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Descobrimentos, encobrimentos e enfrentamentos.

Miguel Borba de Sá - FEUC

A maneira pela qual ensina-se a história da colonização certamente influi bastante no


modo como as gerações futuras, tanto nas ex-metrópoles como nas antigas colônias, podem
interpretar o passado para agir (ou omitir-se) sobre o presente. No entanto, os currículos
escolares não são os únicos instrumentos pedagógicos disponíveis. Os ‘lugares de memória’,
como os denominou o historiador Pierre Nora, também funcionam como poderosos
dispositivos de transmissão de mentalidades e relações de poder. Em Portugal, até hoje existe
o ‘Padrão dos Descobrimentos’ na capital do país, erguido no local de onde saíram as
caravelas conquistadoras do mundo colonial. Em cidades como Coimbra, estátuas como
aquela em homenagem aos ‘Heróis do Ultramar’, localizada de frente a uma das escolas
secundárias mais importantes do país, serve como um reforço aos estudantes da narrativa
hoje conhecida como ‘complexo do salvador branco’, outrora chamada de Missão Civilizatória
ou Fardo do Homem Branco, onde vê-se um soldado português com um bebê negro aos
ombros. Ambos os monumentos foram erguidos durante o regime fascista português, mas
permanecem intocados, ou até melhorados e expandidos, após a transição democrática.
Nada disso é exclusividade de Portugal, claro está. Na Espanha, em 1992,
manifestantes que protestavam contra a comemoração dos 500 anos da partida da frota
comandada por Cristóvão Colombo rumo à conquista da América, foram presos em Sevilha
para que não atrapalhassem as solenidades oficiais. Exemplos semelhantes abundam em
Paris, Londres e outras capitais imperiais. Do outro lado do Atlântico, as elites criollas também
contribuem até hoje para encobrimentos da conquista e recriações de relações coloniais –
colonialismo interno, diria Pablo Casanova - como no caso do Brasil, onde o 12 de Outubro foi
transformado em feriado católico nacional, enquanto no restante da América Latina é um dia
de luta contra a data que marca o início da conquista e do genocídio, tal qual o Nakba de 15
de maio é para o povo palestino: o dia da catástrofe. Não surpreende que este seja o país
que, junto a Cuba, manteve por mais tempo a escravidão, herdada do período colonial, mas
aprofundada e defendida com afinco após a independência pela própria elite local.
Uma elite que se forma como primordialmente isto: uma elite. Antes de entender a si
mesma como parte de uma comunidade política, enxerga apenas seus interesses imediatos
de classe (dominante). Novamente, não é surpresa que países como Brasil, Argentina ou Costa
do Marfim tragam no próprio nome a sua ‘vocação’ mercantil como fornecedores de
matérias-primas valiosas dentro de uma Divisão Internacional do Trabalho que parece já
estampar seu destino periférico no próprio nome de tais países. Um verdadeiro caso de
nation-branding de sucesso, no jargão atual dos teóricos do marketing político. Abordagens
mais sérias, tal como a sugerida pelo magnífico historiador Caio Prado Júnior (ele mesmo
proveniente de uma grande família da elite paulista, mas que transformou-se em um traidor
de classe ao ingressar no Partido Comunista), sugerem que a formação do Brasil
contemporâneo assemelha-se mais à criação de uma empresa multinacional do que a
construção de uma coletividade nacional. E isto deixa efeitos históricos impossíveis de
encobrir.
Há casos ainda mais explícitos nos quais o nome pessoal do conquistador é expresso
diretamente no do país, como mostra a Colômbia (em alusão a Cristóvão Colombo) ou a
antiga Rodésia, atual Zimbabwe (neste caso, em referência ao magnata imperialista britânico
Cecil Rhodes). De todo modo, tais exemplos ajudam a perceber que não é preciso anos de
‘aprendizagem’ colonial durante o percurso escolar (ainda que este seja muito importante
para o aprofundamento do problema) para que a mentalidade colonial seja inscrita na própria
identidade nacional, sendo impossível nominar a sua própria nação sem reforçar tal condição.
Ainda que países como a Bolívia tragam no nome a referência ao ‘libertador’ (Simon Bolívar),
é preciso ter em conta o colonialismo interno praticado pelos Libertadores da América e seus
herdeiros políticos. Via de regra, o que fizeram foi o possível para encobrir as raízes indígenas
e negras de suas populações na vã tentativa de erguer uma sociedade civilizada, i.e., à imagem
