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“Um lugar bem melhor de se viver”: notas sobre a


produção do espaço em Santa Cruz, Rio de Janeiro.

Miguel Borba de Sá
Instituto PACS/ IRI-PUC-Rio
 

Rio de Janeiro, 10 de Janeiro de 2015


 

  2  
1. Introdução

Há 70 anos Santa Cruz só tinha uma rua e hoje cresceu, junto


com o Brasil. Mudou para melhor, mas ainda é preciso dar mais
estudo aos jovens daqui (Alô Comunidade, nº 11, Novembro de 2012,
p.3 – grifo nosso).

Este tipo de frase é freqüentemente encontrada em posições de destaque no


jornal ‘Alô Comunidade’, com tiragem mensal de 50 mil exemplares, publicado
desde 2012 pela ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA).
Operando às margens da Baía de Sepetiba, Rio de Janeiro, Brasil, mas ainda sem
licença ambiental definitiva, a siderúrgica inicialmente despertou forte resistência na
população local por conta da poluição emitida, assim como recebeu multas dos
órgãos ambientais, fatos amplamente divulgados pela imprensa.

O jornal comunitário é fruto de um acordo negociado entre a empresa e as


autoridades estaduais do Rio de Janeiro, constituindo-se como uma das medidas de
caráter compensatório dos impactos que a siderúrgica começou a causar ao meio
ambiente e à população vizinha desde que entrou em operação, em 2010. Assim
como outras medidas punitivas que rapidamente se converteram em palanque de
publicidade para a empresa, o periódico também tornou-se parte do aparato de
dispositivos que a TKCSA criou para lidar com a insatisfação local e, ao mesmo
tempo, sustentar o apoio estatal.

Esta prática não constitui uma novidade. O que chama atenção para este
caso, no entanto, é que o jornal criado pela empresa demonstrou-se extremamente
rápido e eficaz em cumprir suas tarefas. O ‘Alô Comunidade’ é um sucesso no
bairro. Está por todas as partes, inclusive nas mãos de pessoas com posições
críticas quanto a chegada da TKCSA no local. É claro que não se trata do único
fator, mas é nítida a coincidência entre o declínio da resistência popular e a ofensiva
de projetos de ‘responsabilidade social corporativa’ da TKCSA divulgados pelo
jornal, ele mesmo um de tais projetos, dentre os quais ocupa uma posição central: a
de produzir representações do espaço em Santa Cruz favoráveis aos grandes
interesses empresariais na região.

Diante disso, este ensaio pretende partir das proposições de Henri Lefebvre
1
(1974) sobre a “produção do espaço” para abordar o papel político crucial

                                                                                                               
1
A publicação original data de 1974 e por isso vamos seguir esta data nas referencias ao longo do

  3  
desempenhado pelas representações do espaço urbano em Santa Cruz projetadas
pelos materiais institucionais da TKCSA, em especial, pelo jornal ‘Alô Comunidade’.
Tratando a empresa como detentora dos “códigos espaciais” (1974:48) e dos meios
materiais para conceber o espaço na região – numa assimetria insuperável por
forças sociais opositoras, como a população atingida que inicialmente resistiu –
buscaremos mostrar como a produção do “espaço abstrato” (1974: 49) em Santa
Cruz está apoiada, em parte, nas sofisticadas representações do espaço concebidas
por um paradoxal dispositivo como um jornal comunitário produzido por uma recém-
chegada empresa multinacional.

É possível tratá-lo, portanto, como fonte de representações do espaço


abstrato, ou seja, de espaços produzidos por relações sociais de tipo capitalista que,
seguindo Lefebvre, “dependem do consenso mais do que qualquer outro” (1974:57)
para produzirem-se, ainda que não abram mão da violência quando necessário. O
consenso que busca-se construir neste caso, conforme ilustrado pela epígrafe
acima, é que a despeito das dificuldades reais e cotidianas enfrentadas por uma das
regiões mais pobres da cidade do Rio de Janeiro, aquele espaço “mudou para
melhor” com o processo de industrialização, cujo ápice se dá com a chegada da
TKCSA. O que subsiste de ruim deve possuir outras causas, sempre.

A próxima seção recordará as proposições de Lefebvre (1974) acerca da


produção do espaço, destacando os conceitos e argumentos que podem iluminar o
caso TKCSA e os conflitos envolvendo a produção do espaço em Santa Cruz. Em
seguida, veremos como o processo de representação do espaço pelo poder
dominante – neste caso, conforme ilustrado pelo jornal Alô Comunidade2 - vai se
afirmando. Ao final, na conclusão, apontaremos possíveis desdobramentos desta
análise a partir da investigação das dificuldades encontradas em produzir um
“espaço diferencial” (Lefebvre, 1974: 52), ou seja, um espaço contra-hegemônico,
também chamado de “espaços de esperança” por Harvey (2003), que adviria do
maior sucesso da luta de resistência da população local; luta até agora derrotada e
diminuída – mesmo que teimosamente presente e viva.

2. Lefebvre e a produção do espaço em Santa Cruz.

                                                                                                               
2
Todas as 36 edições publicadas até hoje e analisadas aqui podem ser encontradas em:
http://www.thyssenkrupp-csa.com.br/pt/publicacoes.html

  4  
Conforme o próprio título de seu famoso livro de 1974 informa, para Lefebvre
a noção de espaço não pode ser tomada como um dado. Com efeito, este é
precisamente o problema que ele identifica nas tradições filosóficas modernas: o
tratamento do espaço como algo passivo, já pronto, sobre o qual as relações
humanas se desenrolam. Para Lefebvre (1974) o espaço não pode seguir sendo
tomado como apenas um cenário, ou um pano de um fundo descolado e
desimportante para as relações sociais, em especial para as relações de poder.

Assim, partindo da premissa contrária, de que o espaço não está dado, ele
sugere que todo espaço social precisa ser produzido. E quem vai produzir este
espaço? Para Lefebvre (1974) a resposta é direta: as classes sociais em conflito,
com vantagem para a classe dominante. Assim, o espaço passa a ser entendido
como um dos resultados da luta entre as classes sociais: “social space is a social
product” (1974: 26; 30), ele não se cansa de repetir. Nesta perspectiva, o espaço
torna-se parte da vida social, ao mesmo tempo em que sua conflituosa produção
expressa as dinâmicas próprias de cada sociedade.

A second implication is that every society – and hence every mode


of production with its subvariants (i.e. all those societies which
exemplify the general concept), produces a space, its own space
(1974:31);
As for the class struggle, its role in the production of space is a
cardinal one in that this production is performed solely by classes,
fractions of classes and groups representatives of classes. Today,
more than ever, class struggle is inscribed in space (1974:55)

Esta perspectiva foi de fato inovadora para a época, mas seu marxismo
deveras heterodoxo rendeu-lhe insuficiente atenção. Pois, em que pese a utilização
de noções caras à tradição marxista (‘modo de produção’, ‘luta de classes’, ‘relações
de produção’, ‘capitalismo’, ‘classe dominante’ etc.), o argumento de Lefebvre (1974)
chocar-se-ia inevitavelmente com as concepções ortodoxas defendidas pelo Partido
Comunista Francês. Mais, ele questionava diretamente se o ‘socialismo realmente
existente’, em especial a União Soviética, poderia ser de fato considerado socialista
sem ter produzido um “espaço específico”, sem que “tenha ocorrido nenhuma
inovação arquitetônica importante”; e se neste caso não seria melhor falar de uma
“transição fracassada?” (1974:55).

