Você está na página 1de 7

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO - UFOP

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS - ICHS


FIDEL FIGUEIRÓ SOARES PATROCÍNIO - 17.2.3208

A IMPORTÂNCIA DO POVO NA MEMÓRIA DA INDEPENDÊNCIA BAIANA

Mariana
2023
A participação popular foi fundamental no processo de independência do Brasil, mas foi
uma participação que acabou sendo apagada tanto do imaginário popular quanto da história em si.
Inclusive, o Dicionário da Independência Brasileira ressalta que o desinteresse popular com esse
evento pode se dar a essa tradição histórica que definiu esse processo de independência como um
processo “conservador, pacífico e realizado primordialmente por lideranças esclarecidas.”; ainda
segundo a obra, isso vinha de uma necessidade de se construir uma imagem de “um povo
brasileiro como pacífico, ordeiro e avesso, quase por natureza, as grandes rupturas.”. Pegando
como exemplo a independência na Bahia, venho com esse trabalho mostrar essa tentativa de
apagamento não só nos conflitos baianos mas também dos festejos posteriores, abordando como
que as elites lidam, na república, com os festejos do 2 de Julho - e como os populares reagiram a
essa elite.
Eram dois de Julho de 1823 e após um árduo conflito os portugueses foram finalmente
derrotados. Era uma vitória coletiva, em um conflito que unificou toda uma nação em torno do
propósito de um ideal: brancos, pretos, indígenas, pobres e ricos; todos ansiavam pela
independência. Podemos ver isso na formação dos exércitos da época que eram compostos não só
pelas forças militares das elites, mas também por camadas mais baixas da sociedade, cujas
demandas foram esquecidas após a vitória do conflito.
Quando se formou as tropas no recôncavo um detalhe não pode passar despercebido: a
presença significante de pessoas pretas compondo as tropas; estas, que não tinham muito a perder,
buscavam alforria se escravizados ou melhores condições caso alforriados; haviam também
aqueles escravizados não naturalizados que buscavam, se não a alforria, ao menos uma melhor
condição como dos escravizados nativos. Dessa forma, um exército unificado, carregando a
vontade de uma única nação nas costas ainda sim possui uma grande variedade de pessoas, estas
com seus próprios ideais de independência.
Mesmo com a variedade de pessoas que estavam nas tropas, aqueles que comandaram a
revolução acabaram por ser as elites brasileiras, sendo a maioria delas escravistas(como os
senhores de engenho); para essas elites, era inconcebível que a independência trouxesse a alforria,
pois isso iria abalar os seus locais de privilégio. Então, após a vitória do Brasil sobre Portugal,
logo foram esquecidas as promessas e garantias dadas aos menos favorecidos que lutaram na
guerra: melhores preços, melhores direitos, alforria; no fim a situação não mudou para o povo. No
fim, não foi uma vitória de um coletivo, mas sim de um único grupo dominante.
Para as populações mais pobres, que estavam mais abaixo na hierarquia social da época,
essa independência não significou nenhuma mudança, somente a permanência de uma elite no
poder, mostrando também a tentativa de uma minoria de assumir protagonismo sobre determinado
feito histórico. A assunção da autoridade das guerras da independência pelas elites da época não é
algo incomum, e será visto depois em vários momentos no Brasil; o mais interessante é a resposta
popular frente a essa tentativa onde, de forma direta ou indiretamente, pessoas lutaram para
recuperar o protagonismo desse evento, como veremos a seguir.
O Dois de Julho na Bahia é uma data festejada desde os tempos imperiais, com as
comemorações, assim como os conflitos de independência, apresentando essa luta interna de um
povo contra as classes superiores. Nos tempos imperiais, como remonta Wlamyra Albuquerque, os
conflitos entre essas classes nas festas de independência já eram comuns nas ruas da Bahia, com
as pessoas aproveitando as comemorações para protestar contra os altos preços, chegando
inclusive a agredir os comerciantes no calor das comemorações. Venho, no entanto, falar dos
tempos republicanos e de como as comemorações foram recebidas nele.
No início da república as comemorações do 2 de Julho poderiam ter diferentes significados
de acordo com quem as comemorava: para o povo baiano era um momento de comemoração, de
celebração de uma vitória; para as altas classes, era um momento de reafirmar a sua posição social
frente ao zé povinho da época; para o governo, era um projeto civilizatório, de modo a disciplinar
a população, seguindo modelo civilizatório de cidades europeias, como Paris. No fim, esse
conflito entre esses interesses acabavam sendo refletido nas próprias festas; Wlamyra
Albuquerque aponta como que acontecia ordem dos desfiles, onde “iam pessoas de mais “status”
social na frente do desfile, visando preservar o momento como fundado em uma ordem cívica e
patriótica, enquanto a “crioulada” e “mulataria” a fim de tumultuar o desfile” iam atrás dos
carros dos caboclos e após as alas organizadas.”
Os principais organizadores dessa ordem cívica eram a Liga de Educação e Cívica e o
IGHBA, que tinham o objetivo de mostrar como que a sociedade baiana daquela época era - ou
como deveria ser - em suas visões, em que os mais importantes iam na frente, com os menos
abastados indo no final, por terem menos importância. Ironicamente, não só a maioria dos
participantes eram essas pessoas mais pobres, mas também o local de início do desfile, o Distrito
de Santo Antônio, era um local mais pobre, com poucos habitantes de destaque; ainda sim seus
habitantes tinham ânimos as alturas para organizar o evento, enfeitando as sacadas e janelas com
colchas de damasco e “folhas nacionais”, que seriam folhas com cores verde e amarelo, como a
cana de açúcar e o café. O local era onde ficavam os portões por onde entraram as tropas baianas,
dando grande orgulho aos moradores de lá.
A pintura O Primeiro Passo para a Independência da Bahia, de Antonio Parreiras, datada
de 1831, é uma ótima representação dessa variedade de pessoas na guerra. Mostrando um dos
primeiros conflitos contra os portugueses, o tom heróico e a quantidade de pessoas diversas pode a
um primeiro ponto passar a ideia da vitória de todos contra um inimigo em comum. Entretanto, é
importante observar também o quão disciplinados e ordenados estão as figuras ali presentes, quase
como se estivessem em um desfile militar; esses detalhes condizem com o ideal cívico da
independência baiana que o governo tanto queria conservar, transmitindo toda aquela ideia de
ordem e civilidade que tinham desse evento histórico. Mesmo que o povo esteja sim em grande
maioria e até centralizado na obra, perdem protagonismo para a figura do militar, a cavalo(o que
só aumenta sua importância), levantando a espada, como se liderasse esse povo; a figura do preto
abatida, conhecida como Tambor Soledade, é sim mostrada em primeiro plano, mas desfalecida, e
sendo o unico negro na pintura, isolado dos demais. A data da pintura também mostra que a
mesma foi feita durante a república, e o fato dela ter sido feita sob pedido do governo da Bahia só
reforça a imagem elitista que o governo tinha tanto das festividades quanto do evento histórico.

