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b. O território.
Apesar de constituídos por escravos, estes grupos se
consideravam donos de determinadas partes da cidade.
Tanto era assim que a capoeiragem e as fugas para os
quilombos eram práticas paralelas mas geralmente
dissociadas. Ficar na cidade, como escravo, mas
pertencendo a uma malta (que era "dona" de um
território), era uma opção política e de poder, que os
capoeiras escolhiam voluntariamente.
Apesar de serem "donos" de áreas específicas no Rio
dos 1800s, geralmente praças com chafarizes (centros
nevrálgicos onde os escravos vinham buscar água para
abastecer a casa dos senhores brancos), os capoeiras
movimentavam-se pela cidade com estonteante
mobilidade, sempre fazendo badernas e tocando o terror
- "estratégia sinuosa". E que talvez, hoje, tenha
enxameado a estonteante mobilidade de jovens
"mestres" que perambulam pelo mundo, dando aulas,
apresentando-se em teatros e espetáculos, comendo as
"gringas", tornando-se efetivos e atuantes vetores da
cultura brasileira no exterior sem nenhum apoio,
monetário ou estratégico, da mídia, do Governo, ou do
capital privado.
No entanto, esta característica de "ser dono de um
determinado território" foi algo que se perdeu e não foi
transmitido das maltas dos 1800s para os grupos de
capoeiras atuais. O "território" é característica de outro
segmento marginal que são as gangues do narcotráfico
carioca que dominam, cada uma, determinada favela.
Aliás, em relação a estas gangues de traficantes, é bom
lembrar como seus jovens integrantes também se
amarram num baile funk ("o gosto pela festa, pela dança,
pela música").
Além disto, as maltas nunca se interessaram em
"fazer a revolução"; derrubar os "senhores" brancos
através de um levante armado como fizeram os negros
escravos no Haiti no começo dos 1800s. Optaram (como
as gangues do narcotráfico, hoje em dia, também) por
conquistar espaços dentro da urbe constituída; como se
soubessem que a derrubada de um sistema injusto e
autoritário leva irremediavelmente a outro similar; como
se soubessem que o problema não são os "sistemas"
mas, sim, o ser humano irremediavelmente predador:
- "urubu come folha? é conversa fiada?", "olha a
cobra que morde, senhor são bento", dizem os cantos de
capoeira.
c. Os conflitos
Os conflitos com a polícia carioca, no início dos
1800s, existiam paralelo à guerra crônica entre as
maltas: "tanto uns quanto outros (os policiais e as outras
maltas) eram invasores, beligerantes, se bem que em
planos diferentes" (27), nos diz Soares. A cidade era
deles, mas não toda a cidade, ou toda de uma vez; as
maltas "forjaram uma cidade (negra) dentro da outra"
(28).
Esta "guerra crônica", que também é típica de todos
grupos com estrutura "nômade" (29), teve sequência em
toda a história do Jogo e reaparece no conflito "capoeira
regional x capoeira angola" (aprox. de 1940 em diante); e
tem seguimento nas inimizades entre os grupos de
capoeira de nossos dias.
e. A "brasilidade"
Em 9 de junho de 1828, os batalhões de mercenários
alemães e irlandeses com cerca de duas mil praças - a
serviço de D. Pedro I -, se revoltaram: "e, de armas em
punho, abandonaram os quartéis e fizeram uma
carnificina, matando, devastando e saqueando tudo".
Mas foram atacados "por magotes de pretos
denominados capoeiras", e caíram os estrangeiros
"pelas ruas e praças públicas, feridos em grande parte, e
bastante sem vida" (32).
Depois do fim da rebelião, uma grande quantidade de
negros e escravos "continuou armada, causando
temores iguais ou maiores na população e nas
autoridades da Corte"(33). Os escravos também
continuaram a usar "topes" - fitas com as cores da
bandeira brasileira -, algo que causava um certo
desconforto nas classes hegemônicas.