Por outro lado, a crítica mais aguda e persistente de Lefebvre (1974) é


direcionada aos filósofos estruturalistas, pós-estruturalistas e demais teóricos do

  5  
discurso, a quem acusava de postular inconscientemente a existência de um espaço
lógico-filosófico já dado, supostamente transparente e livre de ideologias, assumindo
sua transponibilidade não-problemática para o espaço social. Para Lefebvre (1974),
a linguagem não deve ter precedência ontológica sobre o espaço. Ignorar que a
relação de poder-saber se dá num espaço, ao mesmo tempo em que produz esse
espaço, é prestar um enorme favor à ideologia da classe dominante, um “salto
mortal” (1974:6) para teóricos tão preocupados com relações de poder. Após citar
nominalmente Foucault, Derrida e Barthes, ele declara:

This school, whose growing renown may have something to do with


its growing dogmatism, is forever promoting the basic sophistry
whereby the philosophico-epistemological notion of space is
fetishized and the mental realm comes to envelop the social and
physical ones (...). What is happening here is a powerful ideological
tendency, one much attached to its would-be scientific credentials,
is expressing, in an admirably unconscious manner, those dominant
ideas which are perforce the ideas of the dominant class (1974:5-6)

Assim, apesar do impacto que causou, Lefebvre (1974) viria a ser


relativamente desconsiderado pela direita, pela academia e pela esquerda oficial de
sua época, sendo recuperado com vigor apenas décadas mais tarde, quando os
geógrafos críticos anglo-saxões encontram em suas obras a inspiração para seu
engajamento contra o ‘neoliberalismo’ (Brenner & Theodore, 2002; Harvey, 2001;
Massey 2005). Hoje, Henri Lefebvre é uma referência obrigatória para geógrafos,
urbanistas e arquitetos críticos, assim como boa parte da esquerda ‘pós-marxista’
em geral. É o caso de Doreen Massey (2005), que segue sustentando
fidedignamente a mesma reclamação de Lefebvre (1974) sobre o tratamento pouco
cuidadoso dado pelas grandes tradições de pensamento ocidentais à questão do
espaço, em oposição à farta teorização sobre o tempo. No campo das Relações
Internacionais, autores críticos de peso como Rob Walker (1993; 2010) também se
inspiram no filósofo francês para desenvolver argumentos sobre as articulações
espaço-temporais da modernidade.

Mas e em Santa Cruz, Rio de Janeiro, como começar a pensar na produção


do espaço a partir das sugestões lefebvrianas? Em primeiro lugar, devemos
identificar os grupos e frações que representam classes sociais no local, já que não
há dúvidas sobre o modo de produção (capitalista) que está sendo produzido junto
com o espaço por lá, e tampouco quanto à variante (periférica, dependente) em que

  6  
este modo de produção se apresenta. Em outras palavras, o conflito social em Santa
Cruz pode ser encarado como parte da luta pela imposição do que Lefebvre (1974)
chama de “espaço abstrato” no local, o espaço tipicamente capitalista.

O processo de industrialização da região, desencadeado com força a partir


dos anos 1960 e retomado com mais intensidade com a chegada das obras de
construção da TKCSA, em 2006, coloca aquele local na rota de interesses de
importantes cadeias do capital industrial e comercial-exportador transnacional, e
assim vai transformando a região, produzindo um novo espaço, que é perceptível
não apenas na mudança da paisagem (landscape), antes semi-rural e campestre -
que dá lugar à crescentes zonas de habitação urbana, planejadas ou não -, mas
também na proletarização progressiva da população local, dentre outras alterações
que seguem o esquema de Lefebvre (1974) de passagem do “espaço absoluto”
(pré-capitalista) ao “espaço abstrato” (capitalista).

Em Santa Cruz, esse processo tem se intensificado nos últimos anos, pois
até então existia apenas a presença do grande capital nacional, tanto estatal (Casa
da Moeda) como privado (Gerdau S.A.), na região. Com a chegada de uma
corporação multinacional do porte da ThyssenKrupp, o processo de produção do
espaço abstrato se acelera, assim como aguçam-se os respectivos conflitos sociais
constitutivos dessa passagem. A população vizinha à fábrica (cerca de 30 mil
pessoas) surpreendeu-se com o repentino aumento de doenças respiratórias,
dermatológicas e oftalmológicas após a instalação da grande planta siderúrgica à
poucos metros de suas casas. Pescadores tiveram que abandonar seu modo de
vida tradicional, pois a dragagem da baía para chegada de navios de alto calado e a
delimitação de zonas de exclusão de pesca tornaram sua subsistência
3
progressivamente mais difícil . Diante da reação da população local, a empresa
primeiramente empregou métodos coercitivos, contratando uma firma de serviços
privados de segurança para amedrontar a nascente resistência popular. Em
seguida, apostou na cooptação e construção de consenso sobre sua presença no
local a partir de um impressionante leque de projetos de “responsabilidade social
corporativa” (RAMIRO, 2009; ZUBIZARRETA, 2009)4.

Com um faturamento anual de U$ 41 bilhões em 2014, o grupo


ThyssenKrupp formou-se a partir da fusão de duas grandes empresas alemães dos
ramos siderúrgico e bélico, oriundas da grande expansão do capitalismo daquele

                                                                                                               
3
Instituto PACS (2012).
4
Para uma análise detalhada dos projetos de responsabilidade social corporativa da TKCSA, ver:
Instituto PACS (2015).

  7  
país no século XIX, e hoje possui cerca de 160 mil empregados ao redor do mundo,
estando presente quase 80 países5. Trata-se, portanto, de um capital do tipo
monopolista (o mercado de aço é dos mais restritos, dados os altos custos de
entrada), cuja capacidade de ampliação dos investimentos em solo nacional alemão
esgotou-se há mais de um século. Nos anos 2000, a necessidade de expansão
exterior deu origem a Steel Américas, um projeto de construção de duas fábricas
siderúrgicas integradas, uma no Alabama, Estados Unidos, a outra no Rio de
Janeiro (Santa Cruz), no Brasil6. Foi o maior investimento industrial privado alemão
fora da Alemanha até então, totalizando 13 bilhões de euros7. Assim construiu-se a
siderúrgica mais cara e moderna da América Latina, a TKCSA. E assim alterou-se
dramaticamente o ritmo de conflitos pela (e resultantes da) produção do espaço em
Santa Cruz.

É razoável supor, desta forma, que a TKCSA se qualifique neste espaço


como legítima representante da “classe dominante” à qual se refere Lefebvre (1974),
o mesmo valendo para sua respectiva ideologia e conhecimentos, concedendo-lhe
uma capacidade de “representar o espaço” por lá. Essa categoria, junto com as
“práticas espaciais” e os “espaços representacionais” formam a “tríade de
elementos” sugeridos por Lefebvre (1974: 38-39) que estariam em uma relação
dialética entre si – e, portanto, inconcebíveis separadamente -, formando as três
dimensões, ou “momentos”, da produção do espaço social: o espaço concebido, o
espaço percebido e o espaço vivido, respectivamente8.

As práticas espaciais de uma sociedade, segundo Lefebvre (1974:38), são


reveladoras do espaço produzido por esta mesma sociedade. Apesar de não ser
muito preciso ao falar desta dimensão do espaço, ele parece estar apontando para a
noção de totalidade em uma dada “formação social”. São práticas diárias que
apresentam certa coesão e garantem continuidade daquele espaço (“produção e
reprodução”), o que não significa que estejam desprovidas de conflitos ou mesmo
contradições, pelo contrário (1974:33). Por exemplo, uma sociedade “neocapitalista”
segmenta espacialmente as práticas da vida social (trabalho, vida privada, lazer)
                                                                                                               
5
http://www.thyssenkrupp.com/en/konzern/index.html
6
Convém esclarecer que a ThyssenKrupp detém 73% das ações da TKCSA, ao passo que os
restantes 27% pertencem à mineradora brasileira VALE.S.A., que também fornece o minério de ferro,
que chega advindo do estado de Minas Gerais por via férrea até dentro do pátio da empresa, em Santa
Cruz. O carvão mineral que alimenta os alto-fornos é importado, por mar, da Colômbia.
7
REUTERS, 02/12/13. Disponível em: http://www.reuters.com/article/2013/12/02/us-thyssenkrupp-
ussteel-idUSBRE9B10CU20131202
8
À rigor, para Lefebvre (1974: 33; 38) os três elementos aparecem sempre em uma seqüência distinta
da apresentada acima, e identificados por números que sugerem uma hierarquia precisa: 1. Práticas
Espaciais; 2. Representações do Espaço; 3. Espaços Representacionais. No entanto, para fins deste
ensaio, que privilegia as representações do espaço em Santa Cruz, faz sentido apresentá-los numa
ordem que destaque o poder de conceber (ideologia e conhecimento) o espaço no local.