A figura do caboclo também tem um papel muito importante nas comemorações até os dias
de hoje, seja pelo monumento erguido em nome da independência, seja pelo caboclo puxado nos
carros alegóricos. O monumento, inaugurado em 1895, foi feito não só para ser um símbolo de
patriotismo, mas em função de dar à cidade um ar mais “civilizado”, já que as grandes cidades da
europa, vistas como o ápice da civilização na época, possuíam um grande monumento de
destaque. O local para a obra é mais uma prova disso, com o Campo Grande sendo escolhido,
como mostrado na obra de Wlamyra Albuquerque, por ser uma das áreas mais elegantes e
valorizadas da cidade: “a sala de visitas da Bahia”.
Frente ao monumento do caboclo temos presente no desfile a figura “popular” do caboclo,
puxada em carros pela comunidade mais pobre. Essa figura popular tem grande importância não
só nas comemorações de 2 de Julho como na própria memória das guerras de independência, pois
estava presente na primeira comemoração da vitória do Brasil sobre as tropas portuguesas; no
caso, após o êxito das tropas brasileiras, os populares pegaram os carros que levavam os canhões e
colocaram no lugar uma figura improvisada de uma cabocla, desfilando com ela pela cidade. Esse
ato tem, por si só, um significado indireto, mas que vale ser destacado: a tomada de artigos
imperiais pelos populares, onde o povo em seguida dá a ele outro significado.
Quando inaugurado o monumento do caboclo, a mídia da época - que normalmente
defendia os interesses das altas classes - e as altas classes em si esperavam que o mesmo
substituísse a figura popular do caboclo, agindo inclusive para proibir que os populares desfilasse
com essa figura em seus carros, pois a mesmas eram já obsoletas, representando valores
descartáveis numa cidade civilizada. Em 1915, quando foi vetada a participação da figura popular
do caboclo na procissão, os movimentos ficaram vazios, com a maioria dos populares optando por
não participarem dos desfiles, organizando inclusive desfiles em outras horas. Com isso,
posteriormente tiveram que liberar a participação dos caboclos.
A fotografia a seguir, tirada em 1979 faz um contraste bem interessante com a pintura de
Parreiras, mostrando uma realidade que a alta classe da época queria apagar dos desfiles - e da
história por consequência: pessoas de classe baixa, a maioria pretos que, desfilando na procissão
levam a figura popular do caboclo que, como ja falado, representa uma permanência em frente ao
projeto civilizatório que se tinha para os festejos:
Logo abaixo vemos o monumento do caboclo em processo de construção, numa foto tirada
em 1895, pelo fotógrafo Rodolpho Lindemann:

Cabe destacar o quão múltiplo eram(e ainda são) esses eventos, com festas, sambas e jogos
que aconteciam após os desfiles, em sua maioria a noite. Grande parte foram organizados por
populares, mas alguns continham presença de pessoas de maior destaque na sociedade. Outra
coisa que mostra o quão amplo e importante são essas comemorações é o fato de ter existido
outras festas conhecidas como “2 de Julho”; para ser mais específico, muitos populares
montavam, desde o tempo do império, outras festas intituladas como 2 de julho em vários bairros
e cidades distintas do habitual, em datas bem diferentes do habitual, ressaltando que em sua
essência, essas festas eram bem mais eventos populares do que algo como “um projeto de
civilização".
No fim, por maior que fossem os esforços, as comemorações do 2 de Julho sempre
pertenceram ao povo, assim como as próprias guerras de independência foram uma vitória que só
foi possível graças ao enorme contingente de populares. O que une tanto as guerras de
independência na Bahia quanto às comemorações posteriores é que ambas, em algum ponto,
possuem uma tentativa de controle de autoria por parte de uma alta classe minoritária frente a
exigências de uma classe mais popular, gerando assim esse embate de classes. Mas enquanto que
nas guerras essa elite conseguiu sim tomar as rédeas daquela “revolução”, impedindo que as
exigências populares fossem atendidas, nos festejos temos uma força popular que, apesar das
dificuldades de se viver naqueles tempos, conseguiu manter uma autoria sobre essas
comemorações, reivindicando esse lugar na autoria das histórias da independência.

FONTES

ALBUQUERQUE, Wlamyra. Civismo popular, algazarra nas ruas: comemorações da independência


nacional na Bahia. IdeAs. Idées d'Amériques, n. 20, 2022.

REIS, João José; SILVA, Eduardo. O jogo duro do Dois de Julho: o partido negro na Independência da
Bahia. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista, p. 79-98, 1989.

Você também pode gostar