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2.

3 - A "CONSTRUÇÃO" DOS FUNDAMENTOS DA


MALÍCIA, 1800-2000

Quando penso no futuro


não me esqueço do passado.
(Desilusão, Paulinho da Viola)

A malícia, como a conhecemos hoje, não apareceu já


prontinha para ser usada com os primeiros capoeiras.
Ela foi sendo lentamente "construída" através das
gerações.

Rio de Janeiro: os escravos africanos ladinos, 1800-


1850

No Rio de Janeiro, no comecinho dos 1800s, já temos


notícias de pequenos aglomeradas de negros capoeiras,
que eram alvo da perseguição das autoridades. Estes
grupos, normalmente, eram constituídos de menos de
meia dúzia de escravos, e todos (ou, a grande maioria)
eram africanos ladinos, já conhecedores da cidade (em
oposição ao africano boçal, recem-chegado da Africa).
Logo após a chegada de D. João VI (1808), e com a
criação da Guarda Real (que se desenvolveu até tornar-
se a atual Polícia Militar do Rio de Janeiro), estes
pequenos grupos de escravos ladinos se tornaram um
dos principais alvos da nova força policial.
a. Um tipo social.
No início dos 1800s, como nos ensinou Líbano
Soares no livro Negregada Instituição, os escrivães de
polícia comumente referiam-se a "jogar capoeira" -
indicando uma prática lúdica. Mas nas décadas
seguintes a prisão será feita simplesmente "por
capoeira" - que indica o uso do termo para identificar um
"tipo social" e, aí incluídos, toda sorte de desordeiros e
malfeitores (24). Ou seja, aí vemos o início da identidade
do capoeira; e o início da construção de uma maneira de
ser, agir e pensar deste "tipo social" - o início da malícia.
Este "tipo social" já é um antecessor direto do
malandro carioca, decantado nos 1920s, reprimido por
Vargas nos 1930s, mas sobrevivendo até nossos dias;
não somente nos sambas dos recém falecidos Morreira
da Silva e Bezerra da Silva, ou do atual Zeca Pagodinho;
mas também no imaginário brasileiro, e até mesmo
numa linha de umbanda.
Vamos ver, a seguir, que o Malandro, assim como o
Valente; paralelo a muitas outras características de "ser
um capoeirista"; já começam a ser parte da incipiente da
maneira de ser, da malícia, desde o início do Brasil
Império em 1808.

Já existia uma identidade entre os escravos capoeiras


- não só por serem africanos e ladinos, mas por serem
especificamente "capoeiras" -, que se manifestava com o
uso de fitas com as cores vermelha e amarela (talvez
ligadas ao Congo, na África centro-ocidental), e o uso do
barrete vermelho, nas primeiras décadas de 1800s. E
também, entre outras coisas, determinados assobios
para se comunicarem - escravos eram presos por
"assobiarem como capoeiras". (25)
Estes pequenos grupos - que vão evoluir até se
tornarem as maltas de capoeira - eram mais fortemente
visíveis, e também era assim com outras manifestações
com raízes africanas em toda a América e Caribe
rebeldes, nos dias de folga da escravaria e durante as
festas populares - dançando e fazendo arruaça na frente
de procissões religiosas, desfiles militares, festas de rua.
Não eram, no entretanto, grupos de assaltantes ou
ladrões, como se poderia pensar; eram apenas
arruaceiros.
Já vemos aí, algumas características que irão se
imbricar na maneira de ser e na filosofia dos
capoeiristas, e da capoeira:
- a vontade, a verdadeira mania, de aparecer, de ter
visibilidade, de se pavonear diante da população
obediente e domada;
- o gostar pela "arruaça";
- o gosto pela festa, pela dança, pela música; a
"alegria de viver".

b. O território.
Apesar de constituídos por escravos, estes grupos se
consideravam donos de determinadas partes da cidade.
Tanto era assim que a capoeiragem e as fugas para os
quilombos eram práticas paralelas mas geralmente
dissociadas. Ficar na cidade, como escravo, mas
pertencendo a uma malta (que era "dona" de um
território), era uma opção política e de poder, que os
capoeiras escolhiam voluntariamente.
Apesar de serem "donos" de áreas específicas no Rio
dos 1800s, geralmente praças com chafarizes (centros
nevrálgicos onde os escravos vinham buscar água para
abastecer a casa dos senhores brancos), os capoeiras
movimentavam-se pela cidade com estonteante
mobilidade, sempre fazendo badernas e tocando o terror
- "estratégia sinuosa". E que talvez, hoje, tenha
enxameado a estonteante mobilidade de jovens
"mestres" que perambulam pelo mundo, dando aulas,
apresentando-se em teatros e espetáculos, comendo as
"gringas", tornando-se efetivos e atuantes vetores da
cultura brasileira no exterior sem nenhum apoio,
monetário ou estratégico, da mídia, do Governo, ou do
capital privado.
No entanto, esta característica de "ser dono de um
determinado território" foi algo que se perdeu e não foi
transmitido das maltas dos 1800s para os grupos de
capoeiras atuais. O "território" é característica de outro
segmento marginal que são as gangues do narcotráfico
carioca que dominam, cada uma, determinada favela.
Aliás, em relação a estas gangues de traficantes, é bom
lembrar como seus jovens integrantes também se
amarram num baile funk ("o gosto pela festa, pela dança,
pela música").
Além disto, as maltas nunca se interessaram em
"fazer a revolução"; derrubar os "senhores" brancos
através de um levante armado como fizeram os negros
escravos no Haiti no começo dos 1800s. Optaram (como
as gangues do narcotráfico, hoje em dia, também) por
conquistar espaços dentro da urbe constituída; como se
soubessem que a derrubada de um sistema injusto e
autoritário leva irremediavelmente a outro similar; como
se soubessem que o problema não são os "sistemas"
mas, sim, o ser humano irremediavelmente predador:
- "urubu come folha? é conversa fiada?", "olha a
cobra que morde, senhor são bento", dizem os cantos de
capoeira.

Por volta de 1830, pela primeira vez, aparecem


relatos de capoeiras escalando, por fora, as torres de
igrejas e saltando sobre os sinos - com perigo de queda
e morte -, fazendo-os soar inesperadamente de
madrugada, ou em dias de festa e procissão, ante o
olhar embabascado da multidão. As igrejas eram
marcos nítidos e importantes das diferentes áreas e
freguesias da cidade, e "dominá-las" era simbólico de
dominar aquela freguesia, aquele território. (26)
Aqui também vemos novamente a vontade de
aparecer, tornar-se visível, pavonear-se frente a
população obediente e servil (em oposição a maioria da
marginalidade que primava por passar desapercebida).
Este traço vai também aparecer no próprio jogo, nos
saltos e floreios acrobáticos estonteantes que pouco têm
a ver com a objetividade das artes marciais e dos
desportos; assim como na persona esfuziante e no visual
do malandro das décadas de 1920 a 1950; assim como
na figura de muitos mestres contemporâneos,
verdadeiras personagens de estória-em-quadrinho (mas,
já em oposição, por volta de 1970 aparece um novo um
tipo de capoeirista, "sério" e careta, influenciado pela
mentalidade da Educação Física e pelos valores do
Sistema e da classe média).

c. Os conflitos
Os conflitos com a polícia carioca, no início dos
1800s, existiam paralelo à guerra crônica entre as
maltas: "tanto uns quanto outros (os policiais e as outras
maltas) eram invasores, beligerantes, se bem que em
planos diferentes" (27), nos diz Soares. A cidade era
deles, mas não toda a cidade, ou toda de uma vez; as
maltas "forjaram uma cidade (negra) dentro da outra"
(28).
Esta "guerra crônica", que também é típica de todos
grupos com estrutura "nômade" (29), teve sequência em
toda a história do Jogo e reaparece no conflito "capoeira
regional x capoeira angola" (aprox. de 1940 em diante); e
tem seguimento nas inimizades entre os grupos de
capoeira de nossos dias.

d. A influência dos presos políticos, e marinheiros


estrangeiros
Na década de 1820, os escravos presos "por
capoeira" ficavam em um navio-prisão - a Persiganga -, e
trabalhavam nas obras de construção de um colossal
dique para reparos de navios - 37 anos para ser
concluído -, no Arsenal da Marinha, na Ilha das Cobras
(Rio de Janeiro).
Misto de prisão e trabalhos forçados, o Arsenal com
sua explosiva mistura - capoeiras, escravos fugidos,
delinquentes e malfeitores, marinheiros nacionais e
estrangeiros, rebeldes e prisioneiros políticos de levantes
regionais, prisioneiros argentinos e uruguaios das
Guerras Cisplaltinas, mulheres de sentenciados e
escravas de ganho (vendedoras de comida etc.) -, todos
participando do cotidiano da ilha , forjou um caldeirão de
troca de experiências e vivências que seguramente
ajudou a forjar o perfil e as estratégias dos capoeiras e
das maltas. (30)
As inacreditáveis "fugas atlânticas" - escravos presos
no Arsenal que fugiam e depois eram recapturados em,
p.ex., Londres, como foi o caso de Bento Creoulo (31) -
foram alguns dos frutos de semelhante convivência;
especificamente com a ajuda dos marinheiros
estrangeiros que desertavam de seus navios e, quando
capturados, também ficavam presos na Persinganga.
Isto nos faz lembrar a facilidade com que os
capoeiristas atuais "dão um jeito" e viajam pelo mundo,
ensinando a capoeira; mesmo aqueles que vêm das
classes economicamente desfavorecidas e normalmente
jamais teriam esta chance.
Lembra-nos também que, desde mestre Bimba
(1930); e, a partir dos 1960s, passando pelo Grupo
Senzala no Rio, e os jovens mestres baianos que
emigraram para São Paulo (como Acordeon e
Suassuna); os capoeira sempre tiveram facilidade em
absorver o "saber" de outros contextos: p.ex., o convívio
dos capoeiristas da atual "era das academias" com
outras artes marciais, especialmente as orientais com
séculos de experiência, ajudou a forjar o perfil dos
grupos contemporâneos.

O convívio de presos "comuns" com presos "políticos"


têm gerado graves consequencias para os orgãos de
repressão. Bem recentemente, durante a ditadura militar
de 1964-1984, a convivência de presos políticos com
narco-traficantes teria sido um dos vetores que agenciou
a estrutura do crime organizado - que se sofisticou e
cresceu após aproximadamente 1980 -, em mega-
gangues, como o Comando Vermelho e o Terceiro
Comando, que dominaram a cidade do Rio de Janeiro,
inclusive mandando ocasionalmente fechar o comércio
local ( e sendo obedecidos) no início dos atuais 2000s
(algo que as maltas, após 1850, também faziam).
Uma convivência, algo semelhante, no Arsenal de
Marinha na década de 1820, foi um dos vetores que
formou, após 1850, a infraestrutura e as estratégias das
mega-maltas, Nagoas e Guaimus, que dominaram as
ruas e praças da cidade do Rio no final dos 1800s,
delineou o Malandro dos 1920s, e contribui na
construção da malícia da capoeira de nossos dias.

e. A "brasilidade"
Em 9 de junho de 1828, os batalhões de mercenários
alemães e irlandeses com cerca de duas mil praças - a
serviço de D. Pedro I -, se revoltaram: "e, de armas em
punho, abandonaram os quartéis e fizeram uma
carnificina, matando, devastando e saqueando tudo".
Mas foram atacados "por magotes de pretos
denominados capoeiras", e caíram os estrangeiros
"pelas ruas e praças públicas, feridos em grande parte, e
bastante sem vida" (32).
Depois do fim da rebelião, uma grande quantidade de
negros e escravos "continuou armada, causando
temores iguais ou maiores na população e nas
autoridades da Corte"(33). Os escravos também
continuaram a usar "topes" - fitas com as cores da
bandeira brasileira -, algo que causava um certo
desconforto nas classes hegemônicas.
Este sentimento de "brasilidade", que nada tem a ver
com o respeito às leis do governo, ou com a moral
burguesa ou proletária, impera até hoje dentro das
academias e grupos. Provavelmente tem algo a ver com
o sentimento de territorialidade; de pertencer a um
determinado "território"; e até mesmo ser "dono" daquele
terrítório, mesmo quando eram escravos nos 1800s. O
mesmo - sentimento de brasilidade - acontece hoje em
dia com muitos mestres; mesmo com aqueles de pouco
sucesso econômico e que nunca foram ajudados, nem
apoiados pelo Estado.

Vale salientar o ano de 1831 - já o início do período


regencial - quando lusitanos, de um lado, e pardos e
pretos, do outro, se enfretaram nas ruas centrais da
capital do Império, o que culminou com abdicação e a
partida de D.Pedro I para a Europa.

... (em 1831) o papel de libertos e cativos


foi importante, até para se contrapor aos
chumbos (lusitanos), mas, agora, sua
permanência nas ruas e o uso de
símbolos nacionais ("topes", fitas com as
cores da bandeira nacional, por exemplo)
eram perigosos e tinham de ser
combatidos. O mesmo ocorreu em
relação a 1828, quando os "moleques"
foram úteis para derrotar os irlandeses e
alemães, mas após o fim do motim
transformaram-se de solução em
problema. De certa forma era um padrão
que se repetia. (34)

f. Os artistas estrangeiros que documentaram a


capoeira
Então, como estamos vendo, no Rio do início dos
1800s a capoeira já era bem visível e documentada,
principalmente "pela pena do escrivão de polícia", como
nos ensinou Líbano Soares (35). Em oposição à
Salvador que é considerada a "terra da capoeira", mas
onde a capoeira só começa a ter visibilidade após 1900.
Muitas características daquela época continuaram
ativas e fazem parte da maneira de ser, da identidade do
capoeirista atual, e também de sua filosofia de vida - a
malícia.
Esta visibilidade da capoeira carioca também está
documentada em textos de "insuspeitados visitantes
estrangeiros", como o artista alemão Rugendas (1835),
que nos deixou a conhecida gravura colorida - "Jogar
capuëra, ou dance de la guerre" -, acompanhada do
texto abaixo.

