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ANO 13 / NÚMERO 145 R$ 18,00

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UMA SÍNDROME UNIVERSITÁRIA BOOM DO COLAPSO PAÍS RACISTA E MISÓGINO
A ESQUERDA O FIM DO MUNDO “ESPERO TODO
CANIBAL NÃO VAI ACONTECER TIPO DE VIOLÊNCIA”
POR RICK FANTASIA POR JEAN-BAPTISTE MALET ENTREVISTA TAÍS ARAÚJO

QUEM GANHA
COM A GUERRA
ÀS DROGAS?
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2 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2019 AGOSTO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 3

DESTRUIÇÃO DE OBRAS DE ARTE EDITORIAL

Os talibãs de São Francisco Eleições


POR SERGE HALIMI* POR SILVIO CACCIA BAVA

A
nova definição de “resistência” ao primeiro presidente dos Estados tino manifesto [a ideia de que os colo- serem confrontados diariamente com
ao racismo norte-americano in- Unidos, como indicaria o nome do es- nos protestantes têm a missão divina cenas de brutalidade, reais ou imagi-
clui o dever de destruir os mu- tabelecimento a que essas obras se de “civilizar” o continente americano], nárias? Guernica, de Pablo Picasso, ou
rais de um artista comunista fi- destinavam, Arnautoff teria tido a in- a supremacia branca, a opressão etc.”. Três de Maio, de Goya, não são igual-
nanciado pelo New Deal?1 A questão solência de representar Washington Tal interpretação é insustentável: a mente violentas e traumatizantes?
pode parecer ainda mais absurda como proprietário de escravos e insti- tradição “realista-socialista” na qual Por enquanto, a controvérsia de
quando se afirma que as treze obras de gador das primeiras guerras de exter- Arnautoff se inspirou de fato não deixa São Francisco mobiliza especialmen-
Victor Arnautoff, Life of Washington [A mínio de nativos. No entanto, não foi nenhum espaço para equívocos de te a fração da esquerda norte-ameri-
vida de Washington], condenadas por Donald Trump quem, por meio de tuí- boa-fé. Por conseguinte, foi necessário cana mais disposta ao excesso em re-
alguns californianos “resistentes”, têm tes racistas e raivosos, pediu a destrui- acrescentar outro motivo à decisão, lação às questões de identidade (ler o
um conteúdo antirracista explícito, re- ção do afresco desmistificador do ro- considerado mais aceitável, embora artigo de Rick Fantasia, nas págs. 12 e
volucionário para a época. Em uma su- mance norte-americano concebido igualmente perturbador. Parece que 13). Mas, tendo em vista que essa mes-
perfície total de 150 metros quadrados, por um muralista comunista que pas- Life of Washington, que inclui a repre- ma vanguarda da virtude já exportou
elas desafiam a hipocrisia das procla- sou seus últimos tempos de vida na sentação de um cadáver indígena piso- com sucesso alguns de seus truques
mações virtuosas dos pais fundadores União Soviética; seus oponentes mais teado por colonos, “traumatiza os es- mais bizarros, é bom que todos este-
da Constituição norte-americana, in- militantes se encarregaram de fazer o tudantes e membros da comunidade”. jam avisados...
cluindo George Washington. papel de inquisidores em seu lugar. Mas, então, temos de escolher: deve-
Apesar disso, a comissão escolar de Um “grupo de reflexão e de ação” mos nos lembrar da escravidão, do ge- *Serge Halimi é diretor do Le Monde
São Francisco votou por unanimidade, formado por treze membros esclare- nocídio, ou esquecê-los? Porque como Diplomatique.
em 25 de junho, pelo apagamento das ceu a escolha da comissão escolar de se pode ter certeza de que um artista
treze pinturas de Arnautoff que enfei- São Francisco. Ele selou o destino das que evoca a história de um país nunca 1 Ler Evelyne Pieiller, “Quand le New Deal salariait
tam as paredes da Universidade George pinturas de Arnautoff alegando com vai incomodar “membros da comuni- les artistes” [Quando o New Deal assalariava os
artistas]. In: “Artistes, domestiqués ou révoltés?”
Washington desde que foi inaugurada, altivez que elas “glorificam a escravi- dade”, os quais de qualquer forma têm [Artistas, domesticados ou revoltados?], Manière
em 1936. Longe de prestar homenagem dão, o genocídio, a colonização, o des- milhares de outras oportunidades de de Voir, n.148, ago.-set. 2016.

E
stamos a catorze meses das elei- Se tomarmos como referência as niões populares em que se formulam granjeiro que existe em todo município.
ções municipais. Elas serão mui- propostas do movimento França In- projetos de lei que abrem espaço para Ou que a mobilidade urbana se baseie
to importantes para o futuro do submissa, que se prepara para partici- o envolvimento dos moradores locais; cada vez mais no transporte coletivo,
país, pois podem tanto ratificar par das eleições municipais francesas os referendos locais, consultas para a nas ciclovias, dificultando o uso do au-
esta onda autoritária como abrir espa- de 2020, trata-se de promover uma ver- consolidação de prioridades; ações de tomóvel como meio de transporte. Ou
ço para a inovação democrática. E as dadeira revolução na forma de fazer desobediência civil em defesa, por que toda área verde urbana seja respei-
campanhas eleitorais começam agora. política.1 A estratégia é atuar nos bair- exemplo, do meio ambiente; iniciati- tada e cultivada, multiplicando-se par-
É justamente nestes momentos ros, principalmente naqueles mais po- vas que ampliam os espaços de coela- ques pela cidade e exigindo-se um re-
críticos que a correlação de forças se bres, envolvendo os animadores e ani- boração do programa eleitoral, de mo- ferendo popular para a definição de
move. O corte de orçamento para as madoras das lutas locais, sociais e bilização cidadã, e da criação de listas sua eventual outra utilização.
políticas sociais já se faz sentir. A eco- ambientais; os militantes das associa- de candidatos comprometidos com a Um programa de atenção às de-
nomia e o emprego não melhoram. ções, dos sindicatos, das igrejas; e to- construção de contrapoderes da cida- mandas populares vai exigir uma
As pesquisas de opinião já desloca- dos aqueles que apoiem esse processo dania no plano local. presença forte da cidadania junto ao
ram as prioridades da população, de construção de um programa de As candidatas e os candidatos des- governo municipal, vai exigir meca-
que coloca hoje saúde e educação proposições concretas para enfrentar sa frente popular, dessa federação de nismos efetivos de participação e
entre suas principais preocupações. os problemas do bairro e melhorar a organizações populares, também po- controle sobre a gestão pública, e no-
O processo de campanha eleitoral e vida de seus moradores. dem inovar, como é o caso dos manda- vas regras para o funcionamento do
eleição que se inicia abre possibili- Não se trata, em nosso caso, de um tos coletivos que se materializaram sistema político. É preciso criar meios
dades de fortalecimento do campo programa partidário, mas da constru- nas bancadas ativistas de vereadoras e efetivos para cobrar dos vereadores e
político da defesa da democracia e ção de uma frente de defesa de direitos vereadores em várias cidades do país, prefeitos eleitos seus compromissos
dos direitos humanos. que pode abrigar vários partidos e na publicação na internet de todas as assumidos enquanto candidato ou
Estas eleições não podem ser mais mesmo quem não se identifica com suas posições e da prestação de contas candidata; é preciso criar mecanis-
do mesmo. O principal desafio é cons- partido algum. financeira do mandato etc. A bancada mos de transparência na gestão, co-
truir poder político a partir do territó- A construção de um poder político ativista tem um representante eleito mo a publicação dos principais deve-
rio em que as pessoas vivem, por meio de baixo para cima leva seus militantes que se compromete a atuar em um co- dores de impostos do município.
da mobilização da cidadania. O objeti- a bater de porta em porta, recolher as letivo que toma as decisões. Não se trata, portanto, de apenas
vo maior é que as pessoas se reapro- demandas de cada bairro, promover as- As eleições municipais de 2020 são buscar a mobilização popular para
priem do poder de decidir sobre a pró- sembleias de quarteirão, para que o o momento em que a cidadania pode participar do momento das eleições,
pria vida, retomem a gestão do que é programa político seja feito nessas reu- recuperar o poder de decidir sobre a mas de criar uma nova forma de fazer
público, invistam na construção de niões de moradores locais, expressando qualidade de vida em seu território. Re- política que envolva diretamente a ci-
bens comuns, debatam um novo pro- suas demandas e necessidades, e arti- cuperar o poder para garantir coisas dadania na gestão da prefeitura, na ges-
jeto de sociedade, mais justa, mais so- culando as distintas demandas em um concretas. Por exemplo, que as crian- tão dos múltiplos interesses envolvidos
lidária, mais cooperativa, com gover- programa mais amplo, que contemple ças, nas escolas, tenham uma alimen- na produção da cidade e de seus servi-
nos preocupados com a qualidade de a todos, criando a possibilidade de tação farta, se alimentem de produtos ços, no uso do solo, na alocação dos
vida das pessoas, não em facilitar para construção de uma federação popular. orgânicos, sem agrotóxicos, e que esses sempre escassos recursos públicos.
© Claudius

grandes empresas suas oportunidades A refundação da política (a política alimentos sejam provenientes de cir-
de negócios, como é agora. com novos fundamentos) exige inova- cuitos curtos de produção, de produto- 1 “A LFI, cap sur les municipales ‘citoyennes’”, Le
E como fazer isso? ções como os ateliês legislativos, reu- res locais, como é o cinturão hortifruti- Monde, 22 jun. 2019.
4 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2019 AGOSTO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 5

DA CRIMINALIZAÇÃO DO “FUMO DE NEGRO” AO SUPERENCARCERAMENTO

A proibição como estratégia racista


que mira particularmente nossos jo- parte das penitenciárias lotadas. A po- tação de pessoas negras nas prisões é Portanto, a política de drogas expli-
vens homens negros”.15 A autora apon- pulação negra e seus descendentes de 64% (46,2% pardos, 17,3% negros e ca o superencarceramento racista em
ta para o fato de que um novo sistema nunca foram indenizados pelos anos 35,4% brancos), superior à da popula- nosso país, gera e amplia a prisão de
de castas, diferente do que se tinha an- de exploração e martírio decorrentes ção em geral (55,4%). pessoas em condições desumanas em

de controle social e a guerra às drogas


tes, com a escravidão negra, lincha- da escravidão, que criou riquezas e ge- unidades superlotadas30 e ainda traz
mentos e o sistema de segregação ra- rou lucros para os senhores, e hoje são consigo o aumento da violência. Foram
cial, seria oficialmente color-blind, ou alvo de um controle social racista. mais de 65.602 mortes violentas no Bra-
seja, daltônico, por não “diferenciar”, Apesar do mito da democracia ra- O resultado sil em 2017, com taxa de 31,6 por 100 mil/
pelo menos expressamente, a cor da cial e da cordialidade brasileira, o ra- dessa equação habitantes, um triste recorde,31 sendo
pele, o que ela denomina de novo “Jim cismo estrutural no Brasil formata o 75,5% das vítimas pessoas negras. En-
Apesar do mito da democracia racial e da cordialidade brasileira, o racismo estrutural no Brasil Crow”. Ela aponta que a guerra às dro- controle social e as políticas de repres-
é que, mesmo com o tre 2007 e 2017, a taxa de negros cresceu
formata o controle social e as políticas de repressão, e ganha especial destaque na política criminal de drogas, gas é a engrenagem por meio da qual são, e ganha especial destaque na polí- superencarceramento, 33,1%, sendo a maioria de jovens, razão
com reflexos no superencarceramento de pessoas negras um número extraordinário de homens tica criminal de drogas, com reflexos não se consegue pela qual se fala de um genocídio de jo-

POR LUCIANA BOITEUX*


negros é levado à prisão nos Estados no superencarceramento de pessoas reduzir o número de vens negros e pobres no Brasil. A lógica
Unidos. Os números são mesmo im- negras. Nota-se a continuidade entre o da violenta guerra às drogas se infere
pressionantes: mais de 1 milhão de navio negreiro, a senzala, as favelas e
crimes registrados ao naturalizar a violência contra o cor-
homens negros estão presos nos Esta- as celas da prisão como espaços desti- po negro estendido no chão.32
dos Unidos por crimes ligados a dro- nados aos negros na perspectiva do Esse crescimento do número de ho-
gas e foram alvo prioritário da polícia, controle social em uma sociedade ra- Nessa linha, há um crescimento micídios no Brasil decorre da posição
que tem como foco habitual realizar cista, de passado escravocrata, que constante no número de presos por estratégica do país como entreposto
operações “antidrogas” em bairros lhes nega direitos. O fato de o Brasil e crimes de tráfico de drogas, tendo seu para a exportação de cocaína para
majoritariamente negros e pobres, mi- os Estados Unidos, de passado escra- número passado de 77.371 em 2008 pa- África e Europa, como já apontou o
rando pequenos traficantes varejistas vocrata, estarem entre os três países ra 140.798 em 2017, com 29,26% dos ho- UNODC (2015, p.54),33 e ainda da ex-
© Rodrigo Leão

que atuam nas esquinas e dando pouca que mais encarceram no mundo já in- mens e quase 65% das mulheres presos pansão econômica e do aumento da lu-
atenção a banqueiros ricos e brancos dica a resposta.20 respondendo por tráfico. Por tal razão, cratividade das facções que controlam
que atuam na lavagem de dinheiro do Um dos elementos essenciais para consideram-se os crimes de drogas um o tráfico ilícito de drogas, o que levou à
tráfico.16 Além disso, a lei prevê longas explicar isso é como atua o Poder Judi- dos motores do encarceramento em ampliação das disputas territoriais en-
sentenças por crimes de drogas, res- ciário, no qual a maioria dos juízes e massa no Brasil, especialmente a par- tre elas por esse rentável mercado.
ponsabilidade objetiva e penas míni- juízas é branca. Tendo como objetivo tir de 2006.26 Isso sem mencionar a violência po-
mas altíssimas para posse ou tráfico de declarado a proteção da “saúde públi- A lente de gênero é necessária para licial (foram 6.160 mortes decorrentes
crack, substância identificada como ca”, adotamos, no Brasil, um discurso compreender o encarceramento femi- de intervenção policial no país em
sendo consumida pelos negros e pes- legal que identifica o usuário como nino por tráfico de drogas, diferencia- 2018, número superior ao ano ante-

A
política proibicionista de dro- ga, David Nutt, Leslie A. King e Wil- de origem anglo-saxônica e de classe uma característica “maligna” dos ne- soas mais pobres nas ruas norte-ameri- “doente” e o traficante como “delin- do da situação dos homens. O grande rior),34 sendo cotidianas as operações
gas se sustenta numa lógica in- liam Saulsbury contestam as bases alta. Proibindo-se determinadas dro- gros, que transmitiam seu “vício” aos canas, enquanto a cocaína, mais cara, quente”, por meio da diferenciação en- impacto da política de drogas sobre o policiais em favelas. Os números no
ternacional baseada em con- não científicas da proibição, não ha- gas, seus alvos seriam os grupos que brasileiros.12 Tal discurso racista per- usada por brancos de classe mais alta, tre ambos, levando a respostas penais encarceramento feminino no Brasil27 Rio de Janeiro são ainda mais destaca-
venções que indicam a criação vendo motivos para essa classificação poderiam ser mais bem controlados.7 mitia legitimar a ideia de inferioridade tem escalas penais menores. Esses são distintas.21 Contudo, essa distinção está no fato de a maioria responder por dos: a taxa de mortes pela polícia subiu
de tipos penais envolvendo drogas, internacional atual.2 No Brasil, no entanto, fomos pio- do negro em relação ao branco e tam- elementos a serem considerados para penal, prevista na Lei n. 11.343/2006, tráfico (quase 65%), tendo havido um 90% no período 2014-2017, chegando a
sob influência norte-americana. Nos Para compreendermos isso me- neiros, nos antecipando a essa política. bém serviu para a construção de uma entender o desproporcional número de está sujeita à seletividade dos filtros crescimento dessa população de 455% 6,7 mortes por 100 mil habitantes em
Estados Unidos, a construção da proi- lhor, precisamos chamar atenção para A proibição da maconha tem origem política criminal que ampliasse o con- homens negros encarcerados naquele (sociais e raciais) e às interpretações nos últimos dezesseis anos. As mulhe- 2017; também é alto o número de poli-
bição teve como base a ideia de repro- as funções ocultas da política de dro- autóctone: data de 1830 uma postura trole sobre o negro, especialmente no país, motivado acima de tudo pelo ra- variadas dos agentes da lei.22 Em resu- res presas no Brasil são jovens (50%), ciais mortos, cerca de uma centena por
vação moral a pessoas que faziam uso gas, que é a desculpa perfeita para am- da Câmara Municipal do Rio de Janei- pós-abolição, quando outras engrena- cismo no sistema de justiça.17 mo, o morador de locais privilegiados negras (62%), têm entre dois e três fi- ano,35 fruto da lógica de confronto ter-
de algumas substâncias, estando a cri- pliar a repressão e o controle sobre ro, considerada o primeiro documento gens tiveram de ser estrategicamente da cidade (branco) vai ser tratado co- lhos (38%) e possuem baixa escolarida- ritorial característica da guerra às dro-
minalização associada a específicos certos grupos indesejáveis ao sistema. que penalizava a venda e o uso do “pito pensadas para controlar essa classe mo usuário (art. 28),23 não irá preso e de (45% têm somente o ensino funda- gas nessa cidade, que tem envolvido
grupos raciais e sociais minoritários e Muito embora o hábito de consu- de pango”, como era conhecida a Can- perigosa, após o fim formal da escravi- receberá pena alternativa, estando tal mental incompleto).28 A questão racial não só a polícia, mas também as Forças
discriminados como ferramenta de mir psicoativos não fosse exclusivo nabis em nosso país, cujo hábito de dão sem nenhum tipo de reparação ou A guerra às drogas conduta despenalizada,24 enquanto o também está marcada nas mulheres. Armadas no “combate” ao tráfico nas
controle social dos indesejáveis e de das classes baixas, nos Estados Unidos consumo recreativo era associado aos política social. é a engrenagem por jovem negro e favelado será preso em O resultado dessa equação é que, favelas. E são as mães negras das fave-
gestão da miséria. Posteriormente, a a propaganda oficial relacionava o uso africanos escravizados que teriam tra- Na esfera internacional, contudo, a flagrante por tráfico (art. 33) e não terá mesmo com o superencarceramento, las que enterram seus filhos.
política se radicalizou com a ideia de drogas a minorias: negros, mexica- zido essa cultura (e as sementes) de seu Cannabis foi incluída no rol das subs-
meio da qual um direito a liberdade provisória. A tipifi- não se consegue reduzir o número de Nesse sentido, o sistema penal, que
construída de uma “guerra às drogas”, nos, chineses, tarados, desemprega- continente de origem.8 A erva tinha di- tâncias ilícitas em 1925, com apoio do número extraordinário cação penal dependerá do CEP do sus- crimes registrados nem desarticular já é seletivo em geral, se mostra ainda
que durante muito tempo justificou a dos e criminosos.3 Em 1901-1902, em versos nomes de origem africana, co- Brasil,13 onde foi criminalizada ofi- de homens negros é peito e de sua cor da pele. Além disso, o as redes criminosas, já que o alvo são mais seletivo na repressão ao tráfico
intervenção norte-americana no mun- decorrência do pânico racista do sul, mo diamba, bangue, maconha, fumo cialmente em 1932 (nos Estados Uni- levado à prisão nos tráfico ilícito de drogas é crime he- os pequenos varejistas, facilmente de drogas, e a atuação concreta da jus-
do,1 além de legitimar guerras internas foram feitas as primeiras associações de angola, pito de pango, riamba e dos isso aconteceu em 1937), sendo diondo e teve sua escala penal aumen- substituídos, enquanto a venda, o con- tiça criminal no Brasil permite a am-
nos países que a declararam, como no entre negros e consumo de cocaína: liamba,9 e seu uso não médico era dis- hoje a substância ilícita mais consu-
Estados Unidos tada em 2006. O “traficante”, já previa- sumo e os lucros só crescem. O que se pliação dessa lógica de criminalização
Brasil, agregar valor a determinadas uma campanha aduzia que homens seminado entre os negros, que passa- mida no mundo. No início do século, a mente estereotipado como jovem vê na atuação cotidiana das polícias é da pobreza e seletividade racial.
mercadorias e fazer muita gente lucrar negros tomavam cocaína antes de es- ram a cultivá-la no Brasil. Em clara ex- influência médica, o conservadoris- negro, é facilmente encontrado nas um reforço da seletividade penal racial Desde a primeira repressão ao “fu-
com esse mercado ilícito e violento. tuprar mulheres brancas,4 com a iden- pressão de racismo estrutural, no mo e o pânico moral deram causa ao Não há como analisar a política de áreas de maior vigilância policial, fa- e social, pela intensificação da crimi- mo de negro”, em 1830, até os dias
A pretexto dessa cruzada morali- tificação social dos negros como maio- século XIX no Rio de Janeiro punia-se projeto de criminalização racista não drogas e seu impacto no encarcera- velas ou periferias. nalização de grupos populacionais es- atuais, mesmo reconhecido o encar-
zante, mas também com a função de- res consumidores de cocaína, o que os com prisão, muito antes de qualquer da planta em si, mas das pessoas que mento sem levar em conta a questão Essa lógica racista e punitiva tem pecíficos, especialmente jovens ne- ceramento em massa como resultado
clarada de “proteger a saúde pública”, tornaria sexualmente agressivos.5 convenção internacional, o usuário, faziam uso dela.14 racial. Nosso país recebeu mais de 4,8 impacto direto no sistema penitenciá- gros e pobres. A partir da Lei de Drogas, da política de drogas, as medidas su-
a proibição foi ganhando espaço, mes- Nesse sentido, afirma-se que esse negro escravizado ou pessoa pobre, Com a ampliação da repressiva po- milhões de negros escravizados trafi- rio brasileiro. Dados apontam para um que não prevê critérios seguros nem geridas pelo governo atual, de Jair Bol-
mo sem ter condições de gerar qual- “medo” da droga não resultava da enquanto um eventual vendedor seria lítica de drogas, chegamos ao modelo cados do continente africano,18 a aumento constante da população pe- diferenciação objetiva entre usuário e sonaro, apontam para a rejeição de al-
quer efeito positivo. Tal modelo re- preocupação com os problemas de punido apenas com multa. atual do superencarceramento, pois, maior população da história já calcu- nitenciária desde a década de 1990, traficante,29 verifica-se ainda o alto ternativas e para a ampliação de penas,
pressivo de controle foi adotado saúde, mas decorria do pânico da po- Enquanto o uso medicinal tinha com a estratégia de controle racial e lada, tanto de número de indivíduos tanto em números absolutos como em poder discricionário de policiais e juí- ou seja, pregam o reforço do Estado pe-
acriticamente, sem debate racional ou pulação branca e protestante, de clas- grande aceitação por parte da classe social de minorias sociais indesejá- quanto na duração temporal, sendo o relativos,25 passando de 451 mil pes- zes, constituindo na prática uma polí- nal, que sustenta o racismo estrutural
democrático e sem base em evidên- se média, diante da ameaça que os in- médica no início do século XX,10 o con- veis, estas se tornam alvo da polícia e Brasil hoje o segundo país com maior soas (238,1 presos por 100 mil/habi- tica de drogas repressiva marcada por e os mecanismos seletivos tradicional-
cias. Foi uma decisão política que le- desejáveis representavam, razão pela sumo não médico de maconha era acabam sobrerrepresentadas no siste- população negra do mundo, só fican- tantes) em 2008 para cerca de 726 mil gênero, raça e classe, que permite a mente utilizados para manter a desi-
vou à proscrição de algumas substân- qual o proibicionismo se legitimou pa- considerado socialmente um “vício ma penitenciário. Sobre o tema, Mi- do atrás da Nigéria: 46,5% brasileiros (350,4 por 100 mil/habitantes) em ju- ampliação do controle sobre áreas gualdade, em vez de investir em políti-
cia que se tornaram ilícitas mediante a ra a ampliação do controle social sobre barato” ou um hábito deselegante das chelle Alexander traz uma fala do re- se declararam pardos; 9,3%, pretos; e nho de 2017. economicamente desfavorecidas da cas sociais e em reparação. A tragédia
criação de uma norma proibitiva e pe- eles.6 Portanto, a opção pelo modelo classes baixas e dos afrodescenden- verendo Al Sharpton em um protesto 43,1%, brancos.19 Ou seja, a maioria da E quem está preso no Brasil? A cidade, onde vive a população negra, do racismo se fortalece com a proibi-
nas severas. Contudo, ao analisarem proibicionista em sua origem baseava- tes.11 Segundo o médico brasileiro José em Louisiana: “Fomos das plantações população brasileira é negra, mas está maioria dos que cumprem pena de ao mesmo tempo que imuniza as clas- ção e ainda se alimenta da farsa da
os riscos e danos decorrentes do con- -se no racismo e visava proteger a clas- Rodrigues da Costa Dória, em comen- para as penitenciárias... Eles tentaram longe dos espaços de poder, é a maio- prisão é negra, jovem e de baixa esco- ses mais altas, privilegiadas por sua guerra às drogas, que reproduz a lógica
sumo e comparar vários tipos de dro- se dominante: os brancos puritanos tário racista, o uso da Cannabis seria criar um sistema de justiça criminal ria da classe baixa e ocupa a maior laridade (Infopen, 2019), e a represen- branquitude. escravocrata de imposição de dor e de
6 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2019 AGOSTO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 7

sofrimento e de negação ao direito de devendo ser considerada a hipótese (pouco estu- 14 Saad, op. cit, p.146. br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinte- sociais e identitários, observamos que, registrada por meio de uma série de le no qual repressão e punição apare- citas, as drogas, se configuram como
dada) de influência desse mito racista no discurso 15 Michelle Alexander, The New Jim Crow: Mass In- ticos/infopen-jun-2017-rev-12072019-0721.pdf>.
existência digna à população negra. de criminalização da cocaína nos Estados Unidos. carceration in the age of colorblindness [O novo 26 Luciana Boiteux, “Drogas y prisión: la represión
enquanto para mulheres brancas os números, categorias e narrativas po- cem como formas pelas quais o principais mercadorias que de forma
Por isso se diz que “todo camburão tem 6 David F. Musto, “Opium, Cocaine and Marijuana in Jim Crow: encarceramento em massa na era do contra las drogas y el aumento de la población pe- índices de letalidade diminuíram, são de ser enunciada e permite analisar e Estado atua sobre certos segmentos ilegal atravessam fronteiras, produ-
um pouco de navio negreiro”. A guerra American History” [Ópio, cocaína e maconha na daltonismo], New Press, Nova York, 2012, p.221. nitenciaria en Brasil”. In: Pien Metaal e Coletta You- as mulheres negras as mais vitimiza- questionar a atual política de drogas, da população e se apresentam sobre- zindo a circulação entre circuitos alta-
história norte-americana], Scientific American, 16 Ibidem, p.185. ngers (eds.), Sistemas sobrecargados: leyes de
às drogas é uma guerra contra pessoas, Special Issue, Medicine, 1993, p.7; Craig Reinar- 17 Troy Duster, “Pattern, Purpose and Race in the drogas y cárceles en América Latina, TNI/WOLA,
das por feminicídio. Proporcional- seus mecanismos e efeitos. tudo quando olhamos para quem são mente lucrativos e potencializados pe-
mas não contra todas, é uma guerra man e Harry G. Levine (1997), Crack in América: Drug War” [Padrão, propósito e raça na guerra às Amsterdã/Washington, 2010, p.30-39; Camila mente, quase 64% do total de mulhe- O que faz o Estado realizar políti- essas pessoas que estão sendo mor- lo proibicionismo.
contra negros e negras, para os quais a demon drugs and social justice [Crack nos Esta- drogas]. In: Craig Reinarman e Harry G. Levine, op. Caldeira Nunes Dias, op. cit.; Salo de Carvalho, A res assassinadas são negras, de acordo cas de segurança pública cujo princi- tas e encarceradas pelo Estado em Na sobrevivência e resistência a es-
dos Unidos: drogas demonizadas e justiça social], cit., p.261. política criminal de drogas no Brasil, Saraiva, São
única política social disponível é a po- UCP, Berkeley, p.6-7. 18 Vide pesquisa da Emory University, de Atlanta, Paulo, 2016.
com dados apresentados no Atlas da pal resultado é a produção constante nome da proibição das drogas. sa política, mães e familiares de jo-
lítica penal e a violência de Estado. 7 Antonio Escohotado, Historia de las drogas, Alian- EUA. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/ 27 Luciana Boiteux, “Encarceramento feminino e sele- violência elaborado pelo Ipea em par- de mortes e exclusão social? Por quais Por um modelo sistemático de vens assassinados vivem seu luto em
za Editorial, Madri, 1998. rio/pesquisa-americana-indica-que-rio-recebeu- tividade penal”, Boletim da Rede de Justiça Crimi- ceria com o Fórum Brasileiro de Segu- meios a alternativa de repressão e pu- controle, repressão e punição, jovens luta e, a partir da morte de seus entes,
8 Luisa Saad, “Fumo de negro”: a criminalização da -2-milhoes-de-escravos-africanos-15784551>. O nal, 9. ed., Rede de Justiça Criminal, São Paulo,
*Luciana Boiteux, mestre (Uerj) e doutora maconha no pós-abolição, Editora da UFBA, Sal- banco de dados original pode ser localizado em: 2016. Disponível em: <http://redejusticacriminal.
rança Pública. nição é atualizada com justificativas negros e negras que habitam favelas, apoiados por uma potente rede de ati-
em Direito Penal (USP), é professora asso- vador, 2009; Elisaldo Araujo Carlini, “A história da <www.slavevoyages.org>. org/pt/portfolio/ encarceramento-feminino-e-sele- Nesse jogo no qual mortes são re- de conter e proibir o mercado varejista periferias e subúrbios das regiões me- vistas, militantes e organizações, de-
ciada de Direito Penal e Criminologia da maconha no Brasil”, Jornal Brasileiro de Psiquia- 19 “População que se declara preta cresceu 32,1% tividade-penal/>. gistradas e classificadas em diferentes de drogas? Quais são efeitos de uma tropolitanas das grandes capitais do mandam memória, verdade e justiça
tria, v.55, n.4, p.314-317, 2006. nos últimos 6 anos em todo o Brasil”, Último Se- 28 Infopen Mulher, 2018. Disponível em: <http://de-
UFRJ e coordenadora do Departamento de 9 Jean Marcel Carvalho França, História da maco- gundo, 22 maio 2019. pen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mu-
categorias, no estado do Rio de Janei- política de drogas usada para justificar Brasil são atingidos pelo feixe contí- por seus mortos. Na luta por direitos e
Política de Drogas do IBCCrim. nha no Brasil, Três Estrelas, São Paulo, 2015, p.28. 20 World Prison Brief. Disponível em: <www.prisons- lheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf>. ro, ao longo do primeiro semestre de uma política de segurança pública al- nuo da violência estrutural e institu- por garantias de direitos humanos e
10 Carlini, op. cit. tudies.org/highest-to-lowest/prison-population-to- 29 Luciana Boiteux e Ela Wiecko, Tráfico de drogas e 2019, apesar do decréscimo no registro tamente repressiva e punitiva? Diante cional que se reproduz de forma física, civis, isto é, o reconhecimento desses
11 Nilson Santanna, “O problema social da maco- tal?field_region_taxonomy_tid=All>. Constituição, Ministério da Justiça, Brasília, 2009;
nha”, Revista de Psiquiatria, Rio de Janeiro, 1996. 21 Luciana Boiteux, op. cit., p.86-87; e Jean Marcel Carolina Dzimidas Haber e Natalia Cardoso Amo-
total de homicídios dolosos, aumen- de tantas pessoas que estão sendo fa- letal e armada. mortos e sobreviventes como sujeitos
12 José Rodrigues da Costa Dória, “Os fumadores de Carvalho França, op. Cit, p.141. rim Maciel, “As sentenças judiciais por tráfico de tou em 15% o número de pessoas exe- talmente atravessadas, quem são com humanidade, dignidade e cida-
maconha: efeitos e males do vício”. In: Eduardo 22 A seletividade (social e racial) é apontada por pes- drogas na cidade e Região Metropolitana do Rio cutadas por agentes estatais. Segundo aqueles que insistem nesses modelos e dania, as políticas de segurança pú-
1 Alan Labrousse, Geopolítica das drogas, Desatino, Macrae e Wagner Coutinho Alves (orgs.), Fumo de quisadores como o traço característico da política de Janeiro”, Cadernos de Segurança Pública, ano
São Paulo, 2010. angola: canabis, racismo, resistência cultural e penal brasileira. Vide Camila Caldeira Nunes Dias, 10, n.10, ago. 2018, p.1-16.
dados do Instituto de Segurança Pú- inspiram tais práticas? E mais: por blica e de drogas se tornam objeto de
2 David Nutt, Leslie A. King e William Saulsbury, espiritualidade, Edufba, Salvador, 2016, p.65-84. “Encarceramento, seletividade e opressão: a ‘crise 30 Observações Preliminares da visita da Comissão blica (ISP) apresentados pela pessoa quais meios se atualizam na rotina das O que faz o Estado contestação por causa da constatação
“Development of a rational scale to assess the
harm of drugs of potential misuse” [Desenvolvi-
13 A inclusão da Cannabis no rol das substâncias ilí-
citas ocorreu em 1925, por decisão da II Conferên-
carcerária’ como projeto político”, Análise, n.28,
São Paulo, Fundação Friedrich Ebert Stiftung,
Interamericana de Direitos Humanos ao Brasil em
2018. Disponível em: <www.oas.org/es/cidh/
do governador do estado, Wilson Wit- burocracias do Estado tecnologias e realizar políticas de de sua eficácia enquanto política de
zel, em maio deste ano, os “homicídios ferramentas que mantêm a funciona- promoção de morte e de produção de
mento de uma escala racional para medir o dano cia Internacional sobre Ópio realizada em Gene- 2017; Sergio Adorno, “Discriminação racial e justi- prensa/comunicados/2018/238OPport.pdf>.
decorrentes de intervenção policial”, lidade de uma política de drogas volta-
segurança pública cujo presos e mortos.
de drogas de potencial mau uso], Lancet, n.369, bra, que tinha como foco inicial somente o ópio e a ça criminal em São Paulo, Novos Estudos, n.43, 31 Ver: <www.forumseguranca.org.br/wp-content/
Londres, p.1047-1053, 2007. coca/cocaína. A Cannabis não estava na agenda. São Paulo, p.45-63, nov. 1995. uploads/2019/06/Atlas_2019_infografico_ também conhecidos como “autos de da para a gestão de populações negras principal resultado é a Desse modo, para concluir, evoco
3 Luciana Boiteux, O controle penal sobre as drogas
ilícitas: o impacto do proibicionismo sobre o siste-
Contudo, diante da solicitação do delegado do
Egito de sua inclusão, sob a alegação de que a
23 Apesar de a Lei de Drogas de 2006 reconhecer
direitos do usuário, alterações mais recentes, du-
FINAL.pdf>.
32 Ana Luisa Flauzina, Corpo negro caído no chão: o
resistência”, estão compondo mais de e pobres, que vulnerabiliza e precariza produção constante de outras questões a serem articuladas e
ma penal e a sociedade. Tese de Doutorado. Pro- maconha seria “tão perigosa como o ópio”, com o rante o governo Bolsonaro, fizeram que este esteja sistema penal e o projeto genocida do Estado bra- um quarto do total de mortes intencio- esses sujeitos em suas formas de viver? mortes e exclusão analisadas com base na relação entre
grama de Pós-Graduação em Direito da Universi- apoio do representante brasileiro na conferência, hoje sujeito à internação involuntária por previsão sileiro, Contraponto, Rio de Janeiro, 2008. nais. O governador, alinhado com o Ou, dito de outro modo, quem ganha políticas de vida e morte que geram e
dade de São Paulo, São Paulo, 2006. que afirmou que tal risco era o mesmo no Brasil, legal expressa, por meio da Lei n. 13.840/2019, 33 Apud Atlas da Violência 2019, p.17. Disponível em
governo federal, liderado pelo presi- com a morte e a prisão de tantos ho-
social? gestam desigualdades na sociedade,
4 David T. Courtwright, Forces of Habit: drugs and apesar de alguma resistência de alguns países que alterou a política nacional de drogas, ampliou o <www.forumseguranca.org.br/wp-content/
the making of the modern world [Forças do hábito: como o Reino Unido, decidiu-se incluir tal planta na financiamento de comunidades terapêuticas e não uploads/2019/06/Atlas-da-Violencia-2019_ dente Jair Bolsonaro, e apoiado pela mens e mulheres jovens que perdem considerando o marco de que as dro-
drogas e a construção do mundo moderno], Har- lista das substâncias extremamente perigosas, jun- fortaleceu a rede pública de atendimento psicos- 05jun_versão-coletiva.pdf>. autodenominada bancada armamen- sua vida, seus direitos e liberdades e gas são argumento suficiente para re-
vard University Press, Cambridge, 2002, p.153. to com a cocaína e o ópio, sem nenhum elemento social (Caps). 34 “Número de pessoas mortas pela polícia no Brasil
5 Nessa perspectiva, devemos nos lembrar da análi- que comprovasse tal afirmação. In: Robert Kendell, 24 “Despenalização” significa uma opção de política cresce 18% em 2018; assassinatos de policiais
tista nas casas legislativas estadual e que sofrem na pele as marcas de uma A cada dia somam-se às estatísticas pressão e punição de certos segmentos
se de Angela Davis, Mulher, raça e classe, Boitem- “Cannabis condemned: the proscription of indian criminal que exclui ou reduz a possibilidade de apli- caem”, G1, 19 abr. 2019. federal, tem aproveitado oportunida- sociedade historicamente fundada no de mortes novos mortos, vítimas agre- sociais. Como lidar com o “problema
po, São Paulo, 2016, p.178-179, quando fala do hemp” [Cannabis condenada: a proscrição da ma- cação de pena de prisão, mantendo o fato como 35 Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Anuário des públicas de sua função para esti- racismo estrutural? gadas ao acúmulo de ausências, dores das drogas” levando em conta seus
mito do estuprador negro de mulheres brancas, conha indiana], Addiction, n.98, Londres, 2003, crime no Direito Penal. Brasileiro de Segurança Pública 2014 a 2017,
efeito do racismo no sistema de justiça criminal, p.143-151. 25 Infopen, jun. 2017. Disponível em: <http://depen.gov. 2018.
mular, endossar e justificar mortes co- O modo como o controle da popu- e sofrimentos vivenciados por aqueles usos, consumos e circulação social e
metidas e legitimadas pela ação de lação tem sido exercido pelas institui- atravessados pelo que podemos cha- culturalmente diversos? Como outra
agentes do estado. Sob a acusação de ções estatais pode ser observado pelas mar de “necropoder”, o poder político política de drogas pode ser usada para
que essas vítimas seriam “traficantes”, ferramentas e técnicas organizadas de demarcar e decidir quem pode viver a promoção da vida por meio de estra-
“bandidos” e “criminosos”, essas mor- por uma burocracia policial e judicial e quem deve morrer, como discute o fi- tégias e ferramentas de redução de
tes seriam justificáveis e, para certas que tem entre suas principais caracte- lósofo Achille Mbembe. Diante de nú- danos, cuidado e responsabilização?