  8  
para em seguida uni-las novamente via projetos de transporte de massa e
tecnologias da informação. Em Santa Cruz, certas práticas espaciais são notáveis,
como aquela relacionada à lógica espacial centro-periferia (Brenner & Theodore,
2002), incontornável para boa parte da população que deve deslocar-se
cotidianamente por mais de 50km para chegar ao local de trabalho, estudo ou
serviços públicos no centro da cidade. Para os moradores de Santa Cruz envoltos
nesta prática espacial, o seu espaço cotidiano é percebido, mesmo estando em
casa, como um lugar distante.

No entanto, é na relação entre representações do espaço e espaços


representacionais que Lefebvre (1974) concentra-se mais. E aqui pode-se encontrar
uma demarcação de especial interesse para o caso analisado, pois é a distinção
entre essas duas dimensões do espaço que melhor exemplifica as relações de
poder em sua produção. Resgatando proposições gramscianas sobre política e
dominação, Lefebvre (1974:10) sugere que em dada formação social a disputa por
“hegemonia” entre as classes sociais e frações envolve, e resulta, na produção do
espaço. Assim, temos de um lado aqueles dotados da capacidade de representar o
espaço, os verdadeiros produtores deste espaço, capazes de impor conhecimento,
signos e códigos e de conceber o espaço intelectualmente, de planejá-lo e
materializá-lo (1974:33;38).

É o trabalho de cientistas, urbanistas, planejadores, tecnocratas e


engenheiros sociais, assim como de um “tipo especial de artista” (1974:38). Ligado
às relações de produção e à ordem por elas imposta, esta dimensão do espaço é a
“dominante em qualquer sociedade” (1974:39); é a representação do espaço
aspirada pela classe dominante. Em Santa Cruz, a transformação de uma área
costeira alagadiça, produtora de pescado e mandioca, em distrito industrial
exportador de aço mostra como os planejadores exerceram essa capacidade de
representar o espaço e materializar essa representação. A emblemática expulsão de
camponeses sem-terra do local onde hoje encontra-se a TKCSA, sob pretexto de
representarem uma ameaça ao manguezal, para em seguida erguer um complexo
siderúrgico que desmatou esse mesmo manguezal e causou diversos outros danos
ambientais reforça a tese de Lefebvre (1974) sobre a representação do espaço
como um “projeto”. Mais que a mera construção de uma “estrutura particular, palácio
ou monumento”, uma mistura de ideologia e conhecimento que “intervém” e deixa
marcas na “textura” do espaço (1974:42).

Por outro lado, os espaços representacionais não desfrutam, em geral, das


mesmas prerrogativas de poder que as representações do espaço possuem. São os

  9  
espaços vividos dentro daqueles que foram concebidos pelos grupos sociais
hegemônicos. São espaços “vivos”, “fluidos”, “dinâmicos”, essencialmente
“qualitativos” (1974:42), que não precisam obedecer a nenhuma regra de coesão ou
coerência. Mas seus únicos produtos são “trabalhos simbólicos” e “tendências
estéticas” que perdem-se no tempo após provocarem algumas incursões no
imaginário social. É a dimensão dos usuários, não dos produtores do espaço. Os
artistas, escritores e filósofos, neste “momento” espacial, somente podem aspirar,
segundo Lefebvre, a “descrever” o espaço (1974:39).

Pois trata-se do espaço como “diretamente vivido através de suas


associações de imagens e símbolos”, gerando uma ligação afetiva. Em Santa Cruz,
é possível pensar em exemplos de espaços representacionais9 como a Base Aérea
da Aeronáutica e o ex-hangar de construções de Zepelins, o antigo Matadouro, a
estação de trem, o Hospital Pedro II, a quadra da Escola de Samba Acadêmicos de
Santa Cruz, o Shopping Santa Cruz, o Fórum de Justiça, o cemitério e a Vila
Olímpica, assim como os conjuntos habitacionais e favelas que compõem o bairro
ou as casas em poder do tráfico de drogas e da milícia. Hoje, além da estação do
BRT e outras novidades espaciais, a própria TKCSA tornou-se um espaço
representacional inevitável para muitos habitantes, em especial para os que moram
na reta João XXIII.

Se aceitarmos a distinção analítica de Lefebvre (1974) entre essas duas


dimensões ou ‘momentos’, da produção do espaço social, é possível então propor
um esquema para o caso de Santa Cruz no qual os grandes interesses industriais e
estatais atuam de modo a fornecer as representações do espaço que predominam
naquela formação social – são os produtores do espaço – enquanto a população do
bairro, em especial aquela que vive no entorno da TKCSA e é afetada pela poluição
da fábrica, aparece como “usuária” deste espaço, aceitando seguir “experimentando
passivamente o que lhe foi imposto” desde que esteja inserido ou instanciado pelos
diversos espaços representacionais:

Perhaps we shall have to go further, and conclude that the


producers of space have always acted in accordance with
representation, while the ‘users’ passively experienced whatever
was imposed on them inasmuch as it was more or less thoroughly
inserted into, or justified by, their representational space
(LEFEBVRE, 1974:43-44)

                                                                                                               
9
Lefebvre fornece os seguintes exemplos de espaços representacionais: “Ego, bed, bedroom, dwelling,
house; or square, church, graveyard” (1974: 42). Desta lista inferimos os possíveis análogos existentes
em Santa Cruz.

  10  
Ainda que esta distinção não seja absoluta, nem tenha valor se pensada em
abstrato (LEFEBVRE, 1974:40), ela ajuda a compreender as dinâmicas político-
espaciais em Santa Cruz nos últimos anos. A revolta popular inicial e a persistência
de um obstinado grupo de moradores e pescadores que resistem à empresa,
promovendo campanhas, ações de denúncia e reparação, não mudaram o fato
aparentemente consumado de que a grande maioria da população “experimenta
passivamente o que lhe foi imposto”, permitindo que a empresa siga seu impactante
funcionamento, com a conivência do Estado, mesmo sem possuir as licenças
necessárias10 e constantemente aparecendo na mídia como causadora de danos
sócio-ambientais. A concepção de espaço que favorece as classes dominantes e
grupos que as representam prevaleceu e segue adiante no local, pois a produção do
espaço, ao mesmo tempo em que é um “projeto”, também é um “processo”,
conforme relembra Lefebvre (1974:42).

Por esses motivos, vale a pena examinar mais detidamente, na próxima


seção, uma das atuais instâncias de representação do espaço desenhada pelos
poderes dominantes em Santa Cruz. Após quatro décadas de produção de um
espaço (industrial, urbano, abstrato) que busca redefinir drasticamente aquele que
anteriormente existia (semi-rural, pesqueiro, absoluto) é chegado o momento de
justificar essa transição espacial. Não mais planejar e conceber, mas afirmar a
existência e a irreversibilidade do espaço que foi e está sendo produzido desde a
implementação do distrito industrial nos anos 1960. Para tanto, as representações
do espaço seguem sendo instrumentos cruciais de poder, devido à instabilidade
inerente e à falta de consistência de toda e qualquer produção do espaço
(LEFEBVRE, 1974: 41).

Nesse trabalho hegemônico constante, os espaços representacionais pré-


existentes podem (e freqüentemente são) utilizados para afirmar a representação do
espaço que busca-se impor. É exatamente isso que faz um dispositivo como o jornal
                                                                                                               
10
Com o esgotamento dos prazos de prorrogação da licença de instalação (também chamada de
licença prévia), a TKCSA ficaria virtualmente desamparada juridicamente caso não recebesse a licença
de operação (também chamada de licença definitiva). A questão é mais grave em se tratando de uma
siderúrgica, que não pode desligar seus alto-fornos até que se adéqüe à legislação ambiental, pois eles
nunca mais poderiam ser “re-ligados,” uma vez desativados. Assim, a solução encontrada pela
empresa e pelas autoridades ambientais do estado do Rio de Janeiro foi assinar um Termo de
Ajustamento de Conduta (TAC), em Fevereiro de 2012, que ampara juridicamente o funcionamento da
empresa, mediante o cumprimento de 134 cláusulas de adequação e compensação, até que a licença
definitiva possa ser concedida. Existe uma grande polêmica sobre a legalidade deste tipo de prática,
que vem se difundindo pelo país, pois significa uma maneira de burlar a legislação ambiental brasileira,
sendo um mecanismo que pode ser estendido ad aeternum quando há conluio de interesses entre
poder executivo e capital privado. Em geral, os Ministérios Públicos (MP) assinam os TACs junto com
as empresas e secretarias de ambiente, assumindo a função de supervisioná-los. No TAC da TKCSA,
no entanto, o MP do Rio de Janeiro se negou a assinar conjuntamente com a Secretaria de Estado de
Ambiente (SEA), Instituto Estadual do Ambiente (INEA) e Comissão Estadual de Controle Ambiental
(CECA), por discordar do tratamento benevolente concedido à empresa.