Os negros tem ainda um outro folguedo


guerreiro muito mais violento, a capoeira:
dois campeões se precipitam um sobre o
outro procurando dar com a cabeça no
peito do adversário que desejam
derrubar.
Evita-se o ataque com saltos de lado e
paradas igualmente hábeis; mas
lançando-se um contra o outro, mais ou
menos como bodes, acontece-lhes
chocarem-se fortemente cabeça contra
cabeça, o que faz com que a brincadeira
não raro degenere em briga e que as
facas entrem em jogo ensangüentando-
a. (36)

Então vemos que, em 1835, já existia a cabeçada e


os "saltos hábeis" no Jogo. A presença das facas
"ensanguentando o jogo", por sua vez, revela a presença
do Valente na "maneira de ser" do capoeira carioca - na
malícia que se estruturava no Rio de Janeiro de 1835.
Vemos com clareza que, em 1835, a "filosofia", a
"maneira de ser dos capoeiras", era ainda uma coisa
primária e incompleta em relação ao que é hoje. Pode-se
ver a mesma coisa - uma forma ainda primária e
incompleta - na maneira de jogar: apenas cabeçadas e
"saltos ágeis". Aliás, não poderia ser de outra forma: a
"maneira de jogar" e a "filosofia" caminham juntas; o
corpo aprende a malícia do Jogo, e só depois este
"saber" extrapola pra cabeça e se constitui em "filosofia".
No entanto, apesar da forma primária e incompleta,
elementos básicos, tanto do jogo quanto da filosofia, já
existiam: a capüera era jogada ao som de um atabaque.
Além disto já era jogo - "jogar capüera" -, além de ser
luta e também dança - "dance de la guerre". E muito dos
elementos que faltavam ao jogo já existiam no Rio de
Janeiro, embora ainda não associados à capoeira:
- Augusto Earle já tinha pintado sua aquarela,
"Negros lutando" (1822), onde um escravo africano dava
uma "benção" (chute com a sola do pé no abdomem) em
outro;
- Debret já havia desenhado e comentado o
berimbau, "tocado por um escravo cego numa praça
pública", em 1824 (37);
- Debret, também já havia desenhado e descrito, em
1824 (38), os "negros volteadores", que iam à frente dos
enterros dos africanos importantes no Brasil, dando
saltos mortais e outros pulos acrobáticos (o "floreio").

g. A capoeira baiana em 1800-1850


Por sua vez, na Bahia, sabemos que a capoeira só
começa a ser visível a partir de 1900. (39)
Mas apesar da capoeira baiana, dos 1800s, até hoje
não estar documentada; certamente ela existiu, talvez
em outra forma. Acreditamos nisto devido a pujança da
capoeira de Salvador e do Recôncavo no comecinho dos
1900s, e que não poderia ter surgido do nada - como
bem nos ensinou mestre Frede Abreu.
Vejam este texto de 1831:

... alguns cativos (em Salvador) ousaram


ocupar cadeiras e participar dos debates
da Câmara. A história de um deles é
contada pelo Secretário da Câmara (de
Salvador, em 1831), Attaíde Seixas:

"E reparando eu num negro, José


Ignacio, cativo de Felix da Silva
Monteiro, sentado nas cadeiras da
Câmara, perguntei-lhe quem era,
respondeu-me que era hum cidadão
como eu, e mostrou-me hua faca de
ponta batendo com ella sobre a meza".
(40)

Vejam bem este texto, acima.


Ninguém fala que o escravo, José Ignacio, era "um
capoeira".
Mas a atitude do escravo, a valentia, a arrogância, e a
faca de ponta, seguramente eram características da
"maneira de ser"; eram características da identidade do
capoeira (como já vimos na descrição de Rugendas, no
Rio de Janeiro, de 1835); características do capoeira,
tanto em 1831 em Salvador, como também em muitos de
nossos colegas atuais.
Em suma, vemos neste texto acima, que também já
existia a presença do Valente na maneira de ser do
capoeira baiano; já existia a presença do Valente na
malícia que se estruturava em Salvador no início dos
1800s.
As maltas, os brabos, e os valentões: 1850-1920

A "construção" da malícia começa, então, com os


pequenos grupos de escravos africanos ladinos; estes
grupos crescem e se transformam nas maltas cariocas.
Paralelo a esta dinâmica, vimos a capoeira que já
existia em Salvador (mas não é documentada), no
mesmo período - 1800-1850 -, e que também vai dar sua
contribuição neste processo.

a. A Guerra do Paraguai e o "guerreiro brasileiro"


Em 1865, o Brasil, a Argentina e o Uruguai entraram
em guerra com o Paraguai e seu caudillo mestiço,
Solano López. O exército brasileiro formou batalhões de
capoeiras; muitos foram agarrados à força nas ruas do
Rio. No entanto, estes marginais revelaram-se
combatentes tão admiráveis que, aos poucos, foi se
formando, no exército, o mito do capoeira ser o
"guerreiro brasileiro".
Tanto foi assim que, mais tarde, em 1907 - como nos
ensinou mestre Jair "Perigo" Moura (41) -, quando a
capoeira já é proibida por lei pela primeira constituição
da República, surge dentro do próprio exército um
"manual de capoeiragem", O Guia da Capoeira ou
Ginástica Brasileira, escrito por um "distincto official do
exército brazileiro, mestre em todas as armas, proffessor
de militares e habilissino na gymnastica deffensiva ou
verdadeira arte do capoeira", "ilustrado e destinado ao
manuseio, ao uso, dos seus companheiros de farda".
Muita gente dizia que o "distincto oficial" tinha as iniciais
O.D.C.; que, apesar de aparecerem na página de rosto,
na verdade quer dizer: "Ofereço, dedico e consagro à
Distincta Mocidade". O libtreto - "Tendo-se esgotado,
com rapidez, a primeira edição desta obrinha..." -
abrange cinco partes, que focalizam: I) - Posições; II) -
Negaças; III) - Pancadas simples; IV) - Defesas relativas;
V) - Pancadas afiançadas". (41)

A prática (proibida) da capoeiragem, nas forças


armadas, foi se tornando tão popular que o general
Nestor Sezefredo dos Passos, Ministro da Guerra do
presidente Washington Luis e que tinha encaminhado um
projeto de lei para a Educação Física Brasileira, era um
conhecido praticante de capoeira. Em 1921, quando era
um coronel de 49 anos de idade e comandava o
Regimento Sampaio (RJ), o tenente Buys de Barros, de
22 anos, invadiu a sala do coronel Nestor, pistola numa
mão e fuzil na outra, anunciando que estava tomando o
Regimento junto com outros jovens oficiais; era mais um
levante militar característico da época.
Nestor Sezefredo colocou seu cinto com coldre e
revólver em cima da mesa, levantou-se, e delicadamente
perguntou ao tenente os motivos da rebelião. O jovem
tenente empolgou-se com a teoria e descuidou-se das
armas em riste. O general foi se aproximando pensativo
e, súbito, aplicou uma violenta e traiçoeira rasteira na
mais perfeita tradição capoeirista, jogando pro alto o
tenente, o revóver, o fuzil, e a ideologia. E em poucos
minutos reassumiu o controle do Regimento Sampaio. O
"Nestor", nome do general e meu também, não é
coincidência: Nestor Sezefredo foi meu avô paterno.

O mito do "guerreiro (capoeirista) brasileiro" se


manteve durante décadas entre determinados círculos
de oficiais e praças das Forças Armadas. Por exemplo,
bem mais tarde, em 1968, o jovem capoeirista Dick
Fersen só conseguiu organizar o 1º Simpósio Nacional
de Capoeira devido o apoio que teve da Força Aérea,
que forneceu as passagens de avião para os mestres de
outros estados, arrumou alojamento para mais de 50
participantes, e cedeu o auditório no Campos dos
Afonsos; este curioso e inusitado apoio deve ter
acontecido devido ao fascínio de algum velho coronel ou
brigadeiro pelo mito do "guerreiro brasileiro".

O mito, no entanto, não é sem fundamento: os


capoeiras do Batalhão de Zuavos, especialistas em
tomar as trincheiras inimigas na base da arma branca,
fizeram misérias na Guerra do Paraguai.

Destacam-se dois capoeiras nos


combates corpo-a-corpo: o alferes
Cezario Alves da Costa - posteriormente
condecorado com o hábito da Ordem do
Cruzeiro pelo marechal Conde d'Eu -, e o
alferes Antonio Francisco de Melo,
também tripulante da já citada corveta
Parnahyba que, entretanto, teve sua
promoção retardada devido ao seu
comportamento, observado pelo
comandante de corpos: "O cadete Melo
usava calça fofa, boné ou chapéu à
banda pimpão, e não dispensava o jeito
arrevesado dos entendidos em
mandinga" [p.79]. (42)

Já havia claramente, em 1865, uma maneira de se


vestir, de falar, e de ser, "dos entendidos em mandinga".
Já havia, até mesmo, a ligação entre a "mandinga" (algo
relacionado a magia, mas também um sinônimo da
malícia) e a capoeira.

Cinco anos depois - 1870 -, os sobreviventes da


Guerra do Paraguai voltaram como heróis. Muitas
destas feras, agora transformados em "heróis",
engrossaram as fileiras das maltas cariocas; vários
ingressaram na polícia (sem necessariamente abandonar
as maltas).
Esta infiltração - das classes perigosas nos meios
militares e, especialmente, na instituição policial -, nos
meados dos 1800s, é uma das causas históricas que
explicam a contemporânea corrupção policial, a
intimidade grotesca, e a falta de uma fronteira nítida,
entre muitos policiais cariocas contemporâneos e os
traficantes de armas e drogas. Uma outra causa, óbvia,
da corrupção que impera nas instituições policiais, é
serem parte de um sistema político/econômico que
sempre, desde seus primórdios, foi corrupto e
extremamente injusto. Talvez porque sempre fomos
uma "colônia" - dos portugueses, dos ingleses, das
norte-americanos, das multinacionais -; e nossos
dirigentes e homens-de-poder-e-dinheiro foram, e são,
em grande parte, os testa-de-ferro e gerentes de
interesses alienígenas. Enfim, estes "homens de
negócios" e politicos - na verdade otários com grana e
poder - são homens de visão muito curta, deslumbrados
com as "luzes da Europa" ou com o "dinheiro e a
modernidade dos Estados Unidos"; homens que ainda se
apoiam num modelo do tipo "massa de trabalhadores
ignorantes de baixo custo", e que não têm culhões, nem
competência, nem criatividade para instaurar uma "nova
ordem" em nosso país.

b. Um capoeirista, jornalista, escritor, e teatrólogo


português, documenta o método de ensino das maltas
de capoeira em 1886.
Plácido de Abreu, capoeira e jornalista, nos deixa
entrever a continuação da "construção" de um "método
de ensino"; e de uma "ética", de uma "filosofia", de "uma
maneira de ser" - enfim, da malícia -, nas maltas cariocas
em 1886, através de seu livro Os Capoeiras.
Nesta época além dos escravos africanos ladinos, a
capoeira carioca já tinha absorvido os negros livres, os
creoulos (negros nascidos no Brasil), muitos brancos, e
até estrangeiros (um em cada três capoeiras cariocas
presos em 1863, era estrangeiro, a maioria português).

Há pouco tempo o bando Guaiamu


costumava ensaiar os noviços no morro
do Livramento, no lugar denominado
Mangueira.
Os ensaios faziam-se regularmente nos
domingos de manhã e constavam dos
exercícios de cabeça, pé, e golpe de
navalha e faca. Os capoeiras de mais
fama serviam de instrutores.

... se os chefes decidiam que uma


questão fosse resolvida em combate
singular, enquanto os dois
representantes das cores vermelha e
branca se batiam, as duas maltas
conservavam-se à distância e, fosse qual
fosse o resultado, de ambos os lados
rompiam aclamações ao triunfador.
A chegada da polícia desarticulava os
dois grupos que fugiam de forma
organizada. (43)

Já existia, em 1886, não somente a capoeira com


uma identidade e filosofia - a malícia -, mas também um
método de ensino racional e estruturado para transmitir,
não somente as técnicas - "constavam dos exercícios de
cabeça, pé, e golpe de navalha e faca" -, como também
do axé e do saber - "os capoeiras de mais fama serviam
de instrutores".
Já existia também uma "ética": "se os chefes
decidiam que uma questão fosse resolvida em combate
singular, as duas maltas conservavam-se à distância e,
fosse qual fosse o resultado, de ambos os lados
rompiam aclamações ao triunfador".

