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br/2017/03/24/o-suicidio-da-classe-media/
Quase metade dos empregos no Brasil duram menos de um ano. Os brasileiros acima de
10 anos que recebem até 2 salários perfazem mais de dois terços da “população
produtiva”. Cerca de 10% dos contratos de trabalho no Brasil são temporários (até 3
meses) e sua participação têm crescido nos últimos anos. Do total de brasileiros
“empregados” – o que exclui 13 milhões de desempregados e quase 25 milhões de
“trabalhadores por conta própria” –, 25% não tem carteira assinada. Entre os que têm
contrato, mais de 20% já estão em empresas terceirizadas. Nas empresas terceirizadas,
quase nenhum emprego ultrapassa dois anos.
1
programas de distribuição de renda e assistência social. Como disse um deputado do
PMDB, o processo de impeachment representava o fim da “era do vagabundismo
remunerado”. Até nas universidades foi possível ver o ódio de professores e estudantes
de “boas famílias” diante da ampliação do acesso popular ao ensino superior,
particularmente através das cotas.
É quase uma “astúcia da razão” que sejam exatamente as camadas médias as principais
atingidas pela terceirização irrestrita. O ressentimento destas contra os mais pobres já
era um resultado da precarização: a crítica norte-americana Barbara Ehrenreich mostrou
como, nos EUA, os profissionais de “classe média” sofreram um choque ao ter que
conviver com a mesma incerteza diária e os salários parcos comuns aos mais pobres,
pois tinham sido “criados com a expectativa do velho mundo protestante de que o
trabalho árduo é recompensado com conforto material e segurança”.2 O discurso da
recompensa ao empreendedor, da premiação do esforço e do mérito foi
operacionalizado num duplo sentido: de um lado, contra as compensações sociais para
os excluídos; de outro, como adequação pessoal às condições neoliberais da
concorrência selvagem e do “empreendedorismo”. Por aqui, numa cruzada contra o que
se acredita ser o “petismo”, o antropólogo Roberto Da Matta chegou mesmo a fazer
elogios ao “homem comum, da classe média” que “trabalha para sustentar um Estado a
ser descontaminado de sua imagem de fiador do roubo, da incompetência e de uma
burocracia marginal à norma da igualdade”.3 Agora não vai faltar oportunidades à
“classe média” para mostrar seus méritos em condição de concorrência e capacidade de
inovar – afinal, como conclui o discurso que ela alimentou e do qual agora será mais
uma vítima, as “restrições legais” trabalhistas foram suprimidas para o desenrolar do
livre empreendimento.
Mas é um engano achar que isso pode significar uma futura inversão de comportamento
e uma “solidariedade de classe” gerada pelo rebaixamento social. A crença numa
possível “unidade classista”, exatamente num momento de dissolução das classes
identificadas pelo trabalho, soa como nostalgia da era fordista. O “medo da queda” não
tem produzido um sentimento de pertencimento aos grupos inferiores, pelo contrário,
tem provocado nos segmentos menos precarizados um apego ainda maior ao
“diferencial” de sua posição social. Como “a mobilidade descendente provoca uma
sensação de fracasso, rejeição e vergonha”,4 há ainda mais insistência no seu “capital
cultural” para estabelecer uma distância em relação ao fundo social. Isso é visível entre
os “profissionais liberais” que, frente à decadência econômica, se endividam cada vez
mais para trocar de carro todo ano, viajar para o exterior ou pagar o aluguel elevado da
residência próxima a uma praia poluída. Nos EUA, o emprego em tempo parcial
permite compensar precariamente, com cada vez mais trabalho e menos sono, os efeitos
do empobrecimento. A terceirização e flexibilização vão criar aqui essa “oportunidade”
de se manter o status alcançado com “tanto esforço, investimento e estudos”.
A ruína da “classe média” é o sintoma de algo mais profundo: o próprio fracasso dessa
sociedade como um todo. Sempre houve pobreza na história do capitalismo – até
mesmo nos subúrbios europeus e nos guetos americanos, no auge do pós-guerra. Isso
2
sempre foi mobilizado em tom cínico para que se pudesse manter vivo o discurso do
esforço pessoal como mecanismo de ascensão. Com o declínio dos setores médios, são
as próprias ilusões em torno dessa sociedade que se esfumaçam. Afinal de contas, como
diz Barbara Ehrenreich, essas “pessoas ‘seguiram as regras do jogo’, fizeram ‘tudo
certinho” e, mesmo assim, terminaram arruinadas”.5
3“Para mim, esse governo acabou”, diz Roberto da Matta, ZH Notícias, 16/03/2015.
Roberto DaMatta, “Quem é de esquerda”, Estadão, 05/10/2016.
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