  11  
“Alô Comunidade”, da TKCSA, que além de rapidamente ter-se transformado em
parte relevante da prática espacial cotidiana em Santa Cruz, conseguiu adquirir uma
posição de autoridade de fala e emanação do senso-comum na região, sobre o qual
imprime os moldes e conteúdos da representação do espaço que o grande capital
precisa afirmar, reativa e preventivamente, contra qualquer resistência ou foco de
contra-hegemonia: o senso-comum que informa que aquele local “mudou para
melhor” – e que os problemas reais que ‘ainda’ existem tem outra causa, outros
culpados e outras formas de resolução que não passam pelo desafio à
representação do espaço em vigor.

3. Representações do espaço abstrato pelo jornal Alô Comunidade.

Desde que as obras de construção da TKCSA começaram, em 2006,


conflitos com a população local e controversas relações com diferentes entes
estatais vêm marcando a produção do espaço na região. Já em outubro daquele
ano, a dragagem do fundo da Baía de Sepetiba gerou revolta nos pescadores
artesanais: a dragagem trazia de volta resíduos tóxicos de um antigo acidente
ambiental na baía, que já haviam decantado para o fundo do mar. Em Janeiro de
2007 eles organizaram um protesto no mar até a chegada de um executivo da
empresa, de helicóptero, “para negociar”. Os pescadores continuaram a se
mobilizar, pois novos problemas surgiam, como o “atropelamento” da embarcação
de um deles por um rebocador à serviço da TKCSA, causando a morte do pescador,
e a construção de uma ponte de quatro quilômetros em direção ao mar que afastou
pescado, segundo suas reclamações11.

Em dezembro do mesmo ano, uma operação de fiscalização do IBAMA12 e


do Ministério Público Federal resultou no embargo da obra de construção da
siderúrgica devido ao desmatamento de manguezais e intervenções em cursos de
rios sem autorização. Uma multa de R$ 200 mil reais foi aplicada. Ainda em 2008,
trabalhadores subcontratados foram encontrados em condições degradantes, “com
uma refeição por dia”13. No ano seguinte, diante de nova denúncia trabalhista a obra
seria outra vez embargada, desta vez pelo Ministério Público do Trabalho, que
encontrou trabalhadores chineses sem registros ou documentos trabalhando como
                                                                                                               
11
Para mais informações, ver o documentário “A Baia pede socorro”, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=li-ZOHHNqyE
12
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), órgão do
governo federal ligado ao Ministério do Meio Ambiente.
13
O DIA, 13/08/2009 – “Trabalhadores sem salário e com uma refeição por dia”.

  12  
operários na construção14. Mas foi a partir de 18 de Junho de 2010, quando a
TKCSA acendeu seus alto-fornos pela primeira vez que a população local de Santa
Cruz teve sua grande frustração com o mega empreendimento que havia chegado a
seu bairro.

O primeiro grande episódio de emissão de “chuva de prata” (como a fuligem


prateada emitida pela TKCSA é chamada pelos moradores) ocorreu em Agosto do
mesmo ano, menos de dois meses após a inauguração da empresa. Uma multa de
R$ 1,8 milhões aplicada pelas autoridades ambientais não impediu que a emissão
continuasse, aparentemente por um “defeito de fabricação” em um equipamento da
coqueria. Com a emissão constante de “chuva de prata” ao longo do semestre
seguinte, Santa Cruz passou a ser objeto de diversas reportagens da grande
imprensa, que registrou a poeira prateada que cobria casas, carros, pessoas e
árvores no bairro15. Em princípios de Dezembro de 2010 o Ministério Público do
Estado do Rio de Janeiro entrou com uma ação penal contra a TKCSA por crimes
ambientais, com acusações que poderiam render até 19 anos de prisão para
diretores da empresa. Na noite de 26 de daquele mês, outro episódio mais agudo de
emissões gerou uma espontânea reação popular16.

Assim, em 28 de dezembro de 2010, mais de 300 pessoas reuniam-se na


praça do conjunto Novo Mundo, em frente à TKCSA, mobilizando-se para protestar
contra a empresa, mesmo sob o sol forte do verão carioca e diante dos olhares
intimidadores de homens armados de uma firma de segurança privada local
acusada de prestar serviços para a TKCSA e denunciada como integrante de uma
rede de “milícias” ilegais17 na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro.

Ao longo de 2011, a revolta popular cresceu até aproximar-se de


movimentos sociais, sindicatos e outras entidades com experiência de luta política,
passando a organizar-se melhor e expandir as denúncias, culminando no
fortalecimento da campanha “Pare TKCSA”18, o que gerou uma mudança na atitude
da empresa e das autoridades estatais. Em Abril o presidente da ThyssenKrupp, em
entrevista ao jornal O Globo, reconheceu que “avaliou mal as reações da
comunidade”, já que inicialmente os estrategistas da empresa alemã acharam “ que

                                                                                                               
14
http://www.corecon-rj.org.br/entrev_det.asp?Id_ent=47
15
O GLOBO, 19/08/10; O DIA, 07/08/10. Disponíveis em:
http://paretkcsa.blogspot.com.br/2014/03/documentos-materias-e-arquivos.html
16
O GLOBO, 05/01/11. Disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/csa-tera-que-gastar-168-
milhoes-para-compensar-incidente-ambiental-2841595
17
Conferir denúncia de deputados alemães disponível em: http://global.org.br/programas/deputada-
apresentara-denuncias-contra-empresa-alema-instalada-no-brasil-ao-parlamento-alemao/
18
Para mais informações sobre ações da campanha, ver: http://paretkcsa.blogspot.com.br/

  13  
só os empregos [gerados] bastariam”19. Agora, segundo ele, o empenho deveria ser
em “mudar a imagem” da siderúrgica junto à comunidade local. E a mudança não
demorou para se fazer sentir.

Em Santa Cruz, os boatos informavam que a empresa havia dispensado os


serviços da milícia local a partir de então. Os processos abertos contra
pesquisadores da Fiocruz20 foram unilateralmente retirados. Em Agosto do mesmo
ano a empresa assinou um Termo de Cooperação Ambiental com as autoridades
ambientais do estado, mediante o qual se comprometia a desembolsar R$ 14
milhões em obras de saneamento, construção de uma Clínica da Família, apoio
financeiro para colônias de pesca e contratação de uma consultoria para realizar um
termo de referência da futura unidade sentinela de saúde, uma determinação do
Ministério da Saúde para “vigilância em saúde de populações expostas a poluentes
atmosféricos”21. Em termos gramscianos, a nova meta era investir na produção de
consenso, de dominação via hegemonia, mais do que coerção (LEFEBVRE,
1974:10).

A tática não era exatamente nova, pois já havia sido empregada com êxito
durante o processo de licenciamento prévio (“licença de instalação”22), com ênfase
no município vizinho de Itaguaí, onde a TKCSA pagara R$1,5 milhão para a
construção de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de saúde, R$ 6,5 milhões
para erguer uma escola técnica, havia doado dois barcos para Capitania dos Portos,
investido R$ 7 milhões para obras de asfaltamento do município, além do apoio
dado a associações de pescadores. Nestes locais, os atingidos pela TKCSA nunca
haviam revoltado-se como estava acontecendo agora com a população de Santa
Cruz. Assim, houve uma guinada em direção a intensificação de projetos de
“responsabilidade social corporativa” e a partir desse momento a TKCSA tornar-se-
ia uma das empresas com maior quantidade de projetos voltados para uma
população específica: o bairro de Santa Cruz. E as representações do espaço não
tardariam em se fazer presentes.
                                                                                                               
19
O Globo, 22/04/2011 – disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/presidente-da-csa-admite-
erros-achamos-que-so-os-empregos-bastariam-2792767
20
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), órgão do Ministério da Saúde que, desde o começo, aliou-se à
resistência dos moradores contra a TKCSA, oferecendo laudos técnicos, estudos e acompanhamento
médico de parte da população atingida. Para mais informações, ver:
http://www.agencia.fiocruz.br/relat%C3%B3rio-reafirma-correla%C3%A7%C3%A3o-entre-material-
expelido-pela-tkcsa-e-impactos-na-sa%C3%BAde
21
Ver tabela I em anexo com as medidas do termo de cooperação ambiental de 17 de agosto de 2011.
Sobre as unidades sentinelas de saúde, ver:
http://www.saude.rs.gov.br/upload/1358364990_Manual%20de%20Instrucoes_2013_Unidades%20Sen
tinelas.pdf
22
Somente nas ações “sócio-ambientais” realizadas neste licenciamento (um dos mais rápidos das
história do Estado do Rio de Janeiro) a TKCSA desembolsou R$ 24 milhões para equipar ou contribuir
na execução de projetos públicos.