Políticas de vida e de morte no


moralidades, desejáveis, pois esses rísticas elementos da tradição cartorial meros que organizam as categorias pe- E de que maneira uma alternativa ao
mortos, em vida, estariam “envolvi- inquisitorial e de desigualdade jurídi- las quais as instituições estatais proibicionismo pode servir para a efe-
dos” com práticas que transformam ca, como tem examinado o antropólo- classificam, organizam e administram tivação da demandada e necessária
esses corpos em extermináveis e essas go Roberto Kant de Lima. Por meio de “homicídios”, “autos de resistência”, reparação histórica daqueles cuja vi-

controle proibicionista das drogas


vidas em substituíveis. papéis, documentos encarnados de fé “desaparecimentos” e outras tantas da, corpo e território são criminaliza-
Tais acusações estigmatizantes e pública, agentes administram e gerem formas de registrar uma “morte mata- dos, precarizados e vulnerabilizados?
incriminatórias ganham ainda mais o Estado, regulam relações, controlam da”, buscam-se justificações para cada Essas são apenas algumas questões
legitimidade por meio da Súmula 70, o espaço público e inscrevem verdades vez mais investir em ações e operações que aqui proponho e que, longe de se-
decisão colegiada dos desembargado- que legitimam uma política de drogas de segurança pública que se baseiam rem respostas que apontem para ca-
POR FLAVIA MEDEIROS* res do Tribunal de Justiça do Rio de Ja- proibicionista, que, como tem sido de- no monopólio estatal sobre o uso da minhos já prontos, soam como refle-
neiro que autoriza que, em casos nos monstrado, atualizam formas de ex- força para atuar contra segmentos es- xões, e não como soluções, diante
quais houve apreensão de drogas ilíci- termínio e dominação de corpos, rela- pecíficos da população. dessa complexa situação. Pelo estra-
tas, os policiais responsáveis pela ções e territórios. Sob o espectro de Ao mesmo tempo, há em curso o nhamento de um Estado que, por ve-
ocorrência sejam as únicas testemu- uma dita “guerra às drogas” se confi- recrudescimento de territórios especí- zes e cada vez mais, transparece agir

C
om mais de 800 mil pessoas en- somam-se mais de 60% destas sob 65 mil pessoas cuja vida foi eliminada segmento específico da população, nhas do fato. gura uma “guerra na guerra”, como ficos por parte de agentes que ora se contra a sociedade, estruturando rela-
carceradas no sistema prisio- acusação de crimes nos quais as “dro- tiveram sua morte registrada oficial- não corresponde à responsabilização Jovens negros e pobres cada vez analisa o cientista político Thiago Ro- mobilizam em nome de interesses ções de poder e controle sobre a morte
nal, segundo dados do Conse- gas” – notadamente pequenas quanti- mente como “homicídio”, sendo o por aquele que seria um dos crimes mais são encarcerados, vitimados pela drigues. “Guerra” essa que tem sido pretensamente institucionais e, por- que limitam e interrompem as potên-
lho Nacional de Justiça (CNJ) dades de substâncias como maconha maior crescimento nas capitais de es- mais graves e relevantes, a saber, o cri- conflitualidade armada na sociedade usada para justificar uma atuação do tanto, do Estado, ora em nome de inte- cias da existência, como podemos dis-
divulgados neste ano, das quais cerca e cocaína – servem como material pa- tados do Norte e Nordeste. Crimes es- me de matar alguém. Ao contrário, ou pela violência de estado letal que se Estado cujos efeitos têm sido a morte e resses corporativos e, portanto, parti- putar para construir relações que ve-
de 40% ainda aguardam julgamento, o ra incriminação. Ainda, cada vez mais ses que, apesar de sua alta incidência, além de pequenas quantidades de autolegitima ao retroalimentar dis- o encarceramento da juventude negra culares, para, por meio do controle nham a reconfigurar e potencializar
Brasil segue aumentando o número de observamos, com base em pesquisas apresentam baixo índice de elucida- drogas, muitas vezes apreendidas em cursos de medo e ódio construídos so- e pobre. Em vez de uma política para a armado, exercer a dominação moral, as formas diversas de vida?
pessoas presas e já figura como a ter- realizadas no sistema prisional junto a ção. Segundo o CNJ, menos de 10% flagrantes forjados por policiais – co- bre a figura do inimigo indesejado, promoção da vida e do bem viver, exe- de regras e do mercado. Controlando a
ceira maior população prisional do mulheres presas provisórias, o grande desses crimes são investigados e en- mo ocorrido com o jovem negro Rafael vinculado ao uso e, principalmente, à cuta-se uma política que redunda na circulação de bens, coisas e pessoas, *Flavia Medeiros é antropóloga, pesquisa-
mundo, seguindo Estados Unidos (1º número daquelas que, por seus víncu- caminhados ao sistema de justiça cri- Braga –, homens e mulheres, em sua circulação de (algumas) drogas. produção de morte, sofrimentos e ódio, impõe-se sobre moradores de diferen- dora PNPD-Capes do Programa de Pós-
lugar) e China (2º lugar). Das pessoas los afetivos, pessoais e sociais com ou- minal pelas polícias investigativas por maioria jovens e negros, têm sido en- Diante desse contexto, ecoa a per- operada por um mecanismo estatal de tes partes da Região Metropolitana do -Graduação em Antropologia da UFF e do
presas no Brasil, a grande maioria é tros sujeitos já criminalizados, são en- meio dos inquéritos, procedimentos carcerados por crimes relacionados ao gunta enunciada pela vereadora Ma- execuções extrajudiciais que, desde Rio de Janeiro um ritmo da vida coti- INCT-InEAC, e autora de Matar o morto: uma
homem, dos quais cerca de 30% são carceradas sob a categoria penal do burocráticos e administrativos pro- patrimônio cometidos sem violência, rielle Franco, covardemente executa- institutos médico-legais, delegacias, diana no qual essas comunidades têm etnografia do Instituto Médico-Legal do Rio
acusados por crimes relacionados ao crime de “associação ao tráfico”. duzidos pela Polícia Civil e encami- como roubos e furtos. da no dia 14 de março de 2018: fóruns e tribunais, são repercutidas restringidas suas possibilidades de di- de Janeiro (EdUFF, 2016) e de Linhas de in-
varejo de substâncias psicoativas tra- Aumenta também nacionalmente, nhados ao Ministério Público para de- Por outro lado, das vítimas de “ho- “Quantos mais têm que morrer pra pela mídia e encontram ressonância versidade e existência. Além disso, es- vestigação: uma etnografia das técnicas e
tadas como ilícitas, também conheci- de forma gradual e contínua, o núme- núncia ou não. micídios”, cerca de 75% delas são jo- essa guerra acabar?”. Daí, uma série em uma parte da sociedade. ses grupos se articulam em um merca- moralidades numa divisão de homicídios da
do como “tráfico de drogas”. Quando ro de vítimas de mortes intencional- Isto é, o encarceramento em mas- vens homens negros. E, quando inter- de questões sobre essa “guerra” que Desse modo, evidencia-se a fun- do global no qual armas, junto com Região Metropolitana do Rio de Janeiro (Au-
olhamos as mulheres encarceradas, mente provocadas: em 2018, mais de sa, ou o hiperencarceramento de um seccionados diferentes marcadores tem sido vivida, observada, descrita e cionalidade de um sistema de contro- fármacos e substâncias psicoativas ilí- tografia, 2018).
8 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2019 AGOSTO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 9

A RODA DA VIOLÊNCIA, DA CORRUPÇÃO E DA IRRESPONSABILIDADE

O bolsonarismo e o
ram nas leis e políticas nos últimos cerceados e vivendo em condições in- para as empresas produtoras de armas, lucas que formam o chamado “núcleo
anos foram bastante tímidas. Concen- dignas por conta de supostas violações a questão é a mesma: quanto mais ideológico” do governo. Desde sua pre-
traram-se sobretudo no campo da ma- à lei de drogas, a enorme maioria ne- guerra, mais vendas, para todos os la- sença em cultos e celebrações até a
conha terapêutica e da redução de da- gros, jovens e pobres – a tendência é dos do conflito. Não é coincidência promessa de nomear um ministro

proibicionismo se retroalimentam
nos, e em geral são medidas parciais, que esse número aumente com a mu- nenhuma que uma das primeiras me- evangélico para o STF, Bolsonaro tem
que aconteceram sem apoio dos go- dança, cenário que pioraria a níveis didas desse governo tenha sido desre- demonstrado priorizar o eleitorado re-
vernos, ou mesmo contra eles. inimagináveis se posteriormente fosse gulamentar a venda de armas, o que ligioso conservador, para o qual a pau-
E mais: além de tímidas, essas con- aprovado o “pacote anticrime” pro- causou imediato boom das ações das ta das drogas, e dos costumes em geral,
quistas no momento estão na mira do posto pelo ministro Sérgio Moro, hoje empresas produtoras de armas nas tem grande importância.
governo federal, que busca não só felizmente quase engavetado, junto Bolsas de Valores. A maconha, que Assim, não há surpresa nenhuma
O governo alimenta e sustenta o proibicionismo, que alimenta e sustenta o governo, seus integrantes anulá-las, como também realizar no- com a reputação do ex-juiz. nunca matou ninguém, é proibida em no fato de o governo estar privile-
e sua base social. Cabe a nós, que prezamos a vida, e não o dinheiro e a morte, defender e aprofundar vos retrocessos. A Anvisa, responsável nome da vida. Já as armas... giando a guerra e a militarização no
o legado dos avanços conquistados, independentemente de quem esteja no poder por regulamentar o (urgente!) uso me- GOVERNO É O MAIOR MAXIMIZADOR DE DANOS Quem também tem fortíssimos in- que diz respeito às políticas de dro-
dicinal da maconha, tem sido cercada Esses retrocessos, no entanto, não teresses econômicos na proibição é o gas. Estranho seria se fosse diferente.
POR JÚLIO DELMANTO*
e ameaçada a todo momento pelo mi- me parecem ser a discussão central lobby das comunidades terapêuticas, Como diz um amigo meu, gatos não
nistro Osmar Terra, representante no tema das drogas na atual conjun- já qualificado por alguns pesquisado- voam. O governo alimenta e sustenta
maior do proibicionismo no governo; a tura, mesmo que o enfoque principal res como uma possível “indústria da o proibicionismo, que alimenta e sus-
redução de danos é vista como inimi- da análise aqui seja o governo federal, internação”. Ligadas aos setores reli- tenta o governo, seus integrantes e
ga da abstinência e das comunidades a política institucional. Isso porque, giosos em geral privilegiados pelo sua base social. Cabe a nós, que pre-
terapêuticas, prioridades dos atuais para mim, o maior risco atual no que atual governo, essas instituições foram zamos a vida, e não o dinheiro e a
mandatários do país; e a descriminali- diz respeito às políticas de drogas e fortalecidas desde os governos petistas morte, defender e aprofundar o lega-
zação da posse de drogas para consu- aos direitos humanos não é nenhuma e recebem constantes e inúmeras de- do dos avanços conquistados, inde-
mo pessoal, que está com julgamento das ações citadas anteriormente: é o núncias de violações aos direitos hu- pendentemente de quem esteja no
suspenso desde 2015 no STF, foi barra- próprio governo, como um todo. Se o manos e à reforma antimanicomial. A poder. Afinal, esses avanços foram
da (ou supostamente adiada) depois Estado brasileiro sempre foi o maior enorme maioria delas não oferece pro- conseguidos não graças a nenhum
do vergonhoso acordo (ou “pacto”, co- agente da guerra às drogas, do encar- fissionais qualificados, projetos de tra- governo, e sim à base de muita luta,
mo anunciado pelos próprios envolvi- ceramento, do genocídio etc., ele tamento e muitas vezes nem mesmo feita desde baixo. Os efeitos dessa lu-
dos) feito entre Bolsonaro, Rodrigo atualmente está sendo comandado de liberdade aos internos; há casos com- ta, dessa desobediência, dessa legali-

© Daniel Kondo
Maia e Dias Toffoli, representantes uma forma ainda mais violenta, cor- provados de tortura, castigos físicos e zação cotidiana que se espalha há
máximos de poderes que na teoria de- rupta e irresponsável. mortes. A fiscalização historicamente muitos anos, são sentidos em qual-
veriam ser independentes. Isso não só pelo que o grupo que é muito pequena, quando existe, e, quer quebrada ou canto da cidade.
Ao mesmo tempo que os pequenos está no governo defende e apregoa, com a “nova” política de drogas, a ten- Mesmo que simples canetadas não
avanços foram barrados, estão sendo mas também, e talvez principalmen- dência é que a disputa pelos recursos possam destruí-los ou revertê-los as-
implementados retrocessos em um te, por suas origens e bases de susten- agora mais abundantes se intensifique sim tão facilmente, é bom ficarmos
cenário que parecia impossível de tação política e econômica. Há fortes – consequentemente aumentará tam- muito atentos, até porque, como foi

N
o que diz respeito às políticas mas também de mudanças na conjun- messas da campanha presidencial esse novo entendimento social sobre piorar. No dia em que completou cem indícios de que a família Bolsonaro bém a demanda por internar pessoas. dito, os avanços foram pequenos – o
sobre drogas, o governo do pre- tura do debate de drogas no Brasil e no vencedora do último pleito no México, uso de drogas que tem se consolidado, dias de “gestão”, em abril, o presidente seja intimamente ligada às chamadas Sabemos quem pagará a conta. Na dú- fim do antiproibicionismo é a busca
sidente Jair Bolsonaro, agora mundo. Com o proibicionismo com- e também se aproximam de virar lei na mesmo que ainda estejamos num país assinou o decreto da “Nova política de milícias do Rio de Janeiro, organiza- vida, podemos assistir ao filme Bicho da liberdade (e o meio também!).
iniciando seu segundo semes- pletando seu primeiro século de resul- Jamaica, onde a realidade já ultrapas- majoritariamente conservador. drogas”, que de nova tem muito pou- ções essas que são altamente conec- de sete cabeças, infelizmente ainda Num momento em que qualquer
tre de medo e delírio em Brasília, tem tados desastrosos, muitos países já sou a proibição há muito tempo. Ou- Hoje em dia é cada vez mais difícil co. Entre os pontos previstos, e polê- tadas com a militarização e com a atual em muitos aspectos. tipo de mudança progressista em ma-
aprofundado uma tendência já exis- reavaliaram suas posições e políticas tros países americanos, como Chile e encontrar alguém que defenda que o micos, estão o veto à redução de da- guerra às drogas. Além de venderem téria de políticas públicas é algo im-
tente há alguns anos em nosso país: sobre drogas. Pesquisas científicas Colômbia, têm avançado considera- consumo de álcool é menos potencial- nos e verbas e incentivos para as drogas nos territórios que controlam pensável, acho importante valorizar
um imenso descompasso entre os com substâncias demonizadas e as velmente no campo da maconha para mente danoso que o de maconha, ou comunidades terapêuticas tratarem e terem, portanto, interesse econô- esse outro lado, do que já foi conquis-
avanços sociais, científicos e culturais teorias e iniciativas práticas do campo fins medicinais: em escala global, esse que uma criança merece ter centenas supostos dependentes. No mês se- mico na manutenção da proibição, as Para os traficantes tado e dificilmente será revertido. O
e as políticas e iniciativas institucio- da redução de danos ganharam muito debate é ainda mais fértil e tem atraído de convulsões diárias por seu remédio guinte foi aprovado, em ritmo expres- milícias têm outros interesses articu- caminho para a mudança passa por aí,
nais sobre o tema. espaço internacionalmente, assim co- o interesse não só de muita gente que ser proveniente de uma planta proibi- so por medo da possível descriminali- lados à guerra, como tráfico de ar-
e para as empresas por aprofundar essa aposta na trans-
Se o antiproibicionismo – a defesa mo cada vez mais figuras públicas tem problema de saúde e pode ter seu da, ou mesmo que “combater” maco- zação no STF, que acabaria adiada, mas, extorsões e controle territorial. produtoras de armas, formação desde baixo, que garantirá
pública e organizada da mudança nas “saíram do armário” em defesa do fim sofrimento diminuído, como também nha e cocaína tem ajudado em alguma um projeto de lei do então deputado e Além disso, elas são formadas por po- a questão é a mesma: que a mudança na lei seja efetiva, seja
políticas de guerra às drogas – tem da guerra às drogas, mudando um de empresas e investidores. Cogume- coisa na violência e na corrupção, e a agora ministro Osmar Terra, que pre- liciais e ex-policiais, e todos sabemos quanto mais guerra, inevitável. E não só, pois a busca da
suas origens no Brasil no início dos pouco a percepção estigmatizada e los, coca, LSD, MDMA, diversas outras avalanche de informações propiciada vê o aumento da pena mínima para como corrupção e proibição são pra- mudança de mentalidade é um traba-
anos 1980, sua consolidação se dá na não diversificada que se tinha dos plantas e substâncias têm tido sua le- e difundida pelas redes sociais só tem tráfico de cinco para oito anos no caso ticamente sinônimos – se a última
mais vendas, para todos lho cotidiano e social para além das
virada da primeira para a segunda dé- usuários de drogas. Afinal, somos to- galidade rediscutida e seus efeitos te- tornado essa bola de neve mais irre- de suposto envolvimento com organi- acabasse, diminuiriam muito os lu- os lados do conflito leis – que já vem sendo feito e precisa
cada dos anos 2000, com o surgimento dos usuários de drogas, lícitas ou ilíci- rapêuticos estudados cientificamente. versível. Anteriormente proibido, o de- zações criminosas. Uma campanha cros provenientes da primeira. A difi- ser protegido, preservado e ampliado.
e a ampliação da Marcha da Maconha, tas, e não é isso que define o caráter e o No Brasil é possível observar essa bate sobre drogas hoje é feito livre- antidrogas pessimamente elaborada e culdade de elucidação do caso Ma- A proibição não é total, não funciona
hoje um dos principais movimentos valor de ninguém: cada vez mais pes- mudança e esse avanço não só com o mente em cada vez mais lugares, e o mudanças no Conselho Nacional de rielle Franco mostra como esses Milicianos, indústria das armas e plenamente nem geográfica nem tem-
sociais do país. Inicialmente minús- soas têm percebido isso. crescimento da Marcha da Maconha, caso das associações de pacientes que Políticas sobre Drogas (Conad) tam- grupos também estão muito conec- da segurança, traficantes de armas, re- poralmente. Em muitos ambientes,
cula, desorganizada, estigmatizada, Junto com essas transformações mas também se olharmos para a visí- distribuem e mesmo produzem sua bém foram feitas pelo governo nesse tados com a justiça e com a política. ligiosos gestores de comunidades tera- contextos e momentos já vivemos a le-
ignorada (inclusive pela esquerda) e mais sociais ou culturais houve tam- vel e progressiva abertura que tem própria maconha para uso terapêutico seu primeiro semestre – que já pare- Além da família do presidente, des- pêuticas, policiais e militares (39 kg!) galização, o antiproibicionismo, com a
mesmo proibida, a Marcha hoje mobili- bém importantes medidas antiproibi- ocorrido nesse debate nos últimos é um exemplo fantástico de como será ceu infinito. ses seus filhos esquisitos e dos milicia- corruptos: esses setores sustentam violência e o autoritarismo passando
za centenas de milhares de pessoas em cionistas em diversos países, sobretu- anos. Uma série de novos atores e atri- – e de como já é! – um contexto não Esses dois pontos – o estímulo, o fi- nos, há no governo e em torno dele tanto o governo quanto a proibição, longe de nossas decisões e práticas. É
dezenas de cidades do país, em atos de do em relação à maconha. Uruguai e zes se somou ao – ou no mínimo se proibicionista e inclusive não merca- nanciamento e a não fiscalização das uma série de outros grupos e interesses por motivos sobretudo econômicos. preciso aprofundar isso e acabar com
desobediência civil organizada. As ma- Canadá já legalizaram todos os usos e aproximaram do – antiproibicionis- dológico de circulação de drogas. comunidades terapêuticas e o aumen- que querem e precisam que a proibição Há ainda os interesses morais, os “em- essa guerra que afeta tanta gente em
nifestações que eram antes pequenos a venda da planta, cercando o conti- mo: artistas, intelectuais, pesquisado- No entanto, como dito anterior- to da pena mínima para tráfico – cer- e a guerra continuem. A mais óbvia é a presários morais” de que falava Ho- benefício de tão poucos. A ganância e a
grupos, predominantemente brancos, nente pelo Norte e pelo Sul, e mesmo res, políticos, partidos de esquerda e mente, há um grande descompasso tamente trarão impactos graves para a indústria oficial das armas e também ward Becker. Nesse caso, a convergên- violência deles são muito grandes: só
masculinos e estudantis, hoje são gi- nos Estados Unidos, principal ideali- mesmo de direita, movimentos so- entre esses avanços e a institucionali- já gravíssima situação dos supostos seus comerciantes extraoficiais, como cia entre o chamado “bolsonarismo” e não são maiores do que a necessidade
gantescas e diversificadas, com muita zador e difusor global das políticas ciais, ONGs, órgãos de comunicação, dade política brasileira – como, aliás, dependentes, muitas vezes tratados o PM Ronnie Lessa, suspeito de ser o o proibicionismo é absoluta: a liberda- de superá-las.
gente negra, jovem, periférica, LGBT – proibicionistas no começo do século médicos, advogados, religiosos, pes- me parece acontecer em praticamente como presos ou até mesmo trabalha- assassino material de Marielle e que te- de ao corpo, em qualquer de seus as-
divergente – desobedecendo à lei injus- XX, em 32 dos cinquenta estados se soas afetadas pelo sistema carcerário, todos os setores. Se nos últimos dez dores escravizados, e do sistema car- ve 117 fuzis apreendidos na casa de um pectos, causa horror aos evangélicos *Júlio Delmanto, jornalista e doutor em His-
ta de forma pública e conjunta. permite a maconha para fins terapêu- pacientes ou familiares de pacientes anos, aproximadamente, temos visto cerário, altamente seletivo, racista e amigo. Antes de se mudar para um pre- mais fundamentalistas, terraplanistas, tória Social, é autor de Camaradas caretas:
Esses avanços não aconteceram do ticos, e em dez deles a Cannabis é legal que usam maconha, moradores de pe- essas marcantes mudanças em âmbi- corrupto. Dos cerca de 800 mil presos sídio no Rio Grande do Norte, Lessa olavistas, golpistas, militares, xenófo- drogas e esquerda no Brasil (Alameda) e in-
nada. Foram fruto de muito trabalho, para todos os fins. A legalização da riferia... Muita gente repensou sua po- to nacional e internacional, as pou- atualmente no país, aproximadamen- morava no mesmo condomínio do pre- bos, youtubers de extrema direita, in- tegrante do Coletivo DAR – Desentorpecen-
criatividade e dedicação dos ativistas, maconha e o fim da guerra foram pro- sição, influenciados e influenciando quíssimas conquistas que acontece- te 300 mil estão tendo seus direitos sidente Bolsonaro. Para os traficantes e cels, misóginos e outras vertentes ma- do a Razão.
10 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2019 AGOSTO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 11

ABSTINÊNCIA E ISOLAMENTO EM DESTAQUE

A nova política nacional sobre drogas


criada em 1998, teve como resultado lo Ipea revelam que a maioria dos in- TENSÕES PRÁTICAS E LEGAIS
posterior a criação da então denomi- ternos são homens pobres. Por trás do
nada Pnad, em 2002. No documento isolamento e da política pública que Ano DOCUMENTO REGULAÇÃO DAS CTs
não havia nenhuma menção às CTs, e privilegia a abstinência, está o centro

e as comunidades terapêuticas
a PRD estava entre as principais dire- da questão urbana brasileira: violação Secretaria Nacional
trizes (ver tabela). Na prática, o que se dos direitos humanos5 e marginaliza- 1998 de Políticas sobre Não há nenhuma menção às CTs.
viu foi um alargamento da ideia de re- ção social. A exposição do panorama Drogas (Senad)
dução de danos, que anteriormente se atual realizada por pesquisadores das
restringia a programas de cuidado em políticas sobre drogas com ampla ex- Política Nacional
pacientes soropositivos. Os programas periência em espaços para tratamen- 2002 Não há nenhuma menção às CTs.
sobre Drogas (Pnad)
No dia 5 de junho, foi sancionada a Lei n. 13.840/2019. Mesmo com vetos, ela altera o Sistema Nacional de Políticas passaram a ser desenvolvidos pela to, notadamente as CTs, revela que há
sobre Drogas (Sisnad), instituído em 2006, endurecendo-o e fortalecendo as comunidades terapêuticas, por um lado, saúde mental e criou-se o Centro de uma mudança de paradigma em an- Primeira regulamentação voltada às CTs:
e estabelecendo o fim de qualquer incentivo à Política de Redução de Danos (PRD), por outro Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas damento na Pnad. Privilegia-se a abs- • São incluídas como opção de “serviço de atenção
(Caps-AD). Além disso, surgiram e tinência em detrimento da redução de em regime residencial”, dentro da Rede de Atenção
POR BEATRIZ BRANDÃO E MATHEUS CARACHO* Portaria do
ampliaram-se as ONGs que trabalha- danos, exalta-se um modelo de trata- Psicossocial (Raps).
2011 Ministério da Saúde
vam com redução de danos para usuá- mento coercitivo em prejuízo de um • Passam a fazer parte do Sistema Nacional de
com Resolução n. 29
rios de drogas. Mesmo assim, essas modelo individualizante, transfere-se Políticas sobre Drogas (Sisnad).
instituições viviam uma situação pa- para o sujeito a resolução de um pro- • A Anvisa se torna o órgão responsável por sua

N
o mesmo ano em que a Política Segurança Pública, e de Cuidados e Pre- radoxal: apoio oficial às políticas de re- blema social. regulamentação.
de Redução de Danos (PRD) venção às Drogas do Ministério da Ci- dução de danos e problemas para fi- A internação de usuários de drogas Resolução n. 01, do As CTs são conceituadas como entidades que
completaria trinta anos1 no dadania, assim como representantes da nanciamento dos programas. em CTs é a inscrição nesses corpos de Conselho Nacional de realizam acolhimento de pessoas com problemas
Brasil, temos com o atual go- Agência Nacional de Vigilância Sanitá- Paralelamente a isso, as CTs desen- uma doença incurável, progressiva e 2015
Políticas sobre Drogas associados ao uso nocivo ou dependência de
verno federal o Decreto n. 9.761, refe- ria (Anvisa), de um órgão estadual res- volviam-se em todo o território nacio- fatal.6 Ao desconsiderar as diferentes (Conad) substância psicoativa.
rente à nova Política Nacional sobre ponsável pela política sobre drogas e de nal. Eram apoiadas por organizações interações com as substâncias, as his- Portaria Interministerial
Drogas (Pnad). Coincidência ou não, o um conselho estadual sobre drogas. religiosas, personalidades importan- tórias de vida e as inconstâncias indivi- Estabelece um Comitê Gestor Interministerial para
2017 n. 2, de 21 de dezembro,
fato é que o que seria um ano simbóli- As decisões políticas para um con- tes, eventos beneficentes; muitas rece- duais, o tratamento em CTs promove financiamento de vagas em CTs.
Ministério da Justiça
co da fortificação de três décadas da selho que exclui a participação da so- biam financiamento de prefeituras e uma sujeição do interno ao tratamento
Mesmo com vetos, aprova textos do Projeto de Lei
PRD, na realidade, sistematiza seu fim ciedade civil é mais uma maneira de governos estaduais. Com o crescimen- que terá de cumprir. Disciplina, traba- n. 37, de 2013, que muda o aporte financeiro para
como política pública. De todo modo, diminuição da pluralidade de pensa- to desse serviço e sua disseminação lho e espiritualidade compõem a roti- Lei n. 13.840
as CTs, o que permite uma expansão expressiva,
a assinatura de um decreto com dire- mento e ação. Há um crescente desin- por todo o território nacional, passa- na dessas instituições, e o não cumpri- passando de R$ 40 milhões para R$ 150 milhões.
trizes que potencializam a pena para vestimento em um modelo de atendi- ram a se organizar em federações. A mento de algum desses itens pode
o tráfico (com aumento de cinco para mento dialogal, em rede, que integra primeira e mais importante delas é a culminar em restrições, punições e até Não faz menção à redução de danos e reforça o
Decreto n. 9.761
seis anos) e dão exclusividade à absti- profissionais de diversas áreas; há Federação Brasileira de Comunidades exclusão do tratamento. 2019 lugar das políticas que exigem abstinência.
nência como forma de tratamento faz também o aumento do investimento Terapêuticas (FEBRACT). O endurecimento da Pnad reitera a
parte do repertório do governo desde nas CTs, que, como vimos, homoge- As CTs passaram a integrar oficial- política de encarceramento em mas- Exclui a participação da sociedade civil no Conse-
a campanha presidencial. Os discur- neízam as distintas experiências e ofe- mente a Pnad em 2006. Dessa forma, sa, principalmente da população po- lho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad),
sos já apontavam para uma política de recem uma solução moral e espiritual. tornaram-se elegíveis de subsídios pú- bre. Nos casos em que não é possível Decreto n. 9.926 postos que eram reservados a médicos, psicólogos,
combate ao tráfico regida pelas regras Tanto a Pnad e como a modificação do blicos e benefícios fiscais, integrando prender, ao Estado resta a alternativa assistentes sociais, juristas e conselhos
especializados.
da guerra às drogas. O fato é que ainda Conad revelam um caminho que igno- oficialmente a rede pública de atenção de terceirizar a responsabilidade so-
respondemos aos objetivos destaca- ra respaldo científicos, de diversidade, e cuidado a usuários de drogas. Ainda bre esses sujeitos, internando-os em
dos de uma lógica operacional do a concepção de rede integrada e a pos- que já recebessem financiamento pú- instituições que, a despeito de suas
proibicionismo. Vejamos o que se alte- sibilidade do dissenso. blico de estados e municípios, o gover- particularidades, culpabilizam e sub-
ra – ou melhor, se radicaliza – com es- no federal iniciou seu investimento em metem os internos a uma reforma mo-
PROIBICIONISMO
se novo decreto. individualização do tratamento, subs- passíveis a essas mesmas mudanças e HISTÓRICO DAS CTS NAS POLÍTICAS DE DROGAS 2011 por causa do plano “Crack, é pos- ral-religiosa.
No dia 5 de junho de 2019 foi san-
cionada a Lei n. 13.840/2019, que apre-
senta vetos importantes em relação ao
tituindo-a por um modelo de trata-
mento que já existia e atuava como
coadjuvante e em parceria com a Rede
nuances. Caso contrário, não pode-
mos nem sequer chamar de rede, e sim
de unidade assistencial, que é o que
As comunidades terapêuticas são
instituições não governamentais, que
podem ter algum vínculo religioso, e
sível vencer”. Desde então, foi aberta
uma seara de discussões políticas e
tramitações no Congresso em torno
*Beatriz Brandão e Matheus Caracho,
pesquisadores de políticas sobre drogas, são,
N a elaboração do plano que rege as
políticas sobre drogas, historicamen-
te medicina e direito atuaram em conjunto,
– e leis nacionais – o Harrison Act, em
1914, e o Volstead Act (Lei Seca), em
1919, nos Estados Unidos; e os Decre-
texto aprovado pelo Congresso do PLC de Redução de Danos. A internação em promove o referido decreto com a recebem usuários de drogas, com base não só da legitimidade, mas da hege- respectivamente, jornalista e doutora em fornecendo as bases para o que se con- tos-Lei n. 4.294, em 1921, e n. 891, em
37,2 proposto em 2013 por Osmar Ter- CTs, antes utilizada para casos extre- prerrogativa das CTs como única al- na abstinência e no isolamento. A reli- monia do modo de tratamento para Ciências Sociais pela PUC-RIO e doutorando vencionou chamar de proibicionismo. 1938, no Brasil, por exemplo.
ra, à época deputado federal e atual- mos de uso, agora passa a ser a regra, ternativa permitida, negligenciando giosidade é uma marca de propensão, usos abusivos de psicoativos. em Ciências Sociais pela Unicamp. Nesse processo, de um lado, algumas Até então, pessoas ao redor do mun-
substâncias – e plantas – são elencadas do todo alteravam sua consciência utili-
mente ministro da Cidadania. Mesmo como uma saída satisfatória e possível. um sistema integrado. já que, segundo pesquisa do Ipea,4 o Nesse período, principalmente
como potencialmente perigosas à saúde zando diferentes substâncias. Isso foi
com os vetos, a lei altera o Sistema Na- Cristaliza-se a política em uma só Em 19 de julho, foi também assina- uso da espiritualidade está em 95,6% nos últimos cinco anos, salta aos
e passam a ser objeto de perseguição e possibilitado pela “revolução psicoativa”,
cional de Políticas sobre Drogas (Sis- direção, não respeitando possíveis do pelo governo federal o Decreto n. das CTs pesquisadas como métodos e olhos a força que as CTs passaram a 1 A PRD começou no Brasil no dia 24 de novembro repressão. Outras são tidas como fontes que tem suas raízes no comércio transo-
nad), instituído em 2006, endurecen- diálogos e pluralidades, não se leva 9.926, que exclui a participação da so- práticas terapêuticas. Isto é, ainda desempenhar na Pnad, saindo do âm- de 1989. de prazer ou benéficas à saúde e come- ceânico e na construção da época mo-
do-o e fortalecendo as comunidades em conta nem a diversidade de subs- ciedade civil do Conselho Nacional de aquelas que não declaram alguma fé bito municipal e estadual e passando 2 O PLC 37 reforça o papel das CTs, atribuindo a
abstinência como eixo central no tratamento para
çam a ser exploradas comercialmente. derna, que corresponde aproximada-
terapêuticas (CTs). É aí que tocamos tâncias psicoativas (SPAs), entre le- Políticas sobre Drogas (Conad), com ou religiosidade têm sua condução na a atuar em escala federal e na elabora- usuários de drogas e abrindo brecha para a inter- Consumidores ou comerciantes daquelas mente aos anos de 1500 a 1789. Nesse
num dos pontos mais problemáticos gais e ilegais, como também se des- vagas reservadas a médicos, psicólo- centralidade do cultivo de algum tipo ção e gestão de políticas públicas. De nação compulsória. substâncias tratadas como potencialmen- período, muitas substâncias, que atual-
do decreto: o fim de qualquer incenti- contextualiza a forma heterogênea de gos, assistentes sociais, juristas, antro- de espiritualidade como superação do outro lado, houve significativa estag- 3 Em relação a dados e pesquisas científicas há um te perigosas tornam-se criminosos ou mente consideramos como drogas, fo-
discurso deslegitimador, como visto na proibição
vo à PRD e a exclusividade dada ao seus usos sociais. Não se trata de des- pólogos e conselhos especializados. A abuso de psicoativos. nação de equipamentos e iniciativas doentes; consumidores ou comerciantes ram amplamente comercializadas e utili-
da divulgação dos resultados do 3º Levantamento
modelo das CTs, pautado na interna- caracterizar ou deslegitimar o modelo mudança deixa o Conad, que antes Uma das principais preocupações de centralidade na redução de danos. Nacional sobre o Uso de Drogas pela População das substâncias consideradas saudáveis zadas com diferentes finalidades. No
ção e na abstinência. de internação como possível, o que contava com dez categorias profissio- fica a cargo da evidência dada às CTs O aumento da influência de federa- Brasileira. Disponível em: <https://portal.fiocruz. integram o mercado legal de venda e con- Brasil, por exemplo, a maconha foi proi-
br/noticia/fiocruz-assegura-qualidade-de-pesqui- sumo de substâncias psicoativas. bida em 1932, antes mesmo dos Esta-
A mudança mais consistente, nesse pode ser necessário em casos extre- nais, agora no comando do Ministério nesse processo que se fundamenta em ções que representam o interesse das sa-nacional-sobre-drogas-0>. Mas nem sempre foi assim. A intensifi- dos Unidos, país reconhecidamente pre-
caso, é que saímos de uma rede de as- mos, mas de endurecer a lei a tal ponto da Justiça e Segurança Pública e do Ga- uma única forma de tratamento, dis- CTs e a significativa recessão de inves- 4 Ipea, Nota Técnica, n.21, mar. 2017. Disponível em:
<www.ipea.gov.br/portal/index.php?option =-
cação do controle e repressão às drogas cursor do proibicionismo. Antes disso,
sistência com práticas e pedagogias que nada reste de observância a um binete de Segurança Institucional, do tanciado de respaldo científico e anco- timentos em redução de danos estão se deu no início do século XX e se esten- era recomendada por médicos e comer-
com_content&view=article&id=29865>.
(baseadas em evidências científicas e processo que permite gradações que ministro da Cidadania, Osmar Terra, e rado numa lógica religiosa e com gran- na base da atual mudança de paradig- 5 Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades deu ao longo dos anos, derivando de um cializada com fins terapêuticos (cigarros
consolidadas)3 para um modelo único vão de usos a abusos, de usos recreati- de um representante de cada um dos de alcance e poder político. Isso já que ma da política de drogas brasileira. Terapêuticas – 2018 / Conselho Federal de Psico- aumento da profissionalização e influên- índios Grimault & Cie). A abolição da es-
de atendimento (fundamentalmente vos a problemáticos. Assim como seguintes ministérios: Defesa, Rela- atualmente elas desempenham papel logia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Com-
cia da medicina e dos primeiros acordos cravidão e a difusão do consumo da ma-
bate à Tortura e Ministério Público Federal. No rela-
religioso). As opções de tratamento da existem escalas e proporções em tra- ções Exteriores, Economia, Educação, central na Pnad. Nas duas últimas dé- APONTAMENTOS POSSÍVEIS tório foi verificado em algumas CTs fatos como: internacionais para controle das drogas conha entre os negros libertos contribuí-
política de drogas tornam-se diminu- jetórias do usuário em relação à subs- Saúde, Mulher, Família e Direitos Hu- cadas, a política pública sobre drogas O isolamento de usuários de dro- – Xangai, em 1909; Haia, em 1912; Ge- ram para a proibição e consequente
© Cau Gomez

impedimento ilegal de saída voluntária do trata-


tas pelo esvaziamento da rede já exis- tância – que podem ser abusivas ou manos. Além disso, participarão do brasileira passou por importantes gas em comunidades terapêuticas é, mento, confisco de documentos pessoais, rotina nebra, em 1925, 1931 e 1936; e as con- criminalização de seus consumidores.
de trabalhos e orações obrigatórias. venções da ONU em 1961, 1971 e 1988 (B.B. e M.C.)
tente (Caps-AD; Caps 24h; Consultório não –, as formas de lidar com elas nu- conselho os secretários da Política so- transformações. A Secretaria Nacional sobretudo, um problema urbano. Et- 6 Característica da adição segundo o modelo de tra-
na Rua) baseada na PRD, que busca a ma rede de assistência devem estar bre Drogas do Ministério da Justiça e de Políticas sobre Drogas (Senad), nografias e estatísticas levantadas pe- tamento das CTs.
12 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2019 AGOSTO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 13

