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br/2017/03/24/o-suicidio-da-classe-media/

O suicídio da “classe média”


O principal afetado nessa nova rodada de desmantelamento social será o que
sobrou da “classe média”.

Publicado em 24/03/2017 // 13 comentários

Por Maurilio Lima Botelho.

Quase metade dos empregos no Brasil duram menos de um ano. Os brasileiros acima de
10 anos que recebem até 2 salários perfazem mais de dois terços da “população
produtiva”. Cerca de 10% dos contratos de trabalho no Brasil são temporários (até 3
meses) e sua participação têm crescido nos últimos anos. Do total de brasileiros
“empregados” – o que exclui 13 milhões de desempregados e quase 25 milhões de
“trabalhadores por conta própria” –, 25% não tem carteira assinada. Entre os que têm
contrato, mais de 20% já estão em empresas terceirizadas. Nas empresas terceirizadas,
quase nenhum emprego ultrapassa dois anos.

Esses números revelam que a baixa remuneração, a alta rotatividade e a precariedade já


são uma realidade comum de boa parte dos brasileiros. A aprovação da terceirização
irrestrita e a ampliação do tempo para os contratos temporários vai agravar ainda mais
esse quadro, mas indica também que o principal afetado nessa nova rodada de
desmantelamento social será o que sobrou da “classe média”.

Durante os anos de FHC, as camadas de renda média sofreram um achatamento em


decorrência da estagnação econômica e do arrocho financeiro. Com os governos de Lula
e Dilma, essas camadas sentiram-se preteridas diante das medidas de compensação
social dirigidas aos mais pobres e da multiplicação das fortunas da elite. A famigerada
“nova classe média” foi menos um processo de “ascensão”, como alardeado pelos
ideólogos governistas, e mais uma mimese consumista em que os estratos inferiores
emulavam o consumo dos setores médios tradicionais graças a uma pequena melhoria
de renda, acesso ao crédito e endividamento. As últimas rodadas da crise mostraram
como um lento processo que aparecia como uma mudança na estrutura social pôde ser
rapidamente destruído quando a bolha do crédito explodiu.1

Não foi um acaso que do ciclo de greves e difusas manifestações de 2012/2013, a


“classe média” restou como única “base social” mobilizada contra o governo Dilma em
2014/2015. Uma parte dela composta por integrantes dos próprios serviços públicos –
bastião ainda do emprego estável –, já que em 2012 ocorreu o maior conjunto de greves
do funcionalismo federal. Sentindo os efeitos da crise, essa mobilização contra o
governo Dilma foi embalada no discurso requentado da “ética do trabalho” e contra os

1
programas de distribuição de renda e assistência social. Como disse um deputado do
PMDB, o processo de impeachment representava o fim da “era do vagabundismo
remunerado”. Até nas universidades foi possível ver o ódio de professores e estudantes
de “boas famílias” diante da ampliação do acesso popular ao ensino superior,
particularmente através das cotas.

É quase uma “astúcia da razão” que sejam exatamente as camadas médias as principais
atingidas pela terceirização irrestrita. O ressentimento destas contra os mais pobres já
era um resultado da precarização: a crítica norte-americana Barbara Ehrenreich mostrou
como, nos EUA, os profissionais de “classe média” sofreram um choque ao ter que
conviver com a mesma incerteza diária e os salários parcos comuns aos mais pobres,
pois tinham sido “criados com a expectativa do velho mundo protestante de que o
trabalho árduo é recompensado com conforto material e segurança”.2 O discurso da
recompensa ao empreendedor, da premiação do esforço e do mérito foi
operacionalizado num duplo sentido: de um lado, contra as compensações sociais para
os excluídos; de outro, como adequação pessoal às condições neoliberais da
concorrência selvagem e do “empreendedorismo”. Por aqui, numa cruzada contra o que
se acredita ser o “petismo”, o antropólogo Roberto Da Matta chegou mesmo a fazer
elogios ao “homem comum, da classe média” que “trabalha para sustentar um Estado a
ser descontaminado de sua imagem de fiador do roubo, da incompetência e de uma
burocracia marginal à norma da igualdade”.3 Agora não vai faltar oportunidades à
“classe média” para mostrar seus méritos em condição de concorrência e capacidade de
inovar – afinal, como conclui o discurso que ela alimentou e do qual agora será mais
uma vítima, as “restrições legais” trabalhistas foram suprimidas para o desenrolar do
livre empreendimento.

