspi-
tacas (R$ 12), e o negócio está feito. para fazer transitar o gado pelo por- gladesh é uma das mais sangrentas ra Ehsan. “Os guardas não têm, na rea-
Para os mais pobres, do pastor do in- to. Ele envia em seguida homens con- do mundo, segundo a fundação Ma- lidade, nenhuma intenção de prender
terior ao artesão de couro de Dacca, o tratados no local para buscar os ani- sum, uma organização de Calcutá quem quer que seja. A violência infligi-
gado é vital. E encontra-se a carne de mais na Índia, não sem ter também que tenta, em parceria com a Anistia da aos desesperados que se encontram
vaca “bengali” no mundo inteiro: na subornado os guardas da fronteira Internacional, fazer cessar as execu- prisioneiros entre os dois fogos por
forma de bifes em Dubai e Abu Dhabi, para que fechem os olhos. ções extrajudiciais ali. Segundo Kiri- causa de sua miséria é intolerável.”
de artigos de couro de luxo em Paris, Enojados por esse sistema onde ty Roy, seu presidente, cerca de quin- A muralha é apenas a manifesta-
de botinas italianas falsificadas nos aqueles que arriscam mais ganham ze pessoas são torturadas por dia e, ção física da imaginação poderosa,
Estados Unidos... menos, Islam e seu amigo Eshamel desde o ano 2000, mais de mil foram transbordante, de um Estado megalo-
Os animais vêm dos confins da Ín- instalaram então um ponto de passa- mortas pelos guardas. maníaco. Cinquenta anos de esforços
dia, pois a pecuária bengali não é mais gem informal no ghat. Para cada vaca, Muitos consideram a violência per- para se tornar uma nação democrática
suficiente. Em Bangladesh, eles são eles pedem ao pastor o recibo, a fim de sistente um “efeito colateral” da ma- e atraente – e tudo isso para terminar
vendidos por mais ou menos 40 mil ta- verificar que as taxas alfandegárias fo- nutenção da ordem. Mas, num contex- nesse muro?
cas (R$ 993); 32 mil tacas a mais que ram devidamente pagas. “Era logo an- to mais amplo de um tráfico que lucra
uma vaca local e aproximadamente tes do Aïd, e em somente um dia, ape- bilhões de dólares e no qual os guar- *Elizabeth Rush é escritora e membro da
seis vezes seu valor em um distrito in- nas metade das 4 mil vacas que das de fronteira estão completamente agência fotográfica Makoto.
diano, onde o abate é proibido. passaram estavam regularizadas. Era comprometidos, essa violência toma
Dos 27 quilômetros da comuna de o único meio que tínhamos para pro- um sentido completamente diferente.
Lagola que são adjacentes à fronteira, var a corrupção.” Um falso certificado O muro – e talvez seja esse o ele-
apenas 7 são cercados, e, mesmo ali, os de importação custa cinco vezes mais mento mais significativo – é vigiado 1 O salário mínimo é de 115 rúpias (R$ 4) por dia.
2 Algumas pessoas preferiram ficar anônimas.
animais passam sem problema. barato que um oficial. A máfia local, por homens que vêm, na maior parte, 3 Pão indiano sem fermento.
Romjun, um mercador de gado local, depois de ter molhado a mão de um dos 27 outros estados da União India- 4 Prato bengali à base de arroz.
32 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

ASSANGE, PINOCHET... E OS OUTROS

Embaixadas, direito
de asilo e extradições
Já vimos o Reino Unido mais obsequioso! Foi em Londres, no dia 17 de outubro de 1998, que o general chileno
Augusto Pinochet foi preso. Ele também se encontrava com um pedido de extradição, expedido pelo magistrado espanhol
Baltasar Garzón, que, enumerando 91 casos de espanhóis vítimas da ditadura, pretendia julgá-lo
POR MAURICE LEMOINE*

F
undador do site WikiLeaks, que, de Pinochet de comparecer à justiça,
em 2010, tornou públicas cente- em razão de “seu delicado estado de
nas de milhares de documentos saúde”. O mundo assistiu então, no dia
secretos do Pentágono e do De- 3 de março de 2000, a uma cena fora do
partamento de Estado norte-america- comum: na pista do aeroporto de San-
no, Julian Assange não fez muitos ami- tiago do Chile, o “moribundo”, que
gos em Washington. Porém, com desceu do avião em uma cadeira de ro-
nacionalidade australiana, ele poderia das, levantou com vigor para saudar
sem dúvida dar uma banana irreve- seus velhos camaradas que vieram re-
rente para as autoridades norte-ame- cebê-lo. Apesar dos esforços do magis-
ricanas se não houvesse contra ele um trado chileno Juan Guzmán, Pinochet
mandado de prisão europeu lançado morreu no dia 10 de dezembro de 2006,
pelo Ministério Público sueco para in- sem ter respondido por seus crimes.
terrogá-lo sobre alegações de crime se- Para o procurador do Tribunal Supre-
xual – que ele nega – cometido no terri- mo Espanhol, Carlos Castresana, que
tório daquele país. em 1996 colocou a primeira pedra de
Vivendo em residência vigiada em sua condenação, não há dúvidas sobre
© Olivia Harris / Reuters

Londres, onde foi interpelado em vir- a identidade dos que o tiraram da situ-
tude desse mandado de prisão, teve re- ação de risco: “Está muito claro que fo-
jeitado pela Corte Suprema do Reino ram Tony Blair, José Maria Aznar e
Unido, no dia 14 de junho, seu último Frei. Eles sabiam perfeitamente que,
recurso contra uma transferência para se Pinochet retornasse ao Chile, ele
Estocolmo. No dia 19, considerando- não seria julgado”.6
-se vítima de um complô e de uma Na América Latina, existe memó-
Manifestação em apoio a Julian Assange diante da embaixada do Equador em Londres
“perseguição política”, Assange se re- ria. Lembra-se do presidente hondu-
fugiou na embaixada equatoriana e renho Manuel Zelaya, vítima de um
solicitou asilo político, em acordo com tomar medidas para prender Assange, forma: “Na Espanha, Augusto Pino- golpe de Estado, que entrou clandesti-
o presidente Rafael Correa. Como o atualmente nas dependências da em- chet não teria, em virtude do contexto namente em seu país no dia 21 de se-
australiano, Quito considera que ele baixada”.3 O Equador replicou clara- muito politizado, um processo sere- tembro de 2009 e se refugiou na em-
corre o risco, no fim, de ser extraditado mente: “Não somos uma colônia britâ- no”, enquanto no Chile ele poderia ser baixada do Brasil, colocada em estado
da Suécia para os Estados Unidos. As- nica!”, mas Londres não arredou: se “julgado de maneira mais eficaz”.4 de sítio e ameaçada de “perder seu sta-
sim, ressalta o ministro das Relações colocar um pé para fora de seu refúgio, Qualificando a detenção como tus diplomático” pelo ditador Roberto
Exteriores equatoriano, Ricardo Pa- Assange será preso. “cruel” e “injusta”, a ex-primeira-mi- Micheletti. Lembra-se de Caracas, no
tiño, “a situação jurídica mostra clara- Já vimos o Reino Unido mais ob- nistra britânica Margaret Thatcher dia 12 de abril de 2002. Enquanto na
mente que [neste caso] Assange não sequioso! Foi em Londres, no dia 17 acusou Garzón de “ser aconselhado véspera um golpe de Estado tirou o
teria um processo justo, pois poderia de outubro de 1998, que o general por um grupo de marxistas”.5 Inde- presidente Hugo Chávez do poder,
ser julgado por um tribunal especial chileno Augusto Pinochet foi preso. pendentemente das proximidades ide- uma multidão de extrema direita ten-
ou militar, e não é improvável conside- Ele também se encontrava com um ológicas, Pinochet lhe fez grandes fa- tou tomar de assalto a embaixada de
rar que ele poderia ser vítima de um pedido de extradição, expedido pelo vores, ajudando-a sem que ninguém Cuba, destruiu seus veículos, cortou
tratamento cruel e degradante e se ver magistrado espanhol Baltasar Gar- soubesse durante a Guerra das Malvi- sua água, eletricidade, telefone e esta-
condenado à prisão perpétua ou à pe- zón, que, enumerando 91 casos de es- nas, que opôs Reino Unido e Argentina beleceu um bloqueio. Henrique Capri-
na de morte”.1 panhóis vítimas da ditadura, preten- em 1982. Washington se pronunciou les Radonsky – candidato da direita à
No dia 15 de agosto, ignorando a dia julgá-lo. igualmente a favor do retorno do “ve- eleição presidencial de 7 de outubro
Convenção de Viena sobre as relações Após a Câmara dos Lordes ter recu- lho amigo” Pinochet ao Chile. – pretendia investigar a representa-
diplomáticas (18 de abril de 1961), que sado conceder imunidade diplomática Quando, em outubro de 1999, o Tri- ção para procurar membros do go-
garante a inviolabilidade das embai- ao general, o presidente chileno Eduar- bunal Supremo Britânico ratificou a verno que estariam refugiados. En-
xadas, o governo britânico ameaçou do Frei e seu governo de centro-es- extradição, um discreto “comitê de trincheirado, o embaixador cubano
investir pela força contra a de Quito: querda não cessaram de reclamar o crise” implicando Washington, Lon- Germán Sánchez Otero refreara sua
“Vocês devem ter consciência de que repatriamento do antigo ditador ao dres, Santiago e Madri encontrou a pretensão com um comentário mor-
existe uma base legal na Grã-Breta- seu país. Com seriedade, o ministro porta de saída: um relatório de três daz: “Cuba resistiu por quarenta anos
nha, a lei Diplomatic and Consular das Relações Exteriores, o socialista médicos britânicos designados por ao império mais poderoso do plane-
Premises Act de 1987,2 que nos permite José Miguel Insulza, justificou desta Londres concluiu pela incapacidade ta, não será aqui que deixaremos vio-
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 33