da Europa, nas jovens nações independentes. Neste gesto, repetiram a prática colonial ibérica
de suceder com encobrimentos culturais os chamados descobrimentos territoriais, como
expresso na Catedral de Cuzco, no Perú, erguida sobre importante templo da civilização Inca.
Por tais razões, é preciso ampliar o leque de lutas descolonizadoras para além do
mundo escolar e universitário, pois é no cotidiano e naqueles gestos, palavras e omissões que
já nos parecem naturais que a colonialidade demonstra sua resiliência. As pistas oferecidas
por pensadores como Enrique Dussel nos convidam a ‘des-cobrir’ toda aquela riqueza social,
cultural e política – ou seja, humana – que foi encoberta pelos descobrimentos, ou melhor,
pela ‘Conquista da América’. Uma conquista que não foi somente militar, como nos mostrou
Tzvetan Todorov, mas antes de tudo epistêmica, cognitiva e espiritual. E um encobrimento
que não ficou limitado aos monumentos em solo latino-americano, mas que também se
reproduz até hoje também no mundo europeu, para muito além dos manuais escolares.
Frente a este quadro, é crucial seguir lutando em duas frentes, dentro e fora dos
ambientes de ensino e pesquisa. Tão importante quanto descolonizar o conhecimento escolar
é levar a sério colocações como aquela feita por Evo Morales, primeiro presidente indígena
de países colonizados na América, durante a cimeira da União Europeia, na qual o convidado
causou constrangimento ao afirmar que a “dívida externa” de países como o seu deveria ser
revertida em reparações pela “dívida colonial” da qual os povos do Sul global são os
verdadeiros credores. A inversão do ônus colonial é uma marca dos processos de
descolonização. Jean-Bertrand Aristide também o sabia, mas a sua busca por reparações
coloniais que a França deve ao Haiti (cerca de 20 bilhões de dólares) custou-lhe um golpe de
Estado e forçou-lhe a um segundo exílio forçado longe de seu país. Sem uma decidida tomada
de posição em situações concretas como estas, e muitas outras, onde estão em jogo forças
anticoloniais versus neocoloniais, toda descolonização curricular tende a ser letra morta, ou
mero gattopardismo intelectual: mudar tudo para que tudo permaneça como está.
Em suma, as transformações na escrita da História possuem um valor inestimável,
especialmente quando transbordam os muros da escola e das universidades. Um exercício
praxiológico interessante pode começar nas páginas dedicadas ao descobrimento da
Península Ibérica pelos mouros - em vez de ‘invasão’ - o que torna inviável a própria ideia de
reconquista. Será imaginável um monumento erguido em homenagem ao ‘Descobrimento de
Portugal’ pela expansão dos califados islâmicos, ao lado da Torre de Belém? Tais propostas
soam como absurdas justamente porque desafiam o regime de verdade hegemônico e tido
como natural, mas podem servir àqueles e àquelas que, em Portugal, queiram participar do
esforço comum de descolonização a partir desta tentativa da colocação de si próprios no lugar
do Outro que é ao mesmo tempo descoberto e, portanto, encoberto. Na falta de um sem-
número de adesões voluntárias a este projeto, restará o enfrentamento ao descobrimento
feito sobretudo fora do mundo acadêmico, mesmo causando pavor a membros deste, como
foi o caso da recente exposição no Museu de Arte, Arquitectura e Teconologia de Lisboa
(situado na mesma orla da Torre de Belém e do Padrão dos Descobrimentos), onde uma das
obras do artista brasileiro Rodrigo Saturnino, conhecido como ROD, trazia os dizeres: “Não
foi descobrimento, foi matança”. Um sinal da urgência, portanto, de se des-cobrir, para que
pare-se de encobrir as relações de poder constitutivas das realidades colonial e pós-colonial.
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Referências:

Casanova, P. (2007) “Colonialismo interno: uma redefinição”. In: Borón, A. et al (orgs). A


Teoria Marxista Hoje: Problemas e Perspectivas. Buenos Aires: CLACSO.

Dussel, E. (2005) “Europa, Modernidade e Eurocentrismo”. In: Lander, E. (org.). A


Colonialidade do Saber: Eurocentrismo e Ciências Sociais – Perspectivas Latino-americanas.
Buenos Aires: CLACSO.

Nora, P. (1993) “Entre História e Memória: A Problemática dos Lugares”. História e Cultura,
vol. 10, pp. 7-28.

Prado Júnior, C. (1942) Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Ed. Brasiliense.

Todorov, T. (1983) A Conquista da América: A Questão do Outro. São Paulo: Martins Fontes.

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