UMA SÍNDROME UNIVERSITÁRIA

A esquerda
para os outros a consciência e a vergo- tos: uma cresceu numa família essa é apenas uma ideia abstrata. As- norte-americano. Consciente da força
nha que tem de seus privilégios e afas- burguesa, da qual recebeu uma boa sim, para eles, outras formas de divisão potencial dos operários e empregados,
tando assim (temporariamente) a acu- herança; a outra vem de um meio po- constituem espontaneamente uma o patronato procurou dividir a mão de
sação de usufruí-los. pular e milita há muito tempo pela paz fonte de desigualdades bem mais con- obra no mercado de trabalho e dentro

canibal
e pelos direitos de mulheres e lésbicas. creta. Por exemplo, percebem a ques- das empresas. Nos Estados Unidos, in-
HUMILHAÇÃO ON-LINE Com quatro outras pessoas de origens tão da violência policial como um pro- troduzir um sindicato numa unidade
Esses comportamentos políticos diversas, formaram um “grupo de diá- blema exclusivamente racial – e, com de produção, organizar uma greve ou

© Laura Erber
ocorrem principalmente nos campi, logo entre classes” que se reuniu seis efeito, vídeos que circulam pela inter- negociar um contrato é um grande de-
mas seus efeitos se fazem sentir bem horas por semana durante seis anos.7 net mostram homens quase sempre safio.10 Para conseguir isso, é preciso a
mais longe, em particular nas redes Bastante ativa no país inteiro, a negros sendo molestados pelas forças cada vez superar profundas diferenças
Os universitários norte-americanos tornaram-se sociais. Permitindo o anonimato, a in- Class Action propõe seminários e ses- da ordem, o que inscreve essa violência sociais, sejam de raça, nacionalidade,
bastiões privilegiados de uma análise identitária ternet estimula uma espécie de “mili- sões de formação para fundações filan- na longa história do racismo nos Esta- gênero, etnia, sexualidade ou todos es-
da sociedade. Os conflitos comuns que surgem tância pela justiça social” que assume trópicas, organizações religiosas, esco- dos Unidos. Mas, como ressalta o cien- ses critérios juntos. Por isso é que as
a forma de humilhação pública dos las particulares, grupos para mudança tista político Cedric Johnson, “o pris- tentativas quase sempre fracassam,
são assim interpretados como expressão desta adversários e pretende conquistar a social e universidades (seu site na in- ma racial não permite explicar a crise tanto mais que a legislação tende a fa-
ou daquela dominação, com o risco de os adesão não com base em interesses ternet enumera 57 estabelecimentos de de violência política atual, em que os vorecer os empregadores. Não obstan-
estudantes imaginarem que podem lutar pela comuns, mas acenando com o medo ensino superior). Os seminários têm negros são super-representados, mas te, quando os sindicatos se organizam
de estigmatização aos olhos de todos. três objetivos principais: “construir não constituem a maioria das vítimas. para descobrir e cultivar pontos co-
justiça social sem deixar o campus A humilhação, na rede, surge como pontes entre pessoas oriundas de clas- Em 2015, 1.138 pessoas foram mortas muns, conseguem mais facilmente
POR RICK FANTASIA* uma prática propriamente social, no ses diferentes”, ajudar pessoas a supe- pela polícia nos Estados Unidos, entre vencer a implacável fragmentação e o
sentido de que proporciona, da parte rar os sofrimentos psicológicos provo- as quais 581 brancos, 306 negros, 195 individualismo da sociedade norte-a-
dos outros adeptos, reconhecimento e cados pela identidade e pela experiência latinos, 24 asiáticos ou autóctones das mericana. Ajudam então os trabalha-
apoio a quem a difunde. “Em muitos de classe, e reduzir o “classismo” no ilhas do Pacífico, 13 ameríndios e 27 dores a se conhecer e a construir soli-
casos”, observa um especialista no as- mundo do trabalho e do ensino. pessoas de origem étnica desconheci- dariedades. Essa dinâmica é familiar
sunto, “o objetivo da justiça por meio da. [...] Os indivíduos sem emprego ou aos militantes sindicais – ou então eles
da vergonha parece ser o prazer que sem domicílio, os que trabalham na precisam aprendê-la, do contrário fra-
experimentamos, na internet, de estar economia informal ou moram em zo- cassam. Fora do ambiente de trabalho,
na companhia de outras pessoas que
Numerosas nas onde esse tipo de economia predo- solidariedades se constroem, mas esse

A
esquerda norte-americana está também, tradicionalmente, a acam- FOCO NAS MICROAGRESSÕES rir a sensibilidade alheia, estudantes, concordam conosco”.5 diferenças, muitas mina são os mais suscetíveis de vigi- exemplo mostra bem o tipo de ação
na linha de frente para se opor pamentos de base para movimentos Na era da obsessão identitária, po- professores e o pessoal administrativo Trata-se de um mecanismo que vezes instauradas lância, abordagem ou prisão. Os que permite consegui-las.
ao presidente Donald Trump, sociais e locais de treinamento para os rém, esse assunto não desperta muito são instados a participar de seminá- lembra o apupo medieval, um rito de pelos empregadores, militantes do Black Lives Matter [A vi-
às suas políticas econômicas e militantes. Correntes radicais, com a curiosidade dos militantes. Eles pre- rios e se aperfeiçoar. As palavras “tole- humilhação pública destinado a cen- da dos negros importa] postulam que *Rick Fantasia é professor de Sociologia no
sociais e às suas falas racistas. Rara- orientações muito diversas, enxamea- ferem insistir nas interações sociais rância”, “diferença” e “sensibilidade” surar um comportamento transgres-
permeiam o os negros são objeto de uma injustiça Smith College, Northampton, Estados Uni-
mente oriundos das classes populares ram nas universidades. Entretanto, a que acontecem em seus campi. Essa invadem as publicações. O mesmo é sor ou a exigir respeito pelos costumes movimento sindical dirigida, mas, na realidade, a violência dos, e autor de French Gastronomy and the
e normalmente com formação supe- partir dos anos 1980, um prisma domi- opção suscitou polêmicas referentes dizer que um estudante desejoso de locais. Os apupos visavam sobretudo norte-americano do Estado carcerário afeta o conjunto Magic of Americanism [A gastronomia fran-
rior, os militantes progressistas ad- nante foi aos poucos se impondo: a ao conteúdo dos programas, ao de- ser visto como militante da justiça so- membros da comunidade que haviam das classes populares. Por que dar ou- cesa e a magia do americanismo], Temple
quiriram sua cultura política em um santíssima trindade da identidade so- senvolvimento dos cursos e até às cial não precisa recorrer às práticas contraído matrimônios julgados so- vidos a slogans políticos que excluem University Press, Filadélfia, 2018.
meio social que produz sobretudo tra- cial, constituída por raça, gênero e “microagressões” que ocorrem coti- políticas antigas: unir-se para agir co- cialmente inaceitáveis ou cometido certas vítimas e sacodem assim a base
balhadores qualificados, não empre- classe. Esse “discurso identitário” es- dianamente – tensões ou conflitos de letivamente, construir uma organiza- adultério. Durante essa paródia de Não recriminaríamos esse grupo popular potencialmente útil para re-
gados e operários. Como a maioria palhou-se para a maior parte dos de- baixa intensidade que surgem quando ção durável, tentar influenciar pessoas cortejo nupcial, a vítima desfilava pela por auxiliar cidadãos a administrar formas progressistas?”.8
1 Ver “Quand l’Université reproduit les élites” [Quan-
dos norte-americanos, preferem mo- partamentos de Ciências Humanas, estudantes oriundos de meios sociais exteriores aos campi, descobrir pontos cidade, frequentemente montada de uma situação da qual às vezes só têm Esse exemplo mostra os limites de do a universidade reproduz as elites]. In: “L’Interna-
rar em comunidades relativamente encorajado pelo desenvolvimento do estigmatizados se sentem oprimidos de convergência e de unidade com os costas num asno e com roupas grotes- um entendimento limitado. Mas nada um sistema que parece afastar toda tionale des riches” [A Internacional dos ricos], Ma-
homogêneas e reúnem-se sobretudo leque de estudos interdisciplinares por formas de expressão que conside- outros ou mesmo procurar persuadi- cas, sob as vaias dos aldeões, que as- indica que um trabalho desse tipo me- possibilidade de solidariedade inter- nière de Voir, n.99, jun.-jul. 2008.
2 Rogers Brubaker, “Beyond ‘identity’” [Além da
com pessoas que pensam como eles. dos cultural studies.2 ram humilhantes ou insultuosas, vin- -los a mudar... Não. Basta-lhe brandir a sim exprimiam sua hostilidade numa lhorará a sorte das classes populares. -racial e nega, implícita ou explicita- “identidade”]. In: Rogers Brubaker (org.), Ethnicity
Em suma, vivem em enclaves de con- Embora a abordagem identitária das de pessoas em posição de autori- diferença como um valor em si e de- cacofonia de berros rudimentares. “As Tal como é apresentada, a noção de mente, sua importância primária co- Without Groups [Etnia sem grupos], Harvard Uni-
firmação recíproca, quase sempre esteja presente também, de forma des- dade ou de colegas supostamente nunciar a ignorância, a falta de sensi- pessoas podem ser denunciadas por classe parece dissociada das dinâmi- mo fonte de poder social para aqueles versity Press, Cambridge, Massachusetts, 2006.
3 Cf. David L. Kirp, Shakespeare, Einstein, and the
perto de lugares preparados para eles tacada, em outras instituições – artes, originários de meios mais favorecidos bilidade daqueles que o contradizem declarações e atos de discriminação li- cas coletivas e dos conflitos que as re- que quase não o têm. Se as reivindica- Bottom Line: The Marketing of Higher Education
(restaurantes e cafés, galerias de arte, filantropia, mídia –, a universidade é que o deles. Expresso por um “domi- ou o combatem. gados ao gênero, à raça, às deficiências lações de classe implicam. Estes exigi- ções identitárias permitem o avanço [Shakespeare, Einstein e a linha de fundo: o marke-
museus, salas de concerto, universi- ainda sua fortaleza principal. Em uma nante”, um desacordo se torna fre- Nos estabelecimentos de maior físicas etc.”, explica o escritor Asam riam, antes, uma terapia de grupo para da participação democrática, as lutas ting da educação superior], Harvard University
Press, 2003.
dades etc.). Os estabelecimentos su- época na qual os discursos conserva- quentemente uma microagressão pa- prestígio, muitos alunos e professores Ahmad. “Como tendem a ser públicas, curar as feridas psicológicas. De resto, pela inclusão de grupos outrora excluí- 4 Cf. Leslie M. Harris, James T. Campbell e Alfred L.
periores onde fizeram seus estudos dores dominam o resto da sociedade, o ra o “dominado”. pertencem à elite. E, mesmo quando as denúncias favorecem uma militân- a invenção recente da palavra “classis- dos perdem pertinência quando são Brophy (orgs.), Slavery and the University: Histo-
desempenham também um papel que ensino superior é uma das raras insti- Essas pequenas afrontas resultam, não é esse o caso, contemplam do alto cia universitária de salão em que cons- mo”, nos moldes de “racismo” e “sexis- concebidas como a única chave de ar- ries and Legacies [A escravidão e a universidade:
histórias e legados], University of Georgia Press,
ultrapassa a formação profissional. Os tuições em que as ideias de esquerda ao menos em parte, da dificuldade de de seus campi majestosos a pobreza, a tituem um fim em si mesmas. O cará- mo”, prende-se bem mais às atitudes e co de uma estratégia política, em parti- Athens, 2019; Craig Steven Wilder, Ebony and Ivy:
anos de universidade propiciam aos não apenas são aceitas, como também coabitação de estudantes com perfis decadência social e a exclusão que rei- ter nocivo dessa cultura reside não declarações prejudiciais (o esnobis- cular num contexto em que os próprios Race, Slavery, and the Troubled History of Ameri-
futuros quadros superiores contatos e podem evoluir livremente, a ponto de sociais às vezes muito diferentes. Nos nam lá fora. Experimentam assim uma apenas em sua difusão, mas também mo, o desprezo) do que à expropriação fundamentos da inclusão – regula- ca’s Universities [Ébano e marfim: raça, escravi-
dão e a turbulenta história das universidades dos
relações que os marcarão para sem- exercer certa influência, sobretudo últimos anos, a maior parte das uni- sensação de responsabilidade, mas em sua natureza e formato. No Twitter material dos trabalhadores decorren- mentação do mercado de trabalho, di- Estados Unidos], Bloomsbury Press, Nova York,
pre. Longe da autoridade dos pais, le- nas Humanidades.3 É como se, diante versidades particulares mais caras re- também, às vezes, de culpa para com ou no Facebook, denunciar alguém te, de forma lógica, da ordem capitalis- reitos sindicais, estabilização dos flu- 2013.
vam no campus uma vida indepen- da ofensiva reacionária, professores e forçou, com efeito, a ajuda financeira aqueles que foram banidos de seu não significa uma simples interação ta. Por enquanto, “construir pontes” xos migratórios etc. – estão em processo 5 Kathryn J. Norlock, “Online shaming” [Vergonha
on-line], Social Philosophy Today, n.33, Charlot-
dente, abrem-se a novas perspectivas, alunos respondessem aferrolhando as aos alunos oriundos de meios desfavo- mundo. Ora, vista pelo prisma da raça, entre dois indivíduos: é um espetáculo entre ricos e pobres não trará remédio de desmantelamento. O sentido de tesville, Virgínia, 2017.
tecem redes amigáveis e adquirem portas das universidades a fim de pu- recidos. O agrupamento de jovens de a desigualdade é mais frequentemente que permite aos atores demonstrar ao problema das desigualdades. uma luta pela inclusão muda quando o 6 Asam Ahmad, “A note on call-out culture” [Uma
maturidade sexual.1 rificar os espaços que ainda podem origens sociais diversas aumentou, lo- percebida como um “privilégio de sua eloquência e sua pureza política.”6 Aqui não se trata, realmente, de “in- mundo da exclusão se amplia, quando nota sobre a cultura do grito], Briarpatch Magazi-
ne, Regina, Canadá, 2 mar. 2015.
Nos Estados Unidos, como em dominar, desembaraçando-os do ra- gicamente, a possibilidade de confli- brancos” do que como o produto de O prisma identitário forjado nas tersecionalidade”, um conceito muitas interesses comuns podem ser invoca- 7 “How we got started” [Como começamos], Class
muitos outros países, as universidades cismo e da homofobia que, a seu ver, tos interpessoais, quase sempre vistos uma dominação de classe. Admitindo universidades agora se difunde pelos vezes invocado para suavizar a pers- dos para encorajar uma participação Action. Disponível em: <https://classism.org>.
servem igualmente de rampa de lan- impregnam a sociedade. De resto, pa- pelo prisma das “microagressões”. em público seus “privilégios” (de raça, discursos e práticas políticas de toda a pectiva de classe a pretexto de que to- maior na militância. A luta pela igual- 8 Cedric Johnson, “The Panthers can’t save us now”
[Os Panteras não podem nos salvar agora], Ca-
çamento para mobilizações sociais. ra encontrar o racismo, não precisam Para evitar problemas, sobretudo gênero, orientação sexual etc.), os estu- esquerda norte-americana, determi- das as expressões de identidade e os dade racial, um objetivo de todos, pode talyst, v.1, n.1, Nova York, primavera de 2017.
Nas décadas que se seguiram à Segun- ir muito longe: quase todas as univer- jurídicos, que decorrem desses confli- dantes se julgam (ao menos em parte) nando cada vez mais a maneira como motivos de divisão devem ser incluídos então se inscrever num projeto mais 9 Cf. Cultures of Solidarity: Consciousness, Action,
da Guerra Mundial, os estudantes ti- sidades norte-americanas praticaram, tos, os administradores das universi- absolvidos do benefício que eles lhes a sociedade é percebida. Para se dar no quadro explicativo de todos os fenô- vasto de defesa dos direitos sociais, po- and Contemporary American Workers [Culturas
de solidariedade: consciência, ação e trabalhado-
veram papel decisivo nas lutas pelos no início, a exclusão racial e sexual. As dades devem gerir com muito tato a proporcionam, mais ou menos como conta disso, basta acompanhar as ati- menos sociais. líticos e econômicos de cada qual. res norte-americanos contemporâneos], University
direitos civis, pelos direitos das mu- mais veneráveis (Harvard, Georgeto- vida de suas instituições. Um erro de se tirassem da manga a carta “Você sai vidades da Class Action, uma pequena À diferença do que se passa na Eu- A solidariedade não é uma coisa of California Press, Berkeley, 1988.
lheres e das minorias sexuais, assim wn, Yale, Brown) chegaram a se bene- comunicação, uma decisão ruim ou da prisão” do Monopoly. Essas práticas organização sem fins lucrativos sedia- ropa, a maior parte dos norte-america- óbvia.9 Numerosas diferenças, muitas 10 Ver Thomas Frank e Thomas Mulcahey, “Ces dures
grèves des ouvriers américains” [As greves difíceis
como na oposição à Guerra do Vietnã, ficiar do trabalho escravo e do sistema uma declaração infeliz podem ter con- políticas lembram um jogo social em da em Boston e fundada por duas mu- nos possui uma concepção rudimen- vezes instauradas pelos empregado- dos operários norte-americanos], Le Monde Diplo-
sem contar que os campi se prestam escravocrata.4 sequências explosivas. A fim de não fe- que a pessoa obtém crédito admitindo lheres vindas de meios sociais opos- tar da noção de classe. Dizem-lhes que res, permeiam o movimento sindical matique, out. 1996.
14 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2019 AGOSTO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 15

TRÊS ANOS APÓS O ACORDO DE PAZ ENTRE BOGOTÁ E AS FARC

“Aqui, quem manda é a guerrilha”


plano militar), o ELN goza de uma au- tares que, por seu turno, indicam seu Noruega), esses espaços de transição gião. Inúmeros grafites revelam sua
ra política mais fraca junto à popula- pessoal político às eleições”, explica para a vida civil enfrentam inúmeras presença nos bairros pobres da perife-
ção fora de suas zonas de influência. Mario. Resultado, segundo ele, da carências (de água potável, eletricida- ria da cidade. Em uma casa lemos, à
Alguns, como Medina Gallego, acham “perda da bússola ideológica”. “Antes, de) e isolamento. Isso agrava a desmo- guisa de advertência: “Farc-EP, Frente
que ele faz o papel de adversário de es- cada guerrilha seguia a linha ideológi- ralização de seus ocupantes. “Chega- 33. Não queremos nem os maus, nem
timação do poder. “O ELN é um inimi- ca do partido revolucionário do qual mos à zona de reagrupamento em os ladrões, nem os dedos-duros”.
As medidas de acompanhamento do acordo de paz assinado em 2016 entre Bogotá e as Farc se encerram em 15 de agosto, go consentido pelo Estado, que pode era próxima. As Farc tinham o Partido fevereiro de 2017. Depois que devolve-
enquanto a reforma agrária prometida se arrasta, travando o processo. Nesses três anos, cerca de 500 militantes de movimentos alegar sua existência para justificar Comunista, o EPL se inspirava no Par- mos as armas à ONU, as coisas se dete- CHOCOLATE

sociais e 180 ex-combatentes foram assassinados. Em 20 de maio, o ex-negociador da paz pelas Farc, Iván Márquez, declarou: uma política de repressão. O ELN não tido Comunista Marxista-Leninista e rioraram rapidamente. O regulamen- Uma hora e meia de moto, costas
ameaça o governo: é útil para ele.” o ELN se apoiava em várias organiza- to militar da organização já não se doloridas por causa de um terreno aci-
“Depor as armas foi um grande erro”. Ele voltou à clandestinidade ções, como A Luchar [Lutemos]. Tudo aplicava. Sem o risco de sanções, mui- dentado, cheio de pedras. Chegamos
POR LOÏC RAMIREZ*, ENVIADO ESPECIAL ESTRADA isso acabou. Já não há trabalho políti- tos não quiseram participar das tare- enfim à zona de reagrupamento de
Uma simples corrente estendida de co. Basta avaliar os resultados eleito- fas coletivas, como a cozinha. Esta- Caño Indio, onde moram os ex-com-
lado a lado na estrada faz as vezes de rais obtidos pelo partido das Farc.” A vam também nesse número alguns batentes das Farc da região. Um grupo
pedágio na saída de Tibú. Por um peso, nova plataforma política só obteve oficiais veteranos. Depois, pouco a de militares patrulha a entrada: como

T
TORRE
ibú, nordeste da Colômbia. A ex- o jovem que vigia a passagem deixa-a 49.170 votos nas eleições legislativas de pouco, várias pessoas foram indo em- na maior parte das zonas de reagrupa-
plosão despertou o bairro. A ter- cair no chão arenoso. “É um pedágio 2018 (0,34%). “As Farc acabaram des- bora para as cidades ou para o seio de mento, a de “Caño” está sob a vigilân-
ceira em algumas semanas. Co- dos combatentes”, dizem-nos, sem cobrindo a diferença entre fazer políti- suas famílias.” Entre eles, William, que cia do Exército colombiano, o adversá-
mo nas vezes precedentes, o alvo precisar que combatentes são esses. O ca com um fuzil e sem ele. A capacida- hoje mora em Cúcuta com os pais de rio de ontem, hoje encarregado de
era uma câmera de vigilância da polí- caminho está livre. A moto se lança de de convencer não é a mesma...” uma mulher que conheceu: uma pro- proteger ex-combatentes da ameaça
cia. Na queda, a torre onde ela estava pela trilha, que mergulha na vegeta- fessora pela qual se apaixonou. Achou paramilitar. Barracas se alinham uma
destruiu o teto de uma casa. “Você fi- ção luxuriante da selva. Depois de HUMILDADE até trabalho. “A guerrilha me ensinou o ao lado da outra. O rosto de Ernesto
cou com medo?”, pergunta-nos Ed- uma eternidade, a estrada de terra Faz cerca de cinco meses. Uma das sentido do esforço e posso fazer qual- “Che” Guevara foi pintado em uma das
win. “Eles as derrubam porque são chega ao asfalto da rodovia em cons- figuras nacionais do novo partido das quer tipo de tarefa. O que aprendi na fachadas, junto a uma rosa, símbolo da
blindadas e não conseguem pô-las fo- trução, que vai conectar Tibú a Cúcu- Farc, Gloria Martínez, uma ex-comba- selva agora me serve na cidade.” formação política criada pelas Farc, a
ra de uso apenas com tiros.” “Eles”? ta, a capital do departamento. tente, circulava pela região a bordo de Perto de desconhecidos, o homem Força Alternativa Revolucionária do
Edwin não diz quem são. No outro dia “Estão viajando por terra? Em ple- seu 4×4 quando foi interceptada... por se mostra discreto quanto a seu passa- Comum: Farc, também. No centro,
de manhã, na rua, todos comentam: “A no Catatumbo?”, espanta-se o oficial antigos companheiros. Membros da do: o risco de represálias não é uma uma grande estufa onde cresce o ca-
guerrilha voltou a destruir uma câme- militar que nos detém para um con- “dissidência” desarmaram os guarda- lenda. Cento e oitenta ex-combatentes cau, cuja produção visa facilitar o re-
ra esta noite”. trole de identidade. “Não sabem que -costas da dirigente política e em se- já foram mortos em todo o país, um torno à vida civil dos ex-combatentes.
aqui é uma zona de guerra? Podem ser guida liberaram todos. “Quiseram lhe bom número deles na região. “Prome- Alguns se aventuraram na produção
ZONA VERMELHA sequestrados.” Decidido a impor sua dar uma lição de humildade”, explica teram-nos muitas coisas, principal- de cerveja; outros, na de roupas. Aqui,
Situada no departamento do Norte presença, até então inexistente nesse uma das pessoas que nos contaram a mente que seríamos protegidos, mas o é o chocolate.

© Reuters / John Vizcaino


de Santander, na fronteira com a Vene- enclave, o Estado acredita que a nova história. “A mulher se tornou muito ar- governo não cumpriu a palavra”, desa- Em sua tenda um pouco afastada, o
zuela, Tibú se encontra na “zona ver- rodovia facilitará a luta contra os gru- rogante, no entender deles, com aque- bafa. Em 15 de agosto de 2019, todos os comandante Jimmy Guerrero nos re-
melha”: aquela à qual a paz negociada pos armados. Encarregado da obra, o le carro blindado, aquela escolta e ETFR perderão seu estatuto jurídico, cebe. Foi por ordem dele que a Frente
entre o governo e as Forças Armadas Exército colombiano repele os ataques aquela nova condição de política, tudo bem como a proteção do Exército. Do 33 veio para Caño Indio. “Éramos 317
Revolucionárias da Colômbia (Farc) constantes do ELN, particularmente isso à custa do Estado que sempre ha- mesmo modo, o Estado deixará de pa- ao chegarmos, em fevereiro de 2017.
ainda não chegou.1 Em todas as entra- ativo na região. Dias antes de nossa viam considerado um inimigo!” gar os 740 mil pesos (cerca de R$ 850) Agora, não passamos de oitenta”, de-
das da aldeia, soldados observam aten- passagem, dois artefatos explosivos vi- mensais que concede aos combaten- sola-se o idoso de cabelos brancos. E
tamente o desfile de ônibus e motoci- Protestos em Bogotá por um acordo de paz entre FARC e governo colombiano em 2016 saram soldados em um dos trechos. TRINTA E TRÊS tes desmobilizados. Voltar ao Cata- acrescenta: “Respeito a escolha de ca-
cletas. As pessoas passam sem nem Órfão desde a infância, criado pe- tumbo, a Tibú? William nem pensa da um, tanto os que foram para a cida-
sequer levantar os olhos – duas, três, às BÚSSOLA los avós, William Ferrer Ortiz juntou- nisso: outro perigo o espreita ali. “Se de a fim de começar uma vida nova
vezes, quatro no mesmo veículo de não tentem”, explica Fabian Contre- grupo de militantes revolucionários de seu engajamento. De resto, não cita Aqui, as rivalidades políticas ainda -se à guerrilha das Farc com 17 anos. me virem, vão querer que eu vá com quanto os que decidiram se juntar à
duas rodas. O ronco dos motores se ras, membro de uma organização de com os quais combate. Um pé na lega- jamais o nome do ELN: diz apenas “a se resolvem pela violência. “Recebemos “Tornei-me guerrilheiro por causa da eles”. “Eles”? Companheiros de armas dissidência. Estes eu conheço, é claro,
mistura às músicas tradicionais que se defesa dos direitos humanos, a Funda- lidade, o outro na luta armada. “O ELN organização”. Fundada em 1964 sob o ameaças”, conta Mario, responsável direita”, conta ele hoje. Originário do que não renunciaram à luta armada, pois os comandei. O Exército me pediu
ouvem nos recintos mal regulamenta- ción Progresar [Fundação Progredir]. se afastou do modelo de guerra aberta impulso da Revolução Cubana e de um por um pequeno grupo de militantes Catatumbo, foi testemunha da incur- os “dissidentes” que tentam reforçar que fizesse o papel de mediador e os
dos de lojas e restaurantes. De dia, os “A guerrilha marca sua presença gra- das Farc. Não pretende crescer como grupo de estudantes colombianos que comunistas politicamente próximos são violenta de grupos paramilitares suas linhas recrutando antigos cama- convencesse a depor as armas. Recu-
agentes de polícia patrulham em cami- ças ao controle social que exerce sobre exército regular”, esclarece Carlos Me- foram a Cuba para adquirir experiên- das Farc. Eles preparam as eleições re- no departamento, no fim dos anos radas desmobilizados durante o pro- sei-me. Não é esse meu papel. Além do
nhonetes, com coletes à prova de bala e a população. Tudo fica fácil pela au- dina Gallego, professor e pesquisador cia militar, o ELN se tornou rapida- gionais do outono em uma região que 1990. Massacres às cegas, expulsões, cesso de paz. As pessoas convocadas mais, aqui, com todos os atores arma-
armamento ostensivo. De noite, o pis- sência do Estado: o Catatumbo é uma da Universidade Nacional da Colôm- mente um ator importante no conflito contribuiu para a ascensão à presidên- tudo se fez para facilitar a tomada de têm escolha? William finge não ter en- dos que disputam o território, tomar o
car vermelho de um drone lembra que zona rica em recursos naturais, mas bia, em Bogotá. “Os guerrilheiros do colombiano, embora fosse eclipsado cia de Iván Duque, homem da extrema milhares de hectares por grandes fa- tendido a pergunta. partido de um é provocar os outros.
o poder público continua vigiando a pobre em investimento econômico. As ELN desenvolveram um modelo cha- por guerrilhas mais poderosas (as direita. “Sabemos, de fonte segura, que mílias de proprietários de terras, A maior parte das frentes ainda ati- Precisamos conservar certa neutrali-
zona, mas a distância. Nessas horas, as infraestruturas públicas são quase mado ‘guerra flutuante’, sem frente de Farc) ou responsáveis por ações mais pessoas viriam aqui para nos cortar os apoiados por governos sucessivos. vas opera nas zonas fronteiriças do dade para continuarmos vivos”.
milícias urbanas da guerrilha fazem a inexistentes.” Nosso interlocutor lança combate, sem teatro de operações ou espetaculares (o M-19). Após os acor- cabelos.” Cortar os cabelos? “Matar- Obrigados a deixar a fazenda onde vi- país. “Nem todas são reconhecidas co-
lei. Invisíveis, confundem-se com a fau- um rápido olhar por sobre o ombro an- mesmo território administrado. En- dos de paz entre Bogotá e as Farc, assi- -nos”, reformula Mario, antes de acres- viam, William e sua família caíram na mo organizações com uma orientação ESTRATÉGIA
na noturna que joga sinuca e frequenta tes de prosseguir: “As pessoas podem tretanto, a guerrilha controla a popu- nados em 2016 depois de quatro anos centar: “Mas nós também temos ami- miséria. Um só caminho estava aberto política”, adverte o analista Kyle John- Gerardo é um combatente na ativa.
os bares. Prostitutas venezuelanas, dizer o que quiserem. Mas aqui, na lação nas zonas onde é ativa: cobra im- de negociações, o ELN ficou sendo a gos capazes de dar o troco. Isso permite ao adolescente: el monte, “a mata”. En- son, membro da ONG Crisis Group, se- Quarentão, baixo, boné na cabeça,
camponeses deslocados pela guerra, verdade, é a guerrilha que manda”. postos, designa candidatos às eleições, mais antiga organização rebelde do a manutenção de um status quo”. trou para a Frente 33 das Farc, em cujas diada em Bogotá. “Mas, no caso do Ca- pertence à rede urbana do ELN, em Ti-
vendedores ambulantes... É impossível infiltra-se em organizações sociais. país. As conversações que ele havia Os dedos da mão não bastam para fileiras combateu por dezenove anos. tatumbo, a dissidência preenche os bú. A seu ver, a dissidência não faz par-
saber quem trabalha para a vasta rede GUERRA FLUTUANTE Sem dúvida, o ELN possui acampa- iniciado com o governo foram inter- enumerar a quantidade de atores ar- Como boa parte dos ex-camaradas, critérios necessários.” Entre as exigên- te dela. E os combatentes das Farc ja-
de informantes dos rebeldes. “Aquele Nem uniforme, nem arma, nem mentos onde se acham os comandan- rompidas pela explosão de um veículo mados que agem no departamento: William abandonou as armas. Estas cias: a proximidade com uma comuni- mais depuseram realmente as armas.
sujeito caído no chão, lá longe, pode ser bandeira. “Você sabe que a CIA tem tes, mas o essencial de suas forças são surpreendido dentro da escola de polí- militares, paramilitares, guerrilhei- foram entregues aos enviados da ONU dade local e a consideração, em atos e “Você não acha mesmo que eles foram
um deles”, brinca nosso contato. “De equipamentos de reconhecimento fa- unidades especiais encarregadas de cia de Bogotá, em 17 de janeiro último. ros, ex-narcotraficantes e seus concor- após a instalação de diversos grupos reivindicações, de suas prioridades. suficientemente estúpidos para entre-
qualquer modo, você está sendo obser- cial?”, interroga Jairo. “As novas tecno- agir contra alvos militares, políticos e O grupo armado reivindicou o atenta- rentes às vezes oriundos dos grupos de combatentes em 24 zonas de rea- Em Tibú, os dissidentes retomaram o gar todas, não é? Não era preciso ser
vado desde que desceu do ônibus.” logias nos obrigam a reforçar as medi- econômicos. Essas unidades, forma- do, que, em plena capital, provocou a armados etc. São aliados em potencial grupamento (oficialmente, Espaços nome de origem de sua frente, “o 33”, adivinho para saber que o Estado trai-
das de proteção.” Mal chegando à casa das por milicianos (combatentes ur- morte de 22 aspirantes a oficiais. A que partilham ou disputam os movi- Territoriais de Formação e Reincorpo- como a chamam de novo os habitantes ria os acordos de paz.” Assassinatos de
PRESENÇA dos 30, o jovem integra a rede urbana banos), se fundem com a população. despeito dessa demonstração de força, mentos políticos locais. Um jogo de ração, ETFR), previstos pelos acordos locais. E não estão sós: após expulsar ex-combatentes, ameaça de extradi-
Há alguns dias, dois rapazes sus- do Exército de Libertação Nacional São invisíveis.” a organização permanece isolada em alianças por vezes contra a natureza: de paz. Inteiramente construídos pe- seus rivais do EPL e ter concluído, ao ção para os Estados Unidos de Jesús
peitos de roubar motos foram assassi- (ELN). Não podemos mencionar seu Jairo não contestaria essa descri- algumas zonas do território colombia- “O EPL [Exército Popular de Liberta- los guerrilheiros graças ao material que parece, um acordo com o ELN, os Santrich (ex-membro da equipe de ne-
nados. “Em Tibú, o roubo é impossível. nome nem o lugar onde o encontra- ção. Profissional liberal, sempre de no. Menos coberto pela mídia do que ção], uma antiga guerrilha maoista, fornecido pelo Estado e por países ob- guerrilheiros rebeldes das Farc reen- gociação das Farc do acordo de paz),
Mas isso não quer dizer que alguns mos. Ele nos foi apresentado por um bermuda e tênis, o rapaz não dá pistas as Farc (pois não é tão importante no trabalha com alguns grupos paramili- servadores do processo de paz (como a contraram sua antiga fortaleza na re- ausência de política em matéria de er-
16 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2019 AGOSTO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 17