Além disto, vejam bem: "... os dois grupos fugiam de


forma organizada".
Certamente, além do Valente, já podemos sentir uns
ares de malandragem - e de malandragem organizada! -,
em 1886.
Aliás, esta "fuga organizada", que já é parte da
malícia naquela época, vai ser citada por mestre Bimba
como característica da capoeira baiana quase cem anos
depois (1960):
"Quem aguenta tempestade é rochedo"
Ou seja, o capoeirista, que é um homem e não um
rochedo, foge quando a parada é dura demais.
Então esta "fuga organizada", que é citada por
Plácido de Abreu em 1886, e também é mencionada por
mestre Bimba por volta de 1960, é incorporada
definitivamente à malícia e vai dar na "estratégia da
esquiva" (em oposição à uma estratégia de "bater de
frente", ou de "bloquear", de várias artes marciais).
A esquiva, assim como a rasteira (o capoeira desce
se esquivando, ao mesmo tempo que derruba o
adversário), é parte do jogo; e também da maneira do
capoeirsta lidar com os "ataques" que sofre no seu dia-a-
dia.

c. Um desenhista e chargista registra a malandragem


e a capoeiragem carioca de 1906
Em 1906, vinte anos depois de Plácido de Abreu, as
maltas cariocas tinham sido desbaratadas pela
perseguição que veio com a República (1890).
Curiosamente temos uma reportagem de Lima Campos
enfocando a capoeira na sofsiticada revista carioca
Kosmos (44). Nesta reportagem, Kalixto Cordeiro
apresenta desenhos dos Guaimus e Nagoas - as duas
principais maltas do final dos 1800s -, e dá voz a estes
personagens, reproduzindo a maneira de falar destes
incipientes e seminais malandros.
O Valente ainda está poderoso na "construção" da
malícia; mas vemos que o Malandro começa a ter quase
tanta importância, e já começa, até mesmo, a ter uma
"fala malandreada".
Na verdade, talvez Kalixto, em 1906, não se
recordasse do "falar malandreado" de 25 anos antes, dos
Guaiamus e Nagoas de 1880. Por isso é mais provável
que retratou a "fala malandra" de sua própria época - o
comecinho dos 1900s, onde não existem mais as maltas,
mas já começa a aparecer o malandro.
Apesar da "malandragem carioca" ser mais
fortemente difundida nas décadas de 1920 a 1950
quando a "produção da música popular carioca teve na
malandragem seu motivo central ou seu motor poético"
(45) - como ensinou Claudia Matos -, já em 1906
podemos constatar uma "maneira de ser" malandra, uma
"filosofia da malandragem", um "texto malandro" da qual
se ouvem os ecos nas falas reproduzidas por Kalixto.
Vejam só a pujança; a importância da corporalidade;
do suíngue; e da "alegria de viver" (que também são
elementos integrantes da malícia da capoeira atual); que
transparece no falar destes primeiros malandros,
reproduzido por Kalixto, já em 1906.

Cahi no bahiano rente a poeira, e isquei-


lhe um rabo-de raia que o marreco voôu
na alegria do tombo, indo amarrotar a
tampa do juizo n'uma canastra, e ahi
gritei: Entra negrada! O turuna enfeitou-
se outra vez... Oh! cabra cutuba!

Não te conto nada seu compadre! o


samba esteve cuerê-réca. No fim
que houve uma choramella de
escacha.
O Cara Queimada estava de sorte
com a Quinota quando o marchante
chegou. Ih! seu camarada! Foi um
estrompicio!
O Marchante era sarado, foi logo
encaroçando a joça. Eu tive que
entrar com o meu jogo, sim, tu
sabes, que não vou nisso, e ali eu
estava separado, não havia cara
que me levasse vantagem. Quando
a coisa estava preta eu fui ver como
era p'ra contar como foi.

Com pouco vi um cabra peneirando


na minha frente, dansei de velho, o
typo era bom! sambou e entrou no
caterêté commigo...

Fiz duas chamadas nos materiaes


rodantes, de uma palma,sempre
com os mirones grelados no mecco,
o cabra não leu...
Fiz uma figuração por cima para o
bruto fugir com o carão, e grampeei
o individuo. Chamei o cabra na
xinga, levei a caveira de lado, e fui
buscar o machinismo mastigante do
poeta.
O cabra engolio a lingua, damnou-
se, não perdeu a scisma, ganhou
tento e compareceu de novo... Não
fiz questão do preço da banha...

Grimpei, perdi a estribeira, cocei-


me, dei de mão na barbeira e... ia
sapecar-lhe um rabo de gallo,
quando o cabra cascou-me uma
lamparina que eu vi vermelho!

Ahi não conversei, grudei na


parede, escorei o tronco, e meti-
lheo andante na caixa de comida. O
dreco bispando que eu não
erapecco, chamou na canella que si
bem corre, está muito longe...
Eu voltei p'ro samba garganteando:
"Meu Deus que noite sonorosa"(46)

Fica óbvio que o malandro, que "cai no bahiano",


aplica o "rabo-de-arraia", e que "mete a mão na barbeira"
(navalha), é um descendente direto das maltas; ainda
mais por viver no mesmo espaço geográfico (a Lapa, no
Rio de Janeiro) das maltas em 1906, menos de 20 anos
depois de serem desbaratadas.

d. O Negro Ciriaco derrota o japonês Sado Miako em


1909.
Também vemos esta maneira de falar, 6 anos depois,
no depoimento do Negro Cïriaco (1909), após sua vitória
sobre Sada Miako, campeão japonês de jiujitsu, e
instrutor de defesa pessoal dos oficiais da marinha
brasileira. Esta "fala malandreada" irá se desenvolver
nas décadas de 1920 e 1930, e será usada pelos
malandros e sambistas.

Vamos examinar o artigo de mestre Jair "Perigo"


Moura (47) que recorta trechos do depoimento de Ciríaco
ao jornal "A Notícia" (17/5/1909), à revista "A Careta"
(29/5/1909), e à revista "O Malho" (13/8/1910):

O embate de Ciríaco da Silva com Sada


Miako contribuiu decisivamente para a
credibilidade, a difusão, o renascimento
da capoeiragem, que atravessava uma
fase de declínio, de ostracismo, desde os
tempos da ofensiva desencadeada pelo
Dr. João Batista de Sampaio Ferraz, o
primeiro Chefe de Polícia do Rio de
Janeiro republicano...
Com sua vitória, Ciríaco tornou-se o alvo
de todas as atenções, mormente porque
vários capoeiras já tinham sido postos
fora de ação pela destreza, habilidade e
vigor dos golpes demolidores de Sada
Miako.

"Cheguei em frente com ele (declara


Ciriaco ao jornal "A Notícia"), dei as
minhas cuntinenças e fiz a primeira
ginga, carculei a artura do negrinho, a
meiada das pernas, risquei com a mão
pra espantá tico-tico, o camarada
tremeu, eu disse:
Antão?
Como é?
Ou tu leva o 41 dobrado ou tu está ruim
comigo, pruque eu imbolá, não imbolo.
O japonês tremeu, risquei ele por baixo,
dei o passo da limpeza gerá, o negrinho
aturduou, mexeu, mas não cahio".

O repórter inquiriu sobre a reação da


platéia que, entusiasmada, incitava
Ciríaco e aplaudia o seu desempenho
espetacular, gritando: "Aí, Ciríaco! Entra
com teu jogo inteiro!".

"Eu me queimei e já sabe: tampei


premero, distroci a esquerda, virei a
pantana, e oiá o homê levando com o
rabo-de-arraia pela chocolateira. Deu o
ar comprimido e foi cumê poeira.
Ahi eu fiz o manejo da cumprimentação e
convidei o home pro relógio de repetição,
mas o gringo se acontentou com a
chamada e se deu por satisfeito"...
"Você a princípio não queria dar a mão
ao japonês?"
Retrucando, o interrogado esclareceu:
"Quá o que, meu sinhô: se ele quizé eu
dou as duas mão e atiro com ele pru
cima do piano, da música e até das
madamas dos camarotes". (48)

As declarações de Ciríaco não confirmam o mito da


cusparada nos olhos - vitória sem fair play -; nem a
versão de que, logo nos primeiros instantes da luta,
Koma tentou o "arrastão" e Ciríaco soltou o "rabo-de-
arraia" pegando o adversário na cabeça - vitória por um
"golpe de sorte" e/ou "esperteza".
Na versão do capoeirista, o golpe fatal foi dado após
alguns momentos de estudo: Ciríaco desnorteou o
adversário com a ginga; fintou um tapa ("...risquei com a
mão pra espantá tico-tico"); tentou derrubar com a
"rasteira" ("risquei ele por baixo... mexeu, mas não
cahio"); movimentou-se, enganando e novamente
desnorteando o adversário ("tampei premero, distroci a
esquerda, virei a pantana"); para só então desferir o
"rabo-de-arraia na chocolateira" (cabeça).

Pode-se compreender a força do mito da "cusparada"


por estar baseado na "falsidade" (uma "qualidade", no
entender dos capoeiristas).
Pode-se também compreender o potencial de uma
explicação da vitória de Ciríaco, baseada na "esperteza"
(Ciríaco prevendo que Miako iria "entrar agarrando por
baixo tentando levá-lo para o chão, para a luta
agarrada"); e o fim da luta com um único "golpe de
sorte". Ainda mais que o próprio capoeirista recusava-se
a lutar agarrado ("...antão? como é? ou tu leva o 41
dobrado ou tu está ruim comigo, pruque eu imbolá, não
imbolo").

Por outro lado, entende-se também a surpresa geral


face a vitória de Ciríaco ("tornou-se o alvo de todas as
atenções, mormente porque vários capoeiras já tinham
sido postos fora de ação pela destreza, habilidade e
vigor dos golpes demolidores de Sada Miako").
Vigorava um diagnóstico depreciativo, uma "ideologia
do pessimismo" do "homem brasileiro" (que irá desaguar
em Moreira Leite, "O caráter nacional brasileiro", 1968),
desde o Visconde de Taunay, no Segundo Reinado, com
suas esperanças da redenção antropológica atrvés de
uma imigração dos povos da Europa do Norte (alemães,
escandinavos).
Era necessário justificar a vitória do negro brasileiro
sobre o estrangeiro, contratado para "ministrar os
ensinamentos das regras do jiu-jitsu, difundidos pela
Marinha do Brasil" - o ramo aristocrático da Forças
Armadas Brasileiras. Esta justificativa alegaria uma
"traição" ou "esperteza".
Seria impensável imaginar que Ciríaco - negro
capoeira - pudesse sair vitorioso em condições de fair
play; embora o capoeira testemunhase que no início da
luta "cheguei em frente com ele e dei as minhas
cuntinenças" e que, após o "rabo-de-arraia" demolidor,
"fiz (novamente) o manejo da cumprimentação e convidei
o homê pro relógio de repetição, mas o gringo se
acontentou com a chamada e se deu por satisfeito". Na
fala do reporter nota-se claramente a dúvida, a
incredulidade numa vitória "honesta" de Ciríaco: "você, a
princípio, não queria dar a mão ao japonês?"; e, mesmo
tantos anos depois, sentimos claramente o despertar da
irritação do capoeira que comprende claramente os
preconceitos do sinhô jornalista: "quá o que, meu sinhô:
se ele quizé eu dou as duas mão e atiro com ele pru
cima do piano, da música e até das madamas dos
camarotes".
Ciríaco faleceu três anos depois, em 1912, aos
quarenta anos de idade, vitimado por uremia.

Com Ciriaco vemos que a "construção" da malícia já


incorporou definitivamente o Malandro (além do Valente);
e que ocasionalmente o capoeira emerge como "herói".
Mas nesta construção, nem sempre se trata de
adicionar. Muitas vezes, períodos inteiros, ou
características básicas, são apagadas e jogadas foras
por uma nova geração.

c. O esquecimento, pela História, das maltas cariocas


dos 1800s
A memória da capoeiragem carioca do final dos
1800s, que nos deixou seu herdeiro destronado - o
malandro -; que vetorizou indivíduos como o capoeira
Negro Ciríaco, como João Candido da Revolta da
Chibata , e os capoeiras da Revolta da Vacina; foi
praticamente apagada:
- apagada da "memória oficial" da "História do Brasil";
- apagada da memória da capoeira, e da memória dos
capoeiristas em geral (e só é retomada após 1970, por
pesquisadores com o mestre Jair "Perigo" Moura, Bretas,
e Libano Soares,);
- e também da memória da própria malandragem
carioca.

1. O desaparecimento da memória oficial é fácil de


entender: a capoeira das maltas estava imbricada com a
malandragem e a navalha. Quando Getúlio sobe ao
poder na década de 1930 e permite uma "capoeira
domesticada e vigiada" (extirpada de seus valores
marginais e malandros, como também acontece hoje em
dia nas academias), esta capoeira das maltas é jogada
para escanteio, não é mais mencionada, como se nunca
tivesse existido.

2. Por outro lado, Letícia Reis estudou a parte


referente ao "sumiço" da capoeira das maltas cariocas
dos 1800s, da memória da capoeiragem:

... alguns estudiosos que abordaram a


capoeira baiana não perceberam
criticamente essa 'invenção de tradições',
acabaram por adotar a perspectiva dos
capoeiristas. (49)

Isto é: muitos capoeiristas nem sabem que existiu


esta capoeira caioca dos 1800s. E a maioria acredita que
"a capoeira nasceu na Bahia", e que a capoeira baiana é
"mais pura" e, dentro da capoeira baiana, acham que a
angola é "mais pura" e "mais tradicional" que a regional.
E muitos estudiosos e pesquisadores também
embaracaram nesta onda.
Seguiu-se, então, a desvalorização da capoeiragem
das maltas cariocas dos 1800s, e o obscurecimento de
sua memória entre os próprios capoeiras das décadas
seguintes; um fade-out ajudado pelos trabalhos literários
que (até aprox. 1965) glorificavam a "nova" Luta
Nacional (a capoeira castrada de suas origens negras e
marginais).
3. No entanto, a parte mais curiosa: o obscurecimento
da memória da capoeiragem carioca dos 1800s no
imaginário da própria malandragem carioca, é uma coisa
curiosa e aparentemente sem explicação.
Já em 1910, menos de vinte anos após o apogeu das
maltas cariocas (em 1890), o malandro Madame Satã,
em suas memórias, não menciona a capoeira das
maltas.

Isto nos leva a pensar que a malandragem, e muitas


outras atividades marginais das classes
economicamente desfavorecidas, não têm, e nem se
importam, com o passado. Eles vivem a "loucura" do
aqui e agora.
Por outro lado, quem insiste em preservar a "história",
em "construir" a idéia de um encadeado de ações no
tempo que podem dar um certo sentido (racional) à vida
(e à sociedade), é o Sistema, são os "sedentários" (no
sentido dada por Deleuze e Guatari em Mille Plateaux,
que veremos mais adiante).
"Marginal", aqui, obviamente não inclui o candomblé;
ou o próprio samba, a partir dos 1920s. "Marginal", aqui,
é marginal mesmo: a bandidagem; ou a boemia
desregrada de determinados artistas e pessoas. Eles
não tem memória pois não se importam nem em
preservar a sua própria vida, vivem num turbilhão que
sabem que terá curta duração.
d. Os brabos em Recife, e o valentão em Salvador
No entanto, independente do obscurecimento da
memória, esta "fala malandra" - que era reflexo de uma
"identidade do malandro", já em 1906 (Kalixto), e em
1912 (Ciríaco) - foi se sofisticando. Quando chegamos
em 1930, este tipo de falar, e o próprio tipo social - o
Malandro -, já existem em definitivo, e já têm grande
visibilidade no universo do samba, e na capoeira.