lar nossa soberania!”.7 A mediação do ral, o ex-ministro das Relações Exte- (67 mortos); José Antonio Colina, mi- Budapeste, entre 1956 e 1971? A me-
representante da Noruega e... o retor- riores chileno Insulza, adverte desde o litar de oposição responsável, em nos que lhe seja aplicado o tratamen-
no do presidente Chávez colocaram princípio que o debate não pode focar 2003, em Caracas, por atentados a to reservado em 1989 ao ex-general
fim à agressão. o “direito de asilo”, mas a “inviolabili- bomba perpetrados contra as repre- Noriega: refugiado na Nunciatura
No final desse episódio, o breve dade dos locais diplomáticos”. No dia sentações consulares espanhola e co- Apostólica para escapar das tropas
ditador Pedro Carmona foi condena- 24 de agosto, a organização chegará a lombiana – inicialmente atribuídos norte-americanas que tinham inva-
do e colocado em prisão domiciliar, um “acordo aceitável” de “solidarieda- aos partidários do presidente Chávez dido o Panamá, ele teve de se subme-
de onde fugiu para se refugiar na de e apoio” ao Equador, depois da su- pela mídia; e o coronel Hernán Oro- ter a decibels ensurdecedores de po-
embaixada da Colômbia em Cara- pressão de qualquer menção à “amea- zco, condenado na Colômbia a qua- tentes alto-falantes que tocavam rock
cas. Após o governo bolivariano ter ça” britânica a Quito, a pedido dos renta anos de prisão pelo massacre de 24 horas por dia e no fim de onze dias
lhe concedido um salvo-conduto, Estados Unidos.8 Mapiripán (12 de julho de 1997). Uma acabou não aguentando. Resta saber
apesar da gravidade dos fatos, ele lista interminável poderia prolongar o que pensariam desse método os ha-
voou a bordo de um avião das Forças Cinismo das grandes potências esta curta amostra... bitantes do seleto bairro londrino de
Armadas Colombianas para Bogotá, Seria porque Washington tem al- Assange foi reclamado pela Suécia Knightsbridge!
onde, como “refugiado político”, guma dificuldade com as noções de por uma investigação sobre um delito
ainda vive, enquanto Caracas recla- asilo político e extradição? Em Miami, de direito comum. O presidente Cor- *Maurice Lemoine é jornalista.
ma sua extradição. vive Luis Posada Carriles, reclamado rea não deseja subtraí-lo à justiça
Todos os membros da União de Na- por Caracas e Havana por ter feito ex- sueca. Ele reclama simplesmente a
ções Sul-Americanas (Unasul), das plodir um avião da Cubana de Aviaci- garantia de que o jornalista não será 1 BBC Mundo, Londres, 17 ago. 2012.
2 Lei aprovada em 1987 em circunstâncias totalmen-
mais distintas tendências políticas, ón em 1976 (73 mortos), fugido de extraditado para outro país – para fa- te excepcionais: a morte de um policial vítima de
apoiam hoje Quito e reiteram o direito uma prisão venezuelana e organizado lar claramente, os Estados Unidos. balas vindas da embaixada líbia.
soberano dos Estados em acordar asilo uma série de atentados terroristas em Como essa garantia não vem, nem 3 The Guardian, Londres, 16 ago. 2012.
4 Le Monde, 3 dez. 1998.
político. No seio da Organização dos Cuba em 1997. No território norte- um salvo-conduto, a situação parece 5 El País, Madri, 7 out. 1999.
Estados Americanos (OEA), na qual os -americano, ele tem como compa- delicada. Assange conheceria a sorte 6 El País, 13 dez. 2006.
Estados Unidos têm um peso enorme, nheiros Gonzalo Sánchez de Lozada, do cardeal anticomunista Jozsef 7 Maurice Lemoine, Chávez Presidente!, Flamma-
rion, Paris, 2005.
o apoio se revela menos evidente. Cha- ex-presidente boliviano que La Paz Mindszenty, que viveu quinze anos 8 Apenas o Canadá, membro do Commonwealth,
mado pelo Equador, seu secretário-ge- deseja julgar pela repressão de 2003 na embaixada norte-americana, em não assinou esse texto.

A INOCÊNCIA DOS MUÇULMANOS

Singular seletividade dos


manifestantes árabes
POR AS’AD ABU KHALIL*

A
publicação de caricaturas dina- lado, a defesa do Islã, de seu profeta entre as ruas e a cólera dos Estados fluência. Por outro lado, a injustiça so-
marquesas causou mais mani- maior e do código moral restrito não Unidos. Al-Qaradawi chegou até a fa- cial, a ocupação estrangeira, a guerra,
festações nas capitais árabes que apresenta qualquer perigo. Os salafis- zer declarações conciliadoras em re- a tirania, a desigualdade de gênero e
a ocupação dos Estados Unidos tas se manifestam sobre esses temas lação a Washington. outros temas semelhantes não provo-
em Bagdá ou a persistência das agres- com a mesma intensidade que acusam Os regimes árabes do Golfo, res- cam a cólera dessas organizações. Pre-
sões israelenses contra os palestinos. O a Irmandade Muçulmana de pragma- ponsáveis por financiar e armar di- ferem denunciar um filme trash na
mesmo ocorreu no caso do filme norte- tismo político e laxismo. ferentes facções do islamismo radi- internet.
-americano A inocência dos muçulma- Os governos árabes e seus meios de cal, se encontram em uma posição De seu lado, os meios de comuni-
nos, sobre o profeta Maomé, lançado na comunicação também alimentam es- difícil: querem aparecer como de- cação ocidentais – tanto os mais con-
internet. Por que essa seletividade? se tipo de protesto. A Al-Jazira, por fensores da fé, mas também devem servadores como os mais liberais –
A concorrência entre os salafistas e exemplo, com seu ulemá vedete Yussef se esforçar para não se indispor com manifestam rejeição por qualquer
a Irmandade Muçulmana é intensa no al-Qaradawi, não hesitava em atiçar as os Estados Unidos. expressão islamita ou muçulmana.
conjunto do Oriente Médio. Em vários paixões do público, em particular des- As formações islamitas – em parti- Em vez de levar os países ocidentais a
países – como Síria, Tunísia e Egito –, de que as relações entre Catar e Esta- cular depois de terem acesso ou se rever suas políticas, as manifestações
essa competição expressa as rivalida- dos Unidos ficaram mais tensas pelas aproximarem do poder, como a Ir- no mundo muçulmano geram mais
des entre a Arábia Saudita, que apoia boas relações desse país árabe com o mandade Muçulmana – buscam evitar preconceito. Ironicamente, o fanatis-
os primeiros, e o Catar, que aprova os Irã e o Hezbollah. motivos que possam perturbar suas re- mo dos muçulmanos salafistas ali-
segundos. Em razão do patrocínio de No caso do filme sobre Maomé, lações internacionais ou com os países menta, assim, os islamofóbicos oci-
Riad, os salafistas são reticentes em to- por outro lado, o canal catariano e os do Golfo. Mas os ataques contra o Islã dentais, e vice-versa.
mar posição com relação a grandes meios de comunicação financiados suscitam fortes reações e estimulam a
questões como justiça social, ocupa- pelos sauditas adotaram uma postu- concorrência entre os diversos grupos *As’ad Abu Khalil é autor do blog Angry
ção estrangeira e Palestina. Por outro ra muito mais prudente, hesitando que não querem perder terreno de in- Arab (angryarab.blogspot.com).
34 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