UMA HISTÓRIA DA DATCHA

O lado jardim da Rússia


radicação de plantações ilícitas etc. Reintegração e Normalização (ARN), “Tentamos estimular a agricultura lo- de sua cegueira.” Jairo estabelece en-
Nosso interlocutor apresenta vários organismo encarregado da reinserção cal e a autossuficiência em proveito tão um paralelo entre a fábula e a “de-
exemplos para justificar sua teoria. A dos combatentes na vida civil. “Acha- das pessoas desfavorecidas. É o comu- formação da realidade” operada pelas
situação foi agravada pela ascensão ao -se culpado porque todos confiavam nismo concreto.” “O padre já foi do grandes mídias. “Nossa missão, como
poder de Duque, em 2018. “Era preciso nele. Jimmy os trouxe aqui, a Caño In- ELN”, sussurra Jairo. na alegoria, é ‘levar a mensagem’ aos
manter uma porta aberta: a dissidên- dio, e agora, diante das omissões do O vínculo entre a Igreja Católica e o nossos semelhantes.” E o jovem con-
cia é seu plano B.” governo, descobre que não há nada a grupo armado não chega a surpreen- clui: “Agora, terminamos nosso pri- Ilha de propriedade privada sob o comunismo, refúgio da agricultura de subsistência na época da coletivização,
lhes propor. Os espaços serão fechados der. Desde o berço, o ELN se apoia em meiro curso de teologia da libertação. local de todas as criatividades arquitetônicas e de evasão intelectual sob Brejnev, a datcha continua sendo a face oculta
“QUE VOLTEM!” em agosto e não haverá mais salários. uma corrente de pensamento muito Falei de Jesus Cristo ou de Deus? Não”. da Rússia – uma zona de direito consuetudinário na qual a nova lei, em vigor desde 1º de janeiro, pretende pôr ordem
Durante o verão de 2018, quatro ex- Ninguém sabe para onde ir nem quem em voga durante os anos 1960 no con-
-combatentes desmobilizados foram os protegerá.” Uma lágrima cintila no tinente: a teologia da libertação, que KATERINE POR CHRISTOPHE TRONTIN*
assassinados em El Tarra (Catatum- olho da jovem. Pedindo que não cite- prega a participação ativa da institui- “Há uma semana, ainda comíamos
bo). Alguns citam os paramilitares, mos seu nome verdadeiro, denuncia a ção eclesiástica na luta contra a pobre- juntos”, suspira Violeta no acampa-
que agiriam em conjunto com o Exér- “sabotagem do governo”, como na za e na análise das condições sociais, mento das Farc de Caño Indio. “Hoje,
cito, os inimigos de sempre, que, ape- questão da terra. Muitos ex-combaten- econômicas e políticas que ela engen- cada um come sozinho em seu canto.”
sar dos acordos de paz, seguem uma tes esperavam poder ficar em “Caño” dra. Próxima do marxismo, trabalha A moça lamenta uma forma de indivi- taxas municipais) que tiveram au- co de ordem nessa tranquila anar-
estratégia de erradicação conhecida após o verão, quando o período de pela união entre homens da Igreja e dualismo que se instaura na pequena mentos mais ou menos vertiginosos. quia. Uma vez registrados, os lotes
por todos, mas que um artigo recente transição previsto pelos acordos de paz movimentos revolucionários. O ELN comunidade de ex-combatentes. A Imposto predial e serviços de ligação e baldios poderiam ser tomados e reco-
do New York Times acaba de revelar ao terminará. Mas o poder bloqueou as conta em suas fileiras com as figuras passagem de uma vida dedicada ao co- fornecimento de água e luz fazem da locados no mercado, dando-se priori-
grande público: “O chefe do Estado- ações dos guerrilheiros desmobiliza- nacionais mais emblemáticas dessa letivo para a condição de cada um por casa de campo, outrora praticamente dade aos proprietários contíguos que
-Maior colombiano [...] ordenou às dos que tentavam comprar terras. Seu doutrina: o padre Camilo Torres Res- si parece sem volta. A televisão substi- gratuita, um luxo: ter uma cabaninha quisessem aumentar seu terreno. Pre-
suas tropas que dobrassem o número pretexto? A necessidade de “garantir a trepo (morto em combate em 1966) e o tuiu a leitura em grupo de jornais, nin- custa um mínimo de 30 mil rublos por tende-se também acabar com os ar-
de criminosos e militantes a serem segurança” de uma região em que o cura Manuel Perez Martínez (falecido guém mais se levanta ao nascer do sol ano (cerca de R$ 1,8 mil), uma despesa ranjos informais e as coletas de di-
mortos, capturados ou forçados a se conflito persiste. “As autoridades pro- em 1998), que foi comandante-chefe nem faz exercícios, a disciplina militar suntuosa para as famílias modestas, nheiro líquido entre vizinhos,
render durante os combates – ainda puseram deslocar as pessoas para Los do ELN por vários anos. Embora sua se perdeu. Katerine se juntou à guerri- difícil de compensar no “país dos to- obrigando-os a abrir uma conta ban-
que isso implique mais mortes de ci- Patios, perto de Cúcuta, onde as terras aura política tenha enfraquecido nos lha em 1987. Passou trinta anos de sua mates sempre verdes”, como dizem os cária e a apresentar um livro de recei-
vis”.2 Outros mencionam o EPL, que se são controladas pelos narcotrafican- últimos anos, o ELN mantém ainda la- vida na selva, ao ar livre. Ainda hoje, russos. E nem se fala nas inevitáveis tas e despesas verificável.
empenharia em acertar velhas contas tes”, explica Clara sem medo. “Os ex- ços estreitos com os adeptos dessa cor- apenas encosta a porta da cabana que obras de reparação e manutenção. Mal promulgada, a lei atraiu críti-
com os concorrentes de ontem. Enfim, -combatentes das Farc não quiseram rente no seio da Igreja. E isso propicia, ocupa, sem trancá-la. Com seu cader- Todos esses fatores levaram, nos últi- cas de todos os lados. Elas se voltam,
alguns culpam a dissidência, cheia de ir, é claro. Ali, seriam assassinados.” em um país profundamente católico ninho de notas, participa do grupo de mos anos, inúmeros proprietários a primeiro, contra o desaparecimento,
ódio, sobretudo contra os ex-comba- como a Colômbia, uma tribuna impor- escrita animado por um casal de jor- pôr à venda sua residência de verão. no direito, do termo usual datcha,

© Knut-Arve Simonsen
tentes que tiveram a má ideia de se LIBERTAÇÃO tante junto à população. nalistas presentes no campo, por algu- “A datcha é uma mala sem alça”, ou- substituído por “jardins” (ou “hor-
aproximar dos militares ou dos poli- Situado no alto de uma colina, o Na pequena cozinha da sede de um mas horas. Instam os ex-combatentes ve-se dizer com frequência. “Dói fun- tas”) individuais. É uma palavra tão
ciais. “O conflito se tornou fluido”, re- prédio religioso está no meio de um partido de esquerda aonde ele vai re- a escrever “sua” história. Katerine lê o do soltá-la, mas não temos mais força carregada de sentido e emoção, tão in-
conhece Jacobo, ex-guerrilheiro das bairro pobre de uma cidade no norte gularmente, Jairo reuniu uma dezena que colocou no papel: “Devo agora rea- para carregá-la.” trinsecamente russa, que figura nos
Farc. E isso principalmente porque de Santander, para onde nos conduz de jovens militantes, rapazes e moças, prender o que desaprendi, tornar-me As agências imobiliárias multipli- dicionários das línguas. Etimologica-
muitos mergulharam na delinquência Jairo, nosso contato entre os comba- com idade entre 14 e 25 anos. Em volta aquilo que fui. Renascer. Mas não que- cam ofertas que nem sempre encon- mente, deriva da raiz dat, que signifi-
e no narcotráfico, achando que a rein- tentes do ELN. “Aqui, com o padre, ga- de um notebook, o pequeno grupo ou- ro ser chamada pelo meu nome verda- Datcha em Arcangel (Rússia): jovens têm reinventado o uso dessas propriedades tram interessados. “A oferta ultrapas- ca “dom”, “presente”. Sua origem re-
serção no mundo do trabalho os con- rantimos uma obra comunitária junto ve um discurso de Hugo Chávez, o ex- deiro. Usei por trinta anos o nome de e youtubers e blogueiros dão dicas sobre como cultivar hortaliças e a vida ao ar livre sa em muito a demanda, que tende a monta ao século XVIII, quando o czar
denaria à miséria. No meio desse caos, aos habitantes graças à criação de hor- -presidente da Venezuela (1999-2013). guerra Katerine e é ele que pretendo zero em alguns segmentos”, explica Pedro I “dava” aos bons servidores do
uma constatação: o desespero dos tas coletivas”, explica. O padre da pa- Segue-se um debate sobre o tratamen- continuar usando”. Irina Dobrokhotova, da agência Best. O Estado propriedades situadas perto

A
camponeses que outrora se acomoda- róquia, um homem de baixa estatura, to dado pela mídia ao processo boliva- proximando-se do aeroporto de ca, mais ou menos 38% dos russos de- setor das casas de campo de alto pa- das principais cidades ou nas provín-
vam à ordem imposta pela todo-pode- nos recebe com um sorriso tímido e riano. “Conhecem o mito da caverna, *Loïc Ramirez é jornalista. Moscou-Cheremetyevo, o avião claram possuir uma residência secun- drão viu o número de transações des- cias recém-adquiridas. Essa aborda-
rosa guerrilha das Farc. Eles só pedem nos leva para uma encosta, a algumas de Platão?”, pergunta Jairo de repente. sobrevoa a pequena cidade de dária, mas apenas cerca de dois terços pencar nos últimos dez anos (–60%), gem meritocrática da gerência das ter-
uma coisa: “Que as Farc voltem!”. centenas de metros do edifício religio- “Acorrentados numa gruta, um grupo Putilkovo. Os passageiros que a usam “regularmente” como local de ao passo que os bens de categorias ras do império, conjugada com a
1 Ver Gregory Wilpert, “Pourquoi la Colombie peut
so. Lá estão as hortas e os pomares for- de homens só enxerga, do mundo, as croire à la paix” [Por que a Colômbia pode acredi- olham pela janela veem rarear as flo- descanso nos fins de semana, feriados mais modestas perderam 25%. “De 33 tradição igualitária que dividia as he-
SABOTAGEM mados pela “organização”. “Antes, isto sombras projetadas pela luz do sol, tar na paz], Le Monde Diplomatique, set. 2012. restas e desfilar conjuntos de mnogoe- e férias de verão. Por que esse desdém mil imóveis à venda nas imediações de ranças em partes iguais entre os fi-
“Jimmy não vai admitir, mas se aqui era um lixão. Hoje, cultivamos que vem de fora. Um deles é forçado a 2 Nicholas Casey, “Colombia’s Army New Kill Or- tajki (prédios residenciais), townhou- relativo? Por um lado, a datcha enfren- Moscou”, explica a agência imobiliária lhos, teria emprestado sua forma par-
ders Send Chills Down Ranks” [As novas ordens
sente mal com sua tropa”, confidencia- frutas, coentro, manjericão. Temos até sair e volta a fim de convidar os outros do Exército da Colômbia para matar abalam as filei- ses (empreendimentos de luxo) de ta a concorrência de novas ofertas de Cian, “15% têm defeitos inaceitáveis e ticular à aristocracia russa, descrita
-nos Clara, funcionária da Agência de algumas ovelhas”, conta o religioso. a segui-lo para tomarem consciência ras], New York Times, 18 maio 2019. Sabourovo Park, alguns campos culti- lazer. As redes sociais, as séries televisi- 80% estão degradados ou sobreavalia- em detalhe pelo ensaísta francês Ana-
vados e, aqui e ali, extensões de hortas vas e os jogos pela internet se encarre- dos. Ao fim, somente 5% podem espe- tole Leroy-Beaulieu (1842-1912).
coletivas com suas casinhas mal e mal gam de distrair, principalmente os rar encontrar um comprador.” O fenômeno da datcha como local
construídas. À medida que o avião mais pobres, enquanto as estadias all Ninguém sabe ao certo quantos de veraneio dos cidadãos surgiu logo
perde altitude, nota-se que muitas inclusive na Turquia, na Tailândia ou imóveis de férias a Rússia possui; as es- após a fase de urbanização dos anos
dessas propriedades de subúrbio estão no Mar Vermelho, além dos tesouros timativas variam do pouco ao muito. O 1860. A abolição da servidão assina-
em péssimo estado: jardins invadidos culturais europeus, propõem às clas- país contava com cerca de 16 milhões lou o declínio dos proprietários de
pelo mato, arbustos sobre os tetos, ses médias novos horizontes. De resto, de hortas particulares, segundo Lud- terras, obrigados a ceder ou a frag-
obras abandonadas. Essas constru- o ritmo do trabalho capitalista e a frag- milla Buriakova, presidente da União mentar seus domínios. No início do
ções heteróclitas, erguidas em terrenos mentação dos períodos de férias não dos Horticultores da Rússia.1 Se in- século passado, a vida na datcha ins-
de tamanho padronizado (600 m2), combinam com as exigências da horti- cluirmos as datchas mais antigas e as pirou romancistas e dramaturgos rus-
agrupadas em clareiras ou à margem cultura, que constitui um dos princi- casas de campo construídas sem per- sos. Máximo Gorki escreveu uma pe-
de plantações, longe dos centros urba- pais atrativos da datcha. Além disso, as missão nos anos 1990, o número alcan- ça de teatro, Os veranistas (1904),
nos, constituem em sua extraordiná- prateleiras dos supermercados agora çaria entre 32 milhões e 35 milhões, no adaptada várias vezes para o cinema.
ria diversidade aquilo que os russos transbordam de frutas e legumes em dizer do professor Ivan Starikov, pes- Metade dos contos de Anton Tchekhov
chamam de datcha. todas as estações. quisador do Instituto de Economia da tem por cenário a datcha, que serve
A datcha está em crise. Segundo Academia de Ciências. Segundo outros também de pano de fundo para as pe-
Dmitri Taganov, chefe do departamen- “DÓI FUNDO SOLTÁ-LA” especialistas, existem perto de 15 mi- ripécias do príncipe Míchkin, imagi-
to de análise da Inkom-Immobilier, Desde 2008, a renda média dos lhões de construções não constantes nado por Fiódor Dostoiévski em O
cerca de 35% dos terrenos individuais russos se estagnou. O orçamento das do cadastro, grande parte delas aban- idiota (1869).
da região de Moscou estão abandona- famílias se divide entre tentações ca- donada ou inacabada. A Revolução de Outubro pôs abai-
dos. Segundo outro estudo, publicado da vez mais numerosas, sem contar as Uma nova lei, em vigor desde 1º de xo o antigo regime, a Igreja, a proprie-
em 2013 pelo Centro de Opinião Públi- despesas inevitáveis (aluguel, energia, janeiro de 2019, pretende pôr um pou- dade privada, os resquícios da servi-
18 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2019 AGOSTO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 19

UMA HISTÓRIA DA DATCHA

Airbnb e queijo de cabra


dão... mas não a datcha. Desde meados talidade de dono”. Em contrapartida, de seus frutos e legumes com plena au- ka (avó), em horticultora que vende
dos anos 1920, retomando a tradição encorajou-se a horticultura, para, ao tonomia. Nas imediações, colhiam ba- clandestinamente seus produtos perto
czarista, altos funcionários, artistas mesmo tempo, diminuir a penúria de gas e cogumelos, restaurando o víncu- das estações; os “novos russos” em-
favoritos do Partido, pesquisadores e produtos alimentícios e oferecer aos lo com a floresta, perdido em virtude pregam toda essa gente miúda na ma-
acadêmicos ganharam datchas “de veranistas uma atividade física sadia. da rápida urbanização do país. nutenção e vigilância de suas man-
serviço”. Tratava-se o mais das vezes Um decreto estabeleceu a superfície sões, que brotam como cogumelos.
POR CHRISTOPHE TRONTIN*
de bens requisitados, cujos proprietá- padrão por casa em 600 metros qua- Ademais, vários programas de tele-
rios haviam fugido para o estrangeiro. drados. Autorizou-se mais um andar, visão conquistaram popularidade gra-
Cooperativas de horticultura foram depois um celeiro, depois um sótão... Aquela que ças a esse tema. A série Datchniki (Os
organizadas pelos principais teatros, Por experiências sucessivas, no respei- suportou todas veranistas, 2017) põe em cena várias

A
a União dos Escritores e diversos insti- to aos princípios socialistas, o secretá- as vicissitudes famílias estereotipadas de cidadãos paixão dos russos pela datcha ar- exíguo e do trabalho de escritório.
tutos de pesquisa, para repouso de seu rio-geral Nikita Kruchev (1953-1964) do socialismo que se tornam vizinhos durante um refeceu, mas o sonho de uma Após alguns contratempos que rela-
pessoal. A datcha permitia, é certo, re- democratizou a datcha. verão na datcha, em várias regiões do horta própria continua no centro tam com humor, conseguiram montar
compensar os servidores do Estado, soviético ajudará país. Conflito de gerações, coabitação das preocupações de uma gran- um negócio viável. Por causa dos pre-
mas também controlá-los e até puni- OS EMPREGADOS SE FAZIAM DE CASTELÃOS a superar as do de classes sociais, confronto de modos de maioria. Entre a saudade e a adap- ços exorbitantes da ligação à rede elé-
-los, pois mandá-los para longe consti- Cada progresso social, cada mo- capitalismo russo? de vida e lazer, todos os clichês que en- tação às exigências da vida urbana trica, Mikhail decidiu optar pela auto-
tuía o primeiro sinal de que haviam dernização do período soviético con- volvem a sociedade russa de hoje apa- capitalista, os apaixonados pela dat- produção com um equipamento
caído em desgraça. Na era stalinista, as tribuiu, de uma maneira ou de outra, recem em um espetáculo amável, que cha constroem de novo, com mate- eólico e painéis solares, que ele pró-
vantagens concedidas aos “salvadores para o desenvolvimento do fenômeno. imita o estilo documentário. riais reciclados. prio instalou. Aos poucos, três outros
da pátria” – marechais, pesquisadores Nos anos 1950 e 1960, a evolução da Foi a idade de ouro da datcha, que Alguns reproduzem exatamente o casais vieram se juntar à sua iniciati-
do programa atômico ou grandes capi- rede ferroviária, depois dos ônibus, muitos russos ainda lembram com RESIDÊNCIA LUXUOSA OU CABANA DE MADEIRA modelo dos anos 1960. Como Serguei e va, que agora parece mais uma kolkho-
tães de indústria – não apresentavam colocou ao alcance dos cidadãos as saudade (ver pág. ao lado). A sociedade No registro igualmente popular Olessia Tolstykh, que herdaram uma ze (fazenda coletiva) que uma horta de
problema ideológico, mesmo porque zonas próximas das cidades. A sema- socialista decaiu, a horta individual dos reality shows, o programa sema- datcha perto de Dmitrov, 100 quilôme- periferia. No total, a propriedade se es-

© Daniel Kondo
as propriedades não eram privadas, na de cinco dias de trabalho, decreta- substituiu o projeto coletivo. A inventi- nal Datchny otvet (A datcha responde) tros ao norte de Moscou. Esse casal, na tende por 50 hectares, produzindo
mas alojamentos funcionais. da em 1967, permitiu aos empregados vidade dos proletários para ter seu can- propõe desde 2008 aos proprietários a casa dos 30 e sem filhos, pouco atraído queijos de cabra, mel, chá, cosméticos
consagrar mais tempo à sua casa de tinho não conhecia limites. Chega de reforma de sua residência secundária. por viagens ao estrangeiro, decidiu na naturais, óleo de linhaça, batatas e le-
campo. Enfim, a difusão progressiva cabanas padronizadas, modelo Gos- O apresentador começa apontando to- primavera de 2018 consagrar os fins de gumes orgânicos que encontram, nos
do automóvel, a partir dos anos 1970, plan! Um traz madeira, outro tijolos, dos os defeitos da casa – “escura”, “mal semana e as férias de verão a recuperar colarinhos-brancos da região, uma
O fenômeno facilitou o transporte de material e, outro ainda consegue, não se sabe co- dividida”, de estilo “ultrapassado”. De- sua cabana, com uma horta de 12 me- Outros procuram e encontram guiram se tornar proprietários no clientela entusiasta.
portanto, a administração das resi- mo, transportar para seu terreno um pois, um designer de interiores entra tros quadrados, fruto de uma partilha abordagens novas que inscrevem sua centro de Moscou, apressaram-se em Os Bajan podem documentar sua
da datcha, como dências secundárias. vagão de metrô que equipou como em cena. Com muitas claraboias, es- familiar e abandonada durante pelo residência na nova realidade russa. Já planejar os trabalhos de reforma do fu- vida campesina na internet, mas não
local de veraneio “Os próprios feriados soviéticos uma motor home... As “datchas de ge- paços de meditação e vigas aparentes, menos vinte anos. Como inúmeros se vê que a datcha pode ser um paraíso turo apartamento. Enquanto durarem contam com seus 195 seguidores para
dos cidadãos, surgiu parecem dançar ao ritmo da datcha”, neral”, construídas pelos convocados o estilista transforma o casebre numa moscovitas, eles não têm carro e orga- hedonista ou um ganha-pão. Por que as obras, ficarão instalados na datcha. ganhar uns trocados. Entretanto, são
logo após a fase de explica Mikhail Larionov, funcionário ao serviço militar, brotaram por toda obra-prima de ecletismo pós-moder- nizam sua logística combinando ser- escolher? Desempregados e funcioná- Esperam que isso não vá além de seis muitos os blogueiros e youtubers que
de um instituto de estatística. “No dia parte e serviram de moeda de troca en- no. Por fim, a família volta e se extasia viço público e novas tecnologias. Ir à rios mal pagos, aposentados mal re- meses, devido ao estresse de seu atual conseguem lucrar com sua paixão na
urbanização dos 22 de abril [aniversário de Lenin], o ge- tre os funcionários. Foi a época de to- com a mudança do cenário. datcha, mesmo com os engarrafamen- compensados pelo trabalho de uma modo de vida, que os obriga a encarar rede. Criam e animam tutoriais que
anos 1860 lo é apenas uma lembrança. Vai-se à dos os tráficos, de todas as falcatruas; a Aquela que suportou todas as vicis- tos de trânsito da sexta-feira à noite, vida inteira, estudantes idealistas ou dois empregos exigentes, a gestão das descrevem a cultura de hortaliças, a
datcha para lhe pôr um pouco de or- corrupção e o mercado negro assu- situdes do socialismo soviético ajuda- não lhes toma mais que duas horas. operados convalescentes vão buscar lá obras e a logística do cuidado dos fi- construção ou reparação de cabanas, a
dem, limpá-la e arejá-la, preparar as miam as formas mais inventivas, da rá a superar as do capitalismo russo? Primeiro, um táxi até a estação, depois as soluções para seu problema. lhos. Entre a residência antiga e a caba- apicultura ou as alegrias simples da vi-
Após a morte de Josef Stalin, em ferramentas do jardim. O 1º de Maio garrafa-moeda de vodca paralela até a “É um indício da inquietude econômi- o elektritchka (trem de subúrbio). Pou- O movimento dos downshifters as- na de madeira que agora habitam, a di- da ao ar livre... “Conselhos do horticul-
1953, o caráter semiaristocrático das vem bem a propósito para a fresagem e troca direta de bens e serviços. Um se ca da população. Se, ao redor de Mos- co mais à frente, na estação Quilôme- sumiu nos anos 2000 proporções de ferença é total. Têm eletricidade tor preguiçoso”, “A datcha que funcio-
datchas embaraçou os dirigentes. Eles a limpeza dos canais; o 9 de Maio [vi- valia de seus conhecimentos de arqui- cou, grande parte dos terrenos está co- tro 94, chamam um táxi pelo Yandex a uma epidemia na Rússia, a ponto de apenas em dois cômodos, nada de na” ou “Mini Farmer” sonham com o
pensaram em abolir essa prática con- tória sobre o nazismo] é ideal para tetura para construir um terceiro an- berta de mato e de canteiros de flores, fim de percorrer os 5 quilômetros res- essa palavra inglesa entrar para o vo- água quente e devem contar com o 4G sucesso de Tatiana, criadora do site A
trária ao ideal igualitário do socialis- plantar batatas e semear rabanetes, dar, outro instalava estufas e se lança- na região vizinha, o oblast de Vladi- tantes até o loteamento Drujba n. 6. cabulário russo corrente. Quando a para a conexão com a internet. O aque- Horta Produtiva, que conta com 1 mi-
mo. Em uma União Soviética que tomates, pepinos e outros vegetais. À va na horticultura, um terceiro criava mir, vemos que metade da superfície Em qualquer ocasião, feriado ou fim inflação dos aluguéis ultrapassou ra- cimento é garantido por um antigo fo- lhão de seguidores. Em vídeos sem arti-
apostava todas as fichas na industria- medida que se aproximam os curtíssi- pombos-correio... E havia quem escre- tem plantações de batata, legumes e de semana prolongado, eles convidam pidamente os aumentos salariais, gão a lenha de faiança. Mas nada de in- fício ou pretensão, ela explica com voz
lização, o êxodo rural chegou ao ponto mos meses de verão, observa-se o cres- vesse ou se entregasse ao alcoolismo – plantas perenes”, observa o antropólo- amigos e parentes, pedindo-lhes con- muitos decidiram se aproveitar disso superável para esses velhos viajantes monocórdia seus métodos e aborda-
máximo; a população das cidades ex- cimento, fim de semana após fim de ou as duas coisas. go Mikhail Alexeevski, autor de um es- tribuição: cada qual entra com conse- para melhorar de vida. A fim de trans- que percorreram a Europa Oriental de gens, dá conselhos prudentes e ensina
plodiu com o afluxo de interioranos semana, até a hora da colheita, duran- Como esclarece o historiador Ste- tudo sobre a alimentação na datcha. lhos técnicos, encorajamento e ferra- formar seu apartamento moscovita mochila nas costas. De resto, aprovei- pequenos truques que facilitam a vida.
para os centros industriais e a crise de te algumas semanas de férias, dos fru- phen Lovell, essa instituição forneceu Residência luxuosa com sauna e mentas para os jovens de entusiasmo em fonte de renda estável, bastava rea- tarão esse tempo para fazer as melho- No fim de O jardim das cerejeiras,
moradia se agravou: a norma oficial de tos e legumes frescos. Finalmente, o 7 uma importante fonte de autorreali- piscina interna ou cabana de madeira contagiante. Uma boa corrente de ar bilitar sem demora a datcha abando- rias e reformas mais necessárias em de Tchecov, a senhora Ranievskaia ex-
6 metros quadrados por habitante só de Novembro [Revolução de Outubro] zação a duas gerações de russos em- sombreada de árvores frutíferas, uma fresco e alguns espetinhos assados no nada, instalar a internet e transferir sua residência secundária de 100 me- clama, nostálgica: “Ah, meu jardim
existia no papel. Por outro lado, o cul- marca o encerramento oficial da esta- penhados em construir e administrar só palavra continua a designar essas quintal recompensam essa mão de para lá o guarda-roupa. Essa vida de tros quadrados, toda de madeira e com das cerejeiras, meu querido e belo jar-
tivo em marcha forçada de novas ter- ção. Levam-se para a cidade as conser- a datcha de família.2 Esta é, enfim, diferentes realidades. A residência se- obra animada e benévola. A cabana já rentista (modesto) tenta principal- venezianas à moda antiga. Quando vol- dim das cerejeiras! Minha vida, minha
ras deu resultados desastrosos: a falta vas preparadas na datcha.” uma das conquistas históricas do so- cundária nas imediações dos subúr- recebeu um novo isolamento e uma mente os aposentados, coagidos com tarem para a cidade, tentarão fazer de juventude, minha felicidade, adeus...
de frutas, legumes, carne e leite persis- A vida tem suas exigências, que aca- cialismo soviético, tanto quanto a bios ainda é o ornamento necessário tripla camada de tinta. Um vizinho frequência a completar suas pensões sua datcha habitável o ano inteiro um adeus!...”. Voltando da Suíça, ela com-
tia. Quando se pensava em relegar ao bam por desgastar a ideologia. Sob educação universal gratuita e as via- da ascensão social dos mais ricos. Para tratorista limpou o quintal dos detri- aceitando bicos.1 Tanto mais que mui- complemento de renda, pondo-a para preende que deverá ceder sua proprie-
esquecimento o próprio conceito de Brejnev (1964-1982), o tempo das gran- gens espaciais. os outros, a cabana de férias se torna tos que o atravancavam. Como na tos se tornaram proprietários exercen- alugar no Airbnb. O aluguel de curta dade há muito negligenciada a um cer-
datcha, ela se revelou uma solução des experiências sociais se encerrou e o É também um dos raros sucessos tábua de salvação, acrescentando uma época soviética, as instalações da resi- do o direito à privatização gratuita de duração, “datcha sem preocupações”, to Lopakhine, que ali construirá
multiforme para essas crises persis- regime socialista não teve mais projeto que, herdados da edificação do socia- página à história já longa e atormenta- dência se alimentaram de tudo o que sua casa (aberta em 1992 a todos os ci- como ouviram dizer, está a todo vapor. chalés de férias para os moradores da
tentes. Grandes empresas solicitaram a propor à sua população. Começou o lismo, resistiram à Batalha de Berezi- da da datcha. era posto de lado na cidade. “Isto vai dadãos maiores de 16 anos inscritos no Finalmente, os mais empreende- cidade. Quadro premonitório da crise
autorização para oferecer a seus fun- que os russos chamam ainda hoje, às na dos anos pós-perestroika. Agora servir na datcha” é o mantra do cida- programa). É o caso de Olga Zaluche- dores procuram literalmente voltar atual das datchas: abandonadas pelos
cionários lotes destinados à horticul- vezes com nostalgia, de “período de es- que todos os valores materiais e mo- *Christophe Trontin é jornalista. dão que quer renovar seus equipa- nova, jovem aposentada que passa para a terra. Aproveitando a queda do russos, que preferem férias no estran-
tura e ao repouso estival. As autorida- tagnação”. Se a propriedade privada rais parecem destinados a desapare- mentos sem peso na consciência: a ge- agora dias tranquilos numa datcha re- preço dos terrenos, jovens entusiastas geiro, retomadas por outros russos
des propuseram plantas padronizadas continuava proibida em teoria, as ca- cer sob os escombros da União Soviéti- ladeira velha, o sofá desbotado, as formada perto de Podolsk. Como tem se instalam no campo, enfrentando o mais empreendedores, que esperam
de cabanas de verão com 25 metros banas erigidas penosamente pelos ca- ca, a datcha serve uma vez mais de 1 “Big datcha. Un demi-trillion de roubles pourrait cadeiras desaparelhadas ou as roupas carro, pode ir à cidade várias vezes por sarcasmo do pessoal da região e ten- fazer delas seu ganha-pão.
quadrados, mais varanda. A instala- maradas durante seu tempo livre não refúgio seguro. A economia paralela être collecté des propriétaires de datchas” [Big fora de moda encontram uma nova ju- semana a fim de ver a filha, visitar ex- tando aproveitar a oportunidade.
datcha. Meio trilhão de rublos poderiam ser coleta-
ção de aquecimento, porém, foi proibi- tinham mais nada de coletivo. Em suas desenvolve-se lá segundo um modo dos dos proprietários de datchas], Kommersant, ventude lá longe. Trabalhos manuais e posições ou assistir com amigas a Criação de cabras, hortas orgânicas e *Christophe Trontin é jornalista.
da, receando-se que essas “semipro- propriedades, ainda formalmente nas primitivo ao qual todos se acomodam, Moscou, 22 ago. 2016. horticultura são as atividades típicas apresentações no conservatório. vida ao ar livre são o cotidiano de Vale-
priedades” privadas acabassem sendo mãos do Estado, mas cujo usufruto se e a economia de subsistência retoma 2 Stephen Lovell, Summerfolk. A History of the Dat- da datcha. Projeto deste ano: concluir Outros utilizam a datcha para re- ria e Mikhail Bajan, dois diplomados
cha, 1710-2000 [Veranistas. Uma história da dat- 1 Ver Karine Clément, “Le visage antissocial de Vla-
ocupadas o ano todo e instilassem nos transmitia por herança, os emprega- seus direitos. O camelô se transforma cha, 1710-2000], Cornell University Press, Ithaca- a transformação da varanda e colher solver um problema passageiro. Quan- da cidade de Tver, ao norte de Moscou, dimir Poutine” [A face antissocial de Vladimir Pu-
costumes dos proletários uma “men- dos se faziam de castelãos, cuidando em pedreiro ou carpinteiro; a babuch- -Londres, 2003. os primeiros legumes “de casa”. do Macha e Nikolai Kulaguine conse- que se cansaram de seu apartamento tin], Le Monde Diplomatique, nov. 2018.
20 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2019 AGOSTO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 21

JORNALISTAS SOLIDÁRIOS DOS REPUBLICANOS QUE FUGIAM DO REGIME FRANQUISTA

Em 1939, mergulhados nos campos


para Hendaya?”, gritam os gendarmes
nos campos. Diante da fome e do frio
suportados por esses seres humanos,
Hermann “acaba ousando perguntar,

de refugiados espanhóis na França


sem ousar realmente acreditar em
uma estratégia de tão cruel cinismo, se
os refugiados não são propositalmente
submetidos a tal situação justamente
para que ela pese sobre sua vontade, a
fim de conduzi-los à única decisão que
Ao final da guerra civil desencadeada pelo general Francisco Franco, a derrota dos republicanos espanhóis estava lhes é apresentada para sair deste in-
consumada. Certos de que uma repressão sem piedade os esperava na Espanha, centenas de milhares deles se refugiaram ferno: o retorno à Espanha fascista”.
na França no início de 1939. Jornalistas de esquerda – mas não só – testemunharam de perto seu destino No semanário ilustrado Regards,
próximo ao Partido Comunista, Sté-
POR ANNE MATHIEU*
phane Manier dedica um artigo intei-
ro, em 23 de fevereiro, a um “plano”
que ela atribui ao prefeito. O que há
por trás desse “terror”, desse “caos”,

“N
ossa turnê de sofrimento acabou. para a França – passaram a ser enviados nalistas e repórteres para designar os um dos primeiros repórteres franceses desse “inferno” dos campos? O poder
De La-Tour-de-Carol a Argelès, para a fronteira: ou entre La Jonquera e espanhóis naquele início de 1939. Ho- a entrar na península insurgente em de “encantamento” do “caminho que
passando por Saint-Cyprien, Le Perthus, ou entre Portbou e Cerbère. mens, mulheres e crianças que não ti- julho de 1936, onde se entusiasmou leva a Franco”: “Assim que se inicia o