Paralelo a esta "construção da malícia" no Rio de


Janeiro, isto também acontecia com os brabos das
bandas de música do carnaval de Recife, no começo dos
1900s.
E também com os valentões da capoeira de Salvador.
Estes valentões eram sujeitos rudes e afeitos ao
autoritarismo policialesco, como vemos neste artigo do
jornal A Tarde, Salvador 1920:

Foi um rolo feio na Baixinha...


A navalha e a faca trabalharam
(...) João Batista ou "Guruxinha",
trabalhador das Docas, vinha com um
companheiro de trabalho, João de Tal,
vulgo "Rajado", quando ao chegar ao alto
do elevador do Taboão, encontraram
"Pedro Porreta" e "Piroca" (irmão de
Pedro), que estavam a beber numa
taverna.
O primeiro destes, que é peixeiro na
Baixa dos Sapateiros, e antigo desafecto
de de "Guruxinha", chama "Rajado" e
indaga:
- Que é que veio fazer aqui nesta zona?
- Viemos buscar uma roupa na casa do
alfaiate, na baixinha - reponde "Rajado".
- Pois então os dois estão presos por
que aqui quem manda sou eu! - grita o
"Porreta" (apesar de não ser policial).
A esta voz, "Rajado" sai em disparada
pela ladeira abaixo, enquanto
"Guruxinha" se revolta contra a esquisita
prisão dizendo:
- Não o conheço com autoridade de me
prender. (50)

Oliveira conclui a história contando que "Piroca"


atacou e foi esfaqueado "Guruxinho"; "Porreta" sacou de
sua "inestimável navalha... e começa a retalhar o
inimigo"; e "o único a sair ilesa de ferimentos foi o Pedro
Porreta".
Ou seja, neste relato, assim como na imagem de
Besouro - um ícone da capoeira -, em Salvador no início
dos 1900s, vemos claramente o Valente, mas nem tanto
o Malandro.
Mas estes rudes valentões baianos serão
substituídos, após a década de 1930, pelos Educadores,
como Bimba, Pastinha, Waldemar da Paixão, Noronha, e
tantos outros.

e. Os educadores baianos

A capoeira veio da África trazida pelo


africano todos nóis sabemos disco
porem não era educada quem educor
ella famos nois bahiano para sua
defeiza pessoal. (51)
Mestre Noronha, 1909-1977.

Estes educadores vão se travestir com valores da


sociedade para, justamente, seduzir esta sociedade, e
conquistar espaço para a capoeira e para o homem
negro.
Mas algo que não é comentado, é que paralelo a esta
"sedução" (que já é, obviamente, um agir malandro
altamente sofisticado), estes educadores - Bimba,
Pastinha, e todos os outros mestres baianos entre 1930
e 1960 -, também vão introduzir elementos "filosóficos" e
de "malandragem" (não necessariamente idênticos ao da
malandragem carioca) na incipiente capoeira baiana
daquela época.
Ou seja: vão ser muito importantes na "construção"
da malícia, após 1930.
Mas paralelo à Bimba e Pastinha, já acontecia o
samba (carioca) e o rádio (em todo o Brasil), por volta de
1920 1930, que foram elementos extremamente
importantes desta mesma dinâmica.

O malandro e o sambista

No início dos 1900s, não havia rádio nem televisão;


as experiências, as vivências, e o "saber" dos capoeiras
de uma cidade não influía diretamente e on line sobre os
capoeiras das outras cidades.
Ainda assim, estas capoeiras não eram
completamente estanques e isoladas. Já havia uma troca
de saberes, e havia canais de comunicação .
Especialmente porque o Rio e Salvador e Recife eram
cidades portuárias com enorme movimento de navios e
marinheiros, e um dos espaços privilegiados da capoeira
- dos 1800s e início dos 1900s - era justamente a área
portuária das três cidades, com seus navios e
marinheiros que iam de um local ao outro.
Por volta de 1920 e mais fortemente a partir de 1930,
o Rio era a capital da República e o grande centro
irradiador de cultura; tudo que acontecia por lá ressoava
pelo resto do país. A "filosofia da malandragem" carioca
começou a ser divulgada através dos "sambas de
malandro", que estavam sendo gravados em disco e
tocados no rádio, que já existia nesta época, com grande
sucesso em todo o país.

No Rio de Janeiro, enquanto segmentos sociais


hegemônicos cariocas tentavam mudar, no imaginário, a
imagem da capoeira; observava-se também a reação
das "classes populares" com a construção,
popularização, e consagração do "malandro".
O Malandro vai atravessar horizontalmente toda a
cultura, e maneira de ser, do carioca - e, em última
instância, do brasileiro -; e, verticalmente no tempo, vai
também ser vetor ativo e atuante na formação da atual
"filosofia da capoeira" - a malícia.
O Malandro vai se tornar tema de muitos sambas até
que, com a política de Vargas de valorização do trabalho
na década de 1930 (52), ele começará a apresentar-se
como o "malandro redimido".

O Malandro era o herdeiro destronado e solitário das


maltas cariocas extintas pela perseguição policial na
virada do século XIX para o XX.
"Solitário": agindo individualmente e sem o poder do
grupo, não se tornou um risco para a polícia e para o
novo Regime Republicano, como tinham sido as maltas
de capoeira do Império).
"Destronado": sem o apoio de algum político
poderoso; como (no passado) o poderoso e rico
parlamentar conservador, monarquista, e abolicionista,
Luiz Joaquim Duque-Estrada Teixeira, o Nhô-nhô da
Gloria, que patrocinava a malta Flor da Gente.
O malandro era um elemento fragilizado que contava
apenas com sua esperteza, sua lábia, seu charme, seu
know-how do jogo e das mulheres, sua capacidade de
apelar inesperadamente para a capoeiragem e para a
navalha quando se via acuado e sem possibilidades de
resolver a situação "na conversa".

Apesar desta herança - o Malandro -, a verdade é que


a ação policial conseguiu atomizar as maltas dos 1800s.
Não mais grupos, mas indivíduos isolados.
Por outro lado, era a vitória - dentro da derrota - da
estratégia de Manduca da Praia (aprox. 1870), que "não
recebia influências da capoeiragem local nem de outras
freguesias, fazendo vida à parte, sendo capoeira por sua
conta e risco".
Nós veremos muitos mestres, em Salvador e também
no Rio e São Paulo, nas décadas de 1950 e 1960, que
eram indivíduos que ensinavam capoeira "à parte, por
sua conta e risco", como o Manduca da Praia de cem
anos antes - 1870.
Mas já em 1970, vemos o reaparecimento de grandes
grupos de capoeira, principalmente no Rio e São Paulo,
que amealhavam dezenas e, a partir dos 1990, centenas
de professores (e alguns milhares de alunos).

A capoeira das maltas cariocas de 1800s quase não


deixou registro de mão própria - exceto pelos relatos de
Plácido de Abreu (1886) -; os registros que temos são de
outros atores, como "a pena do escrivão de polícia".
Por sua vez, a malandragem seminal do comecinho
dos 1900s também não deixou registro próprio, exceto
pelas falas de Kalixto e de Ciríaco.
Sobrou principalmente a voz do sambista.

As letras de samba por muito tempo


constituiram o principal, senão o único,
documento verbal que as classes
populares do Rio de Janeiro produziram
autônoma e espontaneamente. (53)

Provavelmente (e, aqui, com este "provavelmente",


entro no terreno das suposições e da "invenção de
tradição"), os capoeiras de Salvador e Recife
perceberam que aquela "malandragem" carioca -
veiculado pelos marinheiros e músicos que aportavam
vindos do Rio; e mais tarde, a partir dos 1930s, veiculada
pelos sambas que tocavam no rádio -, era algo bastante
"familiar".
"Familiar" mesmo, no sentido de ser algo da mesma
família.
E rapidamente adotaram, absorveram, e encarnaram
aquele "saber", e até mesmo parte de seu elegante e
espalhafatoso visual.
Inicialmente o samba era composto grupalmente, era
uma atividade comunitária. Mais tarde aparece o
indivíduo "autor/compositor de samba" (vemos uma certa
semelhança com as maltas que eram grupais, em
oposição à estratégia de Manduca da Praia que obrava
"por conta e risco").
Talvez pudéssemos dizer o mesmo das rodas de
capoeira, em Salvador, por volta de 1920 - era uma coisa
grupal, como a turma que iniciou Noronha -; até o
aparecimento do "mestre" com sua "academia", após a
década de 1930 com mestre Bimba.

Sinhô, o primeiro músico popular a se


distinguir na sociedade global como
autor-compositor de sambas, realiza a
conjunção ambivalente do coletivo com o
individual que caracterizaria mais tarde o
samba malandro, do qual aliás pode ser
considerado precursor.
Se o desejo de ascender socialmente ou
de ganhar dinheiro, orientava-lhe a
conduta no momento de registrar e
promover seus sambas, tal
individualismo não chegava a determinar
seu modo de produção, que permanecia
vinculado aos fundamentos
"comunalistas" - para retomar a
expressão de Muniz Sodré - do músico
negro-proletário. (54)

Geraldo Pereira, por sua vez, constituiu um modelo


de malandro e sambista daquela época: sambista,
compositor, valente, mulherengo, mas com emprego
como motorista da Limpeza Urbana.

Geraldo Deodoro Pereira nasceu em Juiz


de Fora, Minas Gerais, a 23 de abril de
1918. Vindo ainda garoto para o Rio, foi
morar em Mangueira, e depois no
Engenho de Dentro por volta dos 18
anos.
Em 1939, já morador da Lapa, teve sua
primeira composição gravada pelo cantor
Roberto de Paiva. Era o samba Se você
sair chorando, de parceria com Nelson
Teixeira.
Em 1940 começa sua associação com
Ciro Monteiro, seu grande amigo até o
final e principal intérprete.
Trabalhou em boates e teatros, sendo
também cantor, melodista e letrista.
De sua autoria, gravaram-se cerca de
sessenta sambas em 78 rpm, e ao todo
mais de 70 composições, embora muita
coisa sua ainfda permaneça inédita.
Morreu precocemente, ao que se diz em
consequência de uma briga com o
afamado Madame Satã.
Em 4 de maio de 1955, foi internado com
hemorragia intestinal no Hospital dos
Servidores Públicos, como funcionário
público que era, motorista da Limpeza
Urbana. Morreu no dia 8, um domingo,
aos 37 anos de idade. Ciro Monteiro
custeou seu enterro. Geraldo deixou
viúva, Eulíria Salustiano Pereira e o filho
Celso Salustiano Pereira.

O jornalista Jorge Aguiar considerou


Geraldo 'o maior sambista de sincopados
que já apareceu', fazendo 'sambas
diferentes de tudo o que se fazia na
época, usando a língua dos trens de
subúrbio, das gafieiras, das rodas de
malandragem da Lapa, das subidas
sinuosas dos morros'. Chamou-o
também de 'malandro autêntico dos anos
30', esclarecendo: 'como malandro que
era até a raiz dos cabelos (não confundir
com vagabundo que é outra coisa),
sempre na estica daquele linho branco
amarrotado, balanceado naqule ginga de
valente calmo e boa gente, quase dois
metros de altura, forte como um touro,
isso tudo fazia de Geraldo Pereira dois
tipos de que nunca se afastou: o
mulherengo incontrolado, sempre
cobiçado pelas cabrochas mais
disputadas, e um valente invulgar...
As histórias de valentia de Geraldo
Pereira enchem o folclore carioca'. (55)

A "filosofia da malandragem" estava, então, fina e


legitimamente representada nos sambas de Geraldo, e
outros, que eram excelente compositores, talentosos
sambistas, e genuínos malandros.
Vejam estes sambas, da década de 1930, quando o
malandro já era o "rei da Lapa" - o bairro da vida noturna
do Rio de Janeiro, cheio de bares, cassinos, casas de
jogo e de prostituição.

"Meu chapéu de lado


Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
De ser tão vadio"
(Lenço no pescoço, Wilson Batista,
1936)

"Lá vem o Chico Brito


Descendo o morro
nas mãos do Peçanha
É mais um processo
É mais uma façanha
Chico Brito faz do baralho
O seu melhor esporte
É valente no morro
Dizem que fuma
Uma erva lá do norte"
(Wilson Batista e Afonso Teixeira)

A Lapa, por sua vez, era o habitat perfeito para o


malandro:

A Lapa boêmia começou a crescer por


volta de 1910 e atingiu seu período de
ouro mais ou menos entre o final dos
anos quarenta (1940)... Os bares: o Siri,
o Café Colosso, o Capela, o Café Bahia,
o Imperial. Os cabarés: o Apolo, o Royal
Pigalle, o Vienna Budapeste, o Novo
México, o Casanova, e o incrível Cu da
Mãe. O Cassino High Life...
Parisienses, polacas e brasileiras.
Leonor Camarão, que morreu enquanto
tomava um banho de champanhe.
Boneca, por quem mais de um homem
se matou...

Mas outros lugares como o Mangue, a


Saúde, a Praça Onze e o Cais do Porto
também abrigaram muitos malandros...
Meia-Noite, Beto Batuqueiro, Edgar,
Sete-Coroas, Miguelzinho e muitos
outros... (56)

Quando, em 1937, Getúlio Vargas e o Estado Novo


instituem "a ideologia do culto ao trabalho e uma política
simultaneamente paternalista e repressiva em relação à
cultura popular" (57), os compositores foram
incentivados "a louvar os méritos e recompensas do
trabalhador, ao mesmo tempo que se interditam e
censuram os casos e façanhas do malandro" (58).
Além disto, muitos malandros vão morrendo.

