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A gênese do quatrocentão

Clássico de Alcântara Machado transcendeu as pesquisas sobre a


sociedade colonial

JOÃO FRAGOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA (28 de janeiro de 2007)

Q uando estudante, "Vida e Morte do Bandeirante", de Alcântara Machado,


era leitura obrigatória para se iniciar na história serial. Não que o livro,
publicado em 1929, apresentasse tabelas, curvas semilogarítmicas ou algo do
gênero. Na verdade, a proximidade com a história serial passava pela natureza
de seu lastro documental. Ele fora um dos primeiros escritos, no Brasil,
fundados em centenas de escrituras cartorárias. Alcântara Machado [1875-
1941] valeu-se de 450 processos (inventários post-mortem e testamentos) de
São Paulo entre 1578 e 1700, publicados em 27 volumes pela prefeitura
paulista.
Assim, para a minha geração, a leitura daquele trabalho foi a chance de
ultrapassar as pesquisas sobre a sociedade colonial restritas a descrições de
viajantes ou de enfadados governadores para conhecer outros conjuntos de
fontes primárias. Estas baseadas não tanto em um ou outro relato, mas nas
experiências de centenas de pessoas que viveram a sociedade analisada.
Neste momento, cabe lembrar que o inventário post-mortem, grosso modo,
consiste no arrolamento de todos os bens e percalços deixados por um sujeito
ao falecer. No Seiscentos, isso podia significar a descrição de alfinetes,
passando por ceroulas, imagens de santos, chegando, dependendo da fortuna,
a sobrados, engenhos e escravarias; ou, ainda, o arrolamento de dívidas, não
raro acompanhado de suas trágicas histórias.

Traços do planalto
Por essas características, aquelas fontes são chamadas, pela história serial, de
maciça e reiterativas. Afinal, a morte é maciça e reiterativa; de geração em
geração há a possibilidade de adentrar nos distintos aspectos de uma dada
sociedade: da economia à sensibilidade religiosa.
Daí Alcântara Machado, ao escrever sobre o bandeirante, não ser pretensioso
ao denominar seu texto "Vida e Morte" e dividi-lo em capítulos como "As
fortunas coloniais", "O fato de vestir, jóias e limpeza da casa", "As devoções
do bandeirante" etc. Da mesma forma, o acesso àquelas coleções de fontes
possibilitou ao autor deslindar alguns dos traços da formação do planalto
paulista colonial. Trata-se de uma sociedade que contou, na sua montagem,
com um capital "nulo ou quase nulo". Entre os seus povoadores "não há
representantes das grandes casas peninsulares, nem da burguesia endinheirada.
Mas, se migraram para província tão áspera e distante, é exatamente porque a
sorte lhes foi madrasta na terra natal. Outros, a imensa maioria, são homens do
campo, (...) artífices aventureiros de toda a casta".
Pesquisas recentes sublinham que a economia da região no Seiscentos
consistia numa agricultura extensiva de alimentos voltada para o
abastecimento local e num frágil circuito comercial intercapitanias. Porém a
miséria não foi impedimento para o surgimento de uma hierarquia social ciosa
de suas diferenças e nem para o aparecimento de um mercado. Ambos, claro,
com uma lógica distinta daquilo que chamamos de capitalismo.
No item mercado, por exemplo, em meados do século 17, cortinas e vestidos
vindos da Europa valiam o mesmo ou mais (e, às vezes, muito mais) que
sobrados e plantações. Para justificar essas diferenças de preços, diversos
motivos podem servir de argumentos (desde as dificuldades de transporte e a
escassez até o valor simbólico dos bens vindos do Reino), entretanto há de se
atentar para as diferenças entre as formas de produção das mercadorias
européias e das feitas no planalto paulista.
As provenientes da Europa pré-industrial resultavam de relações sociais com
maior grau de mercantilização que as presentes no planalto. Neste não existia
um pleno mercado de terras e prevalecia a escravidão do gentio da terra
(índios), cuja reposição se fazia por meio de entradas no sertão pelos
potentados e seus flecheiros índios. Com certeza a armação de tais expedições
custava caro: era para poucos.

Auto-retrato da elite
Contudo, no seu cálculo havia itens de complicada mensuração monetária -
como a lealdade dos flecheiros. Isso, principalmente, se lembramos que eles
não eram marines a soldo e muito menos robôs. Talvez aquela lealdade possa
ser explicada, em meio a um cenário hierarquizado, por negociações políticas.
Seja como for, lembra Alcântara Machado, a "classe dirigente" consistia em
"potentados em arcos", ou seja, o seu poder era medido pela capacidade de
mobilizar flecheiros. Essa habilidade transformou sujeitos sem eira nem beira
ou aventureiros numa elite por décadas a fio.
O autor, sem maiores surpresas, não analisa a sociedade paulista como
resultado da dinâmica de todos os grupos nela envolvidos. Os pequenos
lavradores, agregados, escravos e índios, quando aparecem, surgem como
coadjuvantes ou vítimas da ação dos grandes potentados. Aliás, isso é alertado
por ele já na dedicatória do livro: "aos seus antepassados desde Antônio de
Oliveira, chegado a São Vicente em 1532". E lembrado, em 1931, ao ingressar
na Academia Brasileira de Letras, quando afirmou: "Paulista sou, há 400
anos".
Assim, "Vida e Morte do Bandeirante" -escrito por um vereador, depois
deputado e senador- pode ser também visto como uma espécie de auto-retrato
de frações da elite paulista nos anos de 1920 e de 1930.

JOÃO FRAGOSO é professor do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro e


co-autor de "O Antigo Regime nos Trópicos" (Civilização Brasileira).

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