© Reuters / Juan Medina


Bourg-Madame, Amélie-les- Eles ficaram muito impressionados, nham mais terra, cujo status se basea- com o “tumulto alegre e desorganiza- itinerário Pireneus Orientais-Henda-
-Bains, Arles-sur-Tech, Le Boulou, pu- além da carga inútil levada pelos “eva- va então na “massa” à qual pertenciam. do” dos “punhos cerrados”. Depois, ya-Burgos, tudo se alegra. Os cami-
demos ver de perto a mais espantosa cuados”, com a “fila ininterrupta” que “Internados” cuja vida, graças aos re- acompanhou a chegada dos refugia- nhões, os trens, a sopa quente, tudo
miséria.” Por dez dias, o repórter Ribe- atravessava a fronteira. “Desde a ma- pórteres, seria acompanhada nos pri- dos bascos em 1937. Nesse início de palmilha o caminho que leva a Fran-
court, de volta da Espanha, estivera nhã, eles descem incessantemente as meiros acampamentos, entre o fim de 1939, ele estava em “viagem pelos co”. No mesmo dia, Doutreau dá sua
em visita aos acampamentos dos Pire- montanhas, em uma fila ininterrupta, janeiro e o fim de fevereiro. Esses jor- campos de concentração”. Em 14 de opinião no Le Libertaire: “Assim que
neus Orientais que recebiam a onda alongada pelos carros empoeirados e nalistas entregaram ao leitor retratos fevereiro, dois dias após seu apelo aos alguns dos mais fracos ou mais cansa-
de republicanos espanhóis exilados. pelos grupos de mulas sobrecarregadas precisos, imagens minuciosas do “dra- céus, ele exclamou, aflito: “Aqui está! dos se deixam seduzir, a situação mu- Exumação de corpos que foram mortos pela ditadura de Francisco Franco (2019)
De todo o pessoal enviado para lá pela com fardos e utensílios os mais diver- ma” espanhol que se desenrolava dian- Começou a chover esta noite, uma da. Eles são separados, mais bem ali-
imprensa francesa de esquerda, ele sos”, descreveu, no dia 7 de fevereiro, te de seus olhos atônitos. Entremos chuva fria e cerrada”. E continuou: “Na mentados, mais bem tratados e podem
era quem melhor conhecia a situação. George Beaubois, editor do jornal co- com eles nos campos. areia suja de Argelès e Saint-Cyprien, desfrutar de mais liberdade”. bre o rosto não sugere mais que uma go com madeira. Outros pobres coita- O jornal L’Humanité e o semanário
Ribecourt trabalhava para o Ce Soir, munista L’Humanité, em Le Boulou, “vi- 140 mil pessoas – o número aumenta a Quanto à “questão sanitária, me- forma humana estreita e rígida...”. O dos, exaustos e sofrendo, cavaram um da Confederação Geral do Trabalho,
diário dirigido pelos jornalistas-escri- la onde [os refugiados] são centraliza- cada hora – amontoam-se, umas aper- lhor nem falar sobre o que se passa nos detalhe das alpargatas não revela ape- buraco, onde, encolhidos, tentam ocu- Messidor, saúdam o trabalho do Cen-
tores Louis Aragon e Jean-Richard dos e vacinados”. No final de janeiro, em tadas contra as outras, puxando sobre campos”, afirma Marc Bernard, em 24 nas a capacidade descritiva do jorna- par o menor espaço possível. Parece tro Sanitário Internacional, criado no
Bloch, e cujo secretário-geral era seu Le Perthus e Prats-de-Mollo, o jornalis- Nas reportagens, os ombros magros os poucos coberto- de fevereiro, na “publicação semanal lista do Le Populaire. Para os repórteres que esperam morrer por falta de ar”. início da guerra pelo médico comunis-
colega Paul Nizan. Criado em março ta e tradutor Louis Parrot encarou, para predomina o tema res velhos trazidos da Espanha”. [radical socialista] de educação cívica e presentes no verão de 1936 na Espanha A revolta dos jornalistas tem como ta Pierre Rouquès. No Le Populaire, Ro-
de 1937 pelo Partido Comunista com o o Ce Soir, essas “legiões da miséria”. O do sofrimento. Para combater a chuva, cobertores e ação republicana” La Lumière. Sua fa- revolucionária e antifascista, as alpar- alvo a desumanização e a animaliza- ger Dufour, secretário-geral da Ajuda
objetivo de concorrer com o Paris-Soir termo “legião” é recorrente em todas as calor humano. A publicação semanal mosa colega Madeleine Jacob decide gatas eram uma das marcas do povo ção imposta aos refugiados. “Estacio- Socialista à Espanha Republicana, gri-
do industrial Jean Prouvost, do qual reportagens. Também é possível encon-
Ele se concentra da União Anarquista, Le Libertaire, mostrar a realidade do acampamento espanhol em luta, um de seus símbo- nados como animais” em Argelès ou ta: “Ajude os refugiados da Espanha!”.
emprestou o essencial de seu projeto, trar a palavra “horda” nos textos dos em dois tormentos: mandou um editor para a região, Mau- de Argelès: “Andamos sobre excremen- los. Em 1939, nos pés desses “carabi- Amélie-les-Bains (Hermann, Ribe- A publicação da Liga Internacional
ele valorizava fortemente a fotografia “enviados especiais” do SIA, jornal da a dor do frio e a rice Doutreau. Em Saint-Cyprien, para tos. Não há no acampamento nem pa- neiros” em Le Perthus, elas se transfor- court), “tratados quase como se fos- contra o Antissemitismo (Lica) envia
– frequentemente a cargo de Robert Solidariedade Internacional Antifascis- angústia da fome abrigar-se, além de “sua magra cober- pel, nem latrinas, nem água para se la- maram nos vestígios dessa luta, sem, em uma palavra, rebanhos de um caminhão para os refugiados:
Capa, creditado ou não. ta, organização libertária humanitária ta”, os refugiados recorrem a “chapas de var. Aqui alguém cozinha um punhado substituídas pelos cobertores da Reti- ovelhas que enchem as arenas de Cé- “Doe comida e roupas para os pobres
No dia 20 de fevereiro de 1939, a re- fundada na Espanha em junho de 1937. metal, arrancadas aqui e ali de cami- de arroz; ali, um homem baixa as cal- rada, a vestimenta do povo derrotado, ret”, perto de Saint-Cyprien (Bernard), espanhóis”. No Le Libertaire, lança-se
portagem de Ribecourt começava na Julien Chazoff e Lucien Haussard des- nhões abandonados”. Beaubois passou ças e se alivia”. O acampamento, teme exilado e refugiado. Mas Hermann essas pessoas não são mais considera- um apelo: “Mais do que nunca, comi-
primeira página: “Trinta mil feridos e creveram, no dia 9 de fevereiro, uma Nas reportagens, predomina o te- um mês percorrendo a região, para o ela, é um ninho de micróbios, com um também fez deles um ornamento mor- das como tal pelo poder dominante. da, roupas, cobertores, remédios”. Jor-
doentes nos campos de concentração”. “horda de emigrantes, fugitivos, alguns ma do sofrimento. Ele se concentra em jornal L’Humanité. Ele brada contra a fedor insuportável. Ali, as chuvas são tuário: “A fome, o frio... Subindo a ave- “Na praia”, escreve Madeleine Jacob, nais incentivam doações, muitas ve-
Esse último termo pode causar alguma coxos, outros doentes, todos exaustos”. dois tormentos, ambos descritos por condição “terrível” dessas pessoas, que ainda mais temidas: “Está chovendo. A nida que leva ao acampamento, en- “há mais de 60 mil pessoas mantidas zes para crianças espanholas, como
surpresa. Ele era utilizado pelo gover- Ribecourt no dia 18 de fevereiro, após têm apenas “o céu como teto”. atmosfera é irrespirável, apesar do ar contramos seis homens que levavam atrás de fios de arame farpado, como fez, no dia 10 de fevereiro, o La Flèche
no, na época, após definição do minis- “ESTACIONADOS COMO ANIMAIS” sua visita aos campos de Bourg-Mada- Em Argelès, “um vento glacial se livre da praia. O cheiro que vem do em um cobertor um jovem soldado criminosos ou feras perigosas.” de Paris, veículo do movimento anti-
tro do Interior, Albert Sarraut, no início “Os homens ainda válidos eram es- me: “Instalados a céu aberto, em gran- eleva, soprando ao longo de toda a cos- chão é mais forte do que tudo. Está cho- com uma jaqueta de couro, encurvado, fascista liderado por Gaston Bergery:
de fevereiro: “O acampamento de Ar- coltados para campos de internamen- des áreas nuas, [os campos] recebe- ta, carregando consigo uma confusão vendo – isso significa que, se deixar- lívido... e que havia parado de sofrer”. A RAIVA DA EXTREMA DIREITA “Um simples dever humanitário – aju-
gelès-sur-Mer não será uma instalação to”, conta a historiadora Geneviève ram milhares de refugiados. Durante louca de roupas velhas, gravetos e areia mos essas pessoas aqui, logo se alastra- No dia 18 de fevereiro, Ribecourt, em Embora falte de tudo nos campos, o dar as crianças espanholas”. A célebre
prisional, mas um campo de concen- Dreyfus-Armand. “Já as mulheres e vários dias e noites, milhares de seres misturada com terra” (Ribecourt). Em rá uma perigosíssima epidemia”. La-Tour-de-Carol, parece manter um governo não se esqueceu de prender os comentarista do diário radical socia-
tração. Não é a mesma coisa”.1 crianças, os doentes e idosos, embora humanos conheceram terríveis sofri- Saint-Cyprien, “na planície desnuda, o A doença se instala: há “contagio- registro contábil do desespero: “Mor- refugiados com cercas e mantê-los sob lista L’Œuvre Geneviève Tabouis, en-
Em 26 de janeiro de 1939, as tropas muitos permanecessem nos campos mentos, a dor do frio, a angústia da fo- vento sopra com violência. Ele varre as sos” em La-Tour-de-Carol, além, infor- reram de frio, ao longo das noites, cin- custódia. No final de janeiro de 1939, carregou-se, desde o início de janeiro,
de Franco e seus aliados entraram em de concentração durante um tempo me”. Está frio, pois é inverno, e a neve nuvens de poeira, mugindo lugubre- ma Ribecourt na mesma reportagem, co, seis, sete, oito. Naquela noite, mor- Parrot observa, no Ce Soir, o seguinte de um canal de doações de “ajuda às
Barcelona. Em 4 de fevereiro, Girona foi mais ou menos longo, eram maciça- tinge de branco as silhuetas que se en- mente, os grãos de areia fustigando os de “tuberculosos”, “pessoas com febre reram sete. Um refugiado tentou contraste: “Chamaram as tropas sene- crianças espanholas”. E a legenda da
conquistada. No dia 10 estava concluí- mente evacuados para vários departa- caminham para a fronteira. Está frio, rostos” (Émile Decroix, L’Humanité). tifoide”. Em Bourg-Madame, acres- mostrá-los a mim. Perto da estação, em galesas, mas não vimos nem em Le fotografia dos refugiados na primeira
da a tomada franquista da Catalunha. mentos do interior, onde centros de por causa da chuva, fenômeno meteo- O sofrimento dos refugiados não centa, há “soldados [...] com infecção uma grande área nua, alinhavam-se Perthus, nem em Bourg-Madame, nem página da Regards de 2 de fevereiro ex-
Nesse meio-tempo, teve início a Retira- alojamento os recebiam como era pos- rológico recorrente, como um cenário se limita ao frio: “Vejo alguém que de vesícula” e “a sarna, como nos ou- sete caixas de madeira branca...”. em Prats-de-Mollo, nem em Cerbère clama: “Idosos, mulheres, crianças,
da, “o maior êxodo já observado na sível”. Ela dá mais detalhes: “Essas se- fixo sob o qual todos os enviados espe- chora enquanto recebe um pedaço de tros acampamentos, reina solta”. Há No início de fevereiro, Madeleine Ja- (onde um povo, faminto e suplicante, expulsos pela invasão que se aproxima
fronteira francesa”.2 Centenas de mi- parações também eram feitas em cam- ciais dirigem sua história. pão” (Hermann, Argelès). “Essas de- casos de pleurisia em Argelès, casos de cob relata uma tentativa de suicídio em corria sob o túnel) nenhum posto de de nosso país. Abra os braços!”.
lhares de espanhóis fizeram a travessia pos de triagem ou de ‘coleta’ localizados A chuva é tão incessante que leva zenas de milhares de pessoas não co- disenteria em Saint-Cyprien. Le Boulou: “Quando chegamos lá, uma socorro, nenhuma cozinha móvel, ne- Os jornalistas destacam a solida-
– estigmatizados como “estrangeiros perto da fronteira, em Prats-de-Mollo, um conhecido repórter do jornal so- locaram nada na boca desde que che- Em Le Perthus, no final de janeiro, tragédia acabara de acontecer. Um mi- nhuma distribuição de víveres”. No en- riedade de muitos franceses. Em Le
indesejáveis”, conforme designação La-Tour-de-Carol, Le Boulou, Bourg- cialista Le Populaire, Jean-Maurice garam, o que varia entre 24 horas e Hermann revela a brutal invasão da liciano, em desespero, se ferira a faca. tanto, Émile Kahn enfatiza, no dia 15 Boulou, diz Hermann no Le Populaire,
dos decretos de Daladier de 1938. -Madame ou Arles-sur-Tech”.3 Hermann, a apelar ao céu: “Peçamos três dias [...]. Vi gente mascando cani- morte no território francês: “De repen- Não morreu”. Duas semanas depois, de fevereiro, no Les Cahiers des Droits “graças à incansável dedicação dos
Desde o fim de janeiro de 1939, re- Frequentemente “refugiados”, às aos céus que não chova. A situação ços para enganar a fome...”, diz Ribe- te, as pessoas abrem caminho: três fu- em Argelès, ela sugere que muitos “in- de l’Homme, que “a França popular dá voluntários recrutados entre a popu-
pórteres que simpatizavam com a cau- vezes “evacuados”, “emigrados”, “emi- dessa enorme multidão será simples- court em Saint-Cyprien. zileiros calçando alpargatas passam ternados” pensam em suicídio: “Chove tudo o que tem e gasta verdadeiros te- lação, uma boa sopa quente, uma co-
sa republicana – alguns dos quais grantes”, mais raramente “fugitivos” – mente apavorante, e seu abastecimen- “Quer voltar para Franco?”, per- com uma maca onde jaz um ferido. Lo- sem parar. Alguns grupos construíram souros de piedade fraternal pelos refu- mida apetitosa, um copo de leite con-
acompanhavam o êxodo da Espanha esses eram os termos usados pelos jor- to, quase impossível”. Hermann fora guntam na fronteira. “Quem quer ir go ali há outro, mas desta vez a capa so- cabanas, outros preferiram acender fo- giados que é possível ajudar”. fortam os refugiados”. “Em Perpignan,
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JUVENTUDE FRUSTRADA, ASCENSÃO RELIGIOSA

Na Mauritânia, uma sociedade


nas vilas vizinhas, eles são recebidos e manas em Le Perthus e Cerbère, la- guarda das milícias mercenários ára- “Como nos deter mais tempo em todos
tratados com uma dedicação que lhes mento ter de denunciar a brutalidade bes que lembram nossos camaradas esses sofrimentos? Como dizer em to-
permite retomar a confiança nos ho- de alguns dos encarregados do policia- os brutos do Tercio; 5 seria difícil en- dos os seus detalhes todas as cenas que
mens”, diz a escritora (e companheira mento dos centros de alojamento ou contrar alguém mais rude”. Elemento vivemos? Como destacar todas as mi-

obcecada pela cor da pele


de Aragon) Elsa Triolet na Regards. O dos campos”. No mesmo dia, Marc notável, ele também faz uma análise sérias de que nos aproximamos?”.
repórter do Paris-Soir, Henri Danjou, Bernard descreve, na La Lumière, uma da violência mostrada por esses spahis Tendo conhecido ao longo da guer-
também sublinha que “as pessoas ca- cena que se pretendeu emblemática do e “senegaleses”, que são os “cães de ra o fogo e o sangue ao lado da popula-
ridosas de Perpignan [...] distribuem tratamento infligido aos republicanos guarda do ‘nosso’ império”... Tais se- ção civil, os jornalistas escrevem aqui-
aos miseráveis laranjas, víveres; ofere- espanhóis: “Um senhor, que ousa fazer negaleses e marroquinos eram, certi- lo de que se lembram. O barulho dos
cem bebidas quentes e leite”. Em sua em termos educados um comentário ficam os historiadores, “guardiães di- aviões, o espetáculo da destruição, os
coluna diária no Ce Soir, Aragon fala sobre um gendarme particularmente ficilmente corruptíveis e totalmente cadáveres, os inocentes massacrados. País pobre, a Mauritânia distingue-se de seus vizinhos do Sahel que convivem com a violência de grupos
sobre o “dilúvio de cartas” de france- brutal, recebe um tapa que o atira no incompreensíveis”, tropas “mais segu- No dia 7 de fevereiro, Hermann pro- jihadistas armados, mas segue sofrendo com as divisões étnicas e com a hierarquia definida pela cor da pele.
ses oferecendo abrigo a uma criança. chão. Um miliciano que tenta intervir é ras nas circunstâncias do que qual- clama no Le Populaire: “Nenhum da- Em um contexto social tenso, a juventude encontra refúgio na fé e na música
Uma frase de Germaine Decaris reve- espancado e largado meio morto”. quer regimento francês”.6 queles que estavam hoje em Le Per-
POR PIERRE DAUM*, ENVIADO ESPECIAL
la que o movimento de solidariedade é No entanto, responderia, na extre- Jornalistas também se debruçam thus poderá esquecer esta visão
nacional: “Nesse momento, em Calva- ma direita, a publicação do Partido So- sobre a situação das mulheres refugia- extraordinária: um povo inteiro, pre-
dos, como certamente em muitas re- cial Francês, Le Petit Journal, dirigida das. Julien Chazoff e Lucien Haussard ferindo o exílio à escravidão, segue
giões francesas, produz-se o milagre pelo coronel de La Rocque, que “a der- contam, no SIA do dia 9 de fevereiro, o sem cessar, sem pressa, sem gritos,

“A
dos refugiados”, escreve em L’Œuvre, rocada dos marxistas espanhóis” im- seguinte fato ocorrido em Perpignan, desde as primeiras horas da manhã”. Mauritânia é puro racismo! Todo a França), encaixado entre o Magreb – uma dose de vodca. “Na verdade, nós e bitantes localizada 250 quilômetros a
no dia 11 de fevereiro. põe a proteção do território. “O exército sob o título “Escravidão branca”: “Ho- Ribecourt insiste, no dia 19 de feverei- mundo sabe disso, mas ninguém o país, aliás, faz parte da União do Ma- os haratins vivemos a mesma discri- leste da capital, na “Rota da Esperan-
Na imprensa conservadora, o “mi- do crime está na França. O que você fa- mens infames oferecem cem francos ro, no Ce Soir: “Acabo de viver 24 horas fala no assunto, é proibido!” greb Árabe (UMA) – e a África subsaa- minação”, afirma Ibrahim. “Podemos ça” que leva ao Mali, o gerente de uma
lagre” não é tão óbvio. Um repórter do rá a respeito?” é a manchete do sema- para a saída dos campos, uma noite no inesquecíveis, 24 horas de angústia, de Ibrahim, Abdallah, Mohamed, riana. Com 95% de área desértica – é ter todos os diplomas que quisermos, pousada nos confia, depois de jurar-
L’Intransigeant adverte: “É quase im- nário antissemita Gringoire. No dia 8 de cinema e... o fim de noite”. No dia se- miséria, de sujeira, de sangue, de frio, Amadou e Ahmed, de apenas 20 anos de justamente a imagem de suas dunas mas, quando prestamos concursos mos que não revelaríamos seu nome,
possível impedir que os refugiados dei- fevereiro, o jornal literário Candide to- guinte, Betty Darthel conta no La Flè- de grandeza; 24 horas da vida no cam- idade, em cadeiras mancas na rua em intermináveis com as caravanas de [para o serviço público, muito visado nem mesmo seu primeiro nome, por
xem os campos para chegar ao interior cou o alarme: “Toda a escória, toda a che de Paris: “Em torno dessa miséria, po de Argelès”. Em fevereiro de 1939, frente à casa da tia de Ibrahim, formam camelos que circula no Ocidente –, porque garante um emprego estável], “medo de represálias”: “Eu sou um
do país. Perpignan já foi invadida. As gentalha de Barcelona, todos os assas- espreitam certos cavalheiros [em Cer- Téry estava em Valência.7 Em 1947, ela uma roda em torno de um pequeno bo- tem apenas 4 milhões de habitantes, nunca somos nós que conseguimos o mouro negro, um haratin. Aqui, a es-
patrulhas noturnas, as delegacias de sinos, os comunistas, os carrascos, os bère]. Há dois dias, conhecemos al- publicou um romance sobre a guerra tijão de gás colocado no chão batido. dois terços dos quais com menos de 26 cargo, é sempre um bidan.” Silêncio. cravidão à moda antiga pode ter quase
polícia, as visitas domiciliares revelam profanadores, todos os ladrões, todos guns que, obviamente, mostravam espanhola, La Porte du soleil [A porta Amigos desde a infância, eles chamam anos de idade. Uma população tão pe- Não insistimos no fato de que esses jo- desaparecido, mas vivemos uma nova
todos os dias a presença de centenas de os hereges saqueadores, todos os amo- uma estranha solicitude. Eles se apres- do sol], no qual inseriu muitas de suas seu grupo de “free like a bird” [livre co- quena e ainda assim tão dividida! Di- vens dos bairros pobres de Nouak- escravidão! Veja essas terras: todas
espanhóis em residência ilegal”. tinadores sem escrúpulos explodiram savam em ajudar as mulheres de uma reportagens. E acusa: “Os espanhóis mo um pássaro]. Aqui em Basra, um vidida pela língua, pela cor da pele e chott, na verdade, têm poucos diplo- pertencem a bidans, mas eles nunca
No entanto, unidades coloniais em nosso solo”. Em Le Perthus, no en- forma bastante curiosa: dirigindo-as podem esquecer, talvez. Mas nós, bairro periférico de Nouakchott, longe também pela hierarquia estabelecida mas. A maioria deles frequentou a trabalham nelas. Quem trabalha são
guardam os campos. No Ce Soir, Ribe- tanto, o famoso repórter Henri Béraud para casas com abrigo, mas sobretudo franceses, como podemos um dia nos das avenidas abastadas do centro da ca- dentro do grupo dominante de mou- escola pública, em turmas abrigando os negros. E o patrão paga quando
court destaca a presença de “atirado- esclarece, no dia seguinte, no Gringoire, trancadas...” Essas histórias são bas- esquecer disso?”.8 pital, nenhuma rua é asfaltada, e as ca- ros brancos, segmentado entre os des- entre setenta e cem alunos, o que pro- quer”. Criminalizada em 2007, a es-
res”. Hermann nota a de “soldados de que haveria no “rebanho de bons e tante marginais nas reportagens, co- Teriam essas visões do inferno sas parecem todas construídas direta- cendentes de grandes famílias de duz uma porcentagem colossal de cravidão é um fenômeno muito antigo
infantaria” e de spahis,4 no Le Populai- maus: ao lado dos exaustos e moribun- mo o é a menção da violência exercida substituído definitivamente entre os mente sobre a areia. A eletricidade cai guerreiros e marabus (homens santos evasão escolar. Segundo o Fundo das aqui. Ela continua a existir, sobretudo
re; Doutreau, no Le Libertaire, observa dos, os violadores de sepulturas; de contra mulheres. Manier, no entanto, jornalistas aquelas dos primeiros dias com frequência, e a água é comprada e estudiosos locais) e aqueles cuja ori- Nações Unidas para a Infância (Uni- nos assentamentos rurais. Segundo o
a de “goumiers marroquinos” [solda- braço dado com as mulheres grávidas, relata na Regards um incidente conta- do verão de 1936, nas quais a alegria da de crianças que a trazem em carrinhos gem está em tribos de menor prestígio cef), em 2012 a taxa de alfabetização Global Slavery Index 2018,2 abrange 90
dos recrutados entre a população do os estripadores sádicos e, atrás das do por um terceiro: “Em Saint-Cyprien, luta fraterna competia com a empol- puxados por burros. Enquanto Ahmed e até mesmo em castas “vergonhosas”, não passou de 60%, e o número de mil pessoas, o que coloca a Mauritâ-
Marrocos, que atuavam junto ao Exér- crianças de olhos claros, os mais atro- na noite anterior à minha visita, ‘sene- gação dos cantos? Refletindo sobre as faz o chá, Abdallah fala, alternando como a dos ferreiros ou a dos menes- pessoas com 20 anos ou mais que nia na sexta posição entre os países
cito francês na África (N.T.)]. Mas os zes celerados, os torturadores mais galeses’, uma meia dúzia deles, entra- razões do tratamento sofrido pelos re- francês e fulani (chamado pulaar na tréis. O número de casamentos mistos completou o ensino médio se mante- onde o problema é mais grave.3
mais mencionados são “os senegale- cruéis, os políticos mais covardes”. O ram no acampamento das mulheres. fugiados espanhóis, a narradora do ro- Mauritânia). A poucos metros, crian- é muito baixo, e algumas histórias de ve inferior a 5%. As famílias bidans, Em Kaedi, pequena cidade mais ao
ses”. Marc Bernard descreve o acam- Action Française, uma “publicação do [...] Seus gritos alertaram os guardas mance de Téry oferece uma resposta ças jogam futebol descalças sobre o amor poderiam servir de roteiro para por sua vez, mandam seus filhos para leste, Hossein, Mokhtar e Salem tocam
pamento dessas tropas, perto do cam- nacionalismo integral”, pragueja: “A móveis a tempo”. possível: “Para essa França, o espa- chão poeirento. “No alto estão os bi- os filmes melosos de Bollywood – dos escolas particulares, a um alto custo: juntos uma modesta oficina de auto-
po de Saint-Cyprien, na La Lumière: França real não quer servir de depósito Os jornalistas não sairiam ilesos de nhol representava um perigo mortal, dans, os mouros brancos. Eles são do- quais os mauritanos são grandes fãs. entre 800 e 4 mil uguias (R$ 81 a 404) móveis. Os dois primeiros são haalpu-
“Então o terreno se torna arenoso; o para criminosos e assassinos”. suas visões da Retirada e dos campos. ele era um portador de germes: trazia nos de tudo. Logo abaixo estamos nós, Qual é a proporção desses diferen- por mês por criança, quando as mas- laaren (de língua pulaar), o outro é ha-
tráfego, mais intenso; as barreiras de Talvez inspirada por tal raiva, pra- Desde 1936 e o início dos bombardeios o germe da liberdade”.9 os negro-africanos [ele mostra com o tes grupos no país? Impossível saber, sas mauritanas fazem o que podem ratin. Todos dizem a mesma coisa:
guardas móveis, mais numerosas: no tica-se uma “brutalidade revoltante” nas cidades espanholas, eles, muitas dedo indicador a pele do antebraço]. E, pois desde a década de 1960 não são para sobreviver com o equivalente a “Aqui, a justiça é zero vírgula zero! To-
final da planície, os Pireneus erguem (Ribecourt) contra homens famintos: vezes, confessaram sua dificuldade de *Anne Mathieu é mestre de conferências mais abaixo, os haratins. Eles também feitos estudos estatísticos. Em 2011, R$ 420 ou 840 mensais. da a justiça é para os mouros brancos.
suas altas montanhas, dominando o “Eu vi um capitão de guardas móveis escrever sobre o que viam, de superar em Literatura e Jornalismo na Universidade são mouros, falam a mesma língua com a adoção do passaporte biométri- Se você tiver qualquer mínimo proble-
Canigou, cobertas de neve. De repen- cobrir de coronhadas soldados que se seus próprios limites para fornecer a de Lorraine, diretora da revista Aden. Paul Ni- que os bidans, mas são negros como co, todos os cidadãos tiveram de se “VIVEMOS UMA NOVA ESCRAVIDÃO” ma com um mouro branco e for à dele-
te, enormes cupinzeiros se erguem do dirigiam, sem uma palavra, sem con- informação, de assistir ao pior durante zan et les Années Trente e criadora do site nós [e repete o gesto com o indicador]. apresentar à administração para pro- Apesar dessa reserva e a despeito gacia, quem acabará com problemas é
chão, e em torno deles manchas pretas fusão, sem revolta, mas num impulso os bombardeios, quando cada centí- www.reporters-et-cie.guerredespagne.fr. Na verdade, eles são os antigos escra- var sua “mauritanidade”. Isso provo- da proibição de estudar o assunto im- você. O mouro branco vai ser tranqui-
e vermelhas se movem lentamente: é o animal e irresistível, a um caminhão metro do território das cidades exibia vos dos bidans e hoje ainda mais des- cou grandes protestos, com a acusa- posta aos pesquisadores, uma consta- lamente mandado para casa, e você
acampamento dos senegaleses”. de pão” (Hermann, em Argelès). “A fo- um cadáver desfigurado. “Eu estive lá, prezados do que nós.” ção, por parte dos negro-africanos, de tação visual é inevitável: em todas as vai ficar na delegacia”.
As medidas de segurança se justifi- me era muito simples”, revela Ribe- para vocês”, diz a célebre repórter co- Enquanto Ahmed se empenha em que o governo queria negar sua nacio- repartições públicas, para além das Voltando aos “pássaros livres” de
1 Citado em Geneviève Dreyfus-Armand, L’Exil des
cam em razão daquilo que não se diz: court: “um pão para 25 soldados e, se munista Simone Téry ao leitor do Mes- républicains espagnols en France. De la guerre erguer bem alto a chaleira, a fim de nalidade.1 O assunto continua sendo funções subalternas, só há bidans. As Nouakchott. Segunda rodada de chá,
o campo é uma prisão. Pior ainda, pro- houvesse reclamação, os senegaleses sidor antes de descrever, quase clini- civile à la mort de Franco [O exílio dos republica- oxigenar o líquido fervente ao despejá- muito delicado em um país onde, des- muitas lojas do centro da cidade per- ainda mais doce. Mohamed, quase
testa Ribecourt: “As galés devem ser armados com cordas nodosas estavam camente, o necrotério de Barcelona nos espanhóis na França. Da guerra civil à morte -lo nos copinhos, Amadou continua: de a independência, em 1960, quase tencem quase exclusivamente a bi- mudo até agora, de repente se empol-
de Franco], Albin Michel, Paris, 1999, p.61.
menos hostis que Argelès”. Hermann, lá para isso.” Em 14 de fevereiro, ele em abril de 1938. 2 Ibidem, p.42. “Os mouros, brancos ou negros, falam todos os poderes políticos, militares, dans, assim como todos os bancos e ga: “A polícia nos aterroriza! Depois
em La-Tour-de-Carol, faz a seguinte conta: “Eu vi pessoalmente, ontem à No início de 1939, essa realidade, 3 Ibidem, p.52. hassaniya [o árabe utilizado nesta econômicos e até intelectuais estão empresas. “E no Exército, instituição das 10 da noite, se você ficar pela rua,
comparação: “Eu fui conhecer os cam- noite e hoje de manhã, um senegalês que se tornou a realidade do solo fran- 4 Soldado magrebino dos corpos da cavalaria fran- parte do Saara]. E nós falamos wolof, nas mãos dos mouros brancos. Na ten- que constitui a espinha dorsal do regi- tem toda chance de ser parado pela po-
cesa durante a colonização.
pos e entendi que minha visita a ou- cair de coronhada em cima de um in- cês, não era menos difícil de conceber, 5 A Legião Estrangeira Espanhola. pulaar e soninquês. E, além disso, tativa de esconder tal desigualdade, o me, os postos de general são quase to- lícia, pelo simples fato de ser negro.
tras prisões decididamente não havia feliz que voltava do arbusto de juncos portanto de transcrever. Parrot, em Le 6 Geneviève Dreyfus-Armand e Emile Temime, Les francês. Você entende?”. Sim, entende- governo desqualifica como “racista” dos preenchidos por mouros brancos”, Eles dizem que estão lutando contra os
me ensinado tudo sobre o inferno dos vizinho só porque, cansado de esperar Perthus no final de janeiro, exclama no Camps sur la plage, un exil espagnol [Campos na mos, especialmente porque nos últi- qualquer distinção entre bidans e ha- acrescenta o sociólogo Amel Daddah. estrangeiros sem documentos, mas na
praia, um exílio espanhol], Autrement, Paris, 1995,
campos de concentração”. Segundo madeira para construir barracas, ele Ce Soir: “Nós desviamos os olhos dessa p.25. mos três dias já ouvimos essa mesma ratins, o que faz a proporção de mou- Seria essa desigualdade particu- verdade querem nos pegar! E, se você
ele, os “internados” eram “tratados decidiu buscar por conta própria cani- assustadora exibição das misérias hu- 7 Em 27 de março ocorreu a rendição dos exércitos explicação pelo menos dez vezes. Com ros na população parecer muito maior larmente pronunciada em Nouak- reivindicar seus direitos como cida-
pior do que prisioneiros de guerra”. ços para fazer fogo durante a noite”. manas. Tudo o que poderia ser dito so- republicanos. No dia 28, os franquistas entraram em o mesmo gesto do indicador confir- do que a de negro-africanos – o que é chott, cidade que reúne um quarto da dão, apanha na hora”. Amadou acres-
Madri; no dia 30, em Valência e Alicante. No dia 31
Madeleine Jacob assim se expressa, No Le Libertaire, Doutreau demora- bre o lamentável êxodo e sobre a atitude foi a vez de Almeria, Cartagena e Murcia serem ocu- mando que a pigmentação da pele e o certamente verdade, mas obscurece o população e onde se concentram to- centa: “A única maneira de escapar é
em 17 de fevereiro, no Messidor: “Tanto -se no sentimento experimentado pe- ainda mais lamentável do governo esta- padas. Em 1º de abril, Franco anunciou no rádio: “La pertencimento a um desses três gru- fato de, entre os mouros, os haratins dos os males do país – analfabetismo, pagando. Por 4 mil uguias [R$ 404],4
quanto tive o prazer de homenagear a los espanhóis diante dos soldados ma- ria abaixo da verdade!”. Em meados de guerra está terminada” (“A guerra acabou”). pos são aqui uma obsessão. serem muito mais numerosos. desemprego da população jovem, de- eles te liberam. Mas onde encontrar os
8 Simone Téry, La Porte du soleil, posfácio de Anne
humanidade dos guardas móveis que grebinos: “Com uma rara falta de tato, fevereiro, Ribecourt se pergunta, em Mathieu, L’Harmattan, Paris, 2018, p.332. A Mauritânia é um país estranho! Primeira rodada do chá de menta sigualdade, pobreza? Não, em absolu- 4 mil? Então acabo passando a noite na
acolheram os refugiados há duas se- o governo francês designou para a Amélie-les-Bains, no mesmo jornal: 9 Ibidem, p.334. Um território vasto (quase duas vezes de Ahmed, engolido de uma vez como to. Em Aleg, cidadezinha de 10 mil ha- cadeia”. Teriam, no entanto, realmente
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aonde ir esses jovens habitantes da pe- se engana com esses arrependidos de lista Mariem Mint Derwich, uma das zem que a Constituição se baseia na tar nesse acordo financeiro”, retruca contratados. “O rap permite passar rap de sucesso formado por mouros trel mais conhecida internacional-
riferia de uma cidade – assim como o araque. “Está vendo aquela mesqui- raras personalidades, assim como sua xaria, mas não a aplicam!”, lamenta Mohamed Fall Ould Bah. “Para mim, é uma mensagem, falar sobre a miséria brancos. Talvez precisamente porque mente, “às vezes eu falo de amor, o que
resto do país – que não tem nenhum ta?”, lança Mamadou da vitrine de sua prima, Mekfoula Mint Brahim, que Salem, o mecânico de Kaedi, referin- mais como uma moutaraka, uma es- da vida. Esse é o único modo de nos li- mouros e cantando em hassaniya, eles pode ser meio chocante. Tenho até um
bar, nenhum cinema, nenhum teatro, loja de costura, no bairro de Arafat, um ousam desafiar publicamente o “fana- do-se ao uso da amputação como cas- pécie de pacto de não agressão que vrarmos do peso que carregamos”, ex- rapidamente atraíram a ira do regime, texto sobre câncer de mama, que é um
nenhuma sala de concerto e nenhuma dos maiores de Nouakchott. “Ela cus- tismo ostensivo” em curso em seu tigo. “Porque, se fosse aplicada, os existe no islã: você nos deixa em paz, plica El Hajj Adama Fall, diretor do Zik que os levou ao exílio. assunto tabu aqui, o que faz muitas
biblioteca? Passados sessenta anos da tou 5 milhões de uguias [R$ 50 mil], país. Muito ativas no Facebook, ambas mouros brancos perderiam as mãos! deixamos você em paz.” Melo, um famoso estúdio de Basra. mulheres morrerem por causa da
saída do colonizador francês, o único mas o homem que mandou construí- vêm de uma grande família de guer- As pessoas do Estado são um bando de A presença em Nouakchott do anti- “Com 5 mil uguias [R$ 51], pagam-se SEM PODER DIZER A PALAVRA “RACISMO” doença. Mas há outros assuntos, por
local na Mauritânia que tem uma ofer- -la arrecadou pelo menos 10 milhões reiros, o que as torna mais visíveis e, ao ladrões que rouba o povo. Eu sou a fa- go mufti de Osama bin Laden, Abou duas horas de estúdio e, com mais 5 “Com o rap, podemos dizer quase exemplo, o casamento entre uma mou-
ta cultural regular é o Instituto Francês nos Emirados Árabes Unidos...” mesmo tempo, lhes assegura alguma vor de que cortem as mãos dos ladrões! Hafs, confortavelmente instalado em mil, o beatmaker”, explica Lola Eva, tudo”, explica Monza (Limam Kane é risca [mulher moura branca] e um me-
de Nouakchott. Alguns estádios, par- A maioria das crianças maurita- proteção. “A Arábia Saudita está se Assim, ninguém vai roubar.” Reconhe- uma bela casa do centro da cidade, uma das raras rappers mauritanas. seu nome verdadeiro), ex-rapper que nestrel ou haratin. Esse é um assunto
ques e cinemas antigos às vezes são nas, meninos e meninas, inicia a esco- abrindo, enquanto nós caminhamos cido em 2007, o Rassemblement Natio- também poderia ser um elemento da “Com 10 mil [R$ 101], você consegue hoje é diretor de estúdio e organizador que me toca, mas, se eu cantar, causará
disponibilizados para concertos de laridade decorando o Corão, em uma para ser o museu do wahabismo histó- nal pour la Réforme et le Développe- explicação. Para o advogado Moha- gravar um título.” há treze anos do festival Assalamale- escândalo, e posso ter problemas. En-
música tradicional ou de hip-hop. das muitas mahadir (plural de mahda- rico!”, ironiza Mariem. A jornalista ment (RNRD, União Nacional pela med Ould Moine, “o sequestro de No dia a dia, Lola Eva trabalha com koum. “Mas existem algumas linhas tão prefiro não falar sobre isso.”
“De vez em quando, reunimos vá- ra, escola religiosa tradicional), o or- Moussa Ould Ahmed acrescenta que, Reforma e o Desenvolvimento / Ta- Mkhaitir talvez seja parte do acordo seu nome real, Hawa Malam Coma, vermelhas. Por exemplo, você não po- Entre os “pássaros” de Basra, Ab-
rias pessoas e alugamos um aparta- gulho do país. Para muitos, esse é um “ao mesmo tempo, assiste-se a uma wassoul, termo que designa o aproxi- entre a Al-Qaeda e o governo. De qual- dando cursos de informática para de pronunciar a palavra ‘racismo’ dallah é o verdadeiro artista, e não
mento por uma noite”, conta Abdallah. dos raros livros que lerão na vida. abdicação total dos intelectuais diante mar-se de Deus por diversos meios), quer forma, para a Al-Qaeda, a Mauri- adultos em uma empresa do Kuwait. nem falar sobre a escravidão, já que, tem medo de nada. “Meu nome artís-
“Instalamos um sistema de som, abri- “Posso garantir que nenhum dos meus desse populismo religioso encorajado partido islâmico afiliado à Irmandade tânia é uma terra amiga”. Por fim, há Jovem mãe, ela ganha 5 mil (novas) oficialmente, ela não existe mais na tico é AB. Eu já tenho uma dezena de
mos um evento no Facebook, e é uma alunos de graduação leu um único ro- pelos homens no poder, apesar de seus Muçulmana egípcia e considerado ainda quem destaque o fato de que uguias (R$ 505) por mês. “Antes, eu Mauritânia [risos]. Se você quer de- músicas. Estão todas aqui [ele mostra
grande festa! Não tenha dúvida de que mance na íntegra!”, lamenta Idoumou elogios a um islã moderado”. moderado, enfrenta dificuldades para muitas autoridades mauritanas têm trabalhava como secretária em uma nunciar a tomada das riquezas do país o celular de tela rachada]. Só preciso
muitos bidans vão correndo, inclusive Mohamed Lemine Abass, professor de Foi nesse contexto que um enge- mobilizar as massas nesse país onde laços de sangue, por meio de sua tribo, pequena empresa dirigida por um por um punhado de corruptos, pode editar as imagens, e depois coloco tu-
muitas garotas. Assim que entram, elas Literatura da Universidade de Nouak- nheiro de 31 anos, Mohamed Ould nenhum partido, nem os oriundos dos com combatentes malineses e até ar- mouro branco. Mas, quando eles te fazer isso, mas sem designar precisa- do no YouTube!” A noite cai. Antes de
tiram o véu e todos se divertem.” E só chott. Nas conversas, duas expressões Mkhaitir, foi condenado à morte, em movimentos marxistas da década de gelinos. “Nós pertencemos acima de dão um emprego, acham que você per- mente o presidente da República.” partirmos, o jovem rapper canta dian-
bebem chá e refrigerante? – pergunta- se repetem incessantemente: “Somos 2014, por “apostasia” (artigo 306 do 1970, se pronuncia pela abolição da xa- tudo a uma tribo, não a um Estado”, tence a eles. Meu diretor logo me fez Uma linha vermelha, justamente, que te de seus amigos um de seus textos,
mos de maneira ingênua. O álcool é es- todos muçulmanos” e “No Corão, diz- Código Penal). Seu crime? Ter feito, em ria como fonte do direito. explica um mouro influente. “A fron- entender que, se eu quisesse manter o Ewlad Leblad ousou atravessar. Em escrito em francês: “Eles mentem pa-
tritamente proibido na República Islâ- -se que...”. Em geral, elas são utilizadas seu mural do Facebook, uma compa- Obsessão religiosa, escalada do teira entre o Mali e a Mauritânia é uma meu emprego, teria de dormir com ele. março de 2019, dois famosos bloguei- ra nós / Eles nos matam / Eles nos
mica da Mauritânia (nome oficial do com o fim de dar uma explicação “ra- ração possível entre o racismo que so- wahabismo, reivindicação da xaria, criação colonial, ela não nos diz res- Então me demiti.” Ser mulher e, além ros foram presos por ecoarem uma in- odeiam fingindo que nos amam / Eles
país), cuja Constituição proclama em cional” para cada ato da vida de cada fre hoje na Mauritânia a casta dos exacerbação das desigualdades so- peito. O povo da Al-Qaeda é minha tri- disso, rapper: uma verdadeira luta pa- formação que circulava na mídia dos dizem que são muçulmanos / Mas
seu preâmbulo que “o islã é a única um, bem como para tudo o que lhe ma’allemine – os ferreiros, sua origem ciais... À primeira vista, todos os ingre- bo, são meus primos.” Entre essas tri- ra essa artista que só consegue viver Emirados Árabes de que a polícia continuam derramando sangue / Eles
fonte do direito”. Abdallah morre de rir. acontece. – e eventuais posições discriminató- dientes parecem fazer da Mauritânia bos, a de Reguibat, de origem berbere, assim porque o marido a apoia “100%”. apreendera, em um banco de Dubai, prendem inocentes / Eles nos proí-
Mas, antes de explicar por que, todo rias do profeta Maomé, que perdoava um cadinho do terrorismo islâmico. mas hoje de língua árabe, ilustra bem “Aqui, quando você diz ‘rapper’, as US$ 2 bilhões pertencentes ao presi- bem de viver a nossa vida / Mas quem
mundo já se levantou. “Não saia daí, já NOTÁVEL AUSÊNCIA DE TERRORISMO alguns de seus inimigos e recusava o Mas não é isso que se passa, o que nos a complexidade das relações de solida- pessoas pensam: garota perdida, dro- dente da Mauritânia. são eles...? / Mas quem são esses mou-
voltamos!” São 5 da tarde, a hora da asr, Ahmed, 25 anos, mora em Dar- perdão a outros. Algumas semanas obriga a rever qualquer representação riedade entre as populações do oeste gada, que não é apresentável, que dor- Os cantores mouros, brancos ou ros brancos...?”.
terceira oração do dia, e todos correm -Naim, outro bairro miserável de após a publicação dessas reflexões, esquemática dos países muçulmanos. do Saara e do Sahel. me com todo mundo. No caso dos ra- negros, são relativamente raros nessa
para a mesquita. Menos de dez minu- Nouakchott. Apesar de ter ensino mé- no final de 2013, a situação ficou in- Desde 2014, o G5 Sahel (Mauritânia, De volta a Basra, com os jovens “li- pazes, eles são a própria imagem do cena hip-hop amplamente dominada *Pierre Daum é jornalista.
tos depois, estão de volta. “Agora posso dio completo, ele está desesperado em controlável. Dezenas de milhares de Mali, Burkina Faso, Níger e Chade) lu- vres como pássaros”. Terceira e última bandido...” pelos negro-africanos. Isso porque,
explicar. Aqui tudo é proibido, mas busca de emprego. Enquanto isso, so- manifestantes encheram as ruas de ta contra os grupos jihadistas na re- rodada de chá, o mais doce de todos, Isso é confirmado por Senor CHK, também aqui, a sociedade é dividida, e
com dinheiro tudo é possível: álcool, brevive dando aulas em domicílio, a Nouakchott e Nouadhibou aos gritos gião, com o apoio do Exército francês e que ajuda a “favorecer as trocas”. A jovem bidan de uma família modesta cada grupo ouve sua música. Para os 1 Remi Carayol, “Mauritanie: la colère noire” [Mauritâ-
prostitutas, haxixe, tudo. E isso não 150 uguias (R$ 1,50) por hora: “Como de “Morte para Mkhaitir!”. A senten- a ajuda financeira da União Europeia, prática religiosa e a tradição do chá de que cresceu em Dar-Naim, um dos mouros brancos, a dos menestréis, nia: a ira negra], Jeune Afrique, Paris, 25 nov. 2011.
impede ninguém de ir à mesquita!” não tenho apoio, não consigo empre- ça acabou sendo comutada para dois Estados Unidos e Arábia Saudita; nes- hortelã servido em três vezes consti- bairros mais pobres de Nouakchott: uma música tradicional apreciada sob 2 Índice publicado pela The Walk Free Foundation
(Nedlands, Austrália) em cooperação com a Orga-
De todos os países da UMA, a Mau- go. Mas estou convencido de que, se anos de prisão, sem que o engenhei- se grupo, a Mauritânia aparece como tuem os dois mais importantes ele- “Quando minha mãe soube que eu fa- a tenda pelas grandes famílias, que, al- nização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organi-
ritânia é o que tem a mais profunda Deus quiser, ninguém pode me impe- ro, que já cumpriu três, seja libertado. o país mais pacífico. É verdade que, mentos compartilhados pelo conjunto zia rap, ela me fez jurar que eu pararia! guns anos atrás, “possuíam” cada qual zação Internacional para as Migrações (OIM). Dis-
prática do islã. “O islã está presente dir de conseguir um cargo. Na Mauri- Ele ainda definha em uma prisão se- entre 2007 e 2009, alguns atentados, dos mauritanos. Abdallah continua: Então, mudei meu nome artístico e ti- seu próprio menestrel; para os hara- ponível em: <www.globalslaveryindex.org>.
3 Ler Amel Daddah, “Mauritanie, les héritiers de l’es-
em nossa vida como a água que bebe- tânia, somos muçulmanos, acredita- creta de Nouadhibou, totalmente iso- reivindicados pela Al-Qaeda no Ma- “Na verdade, não somos nada livres. rei minha foto do meu canal do YouTu- tins, o medh, cantos religiosos, ou o clavage” [Mauritânia, os herdeiros da escravidão],
mos e o ar que respiramos”, afirma mos que é Deus quem decide nossa lado do mundo. greb Islâmico (AQMI), foram perpe- Nossa única liberdade é o rap”. Há uns be. Aqui há muita injustiça! Todos os redh, mais dançante. E, para os negro- Le Monde Diplomatique, nov. 1998.
Mohamed Fall Ould Bah, diretor do sorte. Se não pensássemos assim, es- Hoje, apesar de a tensão ter dimi- trados no país – incluindo o assassina- bons quinze anos, o hip-hop de fato altos cargos são reservados para pes- -africanos, o rap. Tanto entre os 4 Ele fala em uguias antigas, como todos com quem
conversamos. As novas foram colocadas em cir-
Centre d’Études et de Recherches sur taríamos em guerra! Deus nos ajuda a nuído, ainda há muita gente que pede to de quatro turistas franceses perto ganhou uma importância considerá- soas de famílias importantes. Meus menestréis como entre os músicos ha- culação em 1º de janeiro de 2018, a uma taxa de 1
l’Ouest Saharien (Ceros, Centro de Es- ficar calmos”. Seu sentimento religio- sua cabeça. “Ele insultou o profeta, de- de Aleg, em dezembro de 2007, cau- vel entre a juventude. Hoje, cada bair- ídolos são o grupo Ewlad Leblad. Eles ratins, mantém-se a prudência em re- para 10.
tudos e Pesquisas sobre o Oeste do so – sua queixa – responde ao de ve morrer!”, afirma serenamente Fati- sando inclusive o cancelamento do ra- ro de Nouakchott possui vários estú- são reais! Eles enfrentam o presiden- lação aos assuntos abordados. “Em mi- 5 Ver Zekeria Ould Ahmed Salem, “Les mutations pa-
radoxales de l’islamisme en Mauritanie” [As parado-
Saara). O ritual das cinco orações Mokhtar, mecânico em Kaedi: “Aqui, matou Hamady, presidente de uma as- li Paris-Dacar. Mas desde então, nada dios de gravação, alguns deles te”. O Ewlad Leblad (“Crianças da Ter- nhas canções”, explica em francês xais mudanças do islamismo na Mauritânia], Cahie-
marca o ritmo da vida cotidiana dos todo dia vemos filhos de bidans diri- sociação nacional de pais de alunos, a mais, ou quase nada. constituídos por selos com músicos ra”, em árabe) foi o primeiro grupo de Noura Mint Seymali, a cantora menes- rs d’Études Africaines, n.206-207, Paris, 2012.
homens que, ao chamado do muezim, gindo um Toyota V8 de 18 milhões [R$ qual admite, como todas as pessoas Como explicar essa calma que rei-
saem dos carros e se ajoelham nas cal- 182 mil]. Já nós, nem trabalhando trin- com quem conversamos, nunca ter li- na há dez anos, sobretudo consideran-
çada, ou se dirigem para a mesquita ta anos poderíamos comprar um pneu do o texto em questão. Salek Ba, um do que a Mauritânia compartilha mais
mais próxima. Nos últimos vinte anos, desse carro! Mas eu digo a mim mes- velho advogado da ordem de Nouak- de 2 mil quilômetros de fronteira com
o número de locais de culto aumentou mo: ‘É Deus que me dá o que como, Ele chott, inflama-se: “Eu jamais poderia o perigoso Mali? Para essa pergunta,
vertiginosamente, graças aos petro- me ajuda a suportar o que vejo, Ele me ser advogado de um sujeito como cada um tem uma resposta, sem que História da solidão Poesia para quê? As raízes clássicas
dólares das monarquias do Golfo. Se- ajuda a suportar minha condição mi- Mkhaitir! Antes de ser jurista, sou mu- seja realmente possível julgar sua per- e dos solitários Em um mundo que tecnologia de ponta domina da historiografia
gundo o cientista político Zekeria serável’. Por que não vou roubar? Por çulmano! Eu acredito mais no islã do tinência. Para alguns, o Exército teria Desde a Antiguidade, a oposição entre corações e mentes, qual é o espaço que cabe à moderna
Ould Ahmed Salem, em 2010 o país ti- causa da religião”. que na justiça”. Na época, apenas dois fornecido enormes esforços de moder- convivência e isolamento poesia? Diante dessa
questão, o literato Carlos Este livro reúne as célebres
nha 7.650 desses locais, 4 mil deles em Regada com o dinheiro do Catar, advogados, Fatimata MBaye e Moha- nização, com a ajuda financeira da vem sendo pensada: o conferências do historiador Arnaldo
homem é um “animal Felipe Moisés regressa a
Nouakchott.5 Hoje esse número deve da Arábia Saudita e dos Emirados Ára- med Ould Moine, ousaram assumir a União Europeia – há quem sugira, Platão e Confúcio e Momigliano apresentadas na década
social”, mas não deixa de de 1960 em Berkeley. Nestes ensaios
ser muito maior, embora não haja da- bes Unidos, que, além de financiarem defesa do engenheiro, o que lhes ren- aliás, que o governo exagerou a amea- ser amante dos encantos caminha ao lado da
dos disponíveis. mesquitas, oferecem bolsas de estu- deu insultos e ameaças de morte. Nos ça islâmica a fim de obter fundos do poesia até os dias atuais, de reconhecida erudição, o campo
do isolamento. Solidão da historiografia clássica e
“São operações comerciais”, diz dos para a formação de jovens imãs bairros pobres, algumas pessoas co- bloco europeu, sempre pronto a gran- física e psicológica, buscando apreender
elementos que contemporânea é integrado,
Bah. “Empresários mauritanos fazem nesses mesmos países, a Mauritânia mentam: “É porque ele é ma’allem des despesas quando se trata de “luta solidão voluntária e dissecado e exposto em toda sua
aplicada como pena extrapolam a produção
contato com muçulmanos do Golfo está, para algumas pessoas, mergu- [ferreiro] que passou por tudo isso. contra o terrorismo” ou “programa de lírica em si e fornecendo apaixonante complexidade.
criminal, refúgio e
que estão com a consciência pesada. lhando em um retrocesso preocupan- Muitos bidans das grandes famílias desradicalização”. Outros, mais nu- maldição: o historiador um panorama profundo
Para serem perdoados diante de Deus, te. “Nas áreas periféricas, as associa- dizem coisas muito piores [sobre a re- merosos, falam em acordos secretos Georges Minois retraça do lugar da poesia ao Produzir conteúdo
esses bilionários dão esmolas de al- ções financiadas pelos países do Golfo ligião muçulmana], e nada acontece entre o governo e os jihadistas estabe- em detalhe a história da longo dos séculos – mais Compartilhar conhecimento.
guns milhares de dólares, dedicados à estão ajudando os pobres e, em troca, com eles”. Outras, pelo contrário, e lecidos no Mali, que receberiam malas dubiedade dessa racional que passional, Desde 1987.
condição humana. ele diz. ww
www.editoraunesp.com.br
construção de uma mesquita para os pedindo às mulheres que usem o ni- são muitas, mostram-se indignadas de dólares em troca de sua não interfe-
pobres da Mauritânia.” Mas ninguém qab [véu completo]!”, protesta a jorna- com a não aplicação da lei: “Aqui, di- rência. “Tenho dificuldade em acredi-
26 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2019 AGOSTO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 27