NEGOCIAÇÕES ENTRE AS FARC E O GOVERNO

Por que a paz na Colômbia é possível


Fruto natural do sistema político, apresentado como a garantia da “continuidade”, a vitória de Santos nas eleições presidenciais
de 2010 marcou uma mudança notável. O novo presidente estabeleceu relações com uma elite urbana, cosmopolita e com
pretensões transnacionais, cujas preocupações nem sempre convergem com as dos grandes proprietários de terras
POR GREGORY WILPERT*

A
pós cinquenta anos de uma feroz dos grandes proprietários de terra, ele
guerra civil e inumeráveis nego- também mantém relações estreitas
ciações sem resultado, o governo com certos barões da droga. Em 1991, a
colombiano e as Forças Armadas Agência de Informação para a Defesa
Revolucionárias da Colômbia (Farc) (DIA, na sigla em inglês) dos Estados
concordaram em dar outra chance à Unidos classificava o futuro homem
paz. No dia 27 de agosto, o presidente forte do país entre os colaboradores do
Juan Manuel Santos anunciou sua in- cartel de Medellín – cidade onde nas-
tenção de retomar o diálogo com a ceu e foi prefeito por um curto período

© Javier Casella/Presidency/Handout / Reuters


guerrilha e confiar a mediação das dis- – e o descrevia como “amigo próximo
cussões aos governos da Venezuela, de Pablo Escobar”.2 Sua nomeação co-
Chile, Noruega e Cuba. Essa reviravolta mo diretor de aviação civil no início da
não deixa de surpreender ao romper década de 1980 coincidiu com uma alta
com a escalada militar dos últimos dez exponencial do número de aviões au-
anos, antes sob a presidência de Álvaro torizados a decolar e novas pistas de
Uribe, depois sob o governo de Santos aterrissagem. Sobre o assunto, uma
– que foi seu ministro da Defesa. antiga amante de Escobar, Virginia
Pelo menos dois fatores contribuí- Vallejo, confessou em 2007: “Pablo cos-
ram para tanto. Em primeiro lugar, os tumava dizer que, sem nosso garoti-
dois lados tomaram consciência de nho abençoado pelos deuses [Uribe],
que nem um nem outro têm condições teríamos de ir a Miami nadando para
de ganhar essa guerra. Mesmo que os vender nossa droga aos gringos”.3
rebeldes tenham experimentado reve- Apesar de sempre ter negado essas Juan Manuel Santos divulga em cadeia nacional as negociações de paz com as Farc
ses importantes durante a década Uri- acusações, o presidente Uribe também
be (2002-2010), eles reconstituíram o mantinha boas relações com grupos
essencial de suas forças desde 2008. A paramilitares. Seria apenas coincidên- explicava o presidente em 2004.4 Essa tes no país, as Farc e o Exército de Li-
perda de vários dirigentes em embos- cia o fato de seu antigo chefe de cam- era sua maneira eloquente de afirmar bertação Nacional (ELN), em função
cadas não impediu as Farc de empre- panha e ex-diretor dos serviços secre- a falta de interesse em políticas de re- das operações perpetradas pelos mili-
ender uma contraofensiva, que há tos, Jorge Noguera, ter sido condenado distribuição de renda – que, na Colôm- tares colombianos e seus supletivos
quatro anos mistura minas, atiradores a 25 anos de prisão em 2011 por ajudar bia, passa necessariamente por uma paramilitares de extrema direita.5 Du-
de elite e ataques com bombas. Segun- as Unidades de Autodefesa da Colôm- reforma agrária – e, ao mesmo tempo, rante os vinte anos que precederam a
do relatório recente do Congresso co- bia (AUC), principal organização para- sua lealdade ao neoliberalismo. presidência de Uribe, a guerra civil ex-
lombiano, a guerrilha dispunha em militar de extrema direita, a se infiltrar Foi essa obsessão pelo uso da força, perimentou três tentativas de negocia-
2011 de uma “presença significativa” na administração que ele dirigia? contudo, que levou Uribe ao poder, a ções de paz – entre 1982 e 1985, 1990 e
em um terço das municipalidades do favor de uma ruptura no seio da elite 1992, 1999 e 2002. Todas fracassaram.
país.1 Diante dessa situação, os milita- colombiana. Oposto à candidatura de No último caso, a responsabilidade
res multiplicaram operações estraté- Horacio Serpa, que fazia parte do res- pelo insucesso recaiu principalmente
gicas e tentativas de infiltração. Essas
Apesar de sempre trito grupo a favor das negociações de sobre os Estados Unidos – cujo “Plano
táticas novas certamente tornaram os ter negado essas paz com as Farc, o antigo fazendeiro Colômbia”, com o suposto objetivo de
combates menos visíveis do que eram acusações, o presidente de Medellín bateu à porta do Partido financiar a luta contra os traficantes
há dez anos, mas não atenuaram o sa- Uribe também Liberal e apresentou sua própria can- de droga, servia, na verdade, como
crifício infligido às populações. Se há didatura às eleições presidenciais de máquina de guerra contra as guerri-
um ponto de acordo entre os dois cam-
mantinha boas 2002 com a etiqueta de “independen- lhas – e sobre as elites colombianas,
pos, não muito divulgado, é que um relações com grupos te”. Depois, com a reeleição de 2006 em que demonstraram pouca urgência na
não superará o outro. paramilitares vista, criou sua própria legenda, o Par- conclusão das discussões.
Mas o sinal de trégua dado por Bo- tido Social de Unidade Nacional (“o Santos é a amostra mais represen-
gotá se explica antes de tudo pelo perfil partido da U”), que pôs fim ao sistema tativa dessas elites. Seu tio-avô Eduar-
do presidente Santos, que não pertence bipartidário que reinava na Colômbia do foi presidente da República entre
exatamente à mesma elite que seu pre- Uribe jamais escondeu sua filosofia havia um século. A renovação da cú- 1938 e 1942, enquanto seu primo Fran-
decessor, eminente representante da política. Se admitia que as desigualda- pula estatal se manifestava pela for- cisco ocupou a cadeira de vice-presi-
oligarquia provincial. Após a morte de des sociais vertiginosas de seu país mação de um governo de “novas ca- dente quando Uribe estava no poder.
seu pai, um criador de gado executado não estavam alheias à guerra civil, ras”, em sua maioria provenientes do Os Santos se beneficiavam dos divi-
pelas Farc durante uma tentativa de considerava que era necessário acabar setor privado. dendos de um poder construído du-
sequestro em 1983, Uribe vendeu suas com a guerra antes de combatê-las. Como condição para qualquer ne- rante o último século: El Tiempo, úni-
terras familiares para financiar a car- “Sem paz, não pode haver investimen- gociação com os rebeldes, Uribe exigiu co jornal de distribuição nacional,
reira política, sem jamais cortar os la- tos. E, sem investimentos, não há re- que depusessem as armas – prerroga- pertenceu à família de 1913 a 2007. O
ços que o uniam à aristocracia rural. cursos fiscais que o governo possa in- tiva evidentemente inaceitável para os pai do atual presidente foi seu diretor
Defensor contundente dos interesses vestir no bem-estar da população”, dois movimentos de guerrilha presen- durante 25 anos.
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 35

