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Paulistas, uni-vos!

A Revolução de 1932 transformou em bandeirantes todos os que lutavam contra a


ditadura Vargas. Só os heróis de São Paulo poderiam salvar o Brasil.
Katia Maria Abud
7/7/2008

A figura do bandeirante paira como uma entidade sobre São Paulo: está nos monumentos, nos nomes
de ruas e logradouros públicos, nas escolas, clubes e estabelecimentos comerciais. A Rodovia dos
Bandeirantes une a capital a pontos do interior. A Raposo Tavares (tal como seu homenageado) leva
ainda em direção às missões do Tape e Itatim, enquanto a Fernão Dias serpenteia como que à procura
das minas de esmeralda e das montanhas das Gerais. Atravessa-se o poluído Tietê pela Ponte das
Bandeiras. Do modernista Monumento às Bandeiras no Ibirapuera, de Vítor Brecheret, à kitsch estátua
de Borba Gato, na antiga Estrada de Santo Amaro, não lhes faltam louvações.

As homenagens começaram ainda no século XVIII, quando cronistas como Frei Gaspar da Madre de Deus
e Pedro Taques de Almeida Paes Leme enalteceram a figura do bandeirante e suas conquistas heróicas.

O crescimento econômico da província viria na segunda metade do século XIX, com a expansão da
produção cafeeira. Mas essa transformação não provocou mudanças na esfera política. A elite paulista
continuava à margem do poder decisório, centrado na capital do Império, o Rio de Janeiro. Por isso,
ela aderiu ativamente ao movimento republicano, defendendo mais autonomia para os estados.

As camadas dirigentes paulistas recorriam à história para justificar seu direito a uma maior
participação política. Para eles, desde o início da colonização os habitantes de Piratininga tinham sido
responsáveis pela ampliação do território nacional, enriquecendo a metrópole com o ouro que
encontraram em regiões distantes do litoral e levando a civilização para os mais longínquos rincões da
América, transformados por eles em possessão portuguesa. Graças à integração territorial que
promoveram, os bandeirantes eram tidos como fundadores da unidade nacional. Representavam, por
um lado, a lealdade ao estado de São Paulo. Por outro, a lealdade ao Brasil.

O advento da República (1889) também não trouxe para São Paulo o poder que suas lideranças
desejavam conquistar. E elas continuaram investindo na valorização de seu passado. Historiadores do
século XX, como Afonso d’ Escragnolle Taunay, Alfredo Ellis Jr. e Alcântara Machado, dedicaram-se a
realçar diferentes aspectos das bandeiras. Taunay seguiu o roteiro das expedições pelo território, Ellis
Jr. apontou o surgimento de um povo superior (a raça Planaltina) e Alcântara Machado estudou as
condições econômicas e sociais do século XVI.

Mas a oportunidade para o bandeirante emergir como verdadeiro símbolo capaz de solucionar os
conflitos que desafiavam a nação surgiu na crise da virada dos anos 1930. O movimento militar de
1930, liderado por Minas e Rio Grande do Sul, derrubou o presidente Washington Luis, representante da
oligarquia paulista, e alçou ao poder Getúlio Vargas. Contrariados, grupos políticos de São Paulo
formaram a Frente Única, apelando para a luta armada pela volta ao regime constitucionalista. Em 9
de julho de 1932, lançaram-se em combates para a derrubada do governo Vargas.

Para convencer a sociedade de que desafiava a ditadura em nome da unidade nacional, nada melhor do
que resgatar o velho mito. Os bandeirantes voltam ao centro dos discursos políticos. Com suas virtudes
já consolidadas — coragem, audácia, honradez e rigor moral — um símbolo capaz de congregar o povo
paulista. No recrutamento dos cidadãos para pegar em armas, convinha omitir a divisão de classes e os
interesses de grupos. Uma causa maior se levantava, e ela tinha o irresistível apelo de um herói
histórico.
Na Faculdade de Direito, os alto-falantes convocavam para o combate, bradando: “São Paulo de Borba
Gato, São Paulo de Anhanguera...”. Generalizações eram bem-vindas na chamada à luta: Nação,
Nacionalidade, Civilização, Liberdade, Tradições Paulistas. Durante o movimento, foi cunhada a
expressão “paulista de quatrocentos anos”, pela qual as famílias mais antigas cultuavam sua
ancestralidade e acreditavam pertencer a uma raça privilegiada. Mas para a guerra era preciso
estender o privilégio aos imigrantes, negros e índios. Afinal, dos 7 milhões de habitantes que então
povoavam São Paulo, menos da metade podia se orgulhar de descender dos colonizadores. A partir
daquele momento, por paulista não se entendia mais somente o indivíduo nascido e criado no estado,
mas todo aquele que para lá se transferiu, que se fixou em suas terras, que lá vivia e trabalhava.
Bandeirantes eram todos os que dispunham a lutar pelo estado e pelo Brasil, todos os que pudessem
contribuir para a vitória.