  14  
Foi assim que nasceu, em Janeiro de 2012, o jornal “Alô Comunidade”.
Novamente atuando em associação com o grande capital privado (desta vez
multinacional), as autoridades estatais do Rio de Janeiro exercitaram o mesmo
poder soberano de produção do espaço que havia transformado Santa Cruz em
Distrito Industrial nos anos 1960, mediante decisões executivas. Agora, a
hegemonia na produção do espaço tornava-se outra vez palpável em face da
inclusão nos acordos entre poder público e empresa de uma prática, conveniente
para ambos, de publicizar ações de ‘responsabilidade social corporativa’ afim de
transmitir imagens positivas da empresa no local. Dois meses depois seria assinado
o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre a TKCSA e a Secretaria de
Ambiente, ao qual o jornal “Alô Comunidade” seria incorporado como uma das
“medidas compensatórias” aos danos causados pela poluição. A rubrica do TAC
informava um valor inicial de R$ 683 mil reais para,

Revisão dos canais de comunicação social. Editar um jornal


gratuito para a comunidade (Reta, centro de Santa Cruz e centro
de Itaguaí) com conteúdo focado em ações de responsabilidade
socioambiental e atividades da comunidade. (TAC, tabela, item. 5,
p. 3 – Anexo I).

A tiragem inicial de 25 mil exemplares mensais rapidamente esgotados


revelava o sucesso que o “Alô Comunidade” logo se transformaria. Com páginas
coloridas, muitas fotos, impresso em papel grosso de revista (couché), o jornal
revelou-se uma “medida compensatória” tão proveitosa para a empresa que a
TKCSA decidiu seguir com sua publicação independente de novos acordos com o
poder público. No ano seguinte, em julho de 2013, a empresa optou por dobrar a
tiragem a partir da edição número 18 do jornal, tamanha havia sido a mudança nas
atitudes da população local neste breve período de aproximadamente um ano e
meio em que representações do espaço favoráveis à empresa (e à industrialização,
em geral) passaram a inundar diversos locais de encontro coletivo em Santa Cruz,
como bares, supermercados, postos de saúde, farmácias, igrejas, pontos de ônibus,
além de serem distribuídos (“gratuitamente”) e anunciados por um carro de som que
percorre as ruas do bairro.

O sucesso do “Alô Comunidade” foi atestado por uma pesquisa do Ibope e


celebrada nas páginas do próprio jornal em Agosto de 2012. “Com apenas meio ano

  15  
de existência já é o mais lido na Reta João XXIII e o segundo em Santa Cruz”23,
orgulhava-se o periódico. De acordo com a pesquisa, nada menos que 70% da
população que vive no entorno da TKCSA já tinha, em pouco tempo, as
representações do espaço emanadas do grande capital industrial como as
dominantes em suas vidas diárias. A mesma edição comemora o fato de que além
das pessoas contratadas para distribuição, havia uma “rede de parceiros” que
estava ajudando a ampliar o alcance do “Alô Comunidade”, redistribuindo-o
voluntariamente. O jornal rapidamente entranhou-se nas práticas espaciais de Santa
Cruz, tornando-se parte do cotidiano percebido pela população local:

As pessoas vêm comprar pão para o café da manhã e levam junto o


jornal”, comenta Manoel [dono de uma padaria local]. Passam por lá
muitos militares da Vila de Sargentos da Aeronáutica, além de pais e
alunos que vão para as escolas públicas da região. “As pessoas
gostam de saber o que acontece em outras comunidades”, afirma
Márcio. ‘Um amigo nosso que é policial, o Braga, saiu outro dia no
jornal e todo mundo comentou’, completa (Edição 08, Agosto de 2012,
p.4);

A comunidade sentia falta de um veículo que falasse dela e pra ela.


Nesses dois anos a adesão dos moradores [ao Alô Comunidade]
aumentou a cada edição (Claudinho do Som, morador, edição 25, p.3)

O “Alô Comunidade” está em sua 36ª edição. A primeira delas apresenta dois
moradores sorridentes na capa, segurando computadores portáteis que ganharam
(da empresa) ao vencer o “concurso cultural” para decidir o nome do jornal. Este
método seria seguido em todas as edições seguintes: envolver os moradores de
modo que o jornal aparente ser deles também, da comunidade, do bairro. Apesar de
ser editado, financiado e publicado por uma empresa multinacional em virtude de
uma demanda estatal, o “Alô Comunidade” pretende ser um jornal comunitário - o
que ele consegue, com grande grau de sucesso.

A ambigüidade em relação à autoria, ao sujeito de fala no jornal, é proposital


e eficaz em torná-lo familiar, em fazê-lo soar como legítimo portador do senso
comum na região. O “Alô Comunidade” não apenas fala como um morador de Santa
Cruz, sobre temas de interesse de Santa Cruz, mas de alguma forma também
produz uma relação afetiva: é um jornal que “sente” como um morador de Santa
Cruz. Este paradoxo, refletido na indeterminação e abstração ao nível dos sujeitos
de fala, pode encontrar pistas para sua explicação em Lefebvre (1974) e as
                                                                                                               
23
Alô Comunidade! (doravante referenciado como “AC”), edição 08, Agosto de 2012, p.2.

  16  
características típicas dos processos de produção do espaço abstrato que parecem
estar ocorrendo por lá.

A seção “Repórter Comunitário” leva ao extremo essa ambigüidade de fala,


ao transformar moradores do bairro em “aspirantes a jornalista” durante a
preparação de algumas edições. Apesar de trazer os moradores, seus nomes e
rostos, aquilo que eles poderão reportar já está pré-determinado. A abstração se
revela, portanto, no momento em que a representação do espaço será sempre a
mesma, abstrata, independente de quais moradores sejam escolhidos para
participar do “Repórter Comunitário”. A função do jornal como difusor de uma
determinada representação do espaço, fixa e inegociável, fica explícita:

Quatro representantes de Santa Cruz farão parte da equipe do jornal


Alô Comunidade! por alguns meses e vão levar até você histórias
positivas de pessoas que fazem de Santa Cruz um lugar melhor
de se viver (Edição 16, p. 2- grifo nosso)

A logomarca da ThyssenKrupp está presente no jornal, mas em tamanho


reduzido, no final da última página. Ao longo das 4 folhas em forma de encarte que
constituem o “Alô Comunidade” o que predomina, de longe, são fotos grandes de
pessoas, de rostos de moradores de Santa Cruz, sempre sorrindo, ao lado de
“boxes” com destaques de suas falas. E as falas tendem a reforçar a idéia de que a
empresa, ou empresas em geral, estão ajudando a região a tornar-se um lugar
melhor para se viver. Quase nunca é a TKCSA que fala diretamente, a não ser em
matérias específicas sobre o “aço em nosso dia-dia”, em chamadas para empregos
ou nas raras vezes em que o jornal precisa responder às denúncias e pressões da
resistência que se manteve persistente, mesmo que diminuta. Até mesmo nestes
casos predomina a preferência no “Alô Comunidade” por transmitir sua
representação do espaço como se fosse a da própria população local, ou seja,
colocando-a nas falas e faces dos próprios moradores, conferindo uma posição de
credibilidade, e autoridade, àquela narrativa:

Antes eu pensava que a CSA tinha chegado para trazer problemas, mas
depois da visita [à fábrica], minha opinião mudou. Achava que a falta de
luz no bairro era por culpa da empresa, mas descobri que a CSA produz
sua própria energia e ainda vende a que sobra (Rayane Santos, 17 anos,
moradora, edição 14, p. 2);

  17  
Já reclamei da CSA mas hoje mudou. Além de gerar trabalho, ajuda na
formação dos mais novos. Minha filha participa de alguns projetos
desenvolvidos pela empresa (Márcia Ferreira, moradora, Edição 34, p.2);
A representante [da comunidade] Aparecida Maria da Silva, a Dona Tita,
elogiou a transparência da siderúrgica e destacou que uma rede de
boataria foi criada, gerando desconfiança por parte da população (Dona
Tita, moradora e “representante” da comunidade, edição 11, p.4).