Formado pela ortodoxia econômi- Esse clima mais distendido parece declina com elas, as chances de chegar
ca da Universidade Harvard e da Lon- não convencer Uribe, que se voltou a um acordo de paz se tornam mais
don School of Economics (LSE), San- contra o antigo protegido e tornou-se tangíveis do que nunca.
tos tinha apenas 21 anos quando seu adversário mais virulento. Quan- A mediação confiada aos chefes de
conseguiu seu primeiro emprego go- do Santos nomeou um membro da Estado do Chile e da Venezuela pode
vernamental como delegado da Co- oposição como ministro do Trabalho, desempenhar um papel determinante,
lômbia na Organização Internacional por exemplo, o ex-presidente qualifi- porque encarnam duas extremidades
do Café em Londres. Promovido a cou a decisão de “hipócrita” e um sinal do cenário político latino-americano.
ministro do Comércio Exterior em de “hostilidade contra o uribismo”.7 Sebastián Piñera e Hugo Chávez certa-
1991, o jovem herdeiro empreendeu A ruptura entre os dois políticos mente serão escutados. Essa suposição
uma rotação de cargos que o condu- marca também a fratura da antiga vale principalmente para o presidente
ziu ao posto de ministro da Defesa no maioria governamental. A aliança an- bolivariano, que dispõe de laços privi-
governo de Uribe. tes formada pela grande burguesia ru- legiados com as Farc sem, no entanto,
Fruto natural do sistema político, ral e os meios empresariais de Bogotá aprovar a estratégia da luta armada –
apresentado como a garantia da “con- explodiu em estilhaços. No entanto, e fonte de infinitos problemas para a Ve-
tinuidade”, a vitória de Santos nas elei- apesar da reorganização em torno de nezuela, como o afluxo de milhões de
ções presidenciais de 2010 marcou, Santos, a política colombiana perma- refugiados colombianos ou a desesta-
contudo, uma mudança notável. O no- nece igual em muitos pontos, notada- bilização da zona de fronteira.
vo presidente estabeleceu relações mente no que se refere ao neoliberalis- A renúncia às armas também já
com uma elite urbana, cosmopolita e mo econômico. não é condição excludente para as ne-
com pretensões transnacionais, cujas gociações, razão pela qual uma even-
preocupações nem sempre convergem tual ruptura do cessar-fogo não colo-
com as dos grandes proprietários de cará em risco todo o processo. Nas
terras. Santos começou a prestar me-
Fruto natural do sistema discussões precedentes, o menor sinal
nos atenção nas reclamações dos caci- político, apresentado de ataque de um lado ou de outro ser-
ques e seus aliados paramilitares. Os como a garantia via de desculpa para a mesa se desfa-
interesses que o atual presidente re- da “continuidade”, zer e alimentar o espiral da guerra.
presenta o inclinam mais a investir na A alternância do poder no Estado
integração de seu país ao processo de
a vitória de Santos nas colombiano – que representa, contu-
união latino-americana. eleições marcou uma do, apenas um pequeno deslocamento
Contrariamente aos grandes pro- mudança notável das relações de força no minúsculo pe-
prietários de terras, o setor de exporta- rímetro das elites dirigentes – poderia,
ção tem mais facilidade para se aco- assim, colocar fim em uma das guer-
modar a políticas redistributivas. Esse ras civis mais longas e sangrentas da
aspecto talvez tenha sido crucial para a À primeira vista, o divórcio entre a história. Pequena mudança, enorme
promulgação da lei “histórica” de ju- presidência e os grandes proprietários consequência.
nho de 2011, que prevê a restituição das de terras não é de bom agouro para as
terras de 2 milhões de colombianos negociações de paz – cujo sucesso está *Gregory Wilpert, sociólogo, é autor de
submetidos à diáspora dos últimos 25 condicionado a que todos os partidos Changing Venezuela by taking power. The
anos decorrente da guerra civil.6 aceitem sentar-se à mesma mesa e to- history and policies of the Chávez govern-
Uribe decidiu ligar a sorte da Co- car em assuntos espinhosos, como a ment [Mudando a Venezuela pela tomada do
lômbia à dos Estados Unidos, investin- reforma agrária, ponto particular- poder. História e políticas do governo Chá-
do todas as fichas na obtenção de um mente sensível entre os amigos pode- vez], Verso Press, Londres, 2007.
tratado de livre-comércio com Wa- rosos de Uribe. As linhas, contudo, co-
shington. Seu sucessor, porém, perse- meçam a se mover. Santos integrou à
gue outras prioridades: a integração sua equipe de negociadores dois gene-
latino-americana (à qual se dedica rais aposentados que por muito tempo 1 “Alertan que más de 330 municipios tienen fuerte
fortemente) ou a projeção internacio- sustentaram a linha dura na guerra presencia de las Farc” [Alertam que mais de 330
nal da Colômbia, segunda economia contra as Farc. O obstáculo da oligar- municípios possuem forte presença das Farc], El
Espectador, Bogotá, 28 abr. 2011.
da América do Sul (na frente da Argen- quia rural parece menos insuperável 2 “U.S. Intelligence listed Colombian president Uribe
tina), notadamente por meio de sua na medida em que a maioria dos ou- among ‘important Colombian narco-traffickers’ in
participação no grupo dos Civets (Co- tros setores econômicos deseja ver o 1991” [Inteligência dos Estados Unidos classifica-
va o presidente colombiano Uribe entre “importan-
lômbia, Indonésia, Vietnã, Egito, Tur- fim dessa guerra. Segundo estudo da tes narcotraficantes colombianos” em 1991], Na-
quia e África do Sul), que, à imagem Fundação Ideias para a Paz, realizado tional Security Archive, 2 ago. 2004.
dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China por meio de 32 entrevistas com direto- 3 Luis Hernández Navarro, “Álvaro Uribe, señor de
las sombras y Los Pinos” [Álvaro Uribe, senhor das
e, mais recentemente, África do Sul), res de empresas de grandes cidades do sombras e de Los Pinos], La Jornada, México, 18
buscam desconstruir a imagem de um país, “a maioria dos líderes econômi- mar. 2008.
mundo unipolar assegurando os inte- cos estima que a negociação constitui 4 “Uribe defends security policies” [Uribe defende
políticas de segurança], BBC News, Londres, 18
resses dos investidores. a via mais segura e desejável para o nov. 2004.
O novo presidente também se dis- conflito armado na Colômbia”.8 5 Ler, notadamente, Iván Cepeda Castro e Claudia
tingue por sua habilidade em admi- Se as negociações que estão por vir Girón Ortiz, “Comment des milliers de militants ont
été liquidés en Colombie” [Como milhares de mili-
nistrar conflitos políticos interiores, se apresentam como mais auspiciosas tantes foram liquidados na Colômbia], Le Monde
tradicionalmente exacerbados na Co- que as tentativas precedentes, tam- Diplomatique, maio 2005.
lômbia. Em vez de jogar lenha na fo- bém é porque até agora esses esforços 6 “Santos signs ‘historic’ victims’ law” [Santos san-
ciona lei histórica para vítimas dos deslocamen-
gueira, como gostava de fazer Uribe, se davam à sombra de operações mili- tos], Colombia Reports, 11 jun. 2011. Disponível
seu sucessor prefere dobrar a oposição tares norte-americanas. Foi a Guerra em: colombiareports.com.
cooptando dela vários membros de Fria na década de 1980, a Guerra Anti- 7 “Tensions between Uribe and Santos rise” [Cres-
cem tensões entre Uribe e Santos], Colombia Re-
seu governo. Atualmente, todos os drogas na década de 1990, a Guerra ports, 1º nov. 2011. Disponível em: colombiare-
grandes partidos políticos – à exceção contra o Terrorismo nos anos 2000. No ports.com.
do Polo Democrático Alternativo, de momento em que essas linhas de fren- 8 “Líderes empresariales hablan de la paz con las
FARC” [Líderes empresariais falam em paz com as
esquerda – possuem direito de voto no te se dissipam, pelo menos na Colôm- Farc], Fundación Ideas para la Paz, ago. 2012. Dis-
alto escalão do poder. bia, e que a influência de Washington ponível em: www.ideaspaz.org.
36 Le Monde Diplomatique Brasil outubro 2012

OS POBRES E OS POBRES DEMAIS

Quando os africanos
migram para o Sul
A cada ano, 25 mil africanos ocidentais – esmagadoramente homens – tentam a sorte em direção à África do Sul.
Um êxodo realizado também por 20 mil etíopes e somalis e centenas de milhares de zimbabuenses e moçambicanos.
“É uma loucura o caminho que eles fazem! Uma viagem ainda mais difícil do que a vida da qual estão fugindo”
POR GUILLAUME PITRON*, ENVIADO ESPECIAL