Meia-Noite morreu assassinado por um


desafeto em 1938. Miguelzinho morreu
aos dezoito anos de morte natural.
Joãozinho da Lapa foi assassinado por
um companheiro de malandragem por
volta de 1939. Edgar morreu aos 26
anos de idade. (59)
Então, como já dissemos, na década de 1940
aparece:

... a figura ambígua do 'malandro


regenerado', sempre às voltas com a
polícia, falante, problemático, defensivo,
dizendo-se trabalhador honesto mas
sempre carregando os estigmas e
emblemas da malandragem
(60)

Vejam este samba de Wilson Batista, típico desta


época:

Seu Martins Vidal


Eu moro no Lins e sou o tal
que há muito tempo exerço
uma fiel profissão
Eu não sou mais
aquele antigo trapalhão
(Averiguações, Wilson Batista, 1941)

Mas o malandro já tinha fundado sua dinastia dentro


do samba. Na minha juventude, tivemos figuras como
Bezerra da Silva, João Nogueira, Zé Keti; e atualmente,
ilustres e talentosos representantes em Martinho da Vila
e Zeca Pagodinho; apesar dos versos de Chico Buarque
e de requiens e sentenças definitivas de estudiosos
vários.

Eu fui na Lapa
e perdi a viagem
pois essa tal malandragem
não existe mais.
(Chico Buarque)

Não tenho dúvidas quanto ao


desaparecimento, nos dias atuais, do
suporte sociológico que ancorou a
vadiagem na música popular.
(61)

Os malandros que viveram nas primeiras décadas do


século XX, e "protegeram" a Lapa, são um estranho elo
de ligação entre as maltas cariocas do século XIX - das
quais o malandro era o herdeiro - e as academias de
capoeira que irão começar a se alastrar no Rio, e logo
também em São Paulo, e depois por todo o Brasil. As
mais conhecidas, no Rio de Janeiro, foram:
- na década de 1930 (ate aprox. 1960), Sinhozinho
(capoeira-luta sem berimbau ou ritual);
- na de 1950 (até aprox. 1975), Artur Emídio (capoeira
de Itabuna, similar à de Bimba, capoeira objetiva com
berimbau);

Apesar do obscurecimento dos atores e cenários da


capoeiragem das maltas dos 1800s, houve uma herança
que se transmitiu de maneira não-causal e não-linear.
O saber da capoeiragem dos 1800s "enxameou" a
malandragem do início dos 1900s; assim como o
universo do samba carioca; e a capoeiragem carioca das
décadas de 1930, 40, 50, e, em consequência o grande
movimento de expansão, poderíamos até dizer
"explosão" da capoeira, que vai começar na década de
1960.

A descontrução do malandro, dentro da própria


malandragem

A malandragem, e os "verdadeiros malandros",


ironizam "espertos" e "golpistas" metidos a malandro,
chamando-os de "malandro-agulha"; uma denominação
que vem com seu poético epiteto - "toma no buraco
(ânus), sem perder a linha" -; primo-irmão do "malandro-
otário", e do "falso malandro"
Na verdade, existem várias categorias de malandro
na marginália, e que, contudo, são muito distintas de
outras variedades e tipos, como o 171 (escroque), o
golpista, o punguista (batedor de carteira), o vadio, o
mendingo, o ladrão que se especializa no furto (em
oposição ao que é especializado no roubo), o assaltante
de banco, o valente, o pistoleiro, o matador, o 281
(traficante),etc.
Evidentemente, estas categorias não aparecem
"puras" nas pessoas de carne e osso. Muitos destes,
apesar de "especializados", tem muito a ver com a
malandragem - melhor dizendo, são, todos eles,
trespassados pela "filosofia da malandragem".
Isto complica o entendimento do que seria a
Malandragem, e o Malandro.

Outro problema na abordagem do malandro é que,


muitas vezes, o estudioso não tem conhecimento desta
diversidade de categorias; não tem conhecimento prático
do submundo. Conhece apenas as representações feitas
pela classe média e burguesia; e confunde alhos com
bugalhos; confunde a grande obra de arte do mestre
Picasso, com a grande pica de aço do mestre de obras.

Este cenário se torna mais complexo, ainda, pela


descontrução do malandro dentro da própria
malandragem.
"Malandro não existe!", afirma o malandragem que,
há menos de vinte minutos atrás, encostado no balcão
de um botequim no Buraco Quente do Morro da
Mangueira (no Rio de Janeiro), mandou passear um
malandro-otário que queria ficar na aba do seu (do
malandragem) chapéu, filando cerveja gelada e cigarro:
"Sai fora, mané! Em casa de malandro, vagabundo
não pede emprego!"
Esta negação, da existência do malandro dentro da
própria malandragem, é antiga.
Noel Rosa, p.ex., cantava:

"No século do progresso,


o revólver teve ingresso
para acabar com a valentia"

Poderíamos pensar: o que Noel quer é, justamente,


separar e explicitar as categorias: "malandro é malandro,
valente é valente".
Tudo bem.
Mas o assunto é ligeiramente mais complexo, tanto é
assim, que Noel também canta:

"Malandro
é palavra derrotista,
que só faz deturpar
o nome do sambista"

Ou seja, não só o descolamento do malandro do


valente; mas também a separação entre o malandro e o
sambista.
E o mesmo samba conclui:

"Proponho,
ao povo civilizado,
não mais te chamar de malandro,
mas, sim, de rapaz folgado"

Enfim, levando em consideração que Noel Rosa era,


ele mesmo, um príncipe sem navalha da malandragem,
poderíamos pensar: paradoxo é o que não falta.

Se usarmos o enfoque de Eduardo Coutinho (62)


sobre "a dialética da tradição" onde ele analisa "o sentido
da tradição na obra de Paulinho da Viola", creio que
teremos mais facilidade em destrinchar e desovar o
presunto.
A tradição (no caso, a tradição da malandragem) não
é um saber "congelado", como uma estátua, ou uma
pintura pendurada na parede de um museu.
A tradição é um "processo dialético", no qual as
questões e problemas do presente são resolvidas por um
"saber" do passado. Mas este "saber" do passado, se
modifica e se adapta, mantém um diálogo com o
contexto presente (que é diverso do contexto onde o
"saber" originalmente foi forjado), para poder resolver os
problemas e as situações da atualidade.

Então, durante um certo período, as maltas cariocas


de capoeira tiveram sucesso e se desenvolveram usando
uma "estratégia de violência".
Este saber foi passado ao herdeiro das maltas: o
malandro. Este malandro obviamente era malandro e
também valente (como eram os capoeiras das maltas).
Mas eis que o samba, que nasce mais tarde, por volta
de 1920, no mesmo caldeirão cultural e geográfico,
começa a fazer sucesso. E eis que o
malandro/valente/sambista percebe que é melhor
"aposentar a navalha", como explicitou Chico Buarque.
Melhor dizendo: mantê-la escondida no cós da calça; e,
para uso externo, usar um discurso que a condene,
como foi feito por Noel:

"Deixa de arrastar este tamanco,


que tamanco nunca foi sandália.
Tira o lenço branco do pescoço,
compre terno e gravata,
jogue fora esta navalha,
que te atrapalha".
(Noel Rosa)

Então, creio que para melhor é esquecer por um


breve momento o Malandro, que é uma figura
camaleônica, quase utópica; é mais como uma direção e
um gol para os malandros (de carne e osso).
Esqueçamos, então, o Malandro; e vamos tentar
entender a Malandragem como uma Escola Filosófica
que matém um "processo dialético" com a tradição (os
valores herdados das maltas cariocas dos 1800s). Isto,
da mesma forma que Paulinho da Viola, que é um
"inovador" respeitado pelos jovens e pela Velha Guarda,
mantem um "processo dialético" com a tradição do
samba.
Então, a Malandragem é uma Escola Filosófica
baseada na "dialética da tradição".
Uma Escola filosófica que tem uma práxis, usada no
dia-a-dia.
Uma Escola Filosófica que faz evoluir o corpo, a
mente, e a alma.
Uma Escola Filosófica que, em grande parte, é
constituída de uma sabedoria corporal (aprendida com o
corpo, e não com a mente), como dançar o samba, jogar
capoeira, tocar instrumentos musicais.
Uma Escola Filosófica que atua vericalmente através
do tempo; e, horizontalmente, trespassa todo o
submundo, e também toda a sociedade brasileira, em
menor ou maior grau; mas nunca em estado de "pureza",
pois a "pureza" é característica dos saberes teóricos.

Por outro lado, o Malandro, seria aquele ser utópico


que se formaria, "puro", nesta Escola Filosófica. Uma
impossibilidade, já que é uma escola imbricada
seminalmente ao corpo e à "vida real", às esquinas, ao
mundo da rua - e portanto "impura".
O Malandro é, portanto, uma figura mítica, virtual; um
gol, uma direção na qual seguem os estudantes desta
escola.
Malandro não existe!
O que existe, então?
O que existe são pessoas que entraram em contato
com este saber - malandragem - e utilizam-no no seu
dia-a-dia. Alguns poucos são artistas talentosos, a
maioria não é. Alguns são espiritualizados e alto-astral, a
maioria não é. Alguns são filósofos ou inteligentes por
natureza, a maioria não é... cavalo tem muito, São Jorge
é um só.

As contribuições de Bimba e Pastinha na


"construção" da malícia

Mas este movimento de troca, esta "construção" da


capoeira e de sua malícia, que começou a ficar mais
forte por volta de 1930 (com os "sambas de malandro"
irradiados pelo rádio), não era uma rua de mão única, do
Rio para Salvador.
Na Bahia, a partir da década de 1930, como já
dissemos, entram em cena os Educadores, que terão
uma grande influência, talvez a mais forte de todas, na
"construção" da capoeira e de sua "filosofia" e "ética" - de
sua malícia.

Na década de 1930, mestre Bimba, com 30 e poucos


anos de idade, abre a sua academia de capoeira
regional, em Salvador. Este "estilo de capoeira" vai se
tornar tão forte e hegemônico que, já na década de 1940,
vemos os jornais e a população carioca, especialmente a
grande parcela que se interessava pelo esporte,
seguindo atentamente as lutas (de ringue) realizadas no
Rio de Janeiro entre capoeiristas de Bimba, vindos de
Salvador expressamente para realizarem as lutas, com
os capoeiristas cariocas de Sinhozinho.
Ou seja, na década de 1940, as trocas entre as
capoeiras do Rio e Salvador são cada vez mais fortes e
atuantes. E a malícia - o "saber" da capoeira que faz o
corpo e a mente dos capoeiristas - se enriquece, cada
vez mais, com as experiências e vivências destas duas
metrópoles.

Atuando em paralelo temos, portanto, durante as


décadas de 1930 e 1940:
- os "sambas de malandro", no Rio de Janeiro,
transmitidos pelo rádio para todo o Brasil; "tenho orgulho
de ser tão vadio!".
- a capoeira do (então) jovem mestre Sinhozinho, no
Rio, que apesar de ser uma capoeira sem berimbau,
voltada para a briga de rua e para as lutas de ringue,
estava também impregnada pelo espírito das ruas, da
valentia, e da malandragem.
- a "filosofia" que o (então) jovem mestre Bimba, uma
"enciclopédia da malandragem", nas palavras de mestre
Cesar "Itapuan", veicula aos seus alunos da capoeira
regional em Salvador: "capoeira é mardade!"
- as "filosofias" e "metafísicas", e a atenção à música
e elementos ritualizados (como as chamadas pra o
passo-a-dois, etc.), tão característicos de mestre
Pastinha e sua capoeira angola, também em Salvador:
"capoeira é tudo que a boca come!".

Mestre Bira "Acordeon" perguntou a mestre Pastinha


o que era capoeira: "é tudo que a boca come!".
Ao fazer a mesma pergunta a mestre Bimba, ele
respondeu: "Capoeira é mardade".
E Acordeon concluiu que, apesar da aparente
incongruência destas definições, "elas não conflitam".
Complementam-se e refletem diferentes posturas do
negro brasileiro "diante dos vários problemas da
existência". (63)

Por sua vez, mestre Decânio (1925), figura básica da


capoeira regional, braço direito de mestre Bimba por
décadas à fio, médico, professor da UBa, acupunturista,
sintetizou com maestria a determinante contribuição de
Pastinha e Bimba na feitura da capoeira contemporânea.

A capoeira desenvolve um processo


circular, bi-polar, concordante com o
sistema dialético Ying<->Yang,
consoante o qual em todo o jogo existe a
semente da maldade e em toda luta
encontramos movimentos portadores do
germe lúdico, dentro do conjunto do
aperfeiçoamento do Ser.
De modo similar, enquanto Mestre
Pastinha enfatizou os aspectos
metafísicos, éticos e até religiosos da
capoeira, preocupando-se com a
perpetuação da sua obra; Mestre Bimba
dedicou-se sobretudo aos componentes
pragmáticos, legalização da sua prática,
o aperfeiçoamento de sua técnica e a
sua aplicação à defesa pessoal.

A complementação do embasamento
somático pelos fundamentos psíquicos
através as duas correntes geradas pelos
criadores dos estilos "regional" e
"angola", garante a unidade da capoeira
como jogo e luta, ao mesmo tempo que a
transforma no jeito brasileiro de aprender
a "ser-estar" no mundo a que se refere
César Barbieri, abrindo um leque de
aplicações pedagógicas e terapêuticas
cujos limites são imensuráveis (64)_

Dizer que "capoeira é tudo que a boca come", é algo


que traz sorrisos aos lábios de intelectuais e artistas. É
algo zen. E já ouvi comentários elogiosos do tipo: "como
pode um homem semi-alfabetizado, como mestre
Pastinha, conseguiu chegar a tais profundezas
filosóficas!".
E me lembro de um sambista e compositor da velha
guarda da Mangueira, ou talvez fosse da Portela, sendo
entrevistado por uma jovem e modernosa jornalista, ao
vivo, na televisão:
- Mas como é que o sr., que é semi-analfabeto,
consegue compor estas verdadeiras jóias da Música
Popular Brasileira?
- Eu não sou semi-analfabeto. Sou anafalbeto
mesmo, minha filha. Semi-analfabeta é a sra.