Este sentimento de "brasilidade", que nada tem a ver
com o respeito às leis do governo, ou com a moral
burguesa ou proletária, impera até hoje dentro das
academias e grupos. Provavelmente tem algo a ver com
o sentimento de territorialidade; de pertencer a um
determinado "território"; e até mesmo ser "dono" daquele
terrítório, mesmo quando eram escravos nos 1800s. O
mesmo - sentimento de brasilidade - acontece hoje em
dia com muitos mestres; mesmo com aqueles de pouco
sucesso econômico e que nunca foram ajudados, nem
apoiados pelo Estado.
e. Os educadores baianos
O malandro e o sambista
Eu fui na Lapa
e perdi a viagem
pois essa tal malandragem
não existe mais.
(Chico Buarque)
"Malandro
é palavra derrotista,
que só faz deturpar
o nome do sambista"
"Proponho,
ao povo civilizado,
não mais te chamar de malandro,
mas, sim, de rapaz folgado"
A complementação do embasamento
somático pelos fundamentos psíquicos
através as duas correntes geradas pelos
criadores dos estilos "regional" e
"angola", garante a unidade da capoeira
como jogo e luta, ao mesmo tempo que a
transforma no jeito brasileiro de aprender
a "ser-estar" no mundo a que se refere
César Barbieri, abrindo um leque de
aplicações pedagógicas e terapêuticas
cujos limites são imensuráveis (64)_
A mardade de Bimba
As metafísicas de Pastinha
Capoeira,
mandinga de escravo em ânsia de
liberdade.
Seu princípio não tem método,
seu fim é inconcebível ao mais sábio dos
mestres.
NOTAS:
(24) SOARES, Carlos Eugenio L. A negregada
instituição, os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, Prefeitura do Rio
de Janeiro, 1994.
(25) Ibidem.
(26) Ibidem
(27) Ibidem
(28)Ibidem.
(29)No sentido dado por Guattari e Deleuze em Mille
Plateaux.
(30) SOARES, op. cit., 1994.
(31) Ibidem.
(32) REGO, W. Capoeira Angola, Salvador: Ed.
Itapoan, 1968.
(33) Ibidem.
(34) Ibidem.
(35) SOARES, op. cit., 1994.
(36) RUGENDAS, J.M. Voyage pittoresque et
historique dans le Brésil. Paris: Engelmann et Cie,
Paris, 1835.
(37) DEBRET. Voyage pittoresque et historique au
Brésil. Paris: Didot Firmin et Fréres, 1824.
(38) Ibidem
(39) Esta afirmação geralmente espanta as pessoas,
pois é crença generalisada que a capoeira "nasceu na
Bahia". Na verdade, como estamos vendo, isto não é
verdade; anteriormente, nos 1800s, a capoeira existia,
era visível, e foi bastante documentada no Rio de
Janeiro. Mas seguramente poderíamos dizer que a
capoeira que praticamos hoje, no Brasil e no mundo, é a
baiana; no entanto, ela não tem "séculos de existência",
ela só tomou o aspecto atual, com a roda e os
berimbaus, após 1900.
(40) QUERINO, Manuel, in ABREU, Frede.
Capoeiras, Bahia, Século XIX, vol 1. Salvador: 2005.
P.18.
(41) MOURA, Jair (Mestre Jair "Perigo). "Evolução,
apogeu e declínio da capoeiragem no Rio de Janeiro",
Cadernos Rioarte Ano I nº 3. Rio de Janeiro: 1985. P.35.
(42) SOARES, op. cit., 1994.
(43)ABREU, Placido de. Os capoeiras, 1886.
(44) L.C., Kosmos, ano III, nº3, março 1906.
(45) MATOS, Claudia. Acertei no milhar. RJ, Paz e
Terra, 1982, p.13.
(46) CORDEIRO, Kalixto in L.C., Kosmos, ano III,
nº3, março 1906.
(47) MOURA, Jair (Mestre Jair Perigo). "A projeção
do negro Ciríaco no âmbito da capoeiragem", Revista
Capoeira. São Paulo: #11, dez.1999.
(48) CIRÍACO. Depoimento ao jornal "A Notícia", RJ,
17/5/1909.
(49) REIS, Leticia V.S. O mundo de pernas para o
ar. São Paulo: Publisher Brasil, 1997.
(50) Jornal "A Tarde", de 14/12/1920 in OLIVEIRA,
J.P. No tempo dos valentes, os capoeiras na cidade da
Bahia. Salvador: Quarteto, 2005. p.67.
(51) NORONHA, Mestre (Daniel Coutinho). O ABC da
Capoeira Angola, os manuscritos de mestre Noronha.