E assim segue o “Alô Comunidade”, mesclando matérias sobre curiosidades


da culinária local, atrações culturais patrocinadas pela empresa ou serviços públicos
disponíveis no bairro, todas misturadas às ações de ‘responsabilidade social
corporativa’ promovidas pela empresa, principalmente nos campos da saúde (apoio
à construção de clínicas da rede pública) e educação (apoio a programas de reforço
escolar) e capacitação profissional. O tom é sempre positivo, alegre, otimista e
celebratório das ‘conquistas’ do bairro, sejam elas diretamente fruto de ações da
TKCSA ou não, gerando uma confusão deliberada para o leitor sobre quem promove
quais daqueles projetos sociais, se é o Estado, a empresa, ou entidades mistas
como o SENAI24. Ao dificultar o leitor na descoberta sobre quem deve levar o crédito
por aquelas ‘vitórias’, o jornal obriga-lhe a abstrair dessa questão para seguir lendo
a notícia. Nesta nova abstração, as melhorias acabam sendo identificadas, ao fim,
com a chegada da TKCSA:

A empresa investiu R$ 4 milhões na construção do prédio da clínica da


família [Ernani Braga, em Santa Cruz], por meio de acordo voluntário
firmado com a Secretaria de Estado de Ambiente para execução de
projetos de infra-estrutura na região (...) Desde o início das operações
da CSA, as regiões de Santa Cruz e Itaguaí receberam diversos
investimentos na saúde, como a UPA de Itaguaí, construída pela
empresa, e a reforma do Hospital Pedro II pela Prefeitura do Rio
(Edição 7, Julho de 2012, p. 2)

O que nunca aparece no jornal “comunitário” são os graves problemas


vividos pela comunidade no atendimento à saúde pública na região, mesmo que
estejam implícitos de uma forma ou outra. Nem o fato de que as doenças causadas
pela siderurgia (em especial nos olhos, pele e vias respiratórias) não são atendidas
pelas unidades de saúde patrocinadas pela TKCSA. Alguns problemas podem e
devem estar implícitos nesta narrativa, a partir do reconhecimento daquele espaço
como carente de serviços públicos de qualidade, mas o que se destaca nessa
                                                                                                               
24
Serviço Nacional de Aprendizado Industrial (SENAI).

  18  
representação é apenas o que há de bom surgindo neste espaço, formando uma
topografia ao estilo de ilhas ou oásis de recentes melhorias privadas envoltos em um
espaço abstrato de pobreza e precariedade nos serviços públicos básicos.

A representação do espaço precisa estar calcada nas práticas espaciais


percebidas por lá, mas não pode conceder muito para polêmicas que acusem a
existência de conflitos importantes e, sobretudo, nenhum espaço para vozes
dissidentes, ou representações do espaço diferenciais. Na passagem acima fala-se
do acordo com as autoridades estatais, sem mencionar-se, no entanto, toda a
polêmica que o caso gerou, para em seguir adjetivá-lo como “voluntário”, numa
tentativa de evitar ao máximo a indagação inconveniente sobre as causas, motivos
ou razões que obrigaram as partes a entrar em acordo, antes de tudo. Evita-se,
sobretudo, retratá-lo como uma punição das autoridades frente aos impactos
causados.

É uma estratégia representacional sofisticada, partindo de uma verdade


cotidiana experimentada pelos moradores do bairro para em seguida anexar-lhe um
corolário de interesse da empresa: os serviços públicos são de baixíssima qualidade
neste espaço (verdade cotidiana), logo as poucas coisas boas que acontecem aqui
devem-se ao apoio das grandes empresas, em especial da TKCSA (corolário). O
exemplo da reciclagem do lixo é paradigmático: Santa Cruz não possui coleta
seletiva, como informa o Alô Comunidade25, mas a TKCSA desenvolve um belo
programa de reciclagem e conscientização ambiental com as escolas públicas do
bairro, além de lembrar que “98% dos resíduos gerados pela CSA são reciclados”26.

O ápice desta abstração narrativa e espacial se dá em projetos como o CSA


Social, que “leva serviços de documentação, saúde e assistência para os
moradores”27, constituindo-se numa verdadeira prestação privada de serviços
públicos. Segundo a diretoria de relações públicas da TKCSA, “este evento tem a
função de facilitar o acesso dos moradores à cidadania”28. Novamente os moradores
deste espaço abstrato tem voz e rosto nos boxes de destaque do jornal:

O CSA Social é uma oportunidade de crescimento para a comunidade


porque muitas pessoas não conseguem trabalho por falta de
documentos (Jersica Lima, 21 anos, moradora e voluntária, edição 05,
p.3);
                                                                                                               
25
AC, Edição 36, p.4.
26
AC, edição 9, Setembro 2012, p.2. O mesmo vale para o tema da “cultura”, onde o bairro aparece
sempre como um espaço carente de atrações culturais, remediadas pelos projetos ocasionais da
TKCSA, que “trazem cultura para a gente, que tem pouco acesso” (AC, edição 33, p.3).
27
AC, edição 05, p.3
28
Idem.

  19  
Preciso da certidão para dar entrada na minha aposentadoria
(Lucidalva do Nascimento, viúva, moradora, edição 05, p.3);

Entre os primeiros da fila estava a aposentada Leda Rodrigues, 70


anos e moradora do Conjunto João XXIII. Ela precisava trocar o seu
título de eleitor, pois há anos não podia mais votar:
- Vi na televisão um senhor de cem anos votando e resolvi que
precisava voltar a exercer minha cidadania para ajudar a melhorar o
lugar onde eu vivo, contou (Leda Rodrigues, Edição 35, p.3).

Mas será que os moradores tem realmente voz através do “Alô


Comunidade”? Analisando o jornal deve-se ter em mente que não se trata de uma
auto-representação ‘transparente’ da população atingida sobre si mesma. Caso
optemos por seguir as sugestões de Spivak (1988), a resposta deve ser negativa: o
subalterno não pode falar, portanto, não pode representar-se. Não tem voz29. Mas a
representação dele pelo poder dominante pode ser a de um subalterno falante,
exatamente como acontece com a viúva indiana de Spivak (1988), ou no caso sob
exame em Santa Cruz. Aquilo que ele (ou ela, pois as mulheres são alvo de especial
atenção no jornal) pode falar termina sendo restrito, mesmo repetitivo, em torno da
mesma idéia central: com a TKCSA este espaço tornou-se melhor e as pessoas
estão satisfeitas com a industrialização, além da negação sutil da existência de uma
insatisfação popular legítima contra a empresa naquele espaço. A representação do
espaço, assim, se afirma por quantidade e repetição também:

Minha família vive aqui há mais de 60 anos. Hoje há uma cooperação


dos moradores com a empresa e até uma simpatia da comunidade
pela CSA (Elaine Andrade, moradora local, edição 6, p.3 – grifo
nosso);

A CSA me deu o primeiro emprego. Desde sua construção, a maior


parte da minha família trabalha aqui. Faz pouco tempo, mas daqui a
uns anos vamos olhar para trás e ela será parte de nossa história
(Caio Fernandes, operador de lingotamento, morador local, edição 24,
p.3);

Mudou quase tudo em Santa Cruz nos últimos anos, mas nós, que
somos mais ‘antigos’, sentimos que a comunidade está mais segura. A

                                                                                                               
29
A voz do Estado, no entanto, sim aparece de forma razoavelmente ‘transparente’ no jornal, pois é
conveniente à representação do espaço que se busca ilustrar. Nas edições 4 e 5 (Abril e Maio de
2012), por exemplo, os secretários de Saúde e Meio Ambiente dão entrevistas para o Alô Comunidade.
A relação entre a TKCSA e os poderes executivos municipal, estadual e federal sempre foi das
melhores: a empresa recebeu seu terreno como doação, não paga ISS nem ICMS, além de ter
recebido dois generosos empréstimos do BNDES, totalizando R$ 2,3 bilhões. No entanto, os fortes
impactos à população e ao meio ambiente obrigam as autoridades públicas a posicionar-se
verbalmente contra a empresa (sem jamais retirar-lhe os benefícios), pois a insatisfação popular pode
traduzir-se em perda de votos em um local eleitoralmente importante, como Santa Cruz e adjacências.