A mardade de Bimba

Mas, diferente de mestre Pastinha, o conceito


apresentado por mestre Bimba - "... é mardade!" -,
apesar de nunca ter sido problemático para os
capoeiristas pois na verdade costuma desencadear
risadas ou sorrisos irônicos, causou desconforto em
alguns estudiosos.
Lewis, por exemplo, foi um que se enrolou ao tentar
explicar o que Bimba "queria dizer":

... a sua amargura pessoal (de Bimba)


face ao que ele achava que eram
injustiças da vida, fez com que a coisa
("capoeira é mardade") saísse mais forte
e amarga (do que a capoeira realmente
é). (65)
Mestre Bimba teria curtido uma "personal bitterness"
(amargura pessoal), em especial no fim de sua vida
quando se mudou de Salvador para Goiânia. É algo que
qualquer um que conhece a estória de Bimba consegue
entender:
- na década de 1930, Bimba cria um "método de
ensino" (que é a base do ensino de capoeira até hoje,
em todos os estilos) e abre a primeira "academia de
capoeira";
- em 1936, aos 36 anos, ele se sagra "campeão
invicto" e se torna uma espécie de ídolo em Salvador;
sua academia enche-se de alunos e ele é o primeiro a
viver de "aulas de capoeira";
- em 1953, aos 53 anos de idade, após apresentação
para Getúlio Vargas, ouviu do presidente que "a capoeira
é a verdadeira luta nacional!". Ora, Bimba já ensinava
capoeira há mais de 30 anos, tinha formado inúmeras
gerações de capoeiristas, e já era um ícone que atraía
turistas para Salvador (sem nada receber por isto). Com
o caloroso abraço de Vargas, muito provavelmente
Bimba ficou esperançoso que um outro ciclo
despontasse em sua vida: quem sabe ele iria organizar
capoeira nas universidades e colégios baianos, ou ter
alguma possibilidade de expandir a capoeira através os
shows e apresentações em todo o Brasil, semelhante
aos shows para turistas patrocinado pela prefeitura de
Salvador;
- mas nada disso aconteceu e, em 1974, Bimba
mudou-se para Goiânia com uma comitiva de 17
pessoas (2 mulheres, filhos, etc.), convidado por um
antigo aluno, achando que teria mais oportunidades
nesta outra cidade. Ao partir, mestre Bimba declarou:

Não voltarei mais (à Bahia), aqui nunca


fui lembrado pelos poderes públicos. Se
não gozar de nada em Goiânia, vou
gozar de seu cemitério. (66)

Então, é verdade que mestre Bimba, com razão,


estava definitivamente injuriado com os "poderes
públicos".
No entanto, justificar o "capoeira é mardade", de
Bimba, através de uma "personal bitterness" (amargura
pessoal), tornando a definição de Bimba "stronger and
darker" (mais forte e pesada do que a capoeira seria, na
idéia de Lewis), não nos parece correto.

Mestre Bimba viveu numa época e local onde todos


intuíam a capoeira como um todo complexo e
abrangente, inserida num contexto baiano e afro-
brasileiro do qual fazia parte o candomblé. Então, este
"todo" (capoeira e candomblé e etc.) não era preciso
explicitar: todo mundo conhecia, era parte do dia-a-dia.
Mas o fato da mardade - o conhecimento da
maldade; ter "intimidade" e saber lidar com a maldade
(67) - também fazer parte deste quadro, não era tão
óbvio e merecia uma citação (feita por mestre Bimba).
Esta citação da mardade seguramente é necessária para
teóricos deslumbrados com a parte estética e musical da
capoeira - não é o caso de Lewis -, associando-a a
coisas como o "contact improvisation" - somente
energias "positivas" e "politicamente corretas" em jogo -,
em moda nos mundos da dança e das terapias
alternativas.

A visão de Lewis sobre a capoeira, neste aspecto da


mardade (de mestre Bimba), é tão simplista e primária
quanto a visão e a compreensão dos contemporâneos
"guerreadores" da "capoeira-esporte-luta"; e tão
equivocada quanto a mentalidade fechada e excludente
dos "defensores da tradição ou da etnia" que demonizam
todos os outros estilos.
Então, com Bimba, além do Valente, estamos
também em presença do Malandro que tem uma ampla
visão e compreensão do mundo e das pessoas; algo que
seus oponentes, de outros estilos, tentem
deseperadamente obscurecer; tentam fazer de Bimba
"apenas um lutador" que criou uma "capoeira-luta" mas
que não tinha "nenhum fundamento".
Nos próximos dois livros que estudam o "histórico" da
capoeira, e que serão editados em breve, vamos estudar
mestre Bimba em profundidade, assim como outros
grandes mestres baianos como Pastinha, Noronha,
Waldemar, Canjiquinha, etc.

Aliás, em relação à mardade, Bimba não era o único


a ter este enfoque.
Muniz Sodré conta que Santugri, um velho capoeirista
do Recôncavo Baiano, era um brigador agilíssimo e
perigoso: tomava faca da mão de "bicho solto". E tinha
uma característica curiosa: dava "surra de chapéu".
Provavelmente colocava um pedaço de metal dentro do
chapéu dobrado, e onde o chapéu batia, quebrava.
Mas, paradoxalmente, Santugri jogava capoeira
quase em câmara lenta, repetindo sempre o mesmo
cantochão - "... ê, camaradinha, camará". A capoeira,
para Santugri, era uma espécie de devoção, algo "com
um fio-terra ligado à religião".
E, no entanto, semelhante a mestre Bimba, também
dizia: "capoeira é mardade!".

Para Pastinha - "capoeira é tudo que a boca come" -,


capoeira era tudo que a vida lhe oferecia, aceitando
filosoficamente o bom e o ruim.
No entanto, Paulo dos Anjos presenciou Pastinha - o
"filósofo" clean e "politicamente correto" da capoeira,
como querem alguns - admoestar e aconselhar cautela a
um amigo que estava "se apoiando demais num aluno de
inteira confiança". O amigo de Pastinha estava se
esquecendo que a falsidade existe e - no entender dos
capoeiristas - é parte normal do ser humano.
Em vários desenhos dos "Cadernos manuscritos de
mestre Pastinha" (aprox. 1960), escritos à mão pelo
próprio mestre, vemos seguidamente a anotação
"observação" (no sentido de olhar atentamente alguma
coisa ou pessoa) e/ou "mardade".

Mestre Leopoldina (1933-2007), da "velha guarda" do


Rio de Janeiro, por sua vez, tem uma música muito
conhecida, comentando o mesmo assunto:

"Neste mundo tem duas coisas


das quais ninguém nunca escapou:
a morte e a falsidade.
Nem Jesus Cristo se livrou!"

É verdade que nos 1930s e 1940s já estamos em


plena "era das academias", após o "tempo da
escravidão" e o "período da marginalidade".
É verdade que, aí, a capoeira perdeu, em parte, sua
faceta de "teatro mágico de rua" ou de "microcosmo
mágico" que representava, as vezes de forma brutal, as
energias que regem o relacionamento entre duas
pessoas e, de forma mais ampla, até mesmo as energias
que regem a vida.
É verdade que a capoeira se tornou mais acadêmica
e menos malandreada.
Mas apesar dos mestres Bimba e Pastinha estarem
seduzindo a classe média através da invençåo da
"academia de capoeira"; também é verdade que em
nenhum momento eles abriram mão de suas respectivas
"filsofias de vida", mumunhas, mandingas, e malícia,
profundamentes imbricadas na capoeira, no universo das
ruas, e da malandragem.

... é significante um pequeno incidente


narrado por Nenel (um dos filhos de
mestre Bimba), por ocasião de uma
apresentação de Bimba com seu grupo
em Goiânia em 1974 , no auge da
ditadura militar, quando apenas se
sussuravam os casos de tortura e
assassinatos de militantes políticos. A
exibição de capoeira era parte de um
evento oficial, a que se fazia presente o
general-presidente da República. Findo
o ato, Bimba já se retirava quando
alguém da comitiva oficial o chamou pelo
nome. Fingindo não ter ouvido, ele
continuou a andar, e ante o aviso de Mãe
Alice de que "a gente do presidente está
lhe chamando", o Mestre, sem se deter,
decretou: "Deixe esse filho da puta vir
atrás de mim". (68)

O aspecto criativo e renovador de Xangô


presidiu não apenas à capoeira de
Bimba, mas também ao seu
relacionamento com o poder instituído.
Seu lado "Balduíno" (o agitador político
do romance Jubiabá, de Jorge Amado)
era forte, embora pouco documentado
(não há registros escritos de sua
participação em greves do cais do porto).
Na verdade, ele era radicalmente avesso
a qualquer forma de injustiça social, e se
disso não falava muito, deixava entrever
o que sentia em forma de tiradas irônicas
e por seu comportamento junto à
comunidade em que vivia. (69)

Esta maneira de ser, de mestre Bimba, foi básica


para construir - ao menos, até um certo ponto - uma
identidade alternativa para os capoeiristas.
Uma identidade própria, distante dos valores do
Sistema; distante dos valores da classe média e da
burguesia; distante dos valores da televisão, do
consumo, e do capital.
Algumas linhas acima, eu falei "ao menos, até um
certo ponto" porque o sistema de academia introduziu
inevitavelmente elementos das classes hegemônicas na
capoeiragem.
Apesar disto, é sempre bom lembrar que Bimba,
Pastinha, e os demais educadores, nos livraram, em
grande parte, da proposta (carioca) da "Luta Nacional",
que já existia antes de 1900, e que tentava se
desvencilhar das raízes negras, e também do
desenvolvimento no meio marginal. Ainda assim, nos
nossos dias vemos inúmeros mestres tirando uma de
"sério" e "bem comportado", ou agindo como "professor
de Educação Física", ainda na sequência desta
mentalidade da "Luta Nacional".

Mas não foi só em relação ao Poder Estabelecido e à


Injustiça Social que mestre Bimba deixou sua marca.
Na área, básica em qualquer cultura, da
sensualidade e dos relacionamentos sexuais, mestre
Bimba - assim como a malandragem do samba carioca -
nunca se curvou as imposições castradoras da classe
média:

Mãe Alice não esconde: "Bimba era


homem de muitas mulheres, e sem
maiores esforços, porque era muito bom
amante". Sem contar as inúmeras
aventuras e flertes, ela afirma ter sido a
vigésima primeira mulher dele. Isto
significa que foi a de número 21 das que
viveram ou tiveram uma ligação mais
forte com ele. (70)

No entanto, Bimba nada tinha a ver com o "machismo"


latino, estava mais em harmonia com a alta malandragem
carioca em relação ao sexo. Também nada tinha a ver com
a onipotência tão típica dos winners (os "vencedores", em
oposição aos loosers, "perdedores") norte-americanos, algo
que Muniz Sodré também no comenta no texto abaixo:

Ele (Bimba) não acreditava em valentes


absolutos, escutava com cara de malícia,
quando escutava as bazófias de bravura
dos jovens campeões em tudo.
Raramente prestava-se a contar uma
história pessoal de briga na rua...
Nada aqui da onipotência anglo-saxônica
quanto à técnica de um esporte, mas
tudo a ver com o sentido de oportunidade
dos irônicos, ou com a malícia corajosa
do não-agir. Com Bimba, desfiz (Muniz
Sodré) todas minhas ilusões
adolescentes de onipotência. Físicas e
outras. (71)

As metafísicas de Pastinha

Mestre Pastinha, por outro lado, também contribuiu


fortemente na construção da identidade do capoeirista de
nossa época, assim como na maneira de ser do jogador.
Em especial por sua postura pessoal; mas tembém pelo
trabalho de seus diletos discípulos, mestre João
Pequeno (1920) e mestre João Grande (1933); e, sem
dúvida, através da atuação do (então) jovem mestre
Moraes (1950), que na década de 1970 iniciou um
movimento que trouxe de volta a capoeira angola que
estava em fase de extinção.
Pastinha ficou conhecido como "o filósofo da
capoeira":

Capoeira,
mandinga de escravo em ânsia de
liberdade.
Seu princípio não tem método,
seu fim é inconcebível ao mais sábio dos
mestres.

Mestre Pastinha tem uma faceta curiosa: não


enfatizava, em especial, o Malandro, e menos ainda o
Valente. Na verdade, preconizava valores da classe
média bem comportada: na sua roda não se jogava
descalço; se a camisa saísse da calça, ele parava o jogo
até o jogador se recompor, etc. (só para citar algumas
das mais curiosas). Esta estratégia visava a atrair e
seduzir a classe média, e também a "desarmar" os
possíveis "valentes" que eventualmente pudessem
baixar em sua roda.
No entanto, Pastinha foi um inovador em outra área:
já em 1960, podemos ouvir ecos do que, bem mais tarde,
seria chamado de "um pensamento ecológico", tanto do
ponto de vista da "ecologia da Terra", como também de
uma "ecologia humana" (72). É que, aliado à sua
"estratégia de sedução" que valorizava a moral e os
costumes da classe média, mestre Pastinha também
encetou alguns vôos poéticos e filosóficos:

Mo Caros Agos e Bons Capoeiristas,


Querer mal a vida e a terra é uma
inconsciente inveja, e porque provoca
astucias conquista aos seus camaradas,
ou a seu mestres para satifazer a seu da
conquistador, você mesmo se tiver
conhecimento, diz consigo, é verdade
porque eu vi, e vi com meus proprio olho
fulano fazer-se prevalecer de um
camarada, de corpo fraco, mas ele é
desperto e consciente, diz: Eu sem corpo
inteiramente e nada mais. (73)

O texto refere-se claramente às pessoas que não


estão de bem com a vida; às pessoas que não são
ecologicamente ligadas ao nosso planeta; às pessoas
invejosas.
Pastinha critica o uso da força dentro da roda: "eu
vi, e vi com meus proprio olho fulano fazer-se prevalecer
de um camarada, de corpo fraco".
O capoeirista, mesmo que mais fraco, porém
"desperto e consciente", está "inteiramente" presente e
preparado - algo como o "aqui e agora" dos samurais e
da filosofia zen -, "eu sem corpo", "e nada mais".