Mas é um engano achar que isso pode significar uma futura inversão de comportamento
e uma “solidariedade de classe” gerada pelo rebaixamento social. A crença numa
possível “unidade classista”, exatamente num momento de dissolução das classes
identificadas pelo trabalho, soa como nostalgia da era fordista. O “medo da queda” não
tem produzido um sentimento de pertencimento aos grupos inferiores, pelo contrário,
tem provocado nos segmentos menos precarizados um apego ainda maior ao
“diferencial” de sua posição social. Como “a mobilidade descendente provoca uma
sensação de fracasso, rejeição e vergonha”,4 há ainda mais insistência no seu “capital
cultural” para estabelecer uma distância em relação ao fundo social. Isso é visível entre
os “profissionais liberais” que, frente à decadência econômica, se endividam cada vez
mais para trocar de carro todo ano, viajar para o exterior ou pagar o aluguel elevado da
residência próxima a uma praia poluída. Nos EUA, o emprego em tempo parcial
permite compensar precariamente, com cada vez mais trabalho e menos sono, os efeitos
do empobrecimento. A terceirização e flexibilização vão criar aqui essa “oportunidade”
de se manter o status alcançado com “tanto esforço, investimento e estudos”.

A ruína da “classe média” é o sintoma de algo mais profundo: o próprio fracasso dessa
sociedade como um todo. Sempre houve pobreza na história do capitalismo – até
mesmo nos subúrbios europeus e nos guetos americanos, no auge do pós-guerra. Isso

2
sempre foi mobilizado em tom cínico para que se pudesse manter vivo o discurso do
esforço pessoal como mecanismo de ascensão. Com o declínio dos setores médios, são
as próprias ilusões em torno dessa sociedade que se esfumaçam. Afinal de contas, como
diz Barbara Ehrenreich, essas “pessoas ‘seguiram as regras do jogo’, fizeram ‘tudo
certinho” e, mesmo assim, terminaram arruinadas”.5

A tensão social aprofundada já se faz notar em formas particularmente destrutivas dessa


ideologia do mérito e do êxito pessoal: na falta de condições de sustentação, o “macho”
responsável pela família assassina os próprios filhos. São vários os casos relatados pelos
jornais. Recentemente, num bairro “nobre” do Rio, um homem matou a esposa e jogou
os filhos do alto do prédio em que moravam. Escreveu uma carta com a seguintes
palavras: “Me preocupo muito em deixar minha família na mão. Sempre coloquei eles à
frente de tudo. Mas está claro para mim que está insustentável e não vou conseguir levar
adiante. Não vamos ter mais nada e não vou ter como sustentar a família. Não vou ter
onde trabalhar”. Atirou-se depois.
Notas

1 Marcos Barreira e Maurilio Lima Botelho, “A implosão do “pacto social” brasileiro“.


Krisis, 21/06/2016.

2Barbara Ehrenreich, Desemprego de colarinho-branco: a inútil busca do sucesso


profissional. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 229..

3“Para mim, esse governo acabou”, diz Roberto da Matta, ZH Notícias, 16/03/2015.
Roberto DaMatta, “Quem é de esquerda”, Estadão, 05/10/2016.

4 Barbara Ehrenreich, Desemprego de colarinho-branco. p. 223-224.

5 Barbara Ehrenreich, Desemprego de colarinho-branco. p. 250.

***

Maurilio Lima Botelho é Professor de geografia urbana da Universidade Federal Rural


do Rio de Janeiro (UFRRJ), e autor do artigo “Crise urbana no Rio de Janeiro:
favelização e empreendedorismo dos pobres” que integra o livro Até o último homem:
visões cariocas da administração armada da vida social, organizado por Pedro Rocha
de Oliveira e Felipe Brito (Boitempo, 2013). Colabora com o Blog da
Boitempo esporádicamente. Dele, leia também, “A aprovação do fim do mundo“, no
dossiê “Não à PEC 241”.

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