  20  
partir do início dos projetos da CSA começamos a notar uma redução
na violência (Dona Tita, edição 8, p.2);

Há 70 anos Santa Cruz só tinha uma rua e hoje cresceu, junto com o
Brasil. Mudou para melhor, mas ainda é preciso dar mais estudo aos
jovens daqui (Vitorino Andrade, edição 11, p.3);

Nos últimos anos as empresas instaladas no Distrito Industrial de


Santa Cruz trouxeram desenvolvimento e mais empregos para a
região (Matéria “Capacitação Profissional”, edição 15, p.3).

A industrialização intensiva da região é percebida cotidianamente por todos,


pois tem alterado as práticas espaciais de Santa Cruz, como no caso do fechamento
da saída da Reta João XXIII para a estrada Rio-Santos, de modo a torná-la de uso
exclusivo da TKCSA. Junto com essa transformação do espaço decorrente daquilo
que Lefebvre (1974) chamaria de “modo de produção”, as representações do
espaço da “classe dominante” precisam justificar essas mudanças concretas
percebidas, essa sensação de transformação em curso, de modo a garantir que a
percepção local seja que aquela industrialização tem “melhorado a vida” em vários
aspectos naquele espaço, conforme atestam os depoimentos acima: na educação,
na infra-estrutura, na questão do emprego e até mesmo segurança pública, mesmo
quando a própria Polícia Militar divulga dados sobre o aumento na criminalidade
naquela área nos últimos anos devido à migração de criminosos fugindo das
Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em outras regiões da cidade30.

A figura 1 ilustra bem a narrativa histórica promovida pelo “Alô Comunidade”:

Figura1: industrialização

                                                                                                               
30
O GLOBO, 31/10/13, disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/policia-militar-atribui-aumento-de-
crimes-deslocamento-de-tropas-para-atuacao-em-protestos-10611428

  21  
A disjuntiva entre dados concretos e as representações do espaço contidas
no “Alô Comunidade” não pode ser atribuída a uma falha editorial ou falta de acesso
a informações por parte da TKCSA, pois trata-se de uma empresa que realiza
inúmeras pesquisas sobre os territórios e História de Santa Cruz e adjacências.
Trata-se, isto sim, da imposição de uma representação do espaço (“menos
violência”), mesmo que às custas de respaldo empírico.

Além da já mencionada sondagem encomendada ao Ibope, a TKCSA


realizou um “censo social” sobre a região de seu entorno, incluído como
condicionante do processo de licenciamento prévio sob uma rubrica no valor de R$
450 mil31. Ou seja, não se tratou de uma pesquisa menor, mas de um “diagnóstico”
aprofundado daquela formação social. Lefebvre (1974:47) diria que ela teve acesso
privilegiado aos “códigos espaciais” para decifrar aquele espaço e deles fez bom
proveito político. Esse conjunto de informações permitiria o máximo de precisão nos
projetos ‘responsabilidade social corporativa’ da TKCSA no futuro, caso a resistência
popular crescesse: ela passou a saber mais do ninguém quais as carências da
população local como um todo, quais suas percepções sobre aquele espaço e, mais
importante, quais os seus desejos mais imediatos para sentir-se com ‘uma vida um
pouco melhor’. Esse mesmo saber proporcionou o máximo de eficácia para o “Alô
Comunidade”.

Assim, novamente Lefebvre (1974) aparece como útil para o caso em


questão. De acordo com ele, a hegemonia na produção do espaço é uma forma de
dominação que precisa de “mediação humana”, na forma de “políticas públicas,
líderes políticos e partidos, mas também de um bom número de intelectuais e
especialistas” (LEFEBVRE, 1974:10). Foram esses intelectuais e especialistas que
prepararam o “censo social” de 2009 da TKCSA, um conhecimento que a empresa
utilizou para tirar vantagem “operacional” na luta pela produção de representações
do espaço e pela disseminação da ideologia dominante em suas adjacências,
principalmente através do “Alô Comunidade”.

The ruling class seeks to maintain its hegemony by all available


means, and knowledge is one such means (1974:10);
“Representations of space have at times combined ideology and
knowledge within a (social-spatial) practice. (...) the area where
knowledge and ideology are barely distinguishable is subsumed under
the broader notion of representation, which thus supplants the concept
of ideology and becomes a serviceable (operational) tool for the

                                                                                                               
31
Tabela INEA, nº.1 (anexo).

  22  
analysis of spaces, as of those societies which have given rise to them
and recognized themselves in them (1974:45 – ênfase no original).

E a representação permitida, derivada do conhecimento proporcionado pelo


censo, é pouco elástica. Ao fim, a presença da empresa tem que ser justificada, de
uma forma ou de outra, mediante um discurso sobre o espaço e uma representação
abstrata e romantizada do bairro de Santa Cruz. Não importa a sua origem, classe
social ou status social no local; não importa se você é um indivíduo ou uma empresa
multinacional, uma cooperativa de artesanato ou “Repórter Comunitário”. O que
importa é que todos gostamos de Santa Cruz, temos uma relação afetiva com este
espaço e, de modo geral, estamos satisfeitos com a vida aqui, em especial com as
pequenas melhorias introduzidas pelo capital privado.

Uma Reta tão especial quanto a nossa merecia que alguém contasse
a sua história. Porque nem sempre ela está apenas nos livros, mas
dentro das pessoas que dão vida às suas ruas e lotes cheios de letras
e números e à sua gente batalhadora e feliz. Com o apoio da
ThyssenKrupp CSA, o Cinemão percorreu cada esquina e reuniu
pessoas tão diferentes, mas com algo em comum: o amor por
fazer parte de Santa Cruz (AC, edição 34, p.3 – grifo nosso);

Trocamos cartas durante dois anos até que decidimos nos casar e eu
me mudei para Santa Cruz, onde ele já morava (...) Desde que vim
para cá sou bem mais feliz (Delcia Boier, moradora, edição 26, Março
de 2014, p.4);

Olha a alegria da Luciana Paula e do Wallace dos Santos, ganhadores


do concurso cultural O Amor Está no Ar no Alô! Eles se conheceram
em um baile de charme e, desde então, não se desgrudaram mais.
Para ficar mais perto do seu amor, Paula veio morar em Santa Cruz e
trouxe junto toda a família, que gostou do bairro e decidiu ficar
também. O Alô Comunidade! vai presentear o casal com um final de
semana romântico e inesquecível. Parabéns! (Edição 17, Junho de
2013, p.4).

Essa instrumentalização das emoções e a produção de um espaço


romantizado são constantes no jornal, podendo ser sintetizadas pela expressão: “Eu
amo Santa Cruz”. Além de propagar a noção de satisfação incondicional com aquele
espaço, essa construção remete ao slogan “Eu amo Nova Iorque”, descrito pelo
lefebvriano David Harvey (2007:53) como uma representação idílica de um espaço
que estava sendo progressivamente transformado em prol dos interesses
financeiros, em fins dos aos 1970, às custas de direitos sociais, como o direito das
classes populares àquela cidade. Em ambas, as lutas que resultam na produção do
espaço significaram uma hegemonia dos interesses privados sobre os direitos

  23  
populares; em ambas, as representações do espaço características desse processo
transmitiam um sentimento de afeição pelo espaço (perdido), numa compensação
abstrata daquilo que se lhes estava sendo usurpado concretamente.

Outros aspectos relevantes da representação do espaço pelo “Alô


Comunidade” mereceriam análise, mas o ponto já parece estar suficientemente
nítido a esta altura. Temas como militarização, mercado de trabalho e
empreendedorismo são freqüentes no jornal, assim como o foco especial nos
públicos feminino, idoso e infanto-juvenil (pessoas que passam mais tempo no bairro
e sustentam a vida comunitária), devem ser analisadas em trabalhos futuros. O
sucesso do jornal, no entanto, já permite sugerir algumas conclusões. A principal
delas diz respeito à consolidação da concepção do espaço em vigor e os desafios
colocados para aqueles que insistem em resistir no local.