PESO DO CONTROLE SOCIAL, PERSISTÊNCIA DOS PRECONCEITOS

A difícil afirmação
nação masculina se encontram até lação à religião. Dizem que o casa- você deve sair desse modelo do ‘arch [o Resta então a questão problemáti-
nas relações homoeróticas, já que mento na religião é uma coisa benéfica vilarejo, a grande família ou até o clã ca dos direitos LGBT+ na Argélia. Ain-
muitos têm tendência a se apresentar do ponto de vista relacional, amoroso, tribal]. Eu estou convencido de que é da que não haja campanhas de repres-
como ativos: uma maneira de conser- psicológico e em relação à sociedade”. preciso ter a coragem de abandonar são comparáveis às observadas em

homossexual na Argélia
var sua dignidade de homem e cons- Além do fato de que cumprir assim um essa família que te engole. E, se hou- certos países subsaarianos, os atos ho-
truir sua virilidade sobre a exclusão de dever religioso que equivale à metade vesse uma economia e um mercado de mossexuais são passíveis de uma mul-
tudo o que poderia ser vinculado à fe- do que devem ao Criador, os homens trabalho que funcionassem, com aces- ta de 500 a 2.000 dinares (R$ 15 a R$
minilidade. No entanto, na intimidade projetam no casamento sua aspiração so a trabalho e moradia, e uma mobili- 60) e de dois meses a dois anos de pri-
da alcova, os papéis se invertem mais a uma forma de estabilidade social, de dade mais fácil, as pessoas acabariam são, segundo o código penal (as penas
frequentemente do que se imagina... sucesso e de realização. Ao contrário, assumindo mais sua homossexualida- são agravadas se um dos parceiros for
Em um país marcado por restrições sociais e religiosas, assim como por uma visão congelada da virilidade, Enquanto na rua a paquera passa eles imaginam a vida dos gays como de. Mas, culturalmente, vivemos aglu- menor). Além disso, o Estado impede a
a homossexualidade masculina segue clandestina e, em teoria, reprimida pela lei. Entretanto, a abertura para o mundo, pelo olhar, às vezes sem troca verbal, e uma existência de abusos, vergonha e tinados: no seio da mesma família, criação de associações de defesa dos
especialmente graças à internet e às redes sociais, permite aos homens envolvidos vencer o obstáculo da autorrejeição os papéis se determinam pela aparên- solidão. Ao antagonismo implacável uns sobre os outros. E existe uma de- direitos humanos; os coletivos sofrem,
cia, a internet e os sites de encontros desses dois modos de vida (que se vin- pendência financeira: o papai tem então, para se constituírem na clan-
POR ROSE SCHEMBRI*
autorizam uma comunicação mais cula essencialmente à representação uma parcela de terreno, ele te dá um destinidade. O movimento de 22 de fe-
franca, como se a desencarnação per- social) se acrescenta o fato de os mo- pedaço, você constrói sua casa ao lado vereiro permitiria uma revolução para
mitisse à linguagem se fazer mais pre- delos de casais gays argelinos que vi- da dele, é assim. Continuamos man- os LGBT+? Em todo caso, a contesta-
cisa, mais livre. Sites e aplicativos espe- vem juntos serem muito raros. tendo esse modo de vida”. Em seu ra- ção já estremeceu um sistema político
cializados, como Grindr e GayRomeo, ciocínio, Slimane se aproxima das desgastado. Se a população se une pa-

N
as ruas de Oran, um carro pas- modelos positivos. “Marco, o persona- assim como as redes sociais, oferecem conclusões do historiador norte-ame- ra lutar contra o patriarcado e o peso
sa, janelas fechadas, tocando gem de Degrassi [série canadense que a possibilidade de travar contatos com ricano John D’Emilio, para quem o das proibições religiosas que oprimem
uma canção de raï a todo volu- aborda de maneira realista as questões menos riscos, ao mesmo tempo que A homossexualidade, surgimento de uma identidade gay nos (inegavelmente) a sexualidade de to-
me: “Você me ama, ok, bebê / e os problemas da adolescência], mu- preservam o anonimato. Assim, a rela- quando evocada, é Estados Unidos coincidiu com as con- dos, então os gays se sentem mais li-
Finjo que acredito, habib / Meu cora- dou minha vida: eu entendi que isso ção sexual não está mais sujeita aos dições econômicas que permitiram vres para reivindicar sua diferença.
ção me diz para te amar, mas eu sei que existia, ser gay”, confessa brincando acasos dos encontros fortuitos.
apresentada como que isso acontecesse: trabalho assala- Principalmente em 10 de outubro, dia
você é mau”. Para o jovem que dirige o Amine, um estudante de 23 anos. uma patologia que riado e independência em relação ao dos LGBT+ na Argélia desde 2007, cuja
carro e que se diz heterossexual, a Cafés, hammams, cinemas, bares, O EXÍLIO, UMA SOLUÇÃO POSSÍVEL necessita dos cuidados núcleo familiar.5 celebração por enquanto permanece
orientação sexual de Cheikh Mami- cabarés, discotecas e até mesmo a rua: Em 2005, a demógrafa Zahia Oua- de um psiquiatra Só que o longo processo que D’Emi- confinada às redes sociais.
dou, que transparece através das letras tantos espaços de encontro possíveis dah-Bedidi escreveu em um artigo lio descreve começou no século XVIII,
de suas músicas e de sua aparência físi- entre dois homens. Se basta um sim- sobre o celibato: “O casamento, na
ou do imã com a Revolução Industrial, e continua *Rose Schembri é socióloga.
ca, não causa nenhum problema. “Nor- ples olhar para encontrar um parceiro, tradição muçulmana e na legislação hoje em um espaço cultural bem dife-
mal”, ele diz, “a música é boa, é só isso as coisas se complicam quando se argelina, constitui o princípio de ba- rente do da Argélia, ainda que o país
que conta, né?” Todos sabem que al- busca um “canto”, quer dizer, um local se da família e serve de plataforma Esse conjunto de representações seja muito aberto para o mundo e que 1 Sobre essa tese e sua refutação, cf. Joseph Mas-
sad, Desiring Arabs [Desejando árabes], The Uni-
guns cantores têm comportamentos para ter uma relação sexual.3 Para os para qualquer organização das rela- conduz muitos homens a se confor- o processo de globalização seja inevi-
© Freepik versity of Chicago Press, 2007, e Frédéric Lagran-
particulares, mas isso faz parte do fol- que dispõem de um apartamento, as ções entre os indivíduos e a socieda- mar à norma social, ainda mais por- tável. Fundamentalmente, as relações ge, Islam d’interdits, islam de jouissance [Islã de
clore dos cabarés, essas boates de raï coisas são simples, mas os salários são de. Ele é considerado ao mesmo tem- que a obediência à vontade dos pais é que o indivíduo mantém com a socie- proibições, islã de prazeres], Téraèdre, Paris, 2008.
2 Mariem Guellouz, “Homosexualité masculine dans
consideradas locais onde álcool, prosti- baixos e os aluguéis, caros; a falta de po um dever religioso, um ato social e incondicional. A preponderância da dade, em particular com a família, les pays du monde arabe: une question linguisti-
tuição e homossexualidade se cruzam, autonomia econômica tem um impac- jurídico e um ato pessoal tendo por autoridade familiar, ligada frequente- são diferentes nas sociedades oci- que?” [Homossexualidade masculina nos países
e onde são tolerados enquanto perma- to direto sobre a vida sexual e afetiva objetivo amor e afeto. Na sociedade mente a uma dependência financeira, dentais e nas sociedades magrebinas. do mundo árabe: uma questão linguística?], Mi-
roir/Miroirs, n.6, Paris, 2016.
necerem à margem da boa sociedade. dos indivíduos. Os mais pobres encon- argelina, o casamento sempre foi tido constitui um dos principais freios para Apesar de os conceitos de identidade 3 A questão também aparece nos casos de relações
Todo mundo sabe que a homosse- tram-se inevitavelmente mais vulne- como uma etapa incontornável da vi- a realização dos desejos individuais. gay e de orientação sexual que servi- heterossexuais fora do casamento. Ler Pierre
xualidade existe, mas os gays devem la primeira vez desejo por um homem, normal. Fazia escondido, porque era ráveis, pois, quando o espaço público é da de um indivíduo, principalmente Para poder viver na Argélia como gay, ram desde 1969 e da revolta por direi- Daum, “Sexe, jeunes et politique en Algérie” [Sexo,
jovens e política na Argélia], Le Monde Diplomati-
ficar restritos ao meio ao qual foram ou depois de sua primeira experiência proibido. A gente fazia e pronto, depois o único local onde se pode ter uma re- de uma mulher”.4 segundo Slimane, uma solução possí- tos dos clientes de um bar gay de No- que, ago. 2014.
designados, e prefere-se evitar o as- sexual, eles se consideraram uma ano- não falava a respeito.” lação sexual, eles enfrentam muitos Muitos homens confirmam essa vel é uma forma de exílio: “Para mim, va York, o Stonewall, serem às vezes 4 Ouadah-Bedidi Zahia, “Avoir 30 ans et être encore
sunto. A sociedade argelina é forte- malia da natureza – pois, até os anos riscos: a polícia, as agressões homofó- constatação. Para Karim, engenheiro vir de Mostaganem para viver em Ar- funcionais para algumas pessoas, célibataire: une catégorie émergente en Algérie” [Ter
30 anos e ainda ser solteiro: uma categoria emergen-
mente heteronormativa: a família, a 1990, não se falava em homossexuali- DISCURSO DESCULPABILIZADOR bicas, os roubos, mas também o risco solteiro que se aproxima dos 30 anos e gel já foi uma forma de exílio. Isso me como Slimane, não acontece a mes- te na Argélia], Autrepart, n.34, Paris, 2005.
escola, a religião, a lei, tantas institui- dade, ainda menos aos adolescentes. Mas com que palavras falar do de- sanitário, quando a relação é improvi- planeja se casar, “é toda uma pirâmide distanciou da minha família e de meus ma coisa para uma grande maioria 5 John D’Emilio, “Capitalism and gay identity” [Capi-
ções que inculcam desde o berço em Originário de Mostaganem (oeste), sejo homossexual no contexto norte- sada e os parceiros não têm preservati- que é construída sobre o casamento, próximos. Mudar de cidade ou de país, dos homens, que não procura fazer talismo e identidade gay]. In: Henry Abelove, Mi-
chèle Aina Barale e David M. Halperin (dir.), The
meninos e meninas a obrigação de se Slimane, de 35 anos, vive em Argel. Ele -africano? Segundo Mariem Guellouz, vos, sem falar da falta de higiene. em relação ao desejo de ter uma famí- o processo é o mesmo. Na Argélia de que suas práticas coincidam com Lesbian and Gay Studies Reader, Routledge,
conformar à norma, com o casamento é advogado e planeja viver na Espanha doutora em Linguística, “todos os ter- Quanto às práticas sexuais, elas re- lia e uma mulher, mas também em re- hoje, para que você possa ter sua vida, uma identidade sexual. Nova York, 1993.
e a procriação sendo considerados a com seu companheiro. Falando um mos para expressar a homossexuali- velam uma relação de gênero muito
realização final de uma vida adulta. A francês perfeito, ele analisa de manei- dade em árabe carregam uma carga marcada. “Aqui tem uma coisa. Quan-
homossexualidade, quando evocada, é ra muito lúcida as razões pelas quais semântica negativa. Isso quer dizer do encontramos uma pessoa no exte-
apresentada como uma patologia que experimentou um sentimento de iso- que a própria língua, em seu sistema, rior, com base no seu físico, sua cor de
necessita dos cuidados de um psiquia- lamento durante sua adolescência. carrega a ferida da discriminação. A pele, seus traços, sua maneira de falar,
tra ou do imã. Pode acontecer de o Oci- “Como não temos outros exemplos de língua não seria apenas um sinal de determina-se sistematicamente se ela
dente ser apontado como um local que homossexuais, temos esse sentimento homofobia; ela mesma é homofóbi- é ativa ou passiva. Isso tudo não é ver-
tenta exportar uma “identidade gay” de sermos únicos, então sentimos me- ca”.2 Por exemplo, um homossexual dade, mas quando você encontra al-
desconhecida na Argélia, com o risco do. E num primeiro momento, durante ganhará um nome feminino ou será guém, se você é mais oulid familia [fi-
de atiçar a homofobia das autoridades as primeiras relações sexuais, eu esta- chamado de attay, uma injúria que lho de (boa) família], você é passivo. E,
e das fileiras mais conservadoras da va o tempo todo no papel do passivo, significa literalmente “aquele que dá”. quanto mais marginal você é, mais vo-
população.1 Em julho de 2018, uma então nesse ponto também eu era dife- Quando o insulto é a única palavra pa- cê é ativo. Isso é ridículo, mas, enfim, é
parte da imprensa árabe denunciou, rente: meus parceiros representavam ra pensar em si mesmo, é frequente- assim. Se você é mais jovem, sem bar-
assim, o fato de a embaixada do Reino a normalidade, em um sentido, e eu mente doloroso se construir na adoles- ba, não é vulgar, você representa a mu-
Unido na Argélia ter levantado a ban- era diferente até nisso.” Foi bem mais cência. Para as jovens gerações, lher, então você é passivo.” Slimane re-
deira LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e tarde, graças aos canais de televisão nascidas depois dos anos duros da sume assim um conjunto de traços de
trans) para celebrar a organização de ocidentais, que ele teve acesso a um Guerra Civil (1992-2000), na era da in- oposição – que poderíamos completar
uma parada do orgulho em Londres. discurso sobre a sexualidade que lhe ternet e da TV a cabo, a situação foi enumerando clichês sobre a virilidade
A maioria dos gays junto aos quais permitiu compreender melhor seu de- bem diferente. As novas mídias, às – que, no imaginário coletivo, definem
realizamos nossa pesquisa testemu- sejo. “Havia um sentimento de culpa quais elas estão constantemente co- os indivíduos em uma relação de gêne-
nha que, na adolescência, se sentiu so- também”, acrescenta. “Eu me dizia nectadas, lhes oferecem um discurso ro que influencia a atribuição dos pa-
zinha no mundo. Quando sentiram pe- que era contra a natureza, que não era que não é culpabilizador e apresenta péis. A hierarquia dos sexos e a domi-
28 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2019 AGOSTO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 29

POR TRÁS DO MOVIMENTO NORTE-AMERICANO CONTRA OS RADARES

Na estrada, policial é rei


Motor Company organizou competi- Um de seus colegas havia sido espan- a segurança no trânsito precisava de Em 10 de julho de 2015, um oficial
ções de direção e produziu filmes de cado por um padre de batina. Tais in- profissionais treinados porque os ci- texano parou Sandra Bland por ela não
prevenção, tais como Hurry Slowly [Vá cidentes despertavam pouca simpatia dadãos tendiam a denunciar todas as ter dado seta. Depois de uma discus-
rápido devagar]; a National Automobi- entre os cidadãos; alguns até escre- infrações indiscriminadamente. Mas, são tensa, ele tirou a jovem do carro de
le Chamber of Commerce financiou viam para os jornais para tomar parti- como observou o diretor do departa- forma violenta usando uma pistola de
concursos de escrita para conscienti- do dos agressores. mento de transporte de Seattle, pode impulso elétrico e depois a deteve, es-
Uma interminável fita de asfalto desenrolada em direção ao horizonte: contrariamente ao que sugere a romântica imagem da zar o público sobre a segurança no haver “um bom motivo para contornar magando seu rosto contra o chão. Ela
estrada norte-americana, poucas atividades são tão controladas quanto dirigir. Hoje, muitos motoristas contestam os radares de trânsito. Já a polícia criou “comitês de uma regra de estacionamento”. foi encontrada morta em sua cela três
veículos; eles imaginam ser mais fácil escapar de agentes de carne e osso. Mas essa indulgência não está garantida a todos... segurança pública” (ou “comitês de vi- Desse ponto de vista, as câmeras, dias depois. Nesse mesmo ano, 27%
gilância”) compostos de cidadãos vo- totalmente desprovidas de capacidade dos cidadãos desarmados mortos por
POR SARAH SEO* luntários. Quando esses “vigilantes”,
27% dos cidadãos de discernimento, são piores que os ci- um policial foram abatidos como re-
como eram chamados, constatavam desarmados mortos dadãos. É assim que se deve entender a sultado de um comando na estrada.
uma infração, eles tinham de preen- por um policial foram crescente oposição a esses dispositi- Hoje, como na década de 1920, a
cher um formulário e remetê-lo ao co- abatidos como vos: o argumento de que o vídeo nega profusão de leis de tráfego para con-
mitê, que enviava uma carta ao delin- o direito de confrontar o acusador de- trolar a circulação transforma todos
quente solicitando sua cooperação.
resultado de um corre da crença de que pode haver em infratores, dando à polícia um
Depois de dois avisos desse tipo, o ca- comando na estrada uma razão válida, uma desculpa para imenso poder discricionário. Um estu-
so chegava às mãos da polícia. uma infração de trânsito. do foi realizado na década de 1990 em
Naquela época, os motoristas per- Nas cidades e estados que não pos- uma rodovia de Nova Jersey; quase to-
tenciam principalmente às classes pri- suem – ou não possuem mais – câme- dos os motoristas que a usavam ultra-
POLICE vilegiadas. Eles se viam como cida- Em 1922, o chefe da polícia de São ras, a solução é usar seres humanos. passavam em algum momento os li-
dãos respeitáveis e relutavam em Francisco defendeu a ideia de que os Por exemplo, o condado de Nassau mites de velocidade. Mas os negros,
admitir seus erros. Alguns ficavam ir- agentes de trânsito deveriam receber (Nova York) decidiu aumentar o núme- responsáveis por 13,5% dos motoris-
ritados com a menor orientação de treinamento especial, tendo em vista ro de patrulhas. As pessoas que prefe- tas, compuseram a metade dos condu-
trânsito, e até mesmo francamente “o papel que eles [iam] desempenhar rem a polícia aos radares, com o argu- tores presos. Do ponto de vista estatís-

O
movimento para proibir câme- veria agir. Em caso de acidente, a parte Dos livros de Sinclair Lewis (Free a desobedecer, em detrimento da se- agressivos no caso de uma multa. De na sociedade”. Com o advento do auto- mento de que os agentes poderiam tico, a chance de essa desproporção
ras de vigilância nas estradas que se considerava lesada abria um Air [Ar livre], 1919) ou de Jack Kerouac gurança pública. acordo com August Vollmer, chefe de móvel, ele explicou, “chegamos a um exercer seu poder com discrição, são acontecer por acaso é a mesma de nas-
está ganhando terreno nos Es- processo. Um juiz ou júri era responsá- (On the road, 1957) aos filmes Bonnie e Para controlar o tráfego, várias ci- polícia de Berkeley (Califórnia) de momento da civilização norte-ameri- aquelas para as quais o discernimento cer um bebê de 8 quilos. Daí o fato de
tados Unidos. Atualmente, os vel por decidir, estabelecendo assim Clyde – Uma rajada de balas (1967) ou dades decidiram recentemente recru- 1905 a 1932 e muitas vezes considera- cana” em que os cidadãos exigem um dos agentes é sinônimo de indulgência. essa “infração” ser comumente cha-
radares automáticos são usados ape- uma nova regra. Naquela época, expli- Thelma e Louise (1991), a cultura popu- tar seus cidadãos. Em Malibu, na Cali- do o pai da polícia moderna, um bom “julgamento calmo e analítico”. Em Elas não pertencem a minorias raciais. mada de “dirigir sendo negro” (driving
nas em nove dos cinquenta estados. cava em 1924 Roscoe Pound, reitor da lar tem constantemente apresentado o fórnia, os voluntários da “Patrulha agente de trânsito devia acumular “a sua opinião, um bom agente, mais que Foi uma verificação de rotina nu- while black).
Em junho de 2019, o Texas juntou-se faculdade de Direito de Harvard, o “di- automóvel como um símbolo de liber- Civil” são responsáveis desde 2010 por sabedoria de Salomão, a coragem de aplicar a lei ao pé da letra, tinha de ma estrada que serviu como detona- Assim, conscientemente ou não,
aos cerca de trinta estados que proí- reito consuetudinário” era o suficiente dade, um meio de fuga solitária. No denunciar infrações ao código de Davi, a força de Sansão, a paciência de exercer uma capacidade de aprecia- dor para a revolta do bairro de Watts, aqueles que rejeitam os dispositivos de
bem câmeras de controle de desobe- porque “a probabilidade de uma pes- entanto, ele está sujeito a um rígido trânsito (ou qualquer outra atividade Jó, o carisma de Moisés, a benevolên- ção, adaptando sua resposta a cada ca- em Los Angeles, em 1965. Em 11 de controle automático tendem a aumen-
diência ao sinal vermelho. soa derrubar outra conduzindo o cava- controle regulatório e policial. Desde o suspeita). Apresentados como “olhos e cia do bom samaritano, a fé de Maria, so: ignorar a infração, contentar-se agosto, policiais brancos prenderam tar as injustiças que acompanham o
Essa evolução encontra sua origem lo da família era baixa”.1 Segundo ele, início do século XX, não se pode dirigir ouvidos”, forças da ordem, eles podem a diplomacia de Lincoln e a tolerância com uma advertência, redigir um rela- um motorista negro que suspeitavam empoderamento das forças policiais.
em uma raiva vigorosa do cidadão. Em esse modo de coordenar os comporta- sem antes passar por um exame, obter usar carros de polícia totalmente equi- de Confúcio”. As autoridades munici- tório, efetuar uma prisão... “Todos os que estivesse bêbado. A operação de-
todo o país, os norte-americanos estão mentos sociais tornou-se obsoleto com uma licença de motorista, emplacar pados (exceto no que se refere a ar- pais logo perceberam que a tarefa exi- infratores da estrada não podem e não generou. O motorista, o irmão e a mãe *Sarah Seo é professora de História do Di-
pedindo às autoridades eleitas que se o advento do automóvel, sob pena de um carro, fazer um seguro. Em segui- mas). Em 2018, de acordo com o gia profissionais. devem ser tratados da mesma manei- foram espancados pelos policiais e a reito na Universidade de Iowa. Autora de Po-
queixem das contravenções. Eles fa- “impedir a circulação, colocar em risco da, é preciso respeitar os faróis, cur- Washington Post (19 maio 2019), os de- Em 1994, os agentes de trânsito de ra”, afirmava um especialista em segu- situação se transformou em motim. licing the Open Road. How Cars Transformed
zem essas reclamações na National a vida dos cidadãos e criar uma confu- var-se aos limites de velocidade e aos zoito voluntários da patrulha registra- Nova York trocaram seus uniformes rança rodoviária. A maioria dos espe- Um ano depois, quando as brasas mal American Freedom [Policiamento da estrada
Public Radio, que solicitou um psicó- são insuportável nas estradas”. comandos policiais... A menor viola- ram 9.140 contravenções. marrons por uma vestimenta azul. cialistas na época compartilhava haviam se extinguido, outro aconteci- aberta. Como os automóveis transformaram
logo para tentar entender essa fúria. Entre 1895 e 1929, o número de veí- ção dessas regras permite à polícia in- Em maio de 2019, o Conselho do Eles esperavam se parecer mais com dessa visão e recomendava aos poli- mento reavivou as hostilidades. Em a liberdade norte-americana], Harvard Uni-
Milhares se juntam à National Moto- culos motorizados que circulava nos terceptar o motorista, impor-lhe uma Distrito de Colúmbia também conside- policiais de verdade e se proteger das ciais certa clemência por medo de alie- agosto de 1966, Leonard Deadwyler, versity Press, 2019.
rists Association [Associação Nacional Estados Unidos passou de um punha- multa ou mesmo prendê-lo. E se, em rou permitir que os moradores regis- agressões. Todos os dias, eram de fato nar cidadãos respeitáveis. um negro de 25 anos, foi detido por ex-
dos Motoristas], o principal lobby do de protótipos para mais de 23 mi- uma verificação de rotina, ela suspeita trassem as contravenções por meio de alvo de cuspidelas, insultos ou objetos Quando, em maio de 2019, o Con- cesso de velocidade. Ele estava levan- 1 Para mais detalhes sobre as fontes históricas des-
automobilístico. lhões. O número de mortes nas estra- da presença de drogas – ou álcool, na um aplicativo eletrônico. Esses “cida- atirados. Em três anos, uma funcioná- selho do Distrito de Colúmbia consi- do ao hospital a esposa que estava te artigo, cf. Policing the Open Road. How Cars
Eles justificam suas reivindicações das explodiu: 500% entre 1913 e 1932. época da proibição –, pode revistar o dãos policiais” permitirão “multiplicar ria foi atropelada por um automóvel, derou a ideia de usar cidadãos para prestes a dar à luz. Um policial dispa- Transformed American Freedom [Policiamento da
estrada aberta. Como os automóveis transforma-
pela incapacidade desses dispositivos Projetadas para pedestres e veículos veículo. O culpado provavelmente os olhos que vigiam a rua”, explicou pa- tomou um soco no queixo e foi ferida controlar o tráfego, vários especialis- rou contra o jovem motorista, que ram a liberdade norte-americana]. Harvard Univer-
de impedir infrações – embora os estu- puxados por cavalos, as ruas foram re- acabará na prisão, com um antece- ra o New York Times (20 jun. 2019) o no braço com uma lâmina de barbear. tas expressaram opinião desfavorável: morreu nos braços da companheira. sity Press, 2019.
dos sobre o assunto sejam contraditó- pentinamente invadidas por carros es- dente criminal. Dirigir – ou simples- consultor que estava por trás da pro-
rios –, bem como pelas falhas do pro- tacionados e veículos circulando em mente estar em um automóvel – é na posta. Para aqueles que questionaram
cesso: as câmeras podem estar erradas alta velocidade. As autoridades, mal realidade um dos atos mais policiados a relevância de permitir que cidadãos
e impor multas indevidas, que depois preparadas para esse choque tecnoló- da vida cotidiana norte-americana. multem outros cidadãos, ele respon-
são muito difíceis de contestar. Além gico, reagiram enquadrando quase to- Com o advento do Código da Estra- deu: “Devemos estar prontos para ino-
disso, as contravenções não enrique- dos os aspectos dos deslocamentos da no início do século XX, quase todos var, porque o que fizemos até agora não
cem apenas os municípios, mas tam- motorizados. Além dos limites de velo- os cidadãos de repente se transforma- impediu que as pessoas morressem”.
bém as empresas que gerenciam o sis- cidade e da introdução de uma carteira ram em delinquentes – incluindo os No século XIX, os policiais, pouco
tema e recebem uma bonificação por de motorista, elas impuseram o uso de pedestres que atravessavam fora da numerosos, vigiavam especialmente
cada multa. No entanto, seria possível equipamentos de segurança, como fa- faixa. Em 1927, um jornal de Nova York os marginais: vagabundos, prostitu-
remediar isso sem desmontar todo o róis não ofuscantes e espelhos retrovi- se alarmava com a generalização dos tas, alcoólatras... O resto da sociedade
sistema: bastaria ajustar os parâme- sores. Também definiram, entre auto- crimes na estrada: eles ocorriam “em ficava sob o controle das organizações
tros das câmeras, simplificar o proce- móveis, charretes e pedestres, de quem bairros residenciais, nos centros das civis. As igrejas asseguravam o respei-
dimento de contestação e calcular a era a prioridade e fixaram a velocidade cidades e nos arredores delas. Eles to aos padrões morais, as associações
remuneração das empresas com base permitida para ultrapassar uma carro- [eram] cometidos tanto por crianças de comerciantes regulamentavam as
unicamente nos custos operacionais. ça ou um trólebus. Em Massachusetts, como por adultos, tanto por crianças relações empresariais, clubes diversos
No passado, cavalos, carroças, car- carros com mais de dez cavalos foram de rua como por comerciantes respei- trabalhavam pela manutenção da har-
ruagens e pedestres compartilhavam obrigados a ter pelo menos dois freios, táveis, tanto por meninas despreocu- monia social...
© Daniel Kondo

as ruas. Nenhuma lei regulamentava o enquanto em São Francisco o legisla- padas como por mulheres maduras”. Quando o automóvel apareceu, as
tráfego. Cada um cumpria uma regra dor chegou a definir “o ângulo que um As autoridades ficaram surpresas com autoridades recorreram logicamente a
de costume, que correspondia à ma- motorista deve adotar para virar de o fato de tantas pessoas habitualmen- essas organizações para convencer os
neira pela qual uma pessoa sensata de- uma rua para a outra”. te cumpridoras da lei terem começado cidadãos a obedecer às regras. A Ford
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PROFETAS DO COLAPSO TOMAM AS LIVRARIAS