Mestre Pastinha, apesar de filosofo, não é um


apologista da mente; Pastinha não desprezava o corpo
como algo "inferior" (em relação à mente, ou à alma):

Amigos o corpo é um grande systema de


razão, por detrás de nossos
pensamentos acha-se um Snr. poderoso,
um sabio desconhecido. (74)

Aí, encontramos ecos de conceitos como


"pensamento corporal", "sabedoria corporal"; algo que
desabrocha em conceitos usados por mim atualmente: "a
malícia é um saber corporal, aprende-se com o corpo e,
depois, extravasa para a mente e para a vida do
jogador".
Além disto, Pastinha, apesar de valorizar o corpo e
preparo físico do capoeirista - "é um tipo musculoso" -,
como veremos abaixo, afirma também a "capoeira como
arte", em oposição à uma capoeira como esporte ou luta.

O Capoeirista de hoje é um tipo


musculoso, não é um malandro, nem um
profissional exclusivo de capoeira, somos
bailarinos, um homens que vive a arte da
capoeira e como artista sincero, somos
do trabalhos de todas profisções. (75)

A vadiação de Waldemar da Liberdade

Mestre Waldemar da Liberdade é outro que também


contribuiu na construção da filosofia da capoeira - a
malícia.

Eles (os mestres) vinham para Periperi,


aquela roda danada. Foi quando eu
peguei a aprender com eles. Eu era
rapazinho. Comprava duzentos réis de
vinho tinto, aquele copo branco de alça,
ele tomava e dizia: "pegue na boca da
minha calça!". Eu levava pra pegar na
boca da calça dele e ele virava aquela
cambalhota desgraçada e já cobria (com)
o rabo de arraia. Quando eu ia
levantando ele dizia: "não levante não, lá
vai outro". Os alunos deles jogavam com
a gente como que (se) a gente já era
(fosse) bom. (76)

Já vemos aí, por volta de 1930, não só o uso do


floreio - "aquela cambalhota desgraçada" (provavelmente
o atual aú) -, como a nomenclatura dos golpes usada até
hoje - "já cobria (com) o rabo de arraia".
No entanto, outros aspectos da capoeira se
perderam. Frede Abreu destaca a importância da
cachaça e da quitanda - mixto de botequim e vendinha -
no contexto da capoeira verdadeiramente "tradicional".

A quitanda, p. ex., subentendida na


declaração de Waldemar, aparece
explicitamente na narrativa de Canjiquinha,
quando ele descreve o local onde aprendeu,
no banheiro de Otaviano, na frente do qual
"tinha uma quitanda, (onde) eles (Aberrê,
Onça Preta, Rosendo, Chico Três Pedaços,
Zé das Brotas, Silva Boi, Dudu, Maré)
ficavam ali bebendo cachaça (era do
interesse do dono do banheiro) e treinando
(77)

Ou seja, a academização levada a cabo por Bimba e


Pastinha, incluí - e isto é básico para os "novos rumos" -
uma ruptura radical com este poderosíssimo vetor cultral
e social: a quitanda, o botequim, o bar, a boemia, e uma
certa mentalidade "etílica-filosófica" que é característica
a estes ambientes.
Frede Abreu cita o Capoeira Angola (1968) de
Waldeloir Rego:

Antigamente havia capoeira, onde havia


uma quitando ou venda de cachaça, com
um largo bem em frente, bem propício ao
jogo. Ali, aos domingos, feriados e dias
santos, ou após o trabalho, se reuniam
os capoeiristas mais famosos, a
tagarelarem, beberem, e jogarem
capoeira. Contou-me mestre Bimba que
a cachaça era a animação e os
capoeiras, em pleno jogo, pediam-na aos
donos das vendas, através de toque
especial de berimbau, que eles já
conheciam (78)

Para o fim de semana, os donos dos


botecos preparavam um cardápio
reforçado (sarapatel, mocotó, feijoada,
rabada, moqueca, dobradinha, etc.) e,
por ser do seu interesse, deixavam o
samba, serestas e capoeira acontecer no
ambiente, pagando com bebida seus
praticantes... nesses ambientes
populares piscava a tendência de se
misturar comida baiana com
manifestações da cultura popular de
origem afro-brasileira para ganhar
dinheiro.
A partir dos anos 1960, esta mistura será
transformada num filão pela indústria
turística. (79)

A roda - em Salvador, após 1930 -, na frente da


quitanda, ou venda de cachaça, vai desaguar em dois
subprodutos comerciais: as aulas de capoeira em
academia, e os shows "folclóricos".
Esta tendência é tão forte que mestre João Grande
(1933) - hoje, ensinando capoeira angola em Nova
Iorque - diria que "há três tipos de capoeira: a de show, a
de academia, e a da roda de rua". E em cada uma
delas, o capoeirista apresenta uma performance
diferente:
- na de show, vemos uma capoeira espetacularisada
que, no entanto, entre dois bons jogadores, pode resultar
em jogos da melhor qualidade;
- na sua (própria) academia, o capoeirista joga
conforme os fundamentos e ritual do estilo a que
pertence;
- na roda de rua, "um olho no padre e outro na missa";
jogadores de diferentes linhagens e estilos estão
presentes e muitos seguem o lema: "entra quem quer,
sai quem pode".

No entanto, o projeto "academia" de Bimba e


Pastinha e outros, não encontrou suporte nas rodas que
mestre Waldemar realizava em seu barracão no bairro
da Liberdade aos domingos; ali, o que rolava era a
verdadeira vadiação, frequentada por jogadores, bons e
fracos, de todos os estilos e tendências..
Havia uma pequena tendinha, e o espanhol servia
cachaça até mesmo para os tocadores de berimbau que,
em plena roda, tinham um toque especial para pedir um
copo da branquinha.

Mas independente da "academia", ou da "vadiação"


na Roda de mestre Waldemar; aos poucos foi se criando,
nas décadas de 1920 a 1950, uma nova identidade para
o capoeirista, que era resultante da mudança do status
da capoeira face à sociedade (o começo da "era das
academias", quando a capoeira começa a ser aceita e,
mais tarde, valorizada); das novas oportunidades que os
mestres tem (ganhar dinheiro com aulas ou com shows);
e também das mudanças que estavam ocorrendo
orgânica e "naturalmente" na roda e no jogo.
Mestre Waldemar analisou vários conhecidos
capoeiras daquela época, já sob uma nova ótica:

Barbosa do Cabeça: carregador da


pesada, o capoeira de melhor técnica
que já vi. Ele tinha uma voz como a
minha. Cantava muito, tocava muito, e
jogava muito. Um cachoeirano. Era bom
mestre.
Daniel (Noronha): jogava capoeira, mas
não era essa coisa toda.
Totonho de Maré: Era sopeiro (não criava
situações de jogo, ficava esperando a
brecha para poder bater e derrubar),
jogava, mas só sabia jogar capoeira,
não tocava berimbau, não cantava, não
fazia nada.
Samuel Querido de Deus: Era bom, mas
era sopeiro também. Só de jogo. Ficava
esperando você pular para ele dar uma
cabeçada. Quando você queria forrar
(dar o troco, ir às forras), ele não queria
mais jogar.
Aberrê: Cantava muito.
Besouro Gazo: Um branco cheio de
sarda. Jogava muito mesmo. Ele não
era daqui não,ele era de Periperi. (80)

Percebemos aqui um novo conceito - uma nova


identidade -, sobre o que significava "ser capoeirista".
"Ser capoeirista" incluía, não apenas jogar, mas também
ter "a melhor técnica que já vi", cantar, e tocar berimbau -
além de, com algum tempo, ensinar, se tornar "um bom
mestre".
Além disso, uma outra mudança no próprio jogo. Não
bastava você ser malandro e "pegar" o outro. Além de ter
uma boa técnica - fruto de muito jogo, ou de muito treino
na academia (ou de ambos) -, também era necessário
florear, criar situações para enriquecer o jogo.
Enfim, era necessário uma saber corporal que,
apesar de não existir em muitos mestres de renome, por
volta de 1940; já tinha existido em alguns jogadores mais
antigos de grande reputação, como já nos falou Muniz
Sodré.

Segundo consta, (Bentinho, africano, e


mestre de Bimba) era desses
capoeiristas capazes de "dar um salto
mortal na boca de uma caixa de cebola",
como relata Decânio, citando Bimba: "Dá
um sárto mortá na boca dum caixãu di
cebola!". Era gente da mesma estirpe de
Besouro Mangangá que seria capaz de
"sartá di costa i caí de vórta dentru dus
chinélu!" (81)

O estilo de Bimba - a regional - era objetivo. Entre os


regionais, quase ninguém se interessava em "dá um
sárto mortá na boca dum caixãu di cebola!"; apesar de
mestre Bimba admirar esta faceta. Além disso, muitos -
semelhante a alguns angoleiros criticados por Waldemar
-, não cantavam e não sabiam tocar berimbau.
Vamos ver, em breve, estas mesmas "deficiências" no
Rio de Janeiro e São Paulo, nas décadas de 1970 e
1980. No entanto, a geração seguinte já cresceu com a
"obrigatoriedade" de florear, de tocar o berimbau e, até
mesmo, de cantar.
Pouco a pouco, foi se construindo a nova e
identidade do capoeirista dos nossos dias, cada vez mais
influenciada pelos mestres baianos; mas tendo, a
contraponto, as influências dos valores da sociedade
estabelecida, na qual estamos inseridos.

A contribuição da geração Rio e São Paulo, 1960-


1980

Com a chegada, no Rio, de Artur Emidio, que era de


Itabuna, na década de 1950; e com a chegada de
inúmeros (então) jovens mestres baianos em Sampa, no
final dos 1960s; cresce, e se firma, a influência da Bahia
no eixo Rio-Sampa mas já com uma outra mentalidade,
mais "profissional", diversa da de Salvador.
Em São Paulo, estes (então) jovens mestres baianos
que vinham de diferentes linhagens e estilos, começam,
cada um, a ensinar capoeira; abrem sua academias
isoladamente ou, algumas vezes, aos pares. Isto resultou
numa grande diversidade de estilos em São Paulo.
Mas, no Rio, muitos dos jovens baianos que migram
para lá, entram para o Grupo Senzala composto de
jovens adolescentes da classe média carioca, que
desponta também nos 1960s. Havia também uma
capoeira nos subúrbios do Rio fortemente influenciada
por mestre Artur Emidio; mas é a Senzala, instalada na
rica zona sul carioca, que vai rapidamente tornar-se
hegemônica.
Poderíamos dizer que estes (então) jovens mestres,
nascidos por volta de 1945 e atuando no Rio e em São
Paulo, em nada vão contribuir para a "construção" da
malícia. Sua contribuição seria mais na faceta
"esportiva", nas técnicas de ensino, na dedicação de
muitas horas de treino diário, no estilo de jogo, na infra-
estrutura da "academia de capoeira", e na postura
profissional de querer "viver de capoeira" (algo que
apenas mestre Bimba tinha conseguido, até aquele
momento).
A capoeira era jogada em alto nível técnico de golpes
e preparo físico; mas com pouca malícia, em
comparação com a capoeira baiana dos 1950s. Mas a
técnica, fruto de muitas horas diárias de treino, já tinha
atingido um tal nível que "vencia" facilmente o jogador
com muita malícia e experiência, mas sem as muitas
horas de treino.

Esta geração, que é a minha (Nestor), criou um


modelo de infra-estrutura de grupo e de academia, que já
era um desenvolvimento dos modelos criados por Bimba,
Pastinha e outros. Parte desta infra eram as relações de
poder:
- as relações de poder entre mestre e alunos (que
inicialmente eram quase da mesma idade), baseada
numa hierarquia rígida, como nas Forças Armadas, ou
nas artes marciais orientais;
- as relações, e jogos de poder, entre professores de
um mesmo grupo que, a partir aproximadamente de
1975, começaram a ficar cada vez mais competitivas,
semelhante aos relacionamentos dos altos executivos de
uma grande empresa capitalista;
- e as relações de poder entre mestres de grupos
diferentes, que se tornaram tão competitivas ao ponto de
dificultar seriamente um relacionamento amistoso entre
alunos de academias, ou de estilos, diferentes.

Também, neste pacote, estão inseridas a questão do


uso obrigatório de uniforme, a hierarquia (cordas
coloridas na cintura, mais tarde adaptadas na capoeira
angola por divisões em treinel e contramestre e etc.),
logotipo do grupo (que também será adotado pelos
novos angoleiros que se tornarão mais visíveis a partir
aprox. 1985).
Após aproximadamente 2005, muitos grupos que
queriam estar atualizados com o "novo milênio" e
desejavam disfarçar o autoritarismo que existia nas
academias, largaram parcialmente a obrigatoriedade do
uso de uniformes (sem modificar o autoritarismo do
sistema de academia). Apesar de ser uma mudança
apenas na aparência externa, talvez já seja um indício
de novas tendências.

Eu fiz parte desta geração, nascida por volta de 1945.


