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RESUMO

SOUZA, Ana Beatriz R. de. “Mártires da véspera”: a memória em torno dos voluntários
da pátria (1870-1922)

A Guerra do Paraguai foi acontecimento marcante na história política do Império do


Brasil. Afetou o poder do Estado, e de forma um tanto surpreendente, afetou segmentos
diversos da sociedade brasileira da época no sentido de causar o envolvimento direto com o
conflito militar então deflagrado. Esse aspecto se associou, entre outros desdobramentos, a
criação dos batalhões de “Voluntários da Pátria”. O objetivo deste trabalho é analisar como
ocorreu a formação da memória referente a esses “soldados-cidadãos”, os batalhões dos
“Voluntários da Pátria” e, em especial, examinar suas demandas por pagamentos, assistência e
até mesmo participação política, e problemas no pós-Guerra do Paraguai, tendo como cenário
a cidade do Rio de Janeiro, capital do Império e centro difusor das idéias políticas.

Palavras-chave: Voluntários da pátria. Memória. Guerra do Paraguai. Segundo Reinado.

ABSTRACT

SOUZA, Ana Beatriz R. de. "Martyrs of Eve": the memory around to the Homeland’s
Volunteers (1870-1922)

The Paraguay War was remarkable event in the political history of the Brazilian
Empire. Affected the administration’s power, and in a surprising way affected various
segments of the Brazilian’s society in order to cause its direct involvement with the military
commenced conflict. This aspect was related, among others developments, to the creation of
the "Homeland’s Volunteers" battalions. The objective of this study is to analyze how these
memory of the "citizen-soldiers" groups were formed, the "Homeland’s Volunteers"
battalions and, in particular, examine their claim for payments, assistance and even political
participation, and post Paraguay War problems, having Rio de Janeiro city as a scenery,
capital of the Empire and diffuser center of political ideas.

Keywords: Homeland Volunteers. Memory. Paraguay War. Second Empire.


“MÁRTIRES DA VÉSPERA”: A MEMÓRIA EM TORNO DOS VOLUNTÁRIOS DA
PÁTRIA (1870-1922)
Ana Beatriz R. de Souza. Doutoranda em História pela UERJ
abyasouza@yahoo.com.br

“Onde quer que se prestasse homenagem aos grandes homens da


pátria, os soldados eram os primeiros a merecer estátuas em praça
pública, pois davam menos ensejo a debates do que políticos e
mostravam-se como os primeiros servidores da nação”
(AGULHON,1988. p. 159-160).

Ao contrário do que nos ensina Maurice Agulhon sobre a criação de símbolos pátrios,
o Império pós-guerra do Paraguai não se preocupou em erigir estátuas de soldados para
reafirmar o sentimento nacional, no máximo se limitou a mudança nos nomes que algumas
ruas, citando as principais batalhas e a data da morte de Solano López, e uma chamada
“Voluntários da Pátria” no ainda distante bairro de Botafogo. Atualmente vemos no Bairro da
Urca, zona sul do Rio de Janeiro, em frente de um dos cartões postais do país e palco de
visitação de turistas do mundo inteiro – o Pão de Açúcar – uma lembrança do episódio da
“Retirada de Laguna”, tão bem descrita por Taunay, homenageando o que chamam de “os
bravos da pátria”, com referência aos voluntários. Esse conjunto alegórico, que atualmente
passa por reforma, não foi pensado durante o Império, mas já na República durante o governo
Vargas. Mas qual seria o motivo para que os voluntários, criação do imperial, fossem
esquecidos durante os últimos anos da monarquia e só lembrados nos governos republicanos?
Como diria Paolo Rossi, “a memória é um jogo de revelação e encobrimento, de manifestação
e ocultação” (ROSSI, 2007, p. 19). O próprio imperador deixou-se retratar e esculpir
(KNAUSS, 2001, p. 1-4) trajando uniforme militar, como se bastasse para encarnar a pátria e
os voluntários. A figura do voluntário poderia prestar-se à autocelebração nacional, caso não
refletisse muito mais as contradições de uma sociedade escravocrata do que sua união na
cruzada contra o “despotismo do bárbaro” Solano López (Armelle Enders. 2014. pp. 229).
Procuro neste trabalho traçar linhas gerais referentes a pesquisa em andamento acerca da
memória construída em torno da imagem dos voluntários da pátria, entre o final da guerra do
Paraguai (1870) e o ano de 1922, marcos cronológicos escolhidos de modo a balizar-nos na
conjuntura de mudanças nos rumos da política do Brasil: do processo crise do sistema
imperial até as comemorações relativas ao centenário da Independência, momento em que a
memória relativa ao Império é retomada e algumas de suas criações retornando à cena
pública.
A memória sem dúvida tem relação não só com o passado, mas também com a
identidade e, assim (indiretamente) com a própria persistência no futuro (ROSSI, 2007, p. 24).
E, com relação à constituição dessa memória,
O mundo [...] está cheio de lugares nos quais estão presentes imagens
que tem função de trazer alguma coisa à memória. Algumas dessas
imagens, como acontece nos cemitérios, nos lembram pessoas que não
mais existem. Outras, como nos sacrários ou nos cemitérios de guerra,
relacionam a lembrança dos indivíduos à dos grandes eventos ou das
grandes tragédias.[...] Nos lugares da vida cotidiana, inúmeras
imagens nos convidam a comportamentos, nos sugerem coisas, nos
exortam aos deveres, nos convidam a fazer, nos impõe proibições, nos
solicitam de diversas maneiras (ROSSI, 2007, p. 23).