O fim do mundo não vai acontecer


natureza e com os outros nas hortas piritualidade é uma realidade mais uma existência simples, de recuperar sistema. “Estou muito preocupado
de comunidades neorrurais? A consi- fundamental e universal que as reli- uma memória (contra a amnésia) e com a capacidade que esse conceito de
derar a ampla gama de correntes ca- giões”, escreve Servigne. “É mesmo sentidos (contra a anestesia), para ga- Antropoceno tem de reforçar essa ve-
tastrofistas, o discurso “colapsista” um fenômeno primordial que condi- nhar novamente em autonomia e po- lha farsa burguesa segundo a qual a
contém um pouco disso tudo. ciona sua emergência e que permane- der, para cultivar a beleza e a autentici- responsabilidade pelos problemas que
A perspectiva do apocalipse convi- ce muito indispensável para uma so- dade, e tecer laços reais com o selvagem emanam do capitalismo teria a ver
Agimos melhor com as costas na parede, quando não há mais escapatória e tudo desmorona? Essa tese é defendida da à ação, dizem eles. Resta ver a qual ciedade, mesmo na ausência de um reencontrado. Não há nada incompatí- com toda a humanidade”, observa Ja-
por algumas correntes ecológicas: a humanidade teria destruído o meio ambiente a ponto de provocar o colapso iminente delas. “Se mantivermos a atual taxa de sistema religioso.” Ele acrescenta: vel com viver um apocalipse e um ha- son W. Moore, professor da Universi-
da biosfera. Agora, seria o caso de se preparar para o futuro. Catastrofismo esclarecido ou pavor obscurantista? expansão da população e da produção “Existem espiritualidades não religio- ppy collapse”.6 Nada é menos certo, se dade de Binghamton e coordenador da
industrial até o próximo século, será o sas, laicas, até ateístas”. É uma boa de- mantivermos a definição de colapso World Ecology Research Network [Re-
POR JEAN-BAPTISTE MALET* colapso total de nossa civilização”, já finição da colapsologia, que propõe dada pelo ativista ambiental Yves Co- de de Pesquisa da Ecologia-Mundo].7
escrevia René Dumont em 1974 em À uma reconexão com a longa tradição chet, autor do posfácio do livro de Ser- Em lugar da noção de Antropoceno,
vous de choisir. L’écologie ou la mort [A do comunalismo utópico, reformulan- vigne e Stevens: “Trata-se de um pro- ele coloca a de Capitaloceno: as per-
escolha é sua. Ecologia ou morte] (Pau- do, para a secularização, a promessa cesso irreversível, após o qual as turbações climáticas provêm de um
vert). Na década de 1970, na França, milenarista de uma regeneração da necessidades básicas (água, comida, regime econômico baseado na extra-
cientistas ecológicos roubaram o tema sociedade pela catástrofe. Do Dilúvio moradia etc.) não serão mais forneci- ção de matérias-primas e na apropria-
da natureza de ruralistas conservado- às pragas do Egito, do Apocalipse do das a uma maioria da população por ção de energia não remunerada, uma
res, defensores do catolicismo tradicio- Novo Testamento às suras do Corão meio dos serviços regulados por lei”. predação há muito tempo aceita. É es-
nal, a fim de unir as questões social e anunciando terremotos, o recesso do “É exatamente isso que centenas de sa estratégia de uso barato de recursos
ambiental, dando origem a uma ecolo- sol, a caminhada das montanhas e os milhões de seres humanos já vivem: não renováveis, em que se baseia a
gia política ancorada na esquerda. Crí- mares borbulhantes, os monoteísmos 821 milhões de pessoas subnutridas; 1 acumulação ilimitada, que está che-
tico de muitos países socialistas tanto deram origem, nos últimos dois milê- bilhão de pessoas que moram em fave- gando ao fim, e não a humanidade.
quanto do uso do progresso técnico nios, a comunidades de “espera” que las; 2,1 bilhões sem acesso a serviços “Estamos experimentando o colapso
pelas sociedades capitalistas, Dumont vigiam os flagelos na esperança de que domésticos de água potável, quase o do capitalismo. Essa é a posição mais
militava pelo Terceiro Mundo e erguia eles levarão a uma ressurreição da so- mesmo número usando pontos diá- otimista que se pode adotar. [...] Não se
a bandeira da modernidade política. ciedade ou a um confronto final entre rios de água contaminada; 900 mi- deve temer esse colapso. Devemos
Quando esse engenheiro agrônomo re- o bem e o mal.4 lhões privados de banheiro. aceitar isso. Não é o colapso de pes-
corria ao registro catastrofista, tratava- soas e de edifícios, mas das relações de
-se para ele de introduzir no debate de poder que transformaram os seres hu-
© Raphael Baggas

ANTROPOCENO OU CAPITALOCENO?
ideias as causas da concomitante de- O apocalipse tem sua revista, e as manos e o resto da natureza em obje-
gradação da biosfera e das condições As perturbações perturbações climáticas, seus profe- tos postos em ação de graça para o ca-
de existência. Dumont visava explici- climáticas provêm de tas. A jovem Greta Thunberg leva em pitalismo”, observa Moore.
tamente “os ricos dos países ricos” e se um regime econômico conta o pessoal político paralisado pe- Um outro colapso é possível.
entregou a uma crítica aprofundada do lo medo de um erro de comunicação
capitalismo. Ele concluiu assim sua
baseado na extração de diante desse Messias 2.0. “Sou apenas *Jean-Baptiste Malet é jornalista e autor de
obra L’Utopie ou la mort! [Utopia ou matérias-primas e na uma mensageira”, diz a estudante sue- L’Empire de l’or rouge. Enquête mondiale sur
morte!]: “As sociedades de pensamen- apropriação de energia ca do ensino médio (Rejoignez-nous la tomate d’industrie [O império de ouro ver-

P
erturbações climáticas, extrati- destruídas, saqueadores vagueiam e sourt, Presses Universitaires de Fran- PROMESSA MILENARISTA to prepararam 1789: uma tarefa análo- não remunerada [Junte-se a nós], Kero, 2019). Cabelos melho. Pesquisa global sobre o tomate indus-
vismo desenfreado, desmata- matam, refugiados do clima afluem ce, 2018); Une autre fin du monde est Ambientalista e geógrafo, Dia- ga nos aguarda”. Essa ecologia política longos, túnica imaculada, medalhão trial], Fayard, Paris, 2017.
mento, erosão da biodiversida- em massa para a Europa. possible. Vivre l’effondrement (et pas mond argumenta que muitas civiliza- apoiada pela pesquisa científica ar- “paz e amor” ao redor do pescoço: na
de, multiplicação de desastres “Eu não quero que você fique cheio seulement y survivre) [Um outro fim do ções antigas teriam entrado em colap- mou uma crítica intransigente das pro- França, o astrofísico Aurélien Barrau
ambientais... A acumulação desses fa- de esperança, eu quero que você entre mundo é possível. Viver o colapso (e so como resultado das degradações messas não cumpridas da modernida- “É realmente possível abordar o fim promove seu livro de sucesso, Le plus 1 Jared Diamond, Effondrement. Comment les so-
tos, cada dia mais bem documentada em pânico. Quero que, como eu, você não somente sobreviver a ele)] (Pablo infligidas a seu ambiente natural. Ele de, do cientificismo e dos ideais do mundo de maneira secular? Nós grand défi de l’histoire de l’humanité [O ciétés décident de leur disparition ou de leur survie
[Colapso. Como as sociedades decidem sobre
pelos cientistas, trouxe ao debate pú- fique com medo todos os dias. E então Servigne, Raphaël Stevens e Gauthier convida as elites econômicas contem- liberais, sem no entanto mergulhar na não pensamos assim”, escrevem Ser- maior desafio da história da humani- seu desaparecimento ou sobrevivência], Galli-
blico uma preocupação candente: sob quero que você aja”, disse a ambienta- Chapelle, Seuil, 2018); L’Humanité en porâneas a fazer escolhas “racionais”, antimodernidade, no irracionalismo e vigne, Stevens e Chapelle em Une autre dade] (Michel Lafon, 2019), epônimo mard, Paris, 2006 (1. ed.: 2005). Leia Daniel Tanu-
o efeito de certas atividades humanas, lista sueca Greta Thunberg, iniciadora péril. Virons de bord, toute! [A humani- as da preservação do meio ambiente e na pseudociência. fin du monde est possible. Para os colap- de um chamado que reúne cineastas, ro, “L’inquiétante pensée du mentor écologiste de
M. Sarkozy” [O pensamento perturbador do men-
convulsões iminentes ou em anda- das greves estudantis contra as mu- dade em perigo. Meia-volta, volver!] do controle demográfico. Sua influên- Seus sucessores deram esse passo... sologistas, “o mito é mais forte que os rappers, diretores, atores, publicado tor ambiental de Sarkozy], Le Monde Diplomati-
mento estão levando ao colapso da danças climáticas, no Fórum Econô- (Fred Vargas, Flammarion, 2019); Plu- cia cresce, mesmo quando sua perti- “Na colapsologia, é a intuição – ali- fatos”; é preciso “reconciliar meditado- em 3 de setembro de 2018 na primeira que, dez. 2007.
civilização. mico Mundial de 2019, em Davos. Se tôt couler en beauté que flotter sans grâ- nência é questionada: em 2009, um mentada por sólidos conhecimentos – res e ativistas” e “mobilizar as pessoas página do jornal Le Monde com o sub- 2 Patricia A. McAnany e Norman Yoffee, Questio-
ning Collapse: Human Resilience, Ecological Vul-
Alguns proponentes dessa tese não consegue estimular uma mudan- ce. Réflexions sur l’effondrement [Me- grupo de pesquisadores especializa- que será primordial”, escrevem Servig- como na guerra”. Foi com esse objetivo título “O chamado de 200 personalida- nerability, and the Aftermath of Empire [Colapso
concebem o medo do apocalipse co- ça radical de curso nos líderes econô- lhor afundar de forma bonita que dos nas empresas que ele evoca pulve- ne e Stevens em Comment tout peut que Pablo Servigne lançou uma revista des para salvar o planeta”. O cientista questionador: resiliência humana, vulnerabilidade
mo um catalisador para a ação; outros micos do planeta, o tema do cataclis- flutuar sem graça. Reflexões sobre o rizou as teses do Colapso.2 Diamond s’effondrer (70 mil cópias vendidas). Pa- trimestral dedicada ao fim do mundo: avisa: “Estamos vivendo um cataclis- ecológica e as consequências do império], Cam-
bridge University Press, Nova York, 2009.
tomam nota da indolência do pessoal mo climático faz a alegria das livrarias. colapso] (Corinne Morel Darleux, Li- baseia-se equivocadamente no pro- ra eles, trata-se de se preparar para o Yggdrasil, distribuída em bancas de mo global”. A partir daí, “de um ponto 3 Pierre Charbonnier, “Splendeurs et misères de la
político e pensam no pós-desastre: “O No verão de 2019, as prateleiras que bertalia, 2019)... cesso de sociedades antigas em vez de colapso, tanto material como espiri- jornal e com 51 mil cópias impressas de vista estratégico, seria preciso des- collapsologie. Les impensés du survivalisme de
sucesso inesperado das teorias do co- abrigam os livros para ler na praia exa- A onda atingiu até o primeiro-mi- se voltar para as sociedades capitalis- tualmente, buscando a vida rural, fru- em papel reciclado vindo da Áustria. politizar o assunto. Se associarmos o gauche” [Esplendores e miséria da colapsologia. A
insensatez do sobrevivencialismo de esquerda],
lapso” (Le Monde, 5 fev. 2019); “Colap- lam uma fragrância de Armagedom: nistro francês: “Essa pergunta me tas modernas, apontam seus críticos. gal e contemplativa de “pequenas co- “Yggdrasil representa a árvore cósmica clima a uma visão muito à esquerda, Revue du Crieur, n.13, Paris, jun. 2019.
so, o começo do fim” (Libération, 7 nov. Comment tout peut s’effondrer. Petit perturba muito mais que algumas Para além das aproximações de munidades resilientes”, aquelas de na tradição nórdica”, explica seu edi- não faremos nada, porque há séculos 4 Henri Desroche, Dieux d’hommes. Dictionnaire
2018); “Colapsologia: a aposta do co- manuel de collapsologie à l’usage des pessoas podem imaginar. Se não to- um autor da moda, as questões-chave “transicionadores” que já praticam, tor, Yvan Saint-Jours, fundador da re- alguns estão esperando pela grande des messianismes et des millénarismes du Ier siè-
cle à nos jours [Deuses de homens. Dicionário de
lapso” (France Culture, 16 mar. 2019); générations présentes [Como tudo po- marmos as decisões certas, será toda colocadas pelo movimento “colapso- por exemplo, a permacultura. O “so- vista Kaizen, próxima a Pierre Rabhi.5 noite, e ela ainda não surgiu!” (Le messianismos e milenarismos do século I até os
“Yves Cochet: ‘A humanidade poderá de desmoronar. Pequeno manual de uma sociedade que entrará literal- lógico” poderiam ser resumidas da se- brevivencialismo”, esse movimento in- “Yggdrasil é a Árvore-Mundo que co- Point, 13 jun. 2019). dias atuais], Berg International, Paris, 2010.
ter desaparecido em 2050’” (Le Pari- colapsologia para uso das gerações mente em colapso, que desaparece- guinte forma: estimular o medo do dividualista e paranoico nascido nos necta o céu e a terra, os mortos e os vi- Quer tratem de apelos aos podero- 5 Leia “Le système Pierre Rabhi” [O sistema Pierre
Rabhi], Le Monde Diplomatique, ago. 2018.
sien, 7 jun. 2019); “Colapsologia: o fim presentes] (Pablo Servigne e Raphaël rá”, declarou Édouard Philippe em colapso é uma boa maneira de moti- Estados Unidos durante a Guerra Fria e vos”, acrescenta Servigne. sos sob o douramento de seus palá- 6 Pablo Servigne, Raphael Stevens e Gauthier Cha-
do mundo, uma oportunidade?” (Géo, Stevens, Seuil, 2015); Pourquoi tout va julho de 2018, num debate com Nico- var as pessoas e seus líderes a lutar que convida todos a enfrentar a noite Milenaristas leigos, os colapsolo- cios, quer se recolham em comunida- pelle, Une autre fin du monde est possible. Vivre
24 out. 2018). s’effondrer [Por que tudo vai desmoro- las Hulot, então ministro da Ecologia, contra os danos causados ao meio nuclear em seu bunker pessoal, conhe- gistas finalmente prometem o apoca- des espiritualistas, os “colapsistas” l’effondrement (et pas seulement y survivre) [Um
outro fim do mundo é possível. Viver o colapso (e
Na mídia, o apetite pelo apocalipse nar] (Julien Wosnitza, Les Liens qui Li- do Desenvolvimento Sustentável e da ambiente? É essa a expressão de uma ce seu momento de gentrificação! 3 lipse feliz: “Seremos trespassados pela compartilham uma visão comum do não apenas sobreviver a ele)], Seuil, Paris, 2018.
é tal que o canal France 2 transmitiu bèrent, 2018); Les Cinq stades de l’effon- Energia. Durante essa conversa, saturação do atual modo de produ- Essa evolução seria erroneamente dor e pela alegria. A dor de observar o mundo, apoiada na oposição abstrata 7 Kamil Ahsan, “La nature du capital: un entretien
uma “antecipação” de dezembro de drement [As cinco etapas do colapso] transmitida ao vivo pela internet, ção, em que a política cede espaço ao comparada com o movimento neorru- colapso da vida, de nossos lugares de entre duas categorias, “a natureza” e “a avec Jason W. Moore” [A natureza do capital: en-
trevista com Jason W. Moore], Période, 30 nov.
2029 em seu documentário Fim do (Dmitry Orlov, Le Retour aux Sources, Philippe e Hulot fizeram comentá- misticismo milenarista? Ou ainda a ral da década de 1970: ela tem mais a vida, de nossos futuros e de nossos humanidade”, o que nos levaria a de- 2015. Disponível em: <http://revueperiode.net>;
mundo: e se fosse sério? (20 jun. 2019). 2016); Survivre à l’anthropocène. Par- rios muito favoráveis sobre um livro justificativa aventada por intelectuais ver com o anarquismo cristão dos dis- apegos; a alegria de ver (enfim!) o co- duzir que estaríamos vivendo no An- Joseph Confavreux e Jade Lindgaard, “Jason W.
Na tela, soldados franceses organizam -delà guerre civile et effondrement [So- do norte-americano Jared Diamond, ávidos por deixar cidades poluídas, cípulos de Leon Tolstoi no século XIX lapso do mundo termoindustrial e de tropoceno – época da história da Terra Moore: ‘Nous vivons l’effondrement du capitalis-
me’” [Jason W. Moore: “Estamos vivendo o colap-
filas nos últimos pontos de água potá- breviver ao Antropoceno. Além da um sucesso internacional: Effondre- monitoradas e caríssimas para esta- do que com as experiências contesta- muitas outras coisas tóxicas, de poder a partir da qual as atividades humanas so do capitalismo”], Mediapart, 13 out. 2015. Dis-
vel, redes de água e eletricidade estão guerra civil e do colapso] (Enzo Le- ment [Colapso].1 belecer relações “verdadeiras” com a doras da segunda metade do XX. “A es- inventar novos mundos, de retornar a transformaram negativamente o ecos- ponível em: <www.mediapart.fr>.
32 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2019 AGOSTO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 33

A MÍDIA NORTE-AMERICANA E O INIMIGO IRANIANO O SUCESSO DAS MEMÓRIAS DE MICHELLE OBAMA

Se quer a guerra, prepare a guerra Você também pode ser como eu


Os incidentes entre Irã e Estados Unidos se multiplicam. Desde que o presidente Donald Trump decidiu abandonar o acordo Para Michelle Obama, sua história é indiscutivelmente fascinante, e ela teve êxito para transformá-la
nuclear assinado com Teerã pelas grandes potências em 2015, durante o mandato de Barack Obama, assiste-se a uma sucessão em um capital que não parou mais de dar frutos – 10 milhões de exemplares de Becoming vendidos
de drones abatidos, declarações marciais e embargos. A imprensa norte-americana não é um ator alheio a essa escalada no mundo durante os primeiros seis meses, um sucesso inédito para memórias
POR SERGE HALIMI E PIERRE RIMBERT* POR MONA CHOLLET*

I U
maginemos que um drone irania- diram com um avião de caça, descia Em um estudo comparativo das Esses automatismos de escrita con- ma vela perfumada decorada classes populares com os quais ela for
no seja abatido acima da Flórida ou ameaçadoramente em direção ao cru- duas tragédias publicado em 1991, o tribuem tanto para a desinformação com as palavras: “Descubra sua compartilhada.5 “O fracasso é um sen-
a poucos quilômetros de sua costa. zador – duas mentiras, depois reconhe- professor de Ciência Política Robert como para as mentiras características, chama e a mantenha acesa”; timento durante muito tempo antes
Em vez de debater a localização cidas, a ponto de os Estados Unidos ex- Entman destacou que, no caso do ata- exceto pelo fato de que a decodificação uma caneca com a inscrição: de ser um fato”, ela observa.
exata do dispositivo, as pessoas certa- pressarem seu “profundo pesar” e que soviético, a estrutura geral escolhi- dos preconceitos dos membros da “Descubra sua voz”; uma camiseta “Quando queremos, podemos”?
mente iriam estranhar sua presença a pagarem US$ 61,8 milhões para as fa- da pelos meios de comunicação norte- Otan se mostra menos na moda que a com a famosa frase: “Quando eles Oficialmente, essa não é a mensagem
11 mil quilômetros de Teerã. Mas mílias das vítimas. -americanos “insistiu na falência moral das fake news. “Os persas mentem co- [nossos adversários] afundam, nós que Michelle Obama quer passar. Ela
quando, em 20 de junho, o Irã destruiu Se esse caso foi rapidamente esque- e na culpa da nação na origem do dispa- mo mercadores de tapetes”, escreveu nos erguemos” (When they go low, we própria viu muitos membros de sua
um drone norte-americano que havia cido – exceto no Irã... –, outro, compa- ro, enquanto no segundo caso dimi- Richard Cohen, editorialista do go high), pronunciada na Convenção família não poderem realizar seus
rondado seu território (versão do Pen- rável e no entanto mais antigo, marcou nuiu a culpa e enfatizou os problemas Washington Post (29 set. 2009). Bret Democrata de 2016; um caderno inti- sonhos, apesar de seus esforços. Seu
tágono) ou que o havia sobrevoado por muito tempo as memórias ociden- complexos relacionados às operações Stephens, para quem o acordo de Ba- tulado “Transformando-me” – slogan irmão mais velho e ela receberam a
(segundo Teerã), ninguém ou quase tais. Em 1º de setembro de 1983, um ca- militares nas quais a tecnologia desem- rack Obama com o Irã era “pior que que se encontra em roupinhas rosas missão de enfrentar essas ambições
ninguém questionou a pertinência da ça soviético Sukhoi pulverizou um penha papel fundamental”.3 Munique” (The Wall Street Journal, 25 ou azuis... Esses artigos da loja on-li- frustradas. “Nossos pais jamais iam à
presença militar norte-americana no Boeing 747 da Korean Air Lines (KAL) Esse tratamento com geometria va- nov. 2013), tornou-se desde então um ne1 dedicados às memórias de Michel- praia, nunca saíam para jantar. Não
Golfo. O tratamento assimétrico da que ligava Seul a Nova York com 269 riável é encontrado na importância da- dos colunistas estrelados do New York le Obama revelam muito bem a con- tinham casa própria. Nós éramos seu
mídia ocidental, dependendo se o país passageiros a bordo. Em plena Guerra da ao sujeito, no registro lexical e na re- Times. Nem o esquartejamento por versão da ex-primeira-dama dos investimento, Craig e eu. Tudo era
que viola o direito internacional é uma Fria, o avião acidentalmente tinha se presentação das vítimas. Durante as serra de um colaborador do Washing- Estados Unidos em um império do de- para nós”, ela escreve. Dramas que
democracia liberal (boazinha) ou um desviado de sua rota e entrado no es- duas semanas seguintes ao acidente, a ton Post – o jornalista Jamal Kashoggi, senvolvimento pessoal. De fato, pode- ocorreram ao seu redor lhe confirma-
país autoritário (perverso), não levan- paço aéreo soviético no meio da noite, destruição do voo da KAL foi objeto de em outubro de 2018 –impediu o fluxo mos imaginar uma inspiradora mais ram que, às vezes, a vida era injusta e
ta mais objeções. acima de instalações militares sensí- uma cobertura duas a três vezes mais de complacência para com a monar- digna de confiança do que essa mu- que o mérito não resolvia tudo. Mas,
Em um clima de escalada de ten- veis. O Kremlin explicaria que havia importante que a do voo da Iran Air: 51 quia saudita, inimiga do Irã. Às vezes, lher que, de acordo com a expressão com frequência, a força de seu exem-
são entre Washington e Teerã, “apre- confundido uma aeronave da aviação páginas na Time e na Newsweek em um mesmo numa rede pública como a consagrada, “partiu do nada” e che- plo pessoal parece varrer as restri-
sentar constantemente o Irã como civil com um aparelho de espiona- caso, 20 no outro; 286 artigos contra 102 PBS, na qual preferir o novo presidente gou ao pico do mundo? ções e as nuances.
uma ameaça, nuclear ou não, induz à gem. Amplamente documentados, es- no New York Times. Depois do ataque dos Estados Unidos ao anterior é consi- Becoming,2 além de título de sua Em seu livro, ela salienta várias ve-

© Mayara Ferrão
mensagem de que ele deve ser ataca- ses dois dramas, o iraniano e o corea- soviético, as capas das revistas norte-a- derado uma imperdoável falta de gos- autobiografia, se desdobra em um zes a total indiferença de seu marido
do”, adverte Gregory Shupak, espe- no, fornecem os elementos de uma mericanas rivalizaram em termos de to, essa regra não é mais válida quando conceito do qual todos são convidados para com os bens materiais, no início
cialista em mídia da Universidade de situação quase experimental: a dife- indignação: “Assassinato aéreo. Uma se trata do Irã: “O presidente Obama a se apropriar. Para acompanhar o da relação entre eles, como se ela qui-
Guelph-Humber (Canadá). No entan- rença entre o tratamento midiático do emboscada impiedosa” (Newsweek, 13 esperava que o Irã se moderasse e se lançamento do livro, em novembro de sesse sugerir que a virtude acaba sem-
to, ele acrescenta: “Dizer que são os voo KAL 007 e do voo 655 da Iran Air set. 1983); “Atirar para matar. Atrocida- tornasse um membro mais convenien- 2018, ela se jogou numa turnê mundial pre atraindo uma recompensa resso-
Estados Unidos que ameaçam o Irã fornece a medida exata do viés ideoló- de no céu. Os soviéticos derrubam um te da família das nações. Ele se enga- digna de uma estrela do rock – na nante e tilintante – como diz o
seria muito mais respeitoso com a gico da imprensa ocidental. avião civil” (Time, 13 set. 1983); “Por nou completamente”, estima o colu- França, com uma passagem pela Ac- fortalecia. Eu adorava minha história. contrar um colega brilhante cheio de provérbio “aux innocents les mains
verdade do que fingir o contrário. Afi- No dia seguinte à destruição do que Moscou fez isso” (Newsweek, 19 nista-estrela David Brooks (11 maio corHotels Arena, em 16 de abril de Eu me sentia à vontade ao contá-la”. futuro. Em seu casamento, em 1992, pleines” [aos inocentes, muito dinhei-
nal de contas, é o governo de Washin- Boeing 747 pelo caça soviético, o edito- set. 1983). Mas, se o míssil fatal carrega 2018). “Eles [o Irã] são a nação mais ge- 2019. Em sua chegada ao palco, telões Ela relata também o modo como o jo- uma amiga interpretou uma canção ro]. Segundo ela escreve: “Eu não esta-
gton que está destruindo a economia rial do New York Times (2 set. 1983), in- o estandarte estrelado, há uma mudan- nocida da Terra; exportam violência e difundiam as palavras de anônimos vem Barack Obama, quando ele era de Stevie Wonder, “You and I (We Can va preparada para a possibilidade de
iraniana por meio de sanções que titulado “Assassinato aéreo”, afirmava: ça de tom: não é mais uma questão de terror para todo o mundo. Trump, por- que diziam, com uma mistura de se- militante de uma associação, animou Conquer the World)” [Você e eu (Nós ele jamais ganhar dinheiro”. Ela des-
restringem o acesso da população a “Não se pode conceber nenhuma des- atrocidades e muito menos de intencio- tanto, tem razão em resistir a eles. Tal- riedade e humor, o que eles próprios uma reunião com habitantes de um podemos conquistar o mundo)]... cobriu em contato com ele uma ideia
alimentos e remédios, e que cerca o culpa quando uma nação, seja ela qual nalidade. O registro muda de ativo para vez ele entenda melhor as pessoas des- estavam prestes a se tornar. Michelle bairro pobre de Chicago: “Ele estava lá Seu destino de primeira negra ocu- nova: “Uma coisa é se livrar de um lu-
Irã de bases militares e de forças ar- for, abate um avião de carreira inofen- passivo, como se o massacre não tivesse sa espécie do que aquelas com uma Obama alterna habilmente inacessibi- para convencê-los de que nossas his- pante da Casa Branca torna sensacio- gar desfavorecido; outra é fazer que
madas ao mesmo tempo terrestres, sivo”. Cinco anos depois, ao tratarem autor: “Por que aconteceu?”, título da brilhante trajetória escolar.” Porque, lidade e proximidade. Ela se apresenta tórias nos ligam uns aos outros e que, nal, retrospectivamente, toda a narra- perca seu caráter desfavorecido”. Após
marítimas e aéreas. Por seu turno, o de um disparo do Exército norte-ame- Newsweek (18 jul. 1988). A Time prefere quando se trata de preparar a opinião ora como única, ora como totalmente por meio dessa união, é possível aca- tiva de sua juventude. Em Princeton, a união deles, ela abandonou o escritó-
Irã não faz nada comparável com os ricano, as justificativas deixaram de reservar sua capa para as viagens espa- pública para a guerra, é melhor não sa- comum, suscitando ao mesmo tempo bar com o ressentimento e transfor- por exemplo, a mãe de uma de suas co- rio de advocacia em que trabalhava e
Estados Unidos”.1 ser inconcebíveis. “Embora a coisa seja ciais em Marte e relega o drama aéreo a ber nada sobre a história do país visado a reverência e a identificação. Engra- má-lo em algo útil”.3 legas, insatisfeita por sua filha coabitar ocupou postos que lhe davam um sen-
Essa reversão, que favorece “espon- horrível, foi um acidente”, sublinhou páginas internas, com o título: “O que nem sobre sua civilização. çada, carismática, ela cuida da ima- Não há nada de surpreendente nes- com uma estudante negra, pediu a ela timento maior de utilidade. Às vezes, à
taneamente” a potência norte-america- outro editorial do mesmo jornal. “É di- falhou no Golfo”. Os qualificadores gem de sua família ideal, mas conta sa confiança ilimitada no storytelling.4 que mudasse de quarto; o leitor pode noite, na cama, seu companheiro fita o
na, apoia-se sobretudo na memória se- fícil ver o que a Marinha norte-ameri- mais comuns nos artigos do Washing- *Serge Halimi é diretor e Pierre Rimbert é também a terapia de casal para a qual Para Michelle Obama, sua história é se deleitar com o pensamento de que teto; quando ela lhe pergunta em que
letiva, uma mistura de fabricação cana poderia ter feito para evitá-lo” (5 ton Post e do New York Times são, em da direção do Le Monde Diplomatique. ela arrastou o marido, e suas vontades indiscutivelmente fascinante, e ela te- essa mulher impediu que sua filha está pensando, ele responde: “Nas de-
política do esquecimento e de mentira jul. 1988). E o New York Times convi- um caso, “brutal”, “bárbaro”, “delibera- ocasionais, após os clichês enamora- ve êxito para transformá-la em um ca- convivesse com uma futura primeira- sigualdades de renda”. Aparentemen-
midiática por omissão. Dessa forma, dou os leitores para uma experiência do”, “criminoso” e, no outro, “por enga- 1 Gregory Shupak, “Creating a climate for war with dos, de “jogar o outro pela janela”. pital que não parou mais de dar frutos -dama dos Estados Unidos. Michelle te, esse asceta idealista tem experiên-
Iran” [Criando um clima para a guerra com o Irã],
quem no Ocidente se lembra do voo 655 intelectual incomum: “Coloquem-se no”, “trágico”, “fatal”, “compreensível”, Fairness & Accuracy in Reporting (Fair), 2 jul. 2019. “Compartilhemos nossas histó- – 10 milhões de exemplares de Beco- Obama dá um testemunho com muita cia de vida. O ex-presidente pode a
da Iran Air? Em 3 de julho de 1988, o no lugar do capitão Rogers [William C. “justificado”. Até mesmo o olhar dirigi- Disponível em: <https://fair.org>. rias”, “Valorizem sua história”... A pa- ming vendidos no mundo durante os acuidade sobre os mecanismos da dis- partir de então embolsar US$ 400 mil
cruzador norte-americano USS Vin- Rogers, que ordenou o disparo do mís- do às vítimas se embaça ou endurece de 2 “KAL 007 e Iran Air 655. Comparing the coverage lavra “história” reaparece sem parar primeiros seis meses, um sucesso iné- criminação racial e social. Quase qua- por uma fala diante dos empregados
[KAL 007 e Iran Air 655. Comparando a cobertu-
cennes, que patrulhava águas territo- sil]. É difícil culpá-lo por ter atirado no acordo com a identidade de seu assassi- ra], Extra!, Nova York, n.4, jul.-ago. 1988. em seu discurso e em sua escrita. “Ja- dito para memórias. Trata-se da histó- renta anos depois, ela continua ma- de Wall Street. O editor da Penguin
riais iranianas, destruiu um avião de avião”. Ainda mais, acrescenta o gran- no. Precisamos especificar nesse ponto 3 Robert Entman, “Framing US coverage of interna- mais pensei que entrar na universida- ria de Michelle Robinson, descendente goada particularmente com as Random House pagou um adianta-
carreira que transportava 290 passagei- de diário liberal, pelo fato de os erros a quem os jornalistas norte-americanos tional news: Contrasts in narratives of the KAL and de seria fácil, mas aprendi a me con- de escravos, jovem de uma família palavras cheias de desdém de uma mento de US$ 65 milhões por sua au-
Iran incidents” [Enquadrando a cobertura norte-a-
ros para Dubai. Os Estados Unidos pri- serem compartilhados: “O Irã tam- reservam os termos “seres humanos mericana de notícias internacionais: contrastes centrar e a confiar em minha própria modesta do South Side, os bairros po- coordenadora do liceu: “Penso que vo- tobiografia (enquanto escrevia) e pela
meiro negaram ter responsabilidade, bém é responsável, porque não impe- inocentes”, “histórias pessoais como- nas narrativas dos incidentes da KAL e do Irã], história”, escreve. Ou ainda, a propósi- pulares de Chicago, que, graças a mui- cê não foi feita para Princeton”. É pos- de sua esposa. Desde 2009, ano de sua
depois argumentaram que o Vincennes diu que aeronaves civis se aproximas- ventes”, “pessoas amadas” e aqueles, Journal of Communication, v.41, n.4, Washington, to da campanha para a eleição presi- to trabalho e tenacidade, teve acesso sível que essa experiência humilhante entrada para a Casa Branca, o casal
DC, dez. 1991. As citações e dados seguintes fo-
navegava em águas internacionais e sem da área de um combate que ele mais sóbrios, “passageiros”, “viajantes” ram retirados desse artigo. Agradecemos a Chloé dencial de 2008: “Quanto mais conta- às universidades de Princeton e Har- seja significativa para todos os seus lei- multiplicou sua fortuna por trinta, ou
que o Airbus iraniano, que eles confun- próprio havia ensejado”.2 ou “pessoas que morreram”? Bonnafoux por sua pesquisa sobre o assunto. va minha história, mais minha voz se vard, antes de se tornar advogada e en- tores provenientes de minorias e/ou até mesmo por cem.6
34 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2019 AGOSTO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 35