J
á é meio-dia e Étienne Bokoli, tremem. Ele conseguiu, e mesmo as- um caráter mais cultural para o eco- Nouakchott a Lagos, espreitam o fu-
um tradutor congolês de 20 anos, sim o medo de ser parado na última nômico. As condições de imigração na turo na direção oposta daquela que
começa a ficar impaciente. A pi- fronteira permanece vivo. O homem Europa endureceram. E, além disso, um dia seus pais vislumbraram.
no, o sol de inverno lança seus de 30 anos consegue no máximo res- “se todos formos embora, quem vai E, para aliviar o fardo de dor e de
raios fustigantes sobre os telhados on- mungar algumas palavras. A van não construir a África?”, inquieta-se o can- esperança, dezenas de empresários
dulados do vilarejo de Messina, e nem passa de um ponto branco na estrada tor de reggae Ismael Isaac. Marrocos, do transporte se oferecem para “faci-
sinal de seu amigo Babasar. Faz sete para Johannesburgo. Quênia, Angola... – antes orientados litar” o trajeto. Entre eles, Sanogo Bas-
horas que o senegalês está recluso com Bokoli diz cruzar com uma média para o Mediterrâneo, os ponteiros da sikini e Édouard Amoussou organi-
centenas de clandestinos no Centro de de cinco africanos ocidentais por se- bússola agora giram em direção às zam suas operações em uma discreta
Acolhimento de Refugiados dessa ci- mana. “Sobretudo do Senegal e de Ga- economias emergentes do subconti- estação de ônibus em Port-Bouet, en-
dadezinha sul-africana na fronteira na. É uma loucura o caminho que eles nente. Principalmente a primeira de- cravada entre o betume que desliza
com o Zimbábue. “Ele atravessou a fazem! Uma viagem ainda mais difícil las, polo de futuro e crescimento, “a em direção a Gana e as praias de açú-
fronteira pelo mato e se apresentou es- do que a vida da qual estão fugindo.” nova América!”, poder-se-ia ousar: a car mascavo que as ondas do Atlânti-
ta manhã ao serviço de imigração, Em Johannesburgo, Ismael Fofana co- África do Sul. co vêm reverenciar. Os dois compa-
aterrorizado, sem conseguir expressar nhece a história: “Todos os dias candi- “É um país mais acessível que a Eu- dres reconhecem que “nem sempre
em inglês seu pedido de asilo. Eu lhe datos à viagem me ligam da Costa do ropa”, argumenta Felix Gnammoua, arranjam soluções muito legais”, mas
servi de intérprete”, conta Bokoli, que Marfim”, relata o sobrevivente que operário de 24 anos. “Trabalhando o não importa, lança Amoussou, “em
espera alguns rands1 em troca. veio de Abidjan há alguns anos. “Eles mesmo, ganho dez vezes melhor Abidjan, todos os transportadores são
Um avião de Dacar para Kinshasa, não dão bola para minhas advertên- aqui!”, acrescenta Tiemeko Koné. Sen- meio contrabandistas!”.
outro até Lubumbashi, depois um cias! Desde a Copa do Mundo de 2010, tado em um maquis (bar) de Port-Bou- “Um passaporte e uma caderneta
mês errando pelo Zâmbia e o Zimbá- só sonham com a África do Sul.” et, o professor de inglês enfrenta o sol de vacinação bastam para que os ci-
bue... Como Babasar, “milhares de A 9 mil quilômetros de asfalto e ter- com os meios que tem: alguns lenços dadãos da Costa do Marfim viajem pe-
clandestinos vindos dos confins da ra, Abidjan, principal cidade da África de papel e uma Fanta Laranja. E sonha la Cedeao [Comunidade dos Estados
África subsaariana chegam todo ano a Ocidental, ergue suas torres orgulho- em conhecer a convivência entre da África Ocidental]”, explica Bassiki-
Messina por terra”, relata Mpilo Nko- sas e secas sobre a laguna que margeia brancos e negros, fazer um documen- ni. Além disso, 75 mil francos e cinco
mo, do escritório local da Organiza- o Golfo de Benin. Em abril de 2012, a tário e encontrar Nelson Mandela. Pa- dias de viagem através de Gana, Togo,
ção Internacional para as Migrações cidade inteira, engolida pelas ondas de ra o visto e o voo, ele previu um orça- Benin e Nigéria permitem alcançar a
(OIM). Por algumas centenas de rands, calor, aguarda a chegada das tempes- mento de 2 milhões de francos CFA3 cidade costeira de Calabar, na frontei-
tindiqueurs (intermediários) zimba- tades que abrem a estação chuvosa. – três anos de salário médio. “Vou em- ra com Camarões. Sem dinheiro para
buenses desmancham as cercas tri- Até os wôro wôro, os Peugeot 404 que bora assim que conseguir o visto, pagar o visto, a maioria segue então
plas de arame farpado e facilitam a servem ao transporte coletivo, pare- inch’Allah!” na clandestinidade. Felizmente, os
travessia do Rio Limpopo. “Homens, cem desacelerados pelo ar pesado. Esses aventureiros ocultam uma
mulheres, crianças, todos atravessam “Em Abidjan, nós não vivemos, so- segunda classe de migrantes: os po-
a nado durante a noite. Você tem sorte brevivemos.” Com uma Nikon pratea- bres demais para alcançar os aeropor-
se não for roubado no mato pelos pró- da no pescoço, Razak Bakare, fotógra- tos, mas suficientemente abastados Em números
prios intermediários nem topar com fo de andar cambaleante, lamenta o para pegar a estrada. “Guardei o bas-
um crocodilo ou uma mamba-negra”, fim da belle époque do presidente Hou- tante para realizar a viagem em algu- 19,3 milhões: migrantes
detalha Nkomo. phouët-Boigny.2 Crises econômicas, mas semanas”, garante Falla Bouana- internacionais na África em 2010.
Passando pelas patrulhas da fron- atentados contra o pluripartidarismo, ma. Para esse jovem envolto numa 11,1 milhões: pessoas deslocadas
teira, eles se aglomeram no edifício guerra civil... Nas duas últimas déca- elegante túnica vermelha, a loucura na dentro de seu próprio país na África
cercado por grades vermelhas. Da So- das, o declínio da Costa do Marfim estrada se anuncia vitoriosa, “pois no no fim de 2010.
mália à Mauritânia, do Chade ao Zim- ofereceu a toda a África francófona o final eu volto para casa!” Após sete 2,3 milhões: refugiados na África
bábue, todas as etnias do subconti- espetáculo de sua degradação. Os con- anos na África do Sul, Bouanama re- no fim de 2010.
nente mandaram um representante frontos após as eleições de 2010 aca- tornou à Costa do Marfim para ver sua 1,9%: porcentagem de migrantes
esta manhã. Lá vão eles, tom sobre bam de colocar o país de joelhos. família. E agora sonha com uma nova internacionais em relação à
tom de ébano, deixando o centro a “Na Costa do Marfim, você pode partida. Seus olhos brilham à men- população do continente africano.
conta-gotas, com uma autorização de escolher entre duas formas de morrer: ção do pôr do sol na praia de Point
46,8%: porcentagem de migrantes
residência temporária na mão. No ou fica na miséria e morre, ou se aven- Street, em Durban, e dos bairros chi-
internacionais do sexo feminino
meio dessa paleta africana, Babasar. tura a partir... na esperança de ven- ques de Johannesburgo, onde traba- na África.
Ou melhor, um homem assustado que cer”, explica Razak. Historicamente, lhou como vendedor ambulante. As-
encontramos na estação de ônibus, os candidatos a ir embora sempre se sim como ele, seus companheiros Fonte: Organização Internacional para
as Migrações (OIM).
tentando se enfiar num táxi coletivo. voltaram para o antigo colonizador que buscam um “lugar melhor”, es-
Seus membros fraquejam, os lábios francês. Mas a emigração passou de palhados ao longo do arco que liga
outubro 2012 Le Monde Diplomatique Brasil 37