4. Conclusão: rumo ao espaço diferencial?

O espaço abstrato, para Lefebvre é o “espaço do poder” (1974:51). Neste


espaço, a “História é experimentada como nostalgia”, exatamente como as
representações do espaço no “Alô Comunidade” retratam o passado romantizado,
sem prejuízo de também afirmarem um presente “melhor”. Mas seria esse poder
insuperável? Em Santa Cruz as relações de dominação parecem ter encontrado um
equilíbrio difícil de mudar: apesar dos impactos sentidos por todos, apenas um
pequeno grupo de moradores segue mobilizando-se contra a TKCSA. Os demais
seguem suas vidas, tornando-se “resilientes” (Cooper & Walker, 2011; Chandler,
2013), adaptando-se em relação àquilo que lhes foi imposto: viver a poucos metros
da maior siderúrgica do continente.

A questão foi levantada por Lefebvre (1974), que se preocupava com o


“silêncio” dos “usuários” do espaço abstrato capitalista,

Why do they allow themselves to be manipulated in ways so damaging


to their spaces an their daily life without embarking on massive revolts?
Why is protest left to ‘enlightened’, an hence elite, groups who are in
any case largely exempt from those manipulations? (1974:51).

Em Santa Cruz, as entidades que tentam apoiar o reduzido grupo de


moradores que resiste também se perguntam por que tão pouca gente se dispõe a

  24  
juntar-se à resistência. É salutar que tais entidades consigam ajudar os moradores
em mobilizações de denúncia e protesto, mas jamais foram capazes de estimulá-los
a pensar alternativas para aquele espaço. Quem trabalha com os moradores que lá
resistem relata que esse é o momento mais difícil de suas ‘oficinas’. É como se não
fosse possível conceber o espaço, hoje dominado pela TKCSA, de outra maneira.
Não há até o momento condições para uma prática contra hegemônica de conceber
o espaço, de construir representações do espaço alternativas em Santa Cruz.
Lefebvre (1974) e o “Alô Comunidade” ajudam na compreensão desta derrota
popular. Pois não existirá concepção diferencial do espaço enquanto as atuais
representações estiverem tão presentes. Hoje, são nitidamente hegemônicas, além
de amparadas pelo poder material do Estado e do grande capital.

Ainda que o tipo de espaço capitalista, abstrato, seja composto de “conflitos


e contradições” que “irão (ou, em alguma medida, poderão) levar a sua própria
dissolução” (LEFEBVRE, 1974:51), nada leva a crer que, neste momento, esta
dissolução esteja próxima em Santa Cruz. O “espaço diferencial”, oposto ao
abstrato, e que “carrega as sementes de um novo tipo de espaço”, ainda não
germinou por lá. Assim como concluído resignadamente por Spivak (1988), também
em Santa Cruz “a representação não desapareceu” (1988: 104) e as possibilidades
de uma efetiva ação contra-hegemônica seguem reduzidas, mesmo que a
resistência continue.

Lefebvre, no entanto, fornece uma nota de otimismo: “A classe trabalhadora


ainda não disse sua última palavra” (1974:23). Sua concepção de transformação
social, no entanto, por mais que se apóie na construção espaços diferenciais (ao
abstrato) culmina em uma idéia holística, de “revolução mundial” (1974:23), que
produziria um “espaço mundial”, um “experimento humano” em oposição ao
“esforços homogeneizantes do Estado, do poder político, do mercado mundial e do
mundo da mercadoria” (1974: 64). Assim, pode-se concluir que uma nova produção
do espaço em Santa Cruz esteja ligada ao mesmo processo em nível mundial,
tornando inútil esperar uma mudança de rumos naquele local enquanto o sistema
capitalista continuar expandindo-se na velocidade atual naquela região e no resto do
planeta.

Por outro lado, há de se reconhecer as vitórias que a resistência local


conseguiu. Nos primeiros materiais institucionais da TKCSA, as representações do
espaço (em forma de desenhos estilizados) traziam bosques e pastos onde na
verdade estão as casas dos moradores locais. Naquele concepção inicial do espaço,
eles simplesmente não existiam para os acionistas que viram aqueles folhetos

  25  
institucionais, que lhes apresentava uma imagem desenhada de Santa Cruz sem as
casas, ruas e pessoas. Com a revolta popular inicial, a empresa teve que sofisticar-
se, culminando no advento do “Alô Comunidade”, onde aquela mesma sociedade,
antes literalmente apagada, passou a ocupar o primeiro plano nas representações:
passaram da inexistência para o centro das representações e preocupações dos
poderes dominantes. Isso não resolve o problema, mas assim como Edward Said
(2003) insistia sobre a causa palestina, a primeira tarefa era conquistar o
reconhecimento da existência da própria luta – e isso já foi conquistado em Santa
Cruz, pela própria razão de ser do “Alô Comunidade” e pelas vozes diferenciais
(“redes de boataria32”) que insistem em penetrar pelas margens de sua
representação do espaço hegemônica. Assim, nada impede que a construção
contra-hegemônica dos espaços mundiais de Lefebvre (1974) possam, ou devam,
partir justamente de lá também.

5. Referências bibliográficas

BRENNER, N.; THEODORE, N. “Cities and Geographies of ‘Acutally Existing Neoliberalism”.


In: BRENNER, N.; THEODORE, N. (Eds). Spaces of Neoliberalism: Urban reestructuring in
North America and Western Europe. Malden: Blackwell, 2002.

CHANDLER, D. “Resilience and the Autotelic Subject: toward a Critique os Societalization of


Security”. In: International Political sociology, nº 7, 2013.

COOPER, M.; WALKER, J. “Genealogies of resilience: From system ecology to political


economyof crisis adaptation”. In: Security Dialogue, 42(2), 2011.

HARVEY, D. Breve história del neliberalismo. Madrid: Akal, 2007.

_________ . Espacios de esperanza. Madrid: Akal, 2003.

LEFEBVRE, H. The production of space. Oxford: Blackwell, 1991 [1974].

MASSEY, D. For Space. London/Thousand Oaks: Sage, 2005.

                                                                                                               
32
AC, edição 14, p.3

  26  
PACS – INSTITUTO POLITICAS ALTERNATIVAS PARA O CONE SUL. Companhia
Siderúrgica do Atlântico – TKCSA: Impactos e irregularidades na Zona Oeste do Rio de
Janeiro. 3ª edição, atualizada. Rio de Janeiro: Fundação Rosa Luxemburgo, 2012.

________ . Responsabilidade social pra quê e pra quem? Análise crítica dos projetos de
responsabilidade social corporativa da ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico –
TKCSA em Santa Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. 1ª edição. Rio de Janeiro, 2015.

RAMIRO, P. “Las multinacionales y la Responsabilidad Social Corporativa: de la ética a la


rentabilidad”. En: ZUBIZARRETA, J.; RAMIRO, P. (orgs.). El Negócio de la Responsabilidad:
crítica de la Responsabilidad Social Corporativa de las empresas transnacionales. Barcelona:
Icaria, 2009.

SAID, E. Cultura e Política. São Paulo: Boitempo Editorial: 2003.

SPIVAK, G. “Can the subaltern speak?” In: Nelson, C.; Grossberg, L. Marxism and the
interpretation of culture. Basingstoke: Macmillan Education, 1988.

WALKER, R. After the globe, before the world. London/New York: Routledge, 2010.

__________ . Inside/Outside: International Relations as political theory. Cambridge/New


York: Cambridge University Press, 1993.

ZUBIZARRETA, Juan; RAMIRO, Pedro (orgs.). El Negócio de la Responsabilidad: crítica de


la Responsabilidad Social Corporativa de las empresas transnacionales. Barcelona: Icaria,
2009.

Anexos:

  27  
Tabelas do INEA – Instituto Estadual do Ambiente. Divulgadas pelas Secrataria de Estado de Ambiente
do Rio de Janeiro durante Audiência Pública na Comissão de Direitos Humanos da Assembléia
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em agosto de 2013.

  28  
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