“Com muito trabalho e uma boa agressivo da “mulher negra raivosa”, que faz pensar. Mas se beneficia dele *Mona Chollet é jornalista do Le Monde ligada ao fato de a música eletrônica porária, microutopias hedonistas, Superior, de 2015 a 2018, um seminá- de impecável que hoje caracteriza
educação”, disse Michelle Obama em ela se tornou hiperconsensual. Mi- para iniciar seus concidadãos nos ar- Diplomatique. convidar a uma “vontade de comu- confiantes no desaparecimento das rio linguístico, “La plume et le bitu- uma boa parte dos arautos das cama-
Paris, “tudo é possível, até mesmo se chelle Obama não esconde seu afeto canos da democracia norte-america- nhão, de unidade geracional” e, de grandes utopias de convulsão social. me”, convidou rappers e estudou seus das letradas.
tornar presidente.” “Presidente” apa- por George W. Bush, responsável – en- na, seja em sessões do Congresso, seja 1 Disponível em: <https://becomingmichelleoba- modo mais geral, a uma “nova relação Além disso, a música eletrônica é a textos. A Radio France mudou o posi- Música eletrônica ou rap: hoje estão
rece, assim, como o modelo do êxito tre outras coisas – pelo abandono dos por meio das redes sociais. E, em mashop.com>. com a alteridade”. junção inesperada da vanguarda e do cionamento de sua rádio Le Mouv’, aí definitivamente em suas manifesta-
2 Michelle Obama, Becoming, Penguin Random
supremo, logo acima de superstar da habitantes negros e pobres de Nova maio, ela passou para trás do balcão House, Nova York, 2018 (no Brasil, Minha história, Essa apologia da festa-comunhão, sucesso. Coreógrafos, artistas plásti- que se tornou Mouv’, em 2015, cen- ções mais conhecidas das músicas re-
música ou criador de uma grande em- Orleans durante e após o furacão Ka- de um restaurante durante uma noite Objetiva, São Paulo, 2018). do transe em que a ninguém é atribuí- cos e cineastas – de Gisèle Vienne, in- trando-se nas culturas urbanas. Os conciliadoras. É a voz da maioria, fun-
presa. A vocação de um eleito – melho- trina, em 2005. para sustentar o projeto de lei “Au- 3 Michelle Obama, op. cit. Salvo menção diferente, da uma identidade, é uma leitura efeti- cluída com regularidade no Festival de rappers são estudados nos manuais damentalmente pelas redes sociais,
todas as citações foram extraídas desse livro.
rar as condições gerais, pelo menos Sua obsessão é a educação, mas, mentem os salários” (Raise the Age 4 Ler, de Christian Salmon, “Une machine à fabriquer vamente política, em honra à harmo- Outono, a Xavier Veilhan, expondo na escolares (PNL, Médine), escritores que se abstém de perguntar, que insti-
em termos ideais – cai no esqueci- para promovê-la, ela se contenta com Act).9 Submetido ao voto em julho, o des histoires” [Uma máquina de fabricar histórias], nia a ser inventada, em que serão Galeria Perrotin – dela se apropriam, coroados por diversos prêmios são ra- tui a norma – estética e, portanto, polí-
mento. Obviamente, a ex-primeira- um voluntarismo etéreo (“acreditar projeto introduz um salário mínimo Le Monde Diplomatique, nov. 2006. superados todos os antagonismos, to- enquanto o French house, do grupo ppers (Gaël Faye, David Lopez), as es- tica – da vanguarda e do grande públi-
5 Escutar, por exemplo, os “trois minutes de violence
-dama às vezes fala de “construir um em si”, “trabalhar bastante”). Sua ini- federal de US$ 15 por hora (em lugar sociale” [três minutos de violência social] captados das as diferenças, em que a única alie- Daft Punk ao Justice, é exportada de trelas do rap fazem teatro (Abd Al Ma- co, enfim unidos na mesma prostração
mundo melhor” (blusão por US$ 60 na ciativa Reach Higher (“alcançar um dos US$ 7,25 atuais) até 2024, uma rei- em um liceu profissional de Marselha: Pascale nação é a de nossas fronteiras íntimas. maneira esplêndida. A música eletrô- lik monta Les Justes no Théâtre du com relação à indústria e à harmonia
loja on-line). Mas, no palco e em seu patamar mais alto”), lançada quando vindicação lançada pelos trabalhado- Pascariello, Voix de garage, Arte Radio, 28 maio Assim, a música eletrônica torna-se nica, sobretudo resumida ao dance- Châtelet de 5 a 9 de outubro de 2019), o social em funcionamento. Nas man-
2013. Disponível em: <www.arteradio.com>.
livro, ela faz em poucas frases o balan- ela estava na Casa Branca e destinada res dos fast-foods.10 6 Stéphanie Le Bars, “Les très riches heures du cou- emancipadora, digna de intervir para floor, bem mais que suas riquezas mu- teatro recorre ao rap (uma adaptação chetes, elas destronaram o rock dos
ço da presidência de seu marido, im- a favorecer o acesso aos estudos supe- Por mais sedutores que permane- ple Obama” [As horas muito ricas do casal Oba- combater as perseguições a que são sicais, carrega assim os valores de Fourberies de Scapin, de Molière, foi festivais, das subvenções, dos locais de
putando todos os seus fracassos à obs- riores, não colocava em questão as çam Michelle e o marido, o Partido ma], M – Le Magazine du Monde, 13 abr. 2019. submetidas as minorias, e lugar de um sustentados pelo liberalismo cultural. apresentada no Théâtre 13, em Paris, concerto – salvo quando ele é mumifi-
7 Ler, de Benoît Bréville e Serge Halimi, “Les limites
trução dos republicanos.7 matrículas delirantes cobradas dos Democrata, sem dúvida, terá uma du symbolisme” [Os limites do simbolismo]. In: “Af- momento de alegria, prefigurando en- Ela faz dinheiro, ela preconiza curtir o na última primavera). cado, academizado, sem disputa. Os
Por desencargo de consciência, ela estudantes. Além disso, esse objetivo evolução mais interessante se a ten- frontements américains” [Enfrentamentos america- fim um mundo sem ódio, onde o indi- momento, ela celebra a sensação, ela Em poucas palavras, o próprio gê- “velhos” sempre voltam, como uma
jamais quis ter sensibilidade política. basta? 8 O que pensar sobre todos dência representada por Ocasio-Cor- nos], Manière de Voir, n.149, out.-nov. 2016. víduo se regozija: “Se você busca o pra- oferece a eclosão dos desejos, tudo nero, com frequência ainda ontem agradável lembrança dos tempos anti-
8 Ler, de John Marsh, “L’éducation suffira-t-elle?”
Ela diz não gostar desse mundo para o aqueles que não irão para a universi- tez, Bernie Sanders e seus aliados for [Basta a educação?], Le Monde Diplomatique, zer e o imediatismo [...], isso lhe cai produzido pela alegria de não reco- considerado vítima do “ostracismo”, é gos, quando ainda se acreditava nos
qual, apesar de relutante, foi levada. A dade? Se a questão é “valorizar sua reforçada. Os primeiros apresentam jan. 2012. muito bem”, resume Michka Assayas, nhecer nenhum limite. hoje muito valorizado: “A literatura se- amanhãs que cantam. Inofensivos.
clivagem entre democratas e republi- história”, é possível notar o uso muito de forma sedutora para seus admira- 9 Fernanda Echavarri, “Alexandria Ocasio-Cortez historiador do rock, a propósito do rá rap ou não será!”, insistiu Thomas Parece que não havia mais possi-
walked into a bar... and poured scorn on the mini-
canos lhe parece um divisor inútil. diferente que faz dessa ideia a célebre dores uma entrada para o clube dos mum wage” [Alexandria Ocasio-Cortez entrou em dueto Justice, ao qual ele consagrou Ravier na Le Nouveau Magazine Lit- bilidade de se fazer entender nem pa-
Apesar de sua imensa popularidade, representante da ala radical do Parti- vencedores; os segundos lutam para um bar... e ridicularizou o salário mínimo], Mother uma semana de difusões (Very Good téraire (maio 2012); o rap teria “reescri- ra esses “irreconciliados” nem para
ela rejeita a ideia de uma candidatura à do Democrata de Nova York, Alexan- que não haja mais perdedores – uma Jones, São Francisco, 1º jun. 2019.
10 Ler, de Thomas Frank, “Révolte américaine contre
Trip, France-Inter, nov. 2016). O dancefloor to (e ultrapassado) a história da poe- quem mantinha aspirações “extre-
eleição presidencial de 2020. Outrora dria Ocasio-Cortez. Garçonete, foi maneira mais convincente, é preciso les ogres du fast-food” [Revolta americana contra As opiniões entusiasmadas da elite, foi promovido sia”, segundo Les Inrockuptibles (12 jun. mas” a uma revolução social e políti-
demonizada, definida pelo establish- eleita para o Congresso, também é ca- reconhecer, de “construir um mundo porém, estão relacionadas também à 2016). O canal Arte produziu em abril ca. Aqueles que atacam os códigos, as
os gigantes do fast-food], Le Monde Diplomatique,
fev. 2014. potência seminal da música eletrôni-
a lugar de “mistura de 2019 uma websérie, Saveur bitume, normas, os costumes e, assim, ex-
ment conservador com o estereótipo rismática e também tem um percurso melhor”.
ca. “A música eletrônica forja artes no de minorias e coescrita por Rocé, do grupo La Ru- pressam sua dissonância, como os
século XXI?”, pergunta-se o programa de classes sociais”, meur, contando, como resume seu site, punks outrora, em sua breve fulgura-
Du grain à moudre (11 abr. 2019), desti- com a ajuda a história desses “cronistas sociais que ção. Aqueles que não são rentáveis,
MÚSICA nado ao debate de ideias na rádio Fran-
do ecstasy queriam transformar o país, artistas e que não estão nem um pouco de acor-
ce Culture. A resposta é aparentemente empreendedores que se juntaram para do com as armadilhas da democracia
positiva: “A música eletrônica é a in- criar uma federação visando alcançar liberal, aqueles que se inserem na his-

A trilha sonora
venção dessa personalidade artística o topo das listas dos mais vendidos” tória, inclusive a do rock, e, inventan-
contemporânea, o ‘semionauta’ que O mais surpreendente é constatar para, em seguida, nos anos 1990, se do um eco distorcido, acentuam uma
compila, aglutina, faz a mixagem, deli- que outra música popular, o rap, des- despolitizarem. Em suma, entre a pri- distância que torna sensíveis os velhos
mita, superpõe, em suma, pós-produz fruta do favor dos doadores de notas meira indústria musical francesa e a sonhos e ativa o desejo de mudar o

do neoliberalismo
o real à sua maneira, como um DJ cura- favoráveis. Com quatro recompensas fina flor da cultura, está o idílio. mundo. São esses excluídos da “músi-
dor”. O “semionauta” – termo posto em na cerimônia de premiação Victoires Podemos nos perguntar o que mo- ca ‘reconciliada’ (neutralizada) do
circulação por Nicolas Bourriaud, ex- de la Musique em 2018, ela é hoje a mú- tiva essa grande aproximação, confir- mainstream, invertendo a exclusão
-codiretor do Palais de Tokyo e ex-dire- sica preferida dos franceses e figura re- mada pelos apoios institucionais. Se- submetida em relação polêmica, em
tor da Escola Nacional de Belas Artes – gularmente entre as mais vendidas. ria a vertigem diante das cifras que negatividade, que transformam a his-
Dos ritmos das pistas de dança às vozes das periferias, é um programador de formas novas, No primeiro semestre de 2018, de acor- outrora incitavam o desdém da massa tória da arte musical pop. São eles que
da música eletrônica French house, cujo principal expoente cuja proposta é produzir percursos ou do com os números do Sindicato Na- vulgar e hoje os exortaria a reconhecer inventam as posturas aristocráticas da
cenários originais entre os signos e os cional dos Editores Fonográficos (Snep um valor no sucesso ressonante e ti- arte mais democrática, jamais inven-
é o grupo Daft Punk, ao rap, a música – que nos últimos significados. Portanto, a obra de arte – Syndicat National des Éditeurs Pho- lintante (a banda PNL totalizou 12 mi- tada”, segundo a filósofa e música Ag-
anos vem recuperando o sucesso comercial – conquista não é mais o resultado acabado do pro- nographiques), Maître Gims e seu ir- lhões de visualizações de seu último nès Gayraud, autora do estimulante
cadavez mais o gosto de uma boa parte das elites. O que cesso de criação, mas um “momento mão, Dadju, estavam na dianteira da clipe em 48 horas no YouTube)? Seria a Dialectique de la pop.5 Só se pode espe-
© Alves
na cadeia inacabada das contribui- classificação, e o rap era a música mais admiração por aqueles que são sem- rar que, cruel mas lisonjeiramente re-
está em jogo nesse processo de legitimação cultural? ções”, para citar o livro mais influente escutada nas plataformas de strea- pre representantes de minorias, que jeitado nas margens, o rock possa de-
POR EVELYNE PIEILLER* de Bourriaud, Esthétique relationnelle.3 ming. Ora, neste caso também a elite usam uma linguagem “liberada” das sempenhar discretamente seu papel
A música eletrônica reorganizaria o se junta ao gosto da maioria. O escritor exigências acadêmicas? Ou, ainda, se- de perturbador da resignação.
real, o executaria, sem tentar colocá-lo Thomas Ravier, em um artigo da Nou- ria o gosto descontraído de uma bur-
em questão ou em perspectiva. velle Revue Française, publicada pela guesia letrada para reencontrar uma *Evelyne Pieiller é coautora, com Edgard

E
m 21 de junho de 2018, para a Fê- muitos anos pelos preconizadores in- pós-revolucionária de Túnis e do Cairo sábado à noite, com John Travolta, de As instituições e os mecenas a Gallimard, comparou, desde 2003, o parte de seu ideal em um mundo onde Garcia, de Une histoire du rock pour les ados
te de la Musique [Festa da Músi- telectuais – exceto os conservadores. a dançar. Desde 2010, ela se impõe co- 1977, que colocou na pista, de modo aprovam. Eles têm razão. Essa música rapper Booba aos escritores Louis-Fer- se juntam os símbolos da aversão e do [Uma história do rock para os adolescentes],
ca], o Élysée, sede do governo De forma fascinante, desde então, a eli- mo tendência artística fundamental da inesperado e bastante entusiasmado, tem tudo para lhes agradar. Ela combi- dinand Céline e Antonin Artaud.4 Jean desejo pelo consumo, e uma inclina- Au Diable Vauvert, Vauvert, 2019 (nova edi-
francês, recebeu representantes te se junta a escolhas amplamente po- cultura contemporânea, influenciando um jovem de meio modesto, como se na o prazer individual e a rejeição do Birnbaum, responsável pelo Monde ção pela mensagem bem anticonformis- ção ampliada).
da música eletrônica nacional. O DJ Ki- pularizadas e as apoia – o que sur- todas as esferas artísticas”. O que se pro- costuma dizer – e o techno. Ela é tam- político, substituído pela abertura pa- des Livres, prefere associá-lo a Léon ta? Louvemos a “alteridade” triunfan-
ddy Smile, que usava uma camiseta preende. Acabou o fosso entre a elite e a põe é “conduzir o visitante a uma verda- bém reduzida à sua dimensão mais ra o outro, o dominado, o oprimido. Bloy e lhe consagrou uma entrevista te, que finalmente se integra tão bem
com os dizeres “Filho de imigrante, ne- massa? Acabou o gosto requintado, deira experiência sonora, participativa conhecida, a da trilha sonora do dan- Ela garante a hesitação da identidade no Le Monde (31 ago. 2018). Nela, ele ao modelo dominante, o que prova 1 “Électro. De Kraftwerk a Daft Punk”, Philharmonie
gro e homossexual”, e seus dançarinos oposto a um gosto primário? Quais e sensorial”. A música eletrônica, “que cefloor, a pista de dança; mas ela não singular, o tempo de uma festa, para o deixa claro que, em seus últimos discos, que tudo, apesar de tudo e sem trans- de Paris, de 9 de abril a 11 de agosto de 2019.
2 Électro. De Kraftwerk à Daft Punk, catálogo da ex-
fizeram sucesso. O partido Republica- são, então, os valores que a elite atribui nasceu na comunidade LGBT”, é apre- poderia, no entanto, ser qualificada acolhimento em si de outras identida- “a reivindicação política foi abandonada formação política, continua possível. posição, sob a direção de Jean-Yves Leloup, Phi-
nos (a direita tradicional) e o Rassem- a essas músicas de grande consumo? sentada em sua “dimensão política e como frívola. De fato, o dancefloor foi des possíveis. Ela propõe o “soltar-se” em prol de uma predicação obscena res- Em todo caso, é engraçado ver es- lharmonie de Paris – Textuel, Paris, 2019, 256p.
blement National (ex-Frente Nacional) A música eletrônica, por exemplo, é contracultural: queer, espírito de do it promovido a lugar de “mistura de mi- como modo de acesso a um momento ponsável pela degradação humana”. De sa recepção calorosa – disposta a não 3 Nicolas Bourriaud, Esthétique relationnelle [Estéti-
ca relacional], Les Presses du Réel, Dijon, 1998.
foram ofuscados. A escolha do presi- enaltecida por uma exposição na Phi- yourself, nomadismo festivo, iniciativas norias e de classes sociais”, com a aju- de felicidade e de verdade. Ela se apoia maneira mais precisa ainda, “redigi- levar em conta o que se gerou em ou- 4 Thomas Ravier, “Booba ou le démon des images”
dente Emmanuel Macron sem dúvida lharmonie de Paris.1 Celebra-se, ali, efêmeras e comunitárias”.2 da do ecstasy, que permite entrar “em na tecnologia, assinalando a entrada dos sob o efeito da maconha ou ao vo- tra situação (o sexismo, por exemplo) [Booba, ou o demônio das imagens], La Nouvelle
era audaciosa, mas não ia contra a cor- uma música que “leva o planeta, a ju- A música eletrônica é aqui bastante uma espécie de grande onda em que no “novo mundo” no qual as máqui- lante de um bólide, [...] seus textos não e a transformar, não sem condescen- Revue Française, Paris, out. 2003.
5 Agnès Gayraud, Dialectique de la pop [Dialética
rente do projeto de legitimação das ventude de Paris e de Berlim, os clubbers ligada a suas precedentes: a disco mu- você não reconhece mais nem sexo nas recolocam o humano em seu lu- visam nem à emancipação social nem dência, a pobreza literária em mini- do pop], La Rue Musicale – La Découverte, Paris,
músicas de sucesso conduzido havia de Ibiza e de Goa, assim como a geração sic – lembremos o filme Os embalos de nem raça”. A “dimensão política” está gar. Ela cria zonas de autonomia tem- à edificação moral”. Na Escola Normal malismo –, testemunho da frivolida- 2018, 528p.
36 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2019 AGOSTO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 37

ENTREVISTA TAÍS ARAÚJO

“Em um país misógino e racista,


série foi uma resposta ao governo, tos e fazer que possamos melhorar enxurrada de violência gratuita, que
sempre respondo que não, porque ela nossa vida como sociedade, minha existe pelo simples fato de ser mulher
começou a ser escrita em 2012. Nosso opção sempre será essa. Para fazer es- negra. No começo eu dava uma ba-
foco não é o governo, mas a Amazô- sa série, por exemplo, tive que conci- queada, mas depois você fica cascu-

espero todo tipo de violência”


nia, com o propósito de reunir quem liar com uma novela. Implorei para da. Vivo em um país que é misógino,
deseja pensar a preservação daquele fazer as duas coisas ao mesmo tempo, racista, preconceituoso, então posso
ecossistema, o respeito às comunida- porque sei que é importante falar sobre esperar todo esse tipo de violência, já O olhar da cidadania
des ribeirinhas, a população indíge- o assunto. Isto é o que me mobiliza que estou no centro do debate. En-
na, entendendo que aquilo é uma como artista: provocar reflexão. E não tendendo isso, fica tudo mais fácil.
fonte riquíssima de conhecimentos e só no outro, mas em mim também. Quando o outro vem com violência,
Atriz falou sobre a descoberta do ambientalismo como luta, possibilidades. É preciso mostrar que Quando isso acontece no espectador, isso diz muito mais sobre a origem
o processo contínuo de evolução cultural e a construção da própria personalidade uma floresta em pé vale muito mais impacta minha vida. Eu trabalho desde dele, como ele enxerga o mundo, do
POR GUILHERME HENRIQUE* do que a floresta no chão, que a pes-
quisa científica é importante e que
criança, mas ter essa consciência foi
um processo. Hoje, não me enxergo
que sobre mim.
Sou uma mulher negra cheia de Na luta
graças a ela nós achamos a cura para como atriz sem ter alguma questão que privilégios, muito diferente de uma
diversas doenças. Por isso somos envolva responsabilidade social na mi- menina nascida e criada na Maré. Só
Miguel, empresário, e por que ele acha
interessante agir de maneira explora-
contra o desmatamento. Uma vez
que desmatou, ferrou, você perdeu,
nha atuação. que não faz sentido ficar com esse
privilégio só para mim e fingir que pela
tória, e o das meninas que estão no não tem mais. Você falou um pouco sobre o pro- aquela menina não existe, porque, se
mercado de prostituição infantil. Al- cesso de conscientização social. O que eu não fortalecer a vida dessa garota,
guns espectadores vão se identificar
com o nosso ativismo, mas tem gente
que vai se identificar com o empresá-
Durante uma entrevista ao Lázaro
Ramos, no programa Espelho, você
disse que só tem aceitado trabalhos
você tem lido?
Tenho lido muitas mulheres, mu-
lheres negras, porque há uma lacuna na
a minha filha não vai ter um país le-
gal para viver. Por mais privilégios
que eu tenha, não posso ignorar o fa-
construção
rio. Ao escutar a menina que está so- que de fato possam trazer algo relevan- minha formação. Durante muito tempo to de outro não ter a mesma vida que

de uma
frendo exploração infantil, e obvia- te para sua carreira. Esse foi o caso? não li mulheres, sobretudo negras. Tem eu e seguir flanando por aí com o
mente não é possível dar razão a isso, Sim, pela temática e porque minha um coletivo, por exemplo, o Di Jejê, que meu salário da Rede Globo. Não faz
você entende a realidade dela, que é personagem é muito complexa. possui teses e cursos sobre questões ra- sentido como artista e principalmen-
outra. A série não mostra quatro heroí- ciais no Brasil. Mas é algo que preciso te como cidadã.

sociedade
nas contra o mal. Cada um coloca seu Ela é muito diferente de você como preencher. Não que isso me tenha sido
ponto de vista e o defende. pessoa? negado, mas o fato é que não tive essa No ano passado, a Elza Soares me
Totalmente. Na primeira vez que formação. Está em tempo, porque sou disse que via uma sociedade com medo.
A escritora nigeriana Chimaman- me vi interpretando, fiquei assustada. uma mulher em construção. O Criolo tem aquela música que diz “as
da Adichie costuma dizer que desen- Ela é uma pessoa muito dura. Normal- pessoas não são más, elas só estão per-
mais justa,
© Henrique Santana

volvemos discursos únicos sobre algu- mente, faço mulheres malemolentes, didas”. Como chegamos a esse ponto?
mas histórias. que utilizam mais o carisma. A Verôni- Acho que tem a ver com falta de
Pois é, e a série toca justamente nis- ca é seca, direta e não abre nenhuma “É um horror possibilidade e educação precária. Se
so. Nós somos muitos, e existem diver- brecha para o recurso sedutor, que viver neste estado a gente fortalecesse a educação desse
sos tipos de empresários, muitos tipos
de ativistas, indígenas, enfim, de pes-
muitos atores usam, inclusive eu. Co-
mo atriz, foi um desafio muito grande,
de alerta e é um
horror não olhar
povo, seríamos outro país, porque te-
ríamos aumentado as possibilidades. solidária e
soas que compõem nossa sociedade. A além de toda a história pessoal dela, Sou otimista, acredito que ainda há

O
s cabelos cacheados estão qua- ríodo do ano passado. Os dados alar- É a partir da formação teórica que a maneira como elas se comportam na que tem um caso com o marido da para o que é simples, tempo. A solução, para mim, está na
se sempre presos, e a fisiono-
mia, acostumada ao sorriso de
mantes provocaram críticas de Jair
Bolsonaro ao órgão, alegando que o
atriz tem avaliado de maneira crítica o
Brasil contemporâneo. Se a temática
vida diz muito de onde vieram e das
possibilidades que tiveram. A série
amiga na ONG... Eu tenho muitas críti-
cas ao comportamento dela, e isso
que é educar e
fortalecer o povo”
educação. O que tem acontecido no
Brasil desde a sua fundação é que só se sustentável.
outras personagens, agora é sé- instituto “está a serviço de alguma ambiental é novidade, as discussões tem um lado definido, que é o da pre- também me motivou. fortalece uma parcela da sociedade:
ria. “A Verônica não dá brecha para o ONG”. As falas foram rebatidas pelo que envolvem cor e raça estão no seu co- servação da Amazônia e do progresso quem está na ponta da pirâmide.
recurso sedutor”, explicou a atriz Taís presidente do Inpe, Ricardo Galvão. tidiano. “Às vezes há uma enxurrada de com sustentabilidade. Mas, ao mesmo A Fernanda Montenegro, em uma Quem está nessa posição reclama
Araújo ao analisar as características “Nosso foco não é o governo, mas a violência gratuita, que existe pelo sim- tempo, ela não é unilateral, no sentido entrevista para nós no ano passado, Como é na sua casa, com os seus fi- muito de violência, mas está dentro do
da advogada que é uma das protago- Amazônia, com o propósito de reunir ples fato de ser mulher negra. No come- de que quem não pensa igual à gente falou sobre o ator ser um viajante das lhos? Conversam sobre racismo? seu carro blindado. E toda essa gente
nistas da série Aruanas, uma coprodu- quem deseja pensar a preservação da- ço eu dava uma baqueada, mas depois está completamente errado. almas. Meus filhos são pequenos. A mais que está embaixo, cadê? Falta olhar
ção entre a Maria Farinha Filmes e a quele ecossistema, o respeito às co- você fica cascuda”, revela Taís Araújo. Ela está certíssima. A Verônica ad- nova tem 4 anos e o mais velho, 8. A para o outro. Quartas, às 17h,
Rede Globo. munidades ribeirinhas, a população A série foi gravada em Manacapu- voga em prol de uma causa tão nobre, gente vive em um mundo no qual uma Para mim, parece evidente: se for- Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM
Lançado em julho, o folhetim mos- indígena, entendendo que aquilo é LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – ru, no Amazonas, que tem sofrido com mas vacila na vida pessoal em algo que criança negra tem mais possibilidade talecermos quem está necessitado, as
Ribeirão Preto: 107,9 FM)
tra a rotina de uma ONG (Aruanas) uma fonte riquíssima de conhecimen- Uma das primeiras frases que apare- a disputa entre grileiros e fiscais do é ético, de caráter. Às vezes é assim na de encontrar certas coisas, como li- possibilidades de todos aumentam.
que luta contra o desmatamento e a tos e possibilidades”, afirmou Taís cem sobre essa série é: “Aruanas não é Ibama. Em dezembro do ano passado, vida: você escolhe, faz a merda e já era. vros, algo que eu não tive na infância. Seu filho vai poder ir para uma boate
atividade ilegal de garimpo na cidade Araújo. “A série tem um lado definido, uma série de ação, mas de reação”. O Jair Bolsonaro criticou os fiscais afir- Isso é muito humano. Grandes perso- Se ver retratado e representado. sem você ficar se preocupando se ele Quartas, à meia-noite
fictícia de Cari. Na vida real, a produ- que é o da preservação da Amazônia e que isso significa? mando que existia um “ambientalis- nagens permitem isto: entender que a O que eu faço é fortalecê-los e tra- morreu, foi assassinado ou qualquer TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da
ção foi gravada em Manacapuru, na o progresso com sustentabilidade”, TAÍS ARAÚJO – Acho que tem dois sig- mo xiita” na região. Como o ambien- humanidade é falha. Aí entra o ator, balhar a autoestima deles com livros coisa do tipo. Para quem está na base,
Vivo Fibra e 186 da Vivo.
região metropolitana de Manaus. Ao completou. nificados. Ao ver o trailer, por exemplo, talismo entrou na sua vida? que passa por várias personalidades, temáticos, super-heróis e princesas, to- o filho é assassinado no caminho para
lado de Taís Araújo, as outras ativistas Aos 40 anos, Taís Araújo entende você acha que é uma série de ação, um Eu fui a primeira atriz a ser cha- tipos de caráter, e entende que, por dos negros e negras. Não acho justo pe- a escola. A universidade deve ser para
são representadas por Leandra Leal que trabalhar com um tema que não é thriller, uma mistura de gêneros. Mas mada e, de início, me encantei pela maior que seja o meu julgamento mo- gar crianças de 4 e 8 anos e tirar delas a todos, e não para poucos. Falo o tempo
(Luíza), Débora Falabella (Natalie) e o seu habitual, em uma personagem eu também acredito que seja uma sé- dramaturgia. Entendia que era um ral, o erro faz parte da vida. Passear inocência para apresentar um mundo todo isso, mesmo cheia de privilégios.
Thainá Duarte (Clara). Conflitos pes- diferente do que fez até aqui, ajuda a rie pensada com o intuito de preser- assunto importante, tinha consciên- por essas histórias é uma delícia. tão cruel e um país mais cruel ainda. Meu carro é blindado, porque eu te-
soais, traições e esquemas – como o lo- solidificar um caminho de autoconhe- var. Mostrar que preservação e pro- cia, mas o que me atraiu foi a minha Jogar isso no peito delas e dizer “vai, se nho medo! É um horror viver neste es-
bby entre empresários e políticos na cimento. “Adoro fazer entretenimento, gresso podem caminhar juntos. personagem e os conflitos que ela Como você tem transformado a vira”. Não seria justo. Quero que sejam tado de alerta e é um horror não olhar observatorio3setor
Câmara dos Deputados e no Senado mas se eu puder, além de entreter, pro- apresenta. Entrando na história, o sua arte em cultura? Ao fazer a peça O duas crianças com a infância plena. para o que é simples, que é educar e
Federal – são vistos na trama disponí- vocar reflexões, minha opção sempre Como você acha que a série trata a Marcos [Nisti] e a Estela [Renner], di- topo da montanha, por exemplo, fortalecer o povo. Não estamos olhan-
vel em mais de 150 países. será essa.” A construção de uma perso- contradição entre o capital e a explo- retores da série, são dois ativistas. É grande parte dos espectadores são ne- Durante uma palestra no TEDx, do a longo prazo, está todo mundo
Segundo dados do Instituto Nacio- nalidade está embasada também em ração? Isso aparece? impossível entrar nessa história e gros e negras. você fala sobre não se deixar afetar olhando para o seu, sua família, seus observatorio3setor
nal de Pesquisas Espaciais (Inpe), um processo de descoberta. “Tenho Acho que a série trata isso de ma- não ser absolutamente tomada por Meu trabalho não tem sentido se pela brutalidade cotidiana. Como se netos. Como se eles fossem os únicos
houve um aumento de 88% no desma- lido muitas mulheres, mulheres ne- neira inteligente. Tem as quatro perso- ela, porque o meio ambiente diz res- não for assim. Adoro fazer entreteni- blindar? habitantes do Brasil. Não são.
tamento da Amazônia Legal no mês de gras, porque há uma lacuna na minha nagens que são ativistas, trabalham peito a todo mundo que vive neste mento, mas se eu puder, além de en- Acho que tenho plena consciência www. observatorio3setor.org.br
junho, em comparação ao mesmo pe- formação”, reflete. na ONG. Mas há o ponto de vista do planeta. Quando me perguntam se a treter, provocar reflexões, pensamen- do país em que vivo. Às vezes há uma *Guilherme Henrique é jornalista.
38 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2019 AGOSTO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 39

MISCELÂNEA CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE

diplomatique
BRASIL

Capa – Política da devastação


A cada mês as capas se superam. Ano 13 – Número 145 – Agosto 2019

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E ntre a perplexidade e o cuidado, movimentos so-


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torno da reforma da Previdência”. “[Eduardo Fagna-
de extrema direita que entendiam muito de
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mação verdadeira, de todas as áreas e variáveis
humanas, em uma linguagem inteligente, que al-
12 UMA SÍNDROME UNIVERSITÁRIA
A esquerda canibal
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Tradutores desta edição


Por Rick Fantasia Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,
ros meses de governo Bolsonaro. A recomendação ni] vai além da coragem e nos oferece uma análise desse encontro. cance as mais variadas pessoas, pode ser uma so- Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
era compreender como seriam traduzidos, do ponto percuciente e abrangente das ameaças que rondam <http://bit.ly/youtube-radical> lução para a complexidade de múltiplas verdades
de vista institucional, os rompantes do presidente os brasileiros, embuçadas nos disfarces do equilíbrio que não passam de mentiras replicadas. 14 TRÊS ANOS APÓS O ACORDO DE PAZ
ENTRE BOGOTÁ E AS FARC
Conselho Editorial
Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
recém-eleito. E a amostra não deixou a desejar, ain- fiscal e da justiça social”, afirma o professor Luiz Gon- Gilnário Saraiva “Aqui, quem manda é a guerrilha” Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor
da mais quando miramos a educação, cujas palavras zaga Belluzzo, que assina o prefácio do livro do eco- AMSTERDÃ DO ESTADO ISLÂMICO Por Loïc Ramirez, enviado especial Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S.
de ordem do momento são: defesa absoluta da fa- nomista da Unicamp. Mosul é uma das cidades mais antigas do As sertanejas são, antes de tudo, fortes Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau

17 A HISTÓRIA DA DATCHA Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,


mília (no singular mesmo), cortes de gastos, busca Na perspectiva democrática, para que se façam mundo e está localizada no norte do Iraque. Fortes e necessários depoimentos das bravas e va- Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião
incessante da eficácia, disciplina e respeito à ordem ajustes, o diagnóstico técnico elaborado pelo gover- No momento em que foi invadida pelo Estado O lado jardim da Rússia
lorosas mulheres sertanejas. Diante da realidade, Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.
Por Christophe Trontin
“natural” de todas as coisas. Traduzindo para bom no, apontando os reais problemas a serem enfrenta- Islâmico, em 2014, entre 1,5 milhão e 2 mi- o avanço na formação política para a cidadania é Airbnb e queijo de cabra Assessoria Jurídica
português: a barbárie. dos, deve ser amplamente discutido pela sociedade, lhões de pessoas viviam lá (Belo Horizonte em meu entender importantíssimo no avanço das Por Christophe Trontin Rubens Naves, Santos Jr. Advogados

Como uma caixa de ferramentas, o livro Educação diz Fagnani. Entretanto, “no Brasil, o diagnóstico é in- tem cerca de 1,5 milhão de habitantes). As es- lutas sociais e populares. Escritório Comercial Brasília
contra a barbárie apresenta um diagnóstico preciso
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tencionalmente distorcido, impõe falsa ideia da reali-
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plicados e suas motivações. O objetivo é qualificar o real, de questões reais. O que se ouve é uma fala con- pública. Na Holanda, um canal fez um game O título foi muito bom e lembrou a frase dita por Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
Por Anne Mathieu da associação Palavra Livre, em parceria com o
debate educacional e nele incidir, trazendo subsídios vulsiva, mentirosa, ativamente falseada, baseada na interativo em que você toma decisões, como Euclides da Cunha no livro Os sertões: “O sertane- Instituto Pólis.
para a luta política e a construção de estratégias de desonestidade intelectual de grande parte dos espe- os habitantes de Mosul tiveram de tomar, mas jo é, antes de tudo, um forte”. Parabéns pelo traba-
resistência e reinvenção. cialistas hoje no poder no Brasil, do próprio governo, como se a invasão fosse em Amsterdã. Está lho. Quem sabe o senhor Bolsonaro leia essa ma- 23 JUVENTUDE FRUSTRADA, ASCENSÃO RELIGIOSA
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Organizada por Fernando Cássio, professor da do mercado e da mídia corporativa”, arremata o autor. tudo em holandês, mas com o tradutor do bro- téria e mude de opinião, pois se cancelar BF e BCP Por Pierre Daum, enviado especial diplomatique@diplomatique.org.br
www.diplomatique.org.br
UFABC, a obra traz, em seus 26 ensaios, importantes O livro aponta que há trinta anos o grande capi- wser funciona bastante bem. provocará um genocídio.
PESO DO CONTROLE SOCIAL,
reflexões sobre a aliança entre o ultraconservadoris- tal desenvolve campanha ideológica para demonizar <https://iamosul.nl> Maria Lucia Minoto Silva Assinaturas

mo e as medidas neoliberais a serviço da manutenção a Previdência. Para Fagnani, se houvesse debate, a 26 PERSISTÊNCIA DOS PRECONCEITOS
A difícil afirmação homossexual na Argélia
assinaturas@diplomatique.org.br
Tel.: 55 11 2174-2015
das desigualdades e da financeirização da educação, sociedade teria chance de saber que são falsas su- Insustentável agenda ambiental Por Rose Schembri
Impressão
que propõe a destruição a partir da escola, reforçando posições – por exemplo, de que o Brasil “não exige IDAS E VINDAS Ótima matéria, retrata uma triste realidade. Acho Plural Indústria Gráfica Ltda.
mitos de que os processos de aprendizagem prescin-
dem do ensino – portanto, de professores bem remu-
idade mínima para a aposentadoria” e a Previdência
“é o maior item do gasto público”. O debate desonesto
O primeiro webdocumentário apresentado
como projeto de conclusão do curso de Jor-
interessante que o Le Monde Diplomatique Brasil
nos coloque em contato com o conhecimento de
28 MOVIMENTO NORTE-AMERICANO
CONTRA OS RADARES
Av. Marcos Penteado de Ulhôa
Rodrigues, 700 – Santana de Parnaíba/SP – 06543-001
Na estrada, policial é rei
nerados e autônomos – ou então de que a questão também contempla a difusão do “terrorismo” demo- nalismo da ESPM não perde nada para pro- escritores e estudiosos do assunto, gente séria e MISTO
Por Sarah Seo
não é investimento, e sim gestão eficaz dos recursos, gráfico (“não há alternativas”), financeiro (o “déficit” é jetos multimídia profissionais. As alunas ouvi- que traz dados e fatos.
possível somente por meio das parcerias com funda- “explosivo”) e econômico (sem a reforma “o Brasil vai ram histórias de estrangeiros que vieram para Daniel Francisconi
ções e institutos empresariais, pela aquisição de suas quebrar”). São “bombas-relógio” de ficção, diz o autor. o Brasil e de brasileiros que saíram do país. 30 PROFETAS DO COLAPSO TOMAM AS LIVRARIAS
O fim do mundo não vai acontecer
soluções tecnológicas mágicas, a preços exorbitan- Não pode haver debate qualificado, pois ele revela- Montaram um site interativo com dados sobre Polvos midiáticos Por Jean-Baptiste Malet Distribuição nacional
DINAP – Distribuidora Nacional de Publicações Ltda.
tes, que assegurem aos alunos e alunas as aptidões ria que o propósito velado não é reformar a Previdên- movimentos migratórios e depoimentos em ví- Essas empresas de mídia nunca perderam o po- Av. Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678 – Jd. Belmonte –
necessárias para ocupar seus lugares nas inúmeras cia, e sim destruir o modelo de sociedade pactuado deo. “Hoje, a estimativa é de que existam entre der, nem os governos conseguiram regular nada. 32 A MÍDIA NORTE-AMERICANA E O INIMIGO IRANIANO
Se você quer a guerra, prepare-se para a guerra
Osasco/SP – 06045-390 – Tel .: 11. 3789-1624

fileiras da informalidade ou de trabalhos precarizados. em 1988. O real objetivo é transitar a Seguridade 700 mil e 1 milhão de estrangeiros morando Agora, com os governos de direita, as empresas Por Serge Halimi e Pierre Rimbert LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)
O caminho proposto pelo livro passa por uma aná- Social para o Seguro Social e para o assistencialismo. aqui. Este webdocumentário mostra algumas continuam aumentando seu poder. Como na Ar- Fundador
lise das agendas educacionais tecnicistas do empre- “Mas há alternativas”, diz Fagnani. A primeira é cres- histórias de quem procura melhores condi-
sariado brasileiro, pelo pânico moral fomentado pe- cer para elevar as receitas. A segunda é exigir maior ções de vida, mas também de quem mudou
gentina, onde o grupo Clarín comprou uma em-
presa de telecomunicações.
33 O SUCESSO DAS MEMÓRIAS DE MICHELLE OBAMA
Você também pode ser como eu
Hubert BEUVE-MÉRY

Presidente, Diretor da Publicação


los fundamentalistas de plantão no contexto escolar equidade na contribuição das classes de maior renda por amor, sempre em busca da esperança de Emilio Verzac Por Mona Chollet Serge HALIMI

e, por fim, pela pedagogia de e em resistência, que – os verdadeiros privilegiados. uma vida melhor”, explicam. Redator-Chefe

cria no interior dos sistemas educacionais edificados <http://idasevindasdoc.com.br> 34 MÚSICA


A trilha sonora do neoliberalismo
Philippe DESCAMPS

Diretora de Relações e das Edições Internacionais


para a dominação o ambiente para uma insurgência Participe de Le Monde Diplomatique Brasil: envie suas Por Evelyne Pieiller Anne-Cécile ROBERT
na qual a educação como prática da liberdade insiste críticas e sugestões para diplomatique@diplomatique.org.br
As cartas são publicadas por ordem de recebimento e, Le Monde diplomatique
em ter esperança, necessária para a construção de se necessário, resumidas para a publicação. 36 ENTREVISTA TAÍS ARAÚJO
“Em um país misógino e racista,
1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
secretariat@monde-diplomatique.fr
novas utopias e para a transformação social. [Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab, www.monde-diplomatique.fr
Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus espero todo tipo de violência”
professor de Jornalismo na ESPM, mestre em autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação Por Guilherme Henrique
[Juliane Cintra de Oliveira] Jornalista e coordena- [Marilane Oliveira Teixeira] Economista e pesqui- Teoria da Comunicação pela ECA-USP e dou- do periódico.
Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava
com 37 edições internacionais em 20 línguas:
dora de comunicação da Ação Educativa. sadora do Cesit-Unicamp. torando em Design na FAU-USP.
38 MISCELÂNEA 32 edições impressas e 5 eletrônicas.
ISSN: 1981-7525
Capa: © Rodrigo Leão

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