seu petróleo quanto lotados em suas fronteira e garante que eles não inspe-
fronteiras. “Os migrantes olham as cionem ninguém”, explica Bienvenu.
barreiras aduaneiras como se um an- Até os comerciantes da Guiné utilizam
tepassado tivesse deixado uma enor- os serviços desse ex-policial que virou
me herança do outro lado!”, zomba intermediário para viajantes... em si-
Emmanuel Bienvenu, que faz a ligação tuação regular! Um esconderijo ideal
entre os migrantes que se aventuram para os clandestinos, “que, com mais
ilegalmente e os intermediários. Po- 20 mil francos, estão autorizados a se
dem-se ver aí os sinais de uma geração mesclar na multidão”.
cada vez mais privada do Ocidente? Os aventureiros a caminho da Áfri-
ca do Sul transitam pelo vizinho Ga-
90% das migrações bão. Prevenido, Ngom os coloca de vol-
Ao contrário da ideia firmemente ta no caminho sob os cuidados de um
enraizada, “as estatísticas absoluta- colega que, “graças aos contatos com
mente não corroboram esse medo de autoridades muito bem posicionadas,
uma invasão da Europa pela África”, encarrega-se de passá-los pelo posto
analisa Pondi. Os espetaculares nau- de fronteira de Ambam”. Considerado
frágios de barquinhos sobrecarrega- xenófobo, o Gabão fez de sua polícia de
dos com africanos famélicos no Medi- imigração o pesadelo dos clandestinos
terrâneo não mudam essa realidade: – e de Vié em particular. Parado em Li-
“A cada cem imigrantes africanos, breville, “eu fui expulso no primeiro
apenas cinco chegam à América do cargueiro a caminho da África Oci-
Norte e um à Europa.7 Noventa e dois dental”, relata o marfinense. O navio
emigram para outro país africano. A encarregado de afastá-lo de seu sonho
África está se descobrindo”. estava sob o comando de “um enorme
À imagem das pessoas do interior capitão todo tatuado”. Ironia da via-
que vão ao país vizinho trabalhar nu- gem, “ele era sul-africano”.
ma plantação, mina ou campo petro- “Saindo de Duala, melhor tomar o
lífero, essas migrações geralmente ônibus para Iaundé e em seguida para
ocorrem entre Estados fronteiriços. Os Bertoua, em Camarões Oriental”, re-
mais ousados projetam suas esperan- comenda um conhecedor do assunto.
dois homens teceram, até Kinshasa, as ambições de seus irmãos: “Viajar, ças para além da sub-região. Atraves- “Chegando ao posto de fronteira da
uma teia de revezamento na passa- vencer e mandar dinheiro ao país pela sar o continente até a África do Sul é a República do Congo, você consegue o
gem das fronteiras. “O primeiro espe- Western Union”. Ele narra a história exceção. De qualquer modo, a trans- visto por 60 mil francos. A cidade de
ra em Lagos, o segundo em Duala”, ga- em uma confusão de risos e lágrimas: gressão das fronteiras – “arbitraria- Ouésso fica logo do outro lado.” Para
rante Bassikini correndo os dedos a viagem errante ao Brasil, o gosto das mente impostas pela Europa, mas que economizar, Emeka8 foi pelo caminho
sobre um mapa da África. “Você vai garotas nas praias de Copacabana, o geralmente não têm nenhum sentido do suborno e da lábia: “Em cada posto
ver, todos os clandestinos se encon- suor nos campos de algodão de Santo prático”, lembra Pondi – prenuncia a de controle, eu vestia meu uniforme de
tram em Camarões.” Domingo, o sonho norte-americano integração econômica necessária ao futebol e dizia aos policiais que estava
O êxodo para Johannesburgo rara- interrompido no Haiti pelo terremoto desenvolvimento do continente... Car- indo jogar no AS Vital Club de Kinsha-
mente se dá de uma tacada só. Ele é de 2010. Repatriado para Gana pelas regados de uma péssima reputação, sa!”, explica o jogador profissional.
pontilhado por cidades de apoio onde Nações Unidas, “ninguém mais me seriam os intermediários da engrena- “Assim eles simpatizavam comigo.”
os viajantes passam alguns dias, às ve- respeitava. Eu estava destruído”. gem necessária? Em 2006, ciente de que, para alcan-
zes vários anos, o tempo necessário Para “ganhar o respeito que [lhe] çar seu sonho, teria primeiro de per-
para juntar algumas economias. Reu- era devido, foi preciso partir nova- correr a África, Emeka lançou-se na es-
nidos por nacionalidade, um rio de mente, desta vez para a África do Sul”. trada com “um par de chuteiras, uma
imigrantes encontra refúgio junto aos Uma redenção pela estrada realizada
“Os migrantes olham camisa, uma escova de dentes e um
vendedores de sonhos do Mercado no porão de um cargueiro entre Acra as barreiras aduaneiras cartão de crédito”. Chegando a Oués-
Congo de Duala, em Camarões – um e Duala, “com umas frutas, latas de como se um antepassado so, faltava atravessar a floresta de ôni-
labirinto de ruas estreitas ladeadas por sardinha e uma toalha servindo de tivesse deixado uma bus até Brazzaville: uma expedição
sucateiros e vendedores de mamão, banheiro”. Após oito dias de viagem, “indescritível, por uma estrada de ter-
atravessado pelo cheiro de frango as- “foi preciso desembarcar à noite e pa-
enorme herança do ra sinuosa, vivendo de mangas e laran-
sado e tempero Maggi, a 2,5 mil quilô- gar 10 mil francos à polícia. Depois outro lado!”, zomba jas. Na chegada, eu estava acabado”.
metros de Abidjan. O canto do mue- tive de corromper outro policial para Emmanuel Bienvenu Um mês e 3 mil quilômetros foram ne-
zim compete com as narrativas de conseguir uma identidade falsa ca- cessários, a partir de Duala, para al-
viagem em que a ganância dos contra- maronesa”. Faz cinco meses que Fir- cançar, preso no atoleiro da África, a
bandistas disputa com a corrupção min vive de bicos. Quando vai chegar próxima parada para os migrantes: a
policial e a brutalidade dos bandidos ao seu destino? “Não tenho ideia; tal- “Toda quinta-feira, às 3 horas da praia Ngobila.
das estradas. vez em um ano?” tarde, Ngom senta-se em uma lancho- São 11 horas de uma manhã de ju-
A “500 francos” de motocicleta do A cada ano, 25 mil africanos oci- nete da comuna de Akwa, e em cinco nho e a primeira fronteira terrestre de
mercado – aqui não se gosta de contar dentais4 – esmagadoramente homens minutos toda a vizinhança sabe que Kinshasa, colada às águas escuras do
o tempo –, outro viajante narra sua – tentam a sorte em direção à nação ele está lá”, conta Bienvenu. O dia pas- Rio Congo, fervilha de militares, co-
epopeia: “Aventurar-se em direção à arco-íris. Um êxodo realizado tam- sa ao som de buzinas e motores no Bu- merciantes e carriolas remendadas.
África do Sul é ir à Lua!”. Educado, de bém por 20 mil etíopes e somalis5 e levar de l’Unité. No térreo do restau- Homens mutilados, mulheres vestin-
olhos cintilantes, Bruno Firmin é uma centenas de milhares de zimbabuen- rante, Ngom supervisiona com olhar do bubu, sacos de juta, cadeiras, cestos
dessas estrelas solitárias jogadas nas ses e moçambicanos.6 “Esses rapazes sonolento o carregamento de um ôni- de frutas e legumes, toda a energia de-
estradas obscuras da imigração clan- partem a qualquer preço”, observa, bus com destino à cidade de Bata, na sordenada da África contida num batel
destina. “Toda família africana tem sentado em frente à piscina do Hotel Guiné, enquanto no primeiro andar com destino à República Democrática
seu herói: um jogador de futebol, um Sawa, o cientista político Jean-Emma- uma moça bem-apessoada recolhe 20 do Congo aperta-se diante de Louis,
cantor ou... um imigrante que se aven- nuel Pondi. Para muitos deles, a corri- mil francos por passageiro. “É o triplo agente do serviço de imigração. O con-
turou mundo afora.” Há alguns anos, da acaba no Gabão, em Angola ou na da tarifa normal, mas por esse preço golês atarracado e de andar requebra-
esse ganês foi designado para realizar Guiné Equatorial: Estados tão ricos de Ngom molha a mão do pessoal da do só fala diante de uma Turbo, cerve-
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ja local servida gelada em uma mesa endereço nos sombrios meandros do de ônibus para Lusaka, Harare e Jo- E os governantes continuam: “Re-
do Bloc, um bairro animado de Grande Mercado. Um turbilhão de loji- hannesburgo.” Em linha reta através forçam a luta contra a fraude de docu-
Kinshasa: “O pessoal do Oeste passa nhas enoveladas, como se guardassem da savana, a rodovia faz uma curva ao mentos, instaura-se o controle biomé-
em massa pela praia”, observa, antes um precioso segredo. Calejada pelas se aproximar da capital sul-africana. trico, multiplicam-se as rejeições na
de garantir que, “se não tiverem visto, incursões das autoridades, “a comuni- Ao longe, as torres do Central Business fronteira. Em quinze anos, 2,5 milhões
são mandados de volta”. dade faz um paredão em torno de seus District, o bairro de negócios, erguem- de estrangeiros foram expulsos”, ob-
clandestinos”, justifica Coulibaly Bou- -se em um céu azul elétrico. O veículo serva Aurélia. “Mas as autoridades
ya, líder dos malineses de Kinshasa. In- sai da N1, ziguezagueia por um rosário nunca levaram em conta a dimensão
tegrados, falando lingala, vivendo de de avenidas traçadas à régua e então econômica das migrações!” Paradoxo
“Os vinte funcionários bicos como churrasqueiros ou sapatei- para sob a marquise de uma estação de uma nação que alega sua condição
lotados em Ngobila ros, os viajantes economizam na ex- de ônibus. Fim. de potência emergente, mas não con-
ganham US$ 200 pectativa de uma nova partida. Parktown North fica a apenas algu- segue assumir as consequências dis-
“Esta aventura é a aventura do so- mas centenas de metros. Pendurado so... Ao mesmo tempo, os “irmãos”
por mês, um salário frimento, da merda”, desabafa Bouya. no telefone em seu vasto apartamento africanos que, das missões de carida-
de fome! Então, Muitos homens vão para as provín- desse bairro popular, Marc Gbaffou de nigerianas aos formulários de im-
eles mesmos cias de diamante de Lunda-Norte, em tenta livrar seu irmão mais novo de postos moçambicanos, apoiaram ou-
facilitam a passagem” Angola, envolvidos pela rede de tráfi- um controle policial. Com uma legis- trora o African National Congress
co de seres humanos, enquanto as lação favorável aos refugiados políti- (ANC) em sua luta contra o apartheid,
meninas, em sua maioria congolesas, cos, congoleses, somalis e zimbabuen- ruminam sua amargura. E voltam a
vão morrer lentamente nos bordéis ses são facilmente admitidos na África querer tentar a sorte na Europa e nos
A realidade é mais complicada... de Luanda. Conhecendo o estupro, a do Sul. Mas, para os oriundos da África Estados Unidos... “Há uma persistên-
“Os vinte funcionários lotados em tortura e as expulsões em massa, ca- Ocidental, a história é outra: “Eles são cia em manter o sonho de passar a vida
Ngobila ganham US$ 200 por mês, um da vez mais migrantes tentarão, de encaminhados de volta sem nem se- a viajar!”, critica Marc Gbaffou. “Meu
salário de fome!”, retruca David Lelu, acordo com Jérémie, chegar à África quer pedirem seus documentos!”, la- papel é dizer a eles que não estarão
consultor da OIM em Kinshasa. “En- do Sul – como Emeka. Em 2010, o ni- menta o representante da comunida- melhor em outro lugar.”
tão, eles mesmos facilitam a passagem, geriano calçou suas chuteiras para de marfinense. O simpático quarentão, Para Emilio Sie, a nação arco-íris se
mediante até US$ 500 de propina por chegar a Johannesburgo. que chegou em 1997 e se tornou enge- tornou “o país de maturidade”. Diri-
dia por funcionário, três dias por se- Com as estradas intransitáveis, ele nheiro de alimentos depois de ter sido gindo uma mecânica, esse marfinense
mana.” E Lelu descreve a única coisa foi de avião a Lubumbashi, na fronteira verdureiro, repete cada vez mais enfa- viu na última década seu negócio de
mais ou menos organizada da Repúbli- com o Zâmbia. O início de um longo pe- ticamente: seu sucesso é uma exceção. reparo de automóveis prosperar. E fala
ca Democrática do Congo: “Um vasto sadelo: parado, “eu passei sete meses na “Em geral, os migrantes não conse- da casa “de 1,2 milhão de rands em
sistema de corrupção, no qual os agen- prisão, antes de ser transferido para um guem realizar seus sonhos aqui. Mas Germiston”, dos três filhos matricula-
tes da imigração pagam uma porcen- centro de detenção de migrantes em eles tentam”, admite. “A África do Sul é dos em escola particular e do crédito
tagem de seu espólio aos escalões su- Kinshasa”. “Uma prisão oficiosa”, lem- um casamento por amor e ao mesmo que tem no banco com “um simples te-
periores”, chegando até a presidência. bra Lelu. “Ninguém consegue acesso a tempo por conveniência.” lefonema” – “A aventura acabou!”, pro-
E para lubrificar essas engrena- ela, nem com a permissão do Santo Pa- mete. Mas ele ainda faz algumas via-
gens, vinte intermediários gozam de dre!” Emeka fala em “mais dois meses gens de negócios “para a Índia, Angola
uma entrada quase oficial em Ngobila: de detenção sem ver a luz do dia”. Sua e também para a Malásia... É verdade,
“Nós éramos cem há dois anos, mas libertação foi providenciada por “um vi- Uma mão de obra todo mês estou viajando”, admite.
houve uma limpa”, esclarece Jérémie.9 sitante desconhecido que falava inglês”, mantida à margem do “Não consigo ficar sentado sem fazer
Sentado numa lanchonete do sub- o qual teria pago US$ 250 para soltá-lo. sistema, portanto, flexível nada!” A seu lado, seus dez funcioná-
mundo de Kinshasa, o ex-funcionário “Nunca mais o vi.” rios, todos imigrantes, esfalfam-se na
e barata. Ao mesmo
do Ministério do Interior que desde Vivendo de comprar e vender peças recuperação de um táxi coletivo. Tal-
2004 entrou no negócio das viagens de motocicletas, Emeka vê, aos 29 tempo, “os migrantes vez seja esse o destino de Sie: ele nunca
clandestinas sustenta por vários mi- anos, seu sonho de jogar de futebol se são acusados de minar abandonou realmente a estrada.
nutos um olhar desconfiado. Mas con- distanciar. Tanto sofrimento para re- os padrões sociais”
tinua: “Geralmente, um intermediário conhecer, quando olha os seis anos em *Guillaume Pitron é jornalista.
que atua em Brazzaville me liga e avisa que vagou pela África, que tomou “de-
que dez pessoas vão aparecer na praia. cisões erradas” e que “a Nigéria é me-
Eu logo reconheço os africanos do lhor, muito melhor que o Congo”. De- União que na maioria das vezes é
Oeste: eles têm entre 18 e 30 anos, via- pois, esta frase ambígua: “I have made consumada no bairro de Yeoville. À
jam com pouca coisa e estão tão trau- a long move” [“Fiz uma grande apos- sombra dos tristes edifícios, um exér- 1 R$ 1 vale 4 rands.
2 Dirigiu o país de 1960 a 1993.
matizados com a viagem que parecem ta”]. Paralisado entre a humilhação do cito de vigias, artesãos, pedreiros e 3 R$ 1 vale 248 francos CFA.
estar fugindo da guerra”. retorno e a angústia de partir nova- barbeiros tenta achar um lugar ao sol 4 Esse número anual é obtido pela soma dos dados
E quanto ele cobra por passagem? mente, esse rapaz de olhar esvaziado na África austral, enquanto dezenas mensais (“Tourism and migration statistical relea-
se” [Relatório estatístico sobre turismo e migra-
“Entre US$ 500 e US$ 1 mil por viajan- por tanto sofrimento é a imagem de de milhares de outros migrantes vão ção]) publicados pelo escritório de estatísticas
te, dependendo de seus recursos. De- todos esses desconhecidos esmagados trabalhar nas explorações mineiras e sul-africano. Disponível em: www.statssa.gov.za/
pois pago uma comissão US$ 200 a por seus sonhos. “A aventura de cair florestais de Cabo Setentrional e Kwa- publications/statspastfuture.
asp?PPN=P0351&SCH=5313.
US$ 1 mil aos policiais, de acordo com no mundo é um jogo de pôquer: ou vo- zulu-Natal. Uma mão de obra mantida 5 Ver OIM, “In pursuit of the Southern dream. Victims
sua graduação.” E no ritmo de “150 pes- cê se torna um herói ou se vê negado propositadamente à margem do siste- of necessity” [Em busca do sonho do Sul. As víti-
soas ajudadas por ano”, a praia Ngobila em sua humanidade”, observa Michael ma, portanto, flexível e barata. Ao mas da necessidade], Genebra, abr. 2009. Dispo-
nível em: www.publications.iom.int.
tem mais buraco do que peneira... Isso Tschanz, chefe de missão da OIM em mesmo tempo, “os migrantes são acu- 6 Não há dados confiáveis, como relata Tara Polzer
sem falar das dezenas de pequenos Kinshasa. Já desgarrados, “muitos pre- sados de minar os padrões sociais”, Ngwato em “Population movements in and to Sou-
portos fora da cidade, que os candida- ferem simplesmente desaparecer”. analisa Aurélia Segatti, pesquisadora th Africa” [Movimentos populacionais na e para a
África do Sul], African Center for Migration and
tos a exílio disfarçados de pescadores Os que escapam da África Central do Southern African Migration Pro- Society, Johannesburgo, 2010. Disponível em:
alcançam de canoa durante a noite. seguem de avião até Lubumbashi, ca- gramme, da Universidade de Witwa- www.migration.org.za.
pital da província de Katanga e porta tersrand. “Os estrangeiros são o bode 7 Esses números são relatados em um estudo lidera-
do por Jean-Emmanuel Pondi, Immigration et dias-
Solidariedade clandestina de entrada para as terras do Sul. “Todo expiatório das frustrações populares.” pora. Un regard africain [Imigração e diáspora. Um
“Quando chegam, os africanos oci- mundo passa pelo posto de fronteira A pesquisa de opinião realizada em olhar africano], Éditions Maisonneuve et Larose,
dentais são recebidos por uma famí- de Kasumbalesa”, admite pelo telefone 2008 pelo World Values Survey10 mos- Paris, 2007.
8 Nome alterado a pedido do entrevistado.
lia”, explica Jérémie. “Os laços étnicos e uma intermediária congolesa. “Em tra isso: a África do Sul está no topo 9 Nome alterado a pedido do entrevistado.
tribais são muito fortes.” Seu reino tem dois dias, por US$ 250, consigo levá-los dos países mais xenófobos do mundo. 10 Disponível em:www.worldvaluessurvey.org.
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livros
AS ARMAS DA CRÍTICA. ANTOLOGIA DO PENSAMENTO DE ESQUERDA
Ivana Jinkings e Emir Sader (orgs.), Boitempo