Mas pensemos como a memória pode ser construída e esquecida conforme as vontades
políticas. Tomando como base o texto de Michel Pollack “Memória, esquecimento e silêncio”
(POLLACK, 1989, p. 3-15), podemos analisar os fatos posteriores ao retorno desses
voluntários. A partir de 1875, com a ampliação dos debates em torno da modernização do país
pelo movimento abolicionista, realmente os voluntários ficaram esquecidos. Praticamente não
existem mais matérias em jornais ou medidas do governo no sentido de rememorar os
“cidadãos–soldados”. O grande volume dos processos de pedido de pensão e de pagamento
dos prêmios, muitos deles indeferidos ou sem resposta por parte do governo, nos demonstra
que, após esse período muito pouco, ou nada na verdade, foi feito com relação aos
voluntários. Para a historiografia já está mais do que reafirmado que a guerra do Paraguai foi
um divisor de águas no Império. Como resultado desse processo veremos que a partir da
década de 1870 D. Pedro II perderá a inviolabilidade de seu poder, com novas doutrinas e
pensamentos surgindo e a criação do Partido Republicano, após o manifesto de 1870
(BARBOSA. 2007, p. 178). Muitos voltariam da guerra descontentes com a sociedade
tradicional e convertidos ao ideário abolicionista. Outras novidades ganharam espaço: um
movimento abolicionista no Parlamento e nas ruas, um “club”, um jornal e um partido
republicanos, a revolta popular contra os impostos do vintém; a emergência de soldados na
vida política nacional (SILVA , 1997, p.112). Depois da guerra, não só a escravidão, mas as
profundas desigualdades sociais brasileiras pareciam inaceitáveis para aqueles que retornaram
do conflito, como no caso de D. Obá II que escrevia: “O governo deu lugar a todos nós irmos
para o teatro da guerra [...] hoje estamos vendo nossos irmãos morrendo à fome, sem termos
o necessário para nossa subsistência” (SILVA , 1997, p.144).
Para esses homens, alistamento e cidadania pareciam termos inseparáveis, mas a
realidade mostrou que não era bem desta forma. A população crescia, o governo já preparava
a vinda em grande escala de imigrantes, as ruas se urbanizavam, negros e homens pobres de
toda monta, fugiam da seca que maltratava o Nordeste e rumaram para a Corte, onde
pretendiam ganhar a vida, engrossando o número de cortiços na cidade e aumentando a cidade
em direção ás áreas congestionadas da Cidade Nova, Engenho Velho e os subúrbios. Um
exemplo é o censo de 1872 que já demonstrava que 60% dos homens de cor da cidade já eram
libertos (SILVA , 1997, p.59).
E os voluntários? Ainda segundo Pollack, “o longo silencio sobre o passado, longe de
conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso
de discursos oficiais” (POLLACK, 1989, p.5). Assim, desta forma, os voluntários eram
esquecidos pela sociedade, mas ainda se afirmavam como grupo. Transmitindo
cuidadosamente “as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades. [...] Opondo-
se à mais legítima das memórias coletivas, a memória nacional, essas lembranças são
transmitidas em redes de sociabilidade efetiva e/ou política” (SILVA , 1997, p.3 e 6). Nesse
sentido, podemos descobrir que índios no Piauí realizam até os dias atuais ritos com as fardas
dos que foram voluntários da pátria (SANTANA, 2013, p.178). Cito ainda a criação em 1888
de um “Club Beneficente dos voluntários da Pátria e oficiais honorários do exército”, que
tem seu estatuto, dedicado à Imperatriz (uma boa idéia a se pensar o motivo de não dedicar ao
imperador, mas fica para uma outra ocasião), depositado na Biblioteca Nacional, em uma
brochura encadernada de veludo verde, com inscrições douradas e a insígnia dos voluntários
da pátria. Onde podemos ler em suas regras, que fora estabelecida no Rio de Janeiro,
compondo-se de um número ilimitado de sócios, todos voluntários da pátria e oficiais
honorários do exército, com a finalidade de socorrer seus membros.
Esses voluntários serão lembrados novamente só na República quando o presidente
Marechal Hermes da Fonseca, veterano da guerra do Paraguai, resolve pagar todos os prêmios
devidos pelo Império, e atualizar os valores daqueles que já estavam sendo pagos. Um ótimo
tema de pesquisa seria examinar os motivos que levaram a república a prestigiar esses
voluntários, visto que o objetivo era criar um novo panteão de heróis e apagar quaisquer
vestígios imperiais (CARVALHO. 1990). Em 13 de agosto de 1907 foi promulgada a lei de