Era preciso tirar o país da ilusão ditatorial e fazer com que a nação brasileira trilhasse novamente os
caminhos da democracia. A mesma alma altiva de Piratininga depositava ante o Brasil seu ouro, seu
heroísmo e o sangue dos seus filhos. O hino “Ser Paulista”, de autoria do sargento B. João Pedroso, foi
um dos muitos compostos durante a guerra: “Para frente Paulistas/ valorosos Bandeirantes/ Que dos
tempos passados/ Têm conquistas/ E feitos brilhantes”.

O paulista em 1932 era como o sertanista do século XVII, que enriqueceu a monarquia portuguesa.
Agora, ele doava seu “ouro para o bem de São Paulo”. Era o que afirmava o “Jornal das Trincheiras”,
fartamente distribuído nas áreas de combate e no Rio de Janeiro. Ao narrar a epopéia de um célebre
bandeirante, no artigo “Estirpe do Anhangüera”, o jornal declara que a “chama da civilização” agora
era levada adiante pelo soldado constitucionalista.
Um dos exemplos mais expressivos dessa campanha está no expediente do jornal “O Separatista”,
apresentado assim: "Diretor: Fernão Dias Paes Leme. Redator Chefe: Antônio Raposo Tavares.
Secretário Geral: Cap. Luís Pedroso de Barros”.

A Revolução de 1932 também não dispensou a força das imagens. Bandeirantes ilustravam toda uma
sorte de papéis avulsos, volantes, cartazes, cartões e até partituras musicais que convocavam à luta.
Ora apareciam empunhando a bandeira de São Paulo, ora acenando aos jovens, ora segurando a
caricatura de Getúlio Vargas, como a esmagá-lo. O olhar firme e o porte sereno refletiam a bravura do
sertanista, sempre vestido com os trajes com os quais os artistas da época o tinham representado:
botas de cano alto, gibão, colete e, infalivelmente, o chapelão de abas largas que emoldurava um
rosto barbado e de cabelos longos.

No poema “Minha terra, minha pobre terra”, Ibrahim Nobre, um dos mais conhecidos tribunos da
Revolução, expressa com clareza a imagem que os paulistas tinham de si mesmos, desde que os
primórdios da colonização:

Terra Paulista!
Da tua carne massapé e honesta, do teu ventre de mãe fecundo e são, veio a alma que realizou a
nacionalidade, imprimindo-lhe o sentido da Independência e os rumos católicos da civilização.
De ti proveio o Homem que confrontou a natureza peito a peito e que a venceu e a dominou a facão e
a fé!

A guerra culminou com a derrota paulista, em 28 de setembro de 1932. Mas o mito não morreu. O
imaginário do bandeirante torna heróico o cotidiano duro do homem de São Paulo e constrói uma
identidade ao mesmo tempo coletiva e individual. O paulista se alimenta dessa mitologia para elaborar
sua própria imagem, criando uma alegoria de igualdade, se não física, pelo menos moral, que acaba
disfarçando os conflitos de classe. Em São Paulo, todos são herdeiros dos desbravadores do sertão.

Katia Maria Abud é professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e autora da
tese O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições:  a construção de um símbolo paulista: o
bandeirante (FFLCH-USP, 1986)

Saiba Mais - Bibliografia:


BORGES, Vavy Pacheco. Memória Paulista. São Paulo, Edusp, 1997.
PAULA, Jeziel De. 1932 Imagens Construindo a História. Campinas, Editora da UNICAMP/Piracicaba,
Editora da Unimep, 1998
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Ufanismo paulista: vicissitudes de um imaginário. Revista USP, 13: p.
79-87; mar-abr-mai 1992,   

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