Comecei a jogar em 1965 e em 1969 já dava aulas.
Aprendi o prazer físico que o "treino puxado"
proporciona; e também o prazer psicológico, artistístico e
estético que sentimos à medida que um movimento ou
golpe fica mais veloz, mais perfeito, mais eficaz, e mais
belo.
Mas, para mim, sempre foi óbvio que a parte física,
dentro da academia - mesmo se a praticamos 4 ou 5
horas por dia -, não deve estar num nível mais
importante que a "filosófica". E também que os
interesses comerciais, de status, e as relações de poder
não devem ser mais importantes que a amizade, ou que
as curtições - aquele lance da "vadiação".
E isto não aconteceu no modelo de "academia",
aperfeiçoado e vetorizado por minha geração, e por
aquelas que vieram a seguir, na década de 1970; e
depois de 1985, pela capoeira angola que até então
estava obscurecida pelo sucesso da regional.
Este modelo de grupo de capoeira, e de academia,
deu certo, deu a oportunidade de "viver de aula de
capoeira", e tornou-se hegemônico e atualmente é usado
em todos academias, de todos os estilos, em todo o
mundo.

Mais tarde, a partir de 1971 e mais ainda na década


de 1980, os capoeiristas que viajaram e se
estabeleceram no estrangeiro, principalmente na Europa,
talvez em decorrência da distância do Brasil e do
"modelito de academia" brasileiro; e seguramente
também devido à vivência em outra cultura; abrandaram
bastante a competição excessiva que havia entre os
grupos.
Nos Summer Meetings do jovem mestre Paulo
Siqueira, em Hamburgo (Alemanha), entre 1990 e 2005;
e nos Easter Meetings dos jovens mestres Samara e
Marreta, em Amsterdam (Holanda), até hoje (2010); que
duravam uma semana, podíamos ter mais de 300 alunos
de toda Europa, e uns 20 ou mais professores e mestres
brasileiros de todos grupos e estilos.
Eram 3 campos de basquete dentro de um grande
estádio, em cada campo um professor diferente (alunos
iniciantes, médios, e avançados, 4 aulas de 2 horas por
dia, tudo na maior paz e integração. Os 300 alunos
dormian, nos seus sacos-de-dormir, nestes campos do
estádio.
Além disto haviam as palestras teóricas que podiam
ser com o velho mestre mestre João Pequeno, o
historiador e pesquisador Mathias Assuncão, este vosso
humilde escriba (Nestor), e muito outros. Também havia
mostra de filmes e DVDs documentários; lançamento de
CDs e livros; venda de berimbau, calça e camiseta. E as
ótimas festas nas quais a rapaziada dançava de montão,
muitas vezes com som ao vivo, que varavam a noite e
iam até altas madrugadas com muita cerveja, azaração,
e namoro; ou seja, a socialização através da "festa" e da
"alegria".
Eventos adultos e conscientes, em oposição ao
modelo doss eventos no Brasil onde só comparecem
alunos daquela academia, e talvez de mais uma ou outra
que são "amigas". Eventos que mais parecem festa
infantil regada a refrigerante e uma "salutar" mesa de
frutas; onde não há festa noturna e os participantes, ao
escurecer, vão para suas casas dormir porque são
"sérios" e "muito saudáveis".

Mudança em 2005, pela geração nascida por volta de


1975

Este modelo criado em 1960s/1970s teve grande


sucesso e manteve-se até o momento atual (2010).
No entanto, na geração nascida aproximadamente
em 1975, onde vários são filhos de mestres, já nasceram
dentro da roda; e onde outros começaram muito cedo e
já jogam excepcionalmente bem - tanto na angola quanto
na regional -; entre alguns destes jovens, agora com 25
ou 35 anos de idade, podemos perceber pela primeira
vez, uma crítica ao modelo atual das academias com seu
excesso de autoritarismo e excessiva competição entre
grupos e capoeiristas.

Já estive, como "visitante não participante", em vários


eventos "alternativos" desta rapaziada, no Rio de
Janeiro, em San Francisco (Estados Unidos), Berlim
(Alemanha), Suiça, etc. Apesar de terem várias
características comuns, inicialmente não tinha
conhecimento de que algo semelhante estava
acontecendo em outras cidades; mas agora estão
interligando-se de maneira informal.

Estas novas propostas não vieram com discursos


revolucionários, nem tampouco com críticas aos mestres
e suas academias. Propunham-se simplesmente, p.ex., a
realisar rodas sem a presença dos mestres, e nesta roda
os capoeiristas não usariam o uniforme e a graduação de
seu grupo.
Parece pouca coisa. Mas veja bem que, com isto,
estavam quebrando toda aquela estratégia das
academias que diz que "os outros grupos são nossos
inimigos" (algo que dá uma maior coligação interna, e um
maior sentido de unidade a cada grupo).
E também é evidente que a ausência dos mestres
nas rodas é um lance de independência incompatível
com a estrutura extremamente hierarquisada das
academias. Muitos mestres não gostaram, outros
acharam que era um "sinal de maturidade dos alunos" e
não se opuseram.
Na minha opinião, este movimento jovem é positivo e,
mais do que isto, é necessário.
Eu o vejo um pouco como a Bossa Nova na música
brasileira, que trouxe nova liberdade e quebrou
determinadas restriçõesções. No entanto, 15 anos
depois, por volta de 1980, a Bossa Nova já estava
restrita a pequenos nichos que, hoje, se resumem a
alguns círculos de fãs na França, na Alemanha, e no
Japão.

Creio que este novo movimento é semelhante à


Bossa Nova que estava mais ligada ao jazz que "às
raízes": é necessário e positivo mas vários de seus
componentes estão bastante "desterritorialisados"
apesar da excelência do jogo, do conhecimento do ritual
da roda, da vivência no Brasil e exterior. Neste sentidon
são semelhantes ao Grupo Snzala quando era novo nas
décadas de 1960/1970. No entanto, é certo que vários
destes jovens estarão entre os mestres de maior
influência dentro de uns 10 ou 15 anos (2025); da
mesma forma que Tom Jobim passou pela Bossa Nova e
posteriormente se tornou um marco da música brasileira.
É difícil precisar o que falta a determinado movimento
ou grupo; é mais fácil recorrer ao humor e à gozação:
- estão mais para Bob Marley, que para Zeca
Pagodinho;
- mais para sushi de restaurante japonês, do que da
feijoada com cerveja em botequim;
- percebem claramente os defeitos dos grupos e
academias, mas não percebem com clareza as
qualidades;
- valorizam mais o matrimônio e a monogamia
prescritos pela classe média, do que a esbórnia libertária
da filosofia da malandragem;
- preferem muito trabalho (alienante) e dinheiro, ao
invés de pouco trabalho e tempo livre;
- alguns integrantes, apesar de rejeitarem os
símbolos externos do autoritarismo excessivo
(graduação, uniforme, etc.), são tão (ou mais) autoritários
quanto os mestres que eles criticam;
- não são basicamente ligados, nem estão
desenvolvendo o gosto pela "festa" e pela "alegria" (que
já está presente em vários encontros europeus).

Enfim, semelhante ao movimento paulista e carioca


de 1960 (que eles criticam, com justiça), este novo
movimento também se afastou bastante de algumas
(outras) facetas (a meu ver) básicas da capoeira e da
malícia; e (me parece) não tem a abrangência e a visão
global que seria ideal.
Ainda assim, a capoeira está em boas mãos e vive,
no início dos 2000s, uma Idade de Ouro.

NOTAS:
(24) SOARES, Carlos Eugenio L. A negregada
instituição, os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, Prefeitura do Rio
de Janeiro, 1994.
(25) Ibidem.
(26) Ibidem
(27) Ibidem
(28)Ibidem.
(29)No sentido dado por Guattari e Deleuze em Mille
Plateaux.
(30) SOARES, op. cit., 1994.
(31) Ibidem.
(32) REGO, W. Capoeira Angola, Salvador: Ed.
Itapoan, 1968.
(33) Ibidem.
(34) Ibidem.
(35) SOARES, op. cit., 1994.
(36) RUGENDAS, J.M. Voyage pittoresque et
historique dans le Brésil. Paris: Engelmann et Cie,
Paris, 1835.
(37) DEBRET. Voyage pittoresque et historique au
Brésil. Paris: Didot Firmin et Fréres, 1824.
(38) Ibidem
(39) Esta afirmação geralmente espanta as pessoas,
pois é crença generalisada que a capoeira "nasceu na
Bahia". Na verdade, como estamos vendo, isto não é
verdade; anteriormente, nos 1800s, a capoeira existia,
era visível, e foi bastante documentada no Rio de
Janeiro. Mas seguramente poderíamos dizer que a
capoeira que praticamos hoje, no Brasil e no mundo, é a
baiana; no entanto, ela não tem "séculos de existência",
ela só tomou o aspecto atual, com a roda e os
berimbaus, após 1900.
(40) QUERINO, Manuel, in ABREU, Frede.
Capoeiras, Bahia, Século XIX, vol 1. Salvador: 2005.
P.18.
(41) MOURA, Jair (Mestre Jair "Perigo). "Evolução,
apogeu e declínio da capoeiragem no Rio de Janeiro",
Cadernos Rioarte Ano I nº 3. Rio de Janeiro: 1985. P.35.
(42) SOARES, op. cit., 1994.
(43)ABREU, Placido de. Os capoeiras, 1886.
(44) L.C., Kosmos, ano III, nº3, março 1906.
(45) MATOS, Claudia. Acertei no milhar. RJ, Paz e
Terra, 1982, p.13.
(46) CORDEIRO, Kalixto in L.C., Kosmos, ano III,
nº3, março 1906.
(47) MOURA, Jair (Mestre Jair Perigo). "A projeção
do negro Ciríaco no âmbito da capoeiragem", Revista
Capoeira. São Paulo: #11, dez.1999.
(48) CIRÍACO. Depoimento ao jornal "A Notícia", RJ,
17/5/1909.
(49) REIS, Leticia V.S. O mundo de pernas para o
ar. São Paulo: Publisher Brasil, 1997.
(50) Jornal "A Tarde", de 14/12/1920 in OLIVEIRA,
J.P. No tempo dos valentes, os capoeiras na cidade da
Bahia. Salvador: Quarteto, 2005. p.67.
(51) NORONHA, Mestre (Daniel Coutinho). O ABC da
Capoeira Angola, os manuscritos de mestre Noronha.
Brasília, DEFER CIDOCA/DF, 1993, apresent. por Frede
Abreu.
(52) A partir de 1930, com Vargas no poder, os
sambistas são orientados a louvar o "trabalho honesto",
ou seus sambas não tocariam no rádio nem seriam
gravados. Ver: MATOS, Claudia. Op. cit., 1982.
(53) MATOS, Claudia, op.cit., 1982, p.22.
(54) Ibidem, p.20.
(55)Jorge Aguiar, Folha de São Paulo, 29 de março
de 1979 in MATO
(56) DURST, Rogério. Madame Satã. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
(57) MATOS, Claudia. Acertei no milhar. RJ: Paz e
Terra, 1982, p.14.
(58) Ibidem, p.14.
(59) DURST, Rogerio. Op. cit., 1985, pp. 9-16.
(60) MATOS, Claudia. Op. cit., 1982, p.14.
(61) VASCONCELOS, Gilberto in MATOS, 1982, op.
cit., p.15.
(62) COUTINHO, Eduardo Granja. Velhas histórias,
memórias futuras; o sentido da tradição na obra de
Paulinho da Viola. Rio de Janeiro: UFRJ-ECO. Tese de
Doutorado em Comunicação e Cultura, 2000.
( 63) ALMEIDA, Ubirajara (Mestre Acordeon). Água de
beber, camará. Salvador: EGBA, 1999, p. 17.
(64) DECANIO FILHO, Angelo (Mestre Decanio).
Falando em capoeira. Salvador: Col. São Salomão,
1996, photoc., pp. 33-34.
(65) LEWIS, J.L Ring of liberation. Chicago: Univ. of
Chicago Press, 1992. Pp.186 e 212-213.
(66) ALMEIDA, Cesar (Mestre Itapoan). Bimba, perfil
do mestre. Salvador: Centro Ed. e Did. da UFBa, 1982,
p. 68.
(67) O meu (Nestor) conceito de malícia (que seria o
"conhecimento da verdadeira natureza dos seres
humanos" aliado à "alegria de viver") foi inspirado na
minha vivência dentro da roda, mas também pelos
comentários dos Velhos Mestres que conheci na minha
juventude. Sem dúvida o meu conceito de "o
conhecimento da verdadeira natureza dos seres
humanos" deve muito ao conceito de "mardade" de
mestre Bimba.
(68) SODRÉ, Muniz. Mestre Bimba, corpo de
mandinga. Rio de Janeiro: Manati, 2002. P.100.
(69) SODRÉ, ibidem, pp. 99-100.
(70) SODRÉ ibidem, pp. 96-98.
(71) SODRÉ, ibidem, pp.18-19.
(72) GUATARI, F. As três Ecologias. Campinas (SP):
Papirus, 1991.
(73) PASTINHA, V.F. (Mestre Pastinha). Caderno e
álbum do Centro Esportivo de Capoeira Angola, Quando
as pernas fazem miserêr. Salvador: cad. manuscrito,
s/data, aprox.1955. P.2.
(74) Ibidem, p.2.
(75) Ibidem, p.3.
(76) ABREU, Frede. O Barracão de mestre Waldemar.
Salvador: Zarabatana, 2003., p.16.
(77) Ibidem, p.17.
(78) REGO, W. in ibidem, p.19.
(79) Ibidem, p.18.
(80) Ibidem, p.59.
(81) SODRÉ, op. cit., 2002.ßß
(82) Em 2009, Nestor ultrapassou 100.000 livros de
capoeira vendidos no Brasil e exterior.
Na verdade, as definições da malícia, assim como a
idéia da capoeira ser "uma filosofia de vida", uma
"maneira de estar no mundo" etc., apresentadas por
mestre Nestor Capoeira e seus contemporâneos, apesar
de estarem enraizadas ao modo de ser dos mestres
seminais da capoeira que atuaram entre 1920 e 1960 -
Bimba, Pastinha, Noronha, Atenilo, Waldemar, Caiçaras,
Canjiquinha, Leopoldina, Paulo dos Anjos, etc. -; podem
se enquadrar no conceito de "tradições inventadas"
(conceito desenvolvido por Eric Hobsbawn e T. Ranger).

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