ria
leitura obrigató As armas da crítica está voltado à formação bre Feuerbach, trechos do notável O 18 Brumário e sectarismo, o livro comprova que a riqueza do
crítica dos jovens e de “todos os que seguem so- de Luís Bonaparte, algumas páginas dos Grun- marxismo mais se evidencia quando o diálogo
nhando e lutando por justiça social”. Para tal, os drisse e do prefácio à Contribuição à crítica da e o confronto entre suas múltiplas tradições se
organizadores do livro selecionaram curtos textos economia política, a seção sobre o “fetichismo da tornam possíveis. Na apresentação dos textos
de trabalhos decisivos dos autores do marxismo mercadoria” (capítulo 1, livro I de O capital) e, por selecionados, breves, concisas e esclarecedoras
clássico − obras nas quais as “armas da crítica” fim, partes de A guerra civil na França. Dos quatro notas dos organizadores informam a natureza e o
foram concebidas como instrumentos necessá- mais destacados teóricos e dirigentes revolucio- significado das obras. Uma ampla e criteriosa bi-
rios à “crítica das armas”. nários do final dos anos 1910 e do momento ime- bliografia constitui um valioso fecho da antologia.
De Marx e Engels, o leitor tem acesso a trechos diatamente posterior à Primeira Guerra Mundial Em seu melhor sentido, esse livro engajado é uma
do “documento político mais importante de todos – Vladimir Lenin, Leon Trotski, Rosa Luxemburgo excelente introdução ao pensamento marxista crí-
os tempos”, o Manifesto do Partido Comunista; e Antonio Gramsci – são publicados trechos de tico e revolucionário.
dos mesmos autores, também são publicados algumas de suas mais relevantes obras.
fragmentos de A ideologia alemã e a Mensagem Qualidades inegáveis dessa coletânea devem Caio N. de Toledo
do Comitê Central à Liga (dos Comunistas). De ser ressaltadas. Por meio de uma orientação Professor aposentado da Unicamp e integrante do
Marx, são também editadas as famosas Teses so- editorial destituída de qualquer doutrinarismo comitê editorial do blog Marxismo21.