número 1.687, que inicia os processos para o pagamento das dívidas do Império com os
voluntários (O dia, de 22 de dezembro de 1910). Esses processos podem ser encontrados no
Arquivo Histórico do Exército, mas pela quantidade e a não organização do fundo, é uma
aventura pesquisá-los. Neles encontramos fés de ofício, diplomas, relatórios médicos e uma
infinidade de outros documentos que, para o pesquisador de guerra do Paraguai, são uma
preciosidade. Nesse momento os jornais retornam os noticiários sobre os voluntários. A partir
de então esses jornais, principalmente as revistas semanais, passam a publicar biografias e até
mesmo entrevistas com alguns voluntários. A reevocação não é algo passivo, mas a
recuperação de um conhecimento ou sensação anteriormente experimentada (ROSSI, 2007, P.
16). Os cartórios passaram a emitir certidões gratuitas aos voluntários que não pudessem
pagar pelo serviço (Gazeta de notícias, 06 de janeiro de 1910). Esses mesmos voluntários
foram chamados, por exemplo, para a cerimônia de comemoração da independência do Brasil,
depositaram flores na estátua em homenagem a José Bonifácio no Largo de São Francisco e
nas comemorações pela lembrança do General Osório (acredito que tenha sido o translado de
seus restos mortais para a Praça XV de novembro, apesar de não se ter referências sobre o
fato). “Os velhos guerreiros”, como foram chamados, agora participavam dos eventos
nacionais mais importantes, “sob o olhar carinhoso de patriotas da geração de agora”
(Revista da Semana, 5 de junho de 1910). Sendo noticiado inclusive um álbum que fora por
eles oferecido em 25 de agosto de 1870 ao Duque de Caxias.
Um fato curioso e digno de nota é que durante a primeira guerra mundial, esses
voluntários expressavam suas opiniões nos jornais. Em artigo no dia 16 de abril de 1917,
publicado no jornal A Razão, esses voluntários, em sua maioria septuagenários, se oferecem
para voltar ao serviço militar, se organizando novamente e dando ao batalhão o nome do
Ministro da Guerra à época do fato, a fim de ajudar o Brasil no que fosse necessário no
contexto da guerra travada na Europa (A Razão, 16 de abril de 1917).
Muito ainda precisa ser pesquisado e escrito sobre esses homens e a construção ou
esquecimento de sua memória. Termino este trabalho com uma publicação comovente de
Escragnolle Dória, então Diretor do Arquivo Nacional, no jornal A ilustração brasileira, em
1929. Sob o título “Bodas de Glória”, o periódico faz um resumo das principais personagens
que fizeram parte do corpo de voluntários da pátria. Reproduzindo um poema de Castro
Alves, em despedida a estudantes voluntários da pátria, numa noite no Teatro de Santa Isabel,
termina a publicação dizendo:
A primeiro de março de 1870, encerrou-se este tumultuoso período da
vida nacional. Cinqüenta anos se passaram sobre ele, jogando cinzas.
Um por um, os espectadores do teatro da guerra do Paraguai, vão se
retirando da cena do mundo. Alguns ainda restam nas sombras dos
lares, no interior do país, no asilo de Inválidos da Pátria. A estrada das
recordações é a margem de túmulos. Sobre muitos deles hoje, palmas
e flores de um país inteiro.”(A Ilustração Brasileira, março de 1929)
Bibliografia
AGULHON, Maurice. Histoire vagabonde I. Paris: Gallimard, 1988.

ARAÚJO, Johny Santana. “A guerra do Paraguai na historiografia nacional e regional:


um paradigma de pesquisa histórica no Piauí” In. Revista FSA. Teresina, v. 10, n. 2, art.
11, pp. 178-194, Abr./Jun. 2013.

BARBOSA, Silvana Mota. “Panfletos vendidos como canela: anotações em torno do debate
político dos anos 1860”. In. Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: O imaginário da República no


Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

ENDERS, Armelle, Os vultos da nação: fábrica de heróis e formação dos brasileiros. Rio
de Janeiro: FGV Editora, 2014

KNAUSS, Paulo. “A imagem recusada: a estátua equestre de D. Pedro II”. In. Revista
primeiros escritos, Niterói: LABHOI, nº 7, julho de 2001.pp. 1-4

POLLACK, Michael. “Memória, Esquecimento, Silêncio”. Estudos Históricos, Rio de


Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

ROSSI, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento. Seis ensaios da história das idéias.
São Paulo: UNESP, 2007.

SILVA, Eduardo. Dom Obá II d‟África, o Príncipe do Povo: vida, tempo e pensamento
de um homem livre de cor. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1997.

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