Brasília, DEFER CIDOCA/DF, 1993, apresent. por Frede
Abreu.
(52) A partir de 1930, com Vargas no poder, os
sambistas são orientados a louvar o "trabalho honesto",
ou seus sambas não tocariam no rádio nem seriam
gravados. Ver: MATOS, Claudia. Op. cit., 1982.
(53) MATOS, Claudia, op.cit., 1982, p.22.
(54) Ibidem, p.20.
(55)Jorge Aguiar, Folha de São Paulo, 29 de março
de 1979 in MATO
(56) DURST, Rogério. Madame Satã. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
(57) MATOS, Claudia. Acertei no milhar. RJ: Paz e
Terra, 1982, p.14.
(58) Ibidem, p.14.
(59) DURST, Rogerio. Op. cit., 1985, pp. 9-16.
(60) MATOS, Claudia. Op. cit., 1982, p.14.
(61) VASCONCELOS, Gilberto in MATOS, 1982, op.
cit., p.15.
(62) COUTINHO, Eduardo Granja. Velhas histórias,
memórias futuras; o sentido da tradição na obra de
Paulinho da Viola. Rio de Janeiro: UFRJ-ECO. Tese de
Doutorado em Comunicação e Cultura, 2000.
( 63) ALMEIDA, Ubirajara (Mestre Acordeon). Água de
beber, camará. Salvador: EGBA, 1999, p. 17.
(64) DECANIO FILHO, Angelo (Mestre Decanio).
Falando em capoeira. Salvador: Col. São Salomão,
1996, photoc., pp. 33-34.
(65) LEWIS, J.L Ring of liberation. Chicago: Univ. of
Chicago Press, 1992. Pp.186 e 212-213.
(66) ALMEIDA, Cesar (Mestre Itapoan). Bimba, perfil
do mestre. Salvador: Centro Ed. e Did. da UFBa, 1982,
p. 68.
(67) O meu (Nestor) conceito de malícia (que seria o
"conhecimento da verdadeira natureza dos seres
humanos" aliado à "alegria de viver") foi inspirado na
minha vivência dentro da roda, mas também pelos
comentários dos Velhos Mestres que conheci na minha
juventude. Sem dúvida o meu conceito de "o
conhecimento da verdadeira natureza dos seres
humanos" deve muito ao conceito de "mardade" de
mestre Bimba.
(68) SODRÉ, Muniz. Mestre Bimba, corpo de
mandinga. Rio de Janeiro: Manati, 2002. P.100.
(69) SODRÉ, ibidem, pp. 99-100.
(70) SODRÉ ibidem, pp. 96-98.
(71) SODRÉ, ibidem, pp.18-19.
(72) GUATARI, F. As três Ecologias. Campinas (SP):
Papirus, 1991.
(73) PASTINHA, V.F. (Mestre Pastinha). Caderno e
álbum do Centro Esportivo de Capoeira Angola, Quando
as pernas fazem miserêr. Salvador: cad. manuscrito,
s/data, aprox.1955. P.2.
(74) Ibidem, p.2.
(75) Ibidem, p.3.
(76) ABREU, Frede. O Barracão de mestre Waldemar.
Salvador: Zarabatana, 2003., p.16.
(77) Ibidem, p.17.
(78) REGO, W. in ibidem, p.19.
(79) Ibidem, p.18.
(80) Ibidem, p.59.
(81) SODRÉ, op. cit., 2002.ßß
(82) Em 2009, Nestor ultrapassou 100.000 livros de
capoeira vendidos no Brasil e exterior.
Na verdade, as definições da malícia, assim como a
idéia da capoeira ser "uma filosofia de vida", uma
"maneira de estar no mundo" etc., apresentadas por
mestre Nestor Capoeira e seus contemporâneos, apesar
de estarem enraizadas ao modo de ser dos mestres
seminais da capoeira que atuaram entre 1920 e 1960 -
Bimba, Pastinha, Noronha, Atenilo, Waldemar, Caiçaras,
Canjiquinha, Leopoldina, Paulo dos Anjos, etc. -; podem
se enquadrar no conceito de "tradições inventadas"
(conceito desenvolvido por Eric Hobsbawn e T. Ranger).