AS ARTES DA AMEAÇA – AS ESQUERDAS LATINO-AMERICANAS MEDIAÇÕES, TECNOLOGIA E ESPAÇO PÚBLICO:


ENSAIOS SOBRE LITERATURA E CRISE EM TEMPO DE CRIAR PANORAMA CRÍTICO DA ARTE EM MÍDIAS MÓVEIS
Hermenegildo Bastos, Editora Outras Expressões Nils Castro, Editora Fundação Perseu Abramo Lucas Bambozzi, Marcus Bastos e Rodrigo Minelli (orgs.),
Conrad Editora do Brasil

Os ensaios que compõem esse livro problematizam a A foto, em uniforme de futebol, ao lado de Che Guevara Cultura digital, mídias móveis, arte e tecnologia. Precisa-
relação entre literatura e crise, condensada na imagem “as e de Alberto Granado, seu parceiro na célebre viagem de mos entender como esses elementos, presentes em nosso
artes da ameaça”, título do volume. Essa imagem integra o moto, não deixa dúvidas quanto às credenciais do autor para dia a dia, interatuam em nosso ambiente, qual é sua relação
tema escolhido por Hermenegildo Bastos ao método de discutir os rumos da esquerda na nossa América. Nascido com o espaço público e quais são suas implicações na so-
crítica literária por ele realizada a partir da tradição dialé- em 1937, o panamenho Nils Castro deu aulas em Cuba logo ciedade. Esse livro reúne discussões relevantes de diversos
tica e histórica, com ênfase na concepção lukacsiana da após a vitória da Revolução e, mais tarde, em seu país, parti- especialistas, organizadas em três partes: “Cultura digital:
estética. Com essa imagem, o autor sugere que as artes cipou do governo anti-imperialista do general Omar Torrijos. contexto e emergência das redes móveis”, “Mídias locativas:
ameaçam o mundo reificado e simultaneamente são ame- Acompanhou os sandinistas da Nicarágua na vitória e na desdobramentos sociais e políticos” e “Estudos de caso:
açadas pelo mundo que desejam superar. O título é, en- derrota e hoje, aos 75 anos, escreve livros e participa de redes em espaços urbanos”.
tão, como o é a própria literatura, imagem e não conceito. articulações continentais, como o Foro de São Paulo. As primeiras páginas trazem uma linha do tempo que tra-
Como imagem artística, a literatura se configura como um As esquerdas latino-americanas perpassa a luta pelo socialis- ça a aproximação progressiva da arte com as telecomunica-
mundo em si, que articula suas partes internamente para mo em boa parte do continente e o retrocesso neoliberal que se ções: desde o protótipo do kinetoscópio de Thomas Edison
criar um todo acabado. Assim, a literatura refaz o caminho seguiu ao fracasso, total ou parcial, das diversas empreitadas re- em 1891, passando por acontecimentos relevantes como a
de volta ao mundo de onde partiu; mundo que se torna, volucionárias. O ponto forte são as lições – fruto de experiências finalização de O homem com a câmera, de Dziga Vertov, em
pela mediação da forma literária, mais rico e humano – um vividas na própria pele – apresentadas como aporte ao projeto 1929, ou o lançamento da primeira rede de telefonia celular
mundo para nós –, que permite ao leitor reconhecer-se estratégico dos socialistas em um contexto no qual a esquerda em 1979, no Japão, chegando finalmente ao panorama dos
como homem inteiramente, como parte do gênero huma- se mostra suficiente vigorosa para conquistar o governo pela via smartphones da atualidade.
no. Esse processo de afastamento ou negação do mundo eleitoral, mas ainda distante de reunir o apoio das massas neces- As “mídias locativas” são dispositivos, sensores e redes
desumanizado e de retorno a ele em dimensão humaniza- sário para impulsionar mudanças sociais profundas. digitais sem fio e seus respectivos bancos de dados “aten-
dora para o leitor é realizado pelo trabalho poético, que, Diante do impasse, o autor recomenda paciência e pé na tos” a lugares e contextos, como pontua André Lemos no
opondo-se ao trabalho estranhado, faz da literatura uma terra. De nada adianta criar novos mártires, adverte, se os es- texto “Arte e mídia locativa no Brasil”. Se num primeiro mo-
ameaça à lógica fetichizada e reificadora do capitalismo forços transformadores não proporcionarem resultados con- mento se falava sobre a transposição do “real” para o vir-
e a seu progresso triunfante, mas sempre em crise, posto cretos e duradouros. Apesar dos limites impostos por uma tual com a chegada da internet, agora se discute o “down-
que carrega consigo a ameaça de destruição da humani- correlação de forças desfavorável à revolução, ele acredita load” do ciberespaço para nosso território, possibilitando
dade. Entendendo que a literatura fala do mundo ao falar que vale a pena aproveitar a chance do exercício do governo uma nova mobilidade informacional, que dota o espaço de
de si mesma e que, como parte da superestrutura, pode não só para promover as melhorias demandadas pelo eleitora- novos sentidos.
se antecipar às crises que eclodem na infraestrutura, o au- do popular, mas também para acumular energias capazes de Ao criar/distribuir/fruir conteúdos nesse suporte hí-
tor pergunta às obras literárias que analisa: “Como essas viabilizar, no futuro, metas de maior alcance. Na prática, a luta brido, é preciso levar em conta suas possibilidades de
obras previram e predisseram o fracasso do projeto civili- por reformas resumiria a agenda revolucionária do momento. discurso e características técnicas que compõem um ce-
zatório que se abateu sobre nós? Como lhes foi possível Outro foco importante, na perspectiva do autor, é a re- nário revolucionário para a produção artística. As telas
captar a ameaça na promessa que aninhavam?”. O que jeição ao dogmatismo, às fórmulas prontas, à luta fratricida agora são menores; o espaço se tornou múltiplo, aleató-
lemos nos ensaios é aquilo que o crítico encontrou nos entre companheiros. Aos socialistas do século XXI, o autor rio, mas também rastreável. O espectador divide a aten-
textos literários: respostas problematizadoras, autoques- – gato escaldado – recomenda “frentes amplas, plurais e ção com outros elementos e colabora para a construção
tionadoras, distantes de soluções fáceis ou idealistas, fi- abrangentes”, criatividade para se contrapor às ideologias da narrativa. O livro contribui ao lançar esse emaranhado
guradas em um mundo próprio que reflete artisticamente da direita e, sobretudo, uma atitude mental de abertura e de experiências e pontos de vista sobre a mesa para a
o mundo presente dos homens e que, a partir da memória tolerância. “Em um mundo crescentemente complexo, entre digestão do leitor.
do passado, afirma a necessidade de construir “caminhos esquerdas já não cabe discutir para descartar o opositor,
outros para um mundo outro”. mas sim para melhorar o conhecimento da realidade que
desejamos mudar e para compartilhar alternativas.” Fernando Krum
Ana Laura dos Reis Correia Desenvolvedor, pesquisador de novas mídias e mestrando
Professora de Literatura Brasileira da Universidade Igor Fuser no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura
de Brasília. Doutor em Ciência Política e prof. da Faculdade Cásper Líbero. e Sociedade da UFBA (www.ferkrum.com).

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